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ON-LINE I : UU GRANDE SERTAO VEREDAS ~ Revista do Instituto Humanitas Unisinos TRAVESSIAS Ne 538 1 Ano XIX |:05/08/2019 Kathrin Roéenfidd "Adair de AguiarNeiizel Willi Bolle Eduardo Losso Marcia Marques de Morais ‘Terezinha Maria Pereira Leia também a Wilson Antonio Frezzatti Jr = Jodo Ladeira _ ravessia. Essa é a outra forma que Gui- ‘mardes Rosa encontrou de nos ensinar a cescrever e dizer a palavra vida. A iiltima palavra de sua obra Grande Sertdio: Veredas & que liga o fio do tempo, o passado ¢ o presente, de um Brasil, que tanto antes como agora, é 0 pais que poderia ter sido, mas munca foi. A jan- guncagem, para usar um termo do autor, é uma forma potitica presente em muitas instancias € nos joga diante de desafios e contradigdes enor- ‘mes. Pata tratar de literatura e do Brasil atual, ito especialistas se debrucam sobre a obra de Guimaraes Rosa. A capa desta edigio ¢ assinada pela artista Anna Cunha, Faustino Teixeira, professor ¢ pesquisador do Programa de Pés-Graduagio em Ciéncia da Religiio da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, faz uma apresentagio da obra em perspectiva com varios autores e leituras de Guimaraes Rosa, Kathrin Rosenfield, professora nos progra- ‘mas de pés-graduagio em Letras e em Filoso- fia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, fala sobre o dilaceramento exis- tencial brasileiro em Grande sertdo: veredas. “Um tereeiro alicerce para a tradicio imaginaria brasileira seria a recuperagao artistica da musi- calidade das falas regionais e das suas saborosas metaforas concretas.” Willi Bolle, professor titular de Literatura na Universidade de Sa0 Paulo - USP, lembra que “enquanto Gilberto Freyre usa o simbolo de um centrelagamento harmonioso ( & ) entre senho- res e escravos, Guimaraes Rosa, através dos dois pontos (: ) acentua 0 antagonismo entre os donos de territérios e casas ‘grandes’ ¢ os que ‘moram em casebres nas ‘veredas”. Mareia Marques de Morais, professora a Pontificia Universidade Catolica de Minas Gerais - PUC Minas, faz uma leitura da obra de Guimaraes Rosa em chave psicanalitica. “Gui- ‘maraes Rosa trata a linguagem, essa sim, a ver- dadeira protagonista de sua obra. Esse trato, para além de ser um trago lidico a apresentar desafios para o letor, piscadelas do autor em di- reco a seu leitor, é, sem diivida, propiciador do enlace entre literatura e psicanalise.” Eduardo de Faria Coutinho, um dos mais renomaddos acadlémicos em Literatura Compa- rada e professor titular da diseiplina na Uni- Grande Sertao: Veredas. Travessias versidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, cescreve sobre o convite ao pensar ético que Gui aries Rosa convoea. “Sufoeado por um eoti- diano calcado na continuidade, que se expres sa pela repetigéo mecinica de atos e gestos, 0 homem, ¢ em particular 0 adulto comum, nao perecbe a automatizacio a que se sujeita.” Adair de Aguiar Neitzel, professora titu- lar da Universidade do Vale do Itajai - Univa- Ii, discute as mulheres rosianas. “E pelas maos de Diadorim que Riobaldo passa do estado sico para 0 estético e deste para Moral. Mas € uma relagio marcada pela ambiguidade, con- tradigdo, angiistia de estar se envolvendo com um homem. Essa tensdo que se estabelece entre ambos, por conta de uma paixio impossivel na Jagungagem, torna esse amor uma neblina.” Eduardo Guerreiro Brito Losso, profes- sor associado de Teoria Literdria do Programa de Pos-Graduagdo em Ciéneia da Literatura da UERJ, relaciona a literatura de Guimaraes Rosa Amistica. ‘Terezinha Maria Scher Pereira, professo- ra da UFJF, relata a multiplicidade de Guima- ries Rosa. A presente edigdo ainda conta com o artigo de Joao Ladeira, em que analisa o filme Estou ‘me guardando para quando 0 carnaval che- gar (2019, de Marcelo Gomes); a entrevista intitulada A trama conceitual antimetafisica de ‘Nietzsche, concedida pelo professor da Univer- sidade Estadual do Oeste do Parana - Unioeste, Wilson Antonio Frezzatti Jr. A todas e a todos uma boa leitura ¢ uma exce- lente semana! 40 44 a7 56 58 61 63 Sumario Temas em destaque ‘Agenda Wilson Antonio Frezzatti Jr | A trama conceitual antimetafisica de Nietzsche Tema de capa | Ricardo Machado: Joo Guimardes Rosa, a Travessia Tema de capa | Faustino Teixeira: Grande sertao: veredas, uma epopeia metafisica, Tema de capa | Kathrin Rosenfield: Guimaraes Rosa: a vida na fissura do dilaceramento existencial brasileiro Tema de capa | Willi Bolle: Grande sertdo: veredas, 0 retrato de uma sociedade atual Tema de capa | Marcia Marques de Morais: © homem humano na literatura psicanaltica, de Grande sertao: veredas Tema de capa | Eduardo de Faria Coutinho: Para romper o mundo com as palavras pegantes de Riobaldo Tema de capa | Adair de Aguiar Neitzel: 0 amor, a vida e o encontro com as mulheres rosianas Tema de capa | Eduardo Guerreiro Brito Losso: Atar-se ao mastro para ouvir 0 canto mistico da sereia rosiana ‘Tema de capa | Terezinha Maria Scher Pereira: Multiplicidade de Rosa Cinema | Jodo Ladeira: 0 imperative das imagens Publicages | Luiz Gonzaga Belluzzo: 0 "velho capitalismo” ¢ seu félego para dominagao do tempo e do espago Outras edigdes atiig Fach, Cristina Guerin, ym leh, Stan) de Jesus Roh Chacombe) yy Rites Baar ri 2 eae = Cpordenador de Conus my ne Bee 7 Ricardo Machado ~ MTB 15.598/RS 5 SSN 1981-8769 (imprese) {SSN 1981-8799 (online) |ATITU On-Line és revista dotnet {ojHunmnita Unions TH. Rinias abatiowwicinuunisinad ore foenderego ww thle trsinos ‘oer esc Me Phone na balan 3 SAME UM os net cole etiam be) Epica 8°!" Wegner femandes de Arvo ‘ vans Revista, aaa Projet Grifico Rkioais Eaivora Weber Atualizagio dir do sitio inicio Nesting, Cesar Sanson, tos BT 3051/85, ‘nto Hamas Uso 17 Un 950 Lapa S “nage BE tevasem oestaque See eee IHU na iiltima semana. Confira algumas entrevistas publicadas no sitio do Instituto Humanitas Unisinos O descalabro da gestéo ambiental no Governo Bolsonaro “No exercicio do governo, segue cumprindo suas ‘promessas de campa- nha’. Mesmo néo eliminando o Ministério do Meio Ambiente, cedeu a pasta um ruralista corrupto e condenado pela Justica de Sao Paulo”. "| Alder Bourecheltjomalta esoecialzaco em Meo Ambient, Disponival om htp//btly/3nQ0 Oretorno a mais bruta selvageria e a falta de decoro para o exercicio da presidéncia “Se Bolsonaro sabe e sabia que o pai de Felipe nao foi morto do modo como 0 governo atestou, ele pode ter ferido 0 decoro do cargo e incidir no artigo 9°, da lei que trata do impeachment”. Lenio Steck, junta Disponivel em hap/bitiy/2GExOdh, Mina Guajiba e o sucateamento da fiscalizagdo ambiental “Forca-se, entdo, a liberagao ambiental a todo o custo. Como o estado estd sucateado e com capacidade de gestéo reduzida a um minimo, o mi- nerador teré campo livre para driblar leis”. Rualdo Menegat,gracuado em Geclogia, mest em Geociéncias e doutor em Ecologia Disponiv er hitp//tith/2C 1658 Acrise abriu caminho para a retomada radicalizada do neoliberalismo no Brasil “A crise marcou o retorno das politicas neoliberais no Brasil e no Rio Grande do Sul. Agora, estdo sendo propostas uma série de politicas neoli- berais para solucionar os problemas”. Adair Antonio Marquet, gracuada om Cenc Econdmicas, mest doxtor em Economia. Belo Monte dez anos depois e a continua precarizagdo dos modos de vida “A primeira consequéncia social, que salta aos olhos, é a inseguranca ali- mentar, seja pela redugdo do volume de peixes, seja pelas dificuldades de navegacao e locomocao”. ‘Sadi Macha, meste em Dike, procurador da Repbiica em Atria pe eeurtnec Chama Confira algumas noticias piblicas recentemente no sitio do Instituto Humanitas Unisinos ~ IHU Bolsonaro e “ruralistas” ameagam o meio ambiente, povos tradicionais eoclima global Os ruralistas, nomeada- ‘mente os grandes proprie- tdrios de terras e os seus representantes, que séo uma parte fundamental da base politica do novo presidente, estilo a avancar uma agen- da com impactos ambien- tais que se estendem a todo o mundo. ‘rig de Lucas Ferrante, blog © ‘outoranco em Exoiogia, ¢ Philp M. Feamside,pubicado nas Notas {do Dia de 2-08-2019, cisponivel em: npsbivyi2vioq.e. Nao somos mais Homo Sapiens. Entrevista com Yuval Noah Harari DNA modificado no labo- rat6rio, homens cyborg e de- sejos monitorados por mé- quinas. Este é 0 nosso futuro de acordo com o historiador ¢ ensaista israelense Yuval ‘Noah Harari. ‘entrevista € de Roberto Saviano, Fomalistae eseror alana, publicado for Republes traded pr usa Rabon eresroduzida nas Nesias do Dia de 31.07.2019, dsponive om Int Peicy/20r3n3y, No houve eleigaio e nao ha presidente. Artigo de Vladimir Safatle O que vimos foi simples- ‘mente um processo sem con- digdo alguma de preencher critérios basicos de legitimi- dade. Ou seja, uma farsa. Aigo de Vac Saft thsoto, publeado por El Pals ereprocuzdo has Noticias do Dia de 0108-2010, Aisponivel ern hp//itly/2S2iNox Um caso de satide mental e/ou de cumplicidade O Legislativo e 0 Judicidrio tém a obrigacao de intervir. Trata-se assim de um caso de saiide mental, absoluta- mente incompativel com 0 alto cargo que as eleicoes conferiram ao ex-capitao Jair Bolsonaro ‘Aig de Lu Alben Gomez de Souza publcade nas Noticias do Dia de 3007-2019, dspontvel em hp. iyrxerosn contestado. Destaques sobre a entrevis- ta do cardeal Hummes con- cedida a Antonio Spadaro, onde fala da “grandeza” des- te Sinodo que seré celebrado de 6 a 27 de outubro. Por- tanto, ¢ dbvio que na Igreja universal haja expectativa, ‘mesmo que aqui e ali ndo fal- tem resisténcias, até mesmo significativas. Comentiio de Antonio Dalz, ‘pulicado por Setimarna News et ‘uzdo por Luisa Rabolinreproduido tas Noticias do Dia de 01.08 2039, aporwel em: hp! /oy/2NyZLA Dia da sobrecarga e os limites da resiliéncia da Terra As agéncias econdmicas cal- culam que 0 PIB mundial vai ‘mais que dobrar nos préxi- ‘mos 30 anos. Mas a economia & um subsistema da ecologia 0 Planeta esté: chegando ao limite da sua capacidade de resitiéncia. Sem ECOlogia ‘do hé: ECOnomia. Mais cedo ‘ou mais tarde o sobrepeso das atividades antrépicas provo- ‘card um colapso ambiental. Entdo, seré impossivel con- tinuar antecipando 0 Dia da Sobrecarga da Terra. ‘Aigo de José Eustiquio Dine Aves [pubbeado por Ezodebateereprodu {nas Noticias do Dia se 27-7-2019, “sponte em hips ih/aAsT RR EAD: O Sinodo : Jesus € 0 Reino EAD: O Sinodo Pan-Amazonico e 0 no Evangelho Pan-Amaz6nico e 0 Cuidado da nossa de Marcos Cuidado da nossa Casa Comum Casa Comum Ea Ea Inicio das atividades Inicio das atividades da Inicio das atividades Modulo 1 = 4 Pan-Ama- primeira etapa: Jesus Modulo 2 — Sinodo sua importancia Tesponsvel pela vida no Pan-amazonico: ecoldgica para o planeta: Evangeiho de Marcos ‘compreendendo sua caracteristicas, riscos, (Mc 1, 1-45) ~ Inicio do proposta erspectivas (du A Pan vangelho de Marcos famazonia: entre a sobre- Jesus, o Mesias, ©25, vivencia e a devastagao) Ciativas messidnicas (Mer Ps) Oficinas ObservaSinos IHU ideias - Reforma EAD: O Sinodo - De Olho na Metropole: da previdéncia. Qual a Pan-Amaz6nico e 0 Dados e andlises sobre a reforma necessaria? Cuidado da nossa Regiao Metropolitana de Casa Comum Porto Alegre pesquisa BPE Et TEC Horatio Horario Inicio das atividades 4h as 17h 17h30min ds 19h Modulo 3 - A crise eco- - logica a luz da Enciclica Ministrantes Ministrante Laudato Si'e as ameacas prota. Dra. Marilene Maia — Prof, MS Filipe Costa Leiria Unisinos ~TCE:RS e FADERGS. joa "Saista Conceigao - Local Gathorme Tenher — Unisi- Sala Ignacio Ellacuria e Zompanhetros =IHU| P&mella Alkinson — Unisi- Campus Unisinos, nos, Sao Leopoldo ‘s , ECOFEIRA © ve Sp ythte. atvidades cuttureis todas as quartas aN a partir das 14h ihwunisinos.br/observasinos 2° IHU IDEIAS 15 de agosto quinta-feira . 17h30min as 19h Reforma da previdéncia. Qual a reforma necessaria? | A trama conceitual antimetafisica de Nietzsche Wilson Antonio Frezzatti Jr. relaciona Genealogia da Moral em perspectiva com temas relacionados as ciéncias Marcia Junges | Edigo: Ricardo Machado a miriade de leituras e aproxi- magies possiveis em Genea- logia da moral, de Nietzsche, suas relagdes com a Ciencia ensejam uma forma profunda de relacionar os temas, “Nietzsche nao utiliza simples- ‘mente as elementos cientiticos, mas os rrumina, digere eassimila conforme suas necessidacles filosificas, ou seja, cles 0 transformados articulados em sua tra- ‘ma conceitual antimetafisica”, pondera ‘Wilson Antonio Frezzatti Jr., em entre- ‘vista por e-mail 4 THU On-Line. Avido leitor, Nietzsche desenvolveu © conceito de fisiopsicologia a partir de conhecimentos baseados em diver- sos autores ligados as ciéncias naturais em perspectiva com seus interesses fi- loséficos. “A fisiopsicologia investiga, através de seus sintomas (as produ- es culturais), a condicdo impulsional (morfologia) e suas. transformacoes (desenvolvimento) de individuos ¢ de calturas. Em outras palavtas, trata-se de diagnosticar, eriticar e apontar sa- fdas para a decadéncia que Nietzsche acreditava atingir a cultura europeia de stia época”, explica o entrevistado. Articular os principais conceitos nietzschianos, ¢ fisiopsicologia ¢ um deles, apesar de aparecer uma tinica vez em sua obra, amplia a compre- ensfio de nogdes como vontade de poténcia, tio earacteristicas do pen- samento do filésofo alemao. “Talvez possamos dizer que 0 eterno retorno € mesmo a vontade de poténcia, em seu estatuto filoséfico, esto mais préximos da physis dos pré-socrati- cos do que da ciéncia do séeulo XIX. © motivo & que alguns dos filosofos pré-socraticos, segundo Nietzsche, ndo teriam uma concepcao moral de verdade absoluta e suas teorias apre- sentariam distintas perspectivas so- bre o mundo”, pontua. Wilson Antonio Frezzatti_Jr. é graduado em Farmacia e Filosofia pela Universidade de Sao Paulo - USP, onde também realizou mestrado e doutora- do, Atualmente ¢ professor na Univer- sidade Estadual do Oeste do Parané = Unioeste. Também é professor cola- borador do mestrado em Filosofia. da Universidade Estadual de M: UEM. E autor de Nietzsche contra Da- ‘win (Sao Paulo: Edigdes Loyola, 2014) A fisiologia de Nietzsche (Ku: Editora Unijui, 2006). Confira a entrevista. IHU On-Line ~ Quais sio os principais elementos cientifi- cos presentes na Genealogia? Wilson Antonio Frezzatti Jr. = Nietzsche sempre foi um Avido lei- tor de textos cientificos, e, em Gene- alogia da moral (1887), a presenca da ciéncia 6 axial, embora cla nio apareca apenas em uma tinica for= ma, sendo que hé até mesmo uma situagao paradoxal. Se, por um lado, filésofo alemao critica a eiéneia de sua época por ela ser perpassada pelo ideal aseétieo, pois niio consegue se livrar da verdade e do bem como valores supremos ¢ absolutes, por outro, essa mesma ciéneia 6 utiliza~ da na construc nao s6 do procedi- mento gencalogieo, mas também nas ‘concepcdes de vontade de poténcia e eterno retomo do mesmo. Porém, devemos ter em conta algo muito importante nesse uso de temas e teo- rias cientifieas: Nietzsche nao utiliza simplesmente os elementos cientifi- os, mas os rumina, digere eassimila conforme stias necessicades filos6fi- “Nietzsche nao utiliza simplesmente os elementos cientificos, mas os rumina, digere e assimila conforme suas necessidades filosdficas” ‘cas, ou seja, eles sio transformadose articulados em sua trama coneeitual antimetafisica. No século XIX, para alguns temas, ‘nao havia uma separacio nitida en- tre filosofia e ciéncia. Um exemplo disso ¢ 0 pensamento do filésofo Paul Rée': embora tenha se forma- do em medicina apenas em 1890, le ja eserevia sobre temas conside- rados cientificos desde pelo menos 1875 (Observagdes psicolégicas). De qualquer forma, considera-se que 0 procedimento genealégico assenta- se sobre 0 tripé psicologia, historia e filologia, entretanto também ébas- tante nitida, na obra, a presenga de aspectos da fisiologia, da biologia, da ‘medicina e da antropologia. ‘Nao podemos deixar de meneionar a exortagdo que Nietzsche faz no fi- nal da Primeira Dissertacao em uma nota: “a filosofia, a fisiologia e a me- icina em uma troca de perspectivas as mais amigaveis e fecundas”, pois “todas as ciéneias tém agora que preparar a tarefa futura do filésofo, sendo essa tarefa entendida como: filésofo deve resolver 0 problema do valor, cle deve determinar a hierar- quia de valores”. Portanto, 05 valo- res deveriam passar por tima investi- gacao fisiolégica on fisiopsicolégica, isto é, pela perspectiva da dinamica da vontade de poténeia, para revelar ‘qual seu valor, se serve para a ele- ‘vagao da cultura ou para a conserva- «a0 no imobilismo. Pet dig soir aay Weigh Rg Poa Re 140 dich Mute: Ata tm cami poe, (gen saree jee com Metab Stine) THU On-Line ~ Quais sio os autores fundamentais do cam- po da ciéncia com que Nietzs- che teve contato e que impac- tam as ideias desenvolvidas nessa obra? Wilson Antonio Frezzatti Jr. = Nietzsche nao explicita suas prin- cipais fontes cientiieas em Genea- logia da moral. Os autores citados, com uma tiniea excecao, sao critica- dos: a) naturalista inglés Charles Darwin’, citado quando 0 filésofo alemio ataca 0 darwinismo de Paul Rée em A origem dos sentimentos morais (1877); b) 0 filésofo inglés Herbert Spencer: apesar de ser um cientista, ele foi de central importin- cia para a recepgio das ideias de La- marek’ e Darwin. Nietzsche critica, Ghar: Darin Cres Foban Sa, sa. ‘twats renea popstar ots Sako ne ‘Safe ay coeur as me ge {vier Crsnans nat pw a» are Se Sachin gence cies gainpoce oe owes ments one pi orion ‘lanbete tm ou tan, Pm 002008» pees Sema Crna tn Pore Ragnar een tra sate orgy ds eas eos so maul o'r nip iat ‘Wibesio Gncine se 157.2008 ga e 76 oe ‘Bare poe 08 de 1 200 Soda er Dav gato 97 imran ner cae Grin herbert Spencer G06 ne ba es ‘ posen mr ape a ose or seams aio ans ‘Siero meta evecran En sO pr Unis ae fsa sete 085219, pon 3 ‘noe ope do cofactor ot {Gra mins coches hae: ean at {yond vanecn aoe Contant cess tecton 2 run ase ae an ao ngs Pk ens Scr cn ys ne eho ‘Sri sens eee (sm, Oe fres oo ‘giana G67 da MU Onn) ‘Soen-topte Fee Amaia de Monet Cevier eb 85) mls Pcs ue en em Spencer, a origem da concepcio de bem e sua nogio de adaptacao; ) © médico, antropélogo e patologista polonés Rudolf Virchows tem rejei- tadas stias conelusdes sobre a com= posigdo do povo alemio; d) O bid- Jogo inglés Thomas H. Huxley* fala de um certo niilismo em Spencer; € ©) Nietzsche, ao tratar do sacerdote aseético, traz do médico americano Silas Weir Mitchell” algumas consi- deragies sobre o jejum. Mais importantes para a Gene- alogia da moral sio suas apro- priagdes que nao tém suas fontes citadas. Aqui daremos destaque ao psicélogo e filésofo francés Thé- odule Ribot’, considerado pai da psicologia cientifiea francesa. Ha Sean: {abe sabe oc moles da Gace ce Pun ou one ee Sune sommes SRE coco mmm ene eee recenmrns ea nos arte oncing IP Ree eres Secure since atcha nce CE ac ote opens pre courses femoeen neaetaeees ieerigen oie ie ieeecaom sees eas ae eae Sneae Ses saaemeteninin ieee us st aes Conan Sanam mee tenes sa {eanae fm I5ED ents a fcse Nomalefaparaure Em scarce omntons eee ue Mneeee ore ee Feces eg See ame Sateen Spence nendi 10 ao menos duas nogdes de Ribot que aparecem na obra. Ao discor- rer sobre o éxtase religioso como hipnose e como aniquilagio da vontade, no parigrafo 17 da Ter- ceira Dissertagio, Nietzsche traz definigdes, mecanismos e exem- plos que estio em As doencas da vontade (1883). Outra obra de Ribot possui coincidéneias com © primero pardgrafo da Segunda Dissertagio: As doencas da me- méria (1881) desereve 0 esquer mento como uma funcio ativa. “Em outras pa- lavras, trata-se de diagnosticar, criticar e apon- tar saidas para a decadéncia que Nietzsche acreditava atin- gir a cultura europeia de sua época” IHU On-Line ~ Quais sio os ecos da ciéneia do século XIX na formulagio do conceito de vontade de poténcia? Wilson Antonio Frezzatti Jr. — Ha muitos aspectos da ciéneia do século XIX que sio importan- tes na construgao da concepgao de vontade de poténcia. Podemos citar vérios exemplos: 0 conceito de luta entre as menores partes do organismo animal do embrio- logista alemao Wilhelm Roux* (A luta das partes no organismo, 1881); 0 organismo como multi- ‘ei Rowe TEEIOE a mayo centile (geen! serio (Ne 6M Ow e plicidade, presente em autores como Roux, Ribot, Virchow ¢ 0 historiador francés Hippolyte Tai- ne"; 0 proceso organico ligado 20 transbordamento e nao a caréncia do bi6logo alemao William Rolph (Problemas Biolégicos, 1882); a concepcao energética da natureza a critica ao atomismo: William Thomson" (Lord Kelvin), Johann Vogt (4 forea: uma visio de mun- do real-monista, 1878), Ruggero Boscovich (Uma teoria de fitoso- fia natural, 1758) ¢ Karl Zoellner (A natureza dos Cometas, 1871); a forca interna plasmadora dos ‘organismos do z06logo suico Lu- ‘wig Riitimeyer; a consciéncia ‘como um conjunto de consciéneias menores do positivista francés Alfred Espinas (As. sociedades animais.1877); a auséneia de di- ferengas qualitativas entre o inor- ginico, o fisiolégico, o psicolégico © 0 cultural: em Ribot, essas dife- rengas sio explicadas por graus de complexidade de estruturas formadas por reagdes fisico-qui micas; ete. A rede de influéncias & realmente muito grande e envolve também teorias do desenvolvi- mento de cunho lamarckista e a recusa da dualidade corpo/alma. Todas essas influéncias, de algu- ‘ma forma, trazem aspectos contra ‘a metafisica da dualidade de opos- tos absolutos e eternos. Por vezes, termos sio desterritorializados ¢ Saat Seeeorccnmene campeender @ home 3 Gees tres deren Feed mcs Scorsese career Suave weer Sees iene aetna” rarely Ps Sees ie emenmies een sean genet Ec ta ty ee eee me a, iene Paces Sosa eens Eoescen carom Seviesefen fcc apropriados pelo fildsofo alemao; por exemplo: o termo “centro de gravidade” na luta dos impulsos por mais poténcia foi transposto da disputa entre os arcos reflexos de Ribot e seu efeito como perso- nalidade e vontade. IHU On-Line - Embora a ter- minologia fisiopsicologia nao seja usada diretamente por Nietzsche, ela € indispensavel para entendermos 0 pensa- mento desse filésofo. Poderia explicar qual é 0 significado da fisiopsicologia? Wilson Antonio Frezzatti Jr. = 0 termo “fisiopsicologia (Physio -Psychologie)” foi utilizado apenas uma (nica vez na obra publicada de Nietzsche. O parigrafo 23 de Além de bem e mal define o que, para 0 filosofo, 6 uma verdadeira fisiop- sicologia: “morfologia e doutrina do desenvolvimento da vontade de poténcia (Morphologie und Entwi- cklungslehre des Willens zur Ma- cht)". 4 investigacio fisiopsicolé- zea infere, a partir das produgdes culturais (arte, filosofia, ciéncia, politica, etc.), a condigao fisiol6- ica ow fisiopsicolégica ou ainda impulsional do organismo. Orga- nismo é entendido aqui como qual- ‘quer conjunto de impulsos ou for- ‘cas em luta por mais poténeia, seja um individuo, seja uma cultura ou sociedade. O critério para tipificar a condigdo impulsional é a propria vida, ou melhor, a vida segundo a concepgao nietzschiana: proceso continuo de autossuperagio. Se a produgdo afirma a vida, como, por exemplo, a propria filosofia nietzschiana, ela é sintoma de um conjunto de’ impulsos potentes altamente hierarquizados: trata-se de um organismo saudavel; se, a0 contririo, a producdo nega a vida enquanto proceso continuo de au- tossuperacdo, como faz, por exem- plo, a filosofia soerética, temos um organismo com impulsos pouco potentes ¢ fracamente hierarquiz dos, ou seja, morbidade. Assim, a fisiopsicologia investiga, através de seus sintomas (as producdes cultt- rais), a condigdo impulsional (mor- fologia) suas _transformagdes (desenvolvimento) de individuos e de culturas. Em outras palavras, trata-se de diagnosticar, criticar e apontar saidas para a decadéncia que Nietzsche acreditava atingir a cultura europeia de sua época Embora 0 termo “fisiopsicolo- sia” aparega apenas uma vex na ‘obra publicada, acreditamos que © procedimento genealdgico é um desenvolvimento direto do que é proposto no pariigrafo 23 de Além de bem e mal. E nao apenas a Ge- nealogia da moral: pensamos que 0 caso Wagner, “O problema de ‘Sécrates” e “Consideracdes de um extempordineo” de Creptisculo dos fdolos © mesmo O anticristo sao aplicagoes da investigacdo fisiopsi- col6gica conforme uma morfologia € doutrina do desenvolvimento da vontade de poténcia. IHU On-Line — Em que medi- da a fisiopsicologia ajuda a ex- plicar o carater fisiolégico da vontade de poténcia, mas tam- bém sua abertura a um outro agir, niio determinado? Wilson Antonio Frezzatti Jr. — A palavra “fisiologia’, no contex- to da vontade de poténcia, tem um sentido propriamente. nietzschia- no: a dindmica da luta dos impulsos ‘ou foreas por mais poténeia. Iss0 quer dizer que o significado pro- priamente nietzschiano de fisiolo- ‘gia nfo implica, de forma alguma, em um reducionismo material, bio- Togico ou fisico-quimico, pois um impulso ou forga 6 um quantum de poténeia que é, a0 mesmo tem- Wés° JESUS core po, uma tendéncia ao crescimen- to dessa quantidade. O Trieb © a Kraft nietzschiana nio existem de forma isolada, efetivam-se apenas na relagio com outras quantidades de poténeia, Portanto, a fisiologia nietzschiana é marcada pelo pro- cesso, pela relacdo e pela multipli- cidade, ou seja, um vir-a-ser sem direcdo e finalidade. Os aumentos € as diminuigdes de poténcia e a configuragio de impulsos ocorrem a0 acaso, nao sao predetermina- dos. 0 eterno retorno do mesmo & resultado desse acaso: como, para Nietzsche, as quantidades de po- téncia e de forcas sio finitas e 0 tempo é infinito, necessariamente, depois de um tempo inerivelmente longo, as configuragées de forcas se repetirio na mesma ordem in- finitas vezes. Assim, com essa con- cepcao, Nietzsche imbrica acaso necessidade. Voltando aos termos “fisiologia” © “fisiopsicologia”, pereebemos que, muitas vezes, na doutrina da vontade de poténcia, eles se refe- rem A dinamica da luta dos impul- sos por mais poténcia. 0 mesmo ocorre com 0 termo “psicologia”. Assim, os termos “fisiologia”, “psi- cologia” e “fisiopsicologia”, em seus sentidos propriamente niet- uschianos e no contexto da von- tade de poténcia, sao sindnimos. Contudo, parece-nos que “fisiopsi- cologia” indica algo muito impor- tante: os impulsos ou forgas nfo sdo nem corporais nem animicos, ou seja, nao so nem res extensa nem res cogitans, pois sao proces- sos de crescimento de quantidade de poténcia. Enfim, a composi¢io “fisio + psicologia” mostra a supe GioED oy no Evangelho de Marcos ragio, ou a0 menos a tentativa, da dualidade corpo/alma. Destarte a nossa preferéncia por esse termo. IHU On-Line - E quanto a questo do eterno retorno, em que sentido Nietzsche dialoga com a ciéncia antiga e aquela de seu tempo ao propor essa ideia? Wilson Antonio Frezzatti ‘Jr. — Nietzsche dialoga, em sua construgio da nocao de eterno retorno, com tradigdes filosé- fieas antigas, tais como Empé- docles, Heraclito, o estoieismo € 0 hinduismo, Talvez possa- mos dizer que 0 eterno retorno mesmo a vontade de potén- cia, em seu estatuto filoséfico, estio mais proximos da physis dos pré-soeriticos do que da ci- éneia do séeulo XIX. 0 motivo 6 que alguns dos filésofos pré- soeriticos, segundo Nietzsche, nao teriam uma concepedo mo- ral de verdade absoluta e suas teorias apresentariam distintas perspectivas sobre o mundo. Na ciéneia de sua época, podemos destacar, além das leituras so- re as concepgoes energéticas da natureza, 0 historiador € filésofo alemao Otto Caspari'® (A cone- 2xdo das coisas, 1881) ¢ o francés Louis Auguste Blanqui® (A eter- nidade pelos astros, 1872). Scooeorcar nate te ieee or eee Gyan Siam feo ake ino. 1 Joao Guimaraes Rosa, a Travessia Ricardo Machado Companhia das Letras, 2019), de Guimaraes Rosa, uma das maiores obras da literatura nacional. Menos que uma resposta a questo existencial do livro, a Travessia entrelaga filosofia ¢ literatura, mistica € politica, vida e fiecao. Guimaraes Rosa é um daqueles autores capazes de fundir a tradigao da literatura oeidental a0 regionalismo do sertao brasileiro, O lan- ‘camento da primeira edigio do livro foi em 1956, ¢ em janeiro do ano seguinte Afonso Arinos de Melo Franco publicou, no Suplemento da Tribuma da Imprensa, o seguinte texto. Ess -é homem humano, Travessia, Assim se encerra Grande sertdo: veredas (Sao Paulo: Cuidado com este livro ~ dizia eu a um traumatizado legionfiio do Norte —,euidado, E completei a adverténeia com esta imagem: Grande Sertio é ‘como certos casardes velhos, certas igrejas cheias de sombra. No princt. pio, a gente entra e now nada. $6 contornos confasos, movimentos inde isos, planos atormentados. Mas, aos potcos, no luz nova que chegaz ‘visd0 que se habitua. E, com ela, eompreensio admirativa. Oimprudente ‘ou sai logo, e perde o que nao viu, ou resmunga contra a escuridio, pra- ‘gueja, da rabanadas e pontapés. Entao arrisca se chocar inadvertidamente ‘contra coisas que, depois, ilentificaré como muito belas.. Apresentar Guimaries Rosa nao é tarefa para apenas uma ou duas psiginas. Por isso 0 que fazemos neste breve texto é trazer & tona elementos introdutérios sobre esse escritor brasileiro que rompeu fronteiras geogrificas,literdrias e tedrieas. Melhor apresentacio fazem os oito en- trevistados da edicio que, ao abordar Grande sertdo: veredas, em particular, ¢ a obra rosiana, em sentido amplo, dialogam com as miiltiplas dimensdes do autor. Breve biografia Joo Guimariies Rosa nasceu na pequeni- na cidade de Cordisburgo, em 27 de junho de 1908. Multifacetado e erudito, falava portu- gués, alemdo, francés, inglés, espanhol, ita- liano, esperanto, um pouco de russo. Além de romances, foi mé- e diplomata brasileiro, tendo trabalhado na Europa ena América Latina. Oscontos e romanees escritos por Guimaries Rosa ambientam-se quase todos no chamado sertio brasileiro, A sua obra destaca-se, s0- bretudo, pelas inovagies de linguagem, sendo mareada pela infiuéneia de falares populares e regionais que, somadas a erudicao do autor, permitiram a criagio de infimeros voedbulos a partir de arcaismos e palavras populares, inven- Bes € intervengoes semanticas e sintiticas. Foi cleito membro da Academia Brasileira de Letras em 6 de agosto de 1963, sendo o terceiro ‘ocupante da eadeira n° 2, que tem como patrono Alvares de Azevedo. Morret na cidade do Rio de Janeiro em 1967. Obras 1936: Magma 1946: Sagarana 1952: Com 0 Vaqueiro Mariano 1956: Conpo de Baile: Noites do Sertao 1956: Grande Sertéio: Veredas 1962: Primeiras Estérias 1964: Campo Geral 1967: Tutaméia — Tereeiras Estérias 1969: Estas Estérias (péstumo) 1970: Ave, Palawra (péstumo) 2011: Antes das Primeiras Est6rias (péstumo) EdigSes da Revista IHU On-Line sobre literatura - Joao Simbes Lopes Neto: forca da literatura bras 73, de 1-9-2003, disponivel em http://bit-ly/ihuon73. ¢latino-americana. Edicio - Erico Verissimo. Vida, obra ¢ atualidade. Edicio 154, de 5-0-2005, disponivel em http://bit.ly/iuoms4, ~Sertio é do tamanho do mundo. 50 anos da obra de Joao Guimaraes Rosa. Edigio 178, de 2-5-2006, disponivel em http:/ /bity/ihuon178. - Jorge Luis Borges. A virtude da ironia na sala de espera do mistério. Edicio 193, de 28-8-2006, disponivel em http://bit.ly/ihuon193. - Fiédor Dostoiévski: pelos subterraneos do ser humano. Edicio 195, de 11-9- 2006, disponivel em http://bit.ly/ihuon195. - Cem anos de solidao. Realidade, fantasia e atualidade: os 40 anos da obra de Gabriel Gareia Marquez. Edicio 221, de 28-5-2007, disponivel em h http: //bitly/2XIheql - Rami. O poeta € mistico da danga do Amor € da Unidade. Ediglo 222, de 4 disponivel em http://bity/2FS07a0. - Clarice Lispector. Uma pomba na busea eterna pelo ninho. Edigio 228, de 16-7- 2007, disponivel em http:/ /bit.ly/2XmaLKS - Carlos Drummond de Andrade: 0 poeta ¢ escritor que detinha o sentimento do mundo. Fdigdo 232, de 20-8-2007, dispontvel em http://bity/2KVkudd. - Antonio Vieira, Imperador da lingua portuguesa, Edi nivel em http://bit.ly/309TgmA. - Obelo eo verdadeiro. A tensa e miitua relagao entre literatura e teologia. Edicio 251, de 17-3-2008, disponivel em http://bit-by/2XIhvat. - Machado de Assis: um conhecedor da alma humana. Edicio 262, de 16-6-2008, dis- ponivel em http: //bit.ly/2Xlhvat. = Macunaima: 80 anos depois. Ainda um personagem para pensar 0 Brasil. Edicio 268, de 1-8-2008, dispontvel em http://bit.ly/2FQIWAR. - Monteiro Lobato: interlocutor do mundo. Edigio 284, de 1-12-2008, disponivel em htp://bit.ly/2JpM4Mo. ~ A secura do sertio nos versos de Joao Cabral de Melo Neto. Edicio 310, de 5-10- 2009, disponivel em http://bitly/32ayl1YW. - Euclides da Cunha e Celso Furtado. Demiurgos do Brasil. Edigio 317, de 30-11- 2009, disponivel em http: /bitly/2¥rCsHk. - Direito & Literatura. A vida imita a arte. Edigio 444, de 2-6-2014, disponivel em http://bit.ly/2Nvtx60. -2007, 10 244, de 19-11-2007, dispo- 13 Grande sertao: veredas, uma epopeia metafisica Faustino Teixeira ~ PPCIR/UFJF “Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor” (GSV: 209) “Partindo da chave metafisica para a compreenstio da obra, pode-se dizer, com base na reflexao de Antonio Can- dido, que o sertio representa © mundo ¢ os jagungos cada um dos seres humanos. Como diz o velho Tatarana, ‘o ser- tio esta em toda a parte’ (GSV: 13), ele ‘“é dentro da gente’ (GSV: 224)", esereve Faustino Teixeira. Faustino Teixeira ¢ professor e pesquisador do Progra- ma de P6s-Graduacio em Ciéncia da Religido da Universi- dade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais - PPCIR-UFJF. E doutor e pés-doutor em Teologia pela Pontificia Uni- versidade Gregoriana, de Roma, & autor de Caminhos da mistica (Sao Paulo: Paulinas, 2018), Em que Creio Eu (So Paulo: Tereeira Via, 2017), Finitude e Mistério. Mistica e Literatura Moderna (Rio de Janeiro: Mauad, 2014). Tam- bém organizou, entre outros, Nas teias da delicadeza (Sio Paulo: Paulina, 2006), As religides no Brasil: continuida- des e rupturas (Petropolis: Vozes, 2006), este em parceria com Renata Menezes, e As oragées da humanidade (Petr6- polis: Vozes, 2018), em parceria com Volney Berkenbrock. Eis o texto. ‘Sem diivida, estamos diante de uma das mais importantes realizagdes da literatura brasileira no séeulo XX, com destaque essencial na literatura mundial. Trata-se da obra de Guimaries Rosa (1908-1967), Grande sertao: veredas' (Sao Paulo: Companhia das Letras, 2019). Veio recente ‘mente reeditado no Brasil pela Companhia das Letras, em sua 224 edicio. Em Ambito internacio- nal, o livro ganhou muitas edigées, com destaque para a traducko alema*, com diversas edigdes sucessivas: bem como a reconhecida tradugio italiana’, com quatorze edigbes publicadas, Como mostrou Walnice Nogueira Galvio, “Guimardes Rosa é tinico na literatura brasileira: foi em sua pena que nossa lingua literdria aleancou seu mais alto patamar”. O romancista con seguiu com sua obra tocar o “centro da lingua”, recorrendo com grande criatividade e ousadia mais ampla “utilizagao de virtualidades” da narrativa portuguesa’. Ha algo de misterioso € rmistico em GSV, revelando uma parceria singular entre autor e obra, como um “casal de aman- tes”. Em entrevista a Giinter Lorenz, em janeiro de 1965, Rosa dizia que “o bom escritor é um arquiteto da alma”. Sem diivida, sua relagio com a linguagem tem um toque mistico, de mis rio, que carrega um jeito peculiar de ruminagio da palavra que o mantém em alerta por horas ou dias’. Da‘a grande dificuldade de traduzi-lo para ontras linguas. Algo desse mistério se perde ‘are da om on So ae 2 Reecontean ele de Crt ge Cl 3 en cosa ma ve do lh reac pe atl il pe ts Mana ie aie loa do ste) SIeatnt por Eau zo Fe Edw Mer do aay ‘ee rma nb aru Ce ase fbb ea? sto) throm Gra a ear RO Fp rs No Ae 203 9 ott Tem p.m oa do aon REVISTAIHU ON-LINE na teenicidade da versio para outro idioma. E Rosa assinala que quando a divida o assoma, ele busca resposta nao entre os doutos professores, mas entre os vaqueiros de Minas Gerais, “que io todos homens atilados™. Grande sertdo: veredas foi publicado em 1956, mas seu primeiro rascunho ficou pronto em julho de 1954. O niimero de paginas varia conforme a edigio e a diagramagio. Tomando como referéncia a quinta ediglo, de 1967, que foi atiltima publicada em vida do autor, sio 460 piigi- nas, ¢ a 224 edigio tem 435 paginas’. Nelas habita a forga de uma linguagem dotada de vida “compromisso de coragao”, algando a reflexio a grandes labirintos metafisicos, com eriagio fantasia, sem romper, porém, com a dinimica do quotidiano. Ainda recorrendo 4 entrevista com Giinter Lorenz, Rosa sublinha a dimensio de “infinito” presente na sua reflexo', mas que re- toma sempre ao dia a dia: “Na literatura, a fantasia nos devolve sempre enriquecidos a realidade do quotidiano, onde se tecem os fios da nossa treva e da nossa luz, no destino que nos cabe". 0 personagem Zé Bebelo em GSV assinala: “A gente tem de sair do sertio! Mas s6 se sai do sertio 6tomando conta dele a dentro..” (GSV: 202). Por ocasido do langamento da nova edigao de GSV pela Companhia das Letras (2019), Mia Couto” dizia que nesta obra “encontrot o retrato mais fiel do Brasil”s e que poderia, perfeitamente, ser escrita no tempo atwal. O omancista Tecorrett ao linguajar regional “para fazer um texto universal”, com linguagem inovadora’. Nao é um livro de facil leitura, ha que reconhecer. Isso em razaio da peculiaridade da dinamica da narrativa. Em verdade, um mondlogo que retrata a interlocugao do velho jagungo Riobaldo Tatarana com um homem da cidade. Nessa conversa, Riobaldo passa em revista o seu passado, 05 sets temores, as stas crencas ¢ 0 seu mundo. A conversa é realizada mediante tm curso de “associagdes de uma mente atormentada refletindo sobre algo que tende a Ihe escapar, mas que aflora nas imagens do deménio, do sertio, do bem e do mal, na mencio de bichos e pedras e de plantas, na evocagio de acontecimentos corriqueiros on excepeionais”. Hi que ter disciplina e paciéneia para a leitura do livro, O seu acesso & complexo, como lem- bbram Mia Couto e Fernando Sabino*. Como diz ese tltimo autor, “no principio, dez primeiras piiginas, é meio assim-assim, custa um pouo a engrenar, mas de repente a gente se embala no ritmo dele e nfo larga mais". Quando se entra na sintonia do livro, o maravilhamento toma 0 leitor, como no caso de Clarice Lispector: “Nunca vi coisa assim! Fa coisa mais linda dos tiltimos tempos (..). 0 livroesté me dando uma reconciliagio com tudo, me explicando coisas adivinha- das, enriquecendo tudo" No processo de interlocugio com o senhor da cidade, Riobaldo expressa sua dificuldade de narragio:“Contar é muito, muito difcultoso, Nao pelos anos que se passaram. Mas pela asticia, que tém certas coisas passadas ~ de fazer balancé, de se remexerem dos lugares” (GSV: 136). Ea obra vai se desenrolando num marco de ambiguidades que sio impactantes: no campo da eografia, dos tipos sociais, das afetvidades, das erengas e, sobretudo, da reflex metaisica. A ambiguidade metafsica revel, talver,o panto nevrilgico da obra, como sinaliza Antonio Candi- do: “Ambiguidade metafisica, que balanga Riobaldo entre Deus © 0 Diabo, entre a realidade ea {aid Uma wt de peruncinatn aoe uate na Sees a ea Su ha SPEER Cor eco era ‘ines oso fo Due cades oP pe 45 eta ose? icin eras pact oncom nrc fin onsen 11 dnowo OOO ee ante Sio Paul: Coneaba Ector Nasr, 571 p19(cpo 0 ham do mae Nota oat) 12 Mis at 199) ponumo te Aino ate Camo Bea ago este magus Cora does a pra {era hiogeun sera aan et palm sur htoe es mcr ng pags cm ea ones ea SESS {aE que ston Soles eit 54 coma ee oa WAR BOLE. Gunde rab. 23 Nota do ar) ‘Wt fata exafacoms scutes ouose0 bas arse andes eee OTL, Oa So a0 1 Frmando ours Sabine (3:3 2a se oats bane dso uted ee emcee pl ‘onpomtar esas cn ts MU Onin ‘7 evans ABW Caras asmatees ROSA Cd see eet 229430 ta ata) 1s Gare ispecTOR Coss Guimaraes ROSA. Groce se vere, 22rd OG) 1 homie Can de Mato «Scum 01 207) mt ane nue un oma muses pra egos Cat, om Mee cate tose ents mn esa enueetn apa a crncntrara sa um Soran nia ete re ‘eienot nets denne ashe ni US ods onan adel n-ne ccs ace Fst ates Ca rans “LCM dh USP pe 5 ns (142 192) Cano um Sos papas perso ds 5s estas sre fm do Bost Ru {Pete © once anor a Seo 58 wna snaenac ina a ue era om canes 1962 {Stcckew etl de lare-sacein com ee las oe Mets Cac Ss Rosen 354 rad dsr Cats Saas or ‘ese Pron do a Bato Na Uren tance ages Una ceo de Sor hora can pss na USP = ra ros mee como prsor do cas de spi 08 on em he oe ams ese Fico esa Ce 81-9 ‘etre nade ss ecaetcs see omits ers ete aun. Condo anodontia ama Pa de anh (Ast urd to Put 15-7, 956s Supra Lava Car de sou cea oon © Eta eS Pa tt {See nnn pata prpo icons atu dose oe up canon ree de Resets eh porta {vaio se atanadee Pte news ob mae ers, emcan Go ier ree, Cos aoe panes a 15 diivida do pacto, dando-Ihe o cariter de iniciado no mal para chegar ao bem”, ‘Um dos maiores classicos na abordagem de GSV é Manuel Cavaleanti Proenga, que esereveu 0 livro, Trilhas no grande sertdo, em 1958". Ele distingue duas linhas paralelas na obra assinala- da: uma objetiva, que aborda o itinerdrio de andancas e combates; e outa subjetiva, que sinaliza as “marchas e contramarchas de um espirito estranhamente mistico, ascilando entre Deus e 0 Diabo™. Tudo pode ser tragado em sete partes constitutivas, como mostrou Willi Bolle, em sua obra capital sobre o livro, com inicio na situago narrativa de apresentagdo do personagem, passando pela sua dinimica iniciatica na travessia do Sao Francisco, ¢ abrindo o eampo de sua longa epopeia pelo sertio, na vivencia de seus amores e embates até, por fim, largar a jagunga- _gem**. O Rio Sao Francisco serve também como um referencial, refletindo as duas partes da vida do jagungo Riobaldo, qualitativamente diversas: O lado direito “6 o fasto; nefasto o esquerdo. Na margem direita a topogeafia pa- rece mais nitida; as relagdes, mais normais. Margem do grande chefe justiceiro Joca Ramiro; do artimanhoso Zé Bebelo; da vida normal no Curralinho; da amizade ainda reta (apesar da revelagio de Guararava- ‘ea do Guaicui) por Diadorim, mulher travestida de homem. Na margem cesquerda a topografia parece fugidia, passando a cada instante para 0 imagindrio, em sincronia com os fatos estranhos e desencontrados que 1a sucedem. Margem da vinganea e da dor, do terrivel Hermégenes e seu reduto no alto Cariranha; das tentagdes obscuras; das povoagoes fantas- ‘ais; do pacto com o diabo"™. Partindo da chave metafisica para a compreensiio da obra, pode-se dizer, com base na reflexio de Antonio Candido, que o sertio representa o mundo e os jagungos cada um dos seres huma- nos. Como diz.ovelho Tatarana, “o sertao esta em toda a parte” (GSV: 13), ele “é dentro da gente” (GSV: 224). 0 serio é um “microcosmo” que retrata uma dinamica universal. 0 que tradu7.0 plano subjetivo da narrativa, “constituido pelos conflitos interiores ¢ a perquirico metafisica do protagonista, pois tanto estes conflitos quanto a busca por ele empreendida do sentido da vida sao preocupacoes tniversais que ultrapassam as barreiras de uma regio geogrifiea espectfi- ca™, Como elementos estruturais que delineiam a composicdo da obra estao a terra, © homem ealuta’. Em confidéncia ao seu tradutor italiano, Edoardo Bizzarvi, Guimaries Rosa assinala que “no bbalango dos componentes de sua narrativa, atribufa somente um ponto ‘a realidade sertaneja’, dois a0 enredo, trés A poesia, ¢ 0 mais alto, quatro, ao elemento metafisico e religioso™ A obra 6 uma epopeia existencial, ¢ traz impressionantes registros da regi desenrola: onde a luta se “A experidneia documentiria de Guimaries Rosa, a observagio da vida sertaneja, a paixio pela coisa e pelo nome da coisa, a eapacidade ‘de entrar na psicologia do ristico, — tudo se transformou em significado universal gragas a invencio, que subtrai o livro a matriz regional para {fazé-lo exprimir os grandes lugares comuns, sem os quais a arte no so- brevive: dor, tibilo, 6dio, amor, morte, para cuja drbita nos arrasta a ‘cada instante, mostrando que o pitoresco é acessrio e que na verdade ‘Sertio éo Mundo">. ‘Belang oa aca pare € ao as UORT 8 Dearne Ta DT Sre Cand, confer 6 ers itn toro cus poi ona foro usu Oe-ine 27 30 ann eo sisny «eens Canc w 3 ert itr concn” ones par Cia Pca SH Ovi e208 apo fnesgo (tah MU OnLine 2ohmotig ean Tae nts 15135. ta down HNC es uj a ac Dept emp ace 58 end Urweraae de tocun/Nemara ca wnt sobre crc yrs de Camas Rom 23 e-em ates he a US) on Uso vter seminars epee wens fancy nasa esa ares car scgene Seer ena Neue Siofaus tc prea net 200) = [snennancr Sor Sasa cin nce ones arom flee 5 Aerio aNIOa Fewer p21 Joo) esas NES os agra ane Leeann san om amare oma sto Pts ts 7011p abe ees otro CANGIO fe eae p. 123 aS aa) Bene NONES A faa 0 que Cc Rap. 5 ts 6 ut) Rone CxN:00 one pa ae Eon? C2UTRMO Em so ec mar p18. tn) REVISTAIHU ON-LINE O teitoratento depara-se com uma singular riqueza de detalles apresentados pelo autor, como a topogratia da regio, os infimeros rios, as listas infindves de animais, passaros e plantas pre- sentes na Area O registro capta ainda as creneas populares ¢ 0s habitos culturais, as comidas e 0 1isticismo que impregnam a narragio. Sobre isso vale debrucar-se nas lindas descrigSes feitas por Cavalcanti Proenca ao tratar do plano mitico do livro: a presenca e o significado das éguas, dos rios, em particular do Urueuia; do significado dos ventos, outro personagem constante no livro; dos buritis e do Mar, que guarda o grande segredo, 0 mistério da vida e da morte®. A grande questi disposta no livro é aquela que acompanha o itinerario de Riobaldo: existe ou 1nio o Demo? Para onarrador, a grande questao "éa existéncia dele: existe ou nao? Em principio, sente que é um nome atribuido parte torva da alma”»., Na conversa com o interlocutor, Riobal- do esclarece: “Explico ao senhor: 0 diabo vige dentro do homem, os crespos do homem — ot 60 hhomem arruinado, ou o homem dos avessos” (GSV: 15)". Esses confltos de Riobaldo no plano subjetivo correspondem nitidamente aos conflitos universais pelos quais passa todo ser huma- no. Nao hi quem nao tenha essa ambiguidade dentro de si. Faz parte do drama de estar situado zno mundo, da busea do “sentido da vida". So dramas humanos que Guimaraes Rosa, com sta arte, consegue sensiilizar 0 leitor: “As mesmas perplexidades, as mesmas dificuldades enfrentadas por cle (Riobaldo) chegam até ao leitor com a mesma forca e conturbadas pelas _mesmas diividas, gracas 4 superior eapacidade com que instalou dentro dos signos linguisticos 0 mundo em processo, realizando-se dinamica~ mente, para que o leitor o enfrentasse com instrumentos equivalentes (© que busca fazer Guimaraes Rosa em sua narrativa, como ele mesmo expressou para Curt ‘Meyer-Clason, é “rodear e devassar um pouquinho 0 mistério edsmico, esta coisa movente, re belde a qualquer légica, que é a chamada ‘realidade’, que é a gente mesmo, mundo, a vida” Conforme diz Tatarana, “o real nao esté na safda nem na chegada: ele se dispde para a gente & ‘no meio da travessia” (GSV: 53). ssa travessia se dino sertio. f ali que Guimaraes Rosa insere a epopeia de Riobaldo. Trata-se de ‘um conceito que nose limita i sua configuragio geogrifica, mas a uma “regio miiltipla eambigua”, ‘que abriga “os clementos mais contradit6rios, tais eomo ‘confsfo’e‘sossego’ esobretudo“Dens' ¢ 0 “Demo”, No ambito geogritien, o sertao de Guimaraes Rosa envoive o noroeste de Minas Gerais, 0 sudoeste da Bahia eo sudeste de Goids, Impressiona o trabalho realizado por Guimaraes Rosa e sta preocupacdo de veracidade. Das cerca de 230 localidades citadas em GSY, 180 foram localizadas pela pesquisa de Alan Viggiano”. Como aponta esse autor, “todos s ros, vilas, serras, caminhos, veredas, io localiziveis, Inclusive as cidades que, de um modo ou outro, entram nas narrativas™*. O clima ‘a ambientagio do livro podem ser captados por quem vigja de carro do Distrito Federal cidade de Belo Horizonte: “Nao 560 dima fisico e emocional das est6rias de Guimariies Rosa, como os proprios znomes de lugares usados por ele na concepgio de seus enredos. E natural. Aquela estrada corta, em sentido diagonal descendente, de noroeste para sudeste, 0 territério do Sertio”». 0 sertdo de Guimaraes Rosa é, simultaneamente real e fantéstico, “onde a brutalidade impoe téenicas brutais de viver, onde os fendmenos de possessaio religiosa, gerando beatos ¢fansticos, ) sae Tass 25 DEAGOSTO| 2019 REVSTAINU ON-LINE O homem humano na literatura psicanalitica de Grande sertao: veredas A professora e pesquisadora Marcia Marques de Morais analisa a obra de Guimaraes Rosa em perspectiva com a psicanélis ampliando os mundos desse classico da literatura mundial Ricardo Machado ccessar 0 subterraneo da obra ro-_Apesar de todas essas profiundas cama- iana, em suia complexa teia sub etiva, ¢tarefa sempre incompleta, mas iluminadora sobre a forga de uma literatura que se traduz na duplicidade centre o regionalismo ¢ 0 universal. “Gui- mares Rosa trata a Tinguagem, essa sim, a verdadeira protagonista de stia obra. Esse trato, para além de ser um trago hi- ico a apresentar desafios para o leitor, piseadelas do autor em diregdo a seu lei- tor, 6 sem diivida, propiciador do enlace centre literatura e psicaniise, no privilé- sso do signifcante a potencializar signifi ‘ados”, desereve a professora e pesquisa- dora Marcia Marques de Morais. Ha, contudo, uma chave de leitura psicanalitica que é importante levar em conta, sob pena de enviesar as anélises, que ¢ a atencio aos signifi- antes do discurso, nao propriamente {as ages dos personagens. A professo- ra aponta os dois principais perigos. “Primeiro, reduzir tudo a0 complexo de Edipo; ja escutamos da critica lite- raria que ‘se 0 édipo serve para tudo, no serve para nada’; por isso se frisa ‘que € o objeto ‘material’ que aproxi- ma literatura e psicandlise, isto 6, a linguagem 6 que deve ser lida/inter- pretada em sua materialidade mesma. Esse cuidado de se ler a linguagem, afastaria o segundo perigo, o de ‘dei tar no diva’ os sujeitos ficeionais, as personagens de papel”, explica das que se sobrepaem ao Grande sertiio: veredas, é do pé da terra que constitu 0 Brasil que a obra é feita “Ler 0 pexo bra- sileiro, na obra de Guimariies Rosa, é vi- venciar humanismo e ser tocado pelo acolhimento das diferencas, pela indusiio das minorias, pela compreensiio de nossa realidade multifacetada”, pondera. “No entanto, neste momento brasileiro elatino -americano, que se estende, inclusive, a0 mundo, nfose parece enmprir oque Rosa esperava para o séctlo XI — a chamada “brasilidade’ esta ‘em baixa’ mum Mundo em queasagiesdo capital ocupam ohugar da arte e do homem, legando a0 esqueci- possui sgraduagio e especializagio em Letras (Portugués) pela Pontificia Universidade Catéliea de Minas Gerais - PUC Minas, mestrado em Lingua Portuguesa pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e doutorado em Teoria Literdria e Literatura Comparada pela Universidade de Sao Paulo - USP. E professora adjunta M1 da Pontificia Universidade Catélica de Minas Gerais. E autora de A Travessia dos Fantasmas - Literatura e Psicand- lise em Grandes Sertao: Veredas (Sao Paulo: Auténtica, 2001). Confira a entrevista. IHU On-Line - Como podemos compreender a obra de Guima- res Rosa, em especial Grande sertao: veredas, em chave de leitura psicanalitica? Marcia Marques de Morais ~ A interpretagdo de diregao psicanaliti- ca do romance rosiano teria como ar- sgumento central o proprio fazer lite- rario, atualizado no cuidado com que Guimaraes Rosa trata a linguagem, essa sim, a verdadeira protagonista de sua obra. Esse trato, para além de ser um trago ltidico a apresentar desatios para o leitor, piscadelas do 33 34 autor em diregio a seu leitor, 6, sem vida, propiciador do enlace entre literatura © psicandlise, no privil gio do significante a potencializar Significados. Af estaria a emersio do inconsciente nas repeticdes, nos estranhamentos, nas ambiguida- des, nas contradig&es © paradoxos ‘que saltam do discurso do paciente da psicanalise e do narrador do ro- ‘mance, Riobaldo, em seu fingido di- ‘ilogo Virtual com o interlocutor que ssenos afigura, de fato, um mondlogo interior, um fluxo de consciéncia, ‘em que se projeta, um outro de si- ‘mesmo, Parece-me nio ser exagero ¢, se 0 for, vale como raciocinio ana- légico, associar essa projecao do eu, ‘emmeiador em um en enunciado, 0 devaneio, formalmente tratado por Freud’ em Eseritores eriativos e devaneios (Sao Pattlo: Companhia das Letras, 2015), numa_primeira tradugdo, ¢ O poeta e 0 fantasiar, numa tradugéo posterior. Vamos ‘encontrar, no texto do romanee, jo- -g0s de palavras, alguns espelhando a icgio oral na escrita, que poderiam ser lidas como alusdes indiretas a0 mito edipico. Exemplifiquemos, bre- vemente, essa estratégia linguistica, Ha um trecho no romance, em que Riobaldo indaga aos jaguncos sobre Siruiz, violeiro cantador da balada ‘que inquiria sobre “a moga virgem’. Riobaldo diz assim: “0 que eu queria saber no era proprio do Struts mas da moga tipo, mog re peg a muna foe poder de formar tmnigual” Fazsentido escutarem “pés-de-ver- a expresso “pés diversos”, numa cesperta alusdo a Oedipus, o dos pés ‘TSgmand roa ETSY paging aio en Freer tewcasevanua. 9 dsr de peace Intec» hipcns etude peta gs perc ove Hea yeni ote lo Sear pnts foram conversa Vena S49 150 Loemuan soda ut nome Meese 27508 IMU Grin se 850 sedeoee 9s ce pa {tbo do Smund ud ese espa Spee tm napzonyonss keto 208 de Ieperfgoosisal a sacto 16 dr Caden Aenfomagio tu castle Que amor o mar ‘ise ret pce pore om heaton ‘os Ssh Sine iversos, diferentes, porque um de- Jes inchado....Acrescente-se a essa interpretacio”, a leitura de “a moca vvirgem, moca branca perguntada”, ‘que, na fiegdo lida, seria Diadorim e ‘que, no imaginario de cada ser hu- mano, figuraria como idealizacao da mae que barra a possibilidade de se formar um (par) igual. Assim, vai-se desenhando a bastardia de Riobal- do, um rio baldo, “eachorrando” pelo sertdo. Assim, na fantasia de Riobal- do, condensa-se 0 amor proscrito, Diadorim, e a mie, “apenas a Bigri, ‘era como ela se chamava”, HG, ainda, outras estratégias. au- torais, que aproximam Riobaldo do Exdipo, atribuindo aquele caracterts- ticas do her6i tebano; isso, sempre, torne-se a frisar, pelo discurso do proprio Riobaldo. Ougamos Riobal- do, earacterizando-se como sempre ‘em fuga, vivendo a errancia, como vi- ipo para fugir de seu destino: “Virei bem fugido. Toquei direto ‘para o Curralim”, pontuando que ja localizara Curralinho como Corinto.. Cx, ld, no Curralim, no Corinto”); ou “Mas eu fui sempre um fugidor. Ao ‘que fugiaté da precisa de fuga”, sem ‘esquecer que Riobaldo foge da casa do pai padrinho Selorico Mendes, do acampamento de Zé Bebelo © ameaca ‘desertar do bando muitas vezes... £ preciso sublinhar que tais leituras se fazem através das mareas do dis- ‘eurso do narrador, dos significantes ‘que dele brotam e nao de associagées ‘que levem em consideragao agées/ ‘comportamentas lidos no enredio do romance. Essa énfase & necessiria ‘para afastar dois perigas a que se in- ‘corre em leituras de vezo psicanaliti- 0. Primeiro, reduzir tudo ao comple- x0 de Edipo; ja escutamos da erftica literaria que “se 0 édipo serve para tudo, nao serve para nada’; por isso se frisa que € 0 objeto “material” que aproxima literatura e psicanilise, isto 6, a linguagem & que deve ser lida/ interpretada em sua materialidade mesma, Esse cuidado de se ler a lin- _guagem, afastaria o segundo perigo, 0 de “deitar no diva” os sujeitos ficcio- ais, as personagens de papel. Mais um argumento em favor da leitura psicanalitica do Grande ser- {do estaria no proprio género da nar- rativa, Como romance de formacio, a fala de Riobaldo a seu interlocutor aponta um processo de constituigo de identidades, de inscri¢a0 subjeti- vva para o/a qual, parece-me, o ins- trumento psicanalitieo nao pode/ deve ser esquecido. IHU On-Line ~ Se pensasse- mos 0 sertéo como uma alego- ria ou categoria psicanalitica, de que ordem seria? Marcia Marques de Morais ~ O sertio que eomporta uma infini- dade de entradas, tais como locali- zagao geogritica, paisagem natural, cenério de violéncia, certamente € também 0 “avesso do homem’, ‘quando pode ser lido como imensi- dio e desmesura, como fuga e cul- pa, como inesperado eo inexplieé- vele, sobretudo, como interioridade ereflexio, Ougamos, mais uma vez, Riobaldo: “Sabe 0 senhor: sertdo 6 onde 0 pensamento da gente se forma ‘mais forte do que o poder do lugar”; “Sertao 6 isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo”; “Sertao é 0 sozinho. Compadre ‘meu Quelemém diz: que eur sou muito do sertiio? Sertdo: é den- tro da gente’; “Sertdo, ~ se diz =, 0 senhor querendo procurar, ‘unea ndo encontra. De repente, Borst quando agente no espe Frise-se, ainda, que ja se falou em Grande Ser Tao, no livro A metafi- sica do Grande sertao (Sao Paulo: Edusp, 2016), de Francis Utéza, numa remissio a0 taofsmo, como também jé se experimentou a pala- vra em uma inversdo de sflabas “tao ser”, elucubragdes perfeitamente vi- 4veis na “gramética” rosiana. IHU On-Line — De que manei- ra Grande sertdo: veredas se converte, ele proprio, em uma espécie de grande sessiio de anilise psicanalitica? Unters Paar de ripe ne ae 1994 gos 1G met oy Gr ser Porta Ae ye ube, 999 sco Owe) REVSTAINU ON-LINE Marcia Marques de Morais — 0 interlocutor do narrador Riobaldo comporta intimeras referenciagées, como vém afirmando os estudiasos da obra. Uma primeira ja foi aven- tada nesta entrevista ~ ele seria 0 ‘outro de si-mesmo, no mondlogo interior. Nessa pauta, 0 texto permi- te ler a narrativa como uma grande sesso psicanalitiea. Sublinhe-se que © primeito critico a “descobrit” tal Ieitura foi Dante Moreira Leite® que, ‘em 1961, publica, no suplemento de 0 Estado de Sao Paulo, texto que aponta para a possibilidade de se ler (© romance como “a longa e (talvex interminivel) sesso psicanalitiea de Riobaldo”, republicando esse ar- tigo em seu livro O amor roméntico € outros temas (Sio Paulo: Unesp, 2007), de 1979. A pista inicial estaria logo no inicio da narrativa quando selé: “O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranko. Mas, tatvez por isto mesmo. Falar com 0 es- tranho assim, que bem owe € logo longe se vai embora, 6 um segundo proveito: fax do jeito que eu falasse mais mesmo co- igo. Mire veja: 0 que é ruim, dentro da gente, a gente per verte sempre por arredar mais de si, Para isso é que 0 muito se fata?” Pergunta-se: ha pista maior qt essa para falar da pritica psicana tica? No entanto, a leitura no pode ser reduzida a apenas essa diregio, pois que Riobaldo nos adverte sem- pre: “tudo 6 Ennio 6”. Outras alusdes matreiras a psica- nilise também podem ser percebi das, Julgo que uma delas estaria no Vupes, aquele vendedor ambulante, estrangeiro, que diz a Riobaldo que ele atira bem porque atira com 0 espirito. Para comprovar um Freud fantasiado na linguagem do narra- dor, nada melhor que ouvir Riobal- do, ainda que seja longa a transcri- ‘te or ae G7 pei ote {Thur qu en antayarary see mana et (gis desacanse os marane Se tech © conta ‘Bons Mere inte ei troop 9 ea ‘exalt expand em Pca eto 298 ‘Sel eis 97 Nes ee MU Onn) lo, mesmo porque é a forma que vela, para desvelar, possiveis conte- ‘idos, tal como acontece no discurso analitico. se um era estranja, ale- ‘mio, o senhor sabe: clareado, constituido forte, com os olhos azuis, esporte de alto, lean- drado, rosalgar ~ individuo, ‘mesmo. Pessoa boa. Homem sistemditico, salutar na ale- gria séria. Hé, hé, com toda ‘a confusdo de politica e brigas, por ai, ¢ ele ndo somava com rnenhuma coisa: viajava sensa- to, ¢ ia desempenhando seu ne- agocio dele no sertéio — que erao de trazer e vender de tudo (..) € até papa-vento, desses moi- mhos-de-vento de sungar égua, com torre, ele tomava emprei- tada de armar. (...) Ah, 0 $¢- nhor conheceu ele? 0 titi- quinha de mundo! E como mesmo que o senhor fraseia? Wusp? E. Seo Emilio Wus- pes... Wupsis.... Vupses. Pois fesse Vupes apareceu ld, logo vai me reconheceu, como me conhecia, do Curralinho. Me reconheceu devagar, exatdo. Sujeito escovado! Me olhou, me disse: ~ “Folgo. Senhor estar bom? Folgo...” E eu gostei da- quela saudagao. Sempre gosto de tornar a encontrar em paz qualquer velha conkecenca ~ consoante a pessoa se ri, a gente se acha de voltar aos passados(...). —_“SeoVupes, ‘eu também folgo. Senhor tam- ‘bém estar bom? Folgo...”— que eu respond, civilizadamente. Ele pitava era charutos.” Percebam-se a presenca de um es- trangeiro, a alusio a “alegria séria”, considerando que 0 nome proprio Freud esta presente no substantivo abstrato alemao Freude e significa Alegria, a presenga do “psi/psis” na emunciagao do nome do conhecido ea referéncia ao habito de fumar charutos, referenciando célebre foto de Freud. £ 0 autor “comendo o angu pelas bordas’, hibito minciro, rodeando, para deixar pistas que levem seu lei tor a desvelar 0 que, velado, clama porrevelagio. E a gente acaba rindo “certas risa- das” que nem o interlocutor... THU On-Line — Levando em conta as pesquisas realizadas na biblioteca de Guimaraes Rosa, ha obras ou autores da Area da psicandlise que influenciaram 0 escritor? Marcia Marques de Morais ~ Confesso nao ter feito pesquisas “de campo” sobre as leituras de Guima- ies Rosa, Minha pesquisa, por re- comendagio do orientador, a época, que julgava dificultoso pesquisar 0 arquivo Guimaraes Rosa, ateve-se 4 leitura cerrada do romance. Mas 0 que me levou a analisar 0 texto na pauta psicanalitica, foram mesmo as pistas de leitura, para mim, ab- solutamente reiteradas, como tento expor. © que também me deu muita seguranga foi a afirmagio de Rosa na famosa entrevista a Giinter Lo- renz, publicada como Diélogo com Guimardes Rosa (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994), onde se 1é “a importincia monstruosa, espantosa de Freud’, como o tendo impressio- nado muito e, “sem ditvida’, tido in- ‘luéncia em sua literatura, Fiquei tentada ainda a ir adiante para perceber releituras lacanianas de Freud no texto, sobretudo, por conta da famosa banda cle Moebius € do n6 borromeano que enlaga Real/ Imaginario e Simbélico © que vejo funcionar no trato do enredo enlaga- do & linguagem. O nome Borromeu, © cego, em comitiva com 0 menino Guirigé © o proprio Riobaldo, me du algum trabalho de pesquisa: em seminério de leituras de Lacan, na USP, nos idos de 1994, indagando a uma professora a possibilidade de ter havido algnm encontro/eonvivio entre Rosa e Lacan, ela me disse que poderia haver uma convergéncia en- ire eles por via de Heidegger. Mas {Earn Weisegger GBEDIETEE Wn sted Su sam maus © Dr ofenpa 927) © plensaes ‘Sleggeran «amp ew Gur ¢ Metoca? 0525 ‘ia sare oan G97 «tra ¢ meee Sia Soe Niner coin sro 1 Se ‘Sona mace 0 lage hago” aie evita ie ST ease So exon A nnn do eat enim ru ions Cor se derma Bem {eimacio 2 nari ner ara come {Shee gue pa sr mre om gc fete Omtine ce 105-000 Spore ne? Seaqyansn, nce © alae al he $e ep moss neal nse Se fas anion 2 tea ae Hee’ 2 game de eset aso go oot yore rat (od eis recta 3 aera pwr 3 35 36 no prossegui a pesquisa, pois urgia que 0 objeto literario tivesse prece~ déncia nela. IHU On-Line - Em Grande sertao: veredas, como se dé © primeiro destino edipico de Riobaldo e, também, como se dé a segunda prescricio do mito de Edipo com 0 mesmo personagem? Marcia Marques de Morais — © narrador Riobaldo, ao longo da narrativa, vai-se desenhando na lin ‘guagem, insisto, como personagem miftiea que precisa experimentar estinos tragados. Se Edipo viveu ‘© duplo destino que 0 constituit,, 0 assassinato de Laio, o parricidio ¢ 0 casamento com Jocasta, 0 incesto, também Riobaldo, pela linguagem, no simbélico, “ordenaria” seu imagi- nario e domaria destinos fantasma. ticos. De novo, é preciso que o leitor assuma uma atitude de “escuta”. En- ‘80, encontrari o episédio da Guara- ravacai do Guaicui, no meio do livto, onde leré: “A Guararavacd do Guaieui: 0 senhor tome nota deste nome. Mas, ndo tem mais, ndo en- contra — de derradeiro, ali se chama é Caiveirépolis; ¢ dizem ‘que Ié agora dé febres. Te tempo, ndo dava. N ‘lembro. Mas foi nesse lugar, no tempo dito, que meus destinos foram fechados. Sera que tem ‘um ponto certo, dele agente nao podendo mais voltar para tras? Travessia de minha vida. Gua- raravaed ~ 0 senhor veja, 0 se- hor escreva. As grandes coisas, antes de acontecerem. Agora, ‘0 mundo quer ficar sem sertao. Caixeirépolis, ouvi dizer. Acho que nem coisas assim ndo acon- tecem mais. Se um dia aconte- cer, o mundo se acaba. Guar ravacd. O senhor vé escutando. Riobaldo pede ao interlocutor e a nés, leitores, que atentemos para ‘um lugar e tempo passadlos, atente- mos, com nossos muitos sentidos, anotando, vendo, escutando tanto ‘© que ali se passou como sentindo ‘© ecoar daquele nome tio alongado ‘Sipemnemcona OUeyonna neem ‘edd naman 3 MU Onin ‘pela nasal que fecha uma sequéncia ‘de vogais claras, altas e abertas. Tera sido mesmo para ele um ponto certo edefinitivo. E, estranha, mas familiarmen- te, Riobaldo narra, ordenando, as duas experiéncias vividas naquele lugar mitico, que j4 no hé mais: a assuncdo, pela linguagem, do amor por Diadorim, “Primeiro, fiquet sa~ endo que gostava de Diadorim de ‘amor mesmo amor, mal encoberto de amizade’; e, segundo, expresso ‘em ordinal bem despistado pelo dis- ‘curso matreiro de Rosa/Riobaldo, toma conhecimento, fica sabendo do assassinato de Joca Ramiro, pai de Diadorim e chefe do bando. Em termos de leitura literdria, es- sas “constatagées”, esses “saberes” ‘poderiam deslocar-se ou condensar- ‘se, como a matéria dos sonhos, para figurar, no primeiro caso, o amor por Diadorim, um amor, portanto, proscrito; no segundo, um assassi- nato de pai, portanto, o parricdio. © amor proserito por Diadorim po- dria ser lido na pauta do incesto, tantas so, durante o romance, as “misturas” Bigri/Diadorim, ainda ‘que (e até porque) denegadas. Tais misturas se operam basicamente pelo olhar, pelos olhos verdes, “ié de dominio piiblico”: “esmartes, esme- rados (de ex+merus = retirados do ‘mero, do comum, desmisturados) clhos, botados verdes”. Os othos de Diadorim se misturam, indubitavel- mente, na fala de Riobaldo, a ponto de ele confessar, no plural: “Os afe- tos.” E prosseguir: “Docura do olhar dele me transformou para os olhos de velhice da minha mde. Entéo, eu vias cores do mundo.” Eé Riobaldo ainda que confessa.a seu interlocutor (ea nés) esse processo que cola uns colhos aos outros, quando, lembran- do-se dos olhos de Nhorinha, exclu cs olhos da “prostituriz” da cadeia significante que une Diadorim ¢ a mide: “Hoje é que penso. Nhorinhé, namord, que recebia todos, fieava 14, era bonita, era a que era clara, ‘coms olhos tao dela mesma...” Ainda ha outros argumentos em favor da mistura da mae e do amor proibido, sempre apoiados na dis- cursividade do narrador protagonis- ta. Percebamos © duplo Diadorim, fantasmatico, na cena da Guararava- 4, sob 0 efeito de se saber amando Diadorim, Entio, se ouve/se lé “ nome de Diadorim, que eu tinka falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente ~ “Diado- rim, meu amor...” Como era que eu podia dizer aguilo? Explico ‘a9 Senhor: como se drede fos- ‘se para eu néio ter vergonha maior, 0 pensamento dele que em mim escorrew figurava di- ferente, um Diadorim assim ‘meio singular, por fantas- ‘ma, apartado compleio do vi- ver comum, desmisturado de todas, de todas as outras pesso- ‘as — como quando a chuva entre onde-os-campos. Um Diado- rim s6 para mim. Tudo tem ‘seus mistérios. Eu ndo sabia. ‘Mas, com minha mente, eu abragava com meu corpo aquele Diadorim — que nao era de verdade. N&io era?” ‘A gente se pergunta: que vergo- nha maior o atormentaria antes e além daquela assungio da relagao amorosa homoafetiva? A gente Ie ‘© duplo Diadorim, nas tensées a afirmar e denegar: meio singular versus plural; desmisturado versus misturado; s6 para mim versus no s meu, no s6 para mim; mente versus corpo; era de verdade versus nijo era de verdade, com uma inter- rogagao final que suspende toda e qualquer certeza. E, impossivel, ainda, no perce- ber como uma “manha” autoral, um Diadorim por fantasma, a ecoar com muita nitider 0 pro famtasma/pro- fantasia (on protofamtasma/proto- “fantasia), na terminologia freudiana Se essa operagao de leitura que ‘ousa dizer um nome ~ incesto ~ se vale de tantas mediagées, a morte de Joca Ramiro, metaforizando a morte do pai, é bem mais direta. Nessa leitura, a Guararavaci é travessia de um duplo destino e na- quele lugar mitico se insereve uma subjetividade que, construfda na e pela linguagem, permitiré que Rio- aldo marche mais “senhor de si”, submetido, como ele diré, na saida REVSTAINU ON-LINE da Guararavacd § “lei de rei”. Ouga- ‘mos, dialogando com a linguagem do episodio: “Acertei minha idéia: eu ndo podia, por lei de rei (Que rei? Edipo, rei2), admitir 0 extrato daquilo. 1a, por paz de honra tenéneia, Sacar. esquecimento daguilo de mim. Se nao, pues- se ni, ah, mas entdo eu devia de quebrar 0 morro: acabar co- ‘igo! ~ com uma bala no lado de minha cabeca, eu mum dtimo punha barra em tudo (mais psicanatitico, impossivel..)- Ou eu fugia ~ virava loge no mundo, pisava nos espacos, fazia todas as estradas” (6 ‘fuga, como marca importante ‘do herdi tebano, como se viu em respostas anteriores). ‘Torne-se a frisar que 0 episédio da Guararavaed do Guaicus se localiza ‘no meio do romance, ¢ essa metade ‘marca o fin da “apontagao princi- pal”, desordenada, associativa, “pul- sional”, bem “mac”, bem “natureza” © 0 inicio da segunda parte, mais ordenada, mais encadeada e erono- logica, mais “pai”, mais ‘lei’, mais “cultura”. Reitera-se, assim, “a forma do meio”, expressfio cunhada por Clara Rowland? para nomear sew livro, como estratégia importante do processamento de sentidos na obra “Acrescente-se, para fechar a res- posta a essa instigante pergunta, que nosso critico maior, 0 saudoso Antonio Candido’, lega a plateia do 5 owl on nO ae ‘rss hors ads & Faro Me irae nro Beate cineca paar ce fs co cass ns Com oe, Sic oueraa enters snes (ands jb pred guano net ‘rao Jot nairaos oso 1o30e 1 pot Geri Srgo ase eine "a {endo sonado pnt ro quem anaes oma ‘en Garces Sue Tote Em ots ceve ao de Sts Ramee su am de sun om Cunt oor tons rs Aposeman se na USP em 178 mas Seminério Internacional Guima~ res Rosa. Grande sertao: veredas € Corpo de baile ~ 50 anos, ocor- ido na USP, “confissio” que Ihe fizera Guimariies Rosa ao dizer que na Guararavaca do Guaicui “esta- ria uma chave para a leitura do ro- ‘mance” (as aspas se justifieam por estar me valendo de palavras da pesquisadora Maria Célia Leonel’, que deu mais precisio & observa- ao de Candido). “Guimaraes Rosa trata a linguagem, essa sim, a verdadeira protagonista de sua obra’ THU On-Line — Como 0 “pac to”, enquanto categoria psica- nalitica, aparece em Grande sertiio: veredas? Como poderi- amos descrever a personalida- de de Riobaldo antes e depois do pacto? [Rrloeh ies emaoe tenant me Pence ‘mens ptarent om rn Co Fn 9467 1986 eho 0 Spent, rae cen gue cin n or Eas © {Sana o Eta Ne ne saps Cee Fete Ihera ramoran so entra arses Owe uot ‘pore gangs sn Lee vaca, cog pt ae ©gares ais S87 O ona {Sef Bn thd Se Cnn nck ee cia. concen gr sea Aur U Oncine 7 Sa se Sead en ny Bee cpmtelonttrssaiisie es 1 Maris Cla de Moraes Leong: os yoda em {rs rvs pla Ube So alo SE {Sire em eve Usman tela ph tredocre ¢polesra fa’ a Ubeiade Eada Faden to de espa Fito = resp. rs mtn! Marcia Marques de Morais = 0 pacto me parece um mergulho em si mesmo ~ um desnascer para renascer. Uma viagem de volta para acertar ponteiros © prosseguir. Sio finimeras as marcas linguisticas desse processo de regresso para 0 impulso, impulso, inclusive, riador, ‘mum pacto com o daimon grego. “Ah, acho que ndo queria mes- ‘mo nada, de tanto que eu queria 36 tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente que- ria era — fiear sendo!”, ébas- tante audivel o Das Ding freu- diano, que vai tornar presente, ppela gradagdo dos determinan- tes, a coisa imposstvel de se di- zer,a busea por wan alhures...e {que se reitera mais a frente com isso nao € falavel”. em: “Nao. Nada. O que a noite tem é © vozeio dum ser-s — que princi- pia feito grilos ¢ estalinkos, e 0 sa- po-cachorro, tao arranhao. E que termina num queixume borbulhado tremido, de passarinko ninhan- temal-acordado dum totalzi- nho sono.” a figura da noite como ninho, como um primeiro abrigo do ser nos seus primérdios; em: “'Sé outro siléncio. O senhor sabe 0 que 0 siléncio 6? E a gente mesmo, demais.”, 0 ‘mergulho no eu, o tentar estar ‘possuido por si mesmo e, no si- Tencio, perserutar-se asi mesmo ter forcas para invocar: ~“Ei, Lieifer! Satanés, dos meus In- fernos!”, chamando, etimolo- gicamente as tuzes (hx lucis = uz), 0 condutor da luzes (fero, fers, tu, latum, ferre = condi 71), as hizes do seu interior, das suas transgressies, do seu infer- no, a partir do que se manifes- tard a eriagdo, pactuada com 0 daimon; ©, por fim: “E foi al. Foi. Fle ndo existe, ¢ ‘nda apareceu nem respondeu ~ que é um falso imaginado, Mas eusupri ue ele tinha me owvido, ‘Me ouvit,, a conforme a ciéncia da noite ¢ 0 emvir de espacos, que medeia. Como que adqui- risse_minhas palavras todas; 37 38 {fechou o arrocho do assunto. Ao que eu recebi de volta um ade Jo, um gozo de agarro, dat umas ‘rangiilidades-de pancada. Lembrei dum rio que viesse adentro a casa de meu pai.” ansistindo no rio, ‘pau enorme” do final do romance, faiico, que penetra adentro a casa do’ pai, ‘etaforizando, sexual e erotica ‘mente, @ volta ds dguas mater- nas, para um outro nascimento, no easo, 0 nascimento do narra- dor do romance). Essa andlise se reitera, ainda, no trecho seguinte: “Porque a noite ti- nha de fazer para mim wm corpo de méie - que mais néo fala, pronto de parir, ou, quando 0 ‘que fala, a gente nao entende? Despresenciei. Aquilo foi um bura- ‘cio de tempo.” Nessa pauta, a busea do paeto para se igualar ao Hermogenes e ascen- der & chefia, no enredo do romance, possibilita, com sua forma meta- forizada, 0 pacto com 0 daimon da criacéo, implicando a transgressio a partir de um “falso imaginado”: 0 desnascer para nascer de novo. Riobaldo sai do suposto pacto en- fraquecido como homem de ac para se fortalecer como ser de re- flexio que se nos apresenta como narrador do romanee — 0 proprio Grande sertdo: veredas que se vem ceserevendo ao longo de toda a nar- rativa nas cadernetas do interlocu- tor, 0 outro-~de-si e que se vale da experiéncia do narrador épico, 0 narrador oral. ‘Nao por acaso, 0 cenario do pacto, 1s Veredas Mortas (letras mortas?) ou Veredas Altas (alta cultura?) ow Veredas Tortas (linhas tortas?), escrito como entre dois rios, evo- ca a Mesopotamia, ugar do nasei- mento da escrita, em uma das vi~ rias versOes, lembrando a escrita como condicio imprescindivel a0 .género romance. IHU On-Line — Qual a impor- tncia de ler ¢ reler a obra de Guimaraes Rosa no Brasil atual? Mareia Marques de Morai — Importincia fundamental. Se se insinuam 0 conservadorismo do es- critor e sua resisténcia a manifesta- ‘gGes de eunho politico, é importante proclamar que seu fazer literdrio faz fas vezes de seus manifestos, subs- tituindo-os com enorme vantagem. Como a incluso de vozes, até en- apenas referenciadas ou mesmo “arremedadas” na literatura, é feita, obra rosiana, através de trabalho criativo, cuidadoso e sensivel, pre- servando-lhes diego © tom ¢ res- peitando-Ihes pontos de vista, ler 0 povo brasileiro, na obra de Guima- ries Rosa, é vivenciar o humanismo ser tocado pelo acolhimento das diferengas, pela inclusio das mi- norias, pela compreensio de nossa realidade multifacetada. Frise-se 0 efeito profundo des- sa transformagio do leitor = uma “transformagio pesivel”, como ex- perimentou Riobaldo na travessia ‘com 0 Menino. Isso porque 0 pro- ‘eesso de “representagio” da reali- dade, mediado artisticamente, torna 0 efeito da leitura duradouro e per- ‘manente, como ensina Antonio Can- dido no texto Direito a Literatura, ‘quando diz. que a experiéncia com a forma implica, necessariamente, a organizagiio do caos interior, ineren- te A condigo humana, Para além disso, o privilégio ao pa- radoxo que o autor tanto preza dese- ‘ha um mundo, uma sociedade bem ‘mais “real”, o que faz 0 leitor experi- ‘mentar eontradigoes inerentes i vida ‘humana ¢, dessa forma, exercitar “o ser E nao ser” que nos constitui. Por outro lado, um lado bem pessi- ‘mista que marca os tempos sombrios deste Brasil contemporneo, de 2019 fe suas adjacéneias, parece ficarem cada vex mais distantes os prognésti- cos do escritor sobre o Brasil, quan- do, no diilogo com Giinter Lorenz, acontecido em Génova, em 1965 (jf aqui referido, Guimaraes fala em “prasilidade” e na nossa insergio no contexto da América Latina, Oucamos Rosa, quando pergunta- do sobre “brasilidade”: “Falemos da ‘brasitidade’: nds os brasileiros estamos firmemente ersuadidos, no fundo de nossos coragdes, que sobreviveremos ‘0 fim do mundo que acontecerdi um dia. Fundaremos entdo um reino de justica, pois somos 0 Ainico povio da terra que pratica diariamente a légica do ilégico, como prova nossa politica. Esta ‘maneira de pensar é consequén- cia da ‘brasitidade’.” E tornemos a ouvi-lo sobre nosso pais ea América Latina: “Sou um homem que viu mui- tas coisas no mundo, que entende muito de literatura mundial. Nao quero pecar por presuncdo, mas comparando quantitativa e quali- tativamente 0 que se escreve, por exemplo, na Europa, com 0 que se escreve entre nds, sinto-me um tanto orguihoso. Entre nés, nao 86 no Brasil e ndo s6 entre os es- critores velhos € os de minha ge- racéio, hé muitos que justificam as maiores esperancas, € permitem que encaremos tranquilamente 0 futuro. A América Latina tornou- ‘se no terreno literdrio ¢ artistico, digamos em alemao, Weltfihig Capto para 0 mundo’). E nao es- tou falando apenas das necessida- des e do potencial econémico de meu continente. (...) Estou firme- mente convencido, e por isso estou ‘aqui falando com voce, de que no ‘ano 2000 @ literatura: mundial estaré orientada para a América Latina: o papel que um dia desem- penharam Berlim, Paris, Madrid ‘ou Roma, também Petersburgo ou Viena, seré desempenhado pelo Rio, Bahia, Buenos Aires e México. 0 séeulo do colonialismo terminow definitivamente. A América Latina inicia agora o seu futuro. Acredito ‘que seré um futuro muito interes- sate espero que sje ton fire No entanto, neste momento brasi- leiro ¢ latino-amerieano, que se es- tende, inclusive, ao mundo, nao se parece cumprir 0 que Rosa esperava para o século XXI~ a chamada “bra- silidade” est “em baixa” num Mundo ‘em que as ages do capital oeupam o ugar da arte € do homem, legando a0 esquecimento as tiltimas frases de Riobaldo no romance: “O que vale é hhomem humano, Travessia”, m REVSTAUONLNE Ml ECOFEIRA’ Agenda agosto 14 de agosto Cine-video: Mulheres na Economia 13 as 14h Solidaria - FEICOOP 2019 Local: Corredor central em frente ao IHU ag 21 de agosto Cine-video: O mundo dos organicos 13 as 14h Local: Corredor central em frente ao IHU 28 de agosto Oficina: Construindo sua horta 14h as 16h PASEC e MS Denise Schnorr Local: Horta da Gastronomia ihu.unisinos.br/observasinos EDIGhO 598 40 Para romper 0 mundo com as palavras pegantes de Riobaldo Eduardo de Faria Coutinho analisa como Guimaraes Rosa inventa mundos e exige dos leitores um pensar ético por meio do desconserto provocado por sua linguagem Ricardo Machado ais do que um escritor que M ‘optou pela literatura regio- nal em relagdo a universal, Guimaraes Rosa. escolheu inventar mundos com sta linguagem e com ela obrigou o ser humano a pensé-los. “E somente renovando a lingua que se pode renovar 0 mundo, e é com esse intuito que ele se entrega de corpo e alma a tarefa de revitalizaglo da linguagem, que vé como verdadeira missio, ou, em suas préprias pala- vras, um “compromisso do coracio”, pondera o professor e escritor Eduar~ do Faria Coutinho, em entrevista por e-mail 4 THU On-Line. “Sufocado por um cotidiano calcado na continu dade, que se expressa pela repeticio mecdnica de atos e gestos, o homem, © em particular 0 adulto comum, nao percebe a automatizacio a que se su- jeita, cumprindo o inexplicével, sem nenhuma autonomia de raciocinio”, complementa. ‘As portas do infinito se abrem com as chaves do idioma. “O processo de revitalizagio da linguagem empre- endido por Guimaries Rosa baseia- se fundamentalmente na eliminagio de toda conotagio desgastada pelo uso, e na exploragio das potenciali- dades da linguagem, da face oculta do signo, ou, para empregar palavras do proprio autor, do ‘ileso gume do vocibulo pouco visto e menos ainda ouvido, raramente usado, melhor fora se jamais usado”, ressalta. “Em Rosa, o homem no é mais retratado apenas em seus aspectos tipicos ou especificos, mas antes apresentado como um ser miiltiplo e eontraditorio € em tantas de suas facetas quanto possivel, ¢ 0 sertdo ndo ¢ apenas a re- criagao literdria de uma érea geogré- fica especffica, mas a representagao de uma regido humana, existencial, viva e presente na mente de seus per- sonagens’, desereve. Sobre a atualidade do pensamento do Rosa ea necessidade de encari-lo no Brasil atual, Coutinho € didatico. “No Brasil, onde a educacio é ainda artigo de luxo e cada vez menos valorizada pelas autoridades governamentais, ela desempenha um papel extremamen- te relevante, se no mais por chamar atengio para este fato”,frisa Eduardo de Faria Coutinho, um dos mais renomades académicos em Literatura Comparada, Ph.D. pela Universidade da California, Berke- ley. E professor titular da disciplina na Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, professor visitante em vérias universidades do Brasil ¢ do exterior e pesquisador nivel 1A do CNP. Membro da Unio Brasileira de Eseritores - UBE, consultor cienti- fico de diversas agéncias de fomento fi educagio CAPES, CNPq, FAPERJ ¢ FUJB, vice-presidente da Associngao Internacional de Literatura Compa- rada - AILC/ICLA, membro funda- dor e ex-presidente da Associacio Brasileira de Literatura Comparada - ABRALIC e ex-vice-presidente da As: sociagiio Nacional de Pés-Graduagio € Pesquisa em Letras e Linguistica - ANPOLL. Também foi diretor-adjun- to de Pés-Graduacio na UFRJ e mem- bro do Conselho de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, Confira a entrevista. REVSTAINU ON-LINE “O homem nao é mais retratado apenas em seus aspectos tipicos ou especificos, mas antes apresentado como um ser multiplo e contraditério e em tantas de suas facetas quanto possivel” IHU On-Line - Como a litera- tura, em sentido mais amplo, produz.um n6 no fio do tempoe interrompe a ordinariedade do cotidiano? Eduardo de Faria Coutinho ~ A literatura tem um poder de re- velagio extraordinario que deses- tabiliza o leitor, tirando-o de sua inércia cotidiana e mergulhando-o na diivida, f como uma semente que, caindo na terra, comeca a ger minar, gerando uma inquietacao ‘que € 0 passo inicial para possiveis transformacdes. Daf o risco que ela acarreta para todos aqueles que es- ‘Ho incrustados no status quo. Por isso ela sempre foi vista pelos siste- ‘mas totalitérios como uma ameaca E seu poder esta centrado na forea a palavra, que induz 0 leitor & re- flexio. As palavras so, como afir= mout 0 proprio Rosa, através de set personagem Riobaklo, no Grande sertdo: veredas, “palavras pegan- tes, que vao rompendo rumo”. IHU On-Line — Em especial, de que maneira a literatura de Guimaraes Rosa opera esse Proceso de desnaturalizagao da banalidade do cotidiano? Eduardo de Faria Coutinho — ‘A desnaturalizagio da banalidade do cotidiano se dé, na obra de Gui- ‘mares Rosa, sobretudo através do recurso do estranhamento (a ostra~ nenie dos formalistas russ0s), que nosso autor explora até as éiltimas consequéncias. E este estranhamen- to se verifica na linguagem que ele utiliza, & um recurso da linguagem, ‘um dos principais tragos de sua ars oetica, responsivel por fazer do es- critor um alquimista, ou, apesar de seus protestos ao termo, um grande “revohucionaio da linguagem’” Para Guimaries Rosa, 6 somente reno- vvando a lingua que se pode renovar ommundo, eé com esse intuito que ele se entrega de corpo e alma & tarefa de revitalizagio da linguagem, que -vé como verdadeira missio, ou, em suas proprias palavras, um “compro- isso do eoracao”. IHU On-Line — De que forma a linguagem da prosa de Gi mardes Rosa desnaturaliza a forma hegem@nica da propria Tinguagem? Eduardo de Faria Coutinho — Sufocado por um cotidiano ealeado nna continuidade, que se expressa pela repetigdo mecénica de ates € estos, o homem, e em particular 0 adulto comum, nao pereebe a auto- ‘matizagioa que se sujeita, cumprin- do o inexpliedvel, sem nenhuma au- tonomia de raciocinio. Seu diseurso, construfdo de antemao pela comu- niidade a que pertence, é incorpora- do por ele sem nenhuma indagacao, € stia expressio se revela como a ratificagio de uma pratica tradicio- nal, que se impée inexoravelmente, naturalizando 0 nio-naturalizével € camuflando consequentemente © sen cariter de construgio. Esta linguagem, a que o autor designa de “linguagem corrente”, expressa, como ele proprio declara em sua famosa entrevista a Giinter Lorenz, “apenas clichés e nao ideias”, nfo se prestando portanto a autonomia do racioefnio. Ela esta morta, e, ainda segundo 0 autor, 0 que esta morto nao pode engendrar ideias. A fim de poder “engendrar ideias”, & preciso romper com essa linguagem, desau- ‘tomatizé-la. O idioma, para Rosa, “6a tnica porta para o infinito, mas infelizmente esta oculto sob monta- has de cinzas”. Dat a necessidade de revitaliza-lo, violando constante- mente a norma e substituindo 0 In- ‘gar-comum pelo tinico, a fim de que ele possa reeobrar sua poiesis origi- nara e atingir o outro de maneira ficaz. O processo de revitalizagao da linguagem empreendido por Guimaraes Rosa baseia-se funda- ‘mentalmente na eliminagao de toda conotagao desgastada pelo uso, ena exploracdo das potencialidades da Jinguagem, da face oculta do signo, ou, para empregar palavras do pro- prio autor, do “ileso gume do voes- bulo pouco visto e menos ainda ou- vvido, raramente usado, melhor fora se jamais usado” (Rosa, Sagarana, 1970, p. 238). Os procedimentos para atingir este fim so, contudo, istintos, estendendo- se desde o plano da lingua stricto sensu ao do discurso narrativo, € chegando em alguns casos a cons tituir 0 eixo-motor de todo o texto. IHU On-Line — Como a esté- tica sertancja, compreendida como de um autor nao litora- neo, de Guimaraes Rosa, pro- duz, em certo sentido, uma étiea das pessoas simples do interior do Brasil? Eduardo de Faria Coutinho Na mesma esteira de deseonstrugio de tudo 0 que 6 fixo ou inquestio- 41 42 navel, que constitui uma das linhas mestras da obra de Guimaries Rosa, a dicotomia regional versus univer- ‘sal que ocupou por longo tempo o panorama da literatura brasileira se mostra totalmente improcedente nas narativas rosianas. Escritor re- ‘ionalista no sentido de que utiliza 0 sertio como cenario de suas estérias ¢ os habitantes dessa regiio como personagens, o autor transcende os parametros do Regionalismo tra dicional a0 substituir a énfase até centio atribufda a paisagem pela im- portancia dada ao homem, pivd de seu universo fiecional. Em Rosa, 0 homem nao é mais retratado apenas ‘em seus aspectos tipicas ou especi- ficos, mas antes apresentado como um ser miiltiplo e contraditorio eem tantas de sts facetas quanto poss vel, e 0 sertio nao é apenas a reeria- ‘lo literdria de uma rea geografica specifica, mas a representacio de uma regio humana, existencial, viva e presente na mente de seus personagens. Nesse universo eonvi- ‘vem seres os mais diversos em cuija visio de mundo conftuem logicas distintas, caleadas tanto na raciona- lidade quanto no mito, ¢ 0 resultado 6 um espago de incluso, mareado pela pluralidade, onde 0 discurso hegem#nico da logica ocidental cede ugar & busea de terceiras possibili- dades, tio bem representadas pela imagem, sintese talvez de toda a ‘obra do autor, que da titulo ao conto Aterceira margem do rio (In Fiegio ‘completa: volume IL, Rio de Janei Nova Aguilar, 1994). As pessoas sim- ples do interior do Brasil sdo as que povoam suas narrativas e é a visio elas, ao mesmo tempo légica e mi- tica, que ocupa um primeiro plano na obra rosiana, THU On-Line - De quemaneira © leitor, para Guimaraes Rosa, transforma-se em uma longa travessia na qual seu sentido timo é sempre inaleangavel? Eduardo de Faria Coutinho = Com a renovacio constantemen- te empreendida do dictum postico, através da desestruturagao de todo o petrificado, Guimaraes Rosa instati- ra em suas paginas um verdadeiro laboratério de reflexao, quese esten- de dos proprios personagens ao lei- tor, reativando o cirenito discursive ¢ transformando 0 tiltimo de mero consumicor num participante ativo «lo processo criador. Ciente do fato, ‘eomo ele mesmo afirma, através das palavras do narrador de Grande sertdo: veredas, de que “toda acio principia mesmo é por uma palavra pensada, Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo” (Rosa, GS:V, 1958, p. 170), ele for- nece ao leitor esta “palavra’, por meio das inovagbes que introduz, e, ao estimular sua reflexdo © conse- ‘quente participagio na construgio a propria obra, faz dele um grande ‘questionador, um desbravador de ‘eaminhos. Assim como os personagens de Guimaries Rosa esto frequente- ‘mente se indagando sobre o sentido das coisas e muitas vezes pondo em xeqte seus proprios atos e visio de mundo, 6 leitor, para ele, 6 sempre uum perseguidor, um individuo mar- ado pelo signo da busca, imerso, ‘como todos os seres, numa longa travessia, citfo sentido tiltimo jamais €aleangado. Nao é sem razao que a narrativa do Grande sertdo: vere- das, por exemplo, se abre € fecha ‘com uma pergunta para a qual no ha resposta tinica ou definitiva: “0 diabo existe?" Tal qual seu narrador ‘que coneluio relato reintroduzindoa divida que desde o inicio o atormen- tava, 0 leitor rosiano encerra suas aventuras pelos fios do texto levan- tando “outras, maiores perguntas’, configurando-se como elo de uma ‘eadeia que se projeta para além das paiginas do livro. IHU On-Line - De que forma a incerteza nos gestos dos per- sonagens se converte em uma orientadora da eseri- conto Meu tio, o Iauareté? Eduardo de Faria Coutinho =A incerteza, a diivida, & 0 que im- pulsiona a narrativa, 0 que faz ‘que os personagens mergulhem cada ‘vez mais fundo em seu processo de ‘busca, com o fim de tentar entender ‘o mistério da vida, da existéncia hu- ‘mana. Fessa busea, essa perquiricao incansivel, que leva Riobaldo, em Grande sertdo: veredas, a relatar ‘sua vida de jagunco a um interlocu- tor com o fim de entender fatos que cle vivenciou na juventude e que nao pode discernirna época em que ocor- reram. O personagem narrador é um homem atormentado pela ideia de haver vendido a alma ao diabo, mas ‘20 mesmo tempo ndo tem eerteza se este realmente existe; entao decide narrar sua vida a um cidadao urba- ‘no culto em viagem pelo sertdo com ‘fim de colocar-Ihe a questo no fi- nal: 0 diabo existe? Riobaldo sente- se culpado e responsavel pela morte de Diadorim (sua grande paixio), ‘que ve como uma consequéncia de seu ato; entio impoe-se a tarefa de reconstruir os epis6dios de sua vida ‘que precederam e se seguiram a0 pacto com o deménio, na esperanca de encontrar alivio para sua cons- ciéncia, algum tipo de julgamento ‘ou perdao, E tudo em sua narrativa converge para a questo final que, ‘no encontrando nenhuma resposta convincente, é deixada em aberto, a ‘mercé da reflexio do leitor. 0 conto ‘Meu tio, o Tauareté tem como eixo a suposta metamorfose de um eacador ‘de ongas em um felino, e ao longo do relatoalinguagem deste vai-se apro- ximando cada vez mais i do animal, até converter-se em verdadeiros gru- nhidos, mas aqui também o que se tem no final é uma situagio de forte ambiguidade. IHU On-Line - Como a per cepedo = © a perspectiva, se le- varmos em conta a retomada das Ieituras rosianas na antro- pologia - sobre o mundo, desde ‘0s personagens de Guimaraes Rosa, revela uma espécie de me- tafisica da multiplicidade, tipica de um pais como o Brasil? Eduardo de Faria Coutinho — A percepgdo constitui sem dévida uma das prineipais chaves do Gran- de sertdo: veredas ¢ esti represen- tada na narrativa pelo tema da tra- vessia, presente ao longo de toda a ‘obra, como quando Riobaldo afirma: “Eu atravesso as coisas ~ e no mei da travessia nfo vejo! — s6 estava cera entretido na ideia dos lugares de saida e de chegada” (Rosa, GS:V. 1958, p. 35). No plano do enredo, dos. acontecimentos vivides por Riobaldo e relatados mais tarde a0 interlocutor, a questio se evidencia ‘num dos episédios nodais da narra- tiva 0 momento ja préximo ao final ‘em que Riobaldo descobre que Di dorim era mulher. Riobaldo sofrera durante toda a sua vida de jagungo, dilacerado entre a consciéneia de «que amava Diadorim e a nio aceita- Gio do cardterilicito desse amor, ea descoberta de seu verdadeiro sexo 86 se dé apés sua morte, quando nao cera mais possivel qualquer realiza- ‘io afetiva. O personagem perdera a posstbilidade de ser feliz por ter sido vitima da aparéncia, e agora se culpa por nao ter tido sequer um pressen- timento. £ esse sentimento de culpa ‘que permanecera até o final de sta vida e que ele transmitiré a0 interio- ccutor ao Ihe narrar a historia. Ciente agora do segredo de Diadorim, Rio- baldo procura lembrar-se de todos ‘os episédios que, no passado, indica- vvam sua identidade feinina, e cen- idagando com insisténcia: “Como é que nao tive um pressenti- mento?” Mas, 0 mais importante que a questio se estende ao plano do proprio relato, pois Riobaldo man tém 0 segredo até 0 final, 86.0 reve~ Jando ao interlocutor no momento em que ele também o descobrira. Esse recurso, que poderia parecer a primeira vista uma simples forma de manter o suspense da narrativa a fim de assegurar o interesse do in- terlocutor, tem aqui outra fungio — a de testar-Ihe a percepcio - ¢, por conseguinte, expressar 0 tema da relatividade. Riobaldo deseja que 0 interlocutor experimente, através da narragio, processo semelhante Aquele por que passou em sua vida, de modo a poder constatar se este seri ou niio capaz de deseobrir, antes de Ihe ser dito, aquilo que cle pro- prio nao conseguira. Deste modo, fornece-the ao longo de toda a narra- tiva uma série de indicios, e chega a0 ponto de quase revelar-Ihe tudo. No entanto, como mesmo neste caso se ‘mantém certa ambiguidade, a des- coberta do segredo dependeré total- mente do interlocutor e, por exten- sio, do leitor, podendo variar, assim, de uma pessoa para outra. 27 de agosto de 2019 14h30min as 17h “E somente renovando a lingua que se pode renovar o mundo” IHU On-Line — Qual a impor- tancia de ler e reler a obra de Guimaraes Rosa no Brasil at Eduardo de Faria Coutinho — A bra de Guimaraes Rosa tem como sum de seus prineipais vetores levar 0 leitor & reflexao, induzi-lo a pensar, que é uma das principais fungdes da arte, e é neste sentido que ela se faz fundamental em qualquer tempo e lugar. Nao € & toa que ela tem sido traduzida para diversos idiomas ¢ ‘tem encontrado leituras em diferen- tes midias. No Brasil, onde a eduea- «gio é ainda artigo de luxo e eada vez menos valorizada pelas autoridades governamentais, cla desempenha ‘um papel extremamente relevan- te, se nao mais por ehamar aten¢ao para este fato. = Sala de Informatica — BO9 008 Instiuto 9) paannas UNISNOS Campus Unisinos Sao Leopoldo Iy/oficina-ibge 43 44 O amor, a vida e 0 encontro com as mulheres rosianas Adair de Aguiar Neitzel, profes ora e pesquisadora da obra de Guimaraes Rosa, discute 0 papel das mulheres em Grande ser THU On-1 jo: veredas Ricardo Machado R aldo, o narrador protagonista ‘de Grande sertao: veredas, 6m personagem que s6 percebe sta complexidade e passa a compreendé-la melhor no encontro com as mulheres. “f nas mulheres que ele [Riobaldo] encontra energia para se reconhecer, uma espécie de ritual, e por isso todas clas contribuem para a construgio do masculino. Essa é uma obra que fala sobretudo do amor eda vida, eo encon- tro de Riobaldo com essas personagens femininas o fertiliza’, pondera Adair de Aguiar Neitzel, em entrevista por fortes, temidas, cuja aparéneia fisiea muitas vezes causa asco, que detém 0 verbo, simbolos de resisténcia no ser- ‘Ho, sua positividade esta nas rezas que praticam, e, ao mesmo tempo que pro- yocam medo, anunciam a boa nova, si também protetoras”, complementa. Nesse universo, Diadorim é talvez a personagem feminina mais central da ine — Quem sao e Urubuquaqud, no Pinhém: Mios6- obra. “E pelas mios de Diadorim que Riobaldo passa do estado fisico para © estétio e deste para 0 Moral. Mas é uma relagao marcada pela ambigui- dade, contradicdo, angistia de estar se envolvendo com um homem. Essa tensio que se estabelece entre ambos, por conta de uma paixio impossivel nna jaguncagem, torna esse amor uma neblina. Diadorim 6 a personagem que consegue lidar com o feminino ¢ o mas- caulino, sem que um sufogue 0 outro”, explica. Adair de Aguiar Neitzel é doutora em Literatura pela Universidade Fede- ral de Santa Catarina - UFSC. 6 profes- sora titular da Universidade do Vale do Itajaf, onde orienta pesquisas no Mes- trado e Doutorado em Educacio,¢ lider do Grupo de Pesquisa Cultura, Escola € Educagao Criadora. & autora de Mu- theres Rosianas (Florian6polis: UFSC Univali, 2004). Confira a entrevista. sente desejo carnal) das mulheres como se caracterizam as mu- theres rosianas? Adair de Aguiar Neitzel — Tra- 20 no livro Mulheres Rosianas uma anilise das figuras femininas de Grande sertao: veredas e nesse sen- tido 0 titulo revela uma “traigéo”, no so todas as mulheres rosianas, certo? Falo de um grupo de mulhe- res senstais, que desfilam na obra de forma erética, mulheres dadivosas ‘que so “fémeas no fogo do corpo”, ‘como fala Guimaraes Rosa na obra tis, Rosa'uarda, Nhorinhd, Maria- da-Luz © Horténcia. 14 um outro grupo poderoso que contribui para a ascensio de Riobaldo pelo poder a palavra que Ihe é conferido, sio Jaina Calanga, Maria Leéneia, Maria ‘Mutema, Ana Duzuza e a Mulher do Hermégenes, Otacilia eu relaciono a0 mito Marial porque por ela Rio- aldo mantém uma devogao exacer- ada, construindo-se uma erdtica celeste ao set entorno. E buseo em Diadorim entender a forca ersti- ca (afinal por ela Riobaldo também dadivosas do primeiro grupo, assim como o poder da palavra que a apro- xima do segundo grupo. THU On-Line ~ Qual a relagio de Riobaldo, protagonista de Grande sertao: veredas, com as mulheres especialistas em “artes mégicas”? Adair de Aguiar Neitzel — Bene- dito Nunes fez um estudo sobre essa obra em 0 dorso do tigre (Sao Paulo: Editora 34, 2009) que aponta para a REVSTAINU ON-LINE “E nas mulheres que ele [Riobaldo] encontra energia para se reconhecer, uma espécie de ritual, e por isso todas elas contribuem para a construgao do masculino” cescalada ascensional de Riobaldo em sua travessia pelo sertio, ¢énasmu- Iheres que ele encontra energia para se reconhecer, uma espécie de ritu- al, € por isso todas elas contribuem para a construcio do. masculino. Essa 6 uma obra que fala sobretu- do do amor e da vida, ¢ 0 encontro de Riobaldo com essas personagens femininas o fertiliza. Mesmo com as ‘mulheres que nao encantam pela vo- Iuptuosidade do corpo, Riobaldo en- xerga nelas a energia espiritual que necessita para reordenar 0 aos, € esse movimento ascensional de Rio- baldo se dé no encontro, no respeito, na relagio, e quando nao éassim, ele busca afastar-se das suas memérias, ‘como acontecen com Miosétis. IHU On-Line — Maria Mute- ma, Ana Danuza, Izina Calan- ga e Maria Leoncia sio todas personagens de Grande serta veredas. Como elas se aproxi- mam e se distanciam entre si, como elas compéem o mosaico de mulheres rosianas? Adair de Aguiar Neitzel - Mu- Theres fortes, temidas, cuja aparén- cia fisica mutitas vezes causa asco, «que detém 0 verbo, simbolos de re- sisténcia no sertio, sua positividade esti mas rezas que praticam, e, a0 ‘mesmo tempo que provocam medo, anunciam a boa nova, so também protetoras. Em um lugar como 0 ser- tio, cheio de superstigoes e erengas (diz Riobaldo j na primeira pagina do livro que 0 povo de la é praseé- vio) essas mulheres sio poderosas pela aura de sacralidade que as en- volve. Seus poderes so encantaté- rios, E mesmo Maria Mutema que no € rezadeira exerce grande poder sobre os homens com quem se rela~ ciona porque os abate, sem dé nem piedade, e o faz sem motivos expli- citos, como uma feiticeira consegue convencer o padre de uma culpa que no tem. O dio é 0 ingrediente que a mutre. Mas, como tudo é e nao ée viver é muito perigoso, essasmilhe- res também se metamorfoseiam e do ‘mal surge o bem e viee-versa. Bis 0 mosaico feminino de Grande ser- tao: veredas. IHU On-Line - Como se cons- tr6i a nogéo de amor em Gran- de sertao: veredas? Do que se trata a “erética celeste” entre Riobaldo e Otacilia? Adair de Aguiar Neitzel — Bom, {i falei que ha toda uma constelacdo amorosa criada por Guimaries Rosa nesta obra, nessa constelagdo o amor 6 manifestado de varias formas, ¢ Otacilia representa um amor mais spiritual. Para Benedito Nunes, “0 amor carnal gera o espiritual e nele se transforma”. Nesta légica, 0 en- contro de Riobaldo com a5 mulheres dadivosas do sertio 0 estao revitali- zando e preparando-o para o encon- ‘10 com Otactlia. Quando eu falo em erdtica celeste estou enfatizando que a relaggio de Riobaldo com Otacilia & de salvagio pela purificagio, por isso eu a relaciono com 0 mito Marial. ‘Todas as lembrancas de Riobaldo tecidas em tomo de Otacilia despon- tam um amor sublime, platénico, ‘mas principalmente total, sensivel & inteligivel, uno. Otaeilia quem de- volve a Riobaldo a sobrevida, a pos- sibilidade de reorganizagao do caos nno qual ele se inseriu na jagunga- gem, ela 6 seu porto seguro, manso € com ela busca dar vazao ao seu ser ‘ndo-jagunco. IHU On-Line — De que forma Diadorim se converte em nebli- na para Riobaldo? © que isso significa? Adair de Aguiar Neitzel — A re- lagao de Riobaldo com Diadorim é conflituosa porque esta Ihe mostra ‘um mundo sensivel que ele ji havia esquecido ao entrar na jaguingagem (mas que sta mae Bieri tao bem sot- be introduzir). f pelas mas de Dia- dorim que Riobaldo passa do estado fisico para o estético e deste para o Moral. Mas 6 uma relacio marcada pela ambiguidade, contradicio, an- ‘gistia de estar se envolvendo com uum homem! Essa tensiio que se es- tabelece entre ambos, por eonta de ‘uma paixio impossivel na jagunga- gem, torna esse amor uma neblina. Diadorim é a personagem que con- segue lidar com o feminino e 0 mas- culino, sem que um sufoque o outro. Forte no combate, mas sensivel na apreciagao da natureza. Esta conjun- cao do sensivel e do inteligivel mos- tra sua fecundidade. Mas Riobaldo ainda nao esta pronto para ver. Ele nndo consegue perceber. E por isso Diadorim é sua neblina. Neblina que vai se dissipar apenas na revelagio que ocorre na batalha final IHU On-Line — Riobaldo se move na vida pela sua questio em torno da existéncia ou néo 45 46 do diabo. Diadorim se move dorim portaomasculinoeofeminino Adair de Aguiar Neitzel — As ‘com 0 desejo de acabar com 0 ¢ isto permite que, mesmo na aspe- questées trazidas por Guimaraes Mal do sertao. Como os dife- reza do sertZo, ela tenha uma fungio Rosa so superatuais ¢ por isso é rentespropéston de cada er ordenador tal il de Rilo, sna oa-prima que m0 pode f- Sonagem traduzem papéis dos mas tem sobre cle uma vantagem: @caresquecida, e dentre essas ques- homens e das mulheres nesta feminino. E aqui esti um ponto ase toes a que mais me interessa hoje ‘obra e fora dela? pensar: niiohé mulheres quesiowsa- ¢ a da barbrie na modernidade. ir de Aguiar Neitzel — Pen- “aSehomens quesiousurpadoresde Estamos cada ver. mais sozinhos, So tus tote ovitionad de Rio pravres, oq eros nea obra so esquecidas dos princinios que for baldoede Diadorim se diem torn omens € mulheres que necessitam mam a coletividade (que regiam esta questio do mal edo bem, Ay Ymdooutro ecada um oferece ao ou- inclusive a jaguncagem), de cos- Tongo da travessia que ainbos fazem, 0 odue tem de melhor. tas para a natureza, para a vida do envolvimento dos dois, das desco- A ae o al, tem: fomado baiaqwopranjuiossuaes ie - outa deta. Vivenia acon: tuaduzem que todos nés somes bons PLAS MAOS _ teluta entre o bem e 0 mal e mais Gadi b aoe daha oe EASES : A do que nunea precisamos pensar Gobomem Ocspagoquedanos pan AE DiA@COriM em como nossos sentidos estio o bem ou para o mal é que vai deli-~ R b Id embotados. Grande sertdo: vere- nitar os eaminhos que titharemos, — QUE KIODAIGO das ¢ um tvzo ive fevers nose Pasmedes elgi 2008 Gis Haale fa sensibilidade para com 0 n6 ‘esta pesquisa em torno das mulheres passa do entorno, nos conv lar para rosianas, percebo que Diadorim reve- a ‘© mundo vivido, a compreender a la-nos como o ser humano necessita estad Oo fi SICO en humana, - Sees ‘o vlln: pra 6 aia ducati ct é lo pensamente e aubretuda é umn a, porque oquefaz Diadora juntoa =~ PETA O ESLELICO Gyn sobreo amore sobre a vida, Riobaldo é passibilitar que ele perce E em uma época em que o merea- ommiiinaawemi | © deste para faut quer publiear aquilo ‘turas, seu cheiro, deixar de moer no o Moral” que vende, dando espaco cada vez spero, apreciara belezura do mundo ‘mais para o bestseller (0 fast food (quem mi no asipro, nio fantasia, Ga literatura), nao custa lembrar 0 ‘afirma Guimaries Rosa). Neste sent. IHU On-Line — Qual a impor- que faz esta obra ser tio emblema- lo, talvez os propbsitos de Diadorim taneia de ler e reler a obra de tica: 0 tratamento que o autor dew Riobaldo sejam iguais porque Dia- Guimaraes Rosa no Brasil atual? linguagem! = Oficina De Olho na Metropole: Dados e anilises sobre a Regiao Metropolitana de Porto Alegre 13 de agosto 14h as 17h Campus Unisinos Sao Leopoldo MANTAS UNISINOS bit.ly/oficina-metropole REVSTAINU ON-LINE Atar-se ao mastro para ouvir 0 canto mistico da sereia rosiana Eduardo Guerreiro B. Losso analisa a obra de Guimaraes Rosa em perspectiva com a critica literdria e a tradigao de escritores ligados mistica Ricardo Machado s tradigdes laiea e mistica na critica literdria tém entre si um }ceano, mas é preciso, a despeito do temor que a tarefa suscita, transitar de um lado a outro, unindo mundos e produzindo tensionamentos miituos “Parece que a propria energia de rejei- ‘gdo que a mistica carrega diante do es- larecimento contém um potencial pe- riculoso, que nio pode ser despertado, nio pode ser despertado justamente por aqueles que se dedicam a critica da dominagio”, desereve Eduardo Guer- reiro B. Lasso, em entrevista por e-mail A THU On-Line. “Pois acho, justamen- te, que a defesa de Rosa do predominio da dimensio metafisico-religiosa de sua obra tem a ver com o desejo dele de ‘mexer com esse perigo, jé que, se tem alguém que gosta de perigos, é ele”, ‘complementa, Seo tema parece demasiadamente abs- ‘rato, nada pode ser mais imanente que a radiealizagao da polarizagdio que mostra sta face nos mais variados campos, para ‘quem a dimensio mistiea é reduzida a cetiqueta do conservadorismo, de uma forma caricatural e imprecisa. “Em tem pos de polarizagio politica e consequen- te emburrecimento dos extremos, seria ‘bom aprendermas algo mais com figuras de alto nfvel que circularam espagos que ‘no se comunicavam; cireulavam nao s6, ‘como a melhor critica de Rosa tanto in- siste, entre o espago nfo letrado eo letra- do, reunido de maneira peculiar na figura do jagumeo-letrado que 60 Riobaldo, mas também entre espagas sociais e ascéti- os”, pontua o entrevistado. Ao finalizar a entrevista, Losso nos provoca a pensar sobre como a secula- izagio radical engendra algo, também, de mistico. “Resta saber até que ponto essa secuilarizagio do demoniaco, visto pelos desencantados, niio tem também algo de mitico, religioso e encantador, a seu modo. Resta saber se o desencanta- mento também nio tem o sen encanto verbal — mefistotélico, methisico, siré- nico”, ressalta. No fundo, Ulisses nos assombra no plano do presente. “O qne 6 melhor: tampar os ouvidos e nao ou- vir sereias, para nfo ser capturado por las, ou prender-se num mastro e ouvir o-seu terrivel canto?”, questiona, Eduardo Guerreiro Brito Los s0 & professor associado de Teoria literaria do Programa de Pés-Gra- duagio em Ciéneia da Literatura da UFRJ e bolsista de produtividade do CNPQ. Membro permanente do Pro- grama de Pés-Graduagio em Ciéneia da Literatura da UFRJ e coeditor da Revista Terceira Margem, do PPG- CL da UFRJ. f graduado em Letras ‘mestre e doutor em Ciéncia da Litera- ‘ura pela UFRJ, com estgio na Uni- versitat Leipzig, Alemanha. Entre os livros que organizou, destacamos Di- Serencia minoritaria en Latinoamé- rica (Georg Olms, 2008), O carnaval carioca de Mario de Andrade (Azou- ue, 2011) ¢ Miisica Chama (Cireuito, 2016). Ainda é autor de Renato Re- zende por Eduardo Guerreiro B. Los- $0 (EAUERJ, 2014). Confira a entrevista. 47 IHU On-Line - Como ler Gui- Eduardo Guerreiro B. Losso mistiea no 6 mistico, logo, no se maries Rosa em chave de leitu- - Devo comegar recusando a soliei- propde nem a apontar algum tipo ra mistica? taco da pergunta: meu estudo dade mistica em escritores modernos, 48 muito menos em prometer alguma “chave de leitura mistica” de suas ‘obras, Se tal questo quer chegar a0 ssuprassumo da manifestagio divina na elevagao genial da obra literéria, 86 posso decepcioné-lo. E precisa- mente por causa desse tipo de de- manda transeendente que a erftica laica rejeita qualquer exame da rela- ‘do entre literatura e mistica: quem Dusea mistiea em literatura, quer ‘encontri-la nela a todo custo, logo, nio respeita a autonomia da’obra No meu trabalho, é preciso percor- rer muitos problemas ¢ dificuldades para que o dificil relacionamento en- tre eriticos ¢ misticos encontre algo diferente do que irtitagio e repiidio rmiituo entre as partes. De fato, a critica rosiana, por mais variedades que contenha, durante um bom tempo se dividiu em duas grandes formas de_interpretagio, nas palavras de Willi Bolle esotéri- cco-metafisica e hist6rico-sociologi- cca. A primeira j4 produziu, no final dos anos 1960 e a0 longo dos 1970, livros de Benedito Nunes? ¢ Con- suelo Albergaria, sendo o primeiro de viés mais filos6fico e o segundo, esotérico. O grande impulso veio nos anos 1990, com livros de gran- de folego de Kathrin H. Rosenfield2, oe icomenecimen imams Sree nance pepe ete nee Sete teers Sour temnnees ioecireiecceeaaes cei chat aie cen Sens crest ata Sos cermin heoeemeeoemon {tte o deem ear eat oneal Eee Sin gece ntsc etnies See Peper fesece ior oma ops eter tamfeaeerncr ts Eee emis Shain Sais esate See Boar es etre: Cee ae Setar achetre aa So eta eet da Senos Sarah raftsieeenec aie Sopencas crmamer ee Francis Utéza‘ e Heloisa Vilhena de ratio’ e Tania Serra’. No dia 30 de jumho de 1996, 0 Caderno Mais! da Folha de So Paulo se dedicou @ apresentar uma matéria longa, ‘com varias entrevistas, sobre a ex- plosio dessa vertente eritiea, Num tensaio de 1998 chamado 0 pacto no Grande Sertao — Esoterismo ou lei fundadora, Bolle constata, com tristeza, “um claro predominio das interpretagdes esotéricas ¢ metafi- sicas. Nelas, a historia, via de regra, Geclipsada”. Dentro desse espectro, nomes como Rosenfield ¢ Nunes, ainda que criticados por relacionar elementos das obras a diferentes tradigdes ocidentais litersrias, reli- giosas ¢ filoséficas, e nao darem 0 ‘peso devido aos elementos sociais Drasileiros vigentes nas narrativas, como querem os outros criticos, praticam uma abordagem filoséfi- ‘ca que sempre foi respeitada, bem como ndo imputam ao Rosa um determinado sentido subjacente primeiro. 4 abordagens eomo a de Albergaria, Utéza, Araijo e Serra ‘expdem um modelo de compreen- sio esotérico, hermético, perenia- lista ou junguiano. Dentro da teoria literdria, ha uma corrente de estudos do ima- ginario, baseada em Jung’, Bache- ee Srasoae care peog ae ‘eimai tse ese Gamat taco Sieg Sa amnatcnaaics Siem is acees serene Soc Shoe acs Pinar tras aca i nave Cee Se et aren cae eee tenemn te ona oe Face olsen Soo rere Sorc imiieemee ane fiecae Soeatian ona Sate erento eee nea saatlce tianaeearach ape Sete nie Seen Sas So tm preseerreie cen See racer ranean oe Shoei tierra Si aaa lard* ¢ Gilbert Durand’, que bus- cou critérios metodolégicos para esse tipo de leitura. Ainda que ela se encontre minoritariamente atu: ante, a maior parte da critica, seja a marxista, psicanallitiea, descons- trucionista, feminista, negra ou ps-colonial, despreza esse tipo de visio. Geralmente ela nao se des- taca em grandes congressos nem na arena das discussdes tedricas. No entanto, na eritica de Rosa, ela demonstrou um vigor peculiar, ‘© que motivou Bolle a chamé-la de predominante, naquela altu- rra, mas que eu 56 posso ver como rum exagero. livro do tradutor francés de Rosa, Francis Utéza, Metafisica do grande sertao (So Paulo: Edusp, 1994), por exemplo, apresenta um imenso esforco de anélise minueiosa do texto sempre remontando a substratos etimo- ogicos e alquimicos. A erudicao que 0 critico hermético mobiliza € nao s6 desconhecida da maioria dos outros eriticos como desperta desconfianga ¢ indiferenga. Afinal, parece que ele s6 quer chegar a uma sabedoria hermética arcaica e unificadora. A critica laica (permito-me cha- mé-la assim, na falta de nome melhor) é pés-iluminista: ela tem por principio o questionamento da submissio da literatura a doutri- nas religiosas, pois tal subservién- cia impede a liberdade ficcional ¢ também a liberdade interpretati- va. Por isso, é imperativo sem separar a literatura da reli pois religiio sempre significa, para ela, espirito de culto, obe- digncia © superstigao. O sentido marxiano das palavras mistica e mistério sempre resguarda esse trago semantico. Quando se apresentam os maio- res nomes da literatura moderna, a0 longo do século XVIII até hoje, suas conquistas sio vistas como uma série de graus de emancipa- Toe Rated TTD TE « po tan Sa Reet ct be acne en ene ‘tert brad G52 ex ompeesor arse ‘aot concio por sages sae oh "noematogs (eta 2M One REVSTAIMUON-UNE fi Go da forma ¢ da tematica lit Tiria em relagio a tradigao crista. Salientam-se seus gestos subversi- vos contra todo tipo de conserva- dorismo moral e estético. O legado autoritério da relacao entre teolo- gia e literatura fez eom que a erf- tiea laica nunca veja em qualquer apreciagio “religiosa”, “metafisi- ca”, “mistica” da literatura sendo a sombra do rosto do earraseo nor- teador. Ela resiste a apreeiar a po- sia da mistica: que exista alguma implicagao entre as duas, disso ela prefere nio se ocupar. A filosofia do século XX e XXI é critica da transcendéncia, busca incansavel- mente se desfazer, na medida do possivel, de qualquer raiz meta- fisiea, logo, se alguém defende a metafisica de uma obra ou autor, nao pode esperar boa acolhida. Como eu lido com isso? Faco de ‘meu trabalho 0 verdadeiro lugar de discussio desse impasse. Por conseguinte, a antinomia da criti- ca de Rosa muito me interessa. Eu buseo uma visada materialista e histérica dos tracos de mistica na literatura: ndo pretendo encontrar quintesséncias da verdade, antes, busco entender a correlagao da rica historia da mfstica, que meu grupo de pesquisa tem mapeado (Apophatiké - Grupo de Estudos Interdiseiplinares em Mistica), com a historia da literatura mo- derna, ¢ pensar demoradamente a respeito de suas implicagées teé- ricas. No artigo de Bolle que citei, ele propde “uma interpretacao que tenta extrair dos signos esotéri co-metafisicos uma compreensio historica”, a partir de Benjamin’. Se (ppl eas ptr 9 ru, Aigo ca Simon ene oer a i eae Seo oe es ‘ater tla om bare onp pe et Seiewaeetee mens Eetasegenmnneens Seseeeomenmars Seeeneecesseee econ eran orantae Socceroos ‘Sor Sot wire San Saji Sreermeeneematace Sure Satara aoe ae ‘alte it st cine A proposta esti na introdugao, ¢ 6 prometedora. Mas nao é 0 que ele faz. ao longo do artigo: a fon- ‘te que cle seleciona para extrair a Urgeschichte arcaica é a filosof da origem de Rousseau”, ¢ ela nao representa “signos esotérico-me- tafisicos”. Para lidar com esse campo, é im- prescindivel diferenciar muita coi- sa: 0 que é mito, 0 que é religiao, © que € metafisica, 0 que € esote- smo, o que € mistica, ou melhor, ual uso faremos dessas palavras, em que discusso e eom qual obje~ to. Resumindo brevemente, pode- mos falar de mito para reconhecer narrativas de substratos pré-his- t6ricos orais; religido pode ser a fundagio de uma doutrina esti- vel institucional, ja na idade da escrita; mistica seria a renovagio do fervor religioso dos fundado- res da religiao protagonizados por contemplativos apaixonados pelo divino; metafisica seria entendida no sentido nfo de conhecimento racional, mas de acesso gnéstico realidade tiitima; esoterismo seria a sabedoria secreta de iniciados num mistério, que se cristaliza ‘numa doutrina. Nessas definigdes possiveis, en- contramos fenémenos sécio-| toricos completamente diferentes, que precisam ser reconhecidos, delimitados, desencavados. IHU On-Line — £ posstvel identificar em Guimaraes Rosa influéncias ou leituras de auto- res misticos? Eduardo Guerreiro B. Losso = Rosa, enquanto leitor e pensador, esta profundamente interessado em Gitasa nT oetee 15 de ens Ro 7278 sto tr fends iiss de toss pte o> eres ‘niger « ie evga oo prt Ligon manne epicana corso e Siu Oncine ae 2-4 008 as Sonar onensoe ims. poli, depen em Wip//ORy nNOS (sot Onin cada um desses periodos histéricos € dos autores que 0 compiem, ¢ de algum modo 05 mobiliza na obra, sem sombra de diivida. Mas como? A critica esotérica deu conta desse como? Penso que nao € nesse sen- tido a erftica laica tem sua razo. Se a vertente esotérica dificilmente se sustenta num debate teérico pos- moderno, a critiea histérico-socio- J6giea nao impoe de fora seus pres- supostos, antes enontra sociedade e historia a partir do proprio texto, egado esse que Antonio Candido estabeleceu e transmitiu para novas geragdes. O trabalho pioneiro dele foi logo seguido de Walnice No- ‘gueira Galvio", Roberto Schwarz, SS eee mente ene iSeantrnloa cancer naerousetane ons saleee ene eat eet tne ces ioctataltapnereammacse See cear sie ieomeneneeoraii Sao eens pase meeenane Sina oacee- een ieee ome cemnreensene SEIS soem onenous st occas anc ota emcee meen ieee coca ne seasons cron etanae cede eiewpecmaat efi tapas lem Eespecneitoss es oe treaeone emer ‘importantes que ancou 30 Utero sociedad 965), imeoaeenechremriairaies ap ieainconaene See eset Se aaa ‘creo pola Poca 3B Onstne Wa 36 Seesentarenma aoe Eee cain eres geahencea eae panier aac esas eaaraeas Entra, wh ar tre Concoe Speitecion castes os ete Ie some te en ieerapbaienintn cep iecrariag ea uta ce Siar ect am ¢ howtcs roma wn Cncar Soca ps Urs isthe tSanam ination ge Scene emcees Seaciopuats teas 49 50 Davi Arrigueci's, Heloisa Starling’, Willi Bolle, José Miguel Wisnik”, Susana Kampff Lages'* e Litiz Ron- cari; saindo do perimetro marxista, seems Secale Se Scocrmsnmmeetamrenis Saerate nes eee etcseoscatiacectae oentaate cera caress Sarees siepecogmenecnens fee rors ees Scere ee concen nents Sarees Srecr eae Siseeeare sere eee eee eee eo eee Secon Resicrmenrcrn re Pee rs Bois eee Soeecw ome scomsa mass Grime) So hnigue Sido 120) ctor erica iterio tsi Si Jao de on Vita So Pal poker ‘ene esto lo Us ode ae ce {rola io hao rev 20 ee a, ‘Sonn etoradoCla encore 192 Sa (Porsenna Cag 190 tte mua Bondra Muto tenes © 9 masta ase) © Corgi Po Ura eae Pai flea de ra ‘ml ke Coal St fre {ao cana testo oi nuh plo eor ‘Stems se 815 leno Pres to arms ABCA ‘Til ge! 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Nao ha diivida de que essa € a eritica que den con- ‘ribuigées vigorosas para o entendi- mento de Rosa. A primeira segue as inquietagdes religiosas do autor e se perde nelas, a segunda se debruca na relacao entre obra e sociedade e cesclarece muitos aspectos de forma e fundo social de dificil compreen- sfo. A ironia é que Rosa se queixou ‘de quem queria reduzir seus anseios metafisicos a regionalismo, mas ‘quem o seguiu em sua religiosida- de foi mais infiel a sua obra do que quem trabalhou com as dimensdes ‘ais modestas de forma e contexto. Logo, a indisposicio da segunda eri- tica com a primeira tem sua razao. Mas ela perde a raziio quando sim- plesmente despreza, desearta, dis- pensa, sistematicamente, qualquer estudo aprofundado do fendmeno religioso e especialmente mistico, ¢ lide qualquer ligagao deste com a li- teratura moderna. A critica laica nfo ‘pereebe que seu menosprezo da rela- ‘Go entre mistiea ¢ literatura é 0 que mais contribu para a debilidade dos resultados de seus estudos, 14 que é especialmente ela que poderia con- tribuir para seu fortalecimento. O estado insatisfat6rio da maioria dos estudos sobre mistica na literatura ‘moderna parece que justificam odes- ‘dém dos pesquisadores laicos pelos religiosos, enquanto que, para mim, € prova de que se deveria levar tal ‘campo a sério. Parece evidente que (6 laos se interessam por assuntos laicos misticos se interessam por assuntos misticas, enquanto que, a ‘meu ver, dever-se-ia comegar a se dar justamente 0 contrario:é preciso ‘que um laico se interesse pelos pro- ort) 1 kare fra Cou um doen ears ‘te a ns compart PE at Ue eer eadinn troy cm partcpaedestencnem ‘2 Ur pote vitome em vrs wees ‘ioscan te ene: Ucn (Go (ors Oona HAL FU vce wean Ga A ‘Sisco mira tn Compr AAC (Gach Sin ce Lines Compare ee ‘peste do ANPOLL sod Nal de Ps ‘Gedo rexqus.on fetes Unga, ttn ‘Sconaha bcutaa soesnao sateen Bete Soo Seago’ ezioy ti, aptasor do irene em 17 et 60 MU Ome) blemas metodologicos ¢ tedricos de assuntos misticos, é preciso que as~ ssuntos misticos sejam estudados em espacos piblicos universitérios, em vex de serem s6 vividos em espagos seeretos e foruns interiores. Nesse sentido, ew me considero,

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