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Resumo:
O estudo realiza uma análise entre os conceitos: convivência familiar, família, racismo e os
limites enfrentados para a materialização desse direito quando problematizamos a
realidade de adolescentes negros abrigados. Objetivamos compreender em que medida as
relações racistas repercutem na qualidade dos serviços ofertados e de que maneira atinge a
população usuária. Pressupomos que não somente os determinantes econômicos interferem
nessas relações, sendo importante considerar outros aspectos tais como os que se
desdobram a partir das desigualdades sociais tendo como expressão maior o racismo
estrutural e institucional.
INTRODUÇÃO
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Assistente Social. Atuou como Professora Substituta da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro 2018-
2019. Atuou na Prefeitura Municipal de Duque de Caxias entre 2015-2017 em Abrigo Institucional e Conselho
Tutelar. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (PPGSS/UERJ). Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Especialista em Políticas Sociais e Intersetorialidade pelo Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e
do Adolescente Fernandes Figueira Fiocruz. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direitos
Humanos, Infância, Juventude e Serviço Social (NUDISS) – UFF. Email: vancristinasaraiva@gmail.com
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Organizadores: Professor Dr. André Augusto Pereira Brandão e a Dra. Amanda Lacerda Jorge
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Nesse sentido nos debruçar sobre essa temática se coloca como tarefa importante,
pois é um mecanismo que propicie visibilidade e tangencie a importância de lutar,
conquistar direitos efetivamente para a população negra e modificar essa realidade
excludente, violadora e desigual. É preciso pautar a luta antirracista, a implementação de
políticas sociais, assim como das ações afirmativas sempre na perspectiva de reparação
social e acesso efetivo da população negra aos direitos.
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O uso das aspas é para sinalizar que não concordamos com a ideia de descobrimento, haja vista que na
chegada dos europeus já existiam povos originários nesse território com organização política, social e
econômica próprias.
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que o escravismo é resignificado3 pelo capital para que o sistema conseguisse ser expandido
e iniciar o ciclo lucrativo de forma plena. Ou seja, a escravidão se tornou mecanismo
funcional ao capital, à obtenção de lucros e a universalização do sistema (PRADO JÚNIOR,
1942; SANTOS NETO, 2015).
Exemplo de aumento de lucratividade é o caso do Brasil. Nosso país foi um dos
maiores importadores da mão-de-obra escrava. Contudo, é fundamental perceber que esse
segmento antes de se tornarem escravos por mediação das ações eurocêntricas e violentas os
africanos que não eram apenas de um único grupo étnico, tinham suas famílias, suas
particularidades e especificidades, mecanismos de comunicação próprios, formas de ver e
compreender o mundo. A partir do escravismo o negro (nomenclatura criada pelo homem
branco que o escravizou) adquire um status de objeto, uma coisa, uma peça, um utensílio
que foi “jogado” em um continente diferente para se tornar um valor de troca fundamental
da engenharia capitalista. O negro em diáspora forçada perde sua identidade, sua capacidade
de organização social, seu direito de cultuar seus deuses mediante imposição de uma cultura
cristã de base eurocêntrica e de uma violência epistemicida (CARNEIRO, 2005;
ALMEIDA, 2011).
Ou seja, o negro, para o colonizador, não passava apenas de uma mercadoria, a qual
não poderia sofrer nenhum tipo de intervenção a não ser do seu proprietário. E visando
otimizar a capacidade trabalho desse negro castigos físicos e diferentes mecanismos de
humilhação eram largamente adotados naquele período. Existem alguns questionamentos
sobre uma possível ausência de reação ou resistência do povo negro diante do escravismo.
Segundo Nascimento (1978) é falaciosa essa afirmação, pois o banzo / melancolia, os
suicídios, as fugas, as organizações quilombolas tais como a de Zumbi e de Dandara e a
reação dos donos de escravos que aplicavam castigos mais cruéis e até mesmo executavam
um grande número de escravizados, já nos evidenciam que ocorreu sim uma resistência
organizada por esse segmento, mas silenciada pela história contada por homens brancos,
sexistas e racistas (CARNEIRO, 2005; NASCIMENTO, 1978; MOURA, 1994).
O que devemos levar em consideração é o fato de que as relações desse tipo (escravo
como sinônimo de mercadoria) seguiram inalteradas por anos. Mas a situação parecia que
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Em outras organizações sociais, no decorrer da trajetória da humanidade, sempre existiu formas de
escravização, porém apresentando sentidos e objetivos diferentes. Em Atenas alguns escravos eram utilizados
para formar as forças policiais. Outros eram usualmente empregados em atividades artesanais e, por conta de
suas habilidades técnicas, tinham uma posição social de destaque. Em certos casos, um escravo poderia ter uma
fonte de renda própria e um dia poderia vir a comprar a sua própria liberdade. Em outros termos, o escravismo
nos Marc os do capitalismo passa a ser adotado como formas de impulsionar os lucros e tudo isso marcado por
uma intensa violência.
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A Lei Eusébio de Queirós (Lei nº 581), promulgada dia 4 de setembro de 1850, visava a proibição do tráfico
de escravos no Brasil. A lei foi elaborada pelo político brasileiro Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da
Câmara (1812-1868), durante o Segundo Reinado.
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O termo livre é destacado, por compreendermos que o capitalismo no Brasil sempre foi marcado por laços de
dependência com a Europa. Ou seja, é uma utopia a ideia de liberdade.
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Uma breve pesquisa nos mostra que discriminar é o ato de ação ou efeito de separar, segregar, pôr à parte.
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Essa é uma discussão que tem se desenrolado ao longo de muitos anos no Brasil e que adquiriu visibilidade a
partir da regulamentação do ECA na década de 1990. Envolve convicções muito enraizadas sobre
responsabilidade individual de crianças e adolescentes que podem ser ou não considerados praticantes de ato
infracional. Essa discussão, em resumo, gira em torno o que seria melhor para o Brasil: manter a maioridade
penal em 18 anos ou reduzi-la para 16 anos de idade?
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Saraiva (2018) trabalha esse conceito e afirma que a partir desse processo de institucionalização de demandas
do segmento de trabalhadores na orbita do Estado e da regulamentação do Código de Menores de 1927 a
política direcionada para a infância, naquela época, passa a se constituir tendo como pressupostos: inserção da
criança no espaço de trabalho; a visão da infância pobre como incapaz e perversa; o poder absoluto do juiz
sobre a família e a criança; o abrigamento e internamento como forma corretiva e positiva, haja vista que as
famílias eram consideradas incapacitadas para realizar o cuidado; a visão higienista e repressora; a necessidade
de se zelar pela nacionalidade e pelos futuros cidadãos. Tudo isso, passou a caracterizar e compor a
denominada Era do Menorismo.
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O racismo é uma chave de interpretação para atual realidade desigual enfrentada pela
população negra, assim como o universo das crianças e adolescentes. Diz respeito a uma
crença na existência de raças inferiores ou superiores a outras. E em nossa compreensão
trata-se de relação de poder verticalizada mediada por uma necessidade de subordinar,
subjugar e inferiorizar o outro (negro) e de dar continuidade ao projeto eugênico genocida à
brasileira.
Os estudos de Guimarães (1995) nos auxiliam a compreender tal fenômeno, pois
afirmam que o mito da democracia racial foi o grande impulsionador do racismo no Brasil.
Para o autor, os brasileiros sentem orgulho de a nação ter sido forjada pela mistura de três
raças, fato que impossibilitou a vivência de segregação ou conflitos tal como ocorreu nos
Estados Unidos ou em África. Além disso, esse mesmo mito fomentou a prática de
embranquecimento fato que dilui a ideia de que o racismo é direcionado aos negros, haja
vista que esse povo miscigenado, compõe a nação brasileira onde todos são “iguais”. Dessa
maneira, segundo Guimarães (1995), o mito democrático racial serve como mecanismo de
escamoteamento do racismo cotidiano e sua face violenta mascarada, mas que perdura desde
o período pós - abolição, atingindo a população negra.
Na contemporaneidade o racismo apresenta diferentes expressões (nas relações
interpessoais, no âmbito institucional, no espaço da religiosidade, na divisão de territórios-
racismo ambiental, por exemplo) podendo ser visualidade em diversos espaços (unidades de
saúde, escolas, prisões, universidades, lugares de formação profissional, redes sociais, mídia
falada e escrita, etc). Mas no caso desse estudo verificamos que o conceito do racismo
institucional, é o mais adequado para compreender a realidade de crianças, adolescentes, as
alterações do ECA e sua parca efetividade no que diz respeito a garantia de convivência
familiar. Processo este que culmina na elaboração de novas leis.
Vale ressaltar que o termo Racismo Institucional foi elaborado por militantes do
grupo Black Panther - Panteras Negras na década de 1960. Esse grupo, que tinha ligações
com Malcon X, lutou pelos direitos civis, sociais, políticos e por igualdade racial nos
Estados Unidos e são conhecidos por terem uma postura mais radicalista diante das
atrocidades cometidas pela sociedade norte-americana. As ações desse grupo se
diferenciavam, por exemplo, das ações de Martin Luther King que baseou sua luta no
diálogo e na realização de marchas pelos direitos. Os Black Panther realizavam ações
organizadas, planejadas e por vezes armadas, na busca por melhores condições de igualdade
e contra as leis segregacionistas e mortais norte americanas. É necessário ressaltar que esses
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desigualdades. É uma vulnerabilidade programa pelo Estado que subalterniza cada vez mais
a população negra (WERNECK, 2016; EURICO, 2013).
Pensando a vulnerabilidade programada e o racismo na ausência de elaboração de
normas ou na elaboração de planos, programas, projetos e leis que não atendem
necessariamente as necessidades desse segmento conseguimos compreender o porquê que
mudanças nas leis como o ECA no que tange a convivência familiar não impactarem
positivamente sobre a vida de crianças e adolescentes integrantes da população negra.
Dados do CNJ de 2017 afirmam a existência de 47 mil crianças longe do convívio
familiar ou comunitária e estão vivendo em abrigos que ainda não possuem infraestrutura
adequada, onde ocorrem violências de diferentes graus e com alta rotatividade de
profissionais se pensarmos nas instituições públicas que têm sofridos os ataques da Ofensiva
Neoliberal e a propositura de efetivação de políticas de austeridade desde a implementação
desse mesmo projeto a partir dos anos de 1970 no bojo da Reestruturação Produtiva
(HARVEY, 1993; MANDEL, 1982; CHESNAIS, 1996).
Àqueles que sofrem os grandes impactos dessa dinâmica de acumulação são as
crianças e adolescentes pretos e pardos que correspondem a 64% nos abrigos institucionais.
Além disso, é importante ressaltar que todas as crianças e adolescentes são objeto de
proteção, promoção e prevenção de violação de direitos segundo o Estatuto, contudo,
àquelas integrantes da população negra, geralmente, são objetos do eixo de defesa do SGD
mediante a materialização de ações dos órgãos públicos judiciais; ministério público,
especialmente as promotorias de justiça, as procuradorias gerais de justiça; defensorias
públicas; advocacia geral da união e as procuradorias gerais dos estados; polícias; conselhos
tutelares; ouvidorias e entidades de defesa de direitos humanos incumbidas de prestar
proteção jurídico-social.
É importantíssimo evidenciar o processo de constituição do SGD. Esse consolidou-se
a partir da Resolução 113 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(CONANDA) de 2006. O início do processo de formação do SGD, porém, é fruto de uma
mobilização anterior, marcada pela Constituição de 1988 e pela promulgação do ECA, como
parâmetro para políticas públicas voltadas para crianças e jovens, em 1990. O sistema é
formado pela integração e a articulação entre o Estado, as famílias e a sociedade civil como
um todo, para garantir que a lei seja cumprida, que as conquistas do ECA e da Constituição
de 1988 (no seu Artigo 227) não seja mais uma letra morta.
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para proteger e educar seus filhos sem interferência do Estado. Tais limitações têm
vinculação com o período colonial que além de escravizar e violentar de diferentes formas
os negros, também os impediam de constituir famílias. A ideia de família para esse
segmento era inexistente. E essa dinâmica se desdobrou, permanecendo até os dias de hoje.
Na atualidade esse processo se expressa nas limitações financeiras das famílias (que nada
impedem o convívio familiar) foram traduzidas historicamente (e continuam sendo) pelo
Estado como “incapacidade” da família de orientar, cuidar e permanecer com seus filhos,
mas jamais pelas desigualdades sociais e raciais enraizadas no Brasil, as quais são
potencializadas na sociedade do capital. Disso, podemos avaliar que o Estado é um dos
maiores violadores dos direitos dessas famílias, crianças e adolescentes (RIZZINI, 2004;
BRASIL, 1988; 1990).
Tal discurso justificou a construção por este Estado de políticas públicas paternalistas
voltadas para o controle, monitoramento, vigilância, segregação e contensão social da classe
trabalhadora. Esse mesmo tipo de política também foi direcionado à infância, sendo
denominado como Doutrina da Situação Irregular como abordamos anteriormente. Essa se
expressava, sobretudo, pelo abrigamento massivo de crianças e adolescentes oriundas de
famílias negras e pobres em grandes instituições totais. A marca desses lugares era a da
violência, destruição de vínculos familiares, doutrinamento forçado para o mercado de
trabalho e internalização de modos de agir, destruição das individualidades gerando um
impacto negativo na subjetividade dos abrigados. O modelo estava mais parecido com um
modelo prisional do que um modelo protetivo, tendo em vista a proibição de receber visitas
de familiares, constante vigilância e a desconsideração do discurso dos abrigados de forma
constante. Tinha caráter punitivo tanto para as famílias quanto para as crianças e
adolescentes, sobretudo, famílias negras e pobres embora essa discussão não fosse pautada
naquele momento (ALTOÉ, 2008).
É nesse momento que a criança pobre passa a ser denominada enquanto menor.
Sujeito sem direitos e que permanecia “protegido” em grandes instituições como a Fundação
Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), e as Fundações Estaduais (FEBEM’s) que
incorporavam um modelo também inspirado na política de segurança nacional da Ditadura
Militar. Esse modelo foi abandonado quando a Doutrina da Proteção Integral foi instaurada.
A Doutrina da Proteção Integral foi inaugurada através do art. 227 da Constituição Federal
de 1988 e preconiza o dever o Estado, da família e da sociedade com os cuidados com
crianças e adolescentes, rompendo com o tratamento discriminatório, desumano e
aprisionador da infância. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei 8.069 de 1990
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é também lugar de conflito e pode até mesmo ser o espaço da violação de direitos da criança
e do adolescente. Devemos compreender ainda que essa dinâmica pode ocorrer em todas as
famílias e não somente no caso de famílias pobres, negras e que residem em favelas ou áreas
periféricas da cidade (BRASIL, 2006).
Embora apresente alguns limites, o surgimento do PNCFC em 2006 ocorre em mais
uma tentativa de tentar assegurar o direito das crianças e adolescentes serem criados em
ambiente familiar e reduzir os índices de acolhimento no Brasil e por isso é tão importante.
No entanto, esse é um desafio diário que gestores e profissionais que atuam no cotidiano das
instituições devem enfrentar. É necessário criar mecanismos que subsidiem a sobrevivência
dessas famílias: políticas habitacionais, de geração de emprego e renda, saúde, educação,
lazer, alimentação, ações afirmativas e etc.
Uma breve análise sobre a realidade brasileira, a partir dos dados desenvolvidos por
órgãos e instituições que compõem o sistema de garantia de direitos como o Conselho
Nacional de Adoção, de Justiça e o Módulo Criança e Adolescente do Rio de Janeiro, nos
leva a inferir que esse direito não está sendo assegurado, embora todas as normativas
estejam sendo reelaboradas, redefinidas, reatualizadas a fim de que este direito seja
efetivado. Mas porque essa realidade não é modificada? Além da desigualdade econômica,
os altos índices de pobreza, de analfabetismo, de violência, desnutrição, mortalidade infantil,
baixa escolarização e tantos outros é necessário considerar outro elemento nessa dinâmica: o
racismo institucional. Em sociedades como o Brasil coexistem expressões e posturas
preconceituosas com discursos que propagam uma igualdade por mediação da ideia
falaciosa de democracia racial (harmonia entre os povos: negros, indígenas e o colonizador
no processo de construção da Nação brasileira) e que acabam escondendo o racismo, o
preconceito, a discriminação e os índices de violações de direitos desse segmento (CHAUÍ,
2000; ALMEIDA, 2018).
É importantíssimo compreender que o pacto democrático racial estabelecido ainda no
período de transição da Era Colonial para a Era Republicana ainda não se rompeu. Os dados
evidenciados pelo IBGE/Condições de vida e desigualdade social (2018), Mapa da
Violência (2016), das Desigualdades Sociais (2018), as reatualizações do ECA como a Lei
do menino Bernado e a 12.010. Nova Lei de Adoção e do levantamento Nacional de
Crianças e Adolescentes nos mostram que não basta criar novas leis ou redefinir as
existentes. É necessário pensar o perfil da população que se encontra em situação de
vulnerabilidade, tendo como marca comum a negação de direitos e agir sobre essas
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demandas de forma efetiva e não apresentar uma política que busque apenas se apresentar
para a população em sua modalidade básica, parca e pobre.
Os dados do IBGE (2014) nos mostram também que no Brasil a população negra
(composta por pretos e pardos) corresponde a mais da metade da população brasileira. São
54% de pessoas que se autodeclararam pretas ou pardas de acordo com o IBGE/2014, sendo
que este segmento é a maior vítima de violência. Os maiores índices de homicídios por
armas de fogo estão concentrados na juventude negra e parda na faixa de quinze a vinte e
nove anos de idade (MAPA DA VIOLÊNCIA, 2016).
Além disso, de acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Unibanco e IBGE da
população total (dentro ou fora da escola) de adolescentes com idade entre quinze a
dezessete anos 16% eram pretos ou pardos enquanto 10% eram brancos. O Ministério da
Saúde informa que das mortes na primeira semana de vida, 47% foram de crianças pretas e
pardas e 38% de crianças brancas. As principais causas da mortalidade infantil entre
crianças negras são as malformações congênitas, prematuridade e infecções perinatais.
Grande parte das famílias compostas por pessoas pretas ou pardas vivem em espaços
urbanos e/ou rurais com ausência de informações e acesso a bens e serviços de qualidade
(saúde, educação, saneamento básico, etc.), o que as torna mais vulneráveis. Por fim,
segundo o CNJ, existem atualmente 47 mil crianças e adolescentes abrigadas no Brasil,
sendo que na maioria são meninos (58,5%), pretos ou pardos (63,6%) e têm entre sete e 15
anos (61,3%). Ou seja, 47 mil crianças tendo o direito à convivência familiar negado e
sofrendo os impactos do acolhimento: destruição e desmembramento das famílias,
fragilidade psicológica daqueles que permaneceram em recolhimento, dificuldade para se
estabelecer laços afetivos, impacto no desenvolvimento escolar (ALTOÉ, 2008; CNJ, 2018).
O mais grave é o processo que desemboca nesses acolhimentos em massa, apesar da
existência de leis e normas que direcionam o fazer profissional para outro caminho. Os
motivos de acolhimento são negligência (84%), dependência de drogas ou álcool por parte
dos pais ou responsáveis (81%), seguida de abandono (76%), violência doméstica (62%),
violência sexual (47%), vivência de rua (39%), transtorno mental (37%), ausência por prisão
(32%), carência de recursos materiais (32%). Nesses casos, sobretudo, negligência e
carência de recursos o acolhimento não deveria ocorrer. É medida protetiva excepcional. Ou
seja, somente deve ser adota em último caso. E em casos como estes devem ser trabalhados
integrantes da família extensa para receber essa criança ou adolescente. Se realizarmos um
recorte de gênero e raça fica evidente o perfil dos acolhidos e suas famílias, assim como o
viés moralizador e criminalizador direcionado a este segmento por parte do Estado. De
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acordo com o IPEA e os dados do “Levantamento Nacional” de acolhidos mais de 63% das
crianças e adolescentes abrigadas são da raça negra (21% são pretos e 42% são pardos), 35%
são brancos e cerca de 2% são das raças indígena e amarela (CNJ, 2018).
CONCLUSÃO
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Contudo, devemos ter olhar crítico para verificar que outros mecanismos de
imobilização e violência continuam sendo direcionados à população negra. Estes se
renovam, permanecem no âmbito das relações sociais, porém adotando novas roupagens. O
genocídio da população negra é um exemplo disso. Entendo o genocídio não somente como
o extermínio de forma letal da população negra, mas também nas práticas e ações forjadas
pelo Estado e realizadas por agentes públicos que imobilizam e impedem que estes tenham
acesso a saúde, educação, orientação jurídica, o direito à convivência familiar e comunitária
e etc.... Mas esse processo é aliado às deficiências econômicas que impactam o orçamento
das políticas de saúde, educação, assistência social, previdência social, infância e juventude.
Ou seja, são agrupados mecanismos que ultrapassam o uso da força e da violência
institucional estatal para dificultar o acesso da população aos direitos e isso acaba
provocando sua eliminação de forma sistêmica (NASCIMENTO, 1978).
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ancestralidade, a viver de forma digna com acesso real as políticas sociais e ao lado de suas
famílias. Dito de outra forma: é importantíssimo ser radical e atuar na raiz da questão, se
colocar contra o racismo e a desigualdade, ofertar à população aquilo que ela realmente
precisa. Se o racismo estrutural e institucional, nesse caso, são os elementos que impedem
que os diretos sociais se concretizem para nossas crianças e adolescentes então é necessário
combater, criar formas de resistir e questionar essa realidade desigual e racista.
REFERÊNCIAS
HARVEY, David. Condição Pós-moderna. 7ª. Edição. São Paulo, Ed. Loyola, 1993.
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MOURA. Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo. Anita, 1994.
NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo
mascarado. São Paulo, Perspectivas. 1978.
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O RACISMO INSTITUCIONAL E A CONVIVÊNCIA FAMILIAR DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Dossiê Políticas Sociais e Questões Raciais
Organizadores: Professor Dr. André Augusto Pereira Brandão e a Dra. Amanda Lacerda Jorge
________. Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis
nos 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de
dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código
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dez. 2018.
Abstract:
The study analyzes the concepts of family coexistence, family, racism and the limits faced for
the materialization of this right when we problematize the reality of sheltered black
adolescents. We aim to understand the extent to which racist relationships impact on the
quality of services offered and how it affects the user population. We assume that not only
the economic determinants interfere in the relations, it is important to consider other
aspects such as those that unfold from the social inequalities having as a major expression
the structural and institutional racism.
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