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BRASÍLIA
2019
Brasil Desconstituinte e o processo de mudança: conflitos, interesses e possibilidades a partir
de uma análise da Emenda Constitucional 95 e a capacidade instituinte em disputa
Diego Mendonça
Introdução
O ano de 2019 começa com uma notícia alarmante para a seguridade social do país: a
dotação orçamentária para áreas sensíveis e fundamentais não conseguirão sequer repor a inflação
do ano anterior. Só na área da saúde, que deve ser analisada de forma integrada ao se tratar de
políticas, serviços e impactos sociais na seguridade, ocorre um decréscimo real de
aproximadamente R$ 6,6 bilhões no orçamento de suas ações e serviços públicos 1. Um impacto
negativo concreto no financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS).
Isso decorre das regras fiscais vigentes, em especial a Emenda Constitucional 95 de 2016,
apelidada de “PEC do Fim do Mundo” no período de sua tramitação, que fixa um teto para os
gastos públicos na Constituição e ocasiona reduções drásticas no orçamento de áreas estratégicas.
A exemplificação acima mostra o impacto real de medidas políticas e ações legislativas no
período recente da nação, um conjunto de operações deliberadas que acarretam, dentre outras
consequências, uma situação de retrocesso em direitos e desfiguração das garantias até então
asseguradas com centralidade no texto constitucional.
A gravidade destas medidas, que tocam o presente de maneira austera, se intensifica ao
projetar seus impactos na realidade que se abre às próximas gerações, visto que a referida Emenda
estipula um prazo de vinte anos de vigência. E nisso, não se pode deixar de destacar que 2019 é
apenas o terceiro ano do novo regime fiscal.
E não é só na área da saúde e seguridade que se sente os efeitos nocivos destas medidas.
Educação e Ciência e Tecnologia, campos nevrálgicos para qualquer projeto de pesquisa e
desenvolvimento, sofrem cortes orçamentários robustos no segundo semestre de 2019.
No início de setembro deste ano, foi anunciado o bloqueio de aproximadamente 11 mil
bolsas de pesquisa no país. Posteriormente, o Ministério da Educação modificou sua decisão e
voltou atrás com 3.182 bolsas, estabelecendo um novo critério na destinação deste recurso, o de que
ele seria destinado apenas a programas com notas entre 5 e 7 na avaliação da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
1 Tomo como referência o artigo do economista Bruno Moretti na Carta Capital, disponível em:
<https://www.cartacapital.com.br/saude/gracas-a-pec-do-fim-do-mundo-orcamento-do-sus-cai-em-2019/>. Acesso
em: 19 abr. 2019.
No mesmo período, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) anunciou a dificuldade e mesmo inviabilidade de honrar os compromissos assumidos ou
beneficiar novos incentivos de pesquisa em forma de bolsa até o final do corrente ano.
Em entrevista ao Jornal da USP em agosto passado2, João Luiz Filgueiras de Azevedo,
presidente do CNPq, informou que não havia de onde “tirar mais dinheiro” do orçamento do órgão,
e que a possibilidade imediata que existia seria uma verba bloqueada de R$ 22,5 milhões,
originalmente destinada a fomento (financiamento de projetos), que poderia ser desbloqueada e
convertida para o pagamento de bolsas, o que resolveria uma parcela muito pequena do problema,
visto que para cobrir os últimos meses do ano seriam necessários R$ 330 milhões.
Ainda na matéria do referido jornal, conclui-se que uma das dificuldades para se solucionar
a questão é que a “lei do Teto de Gastos amarra o orçamento da União à inflação e impede que ele
seja ampliado no decorrer do ano”, do que decorre que, para se elevar o limite de gastos do CNPq, e
consequentemente pagar o que falta das bolsas, o governo precisaria tirar esse dinheiro de algum
outro item do orçamento. Com isso, abre-se uma lacuna em outra área, o que não obstante ocasiona
um processo de disputa por recursos entre pastas governamentais e setores estratégicos sem a
possibilidade de satisfação mínima de todas.
Em outubro, após forte reação da sociedade e de mobilizações nos setores da educação e
pesquisa, o governo federal cede e anuncia através do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações
e Comunicações (MCTIC) que a verba para o pagamento das bolsas do CNPq está garantida até o
fim do ano. Segundo anuncia a pasta, houve uma suplementação à Lei Orçamentária Anual (LOA)
de 2019 através de um Projeto de Lei (nº 41) e uma portaria que seria assinada pelo ministro da
Economia3.
Diante deste imbróglio ainda não solucionado, fica evidente o problema da limitação
orçamentária ocasionada pelas novas regras fiscais, situação que se soma à postura política da atual
gestão federal que não se acanha em declarar o ambiente universitário e acadêmico como hostil,
algo a ser controlado e mesmo combatido. Como saldo, pode-se deduzir que, ainda que a situação
temporária do CNPq se resolva, a realidade da pesquisa científica e dos pesquisadores em diversos
níveis já foi prejudicada. A situação da CAPES segue dramática.
Esta incursão por exemplos palpáveis tem o objetivo de relacionar concretamente os efeitos
nocivos que uma alteração na Constituição pode causar na realidade do país, prejudicando de uma
forma substancial a efetivação dos direitos humanos a partir do poder instituído e suas obrigações
2 Matéria no Jornal da Universidade de São Paulo - “Sem dinheiro, CNPq deve suspender pagamento de bolsas”,
disponível em: <https://jornal.usp.br/universidade/politicas-cientificas/sem-dinheiro-cnpq-deve-suspender-
pagamento-de-bolsas/>. Acesso em: 10 set. 2019.
3 Informações obtidas através da Agência Brasil, matéria disponível em:
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2019-10/pagamento-de-bolsas-do-cnpq-esta-garantido-este-ano-
diz-governo>. Acesso em: 17 out. 2019.
garantistas, especialmente se partirmos de uma perspectiva que defende a necessidade de que estes
direitos devem ser interpretados e assegurados em sua integralidade, interdependência e
progressividade, em contraste ao quadro de regressão que se desenha nos últimos anos.
Então, podemos deduzir que o processo de mudança não está inviabilizado ou cristalizado
na estrutura constitucional do país, da mesma forma que seu oposto complementar, a permanência,
também não se fixa como totalidade. O que se tem é um arranjo reflexivo que nos remete a algum
ponto no tempo e na história, principiando ou resultando algumas consequências políticas: ao
processo de construção inexoravelmente histórico, de onde ecoam as disputas e conflitos mitigados
em um contexto pós-trauma ditatorial e que mobilizou inúmeros setores da sociedade; a uma
imposição de limites a possíveis abusos de poder no presente, imprimindo resultados concretos na
realidade; e à abertura ao futuro, visto que uma Constituição é um projeto confiante de construção
do devir de determinada comunidade política.
É certo que há um núcleo imutável condensado em garantias fundamentais. Ele é a fortaleza
última da existência constitucional. No entanto, esse núcleo fundamental não pode ser
compreendido de forma pura e isolada, ele se liga ao processo dinâmico de transformação da
sociedade a que o constitucionalismo e as organizações democráticas precisam dar respostas viáveis
e contemporâneas. Uma das dificuldades é estabelecer procedimentos efetivamente democráticos a
esse processo de transformação, visto que a estrutura representativa que temos é responsiva às
forças econômicas que a sustenta, o que assegura que muitas vezes os interesses privados sejam
sobrepostos ao interesse público. Outra é manter aberto o caminho à capacidade instituinte dos
sujeitos, singulares ou coletivos, que não se veem representados pela classe gestora política, e
precisam ter positivadas suas demandas como resultado efetivo de jornadas de luta e possibilidade
de expansão dos direitos.
Isso nos remete à reflexão de David Sánchez Rubio (2014), jurista que tem dado importantes
contribuições ao campo da Teoria Crítica dos Direitos Humanos e da discussão constituinte em uma
perspectiva outra. Ele é outro autor que lança mão de um aporte dialético, partindo da necessidade
de se historicizar os direitos, reconhecendo que tanto as garantias quanto as formas de opressão são
frutos de contextos sócio-históricos. Assim, escreve:
Ao analisar a realidade dos direitos humanos, Sánchez Rúbio identifica uma distância
abismal entre o que existe teoricamente, em especial como norma, e a prática destes direitos. Uma
separação entre o que se diz e o que se faz. De forma complementar, ele também enxerga esta
distância entre o formalizado e institucionalizado constitucionalmente e a vivência dos direitos no
cotidiano das pessoas.
Prosseguindo, o autor defende que se ultrapasse a “dimensão instituída, burocrática, formal,
normativa e pós-violatória” dos direitos humanos, na qual em geral se delega a responsabilidade de
sua efetivação, distante de seus processos sócio-históricos de constituição e significação, para uma
“cultura instituinte e de ações cotidianas de direitos humanos”.
Nessa construção, Sánchez Rubio demanda a necessidade de recuperar outras dimensões e
elementos dos direitos humanos que “nos permita ser sujeitos soberanos ativos e instituintes”,
afirmando que eles também possuem uma “dimensão constituinte que se constrói a partir das
relações humanas, tramas sociais e lutas de resistência de seus protagonistas” (2014, p. 93).
Ao abordar o funcionamento da elaboração e mudança normativa, o jurista estabelece uma
distinção entre “poder constituinte popular” e “poder constituinte oligárquico”, não sem apontar a
conveniência moderna em legitimar a apropriação das instituições por uma classe privilegiada que
recorre à retórica discursiva da categoria “povo”, soberana do poder, para se perpetuar nos postos de
mando e decisão, mesmo sob o signo da democracia. Estabelecendo uma distinção que nos interessa
entre estes poderes constituintes, Sánchez Rubio (2014) escreve:
“Los protagonistas del mundo de los negocios, las empresas multinacionales, los grandes
bancos, el FMI, la OMC, el BM y aquellas grandes potencias o estados más fuertes del
capitalismo tanto central, como periférico, con sus respectivas clases ricas nacionales, son
los poderes constituyentes oligárquicos que poseen el control y la autoridad del poder
instituido, plasmado en los estados constitucionales de derecho, y que estructuralmente
extienden el mal común sobre la humanidad. Absolutizan sus intereses por medio de
derechos como la propiedad privada, la libertad de contratos y el libre comercio. La
estrategia es utilizar el derecho estatal y la legalidad cuando conviene en unos casos, y en
otros es preferible vulnerarlo, creando normatividades paralelas”. (SÁNCHEZ RUBIO,
2014, p. 104)
Mais recentemente, Sánchez Rubio (2018) tem trabalhado com uma interessante chave
dialética a partir de um diálogo com Laval e Dardot, que é a diferenciação complementar entre
práxis instituinte e poder constituinte, sendo que este último, na esteira de Sieyès, só seria
compreendido como momento fundante e originário que, posteriormente, adjudicaria o poder
soberano a uma autoridade, que por sua vez passa a ser poder constituído. Assim, fica
sinteticamente a distinção:
Mientras "el sujeto del poder constituyente está presupuesto anteriormente a su ejercicio (y
sólo lo ejerce puntualmente), la praxis instituyente produce su propio sujeto en la
continuidad de un ejercicio que hay que renovar sin cesar más allá del acto creador y
fundador". Los sujetos coproducen reglas permanentemente, y con ellas, en su hacer
continuo, generan lo común. Su soberanía es compartida, individual, colectiva y se
construye a cada momento. (SÁNCHEZ RUBIO, 2018, p. 12)
4 Considero que o processo de impeachment de Dilma Rousseff em 2016, assim como o contexto que o possibilitou e
suas consequências, fez parte de uma grande articulação de atores e setores que empreendeu um golpe no poder
executivo e nos projetos e programas que haviam sido eleitos em 2014. Em minha concepção, não podemos nos
limitar a caracterizar o golpe como protagonismo apenas do parlamento, que foi sim um espaço e instrumento
eficaz para tal, mas como uma conjunção de protagonistas do campo da então oposição (e alguns ex-aliados) e
setores conservadores ou defensores de outro projeto econômico e mesmo de sociedade, com destaque para o meio
jurídico (dentro do poder judiciário, Ministério Público ou fora do aparato institucional) e a grande mídia,
historicamente ligada a grupos do poder e oligopolizada nas mãos de algumas poucas famílias.
5 Desenvolvo melhor este ponto em outro ensaio de 2018: “Jornadas de Junho: da esperança de ruptura ao período
desconstituinte atual”, disponível em: <https://www.academia.edu/37205383/Jornadas_de_Junho_da_esperan
%C3%A7a_de_ruptura_ao_per%C3%Adodo_desconstituinte_atual>. Acesso em: 27 out. 2019.
Alguns autores têm se proposto a analisar este período a partir de diferentes campos. Marcos
Nobre (2015), antes mesmo dos acontecimentos de 2016, propôs uma interessante leitura de que a
política no Brasil passava a operar no que ele chamou de “conservadorismo em chave democrática”.
Rubens Casara (2017) defende que não estamos diante de uma crise paradigmática do Estado
Democrático de Direito, que equivale ao Estado Constitucional. Segundo ele, o que vivenciamos se
tornou ordinário, a regra, um modo de governar as pessoas. Hoje estaríamos em um Estado Pós-
Democrático que executa as fórmulas do neoliberalismo, ao passo que garante a manutenção da
ordem e o controle das populações indesejadas. Casara entende por Pós-Democrático um Estado
sem limites rígidos ao exercício do poder, com uma aproximação entre os poderes econômico e
político, que quase voltam a se identificar. Sobre o significante “democracia”, decreta o jurista: “No
Estado Pós-Democrático a democracia permanece, não mais com um conteúdo substancial e
vinculante, mas como mero simulacro, um elemento discursivo apaziguador”. (2017, p. 23)
É com Alfredo Saad-Filho (2019)6 que vamos definir melhor os contornos do
neoliberalismo. Para este economista político, o neoliberalismo é a fase atual ou estágio do
capitalismo, sendo caracterizado como um Sistema de Acumulação (SoA, do inglês System of
Accumulation, em sua versão original), uma configuração ou modo de existência do capitalismo em
um determinado país e contexto histórico. Em uma síntese, ele define este Sistema de Acumulação
em cinco características principais:
Este marco jurídico opera, en el ámbito global, a partir de una Lex mercatoria vinculada a
los intereses de grandes empresas transnacionales, de entidades como la Organización
Mundial del Comercio (OMC) el Fondo Monetario Internacional (FMI) o el Banco
Mundial (BM). Y ha estado presente, también, en la articulación del llamado Consenso de
Washington, en América Latina, o del denominado Consenso de Bruselas, en la Unión
Europa. (2016, p. 16)
Luigi Ferrajoli (2014), mirando a realidade italiana, também contribui para uma leitura
amplificada do fenômeno. Em sua obra “Poderes Selvagens: a crise da democracia italiana”, o
jurista vislumbra um certo tipo de diferença nos processos desconstituintes, indicando que alguns
seriam “provenientes do alto” enquanto outros seriam “provenientes de baixo”. É dizer, em suas
palavras, que “os primeiros em nível político e institucional, os segundos em nível social e
cultural”, que convergem “na anulação da dimensão política ou formal, além daquela constitucional
ou substancial, da nossa democracia”. No caso, ele trata da democracia italiana, mas que, dadas as
devidas distinções, pode-se encontrar uma equivalência na democracia brasileira.
Os exemplos debatidos por estes autores, além dos demais abordados acima, nos conduzem
a uma reflexão de que podemos estar diante de um conjunto de forças que se condensam em uma
tendência global desconstituinte. Neste contexto, o Brasil, principalmente por meio da
representação de suas elites, estaria trilhando um percurso de ajuste de seus ponteiros com a
conjuntura capitalista do resto do mundo e promovendo as mudanças necessárias para o
atendimento dos interesses dos grupos e forças supracitados.
Conclusão
DEMO, Pedro. Metodologia Científica em Ciências Sociais. 3a ed. São Paulo: Atlas, 1995.
___________. Metodologia do conhecimento científico. São Paulo: Atlas, 2000.
ESCRIVÃO FILHO, Antônio; SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um debate teórico-
conceitual e político sobre os direitos humanos. Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2016.
FERRAJOLI, Luigi. Poderes Selvagens - A Crise da Democracia Italiana. São Paulo: Saraiva,
2014.
FONSECA, Lívia GD; SOUSA JUNIOR, José Geral de. O Constitucionalismo achado na rua –
uma proposta de decolonização do Direito. Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 08, N.4,
2017, p. 2882-2902.
PAIXÃO, Cristiano. 30 anos: crise e futuro da Constituição de 1988. JOTA, Opinião & Análise,
2018a. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/30-anos-crise-e-futuro-da-
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______. A construção do futuro: os 30 anos da Constituição de 1988. In: Revista Humanidades
n. 62. Dossiê: 30 anos da Constituição Cidadã. Ed. UnB, 2018b.