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DAVID ARMITAGE
Não estava pesquisando o tema das guerras civis, mas tive a sensação de que fiquei preso, e
em um local inesperado. Há 12 anos, no apogeu da segunda guerra do Golfo no Iraque, eu
trabalhava na magnífica biblioteca Huntington, nas cercanias de Los Angeles. O centro
possui uma coleção de arte e jardins de fama mundial e um dos melhores arquivos de
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manuscritos e livros raros dos Estados Unidos. Ocupa edifícios neoclássicos que parecem
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reluzir sob um sol perpétuo, de modo que não é exatamente o cenário em que alguém
pensaria encontrar as ações mais selvagens cometidas por um ser humano contra outro. E,
entretanto, foi lá que encontrei o tema do meu livro As Guerras Civis: Uma História em
Ideias.
A indagação sobre o que era exatamente uma guerra civil era discutida
com paixão. Definida em função do número de vítimas ou da comunidade
que a sofria? Dependia da identidade dos combatentes ou dos objetivos
dos grupos em combate? As acepções do termo eram voláteis e parecia
Hemingway e as
que não havia como entrar em acordo. Descobri então que essa mesma guerras
confusão já havia ocorrido antes, na década de 1860, durante a Guerra de
Secessão de 1861 a 1865, um conflito que os norte-americanos chamam
de Guerra Civil.
O passado não se repete, de acordo com uma frase atribuída ao escritor Vídeo Pelo
norte-americano Mark Twain; mas evidentemente se parece muito. E menos 95
mortos e 158
assim, no ensolarado sul da Califórnia encontrei uma notável semelhança feridos com a
entre a guerra do Iraque e a guerra civil norte-americana. A Biblioteca explosão de uma
ambulância-
Huntington tem os documentos de Francis Lieber, um advogado prussiano
bomba no
que no século XIX emigrou aos EUA e durante a Guerra de Secessão Afeganistão
elaborou as primeiras leis de guerra, o antecedente direto da Convenção
de Haia e da Convenção de Genebra que regem os conflitos bélicos ainda
hoje. Quanto estava redigindo-as, pensou que precisaria oferecer uma definição de guerra
civil para situar o tipo de conflito a que as normas seriam aplicadas. Não pôde encontrar
nenhuma descrição legal de guerra civil e dedicou muito tempo a criar uma.
Na Califórnia, enquanto recrudescia o debate sobre como chamar o conflito que assolava o
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Usar uma categoria como guerra civil para definir o ocorrido na Síria
e no Iraque tem consequências morais e políticas dentro e fora dessas
regiões
Iraque, li as cartas de Lieber em que se queixava sobre como era escorregadio o conceito de
guerra civil. Em 1863 era difícil defini-lo porque não existiam precedentes. Em 2006
também, porque existiam muitos, e porque o termo estava carregado de política e ideologia.
Seriam talvez esses dois momentos parte de um mesmo elo da história? Demorei quase 10
anos para responder essa pergunta.
Nunca imaginei que a pesquisa me levaria a percorrer 2.000 anos de História. Segui a pista
do que chamo de “a história das ideias” em relação às guerras civis da invenção do conceito
no século I a.C. aos seus controversos significados em nossa época. Ao falar de “história das
ideias” me refiro ao relato, construído durante muito tempo, através de sucessivas batalhas,
sobre o significado e a aplicação de determinados conceitos; nesse caso, em relação à
guerra civil. Meu objetivo era demonstrar que os debates contemporâneos sobre o que é e o
que não é uma guerra civil, em países como o Iraque e a Síria, nasceram do choque entre
noções do que é uma guerra civil opostas e herdadas do passado.
Minha história das guerras civis abarca da antiga Roma ao presente. Em primeiro lugar
pesquiso as diversas noções de guerra civil do século I a.C. ao século V d.C. Os romanos
inventaram o conceito de guerra civil para referir-se a conflitos entre concidadãos – em
latim, cives, palavra da qual derivam “civil”, “civismo” e “civilização”, entre outras – que
adquiriam o caráter de guerra. Os gregos não tinham mais do que tumultos e sedições,
diziam os romanos: nós fomos os primeiros a ter guerras civis.
As ideias romanas influenciaram decisivamente os debates sobre a guerra civil, sobre sua
normativa e sua definição legal, sobre como reconhecer seus sintomas, sobre sua gênese,
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sobre as probabilidades de que se repita. As guerras civis foram tão frequentes na história
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da República de Roma e nas primeiras décadas do Império Romano que pareciam fazer
parte do próprio tecido da vida pública. Essa terrível história deu lugar a um relato – a uma
série de relatos – em que Roma aparecia como uma civilização propensa à guerra civil, até
mesmo condenada a ela, uma ideia que persistiria durante séculos e inspiraria
interpretações da guerra civil na idade moderna, na Europa e além. Durante mais de um
milênio e meio, a guerra civil foi vista através do prisma romano.
A guerra civil parecia retrógrada, destrutiva e reacionária: a revolução, pelo contrário, era
fértil e progressista, e olhava em direção ao futuro. As guerras civis que triunfaram – como a
da independência dos EUA – tiveram o nome mudado para serem chamadas de revoluções,
e os participantes negavam ter travado uma guerra civil. Tudo isso desembocou em uma
conjugação política muito moderna: eu sou revolucionário, você é rebelde, eles estão
envolvidos em uma guerra civil.
A grande contribuição do século XIX à história das ideias em relação à guerra civil foi a
tentativa de “civilizá-la”, de controlá-la por meio do direito, começando pela redação das leis
da guerra iniciada por Lieber na década de 1860 e que teve sua continuação nas revisões da
Convenção de Genebra após a Segunda Guerra Mundial.
No século XX, a guerra civil se estendeu a todo o mundo. Os limites da comunidade em que
esses conflitos eram travados se ampliaram além dos limites dos Estados e dos impérios
para abarcar toda a humanidade, sob a ideia de “guerra civil global”, que apareceu pela
primeira vez na década de 1960, no contexto da Guerra Fria.
Essa noção de uma guerra civil mundial ressuscitou envolta em islamofobia após os
atentados de 11 de Setembro, para designar a expressão em escala mundial da divisão
fundamental entre sunitas e xiitas dentro do Islã como motor do terrorismo internacional.
parte de nossa confusão conceitual sobre o que é, e o que não é, uma guerra civil. A história
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sedimentada dos conceitos em relação à guerra civil remonta à República Romana e sobre
ela foram acrescentadas depois as capas legislativas – com a linguagem do direito – e a das
ciências sociais. Tudo isso gera controvérsias em nossas próprias interpretações do
conceito.
A escolha de uma categoria como guerra civil para definir o ocorrido no Iraque e na Síria tem
consequências morais e políticas. Decidir se o que estamos vendo é uma guerra civil pode
ter repercussões políticas, militares, legais e econômicas tanto aos que vivem no país
devastado pela guerra como aos que estão fora dele. Pode ser questão de vida ou morte
para dezenas de milhares de pessoas, normalmente as que têm menos capacidade de forjar
seu próprio destino. E tudo isso parece especialmente urgente em nossa época porque os
principais conflitos travados hoje no mundo – como o Afeganistão e o Iêmen – são guerras
civis.
Existem hoje 50 guerras civis no mundo, mas parece que são cada vez
menos numerosas depois de chegarem a um pico em 1989
As guerras civis causaram mais de 25 milhões de mortes desde 1945 e calcula-se que
custam mais de 123 bilhões de dólares (400 bilhões de reais) por ano, aproximadamente a
mesma quantidade que os orçamentos dos países do hemisfério norte destinam a ajudar os
países do sul. Nosso mundo continua sendo um mundo de guerra civil.
Apesar dos horrores que descrevo, minha tese é que a guerra civil não é uma maldição
congênita da humanidade, como disseram muitos, mas uma doença da qual podemos nos
curar gradualmente.
Apesar de hoje existirem quase 50 guerras civis abertas no mundo, dá a impressão de que
são cada vez menos numerosas, após alcançarem um pico em 1989. Nos últimos anos duas
guerras civis importantes acabaram, a primeira no Sri Lanka (1983-2009) e depois na
Colômbia (1964-2016), após décadas de morte e destruição. O hemisfério ocidental está
totalmente livre de guerras civis quase pela primeira vez em dois séculos.
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Ideas
David Armitage repassa em seu ensaio As Guerras Civis a história intelectual do confronto
fratricida, teorizado pela primeira vez durante a Roma clássica. "Nossas ideias sobre a
guerra civil transmitem a dor de dois milênios. E essa dor continua perturbando nossa
política ainda hoje", escreve o professor de Harvard.
2. Cruzar o Rubicão
Tanto a República romana como o Império, após a morte de Júlio César e a chegada de
Augusto ao poder, viveram terríveis confrontos fratricidas. Foram eles que criaram o
conceito, aparentemente contraditório, de bellum civile, guerra civil porque não existem
conflitos tão incivis como os internos. O poeta cordobês do século I de nossa era, Lucano,
sobrinho do filósofo Sêneca, foi o primeiro grande narrador de uma guerra civil em seus
versos. "Jamais uma espada estrangeira se afundou / dessa forma: são as feridas infligidas
por mãos de concidadãos as que mais profundamente penetraram". O símbolo das guerras
civis romanas foi quando Júlio César decidiu cruzar o Rubicão e entrar na Itália com suas
legiões, o que era proibido para qualquer general.
3. Matança em Paris
Michel de Montaigne, autor do livro que inventou um gênero, Os Ensaios, foi testemunha
das guerras de religião que se abateram sobre a França durante o século XVI. De fato, a
Europa viveu durante os séculos XVI e XVII um interminável período de guerras civis, que
na França foram especialmente cruéis, com episódios terríveis como a matança de São
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