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Elisa Rodrigues

O Ql'E t TEO LO G I V?

IA DA TEOLOGIA CRISTÃ
H IST Ó RIC O DA TEOLOGIA
TEOLOGIA PROTESTANTE
ES DA TEOLOGIA C O NTEM POR ÂNEA
O QUE É
TEOLOGIA?
El i s a R o d r i g u e s
O r g a n i z a d o p o r V a l t a ir a . M i r a n d a

4L
M K Editora
Rio de Janeiro
2005
TODA COLEÇÃO: TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS
O QUE É TEOLOGIA?
O que é Teologia ? Copyright © Elisa Rodrigues
O que é Hermenêutica? Publicado por M K Editora

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SBB [ARA].

D a d o s I n t e r n a c io n a is d e C a t a l o g a ç ã o n a P u b l ic a ç ã o ( C I P )
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Rodrigues, íilisa, 1976-
() que e Teologia?
/ Elisa Rodrigues ; (organização Valtair Miranda]. Rio de Janeiro; MK, 2004
. -(Teologia ao alcance de todos)
Contém dados biográficos
Inclui bibliog rafia

1. Teologia
I. Título. II. Série

04-3243 CDD 230 CDU 23


Ó Senhor, encurvado como sou, nem
posso ver senão a terra: ergue-me, pois,
para que possa fixar com os olhos o alio.
Aí minhas iniquidades elevaram-se por
cima da minha cabeça, rodeiam-me
por toda parte e me oprimem como um
fardo pesado. Livra-me delas, alivia-me
desse peso, para que não fique encerra­
do como num poço. Seja-me permitido
exergar a tua luz, embora de tão longe
e desta profundidade. Ensina-me como
procurar-te e mostra-te a mim que te
proc uro. Pois, sequer posso procurar-te
se não me ensinares a maneira, nem
encontrar-te se não te mostrares. Que
eu possa procurar-te desejando-te, e
desejar-te ao procurar-te, e encontrar-te
amando-te, e amar-te ao te encontrar.
(Anselmo de Cantuária- 1078)
Su m á r i o
PALAVRAS IN IC IAIS........................................................................ 13

TRAJETÓRIA DA TEOLOGIA CRISTÃ...................................................... 19


Quais os objetivos da teologia?............................................... 25
A teologia pode ser chamada de ciência?................................... 27
Traços da teologia................................................................ 31
Divisões da teologia.... ............ ............................................ 33

PANORAMA HISTÓRICO DA TEOLOGIA................................................. 37


A teologia dos Pais Apostólicos................................................39
Cristianismo judaico e gnosticismo........................................... 40
Os Pais Antignósticos..... ....................................................... 43
A Teologia de Alexandria........................................................ 45
O concílio de Nicéia..............................................................47
Atanásio e a formação da Doutrina Trinitária.............................. 47
O problema Cristológico........................................................ 49
Santo Agostinho(354-430)...................................................... 51
O período medieval..............................................................55

A TEOLOGIA PROTESTANTE...............................................................61
Martinho Lutero___________________ .......................--------- -----------64
João Calvino...................................................................... 66

AS FACES DA TEOLOGIA CONTEMPORÂNEA............................................ 71


Teologia Liberal............... ................................................... 73
Teologias de Libertação_______________________________________ 76
As teologias recentes............................................................ 86

PARA ENCERRAR............................................................................89

DADOS BIOGRÁFICOS.................................................................. ».95

SUGESTÕES DE LEITURA.................................................................. 99
P r e f á c io
Um dos subprodutos do crescimento numérico dos
evangélicos no Brasil é o interesse pelos temas teológicos.
Não chegamos ao tempo, que já houve, em que a teologia
era tema de debate entre o açougueiro e o consumidor,
mas estamos perto. Os meios de comunicação destinados
aos evangélicos promovem temas, uns porque são relevan­
tes e outros apenas porque parecem interessantes.
Todos sabemos que a vida coloca questões, vindas do con­
vívio com não-cristãos (em que sentido Jesus Cristo é o úni­
co caminho?), do desenvolvimento científico-tecnológico
(que é a alma naeradagenômica?) ou mesmo do sofrimento
(onde está Deus, que não responde?), que demandam res­
postas claras e precisas. Essa é uma tarefa para a teologia.
Que não pode ser feita por poucos para quase nenhuns.
O cncastelamento dos teólogos torna dispensáveis os teó­
logos, o que é um desserviço para a fé e para os crentes.
O objetivo da coleção TEOLOGIA AO ALCANCE DE
TODOS é desencastelar os teólogos. Por isso, ela reúne al­
guns dos melhores (com exceção deste prefaciador e ide-
alizador da coleção) pensadores brasileiros que, individu­
almente, esmiuçam temas antes reservados aos iniciados.
O resultado, confira, valeu a pena.
Quem tem perguntas teológicas - e todos os crentes
as têm - encontra nesta série cle livros um guia para sua
caminhada na elaboração de respostas pessoais que apre­
sentem, para o outro e para si mesmo, a razão da esperan­
ça cristã. Quem ler saberá.
ISRAEL BELO DE AZEVEDO
Palavras
I n ic ia is
Cada época fala sobre o numinoso (no sentido de di­
vindade, poder celeste, gênio, influxo ou inspiração) de
acordo com as fontes que lhe são disponíveis. As fontes
que inspiram os discursos e os tratados são várias, mas to­
das elas se originam do princípio da existência, que só
pode ser pensada pelo ser humano. Teologia, portanto, é
isso: pensar sobre Deus, e, até onde se sabe, somente os
humanos possuem essa capacidade.
No entanto, por mais esforços que se tenha empreen­
dido ao longo da trajetória humana, o Sagrado permane­
ce distante, inapreensível. A tarefa da teologia é se esme­
rar dia a dia para alcançar o conhecimento de quem é a
divindade. Essa talvez seja uma busca ilógica. Mas não há
quem convença o (a) teólogo (a) disso.
Para o cumprimento de sua missão, o (a) teólogo (a),
como um investigador, se baseia em evidências a fim de for­
mular suas hipóteses. Podemos aqui ressaltar duas delas: a
revelação natural de Deus - sua criação - e a revelação es­
crita de Deus - a Bíblia. Ora, essas duas evidências exigem
profundo cuidado. Elas são amplas e complementares.
A criação dá pistas a respeito de Deus. Diz que é imen­
so, poderoso, infinito, onisciente e pré-existente; mas, ao
mesmo tempo que fala tanto, parece nada dizer.
A segunda evidência, a Bíblia, é comumente chamada
Palavra de Deus. Trata-se da vontade dele comunicada aos
seres humanos. No entanto, por caprichos do Eterno, ela
foi escrita pela mão de terceiros que foram eleitos por Ele,
seus porta-vozes. Mais uma vez, os indícios para se chegar
até Deus são restritos, porque a linguagem dos autores bíbli­
cos é limitada c não pode conter a “infinitude” cle Deus.
Mas, mesmo diante de circunstâncias que cerceiam o
trabalho do teólogo, ele continua a fazer teologia. Porque
fazer teologia é decifrar o oculto. É contemplar a criação,
é interpretar as palavras do criador.
O assunto deste livro é a teologia. Nossa pergunta inicial
é: O que é teologia? Na expectativa de esboçar uma respos­
ta, traçamos o caminho clividindo-o em cinco partes.
Na primeira parte, falaremos a respeito das origens da
teologia: de onde veio o termo, quem foram os primeiros
a falar, a fazer, a desenvolvê-la, e por quais razões. Também
sublinharemos algumas cle suas especificidades tais como
objetivos, caracterizações, traços gerais e divisões. Preten­
demos com isso elaborar um quadro geral de referências
sobre a teologia e, então, já familiarizados com algumas
categorias e nomes, passaremos para a segunda parte.
A segunda parte dessa introdução apresenta um breve
tratamento histórico sobre teologia. Basicamente foi no
período medieval que a teologia começou a ser produzi­
da sistematicamente. Na época dos primeiros cristãos, os
relatos, as narrativas acerca das maravilhas de Deus e, pos­
teriormente, ensinos de Jesus e seus milagres, existiram
sob a forma da tradição oral e foram transmitidos desse
modo até se tornarem relatos escritos, já na segunda me­
tade do primeiro século.
Inicialmente esses documentos não foram escritos
para serem tratados ou discursos teológicos. E mais pro­
vável que tenham sido escritos para que as memórias
de Deus fossem guardadas e para que detalhes impor­
tantes de sua história fossem preservados. Somente na
Idade Média é que pessoas se dedicaram à teologia. Em
parte porque as tradições que foram escritas precisavam
ser compreendidas de modo mais adequado, e em parte,
também, porque os homens e as mulheres que testemu­
nharam os inícios do cristianismo aos poucos eram ceifa­
dos pela morte.
Diante da diversidade de opiniões e a pluralidade de
experiências do cristianismo dos primeiros tempos, foi
necessário produzir um conjunto literário para defender
a moral e a ética cristã. Esses autores foram chamados
de “Pais Apostólicos”, sendo seguidos pela produção dos
apologistas, dos concílios, da Escolástica e de vários ou­
tros teólogos ou filósofos desse período.
Já na terceira parte, falaremos brevemente de outro
episódio da história da teologia. Trata-se da reflexão dos
reformadores, empreendida na época do Renascimento
(séculos XV e XVI). Esse período, que em particular mar­
cou a história européia, pode ser caracterizado pelo sur­
gimento de uma nova concepção acerca do ser humano e
da natureza, assim como o renovado entusiasmo pela cul­
tura clássica. Neste momento, teólogos católicos se desta­
caram pela crítica que desenvolveram à teologia e à insti­
tuição de que faziam parte. Por causa dessa discordância,
alguns desses pensadores se desligaram do catolicismo e
foram chamados reformadores.
Esse capítulo da história nos conduz a outro. A chama­
da Idade Contemporânea, época em que a teologia alçou
novos vôos e adquiriu novas e diferentes faces. A quarta
parte deste livro fala a respeito da teologia contemporâ­
nea e o legado de seus pensadores ligados à história e às
tendências acadêmicas do período.
Finalmente, a quinta parte, já na conclusão, é um con­
junto de considerações finais, intempestivas. E mais um
convite à reflexão, que parece ser a face mais delicada da
teologia.
Procuramos elaborar este texto de modo simples, po­
rém, com zelo cuidadoso. Definir teologia é uma tarefa
árdua e injusta, pois, como se perceberá, ela é fluida e
dinâmica: um saber sempre inacabado e, por isso, tão in­
teressante e vívido.
A fim de que o leitor possa tirar suas próprias conclu­
sões, indicamos alguns caminhos, fizemos algumas per­
guntas e lançamos algumas informações históricas para
auxiliá-lo nesse intento.
Nosso objetivo é proporcionar ao leitor certo panora­
ma a respeito da teologia, sua trajetória em momentos
cruciais e de que modo se relacionou à existência huma­
na. Aliás, é desse ponto que partimos: da relação entre
teologia e existência humana, porque sem vida (sem pul­
sação) não haveria a teologia.
T r a je t ó r ia
da T e o lo g ia
__________ C r i s t ã
Quais os objetivos da teologia?

A teologia pode ser chamada de ciência?

Traços da teologia

Divisões da teologia
A trajetória da teologia cristã *ás 21

(...) Os artistas se sentiram livres para


assumir e explorar os remanescentes literá­
rios e artísticos da Antigüidade clássica.
(...) eles construíram uma nova ordem -
uma nova forma de ver, uma nova atitude
com relação aos sentidos e a este mundo,
uma nova visão da paisagem e do corpo
humano, uma nova consciência das pai­
xões e dos papéis, um novo sentido da vida
humana como teatro (...). Eles mostraram
que uma teologia poética pode ser o ins­
trumento por meio do qual uma cultura se
transforma e rejuvenesce.
Don Cupitl

As discussões e os debates sobre teologia são cada vez


mais comuns. Nos círculos acadêmicos ou nos domínios
públicos, se fala em teologia, se faz teologia, se discute
teologia.
No Brasil não poderia ser diferente,já que nossas tradi­
ções culturais estão diretamente ligadas ã religião e às ex­
pressões sagradas que se manifestam em todos os grupos
sociais, desde o descobrimento desta terra.
Portanto, não importa a pertença do indivíduo, se é de
origem indígena, negra ou branca, se é do gênero mascu­
lino ou feminino, se tem ou não dinheiro. O assunto teo­
logia passeia por entre as gentes e permeia a cultura, seja
ela erudita ou popular. Por isso, a teologia ultrapassa os
limites impostos pelas paredes das igrejas e vai transbor­
dar nas ruas, nas casas, nos bares, nas telas de cinema, nas
peças de teatro, nas mais diversas literaturas e em muitos
outros espaços. A teologia reivindica para si o status de
22 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I O que é teologia?

disciplina democrática, pois, especialmente nos dias de


hoje, está na boca de todas as pessoas.
Mas nem sempre foi assim. A teologia como disciplina
surgiu há muito tempo e inicialmente estava circunscrita
à erudição clássica antiga.
A palavra teologia é termo de origem grega. O tema da
palavra, Tlieos, significa Deus, e Logia indica o sentido de
estudo. Portanto, poderíamos dizer de modo simples que
teologia é o estudo sobre Deus ou sobre as coisas concer­
nentes à divindade.
Aristóteles usou o termo teologia em sua obra intitu­
lada Metafísica. Nessa ocasião, Aristóteles apresentou a
idéia de Deus como primeiro motor (“o que tudo move e
não é movido” - XII 6-10) e a disciplina teologia passou a
significar pensamento a respeito de Deus.
Recentemente, Jaci Maraschin disse a respeito da teolo­
gia que “o termo carrega em si a contradição fundamen­
tal cie tratar logicamente o deus que, em princípio, não
cabe na lógica. Por outro lado, nem sempre se pensou em
deus ou nos deuses de maneira lógica. Os responsáveis
pelo encerramento do pensamento a respeito da divinda­
de em termos lógicos foram os filósofos gregos”.
No mundo grego, assim como em outras tradições
culturais do Mediterrâneo Antigo (sumérios, acáclios, ba­
bilônios, egípcios, romanos e outros), as religiões e seus
rituais se originavam dos mitos - histórias sagradas - que
serviam aos povos tanto para doar sentido para as suas
vidas, como para ajudá-los em suas organizações sociais e
políticas.
A vida quotidiana das pessoas estava relacionada com
seus mitos sagrados. Os atos de plantio e colheita, a pes­
ca, os casamentos, os nascimentos, a organização das
A trajetória da teologia cristã 23

comunidades e a economia dos grupos estavam ligados


à vontade dos deuses e das deusas. Se havia chuva ou sol,
se as batalhas seriam vencidas ou não, as decisões mais
importantes eram tomadas de acordo com a orientação
divina. As histórias sagradas, os mitos, sustentavam as
civilizações antigas que, por meio de liturgias com cele­
brações e rituais, procuravam dramatizar essas histórias
para mantê-las vivas e, ao mesmo tempo, agradar a seus
deuses e deusas.
Mas aos poucos a explicação para a origem do cosmos
e cla humanidade baseada na vontade soberana da divin­
dade foi perdendo a força. À medida que compreendia
mais sobre o mundo e sobre si mesma, a humanidade
também perdia sua fé e, em contrapartida, adquiria mais
confiança em suas descobertas.
Com o avanço da filosofia rumo ã razão, a fé e a crença
cederam lugar ao discurso, em outras palavras, à retórica.
A retórica era usada pelos filósofos, amigos do saber, como
recurso pedagógico para ensinar, e muitas vezes conven­
cer, sua audiência sobre determinado assunto. A filosofia
é a disciplina que mais pergunta, que está sempre curiosa
e atenta. Enquanto os mitos eram envoltos pela áurea do
nebuloso e as religiões antigas mantinham segredos, a fi­
losofia trouxe clareza e desvendou mistérios.
A retórica teve origem na cultura grega e desde o prin­
cípio foi responsável pela formulação de perguntas filosó-
licas acerca da vida, do dia-a-clia, da morte, dos possíveis
sentidos para o ser humano. Por meio da retórica é pos­
sível conhecer traços fundamentais e distintivos cla tradi­
ção desse povo. O termo retoriké é afim dos termos retor,
orador, e retoreia, discurso público caracterizado pela
eloqüência. Por conseguinte, pode-se dizer que retórica
é a “arte oratória”, ou a disciplina que versa sobre a arte
de falar bem.
24 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I O que é teologia?

Com isso, é possível dizer que os gregos migraram da


“crença” para a “razão”, mas, como defendem alguns his­
toriadores, jamais afirmar que isso os marcava como supe­
riores em relação aos outros povos. Atualmente, quando
se fala a respeito de tradições culturais, é consenso recu­
sar categorias valorativas para a descrição das civilizações.
Ou seja, cacla povo tem suas manifestações culturais e re­
ligiosas, e em todas há valor e especificidades que mere­
cem respeito.
Mas, de fato, apesar da conhecida separação entre mito
ou religião, e filosofia ou ciência, a teologia foi quem fez
primeiro as perguntas sobre existência humana e origem
do mundo, e essas perguntas emergiram do quotidiano
das pessoas que acreditavam nas histórias sagradas e for­
mulavam suas religiões. Não contente com respostas reli­
giosas, a filosofia segue adiante, mas volta-se a encontrar
com a teologia em outras oportunidades.
No mundo cristão dos primeiros séculos, apesar da in­
fluência determinante da tradição judaica e de outras cul­
turas mediterrâneas, por volta do terceiro século, quando
a igreja consolidou seu status de instituição e grandes teó­
logos se destacaram por causa de seus pensamentos e dis­
cussões, pode-se notar claramente a influência da cultura
grega, especialmente da filosofia e da retórica.
A teologia dos primeiros cristãos foi grandemente in­
fluenciada pela filosofia grega, e isso pode ser percebido
já entre os cristãos do primeiro século, e posteriormente
na Idade Média.
Já na Idade Média, os chamados Pais da Igreja deram
origem ao período que ficou conhecido como Patrística.
Os Pais da Igreja elaboraram grandes tratados teológicos
para a defesa da regra e da fé cristã e, para isso, foram bus­
car inspiração e muitos fundamentos na filosofia grega.
A trajetória da teologia cristã 25

Justino Mártir, Clemente Irineu e outros teólogos dessa


época são exemplos disso, além, é claro, de Agostinho, que
tanto é considerado grande teólogo como grande filósofo.
Durante todo o período da Idade Média, esses pensa­
dores desenvolveram célebres tratados teológicos, que mar­
caram a experiência religiosa e consolidaram a base da fé
cristã. Sua influência pode ser atestada até os dias de hoje.
A despeito do que sugeriram alguns pensadores e do
que temeram alguns teólogos, mesmo com a valorização
das ciências, a teologia se mantém viva; mesmo que às ve­
zes com pouco fôlego. Ela é um tipo de conhecimento
inacabado. Ao mesmo tempo que nos aproxima de um
mundo desejável, sagrado, ela também nos afasta. Mas
por meio da teologia e de seu jogo com o que não pode
ser apreendido, podemos sentir aquele impulso apaixona­
do e poético pela vida.
A seguir, veremos algumas perguntas freqüentemente
elaboradas acerca da teologia. Também apresentaremos
breves respostas que podem nos auxiliar neste início do
debate.
QUAIS OS OBJETIVOS DA TEOLOGIA?
Não é tarefa fácil delimitar os objetivos da teologia.
Mas, de antemão, pode-se dizer que esses objetivos são
fixados por quem faz ou estuda a teologia. Em geral, essa
disciplina requer conhecimentos de outras áreas como
antropologia, sociologia, história, psicologia e filosofia.
Ao contrário do que dizem alguns teólogos, a teologia
não é uma ciência autônoma. Ela recorre ao instrumental
de outras ciências humanas para desenvolver sua reflexão.
Embora muitas pessoas discutam teologia em diversos
espaços e independentemente da classe social, da etnia
26 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I O que é teologia?

ou do sexo, as motivações e as intenções de cada estudan­


te e pesquisador (a) são muito diferentes. Há aqueles que
se prestam ao estudo teológico por convicção religiosa - a
vocação - outros(as), pela curiosidade em relação ao Sa­
grado; ainda outros (as), pela tentativa de com preender a
si mesmos(as) e a existência humana.
Também é possível dizer que o teólogo e a teóloga cris­
tãos objetivam compreender a revelação de Deus e, para
isso, buscam interpretar o texto bíblico. Desse modo, a
tarefa de quem faz teologia é a de hermeneuta, isto é,
intérprete da Palavra de Deus revelada nas Sagradas Es­
crituras e na sua criação.
Ora, as coisas relacionadas ao Sagrado não são tão fa­
cilmente compreensíveis ao humano. Tradicionalmente,
o conceito de Sagrado aponta para o intocável, isto é, o
transcendente, inalcançável humanamente. Esse ser ideal
cercado pela aura do mistério, do nebuloso, com o adven­
to da Reforma, passou a ser acessível a outros grupos. Até
então somente os eclesiásticos controlavam a interpreta­
ção dos textos bíblicos.
Com a eclosão das teorias reformistas, algumas das
idéias lançadas no cenário religioso foram:
- Cada crente é um sacerdote (o Sacerdócio Universal).
Assim, cacla indivíduo pode se comunicar com Deus;
-A Bíblia é a mensagem de Deus para a humanidade, é a
revelação da vontade divina para todas as pessoas, portan­
to, deve ser disponibilizada na língua de cada tradição.
Quando o(a) teólogo(a) cristão(á) sc aproxima do tex­
to bíblico, busca compreender tal escritura à luz de certos
elementos, como contexto histórico, linguagem, cultura
e outros pressupostos do(a) autor(a). Mas ainda existem
os pressupostos cio próprio herm eneuta que podem ser
âà
A trajetória da teologia cristã s 27

considerados “filtros culturais”. Esses filtros às vezes aju­


dam e outras vezes atrapalham porque dificultam a cla­
reza e a neutralidade de quem busca a compreensão do
texto.
Entretanto, pode-se dizer que a linguagem bíblica é o
recurso que expressa mais plenamente o inefável: Deus.
A interpretação bíblica, portanto, torna-se um belo jogo
que vela e revela o Sagrado que, assim, permanece sem­
pre envolto em aura de mistério. A Reforma proporcio­
nou certa autonomia para a teologia e religião, mas não
extinguiu o mistério.
A teologia, por intermédio do (a) hermeneuta, busca
fazer o conhecimento de Deus. Porém, o intérprete é im­
pedido ao defrontar-se com os limites estabelecidos pelo
próprio texto. A teologia tenta abstrair intelectualmente
o Sagrado ou as coisas sagradas, mas só pode alcançar
noções a respeito do Sagrado. Pois seu foco de estudo é
nebuloso, é superiormente infinito em relação à razão li­
mitada do ser humano. Com isso, poderíamos dizer que a
teologia e a hermenêutica se confundem; ou, até mesmo,
que a teologia é pura hermenêutica.
A TEOLOGIA PODE SER CHAMADA DE CIÊNCIA?
Toda ciência estuda um objeto. De modo simples,
pode-se dizer que o objeto de estudo da sociologia é a
interação social humana ou as relações sociais entre seres
humanos. Então, seria natural compreender que no caso
da teologia, o objeto de estudo é Deus ou a revelação de
Deus, simplesmente.
Mas, como dito antes, não é tão simples assim. Além de
Deus superar os limites racionais humanos c, portanto,
não poder ser apreendido totalmente, existem ainda dife­
rentes abordagens teológicas.
28 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I O que é teologia?

Na Idade Média, na época conhecida como Escolástica


e que foi protagonizada por teólogos católicos, a tendên­
cia era fazer teologia de modo acadêmico. Nesse perío­
do, deu-se o surgimento das Universidades (primeiro em
Paris, Oxford) e os mestres dessas escolas eram absoluta­
mente exigentes na formação de seus alunos.
Historiadores como Jacques Le Goff afirmam que a
Escolástica e as universidades devem ser compreendidas
como instituições interligadas. Neste caso, a teologia era
de um rigor acadêmico estóico e só as pessoas ligadas à
Igreja poderiam estudar teologia.
Mas, nem toda teologia tem formato acadêmico. Hoje
em dia, a teologia circula também por ambientes não-aca-
dêmicos e se expressa livremente entre religiosos leigos,
isto é, que não exercem cargos de sacerdócio, e entre pes­
soas comuns, muitas vezes não-participantes de igreja al­
guma. Essas abordagens teológicas podem ser chamadas
de Teologia Pastoral e Teologia Popular.
No primeiro caso, a teologia pastoral visa ao cuidado
com o fiel da igreja; portanto, é uma teologia de caráter
prático, pois objetiva dar suporte espiritual àqueles (as)
que se consideram religiosos(as).
No segundo caso, a teologia popular, ou que faz leitura
popular, tem por fim proporcionar ao fiel condições para
compreender os textos sagrados e seus diversos contex­
tos para a vida quotidiana, sem que sejam necessários os
aprofundamentos teóricos, filosóficos e ou acadêmicos.
Durante muito tempo algumas pessoas quiseram esta­
belecer modelos formais para a teologia e para isso atribu­
íram-lhe regras e metodologias. Como exemplo pode-se
citar o caso das ciências da natureza ou ciências empíri­
cas. Atualmente ainda se pode verificar a influência dessas
ciências na teologia em função do período iluminista.
A trajetória da teologia cristã yái 29

Em resumo, essa agregação da teologia a outras disci­


plinas sempre aconteceu. Já nos séculos XVIII e XIX, a
teologia sofreu o impacto de várias mudanças no cenário
mundial que cooperaram para alterações significativas
também na sua compreensão de Deus e da humanidade.
Nesse período, o lugar de excelência da teologia passou a
ser a Alemanha, pois nessa região surgiram muitas refle­
xões teológicas importantes, tanto entre católicos como
entre protestantes.
É importante notar que o contexto histórico cio século
XIX e seus conturbados acontecimentos constituíram o
pano de fundo da teologia de muitos teólogos alemães.
Os fatos ocorridos nesse período são, sem dúvida, os agen­
tes causadores da reflexão crítica que contribuiu para que
pesquisa e a construção teológica parecessem mais com
ciência.
Portanto, entencle-se que a visão de mundo desses teólo­
gos foi grandemente influenciada pelo terror presenciado
em acontecimentos como a I e II Guerras Mundiais, cau­
sadoras da depressão social, da miséria, das tragédias e das
bestialidades que explodiram naquele momento histórico.
Até então a teologia em voga enfocava entre outras coi­
sas a imanência de Deus e o ser humano como agente
moral e livre, a centralidade de Deus, a religião ética, a fé
racional e experimental, o criticismo bíblico e a escatolo-
gia otimista e progressista.
E importante observar que essa teologia, como qual­
quer reflexão desenvolvida dentro de determinado con­
texto histórico, tendia para a ênfase filosófica da época,
a saber, o cientificismo ou o racionalismo. Essa teologia pro­
punha que as pessoas poderiam chegar ao conhecimento
de Deus por meio da revelação geral; isto é, por meio da
contemplação da natureza e de sua razão.
30 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I O que è teologia?

O contraste que se impunha entre essa perspectiva te­


ológica e as atrocidades provocadas pelas guerras de en­
tão, provocadas pela disputa do poder, conduziram, não
só pensadores de teologia como de outras áreas também,
ao negativismo. O colapso que essa crise gerou permitiu
que muitos (as) pensadores(as) considerassem a realida­
de de modo pessimista e, com isso, cresceu o interesse
pelo existencialismo.
O clima de vazio e falta de sentido fez com que diversas
pessoas se perguntassem como conciliar as descobertas
tecnológicas com a tragédia da maldade humana.
O mundo dos estudos teológicos se dividiu em dois
blocos: ortodoxia e liberalismo. O primeiro grupo era
formado basicamente pelos(as) teólogos(as) de formação
conservadora que, em resumo, retomavam a autoridade
das Escrituras Sagradas e sua inerrância, a inspiração e
infalibilidade dos textos bíblicos, a dupla natureza de Je­
sus e seu sacrifício vicário, a doutrina da trindade e outras
doutrinas que ressaltavam sobretudo a superioridade de
Deus e de sua vontade para a humanidade.
O segundo grupo, formado pelos liberais, rejeitava os
elementos sobrenaturais e de transcendência dos textos
bíblicos porque não poderiam ser explicados pela razão.
Por conseguinte, a ação sobrenatural de Deus no mun­
do, os sinais, os milagres e a própria ressurreição cie Je­
sus eram considerados não como feitos prodigiosos, mas
como narrativas típicas da tradição judaico-cristã, com
funções religiosas e de organização social e política.
Para os teólogos liberais, por exemplo, os ensinos de
Jesus apresentados nos textos do Novo Testamento ser­
viam como catálogos de regras éticas e de orientação mo­
ral para todas as pessoas.
A trajetória da teologia cristã vâs 31

Nesta faixa da história pode-se perceber que a teolo­


gia é reflexão que se pauta uo tempo e na cultura. Ela é
dinâmica e viva. Portanto, é um tipo de saber que se de­
senvolve a partir das perguntas que o(a) teólogo(a) faz.
Deste modo, ela pretende o conhecimento de Deus 011
em relação às coisas de Deus à medida que aproxima a
divindade do humano.
A teologia possui traços de ciência porque é conheci­
mento produzido na inter-relação do sujeito (que pode
ser crente ou não) com o Sagrado. Mas a teologia não é
um tipo de ciência reclusa às bibliotecas e aos laboratórios.
Ela brotajuntam ente com as novas perguntas que surgem
110 quotidiano. Por isso, ela é formulada livremente, e nos
dois casos, recebe influência de outras ciências, culturas,
contextos históricos etc.
TRAÇOS DA TEOLOGIA
Quando a teologia é caracterizada pelo modelo formal
da pesquisa acadêmica pode apresentar traços de:
- Criticidade;
- Sistematicidade;
- Dinamicidade.
No entanto, a teologia é sui generis porque sua base - a
revelação - nas Escrituras ou na criação é completamen­
te diferente dos objetos de estudo de outras ciências. Ela
tem como princípios o saber transcendente (princípio
objetivo) e a fé (princípio subjetivo). Mas mesmo esses
elementos são examinados pelos critérios acima.
Criticidade. Assim como toda ciência, a teologia é sa­
ber crítico, ou seja, saber que opera sobre si mesmo, que
é consciente de seus procedimentos e de suas limitações.
32 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS | O que é teologia?

Por isso, volta-se para si mesma com olhar atento a fim de ve­
rificar possíveis lapsos e refazê-los na expectativa do aceito.
A criticidade é, portanto, movimento que se dá de den­
tro para fora. No caso do (a) teólogo (a) cristão (ã), busca-
se compreender determinadas doutrinas à luz do exame
de toda a Escritura e, se possível, com olhar neutro, a fim
de que sejam detetados lapsos, acréscimos 011 deturpações
do sentido original do texto bíblico.
Sistematicidade. A teologia, como outras ciências, tem
determinado conjunto de saberes estruturados para dar
forma a certa arquitetura teórica coerente. Além disso, ela
lida com a fé, elemento da subjetividade humana. Portan­
to, em resumo, deve ser colocada em termos coerentes,
considerando conjuntamente os saberes e a fé. A função
principal do método teológico cristão é arrumar os dados
em sistemas que dêem conta, tanto quanto possível, dos
conhecimentos sobre o Sagrado e a fé.
A sistematicidade é a qualidade que paradoxalmente
menos convém à teologia, porque por mais amplas e orgâ­
nicas que sejam as sínteses teológicas, nunca se consegue
encerrar a revelação. Ela escapa por todas as direções. Por
isso, as sínteses teológicas, mesmo as mais prestigiadas,
acabam sempre “morrendo na praia”.
Dinamicidade. Todas as ciências possuem, como tra­
ço fundante, a dinamicidade, de onde provém a idéia de
progresso. Mas é importante notar que a dinâmica que
está por trás da teologia não despreza conhecimentos
anteriores, antes sempre os coloca em debate para que
sejam reformulados. Esse desenvolvimento pode se dar
em dois níveis: em extensão, quando consegue explicar
mais uma parte ou fragmento de seu objeto teórico; e em
compreensão, quando aprofunda um conhecimento ou
compreende mais um segmento do mesmo objeto.
A trajetória da teologia cristã 33

Na teologia, essencialmente hermenêutica, a dinami-


<idade é bem acentuada, pois as categorias e definições
usadas para “saturar” os sentidos se revelam sempre cúr­
ias. Por isso, é sempre necessário que as explicações sejam
retomadas no curso da história.
Esses traços permitem que a teologia faça e refaça con-
i inuamente seu discurso, sempre em busca de abstrair um
pouco mais a respeito da divindade e avançar um pou­
co mais no seu conhecimento. Tais traços da teologia, ao
mesmo tempo em que procuram delimitar o universo de
(ompreensões do Sagrado, acabam por ampliar idéias a
respeito dele.
DIVISÕES NA TEOLOGIA
Basicamente, os estudos teológicos se dividem em al­
guns temas:
- Soteriologia - estudo sobre a salvação;
- Cristologia - estudo sobre Jesus Cristo;
- Pneuinalologia - estudo sobre o Espírito Santo e
seus dons;
- Eclesiologia - estudo sobre a Igreja;
- Escatologia - estudo sobre as últimas coisas;
- Antropologia teológica - estudo sobre a natureza
humana;
- Angelologia - estudo sobre os anjos;
- Mariologia - estudo sobre Maria (no meio católico).
Além dessas áreas de pesquisa, há ainda as divisões da­
das em função do instrumental de análise. São elas: Teo­
logia Bíblica, Teologia Prática e Teologia Histórico-Siste-
mática.
34 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I O que é teologia?

Teologia Bíblica. O enfoque da teologia bíblica é estu­


dar a literatura e a religião do mundo bíblico a partir da
investigação das culturas do mundo Mediterrâneo Anti­
go, bem como de suas línguas e suas histórias. Essa teolo­
gia usa como recursos para a pesquisa que desenvolve ins­
trumentos da historiografia, das ciências sociais, métodos
filológicos e processos exegéticos.
Teologia Prática. O enfoque dessa teologia, como indi­
ca o nome, é o prático. Os métodos que possam ser apli­
cados às necessidades pastorais das igrejas e que façam
“ponte” entre os ensinos bíblicos e o quotidiano dos fiéis
são os mais indicados. Essa teologia objetiva concretizar,
na vida dos fiéis, as bem-aventuranças bíblicas. Em geral,
os instrumentais mais utilizados para esse fim são as ciên­
cias pedagógicas e psicológicas.
Teologia Histórico-Sistemática. Essa teologia preocu-
pa-se com a atualização hermenêutica da revelação e se
aplica à pregação, importante atividade que deriva da te­
ologia. Ao estudo sistemático compete a organização do
corpo de doutrinas a ser transmitido aos catecúmenos e
aos convertidos à fé cristã. O principal instrumento teóri­
co da sistemática é a filosofia e a história.
Essas áreas da teologia ainda são condicionadas por ou­
tra classificação: a confessionalidade. As confissões cristãs
divergem em alguns pontos da teologia e concordam em
outros. Em geral, os conteúdos do Antigo Testamento e do
Novo Testamento são os mesmos, com diferenças entre as
Bíblias católica e protestante, por conterem listas de livros
bíblicos diferentes. Assim, o olhar de cada grupo sobre o
texto bíblico é feito de acordo com seu ponto de vista.
Se olharmos mais atentamente para a história da teo­
logia, perceberemos que esse saber nunca foi unívoco e
A trajetória da teologia cristã /á * 35

uniforme. Ao contrário, a teologia é sempre proclamada


por várias e diferentes vozes. Cada uma de acordo com seu
timbre e sua extensão. Algumas soam mais retumbantes,
enquanto outras são mais melodiosas e até se desvanecem
na imensidão do tempo. De alguma forma, entretanto, os
sons não são completamente esquecidos, permanece uma
idéia, um fôlego, uma dúvida.
O capítulo a seguir esboça cenas da história fundante
para a teologia e para os seus amantes teólogos, artistas,
poetas e tantos outros. Trata-se de um breve panorama
sobre as discussões e debates históricos que contribuíram
para que a teologia sobrevivesse ao longo do tempo, em
diferentes lugares e culturas.
Pa n o r a m a
HISTÓRICO DA
T e o l o g ia
A teologia dos Pais Apostólicos

Cristianismo judaico e gnosticismo

Os Pais Antignósticos

A Teologia de Alexandria

0 concílio de Nicéia

Atanásio e a formação da Doutrina Trinitária

0 problema cristológico

Santo Agostinho(354-430)

0 período medieval
Panorama histórico da teologia >âi 39

“Os acontecimentos temporais são mais para


serem cridos do que entendidos. "
Santo Agostinho
A TEOLOGIA DOS PAIS APOSTÓLICOS
Os chamados Pais Apostólicos formam um conjunto de
escritos do final do primeiro século e início do segundo,
que nos dá idéia de como era a prática cristã inicialmente.
Tais tratados eram dirigidos aos neófitos, iniciantes na fé
cristã, e nem sempre mostram a totalidade da reflexão
teológica da época. Mas, em geral, denunciam preocu­
pações com os costumes, as orientações, as dúvidas e os
problemas mais freqüentes. Nesses escritos, diferentes da
literatura do Novo Testamento, podemos encontrar como
temas importantes:
- Moralismo. Em geral, os escritos eram dirigidos a no­
vas congregações e pessoas que há pouco tempo tinham
deixado as religiões pagãs. Eles apresentavam Cristo como
legislador e modelo para a salvação;
- Justiça. Tema que apresentava Deus como único ca­
paz de realizá-la;
- Salvação. É apresentada como a imortalidade, a indes-
trutibilidade mediada por Cristo, único capaz de mostrar
o conhecimento da verdade;
- Pecado. E destacado como corrupção, maus desejos c
cativeiro sobre o poder da morte. Não se acentua muito a
questão da culpa;
- Graça. E vista como dom que Deus concede aos seres
humanos em Cristo.
40 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS | O que è teologia?

Os Pais salientavam a crença em um único Deus, e


embora o dogma da trindade ainda não estivesse bem
desenvolvido, já aparecia em algumas liturgias. Eles en­
fatizavam a divindade de Cristo e combatiam os outros
grupos religiosos que negavam o valor salvífico da morte
e ressurreição de Cristo.
No segundo século, aqueles que se ocupavam em de­
fender o cristianismo das acusações de sua época eram
chamados de apologistas. Eles dedicavam-se a desenvol­
ver conceitos e respostas cristãs, utilizando termos filosó­
ficos. Também procuravam defender cristãos de acusa­
ções como impiedade, hábitos anormais e inimizade ao
Estado. Tinham a filosofia em alta estima. Justino, um dos
principais, via a filosofia como forma de proporcionar o
verdadeiro conhecimento de Deus.
O cristianismo era visto como filosofia por excelên­
cia, capaz de proporcionar verdadeiro conhecimento de
Deus. Os apologistas argumentavam essa relação, pois a
teologia se fundamentava na revelação divina e não em
especulações racionais.
Desde o princípio se revelava certa tendência de in­
telectualizar a fé. Por isso, algumas pessoas consideram
que a principal contribuição dos Pais foi tentar realizar a
aproximação entre fé cristã e intelectualidade grega.
CRISTIANISMO JUDAICO E GNOSTICISMO
Cristianismo judaico era a expressão usada para iden­
tificar grupos sectários que derivavam da congregação de
Jerusalém depois de sua transferência para a região Leste
do Jordão. Uma das características deste cristianismo (cha­
mado ebionita) era a “mistura” de elementos judaicos e
cristãos. Eles defendiam a validade da Lei mosaica e o esta­
belecimento do reino messiânico em Jerusalém. Também
Panorama histórico da teologia *â* 41

negavam a interpretação do apóstolo Paulo da Lei de Moi­


sés e não reconheciam a autoridade das epístolas escritas
por esse apóstolo. Para eles, Jesus Cristo tinha a mesma im­
portância que os profetas. Eles negavam a pré-existência
de Jesus Cristo e seu nascimento virginal, e não aceitavam
a salvação por meio da cruz. Acreditavam que a salvação
fosse possível apenas com a segunda vinda de Cristo, oca­
sião que se estabeleceria o seu reino em Jerusalém. Estas
idéias não exerceram grande influência no cristianismo,
mas tiveram importante influência no islamismo.
Hoje em dia, a expressão cristianismo judaico é utili­
zada também em outro sentido, pois se reconhece que os
primeiros cristãos foram grandemente influenciados pe-
losjudeus. Essa influência constitui a base do cristianismo,
de onde muitas práticas religiosas e conceitos advêm. A se­
paração entre judaísmo e cristianismo, principalmente no
primeiro século, praticamente não existiujã que os judeus
que se “converteram” aos ensinamentos do homem de Na­
zaré continuaram vivendo de acordo com sua cultura.
Já o gnosticismo era um movimento formado por ju ­
deus convertidos ao cristianismo e espalhados pelo impé­
rio até o Xorte da África. Ele mesclava as culturas judai­
ca, grega e copta (região da África). O que se sabe dos
gnósticos ainda é pouco. O conhecimento que se tem atu­
almente veio por meio da pesquisa em textos gnósticos
datados aproximadamente entre o primeiro e o quarto
séculos, descobertos na região de Nag-Hammadi (Egito)
em 1945. Entre os textos gnósticos mais conhecidos está o
Evangelho de Tomé (EvT), escrito em língua copta.
A interpretação gnóstica acerca dos ensinos de Jesus
e de Paulo não foi completamente aceita pela igreja cris­
tã dos inícios. Por causa dessas diferenças, os gnósticos
foram considerados hereges. A acusação afirmava que o
42 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I O que é teologia?

gnosücismo era a tentativa de enquadrar o cristianismo


dentro da filosofia da época e que era caracterizado por
especulações místicas e cosmológicas, além do dualismo
entre matéria e espírito.
E provável que o gnosticismo já existisse antes do cris­
tianismo, de origem mesmo oriental, e em Samaria tivesse
assumido características judaicas. Com Simão, o mágico
(Atos 8.9), teve maior visibilidade, mas apresentava-se de
várias formas. Era constituído por inúmeras tendências.
Dentre seus ensinos principais, podemos destacar:
Dualismo. De concepção dualista, os gnósticos acredi­
tavam que havia matéria e espírito, que o mundo se divi­
dia em bem e mal. O deus supremo (longe do mundo)
se contrapunha a um deus inferior (criador deste mundo
material).
Nesta concepção, Jesus Cristo foi responsável pela li­
bertação desse mundo mal. Ele teve a função de restaurar
a condição do mundo material. Essa salvação dependia
do conhecimento superior reservado apenas aos espiri­
tuais (pneumáticos), os gnósticos. Cristo era considerado
o salvador por ter trazido o verdadeiro conhecimento ao
mundo. Entretanto, esse não era o mesmo Cristo da Bí­
blia, afinal ele não poderia ter assumido forma material e
ser espiritual.
Segundo os gnósticos, já que a matéria é má, o filho de
Deus não poderia assumir forma humana, porque essen­
cialmente a carne é má (docetismo). Assim, defendiam
que a salvação poderia ser obtida pela participação nos
mistérios (ceia e batismo) que possibilitavam o verdadei­
ro conhecimento. Em função desse dualismo, a ética dos
gnósticos era ascética, isto é, zelavam pela purificação es­
piritual e de seus corpos. Por isso, eles praticavam a conti­
nência sexual, a vida solitária e celibatária.
Panorama histórico da teologia ák, 43
Negação do Credo. Os gnósticos negavam os três arti­
gos do Credo Apostólico: a criação, a redenção pela mor­
te e ressurreição, e o Espírito Santo.
OS PAIS ANTIGNÓSTICOS
O conflito com os gnósticos deixou marcas na trajetó­
ria da igreja cristã que ainda podem ser identificadas nas
pregações e nos comportamentos de muitos cristãos. Por
mais que a pesquisa teológica e a história mostrem que o
primeiro século não foi berço apenas de um cristianismo,
mas de vários, as igrejas cristãs ainda exaltam o cristianis­
mo primitivo como o ideal e estigmatizam os grupos de
cristãos que não se adequavam à teologia oficial da igreja.
De acordo com essa perspectiva, observamos na igre­
ja considerada ortodoxa (a verdadeira, em oposição aos
hereges) maior desenvolvimento da doutrina da criação,
da encarnação, da morte e da ressurreição de Jesus Cris­
to. Outra característica dessa igreja e de sua teologia é o
moralismo acentuado que objetivava fazer frente ao anti-
nomismo gnóstico.
Irineu. Irineu é considerado o primeiro dogmático da
Igreja. Rejeitou a filosofia (ao contrário dos apologistas)
e se baseava apenas na Bíblia como norma de fé e de rida.
Ele não fazia distinção entre a tradição e a Escritura, mas
foi o primeiro a defender a sucessão apostólica do papa
com o fim de identificar quem participava da verdadeira
Igreja. Ele se opôs doutrinariam ente aos gnósticos e enfa­
tizava que o processo de salvação ocorria dentro da histó-
ria e não fora dela, como queriam os gnósticos.
Na sua reflexão teológica, Irineu procurou demonstrar
que o mesmo Deus que criou o mundo também o salvou,
em oposição à doutrina gnóstica dos dois deuses. Pai a ele
a salvação seria a restauração da criação de acordo com
44 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I 0 que é teologia?

a vontade divina que estava reservada. Assim, quando o


homem fora criado, Deus não o fizera à sua semelhança,
mas por meio do processo de salvação esse humano pode­
ria atingir a semelhança de Cristo.
Quanto ã redenção, Cristo restaurou a lei original. Para
Irineu, vida e morte estavam relacionadas na redenção.
Quando o homem obedece aos mandamentos recebe a
vida de Deus; se desobedece, recebe a morte. A salvação
concederia a imortalidade. Jesus Cristo representava o se­
gundo Adão; no entanto, era o avesso de Adão porque era
perfeito e submisso à vontade de Deus-Pai. Irineu falava
da salvação por meio do termo recapüulatio, pois se trata
da repetição do ato criador cle Deus.
Tertuliano. Em geral, Tertuliano é considerado o fun­
dador da teologia ocidental, por causa cle seu interesse
pelas questões práticas, e por relacioná-las à realidade.
Defendeu o cristianismo do gnosticismo e de outros mo­
vimentos considerados pagãos. Atacou com veemência a
filosofia, por considerar distintas a fé e a razão.
Entretanto, é possível identificar em outras partes de
sua reflexão teológica certa visão mais positiva a respeito
da razão humana. Defendeu o conhecimento natural de
Deus e acreditava no traducionismo (doutrina que afir­
mava que a alma era transmitida de pai para filho), con­
vicção teológica que se opunha ao criacionismo (doutri­
na que afirmava que a alma era criada diretamente por
Deus).
Tertuliano foi responsável em parte pelo desenvol­
vimento da doutrina da Trindade e da Cristologia. De
acordo com seu pensamento, Cristo é um com Deus, mas
distinto e subordinado ao Pai. Para a defesa dessa Lese,
Tertuliano usava termos como “substância” e “Persona”.
Panorama histórico da teologia 45

Essa era a Doutrina Econômica da Trindade. Assim, Jesus


Cristo teria sido formado por duas substâncias diferen­
tes (espiritual e material), reunidas na mesma pessoa. Ele
era o novo legislador, que ensinava como andar nos cami­
nhos de Deus. Deste modo, a relação entre o ser humano
e Deus era compreendida em termos judiciais.
Para Tertuliano, a corrupção era própria da natureza
humana, sendo transmitida desde o nascimento; portan­
to, a graça era dom de Deus e única capaz de auxiliar o
ser humano a viver.
Hipólito. Este bispo de Roma desenvolveu uma cole­
ção enciclopédica de heresias, e procurou combatê-las
por meio do que considerava ser a doutrina verdadeira
para a Igreja Cristã.
A TEOLOGIA DE ALEXANDRIA
No Mundo Antigo, Alexandria ocupava lugar de des­
taque. Era uma espécie de centro urbano no Norte do
Egito e, por isso, era o local onde importantes transações
comerciais aconteciam. Ali se encontrava grande diversi­
dade e riquezas culturais.
A teologia que se produziu em Alexandria foi a pri­
meira tentativa sistemática da junção entre cristianismo e
filosofia grega. Os teólogos de Alexandria procuravam se
manter fiéis à tradição da igreja e baseavam-se na literatu­
ra bíblica, porém inseriam a revelação nos contextos que
consideravam apropriados.
Nessa ocasião, surge o método alegórico de interpreta­
ção. Um dos protagonistas desse modelo é Origines (184-
254), contemporâneo de Plotino. Ambos foram alunos
do professor Amónio Sacas e, por isso, obtiveram grande
influência platônica. Foi com os teólogos de Alexandria
46 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I O que é teologia?

que Deus passou a ser visto como completamente trans­


cendente, acima de tudo e de todos.
Clemente (150-215). Defendia a pedagogia de Deus.
Segundo ele, a alma caída necessitava de educação para
ascender ao divino. Isso deveria acontecer por meio da
disciplina e do castigo, admoestações e instruções. Essa
era a causa de o mundo material existir. Esta educação
teve seu ponto mais importam e no exemplo dado por
Cristo. Mas para Clemente, a pedagogia do homem teve
outras fases. A Lei judaica e a filosofia grega seriam fases
preparatórias para a vinda de Jesus Cristo e, com Ele, te­
riam sido ultrapassadas. Para Clemente, o conhecimento
ficava acima da fé.
Origines (184-254). Apesar de ser considerado por al­
guns como herege, sua teologia teve grande influência,
principalmente na reflexão teológica da região oriental.
Ele acreditava existir um sentido espiritual específico em
cada texto da Escritura. Para Origines, assim como o ser
humano era composto de corpo, de alma e de espírito, a
Escritura Sagrada era literal, moralista e espiritual. Além
disto, achava que pequenos detalhes citados na Escritura
revelavam grandes verdades universais.
Origines enfatizou a educação como meio divino de
restaurar e providenciar a divindade às criaturas racionais
aprisionadas em seus corpos. Defendia o livre-arbítrio e
concebia Deus como ser elevado e distante do material. A
doutrina do subordinacionismo aparece em sua teologia,
segundo a qual o homem havia caído do mundo inteligí­
vel (mundo espiritual), e para se reencontrar com Deus
era necessário voltar para esse mundo. Cristo era funda­
mental nesse processo. Por meio de Jesus Cristo é que
se revelava o mistério da fé. Contudo, Orígenes negava a
ressurreição do corpo.
Panorama histórico da teologia ^ 47

Em função de tantas discussões e escolas de teologia


que se formavam, no início do terceiro século foi neces­
sária a convocação cle um concílio que reuniu os clérigos
e teólogos de expressão da época. A essa altura, existiam
várias questões pendentes. A igreja cristã crescia e era pre­
ciso estabelecer os cânones da igreja em prol de sua uni­
dade. Mas será que isso seria possível?
0 CONCÍLIO DE NICÉIA
Em 310, Ário foi eleito bispo de Alexandria. O mestre
de Ário foi seguidor de Paulo de Samósata. Essa influên­
cia ocasionou a compreensão de que Jesus não poderia
ser Deus na acepção completa do termo, pois era criação
de Deus. Assim, segundo o arianismo, Jesus era alguém
que estava entre Deus e os seres humanos. Ele foi criado
primeiro, e por meio dele Deus criou o mundo. Tais afir­
mações desestabilizaram a igreja, e diante da ameaça à
unidade, Ário foi excomungado em 320.
Em 325, Constantino convocou um concílio em Nicéia.
Lá havia três grupos diferentes: Arianos puros, Arianos
moderados e antiarianos. Basicamente, foram feitas duas
crídcas a Ário: a introdução de idéias politeístas e ado­
ração da criatura ao invés da adoração ao criador; a des­
truição da base da fé cristã com a negação da divindade
de Cristo. No fim do concílio foi adotada uma posição in­
termediária, segundo a qual Jesus era reconhecido como
lilho de Deus, mediador da salvação e digno de adoração.
Com isso, o credo foi reformulado no (inal do século IV.
ATANÁSIO E A FORMAÇÃO DA DOUTRINA TRINITÁRIA
Atanásio é conhecido por ter sido um dos maiores opo­
sitores ao arianismo. Ele procurou formular a doutrina
irinitária a partir da Bíblia e negou o uso de sistemas filo­
sóficos fechados para entender e explicar a fé cristã.
48 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I O que é teologia?

Atanásio negava a interpretação legalista da literatura


bíblica e afirmava cjue sua compreensão deveria ser bus­
cada a partir do seu centro, Cristo. O seu entendimento
da trindade tinha como centro a salvação operada por
Cristo. Assim como Irineu, ele entendia a doutrina da
salvação em íntima conexão com a criação. Para ele, o
principal sentido cla salvação era que o pecado e a morte
foram retirados do ser humano graças à morte e ressur­
reição de Cristo. A manifestação de Jesus possuía duas
funções: o perdão de pecados e a afirmação de que o
governo cio mundo era exercido pelo logos (a palavra, o
conhecimento).
Essencialmente, foram três os que seguiram a linha
de pensamento de Atanásio: Basílio, o Grande, que foi
o principal artífice na teologia protonicena; Gregório
de Nissa, que desenvolveu a doutrina ortodoxa de modo
mais especulativo; e Gregório Nazianzo, que desenvolveu
o aspecto mais retórico da teologia de Atanásio. Foram
eles que sistematizaram a idéia que três pessoas distintas
(Pai, Filho e Espírito) formavam uma unidade.
Esses teólogos também foram responsáveis pela distin­
ção entre o termo ousia (essência, o que todos os seres
humanos têm em comum) e hipóstasis (o que cada ser hu­
mano tem de particular). Esta distinção desenvolvida no
Oriente influenciou Agostinho para o desenvolvimento
da doutrina trinitária 110 Ocidente.
Posteriormente, o credo Atanasiano foi elaborado por
algum seguidor de Agostinho, já nos séculos IV ou V. Na
forma de seu credo é possível se identificar certa unida­
de enquanto os outros credos aparecem divididos em três
partes correspondentes às três pessoas.
Panorama histórico da teologia *âs 49

0 PROBLEMA CRISTOLÓGICO
Fundamentalmente poderíamos dizer que cristologia
é a doutrina cla pessoa e da obra de Cristo. Mas antes de
se formular tal definição, houve uma pergunta que foi
fundamental para o surgimento da cristologia. Como o
logos de Deus, Cristo, que é uma só substância com o Pai,
pôde aparecer em forma humana? Para resolver esse pro­
blema, muitos teólogos se debruçaram sobre as Escrituras
a fim de encontrar uma resposta satisfatória.
O teólogo Apolinário acreditava que o corpo de Cristo
não foi formado por Maria. Cristo teria trazido um corpo
celestial até o ventre de Maria que, assim, serviu apenas
como local de passagem. Desse modo, Jesus Cristo possuía
apenas a natureza divina. Em contrapartida, seus oposito­
res afirmavam que Cristo não somente tinha corpo hu­
mano como também alma. Afinal corpo e alma formam a
essência humana.
Foi a escola de Antioquia que combateu Apolinário
e, para isso, enfatizou que a natureza humana de Cristo,
durante seu ministério e obra, passou por certo processo
que o uniu cada vez mais à divindade. Esse processo foi
concluído por ocasião da ressurreição.
A teologia desse período foi marcada por grandes dis­
cussões entre grupos que formavam as escolas de pensa­
mento teológico. Ha\ia duas grandes escolas nesse tem­
po: a de Antioquia (que enfatizava o aspecto histórico do
Cristo humano) e a de Alexandria (que enfatizava a com­
preensão metafísica enraizada na filosofia grega).
Como representante da escola de Antioquia, apresenta­
mos Nestório. E comum ele ser acusado de ter ensinado a
doutrina segundo a qual haveria dois Cristos: um divino e
um humano. Contudo, é provável que seu opositor, Cirilo,
50 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS | O que è teologia?

o tenha interpretado de modo errôneo, e a partir disso se


deu o conflito entre ambos.
Nestório se opôs ã teologia alexandrina, que denomi­
nava Maria, a mãe de Deus sem pecado, e, assim, coope­
rava para o culto à virgem Maria. Para Nestório, a divinda­
de de Cristo não tinha ligação com Maria e, por isso, foi
acusado de negar a divindade de Cristo. Basicamente, o
problema é que suas afirmações dão a entender que não
havia união simultânea entre a natureza divina e a nature­
za humana de Jesus Cristo.
Cirilo era o bispo de Alexandria e objetivava primazia
teológica no Oriente. Foi ele quem venceu Nestório, por
ocasião do Concílio de Efeso, quando Maria foi reconhe­
cida como mãe (origem) de Deus. Cirilo defendia que
havia duas naturezas em Cristo e cada uma delas possuía
suas próprias qualidades.
Já em 451, Leão I convocou um concílio, que foi re­
alizado em Calcedônia, com o fim de decidir a questão
cristológica. Finalmente, as doutrinas que consideravam
haver “dois filhos” foram excluídas, assim como as que
afirmavam haver duas naturezas. Este concílio teve bas­
tante importância por ter sido responsável pela unifica­
ção entre as diferentes cristologias. Entretanto, ele não
foi suficiente para sanar as controvérsias que circulavam
sobre a vontade de Cristo, se seria divina ou humana, se
seria uma ou duas. Para alguns, a vontade de Cristo era a
divina; mas, para outros, havia duas vontades, apesar de
ser a vontade divina que controlava a vontade humana.
Com João de Damasco VIII o ciclo de controvérsias
cristológicas foi fechado, ainda que não-satisfatoriamente.
Para isto, utilizou a filosofia aristotélica e a neoplatônica
e afirmou a unidade do corpo de Cristo. Ele salientava as
Panorama histórico da teologia ák 51

diferenças entre as duas naturezas e afirmava que, em fun­


ção da unidade que havia entre o divino e o humano em
Cristo, ocorria também certa penetração mútua. Assim, a
divindade assumia a natureza humana e lhe comunicava
seus atributos, mas ela não foi tocada pelo sofrimento.
Os inícios da teologia cristã são caracterizados, portan­
to, por várias discussões. Os primeiros teólogos defendiam
pontos de vista que variavam principalmente de acordo
com suas origens, em geral, ocidentais ou orientais. Mas,
dentre “as teologias” surgidas nesse momento, destaca­
mos a reflexão de Santo Agostinho.
SANTO AGOSTINHO (354-430)
Agostinho foi batizado em Milão, na Páscoa de 387.
Por sua decisão, retirou-se para a vida monástica na Áfri­
ca. Entretanto, por ocasião de uma viagem de outono no
mesmo ano, em Ostia, recebeu a notícia do falecimento
de sua mãe. Com isso, resolveu permanecer em Roma, em
sua cidade natal, Tagaste. Conseguiu realizar seu objetivo
de vida recolhida e de estudo por apenas dois anos. Logo
foi chamado de presbítero na cidade de Hipona quando
esteve lá fazendo uma visita.
Agostinho foi responsável por sintetizar a cultura da
Antigüidade e a herança das idéias sobre o cristianismo
originário. Ele conheceu profundamente o cristianismo
por meio de Ambrósio, possuidor de grande influência
<la filosofia oriental, e que tinha em alta estima ajustifica­
ção pela fé em Cristo. Após sua conversão ao cristianismo,
ainda é possível identificar traços neoplatônicos em sua
vida e obra. Para ele, por meio dessas concepções platô­
nicas era possível enxergar o cristianismo. Contudo, para
compreender, antes era necessário crer.
52 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS | 0 que é teologia?

Agostinho acreditava que o cristianismo proporciona­


va a resposta ao que a filosofia perguntava. Para ilustrar
isso, o teólogo dizia que o neoplatonismo afirmava que
todo esforço humano tinha como alvo a felicidade. Ora,
para Agostinho, isso apenas refletia o que o ser humano
sempre desejou: algo transcendente, permanente e imu­
tável. O teólogo não pregou o desprezo ao mundo, mas
afirmava que o mundo não deveria ocupar primeiro lugar
na lista de preocupações de cada ser humano.
Quanto ã criação, fez a distinção entre usar e fruir (110
sentido de deleitar) o mundo. Para ele, a criação de Deus
deveria ser usada e com deleite, isto é, como objeto de
amor capaz de conduzir ao objetivo final, o bem supre­
mo. Esta distinção foi a base para o amplo sistema que
formalizou, sobre qual deveria ser a conduta humana em
relação a Deus e ao mundo.
O ser humano, criação divina, deveria procurar a feli­
cidade fora dele. Já que sua natureza é corrupta, tende a
buscar a felicidade nas coisas mundanas. Entretanto, so­
mente após a conversão é possível se encontrar a verdade.
O ser humano por si só é incapaz de obter felicidade e
realização. De modo que precisa de uma força exterior, o
Espírito Santo. Jesus Cristo realiza a graça de Deus quan­
do se torna humano. E Ele quem faz a mediação entre a
divindade e a humanidade.
Doutrina da Igreja em Agostinho. Agostinho defendia
que a validade do sacramento não dependia de quem ofi­
ciasse a celebração. Ele fez distinção enti'e o sacramento
em si e a eficácia do sacramento. Com isso, resolveu o
problema do batismo realizado entre hereges e na igre­
ja ortodoxa. Segundo o teólogo, os sacramentos eram si­
nais externos de uma realidade espiritual (influência do
neoplatonismo). Nesse sentido, para Agostinho, a Igreja
Panorama histórico da teologia y£t» 53

estava presente em todo lugar onde a Palavra e os sacra­


mentos fossem administrados de modo correto.
De acordo com a obra agostiniana Cidade de Deus e
Cidade dos Homens, existem duas sociedades em confli­
to, desde a fundação do mundo. A Cidade de Deus repre­
senta a comunhão dos santos, a igreja interna e não a hie­
rarquia. A Cidade dos Homens é composta por homens
ímpios, não necessariamente os governantes. Essa idéia
de Agostinho cooperou para que oficialmente o Estado
se subordinasse ao poder exercido pela Igreja, autoridade
instituída por Deus na terra.
Doutrina do Pecado e da Graça. Pelágio foi o grande
defensor do livre-arbítrio. Ele afirmava que, por meio do
livre-arbítrio, todo ser humano teria condições para esco­
lher entre o bem e o mal. Desse modo, o pecado consis­
tia em atos isolados da vontade. Portanto, não seriam de­
feitos da natureza, mas da vontade humana. As crianças,
nesse caso, estariam livres do pecado. Para ele a graça de
Deus auxiliava o ser humano na escolha mais rápida entre
bem e mal.
Quanto ao livre-arbítrio, Agostinho definiu em quatro
estágios esse processo humano: antes da queda, depois
da queda, depois da conversão e na perfeição. Para ele,
os pecados não são apenas atos isolados, antes se üata da
total corrupção (depravação) da natureza humana, que
resultou em vontades deturpadas herdadas desde Adão.
Por isso, as crianças não-batizadas estavam sujeitas à con­
denação. No processo de salvação o ser humano não ti­
nha nenhum tipo de participação. Essa obra só poderia
se realizar por intermédio da graça de Deus revelada em
Cristo. Ele seria o único capaz de conceder perdão para
os pecados e regenerar o humano para a obediência aos
mandamentos divinos.
54 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I O que é teologia?

Segundo Agostinho, a salvação é resultado do perdão


de pecados, mediante a fé, independentemente do mé­
rito humano. Afinal, não há nada que o homem possa
fazer por si mesmo para a obtenção da salvação. Ao lado
da graça, Agostinho também reconheceu a importância
do amor que Deus derramou no coração das pessoas e
que merece destaque por ser a causa da transformação de
cada indivíduo.
Aqui se reconhece, de forma embrionária, a doutri­
na da predestinação, que mais tarde será defendida pelo
protestante João Calvino. Segundo essa dout rina, a graça
é a vontade e decreto de Deus em favor da humanidade.
Desse modo, todas as pessoas predestinadas à salv ação ja ­
mais se perderão. Assim, se alguém não for salvo, essa é a
vontade e o decreto de Deus.
Depois desse período de intensos debates teológicos,
seguiram-se outros, caracterizados já como parte da Idade
Média. Nesta outra ocasião, a Igreja, a teologia, os clé­
rigos e os teólogos se envolveram profundamente com
questões políticas. A Igreja e seus ensinos promovidos
pelo pensamento teológico da época adquiriram grande
poder e muitas das decisões e direcionamentos tomados
nessa altura da história mancharam a trajetória da igreja
e da teologia cristã.
Muitos historiadores denominaram esse período como
Idade das Trevas. Entretanto, essa denominação não in­
dica consenso entre os pesquisadores da área. Trata-se de
uma designação depreciativa que nega a grande contri­
buição desse período para a teologia e para muitas ouiras
áreas humanas.
Panorama histórico da teologia & 55

0 PERÍODO MEDIEVAL
Neste período, os germanos ascenderam ao domínio
político e os líderes da Igreja davam cada vez menos aten­
ção às questões teológicas. A seguir, alguns acontecimen­
tos que merecem destaque:
- Boécio traduziu algumas obras de Aristóteles que fo­
ram utilizadas na Idade Média;
- Dionísio, o Areopagita, expôs a cosmovisão e a reli­
gião neoplatônicas;
- Cassiodoro apresenta-se como colecionador e enci­
clopedista;
- Isidoro de Sevilha reuniu o conhecimento científico
e teológico daquela época, o que tornou acessível o saber
teológico às gerações seguintes.
Em Roma, o ex-prefeito Gregório assumiu o papado
e passou a ser considerado divisor de águas entre Anti­
güidade e Idade Média. Ele aceitava a doutrina da graça
de Agostinho, entretanto, acrescentou que a finalidade
da graça era produzir boas obras que pudessem ser re­
compensadas. Essa idéia permeou toda a Idade Média.
Segundo essa teologia, Cristo era o exemplo de entrega,
abnegação e sacrifício necessários a todo ser humano e a
ceia simbolizava o novo sacrifício.
Entre escritos desse teólogo destaca-se o comentário
ao livro de Jó. Nesta obra, lançou idéias norteadoras para
a ética medieval, especialmente, sobre o asceticismo.
Além disso, concedeu destaque aos milagres realizados
por santos homens e que influenciaram toda a Idade Mé­
dia. Ele foi capaz de combinar tradição teológica e pie­
dade popular.
56 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS | 0 que é teologia?

Como um dos rituais mais importantes da igreja e ele­


mento que trazia populares até a igreja, a ceia obteve lu­
gar de destaque nas reflexões cla época. A questão princi­
pal se relacionava ao seu sentido, se a presença de Cristo
nesse ato deveria ser interpretada de modo real ou simbo­
licamente. Enquanto por um lado se acreditava que após
a consagração os elementos (pão e vinho) se transforma­
vam efetivamente em corpo e sangue de Jesus, por outro
lado, outros, de acorclo com Agostinho, interpretavam a
ceia apenas simbolicamente, isto é, como memorial que
tinha por intenção rememorar o sacrifício de Jesus.
Ainda na primeira parte da Idade Média, a Igreja dis­
cutia a penitência. Inicialmente, a penitência significava
a readmissão dos que haviam caído em pecado após o ba­
tismo público e realizável uma só vez. Entretanto, gradu­
almente (em 800, esse significado já havia desaparecido)
esse sentido se perdeu e passou a ser um ato privado de
confissão ao sacerdote, de satisfação e de readmissão. Esse
modelo cle penitência se desenvolveu em terias Celtas, e
tornou-se popular rapidamente.
Basicamente, a penitência dividia-se em contrição,
confissão (feita ao sacerdote), absolvição e satisfação. Al­
gumas vezes a absolvição vinha antes da satisfação e, com
isso, o confessionário tornou-se o meio mais importante
para disciplinar o povo, o vínculo mais forte entre o sacer­
dote e o povo.
Contudo, é certo que entre o clero e os populares na
Idade Média havia certa relação de opressão. A Igreja, aos
poucos, foi se tornando o poder central e, com isso, se
distanciou dos populares. Para sustentar sua autoridade,
dizia-se instituída por Deus, e por meio cla teologia procu­
rava explicitar a vontade divina a todas as pessoas.
Panorama histórico da teologia Æ 57

Talvez a grande contradição deste período seja seu ensi­


no, que pregava o sofrimento, a humildade e a resignação
aos desígnios de Deus. Enquanto afirmava que a pobreza
seria recompensada, o clero enriquecia à base das taxas e
dos dízimos que imputava às massas populares.
Entre a Igreja e o fiel crescia uma grande distância que
se expressava nas diferenças entre a religiosidade oficial
(da Igreja) e a religiosidade popular. Havia muitos reli­
giosos que estudavam e isso era privilégio restrito a pou­
cos, Em contrapartida, a esmagadora maioria das massas
de populares era constituída por analfabetos que nem se­
quer tinham visto um livro na vida.
Nos monastérios, reclusos, os padres e os seminaristas
discutiam questões teológicas e filosóficas que havia mui­
to tempo não faziam diferença para as pessoas em seu
quotidiano. A base da reflexão teológica desse período
encontra-se na liturgia. A rica liturgia da Igreja medieval
forneceu os principais temas que ocuparam os teólogos:
penitência, eucaristia etc.
A fase que privilegiou o conhecimento e os estudos te­
ológicos é conhecida como Escolástica. Esse movimento e
sua teologia surgiram por volta do século XI, juntam ente
com as universidades ocidentais. A característica principal
dos escolásticos era o emprego da filosofia. Eles usavam
o método dialético que conduzia à divisão infinita dos
problemas teológicos. A discussão das questões teológicas
nunca cessava.
É im portante notar que embora a Escolástica tenha
sido um só movimento, ela não representou uma única
escola. Havia várias tendências motivadas pela renova­
ção da Igreja e pela utilização da filosofia na educação
da época.
58 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I 0 que é teologia?

Vários nomes podem ser destacados desse produtivo


período teológico: Anselmo, Pedro Abelardo, Hugo de
S. Vitor, Pedro Lombardo. Vale dizer, entretanto, que a
Escolástica teve dois períodos importantes, divididos em
Alta e Baixa Escolástica. Já na sua fase final, eles admi­
tiram as influências filosóficas gregas em sua teologia e
deram grande ênfase ao modelo aristotélico.
Contudo, nem todos os clérigos se satisfizeram com tal
erudição teológica. Por isso, houve discórdia principal­
mente entre dominicanos (dados à reflexão) e francisca-
nos (amantes da prática piedosa). Nesse período, outro
grande teólogo se destacou, trata-se de Tomás de Aquino,
que ficou conhecido pelo seu universalismo.
Com todas as controvérsias e “brigas” teológicas acerca
da salvação, da trindade, dos sacramentos e das doutrinas
da Igreja, aos poucos a instabilidade começou a adquirir
maior proporção com as crises políticas que se abateram
sobre a igreja. Um pouco antes de haver o cisma ocasio­
nado pela Reforma Protestante, entretanto, merece des­
taque a figura dos chamados místicos medievais.
Esse misticismo teve origem na teologia agostiniana e
na piedade monacal. Os místicos não eram contrários à
escolástica, antes se relacionavam com ela e enfatizavam a
experiência religiosa pessoal. Os maiores místicos medie­
vais eram os dominicanos alemães, ligados à teologia de
Tomás de Aquino. Destacaram-se Eckhart de Hochheim
e João Tauler.
Eckhart aproximava-se muito do panteísmo (a palavra
“panteísmo” tem origem no grego. Pan significa “tudo”
e Theós, “deus”; os panteístas acreditavam que rudo era
Deus. De acordo com essa doutrina, Deus é o cabeça da
totalidade e o mundo é o seu corpo), mas dava especial
Panorama histórico da teologia 59

destaque à encarnação. Segundo ele, o ser humano se sal­


varia quando morresse para o mundo e se recolhesse para
dentro de si a ponto de se unir completamente com o
divino. Isso poderia ocorrer em três etapas:
- Purificação: arrependimento;
- Iluminação: Imitação dos sofrimentos de Cristo. Fazer
o que é bom, contemplar os sofrimentos de Cristo;
- União total com Deus, negação do mundo e de si mes­
mo.
De acordo com os místicos, Deus era a única validade,
e a criação significava o nada. O ser humano pertenceria
ao nada e deveria objetivar a união com Deus. Alvo que
só alcançaria mediante a negação das coisas do mundo e
dos desejos maus.
Entretanto, não era a primeira vez que tais idéias povo­
avam o imaginário dos cristãos. Essas idéias sobre mundo
mau e mundo bom, materialidade e espiritualidade, ne­
gação e contemplação são motivos que se pode identificar
em toda a história cristã desde a sua fundação 110 seio
judaico. Por trás delas se movimentava a insatisfação que
alguns religiosos mantinham com relação ao envolvimen­
to da Igreja com o poder político e financeiro.
O descontentamento aliado às motivações pessoais que
se arrastavam desde o século XII, contribuiu para que no
século XVI houvesse um racha na Igreja cristã, até então
católica. A partir de então, com a Reforma Protestante, a
teologia cristã dividiu-se também em duas: a teologia ca­
tólica e a teologia protestante, que posteriormente serviu
como base para o chamado movimento evangélico.
a T e o lo g ia
Pr o t e s t a n t e
Martinho Lutero

João Calvino
A teologia protestante ^ 63

“O justo viverá pela fé. ”


M aninho Lutero, extraído de
Habacuque 2.4 e Romanos 1.17
O surgimento da teologia protestante está diretamente
ligado ao contexto de efervescência que caracterizou o sé­
culo XVI, mas antes disso já havia intensos debates entre
os teólogos católicos. Nesse sentido, a Escolástica demons­
trou que mesmo entre as ordens i'eligiosas, especialmente,
entre os dominicanos e os franciscanos, existia pluralida­
de cle opiniões, e de certo modo, as tais divergências con­
tribuíram para o descontentamento que gerou a Reforma
Protestante protagonizada por Martinho Lutero.
Obviamente, outras cenas importantes serviram e impul­
sionaram os teólogos da Reforma. A invenção e implemen­
tação da imprensa teve enorme participação nesse proces­
so. Desde os séculos XII-XIII, a informação em forma de
texto circulava com muito mais facilidade e, desse modo,
ultrapassava os domínios do clero e das elites eruditas.
Embora não se possa dizer que o povo mais simples
dvesse condições plenas de estudo, é bem provável que
tivesse algum acesso à literatura. A partir da escassa leitu­
ra que faziam, obtinham novas formas de compreender o
mundo ao seu redor e, com isso, condições de reflexão a
respeito das estruturas e relações de poder que perpassa­
vam o quotidiano popular.
A esse respeito, recentemente, Cario Guinsburg, famo­
so historiador italiano, escreveu a obra intitulada O queijo
e os vermes. Nesse livro é contada a história de certo mo­
leiro que sofreu acusação de heresia pela igreja católica e
viveu o processo inquisitório. E provável que Menochio,
como era chamado, tenha feito ao longo cle sua vida ape­
nas duas leituras, mas foi a partir delas que elaborou a sua
própria teologia acerca da criação do mundo.
64 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I O que é teologia?

Essa história indica que mesmo as pessoas mais simples


desse período, por meio da leitura e do acesso ã informa­
ção, reformularam algumas de suas concepções sobre as
condições de vida naquele tempo. As mudanças de com­
portamento que estavam acontecendo, portanto, atingi­
ram não só âmbitos sociais e políticos, mas influenciaram
também as artes e a religião, que sempre se manifestaram
conjuntamente.
MARTINHO LUTERO
O século XVI estava envolto em divergências. A insti­
tuição católica se contradizia e a insadsfação com a dife­
rença entre a pregação e a ascensão econômica do clero
incomodava muitas pessoas, desde os comerciantes até os
trabalhadores do campo, e artesãos.
Enquanto se pregava, por um lado, a pobreza e a hu­
mildade, por outro, se vendiam indulgências, Não raro,
historiadores e teólogos católicos admitem que a prática
de indulgências, no passado, foi abusiva. E esse abuso ge­
rou o episódio de 31 de outubro de 1517, quando Marti-
nho Lutero afixou na Igreja de Wittenberg (Alemanha)
as 95 teses, escritas em latim, que criticavam alguns dog­
mas da Igreja Católica.
Dentre as severas críticas do monge (ordenado em
1507 no Mosteiro Agostiniano de Erfurt) e, posterior­
mente, professor de filosofia moral da Universidade de
Wittenberg, destaca-se o problema da venda de indulgên­
cias promovida pelo Papa Leão X para o financiamento
da construção da Basílica de São Pedro, em Roma. Entre­
tanto, é provável que o objetivo inicial de Lutero tenha
sido apenas tornar públicas as suas idéias.
As disputas, como eram chamadas, eram práticas co­
muns da vida universitária. Tratava-se de um debate que
A teologia protestante ^ 65

envolvia professores e estudantes, e aqueles que não po­


diam comparecer enviavam suas opiniões por escrito, a
fim de que fossem lidas. As teses do teólogo geraram uma
espécie de cisma e acarretaram diversas outras discussões.
Lutero teve várias disputas teológicas com agentes en­
viados pelo Papa Leão X e, em 21 de janeiro de 1521, foi
redigida sua carta de excomunhão, que recebeu algum
tempo depois. O impacto que essas teses ocasionaram no
meio religioso da época provocou o “racha” da instituição
católica.
Para alguns, a Reforma trouxe novo enfoque para a
teologia. Contudo, a perspectiva dos reformadores não
se diferenciou dos católicos em relação às questões mais
básicas do cristianismo, como, por exemplo, o reconheci­
mento cla divindade de Jesus Cristo e de seu papel como
salvador da humanidade.
As divergências surgiram principalmente com a apli­
cação de princípios hermenêuticos para a compreensão
da Bíblia, ou seja, os princípios utilizados para a interpre­
tação dos textos sagrados. Com Lutero, as Escrituras Sa­
gradas assumiram papel central na construção teológica,
como transmitido pelo refrão: Sola Gratia, Sola Fide, Sola
Srriptura (Só pela graça, só pela fé, só pela Escritura).
A Bíblia passou a ser interpretada por si mesma, me­
diante a graça e a fé em Deus. Os reformadores, críticos
da teologia católica, rejeitaram a influência filosófica so­
bre a interpretação e formulação cla teologia e abandona­
ram o que os medievais chamavam de a natureza mesma
de Deus. Para eles, importava somente aquilo que Deus é
quando se revela à humanidade.
Nesse período, a teologia passou a ser considerada
revelação especial de Deus nas Escrituras Sagradas. Os
66 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS | 0 que è teologia?

teólogos dessa época acreditavam que em função da


natureza decaída cio ser humano (por causa do pecado
original), havia separação entre Criador e criatura. Para
que essa separação fosse superada, Deus havia se revela­
do a todas as pessoas por meio das palavras escritas na
Bíblia. Assim, por causa de Sua graça e pela fé em Jesus,
considerada dom de Deus, a união entre humanidade e
divindade poderia ser restaurada com o entendimento
das Sagradas Escrituras.
Foi Lutero quem contrapôs expressamente a teolo­
gia da cruz à teologia da glória, essa última reconheci­
da como oficial pela classe dominante. Pode-se dizer que
essa abordagem teológica é herança do apóstolo Paulo.
Tecer uma definição para essa teologia é tarefa complica­
da, mas podemos aceitar que a teologia da cruz enfatiza
a centralidade da cruz de Cristo. E na cruz de Cristo e do
cristão que se mostra o sentido mais profundo da ação de
Deus junto ao mundo.
A teologia da cruz é cristocêntrica. Para o cristão, Cris­
to é tudo, Ele é o eixo central cla reflexão teológica. Essa
foi a marca distintiva da teologia de Lutero.
JOÃO CALVINO
Outra figura de importância para a teologia da Refor­
ma foi João Calvino. Muito embora as idéias desse teólogo
sejam diferentes das de Lutero em alguns pontos, o seu
pensamento e reflexão podem ser considerados também
expoentes do século XVI.
Calvino era francês e herdou o interesse pela reli­
gião de seu pai, que era católico. Mostrou vocação desde
criança e por isso foi colocado no Colégio dos Cape to c,
posteriormente, admitido entre os filhos do Senhor de
A teologia protestante vfiU 67

Mommor. Dc 1523 até 1533 estudou teologia e direito. Foi


provavelmente na Universidade de Orleães e de Bourges
que surgiu seu interesse pelo luteranismo e o desinteresse
pelo catolicismo.
Em 1533, estudante cm Paris, Calvino se destacou pela
escrita de discursos cujo conteúdo apresenta-o crítico e
herético do ponto de vista da Igreja Católica. Em 1536,
publicou em latim Institulio Religionis Chmtianae.
Passados alguns anos, o pensamento teológico calvinis-
ta se institui de modo acentuado em Genebra, região for­
te do protestantismo. Seu sistema é caracterizado por ser
doutrina influente e amplamente aceita. Sua teologia era
teocêntrica, isto é, compreendia que Deus era o centro
de toda a reflexão e percepção das coisas relacionadas
à religião e à sociedade. Todavia, opôs-se ao grupo dos
católicos, discordou dos luteranos e assinalou pontos con­
siderados importantes, como: a existência da trindade, a
encarnação do filho de Deus (Jesus Cristo), o nascimento
virginal de Jesus, a natureza humana e divina do filho de
Deus (dupla natureza), a graça de Deus, a predestinação
e o pecado original.
Para Calvino, a Bíblia era a única e fundamental fonte
de fé e regra de vida para os cristãos. Mas o ensino das
Sagradas Escrituras estava reservado somente aos pasto­
res, aos mestres, aos presbíteros (anciãos) e aos diáconos.
Desse modo, ficara excluída a categoria episcopal, e cada
comunidade (congregação local) seria independente e
administrada por uma espécie de conselho de pastores.
Os sacramentos do baüsmo e da comunhão (Eucaris­
tia) foram entendidos por ele como símbolos que, res-
pectivamente, indicavam que aquele que reconhecesse
o senhorio de Jesus era nascido para a nova vida e, por-
68 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I O que é teologia?

tanto, salvo. No ato da Eucaristia, quando se come pão e


se bebe vinho, objetivava-se lembrar o sacrifício de Jesus,
que entregou seu corpo e seu sangue, simbolizados pelo
pão e pelo vinho, para a remissão dos pecados dos seres
humanos.
Contudo, para ele, a salvação não era direcionada a
toda a humanidade. Somente os escolhidos por Deus her­
darão o reino dos céus. Essa é a chamada doutrina cla
dupla predestinação, até hoje muito debatida.
Outros pontos do pensamento calvinista que geraram
bastante discussão foram: não-aceitação da confissão auri­
cular feita somente com a figura do padre (para a remis­
são dos pecados), não-aceitação dos votos e do celibato, a
negação das indulgências (à semelhança de Lutero) e da
existência do purgatório.
A obra de Calvino é vasta e compreende comentários
bíblicos, preleções e sermões. Em suas produções pode­
mos identificar alguns pressupostos, destacados a seguir.
A autoridade das Escrituras. Deus se dirige e se revela
à humanidade por meio das Escrituras Sagradas. E por
intermédio cla leitura desses textos que as pessoas têm a
oportunidade cie conhecer a Deus e a sua mensagem ver­
dadeira de salvação.
A necessidade de iluminação. O Espírito Santo é res­
ponsável por esclarecer o conteúdo das Escrituras: “a Pa­
lavra nunca terá crédito nos corações humanos até que
seja confirmada pelo testemunho interno cio Espírito”.
Assim, somente com atitude de humildade e fé é possível
interpretar adequadamente os textos bíblicos.
O alvo da interpretação. A interpretação dos textos bí­
blicos deve almejar o fortalecimento e amadurecimento
dos cristãos envolvidos na igreja. Portanto, essa atividade
A teologia protestante &í 69

deveria ser desenvolvida com dedicação e compromisso


com a verdade. Neste sentido, a expressão favorita de
Calvino era: “A Escritura é sua própria intérprete e não
necessita de outros recursos para sua clarificação”. A in­
terpretação humana só é válida se for submetida à inspira­
ção do Espírito Santo, mediante a graça dc Deus.
A reflexão desenvolvida pelos reformadores foi de ex­
trema importância no cenário teológico. De certo modo,
ela cooperou para que a teologia rompesse os muros dos
m o n a s té rio s e avançasse r u m o às ru a s , tabernas e casas.
Seus pressupostos podem ser identificados em muitas
igrejas de tradição protestante e, em especial, nas igrejas
evangélicas.
Além da efetiva atuação de Lutero e Calvino, devemos
dar destaque também a Ulrich Zwínglio, Menno Simos
e outros que, apesar de muito criticados, foram grandes
teólogos, tiveram coragem para desafiar autoridades da
época e ainda hoje são mal interpretados.
É preciso dizer que os teólogos reformadores não ex­
traíram suas reflexões a partir do nada. Cada um deles
elaborou sua critica em meio ao contexto de onde surgi­
ram, isto é, a igreja católica. Portanto, assim como cris­
tianismo de uma forma geral não pode negar sua raiz
judaica, o protestantismo preciso admitir uma certa li­
derança católica.
Na tradição protestante, vários elementos litúrgicos fo­
ram substituídos ou simplesmente abolidos dc seus cultos
e celebrações. Embora símbolos e imagens tenham sido
“apagados”, a beleza do sentimento pelo numinoso não
foi extinta, e isso, de alguma forma, possibilitou que a te­
ologia cristã estabelecesse o diálogo entre as diferentes
confissões que surgiram posteriormente, como presbite­
rianos, batistas, metodistas etc.
70 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I O que é teologia?

Em parte, graças aos pressupostos dos reformadores, a


teologia assumiu um perfil mais popular. Embora tenha
fugido brevemente dos sistemas filosóficos fechados, ela
não deixou de transitar por esses círculos e já nesta fase
contemporânea parece ter assumido novo “envolvimento”
com os saberes filosóficos. Isto é o que veremos adiante.
AS FACES DA
T e o l o g ia
C O N TEMPORÂN EA
Teologia Liberal

Teologias de Libertação

As teologias recentes
As faces da teologia contemporânea i/ã» 73

Comumente, a teologia contemporânea é datada a


partir do século XIX; mas, para que suas faces possam ser
compreendidas adequadamente, é necessário que se faça
breve retorno ao século XVIII.
No final do século XVIII, o antigo ideal exegético de
reconstruir o sentido original do texto ressurge com Frie-
drich Schleiermacher. Esse homem marcou a passagem
cla hermenêutica para o status de filosofia e, assim, essa
disciplina passou para o rol das ciências humanas. Dentre
suas afirmações pode-se destacar:
- entre o intérprete (sujeito) e o texto (objeto) não há
separação;
- a linguagem humana determina o seu horizonte de
compreensão e de conhecimentos;
- entre o todo (o mundo) e o particular (o texto) há
uma relação de circularidade;
- sempre existe um ponto de referência a partir do qual
se institui certa compreensão.
O desdobramento das afirmações de Schleiermacher
tornou-se fundamental para a compreensão cla literatura
bíblica, e posteriormente culminou na teologia liberal.
TEOLOGIA LIBERAL
Como vimos, a teologia liberal se desenvolveu por volra
do século XX, na Alemanha. Essa teologia propõe a liber­
dade de expressão e o primado da razão em detrimento da
autoridade clerical e das doutrinas absolutas sobre Deus.
A teologia liberal se opõe à sistematização do dogma
dado na forma de ortodoxias (século XVIII) e é marcada
pelo otimismo em relação ao progresso do ser humano,
auxiliado pela tecnologia e pela razão lógica.
74 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS | O que é teologia?

Há muito preconceito em torno da teologia liberal.


Muitos afirmam sua maldição sem ao menos tentar com­
preender seus pressupostos. Mas, afinal, quem foram seus
protagonistas, e quais os seus objetivos? O que diziam os
teólogos liberais e com o que estavam preocupados?
Os teólogos liberais se concentraram na busca pelo
Jesus histórico, já que enfatizavam o caráter ético e mo­
ral da mensagem cristã como válidos para o homem e a
mulher da modernidade. Eles objetivavam responder às
questões de seu tempo, pois para o ser humano moderno,
a ciência proporcionava todo o conhecimento necessário
acerca do Universo e de si m e s m o .
Havia um clima positivista no ar e, deste modo, as ex­
plicações dadas a partir do mundo bíblico não passavam
de narrativas lendárias e primitivas que, agora, cediam lu­
gar ao “verdadeiro conhecimento”.
A metodologia empregada por essa escola é conhecida
como História das Religiões Comparadas. Basicamente,
é um método que compara diferentes tradições culturais
em busca de elementos, imagens, símbolos e expressões
recorrentes (elementos estruturais convergentes). Os ri­
tuais envolvendo água, por exemplo, aparecem em reli­
giões de tradições diferentes. No entanto, muitas vezes a
água é usada como elemento de purificação, num sentido
parecido com o judaico-cristão.
A História das Religiões Comparadas considera os mo­
vimentos do judaísmo e do cristianismo dentro do contex­
to mais amplo formado por diversas tradições do Mundo
Antigo, em especial, Mediterrâneo, e procura identificar
mitos, símbolos e rituais estruturados a partir de elemen­
tos comuns e que, no processo de desenvolvimento das
tradições culturais, foram reelaborados, ganhando signi­
ficados diferentes.
As faces da teologia contemporânea vâ$ 75

Essa escola teológica foi protagonizada inicialmente


por alguns pensadores muito criticados por suas afirma­
ções “bombásticas” no cenário da teologia conservadora.
Dentre eles podemos destacar Hermann Samuel Reima-
rus (1694-1768), precursor dos estudos sobre a vida dc
Jesus em perspectiva histórica. Foi um dos responsáveis
pela distinção entre a pregação de Jesus e a fé de seus
apóstolos. Sua abordagem considerava que os ensinos de
Jesus devem ser considerados à luz da herança judaica de
seu tempo, e que o cristianismo foi uma “invenção” apos­
tólica.
Com David Friedrich Strauss (1808-1874), o conceito
de mito foi aplicado pela primeira vez aos evangelhos. Ele
interpretou a vida de Jesus como narrativa construída pe­
los discípulos, negou sua divindade e o valor salvífico da
paixão.
Seguindo adiante, Adolf von Harnack (1851-1930) é
considerado último expoente do protestantismo liberal.
Harnack, apesar de ser grande historiador de seu tempo,
também foi considerado excelente teólogo. Considerou
o método histórico-crítico (séc. XIX) instrumento essen­
cial para a interpretação da linguagem bíblica. Segundo
Harnack, não há possibilidade de interpretação da Bíblia
fora do método científico. Assim, considerou os dogmas
frutos do processo de helenização do cristianismo, e os
milagres, produtos da mística judaica.
Com isso, a teologia deu um salto: do extremo teoccn-
üico para o extremo antropocêntrico. A perspectiva de
interpretação dos textos bíblicos passou a ser científica
e regida por pressupostos acadêmicos. O texto bíblico
perdeu seu caráter sacro e tornou-se efetivamente obje­
to. A inicial temeridade e reverência, típicas dos teólo­
gos piedosos, cedeu lugar à dissecação do texto bíblico.
76 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I O que é teologia?

O dogma foi exposto à crítica e, portanto, questionado


quanto à sua autoridade.
Mas é im portante notar que nem todos os teólogos
classificados como liberais correspondem efetivamen­
te ao estereótipo de “destruidores” da fé cristã. Existi­
ram outros nomes, dentre os quais destacamos Rudolf
Bullmann, que, apesar de herdeiros da herança liberal
alemã, avançaram em suas reflexões teológicas e, desse
modo, não deveriam ser enquadrados vulgarmente no
modelo liberal.
Bultmann, assim como Karl Barth, são exemplos distin­
tos, mas eficazes para a demonstração de que a perspecti­
va liberal foi fundante para o avanço da reflexão teológi­
ca. Resumidamente, Bultmann dialogou com categorias
filosóficas (de Heiclegger) para responder às questões de
seu tempo.
Barth, também preocupado com os problemas de seu
quotidiano, recorreu à ortodoxia e retomou princípios
hermenêuticos cio século XVI. Foram duas respostas, dife­
rentes, ao mesmo problema. Todavia, em ambos os casos,
a preocupação central foi tornar a proclamação do Novo
Testamento atual para a audiência.
TEOLOGIAS DE LIBERTAÇÃO
Se por um lado a Reforma “democratizou” a interpre­
tação bíblica e a teologia liberal viabilizou o uso cle outros
instrumentos para a exegese, por outro lado, a teologia
sofreu certo impacto com essa Ubertura. Esses dois perí­
odos cooperaram para a aproximação entre leitores (as)
e texto sagrado que, em geral, era sempre intermediada
por alguém: um padre, um pastor, um sacerdote, ou seja,
uma figura cle autoridade eclesiástica.
As faces da teologia contemporânea ^ 77

A reflexão teológica liberal possibilitou ao intérprete


da Bíblia e ou teólogo cristão apropriar-se dos textos sa­
grados à luz de sua própria experiência e, com isso, lançar
novo olhar sobre o texto. Sobretudo, permitiu procurar
respostas para questões específicas de certos grupos, que
a teologia européia e alemã não atendia. Inscrevem-se,
nesse caso, os grupos marginalizados pela teologia “ofi­
ciar’, como: indígenas, negros, mulheres, crianças e es­
trangeiros.
Portanto, não existe apenas uma teologia de libertação,
mas teologias de libertação que. basicamente, buscam re­
visitar as tradições bíblicas buscando as imagens desses
grupos “despercebidos” pela teologia mais conservadora,
feita por homens, brancos e de países desenvolvidos.
Dentre as teologias de libertação, pode-se destacar a
Teologia da Libertação que nomeou o movimento e a
partir da qual surgiram a Teologia Feminista e a Teologia
Negra. Por questão de espaço, neste livro daremos desta­
que à Teologia da Libertação (TL) e à Teologia Feminis­
ta. Entendemos que ambas as teologias são de extrema
importância no âmbito da América Latina e de certa ma­
neira contribuíram para o surgimento dc outras reflexões
teológicas crescentes, e em curso.
A Teologia da Libertação (TL). A TL causou verdadei­
ro impacto na história. Principalmente porque, origina­
riamente, foi desenvolvida no solo latino-americano com
enfoque característico das culturas desse continente, ou
seja, à luz de suas realidades socioculturais e políticas.
A América Latina foi e é colocada entre as regiões do
chamado Terceiro Mundo, continente pobre e marcado
pela mistura de culturas e cores. Seus contextos indicam
grande diversidade de línguas, de riquezas naturais, de
produção cultural, de políticas e de problemas sociais.
78 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I O que é teologia?

Os países chamados subdesenvolvidos e que constituem


o Terceiro Mundo, na verdade, produzem e sustentam boa
parte da economia mundial, mas em função de suas histó­
rias passadas de colonização e exploração pelos países do
Primeiro Mundo, hoje, sofrem ainda os reflexos das políti­
cas “parasitas” e opressoras de que foram e são alvos.
Portanto, a TL irrompeu num espaço geográfico e cul­
tural não-europeu, e por meio de sua reflexão teológica
buscou desmontar as bases da teologia feita pelos domi­
nadores, seus opressores. Podem-se destacar vários nomes
que figuraram nessa importante história. Entre eles estão:
Gustavo Gutiérrez (peruano), Juan Luís Segundo (uru­
guaio), Jon Sobrino (salvadorenho), Ronaldo Munoz (chi­
leno). Entre os brasileiros, Frei Betto, Leonardo e Clodo-
vis Boff, Rubem Alves, Milton Schwantes e Jaci Maraschin.
Além destes, existem outros igualmente importantes.
Grosso modo, a TL eclodiu em meados dos anos 60,
no século XX. Esse período, em particular, foi de extrema
movimentação política, com destaque para o movimento
socialista que teve grande força a partir da revolução li­
derada por Fidel Castro(Cuba), e o governo de Salvador
Allende, (Chile).
No Brasil, o panorama político foi conturbado com
muitas movimentações de partidos políticos, de sindicalis­
tas, de estudantes e de artistas. No geral, se reivindicavam
condições de vida mais justas para a sociedade. Falava-se
de igualdade de direitos e de liberdade de expressão, de
reformas na estrutura política, de reforma agrária e ou­
tros assuntos. Entretanto, a realidade era controlada pelo
governo ditatorial e militar. Houve várias manifestações,
pessoas foram exiladas, outras censuradas e quase todas
as expressões contrárias ao governo eram reprimidas com
violência.
As faces da teologia contemporânea ^ 79

As políticas desenvolvidas pelos governos controversos


e autoritários favoreciam pequenos grupos, e além dessa
realidade, outra bastante sofrida se instalava. As massas
populares eram cada vez mais exploradas e, conseqüente­
mente, empobrecidas.
A Igreja Cristã, representada principalmente por ca­
tólicos, posicionou-se ao lado desses grupos desfavoreci­
dos com a célebre “opção pelos pobres”. Os bispos lati-
no-americanos, na Conferência de Medellin, decidiram
encerrar o silêncio da Igreja Católica diante da injustiça
social vigente. Com isso revisou o argumento de que a
Igreja devia preocupar-se em guiar seu rebanho para o
céu, sem se ocupar com questões materiais.
A encíclica de João XXIII, de 1963, permitiu que teó­
logos, sacerdotes e religiosos católicos de todas as proce­
dências se familiarizassem com a ideologia marxista, em
busca de novos horizontes para a interpretação de textos
bíblicos.
Nesse momento, Gustavo Gutiérrez desenvolveu uma
importante perspectiva teológica acerca cla posição que o
ser humano ocupa em relação a Deus: a separação entre
sagrado e profano não existe. A história divina e humana
é única e Deus age, ao longo de toda a história, libertan­
do-os dos diversos tipos de opressão.
Gutiérrez deu caráter prático de libertação à teologia
por meio dos fundamentos da teoria crítica marxista. A
TL criticou a igreja e refletiu a respeito de seu papel so­
cial que legitimava, isto é, concordava com a opressão e
a injustiça social. A igreja compreendeu que, em função
cle sua pregação sobre o reino de Deus futuro, agia pas­
sivamente no presente e se omitia em relação à exclusão
social, miséria e desigualdade.
80 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I O que é teologia?

A partir da leitura de Marx, que considerou a Igreja


um instrumento opressor do Estado, alguns dos teólo­
gos e dos sacerdotes repensaram suas idéias e posturas
religiosas, e reconheceram antigas alianças com os ricos
(quando pregavam que a resignação à vontade de Deus
e o sofrimento na Terra era a garantia de vida eterna no
paraíso).
A TL levou a cabo a prática libertadora. Nesse sentido,
o ato de evangelizar passou a significar libertação não só
do pecado, mas também da vida alienada e resignada. A
reflexão teológica passou a ter compromisso com as coisas
do espírito e do corpo, a ver o ser humano integralmente.
Assim, o pecado não era mais só o mal espiritual (a deso­
bediência, a blasfêmia, a heresia, a descrença etc.), mas
também a injustiça materializada em decisões individua­
listas que prejudicavam a vida humana.
Com a TL, a hermenêutica dos textos do Antigo e do
Novo Testamento adquiriu novo rosto. Temas como a sal­
vação e o reino de Deus, que antes eram sempre “jogados”
para o futuro, foram revisitados e a leitura ganhou novas
cores. A TL falava do movimento de Deus a libertar seu
povo da escravidão do Egito, a restaurar sua dignidade e
tradição, a derrotar os opressores do povo escolhido e a
providenciar o pão da vida para o presente.
De acordo com essa perspectiva, Jesus foi interpretado
como o filho de Deus encarnado para o anúncio da liber­
tação. Foi considerado o profeta, o líder revolucionário
que subverteu a ordem do Império Romano e que andava
entre os pobres, as mulheres, as crianças, as prostitutas e
os párias da sociedade.
Dentre alguns títulos de livros importantes, destaca­
mos: Jesus Cristo Libertador, de Leonardo Boff (1972);
As faces da teologia contemporânea 81

Cristologia desde América Latina, de J. Sobrino (1976), El


hombre de hoy ante Jesús de Nazaret, de Juan L. Segundo
(1982).
Existem muitos outros livros e revistas especializadas
em teologia que se tornaram meios importantes de di­
vulgação da abordagem teológica libertária. Na grande
maioria, o tema principal era a libertação dos pobres e a
luta por sociedades mais justas e igualitárias.
Mas essa teologia não circulou apenas entre teólogos.
A grande expressão da TL se deu entre os populares e as
lideranças leigas que se reuniam em Comunidades Ecle-
siais de Base (as CEBs) para a celebração da fé, a organi­
zação de cursos profissionalizantes, as palestras de cons­
cientização e muitas outras atividades, que objetivavam
tornar cada mulher e homem conscientes de seus direitos
e de seus potenciais.
Sem dúvida a TL constituiu grande marco na história
da teologia, principalmente na América Latina. Sua refle­
xão abrangeu católicos e protestantes. Esses últimos cria­
ram também a Teologia Evangelical e a Missão Integral.
Espécie de contrapartida e resposta dos evangélicos ao
movimento maciço cle católicos e protestantes engajados
na TL.
A missão integral, como o próprio nome diz, busca­
va a salvação para o ser humano completo e, para tanto,
também se comprometeu com as necessidades sociais dos
grupos marginalizados, sem abrir mão da mensagem teo­
lógica evansrélica.
O o

Entre 1956 e 1962, várias igrejas evangélicas se reuni­


ram na Região Nordeste brasileira e participaram de três
conferências idealizadas por pastores preocupados com a
situação política e social brasileira, principalmente com
82 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I 0 que é teologia?

os pobres do Norte e do Nordeste brasileiro. Nessa oca­


sião, elaboraram um documento que foi intitulado “Cris­
to e o processo revolucionário brasileiro”.
Alguns evangélicos não concordavam com a opção da
TL pelas idéias marxistas e procuraram outros meios para
expressar sua indignação com relação à desigualdade so­
cial. Mas muitos deles não encontraram problema no mo­
vimento da TL que, assim, acabou por assumir e cooperar
para o movimento ecumênico.
A TL continua existindo nas reflexões teológicas publi­
cadas em revistas como a RIBIA (Revista de Interpreta­
ção Bíblica Latino-Americana), especializada na reflexão
teológica produzida neste continente, nas igrejas católi­
cas e evangélicas espalhadas por todo o Brasil, onde se faz
leitura popular dos textos bíblicos. A partir desse contato
com a Bíblia, se busca auxiliar mulheres e homens de to­
das as etnias e idades a encontrarem o sentido espiritual e
o material da literatura bíblica.
A Teologia Feminista. A teologia feminista emergiu do
mesmo panorama da TL e buscou, em princípio, a liberta­
ção paia as mulheres oprimidas, durante a longa jornada
histórica. Essa abordagem teológica fundamentou-se nos
pressupostos do movimento feminista do século XX, que
em meaclos dos anos 50 ganhou notoriedade. Todavia, as
discussões feministas avançaram rumo às relações de gê­
nero e enfocaram mais do que a obrigatória e opressiva
subordinação da mulher ao homem.
Tais discussões objetivavam desconstruir os discursos
que legitimavam a superioridade e a autoridade masculina
sobre a mulher. O avanço está mais precisamente a partir
da negação dessa estrutura, pois as críticas eram dirigidas
não só aos homens, mas ao modelo de organização social
As faces da teologia contemporânea 83

e política hierárquica social que marginalizava e oprimia


outros homens, mulheres, crianças etc.
Podemos dizer que o pano de fundo que instigou a re­
flexão feminista foi o olhar masculino na edição histórica.
Sabe-se que o estabelecimento da ordem social patriarcal
se deu antes da formação da civilização ocidental, e ins­
tituiu o homem como norma e a mulher como desvio.
Gradualmente, ele institucionalizou os direitos dos ho­
mens para controlar e se apropriar dos serviços sexuais e
reprodutivos das mulheres, estabelecendo formas de do­
minação, tais como a escravidão, e instituindo um sistema
funcional complexo de relacionamentos hierárquicos,
tecendo um verdadeiro sistema de idéias.
Com exceção de algumas mulheres do período renas­
centista, que se dedicaram à literatura, as mulheres em
geral só obtinham oportunidade de estudo por meio da
dedicação à vida eclesiástica e religiosa. Mesmo assim, a
possibilidade de estudo para as mulheres foi limitada, no
século XII, pelas reformas da Igreja (difusão do celibato
clerical, refinamento da lei canônica, hierarquia clerical
privilegiada com educação e poder sobre a igreja). Em
resumo, as mulheres foram relegadas à posição de infe­
rioridade.
As razões históricas do machismo também se encon­
tram na Antigüidade Clássica. Neste período a concepção
dualista se fortificou e propôs a separação entre mulher
e homem, carne e espírito, bem e mal. Homem e mulher
foram relacionados, respectivamente, à razão e à emoção,
ao equilíbrio e a instabilidade. Por trás dessas idéias está a
ideologia que associa o feminino à “carne” e à “concupis­
cência”, ou seja, ao que a igreja considera mal. Por isso,
a mulher deve ser submetida ao racional, representado
pelo homem. Esse conceito foi reforçado por Agostinho,
nos seus comentários ao livro de Gênesis.
84 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I O que é teologia?

Na Idade Contemporânea, machismo passou a ser


identificado mais claramente por meio da reflexão so­
bre as estruturas dos mitos com personagens femininos,
escritos por homens. Em O segundo sexo, escrito por Si-
mone de Beauvoir, a autora dem onstrou que tais nar­
rativas podem representar projeções da fantasia mas­
culina a respeito das mulheres consideradas ideais ou
malditas.
De qualquer modo, o olhar sobre a edição histórica
mostrou que a mulher não detinha de si mesma a concep­
ção de identidade. A existência feminina foi sempre abor­
dada a partir do ponto de vista patriarcal que a concebia
como incapaz e débil.
Inicialmente, o feminismo surgiu no século XIX e ficou
conhecido posteriormente como Feminismo Liberal. As
feministas propunham sociedades igualitárias em que ho­
mens e mulheres tivessem os mesmos direitos e oportuni­
dades. Nessa época, as mulheres eram privadas de alguns
direitos como: o direito ao voto, o direito à propriedade
(não controlavam bens herdados, pela lei os bens ficavam
sob a tutoria de algum homem), o direito à educação, o
direito de ir e vir (devia submeter-se às decisões do pai,
irmão ou marido).
Após a fase inicial, o feminismo liberal obteve conquis­
tas relevantes. Entretanto, a inserção e os ganhos não fo­
ram plenamente satisfatórios. As mulheres empregadas,
além de acumular duas funções (a de operárias e a de
donas de casa) ocupavam cargos de pouca expressividade
ou de remuneração inferior aos homens, às vezes, na mes­
ma função. Tal situação gerou descontentamento, que
eclodiu em reivindicações como a extinção dos modelos
patriarcais de religião, de casamento e outros.
As faces da teologia contemporânea ■/Zi 85
As feministas perceberam que os papéis sociais e reli­
giosos podem ser construções culturais que têm por base
concepções machistas. Assim, em resumo, os homens se­
riam criados para serem “machos provedores” e as mu­
lheres, “fêmeas procriadoras”. As duas caracterizações,
entretanto, são nocivas às relações humanas e, por isso,
opressoras, tanto para mulheres quanto para homens.
À luz dessa discussão, as teólogas feministas se reaproxi-
maram do texto bíblico a fim de identificar os elementos
patriarcais produzidos pela cultura e, assim, reconhecer
concepções de inferioridade e subordinação da mulher,
em relação ao homem.
Do ponto cle vista das feministas, o fato de a Bíblia ter
sido escrita na maior parte pela mão masculina privilegia
os direitos dos homens e menospreza a mulher. As perso­
nagens bíblicas femininas que exerceram algum tipo de
liderança e se destacaram aparecem raramente. Há pou­
cos relatos que nos permitam conhecê-las melhor.
A teologia feminista se propõe resgatar a história dessas
personagens que a história oficial silenciou e, com isso,
construir uma leitura bíblica maisjusta a fim de que tanto
mulheres quanto homens sejam devidamente valorizados
em seus papéis e funções.
Dessa idéia de equilíbrio que aos poucos foi superando
a inicial competição surgiu o ecofeminismo, outro estágio
das discussões feministas.
O ecofeminismo busca desconstruir um tipo de leitura
da Bíblia que promove a hierarquia, a desigualdade e a
degradação do ser humano. Ele é um tipo de abordagem
feminista que discute os gêneros. Sua crítica confronta as
religiões cujas estruturas (de organização social, política e
religiosa) inferiorizam a m ulher e/ou o homem.
86 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I O que é teologia?

AS TEOLOGIAS RECENTES
Atualmente, a reflexão teológica cresce cada vez mais,
assim como as ferramentas metodológicas para desenvol-
vê-la. Seja nos círculos acadêmicos ou entre populares,
nas igrejas, nas comunidades ou nas casas, a teologia assu­
me contornos de ciência, mas permanece ao alcance de
todas as pessoas.
Além disso, pode-se dizer com tranqüilidade que a pes­
quisa teológica em países latino-americanos é tão quali­
ficada quanto no Norte da América e na Europa. Ainda
há falta de recursos e de incentivo; contudo, essas dificul­
dades não têm constituído grandes empecilhos para que
o interesse pela teologia, pela religião e pelo Sagrado se
esvazie.
O século XX testemunhou grande oferta de teologias.
Cada uma delas buscava cercar um aspecto pontual sobre
o qual se julgava não ter havido muita ênfase e que, des­
ta forma, poderia ser mais bem explicitada. Dentre elas,
conhecemos a teologia dialética, a teologia existencial, a
teologia hermenêutica, a teologia da cultura, a teologia
da história, a teologia das religiões, e muitas outras.
Nesse sentido, já que a teologia contemporânea pro­
porcionou mais possibilidades de diálogo e cooperou
para que alguns dogmas cristalizados fossem revistos, a
abertura favoreceu o surgimento de várias outras teolo­
gias que poderão ser conhecidas pelo(a) leitor(a) através
das sugestões de leitura no final deste livro.
Vejamos brevemente dois exemplos de teologias sur­
gidas recentemente no Brasil e que encontram forte ex­
pressão nas igrejas, embora nos meios acadêmicos rece­
bam tratamento diferenciado.
As faces da teologia contemporânea 87

Teologia da Esperança. O enfoque central desta teo­


logia é mostrar que a prática da fé se inflama graças à
ressurreição de Jesus Cristo, isto é, a mensagem da ressur­
reição impele todas as pessoas à decisão de transformar a
comunidade, a sociedade e o mundo. Por isso, a liberda­
de conquistada graças ao sacrifício de Cristo e a mensa­
gem do reino de Deus significam mais do que liberdade
e santidade interiores. “Expressam sempre e por igual o
‘Shalon’ dirigido a todo homem e toda mulher em suas
relações sociais” (Ganz Andere).
Teologia da Prosperidade. A teologia da prosperida­
de é algo relativamente novo na história da igreja. Parece
que nada assim já foi visto antes. Mas isso não quer dizer
que ela tenha surgido de modo repentino ou aparecido
totalmente formada. Como todo movimento, desenvol-
veu-se com o tempo, e isso significa que tem raízes ligadas
a pessoas, épocas e lugares diversos.
O pentecostalismo fornece a base ou o grupo em que
essa teologia encontrou a maior parte de seus adeptos.
Sua doutrina é radical com relação ao homem físico e
espiritual. A teologia da prosperidade afirma com cons­
tância que nem doenças nem problemas financeiros fa­
zem parte cla vontade de Deus para seus filhos. Portanto,
o cristão que passa por tais situações não tem fé suficiente
ou está em pecado.
Outra característica dessa teologia é a chamada con­
fissão positiva. Ela garante a realização dos pedidos do
fiel desde que sejam realizados com fé. Nesse sentido, o
objeto de desejo do fiel deve ser reivindicado pelo cristão
imperativamente. A luz das cenas quotidianas que cons
tituem a grande maioria das realidades das pessoas n.it
ruas, nas casas e nas comunidades de que fa/.rm p.uii
88 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I O que é teologia?

parece razoável que alguns religiosos exijam bênçãos de


Deus. As necessidades são muitas, e as ofertas também.
Parece que a teologia da prosperidade apenas segue o
modelo imediatista das sociedades de consumo ociden­
tais. Assim, tão fácil quanto se comprar um Big-Mac deve
ser o alcance de uma vontade. Neste caso, Deus é o aten-
dente do balcão que gentilmente solicita ao cliente: “Faça
seu pedido”.
As teologias que aqui denominamos pontuais se carac­
terizam por priorizar determinados pontos em suas refle­
xões. Ora voltadas para aspectos mais filosóficos, ora para
questões sociais e problemas políticos, hoje seria mais
correto falar em teologias, no plural, e não mais teologia,
no singular.
PARA
ENCERRAR
Para Encerrar vãs 91

O homem desesperado (...) se perde construin­


do castelos no ar e bale-se sempre contra moinhos
de vento. Que brilho tem Iodas estas virtudes de
fazedor de experiências! Por um momento encan­
tam como um poema oriental (...). E são de fato
lendárias, sem nada por detrás. Em seu desespero,
o eu quer esgotar o prazei• de se mar, de se de­
senvolver, de existir por si mesmo, reclamando as
honras do poema, de trama a tal ponto magistral,
em resumo, a glória de tão bem se ter sabido com­
preender. No entanto, o que isso significa para ele
continua a ser enigma. No mesmo instante em
que crê terminar o edifício, tudo pode, arbitraria­
mente, desvanecer-se no nada.
Sõren Kierkegaard

Após tantas incursões pelo mundo da teologia ou das


teologias, não faremos mais nenhuma apresentação siste­
mática. Queremos apenas retomar a pergunta inicial: o
que é teologia?
Particularmente, consideramos a teologia uma constru­
ção paulatina do conhecimento humano acerca de Deus,
sua mais profunda e eterna paixão. E em função dessa
necessidade de explicai' o mundo, e de se explicar, que
os seres humanos vêm sistematicamente empreendendo
buscas teológicas, filosóficas, científicas.
Arriscamos dizer que, assim como para Aristóteles o
princípio da filosofia era a curiosidade, também para os
teólogos o princípio da reflexão é a pergunta: Quem é
Deus?
No judaísmo ou no cristianismo, a busca por Deus, e
os conhecimentos acerca dele sustentaram importantes
92 TEOLOGIA AO ALCANCE DE TODOS I O que é teologia?

decisões e concederam rumos para judeus e cristãos. Na


primeira metade do século I, muitas pessoas confiaram
suas vidas aos ensinamentos dc Jesus, considerado o filho
de Deus, o mestre de sabedoria, o profeta denunciador,
o líder político, o salvador do mundo. Sua pregação foi
tão significativa que dividiu a história da humanidade em
antes e depois dele, e concedeu esperança para os que se
aproximaram.
Entretanto, após sua morte, as expectativas dos primei­
ros seguidores de Cristo se frustraram. Em parte porque
as respostas até então obtidas não foram satisfatórias e,
em parte, porque nem todos acreditaram na sua ressur­
reição. Com isso, foi preciso encontrar respostas para as
novas perguntas. Havia cristãos com idéias em suas cabe­
ças, havia gente com experiências religiosas diferentes e
poucos eram os direcionamentos. Os próprios textos do
Novo Testamento apontam que não havia apenas uma li­
derança instituída.
O surgimento da teologia cristã se deu em meio às
questões dos cristãos primitivos, como respostas aos pro­
blemas daquele tempo e com as informações que se tinha
“à mão”. Havia judeus helenizados e convertidos, roma­
nos e gregos convertidos, cristãos da Síria e de Antioquia,
cristãos convictos, judeus simpatizantes, judeus oposito­
res e muitos outros.
O tempo era de grande efervescência, e é provável que
saibamos bem pouco desta época, já que são escassos os
relatos extrabíblicos acerca do primeiro século, e os escri­
tos que temos são intermediados por autores bíblicos ou
autoridades daquele tempo.
A teologia daquele século deve ter principiado nas
soleiras das casas, nas agriculturas dos camponeses, nas
Para Encerrar -Æ. 93
feiras-livres e nos comércios das pequenas aldeias onde
pescadores, artesãos, taberneiros, mulheres e crianças
circulavam todos os dias. Nas suas conversas, homens e
mulheres deveriam trocar impressões sobre os ensinos de
Jesus à luz. das histórias que ouviram de seus pais, judeus
antigos, e das experiências religiosas dos gregos, dos ro­
manos e de outros estrangeiros que se encontravam para
fazer negócios, nas idas ao Templo ou na hora de pagar
tributos.
Pequenos relatos de histórias antigas, citações cle ensi­
nos judaicos e associações com o que os nazarenos viviam
devem ter gerado muitas adesões e também recusas. Tais
possibilidades nos levam a entender que esses fazedores
de experiências impulsionaram o nascimento da teologia
com suas idéias de esperança, de salvação, de reino de
Deus e tantas outras sempre muito controvertidas.
Tantas controvérsias que permearam toda a Antigüida­
de até o período medieval e, finalmente, invadiram a épo­
ca contemporânea, tiveram seus inícios lá na diversidade
cristã do primeiro século. E foi a partir das experiências
religiosas quotidianas desses homens e dessas mulheres
que o cristianismo foi se tornando movimento e, poste­
riormente, uma das religiões mais importantes do mun­
do. Por causa desse brilho que ofusca e desvanece frente
às situações que se impõem dia a dia.
É provável que Deus continue a significar um enigma
e que toda tentativa de se fazer o discurso sobre Ele seja
sempre frustrada, dada a limitação humana. Mas é nesse
ponto que reside a beleza magistral da teologia: “no ins­
tante em que se crê ter terminado o edifício, tudo pode,
arbitrariamente, desvanecer-se no nada”.
A teologia, portanto, permanece sem definição porque
seu objeto permanece inominável.
Da d o s
B io g r á f ic o s
Elisa Rodrigues tem grande interesse por assuntos rela­
cionados à religião e à teologia. Ainda pequena era levada
para a igreja de seus pais católicos e participava da cate­
quese c das celebrações eucarísticas. Quando adolescen­
te, junto com a família, passou a freqüentar e fazer parte
da igreja batista com a qual mantém laços atualmente.
Em função das atividades que desenvolvia na área de edu­
cação religiosa da igreja e, principalmente, por causa da
paixão pelo cristianismo do I século, ingressou e concluiu
o curso de Bacharel em Teologia pela Faculdade Teológi­
ca Batista de São Paulo (1999). Depois disso, fez o mestra­
do em Ciências da Religião pela Universidade Metodista
de São Paulo, que concluiu em 2002, na área cle Litera­
tura e Religião do Mundo Bíblico (Novo Testamento) e,
atualmente, desenvolve sua pesquisa de doutorado na
mesma instituição.
Atualmente escreve artigos relacionados à religião e à
literatura do mundo bíblico em periódicos especializados.
Além disso, integra o Grupo de Pesquisa em Apocalíptica
Oracula, subsidiado pela FAPESP (Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo), e leciona disciplinas
relacionadas ao Novo Testamento como professora assis­
tente no curso de Teologia da UMESP.
Su g e s t õ e s d e
Le it u r a
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WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: Manual de exegese.
São Leopoldo: Sinodal e São Paulo: Paulus, 1998. 406p.
E q u ip e d e R e a l iz a ç ã o
C o o r d e n a d o r G f. r a l
Mauricio Bastos
C o n s u lto r E d ito r ia l
Israel Bei lo de Azevedo
C o o rd e n a d o ra E d ito ria l
Raquel Soares Fleischner

P r o d u t o r G r á f ic o
André Ubaldo
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P r o je t o G r a f ic o
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C apa
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P rep aração d e te x to
Valtair Miranda
S o b r e o l iv r o
R e v isã o
Adalberto A. de Souza C a te g o ria - Teologia
P re fá c io Fim d a e x e c u ç ã o
Israel Belo de Azevedo Dezembro 2004
I a EDIÇÃO
Abril 2005
F o r m a t o - 13,5 x 20 ,5 cm
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I m presso no B r a s il / P r in t e d in B r a z il
s discussões e os debates sobre teologia *..m
A vez mais comuns. Nos círculos acadêmico'. <>u .....
domínios públicos, se fala em teologia, se faz tonlni i >
se discute teologia.
No Brasil não poderia ser diferente, já que nov..i
tradições culturais estão diretamente ligadas à rdlni.in
e às expressões sagradas que se manifestam em todo1. <
grupos sociais, desde o descobrimento desta terra.
Portanto, não importa a pertença do individuo. •.<
é de origem indígena, negra ou branca, se é do g ê iv in
masculino ou feminino, se tem ou não dinheiro. O .r.
sunto teologia passeia por entre as gentes e permeln .1
cultura, seja ela erudita ou popular. Por isso, a teoloui 1
ultrapassa os limites impostos pelas paredes das Ig re h
e vai transbordar nas ruas, nas casas, nos bares, nos Ir
las de cinema, nas peças de teatro, nas mais diveivr
literaturas e em muitos outros espaços. A teologia rei
vindica para si o status de disciplina democrática, p<> 1
especialmente nos dias de hoje, está na boca de tod.r.
as pessoas.

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