SOCIOLOGIA DA ARTE Introdução SILAS DE PAULA* que a câmera é um instrumento KADMA MARQUES** de evidência. Outras posturas sugerem que o desenvolvimen- A fotografia é um objeto RESUMO Este artigo discute algumas questões colocadas to da linguagem fotográfica é que me interessou. Consi- por Pierre Bourdieu em seu livro Un Art Moyen. derei, naturalmente, o fato A pretensão, aqui, é iniciar um diálogo entre a “nova sociologia da arte”, de Nathalie Heinich, um processo de substituição e desta ser a única prática e as abordagens de autores não-franceses imposição de convenções, uma que refletem atualmente sobre a imagem com uma dimensão artís- contemporânea, como Elizabeth Edwards, história ideológica do domínio e tica acessível a todos e de Janice Hart, Rosalind Krauss, Howard S. Becker e outros. Consideradas as particularidades do abandono de determinadas for- ser o único bem cultural momento histórico no qual foi elaborada, seria possível afirmar que tal obra ainda se adéqua mas de pensamento. universalmente consumi- ao corpus teórico e à prática da fotografia Se voltarmos o nosso do. Achei, assim, que, por contemporânea? Palavras-chave: sociologia da arte, fotografia Palavras-chave olhar para o instantâneo foto- meio desse desvio, conse- contemporânea. guiria desenvolver uma gráfico, para o álbum de famí- ABSTRACT teoria geral da estética. This paper discusses some questions put by lia, é bom lembrar que a prática Pierre Bourdieu in his book Un Art Moyen. Our (...). Parece que encontrei intention here is to initiate a dialog between the é, desde seu início, um proces- french tradition of the “new sociology of art”, muita coisa nesta caixa de through Nathalie Heinich, and some non-french so fundamental de autoconhe- sapatos (BOURDIEU & authors like Elizabeth Edwards, Janice Hart, cimento e representação. Tais Rosalind Kraus, Howard Becker. The main point BOURDIEU, 2006: 31). is: due to the specifity of that historic moment is imagens tendiam a seguir uma it possible to argue that Bourdieus’ arguments still appropriate to the theoretical field and the convenção rígida que consoli- practices of contemporary photography? dava e perpetuava mitos e ide- Keywords: new sociology of art, contemporary Keywords Durante mais de um photography. ologias familiares dominantes, século, afirmamos que a foto- * Doutor em Sociologia, pela Loughborough como estabilidade, felicidade, University – Inglaterra. Professor da coesão etc. E aceitas, quase grafia era um tipo particular Universidade Federal do Ceará – UFC. sempre, sem uma crítica mais de imagem operando com a ** Doutora em Sociologia, pela Universidade Federal do Ceará. Professora da Universidade apurada, pois sempre foram imobilização de um momento Estadual do Ceará – UECE. valorizadas pela evidência que no tempo, retratando objetos, elas proporcionam sobre nossas famílias e amigos. pessoas e lugares na forma como eles aparecem na Na era analógica, as fotografias pessoais funciona- visão da câmera. Uma definição simples, mas é bom vam como um meio para a lembrança autobiográfica lembrar que ela nasceu no ambiente positivista do e terminavam, freqüentemente, em algum álbum ou acondicionadas em uma caixa de sapatos. A função século dezenove que se beneficiava de descobertas da fotografia como instrumento para a formação da e inventos anteriores e da vontade de encontrar um identidade e como meio de comunicação era reco- meio que permitisse a reprodução mecânica da rea- nhecida, mas sempre percebida como algo secundá- lidade visual. Hoje, os autores têm visões diferentes. rio em relação a sua função primordial: a memória Roland Barthes (1984) afirma de forma contundente (VAN DIJC, 2008).
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Pierre Bourdieu (1990), no livro Un art É preciso lembrar que esta obra teve como moyen, escrito em 1965, situa a prática da fotografia antecedentes uma produção sociológica que temati- no âmbito mais amplo das práticas sociais de forma- zava inicialmente as desigualdades sociais flagrantes ção de identidade coletiva e descreve a construção na Argélia para, em seguida, voltar-se sobre aquelas de álbuns fotográficos como um “ritual de integra- menos evidentes mediadas e ratificadas pelo sistema ção” que cumpre uma “função normalizadora” com a escolar francês. Nesse contexto, Bourdieu lança as mesma clareza de uma lápide tumular. Ele argumenta bases de um projeto intelectual que assume por mis- que os instantâneos familiares podem ser tirados com são desvelar as relações de dominação socialmente qualquer tipo de câmera. Para este autor, o que os estruturadas na esfera da cultura e seus mecanismos caracteriza é a sua função determinada pela rede de de realização ou subversão no âmbito das práticas. relacionamentos sociais e não sua qualidade pictorial. Muita coisa mudou desde 1965. Os laços Utilizando uma perspectiva etnográfica, Bourdieu tradicionais da família foram desfeitos, papéis con- compara essas imagens aos “churingas”1 e afirma que vencionais de gêneros foram questionados e os an- a qualidade primordial do nosso relacionamento com os instantâneos é a ligação primitiva com objetos de tigos alinhamentos de classe perderam sua clareza. fetiche. Embora o título do livro aponte a fotografia Um mundo diferente daquele descrito por Bourdieu, como objeto de pesquisa, fica claro que não é sobre no qual os camponeses existiam como uma força so- a sua materialidade que ele se debruça, e sim sobre cial distinta, e o conceito de “aldeia global” só surgi- a prática social de “tirar fotos”. Embora parte do ria na década seguinte. estudo tenha sido baseada em dados quantitativos, Com a fotografia integrada à arte contem- as evidências que perpassam o texto consistem, em porânea é possível perceber, de uma forma ainda sua maioria, de citações diretas dos entrevistados. mais clara, como a cena mudou. É óbvio que ainda Assim, existem argumentos e exemplos sobre a ex- existem distinções fundamentais entre artistas tra- periência na França de 1960 que não se aplicam ao balhando com imagens familiares e a fotografia de momento contemporâneo. massa. Julian Stalabrass (1996), por exemplo, argu- Os desenvolvimentos tecnológicos, as câ- menta que o resultado dessas fotografias familia- meras digitais fazem com que os argumentos sobre res transformadas em arte é nada mais do que um o impacto do filme colorido fiquem obsoletos, em- equívoco alçado ao domínio artístico, ilustrando o bora possam reforçar os comentários de Bourdieu sistemático e contraditório relativismo da prática sobre o fetichismo da automação. Ele não trabalha na área. com muitas questões que são recorrentes nos discur- sos da história da arte atual em relação à fotografia. Mesmo concordando com Stalabrass sobre No entanto, ele não só apresenta uma interessante o “sistemático e contraditório relativismo da práti- análise de um tempo passado, mas também aponta ca na área”, é necessário, no entanto, ter em mente abordagens alternativas na prática da análise foto- que uma foto não se transforma em arte, simples- gráfica e demonstra que a fotografia foi, e continua mente, pelo ato fotográfico e a materialidade do a ser, parte integrante dos sistemas de identificação objeto ao ser percebido; ela tem que ser associada a social, consumo e expressão no mundo ocidental. um conceito, a uma poética, que pode ser tácita, ou
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um processo, coisas com as quais o mundo artístico um valor comercial. Quando um trabalho passa a concorde sem a necessidade de muito ser dito; em- ser amplamente reconhecido e admirado, é sinal de bora, o aprofundamento conceitual dessas questões que determinados significados ou sentidos passa- continue a tomar forma de textos. ram a dominar o cenário artístico. Na realidade, as escolhas feitas pelos partici- A produção de sentidos nas artes visuais é pantes do cenário artístico dão sentido à afirmação tanto um aspecto da maneira pela qual representa- de que os “mundos” da arte estabelecem o caminho, mos a nossa cultura como um todo, quanto a forma não os artistas, mesmo que o crédito seja dado a eles como é representada para nós. Se, para Bourdieu, (BECKER, 1982). Como afirma Nathalie Heinich, a fotografia é determinada não por suas qualidades não nos encontramos mais ao abrigo de uma lógica intrínsecas, mas pelo fato de ter se tornado uma prá- contínua e normativa, que estabelece graus de quali- tica social de massa, como pensar a fotografia como dade estética, mas, ligados a uma norma da simulta- suporte da arte visual contemporânea? Segundo ele, neidade. Para esta autora, a sociologia é semelhante à psicanálise, no que se re- fere a sua abordagem no campo da arte; e, no caso (...) a especificidade da situação atual da criação e do consumo artístico, aparentemente “o reside no fato de que não existe mais sociólogo se encontra no espaço, por excelência, da um único mundo da arte (...), nem uma negação do social” (BOURDIEU, 1984: 11). única definição do que são ou devam Os tipos de ilusão encontrados no campo ser as artes plásticas, mas várias. As di- da arte incluíam, pelo lado da produção, a “ideolo- ferentes maneiras de fazer arte não es- gia do carisma” e, pelo lado do consumo, a noção tão mais dispostas gradativamente num de contemplação pura ou desinteressada. Bourdieu eixo, entre pólo inferior e superior, mas ataca ambas as tendências por ignorarem os fatores em vários eixos. Assim, as querelas não sociais, econômicos e políticos e apontarem uma dizem mais respeito somente a questões atividade supostamente autônoma ou “pura” da arte. estéticas de avaliação (...) ou de gosto Um tipo de perspectiva que nega os fatores extra- (...), mas a questões ontológicas ou cog- estéticos que interferem no modo de produção dos nitivas de classificação e de integração sistemas artísticos. Em resumo, as ortodoxias que ou exclusão (HEINICH, 2008b: 180). caracterizaram a sociologia da arte, desde os anos setenta do século vinte, incluem tendências que a Todo o processo pode ser percebido como percebem de modo diferente das antigas decodifica- uma ‘edição’. Uma edição global de trabalhos acei- ções filosóficas da arte; a preferência por estudar re- tos, recusados ou ignorados pelos críticos ou cura- des concretas de produção e consumo artístico, um dores de mostras, galerias e museus que vão deter- ceticismo em relação à visão de mundo de artistas e minar a sobrevivência ou a morte de determinados ao ambiente artístico que vivenciam. A contempo- processos. Além disso, ao editar os trabalhos e con- raneidade da arte parece exigir uma reinterpretação servá-los, os museus e galerias estampam na obra de alguns desses conceitos-chave.
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Uma sociologia da arte ou uma sociologia a partir constante, resultando em um fluxo incansável de de- da arte? jetos e dissipação – “dispositivo que já está contido no desenho original” (BAUMAN, 2007: 123). Ele desen- Nas últimas duas décadas, Nathalie Heinich volve seu pensamento tendo como base os trabalhos vem tentando estabelecer critérios para uma nova de Villeglé, Valdes, e Braun-Veja e utiliza cada um de- sociologia que se origina da arte (sociologie de l’art les para dar exemplos-chave da modernidade líquida: no sentido de a partir de l’art). Para esta socióloga criação e destruição, a desesperada batalha por atenção francesa, as rupturas provocadas pela arte moderna e a falta de direção da marcha do tempo. Uma seqüên- e arte contemporânea são caracterizadas pela quebra cia incessante de novos começos, mas cada novo início das convenções pictóricas correntes em uma contí- também contém as sementes de sua própria destruição nua formalização dos desafios artísticos. Ela apon- e desaparecimento. “A imagem é fluída e móvel, menos ta o engajamento em movimentos coletivos que se um espetáculo ou dado do que um elemento numa ca- estabeleceram sucessivamente, acompanhados de deia de ações; uma realocação de imagens” (idem: 125). manifestos, que visavam suprir a falta de estrutu- Por outro lado, Cláudio Cordovil (2002) argumenta que uma vertente mais promissora da ras coletivas institucionalizadas à época (HEINICH, discussão diz respeito ao fato de a arte contempo- 2008a). A organização corporativa dos ateliês dei- rânea ter se transformado em uma arte oficial – um xara de existir; a academia era representada por academicismo do século XXI sem qualquer poder um instituto com reduzido número de vagas e não de transgressão –, normalizada e legitimada pelo existiam sindicatos e nenhuma sociedade de artis- circuito dos museus, na espiral transgressão-rea- tas havia vingado. A última característica da ruptura ção-integração. O autor se apóia no argumento de moderna seria a da “normalização da singularida- Heinich segundo o qual, “é mais difícil estabelecer de” e a necessidade de se multiplicarem as correntes a especificidade do contemporâneo quando a trans- artísticas, sempre em busca do novo singular, o que gressão valida tendências estabelecidas na arte con- acarretou “um esgotamento acelerado dos gostos”.2 temporânea” (HEINICH, 2008b: 191). Na interpretação de Heinich, é difícil esta- Seguindo o raciocínio de Eduardo de La belecer a especificidade do contemporâneo, e ga- Fuente (2007), deveríamos, então, perceber “a socio- nharíamos muito se o termo “fosse tomado não no logia da arte fundamentalmente diferente das abor- sentido de um momento da evolução artística, corres- dagens realizadas pela história da arte e a estética pondendo a uma periodização, mas, sim, no sentido filosófica? A investigação sociológica pode ignorar o de um ‘gênero’ da arte, homólogo ao que foi a pintura trabalho de arte e manter seu foco, basicamente, nos histórica no classismo”. (HEINICH, 2008b: 179). Em fatores contextuais?” Segundo este autor, o status resumo, o gênero “arte contemporânea” constituiria disciplinar da arte mudou radicalmente com a fun- apenas uma parte da produção artística atual. Outro dação de associações profissionais dedicadas ao es- autor, Zygmunt Bauman (2007), utiliza o conceito de tudo da arte pelas ciências sociais e a publicação de “arte autodestrutiva”, de Gustav Metzer, para antecipar dois textos seminais: Art Worlds, de Howard Becker seu próprio argumento sobre as maneiras pelas quais (1982) e A Distinção, de Pierre Bourdieu (2008). Ele o consumismo contemporâneo demanda novidade argumenta que
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(...) a ‘nova sociologia da arte’ preten- (...) um conceito dialético de cultura vi- de dizer algo sobre arte sem sucumbir sual não pode se contentar com a defi- aos problemas identificados por antigas nição de seu objeto como a construção abordagens, i. é., a tendência em inflar social do campo visual, mas tem que in- o status e a importância da arte e a pro- sistir em explorar o reverso quiasmático pensão em tornar imprecisas e vagas as dessa proposição, a construção visual do afirmações sobre a determinação social campo social. Não é só porque vemos da da arte e da representação artística da forma que vemos que somos animais realidade (de La FUENTE. 2007: 411). sociais, mas também porque nossos arranjos sociais tomam a forma que Seu artigo procura mapear determinadas têm por que somos animais que vêem (MITCHELL. 2002: 172). tendências recentes nas ciências sociais segundo as quais essa “nova sociologia da arte” reflete a conso- Mitchell (1994) trouxe para o discurso cien- lidação de uma abordagem sociológica distinta. Esta tífico que lida com imagens e texto a frase “virada envolve o reconhecimento de que os sociólogos, ao pictórica” (Pictorial Turn). Ele foi buscar o tópos re- estudarem a arte, produziram seus próprios pontos tórico sobre “virada” nos textos de Richard Rorty que, cegos, quando se afastaram da estética filosófica e da em 1967, apontara a “virada lingüística”.3 De acordo história da arte, vistas como disciplinas insuficien- com Rorty, as filosofias antiga e medieval lidavam temente críticas em relação às ideologias existentes com idéias, enquanto o momento contemporâneo entre artistas e instituições de “alta cultura”. Publica- está muito mais voltado para a palavra. Além disso, ções recentes têm sido mais cuidadosas em relação a Rorty traçou a genealogia da virada lingüística, pas- essas abordagens e sando por Derrida e Heidegger até Nietzsche, mas, (...) “a nova sociologia da arte parece con- citando sempre outro dos seus filósofos favoritos, fiante o bastante para iniciar um diálogo Ludwig Wittgenstein. Com seus textos, emblemáti- com outras disciplinas (...) se e quando esses cos para a discussão sobre cultura visual, Mitchell discursos compartilharem o argumento de questionou o poder e a dimensão dada à virada lin- que a arte é um construto social e que sua güística, afirmando a importância da virada pictó- rica e a necessidade de uma teoria [independente] produção e consumo são profundamente so- da imagem. Ele argumenta que as imagens que nos ciais” (idem: 412). cercam transformam não só nosso mundo e as nos- Se concordarmos com a conclusão de sas identidades, mas têm um papel, cada vez mais Eduardo de La Fuente, como refutar argumentos de importante, na construção da nossa realidade social William Mitchell (2002), que apontam problemas com e que as interpretações estruturalistas e pós-estru- “teses” a favor e contra os “mitos” da cultura visual? Por turalistas, ao lidarem com metáforas textuais, não exemplo, a afirmação de que “a cultura visual é a cons- conseguem mais dar conta dos processos imagéticos trução social da visão, é uma visão redutora”: contemporâneos.
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Tendo em vista a complexidade do processo fotografia ser ou não arte, deixa-se de lado um pon- e dos debates que perpassam tais discussões, como to mais importante, que é: o que a fotografia pode pensar os recursos analíticos dos quais dispõe a so- nos dizer sobre arte ou representação? Segundo ele, ciologia da arte para compreender a recorrência dos Baudellaire ao ver a fotografia como a antítese da instantâneos familiares como subsídio do trabalho arte, mais do que questionar o aspecto duplicativo de artistas e curadores? do tipo de mídia que arruína o gesto artístico, apon- tava, sem querer, um aspecto importante e inovador Uma pequena história da fotografia da fotografia: a sua teatralidade. Nos anos oitenta e noventa do século vin- te, algumas dessas questões ficaram mais claras, A fotografia é a mídia dominante que tem ocorrendo grandes mudanças na maneira como as retratado a família. A produção de instantâneos e de pessoas se relacionavam com a mídia fotográfica e álbuns familiares que se insere no domínio da ativi- com o mundo. Essas novas posturas, reunidas sob dade social pode, de fato, ser tratada como constru- o termo “pós-modernismo”, sugeriam que a foto- ção de um mundo simbólico. Esse mundo de repre- grafia não teria mais referente no mundo e deveria sentações reflete e promove um modo particular de ser compreendida e criticada somente em relação à visualidade – uma versão preferencial da vida que sua própria organização estética interna. Alguns au- pode sobreviver a todos nós. Apesar das enormes tores questionaram a noção de artista autônomo, a mudanças sofridas pela instituição familiar, os por- idéia de verdade no documentário e a noção de uma traits fotográficos do século dezenove compartilham linguagem visual pura. A intenção era a de situar a das mesmas convenções visíveis nas pinturas da Ida- fotografia em um contexto mais amplo, de debates de Média e da Renascença. Walter Benjamin, em seu teóricos e de compreensão, relacionado com senti- texto “Pequena História da Fotografia”, afirma que a do, comunicação, cultura visual e políticas de repre- primeira década de sua invenção foi a melhor, en- sentação. Para Solomon-Godeau, cantando a todos. Para ele, aquelas imagens trans- mitiam a individualidade da pessoa fotografada; os (...) eles estavam pensando a fotografia personagens eram misteriosos, tímidos, cheios de como prática de significação; isto é, ma- detalhes, vívidos e impressionantes. A longa expo- teriais específicos trabalhados com pro- sição forçava os modelos a ficarem imóveis por um pósitos determinados em um contexto longo tempo, transmitindo um sentido de continui- histórico e social particular. A semiótica dade indefinida do tempo.4 é um ponto de partida para este projeto Mesmo que os argumentos de Benjamin teórico, mas não é suficiente para dar sejam marcados pela nostalgia e se concentrem em conta das complexas articulações de mo- aspectos evidentes e típicos dos primeiros portraits mentos das instituições, textos, distribui- fotográficos, ele insiste, acertadamente, que é ne- ção e consumo da fotografia. (...) Uma cessário criar um cenário artificial para representar discussão que reunisse disciplinas como com credibilidade o real. Philippe Lacoue-Labarthe lingüística, sociologia, marxismo, his- (1986) afirma que ao se levantar a questão sobre a tória da arte e psicanálise no estudo da
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produção de imagens possibilitaria uma David Trend (1992) escreveu que o instantâ- melhor compreensão das operações so- neo fotográfico estava sendo apontado pelos ativistas ciais (SOLOMON-GODEAU, 1997: 28). culturais como o corolário visual do estudo da vida doméstica, e isto era sinal de uma tendência enco- Além disso, devemos ter em mente que rajadora para a reflexão sobre o processo. Ele estava grande parte da importância social da fotografia tem correto; os últimos anos provaram ser um período de sua origem nos formatos mais acessíveis e populares boom para a análise pública do instantâneo em suas dos equipamentos. Os fotógrafos profissionais eram diversas capacidades: emblemático para a comunica- muito mais requisitados até a popularização de câ- ção social, artefato enigmático para uma nova histó- meras mais simples,5 quando perderam boa parte ria e com um enorme crescimento entre as famílias. dos clientes para a prática amadora e familiar. Este Porém, essas investigações ocorriam, segundo Trend, fato acabou criando um dos modos sociais mais em grande parte através dos esforços variados de ar- complexos da fotografia, especialmente em sua forte tistas e curadores, que deram ao instantâneo um pa- conexão com as noções de família, lazer, memória pel proeminente na reinvenção dos espaços públicos e identidade,6 levando artistas, curadores e teóricos para exposição de fotografias, e não sob a égide dos culturais a se voltarem, com grande interesse, nas estudos culturais ou da academia.8 últimas décadas, para uma reflexão sobre a sua prá- Rosalind Krauss argumenta que a inclusão tica cotidiana e sua utilização na arte.7 Na realidade, da fotografia no campo da crítica da arte trouxe desde a vanguarda dos anos vinte do século passado, como conseqüência o esquecimento de que a foto- que instantâneos descartados são transformados em grafia é, ao mesmo tempo, signo e produto. Desta matéria prima da arte. forma, surgiu um arsenal de literatura especializada, A facilidade do processo fez dele o meio ide- segmentada em diversas categorias, com o objetivo al para explorar as maneiras pelas quais, memória, de “explicar” as imagens. “Como se algo pudesse ou auto-imagem e família são retratadas e estruturadas devesse existir de fato como literatura da fotografia; por conceitos como classe, gênero e corpo. Atual- como se a fotografia devesse ou pudesse ser objeto mente, as distinções entre mídias começam a se des- de literatura” (KRAUSS, 2003: 7). vanecer, e o instantâneo fotográfico se encontra na Seguindo esta linha de raciocínio – mas sem interseção de vários processos e tecnologias: desde o querer, no momento, esgotar as questões colocadas novo jornalismo realizado por pessoas comuns, uti- por Krauss –, não seria o caso de acrescentar a esse lizando a câmera de seus celulares para registrar (e debate o conceito de fotografia como “objeto”? Isto veicular) acontecimentos, bem antes da grande mí- é, discutir a sua materialidade, uma vez que ela é dia institucional, até o registro do cotidiano familiar, tanto imagem quanto objeto físico no tempo e no transformado agora em um grande banco de dados espaço e, portanto, na experiência social e cultural? – diferente das fotos de momentos esparsos, dos ál- Elizabeth Edwards e Janice Hart (2005) utilizam buns analógicos do passado – ou disponibilizado na argumentos de Geoffrey Batchen e Will Straw para rede mundial através dos fotologs, criando novas co- afirmar que nexões entre a imagem fotográfica e a rotina diária.
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As fotografias têm volume, opacidade, como a aventura do olhar configura-se como um tatilidade e presença física no mundo e, percurso cujos desdobramentos são dificilmente portanto, incorporam interações subjeti- previsíveis. A revolução digital, com seu ritmo veloz vas e sensuais. Essas características não e uma vasta expansão de opções de produção ima- podem ser reduzidas a um status abstra- gética, está levando a fotografia a abraçar questões to como mercadoria, nem a um conjun- cada vez mais complexas. to de sentidos ou ideologias que tomam Neste sentido, podemos argumentar que as a imagem como pretexto. Pelo contrário, análises das fotografias no campo artístico, usualmen- elas ocupam espaços, movem-se entre te, seguem dois caminhos. Um deles é a preocupação eles seguindo linhas de passagem e uso com as estruturas internas do trabalho, a natureza dos que as projeta no mundo (EDWARDS e seus elementos constituintes e suas inter-relações, a HART, 2005: 1). procura por padrões de harmonia e tensão, que são interessantes e emocionalmente envolventes. Outro É claro que o conteúdo da imagem é impor- caminho explora questões relacionadas à sua impor- tante. De uma forma simplista, segundo as autoras, tância filosófica. Muitas vezes, ambos são utilizados. é a razão pela qual as fotografias são compradas, Isto é, a maneira pela qual os elementos formais de trocadas, colecionadas ou dadas como presente. Seu um trabalho levam o usuário, leitor, consumidor, a vi- apelo indicial é uma das qualidades que as definem. venciar importantes verdades filosóficas que são tão No entanto, o que elas procuram não é o divórcio intelectuais quanto emocionais. impossível entre a materialidade da foto e sua pró- Como os cientistas sociais podem acrescen- pria imagem, e, sim, quebrar conceitualmente a do- tar algo a esse tipo de análise feita por críticos de minação dos conteúdos e olhar os atributos físicos arte sobre a fotografia, o objeto fotográfico? Becker da fotografia que os influenciam nos momentos dos (2006) argumenta que para isso é necessário ter cla- arranjos e projeções da informação visual. ro que a idéia do “trabalho em si” – isto é, o trabalho em conexão com o próprio trabalho – é empirica- À guisa de conclusão mente suspeita. Os artistas fazem várias versões que, muitas vezes, são tratadas como trabalhos diversos, A quais conclusões podemos chegar a partir mesmo que, em outras ocasiões, sejam percebidas desta “coletânea de argumentos”? À maneira de uma como variantes, das quais um trabalho autêntico assemblage, reunimos materiais diversos que nos deva ser extraído. É uma indicação de uma realidade levam antes a aprofundar este debate do que a dar respostas às questões colocadas. Porém, cremos que empírica que se esconde por trás do que ele denomi- os embates trazidos pela “nova sociologia da arte” e na de “princípio da indeterminação fundamental do a possibilidade de uma reflexão compartilhada com trabalho artístico”: outras disciplinas poderão minimizar as aporias ca- racterísticas de cada campo. (...) a princípio, é impossível para os so- Na realidade, o que se percebe é que a his- ciólogos ou qualquer um falar sobre o tória da fotografia é uma história de tensões, assim ‘trabalho em si’, pois não existe tal coisa.
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Existem, na realidade, diversas ocasiões sinais simbólicos; às vezes, também, simples pedaços de madeira ou seixos não-trabalhados. Qualquer que nas quais o trabalho é apresentado, lido seja sua aparência, cada churinga representa o corpo ou visto e cada uma delas pode ser dife- físico de um ancestral determinado e é solenemente rente (BECKER, 2006: 23). atribuído, geração após geração, ao vivo que se acre- dita ser esse ancestral reencarnado. Os churingas são empilhados e escondidos em abrigos naturais, longe No entanto, na interpretação deste autor, o dos caminhos freqüentados. Periodicamente são reti- reconhecimento da indeterminação é uma contri- rados para inspeção e manuseio e, em cada uma des- sas ocasiões, eles são polidos, engraxados e coloridos, buição negativa e sugere uma “abordagem genética” não sem que antes lhes sejam dirigidas preces e en- que pode facilitar a compreensão de que o trabalho cantamentos (LÉVI-STRAUSS, 1997: 264). de arte é resultado de uma série de escolhas. Esco- 2 Ver também, CORDOVIL, C. (2202). 3 Para um aprofundamento dessa questão, ver RORTY, lhas que são feitas, não só pelos artistas, mas por to- Richard (1967). dos os que participam do processo. Compreendê-lo 4 Ver KOTHE, Flávio R. (1985). significa, portanto, perceber o tipo de escolha que 5 A primeira câmera Brownie, lançada pela Kodak em 1990, custava um dólar e era tão simples que podia ser foi feita e a partir de quais possibilidades. Coisas utilizada, inclusive, por crianças. que são, usualmente, conhecidas pelos artistas. Uma 6 Para uma visão mais ampla sobre o assunto, ver HIRS- análise sociológica desse contexto pode explicar a CH, Marianne (ed.) (1999). 7 O Museum of Modern Art – MOMA, de Nova York, gama de possibilidades e as condições que o cercam dedicou uma grande exibição ao tema com trabalhos e, dessa forma, explicar as opções feitas. de Peter Galassi (1991), denominado Pleasures and Nesse sentido, a via aberta pelo trabalho Terrors of Domestic Comfort. O Barbican Art Gallery, de Londres, fez o mesmo com Val Williams, em 1994 – precursor de Pierre Bourdieu conduz a uma socio- Who’s Looking at the Family? Em 2008, o prêmio Porto logia da arte que não se conforma mais em abordar Seguro de Fotografia concedeu a Siegbert Franklin o troféu de “Pesquisa Contemporânea”, pelo seu traba- o fenômeno fotográfico/artístico tão simplesmente lho com retratos familiares. Ver também RICHTER, a partir de seus aspectos contextuais, e, menos ain- Gerhard, Atlas of Emotion: Journeys in Art, Architec- da, reduz-se à apreensão dos aspectos formais de tal ture, and Film. London: Verso, 2002; Joachim Schmid, http://www.artic.edu/webspaces/fnews/2001; e traba- produção. Cabe ao discurso sociológico considerar lhos de Christian Boltanski, artista francês. a realidade da obra, vinculando-a a contextos estru- 8 Um olhar mais acurado sobre a longa história do turados de relações sociais de produção, circulação, instantâneo fotográfico e sobre os debates que têm acontecido pode servir para ressaltar algumas das apropriação/consumo cultural. Criam-se, assim, categorias que são necessárias para sua análise, pois teias conceituais que tornam o fenômeno fotográfi- alguns autores argumentam que, nesse início de era co/artístico sociologicamente inteligível, o que não digital, a fotografia analógica assumiu um papel me- morial, não só dos sujeitos e objetos que ela descreve, anula nem traduz a experiência estética provocada mas de sua própria operação como sistema de repre- pela obra, mas antes lhe confere outro status. sentação. Uma relação oposta àquela existente sobre o long-playing de vinil – objeto de nostalgia fetichista de ouvintes que cresceram com CDs. O instantâneo ana- Notas lógico com suas imagens, algumas vezes meio veladas e “sujas” e com seu formato característico, está se tor- 1 Os churingas são objetos de pedra ou de madeira, de nando o símbolo mais potente da historicidade de um forma mais ou menos oval, com as extremidades pon- medium à beira da morte. Para um aprofundamento tudas ou arredondadas, muitas vezes gravadas com da questão, ver BATCHEN, Geoffrey (2001).
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