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História da Filosofia

Quarto volume
Nicola Abbagnano

DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO:
ÂNGELO MIGUEL ABRANTES.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA

VOLUME IV

TRADUÇÃO DE:
JOSÉ GARCIA ABREU

CAPA DE: J. C.

COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO

TIPOGRAFIA NUNES R. José Falcão, 57-Porto

EDITORIAL PRESENÇA . Lisboa 1970

TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA

Copyright by NICOLA ABBAGNANO

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA,


LDA. - R. Augusto Gil, 2 cIE. - Lisboa

XIV

ALBERTO MAGNO

§ 267. A OBRA DE ALBERTO MAGNO

Chegada ao ocidente latino através das especulações árabe e judaica, a obra


de Aristóteles pareceu, à primeira vista, estranha à tradição originária da
escolástica. O primeiro resultado do seu aparecimento foi, como vimos, o
entrincheiramento da tradição escolástica na sua posição fundamental, o

,regresso à doutrina autêntica daquele que fora até então o inspirador e o


guia da investigação escolástica, Santo Agostinho. Este regresso provoca um
trabalho de revisão crítica e de sistematização das doutrinas escolásticas
fundamentais, o qual alcança a sua máxima expressão na obra de S. Boaventura.
São utilizadas neste trabalho doutrinas particulares e sugestões
especulativas do aristotelismo, sem que se faça a mínima concessão aos pontos
básicos do próprio aristotelismo e ao espírito que os anima. Paralelamente,
as autoridades eclesiásticas advertem o perigo contido na nova corrente e
procuram interromper-lhe o caminho com proibições e limitações frequentemente
repetidas 1.

Mas esta situação modifica-se quando o aristotelismo encontra o homem que lhe
saberá dar o direito de cidadania na escolástica latina. Este homem é Alberto
Magno. Aquilo que Boécio fizera para o mundo latino do século VI, dando-lhe a
possibilidade de se acercar de Platão e Aristóteles; aquilo que Avicena
fizera para os muçulmanos do século XI oferecendo-lhes o pensamento de
Aristóteles e dos Gregos, fê-lo Alberto Magno para a escolástica latina do
século XIII, oferecendo-lhe a completa enciclopédia científica de
Aristóteles, numa exposição que faz com que o pensamento do Estagirita perca
aquele carácter de estranheza que o revestia aos olhos dos escolásticos
latinos. Através da imensa e paciente obra de Alberto Magno, abre-se a
possibilidade para que o aristotelismo se insira como um ramo vital do tronco
da escolástica latina, tal como havia vivido e prosperado nas escolásticas
muçulmana e judaica. Alberto Magno descobre e explora pela primeira vez o
caminho mediante o qual os pontos básicos do pensamento aristotélico

:L Esta proibição foi estabelecida por quatro vezes durante a primeira metade
do século XIII. Em 121.O aparece no Concílio provincial de Paris a primeira
proibição das obras de Aristóteles e seus comentários. Em 1215, Roberto de
Courçon legado pontifício, renova as proibições. Em 1231, Gregório XI proíbe
a Física e a Metafísica de Aristóteles e nomeia uma comissão -composta por
Guilherme de Auxerre, Simão d'Authie e Estêvão de Provins para revisão dos
textos. Em 1245 esta proibição passou a vigorar também na Universidade de
Toulouse. Porém já em 1252 se tornou obrigatório para os candidatos de
nacionalidade inglesa o conhecimento de De anima, e em 1255 tal obrigação foi
imposta a todos os candidatos e para todas as obras de Aristóteles. DENIFLE-
CI-1ATELAIN, Chartularium Universitatis Parisiensis, 1, 70, 78-79, 138, 227.

poderão servir para uma sistematização da doutrina escolástica, sem atraiçoar


nem abandonar os resultados fundamentais da tradição. Torna-se claro, com
Alberto Magno, que o aristotelismo não só não torna impossível a investigação
escolástica, isto é, a compreensão filosófica da verdade revelada, mas
constitui o fundamento seguro de tal investigação e oferece o fio condutor
que permitirá ligar entre si as doutrinas fundamentais da tradição
escolástica.

Com a sua obra, Alberto Magno anunciou esta possibilidade; mas só a realizou
parcialmente. Ã sua sistematização, falta a clareza e a profundidade de um
resultado definitivo. Um dos mais perspicazes dos seus críticos
contemporâneos, Roger Bacon (Opus minus, ed. Brewer, p. 325), acertadamente
assinalava já, falando do enorme sucesso de Alberto Magno, a deficiência
filosófica da sua obra. "Os escritos deste autor estão cheios de erros e
contém uma iinfinidade de coisas inúteis. Entrou muito jovem na ordem dos
pregadores; nunca ensinou filosofia, nunca pretendeu ensiná-la em nenhuma
escola; nunca frequentou nenhuma Universidade antes de se tornar teólogo;
nem teve possibilidade de ser instruído no seio da sua ordem, já que ele é,
de entre os seus irmãos, o primeiro mestre de filosofia". Na realidade, o
aristotelismo apresenta-se-lhe como um todo confuso, no qual não sabe
distinguir o pensamento original do mestre daquilo que lhe foi acrescentado
pelos intérpretes muçulmanos. Os erros históricos de Alberto Magno são
frequentes: considera Pitágoras como um Estóico, crê que Sócrates era
Macedónio, que Anaxágoras e EmpédocIeseram oriundos da Itália, chama a Platão
"prínceps stoicorum", e assim sucessivamente. Por outro lado, não chegou a
separar-se completamente do neoplatonismo agustiniano, do qual admite uma
doutrina típica: a concepção da matéria, não como simples potencialidade ou
privação de forma,

mas como dotada duma certa actualidade consistente na inchoatio formae: a


qual, como ele diz, "não é a coisa nem parte da coisa, mas é semelhante ao
ponto, que não é a linha nem parte da linha mas sim o seu princípio
incoativo" (De natura et origine aninwe, 1, 2). Finalmente, e isto é ainda
mais grave, Alberto Magno não fixou claramente o centro especulativo da sua
investigação, não sublinhou com vigor suficiente o princípio segundo o qual o
aristotelismo deve ser reformado para servir de fundamento à sistematização
filosófica da revelação cristã. Por todas estas razões, a sua obra teria
ficado como uma simples tentativa, não fora ter sido retomada e completada
por S. Tomás de Aquino.

§ 268. ALBERTO MAGNO: VIDA E OBRA

Alberto, denominado Magno, pertencia à família dos condes de BolIstãdt e


nasceu em Lavingen, na Suábia em 1193, ou, segundo outros, em 1206 ou 1207.
Estudou em Pádua, onde conheceu o geral dos dominicanos, Giordano o Saxão,
por influência do qual ingressou naquela ordem. As palavras de Roger Bacon
acima mencionadas, excluem a hipótese de ele ter seguido estudos regulares.
Entre 1228 e 1245 ensinou em vários conventos dominicanos. Em 1245 torna-se
mestre de teologia, em Paris; e foi neste período que teve como aluno S.
Tomás de Aquino. Em 1248 foi chamado a Colónia, para ensinar na Universidade
que acabava de ser fundada, e para aí o seguiu S. Tomás. Entre 1254 e
1257 ocupou o cargo de provincial dos dominicanos. Em 1256, numa viagem à
corte papal de Alexandre IV em Anagni, na Itália, conheceu o livro de
Guilherme de Santo Amor contra as ordens mendicantes e a doutrina de Averróis
sobre a unidade do intelecto. De 1258 a 1260 voltou a ensinar em Colónia,
após o que, durante algum tempo, foi bispo de Ratisbona e desempenhou
numerosas missões da sua ordem e da Igreja. Em
1269 ou 1270 voltou para Colónia, onde morreu em 15 de Novembro de 1280.

A obra de Alberto Magno é vastíssima: abrange


21 volumes in folio na edição Jammy e 38 volumes in-4. na edição Borgnet.
Dizia expressamente, em todas as ocasiões, que só queria expor a opinião de
Aristóteles; de facto, a sua obra segue fielmente os títulos e as divisões
da obra aristotélica, da qual, embora não citando o texto, faz uma exposição
intercalada de comentários e digressões. Alberto Magno divide a
filosofia em três partes: filosofia racional ou lógica, filosofia real, que
tem por objecto aquilo que não for obra humana, e filosofia moral, que tem
por objecto as acções humanas. Os seus escritos de lógica consistem na
exposição dos escritos de Aristóteles, dos quás também utilizam os títulos.
Divide a filosofia real em física (e também aqui utiliza os títulos e a ordem
das obras aristotélicas); matemática (a cujo grupo pertence uma só obra,
Speculum astronomiae, de autenticidade duvidosa); e metafísica, à qual
pertencem a Metafísica e uma ampla paráfrase do Liber de causis. Ã filosofia
moral pertencem os dois Comentários à Ética e à Política.

Além destas obras que repetem o traçado da obra aristotélica, Alberto Magno
foi ainda autor de escritos teológicos: um comentário às Sentenças de Pedro
Lombardo, uma Sumina de creaturis, uma Summa theologiae, um comentário ao
Pseudo-Dionísio, um Comentário ao Antigo e Novo Testamento. Contra a doutrina
averroística, compôs ainda a obra De unitate intellectus. Este último e a
Metafísica pertencem provàvelmente aos anos 1270-1275. Todo o comentário
aristotélico foi composto por

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Alberto Magno entre o seu quinquagésimo e septuagésimo ano de idade.

Dissemos já que Alberto Magno não distingue, ou distingue mal, entre o


pensamento de Aristóteles e o dos seus intérpretes muçulmanos. Destes
intérpretes, é Avicena aquele que mais o influencia; serve-se também
amplamente da obra de Maimónides para a crítica e a correcção das teses
muçulmanas.
§ 269. ALBERTO MAGNO: FILOSOFIA E TEOLOGIA

O trabalho a que Alberto Magno se dedica é o de expor o pensamento de


Aristóteles. "Tudo aquilo que eu disse, disse-o como conclusão da Metafísica,
e de acordo com as opiniões dos peripatéticos: quem quiser discutir o que eu
disse leia atentamente os seus livros e dirija-lhes, não a mim, os louvores
ou as críticas que mereçam". E no final do livro Acerca dos animais: Eis o
fim do livro sobre os animais; com ele termina toda a nossa obra de ciência
natural. Limitei-me nesta obra a expor, o melhor que mo foi possível, aquilo
que os peripatéticos disseram; e ninguém poderá nela encontrar o que eu
próprio penso em matéria de filosofia natural" . Que esconderá
verdadeiramente esta fidelidade de Alberto Magno ao aristotelismo, tão
energicamente proclamada e frequentemente repetida? Evidentemente, que a
convicção de que o aristotelismo não é somente uma filosofia, mas a
filosofia, a obra perfeita da razão, o termo último do saber humano. Esta
admiração por Aristóteles, que Averróis (§ 241) explicitamente proclamava na
sua obra, é o pressuposto subentendido na posição de Alberto Magno. Este
pressuposto leva-o precisamente a separar com nitidez o domínio da filosofia
do da teologia. "Há quem pense, diz ele

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((Met., XI, 3, 7), seguir o caminho da filosofia e, na realidade, confunde a


filosofia com a teologia. Mas as doutrinas teológicas não coincidem, nos seus
princípios, com as da filosofia: a teologia fundamenta-se, não na razão,
mas na revelação e na inspiração. Não podemos pois discutir sobre questões
teológicas na filosofia" . E ainda, no De unitate (cap. l. ): "É necessário
verificar com razões e silogismos qual a opinião que devemos aceitar e
defender. Não falaremos portanto daquilo que ensina a nossa religião, nem
admitiremos nada que não possa ser demonstrado por intermédio dum silogismo".

Deste modo, o reconhecimento do aristotelismo como a autêntica filosofia,


leva Alberto Magno a separar nitidamente a filosofia, que procede por razões
e silogismos, da teologia, que se fundamenta na fé. Servindo-se, por um
momento, da linguagem de Santo Agostinho, afirma serem dois os modos da
revelação de Deus ao homem. O primeiro é o de uma iluminação geral, isto é,
comum a todos os homens, e é deste modo que Ele se revela aos filósofos. O
segundo é o de uma iluminação superior destinada a fazer intuir as coisas
sobrenaturais; e é nesta iluminação que se baseia a teologia. A primeira luz
transparece nas verdades conhecidas por si mesmas, a segunda, nos artigos de
fé (Sum. theol., 1, 1, q. 4, 12). A teologia é a fé que, segundo as palavras
de Santo Anselmo, vai em busca do intelecto e da razão (lb., 1, 1, q. 5). O
seu impulso reside na piedade religiosa, e tem, com efeito, por objecto tudo
aquilo que se relaciona com a salvação da alma (lb., 1, 1. q. 2). Mas a fé,
que no domínio religioso implica adesão e anuência e é a via que conduz à
ciência das verdades divinas, é, no domínio filosófico, pura credulidade
alheia a qualquer ciência. E isto porque a ciência se baseia na demonstração
causal e não em razões prováveis, e a fé só

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pode ter o valor de uma opinião provável (Ib., 1,


3, q. 15, 3).

Era a primeira vez, na escolástica latina, que se estabelecia tão nitidamente


a separação entre filosofia, e teologia. O domínio da filosofia fica reduzido
ao da demonstração necessária. Para além dele existirá também uma ciência,
mas uma ciência baseada nos princípios admitidos pela fé, e que por isso
obtém a sua validade da adesão e da anuência do homem à verdade revelada. O
aparecimento da autonomia da investigação filosófica coincide em Alberto
Magno com a exigência duma investigação naturalista baseada na experiência.
"Das coisas que aqui expomos, diz ele numa obra sobre botânica (De
vegetalibus, ed. Jessen, 339), algumas delas foram por nós comprovadas com a
experiência (experimento), enquanto que outras são mencionadas nas obras
daqueles que, não tendo delas falado com ligeireza, antes as comprovaram
também com a experiência. E de facto, só a experiência concede a certeza em
tais assuntos, pois que, acerca de fenómenos tão particulares o silogismo
nada vale".

§ 270. ALBERTO MAGNO: METAFíSICA

Aceitando o princípio de Aristóteles segundo o qual aquilo que é primeiro em


si não é primeiro para nós, Alberto Magno considera que a existência de Deus
pode e deve ser demonstrada, mas que tal demonstração terá de ser feita a
partir da experiência em vez de ser a priori. Reproduz, pois, as provas
cosmológicas e causais que a tradução escolástica. havia elaborado (S.
theol., 1, 3, q. 18). Deus é o intelecto agente universal que está perante as
coisas na mesma relação em que o intelecto do artífice está para a coisa
produzida, desde que este último produza as coisas por si próprio e não por

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uma disposição proporcionada pela arte (De causis,


1, 2, 1). Como intelecto, Deus tem em si mesmo as ideias, isto é, as espécies
ou razões de todas as coisas criadas, mas essas ideias não são distintas
dele, ainda que se diferenciem em relação às próprias coisas; já que ele só
se conhece a si próprio e duma forma imediata, sem nenhuma ideia ou espécie
intermediária (Summa theol., 1, 13, q. 55,
2, a. 1-2). Daqui resulta que sejam três os géneros das formas: o primeiro é
o das formas que existem antes das coisas existirem, isto é, no intelecto
divino como causa formativa delas; o segundo é o das formas que flutuam na
matéria; o terceiro é o das formas que o intelecto, através da sua acção,
separa das coisas (De nat. et or. animae, 1, 2). Estes três géneros de formas
constituem os três tipos de universais anie rem, in re e post rem,
solidamente admitidos pelo realismo escolástico. Mas Alberto Magno acrescenta
uma limitação importante: o universal, enquanto universal, só existe no
intelecto. Na realidade, está sempre unido às coisas individuais que são as
únicas que existem. Na realidade, o universal só existe enquanto forma que
constitui com a matéria as coisas individuais. É a essência da coisa,
essência individual ou comunicável a outras coisas. É ainda o fim da geração
ou composição da substância que a matéria deseja realizar, e é quem dá o ser
e a perfeição (o acto) aquilo em que se encontra. O universal é pois, também,
a quididade, isto é, a essência substancial da coisa, que é sempre
determinada, particularizada e própria. Neste último sentido de quididade, o
universal é a forma, que o intelecto separa da matéria e considera na sua
pura universalidade, abstraindo-a das condições individualizadoras (De
intellectu et intellegibili, 1, 2, 2).

Estas condições individualizadoras residem no quod est, que é a existência, o


substrato ou sujeito

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do ser. Com efeito, Alberto Magno aceita a doutrina da distinção real entre a
essência e a existência. Todas as criaturas são compostas por uma quídidade
ou essência (quod est) e por um sujeito ou sustentáculo de tal quid~ "0 quod
est é a forma total; o quod est é o próprio todo a que pertence a forma"
(Sum. de creat., 1, 1, q. 2, a. 5). Esta composição é também própria das
criaturas espirituais, às quais Alberto Magno nega por vezes a composição de
matéria e forma, opondo-se a Avicebrão e aos escolásticos agustinianos. Ora o
princípio da individuação é precisamente o quod est, o sujeito da essência; a
qual, pelo contrário, é participável e comum a outras coisas. E, dado que nas
coisas corpóreas o quod est é a matéria, pode dizer-se que nelas o princípio
individualizante é a matéria, ainda que não enquanto matéria, mas enquanto
que, precisamente, sustentáculo da essência, substracto real da coisa (S.
th., 11, 1, q. 4, a.
1-2).

Mas o ponto no qual o aristotelismo parecia inconciliável com a revelação


cristã era a eternidade do mundo. Os peripatéticos muçulmanos haviam
elaborado rigorosamente o conceito da necessidade absoluta do ser enquanto
ser; e deste princípio tinham deduzido, em primeiro lugar, a necessidade da
própria criação pela parte de Deus, enquanto inerente à sua essência
autocognoscente, e em segundo lugar e por consequência, a eternidade do ser
criado. O único que, de certa maneira, havia conseguido justificar a
contingência do acto criador e do ser criado, e portanto o início temporal do
mundo, embora mantendo intactos os pontos básicos do aristotelismo, tinha
sido Moisés Maimónides. É precisamente a ele (a quem chama Rabi Moisés ou
Moisés Egípcio) que se refere explicitamente Alberto Magno, seguindo-lhe
cuidadosamente as pegadas. Maimónides tinha justificado o início do mundo no

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ALBERTO MAGNO

tempo mostrando a contingência do acto criador e, portanto, a não necessidade


do ser criado. A mesma via é seguida por Alberto Magno. A prova fundamental
por ele aduzida é a da diversidade dos efeitos que derivam de uma única
causa criadora: é impossível explicar esta diversidade a não ser recorrendo à
livre vontade divina. "Se se admite que a totalidade dos corpos foi trazida
ao ser mediante escolha e vontade, torna-se, possível a grande diversidade
que ela apresenta. Demonstrámos já que o ser que actua por liberdade é livre
para produzir diversas acções. A diversidade que notamos nas órbitas dos céus
não terá, portanto, outra causa que não seja a Sabedoria que ordenou e pré-
constituiu esta diversidade segundo uma razão ideal" (Phys., VIII, 1, 13). A
este argumento tirado de Maimónides, acrescenta Alberto Magno o que deriva da
consideração da diversidade do ser criado em relação ao ser de Deus, Não
podemos aqui utilizar a mesma escala de medida. Se a eternidade é a medida de
Deus, o tempo deve ser a medida do mundo. Se Deus precede o mundo enquanto é
a sua causa, o mundo não pode ter a mesma duração de Deus. Esta -razão
parece-lhe ser suficientemente forte para justificar a opinião de que o mundo
tenha sido criado, mais forte do que as razões aduzidas por Aristóteles para
defender as teses opostas; embora não suficientemente fortes para valerem
como demonstração. A conclusão é que "o início do mundo pela criação não é
uma proposição física e não pode ser demonstrada fisicamente" (Phys., VIII,
1, 14). É todavia certa a não necessidade do ser criado. A criação de Deus é
absolutamente livre, e é um acto de vontade cuja única causa é ele próprio
(S. th., 1, 20, q- 79, 2, a. 1, 1-2). O acto criador não implica uma relação
necessária de Deus com a coisa criada, mas somente uma dependência da coisa
criada para
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com Deus, a qual coisa criada começa a ser a partir do nada (1b., a. 4).

§ 271. ALBERTO MAGNO: A ANTROPOLOGIA

Alberto Magno negou a composição hilomórfica das substâncias espirituais: não


considera que a alma seja composta de matéria e forma. Reconhece, porém, a
composição, própria de todas as criaturas, de existência e de essência, de
quod est e quo est.
O homem, que tal como todos os outros seres sublunares, participa na natureza
corpórea, distingue-se dos outros seres pela forma que anima o seu corpo,
isto é, pela alma. Pela sua função de determinar e individuar no homem a
matéria corpórea, a alma é a forma substancial do corpo (S. th., 11, 12, q.
68). Como acto primeiro do corpo, a alma conduz o corpo ao ser; como acto
segundo, condu-lo a agir (S. de creat., 11, 1, q. 2, a. 3). As três potências
da alma, vegetativa, sensitiva e racional, constituem uma única forma e uma
única actividade (lb., H,
1, q. 7, a. 1). Alberto Magno recusa a doutrina da pluralidade das formas, a
qual, pelo contrário, era admitida pelos agustinianos da sua época.

Mas o problema fundamental da antropologia de Alberto Magno continua a ser o


mesmo do aristotelismo, isto é, o problema do intelecto. Alberto Magno, tem
de combater a teoria típica do aristotelismo muçulmano, a da unidade do
intelecto humano, teoria que exclui a multiplicidade das almas depois da
morte e, por consequência, a imortalidade individual. O principal argumento a
favor desta tese era, como vimos (§ 242), que as almas eram individuadas
pelos corpos aos quais se uniam e que, portanto, toda a individuação cessa
com a dissolução do corpo. Admitindo com Avicebrão uma matéria espiritual
individuadora da alma, en-

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quanto tal, os contemporâneos de Alberto Magno (Alexandre de Hales, Roberto


Grosseteste) conseguem evitar o argumento averroístico. Mas Alberto Magno
nega a existência de uma matéria espiritual; não pode, portanto, recorrer à
matéria para justificar a individualidade da alma separada. Tem de recorrer
ao quod est, ao substrato da essência: o quod est desempenha nos seres
espirituais a mesma função Índividualizante que a matéria desempenha nos
seres corpóreos. "0 princípio, que faz subsistir a natureza comum e a
determina ao indivíduo (ad hoc aliquid), tem a propriedade de um princípio
material (principium hyleale); pelo que muitos filósofos lhe dão o nome de
hyliathis, derivado da palavra hyle-" (De causis, 11, 2, 118. A palavra
hyliathis encontra-se adoptada no Liber de causis, cap. 9). Alberto Magno
afirma o princípio segundo o qual "à excepção do ser primeiro, tudo o que
existe é composto por quo est e quod est". Pode assim admitir a
individualidade da alma como tal, uma individualidade conexa com a própria
essência da alma, inseparável, portanto, dela mesmo para além da morte. Os
intelectos que Alberto Magno distingue, seguindo sobretudo Avicena, são
partes da alma humana. O intelecto agente deriva do quo est, isto é, da
essência da alma, que é acto; a inteligência possível deriva do quod est,
isto é, da existência da alma, que é potência (Sum. de creat.,
11, 1, q. 52, a. 4, 1). O princípio de individuação do intelecto é portanto o
intelecto em potência, o qual individualiza o intelecto agente. Este último é
como que uma luz, imagem e semelhança da Causa primeira. Em virtude do que, a
alma abstrai as formas inteligíveis das condições materiais e redu-las ao seu
ser simples (S. Th., 11, 15, q. 93, 2).
O intelecto agente e o intelecto potencial estão unidos através delas.
Constituem o intelecto formal que, por sua vez, é simples ou composto. O
inte-

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lecto composto ou tem por objecto os primeiros princípios, e é então dito


inato, ou é intelecto adquirido, intellectus adeptus, enquanto se adquire
através da investigação, da doutrina e do estudo (S. th.,
11, 15, q. 93, 2). Chama também especulativo ao intelecto adquirido (De unit.
intel. contra Aver., 6).
O mesmo intelecto formal, quando dedica a sua luz à acção, em vez de ser à
especulação, e ao bem, em vez de ser à verdade, é o intelecto prático (Suni.
de creat., 11, 1, q. 61, a. 4). É pelo intelecto adquirido ou especulativo
que o homem se torna, de certa maneira, semelhante a Deus, porque realiza a
conjunção mais estricta com o intelecto agente: no qual já não existe a
diferença entre o acto de comprender e a coisa compreendida, e onde a ciência
se identifica com a coisa conhecida (De an., 111, 2,
18). Dado o carácter espiritual e divino da sua função intelectual, a alma
não depende do corpo; pelo que não perece com ele. Na sua actividade
intelectual, ela é a causa de si mesma'e os seus próprios objectos são
incorruptíveis: portanto, a morte do corpo não a afecta (De nat. et orig.
animae, 11, 8). Deste modo, Alberto Magno, embora aceitando alguns pontos
básicos do aristotelismo, crê haver conseguido garantir, contra as doutrinas
erradas do próprio aristotelismo, a verdade fundamental do cristianismo.

Os outros aspectos da sua antropologia carecem de originalidade. Atribui ao


homem o livre arbítrio como uma potência especial que lhe pertence por
natureza; e coloca a essência do livre arbítrio na capacidade de escolher
entre as alternativas que a razão apresenta ao homem (Sum. de creat., 11, 1,
q. 68, a, 2). Aproveita de Alexandre de Hales a teoria da consciência e da
sindérese. A consciência é a lei racional que obriga o homem a actuar ou a
não

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actuar. A sindérese é a disposição moral determinada por essa lei, o habitus


que conduz o homem ao bem e lhe dá o remorso do mal. Ás quatro virtudes
cardeais que, com Pedro Lombardo, chama adquiridas, Alberto Magno junta as
três virtudes infusas, fé, esperança e caridade (Summ. theol., 11, 16, q.
103, 2).

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 268. A data de nascimento de Alberto Magno é situad-i em 1193 por MICHAEL,


Geschichte der dentschen Volkes vom 13 Jahrh. bis zum Ausgang des
Mittelalters, 111, 1903, p. 69 e ss.; e por PELSTER, Kritische Studien zu
Leben und zu den Shriften, AIberts der Grosse, 1920. 2 situada em 1206 ou
1207 por MANDONET, Siger de Brabante et Paverroisme latin au XIII.c siècle,
I, Lovaina, 1911, p. 36-39; e por ENDRES, in "Historisches Jahrbuch",
1910, p. 293-304. Existem duas edições completas da obra de Alberto
Magno: a de P. Jammy, Lyon, 1651 e a de Borgnet, Paris, 1890-1899, em
38 vol. in-4.1.

Saíram já alguns volumes duma edição crítica organizada pelos Padres


DGminicanos, Münster, 1951 e - .; outras ediç5es: De vegetalibus, ed. Jessen,
Berlin, 1867; Commentari in Librum Boethii De divisione, ed. De Loê, Bonn,
1913; De animalibus, ed. StadIer, Münster, 1916-1920; Suma de creaturis, ed.
Grabmann, Leipzig, 1919; Liber sex principiorum, ed. SuIzbacher, Viena, 1955.

DuHEM, Système du monde, V, p. 418-468; WILMS, Albert der Grosse, Mónaco,


1930; SCHEEBEN, Albertus Magnus, Colónia, 1955; NARDI, Studi di filosofia
medioevale, Roma, 1960, p. 69-150.

§ 269. Sobre as relações entre filosofia e teologia: HEITZ, in "Revue des


Seiences phil. et théol.",
1908, 661-673.

§ 270. Sobre a metafísica: DANIELS, in "Beitrãge", VIIII, 1, 2, 1909, 36-37,


onde se examina a atitude vacilante de Alberto, Magno perante a prova
ontológica; ROHNER, in "Beitrãge", XI, 5, 1913, 45-92;

21

PELSTER, Kritische Studien zu Leben und zuden Schriften A. s. d. Gr, 1920.


Sobre as relações com Platão: GAUL, in "Beitrãge", XII, 1, 1913. Sobre as
relações com Maimónides: JO2L, Das Verhãltnis A.& d. Gr. zu Moses Maimonides,
1863.

§ 271 . Sobre a psicologia: SCI1NEIDER, in "Beitrãge", IV, 5-66, 1903, 1906.

22

XV

S. TOMÁS DE AQUINO

§ 272. A FIGURA DE S. TOMáS DE AQUINO

A obra de S. Tomás marca uma etapa decisiva da Escolástica. É ele que


continua e leva ao seu termo o trabalho iniciado por Alberto Magno. Através
da explicação tomista, o aristotelismo torna-se flexível e dócil a todas as
exigências da explicação dogmática; e não por meio de expedientes ocasionais
ou de adaptações artificiosas (segundo o método daquele), mas em virtude de
uma reforma radical, devida a um princípio único e simples situado no próprio
coração do sistema, e desenvolvido com lógica rigorosa em todas as suas
partes. Se Alberto Magno necessitava ainda de corrigir o aristotelismo
partindo de doutrinas que lhe eram estranhas, aproveitando motivos e
sugestões da própria corrente agustiniana contra a qual polemizava, S. Tomás
encontra na própria lógica do seu aristotelismo a maneira de situar os
resultados fundamentais da tradição escolástica num sistema harmonioso e
completo no seu conjunto, preciso e

23

claro nos seus detalhes. Neste trabalho especulativo, S. Tomás é ajudado por
um talento filológico nada comum: para ele, o aristotelismo já não é, como
era para Alberto Magno, um todo confuso formado pelas doutrinas originais e
pelas diversas interpretações dos filósofos muçulmanos. Ele procura
estabelecer o significado autêntico do aristotelismo, deduzindo-o dos textos
de Aristóteles, vale-se dos textos árabes como fontes independentes, cuja
fidelidade ao Estagirita analisa criticamente. Aristóteles aparece a S. Tomás
como o termo final da investigação filosófica. Ele foi até onde a razão
humana pode ir. Para além desse ponto só existe a verdade sobrenatural da fé.
Integrar a filosofia e a fé, a obra de Aristóteles e a verdade revelada por
Deus ao homem e de que a Igreja é depositária, -é a tarefa que S. Tomás se
propõe.

A realização desta tarefa supõe duas condições fundamentais. A primeira é a


separação nítida entre a filosofia e a teologia, entre a investigação
racional, unicamente guiada e sustentada por princípios evidentes, e a
ciência que tem por pressuposto a revelação divina. Com efeito, só em virtude
desta separação nítida pode a teologia valer como completamento da
filosofia, e a filosofia pode valer como preparação e auxiliar da teologia.
A segunda condição é que, no próprio seio da investigação filosófica, se
faça valer como critério directivo e normativo, um princípio que exprima a
disparidade e a separação entre o objecto da filosofia e o objecto da
teologia, entre o ser das criaturas e o ser de Deus. Estas duas condições
estão liga-das entre si: dado que filosofia e teologia não podem ser
separadas uma da outra, se não se separarem e distinguirem os seus objectos
respectivos; nem a filosofia pode servir de preparação e auxiliar da
teologia, que é o seu verdadeiro coroamento, se não inclui e faz valer em si
mesma o princípio que

24

justifica precisamente esta sua função preparatória e subordinada: a


diversidade entre o ser criado e o ser de Deus.

Este princípio é pois, a chave da abóbada do sistema tomista. É ele que guia
S. Tomás na determinação das relações entre razão e fé e no estabelecimento
pela razão da regula fidei; no centrar a função cognoscitiva do homem à volta
da função da abstracção; na formulação das provas da existência de Deus; no
aclarar os dogmas fundamentais da fé. S. Tomás formulou este princípio na sua
primeira obra, De ente et essentia, como distinção real entre essência e
existência; mas é também expresso na fórmula da analogicidade do ser, da qual
também se utiliza muitas vezes.

Esta forma é talvez a mais adequada para exprimir o princípio da reforma


radical trazida ao aristotelismo por S. Tomás. Um é o ser de Deus, outro é o
ser das criaturas. Os dois significados da palavra ser não são nem idênticos
nem totalmente distintos; antes se correspondem proporcionalmente, de tal
modo que o ser divino implica tudo aquilo que a causa implica em relação ao
efeito. S. Tomás exprime-o dizendo que o ser não é unívoco nem equívoco, mas
análogo, isto é, que implica proporções diversas. A proporção é neste caso
uma relação de causa e efeito: o ser divino é causa do ser finito (S. th.,
1, q. 13, a. 5). S. Tomás relaciona este princípio com a analogicidade do ser
afirmado por Aristóteles acerca das várias categorias. Mas em Aristóteles, é
inconcebível uma distinção entre o ser divino e o ser das outras coisas; o
ser aristotélico é verdadeiramente uno, o seu significado primário reside na
substância (§ 73). Para S. Tomás, o ser não é uno. O criador está separado da
criatura; as determinações finitas da criatura nada têm a ver com as
determinações infinitas de Deus, unicamente as reproduzem de modo imperfeito
e

25

demonstram a sua acção criadora. S. Tomás orientou verdadeiramente o


aristotelismo numa via oposta àquela para a qual a filosofia muçulmana o
tinha orientado. Esta conclui na necessidade e eternidade do ser, de todo o
ser, inclusivé do mundo. S. Tomás conclui na contingência do ser do mundo e
na sua dependência da criação divina.

§ 273. S. TOMáS: VIDA E OBRA

Tomás, pertencente à família dos condes de Aquino, nasceu em Roccasecca


(próximo de Cassino) em 1225 ou 1226. Iniciou a sua educação na abadia de
Montecassino. Em 1243, em Nápoles, ingressou na ordem dos dominicanos, foi
depois enviado para Paris, onde foi aluno de Alberto Magno. Em 1248, quando
Alberto Magno passou a ensinar em Colónia, S. Tomás seguiu-o e só voltou a
Paris em 1252; comentou então a Bíblia e as Sentenças. O sucesso do seu
ensino rapidamente se delineou. Mas entretanto, os mestres seculares da
Universidade de Paris tinham iniciado a luta contra os frades mendicantes,
"falsos apóstolos precursores do anticristo", e pretendiam que lhes fosse
negada a faculdade de ensinar. Contra o seu libelo, Sobre os perigos dos
últimos tempos, e contra o seu organizador, Guilherme de Santo Amor, S. Tomás
escreveu o opúsculo Contra impugnantes Dei cultum et religionem. A princípio,
pareceu que o Papa dava razão aos mestres seculares; porém, no ano seguinte,
decidiu a disputa a favor das ordens mendicantes. S. Tomás foi então nomeado,
assim como o seu amigo S. Boaventura, mestre da Universidade de Paris (1257).
O livro de Guilherme de Santo Amor foi condenado e queimado em Roma, e o seu
autor foi expulso de França pelo rei S. Luís.

26

Em 1259, S. Tomás deixou Paris e regressou a Itália, onde foi hóspede de


Urbano IV em Orvieto e Viterbo de 1261 a 1264. Em 1265 foi-lhe dado o encargo
de organizar os estudos da sua ordem em Roma. A este período de permanência
em Itália pertencem as obras principais: a Summa contra Gentiles, o segundo
Comentário às Sentenças, a 1 e a 11 partes da Summa theologiae. Em 1269
voltou para Paris, ocupando durante três anos a sua cátedra de mestre de
teologia. Novas lutas o ocuparam nesta época. Os professores seculares, com
Gerardo de Abeville e Nicolau de Lisieux, haviam retomado a luta contra as
ordens mendicantes, e ele escreve então o De perfectione vitae spiritualis
contra o tratado de Gerardo Contra adversarium perfectionis christianae; e o
Contra retrahentes a religionis ingressu, contra o De perfectione et
excellentia status clericorum de Nicolau. de Lisicux. Escreveu ainda, contra
a difusão do aristotelismo averroísta, principalmente por obra de Siger de
Brabante (§ 283), o De unitate intellectus contra averroístas. As quaestiones
quodlibetales pertencem igualmente a este período, demonstrando a actividade
polémica de S. Tomás também contra a outra corrente da Escolástica, o
agustinianismo. Em 1272, perante a insistência de Carlos da Sicília, irmão de
Luís IX de França, voltou a Itália para ensinar na Universidade de Nápoles.
Mas em Janeiro de 1274, designado por Gregório X, partia para o Concílio de
Lião. Adoeceu durante a viagem, em casa da sobrinha Francisca de Aquino. Fez-
se conduzir à abadia cistercience de Fossanova (próximo de Terracina) onde
morreu em 7 de Março de 1274.

Conservam-se três antigas biografias de S. Tomás: as de Guilherme de Tocco,


Bernardo Guidone e Pedro Calo. Da sua vida se ocupa amplamente o seu aluno
Bartolomeu de Lucca na sua Historia ecclesiastica nova (22. , 20-24, 39;
23. , 8-15); e

27

conservamos também as actas do processo de canonização de 18 de Julho de 1323


que contêm testemunhos sobre o carácter e a vida do santo. S. Tomás era alto,
moreno, gordo, um tanto calvo, e tinha o ar pacífico e doce do estudioso
sedentário. Devido ao seu carácter fechado e silencioso os condiscípulos de
Paris chamavam-lhe o boi mudo. Vir miro modo conte,-mplativus, chama-lhe
Guilherme de Tocco, e efectivamente dedicou toda a sua vida à actividade
intelectual. A própria vida mística, testemunhada nas actas do processo de
santificação, reflecte a sua investigação e as suas meditações. Os apóstolos
Pedro e Paulo vêm iluminá-lo a propósito do seu comentário sobre Isaías;
vozes sobrenaturais incitam-no e louvam-no pela sua obra especulativa; a sua
prece tende a obter de Deus a solução dos problemas que lhe agitam a mente. A
prerrogativa de S. Tomás foi ter levado toda a vida religiosa do homem para o
plano da inteligência esclarecedora.

Na data da sua morte, S. Tomás tinha somente


48 ou 49 anos; mas a sua obra era já vastíssima. As actas do processo de
canonização (contidas nos manuscritos 3112 e 3113 da Biblioteca Nacional de
Paris) dão-nos um catálogo dos seus escritos que enumera 36 obras e 25
opúsculos; mas é muito provável que este catálogo seja incompleto. Ao período
da sua primeira permanência em Paris pertencem: De ente et essentia (1252-
53), provavelmente a sua primeira obra, o Comentário à s Sentenças (1254-56),
as Quaestiones disputatae de veritate e outros escritos menores.

Mas a actividade principal é a que ele desenvolve nos anos do seu regresso a
Itália e da segunda permanência em Paris (1259-72). A este período pertencem:
o Comentário a Aristóteles, o Commentario al Liber de causis (no qual S.
Tomás pode reconhecer a tradução dos Elementos de teologia de Proclo, de que
Guilherme de Moerbecke lhe tinha

28

comunicado a tradução); o Comentário a Boécio e ao De divinis nonzinibus do


Pseudo-Dionísio; e, finalmente, as suas obras principais: a Sunima de
veritate fidei catholicae contra Gentiles (1259-64), o segundo Comentário às
Sentenças e a Summa theologiae, a sua obra-prima, cujas duas primeiras partes
foram escritas em 1265-71, enquanto a terceira, até à questão 90, foi
composta entre 1271 e 1273. A morte impediu-o de completar esta obra, cujo
Suplemento foi acrescentado por Reginaldo de Piperno.

Acrescentem-se ainda as Quaestiones disputatae e quodIffietales, que


reflectem especialmente a activIdade polémica de S. Tomás contra os
averroistas e os teólogos agustinianos. Dos numerosos opúsculos, os mais
famosos são o De unitate intellectus contra Averroístas e o De regimine
principum. O primeiro, escrito durante a sua segunda estada em Paris (por
volta de 1270) é dirigido contra os averroístas latinos (§ 283). Do segundo,
só podem ser-lhe atribuídos o livro 1 e os 4 primeiros capítulos do livro 11:
o restante é obra de Bartolomeu de Lucca.

§ 274. S. TOMÁS: RAZÃO E FÉ

O sistema tomista baseia-se na determinação rigorosa das relações entre a


razão e a revelação. Ao homem, cujo fim último é Deus, o qual excede a
compreensão da razão, não basta a investigação filosófica baseada na razão.
Mesmo aquelas verdades que a razão pode alcançar sozinha, não é dado a todos
alcançá-las, e não está liberto de erros o caminho que a elas conduz. Foi
portanto necessário que o homem fosse instruído convenientemente o com mais
certeza pela revelação divina. Mas a revelação nem anula nem torna inútil a
razão: "a graça não elimina a natureza, antes a aperfeiçoa". A razão

29
natural subordina-se à fé, tal como no campo prático as inclinações naturais
se subordinam à caridade. É evidente que a razão não pode demonstrar o que
pertence ao âmbito da fé, porque então a fé perderia todo o mérito. Mas pode
servir a fé de três modos diferentes. Em primeiro lugar, demonstrando os
preâmbulos da fé, ou seja aquelas verdades cuja demonstração é necessária à
própria fé. Não se pode crer naquilo que Deus revelou, se não se sabe que
Deus existe. A razão natural demonstra que Deus existe, que é uno, que tem as
características e os atributos que podem inferir-se da consideração das
coisas por ele criadas. Em segundo lugar, a filosofia pode ser utilizada para
aclarar as verdades da fé mediante comparações. Em terceiro lugar, pode
rebater as objecções contra a fé, demonstrando que são falsas ou, pelo menos,
que não têm força demonstrativa (In Boet. De trinit., a. 3).

Por outro lado, porém, a razão tem a sua própria verdade. Os princípios que
lhe são intrínsecos e que são certíssimos sendo impossível pensar que são
falsos, foram infundidos pelo próprio Deus, que é o autor da natureza humana.
Estes princípios derivam portanto da Sapiência divina e fazem parte dela. A
verdade de razão nunca pode ser contrária à verdade revelada: a verdade não
pode contradizer a verdade. Quando surge uma contradição, é sinal de que não
se trata de uma verdade racional, mas de conclusões falsas ou, pelo menos,
não necessárias: a fé é a regra do recto proceder da razão (Contra Gent., 1,
7).

O princípio aristotélico segundo o qual "todo o conhecimento começa pelos


sentidos" é utilizado por S. Tomá s para limitar a capacidade e as pretensões
da razão. A razão humana pode, é certo, elevar-se até Deus, mas somente,
partindo das coisas sensíveis. "Mediante a razão natural, o homem não pode
alcançar o conhecimento de Deus senão através

30

das criaturas. As criaturas conduzem ao conhecimento de Deus, como o efeito


conduz à sua causa. Portanto, com a razão natural só se pode conhecer de Deus
aquilo que necessariamente lhe compete enquanto é o princípio de todas as
coisas existentes" (S. th., 1, q. 32, a. 1). Das duas demonstrações possíveis
à razão, a a priori ou propter quid, que parte da essência de uma causa para
descer aos seus efeitos, e a powteriori ou quia, que parte do efeito para
remontar à causa, só a segunda pode ser utilizada para o conhecimento de Deus
(Ib., 1, q. 2, a. 2). Mas essa, se leva a reconhecer com necessidade a
existência de Deus como causa primeira, nada diz acerca da essência de Deus.
Portanto, a força da razão não consegue demonstrar a Trindade e a Encarnação,
nem todos os mistérios que com esses se relacionam. Tais mistérios constituem
os verdadeiros " artigos de fé" que a razão pode dilucidar e defender, mas
não demonstrar; enquanto que a existência de Deus, e tudo o que acerca de
Deus a força da razão consegue alcançar e demonstrar, constitui os preâmbulos
da fé.

Esclarecidos assim os respectivos domínios da fé e da razão, S. Tomás passa a


esclarecer os correspondentes actos. Aceitando uma definição de Santo
Agostinho (De praedest. Sanctorum, 2), S. Tomás define o acto da fé, o crer,
como um "pensar com anuência" (cogitare cum assensu) entendendo por "pensar"
a "consideração indagadora do intelecto e o consentimento da vontade". O
pensar que é próprio da fé é um acto intelectual que continua a indagar
porque não chegou ainda à perfeição da visão certa. Ora, a anuência não
acompanha todos os actos intelectuais desta espécie: o duvidar consiste no
não nos inclinarmos nem para o sim nem para o não; o suspeitar consiste em
nos inclinarmos para um lado, mas sendo tentados ou movidos por todos os
pequenos sinais da outra parte; o opinar na

31

aderência a uma coisa, com receio que a contrária seja verdadeira. "Mas este
acto que é o crer, diz S. Tomás (S. th., 11, 2, q. 2, a. 1), inclui a adesão
firme a uma das partes; no que o crente se assemelha ao que tem ciência ou
inteligência; o seu conhecimento, todavia, não é perfeito como o do que tem
uma visão evidente; no que ele se assemelha ao que duvida, suspeita ou opina.
E assim, é próprio do crente pensar com anuência". O assentimento implícito
na fé, se é semelhante pela sua firmeza ao que é implícito na inteligência e
na ciência, é diferente pelo seu móbil: dado que não é produzido pelo
objecto, mas por uma escolha voluntária que inclina o homem para um lado e
não para o outro. Com efeito, o objecto da fé não é "visto" nem pelos
sentidos nem pela inteligência, dado que a fé, como disse S. Paulo
(Ebrei, XI, 1), é "a prova das coisas que se não vêem" (S. th., 11, 2,
q. 7, a. 4). Deste modo S. Tomás, embora -reconhecendo à fé uma certeza
superior à do saber científico, funda essa certeza na vontade, reservando
somente à ciência a

certeza objectiva.

§ 275. S. TOMÁS: TEORIA DO CONHECIMENTO

A teoria tomista do conhecimento é decalcada sobre a aristotélica. A sua


característica mais original é o relevo que nela toma o carácter abstractivo
do processo do conhecimento e, consequentemente, a

teoria da abstracção. Comentando a passagem do De anima (111, 8, 431b) onde


se afirma que "a alma é, de certo modo, todas as coisas" (porque as conhece
todas), diz S. Tomás: "Se a alma é todas as coisas, é necessário que ela ou
seja as próprias coisas, sensíveis ou inteligíveis-no sentido em que
Empédocles afirmou que nó s conhecemos a terra com a terra, a água com a
água, etc. -ou então

32

S. TOMAS DE AQUINO

seja as espécies das próprias coisas. Porém a alma não é as coisas, porque,
por exemplo, na alma não está a pedra mas a espécie da pedra". Ora a espécie
(eidos) é a forma da coisa. Por conseguinte, "o intelecto é uma potência
receptora de todas as formas inteligíveis e o sentido é uma potência
receptora de todas as formas sensíveis". Deste modo, o princípio geral do
conhecimento é "cognitum est in cognoscente per modum cognoscentis" (o
objecto conhecido está no sujeito cognoscente em conformidade com a natureza
do sujeito cognoscente).
O processo através do qual o sujeito cognoscente recebe o objecto é a
abstracção.

O intelecto humano ocupa uma posição intermediária entre os sentidos


corpóreos, que conhecem a forma unida à matéria das coisas particulares, e os
intelectos angélicos, que conhecem a forma separada da matéria. Isto é uma
virtude da alma que é forma do corpo: portanto, pode conhecer as formas das
coisas só enquanto estão unidas aos corpos e não (como queria Platão)
enquanto estão separadas deles. Mas no acto de conhecer, abstrai-as dos
corpos; o conhecer é portanto um abstrair a forma da matéria individual, e,
assim, extrair o universal do particular, a espécie inteligível das imagens
singulares (fan-

pTIUNIMIRO = C414 Mas podemos considerar

a cor dum fruto, prescindindo do fruto, sem que por tal afirmemos que exista
separada do fruto; também podemos conhecer as formas ou espécies universais
do homem, do cavalo, da pedra, prescindindo dos princípios individuais a que
estão unidas; mas sem pretender que elas existam separadas destes. Portanto,
a abstracção não falsifica a realidade. Ela não afirma a separação real da
forma em relação à matéria individual: permite unicamente a consideração
separada da forma; e tal consideração é o conhecimento intelectual humano. É
de notar que esta consideração separa a forma não da matéria

33

em geral mas da matéria individual; pois, de contrário, não poderíamos


entender que o homem, a pedra ou o cavalo também são constituídos por
matéria. "A matéria é dúplice, diz S. Tomás (S. th., [ q. 85, a. 1), isto é,
comum e signata ou individual; comum, como a carne e os ossos, signata como
esta carne e estes ossos. O intelecto abstrai a espécie da coisa natural da
matéria sensível individual, mas não da matéria sensível comum. Por exemplo,
abstrai a espécie do homem desta carne e destes ossos que não pertencem à
natureza da espécie mas fazem parte do indivíduo, e das quais, portanto,
podemos prescindir. Mas a espécie do homem não pode ser abstraída pelo
intelecto, da carne e dos ossos em geral".

Donde resulta que, para S. Tomás, o principium individuationis, o que


determina a natureza própria de cada indivíduo e portanto o que o diferencia
dos outros, não é a matéria comum (e de facto todos os homens têm carne e
ossos, não se diferenciando portanto nesta medida); mas sim a matéria signata
ou, como ele também diz (De ente et essentia, 2), a "matéria considerada
sobre determinadas dimensões". Assim, um homem é distinto de outro não porque
está unido a um determinado corpo, distinto do dos outros homens por
dimensões, isto é, pela sua situação no espaço e no tempo. Resulta ainda
desta doutrina que o universal não subsiste fora das coisas individuais, mas
somente nelas é real (Contra Gent.,
1, 65). De modo que ele é in re (como forma das coisas) e post rem (no
intelecto); ante rem, só na mente divina, como princípio ou modelo (ideia)
das coisas criadas Un Sent., 11, dist. 111, q. 2, a. 2).

O universal é objecto próprio e directo do intelecto. Pelo seu próprio


funcionamento, o intelecto humano não pode conhecer directamente as coisas
individuais. Com efeito, ele procede abstraindo da matéria individual a
espécie inteligível; e a espécie,

34

que é o produto de tal abstracção, é o próprio universal. A coisa individual


não pode portanto ser conhecida pelo intelecto senão indirectamente, por uma
espécie de reflexão. Dado que o intelecto abstrai o universal das imagens
particulares e nada pode entender senão voltando-se para as próprias imagens
(convertendo se ad phantasmata), ele também só indirectamente conhece as
coisas particulares, às quais as imagens pertencem (S. th., 1, q. 86, a. 1).

O intelecto que abstrai as formas da matéria individual é o intelecto agente.


O intelecto humano é um intelecto finito, que, ao contrário do intelecto
angélico, não conhece em acto todos os inteligíveis, mas tem somente a
potência (ou possibilidade) de os conhecer; é, portanto, um intelecto
possível. Mas como "nada passa da potência ao acto senão por obra do que já
está em acto", a possibilidade de conhecer, próprio do nosso intelecto,
torna-se conhecimento efectivo por acção dum intelecto agente, o qual faz com
que os inteligíveis passem a acto, abstraindo-os das condições materiais, e
actuando (segundo a comparação aristotélica) como a luz sobre as cores Ub.,
1, q. 79, especialmente a. 3). Contra Averróis e seus seguidores, S. Tomás
afirma explicitamente a unidade deste intelecto com a alma humana. Se o
intelecto agente estivesse separado do homem, não seria o homem a entender,
mas sim o pretenso intelecto separado a entender o homem e as imagens que
estão nele: o intelecto deve, portanto, fazer parte essencial da alma humana
(Ib., 1, q. 76, a. 1; Contra Gerd., 11, 76). Por isso também o intelecto
activo não é um só, mas há tantos intelectos activos quantas as almas
humanas: contra a tese da unicidade do intelecto, a qual era sustentada pelos
averroístas, é dirigido o opúsculo famoso de S. Tomás, De unitate intellectus
contra Averroístas (§ 284).

O procedimento abstractivo do intelecto garante a verdade do conhecimento


intelectual, porque

35

garante que a espécie existente no intelecto é a própria forma da coisa.


Retomando a definição dada por Isaac (§ 245) no seu Liber de definitionibus,
S. Tomás define a verdade como "a adequação do intelecto e da coisa" (S. th.,
1, q. 16, a. 2; Contra Gent. 1, 59; De ver., q. 1, a 1). As coisas
naturais, das quais o nosso intelecto recebe o saber, são a sua medida: já
que ele possui a verdade só enquanto se conforma às coisas. Estas são, por
sua vez, medidas pelo intelecto divino, no qual subsistem as suas formas do
mesmo modo que as formas das coisas artificiais subsistem no intelecto do
artífice. "0 intelecto divino é medidor, mas não medido; * coisa natural é
medidora (em relação ao homem) * medida (em relação a Deus); o nosso
intelecto é medido, e não mede as coisas naturais mas somente as artificiais"
(De ver., q. 1, a. 1). Portanto, Deus é a verdade suprema, enquanto o -seu
entender é a medida do todo que existe e de qualquer outro entender (S.
th., 1, q. 16, a. 5). Por isso, a ciência que ele tem das coisas é a causa
delas, do mesmo modo que a ciência que o artífice tem a coisa artificial é
causa dessa coisa. Em Deus, o ser e o entender coincidem: entender as coisas
significa, em Deus, comunicar-lhes o ser, desde que ao entender se una a
vontade criadora (Ib., I, q. 14, a. 9).

Isto estabelece uma diferença radical entre o intelecto divino e o


humano, entre a ciência divina e a humana. Deus entende todas as coisas
mediante a simples inteligência da própria coisa: com um só acto Deus
capta (e, querendo, cria) a essência total e completa da coisa, ou
antes, de todas as coisas na sua totalidade e plenitude. Pelo contrário, o
nosso intelecto não consegue com um só acto o conhecimento perfeito de uma
coisa; mas primeiro apreende-lhe um qualquer, dos seus elementos, por
exemplo, a essência, que é o objecto primeiro e próprio do intelecto, e
depois passa a entender a

36

propriedade, os acidentes e todas as disposições ou comportamentos que são


próprios da coisa. Daqui deriva que o conhecimento intelectual humano se
desdobra em actos sucessivos, segundo uma sequência temporal; actos de
composição ou de divisão, isto é, afirmações ou negações, que exprimem
mediante proposições aquilo que o intelecto vai sucessivamente conhecendo da
própria coisa. O proceder do intelecto, de uma composição ou

divisão a outras sucessivas composições ou dlivisões, isto é, de uma


proposição a outra, é o raciocínio; e a ciência que assim se vai constituindo
por sucessivos e conexos actos de afirmação ou de negação é a ciência
discursiva. O conhecimento humano é, portanto, conhecimento racional, e a
ciência humana, ciência discursiva: características que não se podem atribuir
ao conhecimento e à ciência de Deus, o qual entende tudo e simultaneamente
em si próprio, mediante um acto simples e

perfeito de inteligência (lb., 1, q. 14, a. 7, 8, 14; q. 85, a. 5; Contra


Gent., 1, 57-58). Isto estabelece também uma diferença radical entro a
autoconsciência divina e a humana. Deus não só se conhece a si próprio, mas
também a todas as coisas, através da sua essência que é acto puro e perfeito,
e portanto, perfeitamente inteligível por si mesmo. O anjo, cuja essência é
acto, mas não acto puro porque é essência criada, conhece-se a si mesmo por
essência, mas não conhece as outras coisas senão através das suas
semelhanças. O intelecto humano, pelo contrário, não é acto mas sim potência;
só passa a acto através das espécies abstraídas das coisas sensíveis em
virtude do intelecto agente: não pode, portanto, conhecer-se senão no acto de
fazer esta abstracção. Este conhecimento pode verificar-se de dois modos:
singularmente, como quando

37

Sócrates ou Platão têm consciência (percipit) de ter uma alma íntelectiva


pelo facto de terem consciência de entender; geralmente, como quando
consideramos a natureza da mente humana com base na actividade do intelecto.
Este segundo conhecimento depende da luz que o nosso intelecto recebe da
verdade divina, na qual residem as razões de todas as coisas, e exige uma
investigação diligente o subtil, enquanto que o primeiro é imediato (S. th.,
1, q. 87, a. 1).

A possibilidade do erro está no carácter raciocinador do conhecimento humano.


O sentido não se engana acerca do objecto que lhe é próprio (por exemplo, a
vista acerca das cores), a menos que haja uma perturbação acidental do órgão.
O intelecto também não pode enganar-se acerca do objecto que lhe é próprio.
Ora o objecto próprio do intelecto é a essência ou quididade da coisa; não se
engana, portanto, acerca da essência, mas pode enganar-se acerca das
particularidades que acompanham a essência e que ele consegue conhecer
compondo e dividindo (ou seja) mediante o juízo) ou através do raciocínio. O
intelecto pode também incorrer em erro acerca da essência das coisas
compostas, ao formular a definição que deve resultar de diferentes elementos:
isto ocorre quando refere a uma coisa a definição (em si mesma verdadeira) de
uma outra coisa, por exemplo, a do círculo ao triângulo; ou quando reúne
elementos opostos, numa definição que por isso resulta ser falsa, por
exemplo, se define o homem como "animal racional alado". No que se refere às
coisas simples, em cuja definição não intervém nenhuma composição, o
intelecto não pode enganar-se; só pode ser imperfeito, permanecendo na
ignorância da sua definição Ub., 1, q, 85, a. 6).

38

§ 276. S. TOMÁS: METAFíSICA


No De ente et asseiaia, que é a sua primeira obra e como que o seu Discurso do
método, S. Tomás estabelece o princípio fundamental que, reformando a
metafísica aristotélica, a adapta às exigências do dogma cristão: a distinção
real entre essência e existência. Este princípio, de que mostrámos a
progressiva afirmação na filosofia medieval, é aceite por S. Tomás na forma
que recebera de Avicena 1. Mas este princípio servira a Avicena para fixar na
forma más rigorosa a necessidade do ser, de todo o ser, inclusivé do ser
finito. Com efeito, a diferença entre o ser cuja essência implica a
existência (Deus) e o ser cuja essência não implica a existência (o ser
finito) consiste, segundo Avicena, em que o primeiro é necessário por si, o
segundo é necessário por outro, e, portanto, deriva desse outro (do ser
necessário) quanto à sua existência actual. Na interpretação de Avicena, o
princípio exclui a criação, implicando somente a derivação causal e
necessária das coisas finitas em relação a Deus. Na doutrina tomista, pelo
contrário, tem a função de levar a exigência da criação à pró pria
constituição das coisas finitas, e é por isso o princípio reformador que S.
Tomás utiliza para adaptar plenamente o aristotelismo à tarefa da
interpretação dogmática.

O primeiro resultado deste principio na doutrina tomista é de separar a


distinção entre potência e acto da distinção entre matéria e forma, conver-

1 Met., 11, tract. V, 1. De Avicena o principio passou a Maimónides, que o


modificou, reduzindo a existência a um simples eMente da essência (Guide des
égarés, tradução Munk, p. 230-233). S Tomás nega que a existência seja um
acidente (Quodl., q. 12, a. 5) e retoma o princípio tal como o havia
enunciado Avicena.

39

tendo-a numa distinção à parte. Para Aristóteles, potência e acto


identificam-se, respectivamente, com matéria e forma: não há potência que
não seja matéria, nem acto que não seja forma, e reciprocamente. S. Tomás
considera que não só a matéria e a forma, mas também a essência e a
existência estão entre sina relação de potência e acto. A essência, que ele
também denomina quididade ou natureza, compreende não só a forma mas também a
matéria das coisas compostas; dado que compreende tudo o que é expresso na
definição da coisa. Por exemplo, a essência do homem, que é definido como
"animal racional", compreende não só a "racionalidade." (forma) mas também a
"animalidade" (matéria). A essência, assim entendida, distingue-se do ser ou
existência das próprias coisas; podemos entender, por exemplo, o que (quid) é
o homem ou a fénix (essência), sem saber se o homem ou a fénix existem (esse)
(De e. et ess., 3). Portanto, substâncias como o homem e a fénix estão
compostas por essência (matéria e forma) e existência, separáveis entre si:
nelas, a essência e a existência estão entre si como a potência e o acto; a
essência está em potência em relação à existência, a existência é o acto da
essência; e a união da essência com a existência, isto é, a passagem de
potência a acto, requer a intervenção criadora de Deus. Ora, nas substâncias
que são forma pura sem matéria (os anjos, como inteligências puras) falta
evidentemente a composição de matéria e forma, mas não falta a de essência e
existência: também neles, com efeito, a essência é somente potência em
relação à existência e também a sua existência requer, por isso, o acto
criador de Deus. Só em Deus a essência é a própria existência, porque Deus é
por essência e, portanto, por definição; portanto, em Deus não há uma
essência que seja potência; ele é acto puro (S. th., 1, q. 50, a. 2). Por
conse-
40

,guinte, a essência pode, estar na substância, de três modos diferentes. 1.o


Na última substância divina a essência é idêntica à existência: por isso Deus
é necessário e eterno. 2.o Nas substâncias angélicas, privadas de matéria, a
existência é diferente da essência: o seu ser não é, portanto, absoluto, mas
sim criado e, finito. 3. Nas substâncias compostas de matéria e forma o ser
é-lhes acrescentado do exterior e é, portanto, criado e finito. Estas últimas
substâncias, dado que incluem matéria que é o princípio de individuação,
multiplicam-se, em vários indivíduos: o que não acontece nas substâncias
angélicas, as quais carecem de matéria.

Com esta reforma radical da metafísica aristotélica, S. Tomás faz com que a
própria constituição das substâncias finitas exija a criação divina.
Aristóteles, identificando com a forma a existência em acto, estabelece que
onde há forma há realidade em acto, e que por isso a forma é por si mesma
indestrutível e incriável, portanto, necessária e eterna como Deus. Garante
assim a eternidade da estrutura formal do universo (géneros, espécies,
formas e, duma maneira geral, substâncias). Do seu universo é excluída a
criação, assim como toda a intervenção activa de Deus na constituição, das
coisas. E precisamente por isto, o seu sistema parecia (e era)
irredutivelmente contrário ao cristianismo, e pouco adequado para lhe
exprimir as verdades fundamentais. A reforma tomista altera radicalmente a
metafísica aristotélica, transformando-a de estudo do ser necessário em
estudo do ser criado.

Por consequência, o termo "ser" aplicado à criatura tem um significado não


idêntico, mas só semelhante ou correspondente ao ser de Deus. É este o
princípio da analogicidade do ser que S. Tomás extrai de Aristóteles, mas ao
qual dá um valor completamente diferente. Evidentemente que Aristóteles havia
distinguido vários significados do ser,

41

mas só em relação às várias categorias, e os tinha referido todos ao único


significado fundamental que é o de substância (ousia), o ser enquanto ser, o
objecto da metafísica (§ 72), Por isso, não distinguia, nem podia distinguir,
entre o ser de Deus e o ser das outras coisas; por exemplo, Deus e a mente
são substâncias precisamente no mesmo sentido (Et. Nic., 1, 4, 1096 a). Por
sua vez, S. Tomás, em virtude da distinção real entre essência e existência,
distinguiria o ser das criaturas, separável da essência e, portanto criado,
do ser de Deus, idêntico à essência e, portanto, necessário, Estes dois
significados do ser não são unívocos, isto é, idênticos, mas também não são
equívocos, isto é, simplesmente diferentes; -são análogos, isto é,
semelhantes, porém de proporções diferentes. Só Deus é ser por essência, as
criaturas têm o ser por participação; as criaturas enquanto são, são
semelhantes a Deus, que é o primeiro princípio universal de todo o ser, mas
Deus não é semelhante a elas: esta relação é a analogia (S. th., 1, q. 4, a.
3). A relação analógica estende-se, a todos os predicados que se atribuem ao
mesmo tempo a Deus e às criaturas; porque é evidente que na Causa agente
devem subsistir de modo indivisível e simples aqueles caracteres que nos
efeitos são divididos e múltiplos; do mesmo modo que o sol na unidade da sua
força produz no mundo terreno formas múltiplas e diferentes. Por exemplo, o
termo "sapiente" referido ao homem significa uma perfeição distinta da
essência e da existência, do homem, enquanto que referido a Deus
significa uma perfeição que é idêntica à sua essência e ao seu ser. Por
isso, referido ao homem, faz compreender aquilo que quer significar;
referido a Deus, deixa fora de si a coisa simplificada, a qual transcende os
limites do entendimento humano (S, th., 1, q 13, a. 5). A analogicidade do
ser torna evidente-

42

mente impossível uma única ciência do ser, como o era a filosofia primeira
de Aristóteles, A ciência que trata das substâncias criadas e serve de
princípios evidentes à razão humana é a metafísica. Mas a ciência que, trata
do Ser necessário, a teologia, tem uma certeza superior e utiliza princípios
que procedem directamente da revelação divina; é por isso superior em
dignidade a todas as outras ciências (inclusivé a metafísica) que lhe são
subordinadas e servas (1b., 1, q. 1, a. 5).

Dado que o ser de todas as coisas (excepto Deus) é sempre um ser criado, a
criação, se é verdade de fé como início das coisas no tempo, é além disso
verdade demonstrada como produção das coisas do nada e como derivação, de
Deus, de todo o ser. De facto, e tal como vimos, Deus é o único ser que é tal
pela sua própria essência, isto é, que existe necessariamente e por si mesmo:
as outras coisas obtêm dele o seu ser, por participação; tal como o ferro se
torna ardente pelo fogo. Também a matéria-prima é criada. E todas as coisas
do mundo formam uma hierarquia ordenada segundo a sua maior ou menor
participação no ser de Deus. Deus é o termo e o fim supremo desta hierarquia.
Nele residem as ideias, ou seja, as formas exemplares das coisas criadas,
formas que, porém, não estão separadas da própria sapiência divina: logo,
deve dizer-se que Deus é o único exemplar de tudo (lb., 1, q. 44, aa. 1, 2,
4, 3).

A separação entre o ser criado e o ser eterno de Deus, própria de uma tal
metafísica, permite que S. Tomás salve a absoluta transcendência de Deus em
relação ao mundo e torne impossível qualquer forma de panteísmo que queira
identificar de algum modo o ser de Deus com o ser do mundo. S. Tomás alude
explicitamente, para as refutar, as duas formas de panteísmo aparecidas nos
finais do século XII, A prímeira é a de AmaIríco de Bene

43

(§ 219) o qual considera Deus como "o princípio formal de todas as coisas",
ou seja, a essência ou natureza de todos os seres criados. A segunda é a de
David de Dinant (§ 219) que identificou Deus com a matéria-prima. Contra esta
forma de panteísmo, assim como contra a de origem estóica (mas que S. Tomás
conhecia por meio duma tese de Terêncio Varrão citada por Santo Agostinho, De
civ. Dei, VII, 6) segundo a qual Deus é a alma do mundo, S. Tomás opõe o
princípio de que Deus não pode ser de nenhum modo um elemento componente das
coisas do mundo. Como causa eficiente, Deus não se identifica nem com a forma
nem com a matéria das coisas de que é causa, o seu ser e a sua acção são
absolutamente primeiros, isto é, transcendentes, em relação a tais coisas (S.
th., 1, q. 3, a. 8).

§ 277. S. TOMÁS: AS PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS

A distinção metodológica feita por Aristóteles (An. post., 1, 2) entre o que


é primeiro "por si" ou "por natureza" e o que é primeiro "para nós", foi
seguida e sempre respeitada por S. Tomás. Ora se Deus é primeiro na ordem do
ser, não o é na ordem dos conhecimentos humanos, os quais começam pelos
sentidos. É portanto necessário uma demonstração da existência de Deus; e
deve partir daquilo que é primeiro para nós, isto é, dos efeitos sensíveis, e
ser a posteriori (demonstra-lio quia). Recusa, portanto, explicitamente a
prova ontológica de Santo Anselmo: ainda que se entenda Deus como "aquilo
sobre o qual não se pode pensar nada de maior", não se segue que ele exista
na realidade (in rerum natura) e não só no intelecto.

44

S. Tomás enumera cinco vias para passar dos efeitos sensíveis até à
existência de Deus, Estas vias já expostas na Summa contra Gentiles (1, 12,
13) encontram a sua formulação clássica na Summa theologiae (1, q. 2, a. 3.

A primeira via é a prova cosmológica, extraída da Física (VIII, 1) e da


Metafísica (XII, 7) de Aristóteles. Parte do princípio de que "tudo o que se
move é movido por outro". Ora se o que o move também por sua vez se
move, é preciso que seja movido por outra coisa; e esta por outra. Mas é
impossível continuar até ao infinito; porque então não haveria um primeiro
motor nem os outros se moveriam, como, por exemplo, o pau não se move se não
é movido pela mão. Por conseguinte, é necessário chegar a um primeiro motor
que não seja movido por nenhum outro; e todos consideram esse motor como
sendo Deus. Este argumento tinha sido -retomado pela primeira vez na
escolástica latina por Abelardo de Bath (§ 215); depois, insistiram nele
Maimónides e Alberto Magno.

A segunda via é a prova causal. Na série das causas eficientes não podemos
remontar até ao infinito, porque então não haveria uma causa primeira e,
portanto, nem uma causa última nem causas intermediárias: deve, por
conseguinte, haver uma causa eficiente primeira, que é Deus. Esta prova,
extraída de Aristóteles (Met., 11, 2) tinha recebido de Avicena uma nova
exposição.

A terceira via é extraída da relação entre possível e necessário. As coisas


possíveis existem somente em virtude das coisas necessárias: mas estas têm a
causa da sua necessidade ou em si ou em outro. As que têm a causa noutro,
remetem a esse outro, e dado que não é possível continuar até ao infinito, é
preciso chegar a algo que seja necessário por si e seja causa da necessidade
daquilo que é necessá-

45

rio por outro; e isso é Deus. Esta prova é extraída de Avicena.

A quarta via é a dos graus. Encontra-se nas coisas mais ou menos de verdade,
de bem e de todas as outras perfeições: por conseguinte, também haverá o
máximo grau de tais perfeições e será ele a causa dos graus menores, como o
fogo, que é maximamente quente, é a causa de todas as coisas quentes. Ora a
causa do ser, da bondade e de todas as perfeições é Deus. Esta prova, de
origem platónica, é extraída de Aristóteles (Met., li, 1).

A quinta via é a que se infere do governo das coisas. As coisas naturais,


privadas de inteligência, estão todavia dirigidas para um fim; e isto não
seria possível se não fossem governadas por um Ser dotado de Inteligência,
como a flecha não pode dirigir-se ao alvo senão por obra do arqueiro. Por
conseguinte, há um Ser inteligente que ordena todas as coisas naturais para
um fim; e este Ser é Deus. Nesta prova que é a mais antiga e venerável de
todas, a exposição tomista segue, provavelmente, S. João Damasceno e
Averróis.
O primeiro destes argumentos, o cosmológico, tinha sido utilizado por
Aristóteles para demonstrar não só a existência de Deus como primeiro motor,
mas a existência de tantos intelectos motores quantas são as órbitas dos céus
(§ 78). Para S. Tomás, pelo contrário, o primeiro motor é um só e é Deus; e
só para Deus é válida a prova. Quanto ao movimento dos céus, parece, com
efeito, supor uma substância inteligente que o produza, porque, ao contrário
dos outros movimentos naturais, não tende para um só ponto, no qual deva
cessar; mas é muito possível que se -ia produzido directamente por Deus. De
qualquer modo, se quisermos admitir, como fizeram vários filósofos e santos,
inteligências angélicas como motores dos céus, temos de

46

notar que não estão unidas aos céus como as almas dos animais e das plantas
estão unidas aos corpos (que são formas dos próprios corpos): mas estão
unidas aos céus só com o fim de os mover, para lhes transmitir o impulso (per
contactum virtutis [S. th., I, q. 70, a. 3]). S. Tomás chega por isso à
existência das inteligências angélicas, separadas dos corpos, não através da
consideração do movimento dos céus (dado que pode ser directamente produzido
por Deus), mas através da consideração da perfeição do mundo, a qual requer a
existência de algumas criaturas incorpóreas. Efectivamente, estas criaturas
são, no mundo, as mais semelhantes a Deus, que é puro espírito, e através
delas o mundo, que é efeito de Deus, se assimila maximamente à sua Causa
(lb., 1, q. 50, a. 1).

§ 278. S. TOMÁS: TEOLOGIA

Os dogmas fundamentais do cristianismo, a trindade, a encarnação, a criação


são, segundo S. Tomás, artigos de fé, não susceptíveis de tratamento
demonstrativo; perante eles, a tarefa da razão limita-se, primeiro, a
esclarecê-los e depois a resolver as objecções. Os esclarecimentos de S.
Tomás têm uma tal lucidez e elegincia dialéctica, que constituem uma das
partes mais importantes de todo o seu sistema.

Acerca do dogma da Trindade, a dificuldade consiste em entender de que modo


a unidade da substância divina se concilia com a trindade das pessoas. Para
mostrar como se conciliam, S. Tomás serve-se do conceito de relação. A
relação, por um lado, constitui as pessoas divinas na sua distinção; por
outro lado, identifica-se com a única essência divina. Com efeito, as pessoas
divinas são constituídas pelas suas relações de origem: o Pai

47

pela paternidade, isto é, pela relação com o Filho; o Filho pela filiação ou
geração, isto é, pela relação com o Pai; o Espírito Santo pelo amor, isto é,
pela relação recíproca de Pai e Filho. Ora estas relações em Deus não sã o
acidentais (nada pode haver de acidental em Deus) mas reais; subsistem
realmente na essência divina. Por conseguinte, a própria essência divina na
sua unidade, implicando a relação, implica a diversidade das pessoas (S. th.,
1, q. 27-32, e em especial q. 29, a. 4 c). Segundo S. Tomás, basta este
esclarecimento para mostrar que "o que a fé revela não é impossível". Isto é
tudo quanto deve fazer-se nestes assuntos; nos quais toda a tentativa de
demonstração é mais nociva que meritória, porque induz os incrédulos a
suporem que os cristãos se baseiam, para crer, em razões carentes de valor
necessário (1b., 1, q.
32, a. 1).
Quanto à encarnação a dificuldade consiste em poder entender a presença, na
única pessoa de Cristo, de duas naturezas, a divina e a humana. A Igreja
condenara já, no século V, duas interpretações opostas deste dogma,
interpretação às quais S. Tomás reduz todas as outras para as refutar. A
heresia de Êutiques (§ 154), insistindo sobre a unidade da pessoa de Cristo,
reduzia as duas naturezas a uma só: a divina. A heresia de Nestórío (§ 154),
pelo contrário, insistindo sobre a dualidade de naturezas, admitia em Cristo
duas pessoas simultaneamente coexistentes, sendo a pessoa humana como que
instrumento ou revestimento da divina. A distinção real entre essência e
existência nas criaturas, e a sua unidade em Deus, fornecem a S. Tomás a
chave da interpretação. A essência ou natureza divina identifica-se com o ser
de Deus; Portanto, Cristo, que tem uma natureza divina, é Deus, subsiste como
Deus, isto é, como pessoa divina; é, portanto, uma só pessoa, a divina. Por

43

outro lado, dado que a natureza humana é separável da existência, ele pode
perfeitamente assumir a natureza humana (que é alma racional e corpo) sem ser
uma pessoa humana (Contra Gent., IV, 49). Assim se compreende como a natureza
humana pôde ser assumida por Cristo, que, revestindo-se dela, a enobreceu,
elevou e tomou novamente digna da graça divina (S. th., 111, q. 2, a. 5-,6).

Quanto à criação, para S. Tomás, ela só é artigo de fé no sentido de início


no tempo, não o sendo no sentido de produção a partir do nada. Pode admitir-
se, diz ele, que o mundo tenha sido produzido do nada e, por conseguinte,
falar de criação sem admitir que ela venha depois do nada; assim fez Avicena
na sua Metafísica (IX, 4). Pode dizer-se que se houvesse um pé impresso no pó
da eternidade, ninguém duvidaria que a pegada fora produzida pelo pé; mas com
isso não se admitiria um início no tempo da própria pegada (Santo Agostinho,
De civ. Dei, XI, 4). Do mesmo modo, os argumentos que se podem aduzir em
favor de um início do mundo no tempo não levam a conclusões necessárias. Por
outro lado, também não concluem necessariamente os que pretendem demonstrar
a eternidade do mundo. Dentre estes últimos, o mais famoso dos
aristotélicos, era o que baseava na eternidade da matéria-prima, Se o mundo
começou a existir com a criação, quer dizer que antes da criação podia
existir, isto é, que era uma possibilidade. Mas toda a possibilidade é
matéria, que depois passa a acto ao receber a forma. Antes da criação,
existia portanto a matéria do mundo. Porém, não pode haver matéria sem forma;
e matéria e forma, em conjunto, constituem o mundo; por conseguinte,
admitindo a criação no tempo, o mundo existiria antes de começar a existir, o
que é impossível. A este argumento responde S. Tomás que antes da criação o
mundo era possível só

49

porque Deus podia criá-lo e porque a sua criação não era impossível; não se
pode daqui deduzir a existência de uma matéria. Aos outros argumentos também
tirados de Aristóteles, segundo os quais os céus são formados por uma
substância incriável e incorruptível e que, portanto, são eternos, responde
S. Tomás que a incriabilidade e a incorruptibilidade dos céus e, portanto, do
mundo, se entende per modum naturalem, isto é, em relação aos processos
naturais de formação das coisas, e não em relação à criação. De modo que os
argumentos que tendem a demonstrar a eternidade do mundo também não têm valor
necessário. A conclusão é que se não pode demonstrar nem o início no tempo
nem a eternidade do mundo; e isto deixa livre o caminho para crer na criação
no tempo: id credere maxíme expedit (S. th., 1, q. 46, a.
§ 279. S. TOMÁS: PSICOLOGIA

Segundo S. Tomás, a natureza do homem é constituída por alma e corpo. O homem


não é só alma; o corpo faz também parte da sua essência, visto que ele além
de entender, sente, e o sentir não é uma operação da alma sozinha. A alma é
(segundo a doutrina de Aristóteles) o acto do corpo: é a forma, o princípio
vital que faz com que o homem conheça e se mova: como tal é substância, isto
é, subsiste por sua conta. S Tomás rejeita a doutrina do neoplatonismo
judaico-muçulmano aceite pelos franciscanos, segundo a qual a alma é composta
por matéria e forma. Não há uma matéria da alma: se houvesse, estaria fora
da alma que é pura forma. Nem o intelecto poderia conhecer a forma pura das
coisas, se tivesse em si matéria: nesse caso, conheceria as coisas na sua
materiali-

50

dade, isto é, na sua individualidade, e, o universal escapar-se-lhe-ia (S.


th., 1, q. 45, a. 4).

No homem só subsiste a forma intelectiva da alma, a qual desempenha também as


funções sensitiva e vegetativa. Duma maneira: geral, a forma superior pode
sempre desempenhar as funções das formas inferiores; e assim, nos animais, a
alma sensitiva desempenha também a função vegetativa, enquanto que nas
plantas só subsiste a alma vegetativa. S. Tomás rejeita deste modo o
princípio estabelecido por Avicena, e seguido pelo agustinianismo, segundo o
qual num composto permanecem as formas dos vários elementos que o compõem; e
que, por isso, na alma humana subsistem também as outras formas em conjunto
com a forma intelectiva. Segundo S. Tomás, formas diversas só podem coexistir
em diversas partes do espaço; porém, assim ficam justapostas, e não fundidas;
não constituem um verdadeiro composto, o qual resulta sempre da fusão dos
seus elementos. Por consequência há uma única forma na alma humana, a forma
superior intelectiva que também desempenha as funções inferiores.

Como forma pura, a alma é imortal. A matéria pode corromper-se, porque a


forma (que é acto, isto é, existência) pode separar-se dela. Mas é impossível
que a forma se separe de si própria; e é portanto impossível que se corrompa.
Neste argumento tomista reaparece a prova platónica do Fedon, segundo a qual
a alma, tendo em si a própria ideia da vida, não pode morrer. Por outro lado,
segundo S. Tomás, mesmo admitindo a alma humana como sendo composta de
matéria e forma, é também necessário admitir a sua incorruptibilidade. De
facto, só pode corromper-se o que tenha um contrário; ora a alma intelectiva
não tem contrários, porque o próprio conhecimento dos contrários constitui na
alma humana uma -única ciência,

51

Finalmente, o próprio desejo que a alma humana tem de existir é um índice


(signum) de imortalidade.
O intelecto que conhece o ser absolutamente, deseja naturalmente ser sempre;
e um desejo natural não pode ser vão (S. th., q. 75, a. 6). Mas como é
possível que a alma conserve, após a separação do corpo, a individualidade
que lhe vem precisamente do corpo? S. Tomás responde que a alma intelectiva
está unida ao corpo pelo seu próprio ser (esse); destruído o corpo, este ser
permanece, precisamente como era na sua união com o corpo, individual o
particular (1b., 1, q. 76, a. 2 a 2 um). A persistência da individualidade na
alma separada permitirá ainda que, no dia da ressurreição dos corpos, todas
as almas retornem a matéria nas dimensões determinadas que lhes eram próprias
reconstituindo assim o próprio corpo (De natura materiae, 7; Quodl., XI, a.
5).

§ 280. S. TOMÁS: ÉTICA

Da quinta prova da existência de Deus resulta que Deus ordena todas as coisas
para o seu fim supremo, que é Ele mesmo, enquanto Sumo Bem.
O governo divino do mundo que ordena o mundo para o seu fim é a providência.
Todas as coisas, inclusivê: o homem, estão sujeitas à providência divina. Mas
isto não implica que tudo aconteça necessariamente e que o desígnio
providencial exclua a liberdade do homem. Aquele desígnio não só estabelece
que as coisas sucedem, mas ainda o modo como elas sucedem. Por isso ordena
previamente as causas necessárias para as coisas que devem suceder
necessariamente, e as causas contingentes para as coisas que devem suceder
contingentemente. Deste modo, a acção livre do homem faz parte da providência
divina (S. th., 1, q. 22, a, 4). E a liberdade do homem também não é

52

anulada pela predestinação à beatitude eterna. Com as suas forças naturais o


homem não pode alcançar esta beatitude que consiste na visão de Deus, e deve
ser portanto guiado pelo próprio Deus. Mas com isto Deus não obriga, com
necessidade, o homem: porque faz parte da predestinação, que é um aspecto da
providência, que o homem atinja livremente a beatitude para a qual Deus
livremente o escolheu (1b., 1, q. 23, a. 6). Providência e predestinação
pressupõem a pré-ciência divina, com a qual Deus prevê os futuros
contingentes, isto é, as acções cuja causa é a liberdade humana.
A pré-ciência divina é certa e infalível, porque até as coisas futuras
estão nela presentes; pelo que vê desenvolverem-se em acto aquelas acções
livres que, não sendo enquanto tais determinadas necessariamente pelas suas
causas, são imprevisíveis para o homem. Em Deus, que é a própria eternidade,
todo o tempo está presente e estão portanto também presentes as acções
futuras dos homens. Ele vê-as, mas ao vê-Ias não lhes tolhe a liberdade, como
não lha tolhe c) que assiste no momento em que elas se cumprem (1b., 1, q.
14, a. 13).

Por conseguinte, a vontade humana é um livre arbítrio que não é


eliminado nem diminuído pelo ordenamento finalista do mundo nem
pela pré-ciência divina, nem sequer pela graça que é uma
ajuda extraordinária de Deus, gratuitamente concedida. "Deus, diz S.
Tomás (1b., 1, 2, q. 113, a. 3), move todas as coisas no modo que é próprio
de cada uma delas. Assim, no mundo natural, move dum modo os corpos leves,
doutro modo os corpos pesados, segundo a sua diferente natureza. Por isso
move o homem para a justiça segundo a condição própria da natureza humana.
Pela sua própria natureza, o homem tem livre arbítrio. E, enquanto tem livre
arbítrio, a tendência para a justiça não é produzida por Deus
independentemente desse livre

53

arbítrio: e Deus infunde o dom da graça justificante de modo a mover, em


conjunto com ele, o livre arbítrio a aceitar o dom da graça".

A presença do mal no mundo deve-se ao livre arbítrio do homem. S. Tomás


admite a doutrina platónico-agustiniana da não-substancialidade do mal: o mal
não é senão ausência de bem. Ora tudo o que existe é bem, e é bem no grau e
na medida em que existe; mas dado que a ordem do mundo requer também a
realidade dos graus inferiores do ser e do bem, os quais parecem (e são)
deficientes e, portanto, maus em relação aos graus superiores, pode dizer-
se que a própria ordem do mundo requer o mal. O mal é de duas espécies: pena
e culpa. A pena é deficiência da forma (realidade ou acto) ou de uma das
suas partes, necessária para a integridade de uma coisa: por exemplo, a
cegueira é a falta de vista. A culpa é a deficiência de uma acção, que não
foi feita ou não foi feita do modo devido. Dado que no mundo tudo está
sujeito à providência divina, o mal, como ausência ou deficiência de
integridade, é sempre pena. Mas o mal maior é a culpa, que a providência
tenta eliminar ou corrigir com a pena (1b., 1, q. 48, a. 5-6).

Ora a culpa (o pecado) é o acto humano de escolha deliberada do mal, isto é,


a actuação discordante com a ordem da razão e com a lei divina (11, 1, q. 21,
a. 1). o homem é dotado da capacidade de distinguir o bem e de tender para
ele. Com efeito, tal como há nele a disposição (habitus) natural para
entender os princípios especulativos, dos quais dependem to-das as ciências,
também nele existe a disposição (habitus) natural para entender princípios
práticos, dos quais dependem todas as boas acções. Este habitus natural
prático é a sindérese, que nos dirige para o bem e nos afasta do mal; o acto
que deriva desta disposição, é que consiste no aplicar os princípios gerais
da acção

54

a uma acção particular, é a consciência (S. th., 1, q.


79, a. 12-13).

As virtudes estão baseadas neste habitus geral do intelecto prático. A este


propósito, S. Tomás aclara o carácter de indeterminação e de liberdade que
são próprios do habitus. As potências (ou faculdades) naturais estão
determinadas a agir dum único modo: não têm possibilidade de escolha nem
liberdade, agem dum modo constante e infalível. Pelo contrário, as potências
racionais, que são próprias do homem, não estão determinadas num só sentido;
podem agir em vários sentidos, segundo a sua livre escolha; e por isso a
escolha que fazem do sentido em que agem produz uma disposição
constante, mas não necessária nem infalível, que é o habitus (11, 1, q. 55,
a. 1). Neste sentido, as virtudes são habitus, disposições práticas para
viver rectamente e para fugir do mal. S. Tomás aceita a distinção de
Aristóteles entre as virtudes intelectuais e as virtudes morais; destas
últimas, as principais ou cardeais, a que todas as outras se reduzem, são:
justiça, temperança prudência e fortaleza. As virtudes intelectuais e morais
são virtudes humanas: conduzem à felicidade que o homem pode conseguir nesta
vida com as suas próprias forças naturais. Mas estas virtudes não bastam para
conseguir a beatitude eterna: são necessárias as virtudes teologais,
directamente infundidas por Deus no Homem: fé, esperança e caridade.

§ 281. S. TOMÁS: POLíTICA

O fundamento da teoria política de S. Tomás é a teoria do direito natural,


uma das maiores heranças que o estoicismo deixou ao mundo antigo e moderno e
que, na época de S. Tomás, era considerada como fundamento do próprio direito
canó-

55

nico. Segundo S. Tomás, há uma lei eterna, isto é, uma razão que governa todo
o universo e que existe na mente divina; a lei natural, que existe no homem,
é um reflexo ou uma "participação" dessa lei eterna (S. th., 11, 1, q. 91, a.
1-2). Esta lei natural concretiza-se em três inclinações fundamentais: 1.a
-a inclinação para o bem natural, que o homem tem em comum com qualquer
substância, a qual, enquanto tal, deseja a sua própria conservação; 2.a-a
inclinação especial para determinados actos, que são os que a natureza
ensinou a todos os animais, como a união do macho e da fêmea, a educação dos
filhos e outros semelhantes;
3 a-a inclinação para o bem segundo a natureza racional que é própria do
homem, como o é a inclinação para conhecer a verdade, a de viver em
sociedade, etc. (S. th., 11 1, q. 94, a. 2).

Além desta lei eterna, que é para o homem lei natural, existem duas outras
espécies de leis: a humana, "inventada pelos homens e pela qual se dispõem de
modo particular as coisas a que a lei natural já se refere" (1b., 11, 1, q.
91, a. 3); e a divina, que é necessária para dirigir o homem aos fins
sobrenaturais (lb., a. 4). S. Tomás afirma, de acordo com a teoria do direito
natural, que não é lei aquela que não é justa, e que, portanto, "da lei
natural, que é a primeira regra da razão, devem ser derivadas todas as leis
humanas" (1b., q. 95, a. 2).

Segundo S. Tomás, pertence à colectividade ditar as leis. "A lei, diz ele
(11, 1, q. 90, a. 3), tem como o seu fim primeiro e fundamental o dirigir
para o bem comum. Ora ordenar algo com vista ao bem comum é próprio de toda a
colectividade (multitudo) ou de quem faz as vezes de toda a colectividade.
Estabelecer as leis pertence portanto a toda a colectividade ou à pessoa
pública que cuida de toda a colectividade; porque em todas as coisas só pode
dirigir para um fim aquele a quem pertence

56

o próprio fim". Deste modo, S. Tomás afirmou explicitamente a origem popular


das leis. Todavia considera que entre as formas de governo enunciadas por
Aristóteles, a melhor é a monarquia: como aquela que melhor garante a ordem e
a unidade do estado, e a mais parecida com o próprio governo divino do mundo
(De regimine princ., 1, 2). Mas embora o estado possa dirigir os homens para
* virtude, não pode, pelo contrário, dirigi-los para
* fruição de Deus que é o seu fim último. Um tal governo espiritual pertence
só àquele rei, que não só é homem mas também é Deus, isto é, a Cristo. E como
o fim menos alto se subordina ao fim mais alto e supremo, assim o governo
civil se deve subordinar ao governo religioso que é próprio de Cristo, e que
por Cristo foi confiado não aos reis terrenos mas ao papa. "A ele, como ao
próprio Senhor Jesus Cristo, devem estar sujeitos todos os reis do povo
cristão. Pois àquele a quem pertence velar pelo fim último devem estar
sujeitos aqueles aos quais pertence velar pelos fins subordinados; estes
devem estar sob o comando daquele" (De reg. princ., 1, 14).

§ 282. S. TOMÁS: ESTÉTICA

Ocasionalmente, S. Tomás expôs também um núcleo de doutrinas estéticas,


extraídas do Pseudo-Dionísio, e também com inspiração neoplatónica.
O belo, segundo S. Tomás, é um aspecto do bem. É idêntico ao bem, enquanto o
bem é aquilo que todos desejam e, portanto, o fim; também o belo é desejado
e, portanto, tem valor de fim. Mas o que se deseja do belo é a visão
(aspectus) ou a consciência: ao contrário do bem, o belo está portanto em
relação com a faculdade cognoscitiva. Por isso a beleza só se refere aos
sentidos que têm maior valor cognoscitivo, ou seja, a vista e o ou-
57

Vido, que servem a razão; chamamos belas às coisas oisíveis e aos sons, mas
não aos sabores e aos dores. O que agrada, na beleza, não é o objecto mas a
apreensão (apprehellsio) do objecto (s. th., i, q_ 5, a. 4; 11, 1, q- 27 , a.
1).

Seguindo o Pseudo-DionísiO (De div, noin., cap.


4, 1), S- Tomás atribui ao belo três características: perfeição, porque o que
é
reduzido ou incompleto ou cas OU condições fundamentais: a
integridade to e feio; a proporção ou congruência das partes- a clareza.
Estas características encontram-se não só nas coisas sensíveis, irias
também nas espirituais; as quais, portanto, também têm a sua beleza. Se
chamamos belo a um corpo quando os seus membros são proporcionados e tem a
cor devida, também chamamos belo a um discurso ou a uma acção que é bem
proporcionada e tem 90

a clareza espiritual da razão. E é bela a virtude porque modera, com a


razão, as acções humanas (S. th., 11, 2, q.
2, a, 1).

Finalmente, chamamos bela a uma **inia- se ela representa


perfeitamente o seu objecto, -'em

mesmo que eJe seja feio. E neste sentido, S. Tomás- se- ,guindo Santo
Agostinho (De trin., VI, 10), vê a beleza perfeita no Verbo d e Deus que é
a imagem perfeita do Pai (S. th., 1, q. 39, a, 8).

NOTA BIBLIOGRÁFICA § 273. As antigas biografias de S. Tomás (Pedro Calo,


Guilherme de Toeco, Bernardo Guidone) foram novamente editadas por PRUMMER,
Pontes vitac S. Thomae Aquinatis, Toulose, 1911 e .,, BARToLomEo DA LUccA,
Hstória eccIesiástica nova, XXrI, 20-24
39. XX111, 8-15. A edição completa da obra de 1 S. Tomás
apareceu pela primeira vez em Roma, por ordem do papa pio V, 1570-1571,
18 vol. ín-folio, Poram posteriormente publicadas numerosas edições, das
quais a últirria, por ordem de Leão XIII, foi edi-

58

tada em Roma a partir de 1882, Das obras principais são numerosíssimas as


edições parciais e as traduções em todas as línguas do mundo.

Para a bibliografia: _MANDONNET-DESTREZ, Bibliograp7iie Thomiste, Kain, 1921;


2.1 edição completada por Chenu, Paris, 1960; "Bullettin Thomiste", 1924 e
ss.

Sobre a autenticidade das obras de S. Tomás: XANDONNET, Les écrits


authentiques de St. Thomas, Paris, 1922; GRABMANN, in "Beitrãge", XX11, 1-2,
1931.

SERTILLANGES, St. Th. dA., 3 vol., Paris, 1910; GILSON, St. Th. d'A., Paris,
1925; RoUGIER, La scolastique et le thomisme, Paris, 1925; MARITAIN, Le
doteur angélique, Paris, 1934; GRABMANN, Thomas von Aquin, Monaco, 1935;
CHENU, Introduction à Ilétude de St. Th. dIA., Montreal-Paris, 1950; DIApcY,
St. Th, dIA., Dublin-Londres, 1953; CRESSON, St. Th. dIA., Paris, 1957 3.
§ 274. Sobre a relação entre razão e fé: LABERTHONNIÈRE, St. Thomas et
le rapport entre ia science et Ia foi, in "Annales de phiI. ehrétienne" ,
1909, p.
599-621; LEFEBURE, Llacte de foi dIaprès Ia doctrine de St. Thomas dIA.,
Paris 1905, 2.1 ed., 1924; GILSON, ÉtwIes de phil. médiévale, p. 30 e
ss.; CHENU, St. Th. dIA., et Ia théologie, Paris, 1959.

§ 275. Sobre a teoria do conhecimento: PRANTL, Gesch. d. Log., III, p, 107-


119; LANNA, La teoria della conoscenza in S. Tommaso, Florença, 1913. Sobre a
teoria da abstracção: BLANCH, Mélange thomiste, p.
237-251. Em geral: ROUSSELOT, Llintellectualisme de St. Th., Paris, 1908,
nova ed. 1924; PEIFER, The Concept in Thomism, New York, 1952; DuPONCHEL,
Hypothèses pour Ilinterprétation de Ilaxiomatique thomiste, Paris,
1953.

§ 276. Sobre a distinção entre essência e existén- [cia: Dumm, Système du


monde, V, p. 468 e ss.; GRABMANN, Doctrína S. Thomae de distinctione reali
inter essentiam et esse ex documentis ineditis saec. XIII Mustratur, Roma,
1924; ROUGIER, Op. cit. Sobre a analogicidade do seu e a noção de
participação: BLANCI1, in "Revue des Seiences phil. et théol.", 1921, p. 169-
193, e in "Revue d ePhilos.", 1923, p. 248-271; GARRIGOU-LAGRANGE, Dieu, son
existence et sa nature,
4.1,ed., Paris, 1924, p. 200 e ss., etc.; LANDRY, in "Revue néoscolastique".
1922, p. 257-280, 451-464; DE MUNNYNK, ib., 1923, p. 129-155; FABRO, La
nozione metafísica di partecipazione secondo S. Tommaso

59

d'Aquino, Turim, 1950 2; ANDERSON, An Introduction to the Metaphysios of S.


Th., Chicago, 1953; KLUBERTANS, St. Th. A. on Analogy, Chicago, 1960.

§ 277. Sobre as provas da existéncia de Deus e as suas fontes: BAEUMKER, in


"Beitrãge", 111, 2, p. 302 e ss,, 310, 324 e ss., 332-334; GRUNWALD,
Geschichte der Gottesbeweise in MitteWters, in "Beitrãge", VI, 3, p.
133-161, Sobre a teoria dos anjos: Dumm, op. cit., p.
539 e ss.

§ 278. Sobre a teologia: GARRIGOU-LAGRANGE, op. Cit.; SLRTILLANGES, in.


"Revue de Sciences phil. et théol.", 1907, p. 239-251; GEYER, in "
Phi,losophisches Jahrbuch", 1924, p. 338-359.

§ 279. Para a psicologia, os textos fundamentais são: Contda Gent., 11,


56-90; Quaestio disp. de an. e Summa theoL, 1, q. 75-89, 118-119. DOMET DE
VORGES, La perception et Ia psychotoqie thomiste, Paris, 1892; FABRO,
Percezione e pensiero, II, Milão, 1941; HART, The Thomistic Concept of Mental
Faculty, Washington,
1930.

§ 280. Sobre aliberdade: VERWEYEN, Das Problem der ]Villensfreffieit in der


Schokstik, 1909 p. 692-713; GILSON, St. Thomas dIA. ("Les moraIistes
chrétiens. Textes Qt conimentaires"), Paris, 1924; LAPORTE, in "Revue de Mét.
et de Mor.", 1931, 1932, 1934.

§ 281. Sobre a política: BAUMANN, Die Staatslehre d. h. Th. v. Aquino,


LeIpzig, 1909; ZEILLER, Llidée de Pétat dans Saint Thomas, Paris, 1910;
MICHEL, La notion thomiste de bien ~mum, Paris, 1932; COTTA, Il concetto di
legge nella "Summa Theologiae" di S. Tomm,aso d"Aquino, Turim, 1955; GILBY,
The Political Thought of Th. A., Chicago, 1958.

§ 282. Sobre a estética: DE WULF, in "Revue néo-seo,lastique", 1895, p. 188-


205, 341-357; 1896, p.
117-142, recolhidos in Êtudes historiques sur Ilesthétique de St. Th. dIA.,
Lovaina, 1896; VALENSISE, DellIestetica secondo i principii dell'Angelico
Dottore, Roma,
1903; MARITAIN, in "Revue des Jenues", 1920; DE MUNNYNK, in San Tommaso,
Milão, 1923, p. 228-246; Eco, Il probleina estetico in Tommaso dAquino,
Turim,
1956.

60

XVI

O AVERROISMO LATINO

§ 283. AVERROISMO LATINO: CARACTERISTICAS

DO AVERROISMO LATINO

A primeira consequência da introdução do aristotelismo na escolástica cristã


foi a plena delimitação dos campos respectivos da razão e da fé. A razão é o
domínio das verdades demonstradas, e por isso, o das demonstrações
necessárias e dos princípios evidentes que as fundamentam; a fé é o domínio
das verdades reveladas, privadas de necessidade demonstrativa e de evidência
imediata, Esta distinção é solidamente mantida em toda a história posterior
do aristotelismo escolástico, ou melhor de toda a escolástica. Mas a obra de
S. Tomás não se tinha limitado ao reconhecimento desta distinção: antes havia
pretendido ultrapassá-la, estabelecendo entretanto a impossibilidade de
qualquer oposição entre os dois termos. "Pois que só o falso é oposto ao
verdadeiro, dizia S. Tomás, como é evidente pelas suas respectivas
definições, é impossível que a verdade da fé seja contrária aos princípios
que a razão

61

conhece naturalmente" (Contra Gent., 1, 7). Toda a doutrina tomista está


organizada com o fim de tornar impossível esta oposição: o princípio da
analogicidade do ser, no sentido em que é desenvolvido por S. Tomás, serve
precisamente, por um lado, para demonstrar que o próprio estudo dos seres
naturais tem necessidade de uma integração sobrenatural, e por outro lado,
serve para situar tal integração na zona do ser em que a capacidade
demonstrativa da razão não pode alcançar nem a afirmação nem a negação. Tome-
se como exemplo a maneira como S. Tomás trata do problema da criação, o qual
se iria tornar, fora do tomismo, um dos pontos cruciais da polémica
escolástica: a criação é uma verdade de razão, isto é, demonstrável; no
entanto, não se pode demonstrar nem que tenha sucedido no tempo, nem que se
situe fora do tempo, por isso é lícito crer que tenha acontecido no tempo (§
278). O tomismo tentou assim demonstrar a coincidência dos dois princípios,
um de estrita inspiração aristotélica, exprimindo o outro a própria
possibilidade da investigação escolástica: isto é, do princípio segundo o
qual "é impossível que seja falso o contrário de uma verdade demonstrável"
com o princípio: "é -impossível que uma verdade de fé seja contrária à
verdade demonstrável".
Todavia, a não coincidência destes dois princípios tinha sido a base do
aristotelismo averroista. O aristotelismo, ou seja, a filosofia, tinha sido
entendido por Averróis (claro que num sentido mais conforme com as suas
intenções originais) como não necessitando e não sendo susceptível de
integrações não-demonstrativas: continha, portanto, segundo Averróis, tudo
aquilo em que o filósofo deve acreditar (que coincide com aquilo que pode
demonstrar) e constitui a verdadeira religião do filósofo, enquanto que a
religião revelada não é senão um modo aproximativo e imperfeito de se
acercarem das próprias

62

verdades aqueles que não são capazes de seguir a via da ciência e da


demonstração. Deste ponto de vista não se podia excluir a possibilidade duma
oposição entre as afirmações da ciência e as crenças da fé: mesmo que não se
tratasse de uma oposição entre duas verdades, mas sim entre dois modos de
exprimir a mesma verdade, dos quais um, o da fé, é muito mais imperfeito do
que o outro porque, embora. estando adaptado à sua tarefa prática (a de
dirigir as multidões no caminho da salvação) está privado da necessidade
racional própria da ciência. Claro que a expressão "doutrina da dupla
verdade", que foi posteriormente inventada e é ainda frequentemente adoptada
a propósito de Averróis, dos averroístas e de qualquer outro ponto de vista
que de qualquer forma admita a possibilidade de uma oposição entre a razão e
a fé, tal expressão não é muito exacta: para Averróis, em particular, a
verdade é uma só. Mas para os averroístas dos séc. XIV e XV essa expressão
pode considerar-se dotada de uma certa verdade no sentido em que designe
qualquer posição que reconheça uma oposição entre as conclusões da filosofia
e as crenças da fé e não se preocupe em eliminar ou conciliar tal oposição.

Na sua base, e como inspiração fundamental de todo o averroísmo, está o


conceito da filosofia como ciência rigorosamente demonstrativa, e da
felicidade do filósofo como coincidindo com a posse de tal ciência: não
inclui porém o conceito que, para lá desta ciência e desta felicidade,
existem uma verdade e uma felicidade diferentes, as quais são dadas pela fé.
Desta forma, o averroísmo podia chegar, e chegou, ao reconhecimento explícito
de pontos de oposição entre os dois domínios, e não oferece nenhum princípio
para anular tais oposições. Foi esta a situação em que se colocou aquela
corrente que (na expressão de Renan) chamamos o averroísmo latino; corrente
da qual só alguns estudos e descobertas recentes

63

permitiram conhecer o alcance, dado que as condenações teológicas de que foi


objecto haviam impedido
* difusão e a publicação do material historiográfico
* ela relativo. Fazem parte desta corrente Siger de Brabante, Boécio de
Dácia, Bernier de Nivelles e Gosvino de Chapelle; mas destes dois últimos
quase nada se sabe.

§ 284. SIGER DE BRABANTE: VIDA E OBRA

Siger de Brabante, mestre da faculdade de artes da Universidade de Paris,


aparece pela primeira vez na história a 27 de Agosto de 1266, a propósito de
desordens que se tinham verificado naquela Universidade. A data do seu
nascimento foi fixada, com uma certa probabilidade, cerca de 1235.
Em 1270, o dominicano Egídio de Lessines (que morreu cerca de 1304) expunha,
numa carta a Alberto Magno, quinze teses sustentadas pelos mais célebres
mestres de filosofia do estudo parisiense:
1. O intelecto de todos os homens é numericamente uno e idêntico. 2. A
proposição w homem entende" é falsa e imprópria. 3. A vontade do homem quer
e escolhe por necessidade. 4. Todos os acontecimentos sublunares estão
submetidos necessariamente aos corpos celestes. 5. O mundo é eterno.
6. Nunca existiu um primeiro homem. 7. A alma, que é a forma do homem
individual, morre com a morte do homem. 8.O A alma separada depois da morte
não sofre o fogo corpóreo. 9.O O livre arbítrio é uma potência passiva, não
activa, e é movido necessariamente pelo objecto do desejo. 10.1 Deus não
conhece as coisas particulares. 11. Deus não conhece aquilo que é diferente
de si próprio.
12. As acções humanas não são regidas pela providência divina. 13. Deus não
pode dar a imortalidade ou a incorruptibilidade a uma coisa mortal

64

AVERROIS

ou corporal. 14. O corpo de Cristo, que foi crucificado e sepultado, não é


ou não foi sempre numericamente idêntico, mas só relativamente.
15. O anjo e a alma são simples, ainda que não de uma simplicidade absoluta,
não porque se aproximem do que é composto, mas porque se afastam do que é
sumamente simples. As treze primeiras teses constituem os princípios do
averroísmo parisiense; as duas últimas pertencem à doutrina tomista porque,
em substância, exprimem o princípio da unidade das formas e a simplicidade
das substâncias espirituais enquanto privadas de matéria. Como resposta e
refutação destas teses, Alberto Magno escreveu o seu tratado De quindecim
problematibus; e, provavelmente em consequência dessa refutação, o arcebispo
de Paris, Estevão Tempier, condenou as treze proposições nos finais desse
mesmo ano de
1270. O averroísmo continuou todavia em Paris a sua propaganda, sob a
direcção de Siger e de Boécio de Dácia, até 7 de Março de 1277 quando o mesmo
arcebispo procedeu à condenação de 219 proposições, que pertenciam não só ao
averroísmo, mas também à doutrina peripatética em geral. Esta segunda
condenação assinalou o fim do averroísmo latino. Em 23 de Outubro de 1277 o
inquisidor de França, Simão du Val, citou Siger de Brabante perante o seu
tribunal para responder a uma acusação de heresia. Parece que Siger apelou
para Roma e que a condenação foi confirmada. Ao certo sabemos que foi
internado na própria corte de Roma e passou a segui-Ia nas suas deslocações.
entre 1281 e 1284, enquanto a corte papal estava em Orvieto, Siger foi
assassinado por um clérigo meio louco que estava ao seu serviço.

São os seguintes os escritos atribuídos a Siger que, com um certo fundamento,


podem considerar-se autênticos: 1. Quaestio utrum haec sit vera: homo est
animal, nullo homo existente (1268); 2.O Sophis-

65

ma: omnis homine de necessitate est animal (1268);


3. Cotipendium super librum De generatione et corruptione (depois de 1268);
4.O Quaestiones in librum tertium De anima (cerca de 1268); 5.O Quaestiones
logicales; 6. Quaestiones supra secundum Physicorum (cerca de 1270); 7.
Impossibília (1271-72); 8. Quaestiones naturales (cerca de 1271); 9. De
aeternitate mundi (cerca de 1271); 10. Tractatus de anima intellectiva
(1272-73); 11. De necessitate et contingentia causarum (cerca de 1272); 12.
Quaestiones naturales (cerca de 1273); 13.O Quaestiones super 11-VII
Metaphysicorum (1272-74), 14.o Quaestiones morales.

Destas obras, umas foram publicadas por historiadores modernos e outras


apareceram em estratos ou resumos. São atribuídas a Siger muitas outras
obras; mas algumas perderam-se completamente e outras são de autenticidade
duvidosa ou contestada.

§ 285. SIGER: NECESSIDADE DO SER

E UNIDADE DO INTELECTO

A fidelidade de Siger ao aristotelismo de feição averroísta aparece


perfeitamente na quaestio: se será verdadeira a preposição "o homem é animal"
supondo que não exista nenhum homem. Com efeito, tal questão relaciona-se com
a distinção real entre essência e existência, que tinha servido a S. Tomás
para a sua reforma do aristotelismo, Siger responde que "se se suprimem os
homens individuais, suprime-se aquilo sem o qual a natureza humana não pode
subsistir, e suprime-se assim a própria natureza humana". Destruímos os
indivíduos, o homem deixa de existir; por isso, não se lhe pode chamar nem
animal nem qualquer outra coisa. Essência e existência não são separáveis,
nem sequer nas coisas finitas.

66

Era assim eliminado o princípio que S. Tomás tinha utilizado para mostrar que
o ser das coisas finitas é um ser criado e supõe a acção activa de Deus; e
Siger regressava ao princípio aristotélico (conservado pelo averroísmo)
segundo o qual o ser, na sua estrutura universal, é necessário e eterno.
Consequentemente admitia a eternidade da matéria, do movimento e das
espécies, reafirmando o princípio de que nenhuma espécie de entes começa a
ser no tempo (De an. intell., ed. Mandonnet, 11, 159). Portanto, eterna é
inclusivamente a alma intelectiva, que não é de forma nenhuma uma parte ou
uma faculdade da alma humana. Está ligada ao corpo somente enquanto coopera
com ele num único trabalho (opus), que é o de entender. Mas é numericamente
una e idêntica em todos os homens porque, tendo o seu ser separado da
matéria, não se multiplica com a multiplicação da matéria ou com a
multiplicação dos corpos. Acontece com ela aquilo que acontece com todas as
espécies (por exemplo, "homem") que são participadas por vários indivíduos,
os quais diferem entre si material e numericamente, mas que, como forma
deles, permanece única e indivisa e não se multiplica com a multiplicação dos
indivíduos (De an. intel., 7).

O De unitate intellectus de S. Tomás, que nalguns manuscritos é


explicitamente indicado como tendo :sido dirigido contra Siger (contra
magistrum Sogerum), deve ter sido escrito para refutar uma obra de Siger; não
porém para refutar o Acerca da alma intelectiva, o qual, pelo contrário,
parece antes ser uma resposta às objecções de S. Tomás. A principal destas
objecções é, como vimos (§ 279) que se o intelecto fosse uma substância
separada, não seria o próprio homem a entender; ao que Siger responde que o
intelecto actua no homem não como um motor, mas operans in operando, isto é,

67

como um princípio directivo da sua actividade intelectual.

E precisamente enquanto o homem sapiente participa nas acções do intelecto


activo ou, pelo menos, permite que essas acções nele operem, que alcança
aquela felicidade puramente contemplativa possível de já obter dessa maneira,
como Siger sustentava num tratado desaparecido (De felicitate) mas de cuja
ideia restam traços em alguns averroístas do renascimento, especialmente em
Nifo.

§ 286. SIGER: A ETERNIDADE DO MUNDO E A DOUTRINA DA DUPLA VERDADE

A unidade e eternidade do intelecto era uma tese que na filosofia de Siger,


tal como no aristotelismo muçulmano, estava estreitamente ligada à da
necessidade do ser em geral, e constituia um simples corolário desse
princípio mais geral. A esse mesmo princípio se liga a outra tese típica do
averroísmo, e da eternidade do mundo. Com efeito, se o mundo é necessário não
pode ter tido um começo e é eterno. E Siger considera a necessidade do mundo
como sendo uma verdade demonstrada, que deriva da própria necessidade do ser
divino. Com efeito, Deus é necessariamente primeiro Motor ou primeiro Agente;
como tal está sempre em acto; portanto, é preciso que mova ou actue sempre.
Segundo este ponto de vista, a criação não é um acto livre de Deus mas deriva
da sua própria necessidade; e desta necessidade deriva também o ciclo
imutável da criação pelo qual todas as coisas retornam periodicamente nas
mesmas condições, com base no movimento dos céus, que é o intermediário pelo
qual a necessidade divina actua no mundo. "Assim sucede, diz Siger, com as
opi-

68

niões, as leis e as religiões: todas as coisas inferiores percorrem um ciclo


determinado pela rotação dos corpos celestes, ainda que os homens não
recordem o retorno periódico de muitas delas, dado o seu afastamento no
tempo" (De an. intell., 7).

Siger encontrava deste modo, através de Averróis, a concepção estóica do


devir cíclico do mundo; e, admitindo a subordinação de todos os
acontecimentos sublunares aos movimentos celestes, aceitava o determinismo
astrológico dos muçulmanos. Todavia, perante o nítido contraste entre estas
teses e os pontos fundamentais da fé cristã, Siger declara preferir esta
última. "Estas proposições, diz ele, formulamo-las segundo as opiniões do
filósofo, mas não afirmamos que sejam verdadeiras". E aponta a mesma
reserva a propósito da separação do intelecto, dizendo: "Se a santa fé
católica é contrária à opinião do filósofo, é a ela que nós preferimos, tanto
neste caso como em todas as outras circunstância s".

S. Tomás, referindo-se no De unitate (cap. 25) ao autor que pretende refutar,


cita-lhe a seguinte frase: "Mediante a razão concluo necessariamente que o
intelecto é numericamente uno, mas pela fé estou firmemente seguro do
contrário". É esta a expressão típica da doutrina da dupla verdade; e contra
ela, S. Tomás pode objectar que, nesse caso a fé seria contrária à razão,
portanto, às verdades necessárias; e, por consequência, falsa. As expressões
que encontramos nas obras conhecidas de Siger não são tão enérgicas como a
que é referida por S. Tomás. Mas o seu sentido é talvez o mesmo; dado que o
filósofo, ou seja, Aristóteles, é a própria encarnação da razão, tanto para
Siger, como para Averróis, como para o próprio S. Tomás, e a irredutibilidade
da sua opinião aos ensinamentos da fé significa um contraste irremediável
entre as duas ordens da verdade: a verdade filosófica,

69
baseada como diz Siger "na experiência humana e na razão" e a verdade da fé,
baseada na revelação.

§ 287. BOÉCIO DE DÁCIA

O contraste entro as duas ordens de verdades aparece ainda mais nítido na


obra do dinamarquês Boécio de Dácia, que foi aluno de Siger, e também foi
mestre do estudo parisiense. Boécio foi autor, a',ém de Comentários às obras
aristotélicas, de um trabalho sobre lógica, De modis significandis, e de
outros tratados: De summo bono,- De somniis; De mundi aeternitate: este
último, só recentemente editado, é particularmente significativo para a
história do averroísmo.

Vimos que o princípio fundamental que o averroísmo latino aproveitava do


aristotelismo muçulmano é o da necessidade do ser em geral: com efeito,
derivam deste princípio as duas teses típicas deste averroísmo, a da
eternidade do mundo e a da eternidade do intelecto activo. Boécio afirma
claramente o princípio da necessidade como exigência de quaisquer
considerações racionais ou naturais do mundo. Do ponto de vista racional, de
facto, a natureza é "o primeiro princípio no género das coisas naturais, e é
o primeiro princípio que o filósofo natural pode consideram (De mundi aet.,
ed. Sajó, p. 96-97). O que significa que, para lá da natureza, não existe,
racional e humanamente falando, nenhum princípio superior; e que o mundo pode
e deve ser explicado com base num seu princípio imanente que não reenvie a
nada de superior à natureza ou de diferente dela. Do ponto de vista da
filosofia natural, a criação é portanto impossível: "possível" ou
"impossível" são com efeito qualificações que o filósofo adopta "com base nas
razões que são investigáveis pelo homem" ; dado

70

que mal abandona estas razões ele deixa de ser filósofo. "A filosofia não se
baseia na revelação

nem nos milagres" (1b., p. 117). Mas aquilo que é impossível para a filosofia
não é impossível absolutamente ou em si, já que é dito impossível somente no
âmbito de um universo de discurso no qual valem como decisivas as razões
naturais e os princípios em que elas se baseiam. Fora deste universo, a
criação pode ser admitida como possível: isto é, possível para uma causa
"maior que qualquer causa natural": ou seja, que não conheça, ou transcenda,
as limitações ou os comportamentos próprios das causas naturais. A criação do
mundo, que é racionalmente impossível, pode ser possível a uma tal causa; e o
reconhecimento dos dois diferentes universos do discurso, paralelos e
irredutíveis e em que se situam aquela impossibilidade e esta possibilidade,
é a única "concordância" que, segundo Boécio de Dácia, pode haver entre a
filosofia e a fé.

Este ponto de vista tornava óbviamente impossível a investigação escolástica


e a ciência teológica que era a cúpula ou a filha predilecta dessa
investigação: assim se explica porque é que isso foi constantemente
considerado como um escândalo enquanto a escolástica permaneceu viva como a
única forma possível de filosofia, e porque é que, pelo contrário, foi aceite
e reconhecido à medida que o próprio problema escolástico se encaminhava para
a sua dissolução.

NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 284. A figura de Siger de Brabante só recentemente pôde ser estudada. As
investigações de HAURÉAU ("Journal des savants", 1886, 176-183; Histoire
litt. de Ia France, vol. 30, 1988, 270-279; Notices et extraits, V, 88-89) e
de DENIFLE (Chart. Univ.

71

Paris, 1, 487, 556) haviaxn esclarecido que as condenações pronunciadas em


1270 e em 1277 pelo bispo de Paris, Estêvão Tempier, eram fundamentalmente
dirigidas contra o ensino de Siger. Mas quando BAEUMKER publicou em 1898 os
Impossibilia (in "Beitrãge",
11, 6) considerou-as (confirmando a opinião de HAuRÉAU) como uma obra
polémica de autor desconhecido, e dirigida contra Siger; com a excepção de
seis únicas teses, que seriam do próprio Siger. MANDONNET (Siger de Brabante
et Vaverroisme latin au XIII, Wele, I, Lovaina, 1911, p. 119 e ss.),
demonstrou que toda a obra pertence a Siger, e que é constituída por uma
série de sofismas, que, como era uso na Idade Média, tinham sido discutidos e
refutados na escola, na presença do mestre (neste caso Siger). £ a
reportatio, o resumo escrito, feito por um aluno de Siger, dos exercicios
dialécticos que se faziam na escola. Ao mesmo gênero pertencem os
Impossibilia de SIGER DE COURTRAI, que foi confundido, durante muito tempo,
com Siger de Brabante. Dele sabemos que foi Mestre de artes = 1309, membro da
Sorbonne em 1310 e Decano da igreja de Santa Maria de Courtrai de
1308 a 1330.

As obras de Siger foram parcialmente editadas nos dois trabalhos abaixo


mencionados de Mandonnet e Van Steenberghen. A carta de Egidio de Lessines
foi editada pela primeira vez em Mandonnet, II,
29 e ss.

Que o De unitate intellectus de S. Tomás não seja a refutação do De anmia


intellectiva de Siger (como Mandonnet considerava), mas que pelo contrário
este seja uma refutação do primeiro, foi demonstrado pela primeira vez por
CHOSSAT, Saint Thomas d'Aquin et Siger de Brabant, in. "Revue de Phil.,
1914, 553 e ss., e confirmado por NARDI, in Tommaso d'Aquino. Opuscoli e
testi filosofici, 11, 7-8; por OTTAVIANO, Intr. à tradução do opúsculo
tomista, Lanciano, 1935.

Sobre a doutrina da dupla verdade: GILSON, La doctrine de Ia double vérité,


in Êtudes de phil. médiév., p. 51.

Sobre Siger: P. MANDONNET, S. de B. et Vaverroisme latin du XIII- siècle, 2.1


ed. em 2 vol., Lovaina,
1908-1911; F. VAN STEENBERGHEN, S. d. B. dlaprès ses oeuvres inédites, 2
vol., Lovaina, 1931-1942 (com ampla bibli.); C. A. GRAIFF, S. d. B. Questions
sur Ia Métaphysique, Lovaina, 1948; J. J. DUIN, La doe-

72

BO]PCIO

trine de Ia Providence dans les écrits de S. d. B., Lovaina, 1954 (com


bib1.completa). Importante, também para as obras desaparecidas, B. NARDI, S.
d. B. nel pensiero del Rinascimento italiano, Roma, 1945.

§ 287. De Boécio: De summo bono e De somniis, ed. Grabmann, in


Mittelalterliches Geistesleben, II, p. 200-224; De mundi aeternitate, ed.
Sajó, Budapeste,
1954.

GREcoRY,Discussioni sulla doppia verità, in "Cultura e scuola", Roma, 1962,


p. 99-106 (com bibli).

73

XVII

A LÓGICA DO SÉCULO XIII

§ 288. LÓGICA DO SÉCULO XIII: DESENVOLVIMENTO DA LóGICA MEDIEVAL

Quando, nos meados do século XIII, a lógica começou a ser considerada em


íntima relação com a gramática, e, portanto, como uma doutrina dos termos,
isto é, das palavras, consideradas como signos convencionais das coisas, esta
concepção é contraposta como via moderna à concepção tradicional da lógica
designada como via antiga.

Às duas partes da lógica aristotélica, denominadas agora como ars vetus,


compreendendo as Categorias e as Interpretações, e ars nova, compreendendo os
Analíticos primeiros e segundos, os Tópicos e os Elencos sofísticos,
acrescenta-se agora, com base na nova tendência, um outro corpo de doutrinas
constituídas pelo estudo das propriedades dos termos. É principalmente neste
estudo que toma corpo a tendência terminista ou nominalista da lógica do séc.
XIII. Ela aparece já na lógica de Guilherme Shyreswood (falecido em 1249)
e de

75

Lamberto de Auxerre; mas difunde-se sobretudo através da obra de Pedro


Hispano, autor do mais famoso compêndio medieval de lógica. Nos escritos
destes autores e nos dos muitos outros que lhes seguiram as pegadas, nunca
vem mencionada a diferença entre a lógica aristotélica e perspectiva
conceptual própria da lógica entendida como estudo das propriedades dos
termos. As duas matérias vêm simplesmente justapostas; a lógica aristotélica
é amputada das suas numerosas implicações ontológicas e metafísicas e
reduzida, tanto quanto possível, ao seu esqueleto formal. Mas o tratamento
dos problemas ontológicos e gnoseológicos, sempre implícitos nos estudos de
lógica, é feito em conformidade com a nova orientação nominalista que começa
a prevalecer a partir da segunda metade do séc. XIII. Esta orientação é em
grande parte inspirada em Abelardo, do qual repete a perspectiva ontológica e
gnoseológica; mas os conceitos de que se serve são extraídos da lógica
estóica, conhecida através da obra de Cícero e de Boécio. E dado que a lógica
estóica estava baseada no raciocínio hipotético, e que no organon
aristotélico o raciocínio hipotético é próprio da dialéctica como faculdade
do provável, a dialéctica, neste mesmo sentido de ciência provável, começa a
impor-se à lógica e a englobar toda a lógica nos seus processos. Diz Pedro
Hispano: "A dialéctica é a arte das artes, é a ciência das ciências que abre
caminho aos princípios de todos os métodos. De facto, só a dialéctica discute
com probabilidade os princípios de todas as outras artes, pelo que deve vir
em primeiro lugar na aquisição das ciências" (Summulae logicales, 1, 10.

De acordo com o espírito da lógica estóica, a lógica terminista é


fundamentalmente empirista. Os termos, dos quais estuda as propriedades, não
indicam formas substanciais, não exprimem as estru-
76

turas necessárias do ser ou o ordenamento ontológico do mundo, mas indicam


somente objectos de experiência: coisas ou pessoas ou, ainda, outros termos.
A sua propriedade fundamental é, portanto, a suposição (suppositio): isto é,
a propriedade pela qual, em todos os enunciados e raciocínios em que ocorrem,
eles estão por (supponunt pro) tais objectos, e não por alguma outra forma,
estrutura ou entidade de qualquer género. A doutrina da suppositio é a
principal característica da nova lógica. Outra característica importante é o
relevo que nela assume a doutrina das consequentiae, ou seja, dos raciocínios
imediatos (sem termo médio), próprios da lógica estóica. Invertendo o
procedimento característico de Aristóteles, que procurava reduzir ao
silogismo todos os tipos de raciocínio, os lógicos terministas procuram
reduzir todas as formas de raciocínio, incluindo o silogismo, a uma conexão
do tipo "se... então".

Deste modo, o desenvolvimento da lógica segue a nova orientação da


investigação filosófica: a qual, do campo da teologia em que permanecera
durante o primeiro período da escolástica, se afastava cada vez mais para o
da física e da antropologia, considerados como mais acessíveis às capacidades
da razão humana e mais fecundos de resultados positivos. Lógica terminística,
nominalismo e pesquisa física e antropológica são os três aspectos inter-
relacionados que caracterizam a escolástica da segunda metade do séc. XIII e
do séc. XIV. Tais aspectos fazem com que a escolástica deste período assuma,
na discussão dos problemas que preocupavam principalmente a escolástica
precedente, uma atitude essencialmente crítica: orientação que leva a uma
revisão dos conceitos da metafísica tradicional e a um cepticismo teológico.

77

§ 289. PEDRO HISPANO

Pedro Hispano (Hispanus) nasceu em Lisboa, na segunda década do séc. XIII;


estudou em Paris com Guilherme Shyreswood, do qual provavelmente extraiu as
directrizes da sua lógica. Foi bispo cardeal de Tusculo, o em 1276 foi eleito
papa, adoptando o nome de João XXI; faleceu, porém, no ano seguinte. Foi
famoso como médico e deixou numerosas obras ou traduções de livros de
medicina. Mas a sua importância no campo filosófico ficou a dever-se ao seu
compêndio de lógica, escrito provavelmente, em Siena, onde ensinou, e que tem
o título de Summulae logicales. Esta obra tem conteúdo idêntico ao da Sinopse
da lógica aristotélica, escrita em grego e atribuída a Miguel Psello (1018-
1078 ou 1096); e foi considerada como uma tradução da obra de Psello. Na
realidade, a Sinopse atribuída a Psello não passa da tradução grega das
Summulae logicales feita por Jorge Scholarios (1400-1464).

Aparecem pela primeira vez nas Summulae as vogais, as palavras e os versos


mnemónicos que passaram a ser correntemente utilizados para o ensino da
lógica. Por exemplo, indica-se por A a proposição universal afirmativa, por E
a universal negativa, por 1 a particular afirmativa e por O a particular
negativa, e aparecem os versos:
A adfirmat, negat E, sed unicersaliter ambae, i firmat, negat O, sed
particulariter ambae.

Para indicar as figuras e os modos do silogismo são indicadas as palavras


mnemónicas Barbara, Celarent, Darii, Ferio, etc., cujas vogais indicam a
quantidade e a qualidade das proposições que constituem as premissas e a
conclusão do silogismo. Assim, no
78

silogismo Barbara, tanto as premissas como a conclusão são universais


afirmativas. A obra está dividida em sete tratados: 1) a enunciação; 2) os
universais; 3) os predicamentos; 4) o silogismo,
5) os lugares dialécticos; 6) os sofismas; 7) as propriedades dos termos. Os
seis primeiros tratados expõem a ló gica de Aristóteles, o sétimo expõe a
lógica moderna, ou seja, a lógica terminista.

As propriedades dos termos consideradas nesta última parte são a suposição, a


ampliação, a restrição, a denominação, a distribuição. Mas a mais importante
destas propriedades é a suposição, cuja teoria constitui a parte central da
lógica nominalista. A suposição distingue-se da significação enquanto,
contrariamente àquela, é própria, não do termo isolado, mas do termo enquanto
ocorre nas proposições, e constitui a dimensão semântica do próprio termo.
Diz Pedro Hispano: "A suposição difere da significação porque a significação
é a imposição de um vocábulo à coisa significada, enquanto que a suposição é
a acepção do próprio termo já significante por qualquer outra coisa; e, por
exemplo, quando se diz o homem corre este termo homem está em vez de
Sócrates ou Platão ou outro qualquer. A significação é prévia à suposição, e
as duas não são idênticas dado que o significado é próprio do vocábulo e pela
significação (Summulae, 6, 03): A distinção entre as várias espécies de
suposições e os problemas que originam constitui a matéria desta parte da
lógica, e cria também os pontos de discordância e de discussão entre os
próprios lógicos da via moderna. Mencione-se somente a distinção que, tendo
sido formulada por Podro Hispano foi depois vulgarmente aceite pelos lógicos
posteriores, ou seja, entre a suposição simples e a suposição pessoal. A
suposição simples ocorre quando o termo comum é empregue em vez da coisa
universal que ele representa, como quando se diz "o homem é

79

uma espécie", proposição em que o termo "homem" está em vez do homem em


geral o não em vez de qualquer indivíduo humano. A suposição pessoal, pelo
contrário, ocorre quando o termo comum está em vez dos indivíduos que ele
compreende, como na proposição "o homem corre", onde o termo "homem" está em
vez dos indivíduos humanos, isto é, em vez de Sócrates, Platão ou qualquer
outro. A doutrina da suposição foi o maior instrumento forjado pela lógica
medieval para um uso empírico da própria lógica, isto é, para um uso que não
se refere a entidades de ordem metafísica. ou teológica, mas sim a realidades
ou conceitos que permanecem nos limites da experiência, ou são, de qualquer
forma, acessíveis ao homem.

§ 290. RAIMUNDO LÚLIO

Ráimundo Lulio ocupa um lugar de relevo na história da lógica medieval.


Nasceu em Palma de Maiorca em 1232 ou 1235. Começou por ser cortesão na corte
de Jaime 11, mas em consequência de uma visão abandonou a vida mundana e
dedicou-se à vida religiosa (1265). Passa então a dedicar-se à luta contra o
Islamismo e escreve numerosas obras contra a filosofia muçulmana,
especialmente contra o averroísmo; entretanto, ocupava-se também de outros
estudos e, principalmente, de lógica. A partir de 1287 começou a viajar de
cidade em cidade, na propaganda das suas ideias. Embora com escasso êxito,
deu lições em Paris, em 1282, sobre a sua Ars generalis. Viajou para Tunes,
Nápoles e pelo Oriente, após o que regressou, voltando a viajar pelas cidades
europeias. Em 1314 voltou a embarcar para Tunes e, segundo uma lenda, morreu
lapidado pelos muçulmanos em 29 de Junho de 1315. A sua actividade literária
foi vas-
80

tíssima e variada . Escreveu poemas, romances filosóficos, obras de lógica e


metafísica, tratados místicos,

A sua hostilidade contra a filosofia árabe, especialmente contra o


averroísmo, deriva da convicção de que a fé pode ser demonstrada com razões
necessárias. A diversidade e a distinção que o averroísmo estabelecia entre a
razão e a fé, fazem com que Raimundo Lúlio seja um seu encarniçado
adversário. Segundo ele, a pró pria fé suscita nos crentes as razões
necessárias que a justificam. A fé torna-se assim o instrumento do intelecto.
O fim do intelecto não é crer mas entender, e a fé é a intermediária entre o
intelecto e Deus, já que por seu intermédio o intelecto pode elevar-se até
Deus e satisfazer-se assim no seu primeiro objecto (ars magna, IX, 63). Mas a
importância de Raimundo Lúlio consiste na sua concepção de uma lógica
entendida como ciência universal, fundamento Oe todas as ciências, concepção
que ele expõe num tratado intitulado Ars magna et ultima. E dado que cada
ciência tem os seus princípios próprios, diferentes dos princípios das outras
ciências, deverá haver uma ciência geral, em cujos princípios estejam
implícitos e contidos os das ciências particulares, tal como o particular
está contido no universal. Mediante esta ciência geral, as outras ciências
podem ser facilmente aprendidas (Ib., pref., ed. Zetzner, p. 218). Esta
ciência não é a metafísica dado que não trata do ser; considera somente os
termos de cuja combinação podem resultar os princípios de todas as ciências.
Estes termos são nove predicados absolutos (bondade, grandeza, eternidade ou
duração, potência, sabedoria, vontade, virtude, verdade, glória); nove
predicados relativos (diferença, concordância, contraste, princípio, meio,
fim, maioria, igualdade, minoria); nove questões (se, o que, de que, porque,
quanto, qual, quando, onde, de que

81

modo ou com quo), nove sujeitos (Deus, anjo, céu, homem, imaginação,
sensíveis, vegetativos, elementares, instrumentais); e ainda nove virtudes e
nove vícios.

A ars magna deve consistir essencialmente na capacidade de combinar os termos


mencionados, de modo a formar com eles todas as verdades naturais que o
intelecto humano pode atingir. A ars magna é portanto verdadeiramente a arte,
da combinação dos termos simples, para a descoberta sintética dos princípios
das ciências. Este conceito da arte combinatória suscitou seguidores
entusiásticos no Renascimento, entre os quais Agrippa, Carlos Bovillo e
Giordano Bruno. O próprio Leibniz, mais tarde, retomou o conceito luliano de
uma arte combinatória como fundamento de uma ciência inventiva, isto é,
dirigida a descobrir por via sintética as verdades das ciências. E é
precisamente esta a originalidade de ars magna de Raimundo Lúlio. Numa época
em que a lógica era exclusivamente concebida como ciência analítica, como
procedimento que se limita a decompor o pensamento nos seus termos para os
estudar independentemente, LUlio estabelece a exigência de um procedimento
sintético e inventivo que não se limite a analisar as verdades conhecidas,
mas que sirva para descobrir novas verdades. Trata-se de uma aspiração
utópica, que apareceu várias vezes na história do pensamento. Reduzir o longo
e paciente trabalho de investigação que toda a ciência supõe, e pelo qual
progride, a uma técnica simples e rápida, aplicável a todas as ciências,
qualquer que seja o seu objecto, é um ideal demasiado atraente para que o
homem não se lhe dedique, por vezes, com complacência. É todavia um ideal
utópico, porque todas as ciências, à medida que progridem, constróem a sua
lógica, ou seja, a sua disciplina de investigação; e esta disciplina não pode
ser conhecida de

82

antemão nem aplicada automaticamente a todas as ciências. Porém, talvez se


possa ver no ideal da ars magna de Lúlio a primeira manifestação da
consciência do carácter construtivo e sintético da disciplina da investigação
científica.

Os outros aspectos da especulação de Raimundo Lúlio, o filosófico, o


teológico e o místico, retomam motivos já conhecidos da tradição escolástica.
e, portanto, não oferecem senão um escaço interesse.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 288. Sobre a polémica -entre a via antiga e a via moderna: PRANTI, Gesch.
der Logik, II, p. 261 ess.; II]@ p. 26, n. 103; IV, passim.

§ 289. As Summulae logicales de Pedro Hispano foram editadas pela primeira


vez em 1480 e tiveram numerosas edições no século XVI, assim como duas
edições recentes: a de Mulilally, Notre Dame, (Ind.),
1945 e a de Bochensky, Turim, 1947. Nesta última aparecem abreviadas e
organizadas em 12 tratados em vez de sete. As citações do texto seguem esta
última edição. As outras obras: Obras filosoficas, ed. Alonzo, 3 vol.,
Madrid, 1942-1952.

A Sinop3e atribuida a Psello foi considerada como o original, da obra de


Pedro Hispano pelo seu primeiro editor Ehinger em 1592 e a opinião era aceite
por BRUCKER, Historia critica philosophiae, III, Leipzig, 1743, p. 817; e
retomada depois por PRANTL, Gesch. der Logik, II, p. 264; 111, p. 18. Esta
opinião foi combatida por TRUROT in "Revue Archéol.", X, p. 267-281 e in
"Revue Critique>, 1867, 194-203, o qual, pelo contrário, vê na Sinopse a
tradução das Summulae logicales de Pedro Hispano. Esta opinião, confirmada
por STAPPER, Papst Iohannes XXI, MUnster, 1898, p. 16 e ss. e por ZERVOS, Un
philosophe néoplatonicien du XI siècle: M. Psellos, Paris, 1920, p. 39-42,
pode considerar-se como definitivamente estabelecida.

E. ANOLD, Zur Geschichte der SuppositionsIchre, In "Symposion", M, Mónaco,


1952. Bibliografia sobre Pedro Hispano, in "Rev. Portuguesa de Fil.>, 1952.

83

É .1, 1,11

§ 290. A primeira edição completa das obras de Raimundo Lúlio foi impressa em
Estiasburgo (Argentorati), 1598, e depois reimpressa várias vezes. Uma
edição, não completa, foi organizada por Salzinger e impressa em Mogúncia,
1721-1742, e abrange 10 vGI. in-folio; além destas: Obras originales de R.
L., Palma de Maiorca, 1906 e ss.; Opera latina, Palma de Maiorca, 1952 e ss.;
Obras essencials, Barcelona, 1957-1960.

Sobre a actividade de Lúl,io contra o averroismo: RENAN, Averroès et


l'averroisme, p. 255 e ss. Sobre a relação de Lúlio com a filosofia
muçulmana: KMCHER, in <@@Beitrãge", VIII, 4-5, 1909. Sobre a lógica: PRANTL,
Gesch. der Logik, 111, p. 145-177. Sobre a mística: PROBST, in "Bp-itrãge",
XIII, 2-3, 1914. Sobre a figura de Lúlio duma maneira geral: PROBST,
Caractère et origine des idées du bienheureux Raymond Lulte, Toulouse, 1912.

OTTAVIANO, L'ars compendiosa de R. L., avec une étude sur Ia bibliographie et


le fand ambrosien de Lu-lle, Paris, 1930 (com bibi.); PAOLo Rossi, Clavis
universaZis, Milão, 1960, passim. Cf. também sobre todos os aspectos da obra
de Lúlio os fascículos dos "Estudos Lullianos", Palma de Maiorca, 1957 e ss.

84

XVIII

A POLÉMICA SOBRE O TOMISMO

§ 291. A LUTA CONTRA S. TOMÁS

Na luta contra o averroísmo encontravam-se coligadas as forças da tradição


platónico-agustiniana e as do novo aristotelismo de Alberto o Magno e S.
Tomás de Aquino. Mas este aristotelismo representava, para a orientação
tradicional da escolástica, um desconcertante desvio em relação aos cânones
interpretativos que ela seguira desde o seu início. Apesar do equilíbrio
evidente da síntese tomista, a qual, reconhecendo a relativa
autonomia da razão tal como havia sido encarnada e expressa pela
filosofia de Aristóteles, a utilizava como um dócil instrumento para a
explicação e defesa da verdade, a distância a que esta síntese
se encontrava do que até então tinha constituído o caminho principal da
interpretação dogmática, bastaria para provocar lutas e dissenções. Assim
foi, com efeito.

Na condenação pronunciada em 7 de Marco de 1277 pelo bispo de Paris, Estevão


Tempier (§ 284), estavam incluídas, entre diversas proposições averroístas,
algumas teses de S. Tomás,

85

precisamente as que se referem ao princípio da individuação e a negação de


que as substâncias intelectivas sejam providas de matéria. Eram estas as
teses que mais contrastavam com a doutrina platónico-agustiniana, tal como
havia sido exposta, por exemplo, na Summa de Alexandre de Hales. Pouco tempo
depois, a 18 de Março do mesmo ano, o arcebispo da Cantuária, Roberto
KiIwardby, condenava também a outra doutrina típica do tomismo, a da unidade
da forma substancial no homem, ou seja a afirmação de que "a alma
vegetativa, sensitiva e intelectiva, constituem uma única forma simples".
Era o outro ponto em que o tomismo significava um nítido afastamento em
relação ao augustinismo tradicional. A condenação era tanto mais
significativa quanto provinha de um dominicano, de um confrade de S. Tomás.

Roberto Kilwardby, nascido em Inglaterra, tinha estudado em Paris onde


alcançara o título de Magister artium. Regressando a Inglaterra, ingressara
na ordem dos dominicanos e foi mestre de teologia em Oxford de 1248 a 1261.
Em 1272 ora arcebispo da Cantuária. Nomeado cardeal em 1278 veio a morrer em
Viterbo no ano seguinte. É autor de Comentários às obras lógicas de
Aristóteles, Porfírio, Boécio, à Física e à Metafísica de Aristóteles, de um
Comentário às Sentenças e de uma introdução à filosofia intitulada De ortu et
divisione philosophíae, na qual são utilizádas fontes cristãs e árabes. Estes
escritos permaneceram inéditos e só modernamente foram publicados alguns
extractos ou dados sobre eles. Kilwardby segue a tradição agustiniana e
poleraíza vivamente contra S. Tomás. Com Boaventura, defende a doutrina das
razões seminais, acolhida dos Estóicos por Santo Agostinho. A "matéria-prima
natural" deve considerar-se, não como privada de forma e actualidade, mas sim
como algo "dotado das dimensões corpóreas e
86

impregnado pelas razões seminais ou originais, as quais irão produzir as


formas de todos os corpos específicos". Contra S. Tomás insiste na distinção
entre as várias partes da alma humana. A alma humana não é simples mas
composta: nela, as partes vegetativa, sensitiva e intelectiva são
essencialmente distintas e constituem uma unidade só pela sua ordem e união
natural.

A condenação contra S. Tomás foi confirmada pelo seguidor e sucessor de


Kilwardby no arcebispado da Cantuária, João Peckham, a 29 de Outubro de 1284
e a 30 de Abril de 1286, especialmente no que se refere à unfflade da forma-
alma no homem. Peckham, nascido em 1240, estudou em Paris com S. Boaventura,
e pertencia à ordem franciscana. Ensinou teologia em Paris e em Oxford, em
1276 foi nomeado leitor do Santo Palá cio em Roma, e em 1279, arcebispo da
Cantuária. Morreu em 8 de Dezembro de 1292. Ficou inédito um grande número
das suas obras. Compôs uma Collectanea bibliorum sobro a concordância entre
os livros bíblicos, obras do física (Perspectiva comniunis, Tractatus
sphaerae, Theorica planetarum); um Comentário ao Livro 1 das Sentenças, uma
obra Sobre Ética e uma série de escritos exegéticos e polémicos em defesa do
ideal de pobreza dos franciscanos. Para a polémica entre o augustinismo e o
tomismo são importantes as suas Cartas, algumas das quais só recentemente
foram publicadas. Numa delas, datada de 1 de Junho de 1285, depois de
condenar as novidades introduzidas em teologia nos últimos vinte anos,
enumera os pontos fundamentais do augustinismo, aos quais, com Alexandre
de Hales e S. Boaventura, a ordem franciscana se tinha mantido fiel, e que
constam das doutrinas sobre a lei eterna, a luz imutável, as diversas
potências da alma e as razões seminais insitas na matéria. Numa quaestio
disputata sobre a luz eterna como guia do conhecer
87

humano (ed. Quaracchi, p. 180), põe três condições do conhecimento: a luz


criada, mas imperfeita, do intelecto humano, a luz incriada e supra-
resplandescente, o o intelecto possível que apreende a espécie inteligível.

No mesmo plano polémico de Peckham, move-se Guilherme de la Mare seu


compatriota e confrade franciscano, o qual ensinou em Oxford, morreu em 1298
e foi autor dum Correctorium fratris Thoinae, em que são indicadas e
censuradas 118 proposições extraídas das obras principais de S. Tomás
(Siimma, Quaest. disputatae, Quest. quodlibetales e Sententiae). Enquanto o
geral dos franciscanos prescrevia no capítulo de Estrasbwgo de 1282 a não
difusão das obras de S. Tomás a não ser acompanhadas dos comentários de Frei
Guilherme, a ordem dominicana reagia com vários Correctoria ou Defensoria
corruptori fratris Thomae (deformando-se assim satiricamente o título da obra
de Guilherme). O ,mais importante de tais Correctoria é o que falsamente foi
atribuído a Egidio Romano (§ 294) e veio a ter muitas reimpressões. Há
conhecimento de mais quatro obras idênticas, mas que no entanto permanecem
inéditas.

§ 292. MATEUS DE ACQUASPARTA


Enquanto a luta contra o tomismo era assim conduzida no plano da condenação
e censura eclesiásticas, desenvolvia-se no plano doutrinal a polémica contra
as posições filosóficas do tomismo.

Mateus, nascido em Acquasparta, na Umbria, entre 1235 e 1240, pertencia à


ordem franciscana; estudou em Todi e foi aluno de S. Boaventura na
Universidade de Paris. Leccionou também em Paris como mestre de teologia. Em
1281 sucede a Peckham como Lector S. Palatii em Roma. Torna-se geral
88

da sua ordem em 1287, cardeal em 1288, bispo-cardeal de Porto e Rufina em


1291. Desempenhou cargos políticos no papado, de Bonifácio VIII, de quem era
amigo. Morreu a 29 de Outubro de 1302. Escreveu um Comentário às Sentenças,
um Comentário à Bíblia, Questioni disputatae. Só estas últimas foram
recentemente editadas, no que se refere aos problemas do conhecimento.

Mateus retoma totalmente a doutrina típica do augustinismo: o conhecimento


dirigido pela luz dlivina. Contra o cepticismo da Nova Academia, sustenta que
há duas ordens de conhecimento absolutamente certas: por um lado, a
autoconsciência, por outro, os axiomas da lógica e as proposições da
aritmética. A possibilidade de tais conhecimentos reside na luz divina.
Para os alcançar, não basta a luz natural do intelecto humano, a não ser que
ele se refira à Luz eterna, fundamento -perfeito e suficiente do
conhecimento, a alcance e a toque no seu grau supremo. "Tudo aquilo que se
conhece com absoluta certeza, conhece-se nas razões eternas e na luz da
primeira Verdade" (ed. Quaracchi, 1903, p. 261). Este princípio é contra-
posto por Mateus de Acquasparta à doutrina de S. Tomás (que ele
indubitàvelmente ,inclui entre os quidam philosophantes contra os quais
polemiza), doutrina segundo a qual basta a acção do intelecto agente para
abstrair a espécie das coisas e determinar assim o verdadeiro conhecimento
delas. E é natural que ele rejeite a doutrina tomista aduzindo a autoridade
de Santo Agostinho. "Não se pode destruir desde os seus fundamentos a
doutrina do bem-aventurado Agostinho: ele é o doutor príncipe (doctor
praecipuus) que os doutores católicos, especialmente os teólogos, devem
seguir (Ib., 252). E com efeito o conhecimento tem por objecto a essência das
coisas, mas tal essência só se pode alcançar com o auxílio da luz divina.
89

Ao conhecer, por exemplo, o conceito de homem ou de qualquer outra coisa


particular que tenha uma determinada essência, eu não conheço um nada, nem
sequer um ser em potência ou algo única-mente apreensível que só subsista
como tal: conheço sim, uma verdade eterna. Ora esta verdade eterna não pode
ter o seu fundamento na coisa, dado que esta muda e a verdade não, a qual
permaneceria válida ainda que a coisa não existisse. A afirmação "o homem é
um animal racional" continuaria a ser válida mesmo que não existisse nenhum
homem. E uma verdade eterna também não pode ter o seu fundamento no
intelecto, dado que o intelecto é mutável e aquela verdade é válida mesmo que
não exista nenhum intelecto criado. As verdades eternas, independentes do
objecto a que se referem e do sujeito que as formula, devem portanto ter o
seu fundamento no Eterno Exemplar, no qual, segundo a palavra de Santo
Agostinho, "permanecem imutáveis as origens das coisas mutáveis e residem as
razões das coisas transeuntes".
O objecto do nosso intelecto é pois a essência da coisa enquanto é -referida
pelo nosso intelecto (que tem o seu conceito) ao exemplar divino (Ib., 223).
Todavia, a fidelidade professada por Mateus ao ensinamento agustiniano não
lhe impede algumas concessões ao aristotelismo. Mateus serve-se dele para
limitar ou corrigir o princípio agustiniano da pura interioridade do
conhecimento. Se é certo que a regra e o fundamento supremo do conhecimento é
a luz divina que do interior nos -ilumina, também é certo que o próprio
conhecimento está condicionado pelas coisas externas, e assim Aristóteles
(An. post.,
11, 19) tem razão ao afirmar que o conhecimento é produzido em nós pela via
dos sentidos, da memória e da experiência. Mateus distingue desta forma no
conhecimento um elemento a priori e um elemento a posteriori um é o princípio
formal, o outro

90

é o princípio material. A espécie, produzida no intelecto pela coisa, é o


principio **naterial. A luz natural do intelecto agente é o princípio formal
eficiente. A espécie levada ao acto pelo intelecto agente é o princípio
formal, embora incompleto. A luz divina é o fundamento eficiente primário e
principal e a luz por ela emanada é o princípio formal completo e perfeito
(lb., 294).

A polémica contra S. Tomás é também evidente num outro ponto fundamental da


doutrina gnoseológica de Mateus de Acquasparta. Em primeiro lugar reafirma a
validade da prova ontológica de Santo Anselmo. "Quando o intelecto, escreve
(ed. Daniels, 61), apreende o significado do nome de Deus, como aquilo em
relação ao qual nada de maior se pode pensar, de nenhum modo pode duvidar ou
pensar que Deus não exista". Em segundo lugar, e enquanto S. Tomás tinha
negado à alma humana a possibilidade de ter conhecimento directo de si mesma
e dos seus próprios actos e atribuíra unicamente a Deus a possibilidade de
tal conheci- mento, Mateus sustenta que a alma se conhece a si mesma e às
suas disposições, não só deduzindo esse conhecimento dos seus próprios
actos, mas também dum modo intuitivo e objectivo através das suas essências e
formalmente através das espécies por elas expressas (ed. Quaracchi, 334).

S. Tomás defendia que a alma não tem conhecimento directo das coisas
singulares, alcançando-o somente "com uma certa reflexão" (§ 275). Mateus
afirma: "0 intelecto conhece as coisas singulares através das espécies
singulares, os universais através das espécies universais, e não basta a
espécie universal para também conhecer as coisas singulares" (ed. Quaracchi,
1903, 309).

A contraposição da autoridade de Santo Agostinho às inovações do tomismo é


típica do procedimento de Mateus de Acquasparta. Contudo, também

91

nele se faz sentir a influência do aristotelismo: o reconhecimento de uma


condição empírica do conhecimento, o qual não tem precedentes na doutrina
agustiniana, faz da sua gnoseologia uma doutrina ecléctica de escassa
originalidade e coerência.

§ 293. A ESCOLA DE S. BOAVENTURA

O ensino de S. Boaventura em Paris formou um numeroso grupo de discípulos,


todos pertencentes à ordem franciscana. Para além dos mais importantes, João
Peckham, Mateus de Acquasparta, Guilherme de Ia Mare, muitos outros de menor
importância defenderam também o augustinismo franciscano.
Rogério de Marston, que estudou em Paris por volta de 1270 e ensinou em
Oxford e depois em Cambridge, autor de duas colecções de Quaestiones
disputatae e de dois Quodlibeta, apresenta uma tentativa de conciliação entre
o augustinismo e o aristotelismo. Embora defendendo com muita energia o
princípio agustiniano segundo o qual a certeza do conhecimento depende
exclusivamente da directa iluminação de Deus, considera que o intelecto
agente, de que falou Aristóteles, é precisamente a luz divina que ilumina e
conduz o intelecto humano até à verdade. Mas nesse caso o intelecto agente é
verdadeiramente uma substância separada, porque é o próprio Deus (ed.
Quaracchi, 207).

Ricardo de Middletown que estudou em Oxford e cal Paris, ensinou em Paris e


morreu em 1307 ou 1308, autor de um Comentário às Sentenças, de Quodlibeta,
de Quaestiones disputatae e de escritos exegéticos, aproxima-se mais, pelo
contrário, do ponto de Vista tomista. Considera que o intelecto humano é
iluminado por Deus, não directamente (como na doutrina típica do
augustinismo, mas

92

mediante uma "luz criada e natural que é irradiada por Deus" (ed. Quaracchi,
235). Ricardo também se afasta da corrente franciscana pela sua negação da
prova ontológica de Santo Anselmo.

Nesta mesma linha move-se Guilherme de Ware (ou de Guarra) que ensinou em
Paris nos fins do século XIII e foi mestre de Duns Escoto. Também ele
considera que a luz natural, dada à alma por Deus, basta para conhecer tudo o
que acontece no domínio do conhecimento natural sem necessidade de uma
imediata iluminação sobrenatural. A propósito da prova ontológica, afirma que
ainda que a proposição "Deus existe" seja conhecida por si própria, o homem
não pode apreendê-la a não ser com esforço (cum magno labore), daido que os
termos de que se compõe não são conhecidos por experiência.

Pedro João Olivi, nascido em Serignano, no Languedoque, em 1248 ou 1249,


falecido na Narbona em
1298, foi o chefe dos espirituais e defensor da pobreza absoluta da ordem
franciscana, doutrina que iria suscitar lutas e oposições no seio dos
próprios franciscanos e no da Igreja em geral. Nas suas obras é sobretudo
notável a doutrina das relações entre a alma e o corpo. Posto o princípio de
que as formas naturalmente primeiras só podem unir-se com as que são últimas
através das formas intermediárias, admite que a alma intelectiva se una ao
corpo mediante a alma sensitiva. Isto exclui a identidade da forma
intelectiva com a forma sensitiva da alma e implica a doutrina da
multiplicidade das formas. no composto, a qual era típica do augustinismo
franciscano.

§ 294. A ESCOLA TOMISTA

Enquanto os Franciscanos defendiam contra o aristotelismo tomista o regresso


ao augustinismo

93

que havia sido vigorosamente sustentado por S. Boaventura, a ordem dominicana


defendia com os seus professores e mestres a doutrina de S. Tomás. O grupo
dos tomistas é numerosíssimo na segunda metade do século XIII; mas entre
eles, a originalidade especulativa ou os ocasionais desvios da doutrina do
mestre são ainda menos frequentes do que entre os franciscanos. O movimento
tomista teve dois centros principais: um em Paris, outro em Nápoles. O chefe
da escola tomista parisiense foi Hervé Nédélec (Herveus Natalis) que foi
mestre na faculdade de teologia de Paris e morreu em Narbona, em 1323, um mês
após o processo de canonização de S. Tomás. Escreveu um Comentário às
Sentenças, Quaestiones disputatae, Quodlibeta e numerosos escritos polémicos.
Na disputa sobre os universais, Hervé é o sustentador da chamada teoria da
conformidade: o universal, que como tal existe somente no intelecto,
objectivamente não é senão a conformidade real dos vários objectos por ele
significados. Resulta pois da coincidência das coisas particulares em algum
atributo ou carácter comum.

O chefe da escola tomista de, Nápoles foi João de Nápoles ou de Regina que
estudou e ensinou em Paris e foi depois mestre na Universidade de Nápoles.
Autor de um Comentário às Sentenças (que porém. nunca se descobriu), de treze
Quodlibeta e quarenta e duas Quaestiones disputatae, é o máximo defensor do
tomismo desde os primeiros anos do século XIV até 1336, ano a que remontam as
últimas notícias que dele temos. A sua importância, especulativamente nula, é
notável sob o ponto de vista da difusão do tomismo em Itália e da defesa do
mesmo contra as escolas adversas, especialmente a escotista.

O tomismo encontrou defensores também fora dos dominicanos. Entre os


eremitas agustinianos,

94

o chefe dos tomistas foi Egídio Romano, nascido em Roma em 1247 ou um pouco
antes, aluno de S. Tomás em Paris durante a segunda estadia deste nessa
cidade (1268-1272) e defensor do tomismo contra as condenações de Estevão
Tempier e Roberto de Kilwardby. Numa obra intitulada Liber contra gradus et
pluralitates formarum defende vivamente a unidade formal da alma humana
contra o ponto de vista agustiniano. Após a morte de Estêvão Tempier, Egídio
torna-se mestre em Paris; em
1295 foi consagrado arcebispo de Bourges por Bonifácio VIII. Faleceu em
Avinhão em 22 de Dozernbro de 1316. É autor de seis Quodlibeta, de
Quaestiones disputatae de ente et essentia, do De \nwnsura et cognitione
angelorum, dos Theoremata de corpore Christi, de um Comentário às Sentenças e
de numerosos escritos exegéticos. Egídio adopta uma certa liberdade frente à
doutrina tomista, que, no entanto, defende nos seus pontos essenciais.
Afasta-se dela, por exemplo, ao admitir que o intelecto agente é forma do
intelecto possível e que a causa principal do conhecimento intelectual em
acto é a espécie inteligível, à qual precisamente se deve a passagem a acto
do intelecto possível. Mas a importância fundamental de Egídio reside talvez
nos seus tratados políticos. O De regimine principum, que compôs para o seu
aluno e futuro rei, Filipe o Belo, e o De ecclesiastica sive Summi Pontificis
potestate constitum expressões típicas do curialismo, ou seja, da afirmação
da superioridade do poder papal sobre os príncipes temporais da terra. Parece
que a bula de Bonifácio, intitulada Unam sanctam e datada de
18 de Novembro de 1302, na qual se afirmava solenemente tal doutrina, se
baseou precisamente na obra de Egídio, a qual devia ter sido escrita pouco
tempo antes.

95

§ 295. HENRIQUE DE GAND: A Metafísica


Henrique de Gand, a quem os seus contemporâneos chamaram o Doctor Solemnis,
pertence ao grupo de pensadores que defendem e desenvolvem o augustinismo em
oposição polémica mais ou menos explícita contra o tomismo. Entre esses
pensadores (§ 289), é ele o de mais forte personalidade, o único que
demonstra uma certa liberdade especulativa.

A sua biografia foi bastante renovada por estudos recentes. Nasceu em Gand (e
não em Muda, perto de Gand) nos princípios do século XIII. Não foi aluno de
Alberto o Magno em Colónia, tal como o afirma a lenda, antes se formou na
escola capitular de Tournai. Em 1267 era cônego em Tournai, em 1276 arcediago
de Bruges, e de Tournai em 1278. Em 1277 torna-se mestre de teologia na
Universidade de Paris, e como tal participou na reunião de profimsores de
teologia, convocada nesse mesmo ano por Estêvão Teimpier, pela qual foram
condenadas proposições averroístas e tomistas. Morreu em 29 de Junho de 1293.
A sua obra principal, composta entre 1276 e 1292, são os Quodlibeta (15
livros). Compôs também uma Summa theologica, que ficou incompleta, e que
trata das relações entre filosofia e teologia, da doutrina do conhecimento e
de Deus. Outras obras manuscritas são um Comentário à física aristotélica e
um Tratado de Lógica.

O espírito que anima a obra especulativa de Henrique é expresso pelo


princípio que constitui o seu fundamento: a distinção entro o esse essewiae e
o esse existentiae. O ser da essência é aquele grau ou modo de ser que
corresponde à essência como tal, independentemente da realidade, isto é, do
ser da existência, o qual pode ou não acompanhá-lo. Segundo ele, nenhuma
essência está privada do ser

96

que lhe compete enquanto essência, sem a qual não seria uma essência, antes
se confundi-ria com o nada. O ser da existência, a realidade efectiva, pode
acrescentar-se ou não à essência, mas em ambos os casos, esta última é, por
si própria, uma forma ou grau de ser, A essência de Deus é tal que inclui
também o ser existencial e, portanto, Deus existe necessariamente. A essência
das criaturas não inclui o ser existencial, o qual lhos é comunicado por Deus
como causa eficiente. Mas isto não quer dizer que a essência e a existência
estejam nas coisas criadas como dois princípios realmente diferentes e
separáveis. A essência das criaturas não é indiferente à existência, no
sentido de não ter de facto nem o ser nem o não-ser e de estar
indiferentemente disposta quer para um quer para o outro. Só é indiferente no
sentido em que, mesmo que não exista actualmente, pode receber de outrem a
existência; e em que, mesmo que exista, pode perder essa existência se ela
deixar de lhe ser transmitida por outrem **(Qi,íodl,, 111, q. 9).

A distinção entro esse essentiae e esse existentiae, ao levar a reconhecer à


essência enquanto tal, um ser que lhe está inseparavelmente unido, conduz à
negação da distinção real entre essência o existência que é a alma da
metafísica de S. Tomás. Com efeito, esta distinção é explicitamente criticada
e negada por Henrique de Gand. Se a essência das coisas criadas não tivesse
nenhum ser por sua conta, o ser teria de lhe vir de uma outra coisa, e o ser
dessa outra coisa teria ainda de derivar de uma outra coisa e assim
sucessivamente, até ao infinito. Na realidade, toda a criatura tem a sua
existência na sua essência, enquanto é o efeito o a semelhança do ser divino.
"Tal como o raio de luz, diz Henrique (1b., 1, q. 9), participa da luz do
sol, enquanto é na sua essência uma real semelhança dessa luz, também a
criatura participa do ser de Deus,
97
enquanto é na sua essência uma semelhança do ser divino. Do mesmo modo, a
imagem do selo, se subsistisse por sua conta fora da cera, seria uma
semelhança do selo pela sua essência e não por qualquer coisa que lhe fosse
acrescentada. Assim, em qualquer criatura, o ser não é algo de realmente
diverso da própria essência e que lhe seja acrescentado; e mais, toda a
criatura tem o ser pela própria essência pela qual é aquilo que é, enquanto
é efeito e semelhança do ser divino". Desta forma era directamente atacado o
pressuposto fundamental da metafísica tomista. Enquanto a distinção entre
esse essentiae e esse existentiae serve a Henrique para justificar a
dependência das criaturas em relação a Deus, o reconhecimento de que a
própria essência, enquanto tal, possui o seu ser, recondu-lo ao exemplarismo
agustiniano. A essência da criatura existe, enquanto é efeito e semelhança de
Deus. Portanto, Deus é a causa e o modelo-causa exemplar de todas as
criaturas.

Também neste caso o pensamento de Henrique de Gand se determina em oposição


ao de S. Tomás. Deus não contém as ideias próprias dos indivíduos singulares
(lb., V, q. 3); contém somente a essência absoluta da criatura, isto é, da
espécie a que ela pertence, não a ideia desta ou daquela criatura, como S.
Tomás admitia (S. th., I, q. 15, a. 3). Todavia, assim como a essência que é
uma só implica referência aos múltiplos indivíduos que são dela portadores
(supposita), também a única ideia divina da essência implica a dos múltiplos
indivíduos, que levam em si a mesma única essência (Quodl., 11, q. 1).

A metafísica de Henrique de Gand desenvolve-se em virtude de um princípio que


é radicalmente diferente do da tomista. Assim como a essência tem em ,si o
seu ser, também a matéria tem em si o seu ser. Ela não é pura potência, como
afirmava S. Tomás

98

na sequência de Aristóteles, e dado que tem em si o seu ser, é criável por


si e tem uma ideia própria na mente do criador. A realidade da matéria não
lhe deriva pois da forma mas da sua própria natureza de matéria, que é
algo de subsistente em acto, ainda que não dotada daquela actualidade
perfeita que a matéria alcança somente em união com a forma (1b., 1, q.
10). O princípio d,?,, individuação não é a matéria, como sustentava o
tomismo, mas é a negação. A negação individuante é dupla, enquanto exclui no
interior do indivíduo a plurificabilidade e a diversidade, e enquanto exclui
no exterior do indivíduo a identidade com os outros indivíduos. Com efeito,
um indivíduo é tal enquanto não tem em si a possibilidade de ser diferente e
exclui de si a possibilidade de ser idêntico com os outros indivíduos da
mesma espécie (lb., V, q. 7) .

§ 296. HENRIQUE DE GAND: A ANTROPOLOGIA

A antropologia de Henrique de Gand tem um carácter voluntarista em oposição


ao intelectualismo da antropologia de S. Tomás. No que se refere ao
conhecimento, a teoria de Henrique caracteriza-se por um ponto que se voltará
a encontrar em Occam: a negação da espécie como intermediária do
conhecimento. Segundo ele, com efeito, a espécie não é necessária, já que o
próprio objecto, presente na sua imagem, é feito universal pelo Intelecto
agente e torna-se assim o objecto imediato do intelecto (Qitodl., XIII, q.
11). Enquanto o próprio objecto é intelectualizado pelo intelecto agente, não
há necessidade da espécie. Como Rogé rio de Mairston e Bacon, Henrique de
Gand identifica com Deus o intelecto agente, embora também admita, como um
99

seu efeito, um intelecto activo na alma, o qual é precisamente a actividade


que transforma o objecto da imagem em objecto universal (lb., IX, q. 15). A
acção de Deus, como intelecto activo, é entendida por Henrique (segundo o
modelo agustiniano) como acção iluminante; só que essa acção é limitada
àqueles que Deus livremente escolhe como depositários da verdade. A ~ em Deus
das regras eternas da verdade está condicionada por uma iluminação divina
especial, a qual excede os poderes o os limites naturais do homem (S. th., 1,
q. 2, ri. 26).

Com Santo Agostinho, Henrique afirma o primado da vontade sobre o intelecto.


Sobre a vontade está fundada preferentemente a liberdade humana; sendo
verdade que a escolha, condição da liberdade, supõe o juízo da razão, também
é verdade que a vontade não segue necessariamente o juízo da razão, a qual,
portanto, se limita a propor-lhe os objectos entre os quais a vontade se
decide (Quodl., 1, q. 16). A vontade é superior ao intelecto porque a sua
disposição (habitus), a sua actividade e o seu objecto são superiores aos do
intelecto. A disposição da vontade é o amor, a do intelecto é a
sabedoria; e o amor é superior à sabedoria. A actividade do querer domina
toda a vida humana e identifica-se

com o objecto, que é o fim a alcançar, enquanto que a actividade do


intelecto permanece sempre distinta e separada do seu objecto. Por fim, o
objecto do querer é o bem, o qual é o fim em sentido absoluto, mais o fim
último; o objecto do intelecto é o verdadeiro, o qual é um dos bens,
subordinado, portanto, ao fim último (lb., 1, q. 14). Dada esta superioridade
da vontade, Deus é mais * termo do amor do que o do conhecimento humano: *
vontade une-se com o amor no seu fim, mais do que o intelecto se une com o
conhecimento (lb., XIII, q. 2).

100

A doutrina de Henrique de Gand fixou em traços atraentes, e que desde logo se


tornaram característicos, a oposição polémica contra o tomismo. Dado que
Henrique pertencia ao clero secular e não aos franciscanos, a sua obra
demonstra como era viva esta oposição mesmo fora do ambiente franciscano, e
como ela acaba por revestir, mesmo em personalidades mais independentes da
tradição agustiniana, o aspecto dum retomo ao augustinismo.

§ 297. GODOFREDO DE FONTAINES

Aluno e depois colega de Henrique de Gand na Universidade de Paris, Godofredo


de Fontaines pertencia também ao clero secular. Foi membro da Sorbonne,
cónego de Lüttich, Paris e Tournai e preboste de S. Severino em Colónia
(1287-95). Em
1300 foi nomeado bispo de Tournai e veio a falecer depois de 1306. A sua obra
principal são os 14 Quodlibeta, que só recentemente foram publicados, mas que
na Idade Média tiveram uma grande difusão, como demonstra o grande número de
manuscritos que deles nos ficaram.

Godofredo critica, como Henrique de Gand, a distinção tomista entre essência


e existência, reduzida por ele a uma distinção puramente lógica, que se
refere ao modo de entender e significar a realidade, e não à própria
realidade (Quodl., II, q. última). Critica também o princípio de individuação
tomista mas não se limita à explicação de Henrique. "As coisas, afirma
energicamente (Ib., VII, q. 5), não existem senão na sua singularidade
(singulariter) que é indicada pelo seu nome próprio; na sua natureza comum,
elas não existem, são somente apreendidas pelo intelecto": Toda a realidade,
toda a substância é, portanto, individual, mas quer isto dizer que a
diferença entre os indivíduos

101

é uma diferença entre substâncias ou realidades e não entre acidentes, e que


o princípio de individuação é uma forma substancial, própria de cada
indivíduo.

Mas se neste ponto Godofredo se afasta de S. Tomás, aceita dele completamente


a teoria do conhecimento, rejeitando a doutrina da iluminação. "No estado da
nossa vida presente, não há senão uma maneira de entender todas as coisas,
tanto as materiais e mutáveis como as imateriais e eternas: a abstracção da
espécie inteligível, por virtude do intelecto agente, da imagem ou do
objecto presente na imaginação". Mas esta acção abstractiva do intelecto não
se refere de forma alguma ao ser do objecto, o qual permanece
substancialmente individualizado e singular, mas **sekmente à condição de
inteligibilidade do próprio objecto. As ideias, que constituem os exemplares
das coisas na mente divina, não são realidades substanciais e, portanto. não
têm nem o ser da essência nem o ser da existência (que aliás são idênticos)
mas têm somente o valor de princípios cognoscitivos, como na mente do
artista o tem a casa ainda não construída. A essência e a existência da
coisa criada nascem ao mesmo tempo, por efeito da vontade criadora de Deus,
de modo algum pré-existem ao acto criador na mente divina (lb., VIII, q. 3;
Hauréau, 11, 2, 149). A doutrina de Godofredo de Fontaines assinala assim uma
decidida tendência para o nominalismo, que terá o seu máximo triunfo em
Guilherme de Occam.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 291. As condenações de Rilwardby e Peckham contra o tomismo: DENIFLE,


Chart. Univ. Paris., I,
543 ss., 558 ss.; EHRLE, John Pekhakn über den Kampf

102

des Augusti%ismus und Aristotelismu& in der zweiten Hãlfe des 13 Jahrhundert,


in "Zeitschrift für Katholische Theologie", 1889, 172 ss.

De Peckham, tudo o que se refere à tradição manuscrita in: LITTLE, The Grey
Friars in Oxford, Oxford, 1892, 156. Obras citadas: Collectaneum BibZiorum,
Paris, 1514, Colónia, 1541; Perspectiva communis, Medioliani, s/d, Veneza,
1501, 1593. Sete cartas foram editadas por Ehrle@, 1 e. A Quaestío sobre a
luz eterna como "ratio cognoscendi", in De humanae cognitionis ratione
anecdota quaedam Seraphici Doctoris S. Bonaventurae et nonnullorum ipsius
discipulorum, ad Claras Acquas (Quaracchi), 1883, p. 179-182. Canticum
pauperis, Quaracchi, 1905. Tractatus tres de paupertate, Aberdee,n, 1910;
Quaestiones De Anima, ed. Spettmann, in "Beitrãge", XIX, 5-6, 1918; Summa de
Esse et Essentia, ed. Delorme, Florença, 1928; Quodlibet Romanum, e,d.
Delorme, Roma, 1938; Tractatus de Anima, ed. Melani, Florença, 1948.

Sobre o Quodlibetum: DESTREZ, Les disputes quodZibétiques de St.-Thomas, 49-


108; GLORIEUN, La litterature quodlibétique, Kain, 1925, 220-222.

Sobre Peckham: SFETTMAN, in "Franziskanisclie Stu,dien", 1915, 170-207, 266-


285; in "Beitrãge", XIX,
5-6, XX, 6; SuppI., 11, 1923, 221-242; DOUIE, Archbishop Peckham, Oxford,
1952.

Sobre o Paradisus animae: The Paradise of the Soul, Londres, 1921; tradução
francesa de VANHAMME, Saint-Maximin, 1921.

Extractos da obra de Kilwardby, De ortu et divisione philosophiae, in


1IAURÉAU, Histoire de Ia philos, scol., 11, 2, Paris, 1880, 29-32, e in L.
BAUR, Dominicus Gundissalinus, in "Beitrãge", IV, 2-3, p. 369-375. Sobre
Kilwardby: PRANTL, Gesch. d. Log., 111, 185-188; EHRLE, Der Augustinismus und
der Ari.-toteZismus in der Scholastik gegen der 13 Jalbrhundert, in "Archiv
für Literatur und Kirchengeschichte des Mittelalters",
1889, 603-635; DE WURP, Gilles de Lessines De unitate formae, 73, ss.: é um
escrito dirigido contra uma carta de Roberto ao arcebispo de Corinto Pedro de
Confleto, sobre esse tema; BIRKENMAJER, Vermischte Utersuchungen, in
"Beitrãge"", XX, 5, 1922, 36-69.

Sobre Guilherme de Ia Mare: LITTLE, The Grey Friars in Oxford, 315, %S.;
EHERLE, Der Kampf und die Lehre des W. Thomas von Aquins in ersten fünfzig
Jahren nach seinen Tode, in "Archiv für Katholische

103

Theol.", 1913, 266-318; LONGPRS, "France franciscaine"


1921-.1922.

Sobre os Corr6ctoria: a obra citada de EHRLE e UEBERWEG-GEYER, 495-497.

§ 292. Cinco das Quaestiones disputatae de Mateus foram impressas em De


humanae cognitionis ralione anecdota quaedam Seraphiei Doctoris S.
Bonaventurae et nonnmllorum ipsius discipulorum, Quaracchi, 1903.

Uma selecção mais ampla: Questiones disputatae de g7atia, ed. Doucet,


Quaracchi, 1935; De productione rerum et de providentia, ed. Gal, Quaracchi,
1956; Quaestiones disputatac De anima separata, De anima beata, De ieunio et
De legibus, Quaracchi, 1959; Quaestiones disputatae selectae, 1, Quaestianes
de fide et cognitione, Quaracchi, 1903. Extractos do Comentário às Sentenças,
de um manuscrito da Biblioteca comunaI de Todi, publicados por DANIELS, in
"Beitrãge", VIII,
1-2, 51-63.

Sobre Mateus: o escrito de DANIELS, no vol. ci-tado; GRABMANN, Die Philos.


und theol. ErkenntníssIehre des Kard. M. v. Acquasparta, Viena, 1906.

§ 293. De Rogério: De humanae cognitionis ratione, Quaracchi, 1883;


Quaestiones disputatae, Quaracchi, 1932. Sobre Rogério: CAIROLA,
L'opposizione a San Tomaso nelle "Quaestiones disputatae" di R. M., in
Seritti, Turim, 1954, p. 132, ss.

De Ricardo de MiúdIetown, o Comentário às Sentenças teve as seguintes


edições: Venetiis, 1489, 1509; Brixiae, 1591; os Quodlibeta: Veneflis, 1507,
1509; Parisfis, 1510, 1519, 1529. Algumas das Quaestiones disputatae in.
Anecdota quaedam, etc., cit.,p. 221-245. DANIELS, in. "Beitrüge", VlU, 84-88.
Do Comentário às Sentenças foram pupblicadas as questões referentes à
Imaculada Conceição, Quaracchi, 1904; duas questões sobre as provas da
existência de Deus, in DANIELS no vol. cit. dos "Beitrãge", p. 89-104, e uma
questão sobre o conhecimento humano, também por DANIELS, in "Festgabe für C.
Bacumker", 1913, 309-318. Cfr. DuHFm, Système du monde, III, p. 484-488;
ZAVALLONI, R. de MediaviZIa et Ia controverse sur Ia plúralité des formes,
Louvain, 1951..

De Pedro João Olivi foi publicado o segundo livro dos Comentário.R às


Sentenças, por Jasen, 3 vol., Quaracchi, 1922, 1924, 1926. Os Quodlibeta
foram editados em Veneza, 1509.

104

Sobre GliVi: JANSEN, Die Erkenntnislehre Olivis, Berlim, 1921; BETTOM, Le


dottrine filosofiche di P. G. Oliv, Milão, 1961.

§ 294. Das obras de Herveus Natalis existem as seguintes edições: Quaestiones


in libros sententiarum, Veniffis, 1505, Parisiis, 1657; Quadlibeta, Venetiis,
1486.
O De unitate formarum foi impresso como sendo obra de S. Tomás juntamente com
a Summa philosophica de Cosme Alamanno, Paris, 1638-1639. De potestate
ecelesiae et papae, Parisfis, 1500, 1506, 1657.

De João de Nápoles: Quaestiones variae Pariis disputatae, Nápoles, 1618.

De Egídio Romano foram numerosas vezes editadas as obra.9 nos séculos XVI e
XVIII. Entre as edições recentes: De potestate ecelesiastica, ed. Scholz,
Weimar, 1929; Theoremata de ente et essentia, ed. Hocédez, Louvain, 1930;
outras questões publicadas por BRUNI, in "Analecta Augustiniana", 1939; De
erroribus philosophorum, ed. Koch, Milwaukee, 1944; De plurificatione
intellectus possibilis, ed. Bullotta Barracco, Roma,
1957. Sobre Egídio: BRUNI, Le opere di Egidio Romano, Florença, 1936; KNOX,
Giles of Rome, 1944.

§ 295. O.s Quodlibeta de Henrique foram impressos em Paris em 1518 e em


Veneza em 1608 e em
1613. A Summa theologica foi impressa sob o título de Summa quaestíonum
ordinarium em Paris em 1520 e em Ferrara em 1646. As obras filosóficas de
Henrique foram publicadas por Ãngelo Ventura em Bologna em 1701; esta edição
contém também os escritos apócrifos. Sobre a biografia: WAUTERS, in "Bull. de
Ia Comm. royale d'Histoire", IV série, 1887, 179-190; BAEUMICER, in "Archiv
für Geschichte der Philos.",
1891, 130 ss.; DE WULF, Histoire de Ia philosophie en Belgique, Bruxelas,
1910, 80-116; J. PAULUS, H. d. G., Essai sur les tendances de la
métaphysique, Paris,
1938.

§ 297. De Godofredo: XIV Quodlibeta, ed. De Wu11, Pelzer, Hofimans, Louvain,


1904-1935; Quodlibeta XV, com o Quaestiones, ed. Lottin, Pelzer, Hoffmans,
Louvain, 1937. Sobre Godofredo: DE WULr, Un théologien-philosophe du XIIIe
siècle (Godefroid de FGntaines), Bruxelas, 1904; ID., Histoire de Ia
philosophie en Belgique, 80-116; PELZER, Godefroid de Fontaines, in "Revue
néoscol.", 1913, 365-388, 491-532.

105

XIX

A FILOSOFIA DA NATUREZA NO SÉCULO XIII


§ 298. FILOSOFIA DA NATUREZA: CARACTERISTICAS DA INVESTIGAÇÃO NATURALISTA NO
SÉCULO XIII

O século XIII assinala um grande florescimentü da investigação científica. Já


no século precedente, a escola de Chartres, retomando e ampliando as
especulações de Escoto de Erígena e de Abelardo, tinha considerado a natureza
como parte ou elemento do ciclo criador divino, atraindo assim para ela as
atenções da filosofia. Mas tratava-se mais de uma exaltação teológica e
poética da natureza do que uma predisposição ao seu estudo experimental. Por
outro lado, esta espécie de estudo também não fora completamente esquecida ao
longo dos séculos da Idade Média: fora antes rejeitada para fora da filosofia
e, em geral, do saber oficial, e reservada aos alquimistas, magos e
similares doutores diabólicos, dedicados a arrancar com falsas artes os
segredos do mundo natural para darem ao homem,
107
com pouco trabalho, a riqueza, a saúde e a felicidade. Mas com a difusão da
filosofia árabe e do aristotelismo, o carácter da investigação experimental
muda completamente.

A matemática, a astronomia, a óptica, a física, a medicina dos árabes, que


por sua conta tinham continuado, embora com modestos resultados, o trabalho
da investigação da ciência clássica, chegam agora ao conhecimento dos
filósofos do mundo ocidental. O aristotelismo, que se apresenta como uma
completa enciclopédia do saber, incluindo em si as disciplinas filosóficas
particulares, vale agora aos olhos desses
mesmos filósofos como a justificação suficiente dessas ciências e da
investigação experimental em que se baseiam. Desta maneira, tais
investigações deixam de ser um trabalho secreto reservado aos iniciados,
tendendo a transformar-se num aspecto fundamental da investigação filosófica
e a assumir um lugar reconhecido na economia geral do saber.

Esta influência da difusão do aristotelismo, a mais ampla e talvez a mais


radical, não se restringe aos que permanecem mais fielmente aderentes à letra
do sistema aristotélico, antes abrange a totalidade do campo da cultura.
Tanto os agustinianos como os aristotélicos a ressentem na mesma medida. O
aristotélico Alberto Magno insiste na importância da investigação experimental
e dedicava grande parte da sua obra à discussão dos problemas científicos, e,
por outro lado, são os agustinianos os que se dedicam com maior entusiasmo
aos novos campos de investigação. Entre esses agustinianos, são os
franciscanos da escola de Oxford que oferecem, no século XIII, o maior
volume de investigações experimentais e, de discussões científicas, a partir
de Roberto Grosseteste (§ 255) que pode considerar-se como o iniciador do
novo naturalismo de Oxford.

108

É claro que os procedimentos e os resultados desta investigação, misturados


como são com elementos teológicos, místicos e mágicos, interessam mais
(quando interessam) à história das respectivas ciências do que à filosofia.
Mas interessam também c, à história da filosofia. Em primeiro lugar, como se
disse, denunciam uma nova perspectiva da investigação filosófica. e uma
renovação dos seus horizontes; em segundo lugar, enquanto se intersectam
(como muitas vezes acontece) com os problemas propriamente filosóficos
respeitantes à natureza dos instrumentos cognoscitivos de que o homem dispõe
e às tarefas do homem no mundo. Finalmente, interessam também à filosofia
porque através daquelas investigações o como seu resultado global se vai
delineando a crítica e o abandono gradual da velha concepção do mundo de raiz
aristotélico-estóica que dominara a cultura medieval. Não é por acaso que, no
século seguinte, serão os filósofos dessa orientação empirista, a qual
encontrava na obra de Aristóteles o seu maior encorajamento, os que
descobrirão as primeiras falhas na concepção aristotélica do mundo e
entreverão a possibilidade de uma concepção diferente.

O máximo representante do experimentalismo científico do século XIII é


Rogério Bacon, discípulo de Roberto Grosseteste. Mas entre os que Rogério
Bacon exalta com seus predecessores e mestres há um tal Mestre Pedro, que foi
Pedro Peregrino de Mahrancuria ou de Maricourt, na Piccardia, do qual nada se
sabe anão ser que no ano
1269 estava em Lucera de Apúlia onde acabava de escrever a sua Epistola de
magnete. Este dado consta da própria obra, que é um pequeno tratado em 13
capítulos sobre o magnetismo, ao qual se referirá mais tarde, em 1600, o
primeiro estudioso moderno do magnetismo, o inglês Gilbert. Bacon exalta-o
como o mestre da arte experimental, o único

109

dos latinos capaz de entender os mais difíceis resultados desta ciência (Opus
tert., 13). Na sua Epistola, Pedro Peregrino afirma a necessidade da
experiência directa, da habilidade manual, a fim de facilmente corrigir erros
que não poderiam ser eliminados por considerações filosóficas e matemáticas.

§ 299. ROGÉRIO BACON: VIDA E OBRA

Rogério Bacon, a quem os seus contemporâneos chamaram Doctor mirabilis,


nasceu perto de fichester, no Dorsetshire, entre 1210 e 1214. Estudou em
Oxford, onde foi aluno de Roberto Grosseteste, depois em Paris, onde
permaneceu desde 1244 até
1250 ou 1252, e onde foi também mestre de teologia. Em 1250 ou 1252 voltou
para Oxford e não sabemos se foi antes ou depois que ingressou na ordem
franciscana. Teve como protector o papa Clemente IV (1265-1268), que a 22 de
Junho de 1266 lhe pedira por carta o envio do seu Opus maius. Mas alguns anos
após a morte de Clemente, em 1278, Jerónimo de Ascoli, geral da ordem
franciscana, condenava a doutrina de Bacon e impunha-lhe uma severa
clausura que não sabemos quanto tempo durou. O último dado seguro que dele
temos é o que se refere à composição do Compêndio de estudos teológicos no
ano de 1292. Nada sabemos depois desta data.

As obras principais de Bacon são as intituladas Opus maius, Opus minus e Opus
tertium. Destas três obras, a ú nica completa é o Opus maius, que
provavelmente foi também a única que Bacon enviou a Clemente IV. O Opus minus
e o Opus tertium não passaram da forma de esboços. Bacon. concebera o
projecto grandioso duma completa enciclopédia das ciências, dado que
concebia a metafísica com a ciên-

110

cia que encerra os princípios de todas as outras. As ciências filosóficas


dividem-se em três grandes grupos: matemática, física e moral, enquanto que a
gramática e a lógica constituem somente partes acidentais da filosofia (Opus
maius, IV, d. 1, 2). Mas não conseguiu realizar completamente este seu plano.
As suas investigações mais numerosas tratam da física, e em particular da
óptica; outras tratam da astronomia, matemática, história natural e da
gramática grega e hebraica.
A atitude de Bacon em todas as suas obras é a de, uma resoluta liberdade
espiritual. Está convicto que a verdade não se revela senão aos homens que a
procuram, que as investigações devem acrescentar-se e integrar-se umas com
as outras e que, numa palavra, a verdade é filha do tempo. E por isso, embora
reconhecendo o imenso valor de Aristóteles, a propósito de quem cita a frase
de Averróis segundo a qual ele representa "a última perfeição do homem",
considera que Aristóteles não penetrou nos últimos segredos da natureza,
assim como os sábios de hoje ignoram muitas verdades que serão familiares aos
estudantes mais jovens dos tempos futuros (1b., 11, 13).

§ 300. BACON: A EXPERIÊNCIA

Com base nesta atitude, Bacon podia fazer pouco ou nenhum caso do valor da
autoridade para o conhecimento. Se bem que coloque a autoridade ao lado da
razão e da experiência, entre as três vias pelas quais se pode atingir o
conhecimento, considera que na realidade a autoridade nada faz conhecer, a
não ser vindo acompanhada pela sua própria razão, e que por seu lado não nos
dá a inteligência mas sim a credulidade, sendo ainda uma das mais

111

comuns fontes de erro (Comp. stud. phil, p. 397). Restam portanto dois modos
de conhecer: a demonstração racional e a experiência. Mas a demonstração
racional, embora resolva e nos faça resolver as questões, não dá a certeza
nem climina a dúvid.-, já que a alma descansa no intuir da verdade se não a
encontra pela via da experiência. Muitos são os que aduzem argumentos
racionais para sustentar as coisas que conhecem; porém, não tendo experiência
delas, não sabem discernir nos seus conhecimentos os úteis e os nocivos. Pelo
contrário, o que conhece a razão e a causa por experiência, é perfeito em
sabedoria. Sem a experiência, nada se pode conhecer adequadamente (Op. maius,
VI, 1).

Mas se a experiência é o único instrumento eficaz de investigação, se só ela


fornece ao homem a visão directa (inluitus) da verdade, então todo o campo do
conhecimento humano, quer se refira às coisas naturais quer às sobrenaturais
e divinas, deve ser baseado na experiência. E assim é, segundo ,Bacon. A
experiência não é só o fundamento da investigação natural, mas é também o do
conhecimento sobrenatural. A experiência é dupla: externa e interna. A
experiência externa é a que é dada através dos sentidos; a experiência
interna é a que é dada através da iluminação divina. Bacon junta aqui ao seu
experimentalismo o princípio básico da tradição agustiniana, a teoria da
iluminação. Da experiência externa derivam as verdades naturais. da
experiência interna, as verdades sobrenaturais: ambas encaminham o homem para
o seu fim último, a beatitude. O carácter pragmático e utilitário da verdade
reveste em Bacon um significado ético e religioso.

Admitindo a experiência como único fundamento da verdade, Bacon suprime à


lógica aristotélica todo o valor como órgão de investigação. Reconhece-
lhe somente um valor dialéctico enquanto " conclui e nos
112

faz concluir uma questão", mas nega-lhe o valor real de instrumento efectivo
de investigação referente à realidade, a capacidade de fundamentar a certeza,
eliminar a dúvida e dar assim satisfação total à necessidade humana da
verdade.

A experiência é, pois, para Bacon, um conhecimento imediato, pelo qual o


homem é posto frente a frente com a realidade. Isto aplica-se também à
experiência interna; esta é antes o modelo de que Bacon se serve para
interpretar a própria experiência sensível. Com efeito, a doutrina
agustiniana da iluminação é a formulação típica do conhecimento imediato.
Bacon distingue na experiência interna uma tripla iluminação: a iluminação ou
revelação geral, comum a todos os homens; a iluminação primitiva e
tradicional; a iluminação especial. Esta última é de ordem religiosa e
sobrenatural e é devida à graça. A iluminação primitiva refere-se também às
verdades de ordem natural enquanto foram reveladas primitivamente por Deus. A
primeira é, por sua vez, à iluminação no sentido da escola agustiniana, como
condição do conhecimento humano, e consiste no concurso divino a tal
conhecimento, independentemente da providência universal e do concurso
especial da graç a. A iluminação comum é o fundamento da filosofia. "Este
caminho é a sapiência da filosofia, a única sapiência que está ao alcance do
homem e que pressupõe uma iluminação divina que seja comum a todos, já que
Deus é o intelecto que age em todos os conhecimentos da nossa alma".

Desta forma, Bacon une à sua doutrina da experiência e à doutrina agustiniana


da iluminação a doutrina aristotélica do intelecto, segundo a interpretação
de Avicena. "A sapiência filosófica, é inteiramente irevelada e dada aos
filósofos por Deus, e é o próprio Deus que ilumina as almas dos homens em
toda a sua sapiência, Mas dado que

113

aquilo que ilumina a nossa mente é agora chamado pelos teólogos intelecto
activo, segundo a palavra de filósofo no livro 111 do De anima, onde
distingue dois intelectos, activo e possível, eu sustento que o intelecto
agente é em primeiro lugar Deus, e em segundo lugar os anjos que nos
iluminam" (Opus tert., ed. Brewer, 74). E de facto o intelecto chama-se
activo enquanto influi sobre as almas humanas, iluminando-as para a ciência e
para a virtude. Em certo sentido, também o intelecto possível pode chamar-se
activo, enquanto é tal no acto de entender; mas o verdadeiro intelecto activo
é o que ilumina e influencia o intelecto possível para o conduzir ao
conhecimento da verdade. "E assim, segundo os maiores filósofos, o intelecto
activo não é uma parte da alma, mas uma substância intelectiva diferente e
separada por essência do intelecto possível" (Opus maius, 11, 5). É aqui
evidente a influência de Avicena. Mas não era nova a identificação do
intelecto activo com Deus: encontrámo-la já em Guilherme de Auvérnia (§ 253),
em João de Rupella (§ 257) e ultimamente em Rogério Marston (§ 293), e em
todos eles, como em Bacon, está relacionada com a doutrina da 4,*iluminação
divina.

A experiência interna, para Bacon, é a via mística: o seu mais alto grau é o
conhecimento extático. Bacon distingue sete graus na ciência interior. O
primeiro é o das iluminações puramente científicas.
O segundo consiste nas virtudes. O terceiro, nos sete dons do Espírito Santo.
O quarto, nas bem-aventuranças de que fala o Evangelho. O quinto, nos
sentidos espirituais. O sexto, nos frutos, entre os quais está a paz de Deus,
que superam todo o sentido. O sétimo consiste no rapto extático e nas suas
modalidades, porque cada um cai em extase à sua maneira e vê coisas que ao
homem não é consentido exprimir. "Aquele, acrescenta Bacon
114
(Opus maius, 11, 170 ss.), que se exercitou diligentemente nestas
experiências ou na maior parte delas, pode certificar-se e certificar os
outros, não só das ciências espirituais, mas de todas as ciências humanas".

Assim, o experimentalismo de Bacon, em concordância com o espírito


agustiniano pelo qual é completamente impregnado e dominado, conclui em pleno
misticismo. A conclusão aclara as **prerãissas. A experiência baconiana está
ainda carregada do carácter mágico e religioso das investigações dos
alquimistas e dos magos. Bacon reconduziu-a ao augus"ismo e interpretou-a à
luz da doutrina da iluminação divina. Mas desta forma confirmou-lhe o
carácter místico e religioso, reconhecendo-lhe um fundamento transcendente, a
revelação directa de Deus. E todavia, não é possível deixar de reconhecer a
esta estranha figura de frade franciscano, alquimista e místico,
experimentador e teólogo, o carácter de um precursor da ciência moderna. Em
primeiro lugar, pelo valor que deu à investigação experimental, fundamento de
toda a verdade mundana e supramundana. Em segundo lugar, porque reconheceu
que a disciplina da investigação, a sua lógica interna, é a matemática. Todo
o poder da lógica depende da matemática, segundo ele, dado que todas as
determinações (qualidade, relação, espaço, tempo) dependem da quantidade e a
quantidade é o objecto próprio da matemática. Por isso, só na matemática
existe a demonstração verdadeira e poderosa, e nela somente se pode chegar à
plena verdade isenta de erro e à certeza isenta de dúvida. Só através da
matemática podem as outras ciências constituir-se e tornar-se certas (1b.,
IV, d. 1, c. 2-3). São estas as teses fundamentais das quais nasceu o sobre
as quais se desenvolveu, de Leonardo em diante, a investigação científica
moderna.

115

§ 301. WITELO

Witelo (diminuitivo de Vito) nasceu na Silésia entre 1220 e 1230, de pai


turíngio e mãe polaca. Cerca de 1260 foi para Itália e fez os seus estudos
filosóficos, matemáticos e físicos em Pádua. Mas deve ter também vivido em
Viterbo, onde naquela ano se encontrava a corte papal, porque nela tinha o
cargo de penitenciário Guilherme de Moerbeke, o tradutor de Aristóteles,
Simplício e Proelo, que era seu amigo e a quem dedicou a sua obra principal,
a Perspectiva. Esta obra foi provavelmente composta cerca de 1270, mas
certamente antes de 1277, ano em que Guilherme foi nomeado arcebispo de
Corinto. Este é o único dado seguro que temos de Witelo, nada se sabendo de
outras estadias suas, ou do lugar e data da sua morte.

A Perspectiva não foi a única obra escrita por Witelo, mas é a única de que
temos conhecimento; nela cita Witelo outras obras entre as quais uma Sobre a
filosofia natural e uma outra De ordine eniiuni, a qual foi identificada por
um historiador moderno com o Liber de intelligentiis, escrito anónimo que
expõe uma teoria da luz bastante semelhante à de Roberto Grosseteste (§ 256).
Mas esta obra é na realidade mais antiga, pois é já citada por S. Tomás de
Aquino (Quod., VI, q. 11, a

19; De ver., q. 2, a. 1) e por Vicente de Beanvais no Speculum naturale (11,


35-37). A Perspectiva é um tratado de óptica em dez livros que teve uma
importância notável na história desta disciplina. o seu pressuposto é uma
metafísica da luz, tal como já se encontrou em Roberto Grosseteste e em S.
Boaventura. Segundo Witelo, a acção divina exerce-se nas coisas inferiores do
mundo por meio das coisas superiores. Na ordem das substâncias intelectivas,
as substâncias inferiores recebem das superiores a luz derivada da fonte da
bondade divina; e, duma

116

maneira geral, o ser de qualquer coisa deriva do ser divino, toda a


inteligibilidade deriva da inteligência divina, toda a vitalidade, da vida
divina. De todas estas influências, o princípio, o meio e o fim é a luz
divina, da qual, para a qual e à qual todas as coisas se encontram dispostas.
No que se refere às coisas corpóreas, o meio é a luz sensível através da qual
as formas corpóreas supremas se difundem na matéria dos corpos inferiores e
nela se multiplicam de modo a produzirem as formas específicas e individuais
(Perspect., ed. Bacumker, p. 127-128). A óPu`ca, que estuda as leis da
difusão da luz, é, portanto, mais do que uma ciência particular, toda a
física, enquanto esclarece a estrutura de todo o mundo físico, determinado
precisamente no seu génese pela difusão da luz. Nas três maneiras de ver
(,visão directa, reflexão, refracção) Witelo vê, por isso, o signo da tríplice
acção das formas e de todas as potências celestes e naturais (1b., p. 131,
15).

Nos traços de Witelo move-se o dominicano Teodorico de Friburgo (no Saxe)


(cerca. de 1250-1310) autor de numerosos escritos filosóficos e científicos
(De on .gine rerum ~icamentalium, De quidditatibus entium, De intellectu et
intellígibili, De habitibus, De esse rt essentia, De accidentibus, De
mensuris durationis rerum, De tempore, De elementis, De luce, De coloribus,
De iride, De miscibilibus in mixto) recentemente editados. Teodorico repete
as teses tipicas do augustinianismo: a negação da distinção real entre
essência e existência, a pluralidade das formas no composto; e partilha com
o augustinianismo o interesse pela indagação experimental, sobretudo no
domínio da óptica.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 298. A Epistola de magnete foi novamente pub?icada por Berte111, in "Bo11.


di Bibliografia e di

117

storia delle, scienze matematiche e fisiche", 1868, 70-89; e por HeIlmann, in


Rara magnetica, 1898. PICAVET, Essai sur 1'hi@st. gén. et comp. des théol. et
des phil. médiév., Paris, 1913, p. 232-254.

§ 299. O Opus maius foi impresso em Londres,


1773, e em Veneza, 1750. A edição mais recente é a Bridges, 2 vol., Oxford,
1897; vol. III de suplementos, Oxford, 1900. O Opus minus, O Opus tertium e o
Compendium, philosophiae, in Opera quaedam hactenus inedita, editado por
Brewer, Londres, 1859 Outros escritos, in Opera hactenus inedita, editado por
Steele,
5 fase., Oxford, 1905-1920. O Compendium studii theologiae foi publicado por
Rashdall, Aberdoniae, 1911.

Sobre as obras e manuscritos de Bacon: LITTLE, The Grey Friars in Oxford,


Oxford, 1892, 195-211; MANDONNET, in "Revue néoscol.", 1913, p. 53-68, 164-
180; CHARLES, Roger Bacon, sa vie, ses Guvrages, ses doctrines, Paris, 1861;
CARTON, L'expérience physique chez R. B., Paris, 1924; ID., L'expérience
mystique de Villumination intérieure chez R. B., Paris, 1924; ID., La
synthèse doctrinale de R. B., Paris, 1924; DUHEM, Système du monde, V, 375-
491 (utiliza as questões sobre física e sobre metafísica contidas num
manuscrito de Amiens e compostas por Bacon em Paris cerca de 1250); EASTON,
R. B. and his Search for a Universal Science, New York, 1952; ALESSIO, Mito e
scienza in R. B., Milão, 1957.

§ 301. A perspectiva apareceu pela primeira vez em Nuremberga em 1535.


Extractos contendo as partes filosóficamente mais notáveis foram publicados
por BAnUMKER na sua monografia Witelo, ein Philosoph und Naturforscher des
XIII Jahr., in "1?>eitrãge", III,
2, 1908. A Witelo atribuiu BAEUMKER nesta monografia o Liber de inteNigentiis
mas depois negou essa atribuição, in Miscellanea Ehrle, vol. 1, 87-102.
BIRKENMAIER, Études sur Witelo, I-IV, in "BuIl. de l'Acad. des sciences de
Cracovie", 1918-1922.

De Teodorico, o De intellectu e o De abitibus foram editados p01- E. KREM in


"Beitrãge", V, 5-6 (1906),
O De esse et essentia pelo mesmo KREM in "Revue néoscolastique de phil.",
1911, e outros escritos por F. STEGMCLLEP in "Archives d'histoire doetr. et
litt. du m. â.", 1940-1942; e por W. WALLACE, The Scientific Methodology of
T. of F., Fribourg (Suíça), 1959 (com bibl.).

118

XX

JOÃO DUNS ESCOTO

§ 302. JOÃO DUNS ESCOTO: DOCTOR SUBTILIS

Depois de S. Tomás, deve-se a Duns Escoto a outra mudança de direcção da


escolástica. Trata-se de uma mudança decisiva, que devia conduzir rapidamente
a escolástica ao fim do seu ciclo e à exaustão da sua função histórica. Também
esta mudança foi determinada pelo aristotelismo, mas o aristotelismo é aqui o
espírito de um sistema e não um sistema. Para S. Tomás, o aristotelismo é uma
doutrina que é necessário corrigir e reformar. Paira Duns Escoto, é a própria
filosofia, que é necessário reconhecer e fazer valer em todo o seu rigor a
fim de circunscrever nos seus justos limites o domínio da ciência humana.
Para S. Tomás, trata-se de utilizar o aristotelismo para a explicação da fé
católica. Para Duns Escoto trata-se de utilizá-lo como princípio que
(restringe a fé ao seu próprio domínio, o prático. O ideal de uma ciência
absolutamente necessária, isto é, inteiramente fundada na demonstração, e o
procedimento crítico, analítico e dubitativo constituem a expressão da
fidelidade de Escoto

119

ao espírito do aristotelismo. O apelativo que Escoto recebeu dos seus


contemporâneos, Doctor subtilis, exprime unicamente, o carácter exterior do
seu filosofar: a tendência para distinguir e subdistinguir, a insatisfação
analítica que busca a clareza na enumeração completa das alternativas
possíveis. Mas o núcleo da sua personalidade filosófica é a aspiração a uma
ciência racional necessária e autónoma, e o cuidado crítico derivado dessa
aspiração. A relação entre Escoto e S. Tomás foi já comparada à relação entre
Kant e Leibniz: S. Tomás e Leibniz seriam dogrnáticos, Duns Escoto e Kant
seriam críticos. Esta comparação, despropositada como todas as comparações
feitas entre personalidades pertencentes a momentos históricos diferentes,
pode ser entendida no sentido em que Escoto tenta, tal como Kant, basear o
valor do conhecimento científico no reconhecimento dos seus limites, e o
valor da fé na diversidade da sua natureza em relação à da ciência. Por isso
Escoto se não preocupou em criar uma obra sistemática e não escreveu nenhuma
Summa; preocupou-se somente em fazer valor o seu alto ideal da ciência como
critério para a discussão dos problemas filosóficos e teológicos do seu
tempo, para neles determinar a parte que diz respeito à ciência e a que diz
respeito à fé, para circunscrever a fé a um domínio diferente, o domínio
prático, e para atribuir tal domínio à teologia, considerada como uma ciência
sui generis, diferente das outras e sem nenhuma primazia sobre elas. O
denominado primado da vontade significa simplesmente, na obra de Escoto, que
tudo o que não é susceptível de rigoroso procedimento demonstrativo pertence
ao domínio de um factor contingente, arbitrário e livre, isto é, ao domínio
da vontade humana ou divina.
O primado da vontade não é aqui um princípio psicológico, como em Henrique de
Gand, mas sim um princípio metodológico o metafísico. O seu augus-

120

tinismo (ainda que se afaste do augustinismo em pontos fundamentais,


principalmente no da doutrina da iluminação divina) é puramente ocasional,
como revela o seu carácter limitado e parcial. Daqui deriva o aspecto
desconcertante que a sua figura frequentemente revestiu para os seus
contemporâneos e posteriores. Na realidade, o ideal científico de Aristóteles
foi utilizado por ele como princípio negativo em relação à investigação
escolástica tendente a reconduzir a fé à razão.

§ 303. JOÃO DUNS ESCOTO: VIDA E OBRAS

João Duns Escoto nasceu em 1266 ou (segundo outros) em 1274 em Maxton


na Escócia. Cedo ingressou na ordem franciscana
onde recebeu a sua primeira educação, e estudou em Oxford, onde, segundo uma
tradição que parece provável, foi aluno de Guilherme de Ware. Em 1302 vai
para Paris, onde, como barachel e conforme o costume, deu o seu curso de
comentário às Sentenças. Em Junho de 1303 foi obrigado a sair de Paris
porque, com outros frades, se tinha declarado a favor do papa na luta que
estalara entre Bonifácio VIII e Filipe o Belo. Pôde voltar a Paris no ano
seguinte, e Gonçalo de Balboa, geral da sua ordem, escrevia a 18 de Novembro
de 1304 uma carta ao guardião dos estudos de Paris a fim de que apresentasse
Escoto ao chanceler da Universidade para a nomeação como mestre. Essa
nomeação foi-lhe conferida. Em 1305-1306 Escoto regressou a Inglaterra e
pertence a este período a redacção da sua obra principal, o comentário às
Sentenças, conhecido com o nome de Opus oxoniense. Em 1308 ora chamado a
Colónia, onde faleceu a 8 de Novembro e foi sepultado na igreja dos Frades
Menores.

121

Na data da sua morte tinha Escoto cerca de


40 anos: uma vida breve, ocupada por uma intensa actividade, mesmo que
consideremos somente as

obras que com toda a segurança lhe podem ser atribuídas. São elas o tratado
De primo principio, as Quaestiones in Metaphysicam, o Opus oxoniense, os
Reportata parisiensia e um Quodlibet. As três primeiras pertencem à estadia
em Oxford, as outras duas são resultado do ensino parisiense. Os Reportala
parisensia, que são o texto do comentário às Sentenças feito por Escoto
naquela cidade, ficaram-nos em duas redacções, uma mais breve, outra mais
longa. A edição que deles fez o editor seiscentista de Escoto, Luca Waddinng,
é uma contaminação das duas redacções que não tem qualquer base nos
manuscritos.

Sabemos agora ser apócrifo um grupo de obras atribuídas a Escoto. O


Comentário à Física cita uma obra de Tomás Bradwardine (§ 311) composta entre
1338 e 1346, pelo que não pode pertencer a Escoto. Uma outra obra do mesino
autor, escrita em 1328, é citada no Comentário aos livros meteorológicos
denunciando assim igualmente a falsidade da atribuição. Também não são
autênticas a Exposição dos XII livros da Metafísica, as Conclusões de
Metafísica, a qual pertence a Gonçalo de Balboa, e a Gramática especulativa,
que é de Tomás de Erfurt. E enquanto se descobriram já outras obras
constituídas por cursos dados por Escoto nas Universidades de Paris,
Cambridge e Oxford (obras, aliás, ainda não publicadas), permanece incerta a
posição de duas obras já conhecidas, o De perfectioni statuum e o De rerum
principio. Por seu ,turno, os Theoremata, sobre os quais existiam algumas
dúvidas, provocadas fundamentalmente pela extensão que neles assume o
cepticismo teológico de Escoto, são actualmente considerados como autênticos.
Com efeito, os seus pressupostos gnoseo-
122

lógicos são incompatíveis com os Ockham, a cuja escola se costumavam


atribuir. E por outro lado, é notório que o agnosticismo teológico, acentuado
nesta obra, não é mais do que o aspecto negativo de um ideal positivo de
perfeição científica, ou seja, da aspiração de Escoto a uma ciência
rigorosamente demonstrativa, tal como havia sido concebida e realizada por
Aristóteles.

§ 304. JOÃO DUNS ESCOTO: CIÊNCIA E FÉ

O De primo principio começa com uma prece a Deus, a qual constitui


simultâneamente a profissão de fé do ideal científico de Duns Escoto. "Tu és
o verdadeiro ser, Tu és todo o ser; isto creio eu, isto, se fosse possível,
desejaria eu conhecer. Ajuda-me, Senhor, a procurar este conhecimento do
verdadeiro ser, isto é de Ti mesmo, que a nossa razão natural pode atingir"
(1, n. 1). Escoto, não pode a Deus uma iluminação sobrenatural, um
conhecimento completo em verdade e em extensão, mas unicamente o conhecimento
que é próprio da razão humana natural. Ainda que, dentro dos seus limites,
este seja o único conhecimento possível, a única ciência para o homem. "Para
além dos atributos que de Ti os filósofos demonstram, especialmente os
católicos, louvam-Te como omnipotente, imenso, omnipresente, verdadeiro,
justo e misericordioso, providente para todas as criaturas e especialmente
para as inteligentes. Mas destes atributos falarei num outro tratado no qual
serão expostos os objectos da fé (credibilia) aos quais é dado o assentimento
da razão e que, todavia, são, para os católicos, tanto mais certos quanto se
baseiam, não no nosso intelecto míope e vacilante, mas na tua solidíssima
verdade" (4, n. 37). É aqui evidente o contraste entre a verdade racional da
metafísica, que é própria da razão

123

humana e, por consequência, válida para todos os homens, e a verdade da fé, à


qual a razão pede somente "submeter-se" e que tem uma certeza solidíssima
**ii),ticamente para os católicos. E, com efeito, a fé nada tom que ver com a
ciência, segundo Escoto: ela pertence inteiramente ao domínio prático. "A
fé não é um hábito especulativo, nem o crer é um acto especulativo, nem a
visão que se segue ao crer é uma visão especulativa, mas sim prática" (Op.
ov., prol., q. 3).

Tudo o que transcende os limites da razão humana já não é ciência, mas acção
ou conhecimento prático: refere-se, não à ciência, mas ao fim a que o
homem deve tender, aos meios para o alcançar ou às normas que, em vista
dele, se

,seguem. Porque foi a revelação necessária aos homens? Porque, responde


Escoto, o homem, com a razão natural, não pode dar-se conta do fim a

que foi destinado, nem dos meios para o conseguir. Que o homem esteja
destinado à visão e ao gozo de Deus, é coisa que não pode saber senão através
da revelação (Op. ox., prol., q. 1, n. 7). E porque não pode sabê-lo através
da razão natural? Porque não existe uma conexão necessária entre o fira
sobrenatural do homem e a natureza humana, tal como ela é nesta vida (lb.,
prol. q. 1, n. 11). Evidentemente, trata-se de um fim de Deus quis atribuir
livremente ao homem, que não se conecta necessariamente com a natureza do
homem e por -isso não pode ser demonstrado como sendo próprio dessa natureza,
enquanto que a demonstração suporia tal necessidade. Os limites que Escoto,
descobre no conhecimento humano não são acidentais para o próprio
conhecimento, mas sim constitutivos.
O homem não pode conhecer demonstrativamente aquilo que Deus decidiu em
virtude do seu livre arbítrio, e que, portanto, não possui vestígio algum
daquela necessidade- que torna possível o conhe-

124

cimento demonstrativo. O princípio que move toda a crítica de Escoto é o que


ele exprime a propósito da impossibilidade de demonstrar que os nossos actos
meritórios sejam seguidos poT um prémio divino. Isto é impossível de se
saber, porque o acto remunerador de Deus é livre. "Isto não é cognoscível
naturalmente, diz ele, e daqui resulta que erram os filósofos que afirmam que
tudo o que deriva imediatamente de Deus, dele deriva dum modo necessário"
(1b., prol., q. 1, n. 8).

Daqui procedem a separação e a antítese entre o teorético e o prático, as


quais dominam todo o pensamento de Duns Escoto. O teorético é o domínio da
necessidade, e, portanto, o da demonstração racional e da ciência. O prático
é o domínio da liberdade, e, portanto, da impossibilidade de toda a
demonstração, e da fé. A metafísica é a ciência teorética por excelência, a
teologia é por excelência a ciência prática. O objecto da teologia, de
facto, não é afugentar a ignorância, mas persuadir o homem a agir para a sua
própria salvação. Por outras palavras, o seu fim não é contemplativo, mas
educativo. Ela repete frequentemente os seus ensinamentos, a fim de que o
homem seja mais facilmente induzido a praticá-los (lb., prol., q. 4, n. 42).
Se por conhecimento prático se entende o conhecimento que precede e
condiciona necessariamente a volição recta, toda a teologia deve ser
reconhecida como sendo conhecimento prático, porque condiciona e
determina a vontade e a acção recta do homem. Mesmo aquelas verdades que
aparentemente se não referem à acção, como por exemplo, "Deus é trino" e "o
Pai gera o Filho", são, na realidade, práticas. Com efeito, a primeira inclui
virtualmente o conhecimento do recto amor que o homem deve a Deus, amor que
deve dirigir-se às três pessoas divinas, e se se dirigisse a uma só dessas
pessoas excluindo as outras (como
125

acontece precisamente com os infiéis) deixaria de ser o recto amor de Deus. A


segunda afirmação inclui o conhecimento da regra pela qual o amor do homem
deve dirigir-se ao Pai e ao Filho, segundo a relação que ela precisamente
determina entro eles (lb., prol., q. 4, n. 3 1).

Pelo seu carácter prático, a teologia não pode denominar-se uma ciência
em sentido próprio: com efeito, os seus princípios não dependem da
evidência do seu objecto (1b., 111, d. 24, q. 1, n. 13). Mas querendo
considerá-la como ciência, é necessário atribuir-lhe um lugar
especial, dado que ela não se subordina a nenhuma outra ciência e não
subordina a si mesma nenhuma outra ciência. Ainda que o seu objecto possa, de
certo modo, ser incluído no objecto da metafísica, ela não recebe os seus
princípios da metafísica, porque nenhuma proposição teológica é demonstrável
mediante os princípios do ser enquanto tal (objecto da metafísica), ou
mediante qualquer razão derivada da natureza do ser enquanto tal. Por outro
Ia-do, ela não subordina a si nenhuma outra ciência, porque nenhuma outra
ciência dela recebe os seus princípios. "Qualquer outra ciência, que pertença
ao conhecimento natural, tem o seu último fundamento em princípios imediata e
naturalmente evidentes" (Rep. par., prol., q. 3 n. 4).

Frente ao carácter prático da teologia, que é ciência só impropriamente e no


sentido especificado, está o carácter teorético da metafísica, que é ciência
no sentido mais alto. "São, por excelência, objecto de ciência, quer as
coisas que se conhecem antes de todas as outras e sem as quais as outras não
podem ser conhecidas, quer as que se conhecem com a máxima certeza. O objecto
da metafísica possui no máximo grau este duplo carácter: portanto, a
metafísica é ciência no máximo grau" (Quaest. in Met., prol., n. 5; Op. ox.,
1, d. 3, n. 25).

126

Duns Escoto acolhe de Aristóteles. e dos seus intérpretes muçulmanos o ideal


de uma ciência necessária, inteiramente constituída por princípios evidentes
e por demonstrações racionais. Mas é ele o primeiro a servir-se deste ideal
para restringir e limitar o domínio do conhecimento humano. O seu alto
conceito da ciência alia-se nele ao reconhecimento dos limites rigorosos da
ciência humana. O que não é demonstrável não é necessário mas sim
contingente, logo, arbitrário ou prático. Posto que o único domínio do
contingente é a acção, tudo o que não é necessário ou é termo ou produto da
acção humana ou divina, ou é regra de acção, isto é, fé. Em Duns Escoto não
existe verdadeiramente uma atitude de cepticismo ou de agnosticismo. Não
concebe que o conhecimento humano poderia estender-se para além dos limites
até aos quais efectivamente se estende. Tudo o que está para lá do
conhecimento humano carece, na verdade, de necessidade intrínseca, sendo pois
indemonstrável em si e absolutamente. Não há em Escoto nenhuma renúncia ao
conhecimento, e mais, ü seu ideal cognoscitivo permanece solidamente
estabelecido perante ele. Todavia, uma vez admitida a doutrina segundo a qual
tudo o que não é demonstrável racionalmente é um puro objecto de fé, isto é
uma regra prática sem fundamento necessário, deveria aparecer como quimérica
a investigação escolástica, a qual desde há séculos renovava a sua tentativa
de reduzir as verdades da fé a um todo compacto de doutrina lógica. Os
Theoremata apresentam um impressionante conjunto de proposições
indemonstráveis que, como tal, ficam a fazer parte do domínio prático da fé.
Não se pode demonstrar que Deus vive (Theor., XIV, n. 1); que é sapiente ou
inteligente (lb., n. 2); que é dotado de vontade (fb., n. 3); que é a
primeira causa eficiente (1b., XV); que é necessário para a conservação da
natureza

127

criada (lb., XVI, ri. 5); que coopera com as criaturas na sua actividade
(1b., ri. 6); que é imutável e imóvel (1b., ri. 11, 13); que carece de,
magnitude e de acidentes (lb., ri. 14-16); que é infinito no sentido da
potência (1b., ri. 17). Escoto considera impossível demonstrar todos os
atributos de Deus, e também, como veremos, a imortalidade da alma humana.
Deste modo, a certeza destas proposições converte-se em certeza prática, isto
é, baseada exclusivamente na sua livro aceitação por parte do homem. O ideal
aristotélico da ciência demonstrativa conduz aqui à expulsão definitiva para
fora do âmbito de investigação filosófica de fundamentos básicos da religião
católica. A escolástica encaminha-se para esvaziar de qualquer conteúdo o seu
próprio problema.

§ 305. JOÃO DUNS ESCOTO: CONHECIMENTO INTUITIVO E DOUTRINA DA SUBSTâNCIA

A doutrina do conhecimento de Duns Escoto é fundamentalmente de inspiração


aristotélica. Nela domina o conceito aristotélico de abstracção, e mais, a
abstracção converte-se numa forma fundamental do conhecimento, no próprio
conhecimento científico. Tal é o significado da distinção entre conhecimento
intuitivo e conhecimento abstractivo. "Pode haver, diz Escoto (Op. ox., II,
d. 3, q. 9, ri. 6), um conhecimento do objecto, que abstrai da sua existência
actual, e pode haver um conhecimento do objecto enquanto existe e enquanto
está presente na sua existência actual". A ciência abstrai da existência
actual do seu objecto, sem o que existiria ou não, conforme a existência ou
não existência do seu objecto, com o que não seria perpétua mas seguiria o
nascimento e a morte desse objecto. Por outro lado, se o sentido conhece o
objecto na sua

128

DUNS ESCOTO

existência actual, também do mesmo modo o deve conhecer o intelecto, que é


uma potência cognoscitiva mais elevada. Escoto chama abstractivo ao primeiro
conhecimento, porque abstrai da existência ou não existência actual do
objecto; chama intuitivo ao

segundo, enquanto nos coloca directamente na presença do objecto existente e


no-lo faz ver tal como ele é em si próprio. "Intuitivo" não se opõe a
"discursivo", não significa a imediatês. do conhecimento em oposição ao
procedimento indirecto da razão, designa, sim, a presencialidade do objecto
que se tem no acto de ver (intueri).

Duns Escoto serviu-se assim do conceito aristotélico de abstracção para


determinar os dois graus fundamentais do conhecimento, independentemente da
distinção tradicional de sensibilidade e razão. O conhecimento abstractivo é
o conhecimento do universal, e é próprio da ciência. O conhecimento
intuitivo, que não é somente próprio da sensibilidade Pias também pertence ao
intelecto, é o conhecimento da existência como tal, da realidade, enquanto
ser ou presença actual. Trata-se de duas formas ou graus de conhecimento que
não correspondem a dois órgãos ou faculdades diferentes (tal como a
sensibilidade e o intelecto), porque podem ser e são de um só órgão,
precisamente o intelecto. Com efeito, é evidente que aos sentidos é dado o
conhecimento intuitivo, mas não o abstractivo; enquanto que ao intelecto
pertencem tanto um como outro.

Ora é sobre, a dupla função intuitiva do conhecimento intelectual que se


baseia toda a metafísica de Duns Escoto. É esta a parte mais subtil e
original de todo o sistema escotista, e consiste essencialmente na
interpretação da teoria aristotélica da substância. A substância
aristotélica, como causa ou princípio do ser enquanto ser, é também o
fundamento de toda a inteligibilidade e de toda a realidade. Ela é,
simultaneamente, a essência do ser e

129

o ser da essência, a natureza racional da realidade e a sua existência


necessária (§ 73). Escoto refere-se explicitamente a esta doutrina, através
da interpretação de Avicena (Op. ox., 11, d. 3, q. 1, n. 7). Posto que na
realidade externa só existem coisas individuais, e que o universal só
subsiste como tal no intelecto, Escoto preocupa-se em encontrar o fundamento
comum da individualidade das coisas externas e da universalidade das coisas
pensadas, reconhecendo este fundamento comum numa quididade ou substância, de
tipo aristotélico. Com efeito, embora na realidade externa só existam coisas
individuais, deve no entanto haver uma substância ou natureza comum dessas
coisas individuais. Em qualquer género dado, existe uma unidade primeira que
serve de medida de todas as coisas que pertencem a esse género. Tal unidade é
uma unidade real porque é medida de coisas reais, mas não é uma unidade
numérica porque não se acrescenta ao número dos indivíduos, que compõem o
género. Por exemplo, a natureza humana é a medida e o fundamento de todos os
indivíduos que pertencem ao género homem e constituem a sua unidade; mas não
é uma unidade numérica, pois se o fosse acrescentar-se-ia, como outra
realidade individual, ao número dos indivíduos humanos. Esta unidade não
numérica, ou, como ele diz, menor que a unidade numérica, é a qualidade - o
quod quid erat esse ou a essência substancial de Aristóteles, isto é, a
natureza comum.

A substância ou natureza comum é simultaneamente o fundamento da realidade


dos indivíduos o da universalidade do conceito. Pela sua parte, não é,
portanto, nem individual nem universal, ou melhor, é, por si mesma,
indiferente à individualidade e à universalidade. "Ela, diz Escoto (Op. ox.,
11, d. 3, q. 1, n. 7), não é, por si mesma, una com uma unidade numérica, nem
múltipla com uma

130

multiplicidade oposta a essa unidade; não é universal em acto, tal como o


universal o é no intelecto; nem é, em si, particular. Embora nunca exista
realmente sem alguma destas determinações, não é todavia nenhuma delas, mas
precede-as naturalmente a todas, e, por esta sua prioridade natural, é o quod
quid est [a substância no sentido aristotélico é, por si mesma, objecto do
intelecto e, por si mesma, é considerada pelo metafísico e expressa pela
definição". Esta natureza comum não só é, por si mesma, indiferente
à universalidade que recebe no intelecto e à singularidade que recebe na
realidade, mas o seu próprio ser no intelecto não tem originariamente um
carácter universal. A universalidade é-lhe acrescentada como primeira
determinação, enquanto é objecto; na realidade externa, do mesmo modo, é-lhe
acrescentada a singularidade que faz dela uma realidade individual, se bem
que, por si mesma, seja anterior à determinação que a contrai a um indivíduo
singular. Pela sua igual indiferença à universalidade e à singularidade, não
repugna nem a uma nem a outra, pode adquirir, como objecto, do intelecto,
aquela universalidade que dela faz uma realidade inteligível, e como
realidade física, aquela individualidade que dela faz uma realidade externa à
alma (1b.; Rep. par., 11, d. 12, q. 6, ri. 11). Ora esta natureza comum, que
é fundamento de toda a realidade, quer no intelecto quer fora do intelecto, é
objecto do conhecimento intuitivo. Revela-se aqui a função que Escoto atribui
a esta forma de conhecimento. Dado que o conhecimento intelectual abstractivo
é evidentemente o do universal, e dado que a natureza comum é anterior tanto
à universalidade como à singularidade que é percebida pelo sentido, não
haveria qualquer possibilidade de a conhecer se o intelecto não tivesse a
função intuitiva que o faz perceber na sua realidade a substância última das
coisas (Op. ox., III, d. 14, q. 3, n. 4).

131

Reconhecendo assim na natureza comum e na sua unidade, "menor que a unidade


numério-a", a substância metafísica do universo, a estrutura última comum ao
mundo sensível e ao mundo inteligível, Escoto propõe-se o problema de ver
como ela dá precisamente lugar por um lado, à universalidade que é objecto do
intelecto, e, por outro, à singularidade que é o carácter das coisas
existentes. Ou seja, encontra-se, por um lado, perante o problema da
individuação, por outro lado, perante o problema da universalização. No que
se -refere ao princípio da individuação, Escoto nega que ele consista na
matéria ou na forma. A matéria é o fundamento indistinto e indeterminado da
realidade: não pode, portanto, ser o princípio da distinção e da diversidade
(1b., 11, d. 3, q. 5, n. 1). Também a forma o não pode ser, dado que ela, na
realidade, é precisamente a substância ou natureza comum que precede tanto a
universalidade como a singularidade, sendo, por isso, indiferente a uma e a
outra. A individualidade consiste, segundo Escoto, numa "última realidade do
ente", a qual determina e contrai a natureza comum à individualidade, ad esse
hane rem. Esta última realidade do ente, este princípio contractor e
limitativo, que restringe e define a natureza como indiferente nos limites de
um indivíduo determinado, foi denominado por Escoto, ou por algum dos seus
discípulos imediatos, haecceitas. Este termo, que não se encontra no Opus
oxoniense, aparece, pelo contrário, nos Reportata parisiensia (11, d. 12, q.
5, n. 1, 8, 13, 14). Indica a determinação última e completa da matéria, da
forma e do seu composto. Esta determinação é uma determinação real, a qual se
acrescenta realmente à substância que constitui a natureza comum de todos os
indivíduos, mas não é uma realidade dela diferente numericamente. A
natureza comum e a haec-

132

ceitas não são duas realidades, duas coisas numericamente dislintas, embora
sejam realmente distintas. Escoto introduz aqui um tipo de distinção que
exclui a separação e a diversidade numérica dos termos distintos, se bem que
não seja uma pura distinção de razão mas sim uma distinção real. Tal é a
distinção formal, que ele considera existir a natureza e a entidade de um
ente qualquer: entendendo por natureza a substância comum indiferente, e por
entidade a completa realização do indivíduo com tal (Op. ox., 11, d. 3, q. 6,
n. 15). Esta solução do problema da indivIduação implica o reconhecer ao
indivíduo um valor metafísico que a tradição escolástica nunca lhe atribuíra.
A individualidade é a última perfeição da substância metafísica; constitui a
completude de tal substância, a sua actualidade plena.

O outro problema fundamental da metafísica de Escoto é o que se refere à


universalização da substância comum no intelecto. Esta universalização
realiza-se por meio da espécie inteligível. A espécie é necessariamente
exigida pelo conhecimento intelectual, dado que é objecto de tal conhecimento.
De facto, se a imagem (phantasma) é o objecto do conhecimento sensível e
representa a realidade sob o aspecto da singularidade, é necessário que o
conhecimento intelectual tenha um objecto diferente, que representa a
realidade sob o aspecto da universalidade: tal objecto é a espécie. Ora a
espécie não é criada pelo intelecto, ainda que a actividade do intelecto seja
a única causa do conhecimento. A espécie é, por sua natureza e não por obra
do intelecto, o objecto adequado desse mesmo intelecto; o qual é portanto,
nos seus confrontos, não só activo mas também receptivo. O intelecto e a
espécie concorrem conjuntamente no determinar do conhecimento, tal como o pai
e a mãe na geração da prole (Ib., 1, d, 3, q- 7, n. 2, 3, 20). O primeiro

133

conhecimento confuso do intelecto é o da espécie especialíssima, isto é, da


espécie menos universal e mais individualizada, o portanto, a mais próxima da
imagem sensível. Mas o primeiro conhecimento distinto do intelecto é, pelo
contrário, o mais universal, o do ser, Este conceito está incluído em todos
os outros conceitos mais restritos: portanto, todos os outros o pressupõem e
não podem ser concebidos distintamente (,isto é, definidos) se neles não
estiver distintamente compreendido o conceito de ser. A metafísica, que,
precisamente tem por objecto este conceito, é pressuposta por todas as outras
ciências, e condiciona. e possibilita os princípios sobre os quais elas se
baseiam (Ib., 1, d. 3, q. 2, n. 22-25).

§ 306. JOÃO DUNS ESCOTO: O SER E DEUS

Os pontos fundamentais da doutrina de Escoto de que já tratámos são


resultados duma investigação que se esforça por se manter fiel ao espírito do
aristotelismo. Como Aristóteles, Escoto situou a metafísica acima de todas
as ciências, como condição e fundamento de todas elas. Como Aristóteles,
entendeu a metafísica como sendo a ciência do ser enquanto ser. Como
Aristóteles, explicitou-a como uma teoria da substância, a qual só pode
entender-se em referência à exposição clássica do livro VII da Metafísica. A
sua teoria do universal é, na realidade, a teoria da substância como pura
estrutura ontológica, fundamento, simultaneamente, da universalidade lógica e
da individualidade natural.

A fidelidade ao espírito do aristotelismo conduz Escoto a um outro dos traços


característicos da sua doutrina: a afirmação da univocidade do ser em
oposição polémica a S. Tomás. O conceito de ser, que é o objecto próprio da
metafísica, é, Como vimos, o conceito primeiro e fundamental. Está

134

para além de todas as categorias e de todas as determinações genéricas, isto


é, não entra em nenhuma categoria nem em nenhum género; como tal, é
transcendente (Op. ox., 11, d. 1, q- 4, n. 26). A noção de ser é comum a
todas as coisas existentes, comum, portanto, à criatura e a Deus. É unívoca,
não análoga; e Escoto detém-se a mostrar as consequências impossíveis
derivadas da admissão da analogicidade. O seu argumento fundamental é que, se
não se admite um significado de ser que seja comum a Deus e às criaturas, -
torna-se impossível conhecer algo de Deus e determinar qualquer um dos seus
atributos partindo das criaturas por via causaL Com efeito, assim como nada
se poderia conhecer da substância, que é por nós unicamente conhecida através
dos seus acidentes sensíveis, se não houvesse um conceito comum à substância e
a esses acidentes, o qual é, precisamente, o conceito de ser; também nada se
poderia conhecer de Deus se não houvesse um conceito comum a Deus e à
criatura: e também aqui tal conceito não pode ser senão o de ser (1b., 1, d.
3, q. 3, ri. 9). Não se poderia, por exemplo, ascender da sapiência que nós
aprendemos nas criaturas até à sapiência de Deus, porque esta nada teria em
comum com aquela; e valeria o mesmo afirmar que Deus é uma pedra, porque
entre a pedra criada e a predicada a Deus não haveria relação menor do que há
entre a sapiência divina (1b., 1, d. 3, q. 2, n. 10). Ã analogia de
proporcionalidade, afirmada por S. Tomás, objecta Escoto que ela confirma
precisamente a impossibilidade de afirmar analogicamente qualquer um dos
atributos de Deus partindo das criaturas; já que, em virtude dela se não pode
afirmar que Deus possua aquela perfeição que se encontra nas criaturas, mas
unicamente que é a causa dessa perfeição. Ora, que Deus seja a causa de uma
perfeição criada não implica que Deus tenha um atributo

135

semelhante a essa perfeição, a não ser que se aDmita uma semelhança entre o
atributo divino e a perfeição criada semelhança que só se pode justificar
admitindo um conceito comum a Deus e às criaturas, conceito a que certamente
se não pode chegar ascendendo por via causal das criaturas até Deus (lb., 1,
d. 8, q. 3, n. 10). Por outro lado, que o ser deva atribuir-se univocamente a
Deus e às criaturas, não exclui a sua diversidade. Deus e as criaturas
diferem nas suas respectivas realidades. as quais nada têm em comum (Ib., I,
d. 8, q. 3, n. 11).

Considera Escoto que o principio da univocidade do ser oferece ao homem uma


via para demonstrar a existência de Deus. Permite-nos em primeiro lugar,
descobrir a impossibilidade da prova ontológica, tal como S. Anselmo a expôs.
Se a proposição "Deus existe" se entende como unidade do ser e da essência
divina, é certamente necessário considerá-la como evidente dado que se limita
a reconhecer a Deus o ser em geral, sem determinar a realidade de tal ser.
Se, pelo contrário, fazemos questão da realidade própria de Deus, do ser que
lhe compete enquanto o pensamos mediante um conceito próprio, isto é, não
comum a ele e às criaturas, como, por exemplo, o de Ser necessário, de Ser
infinito ou de Sumo bem, não poderemos então resolver a questão a não ser
mediante uma demonstração a posteriori. Posto que os conceitos que determinam
a realidade própria de Deus não são simples, mas resultam por sua vez de
outros conceitos, a sua união para formar o conceito de Deus deve ser
justificada com uma demonstração, a qual deve proceder, como todo o nosso
conhecimento, dos efeitos para as causas (Op. ox., 1, d.
2, q. 2, n. 4, 5, 10). Por outras palavras, só se pode reconhecer, a priori a
Deus o ser em geral, o predicado ontológico que é comum a ele e às criaturas;
mas a realidade determinada que lhe com-

136

pete em virtude de um conceito próprio que o homem dele forma, somente deve
e pode ser demonstrada partindo da experiência. A priori, sabemos que, de um
modo qualquer, Deus existe, mas que ele seja o Sumo Bem ou o Ser necessário
ou infinito, só o podemos saber em virtude, de uma demonstração causal.

De tal natureza são, com efeito, as provas que Escoto apresenta para a
existência de Deus. Dado que o que há de produtível no mundo teve de ser
produzido por uma causa, e dado que não se pode ir até ao infinito na cadeia
das causas, temos de chegar a uma causa primeira ou, como diz Escoto, a uma
primaridade necessária, incausável e existente em acto. Esta prova é obtida
considerando a causa eficiente; é obtida uma outra considerando a causa
final. Existe um fim absoluto, que é absolutamente primeiro, isto é, não
subordinado a nenhum outro fim-, e também este fim absoluto é incausável e
actual. Finalmente, e eis uma terceira prova, deve existir uma natureza
eminente, primeira pela sua perfeição absoluta, e também ela deve ser
incausável e actual. Existem, portanto, três primazias, as quais são
inseparáveis e não podem encontrar-se senão numa única natureza, já que o ser
absoluta- mente primeiro não pode ser senão um (lb., 1, d.
2, q. 2, n. 11, 17; De primo princ., 3, 9, 11). As três primazias exprimem os
três aspectos da suma bondade que, necessariamente, coincidem: a suprema
comunicabilidade, a suprema amabilidade e a suprema perfeição.

De entre os conceitos que se podem ter de Deus, um só, segundo Escoto,


exprime a sua natureza intrínseca: é o de infinito. Com efeito, este
conceito é mais simples que o de bem ou outro qualquer semelhante,
dado que o infinito não é um atributo ou uma determinação do ser, mas sim,
um seu modo intrínseco e não acidental Se dizemos que

137

Deus é sumo, damos-lhe uma determinação que lhe compete em relação às coisas
que são diferentes dele; é sumo entre todas as coisas existentes. Mas se
dizemos que é sumo na sua natureza intrínseca, então isto não significa senão
que é infinito, isto é, que transcende todo o grau possível de perfeição (Op.
ox., 1, d. 2, q. 2, n. 17).

A infinitude divina leva ao limite todos os atributos de Deus, mas não os


identifica na unidade da sua essência. Escoto afasta-se da doutrina dominante
na escolástica, segundo a qual os atributos de Deus seriam na sua
multiplicidade incompatíveis com a simplicidade da essência divina, e, por
isso, se identificariam imediatamente com tal essência. Ele admite entre os
atributos divinos aquela distinção formal que é característica da sua
doutrina, a qual já vimos interceder entre a natureza comum e a entidade
individual. "As perfeições divinas, diz ele, distinguem-se ex parte rei, não
realmente, mas formalmente". Entre elas não há somente uma distinção de
razão, como haveria se só fossem modos diferentes de definIr e conceber a
única essência divina, nem há uma distinção real, como haveria s-, fossem
realidades numericamente, distintas e separadas. Há uma distinção formal, no
sentido em que uma é diferente da outra dado que tem uma natureza ou uma
essência diversa, diversamente definível. Com efeito, isto implica a
distinção formal: a diversidade das definições que exprimem as essências ou
quididades respectivas dos termos distintos. Ora se nas coisas erradas a
definição da bondade é diferente da da sapiência, também o será na essência
infinita de Deus. A infinidade que caracteriza uma perfeição divina aumenta o
seu grau para além de todo o limite, mas não modifica a sua natureza.
Portanto, as perfeições continuam a ser também em Deus formalmente diferentes
uma da

138

outra: a ratio formalis de cada uma delas é diferente da das outras (1b., 1,
d. 8, q. 4, ri. 17).

Deus é inteligência e vontade, e a inteligência e a vontade são idênticas à


sua essência. Como inteligência, conhece não só a sua essência mas também, e
em virtude da própria essência, as coisas criadas. Mas ao contrário do
intelecto humano, que tem necessidade da espécie para entender as coisas, as
quais não podem ser-lhe presentes na sua realidade, o intelecto divino não
necessita de intermediários: é-lhe presente a própria realidade e o seu
objecto é a realidade conhecida. "0 mundo inteligível não é senão o mundo
externo enquanto existe representativamente (obiective) como mundo conhecido
na mente divina: a ideia do mundo real não é senão o mundo inteligível, isto
é, o mundo no seu ser conhecido" (Rep. Par., 1, d. 36, q. 2, ri. 31). Quanto
à vontade divina, é ela o verdadeiro fundamento da essência divina. É
verdadeiramente causa primeira e absoluta, pois que não há motivo que a
preceda e possa de alguma maneira determiná-la. "Não existe causa alguma pela
qual a vontade divina queira isto ou aquilo, mas a vontade é a vontade e
nenhuma causa a precede" (Op. ox., 1, d. 8, q. 5, ri. 24).

Está aqui verdadeiramente expresso o princípio do chamado voluntarismo de


Duns Escoto. A vontade é o princípio da contingência absoluta, escapa a
qualquer necessidade e é a única causa de si própria. Explica-se assim que a
atribuição de qualquer elemento ao domínio prático da vontade signifique a
negação da sua necessidade, isto é, da sua demonstrabilidade racional.
Explica-se também como toda a intervenção directa de Deus na constituição do
mundo deva ser considerada por Escoto como indemonstrável, enquanto está
excluída da ordem racional do próprio mundo. É este o motivo pelo

139

qual Escoto considera que a omnipotência de Deus é indemonstrável e constitui


um puro artigo de fé. Que Deus actue como causa primeira através da acção das
causas segundas, é uma verdade demonstrável, pela qual se pode mesmo chegar
(como já vimos) à própria existência de Deus. Mas que Deus produza
imediatamente, isto é, prescindindo de qualquer causa intermediária, qualquer
coisa que não seja em si necessária ou não inclua contradição, tal afirmação
é uma afirmação que não pode ser demonstrada, mas somente acreditada (lb., 1,
d. 42, q. 1). A vontade de Deus é absolutamente livre, se bem que a liberdade
divina se não entenda, como a humana, como a possibilidade simultânea de
actos opostos, já que esta possibilidade implica uma imperfeição que não pode
ser atribuída a Deus (lb., 1, d. 39, q. 5, n. 21). A liberdade de Deus
consiste somente na sua capacidade de querer um número infinito de objectos
diversos. Esta capacidade não implica nele nenhuma mutabilidade. Deus pode
estabelecer que a coisa por ele querida se efectue neste ou naquele momento
do tempo, sem que o seu querer perca a sua eternidade e imutabilidade. A
novidade do mundo não é, pois, excluída (como sustentavam os filósofos
árabes) pela eternidade do querer divino. Quanto ao início do mundo no tempo,
Escoto considera que a questão, sob o ponto de vista da razão, deve ser
deixada indecisa (lb., II, d. 1, q. 3).

§ 307. JOÃO DUNS ESCOTO: O HOMEM

Que a alma intelectiva seja a forma substancial do corpo é, segundo Escoto,


uma verdade demonstrável. O homem, enquanto tal, pensa; e o seu pensamento
não pode ser reportado a um órgão corporal, porque transcende o domínio dos
objectos sensíveis e dirige-se ao universal e ao supra-sensível.

140

O sujeito do pensamento deve, portanto, ser a alma; e se o homem é tal pelo


pensamento, a alma, que é o órgão do pensamento, é a substância ou a forma
do homem (Op. ox., IV, d. 43, q. 2). Mas alma intelectiva não é a única forma
do homem: há nele uma outra forma substancial, a do corpo enquanto corpo. É a
forma corporeitatis ou forma misti, que é própria do corpo como tal,
anteriormente à sua união com a alma e, que o predispõe a tal união. Esta
realidade que o corpo humano possui como corpo orgânico, independentemente da
sua união com a alma, é a forma de corporeidade do próprio corpo (lb., IV, d.
11, q. 3; Rep. par., IV, d. 11, q. 3).

A doutrina da forma de coMoreidade é um corolário da doutrina da actualidade


da matéria, que Escoto tem em comum com a tradição franciscana. A matéria,
independentemente da forma, tem uma realidade sua, pela qual se distingue do
nada; ela é, portanto, em wto, não enquanto o acto se opõe à passividade (já
que, segundo Aristóteles, a matéria é sempre passividade ou potência) mas
enquanto o acto se opõe ao não ser (Op. ox., 11, d. 12, q. 1, n. 16). Esta
doutrina da actualidade da matéria encontra-se desenvolvida de modo
característico no De rerum princípio, e se bem que tais desenvolvimentos não
possam ser atribuídos a Escoto, dada a impossibilidade de, com certeza, lhe
atribuir esta obra, eles revelam todavia um aspecto historicamente notável da
corrente escotista. São distinguidos naquela obra três significados da
matéria. A matéria primo prima é a mais indeterminada e, portanto, a menos
actual, já que é privada de qualquer forma substancial ou acidental. A
matéria secundo Prima é o substrato da geração e da corrupção e é já provida
de alguma forma substancial e da quantidade. A matéria tercio prima é a
matéria sobre a qual agem as forças naturais e da qual o

141

Próprio homem se serve nas suas produções artificiais. A distinção destas


três matérias não anula a unidade da matéria. O De rerum principio admite
explicitamente a doutrina de Avicebrão da unidade da matéria, quer a das
coisas corporais quer a das espirituais (De rer. princ., q. 8, a. 3-4).

De qualquer maneira, a matéria nada tem que ver com a individualidade da


alma. A alma tem a sua singularidade independentemente, e antes da sua união
com a matéria. Evidentemente, a sua singularidade é, como a de qualquer outra
coisa, a sua entidade última, a haecceítas (Quod1., q. 2, n. 5). É aqui mais
uma vez refutado o princípio de individuação tomista como materia signata.

A partir da natureza da alma não se pode deduzi-r ou demonstrar a sua


imortalidade. Não são concludentes as razões que foram aduzidas em defesa da
sua -imortalidade. Aristóteles não teria podido admitir a imortalidade sem
destruir todos os seus princípios, já que ele considera que em todo o
composto o ser do todo é diferente do ser das partes que o compõem (a matéria
e a forma). Mas se a alma permanecesse após o corpo, não seria só forma,
isto é, parte do homem, mas todo o homem, o que é contrário à sua explícita
afirmação (Rep. par., IV, d. 43, q. 2, n. 13). Não se pode dizer que a alma,
como forma, tenha o ser por sã, e seja, portanto, indestrutível; já que ela
não tem o ser por si no sentido de subsistir por sua conta e de, a nenhum
título, poder ser separada do ser: isto quereria dizer que nem Deus a poderia
criar ou destruir, o que é falso (1b., IV, d. 43, q. 2, n. 18-19). Esta
relação intrínseca entre o ser e a alma, afirmada pela primeira vez por
Platão e da qual também S. Tomás se servira para demonstrar a imortalidade,
é assim negada por Escoto e reduzida a pura matéria de fé (Op. ox., IV, d.
43, q. 2, n. 23). Ainda menos concludentes são as razões

142

extraídas da vida moral: a aspiração da alma à beatitude, eterna e a uma


justiça que remunere o bem e o mal. Já que, ao menos, deveríamos conhecer,
por meio da razão natural, que a beatitude eterna seja o fim conveniente à
nossa natureza, o que não acontece; e quanto à necessidade de um prémio ou de
um castigo, pode dizer-se que cada um encontra a sua suficiente remuneração
na sua própria boa acção, e que a primeira pena do pecado é o próprio pecado
(1b., IV, d. 43, q. 2, n. 27, 32). A imortalidade, da alma é, portanto, uma
pura verdade de fé, não susceptível de tratamento demonstrativo.

Escoto afirma com muita energia a liberdade da vontade humana. "A vontade,
enquanto acto primeiro, é livre para actos opostos; é também livre de tender,
mediante tais actos opostos, para objectos opostos, e, além disso, é livre de
produzir efeitos opostos" (1b., I, d. 39, q. 5, n. 15). Esta liberdade é
condicionada essencialmente pelo facto de que a vontade não tem outra causa
senão ela própria, já que é o único princípio de tudo o que acontece de uma
maneira contingente, isto é, não necessariamente (lb., 11, d. 25, q. 1, n.
22). No acto voluntário, o intelecto depende da vontade, dado que a vontade
dele se serve como instrumento e o submete às exigências da acção. Contra o
primado do intelecto afirmado por S. Tomás, Duns Escoto afirma, com Henrique
de Gand, o primado da vontade. A bondade do objecto não causa necessariamente
a anuência da vontade, mas a vontade escolhe livremente o bem, e livremente
opta pelo bem maior (1b.,
1, d. 1, q. 4, n. 16). Esta supremacia da vontade confere à vida moral do
homem um carácter de arbitrariedade irremediável.

A única lei moral é para o homem o mandato da vontade divina. "Deus não pode
querer nada que não seja justo, porque a vontade de Deus é a

143

,primeira regra" (lb., IV, d. 46, q. 1, n. 6). Dado que a causa da vontade
divina não é outra senão a própria vontade, Deus poderia agir de outra forma
e estabelecer para o homem uma lei diferente daquela que estabeleceu: em tal
caso, esta última seria a lei justa, dado que nenhuma lei é justa senão
enquanto é aceite pela vontade divina (lb., 1, d. 44, q. 1, n. 2). Trata-se
de consequências inevitáveis do princípio fundamental de que tudo o que é
prático é absolutamente livre e arbitrário. Este princípio, utilizado com
rígida coerência, leva a reduzir o valor da conduta humana à simples
conformidade com a lei estabelecida por Deus, e o valor desta lei ao simples
arbítrio divino.

Porém, é evidente que Escoto deve admitir uma excepção, e uma só, ao
princípio segundo o qual todas as regras de conduta se reduzem a mandamentos
divinos. Esta excepção refere-se à própria regra que impõe o respeito ao
mandamento divino; já que se esta última também só fosse válida em virtude de
um mandamento divino, não haveria para o homem nenhuma vida de acesso natural
à vida moral, e esta consistiria numa obediência ao mandamento divino também
ela prescrita somente por um mandamento divino. E tal é, com efeito, a
posição de Escoto a esse propósito. Começa, porém, por distinguir uma lei de
natureza, evidente naturalmente ao homem do mesmo modo que os princípios
especulativos, e uma lei positiva divina feita valer por um mandamento de
Deus (lb., III, d. 37, q. 1); mas logo restringe o campo da lei natural
distinguindo nela os princípios práticos que resultam evidentes pelos seus
próprios termos ou que são demonstrados necessariamente, daqueles que sendo
conformes a tais princípios, não são evidentes nem necessários; e considera
somente os primeiros como leis naturais em sentido restrito Ub., 111, d.
37, q. 1). Assim restringido, o domínio da lei natural com-
144

preende somente os dois primeiros preceitos da primeira tábua: "Não terás


outro Deus além de mim e "Não pronunciarás o nome de Deus em vão", os quais
são, precisamente, os preceitos sobre os quais se baseia a obediência geral
aos preceitos divinos. A todos os outros preceitos, e embora admita a sua
maior ou menor consonância com a lei da natureza, Escoto nega-lhes a
naturalidade e procura confirmar esta sua negação com base na dispensa que
Deus pode conceder, e concede, em relação a eles, reconhecendo de tal modo
que o homem pode agir rectamente ainda que sem a sua observância (Ib.,
111, d. 37, q. 1). Como só existe um único preceito de lei natural--a
obediência a Deus-também só existe um único acto verdadeiramente bom para o
seu sujeito -o amor a Deus. O amor a Deus é o amor de um objecto desejável
por si mesmo e infinitamente bom, e nunca pode ser moralmente mau; do mesmo
modo, o ódio a Deus é o único acto verdadeiramente mau, e que em nenhuma
circunstância pode ser bom. Qualquer outro acto que se dirija a outro objecto
pode ser bom ou mau conforme as circunstâncias (Rep. par., IV, d. 28, q. 1,
n. 6). O amor a Deus é a condição do amor ao próximo e a si mesmo, e fornece
a regra e a medida de qualquer outro amor (Op. ox., HI, d. 28, q. 1). Ao
amor, responde Deus com a graça, que é o acto com o qual ele aceita o amor e
ama aquele que o ama (lb., 11, d. 27, q. 1, n. 3).

Escoto atribui ao arbítrio divino a própria ordem providencial da salvação.


Contra a justificação tradicional da redenção, concebida como necessária para
retirar o homem do estado de queda para o qual fora precipitado pelo pecado
de Adão, Escoto afirma a contingência da redenção e a perfeita voluntariedade
da encarnação de Cristo. O homem poderia ter sido redimido de um modo
diferente do que mediante a morte de Cristo. Não havia

145

?r, 0 .,

necessidade de que Cristo **reffiraisse o homem com a sua morte, a não ser uma
necessidade condicionada pela sua decisão de o querer redimir daquele modo. A
morte de Cristo foi contingente e devida unicamente a decisão divina (Ib., IV,
d. 15, q. 1, n. 7).

Assim conduziu Escoto com extremo rigor a sua redução da fé ao domínio


prático, isto é, ao contingente e arbitrário. Todavia, esta redução não
implica a seus olhos nenhuma diminuição do valor da fé. O seu carácter
voluntário ainda mais lhe aumenta o mérito. Não pode haver dúvida sobre a
profundidade do espírito religioso, desta estranha figura de franciscano que
professava o ideal aristotélico, de uma ciência rigorosa e simultaneamente
defendia e expunha aquela crença na imaculada concepção de Maria, que a
própria Igreja católica só no século XX viria a reconhecer como dogma.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 303. Todas as obras de Escoto foram publicadas em 1639 em Lyon por Luca
Wadding, autor de anais dos franciscanos. O De primo principio está no
volume 1'11; O Opus exoniense nos vois. V-X; os Reportata parisiensia no vol.
X1; o Quodlibet no vol. XII. Foram feitas edições mais recentes sob a
direcção dos padres franciscanos de Quaracchi: as Quaestiowes disputatae de
imaculata conceptione, Qauracchi, 1904; o De rerum principio, Quaracchi,
1910. Das Opera omnia pubIieadas pela Comissão Escotista sob a presidência de
C. Balic sairam, os primeiros quatro volumes, Roma,
1950 e seguintes.

Sobre a vida. e a obra: LITTLE, The Grey Friars in Oxford, Oxford, 1892, p.
210-222. Sobre a questão da autenticidade das obras: LONGPRÉ, La philosophie
du B. Duns Scot, Paris, 1924, 16-49, 288-291; e em particular sobre os
Theoremata E. GILSON, in "Arch. &Hist. doct. et litt. du Moyen Age", Paris,
1938, p. 5-86; C. BALIC, in "Riv. di Fil. Neo-Scol.>, 1938,

146

p. 235-245. O confronto entre Duns Escoto e Kant é in WILLMANN, Geschichte


des Ideahsmus, vol. 11, 1908, p. 516.

§ 304. Sobre as relações entre ciência e fé: MINGES, in "Forschungen zur


ehristlichen Literatur und Dogmengeschichte", 1908, 4-5; FINKENZELLER, in
"Bleitrãge", XXXVIII, 5, 1961.

§ 305. Sobre a lógica e a teoria do conhecimento: PRANTL, Gesch. der Logik,


111, 202-232; HEIDEGGER, Die Kategorien und BedeutungsIehre des Duns Scotus,
Tübingen, 1916. Esta obra toma em consideração especialmente a Gramática
especulativa que não é autêntica. Sobre o chamado realismo excessivo de Duns
Escoto que é a velha interpretação da sua doutrina baseada em textos
apócrifos: MINGES, in "Beitrãg", VI, 1, 1908.

§ 306. Sobr,- a unIvocidade do ser: MINCES, in "Phil. Jahrbuch", 1907, 306-


323. Sobre a teologia: BELMOND, Êtudes sur Ia philos. de Duns Scotus, Paris,
1913.

§ 307. Sobre o indeterminismo, de Escoto: MINGES, in "]3eitrãge", V, 4, 1905.


Sobre a ética: STOCKMus, Die Unverãnderlichkeit des natürlichen Sittengesetz
in der scho7astischen, Ethik, 1911, 102-135; DITTRICH, Gesch. d. Ethik, 111,
150 ss. Entre as monografias mais recentes: LANDRY, Duns Scot, Paris, 1922,
contra a qual se dirige a obra de LONG~, La philos. du Béat Duns Scot, Paris,
1924, notãvel sobretudo pelo exame da autenticidade das obras escotistas. A
monografia inglesa de HARRIS, Duns Scotus, 2 vols., Oxford,
1927, baseia-se também no De rerum principio, do qual Flarris admite a
autenticidade. Sobre temas fun- )damentais da filosofia escotista, o vasto
eGmentárío de E. GILSON, Jean Duns Scot, Introduction à ses positions
fondamentales, Paris, 1952.

Bibliografia: IlAnRIS, op. cit., IT, p. 313-360; E. BETTONI, VentIanni di


studi scotisti, in "Quaclerni defla R.v. Neo-Scol.", Milão, 1913; SCHAEFER,
Bibl. de vita operibus et doctrina J. D. S., Roma, 1954.

147

XXI

A POLÉMICA TEOLóGICA E POLíTICA NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIV

§ 308. SINAIS PRECURSORES DA DISSOLUÇÃO DA ESCOLÁSTICA

Entre a morte de Duns Escoto e o início da actividade filosófica de Occam


medeiam muito poucos anos. Mas durante esses poucos anos, a consciência dos
**lirutes que a investigação escolástica encontra por todo o lado na sua
tentativa de explicar o dogma católico dá passos gigantescos, reforça-se
aprofunda-se em todos os sentidos. Pela primeira vez, Duns Escoto faz valer o
aristotelismo como norma de uma rigorosa ciência demonstrativa e,
consequentemente, como critério limitativo e negativo da investigação
escolástica. Pela primeira vez, ele afirma a heterogeneidade da teologia em
relação à ciência especulativa e reconhecera o carácter prático, isto é,
arbitrário, de qualquer afirmação dogmático. Desenhava-se assim uma cisão
entre os

149

dois domínios que a escolástica sempre houvera procurado aproximar e fundir


harmonicamente Após Duns Escoto, esta cisão vai-se sempre aprofundando cada
vez mais. Uma série de pensadores dos quais nenhum apresenta uma
personalidade de primeiro plano e que, por isso, mais não fazem do que
exprimir a atmosfera dominante no seu tempo, especifica e descobre novos
motivos de contraste entro a investigação filosófica e as exigências da
explicação dogmática. Pensadores relativamente independentes, como Durand de
Saint-Pourçain e Pedro Auréolo, discípulos de Escoto como Francisco Mayrone
e Tomás Bradwardine, acentuam o carácter arbitrário das afirmações
dogmáticas. O nominalismo, que se desenha nitidamente nos dois primeiros,
vai corroendo as bases da explicação dogmática conduzindo a um reconhecimento
do valor da experiência, o que, com Occam, levará à subversão das posições
tradicionais. A revivescência do averroísmo fará reflorescer a doutrina da
dupla verdade, a qual se converte no estandarte do cepticismo teológico do
período seguinte. Por detrás da aceitação pura e simples da verdade de fé,
esconde-se a desconfiança na tentativa de a entender racionalmente e a
convicção de que a investigação filosófica não deve sequer propor-se a esta
tarefa impossível, mas sim dirigir-se para outras vias. Finalmente, as
discussões jurídicas e políticas da primeira metade deste século, as quais
culminam na obra de Marsílio de Pádua, abrem caminho a um conceito racional e
positivo do direito e do estado.

§ 309. DURAND DE SAINT-POURÇAIN

Durand de Saint-Pourçain (de S. Porciano) denominado Doetor modermis pelos


seus contemporâneos, nasceu entre 1270 e 1275, foi frade domi-

150

nicano, e morreu bispo de Meaux em 10 de Setembro de 1334. Desenvolveu


algumas actividades na corte papal de Avinhão. Participou com uma obra na
disputa sobre a pobreza de Cristo o dos Apóstolos, e fez parto da comissão
que em 1326 censurou os 51 artigos extraídos do Comentário às Sentenças de
Guilherme de Occam. A sua obra principal é o Conzentário às Sentenças, em
cujo prólogo se afirma explicitamente a exigências da liberdade de
investigação filosófica. "0 modo de falar e de escrever em tudo o que se
refere à fé é que nos baseemos na razão, mais do que na autoridade de
qualquer doutor por mais célebre e solene que ele seja, e que se faça pouco
caso de qualquer autoridade humana quando a verdade contra ela surja
por obra da razão". E efectivamente, parece que na sua actividade filosófica
Durand seguiu uma via pessoal e, embora fosse dominicano, não fez muitas
concessões à autoridade de S. Tomás. A esta sua posição independente se devem
talvez as polémicas contra ele dirigidas por Horveus Natalis, João de Nápoles
e, outros tomistas.

No que se !refere à teoria do conhecimento, Durand nega a necessidade da


espécie intermediária tanto para a sensibilidade como para o intelecto.
O próprio objecto está presente aos sentidos e, através deles, também ao
intelecto (In Sent., 11, d. 3, q. 6, n. 10). O objecto real é sempre
individual.
O universal, seja género ou espécie, subsiste unicamente no intelecto.
Compete à coisa só enquanto ela é compreendida pelo intelecto, o qual abstrai
das condições individuantes dela, e não por qualquer elemento pertencente à
substância da própria coisa (lb., 11, d. 3, q. 7, n. 7). O universal o o
individual distinguem-se só racionalmente, mas na realidade são idênticos, já
que o universal não é

151

senão o indeterminado, e o individual o determinado. Pelo seu carácter


indeterininado, o universal é um conhecimento confuso, enquanto que o
conhecimento do individual é distinto. Aquele que tem o conhecimento
universal de uma rosa que não vê, conhece confusamente aquilo que é intuído
distintamente por quem vir a rosa que lhe está presente (1b., IV, d. 49, q.
2, n. 8). Os elementos desta doutrina do universal são tirados de Duns Escoro.
Conhecimento intuitivo, conceito confuso, são noções escotistas; escotista é
também a noção de um conhecimento no qual o próprio objecto está presente no
seu ser objectivo, mas tal conhecimento é atribuído por Escoto não ao homem
mas a Deus (§ 304). A doutrina de Durand assinala uma decisiva orientação no
sentido do nominalismo radical de Occam.

Em polémica com S. Tomás, que definira a verdade como adequação do intelecto


e da coisa, Durand define a verdade como a conformidade do ser apreendido
pelo intelecto com o ser real (1b., 1, d. 19, q. 5, n. 14); e esta
rectificação torna-se necessária dada a sua doutrina fundamental de que no
intelecto não existe a espécie ou forma da coisa,

mas a própria coisa na sua realidade representada.


O mesmo princípio conduz Durand à modificação da doutrina das ideias divinas,
por ele consideradas não como representações das coisas, mas as próprias
coisas enquanto produzidas ou produtíveis, isto é, na causa do seu ser (lb.,
1, d. 36, q. 3). Finalmente, Durand aceita a doutrina escotista de que a
teologia é unicamente uma ciência prática e que, portanto, não é ciência no
sentido restrito do termo, e de que a razão é incapaz de demonstrar a verdade
ou mesmo a possibilidade dos artigos de fé (1b., prol., q. 1, n. 40-48).

152

§ 310. PEDRO AURÉOLO

Na mesma linha de pensamento move-se o Doctor facundus, Pedro Auréolo, que


foi provavelmente aluno de Duns Escoto em Paris. Pertenceu à ordem
franciscana e ensinou em Bolonha, Toulouse e Paris. Em 1321 foi nomeado
arcebispo de Aix e morreu em 1322 na corte papal de Avinhão.

Pedro Auréolo também participou na luta contra os sustentadores da pobreza de


Cristo e dos apóstolos com um Tratactits de paupertate et usu paupere escrito
em 1311. A sua obra principal é um Comentário às Sentenças, no qual defende
uma teoria do conhecimento análoga à de Durand. Critica a doutrina da
espécie, que ele chama forma specularis, aduzindo que se a espécie fosse
objecto do conhecimento, este não se referiria à realidade mas só à imagem
dela, O objecto do conhecimento é a própria coisa externa, que, por obra do
intelecto, assume um ser intencional ou objectivo, o qual não é efectivamente
diferente da própria realidade particular. A rosa que é objecto de definição
e de demonstração, diz ele, não é senão a própria rosa particular constituída
em um ser representado ou intencional, que forma uma única intentio e um
único conceito simples (Dreiling, p. 82, n. 2). O universal, como tal, não
tem a mínima realidade externa. Tudo o que existe é singular e o problema da
individuação é insubsistente (In Sent., 1, 144, in Dreiling, p. 160, n. 1).
O conhecimento tem tanto maIs clareza quanto menos se afasta da realidade
individual: tem maior valor o conhecimento da realidade individuada e
determinada do que o abstracto e universal. E isto porque o fundamento do
conhecimento é a experiência. "É necessário aderir ao caminho da experiência
mais do que às razões lógicas, já que na experiência tem origem a ciência

153

e as noções comuns que constituem os princípios das artes" (1b., 1, 25, in


Dreiffing, p. 196, n. 1), Eis aqui uma decisiva orientação no sentido do
empirismo occamista, a qual também se evidencia na aceitação e no uso do
princípio metodológico da economia, que Occam assumirá: Frustra fit per plura
quod potest fieri per pauciora (1b., 1, 319, in Dreiling, p. 205, n. 5).

Henrique de Harelay foi outro dos sustentadores do esse obiectivum ou


intentionale da realidade conhecida, isto é, do carácter representativo ou
significativo do objecto do conhecimento, o qual não te-ria, portanto, uma
realidade substancial, um subiectum, diferente da realidade da coisa externa.
Henrique de Harelay nasceu cerca de 1270 e morreu em 1317. Foi mestre na
faculdade de teologia de Paris e autor de um Comentário às Sentenças e de
Questões, algumas das quais foram recentemente publicadas. Em alguns
aspectos, como na doutrina das relações, Henrique de Harelay preludia
directamente Guilherme de Occam.

§ 311. A ESCOLA ESCOTISTA

A figura de Duns Escoto bem depressa obscureceu a dos outros mestres


franciscanos, convertendo-se para a ordem franciscana no que S. Tomás era
para a ordem dominicana. Uma numerosa série de discípullos apareceu a
reexpor, explicar e defender polemicamente as doutrinas do mestre,
contribuindo assim para a sua difusão ainda que sem aumentar a sua força e
originalidade especulativa.

Entre estes discípulos os mais notáveis são António Andrea, Doctor


dulcifluus, falecido cerca de 1320 e autor de uma Metafísica textualis que
foi impressa entre as obras de Escoto; e Francisco de Mayarone (na Provença)
cognominado pelos seus
154

contemporâneos Doetor ilIuminatus ou Doctor acutus ou ainda Magister


abstractionum. Este últirno faleceu em Piacenza em 1325 e escreveu numerosas
obras, entre as quais um Comentário às Sentenças, um Comentário à Física
aristotélica, um De primo principio e um Tractatus de formalitatibus. O
Comentário às Sentenças contém a notícia (In Sent.,
11, d. 14, q. 5, fel. 150 a, ed. Venetiís, 1520) de que em 1320 na
Universidade de Paris um doutor afirmava que "se a terra se movesse e o céu
estivesse parado, isso seria uma melhor disposição do mundo". Francisco
Mayrone defendeu a distinção formal de Escoto, colocando-a ao lado da
distinção essencial e da situação real. A distinção essencial é aquela que
intervém entre a essência e a existência de duas realidades, por exemplo,
Deus e a criatura. A distinção real é a que intercede entre duas realidades
existentes que possam ter a mesma essência, por exemplo, entre pai e filho. A
distinção formal é a que intercede entre duas essências diferentes, por
exemplo, entre o homem e o burro. Há ainda uma distinção interior à essência,
que intercede entre a essência e o seu modo intrínseco, por exemplo, entre o
homem e a sua finitude.

Lutou contra o nominalismo oecamista Walter Burleigh (Burlaeus), Doctor


planus et perspicuus, que ensinou em Paris e em Oxford e morreu cerca de
1343. É autor de uma espécie de história da filosofia, de Tales a Séneca, que
é intitulada De vitis et moribus philosophorum e se baseia nas biografias de
Diógenes Laércio e em obras de Cícero e outros autores latinos; escreveu
também comentários de obras de lógica, da física e ética de Aristóteles e
vários tratados sistemáticos. Estas obras apresentam uma acentuação das teses
de Escoto no sentido realista.

Simultâneamente matemático, filósofo e teólogo, Tomás Bradwardine chamado


Doctor profundus,
155

nasceu em 1290 e faleceu em 1349 como arcebispo de Cantuária. É autor de


numerosas obras de aritmética e de geometria, obras contra o pelagianismo e,
possivelmente, de um Comentàrio às Sentenças. Foi ele quem introduziu no
Merton College de Oxford o género de estudos lógicos que depois se vieram a
chamar Calculationes (§ 326). No seu Tractatus de proportionibus escrito em
1328 costuma-se ver o início da distinção entre a consideração cinética e a
consideração dinâmica do movimento. Com efeito, Bradwardine trata nele,
separadamente, da "proporção da velocidade em relação às forças dos moventes e
à coisa movida", que é a consideração
dinâmica, e da velocidade "em relação às grandezas das coisas movidas e ao
espaço percorrido", que é a medida cinética do movimento. Por outro lado,
começa a formar-se com o seu Tratado o dicionário de cinemática que não deixa
de, ter uma certa importância até aos trabalhos de Galileu, embora só este
último o tenha guindado a um plano autênticamente científico.

Os escritos teológicos de Bradwa"ne apresentam uma acentuação do princípio


escotista da perfeita arbitrariedade da vontade divina, afirmando mesmo a sua
supremacia sobre a própria vontade humana que Escoto, pelo contrário,
considerava livre. "Não há em Deus razão ou lei necessária que preceda a sua
vontade, só ela é necessàriamente a lei e a justiça suprema" (De causa Dei,
1, 21). Deus é a única causa motora ou eficiente de tudo o que sucede, e
determina necessàriamente a própria vontade humana. "Baste ao homem ser livre
em relação de todas as coisas excepto a Deus, e ser sómente serva de Deus,
servo livre e não coagido" (1b., 111,
9). Assim se compreende a sua polémica contra o polagianismo, o qual afirmava
a liberdade do homem mesmo em relação a Deus.

156

Um dos alunos de Tomás Bradwardin-- foi João Wicliff, o iniciador da reforma


religiosa em Inglaterra; e através de Wícliff, o determinismo teológico de
Bradwardine inspirou João Huss e Jerónimo de Praga, os precursores da reforma
na Alemanha.

§ 312. OS úLTIMOS AVERROíSTAS


MEDIEVAIS

A condenação do averroísmo e da principal personalidade do averroísmo latino,


Siger de Brabante, não impediu a difusão da obra de Averróis. À medida que na
cultura escolástica crescia a importância de Aristóteles, crescia também a
importância daquele que era considerado como o "Comentador" por excelência.
Contudo, o averroísmo não constitui uma escola, mas sim uma orientação
seguida por alguns pensadores isolados, orientação que em certos casos se
afirmou uma decisiva antítese das crenças cristãs mantendo-se fiel à doutrina
original do Comentador, enquanto que noutros casos se atenuou, eliminando, ou
procurando eliminar, qualquer motivo de contraste com o cristianismo.

A Universidade de Pádua foi durante muito tempo um centro averroísta. Em


Pádua ensinou, nos primeiros anos do século XIV e até à sua morte (ocorrida
provavelmente em 1315 durante o processo a que a Inquisição o submetera),
Pedro de Abano, nascido em 1257, médico e filósofo, defensor da astrologia e
autor de um Conciliator differentiarum philosophorum et praecipue medicorum.
Não parece que Pedro de Abano tenha feito suas as teses tipicamente
anticristãs do averroísmo originário, teses que, pelo contrário, se encontram
na obra de João de Jandum. No Conciliator, Pedro de Abano propõe-se fazer o
acordo entre as opiniões diversas que haviam sido enunciadas sobretudo a

157

propósito de questões médicas. Defende também o determinismo astrológico dos


Árabes. Tudo o que acontece no mundo, inclusivé a vontade humana, está
sujeito aos movimentos celestes, os quais determinam os grandes
acontecimentos que assinalam as épocas da história e até o aparecimento dos
profetas e dos fundadores de religiões.

Tomás de Estrasburgo (de Argentina), monge agostinho sequaz do tomismo e que


morreu em Viena em 1357, atribui a Pedro de Abano, no seu Comentário às
Sentenças, um racionalismo religioso de que se não encontram traços nas obras
do filósofo-médico. A propósito de certos casos de morte aparente, cita Pedro
de Abano entre os que acreditam na possibilidade desta letargia e acrescenta
que ele "aproveitava isso para se rir dos milagres. nos quais se vê Cristo e
os Santos a ressuscitarem os mortos; dizia ele que as pessoas assim
ressuscitadas não estavam verdadeiramente mortas, mas unicamente caídas em
letargia". Tomás de Estrasburgo acrescenta que estas heresias não lhe
trouxeram nada de bom: "Estava eu lá, quando na cidade de Pádua os seus ossos
foram queimados por causa deste erro e de todos os outros por ele
sustentados" (In Sent., IV, d. 37, q. 1, a. 4). Todavia, não se pode
considerar que Pedro de Abano tenha sustentado as teses tipicamente
anticristãs do averroísmo originário.

Tais teses encontram-se, pelo contrário, na obra de João de Jandum. Foi


mestre na faculdade das artes de Paris e amigo e, segundo alguns consideram
(mas quase de certeza erradamente), colaborador de Marsílio de Pádua, autor
do Defensor pacis, o mais vigoroso escrito da Idade Média contra a supremacia
política universal do papado. Tendo tomado partido por Luís o Bávaro, contra
João XXII, João de Jandum e Marsílio de Pádua refugiaram-se junto do
Imperador, fugindo assim às consequências

158

da escomunhão que o papa lhos lançara. João de jandum morreu em 1328, o seu
amigo Marsílio de Pádua viveu ainda mais alguns anos.
João de Jandum escreveu um Comentário à Física e à Metafísica de Aristóteles
e vários tratados, um dos quais acerca do sentido activo (sensus agens).
Declara-se explicitamente discípulo de Aristóteles e de Averróis, mas a
característica fundamental da sua atitude filosófica é o cepticismo perante,
qualquer possibilidade de explicação dogmática e o puro e SIMples
reconhecimento do contraste entre fé e razão. Depois. de ter afirmado a
unidade numérica do intelecto nos diversos indivíduos, diz que: "Ainda que
esta opinião de Averróis. não possa ser refutada com razões demonstrativas,
eu, pelo contrário digo e afirmo que o intelecto não é numericamente uno em
todos os homens; mais ainda, é diferente nos diferentes indivíduos segundo o
número dos corpos humanos e a perfeição que lhos dá a realidade. Mas isto
não demonstro eu com nenhuma razão necessária porque não o considero
possível; e se alguém o conseguir demonstrar, que se alegro (gaudeat) com
isso. Esta conclusão afirmo eu ser verdadeira e considero-a indubitável
unicamente para
* fé" (De an., 111, q. 7). Assume a mesma atitude
* respeito de todos os pontos fundamentais da fé cristã. E repete o seu
irónico convite: "que se alegre quem o souber demonstrar"; ele, por seu lado,
limita-se a reconhecer a sua absoluta** incononiabilidado com os resultados
da investigação racional. O averroísmo age aqui como um factor de dissolução
da escolástica e tem somente o valor dum radical cepticismo teológico.

Carácter diferente assume, pelo contrário, em João de Baconthorp, que


pertenceu à ordem carmelita, ensinou em Inglaterra e faleceu em 1348. Das
suas numerosas obras só foram publicadas o Comentário às Sentenças, os
Quodlibeta e o Compendium

159

legis Christi, ficando inéditos numerosos tratados e comentários. Interpreta


a doutrina da unidade do intelecto no sentido de que ela não representa a
verdadeira opinião de Averróis, mas sim uma hipótese provisória de que ele se
serve para alcançar uma verdade mais completa. Além disso, João Baconthorp
limÍta-se a recolher doutrinas diversas, às quais não dá nenhuma elaboração
original.

§ 313. MARSíLIO DE PÁDUA E A FILOSOFIA JURíDICO-POLITICA DA IDADE MÉDIA

A primeira metade do século XIV é caracterizada não só pela liberdade e


ausência de preconceitos das discussões teológicas e metafísicas, mas também
pela liberdade e ausência de preconceitos das discussões jurídico-políticas.
Olhando para o campo destas discussões (mencionadas ocasionalmente nas
páginas precedentes) nele distinguimos imediatamente dois constantes pontos
de referência, um doutrinal e outro prático: a teoria do direito natural e
o problema das relações entre o poder eclesiástico e o poder civil.

A teoria do direito natural é o quadro geral em que se movem todas as


discussões jurídicas e políticas da escolástica. Elaborada pelos Estóicos e
divulgada por Cícero, incorporada no direito romano, esta teoria constitui o
fundamento daquela nova criação jurídica, característica da Idade Média, e
que é o direito canónico. Na sua forma mais completa e amadurecida, que
encontrou com S. Tomás (§ 281), a lei natural é a própria lei divina que, com
perfeita racionalidade, regula a ordem e a mutação do mundo, nela devendo
inspirar-se quer as leis civis quer a lei religiosa que dirige o homem par o
seu fim sobrenatural. Acolhendo ecleticamente

160
as duas alternativas que a teoria do direito natural periodicamente seguira
(ambas as quais se podiam já detectar nos Estóicos) S. Tomás considera que a
lei natural é simultaneamente instinto e razão porque abrange tanto as
inclinações que o homem tem em comum com os outros seres naturais como as
racionais, especificas do homem (Summa theol., 11,
1, q. 94, a. 2). Mas, duma forma ou doutra, esta doutrina nunca foi posta em
causa durante os séculos da Idade Média (e continuará a não o ser ainda
durante alguns séculos), é este o fundo comum de todas as discussões
políticas.

Por vezes, a discussão cai sobre a autoridade que melhor, mais directamente
ou eminentemente **incairria a lei natural, isto é, sobre o problema de se tal
autoridade será a do papa ou a do Imperador. A polémica filosófica segue ou
acompanha neste caso a grande luta política entre o papado e, o império. Da
teoria das "duas espadas", da qual o papa Gelásio 1 se servira, cerca dos
finais do século V, para reivindicar a autonomia da esfera religiosa em -
relação à autoridade política, o papado passara gradualmente a sustentar a
tese da superioridade absoluta do poder papal sobre o político, e da
dependência de qualquer autoridade mundana em relação à eclesiástica,
considerada a única directamente inspirada e patrocinada pela lei divina.

Foi sobretudo com Inocêncio 111 (1198-1216), cuja obra teve uma importância
enorme em toda a Europa, que começou a afirmar-se em todo o seu rigor a tese
da superioridade do poder eclesiástico; a partir desse momento, as discussões
filosóficas sobre a essência do direito e do estado passaram a incidir sobre
o tema da superioridade de um ou outro dos dois poderes. Pelos princípios do
século XIV, estas discussões tornam-se particularmente vivas e inflamadas. O
De ecclesiastica potes-

161

tate (1302) de Egidio Romano (§ 294) é a melhor expressão da tese curial, na


sua acepção mais extensa. Não só a autoridade política, mas toda e qualquer
posse ou bem derivam da Igreja e mediante a Igreja; e a Igreja identifica-se,
segundo Egídio, com o Papa, que se toma, portanto, a causa única e absoluta
de todos os poderes e bens da terra.

Por outro lado, nesse mesmo ano, João de Paris (1269-1306), no seu De
potestate regia et papali, negava a plenitude potestatis do Papa e
reivindicava para os indivíduos o direito de propriedade, atribuindo
unicamente ao Papa a função de um administrador responsável pelos bens
eclesiásticos. Uns anos depois, Dante, no De monarchia, preocupava-se
sobretudo em defender a independência do poder imperial frente ao poder
papal. "É, portanto, claro, dizia ele na conclusão da obra, que a autoridade
do monarca temporal desce até elo, sem nenhum intermediário, da fonte da
autoridade universal, a qual, única como é da fortaleza da sua simplicidade,
flui em inúmeros leitos dada a abundância da sua excelência" (111, 16). O
imponente conjunto das obras políticas de Occam (§ 322) procurava, por outro
lado, separar o conceito de Igreja do de papado, identificando a própria
Igreja com a comunidade histórica dos fiéis e atribuindo-lhe o privilégio de
estabelecer e defender as verdades religiosas, e rebaixando o papado a um
principado ministrativus, instituído exclusivamente para garantir aos fiéis a
liberdade que a lei de Cristo trouxe aos homens. Cada um destes escritores
anticlerialistas tem as suas características próprias, conforme o interesse
específico que pretende defender: interesse que, para João de Paris, é
essencialmente económico-social; para Dante, político; para Occam,
filosófico-religioso. Mas a totalidade destes interesses constitui o
interesse mais geral da nova classe burguesa que defende a sua liberdade de
iniciativa

162

contra o monopólio do poder reivindicado pelo papado, apoiando-se na


autoridade civil que se mostra mais aberta ou menos exigente.

A obra de Marsílio de Pádua apresenta, pelo contrário, um carácter mais


radical, conseguindo até pôr entre parêntesis o fundamento comum de todas as
disputas políticas da Idade Média, ou seja a doutrina do direito natural
divino. Marsílio Múnardin nasceu em Pádua entre 1275 e 1280. Foi reitor da
Universidade de Paris de 1212 a 1213 o participou, como dissemos, na luta
entre Luís o Bávaro e o papado de Avinhão como conselheiro político e
eclesiástico de Luís.

Acabou de escrever o Defensor pacis em 1324, e mais tarde, durante a sua


estada na Alemanha na corte de Luís, compôs um resumo dessa obra sob o
título de Defensor minor, e dois outros escritos de menor importância, o
Tractatus de Jurisdictione imperatoris in causis matrimonialibus a propósito
do casamento do filho de Luís com Margarida Maltausch, e o Tractatus de
translatione Imperii. A sua morte deve ter ocorrido entre os finais de 1342 e
os primeiros meses de 1343.

A originalidade da obra de Marsílio de Pádua consiste no carácter positivo do


conceito de "lei" que ele toma como fundamento da sua discussão jurídico-
política. Exclui explicitamente das suas considerações a lei como inclinação
natural, como hábito produtivo ou como prescrição obrigatória com vista à
vida futura. Uralita-se a considerar a lei como "a ciência, doutrina ou juízo
universal de quanto é justo e civilmente vantajoso e do seu oposto". (Def.
pacis, 1, 10, 3). Mas mesmo no âmbito deste conceito restrito, a lei pode ser
considerada, segundo Marsílio, quer como o que mos" traz aquilo que é justo e
injusto, vantajoso ou nocivo, e, neste sentido constitui a ciência ou
doutrina do direito, quer como "um **pr"to coactivo ligado a

163

uma punição ou a uma recompensa a atribuir neste mundo" (1, 10, 4); e só
neste sentido ela é propriamente chamada "lei". São duas as características
desta doutrina que está na base de toda a obra de Marsílio: 1) O que é justo
ou injusto, vantajoso ou nocivo para a comunidade humana não é sugerido por
um instinto infalível posto no homem por Deus, nem pela própria razão divina,
mas descoberto pela razão humana, criadora da ciência do direito. Pode ver-se
neste aspecto do pensamento de Marsílio o primeiro sinal da passagem do velho
ao novo naturalismo jurídico, o qual incorporado no naturalismo jurídico do
século XVII: passagem, após a qual passa a ser atribuída à própria razão
humana o juízo acerca do que é vantajoso ou nocivo para a comunidade humana.
2) A limitação do conceito próprio de lei não ao simples juízo da razão (que
por si só constitui** tinicamente ciência ou doutrina) mas ao que se tornou
preceito coactivo ao coligar-se com uma sanção. Este segundo aspecto da
doutrina de Marsílio de Pádua fez dele um antecessor do que hoje se denomina
o positivismo jurídico. Dados estes pressupostos, a tarefa de Marsílio de
Pádua fica automaticamente restringida às considerações sobre unicamente
aquelas leis e governos que derivam duma forma imediata do arbítrio da mente
humana" e a sua instituição (1, 12, 1).
Sob este ponto de vista, o único legislador é o povo: considerado ou como "o
corpo total dos cidadãos" ou como a sua "parte prevalescente" (pars
valentior) que exprime a sua vontade numa assembleia geral e ordena que "algo
seja feito ou não seja feito a respeito dos actos civis humanos sob a ameaça
de uma pena ou punição temporal". Com a expressão "parte prevalescente",
Marsílio refere-se não só à quantidade mas também à qualidade das pessoas que
constituem a comunidade que ins-

164

titui a lei, no sentido em que a função legislativa pode ser deferida a uma
ou mais pessoas, embora nunca em sentido absoluto mas só relativamente e
salvo a autoridade do legislador primordial que é o povo (1, 12, 3). Ã lei
assim estabelecida todos estão igualmente sujeitos, incluindo os clérigos.
"0 facto de alguém ser ou não ser sacerdote não tem perante o juiz maior
importância do que se fosse camponês ou pedreiro, como não tem valor perante
o médico que seja ou não músico alguém que possa adoecer e curar-se" (11, 8,
7). Portanto a pretensão do papado em assumir a função legislativa e a
plenitude do poder não passa duma tentativa de usurpação que não produz e não
pode produzir senão cisões e conflitos (1, 19, 8 e seguintes). Analogamente,
para a definição das doutrinas respeitante-s a matéria de fé, definição
indispensável em todos os casos deixados duvidosos pela Sagrada Escritura, e
para evitar cisões e discórdias no seio dos fiéis, a autoridade legítima não
é a do Papa mas a do concílio convocado da devida forma, isto é, de modo a
que nele esteja presente, ou directamente ou por delegação, a "parte
prevalescente da cristandade" (11, 20, 2 e seguintes).

É fácil darmo-nos conta da validade e modernidade das teses do Defensor


pacis. Com base nelas, o âmbito, do estado é limitado (segundo o princípio
que mais tarde foi reintroduzido por Hobbes) à defesa da paz entre os
cidadãos, isto é. à eliminação dos conflitos; e, consequentemente, o domínio
da lei como preceito coactivo é restringido aos actos externos, limitação
importantíssima porque garante a liberdade de consciência. Além disso, o
direito é entendido como norma racional puramente formal, segundo uma
orientação que se tomou cada vez mais prevalescente nas modernas concepções
sobre ele.

165

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 309. De Durand, o Comentário às Sentenças teve nuinerosas edições, das


quais a principal é a de Paris, de 1508. Quaestio de natura cognitionis, ed.
Koch, in "Op. et Texta", VI, Mtinster, 1929; VIII, Münster, 1930. Sobre
Durand: Koci, in "Beitrãge", XXVI, 1, 1927; POURNIER, in "Hist. Lit. de Ia
France"
37, Paris, 1938, p. 1, ss.

§ 310. De Pedro Auréolo, o Comentário e Quodlibeta, Roma, 1596, 1605.


Sobre AuréGio: DREILING, in <@Beitrãge", X, 6, 1913; LANDRY, Pierre XAuréole,
in <,Revue d'I-Iist. de Ia Phil.", 1928.

§ 311. , As obras de lógica de Antônio Andrea tiveram várias edições


venezianas in-folio: 1492, 1508,
1517- As Quaestiones sobre a Metafísica aristoté,lica foram impressas em
Veneza em 1481, 1514, 1523. Em Veneza foi também impresso em 1489 o De tribus
principiis rerum naturalium.
As obras de Francisco de Mayrone foram impressas em Veneza em 1520. Sobre
Francisco de Mavrone: ROTH, Franz von Meyronnes, Werl i. W., 1936.

De Burleigh, as obras tiveram numerosas edições entre 1472 e 1508; ed.


Bõhner, San BGnaventure (New York), 1951; De vitis et moribus phiZosaphorum,
ed. Knust, Tübingen, 1886. Sobre Burleigh: BAUDRY in "Rev. Hist. Francis.",
1934.

De TGniãs Bradwardine, as obras tiveram várias edições antigas. De causa Dei,


ed. S?@vi'e, Londres,
1618; Tractatus de proportionibu8, ed. Crosby, University Gf Wisconsin, 1955.
Sobre Bradwardine: HAHN, in Beitrãge", V, 2, 1905; MICHALSKi, Le problè~ de
Ia volonté à Oxford et à Paris ao XiVe siècle, Leopoli,
1937; OBERMAN, Archbishop Th. B., Utrecht, 1957; assim como a introdução e o
comentário de Crosby na ed. cit. do Tractatus.

§ 312. De Pedro de Abano: Conciliator, Veneza,


1476, 1483, 1565; a Expositio problematum Aristotelis, em Mântua em 1475,
Pádua 1492, Veneza, 1501. Sobre Pedro de Abano: S. FERRARI, I tempi, ta vita,
le dottrine di Pietro dAbano, Génova, 1900; DunEm, SysUme du monde, IV, 229-
2663; NARDI, Intorno alle dottrine fiZosofiche di P. D'Abano, Milão, 1921.
Sobre as características do averroísmo paduano: TIZOILO, Averroismo e
Aristotelismo padovano, Pãdua, 1939.

166

As obras de João de jandum tiveram numerosíssimas edições venezianas na


primeira metade do século XVI. Sobre Jandum: GILSON, Êtudes de philosophie
médiévale, Paris, 1921, 51-75; J. RIVIÈRE, in "Diet. de théol. cath(>Iique",
VIII, 764 ss.; MCCLINTOCK, Perversity and Error, Indiana, 1956 (com bibli).

De João Baconthorp: o Comentário às Sentenças foi publicado em Milão em


1510, Veneza, 1527, Paris,
1484; e conjuntamente com os Quodlibeta em Cremo-na em 1618. Sobre João
Baconthorp: MICHALSKI, Les courants philowphiques à Oxford et à Paris pendant
le XIVe siècle, Cracõvia, 1922, p. 13 ss.

§ 313. Do Marsílio. de Pádua: as obras in GOLDAST, Monarchia, H, 1r>14;


Defensor pacis, ed. Previté-Orton, Cambridge, 1928; ed. Schols, Hannover,
1932. Traduções: inglesa de MarshalI, Londres, 1535 e de Gewirth, New York,
1956; alemã de Kunsmann e Kulch, Berlim, 1958; italiana de Vasoli, Turim,
1960. Sobre Marsílio de Pádua: BATTAGLIA, Marsilio da Padova, Florênça, 1928;
GEwIRTH, Marsilius of Padova, New York, 1951; Marsilio da Padova, volume
colectivo sob a direcção de C~ini e Bobbio, Pádua, 1942. Bibliografia na cit.
tradução italiana de Vasoli.

167

XXII

GUILHERME DE OCCAM

§ 314. GUILHERME DE OCCAM: A LIBERDADE DE INVESTIGAÇÃO

Guilherme de Occam é a última grande figura da escolástica e simultaneamente


a primeira figura da Idade Moderna. O problema fundamental, do qual a
escolástica tinha saído e de cuja incessante elaboração tinha vivido, o
acordo entre a investigação filosófica e a verdade revelada, é declarado por
Occam, e pela primeira vez, como impossível e vazio de qualquer significado.
Com isto, a escolástica medieval conclui o seu ciclo histórico; a
investigação filosófica fica disponível para a consideração de outros
problemas, o primeiro dos quais é o da natureza, isto é, do mundo a que o
homem pertence e que pode conhecer com a simples força da razão. A negação da
possibilidade do problema escolástico implica imediatamente a abertura de um
problema no qual a investigação filosófica reconhece o seu domínio próprio.

O princípio de que Occam se serviu para levar a cabo a dissolução da


escolástica iniciada por Escoto é o recurso à experiência. Para Duns Escoto,

169

o princípio limitativo e negativo da investigação escolástica fora o ideal


aristotélico da ciência demonstrativa. Assumido e feito valer pela primeira
vez no seu pleno rigor, este ideal levara o Doutor subtil a reconhecer na
teologia uma ciência puramente prática, isto é, apta a fornecer normas de
acção mais incapaz de alcançar verdades especulativas. O recurso à
experiência, que, pelo contrário, constitui o traço saliente do procedimento
de Occam, leva-o a pôr na experiência o fundamento de todo o conhecimento e a
rejeitar para fora do conhecimento possível tudo o que transcende os limites
da própria experiência. Pode pensar-se que este primado da experiência,
afirmado por Occam, seja também devido à influência do aristotelismo; na
realidade, o valor da experiência fora já reconhecido pela tradição
franciscana e fora objecto de afirmações solenes de Roberto Grosseteste e
Rogério Bacon. Occam mantém-se mais fiel a esta tradição do que Escoto. Mas,
tal como o ideal aristotélico da ciência, embora já conhecido e aceite pela
escolástica latina, só com Escoto foi adoptado como força limitadora e
negadora do problema escolástico, também o empirismo, embora já conhecido e
aceite por muitos escolásticos, só com Occam se transforma na força que
determina a queda da escolástica.

Ao empirismo, que é o fundamento da sua filosofia, chegou Occam partindo de


uma exigência de liberdade que é o centro da sua personalidade. Tal exigência
domina todos os seus pontos de vista. A propósito da condenação pronunciada
pelo bispo de Paris, Estevão Tempier, sobre algumas proposições tomistas (§
284) diz ele: "As asserções fundamentalmente filosóficas, que não se referem
à teologia, não devem ser condenadas ou solenemente interditas por ninguém,
porque nelas qualquer um deve ser livro de livremente dizer o que lhe parecem
(Dial, inter mag. et disc., 1, tract. 11, e. 22, ed. Goldast,

170

p. 427). Era a primeira vez que era feita uma tal reivindicação, e nela
inspirava Occam não só a sua investigação filosófica mas também a sua
actividade política. Durante vinte anos defendeu a causa imperial com um
imponente conjunto de obras, cujo principal intento é o de levar a Igreja à
condição de uma livre comunidade religiosa, alheia a interesses e finalidades
materiais, garantia e custódia da liberdade que Cristo reivindicou para os
homens. A Igreja, que é o domínio do espírito, deve ser o reino da liberdade;
o império, que segundo a velha concepção medieval, tem em seu poder não as
almas irias os corpos, pode e deve ter uma autoridade absoluta. Tal é a
essência das doutrinas políticas que Occam defende na luta entre o papado de
Avinhão e o império. Uma única atitude domina toda a sua actividade: a
aspiração à liberdade da investigação filosófica e da vida religiosa. Mas a
condição da liberdade de investigação filosófica é o empirismo, dado que uma
investigação que já não reconhece, como guia a verdade revelada não pode
senão tomar por guia a própria realidade em que o homem vive, a qual é dada
pela experiência.

§ 315. GUILHERME DE OCCAM: VIDA E OBRA

Guilherme de Occam, chamado Doctor invincibilis e Princeps nominalium pelos


seus contemporâneos, nasceu em Ockham, pequena aldeia do condado de Surrey,
na Inglaterra. É incerto o ano do seu nascimento, mas pode situar-se cerca de
1290. Não é, portanto, provável que tenha sido aluno de Escoto, o qual morreu
em 1308. A primeira data segura da sua biografia é 1324, ano em que foi
citado a compare=. na corte de Avinhão para responder por algumas teses
contidas no seu Comentário às Sentenças. Uma comissão de seis doutores
censurou,

171

em 1326, cinquenta e um artigos extraídos de tal comentário. Em Maio de 1328,


Occam fugia de Avinhão com Miguel de Cesena, geral da ordem franciscana e
sustentador da tese (considerada herética pelo papado) da pobreza de Cristo e
dos apóstolos; e refugiava-se em Pisa junto do imperador Luís o Bávaro; dali
prosseguiu para Munich, onde provavelmente permaneceu até ao fim da vida. A
sua morte deve ter ocorrido entre 1348 e 1349, sendo o seu corpo sepultado na
igreja franciscana de Munich.

A primeira e fundamental obra de Occam é o Comentário às Sentenças, cujo


primeiro livro é muito mais amplo e prolixo do que os outros três. Escreveu
ainda: 7 livros de Quodlibeta; um tratado De sacramento altaris et de corpore
Christi; um breve escrito, Centiloquium theologicum, que é a exposição de cem
conclusões teológicas; as Summulae Physicorum também chamadas Philosophia
naturalis; e duas obras de lógica: a Expositio aurea super artem veterem (que
contém o comentário aos livros Praedicabilium e aos livros Praedicamentorum
de Pórfiro, o comentário aos livros Perihermeneias de Aristóteles, um tratado
De futuris contingentibus) e a Summa totius logicae. Estão inéditas outras
obras, especialmente de física. As obras mais notáveis são o Comentário às
Sentenças, os Quodlibeta e a Summa totius logicae.

Numerosas são as obras políticas de Occam. Parte delas destina-se a combater


as afirmações dogrnáticas, que Occam considera heréticas, do papa João XXII.
Tais obras são: Opus nonaginta dierum; De dogmatíbus papae Joanis XXI1;
Contra Johannem XX11; Cotnpendium errorum Johannis papae XXII. Quando, em
1338, a dieta de Rhens estabeleceu que bastava únicamente a eleição pelos
príncipes alemães para a nomeação do im~or, Occam iniciou a composição de uma
série de trata-

172

dos em defesa desta tese. Tais tratados são: Tractatus de potestate


imperiali, escrito entre 1338 e
1340; Octo quaestionum decisiones super potestatem Summi Pontificis, escrito
entre 1339 e 1341; um monumental Dialogus inter magistrum et discipulum, cuja
composição foi várias vezes interrompida e que ficou incompleto; o tratado De
imperatorum et pontificum potestate, que recapitula as teses do Diálogo;
finalmente, o tratado De electione Caroli IV, que é a última obra de Occam.
São apócrifos a Disputatio inier militem et clericum, que é do tempo de
Bonifácio VIII, e o Defensorium contra errores Johannis XX11 papae.

§ 316. GUILHERME DE OCCAM: A DOUTRINA Do CONHECIMENTO INTUITIVO

A distinção entre conhecimento intuitivo e conhecimento abstractivo, que


servira a Escoto como fundamento para a sua teoria metafísica da substância
(§ 305), serve a Occam como formulação da sua doutrina da experiência. O
conhecimento intuitivo é aquele mediante o qual se conhece com toda a
evidência se a coisa existe ou não e que permite ao intelecto julgar
imediatamente sobre a realidade ou irrealidade, o objecto. O conhecimento
intuitivo, é, além disso, aquele que faz conhecer a inerência de uma coisa a
outra, a distância espacial ou qualquer outra relação entre as coisas
particulares. "Em geral, qualquer conhecimento simples de um ou vários
termos, de uma ou várias coisas, em virtude do qual se pode conhecer com
evidência uma verdade contingente, especialmente referente a um objecto
presente, é um conhecimento intuitivo" (In Sent. prol., q. 1 Z). O
conhecimento intuitivo perfeito, aquele que é o princípio da arte e da
ciência, é a experiência, que tem sempre por objecto uma

173

realidade actual e presente. Mas o conhecimento intuitivo também pode ser


Imperfeito o referir-se a um objecto passado (lb., prol., q. 1 Z; 11, q. 15
H). Entre o conhecimento perfeito e o imperfeito existe uma relação de
derivação: todo o conhecimento intuitivo imperfeito deriva de uma
experiência. A mesma relação existe entre o conhecimento intuitivo e o
conhecimento abstractivo, o qual prescinde da realidade ou irrealidade do
seu objecto; o segundo procede do primeiro e só se pode ter conhecimento
abstractivo daquilo de que precedentemente se teve um conhecimento intuitivo
(Ib., IV, q. 12 Q).

O conhecimento intuitivo tanto pode ser sensível como intelectual. Segundo


Occam, a função do intelecto não é puramente abstractiva. O intelecto pode
conhecer intuitivamente as próprias coisas singulares que são objecto do
conhecimento sensível; já que, se não as conhecesse não poderia formular
sobro elas nenhum juízo determinado (Quodl., 1, q. 15). Intuitivamente, o
intelecto conhece também os seus próprios actos e, duma maneira geral, todos
os movimentos imediatos do espírito, tais como o prazer, a dor, o amor, o
ódio, etc. O intelecto conhece, com efeito, a realidade destes actos
espirituais, e só a pode conhecer através do conhecimento intuitivo (lb., 1,
q. 14).

Do próprio conceito de conhecimento intuitivo, que implica uma relação


imediata entre o sujeito cognoscente e a realidade conhecida, deduz-se a
negação de quaisquer espécies que sirvam de intermediárias do conhecimento.
Em primeiro lugar, tais espécies seriam inúteis e, portanto, derrogariam o
princípio metodológico da economia (chamado "navalha do Occam") a que Occam
se mantém constantemente fiel (frustra fit per plura quod potest fiéri per
pauciora). E, em segundo lugar, o valor cognoscitivo da espécie é nulo,
porque, se o objecto não fosse percebido imediatamente, a espécie não o

174

poderia fazer conhecer. A estátua de Hércules nunca conduziria ao


conhecimento de Hércules, nem se poderia judicar sobre a sua semelhança com
Hércules, se não se conhecesse previamente o próprio Hércules (In Sent., 11,
q. 14 T). Nesta negação da espécie, que Occam tem em comum com Durand de
Saint-Pourçain e Pedro Auréolo, ele vai além dos seus predecessores porque
nega também que a realidade tenha no intelecto um esse intentionale ou
apparens distinto da própria realidade. Com efeito, só o ser puramente
concebido é diferente do ser real, ele não no-lo faz conhecer: a própria
realidade deve ser, como tal, imediatamente presente ao conhecimento se este
deve ter o pleno e absoluto valor de verdade (lb., 1, d. 27, q. 3 CC).

Com base numa teoria da experiência tão completa e amadurecida, que antecipa
a de Locke em todos os pontos fundamentais inclusivé na distinção entre
experiência interna e externa, nenhuma realidade poderia ser reconhecida ao
universal. Com efeito, Occam. afirma em. termos explícitos a individualidade
da realidade como tal; e faz uma crítica completa de todas as doutrinas que,
seja de que forma for, reconhecem ao universal um grau qualquer de realidade,
distinguindo entre as que o consideram real separadamente das coisas
singulares, e as que o consideram real em união com as próprias coisas. A
conclusão é a impossibilidade absoluta de considerar o universal como real
"Nenhuma coisa exterior à alma, nem por si nem por outra coisa real ou
simplesmente racional que se lhe acrescente, nem de qualquer maneira que a
consideremos ou entendamos, é universal; já que a impossibilidade de que
alguma coisa exterior à alma seja de qualquer modo universal é tão grande
como a impossibilidade de que o homem, por qualquer consideração ou sob
qualquer aspecto, seja o burro" (lb.,
1, d. 2, q. 7 S). Por outras palavras, a realidade do

175

universal é em si mesma contraditória e deve ser radical e totalmente


excluída. O que é, e que valor tem, então, o conceito?

Occam não nega que o conceito tenha uma realidade mental, isto é, que existia
subiective (substancialmente ou realmente) na alma. Mas esta realidade mental
não é senão o acto do intelecto; portanto, não é uma espécie nem sequer um
idolum ou fictum, isto é, uma imagem ou ficção que seja, duma forma qualquer,
distinta do acto intelectual. Mas esta realidade subjectiva do conceito é,
como qualquer outra realidade, determinada e singular (lb., 1, d. 2, q. 8 Q;
Quodl., IV, q. 35). A universalidade do conceito consiste, portanto, não na
realidade do acto intelectual, mas na sua função significante, para a qual
ele é uma intentio. O termo intentio exprime precisamente a função pela qual
o acto intelectual tende para uma realidade significada. Como intentio, o
conceito é um signo (signum) das coisas; e, como tal, está em lugar delas em
todos os juízos e raciocínios em que ocorre. Occam determina a função do
signo no conceito da suppositio (veja-se adiante).

Preocupa-se todavia em garantir a realidade do conceito. Se o conceito de


homem serve para indicar os homens e não, por exemplo, os burros, deve então
ter uma semelhança efectiva com os homens; e tal semelhança deve também
existir entre os homens, visto que podem ser todos representados igualmente
bem por um único conceito. Mas isto não implica uma qualquer realidade
objectiva do universal. A própria semelhança, segundo Occam, é um conceito,
como também é um conceito qualquer relação: por exemplo, a semelhança entre
Sócrates e Platão significa somente que Sócrates é branco e Platão também,
mas não é uma realidade que se acrescente aos termos considerados. Que um
conceito represente um determinado grupo de objec-

176
tos e não outro qualquer, não é coisa que possa ter um fundamento na relação
destes objectos entre si e com o conceito, já que a própria relação não é
senão um conceito privado de realidade objectiva. A validade do conceito não
consiste na sua realidade objectiva. Occam abandona aqui (e é a primeira vez
que tal acontece na Idade Média) o critério platónico da objectividade. O
valor do conceito, a sua relação intrínseca com a realidade que simboliza,
está na sua génese: o conceito é o signo natural da própria coisa.
Diferentemente da palavra que é um signo instituído por convenção arbitrária
entre os homens, o conceito, é um signo natural predicável de várias coisas.
Significa a realidade "do mesmo modo que o fumo significa o fogo, o gemido do
enfermo a dor e o riso a alegria interior (Summa logicae, 1, 14). Esta
naturalidade do signo exprime simplesmente a sua dependência causal da
realidade significada. Ele é um produto, na alma, dessa mesma realidade: a
sua capacidade de representar o objecto não significa outra coisa (Quodl. IV,
q. 3). É este, sem dúvida, o traço mais acentuadamente empirista da teoria do
conceito de Occam: a relação do conceito com a coisa não é por ele
justificada metafisicamente, mas empiricamente explicada com a derivação do
próprio conceito da coisa, que por si só produz na mente o signo que a
representa.

O outro traço característico do empirismo de Occam é a sua doutrina da


indução. Enquanto que para Aristóteles a indução é sempre indução completa,
que funda a afirmação geral na consideração de todos os casos possíveis (§
85), para Occam, a indução pode efectuar-se também com base numa única
prova, admitindo o princípio segundo o qual causas do mesmo género têm
efeitos. do mesmo género (In Sent., prol., q. 2 G). Occam indicou assim no
princípio da uniformidade causal da natu-

177

reza o fundamento da indução científica que será teorizada pela primeira vez
na Idade Moderna por Bacon e analisada nos seus pressupostos por Stuart Mill.

§ 317. GUILHERME DE OCCAM: A LÓGICA

OccaM considera a lógica como o estado das propriedades dos termos e das
condições de verdade das proposições e dos raciocínios em que eles ocorrem.
Os termos podem ser escritos, falados o concebidos (segundo a velha
classificação de Boécio). O termo concebido (conceptus) é "uma. intenção ou
afecção (intentio seu passio) que significa ou co-significa naturalmente
qualquer coisa, nascida para fazer parte de uma proposição mental o -para
estar em lugar daquilo que significa". A palavra é um signo subordinado do
termo concebido ou mental, enquanto que o termo escrito é signo da palavra. O
termo significa ou co-significa: significa quando tem um significado
determinado, como, por exemplo, o termo "homem"; co-significa quando não tem
um significado determinado mas o adquire em união com outros termos. Os
termos co-significantes (ou sincategoremáticos) são, por exemplo: qualquer,
nenhum, algum, tudo, à excepção de, somente, etc. Occam, analisa na sua
lógica os termos de segunda intenção, isto é, que se -referem a outros termos
(as intentiones primae, por seu turno, são as que se referem às coisas).
Intenções segundas são as categorias aristotélicas assim como as cinco vozes
de Pórfiro: género, espécie, diferença específica, propriedade e acidente. O
motivo dominante na análise de Occam é que nenhuma intenção segunda é real ou
é signo de uma coisa real: a lógica de Occam é rigorosamente nominalista
tal como a sua gnoseologia.

178
A propriedade fundamental dos termos é a suposição. "A suposição é como que a
posição em vez de qualquer outra coisa. Assim, se um termo está numa
proposição em vez de outra coisa, de modo que nos servimos dele em
substituição dela e que o termo (ou o seu nominativo se ele estiver noutro
caso) é verdadeiro para a própria coisa ou para o pronome demonstrativo que a
indica, então o termo supõe aquela coisa". Assim, com a proposição "o homem é
animal" denota-se que Sócrates é verdadeiramente animal pelo que é verdadeira
a proposição "isto é um animal" quando se indica Sócrates (Summa logicae, 1,
63).

A suposição é, pois, para Occam (e dum modo geral para toda a lógica
nominalista do século XIII) a dimensão semântica dos termos nas proposições,
isto é, a atribuição dos termos a objectos diferentes desses mesmos termos e
que podem ser coisas, pessoas ou outros termos. Esses objectos não podem pelo
contrário, ser entidades ou substâncias universais e metafísicas como a
"brancura", a "humanidade", etc. Com efeito, os objectos a que a suppositio
se refere devem ter um modo de existência determinado, ou como realidades
empíricas (coisas ou pessoas), ou como conceitos mentais ou como signos
escritos. A suposição pessoal é precisamente aquela pela qual os termos estão
em vez da coisa por eles significada, há uma suposição simples quando o termo
está em vez do conceito mas não tomado no seu significado, como quando se diz
"homem é uma espécie"; e há uma suposição material quando o termo não está
tomado no seu significado mas como signo verbal ou escrito, como quando se
diz "homem é um substantivo" ou se escreve "homem". Dado que os objectos a
que a suposição se refere devem ter um modo de ser determinados, quando se
formulam proposições a respeito de objectos inexistentes, essas proposições

179

são falsas porque os seus termos não estão em lugar de nada. Occam. considera
por isso que são falsas as próprias proposições tautológicas (que sob certo
aspecto podem ser consideradas as mais certas) como, por exemplo, "a quimera
é quimera", porque a quimera não existe (11. 14).

Esta doutrina da suppositio serve de base a uma nova definição do


significado predicativo do verbo ser. Diz Occam: "Proposições como Sócrates
é homem ou Sócrates é animal não significam que Sócrates tem a humanidade
ou a animalidade nem significam que a humanidade ou a animalidade estão em
Sócrates, nem que o homem ou o animal estão em Sócrates, nem que o homem ou
o animal são uma parte da substância ou da essência de Sócrates ou uma parte
do conceito substancial de Sócrates. Significam sim que Sócrates é
verdadeiramente um homem e verdadeiramente um animal, não no sentido de que
Sócrates seja este predicado <homem" ou este predicado "animal" mas no
sentido de que existe algo para o qual estes dois predicados estão, como
quando acontece que estes dois predicados estão Mra Sócrates" (11, 2; Quodl.,
111, 5). É significativa a oposição em que esta doutrina é apresentada por
Occam em confronto com a velha doutrina da inerência, -própria da lógica
aristotélica. A doutrina da merênda, que Occam descreve, é aquela para a
qual a cópula "é" está a indicar a relação de inerência substancial entre
sujeito e predicado. Para Occam, a cópula "é " significa somente que o
sujeito e o predicado estão em vez do próprio sujeito existente. Esta
doutrina permite a Occam declarar falsas uma quantidade de proposições que,
do ponto de vista da lógica aristotélica, oram consideradas indubitáveis,
como as seguintes: "A humanidade está em Sócrates", "Sócrates tem a
humanidade", "Sócrates é homem pela humanidade", etc. Estas proposições que
do ponto de vista aristotélico são
180

incontestáveis, ou melhor, necessariamente verdadeiras, são desde logo


declaradas falsas por Occam porque não existe nenhum objecto ou termo real
pelo qual possa estar "humanidade". A proposição "Sócrates é homem" tem para
Occam este único e simples significado: existe um objecto (neste caso uma
pessoa) que pode ser indicado com um pronome demonstrativo ("esta pessoa")
que é verdadeiramente Sócrates e verdadeiramente homem. Assim, o próprio modo
de entender a natureza da cópula põe Occam em condições de eliminar como
falsas toda uma série de afirmações metafísicas referentes à teoria
aristotélica da substância.

Isto no que se relaciona com o significado predicativo de "ser". No que se


relaciona com o significado existencial, Occam afirma **imefflatamente que o
ser e a coisa coincidem, isto é, que a existência não é acrescentada à
essência de uma coisa como se a essência fosse a potência e a existência o
acto dessa potência, mas ambas sem **inads pertencem à própria coisa enquanto
coisa real. E isto é válido quer em relação às coisas finitas quer em relação
a
Deus, embora sejam diferentes, o modo de ser das coisas finitas e o de Deus.
Diz Occam: "'Ser significa a própria coisa. Mas significa a primeira causa
simples quando se diz dela significando que não depende de outrem. Quando,
pelo contrário, o ser se predica de outra coisa, significa a própria coisa
dependente e ordenada em relação à causa primeira. Isto porque essas outras
coisas não são coisas senão enquanto dependentes e ordenadas em relação à
causa primeira, e não existem doutro modo. Pelo que, quando o homem não
depende de Deus, então não existe e não é sequer homem" (Summa log., HI, 11,
27).

Tal como depois dele farão todos os lógicos nominalistas, Occam considera
como fundamental a teoria das consequências (consequentiae), isto é das

181

conexões imediatas de tipo estóico, e considera o próprio silogismo como um


tipo particular de tais consequências. A consequência é, duma maneira geral,
uma proposição condicional na qual tanto o antecedente como o consequente
podem ser constituídos por proposições simples ou compostas. O
desenvolvimento occamista desta parte da lógica é o mais rico dos
desenvolvimentos medievais da matéria, contém muitos teoremas do moderno
cálculo proposicional.

Interessa finalmente sublinhar a importância da posição occamista acerca dos


denominados insolubilia, isto é, dos argumentos que hoje denominamos
paradoxos ou antinomias, e que já tinham Sido debati-dos pela lógica
megárico-estóica. O mais famoso de tais paradoxos era o do mentiroso que
Cícero exprimia dizendo: "Se tu dizes que mentes, ou dizes verdade e então
mentes, ou dizes mentira e então dizes a verdade" (Acad., IV, 29, 96). A
solução de Occam é que a proposição "eu minto" não pode entender-se como se
fosse verdadeira no sentido de "eu minto que **nu,*nto". Com efeito, aquela
proposição pode ser falsa, mas precisamente porque pode somente ser falsa não
significa, por si mesma, nem a verdade nem a falsidade (Summa log., 111,
111, 38). Por outras palavras, tratar-se-ia duma proposição indecisível, no
sentido em que esta palavra é usada na lógica moderna.

§ 318. GUILHERME DE OCCAM: A DISSOLUÇÃO DO PROBLEMA ESCOLÁSTICO


Uma atitude de tão radical empirismo devia conduzir a uma nítida rejeição do
problema escolástico desde o seu esquema básico. Dado que o único
conhecimento possível é a experiência (da qual deriva o próprio conhecimento
abstractivo) e

182

dado que a única realidade cognoscível é a que a experiência revela, isto é,


a natureza, qualquer realidade que transcenda a experiência não pode
alcançar-se por via natural e humana. Com efeito, Occam afirma explicitamente
a heterogeneidade radical entre a ciência e a fé. Trata-se de atitudes que
não podem subsistir conjuntamente: mesmo quando a fé parece seguir a ciência,
como no caso de se crer numa conclusão de que esquecemos a demonstração, não
se trata verdadeiramente de fé porque se mantém firme a conclusão somente
enquanto se sabe que é baseada numa demonstração (In Sent., III, q. 8 R). Mas
não é este o caso da fé religiosa, a qual só poderia ser demonstrada se se
tivesse um conhecimento de Deus e da realidade sobrenatural; conhecimento que
é impossível ao homem (Quodl.,
11, q. 3). Os milagres e os sermões, embora possam produzir a fé, não podem,
de facto, produzir o conhecimento da sua verdade. A evidência não pode estar
unida à falsidade: o serraceno pode ser convencido pelos milagres e pelos
sermões da lei de Maomé, que todavia é falsa (1b., IV, q. 6). A conclusão de
tudo isto está exposta numa passagem da Lógica (111, 1): "Os artigos de fé
não são princípios de demonstração, nem conclusões, e nem sequer são
prováveis, já que parecem falsos a todos ou à maioria ou aos sábios,
entendendo por sábios os que se confiam à razão natural, já que só de tal
modo se entende o sábio na ciência e na filosofia". Não poderia ser concebida
uma exclusão mais completa da verdade revelada do domínio do conhecimento
humano: as verdades de fé não são evidentes por si mesmas, como os princípios
da demonstração, não são demonstráveis, como as conclusões da própria
demonstração; e não são prováveis porque podem parecer, e parecem, falsas aos
que se servem da razão natural. O problema escolástico é assim declarado, por
Occam, como

183

in"úvol o desprovido de todo o significado. A teologia deixa de ser uma


ciência e transforma-se numa simples amálgama de noções práticas e
especulativas, inteiramente desprovidas de evidência racional e de validade
empírica (In Sent., prol., q. 12).

As próprias provas da existência de Deus não têm, para Occam, valor


demonstrativo. E, com efeito, a existência de uma realidade qualquer é
revelada ao homem unicamente pelo conhecimento intuitivo, isto é, pela
experiência; mas o conhecimento intuitivo de Deus não é dado ao homem **viator
(lb., 1, d. 2, q. 9 Q; d. 3, q. 2 F). E dado que a existência e a essência
estão unidas, e que só se conhece a essência daquilo de que intuitivamente se
conhece a existência, o homem, na verdade, não conhece nem a existência nem
a essência de Deus (lb., 1, d. 3, q. 3 Q). A proposição "Deus existe" Dão é,
portanto, evidente. A existência não se predica so-mente de Deus mas também
de todas as outras coisas reais; não pode, portanto, fazer parte da essência
de Deus, nem ser-lhe -intrínseca Ub., 1, d. 3, q. 4 G). A prova ontológica é
rechaçada (Quodl., VII, q. 15).

Também não possui valor demonstrativo a prova cosmológica que o aristotelismo


introduzira na escolástica latina e que era considerada com a mais forte.
Occam nega o valor dos dois princípios em que esta prova se baseia. Não é
verdade, em sentido absoluto, que tudo o que se move seja movido por outrem:.
a alma e o anjo movem-se por si mesmos, assim como o peso que tende para
baixo. Nem é verdade, em sentido absoluto, que é impossível remontar até ao
infinito na série dos movimentos, já que nas grandezas contínuas o movimento
se transmite necessariamente de uma a outra das infinitas partes que o
compõem (Ceia. theol., 1 D). Quanto à prova tirada do movimento causal, é

184

impugnada por Occam no seu próprio fundamento, já que ele não considera ser
demonstrável que Deus seja causa eficiente, total ou parcial, dos fenómenos,
e que não bastem unicamente, as causas naturais para explicar os fenómenos
(Quodl., 11, q. 1). A conclusão é que tais provas, privadas como são de todo
o valor apodíctico, podem determinar no homem somente uma razoável
persuasão. Já que se Deus não exercesse nenhuma acção no mundo, com que fim
se lhe afirmaria a existência? A acção de Deus no mundo é pois um simples
postulado da fé, desprovido de valor racional (lb., 11, q. 1; In Sent., 11,
q. 5 K).

Também não se podem demonstrar os atributos fundamentais de Deus. Em


primeiro lugar, não se pode estabelecer com certeza que haja um único Deus:
nenhum inconveniente derivaria da admissão de uma pluralidade de causas
primeiras, porque, podendo cada uma delas querer só o melhor, nunca estariam
descordantes entro si e governariam o mundo com unânime acordo (In Sent., 1,
d. 2, q. 10; Qlíodl., 1, q. 1). Também não se pode demonstrar a imutabilidade
de Deus, que parece negada pelo facto de Deus ter assumido, com a incarnação,
uma natureza inferior e depois a ter abandonado (Cent. theol., 12). Também
não podem atribuir-se a Deus por via demonstrativa nem a omnipotência nem a
infinitude, e a respeito desta última, Occam -refuta os argumentos de Duns
Escoto (Qliodl., VII, qq. 11-17). De Deus não se pode ter mais do que um
conceito composto de elementos extraídos das coisas naturais por abstracção
(In Sent., 1, d. 3, q. 2 F). No Centiloquium theologicum desenvolve Occam uma
série de conclusões de que ele próprio diz que Potius sunt incedibíles quam
asserendae, e que por isso as expõe a título de mero Cxercício lógico. Estas
conclusões constituem uma redução ao absurdo da hipótese da criação. Dado
que na eternidade, como ensinou Santo Agostinho, não existe um antes nem um
depois, não é necessário admitir que Deus existisse antes da criação ou que
existirá depois (Cent. theol., 47 D). A eternidade de Deus significa somente
que Deus não tem causa da sua existência nem, por conseguinte, começo ou
fim do seu ser; mas isto não lhe confere uma duração para além dos limites
temporais do mundo, sendo o próprio conceito de duração estranho à sua
natureza. Occam, detém-se nas consequências paradoxais desta conclusão, assim
como na absoluta irracionalidade do dogma cristão da Trindade: "Que uma única
essência simplicíssima seja três pessoas realmente distintas-é
coisa de que nenhuma razão natural pode persuadir e é afirmada únicamente
pela fé católica, como o que supera todo o sentido, todo o intelecto
humano e quase toda a razão" (Ib., 55). O desconhecimento da possibilidade de
interpretação racional da verdade revelada é em Occam tão completo e decidido
que assinala a etapa final da escolástica. O problema escolástico continuará,
depois de Occam, a sobreviver de algum modo nas escolas, mas será a
sobrevivência de um resíduo, abandonado fora do círculo vital da filosofia,
que, a partir de agora, se alimentará de outros problemas.

§ 319. GUILHERME DE OCCAM: A CRITICA DA METAFíSICA TRADICIONAL

A metafísica de Occam é substancialmente uma crítica da metafísica


tradicional. Vimos já como ele regeita a distinção real entre essência e
existência, de que S. Tomás se servira para reformar a metafísica
aristotélica e a adaptar às exigências da explicação dogmática. À pergunta
sobre a existência. de uma coisa qualquer, não se pode responder se não

186

se possui o conhecimento intuitivo da própria coisa, isto é, se a coisa não é


percebida por algum sentido particular ou, no caso de se tratar de uma
realidade inteligível, senão é intuída pelo intelecto de modo análogo àquele
em que a potência visual vê o objecto visível. "Não se pode conhecer com
evidência que a brancura existe, ou pode existir, se não se tiver visto
qualquer objecto branco; e embora eu possa acreditar naqueles que contam que
o leão e o leopardo existem, eu, contudo, não conheço tais coisas com
evidência se não as tiver visto" (Summa log., 111, 2, c. 25). O ser tem,
portanto, um significado unívoco que é o intuitivo e empírico; e não se
pode predicar de Deus a não ser no sentido em que se predica das coisas
naturais (Quod[., IV, q. 12).

O princípio empirista vale para Occam como cânon crítico dos conceitos
metafísicos tradicionais. A substância só é conhecida através dos seus
acidentes (lb., 111, q. 6). Não conhecemos o fogo em si mesmo, mas sim o
calor que é acidente do fogo; por isso não temos da substância senão
conceitos conotativos e negativos como " o ser que subsiste por si", "o ser
que não existe em outrem", que "é sujeito dos acidentes", etc. Portanto, não
é senão o substrato desconhecido das qualidades que a experiência revela (In
Sent., 1, d. 3, q. 2). Tão- pouco possui validade empírica o outro
conceito metafísico fundamental, a causa. Do conhecimento de um fenómeno não
se pode nunca chegar ao conhecimento dum outro fenómeno que seja a causa ou o
efeito do primeiro; já que de nada se tem conhecimento senão através dum acto
de experiência, e causa e efeito são duas coisas diferentes, embora conexas,
que exigem, para ser conhecidas, dois actos de experiência diferentes (lb.,
prol., q. 9 F). A crítica que o empirismo inglês de Locke e Hume fez dos
conceitos de substância e de causa encontra aqui

187

mn Precedente, que dele antecipa não a letra, mas também o espírito-


compreende-se que, deste ponto de vista, os conceitos fundamentatis da
metafísica aristotélica, os de matéria e forma, sofram uma transformação
radical. Occam insiste na individualidade dos princípios metafísicos da
realidade. Tantos são os princípios, diz ele, quantas as coisas geradas. Com
efeito, os princípios não podem ser universais, porque nenhum universal é
real e nenhum universal pode ser princípio de uma realidade individual. Devem
então ser individuais, o que quer dizer que são numericamente, diferentes nos
vários indivíduos, e que a forma e a matéria duma coisa são diferentes da
forma e da matéria duma outra coisa (Summulae phys., 1, 14). Quanto à
matéria, ela possui uma sua actualidade própria, independente da forma
substancial, da qual é susceptível em potência: ~ está aqui de acordo com
toda a tradição franciscana. Mas acrescenta que a actualidade da matéria como
tal consiste na extensão. É impossível, com efeito, que a matéria exista sem
extensão; não há matéria que não tenha uma. parte distante de outra parte,
pelo que, embora as partes da matéria possam unir-se entre si como, por
exemplo, se unem as da água ou do ar, nunca podem, contudo, existir no mesmo
lugar. Ora a distância recíproca das partes da matéria é a extensão (lb., 1,
19).
Mas a separação de Occam em relação à metafísica aristotélica é assinalada,
de modo ainda mais evidente pela sua crítica da causa final. A causalidade do
fim consiste em ser amado ou desejado pelo agente; mas que o fim seja amado e
desejado não significa que ele actue, seja de que maneira for, efectivamente:
a causalidade do fim é, pois, metafórica, não real (In Sent., 11, q. 3 G). É
impossível demonstrar, quer mediante proposições evidentes, quer
empIricamente, que qualquer efeito tenha uma

188

causa final; os agentes naturais actuam dum modo uniforme e necessário, e por
isso excluem todo o elemento contingente ou mutável, como seriam precisamente
o amor ou o desejo do fim (Quodl., IV, q, 2). E também não é demonstrável a
causalidade teleológica de Deus, já que os agentes naturais, privados como
são de conhecimento, produzem os seus efeitos independentemente do
conhecimento de Deus. A questão propter quid não tem lugar nos acontecimentos
naturais, não tem sentido perguntar com que fim se gera o fogo, já que não se
requer a existência do fim para que o efeito se produza (Quodl,, IV, q. 1).
Esta crítica de Occam, que preludia a famosa crítica de Espinoza, é animada
pelo mesmo espírito: o seu pressuposto é a convicção de que os acontecimentos
naturais se verificam em virtude de leis necessárias que lhes garantem a
uniformidade e excluem todo o arbítrio ou contingência.

§ 320. GUILHERME DE OCCAM: PREVÊ A NOVA FíSICA

O desinteresse, pela investigação do problema teológico coincide com o


interesse pólo problema da natureza. O mesmo empirismo conduzia Occam
* considerar mais profundamente a natureza, já que
* natureza é precisamente o objecto da experiência sensível. Occam considera
a natureza como o domínio próprio do conhecimento humano, para ele, a
experiência deixa de ter o carácter iniciático e mágico que ainda conservava
em Bacon, e transforma-se num campo de investigação aberto a todos os homens,
enquanto tais. Esta atitude permite-lhe a máxima liberdade de crítica frente
à física aristotélica. Através dessa critica abrem-se numerosas vigias sobre
a nova concepção do mundo, as quais serão defendidas e assumidas pela
filosofia do Renascimento. As possibilidades descobertas por

189

~In converter-se-ão no Renascimento em afirmações **zesolutas e constituirão o


fundamento da ciência moderna.

Occam põe em dúvida pela primeira vez a diversidade de natureza,


estabelecida pela física aristotélica, e mantida por toda a filosofia
medieval, entre os corpos celestes e os corpos sublunares. Tanto uns como
OutrOs são formados Pela. mesma matéria: o princípio metodológico da economia
impede admitir a diversidade das substâncias, dado que tudo o que se explica
admitindo que a matéria. dos corpos celestes é diferente da dos elementos
sublunares Se pode explicar admitindo que as duas matérias são da mesma
natureza Un Sent., II, q. 22 B). Nem sequer Os seguidOres de Occam manterão
a este respeito a afirmação do mestre, é necessário chegar a Nicolau de Cusa
para encontrar novamente negada, e desta vez para sempre, a diversidade entre
substânCia. celeste e substância sublunar.

Contra Aristóteles, Occam admite e dde**rlde a Possibilidade de mais mundos.


A argumentação de Aristóteles (De Coelo, 1, 9, 276 a) segundo a qual se
existisse um mundo diferente do nosso, a terra desse mundo mover-se-ia
naturalmente para o centro e unir-se-á à nossa, e, do mesmo modo, todos os
Outros** CICInOntos se reuniriam na própria esfera fOrmando um mundo único, é
combatida por Occam através da negação das determinações absolutas do esPaÇO
admitidas Por Aristóteles. Um mundo diferente do nosso teria um Outro
centro, uma outra circunferência, um acima e um abaixo diferentes, e Os
movimentos dos elementos estariam pois dirigidos para esferas diferentes
e não se verificaria a conjunção Prevista por Aristóteles (In Sen_t., 1, d.
44, q. 1 F, Cel?t. theol., 2 D). Esta relatividade das determinaÇões
espaciais do universo será um dos PORtOS fundamentais da física do
Renascimento,

190

Segundo Occam, também a infinitude da potência divina predispõe a admitir a


pluralidade dos mundos. Deus pode produzir outra matéria, além daquela que
constitui o nosso mundo; pode também produzir um número infinito de
indivíduos das mesmas espécies existentes no nosso mundo; nada impede, pois,
que com eles forme um ou mais mundos diferentes do nosso (In Sent., 1, d. 44,
q. 1 E).

Mas a pluralidade dos mundos implica a possibilidade do infinito real. Já a


negação das determinações espaciais absolutas abria a via para admitir
esta possibilidade. Com efeito, no infinito, tal como se dirá no
Renascimento, o centro pode estar em qualquer parte. Deus pode sempre criar
uma nova quantidade de matéria a acrescentar à existente, e assim pode
aumentar infinitamente a magnitude do mundo (1b., 1, d. 17, q.
8 D). Ã objecção alegada por Rogério Bacon (Op. tertium, 41, ed. Brewer, p.
141-142) de que o infinito não pode ser real porque nele a parte seria
idêntica ao todo, responde Occam que o princípio segundo o qual o todo é
maior do que a parte vale para um todo finito, não para um todo infinito.
Onde existir um número infinito de partes, o princípio não é válido; e assim,
nu-ma fava existem tantas partes quantas existem no universo inteiro, porque
as partes da fava são infiinitas (Cent. theol.,
17 Q Quod[., 1, q. 9). Paralelamente à infinitude de magnitude Occam admite
também a infinitude de divisão. Qualquer magnitude contínua é
infinitamente divisível e não existem entidades indivisíveis. Qualquer
magnitude contínua pode ter, diz Occam, o mesmo número de partes que o céu e
a mesma proporção, ainda que sem a mesma virtude absoluta (Quodl., 1, q. 9).

FinAlmente, Occam admite e defende a possibilidade de o mundo ter


produzido ab aeterno, Também isto elo não afirma explicitamente, Emi-

191

J4, ** tando-se a desimpedir o caminho das objecções

Possíveis. Ã objecção de que se o mundo fosse eterno se teria já verificado


um número infinito de revoluções celestes, o que é impossível porque um
número real não pode ser infinito, responde Occam que assim como num contínuo
cada parte, juntada a outra, forma um todo finito, embora as próprias partes
sejam infinitas, também cada revolução celeste, juntada às outras, forma
sempre um número finito, ainda que no seu conjunto as revoluções celestes
sejam infinitas (In Sent., II, q. 8 D). Occam tinha consciência de que a
eternidade do mundo implica a sua necessidade, já que aquilo que é o terno não
p
e ser senão produzido necessariamente (Quodl., od
11, q- 5). Sabe ainda que a eternidade do mundo exclui a criação, porque esta
implica a não existência da coisa antes do acto da sua produção (In Sem., 11,
q. 8 R). No entanto considera que a própria eternidade é altamente provável,
dada a dificuldade. de conceber o início do mundo no tempo. A pluralidade
dos mundos, a sua infinitude e eternidade são, portanto, possibilidades, que,
por obra de Occam se abrem à investigação filosófica. Alguns séculos mais
tarde, no Renascimento, estas possibilidades converter-se-ão em certezas, e
a visão do mundo que Occam havia entrevisto será então reconhecida como a
própria realidade do mundo.

§ 321. GUILHERME DE OCCAM: A ANTROPOLOGIA

A crítica de Occam visa aqui o conceito central da psicologia, o de alma,


cOMO forma imaterial incorruptível. A nossa vida espiritual é-nos dada na
experiência: mediante a intuição, conhecemos directamente os pensamentos, as
volições, os nossos estados interiores. Mas o conhecimento interior nada nos
diz sobre uma pretensa forma incorruptível, que

192

seja o substrato a que são inerentes os nossos estados de consciência. Nem


tão-pouco chega a esse substrato mediante o raciocínio porque toda a
demonstração nesse sentido é duvidosa e pouco concludente. "Aquele que segue
a razão natural, diz Occam, admitiria somente que experimentamos em nós a
intelecção que é o acto de uma forma corpórea e corruptível. E,
consequentemente, diria que uma tal forma poderia ser recebida na própria
matéria. Mas nunca experimentamos aquela espécie de intelecção que é a
operação própria de uma substância imaterial; portanto, mediante a intelecção
não podemos concluir que exista em nós, como forma, uma substância
incorruptível" (Quodl,, 1, q. 10). Por outras palavras, Occam admite a
possibilidade de ser o próprio corpo a pensar, isto é, que o corpo seja o
sujeito dos actos de intelecção, os quais constituem o único dado seguro de
que o raciocínio pode partir neste campo.

O conceito de intelecto activo, que tanto trabalho dera ao aristotelismo


árabe e latino, é sem mais eliminado por Occam como inútil para explicar o
funcionamento do conhecimento. Com efeito, ele não é necessário para a
formação dos conceitos. Todos os conceitos, tanto as intenções primeiras como
as intenções segundas, são causados naturalmente, isto é, sem que
intervenham nem o intelecto nem a vontade, pelos objectos singulares
presentes na experiência. Conhecidas as coisas singulares na intuição,
formam-se em nós espontaneamente, Dela sua acção, os universais e as
intenções segundas. Se, por exemplo, alguém vê duas coisas brancas, abstrai
das duas coisas a brancura Que têm em comum: o que quer dizer que a noção
daqueles dois objectos causa nele naturalmente, como o fogo causa o calor,
uma terceira noção distinta, que é o conceito do branco (In Sent., 11, q. 25
0), Trata-se, portanto, dum processo natural, isto é, neces-

193

sário, ou seja, independente de qualquer intervenção voluntária, processo


que tem o seu ponto de partida na realidade dada pela experiência e o seu
ponto de chegada na espontaneidade do intelecto. O intelecto activo não tem
nele nenhum lugar. Tão-pouco lhe pertence a função de dirigir a formação dos
juízos, tendendo a formar um juízo verdadeiro mais do que um falso,
afirmativo mais do que negativo.
O intelecto activo não poderia actuar senão dum modo uniforme e constante, em
qualquer ocasião e em qualquer circunstância, e deveria, portanto, dar
indiferentemente lugar a proposições verdadeiras ou proposições falsas ou a
umas e outras, sem tender pela sua parte nem para umas nem para outras.
Requere-se, aqui pelo contrário, uma causa não natural mas livre, como o é a
vontade, que dirige a atenção do homem e lhe gradua o esforço. O intelecto
agente é, portanto, inútil em toda a linha.

Entre a vontade e o intelecto estabelece Occam uma simples diferença de


nomes. Na realidade eles são idênticos entre si e com a essência da alma. A
diversidade dos seus actos não basta para estabelecer a sua própria
diversidade, já que mesmo os actos do intelecto são diferentes entre si. Nem
basta para os distinguir a diversidade do seu modo de agir, agindo o
intelecto necessariamente e a vontade livremente, já que esta diversidade não
implica uma diversidade de princípios: por exemplo, a vontade divina é
princípio necessário em relação ao Espírito Santo, princípio livre em relação
à criatura, mas não inclui por isto nenhuma diversidade (IB., 11, q. 24 K).

A vontade é livre. Por liberdade entende Occam "a faculdade de pôr


indeferente e contingentemente coisas diferentes, de modo a poder causar e
não causar o mesmo efeito, sem que nada mude excepto essa mesma faculdade"
(Q_uodl., 1, q. 16). A liberdade é, portanto, entendida por ele como puro e

194

simples arbítrio de indiferença. Não é outro o significado da palavra


liberdade, segundo Occam. Se w admite que a vontade seja de algum modo
determinada, será determinada precisamente no sentido de qualquer outra coisa
natural, e não bastará para diferenciar a sua determinação a diversidade da
sua natureza em relação à das coisas naturais; também as coisas naturais têm
naturezas diferentes e, todavia, o modo da sua determinação é um só e excluí
a contingência Un Sent., 1, d. 10, q. 2 G). A liberdade do querer não é
demonstrável com o raciocínio, mas -resulta evidente pela experiência, já que
o homem experimenta em si mesmo que, sugerindo-lhe a razão alGo, a vontade
pode quer-lo ou não o querer (Oi@odl., 1, ci. 166), Ou Deus possa prever as
acções humanas não obstante o seu carácter contingente e livre, é coisa que
não se pode entender e esclarecer de nenhum modo por parte do intelecto
humano (Jin Sent., I, d. 38, q. 1 U.

A vontade livre é o fundamento de toda a valoração moral. "0 homem, diz


Occam, pode** aQir louvavelmente ou repreensivelmente, e, por **conscouêne,a,
merecer ou desmerecer, porque é um 3Qente livre e Porque ninitos actos só a
ele são im,ni-itáveis" (Ouo@@Il., TTI, ci. 19). Todo o acto dif**erente dum
acto de vontade nole ser mau porque pode ,r evecutado com ilm** rn@oi fim
ou com uma má intf.-ncão; só o acto voluntário, enquanto está em noler do
homem, é ab<@ol1ihmente bom, se é conforme à recta r,97ãO (In Sent.**, T11,
ci.
10 R). Não basta o-ne o acto seia confcirme à recta razão para aue se**;a
virt,tio,zo: é, nec-ç@-;o wie der;ve exclu@s,ivgmelnte da vontade livre**. Se
1'",iis determinasse na minba vontade um acto conforme à recta ra7ãO. es@**te
acto n@o seria virtuo,-e> nem meritório (1b.j. Mpis se o unIor moral do**
beimem dnnende eyelusiva mente da Ilberda-le do horn,-ni, o deRtino
ultr@:,,miinAnno do h(,imí-,m depende excluisiva mente da liberdade de Deus.

195
Occam faz a sua tese oposta à de Pelágio: nada há que possa constranger Deus
a salvar um homem: ele concede a salvação só com uma graça e livremente,
ainda que de potentia ordinata não possa regular-se senão pelas leis que ele
mesmo voluntária e contingentemente ordenou (In Sent., 1, d. 17, q. 1 M).
Mas Occam tira da liberdade de escolha divina que pode predestinar ou
condenar quem quiser, independentemente dos méritos humanos, uma consequência
paradoxal. Não é contraditório que Deus considere meritório um acto privado
de qualquer disposição sobrenatural; assim como ele voluntária e livremente
aceita como meritório um acto inspirado pela disposição sobrenatural da
caridade, também pode aceitar igualmente um acto voluntário privado de tal
disposição (1b., 1, d. 17, q. 2 D). Isto significa que a salvação não está
impedida para quem vive somente segundo os ditames da recta razão. "Não é
impossível, diz Occam (1b., 11, q- 8 C), que Deus ordene que aquele que vive
segundo os ditames da recta razão e não crê em nada que lhe não seja
demonstrado pela razão natural, seja digno da Vida eterna. Em tal caso,
também pode salvar-se aquele que na vida não teve outro guia senão a recta
razão". Esta é uma opinião que coloca Occam para além dos limites da Idade
Média: a fé já não é uma condição necessária da salvação. A livre
investigação filosófica confere ao homem tal nobreza que pode torná-lo digno
da vida eterna.

Que a vida eterna consista no gozo e na posse de Deus, é opinião de pura fé.
Não se pode demonstrar que tal gozo seja Possível ao homem. Não se pode
demonstrar que o homem não possa verdadeiramente repousar senão em Deus.
Finalmente, não se pode demonstrar que o homem possa, de qualquer modo,
repousar definitivamente, já que a vontade humana, pela sua liberdade, pode
sempre

196

tender para outra coisa e sofrer se não a alcançar (1b., 1, d. 1, q. 4 F). A


liberdade é também aqui insatisfação, ilimitação das aspirações, ou seja,
aquilo que Bruno denominará de heróico furor.

Quanto ao pecado, ele é a simples não conformidade da vontade humana com o


mandamento da vontade divina. Deus não é obrigado a nada, dado que nenhuma
norma limita ou pode limitar as possibilidades infinitas da sua vontade, mas
concorre como causa eficiente no pecado do homem. Não obstante isso, o pecado
não é imputável a Deus, que nada deve a ninguém, e que por isso não é obrigado
nem àquele acto nem ao seu oposto: Deus, portanto, não peca, embora seja a
causa do pecado humano. A vontade criada pelo contrário, é obrigada pelo
preceito divino e peca quando o transgride. Sem a obrigação estabelecida por
aquele preceito não haver-ia pecado para o homem, como o não há para Deus
(1b., IV, q. 9 E ).

§ 322. GUILHERME DE OCCAM: O PENSAMENTO POLíTICO

Occam é, com Marsílio de Pádua. (autor do Defensor pacis), o maior


adversário, na sua época, da supremacia política do papado. Mas enquanto que
Marsílio de Pádua, jurista e político, parte da consideração da natureza dos
reinos e dos estados em geral para a solução do problema das relações entre o
Estado e a Igreja, Occam visa reivindicar a liberdade da consciência
religiosa e da investigação filosófica contra o absolutisimo papal. A lei de
Cristo, segundo Occam, é lei de liberdade. Ao papado não pertence o poder
absoluto (plenitude potestatis) nem em matéria espiritual nem em matéria
política. O poder papal é ministrativus, não dominativus: foi instituído para
proveito dos súbditos, não para que lhes fosse tolhida aquela liberdade
197

que a lei de Cristo, pelo contrário, veio aperfeiçoar (De imp. et pont. pot.,
VI, ed. Scholz, 11, 460). Nem o papa nem o concílio têm capacidade para
restabelecer verdades que todos os fiéis tenham de aceitar; dado que a
infalibilidade do magistério religioso pertence somente à Igreja, que é "a
multidão de todos os católicos que têm existido desde os tempos dos profetas
e dos apóstolos até à actualidade" (Dial. inter mag. et disc., 1, tract. 1,
c. 4, ed. Goldast, 11, 402). A Igreja é, por outras palavras, a livre
comunidade dos fiéis, que reconhece e sanciona, no decurso da sua tradição
histórica, as verdades que constituem a sua vida e fundamento. Por este seu
ideal da Igreja combate Occam o papado de Avinhão. Um papado rico,
autoritário e despótico, que tende a subordinar a si a consciência religiosa
dos fiéis e a exercer igualmente um poder político absoluto, afirmando a sua
superioridade sobre todos os príncipes e poderes da terra, devia parecer a
Occam a negação do ideal cristão da Igreja como comunidade livre, alheia a
toda a preocupação mundana, em que a autoridade do papado seja unicamente a
protecção da livre fé dos seus membros. Indubitavelmente, o mesmo ideal de
Occam animava a ordem franciscana na sua luta contra o papado de Avinhão. A
tese da pobreza de Cristo e dos apóstolos foi a arma de que serviu a ordem
franciscana para defender este ideal. Não somente Cristo e os apóstolos não
quiseram fundar um reino ou domínio temporal, como até nem quiseram ter
nenhuma propriedade comum ou individual. Quiseram sim fundar uma comunidade
que, não tendo em vista senão a salvação espiritual dos seus membros,
renunciasse a toda a preocupação mundana e a todo o instrumento de domínio
material. Tal é também a preocupação polémica de Occam. As palavras que
segundo um escritor antigo Occam dirigiu a Luís o Bávaro quando se refugiou

198

na sua corte: "0 Imperator, defende me gladio et ego defendam te verbo", não
exprimem a essência da obra política de Occam. Mais do que deter-se a
defender o imperador, ele contrapõe a Igreja ao papado e defende os direitos
da própria Igreja contra o absolutismo papal que pretende erigir-se em
árbitro da consciência religiosa dos fiéis. A Igreja é para Occam uma
comunidade histórica, que vive como tradição, ininterrupta através dos
séculos, a esta tradição reforça e enriquece o património das suas verdades
fundamentais. O papa pode errar e cair em heresia; também o concílio pode
cair em heresia pois que é formado por homens falíveis, mas não pode **catir
em
heresia aquela comunidade universal que não pode ser dissolvida por nenhuma
vontade humana e que, segundo a palavra de Cristo, durará até ao fim dos
séculos (Dial., 1, tract. 11, c. 25, ed. Goldast, 11,
494-495).

Deste ponto de vista, a tese sustentada pelo papado de Avinhão segundo a qual
a autoridade imperial procede de Deus somente através do papa e, portanto, só
o papa possui a autoridade absoluta tanto nas coisas espirituais com nas
coisas tem. **porais, tal tese devia parecer herética. Com efeito, assim
parece
a Occam, que mostra como ela é infundada, observando que o império não foi
instituído pelo papa, visto que já existia antes da vinda de Cristo (Octo
quaest., 11, 6, ed. Goldast, 11, 339). O império fdi fundado pelos Romanos
que primeiro tiveram os reis, depois os cônsules, e por último **eleacram o
imperador para que dominasse sobre todos elos sem ulteriores mudanças. Dos
Romanos foi transferido para Carlos Magno, e em seguida foi transferido dos
Franceses para a nação alemã. São, portanto, os Romanos, ou os povos aos
quais eles transferiram o seu poder, que têm o direito de eleição imperial.
Occam defende a tese afirmada

199

dieta de Rliens de 1338 de que a eleição por parte dos príncipes da


Alemanha basta por si só para fazer do eleito o rei e

imperador dos Romanos. Fica excluída toda a jurisdição do papado sobre o


império. Acerca das relações entre o império e o papado, Occam admite
substancialmente a teoria da independência recíproca dos dois poderes, teoria
que, afirmada pela primeira vez pelo papa Gelásio 1 (492-496), dominou quase
toda a Idade Média. Occam reconhece, todavia, uma certa jurisdição do
império sobre o papado, especialmente no que se refere à eleição do papa. Em
alguns casos, o próprio interesse da Igreja pode requerer que o papa seja
eleito pelo imperador ou por outros leigos (Dial., 111, tract. 11, lib. 111,
c. 3, ed. Goldast,
11, 917).

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 315. Elementos sobre a vida de Occam foram-nos deixados por velhos


escritores e cronistas como TRITIRMio, De scriptoribus ecelesiasticis e
WAI)DING, Annules minorum (ad annos 1308, 1323, 1347). A data da citação de
Occam a Avinhão é-nos dada por uma carta endereçada por Occam ao capitulo
geral dos franciscanos de Assis em 1334, carta publicada por K.MULLER, in
"Zeitschritt für Kirchengeschichte", 1884, p. 108 ss. Sobre a biografia de
Occam: HoFFR, in "Archivum francíscanum historicum", 1913, p. 209-233,
439-465, 654-669; HOCHSTETTER, Studien zur Met. u. Erkenntnislehre W. v. O.,
Berlim, 1927, p. 1-11; ABBAGNANO, G. Ockham, Lanciano, 1931, cap. 1. Novos
documentos parecem mostrar que Occam. foi citado a Avinhão por denúncia do
chanceler da Universidade de Oxford, John Luttereil: i. KocH, Neue
Aktenstücke zu dem gegen W. v. O. in Avignon geführten Prozes3, in "Rech. de
Théol. ancienne et rnédiévale", 1935, VII, p. 353-380; 1936, VIII, p. 168-
197; Fr. HOFFMANN, Die erste Kritik des Ockamismus durch den Oxforder KanzIer
Johannes LutterelI, Breslau, 1941; LÉON BAUDRY, G. d'O., sa vie, se& oeuvres,
ses idées sociales et politiques, I, L'homme et ses oeuvres, Paris,
1950.

200

Edições antigas: Quaestiones in quatuor libros Sententiarum, Lugduni, 1495.


Centiloquium theol., Lugduni, 1495 (conjuntamente com o precedente).
Exposítio aurea super totam artem veterem, Bonomae, 1496. Summulac in libros
physicorum o Philosophia naturalis, Bononiae, 1494; Venetiis, 1506; Romae,
1637. Quodlibeta septem, Parisüs, 1487; Argentinae, 1491. De sacramento
altaris et de corpore Christi, Argentinac, 1491 (conjuntamente com os
Quodlibeta). Summa totius logicae, Parisfis, 1488; Bononiae, 1498; Venetiis,
1508,
1522, 1591; Oxoniae, 1675.

Edições recentes: Quaestio prima principalis Prologi in priknum àbrum


Sententiarum cum interpretatione Gabri61is Biel, ed. Bõhner, Zurich-
Paderborn-New Jersey, 1939; De sacramento altaris, ed. Birch, Burling- ,ton
(Iowa) 1930: Tractatus de praedestinatione, ed. Bbhner, S Bonaventure (N.
Y.), 1945; Parihermeneias, ,ed. Bõhner, ir, "Traditio", 1946; Summa logicae,
ed. Bõhner, 1951-1954. Algumas questões inéditas foram publicadas por
CORVINO, in "Riv. crit. di st. della fil.",
1955, 1956, 1958.

As obras políticas foram reimpressas quase todas nos princípios do século


XVII por Melchior Goldast na sua Monarchia S. Romani Imperii, Francofordiae,
1614. No vol. Il desta obra estão incluídos: Opus nonaginta dierum; Tractatus
adversus errores Johannis XXII; Octo quaestionum decisione3 super potestatem
Summi Pontificis; Dialogus inter magistrum et discipu7um de Imperatorum,
et Pontificum potestate.

As outras obras: Contra Johannem XXII, Tractatus contra Benedictum XII,


Tractatus de potestate imperiali, De Imperatorum et Pontificum
potestate foram edi.tadas por SCHOLZ, Unbekannte Kirchenpolitische
Streitschriften aus der Zeit Ludwigs des Bayern, Roma, 1914, vol. 1. O De
Imperatorum et Pontificum potestate foi também editado em Oxford, 1927, por
Ke.nneth Brampton. A parte que falta foi publicada p,or MULDER, in "Archivum
franciscanum historicum",
1924, p. 72-97.

Algumas destas obras tiveram também edições recentes. Sobre Occam, para além
das obras já citadas: GOTTFRIED MARTIN, W. v. O., Untersuchungen zur
Onto7ogie der Ordnungen, Berlim, 1949 (sobre as doutrinas lógico-matemáticas
de O.); E. HOCTISTETTER. P, VIGNAUx, G. MARTIN, P. BõHNER, A. B. WOLTER. J.
SALAmucflA, A. HAMMAN, R: HORN, V. HEYNCK, W. O.

201

(1349-1949) Aufsdtze zu seiner Philosophie und Theologie, Münster-West.,


1950; VASOLI, G. d'O., Florenga,
1953.

§ 316. Sobre a teoria do conhecimento: HomsTETTER, Studien, cit.; DONCOEUR,


in "Revue néo-scol.",
1921, p. 5-25; S. G. TERNAY, W. of O.'s Nominalism., in "Phil. Review",
19366, p. 245-268; P. VIGNAUX, Nominalisme au XIVe siècle, Montréal-Paris,
1948.

§ 317. Sobre a lógica: MOODY, The Logic of W. of O., Londres-New York, 1935;
BõHNER, Ockham's Theory of Signification, in "Frane. Stud.", 1945; MOODY,
Truth and Consequence in Mediaeval Logie, Amsterdão, 1953.

§ 318. Sobre a teologia: ABBAGNANO, 0p. Cit. cap. VI; R. GUELLUY, Phil. et
théol. chez G. dIO., Louvain-Paris, 1947 (com bibl.).

§ 319. Sobre a metafísica: HOCHSTETTER, op. Cit.,


12-26, 56-62, 139-173; MENGEs, The Concept of Univocity Regarding the
Predication of God and Creature, According to W. O., St. Bonaventura (N. Y.),
1952.

§ 320. Sobre a física: DUHEM, Êtudes sur Léonard de Vinci, II, Paris, 1909,
p. 39-42, 76-79, 85-86,
257-259, 416; DELISLE BURNS, in "Mind", 1916, p. 506-512.

§ 321. Sobre a antropDIogia: WERNER, in "Sitzungb. d. k, Akad. d. Wiss.


philos. hist. kl.", vol: 49:1,
1882( p. 254-302; SIEBEK(sobre a doutrina da vontade), in. "Zeitsehrift f.
Philos.", 1898, p. 195-199.

Sobre a ética: DIETRICII,Geschichte der Etnik, III, Leipzig, 1926, p. 171-


181.

§ 322. Sobre a doutrina pGlítica: RIEzLrR, Die literaíschen Widersacher der


Pãpste zur Zeit Ludwigs des Bayern., Leipzig, 1874; DEMPF, Sacrum Imper-*um,
Munich, 1929; R. SciiOLZ, W. v. O. aIs politischer Denker und sein
Breviloquium de principatu tyrannico, in Schriften des Reichsinstitute für
ãIterer deutsche Geschichtskunde, VIII, Leipsiz, 1944.

Sobre a personaRdade de Oceam: ABBAGNANO, op. Cit.; ROCHSTETTER, in W. O.


(1349-1949), P. 1-20.

Bibliografia actualizada por V. HEYNCK na citada recolha de estudos, p. 164-


183.

202

XXIII

O OCCAMISMO

§ 323. OCCAMISMO: CARACTERíSTICAS


DA ESCOLÁSTICA FINAL

Depois de Occam, a Escolástica, não voltou a ter nenhuma grande


personalidade nem nenhum grande sistema. O seu ciclo histórico está concluído
e ela vive da herança do passado. O tomismo, o escotismo, o occamismo são as
escolas que entre si disputam o campo, defendendo polemicamente as doutrinas
dos seus respectivos chefes, por vezes exagerando-as ou deformando-as,
raramente as desenvolvendo ou prestando-lhe um contributo original. Frente ao
tomismo e ao escotismo que representam a via antiga, o occamismo representa a
via moderna, ou seja a crítica e o abandono da tradição escolástica. Os
"modernos" são os "nominalistas", que se confiam à razão natural e excluem
toda a
possibilidade de interpretação racional da verdade revelada.

A 23 de Setembro de 1339 a doutrina occamista era proibida em Paris; e a 29


de Dezembro de 1340 a condenação era confirmada com a proibição de numerosas
proposições occamistas (Denifle, Chart.

203

1~

Univers. Paris., 11, 485, 505 e seguintes). Mas apesar das proibições e
condenações, o occamismo difundia-se rapidamente e bem depressa conquistava,
nas mais famosas Universidades, numerosos discípulos, os quais lhe acentuaram
a tendência crítica e negativa, não só nas questões teológicas mas também nas
filosóficas. O número das questões declaradas insolúveis sob o ponto de vista
da razão natural e dos princípios declarados desprovidos de qualquer base
experimental, aumentava continuamente. A escolástica conservava a sua
estrutura exterior, o seu proceder característico, o seu método de análise e
de discussão. Mas esta estrutura formal voltava-se contra o seu próprio
conteúdo, mostrando a inconsistência lógica ou a falta de fundamentação
empírica das doutrinas que tinham constituído a substância da sua tradição
secular. Todavia, à medida que os [problemas tradicionais se esvaziavam de
conteúdo, ia-se reforçando o interesse pelos problemas da natureza que já
haviam abrangido uma parte tão notável da especulação de Occam. Na usura a
que o occamismo submetia todo o conteúdo da tradição escolástica, iam
amadurecendo novas forças, forças que se vieram a desenvolver na filosofia do
Renascimento.

§ 324. PRIMEIROS DISCíPULOS DE OCCAM

Discípulo de Occam em Oxford foi o franciscano inglês Adão Wodham ou Goddam,


falecido em 1358, ao qual o mestre dedicou a Summa totius logicae. Temos dele
um Comentário às Sentenças no qual são defendidas as teses fundamentais de
Occam. Considera a fé como fundada precisamente numa lógica diferente da
natural, uma lógica na qual não é válido, o princípio da não contradição.

204

O dominicano inglês Roberto Holkot, falecido em


1349, foi outro dos sequazes de Occam, professor de teologia em Cambridge e
autor de um Comentário às Sentenças e de escritos morais e exegéticos, entre
os quais, os exegéticos, se situam as Praelectiones in librum Sapientiae. O
cronista Aventino cita entre os principais nominalistas, juntamente com João
Buridan e Marsílio de Inghen, o frade agostinho Gregório de Rimini que
estudou em Paris, Bolonha, Pádua e Perugia e foi mestre de teologia em Paris.
Escreveu um Comentário ao primeiro e segundo livros das Sentenças e faleceu
em 1358. A preponderância do occamismo na Universidade de Paris é demonstrada
pelas condenações sofridas por dois mestres da Universidade de Paris nessa
época: João de Mirecourt e Nicolau. de Autrecourt.

De João de Mirecourt (de Mirecuria) foram condenadas em 1347 pelos mestres de


teologia de Paris
40 teses extraídas de um Comentário às Sentenças que ficou inédito. Estas
teses são exagerações de princípios occamistas; entre elas encontra-se a de
que Deus é causa do pecado e que o homem peca com o beneplácito da vontade
divina; a de que a caridade não é necessária para a salvação da alma e que,
portanto, o ódio ao próximo não é necessariamente demeritório (Denífle,
Chart., 612, n. 34,
611, n. 27). Pertencia à ordem de Cister e por isso foi chamado pelos seus
contemporâneos "o monge branco" (monachus albus).

Nicolau de Autrecourt (de Ultricuria) estudou em Paris, foi membro da


Sorbonne e magister artium. A 21 de Novembro de 1340 foi chamado por Bento
XII à corte de Avinhão para responder por heresia. Em 1346 foram condenadas
60 teses extraídas de duas cartas a Bernardo de Arezzo, de uma carta a
**4EQíd@o e de um Tractatus universalis indicado por vezes 4pdas palavras
iniciais Exigit ordo executionis. Nicolau arrependeu-se dos seus erros

205

e morreu em 1350 como decano da cátedra de Metz.

O fundamento do saber é, para NicoMu de Autrecourt como para Occam, o


conhecimento intuitivo. Mas a característica própria desse conhecimento não
consiste, para ele, na sua referência à coisa existente enquanto mas antes na
maior clareza que ele possui frente ao conhecimento abstractivo. Com efeito,
qualquer conhecimento é conhecimento duma coisa existente; mas "se Deus, como
se crê, conhece tudo com perfeita clareza, o nosso conhecimento intuitivo
poderia chamar-se abstractivo em relação ao conhecimento de Deus, o qual,
pelo contrário, deveria chamar-se simplesmente intuitivo" (Tract., 242). Além
disto, o próprio conhecimento intuitivo, embora seja medilda e fundamento, de
toda a certeza, não constituí a verdade absoluta. Ele é, com efeito, a
evidência, ou seja, o manifestar-se, da coisa existente; mas, diz Nicolau
(Tract., 228-229) "que aquilo que se manifesta de modo próprio e último como
existente existia, e que aquilo que se manifesta como verdadeiro seja
verdadeiro, é uma conclusão, **umeamente provável: mais provável, não mais
verdadeira, do que a conclusão oposta". De modo que nem sequer a última
certeza atingível naturalmente pelo homem implica uma garantia absoluta de
verdade mas goza umicamente de um grau eminente de probabilidade. Ms um
típico e notabilíssimo desenvolvimento, do occamismo: a crítica iniciada por
Occam dá mais um passo em frente com Nicolau de Autrecourt. E este passo em
rigor, não se destina a desvalorizar a experiência, que é a forma primária e
última" do conhecimento intuitivo. A experiência, por exemplo, daquele que,
estando em Roma, vê que Roma é uma grande cidade, não está sujeita a erro (
que Só pode aparecer no juízo feito sobre ela) enquanto é assumida na sua
forma última, ou seja, presente
206

ou actual, e constitui o critério de validade de qualquer outra manifestação.


Nicolau de Autrecourt insiste, portanto, como Occam (Summa log., 111, 2,
25), que esta certeza máxima é limitada à acção actual e não subsiste para
além dela. Analogia do ponto de vista de Occam e Nicolau de Autrecourt com o
de Locke (inclusivé no exemplo, que, no caso de Locke, é o de Constantinopla)
é evidente.

É evidente também, na obra destes occamistas, o alargamento que sofre o


conceito de conhecimento, que passa a abranger o provável e que, em Locke,
que é quem no mundo moderno recolhe a herança do occamismo, se transforma
numa extensão do conceito de razão até ao domínio do provável. Compreende-se
que Autrecourt não possa reconhecer à metafísica aristotélica aquele valor de
saber necessário (ou seja, demonstrativo) que lhe atribuíam os Escolásticos
de tipo antigo. E compreende-se que renove com substancial fidelidade a
crítica de Occam contra os dois conceitos, fundamentais de tal metafísica, os
de substância e de causa, nesta crítica, serve-se do princípio de não
contradição que lhe parece o único apto a garantir aquela certeza que se pode
conseguir na **deincinistração. O princípio de não contradição não permite
inferir que, posto que uma coisa exista, deva também existir uma coisa
diferente como efeito da primeira. Portanto, o princípio de causalidade não é
baseado no princípio de não contradição, não há pois, certeza mas só
probabilidade. Do facto de o fogo ser fogo não se segue que **arla: a
combustão é , portanto, o seu efeito provável, mas não é uma consequência
evidente (Lappe, pap- 327). Considerações análogas valem para o conceito de
substância. Da substância, nós conhecemos os acidentes; mas dos acidentes não
podemos remontar com toda a evidência até à existência da substância. Se a
substância é qualquer coisa de diferente dos objectos dos

207

sentidos e da nossa experiência interna, é impossível afirmar a sua


realidade, já que da existência de uma coisa se não pode inferir de modo
algum a existência de uma outra (1b., 12, 20-29). Juntamente com estes pontos
fundamentais, Nicolau de Autrecourt defende também outras teses occamistas: a
negação da finalidade do mundo, probabilidade de o mundo ser eterno; C opõe à
física, aristotélica, como, pelo menos, igualmente provável, a hipótese pré-
aristotélica dos átomos e do vazio.

§ 325. OCCAMISMO: O NATURALISMO

NA ESCOLA OCCAMISTA

As intuições físicas de Occam, que são o ponto de partida da mecânica e da


astronomia modernas, são retomadas por um corto número de sequazes. Um deles
é João Buridan, nascido em Béthune, no Artoís, mestre e reitor da
Universidade de Paris, de quem temos notícias até 1358, ignorando-se, no
entanto, o ano da sua morte. Buridan escreveu comentários à Física, à
Metafísica, à Política, ao De anima e aos Parva naturalisa de
Aristóteles. A atitude geral da obra de Buridan segue de perto a de Occam,
mas, por vezes, Buridan vai além de Occam no desenvolvimento empirista e
naturalista de certas teses. Por exemplo, para Occam, a distinção
tradicional entre conhecimento sensível e conhecimento intelectual não tem
grande importância porque o primeiro lugar é assumido pela distinção entre
conhecimento intuitivo e conhecimento abstractivo que é transversal àquela;
para Buridan, ela tem uma importância ainda menor porque ele não hesita em
aproximar o conhecimento conceptual dum conhecimento sensível confuso.
Respondendo à questão de se os universais vêm antes ou depois dos singulares,
Buridan afirma que, para o

208

intelecto, temos primeiro o conceito singular -que o universal porque o


intelecto parte do sentido que lhe fornece representações singulares. Mas
logo a seguir reconhece que, para os sentidos, o universal precede o singular
porque o conhecimento sensível confuso vem antes do determinado e
exemplifica: como quando acontece que se vê de longe um objecto que não se
consegue discernir, e que, portanto, é confuso ou universal (dado que pode
ser um objecto qualquer), e que depois se torna cada vez mais determinado até
se tornar singular quando pode ser percebido claramente (De an., 1, q. 5).
Isto não é senão um modo de exprimir a superioridade do conhecimento sensível
sobre o intelectual, enquanto só o primeiro é o instrumento para atingir as
coisas nas suas determinações efectivas e é o ponto de partida do próprio
conhecimento intelectual. Dentro do mesmo espírito, Buridan acentua
energicamente a tese occamista de que é o próprio corpo que pensa,
declarando-se propenso a considerar o intelecto como "uma forma material
desenvolvida pela potência da matéria" educta de potentia materiae, De an.
111, q. 4).

Igualmente acentuado é, na obra de Buridan, o interesse pela física


considerada como ciência empírica. É-lhe atribuído o mérito de ter
vislumbrado o princípio da inércia na chamada teoria do impetus, formulada a
propósito do movimento dos projécteis. Este movimento era uma espécie de
escândalo para a física aristotélica a qual admitia o princípio de que um
corpo só pode mover outro por contacto. Já Occam, opusera a este princípio o
exemplo da flecha e, duma maneira geral, dos projécteis, aos quais é
comunicado um impulso que o projéctil conserva sem que o corpo que lho
comunicou o acompanhe na sua trajectória (In Sent., 11, q. 18 e 26). Ruridan
retoma esta doutrina aplie~a

209

também ao movimento dos céus: estes podem perfeitamente ser movidos por um
impetus a eles comunicado pela potência divina, e que se conserva porque não
é diminuído ou destruído por forças opostas; isto torna inúteis as
inteligências motoras que Aristóteles admitira precisamente para explicar o
movimento dos céus. A astronomia moderna nascia assim na escola occamista.

O nome de Buridan está ligado ao famoso exemplo do burro, o qual, colocado


precisamente no meio de duas faixas de palha, morreria de fome antes do
decidir a comer ou uma ou outra. Este argumento não se encontra nas obras de
Buridan, e não pode encontra-se porque é uma redução ao absurdo da sua
doutrina. Tal doutrina, porém, dá-lhe efectivamente o seu ponto de partida.
Com efeito, Buridan considera que a escolha feita pela vontade segue
necessariamente o juízo do intelecto. Entre dois bens, um maior outro menor,
que o intelecto julga com evidência como tais, a vontade decide-se
necessariamente pelo bem maior. Mas quando se trata de dois bens iguais, que
o intelecto reconhece com evidência como tais, a vontade não pode decidir-se
nem por um nem pelo outro: a escolha não se realiza (In Eth., III, q. 1).
Este é precisamente o caso do " burro". Mas aliás Buridan. não pretende com
isto negar qualquer liberdade à vontade humana; mas, dado que, na presença de
um juízo evidente do intelecto a escolha feita pela vontade é necessariamente
determinada, a vontade é livre só no sentido de poder suspender ou impedir o
juízo do intelecto (In Eth., III, q. 4).

Nicolau de Oresme estudou teologia em Paris e morreu bispo de Lisieux em


1382. Traduziu para francês em 1371, por ordem do rei Carlos V, a Política, a
Economia e a Ética de Aristóteles-, escreveu em francês vários tratados sobre
política e

210

economia, um Tratado da esfera e um Comentário aos livros do céu e do mundo


de Aristóteles. Escreveu ainda, em latim, tratados de física. É notável a sua
importância no campo da economia política do século XIV, mas é maior ainda
no campo da astronomia, no qual é um directo precursor de Copérnico. Basta
aqui citar algumas das proposições do seu comentário ao De coelo: "l. Que não
se poderia provar com nenhuma experiência que o céu se move com movimento
diurno e a terra não; II. Que nem sequer isso se poderia provar com
o raciocínio; 111. Várias boas razões para mostrar que a terra se move com
movimento diurno e o céu não; IV. Como estas considerações são úteis para a
defesa da nossa fé". Igualmente importante é a obra de Nicolau de Oresme no
domínio da matemática, onde se antecipa a Galileu e Descartes. Na sua obra
De difformitate qualitatum serve-se pela primeira vez das coordenadas
geométricas que serão introduzidas por Descartes, e enunciou a lei da queda
dos graves que seria formulada por Galileu.

Alberto de Saxe, denominado também Alherto de Helmsteá ou Albertus Parvus,


ensinou em Paris e foi reitor da Universidade de Paris e mais tarde da de
Viena, na altura da sua fundação. Morreu em 1390 como bispo de, Halberstadt.
As suas obras tratam de lógica, matemática, física, ética e economia. É
escassa a sua originalidade. Na Lógica segue Occam; nas Quaestiones
meteororum segue Nicolau de Oresme, nas suas teorias científicas segue
Buridan. De Buridan aproveita a teoria do impetus, de que serve para explicar
o movimento dos céus, considerando também inúteis as Inteligências motoras
admitidas por Aristóteles. De Nicolau de Oresme extraí provavelmente a sua
teoria da gravidade e a determinação da lei da queda dos graves. Afasta-se
deste último ao admitir a teoria ptolomaica da imobilidade da terra.

211
§ 326. OCCAMISMO: OS "CALCULADORES" DE OXFORD

A parte da doutrina occamista que encontrou um maior número de sequazes foi


indubitavelmente a lógica, e, da lógica, a parte mais seguida e desenvolvida
foi a relativa à refutação dos sofismas; parte que acaba por ser tratada de
modo autónomo e com fim em si própria, embora sempre com base nos princípios
da lógica terminista e, em primeiro lugar, da teoria da suppositio.
Multiplicaram-se assim as colecções intituladas Sophismata, Insolubilia,
Consequentiae, Obligationes, Calculationes, cuja finalidade consiste em
fornecer as regras para a solução dos sofismas, e, com base nelas,
analisar e resolver o maior número possível deles, mesmo os
manifestamente mais absurdos ou menos prováveis. A habilidade e
a subtileza destes trabalhos são notáveis como é também notável
o seu formalismo e a sua (pelo menos) aparente
obiosidade, tratando problemas cuja solução não parece, duma
forma ou de outra, influenciar por pouco que seja a esfera dos problemas
humanos. É sobretudo por esta última característica que os sequazes desta
lógica, os quais foram numerosos em Itália nos séculos XIV e XV,, foram
asperamente criticados pelos humanistas, a começar por Petrarca que viu (e
não sem deixar de ter razão) neste tipo de exercícios a tentativa de evasão
dos problemas referentes, ao homem e ao seu mundo, logo, a obstinada
sobrevivência de uma filosofia que tivera já a sua época. Por outro lado,
Leibniz (numa carta a Thomas Smith datada de 1696) reconhecia ao mais
célebre destes calculadores, Sulseth, o mérito de haver introduzido o
simbolismo matemático (mathesin) na filosofia escolástica; e esta observação
explica o renovado interesse que estudos recen-

212

tes dedicam a esta escola de l¥ca, interesse que também permite uma avaliação
mais imparcial dessa mesma escola.

Os seus principais representantes apareceram na Universidade de Oxford e


especialmente no Merton Colloge onde este tipo de estudos fora iniciado pelo
Tractatus de proportionibus de Tomás Bradwardine (§ 311). Um dos méritos da
escola é o de ter dado início à formulação do dicionário de termos da
mecânica que iria ser aperfeiçoado por Galileu. Chamavam latitude a
qualquer incremento positivo ou negativo do movimento (motus), da velocidade
(velocitas) ou de qualquer determinação qualitativa ou quantitativa (forma)
em todos os graus (gradus) possíveis do zero até ao infinito. As principais
obras desta escola foram as Regulae solvendi sophismata de Heytesbury e as
Calculationes de Suiseth.

Guilherme Heytesbury foi mestre do Merton College, chanceler da Universidade


de Oxford em
1371 e morreu em 1380. Além da obra mencionada (cujo título completo é De
sensu composito et diviso, regulae solvendi sophismata) que foi escrita
provavelmente em 1335, escreveu também uma recolha de Sophismata.

Alguns dos sofismas tratados por Heytesbury no De sensu composito et diviso


são os tradicionais da escola negárico-estóica como, por exemplo, o do
mentiroso (ef. § 37). Mas aqueles cuja discussão constitui a importância da
obra referem-se à noção do infinito sincategoremático tal como tinha sido
tratada pelos lógicos terministas, a partir das Summulae logicales de Podro
Hispano. PoT infinito sincategoremático entende-se uma quantidade que pode
ser tomada maior ou menor do que qualquer outra quantidade dada. Trata-se,
como se vê, dum conceito fundamental para as matemáticas modernas

213

(a especialmente para o cálculo infinitegiinal) e

não é de admirar que o tratamento que lhe foi dado pelos lógicos de Oxford
tenha atraído as atenções dos estudiosos modernos; tanto mais que, ao
contrário dos escritores anteriores os quais, a começar em Rogério Bacon e a
acabar em Duns Escoto e Occam, tinham tratado esta noção nas dificuldades e
nos aparentes sofismas a que dava lugar, os lógicos de Oxford adoptaram pela
primeira vez, no tratamento que lhe deram, símbolos constituídos por letras e
dedicaram-se sobretudo a considerá-la em relação aos conceitos de movimento e
de velocidade chegando mesmo a formular alguns teoremas da cinemática
moderna. Para dar uma ,ideia da maneira como Heytesbury enfrenta os problemas
do infinito assim entendido, pode considerar-se o procedimento por ele
seguindo na sua discussão do máximo e do mim .mo para refutar uma
proposição como a seguinte: existe um peso máximo que Sócrates consegue
transportar. Seja a esse peso. Sócrates consegue transportar a, portanto, a
potência de Sócrates excede, com um excesso (excessus) qualquer, a resistência
do peso a. Mas dado que aquele excesso é divisível, com metade dele, Sócrates
pode transportar o peso a mais uma outra quantidade logo a não é o máximo que
Sócrates pode transportar. E, dado que, tal como se raciocina a respeito de a
do mesmo modo se pode raciocinar a respeito de qualquer peso
infinitèsimamente maior do que a, resulta que não existe um peso máximo que
Sócrates consegue transportar. Segundo Heytesbury, deve antes dizer-se que
existe um peso mínimo que Sócrates não consegue transportar. Considere-se,
com efeito, um peso que seja igual à potência de Sócrates e chame-se-lhe a.
Sócrates não consegue transportar a mas pode transportar qualquer peso

214

menor que a; portanto, a é o peso mínimo que Sócrates não consegue


transportar (De sensu composito et diviso, vol. 194 r a).

A obra mais famosa desta escola de lógica é o Liber calculationum de Ricardo


SWineshead também denominado Suseth ou Sulseth ou Suset cuja actividade se
desenvolveu no segundo quartel do século XIV mas de quem quase nada se sabe,
excepto que esteve implicado na tumultuosa eleição de um Chanceler de Oxford
em 1348. A sua obra foi todavia a mais famosa nos séculos XIV e XV, e dela
foram feitas numerosas edições. A sua finalidade, tal como na de Heytesbury,
consistia na refutação dos sofismas; mas Suiseth afirma claramente que os
sofismas nascem da noção de infinito. "Sofismas em número quase infinito, diz
ele, podem nascer do infinito; mas se tiveres presente que não existe nenhuma
proporção entre a totalidade infinita e uma das suas partes, poderás resolvê-
los** fficifimonte" (Liber calculationum, ed. 1520, fol. 8 v b). A obra de
Suiseth trat-a analiticamente vários argumentos que constituom aspectos
diversos do processo através do qual uma grandeza ou, duma maneira geral,
uma forma (isto é, uma determinação qualquer) começa a ser ou cessa de ser;
aumenta ou diminui de intensidade; ou aumenta ou diminui na velo--idade em
que aumenta ou diminui; ou se rarefaz ou se condensa por meio da aproximação
ou afastamento das suas partes. Estes argumentos são tratados analiticamente
mediante o uso de símbolos e com definições precisas, embora respeitando
pouco os dados da experiência aos quais só ocasionalmente se faz referência,
preferindo-se a maior parte das vezes a consideração de casos puramente
fictícios. Ainda que nestes trabalhos se encontrem alguns dos teoremas que a
mecânica moderna demonstra, o que lhes falta é precisamente a exi-
215

gência fundamental desta mecânica e, em geral, da ciência moderna: a da


medida. Está-se ainda no domínio duma ciência qualitativa que carece do
instrumento fundamental da ciência moderna, a observação mensuradora.

Suisoth foi o mais famoso dos lógicos da escola de Oxford e, por isso, foi
denominado por antonomásia o Calculator. Foi sobretudo em Itália que a lógica
de Oxford encontrou mais numerosos seguidores, ficando em voga durante mais
dum século. Podem recordar-se os nomes de Poduro de Mântua (falecido em 1400)
autor de um De instanti e de uma Lógica; de Paulo Veneto (falecido em 1429)
autor de uma Summa naturalium que foi impressa em Veneza em 1476 e de uma
colecção de Sophismata; de Caetano Tffiene (falecido em 1465) que ensinou em
Pádua de 1422 a 1465, e cujo comentário às Regulae de Heytesbury foi editado
conjuntamente com elas em 1494, de Paulo de Pergola (falecido em 1451) autor
de uma Lógica e de um Tratado sobre o sentido composto e dividido. Mas o mais
famoso foi Biagio Pelacani de Parma que ensinou em Pavia, Pádua, Bolonha e
Florença e morreu em 1416. Biagio foi um averroísta que ensinava um rígido
determinismo astrológico, a unidade do intelecto activo e a eternidade do
mundo. Mas ocupou--se sobretudo de questões científicas relativas ao
movimento dos projécteis (no sentido de Buridan e de Oresme), ao movimento e
contacto dos corpos e à óptica. Nas Quaestiones de latitudinibus formarum
trata dos mesmos problemas considerados por Heytesbury e chega a conclusões
semelhantes. A sua característica fundamental é a mistura que apresenta de
averroísmo e occamismo: os aspectos mais interessantes da sua obra são os
científicos e especialmente os seus contributos para a elaboração duma óptica
geométrica.

216

§ 327. A ESCOLA OCCAMISTA

Na segunda metade do século XIV, o occamismo é a cor-rente dominante nas


maiores Universidades da Europa. Foi chanceler da Universidade de Paris o
francês Pedro de AilIy, nascido em 1350, bispo de Cambrai, cardeal, e
falecido em 1420 como legado papal em Avinhão. Participou no concílio de
Constança (1414-1418) no qual contribuiu para a condenação da teoria da
superioridade do Concílio sobre o Papado. Foi autor de numerosas obras de
filosofia, teologia e ciências naturais e, dentre destas últimas, duma Imago
mundi que é uma espécie de enciclopédia do saber do seu tempo.

A sua filosofia depende substancialmente da de Occam. No Comentário às


Sentenças, que é a sua obra principal, afirma resolutamente que o filósofo só
pode servir-se da razão natural e que a razão natural não permite demonstrar
nem sequer a existência de Deus. Do ponto de vista da razão natural, a
existência de Deus é unicamente provável; a afirmação dessa existência
pertence somente à fé (In Sent., 1, q. 3, a. 2). Mas a fé é, neste caso, a fé
infundida directamente por Deus, isto é, a fé sobrenatural e não a adquirida.
A fé adquirida é conciliável com o conhecimento demonstrativo ou científico,
mas não o é a fé infundida por Deus. Diz Pedro de Aifiy: "Não é
contraditório que alguém tenha ciência ou demonstração e todavia não perca a
fé infunffida, ainda que perca a fé adquirida, do mesmo modo que se pode ter
fé no princípio e conhecimento evidente da conclusão ou conhecimento
experimental da mesma, mas não se pode, simultaneamente, ter fé adquirida na
conclusão e conhecimento evidente dele" (In Sent., 111, q. 1, a. 2). O
exercício da filosofia não exclui, portanto, a posse de uma fé sobrenatural,
isto é, directamente infundida por Deus, mas exclui qualquer outra

217

espécie de fé. Esta tese revela a tendência crítica e cepticizante de Pedro


de Ailly e domina toda a sua filosofia. Até a existência das coisas externas
é considerada por ele como não sendo nada segura, porque Deus podia destruir
as coisas externas e manter as sensações que delas tem o homem, pelo que,
estas sensações não são prova da sua existência.

Como todos os occamistas, Pedro, de Aüly dedica-se, de boa vontade à solução


ou ao esclarecimento dos insolubilia, isto é, dos paradoxos da lógica, o
afirma que todos estes paradoxos derivam de proposições que têm reflexionem
supra se, ou seja, do tipo daquela que "significa que ela própria é falsa". A
solução de tais paradoxos pode obter-se, segundo ele, passando da
proposição enunciada à proposição mental, para a qual afirma o princípio
"Nenhuma proposição mental propriamente dita pode significar ser ela própria
falsa". Outros aspectos da sua doutrina derivam directamente de Occam: *
prioridade do querer divino em relação ao bem * ao mal e a arbitrariedade do
mesmo querer divino.

Discípulo de Pedro de Ailily em Paris, João Gerson, Doctor Christianissimus,


nasceu em 1363 e morreu em 1429. Gerson foi doutor em teologia e chanceler da
Universidade de Paris após o seu mestre. Participou também no Concílio de
Constança onde desenvolveu uma notável actividade. São numerosos os seus
escritos de lógica e metafísica. Mas o seu interesse fundamental era a
mística O Considerationes de theologiae mystica speculativa, o De theologiae
mystica practica, o De simplificatione cordis, o De elucidatione cholastica
theoloQiae mvsticae propõem-se introduzir, inserir a mística dos Vitorinos e
de S. Boaventura da filosofia occamista, que constitui o fundo especulativo
da sua investigação. Gerson distingue o ser da coisa externa do ser
objectale ou representativo que a coisa possui ao intelecto humano ou divino.
A coisa externa

218

é a matéria ou o sujeito do ser representativo. Esta distinção permitiria,


segundo Gerson, conciliar os formalistas e os terministas, ou seja, os
sequazes da via antiga, tomistas e escotistas, com os da via moderna, os
occamistas (De concordia methaphycae cum logica). Para definir a natureza do
esse objectale serve-se do conceito occamista da suppositio: a ratio
objectalis está em lugar da coisa externa. Portanto, ela não é senão a
intetio occamista, signo da coisa natural.

Com tudo isto Gerson considera que os procedimentos naturais do


conhecimento não servem para alcançar o conhecimento de Deus. A teologia deve
ter a sua própria lógica; e esta lógica é aquela que regula a relação entre o
homem e Deus, ou seja, o amor. O amor exclui o conhecimento natural, mas
ele próprio é conhecimento; conhecimento experimental da realidade
sobrenatural, análogo ao que o tacto, o gosto, o olfacto são n- ps coisas
sensíveis (De simplific. cordis, 15). Assim procura Gerson oferecer ao homem,
com a via mística, aquele conhecimento de Deus que o occamismo lhe negava
resolutamente por via natural; e concebe o próprio conhecimento místico, que
é o amor, por analogia com a experiência da realidade natural. O
misticismo de Gerson apresenta-se como a integração mística do nominalismo
occamista.

Depois de Podro de Ailly e Gerson, a Universidade de Paris continua a ser o


centro da via moderna, isto é, do nominalismo e do occamismo. A 1 de Março de
1473, o rei Luís XI proibia a doutrina de Occam e as obras dos nominalistas,
seus seguidores; mas, em 1481, o nominalismo estava em Paris livre de toda a
proibição.

Na Alemanha, o nominalismo encontra numerosos sequazes. O aluno de Buridan,


Marsílio de Inghen, que foi em 1386 o primeiro reitor da Uni-

219

versidade de Heidelberg, então fundada, e morreu em 1396, escreveu sobre


teologia, lógica e física. Outros sequazes de Occam são Henrique de Hainbuch
(1325-1397) e Henrique Totting de Oyta. (falecido em 1397), ambos os quais
ensinaram em Viena e devem ser considerados entre os fundadores da faculdade
de teologia daquela Universidade. Mas quem mais contribuiu para a difusão do
occamismo na Alemanha foi Gabriel Biel que estudou em Heidelberg e Erfurt,
ensinou na Universidade de Tubingen e morreu em 1495. O Comentário às
Sentenças de Biel não se propõe outra finalidade que a de expor, abreviando-
as ou completando-as, as obras de Guilherme de Occam. Os sequazes do
occamismo nas Universidades de Erfurt e de Wittemberg denominaram-se
gabrielistas e o próprio Lutero foi orientado para o occamismo pelas obras de
Biel.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 323. Sobre este último período da escolástica: MIC11ALSKi, Les courants


philosophiques à Oxford pendant je XiVe siècle, Cracóvia, 1922; ID., Les
sources du criticisme et du scepticisme dans ta philosophie du XIVe siècle,
Cracóvia, 1924; ID., Le criticisme et le scepticisme dans Ia phi7sophie du
XIVe siècle, Cracõvia, 1925.

§ 324. O Comentário de Adão Woddam foi impresso em Paris em 1512. As obras de


Roberto Holkot tiveram numerosas edições nos últimos anos do século XV e nos
primeiros amos do século XVI. O Comentário de Gregório de Rimini foi impresso
várias vezes em Paris, e em Veneza em 1532.

As 40 proposições condenadas de João de Mireeourt foram editadas in DENIFLE,


Chartularium Univ. Par., 11, 610-614.

As cartas de Nicolau de Autrecourt foram editadas por LAPPE, in "Beitrãge",


VI, 2, 1908; o Tractatus universalis foi editado por J. R. UDONNEL, in
"Mediaeval Studies", Toronto, 1, 1939. Sobre Nicolau: O'DON-

220

NEL, The Phil. of N. of A, and his Appraisal of Aristotie, in "Mediaeval


Studies", Toronto, IV, 1942; J. R. WEINBERG, N. of A., Princeton, 1948; M.
DAL PRA, N. di A., Milão, 1951.

§ 325. As obras de João Buridan tiveram numerosas edições antigas. Recentes:


De caelo, ed. Moody, Cambridge (Mass.), 1942; Tractatus de suppositionibus,
ed. Reina, in "Riv. crit. di st. della fil.", 1953. Sobre Buridan: Dumm,
Études sur Léonard de Vinci, II e III, passim; Le Système du monde, VI e VII,
passim; REINA, Il problema del linguaggio in Buridano, in "Riv. crit. di st.
della fil>, 1959-1960; Note sulla psicologia di Buridano, Milão, 1959. Sobre
a tradição manuscrita: FARAL, in "Arch. d'Hist. Doctr. et Lit. du m. á.",
1946; FEDERICI VESCOVINI, in "Riv. crit. di st. della fil.", 1960.

De Nicolau de Oresme: os Comentários aristotélicos tiveram algumas edições no


século XV. Recentes: Etica, ed. Menut, New York, 1940; Economica, ed. Menut,
Filadélfia, 1957; De caelo, ed. Menut-Denomy, in "Mediaeval Studies", 1941-
1943; De Porigine, nature et mutation des monnais, ed. Wolowski, Paris, 1864;
Johnson, Edimburgo, 1956; Quaestiones super geometriam Euclidis, ed. Busarda,
Leiden, 1961. Sobre Oresme: DuHEm, Français de Meyrones et Ia question de Ia
rotatiow de Ia terre, in "Arch. fvane, frane. Hist.",
1913, 23., Êtudes sur Léonard de Vinci, III, Paris, 1913,
347 ss.; Le système du monde, VII, VIII, IX, X, passin; BORCHERT, in
"Beitrãge", XXXI, 3, 1934, e XXXV, 4-5, 1940.

As obras de Alberto de Saxe tiveram numerosas edições nos finais do século XV


e no principio do século XVI. Sobre ele ver as obras citadas de Duhem e
HEIDINGSFELDER, in "Beitrãge", XX11, 3-4, 1921.

326. De Héytesbury: o Tratado foi impresso em Veneza em 1494. Sobre ele:


DUHEM, Études sur Léonard, III; MAYER, An der Greme von Scholastik und
Naturwissenschaft, Roma@ 1952, COP. M; WILSON, W. H., Medieval Logic and the
Bise of Mathematical Physics, Madison, 1956.

As Calculationes de Suiseth foram editadas pela primeira vez em Pádua em 1480


e reimpressas repetidas vezes. Sobre Suiseth.* DUHEM, Êtudes sur Léo-nard,
III, passim; MICHALSKI, Le criticisme et le scepticisme dans ta phíl. du XIVe
siècle, Cracóvia, 1926; THORNDIKE, History of Magic, III, cap. 23.

221

Textos destes autores como comentários oportunos (mas de interesse


exclusivamente científico) foram incluídos na obra de CLAGETE, The Science of
Mechanics in the Mi-ddle Ages, Madison, 1959.

De Paulo de Pergola a Lógica e o Tractatus de sensu composito ed diviso foram


impressos em Veneza em 1501 (nova edição M. A. Brovm, St. Bonaventure, N. Y.,
1961).

De Biagio de Parma, as obras foram impressas em Pádua, 1482, 1486 e em


Veneza, 1505. O seu averroísmo é manifesto no comentário ao De anima que está
inédito. A obra De latitudinibus formarum foi impressa por Amodeo, Nápoles,
1909. Sobre ele, além das obras citadas de Mayer e Clagett: G. FSDERICI
VESCOVINI, in "Rivista di filosofia", 1960; in "Rinascimento", 2, 1961;
ALEssio, in "Rivista critica di storia. della filosofia", 1961.

§ 327. As obras de Pedro de Ailly foram impressas conjuntamente com as de


Gerson por Du Pin, Anteverpiae, 1706, e tiveram também numerosas edições
separadas nos séculos XV e XVI. Sobre ele: DUHEM, Le système du monde, VII,
VIII, IX, X, passim.

De Gerson: Opera omnia, ed. Du Pin, 5 vols., 1706,


1727 2; nova edição critica por Glorieaux, Paris, 1961, ss. Sobre e'-e:
CONNOLLY, John Gerson, Louvain, 1928 (com bibl.).

De Marsilio de Inghen, as obras tiveram numerosas edições no século XVI.


As de Henrique de Hainbuch foram editadas só em parte: v. Ueberweg-Geyer, p.
604. As de HenrIque de Oyta foram editadas em Paris em 1506. Sobre ele:
MICHAT,SKI, Le criticisme, passim; e RITTER, Marsilius von Inghen, 1921, 13,
41.

O Epítome de Gabriel Biel foi impresso pela primeira vez em 1501 e teve
depois várias edições: PRANTL, Gesch. d. Log., IV, p. 231 ss.

222

xxIV

O MISTICISMO ALEMÃO

§ 328. MISTICISMO ALEMÃO: CARACTERÍSTICAS


DO MISTICISMO ALEMÃO

A dissolução da Escolástica, iniciada por Duns Escoto e progredindo


rapidamente depois dele até alcançar o seu ponto terminal com Occam e o
occamismo, põe em primeiro plano o problema da fé. Se as verdades a que a fé
se dirige não têm nenhum fundamento racional, não são evidentes nem
demonstráveis, nem sequer justificáveis, que valor tom a fé? Duns Escoto
tinha colocado o fundamento da fé na vontade; mas, desse modo, em vez de a
justificar, havia acentuado a sua arbitrariedade. De qualquer modo, depois
dele, até este fundamento desaparece: apresenta-se uma diversidade radical,
que muito frequentemente é uma antítese, entre a fé e todas as capacidades
naturais do homem. A escolástica nunca chega, todavia, à negação do valor da
fé: o problema deste valor apresenta-se, pois, Como urgente, no momento em
que se tira a essa mesma fé todo o apoio da razão, considerada como capaz de
indagar o mundo natural, mas não de se acercar da realidade sobrenatural e de
Deus. Era

223

necessário restabelecer a possibilidade de uma relação directa entre a


criatura e o criador, a fim de justificar a fé. Era necessário reconhecer,
para além e acima dos poderes naturais do homem, a possibilidade de uma
relação com Deus, sem a qual a fé é impossível. Era necessário reconhecer, no
homem, um ser não finito nem de criatura, que se identificasse com o próprio
ser de Deus.

Tal é a tarefa que a si mesmo impõe o misticismo especulativo alemão,


sobretudo com Mestre Eckhart. O problema da fé domina inteiramente a
investigação especulativa de Eckhart. A mística precedente estava solidamente
ligada à investigação escolástica: era um auxiliar e um complemento dessa
investigação, uma via paralela, por vezes coincidente, sempre convergente, com
a especulação. Mas agora a investigação escolástica parecia inadaptada à sua
finalidade; a sua capacidade de fazer aceder o homem à verdade revelada
parecia nula. Restava, então, a via mística; mas esta devia agora justificar-
se por si mesma, utilizando e transfigurando, até onde fosse possível, os
próprios conceitos da escolástica, para uma justificação da fé. Nascia assim
o misticismo especulativo, que já não é uma simples descrição da ascese do
homem para Deus, mas a investigação da possibilidade dessa ascese, e
reconhecimento do seu fundamento último na unidade essencial de Deus e do
homem.
§ 329. MESTRE DIETRICH

Mestre Dietrich (Theodoricus) nasceu em Freiberg no Saxe, provavelmente cerca


de 1250, e pertenceu à ordem dominicana. Estava em Paris cerca de 1276, onde
assistiu às lições de Henrique de Gand. Foi mais tarde mestre de teologia em
Paris e ensinou nessa Universidade. Desempenhou na

224

MESTRE ECKHART E UTA

Alemanha vários cargos na sua ordem, mas a sua principal actividade foi a
pregação. Depois de 1310 não voltamos a ter mais dados sobre ele; pouco
depois desse ano, deve, portanto, situar-se a data da sua morte. Mestre
Dietrich escreveu numerosas obras de metafísica, lógica, física, óptica e
psicologia, obras que ficaram inéditas e das quais só recentemente algumas
foram publicadas. A sua especulação relaciona-se dum modo geral com a
tradição agustiniana; mas a sua fonte principal é Proclo, cujos Elementos de
teologia tinham sido traduzidos em 1268 por Guilherme de Moerbek-e. Como
Proclo, admite quatro ordens de realidades: o Uno, a natureza intelectual, as
almas e os corpos, que derivam umas das outras por um processo de emanação,
interpretada, num sentido cristão, como criação. Tal criação é determinada
pela superabundância do ser divino que se derrama fora de si próprio, sobre
os graus inferiores da realidade, criando-os e governando-os (De intellectu
et intelligibili, 1, 9, ed. Krebs, p. 130). Dietrich propende para a
interpretação que Avicena tinha dado da teoria neo-platónica da emanação,
segundo a qual a acção de Deus sobre as coisas do mundo se exerce mediante as
inteligências motoras das esferas celestes, de modo que cada uma delas
depende da superior, e que da última e mais baixa dependem as coisas
sublunares. Mas ele declara não afirmar decididamente tal doutrina ,porque
não lhe encontra confirmação explícita na Sagrada Escritura.

O misticismo é curiosamente fundado por Mestre Dietrich sobre a doutrina


aristotélica do intelecto activo. O intelecto activo é a parte mais
intrínseca e profunda da alma humana, e é para ela aquilo que o coração é
para o animal (lb., 11, 2, p. 135). É o abditum mentis, o princíPio que
sustenta e vivifica toda a actividade intelectual e é a sede daquela verdade
imutável que, segundo Santo Agos-

225

tinho, está presente no homem como norma de todo o seu conhecimento (De
visione beatifica, ed. Krebs, p. 77). O intelecto possível é, pelo
contrário, uma pura possibilidade, sem natureza positiva. As espécies
inteligíveis vêm à alma, não por abstracção das coisas sensíveis, como
sustentara S. Tomás, mas pelo intelecto agente, segundo a doutrina de
Avicena. E, dado que o intelecto agente é a directa emanação de Deus,
Dietrich aceita, neste sentido a doutrina agustiniana da iluminação divina (De
inteil. et intellig.
111, 35, p. 203). Ora, precisamente por meio do intelecto agente o homem está
em condições de regressar a Deus e de se unir com ele. Para esta união,
Dietrich não considera necessário aquele lumen gloriae que S. Tomás havia
considerado como sua condição (S. th., 1, q. 13, a. 4); basta a acção natural
do intelecto agente. " O mesmo intelecto agente. "0 mesmo intelecto agente,
diz ele (De intell. et intellig., 11, 31, p. 162), é aquele princípio
beatífico, pelo qua-l, quando estamos informados- isto é, quando ele se torna
a nossa forma-, nos tornamos bem-aventurados, o nos unimos a Deus mediante a
imediata contemplação beatífica, com a qual vemos a própria essência de
Deus".

§ 330. MESTRE ECKHART

João Eckhart, o verdadeiro fundador da mística alemã, nasceu cerca de 1260


em Hochheim, perto de Gotha. Pertenceu à ordem dominicana e estudou em
Colónia, onde provavelmente foi aluno de Alberto Magno. Em seguida,
estudou o ensinou em Paris cerca de 1300; e em 1302 foi nomeado doutor por
Bonifácio VIII. Desempenhou alguns cargos na sua ordem, dirigiu em
Estrasburgo a escola teológica e nos últimos anos da sua V,; Ja ensinou em
Colónia. Aqui, foi-lhe movido pelo arcebispo, em 1326, um

226

processo por heresia. Retratou-se condicionalmente das suas doutrinas e


apelou para o -papa. Mas morreu em 1327, antes de ser publicada a bula que
condenava 28 proposições extraídas da sua obra (27 de Março de 1329). Eckaot
é autor de um Opus trípartitum, que só foi em parte recentemente ed'iwtado,
de algumas Quaestiones, e de Sermões e Tratados em alemão. Temos dele duas
obras em que justifica as proposições imputadas de heresia. 1 1

A obra de Eckhart é a maior tentativa de justificação da fé, à qual a última


Escolástica. tirava todo o fundamento nas capacidades naturais do ficomem. A
sua obra é substancialmente uma teoria da fé: os seus pontos fundamentais
visam estabelecer aquela unidade essencial entre o homem e Deus, entre o
mundo natural e o mundo sobrenatural, que é a única condição que
possibü,;,,ta e justifica a atitude da fé. As 28 proposições condenadas
revelam já o intento fundamental da especulação de Eckhart. Afirmam a
eternidade do mundo, criado por Deus simultaneamente com a geração do Verbo,
a trans, formação, na vida eterna, da natureza humana na natureza divina, a
identidade perfeita entre o homem santo e Deus; a unidade perfeita e
indistinta de Deus; o não-ser das criaturas como tais; o valor indiferente
das obras exteriores; a pertença à alma do intelecto incriado. Todas estas
teses tendem a estabelecer a unidade essencial do homem e de Deus, da
criatura, enquanto possui uma qualquer realidade, e do criador, e a oferecer
assim ao homem a possibilidade duma relação com o mundo sobrenatural e com
Deus: a possibilidade da fé.

Para fundamentar tal relação, Eckhart deve, por um lado, negar que as
criaturas tenham, enquanto tais, uma realidade própria; por outro lado,
reduzir o ser das criaturas ao ser de Deus. Tais são, com efeito. os pontos
fundamentais da sua metafísica,, "Todas as criaturas, são um puro nada, diz
ele. Não

227

m,41,11^k%o que sejam uma coisa pequena ou sem **impersão um puro nada. O que
não tem ser,

**-ras tem ser porque ,não existe. Nenhuma das criatu1 o wU ser depende da
presença de Deus. Se Deus se afastasse das criaturas por um só instante, elas
cairiam no nada. Disse já outras vezes e é verdade: quem agarrasse no mundo e
em Deus nada mais teria do que se só tivesse Deus" (Pred., IV, ed. Quint, p.
69-70). Frente à nulidade das criaturas, Deus é o ser, todo o ser. "0 sor é
Deus. Esta proposição é evidente, em primeiro lugar, porque se o ser é
diferente de Deus, Deus não existe nem é Deus. Com efeito, de que modo
poderia ser, e ser algo, se o ser fosse diferente, estranho e distinto dele?
Ou então, se é Deus, é Deus por causa de outrem, se o ser é outro que não
ele. Portanto, Deus e o ser são idênticos, pois de outro modo Deus receberia
o ser de outrem" (Prologus generalis in opus tripartitum, n. 12).

Eckhart não hesita a servir-se de conceitos e princípios da tradição


escolástica, especialmente de S. Tomás, para esclarecer este ponto. Admite a
analogicidade do ser e a distinção real entre essência e existência, que sã o
as traves mestras do pensamento tomista; mas serve-se de tais princípios
únicamente para negar toda a realidade às criaturas enquanto tais, e
reduzir o ser dessas criaturas ao ser de Deus. A analogicidade do ser
significa, para ele, que "todo o ser criado tem por Deus e em Deus, não em si
próprio, o ser, a vida e o saber, positiva e radicalmente". Do mesmo modo,
afirma que as coisas estão em Deus como na mente do artífice; mas acrescenta
também que as ideias das coisas não são nem criadas nem criáveis, mas se
identificam directamente com o Verbo, e são produzi-das pelo Pai
contemporaneamente com o próprio Verbo. Desta redução total do ser a Deus
deriva, em primeiro lugar, a coeternidade e a unidade substancial

228

do mundo com Deus: "Não se deve imaginar, como muitos fazem, que Deus tenha
criado e produzido todas as coisas não em si mas fora de si; criou-as e
produziu-as por si e em si primordialmente, já que aquilo que existe fora de
Deus existe fora do ser e, assim, não existe e não poderia ter sido criado
nem produzido. Em segundo lugar, o que existe fora de Deus é nada. Por isso,
se as criaturas ou todas as coisas produzidas se colhessem ou nascessem fora
de Deus, seriam produzidas do ser para o nada, e não haveria produção ou
criação mas corrupção: a corrupção, com efeito, é a via que vai do ser para o
não ser, isto é, para o nada" (In Sap., VI, 8).

Deus é, portanto, o ser, todo o ser na sua absoluta unidade. Como tal, é a
negação de todo o ser particular, determinado e múltiplo; é o não-ser de tudo
o que existe de qualquer modo diferente dele. Mesmo o seu nome é
inexprimível: Eckhart serve-se de boa vontade da teologia negativa
(apofatica) de Dinis o Areopagita, da qual se servira já Escoto de Erígena no
principio da Escolástica. "Deus não tem nome, já que ninguém pode dizer nem
entender nada sobre ele. Se eu digo: Deus é bom, será mais ,verdadeiro dizer:
eu sou bom, Deus não é bom. Se eu digo: Deus é sábio. não será verdadeiro
dizer: eu sou sábio. Eu digo, portanto: não é verdadeiro que Deus seja uma
essência. Ele é uma essência superessencial e um nada superexistente"
(Werke, ed. Pfeiffer, p. 318-319). Como tal, Ele, mais do que Deus, é a
divindade, a essência em si que é o fundamento comum das três pessoas
divinas, **wneriores às suas relações, à sua distinção, à sua actividade
criadora; é um repouso desértico, no qual só há unidade.

Mas, precisamente para este centro e para este fundamento último da vida
divina, precisamente para este repouso desértico, que está para além da

229

distinção e da própria actividade de Deus, deve tender o homem. E o homem


pode para lá tender, dada a natureza da sua alma. Eckhart admite as partes
que a tradição escolástica distinguia: a parte racional, a irrascível e a
apetitiva; e, acima destas, a memória, a inteligência e a vontade. Mas a mais
alta potência da alma não é uma faculdade que esteja ao lado das outras, é
sim a alma na totalidade da sua essência, na sua pura racionalidade. Na sua
racionalidade, a alma é verdadeiramente a imagem de Deus e, como tal,
**incúada e eterna; a alma dotada de faculdades é pelo contrário, múltipla
e
criada. A racionalidade é a citadela da alma, a chispa nela acesa pelo
próprio fogo divino (lb., p. 113). Só mediante esta chispa o homem se eleva
acima de toda a actividade sensível e intelectual, à contemplação. Frente ao
conhecimento comum, a contemplação é um não-conhecimento, uma situação de
cegueira, um não-saber; mas só ela é a posse, o gozo da verdade, só ela é a
fé (lb., p. 567). A fé é, portanto, a reunião da realidade última e de Deus
na sua identidade. Ela revela ao homem simultaneamente a deidade de Deus e a
sub"ncia da alma: e revela-as como idênticas.

A fé é o nascimento de Deus no homem: por ela, o homem torna-se filho de


Deus. A primeira condição deste nascimento é que o homem volte as costas ao
pecado, se desinteresse de todas as coisas finitas e se retrai-a, da
multiplicidade dos seus poderes espirituais, em direcção àquela chispa de
racionalidade, que é o domínio do eterno. "Nós não podemos ver Deus, se não
vemos todas as coisas e nós próprios como um puro nada". O homem deve fazer
morrer em si tudo o que pertence à criatura fazer viver em si o ser eterno de
Deus: a morte do ser de criatura no homem é o nascimento nele do ser divino.
Para este nascimento pouco contribuem as obras externas (os jejuns, as
vigílias,

230

as macerações), mas muito contribuem as internas, isto é, o aprofundamento da


relação com Deus, o qual ama as almas, não as obras externas. É necessário
alcançar Deus, procurando-o no ponto central da alma: somente aí Deus revela
o fundamento da sua divindade, a sua inteira natureza, a sua verdadeira
essência. Nesse ponto culminante o homem torna-se uno com Deus, converte-se
em Deus; as propriedades de Deus convertem-se nas suas. Mas a alma não se
anula inteiramente em Deus: uma linha subtilíssima separa sempre o homem de
Deus: o homem é Deus por graça, Deus é Deus por natureza (Ib., p, 185).

Tais são as características fundamentais do misticismo especulativo de Mestre


Eckhart. Perante elas, parecem completamente irrelevantes os problemas que se
costumam debater, no intento de reduzir a personalidade do seu autor a
esquemas pré-estabelecidos. Mestre Eckhart foi um escolástico ou um
místico? É ou não ortodoxa a sua especulação? O resultado da sua filosofia é
verdadeiramente o pan- ,teísmo? Uma solução qualquer destes problemas nada
diz sobre a personalidade de Mestre BAhart. Já que ele é certamente um
místico que, diferentemente dos outros místicos medievais (os Vitorinos, S.
Boaventura) sabe que a via mística é a única que permite o acesso à verdade
revelada, à qual a investigação filosófica não pode conduzir. O pressuposto
implícito da especulação de Eckhart é a desconfiança na
possibilidade de alcançar a fé através da investigação realizada pela
razão natural, desconfiança que existe na atmosfera filosófica da sua época,
e que então encontrava as suas mais decididas expressões, O seu problema é o
problema da fé: encontrar a possibilidade e a justificação da fé, na
possibilidade e na justificação duma relação directa entre o homem e Deus.
Para este problema, serve-se, sem escrúpulos, de numerosos temas e

231,

motivos da **Úadição escolástica; mas tais tomas e motivos são por ele
transfigurados e entendidos segundo uma perspectiva que já não é a que
representa o seu significado genuíno. Quanto à sua ortodoxia, ele aparecerá
não como ortodoxo, desde que se utilize como medida da ortodoxia o tomismo

ou a antiga tradição escolástica. Mas a sua especulação é a última grande


tentativa medieval de dar à fé religiosa uma fundamentação metafísica.
Finalmente, se olharmos para a separação que Eckhart estabelece entre as
criaturas como tais, consideradas como um puro nada, e Deus, Eckhart está
muito longe do panteísmo; mas se olharmos para a identidade que Eckhart
estabelece entre o ser autêntico das criaturas, e em primeiro lugar da alma
humana, e o ser de Deus, o panteísmo pode parecer a última palavra da sua
especulação. Pode parecer; mas, na -realidade, o panteísmo, nas expressões
típicas que assumiria o Renascimento, é sempre um naturalismo, e o
naturalismo está muito longe da especulação eckhartiana, a qual está
completamente absorvida no problema da fé, e vê, na unidade da criatura com
Deus, a única via mediante a qual o homem pode voltar a unir-se com Deus.

§ 331. A MíSTICA ALEMÃ

Discípulos imediatos de Eckhart são João Tauler e Henrique Suso. João Tauler
nasceu cerca de
1300 em Estrasburgo e pertenceu à ordem dominicana. Na luta entre Luís o
Bávaro e o papa, esteve do lado do papa. A sua actividade desenvolveu-se como
pregador em Estrasburgo, Basileia e Colónia. Morreu em Estrasburgo em 1361. A
doutrina exposta nos seus Ser~- s é substancialmente a de Eckhart. Como
Eckhart, distingue Deus, como Trindade e actividade criadora, da essência
divina que,

232

JOÃO TAULER

**nidade sinplicíssima, é o fundamento de -na sua 4ura, Deus. Como Eckhart,


distingue na alma humana as suas diversas faculdades da sua substância
última, que é a luz da razão. Ainda como Eckhart, afirma a identidade do ser
da alma com o ser de Deus e esboça o ~,ínhe, mediante o qual se pode alcançar
esta identidade e Dous pode nascer no homem. Há todavia um ponto capital em
que Tauler modifica a doutrina de Eckhart: a identidade absoluta do ser das
criaturas com o ser de Deus, a qual Eckhart insistira com tão enérgicos
paradoxos. A essência divina permanecesse acima de todos os níveis, -numa
altitude a que nenhuma criatura a pode alcançar; é por isso que, se o
espírito humano "se perde em Deus e se afoga no mar sem fundo da sua
divindade", o eu espiritual não deve dissolver-se, mas penetrar
essencialmente íntegro no recinto do mistério divino. Estas atenuações
expressam, todavia, exigências cujo fundamento se não descobre nas bases
daquela teoria da fé que Eckhart tinha desenvolvido com lógica inflexível.

Henrique Suso (Seuse) nasceu em Constança cerca de 1295 e pertenceu também à


ordem dominicana. Estudou em Colónia com Mestre Eckhart, foi um pregador
famoso e morreu em Um em 1366. É autor de um Livrinho da verdade, de um
Livrinho da eterna sabedoria que ele mesmo traduziu para latim sob o título
de Horologium sapientiae, e que constitui a sua biografia, além de numerosas
Cartas. A obra de Suso é alimentada por um intenso fogo lírico, mas têm pouca
originalidade especulativa. O esqueleto do seu pensamento é haurido em
Eckhart. Como Tauler, preocupa-se em estabelecer uma linha de demarcação
entre o ser das criaturas e o ser de -Deus. Todas as criaturas em Deus são
Deus, diz ele, e não têm nenhuma distinção fundamental entre si. Mas a forma
natural de cada uma delas é distinta da essência divina e de todas as outras
formas naturais

233

<Schriften, ed. Bililmeyer, p. 331). Uma coisa é a

se~ção, outra é a distinção: a alma e o corpo não estão separados, porque um


está no outro, mas são distintos, porque a alma não é o corpo nem o corpo
é a alma. Do mesmo modo, a essência de uma criatura é distinta, mas não
separada, da essência de Deus e da essência das outras criaturas. A essência
divina não é a essência da pedra, nem a

da pedra é a divina ou a das outras criaturas (Ib., p. 354). Por isso, também
a unidade do homem com Deus é inferior à unidade de Deus consigo mesmo, do
Filho com o Pai. E, com efeito, o Filho de Deus é tal por sua natureza e não
tem uma personalidade independente desta sua natureza; o homem, pelo
contrário, tem uma personalidade natural, que o distingue de Deus; o seu
nascimento como filho de Deus é, portanto, só um renascer (1b., @p. 355).

Tauler e Suso, que contribuíram enerme-mente, com a sua actividade literária


e os seus sermões, para a difusão do misticismo especulativo de Eckhart, não
são pensadores originais. A influência de Eckhart faz-se também sentir numa
obra mística, a Teologia alemã, composta em Francfort por um dominicano
anónimo na segunda metade do século XIV e que foi publicada pela primeira
vez por Lutero (1516-1518).

Ao círculo do misticismo alemão pertence ainda o flamengo João de Ruysbroeck,


denominado o admirável, (1293-1381), autor de numerosas obras místicas, das
quais a maIs importante é O ornamento das bodas espirituais. Encontram-se em
Ruysbroeck os temas fundamentais da especulação de Eckhart. ",O espírito
possui Deus essencialmente na sua nua ,natureza e Deus possui o espírito. O
espírito vive em Deus e Deus vive nele. Esta unidade essencial -reside em
Deus; se ela faltasse, todas as criaturas seriam reduzidas ao nada" De ornatu
spirit. nupt.,

234

11, 59). A vida contemplativa é a realização plena desta unidade. "Nós


contemplamos intensamente aquilo que somos; e aquilo que contemplamos, isso
mesmo somos: assim a nossa mente, vida e essência é elevada e unida à própria
verdade, que é Deus. Nesta simples e intensa contemplação somos uma única
vida e um único espírito com Deus. Esta chamo ou vida contemplativa" (De
calculo, 10). Porém, também Ruysbroeck considera impossível que na
contemplação o homem porca inteiramente a sua essência de criatura (De ornatu
spir. nupt.,
111, 1). A nossa união com Deus é condicionada pelo nosso conhecimento de
Deus e de Cristo, pois, se o não fosse, também uma pedra poderia alcançar a
vida eterna. Nós somos uno com Deus e, todavia, permanecemos eternamente
diferentes daquilo que ele é (De calculo, 9).

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 329. Das obras de Dietrich foram editadas: Tractatzts de intellectu et


inteZligibili e Tractatus de habitibu,s, por KREBS, in "Beitrãge", V, 5-6,
1906; De esse et essetia pelo mesmo KREBS, in "Revue néo-scõl.",
1911, p. 516-536; De iride, por MRSCHMIDT, in "Beltrãgè", XII, 5-6, 1914.
Sobre ele ver, além da introdução de KREBS, BIRKENMAJER, in "Reitrãge", XX,
5, ,1922.

§ 330. Os Sermões e os Tratados em alemão de Eckhart foram editados por


PFEIFFER, Deutsche Mys~ tiker des 14 Jahrhunderts, vol. 11, 1857, e tiveram
depois numerosas edições parciais. Os escritos em @l@atim foram editados por
DENIFLE, in "Archiv. für Litt. Gesch. des M. A.", 1866. As Quaestiones foram
edItadas por GRABMANN, in "Sitzungsberichte der bauerich. Akad. d. Wiss.",
1921. Uma nova edição das obras :latinas e alemãs é a que foi publie-ada por
Weiss, Kock, Christ, Benz, Stuttgart-Berlim, 1936 ss. Trad. itaI.: Prediche e
trattati, Bolonha,, 1928; La nascita eterna (Antologia com textos e trad.),
de FAGGIN, Florença, 1953.

235
As obras em que Eckhart defende as proposições Imputa~ heréticas foram
editadas primeiro por DANILS, In "Beitrãge", XXIII, 5, 1923, depois por
THÉRY, In "Archives d'hist. doctrinale et littéraire du moyen áge", 1926-
19271 p. 229-268.

DELACR0IX, Essaí sur le mysticisme spéculatif en Allemagne au XIVe siècle,


Paris, 1900; KARRER, Meister Eckhart, Erfurt, 1926; LONGPRÉ, QUeStions
inédites de maítre Eckhart, in "Revue néo-scol.", 1927, p. 69-85; DFLT,A
VOPLE, Il misticismo 8peculativo di Maestro Eckhart nei suoi rapporti
storici, Bollonha, 1930; 2.1 ediçãc, revista: E. o della fil. mistica, Roma,
1952-, CLARK, The Great Geman Mystics, Eckhart, Tauler, Suso, Oxford, 1949;
KoPPER, Die Metaphysik Meister Eckharts, Saarbrücken, 1955; LOSSKY, Théologie
négative et conn&ssance de Dicv, chez M. Eckhart, Paris, 1960.

§ 331. Os Sermões de Tauler tiveram numerosas edições antigas. No seu texto


original em alemão medieval foram editadas por Vetter, Berlim, 1910. Hã deles
uma tradução francesa, verificada com a tradução latina, de Noel, Paris, 191-
1913.

O texto crítico das obras de Henrique Suso foi editado por BIHLMEYER:
Deutsche Schriften, Stuttgart,
1907.

A Teologia alemã foi novamente editada por PFEIFFER, Stuttgart, 1851, 5.,
ed., 1924.

As obras de Ruysbroek foram editadas na versão latina em Colónia em 1552. Uma


sua edição completa na língua original foi publicada por David, em Gand, 6
vols., 1858-1869. Para a bibliografia sobre estes autores: UEBERWEG-GEYER, p.
789-791; FAGGIN, Meister Eckhart e Ia mistica, tedesca pre-protestante,
Milão, 1946; e trad. esp. Buenos Aires, 1953 (com hibl.).

236

INDICE

XIV - ALBERTO MAGNO ... ... ... ... ... 7

§ 267. A obra de AJberto Magno ... 7 § 268- Vida e Obra


... ... ... ... ... 10 § 269. Filosofia e Teologia ... ... ...
12 § 270. Metafísica ... ... ... ... ... 14 § 271. A
Antropologia .. . ... ... ... is

Nota bibliográfica ... ... ... 21


XV - S. TOMAS DE AQUINO ... ... ... ... 23

§ 272. A figura de S. Tomás de

Aquino ... ... ... ... ... ... 23 § 273. Vida e Obra ...
... ... ... 26 § 274. Razão e Fé ... ... ... .. . ... 29 §
275. Teoria do conhecimento ... ... 32 § 276. Metafísica
... ... ... ... ... 39 § 277. As provas da existência de Deus
44 § 278. Teologia ... ... .. . ... ... 47 § 279.
Psicologia ... ... ... ... ... 50 § 280. ntica ... ... ...
... ... ... 52 § 281. Politica ... ... ... ... ... ... 55 §
282. Estética ... ... ... ... . .. 57

Nota bibliográfica ... ... ... 58

237

XVI -0 AVERROISMO LATINO ... ... ... 61

§ 283. Oaracterísticas do Averroismo

latino ... ... ... ... ... ... 61 § 284. Siger de Brabante:
Vida e Obra 64 § 285. Siger: Necessidade do ser e

unidade do intelecto ... ... ... 66 § 286. Siger: A eternidade


do mundo

e a doutrina da dupla verdade 68 § 287. Boécio de Dácia


... ... ... 70

Nota bibliográfica ... ... ... 71

XVII-A LôGICA DO S2CULO XIII ... ... 75

§ 288. Desenvolvimento da lógica me- ,dieval ... ... ... ...


... ... 75 § 289. Pedro Hispano ... ... 78 §
290. Raimundo Lúlio ... ... 80

Nota bibliográfica ... ... ... 83

XVIII -A POLPMICA SOBRE O TO1@ffSMO ... 85

§ 291. A luta contra S. Tomás ... ... 85 § 292. Mateus de


Acquasparta ... ... 88

238

§ 293. A escóla de S. Boaventura ... 92 § 294. A escola


Tomista ... ... ... 93 § 295. Henrique de Gand: A Metafísica
96 § 296. Henrique de Gand: A Antro-

pologia ... ... ... ... ... ... 99 § 297. Godofredo de Fontaines
... ... 101

Nota bibliográfica ... ... ... 102


XIX-A FILOSOFIA DA NATUREZA NO

SnCULO XIII ... ... ... ... ... .. . 107

§ 298. Cara cteristicas da investigação

naturalista no skwulo XIII ... 107 § 299. Rogério B-acon: Vidae


Obra ... 110 § 300. Bacon: A expeliência ... ... 111
§ 301. Witelo ... ... ... ... ... ... 116

Nota bibliográfica ... ... ... 117

XX-JO-&O DUNS ESCOTO ... ... ... ... 119

§ 302. Doctor subtilis ... ... ... ... 119 § 303. Vida e Obras
... ... ... ... 121 § 304. Ciência e Fé ... ... ... ...
123

239

§ 305. Conhecimento, intuitivo e douti-!na da substância ... ...


... 128
306. O ser e Deus ... ... ... ... 134 § 307. O Homem
... ... ... ... ... 140

Nota bibliográfica ... ... ... 146

XXI-A POLÉMICA TEGLOGICA E POLT-

TICA NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIV ... ... ... ... ... ...
149

§308. Sinais precursGres da dissolução

escolástica ... ... ... ... ... 149 §309. Durand de Saint-
Pourçain ... 150 §310. Pedro Auréolo ... ... ... ...
153 §311. A escola escotista, ... ... ... 154 §312. Os últimos
averroistas medie-

vais .. . ... ... ... ... ... 157 §313. Marsílio de Pádua e a
Filosofia

Jurídico-Política da Idade Média 160 Nota bibliográfica ...


... ... 166

XX11-GUILHERME DE OCCAM ... ... ... 169

§ 314. A liberdade de investigação ... 169 § 315. Vida e Obra


... ... ... ... ... 171

240

316. A doutrina do conhedmento intuitivo ... ... ... ... ...


173 § 317. A Lógica ... ... ... ... ... 178 § 318. A
dissolução do problema esco-

1 @ástico ... ... ... ... ... ... 182


§ 319. A critica da metafísica tradi-

ciona,1 ... ... ... ... ... ... 186

§ 320. Prelúdios à nova fisioa ... ... 189 § 321. A


Antropologia, ... ... ... ... 192 § 322. O pensamento po211tico
... ... 197

Nota bibliográfica ... ... ... 200

xxIII -o OCCAMISMO ... ... ... ... ... 203

§ 323. Características da escolãstica

fina,1 ... ... .. . ... ... ... 203

§ 324. Primeiros discípulos de Occam 204

325. O naturalismo na escola occa-

mista ... ... ... ... ... ... 208 § 326. Os "calculadores" de
Oxford ... 212 § 327. A esco'a occamista. ... ... ...
217

Nota bibliográfica ... ... ... 220

241

xxIv - O MISTICISMO ALEMAo --- --- ... 223 § 328.


Característica do misticismo § 329. alemão ... ... ... .. . -
-- 223 § 330. Mestre Dietrich ... ... ... ... 224 § 331. Mestre
Eckhart ... ... 226

-A mística alemã ... ... Nota bibliográfica 232

23,5

242

Composto e Impresso para a EDITORIAL PRESENÇA

na

Tipografia Nunes

Porto

14

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