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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ – UFC

FACULDADE DE EDUCAÇÃO – FACED


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO BRASILEIRA

ALUISIO PAMPOLHA BEVILAQUA

A CRISE ORGÂNICA DO CAPITAL : O VALOR, A CIÊNCIA, E A EDUCAÇÃO

FORTALEZA
2015
ALUISIO PAMPOLHA BEVILAQUA

A CRISE ORGÂNICA DO CAPITAL: O VALOR, A CIÊNCIA E A EDUCAÇÃO

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação da Universidade
Federal do Ceará como requisito parcial
para obtenção do título de Doutor em
Educação.
Área de concentração: Educação Brasileira.
Orientador: Prof. Dr. Hildemar Luiz Rech

Fortaleza
2015
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca de Ciências Humanas

B467c Bevilaqua, Aluisio Pampolha.


A crise orgânica do capital: o valor, a ciência e a educação. / Aluisio Pampolha Bevilaqua. – 2015.
418 f. : il. p&b., enc. ; 30 cm.

Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Faculdade de


Educação, Pós-graduação em Educação Brasileira, Fortaleza, 2015.
Área de concentração: Educação Brasileira.
Orientação: Prof. Dr. Hildemar Luiz Rech.

Inclui Apêndice e Anexo.

1. Educação – Paradigmas. 2. Materialismo dialético. 3. Materialismo histórico. 4. Capitalismo


(Economia) – Brasil. 5. Crise econômica. 6. Economia política. 7. Marxismo – Fundamentos
filosóficos. 8. Acumulação capitalista. 9. Ciência. 10. Epistemologia. 11. Civilização Moderna – Séc.
XXI. I. Título. II. Rech, Hildemar Luiz, orientador. III. Universidade Federal do Ceará. IV. Programa
de Pós-graduação em Educação Brasileira.

CDD 370.1
ALUISIO PAMPOLHA BEVILAQUA

A CRISE ORGÂNICA DO CAPITAL: O VALOR, A CIÊNCIA, E A EDUCAÇÃO

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação da Universidade
Federal do Ceará como requisito parcial
para obtenção do título de Doutor em
Educação.

Aprovada em ____/____/_______

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________________
Prof. Dr. Hildemar Luiz Rech (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Nicolino Trompieri
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Enéas Arrais Neto
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Gaudêncio Frigotto
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Theotonio dos Santos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Dedico esta tese aos meus pais, Aluisio Freitas
Bevilaqua (in memorian) e Maria da Glória
Pampolha Bevilaqua, meus primeiros
educadores. Dedico ao meu filho e a todos os
companheiros e companheiras de luta e ideais
em defesa dos humildes, explorados e
oprimidos pelo capital em qualquer lugar do
mundo. Dedico aos educadores, que em todas
as partes do mundo e de todas as formas
possíveis se dedicam à magnífica e
dignificante tarefa de socializar o tesouro
humano do saber e do conhecimento
sistemático, produzindo-o e reproduzindo-o,
com os que necessitam edificar um mundo de
igualdade, liberdade e paz; construído
conscientemente pelas mãos, nervos e cérebros
humanos da ciência, da educação e da
revolução social: a sociedade comunista, livre
da miséria, fome, exploração e opressão entre
pessoas, classes sociais, povos e nações.
AGRADECIMENTOS

A todos que contribuíram com esta pesquisa, especialmente, aos companheiros


(as) que participaram na busca bibliográfica, documental, estatística; nos cálculos
matemáticos, digitação, revisão, normatização e editoração digital: à Drª. Ana Alice Teixeira
Pereira Bevilaqua, ao Prof. Dr. Antonio Cícero Cassiano Sousa, à Jornalista Bianka de Jesus,
ao Pesquisador e teatrólogo Diego Fernandes Garcia Moschkovich, à Profª Mª. Georgina
Queiroz dos Santos, à Profª. Márcia Mascarenhas, ao Prof. Vinícius Melleu Cione e, muito
especialmente, à Profª. e Engª. Júlia Mariano Pereira e ao Historiador e Cientista da
Computação Rafael Carduz Rocha; vocês transformaram esta tese em trabalho coletivo.
Ao Prof. Dr. Hildemar Luiz Rech, por sua sábia e respeitosa orientação.
À Banca examinadora: Prof. Dr. Enéas Arraes Neto, Prof. Dr. Nicolino
Trompieri Filho e, muito especialmente, ao Prof. Dr. Theotônio dos Santos e Prof. Dr.
Gaudêncio Frigotto; por seus enriquecedores comentários e contribuições a esta Tese.
À UFC – Universidade Federal do Ceará e ao Programa de Pós-Graduação da
Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará.
Ao apoio do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico.
Aos membros do CEPPES – Centro de Educação Popular e Pesquisas
Econômicas e Sociais.
À REGGEN – Rede e Cátedra da UNESCO em Economia Global e
Desenvolvimento Sustentável.
Aos trabalhadores do Jornal INVERTA.
Aos trabalhadores da INVERTA – Cooperativa de Trabalhadores em Serviços
Editoriais e Noticiosos.
Aos membros da Casa das Américas de Nova Friburgo.
Aos companheiros de luta e ideias do PCML – Partido Comunista Marxista
Leninista.
Aos Funcionários do Programa de Pós-Graduação em Educação da FACED.
Aos Funcionários da Biblioteca da Universidade Federal do Ceará, pelo
desvelo e seriedade profissional.
“A arma da crítica não pode, é claro, substituir
a crítica da arma, o poder material tem de ser
derrubado pelo poder material, mas a teoria
também se torna força material quando se
apodera das massas. A teoria é capaz de se
apoderar das massas tão logo demonstra ad
hominem, e demonstra ad hominem tão logo se
torna radical. Ser radical é agarrar a coisa pela
raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio
homem.” (Karl Marx)
RESUMO

O trabalho de pesquisa, sob o título A Crise Orgânica do Capital: o Valor, a Ciência e a


Educação, sustenta em tese que o conceito de capital é a expressão da relação social dominante na
sociedade capitalista e, como tal, ao atingir seu momento dialético de autonegação – a crise do
capital – redefine o caráter da categoria crise como conceito orgânico, estrutural e histórico,
exteriorizando-se na economia, como crise do valor; na ciência, como crise de paradigma; e, na
educação, como crise pedagógica. Sob o método dialético do materialismo histórico, auxiliado
pela epistemologia e matemática aplicada, a pesquisa qualitativa foca-se principalmente na obra
de Marx e, secundariamente, na literatura contemporânea marxista e não marxista, documentos e
estatísticas oficiais. O objetivo é demonstrar que as crises da economia mundial, das últimas
décadas do século XX e as do século atual, constituem momentos e expressões singulares de uma
crise geral ou global, cuja essência causal é a erosão da Lei do Valor, precisamente, do paradigma
de mensuração do valor - o tempo de trabalho socialmente necessário - na estrutura da
composição-valor ou orgânica do capital e mais-valia sobre a qual orbitam as relações de
produção e reprodução da sociedade capitalista. A crise final ou o colapso do capitalismo
continuam sendo problemas e enigmas não resolvidos pela teoria marxista, cuja resolução exige
uma reinterpretação conceitual da Lei Geral da Acumulação Capitalista que ultrapasse a teoria do
ciclo econômico e chegue à teoria da crise estrutural, orgânica e histórica do capital. Nos
Grundrisse, Marx afirmou que o domínio do general intellect e do knowledge social geral sobre o
processo de produção e vida social implicaria a estreiteza do tempo de trabalho socialmente
necessário para mensurar a ciência e a educação na composição-valor do capital. A pesquisa
demonstra que isto hoje é um fato, daí o caráter decisivo destas categorias no agravamento e
superação da crise orgânica do capital. O duplo caráter destas atividades dos sujeitos históricos
conduz, por um lado, ao paroxismo a contradição entre o valor do conhecimento ou intelecto geral
e o paradigma de mensuração de valor; por outro, à análise lógica e histórica entre a revolução
industrial, ou científica, e o desenvolvimento do aparelho produtivo capitalista; o que demonstra a
subordinação da ciência e da educação aos desígnios da economia política do capital e, em
consequência, a crise de paradigmas vividas por ambas como indicam documentos e estatísticas
das instituições internacionais e trabalhos científicos. Finalmente, a tese propõe a construção de
núcleos estratégicos e experimentais de formulação pedagógica com base no paradigma do tempo
livre na formação humana, como ação pró-ativa à revolução científica e social.

Palavras-chave: Capital. Crise. Paradigma. Ciência. Educação.


ABSTRACT

The research, entitled The Organic Crisis of Capital: Value, Science and Education, in theory
maintains that the concept of capital is the expression of the social relation that dominates
capitalist society and, as such, when its dialectic moment of self-denial is reached - the crisis of
capital -, the character of the category crisis is redefined as an organic, structural and historical
concept, externalizing itself in the economy, as crisis of the value; in science, as a paradigm crisis;
and in education, as a pedagogical crisis. Under the dialectical method of historical materialism,
aided by epistemology and applied mathematics, the qualitative research focuses primarily on the
work of Marx and secondarily in Marxist and non-Marxist contemporary literature, documents
and official statistics. The purpose is to demonstrate that the crisis in the global economy of the
last decades of the twentieth century and of the present century, are singular moments and
expressions of a general or global crisis, whose causal essence is the erosion of the Law of Value,
precisely of the value measurement paradigm - the socially necessary labor time - the structure of
the value composition, or organic composition of capital and surplus value over which orbit the
relations of production and reproduction of capitalist society. The final crisis or the collapse of
capitalism are still problems and puzzles unsolved by Marxist theory whose resolution requires a
conceptual reinterpretation of the General Law of Capitalist Accumulation that surpasses the
business cycle theory and enter into the theory of the structural, organic and historical crisis of
capital. In the Grundrisse, Marx said that the domain of the general intellect and general social
knowledge over the production process and social life would result in the narrowness of the
socially necessary labour time to measure science and education in the value composition of
capital. The research evinces that this is now a fact, thus the decisive character of these categories
in the organic crisis of capital aggravation and overcoming. The double character of those
activities of the historical subjects leads, on the one hand, the contradiction between the general
intellect or knowledge value and the value measurement paradigm to the paroxysm; on the other
hand, leads to the logical and historical analysis between the industrial, or scientific, revolution
and the development of the capitalist mode of production; this demonstrates the subordination of
science and education to the purposes of the political economy of capitalism and, consequently,
the crisis of paradigms experienced by both as indicated by documents and statistics of
international institutions and scientific papers. Finally, the thesis proposes the construction of
strategic and experimental centers of pedagogical based on the free time paradigm in the human
formation, as proactive action to the scientific and social revolution.

Keywords: Capital. Crisis. Paradigm. Science. Education.


RESUMEN

El trabajo de investigación, bajo el título La Crisis Orgánica del Capital: el Valor, la Ciencia y la
Educación, sostiene la tesis que el concepto de capital es la expresión de la relación social
dominante en la sociedad capitalista y, como tal, al alcanzar su momento dialéctico de
autonegación – la crisis del capital – redefine el caráter de la categoría crisis como concepto
orgánico, estructural e histórico, exteriorizandose en la economía, como crisis del valor; en la
ciencia, como crisis de paradigma; y, en la educación, como crisis pedagógica. Bajo el método
dialéctico del materialismo histórico, auxiliado por la epistemología y matemática aplicada, la
investigación cualitativa se enfoca principalmente en la obra de Marx y, secundariamente, en la
literatura contemporánea marxista y no marxista, documentos y estadísticas oficiales. El objetivo
es demostrar que las crisis de la economía mundial, de las últimas décadas del siglo XX y las del
siglo actual, constituyen momentos y expresiones singulares de una crisis general o global, cuya
esencia causal es la erosión de la Ley del Valor, precisamente, del paradigma de medición del
valor - el tiempo de trabajo socialmente necesario - en la estructura de la composición-valor u
orgánica del capital y plusvalía sobre la cual orbitan las relaciones de producción y reproducción
de la sociedad capitalista. La crisis final o el colapso del capitalismo continúan siendo problemas
y enigmas no resueltos por la teoría marxista cuya resolución exige una reinterpretación
conceptual de la Ley General de la Acumulación Capitalista que sobrepase la teoría del ciclo
económico y llegue a la teoría de la crisis estructural, orgánica e histórica del capital. En los
Grundrisse, Marx afirmó que el dominio del general intellect e del knowledge social general,
sobre el proceso de producción y la vida social, implicaría la estrechez del tiempo de trabajo
socialmente necesario para medir la ciencia y la educación en la composición-valor del capital. La
investigación demuestra que esto hoy es un hecho, de ahí el caráter decisivo de estas categorías en
el agravamiento y superación de la crisis orgánica del capital. El doble caráter de estas actividades
de los sujetos históricos conduce, por un lado, al paroxismo la contradicción entre el valor del
conocimiento o intelecto general y el paradigma de medición de valor; por otro, al análisis lógica
e histórica entre la revolución industrial, o científica, y el desarrollo del aparato productivo
capitalista; eso demuestra la subordinación de la ciencia y de la educación a los designios de la
economía política del capital y, en consecuencia, la crisis de paradigmas vividas por ambas como
indican documentos y estadísticas de las instituciones internacionales y trabajos científicos.
Finalmente, la tesis propone la construcción de núcleos estratégicos y experimentales de
formulación pedagógica con base en el paradigma del tiempo libre en la formación humana, como
acción pro-activa hacia la revolución científica y social.

Palabras Claves: Capital. Crisis. Paradigma. Ciencia. Educación.


Lista de figuras

Figura 1: Acumulação e colapso.............................................................................................123


Figura 2: Acumulação, colapso e contratendências................................................................124
Figura 3: Acumulação de capital.............................................................................................229
Figura 4: Taxa de Lucros EUA considerando e desconsiderando vínculos financeiros..........233
Figura 5: Taxas de lucro líquidas do setor industrial nos EUA, Alemanha e Japão:..............233
Figura 6: As crises e o PIB dos desenvolvidos e emergentes.................................................235
Figura 7: Taxa de Juros (curto prazo) países desenvolvidos...................................................236
Figura 8: Taxa de Juros (curto prazo) Brasil e Desenvolvidos...............................................237
Figura 9: Formação bruta de capital fixo (Volume) Brasil e Desenvolvidos (index 2005)....238
Figura 10: Colapso com e sem influência do crédito..............................................................239
Figura 11: Evolução do PIB dos EUA e Europa Ocidental (1919-1950)................................275
Figura 12: Conflitos Globais (1945-2014)..............................................................................276
Figura 13: Taxas de desemprego juvenil (2008 e 2012) na Europa........................................313
Figura 14: Dívida do financiamento estudantil vs Dívida do cartão de crédito (EUA)..........333
Lista de tabelas

Tabela 1: Esquema de reprodução simples...............................................................................89


Tabela 2: Esquema a) de reprodução simples...........................................................................90
Tabela 3: Esquema b) de reprodução simples...........................................................................90
Tabela 4: Esquema inicial para a reprodução ampliada – Primeiro exemplo...........................90
Tabela 5: Reprodução ampliada – primeiro exemplo, anos 4 e 5.............................................92
Tabela 6: Acumulação Ampliada – 1o ano................................................................................92
Tabela 7: Acumulação Ampliada – 2o ano................................................................................93
Tabela 8: Efeito das variações na composição orgânica...........................................................97
Tabela 9: Modelo de Bauer.....................................................................................................120
Tabela 10: Modelo de Grossmann...........................................................................................121
Sumário

1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................15
1.1 O tema e o problema.........................................................................................................16
1.2 Objetivo..............................................................................................................................26
1.2.1 Objetivo específico..........................................................................................................27
1.3 Relevância..........................................................................................................................27
1.4 Quadro teórico...................................................................................................................29
1.5 Indicações metodológicas.................................................................................................33
2 A CRISE ORGÂNICA DO CAPITAL...............................................................................36
2.1 Marx e o conceito de crise................................................................................................39
2.2 A teoria da crise em Marx................................................................................................41
2.2.1 As concepções em Marx e Engels..................................................................................51
2.2.2 A concepção no Manifesto Comunista...........................................................................56
2.2.3 A concepção em O Capital..............................................................................................59
2.2.3.1 Livro I - O Processo de Produção do Capital..............................................................60
2.2.3.2 Livro II - O Processo de Circulação do Capital...........................................................74
2.2.3.3. Livro III - O Processo Global da Produção Capitalista..............................................94
2.3 Os debates em torno da obra O Capital........................................................................106
2.4 A teoria de Grossmann: a Lei da Acumulação e do Colapso do Capitalismo............116
2.5 A concepção de crise nos Grundrisse.............................................................................126
2.6 A teoria da crise na literatura marxista atual...............................................................136
2.6.1 Harvey e O enigma do capital......................................................................................137
2.6.2 Arrighi: os ciclos longos e a crise de hegemonia........................................................143
2.6.3 Bensaïd: Marx, o intempestivo.....................................................................................144
2.6.4 Kurz: O Colapso da Modernização..............................................................................150
2.6.5 Hardt e Negri: Império.................................................................................................154
2.6.6 Mészáros: Para além do capital...................................................................................167
2.6.7 Trabalho imaterial de Maurizio Lazzarato..................................................................183
2.6.8 Gorz: O imaterial, conhecimento, valor e capital........................................................191
2.6.9 O capitalismo cognitivo de Moulier Boutange............................................................195
2.6.10 Vercellone: A crise da Lei do Valor e rentismo..........................................................203
2.7 Crítica à literatura marxista contemporânea...............................................................211
2.8 A crise orgânica do capital e sua singularidade............................................................227
3 A CRISE DE PARADIGMA DA CIÊNCIA.....................................................................245
3.1 As forças produtivas e a natureza humana...................................................................246
3.2 A Revolução Industrial e suas três fases........................................................................250
3.2.1 A máquina como categoria econômica subsumida ao conceito de capital.................253
3.2.2 A conformação do Intelecto Geral...............................................................................257
3.3 A revolução na máquina ferramenta, a primeira fase da Revolução Industrial.......259
3.4 A segunda fase, um motor para chegar a todo o mundo..............................................264
3.4.1 Novos paradigmas científicos.......................................................................................267
3.5 A terceira fase, a Revolução Científico-Técnica e o autômato....................................270
3.5.1 A invenção do computador, base da moderna automação..........................................272
3.5.2 A crise de 29 e a Segunda Guerra Mundial.................................................................274
3.5.3 A Revolução Científico-Técnica por Theotonio dos Santos........................................278
3.5.3.1 Revolução Científico-Técnica e Capitalismo Contemporâneo...................................278
3.5.3.2 Revolução Científico-Técnica e Acumulação do Capital...........................................282
3.5.3.3 Revolução Científico-Técnica e crise do capital........................................................290
3.6 Paradigmas e Crise.........................................................................................................292
3.6.1 Conceito de paradigma em Popper, Kuhn, Horkheimer e Marx................................293
3.6.2 Paradigmas e crise da produção científica..................................................................297
3.6.3 O estranho caso da curva de Phillips...........................................................................305
4 A CRISE PEDAGÓGICA DA EDUCAÇÃO...................................................................311
4.1 Paradigmas pedagógicos na história.............................................................................313
4.2 Os paradigmas marxistas da educação.........................................................................319
4.2.1 Limites do marxismo ocidental.....................................................................................319
4.2.2 Experiências pedagógicas sob a teoria marxista.........................................................321
4.3 Os teóricos brasileiros e os paradigmas pedagógicos...................................................323
4.4 Efeitos da crise orgânica do capital na educação.........................................................331
4.5 A Crise do Valor e os paradigmas da educação............................................................336
4.5.1 Capital humano: paradigma atual...............................................................................337
4.5.2 Capital intelectual: continuidade de um paradigma...................................................349
4.6 A contribuição crítica de Gaudêncio Frigotto..............................................................358
4.7 A Educação e contratendências à crise orgânica do capital........................................371
5 CONCLUSÃO: CRISE ORGÂNICA DO CAPITAL E O NÚCLEO ESTRATÉGICO
DA NOVA PEDAGOGIA DO TEMPO LIVRE NA FORMAÇÃO HUMANA..............378
REFERÊNCIAS....................................................................................................................407
APÊNDICE A - FAC-SÍMILE DE GÊNESE E ESTRUTURA DO CAPITAL DE KARL
MARX....................................................................................................................................419
APÊNDICE B - FÓRMULA MATEMÁTICA DE MODELO DE GROSSMANN........419
ANEXO A - CÓDIGO UTILIZADO PARA RODAR ESQUEMA DE BAUER.............423
ANEXO B - EQUÍVOCO NOS MODELOS......................................................................425
15
1 INTRODUÇÃO

“Como corpos celestes que uma vez lançados


em determinado movimento sempre o repetem,
assim é a produção social tão logo tenha sido
colocada naquele movimento de expansão e
contração alternadas”. (Karl Marx)

O trabalho de pesquisa, sob o título A Crise Orgânica do Capital: o Valor, a


Ciência e a Educação, constitui a segunda de três partes em que se subdivide um plano de
investigação mais amplo, que tematiza as relações entre os conceitos de economia, ciência e
educação subsumidos ao conceito de capital. As duas outras partes são, respectivamente, a
dissertação de mestrado, sob o título A Crise do Capital em Marx e suas Implicações nos
Paradigmas da Educação: Uma Contribuição ao Repensar Pedagógico no Século XXI,
aprovada com louvor em 6 de maio de 2011 no Programa de Pós-Graduação em Educação da
Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará, como base para a presente
investigação; e a terceira, um projeto de investigação futuro de pós-doutorado sob o tema A
Crise do Capital e Paradigmas de Transição. Considerando que o conceito de capital é
expressão da relação social dominante na sociedade capitalista atual, a pesquisa entende que a
crise do capital é o momento dialético de autonegação desta relação e, como tal, modifica o
caráter da categoria crise, de conceito subsumido a uma dimensão da totalidade concreta –
completamente articulada pela relação capital –, por exemplo, a economia, a política, o social,
entre outras, para conceito geral que acompanha a generalidade e a estruturalidade ou
organicidade da relação capital, manifestando-se singularmente na economia, como crise do
valor; na ciência, como crise de paradigma; e na educação, como crise pedagógica. A
temática, sob o enfoque teórico e metodológico da obra de Marx, apoia-se também na
literatura afim, marxista e não marxista contemporânea e vai de encontro a enigmas candentes
nas ciências sociais e humanas que voltam à evidência com o retorno das crises econômicas
gerais ou globais; sejam relativos às suas naturezas, sejam relativos às suas implicações nos
paradigmas teóricos que dominam a economia e a educação neste período histórico-crítico
16
1
vivido nas décadas iniciais do século atual (MÉSZÁROS , 2006; HARDT e NEGRI, 2003; e
KRUGMAN2, 2009a; RIFKIN, 2012).

1.1 O tema e o problema

A pesquisa parte da hipótese que as crises da economia mundial que eclodiram na


passagem do século XX ao XXI e as que eclodem nas duas primeiras décadas deste último
constituem momentos particulares e expressões singulares de uma crise geral ou global, cuja
causa essencial é a erosão do paradigma de valor – a Lei do Valor – ou da estrutura orgânica
do capital, que é o centro sobre o qual orbitam todas as relações de produção e reprodução da
sociedade capitalista. Neste sentido, as crises econômicas, como dado da totalidade viva, real
e concreta, são o ponto de partida deste trabalho.
A crise no sudeste da Ásia, Leste Europeu e América Latina, em 1997-1998
(BEVILAQUA, 1998; KRUGMAN, 2009a); a crise das Ponto.Com, a “nova economia” nos
Estados Unidos, em 2000-2002 (SHILLER, 2005); a crise da economia americana e do
sistema financeiro internacional de 2007-2009 (BEVILAQUA, 2011; KRUGMAN, 2009a;
SHILLER, 2008; e HARVEY, 2011); a crise das dívidas públicas dos países da União
Europeia (Islândia, Grécia, Escócia, Portugal, Espanha, Itália, entre outros) em 2010-2012; e
o quadro atual de estagnação do Japão, anêmica recuperação dos Estados Unidos, Inglaterra,
França e Alemanha, e drástica redução do crescimento dos BRICS (Brasil, Índia, China e
África do Sul) entre 2013-2014. Todas estas crises apresentam a característica comum da
desvalorização de ativos financeiros, moedas e preços, enquanto parte de uma crise maior da
produção e do comércio (HARVEY, 2011). Indicam, por um lado, o paroxismo a que chegou
o descolamento entre capital fictício e capital real (ou entre valor monetário e riqueza
material), e a retomada no plano global da forma como se apresentou inicialmente a crise
geral do capital em 1929, que seguiu a trajetória da crise geral descrita e analisada por Marx
em O Capital e, ao mesmo tempo, a tendência à crise da Lei do Valor projetada por este autor
nos Grundrisse. Por outro lado, elas reencetam um século depois o debate sobre a tese do

1
Premiado com o Isaac Deutscher, em 1970.
2
Premiado com o Nobel, em 2008.
17
colapso do capitalismo (LUXEMBURGO, 1985; GROSSMANN, 2004) ou da sua crise final
ou de transição do seu modo de produção (MÉSZÁROS, 2006; HARDT e NEGRI, 2003).
Neste sentido, a teoria sobre a crise do capital é um problema não resolvido pela
economia política burguesa, mesmo a inspirada na crítica socialista (KEYNES, 1985), como
se depreende do trabalho de Paul Krugman, apresentado um ano após ser agraciado com o
Prêmio Memorial Nobel em Ciências Econômicas em 2008:

Em resumo, a crença em mercados financeiros eficientes cegou muitos economistas,


se não a maioria, para a possibilidade do surgimento de uma das maiores bolhas
financeiras da história. E a teoria dos mercados eficientes também teve papel
importante ao inflar esta bolha no início.
Agora que a bolha não prevista estourou, o verdadeiro risco dos ativos supostamente
seguros foi revelado e o sistema financeiro mostrou sua fragilidade. Os lares
americanos viram 13 trilhões em riquezas evaporar. Mais de seis milhões de
empregos foram perdidos e a taxa de desemprego escalaram para os maiores níveis
desde 1940. Sendo assim, que orientação tem a economia moderna a oferecer na
nossa atual situação? E deveríamos acreditar nela? (KRUGMAN, 2009b, p. 38,
tradução nossa).

Joseph Stiglitz, também Prêmio Memorial Nobel em Ciências Econômicas 2001,


já havia afirmado o mesmo em termos de crise de paradigma:

Mas qualquer disciplina tem uma vida própria, um paradigma dominante, com os
pressupostos e convenções. Grande parte do trabalho foi motivado por uma tentativa
de explorar os limites desse paradigma - para ver como os modelos padrão poderiam
abraçar os problemas de falhas de informação. [...] Por mais de cem anos, a
modelagem formal na economia tem se centrado nos modelos como se a informação
fosse perfeita. […] seguindo a máxima de Marshall "Natura non facit saltum" […].
Um dos principais resultados de nossa pesquisa foi mostrar que isto não é verdade;
[…]. O paradigma dominante do século XX, o modelo neoclássico, ignorou as
advertências do século XIX e mestres anteriores no que diz respeito sobre o quanto a
informação pode alterar as análises, talvez porque não poderia ver como abarcá-las
em seus modelos aparentemente precisos, talvez porque isso teria levado a
conclusões incômodas sobre a eficiência dos mercados (STIGLITZ, 2002, p. 475,
tradução nossa).

A crise do capital também não encontra uma teoria conceitual de per si no


marxismo, apesar da sua tematização em profundidade por Marx (1980, 1988 e 2009) e dos
debates e formulações que se seguiram após a publicação de O Capital (particularmente dos
Livros II e III) e mais tarde dos Grundrisse. Este fato é demonstrado pelo debate na virada do
século XIX ao XX, em que participaram Luxemburgo, Bauer, Kautsky, Hilferding, Tugan-
Baranovski, Bukharin, Lênin, iniciado com o revisionismo de Bernstein à teoria do colapso e
ao método de Marx, cuja contestação elevou-se teoricamente aos esquemas de reprodução do
18
Livro II de O Capital e finalmente à teoria do imperialismo. Essa temática foi retomada por
Grossmann, sob a nova conjuntura colocada pela crise geral de 1929, resgatando a concepção
do colapso em Marx, apoiado em Lênin. A partir do pós-guerra, Sweezy e Baran também se
inserem na temática eclipsando a formulação teórica de Grossmann e recuperando a
formulação subconsumista, contestada depois nos anos 70 pelos defensores da teoria da
tendência decrescente da taxa de lucro, como Paul Mattick, David Yaffe, Mario Cogoy, entre
outros; chegando aos dias atuais, marcado pela recuperação da íntegra dos manuscritos de
1857 e 1858 de Marx, os Grundrisse, e pelo retorno das crises globais do capital, com
Mészáros, Harvey, Kurz, Negri e Hardt, entre outros (SHAIK, 1983, passim; BEVILAQUA,
2011, passim).
Mészáros, em sua teoria da crise estrutural, compara a noção de crise geral em
Marx, em 1857-1858, com a realidade atual:

A crise do capital percebida por Marx em meados do século XIX no 'cantinho


europeu do mundo' por muito tempo não foi uma crise geral. […] Hoje, a situação é
radicalmente diferente. [...] o aprofundamento da crise estrutural do capital significa
que 'a realidade está começando a se movimentar em direção ao pensamento'
(MÉSZÁROS, 2006, p. 219).

Hardt e Negri, em sua leitura dos Grundrisse, afirmam:

O caráter indócil do capital como ponto de crise sempre presente, que diz respeito à
essência do próprio conceito de capital […]. Não queremos sugerir que tais crises e
barreiras levarão, necessariamente, ao colapso do capital. […] a crise é para o capital
uma condição normal, que indica não o seu fim, mas sua tendência e seu modo de
operar. A construção do imperialismo pelo capital, e sua marcha para além dele, são
dados do complexo jogo entre limites e barreiras (HARDT; NEGRI, 2003, p. 242).

Mais adiante concluem:

[…] o que Marx viu como futuro é a nossa era […] Essa transformação radical do
poder do trabalho e a incorporação da ciência, da comunicação e da linguagem na
força produtiva redefiniram toda fenomenologia do trabalho e todo o horizonte
mundial da produção (p. 386).

Harvey, por seu turno, sustenta que a sua “abordagem sobre as crises é superior às
marxistas anteriores”, que se resumem em “três grandes campos tradicionais de pensamento”:
“o esmagamento de lucro”, “a queda da taxa de lucro” e “as tradições do subconsumo”.
Explica que sua análise da crise considera “sete esferas de atividades” do sistema em
19
interconexões e coevolução, que deriva de Marx em O Capital. Contudo, enfatiza: “Não
importa que tipo de inovação ou mudança ocorra, a sobrevivência do capitalismo a longo
prazo depende da capacidade de atingir 3% de crescimento composto.” (HARVEY, 2011, pp.
99-106 e 109).
Deste modo, a crise do capital é um enigma não resolvido teórica e praticamente
tanto pela ciência econômica burguesa, quanto pela crítica marxista da economia política, o
que supõe que os paradigmas teóricos que dominam estas disciplinas não permitem o
desenvolvimento de uma formulação mais precisa e concreta da mesma, exigindo para tal
uma mudança de paradigma, de acordo com a teoria das revoluções científicas formulada por
Thomas Kuhn (2004). Em termos da teoria marxista, que é o centro de nossa problematização,
a resolução deste enigma exige o desenvolvimento de uma teoria da crise econômica, sob o
pressuposto de uma nova concepção da Lei Geral da Acumulação Capitalista de Marx, que
ultrapasse a teoria do ciclo econômico, já em parte assimilada pela economia política
burguesa (KEYNES, 1985). A Lei Geral deve ser compreendida como resultado das
interdeterminações das leis tendenciais que governam a acumulação e reprodução humana no
sistema do capital. Sob este enfoque, quando uma lei tendencial sobrepõe-se às demais, ela
determina o caráter dominante da Lei Geral, em consequência, a essência causal da crise
econômica. Desta maneira, o domínio da Lei do Valor sobre a Lei Geral da Acumulação,
devido ao crescente aumento da composição orgânica do capital e à consequente perda de
validade da estrutura de mensuração do valor – o tempo de trabalho socialmente necessário –,
altera o caráter de crise geral da economia do sistema para uma crise da estrutura orgânica do
capital, ou de sua composição-valor (composição orgânica), como observou Marx ao formular
a Lei da Tendência decrescente da Taxa de Lucro, em O Capital (1988) e mais abstratamente
nos Grundrisse (2009), capítulo O Capital do Caderno VII, ao analisar “o significado do
desenvolvimento do capital fixo”, a máquina: a tendência do knowledge (conhecimento)
social geral ou general intellect (intelecto geral) – onde Ciência e Educação são as principais
forças protagonistas – a dominar o processo de produção e vida sociais (v. II. pp. 227-229).
Esta teoria conceitual da crise orgânica do capital se sustenta em evidências
lógicas e históricas na análise de Marx sobre a revolução industrial em O Capital, ao
relacionar esta às invenções tecnológicas nas três partes em que se estrutura a máquina: a) a
máquina ferramenta; b) a máquina motor; e c) os mecanismos de direção e controle; no
processo de substituição do operário pela máquina, cujo ápice é o desenvolvimento do
20
autômato inteligente ou sistema de máquinas da fábrica, consolidando a passagem da
subordinação formal à subordinação real do trabalho ao capital (MARX, 1988). Santos,
também, ao definir a “Revolução Científico-Técnica” apoiado em Radovan Richta, retoma a
formulação de Marx sobre a Revolução Industrial e aponta para a constituição da Ciência
como um setor econômico específico da produção que passa a viver as mesmas contradições
da economia (1983, pp. 18-23, 46-52; 1987, passim); Hardt e Negri recorrem também a Marx
ao definir a Revolução Informacional como passagem da “sociedade disciplinar” à “sociedade
de controle”, na defesa da tese do “trabalho imaterial” e crise da “Lei do Valor” (2003, pp.
310-316 e 383-386); Rifkin, embora defina a “Terceira Revolução Industrial”, apoiado em
Toynbee, como “convergência” entre “matriz energética” e “invenções tecnológicas” sob
enfoque da termodinâmica (entropia) da produção, também vê a erosão do paradigma de valor
relacionando-a aos altos custos da “energia combustível fóssil” e à tendência ao “custo zero”
das “energias verdes” (renováveis) na composição orgânica e “acumulação de capital” (2012,
pp. 45-51; 218-223; 237-239).
Entretanto, é importante observar que a concepção de Revolução Industrial em
Marx (1988, Livro 1, v. 2, pp. 5-25) está mais presa ao conceito de transformação tecnológica
ou técnica do que, propriamente, ao conceito de revolução científica formulado por Kuhn,
como expressão teórica abstrata e sistema lógico do conhecimento humano que resulta da
decifração de problemas no trabalho da ciência normal ou anômala (KUHN, 2004, pp. 33, 42,
53 e 142). Porém, ao se considerar a dialética entre o caráter substrato do primeiro conceito e
o caráter abstrato do segundo, que se sobredeterminam nos diferentes momentos do
desenvolvimento destes, é plausível sustentar que a unidade entre ambos, subsumida e
mediada pela relação capital, expressa-se por um lado, na contradição entre os momentos que
historicamente a ciência vai à frente da técnica, projetando tendências abstratas que exigem
novo complexo técnico, e momentos em que a técnica vai além da ciência (MARX, 1988,
Livro 1. v. 2, pp. 113-115 e 234-235); por outro lado, considerando que a técnica, ao contrário
da ciência, tende a ser menos flexível à subsunção à relação capital, todo o processo se
consuma em crises de paradigmas, como se pode observar nos problemas suscitados pelo
processo de acumulação de capital.
Porém, não é possível compreender mais rigorosamente esta unidade dialética
entre ciência e técnica, de rebeldia e subordinação à relação capital, sem a concepção da
educação, que é o ponto de partida e chegada de ambas na lógica da produção e reprodução
21
social. Embora esteja subsumida duplamente à relação capital no momento atual, no curso
histórico poderia se atribuir à educação a força impulsionadora da racionalidade e é esta que
permite ao método experimental constituir-se na base das ciências naturais modernas durante
a Revolução Iluminista. Ao contrário do processo de constituição do método científico, a
educação como ciência humana desenvolve seu método racionalista como prática e teoria
pedagógica muito antes e, susceptível às transformações econômicas, sociais e políticas,
reflete estas nas mudanças das teorias educacionais. O fundamento histórico desta
racionalidade da pedagogia está no desdobramento do conceito de Paideia, como se pode
observar na diferença entre a pedagogia literária de Homero na Ilíada e na Odisseia; processo
que se desenvolve com Platão, que define a educação como adestramento seletivo de classes,
e Aristóteles em sua concepção metafísica (JAEGER, 2013); no Renascimento, chega-se à
Tese do Livre Arbítrio em Maquiavel e ao movimento antropocêntrico, que se reflete na
pedagogia de Comenius, até a Revolução Iluminista, onde a ruptura com a pedagogia da Idade
Média anuncia-se com o Emílio de Rousseau (1995) e prossegue nas Escolas Experimentais
durante o século XIX.
Esta flexibilidade das teorias da educação, ou teorias pedagógicas, em relação às
transformações sociais intensifica-se durante o período histórico do modo de produção
capitalista e conduz à subordinação cada vez maior da educação às necessidades da relação
capital, particularmente as que derivam da produção social destinadas à valorização do
capital. Da concepção inicial burguesa de educação para a formação de cidadãos à concepção
da formação da força de trabalho destinada à produção, até a educação como mercadoria sob
o domínio da teoria do Capital Humano, como analisa Frigotto (2001, 2010), agrilhoa-se o
aspecto rebelde do sujeito cognoscente ao processo de valorização do capital enquanto
produção de mais-valia, ampliando a subsunção do mesmo a cada crise e mudança no modelo
ou paradigmas que governam a economia, moldando com teorias pedagógicas adaptadas o
sujeito cognoscente, seja na produção das teorias científicas, seja em sua aplicação técnica.
Nessas circunstâncias, a educação contribui para uma ciência cada vez mais
subordinada à produção e à relação capital, conformando paradigmas científicos que
reafirmam a lógica do sistema do capital e formam a força de trabalho flexível às
necessidades de acumulação do mesmo. Esta ciência subsumida à relação capital passa a
subordinar a educação através dos paradigmas científicos que governam a produção de valor e
a pedagogia da educação, que produz o sujeito cognoscente segundo a seletividade da
22
educação de classes, caracterizando assim seu duplo domínio pela relação capital.
Nestas circunstâncias, sob força da Lei da Produtividade Crescente - o progressivo
aumento da parte constante do capital em relação à sua parte variável (ou do trabalho morto
em relação ao trabalho vivo) – a força de trabalho, apesar de essencial, reduz-se ao mínimo
técnico, em massa e tempo social, subordinando-se ao trabalho objetivado (em capital fixo ou
máquina) na produção dos meios imediatos de vida. Com o volume da produção em escala
crescente, a composição-valor passa a viver uma crise do paradigma de mensuração do valor
– o tempo socialmente necessário – diante da presença cada vez maior do trabalho abstrato, na
forma de ciência e educação na alta composição orgânica do capital, expondo a contradição
entre produção de riqueza material (trabalho concreto) e produção de valor (trabalho abstrato)
em crises financeiras especiais ou como parte das crises gerais da produção e comércio
(MARX, 1985, V. 1, p. 116), elevando-as à condição de crise orgânica do capital e de seu
sistema (MARX, 2009; HARDT e NEGRI, 2003; BENSAÏD, 1999).
Este papel protagonista da ciência e da educação na composição do capital fixo
(máquina), na exploração da natureza, na colaboração e intercâmbio sociais, ou no que se
traduz como knowledge (conhecimento) social geral ou general intellect sobre a produção e
processo da vida social, transcende o momento de antítese ou negação – a crise de erosão do
paradigma de mensuração do valor – até a superação do mesmo, ao reduzir incessantemente o
tempo necessário e ampliar constantemente o tempo disponível ou tempo livre da sociedade,
desenvolvendo o paradigma alternativo de mensuração do valor – o tempo livre social – e
condições objetivas ao processo de transição revolucionária da ciência, da educação e da
sociedade ao mesmo, ou condições teóricas subjetivas ao reconhecimento científico e à
aplicação fática deste na sociedade humana transformada (MARX, 2009; ROSDOLSKY,
2001; MÉSZÁROS, 2006; HARDT e NEGRI, 2003; BENSAÏD, 1999). O tempo de trabalho
socialmente necessário torna-se estreito para mensurar o valor de bens e serviços, não apenas
porque tende ao mínimo na composição técnica e orgânica do capital, mas porque a
preponderância da tecnologia sobre o trabalho vivo implica o controle absoluto do
conhecimento social geral, ciência e educação, sobre a produção e processo da vida social, o
que significa o emprego de forças produtivas sociais cujo valor não é mensurável por meio do
paradigma do tempo de trabalho socialmente necessário, por exemplo, a ciência, que apesar
de histórica e resultante de milênios de desenvolvimento teórico “o tempo de trabalho
necessário para sua reprodução não guarda proporção alguma com o [trabalho] exigido para
23
sua criação original. Por exemplo, qualquer jovem no colégio pode aprender em uma hora a
teoria dos binômios”. Portanto: “O produto do trabalho intelectual – a ciência – é sempre
muito inferior a seu valor.” (MARX, 1980, p. 327, tradução nossa).
Deste modo, do ponto de vista histórico, a pesquisa sustenta que a revolução
industrial se desenvolveu em três etapas, seguindo o processo de objetivação do homem em
autômato decorrente das três partes que compõem a máquina, proposto por Marx ao analisar a
revolução industrial em O Capital (1985, v. 2, pp. 8, 9 e 10). Sob esta perspectiva, pode-se
afirmar que a primeira fase (entre 1735 e 1840) foi característica da revolução da “máquina-
ferramenta”, substituindo o operário no controle manual da ferramenta; a segunda (de 1848
até 1945), da máquina motriz, que substitui a força muscular humana pela força mecânica da
natureza até o desenvolvimento da energia nuclear; e a terceira substitui o cérebro humano
pelo mecanismo cibernético e programas inteligentes ou mais precisamente a informática (de
1958 até o momento atual). Ao completar esta última fase, chegando ao autômato
“inteligente” dos dias atuais, o capital conduziu o processo de substituição do trabalhador pela
máquina ao patamar da desfiguração sintomática da estrutura de composição do valor nos
produtos (MARX, 1985, 2009; KURZ, 2004; HARDT e NEGRI, 2003). Neste contexto, a
composição orgânica do capital mudou qualitativamente, passando a viver uma crise do
paradigma de mensuração do valor, que se expressa na contradição objetiva entre a relação
tempo/trabalho necessário e a relação do tempo livre ou disponível da sociedade (MARX,
2009, v. 2, pp. 227-229).
Naturalmente, não é possível entender este processo sem a correlação com a luta
dos trabalhadores nos países do capitalismo avançado e nos países que passam ao socialismo
ou lutam pela libertação e independência nacional durante os séculos XIX e XX, alterando as
relações entre capital e trabalho, em parte ou na totalidade da economia mundial. Também se
pode relacionar à explicação da alteração radical da composição do capital a competição entre
os próprios capitalistas, apesar dos fóruns e instâncias de articulação destes no plano nacional
e internacional (DREYFUSS, 1986). Contudo, a questão decisiva para este processo se
constitui na aplicação plena da ciência e da educação, subsumidas ao capital no processo de
produção e trabalho, sob o argumento escatológico da superação das crises cíclicas de
superprodução e sobreacumulação no curso de dois séculos e meio, associada às lutas entre e
intra classes que impulsionam a tendência à alteração constante da composição do capital pela
introdução crescente do capital fixo em relação à força de trabalho viva, visível nos
24
movimentos de expansão e contração, ou globalização e crise, seguindo a hipótese das etapas
da Revolução Industrial ou Científico-Técnica (SANTOS, 1983). Sobre este pressuposto, a
crise atual se apresenta como o fim de um ciclo de globalização ou expansão do capital
fundado na última etapa da objetivação do trabalhador em autômato “inteligente”,
completando a desestruturação do paradigma de valor e riqueza em que se assentam as
relações sociais e a sociedade em geral, conduzindo à crise de organicidade estrutural do
capital e de transição de seu sistema para novo paradigma de valor e sistema social.
Neste contexto, a ciência e a educação passam a desempenhar papéis ainda mais
relevantes e decisivos nos países avançados do capitalismo, tanto para o desencadeamento da
crise do capital quanto para sua superação, porque o paradigma de valor da relação capital
tornou-se profundamente estreito para mensurar o valor da ciência e da educação como forças
sociais que pressupõem uma nova composição-valor do processo de trabalho e produção dos
valores de uso distinta da mensurada pelo tempo de trabalho necessário (MARX, 2009;
KURZ, 2004, HARDT e NEGRI, 2003). Esta nova realidade tende a transformar a atividade
científico-educativa em momento de subversão geral dos paradigmas estabelecidos ou fazê-la
sucumbir em vastas contradições inelutáveis com o próprio processo de produção,
mergulhando a ciência em crise de paradigma que se transfere para a educação mediante a
pedagogia (KUHN, 2004, BACHELARD, 1978, HORKHEIMER, 2003). Assim, constitui-se
o hiato entre educação e produção, docente e discente, escola e vida. Um processo que
degrada a ciência e a educação e conduz à perda de sua dimensão social e caráter público
(FRIGOTTO, 2010). A subversão a que a ciência e a educação são impulsionadas encontra
forte aliado na população disponível ou redundante, efetiva ou latente, logo, no exército ativo
e de reserva dos trabalhadores (MARX, 2009; HORKHEIMER, 2003). O que implica um
problema pedagógico estratégico pensar esta aliança histórica na escola, na universidade, na
fábrica, na agricultura e na sociedade; uma aliança que transforme o cérebro social em força
social consciente de si e para si (GRAMSCI, 1971).
Desta forma, a temática da pesquisa se sustenta nas seguintes proposições: a)
existem evidências suficientemente sólidas para se tomar como fato irrefutável a crise de
paradigma do valor do sistema do capital; b) estas evidências permitem identificar uma nova
relação social de valor que se desenvolve em alternativa ao paradigma de valor até então
dominante; e c) a partir do processo de crise de paradigma é possível identificar o papel
desempenhado pela Ciência e a Educação na negação e superação da mesma e desenvolver
25
uma proposta pedagógica avançada e consequente com as conquistas comuns da humanidade
no processo de transição de seus valores na sociedade.
No que se refere ao problema tematizado, o trabalho de investigação anterior, A
Crise do Capital em Marx e suas Implicações nos Paradigmas da Educação: Uma
Contribuição ao Repensar Pedagógico no Século XXI (BEVILAQUA, 2011), apresentou um
quadro robusto de evidências teóricas e empíricas que sustentam sua proposição. Tais
evidências indicam que a crise do capital atual é distinta das crises ocorridas nos últimos dois
séculos e meio e que a diferença essencial entre esta e aquelas se apresenta não somente na
forma e na essência causal de sua incidência, mas, sobretudo, no conteúdo histórico e
significado lógico da mesma; considerando sua particularidade na configuração abstrata
desenvolvida por Marx nos Grundrisse (2009, v. 2, pp. 245-253). Posto que é da abstração da
“tendência à aplicação do capital fixo ao processo de produção e trabalho” que se infere a
crise da estrutura orgânica da categoria valor no sistema do capital. A perda de efetividade da
relação de mensuração do valor, o tempo de trabalho necessário, configura a transição
potencial desta estrutura para a relação fundada no tempo livre (ou disponível) da sociedade,
como Marx havia predito nos Grundrisse (MARX, 2009, v. 2, pp. 228-229).
Neste sentido, o problema fulcral da presente pesquisa é delimitar até que ponto a
crise teorizada por Marx nos Grundrisse corresponde à crise atual. Para solucioná-lo, é
necessário superar dois obstáculos: a) fixar qual é o modelo de crise em Marx, sob o
pressuposto de aplicação absoluta do capital fixo; e b) confrontar este modelo pela via da
concreção sucessiva e mediações com a realidade atual e identificar que elementos confirmam
ou refutam o mesmo. A linha problemática que se segue é, em primeiro lugar, demonstrar que
a teoria formulada como pressuposto da investigação – o modelo de crise orgânica da
estrutura de valor do capital – sustenta-se diante de contraprovas ao estilo de Popper (1978)
ou de seu discípulo Lakatos (1998), e da literatura contemporânea, tal como as formulações
de Bensaïd (1999), Mészáros (2006), Hardt e Negri (2003), Vercellone (2011), Harvey (2011),
entre outros que tematizam a questão do valor em Marx; o que conduz a investigação à
superação do dilema da censura epistemológica à metodologia aplicada (BACHELARD,
1978). Em segundo lugar, comprovar a singularidade da crise derivada de sua característica
essencial, o que exige análise comparativa com a interpretação tradicional da crise geral da
economia em Marx. Em terceiro lugar, o problema do referencial teórico exigido acerca dos
parâmetros que permitam a relação analítica entre meios e fins. Superadas estas dificuldades
26
ou obstáculos a uma epistemologia do conceito e procedimentos científicos, resta o desafio da
exposição sistemática das conclusões da investigação e da postulação da tese que, como tal,
deve ser demonstrada pela aplicação fática (HORKHEIMER, 2003).
Neste aspecto, o ponto de maior dificuldade é desenvolver uma estrutura
articulada de parâmetros objetivos que, operados sobre lógica definida, permitam concluir que
os resultados alcançados obedeceram aos princípios e critérios enunciados. Já o segundo,
consiste na definição do objeto sobre o qual se aplica a teoria conceitual enunciada em
hipótese, ou meio pelo qual se transforma em tese, cuja base de abrangência e generalidade
permita ir além da formulação ad hoc, chegando ao modelo fático e normativo no tratamento
de problemas similares. Neste ponto, o grau de dificuldade maior é que se trata de ciência
social e, como tal, o laboratório que permite a aplicação fática é a realidade concreta, ou seja,
o movimento dialético e histórico da matéria que deve ser compreendido e exposto ao nível
do entendimento geral, segundo a articulação teórica conceitual e os princípios metodológicos
enunciados sobre o objeto definido, como amostra genérica do todo social (PÉCHEUX &
FICHANT, 1971).

1.2 Objetivo

O objetivo geral desta pesquisa, por um lado, é demonstrar em tese, teórica e


empiricamente, a crise orgânica do capital, ou da Lei do Valor, resultante da erosão de seu
paradigma de mensuração - o tempo de trabalho socialmente necessário - que se tornou
estreito para mensurar adequadamente o valor e a riqueza social da Ciência e da Educação
incorporadas cada vez mais ao processo de produção como aplicação tecnológica sobre o
trabalho; por outro, a passagem da força social, da Ciência e da Educação, de antítese que
conduz a erosão do paradigma de valor a elemento de síntese na constituição de um novo
paradigma de valor - o tempo livre social ou disponível da sociedade - para a superação desta
crise. Este objetivo resulta na proposição da formação de um núcleo estratégico de
pensamento pedagógico que acompanhe a crise de paradigma de valor e desenvolva uma
proposta pedagógica para a educação futura assentada em novo paradigma.
27
1.2.1 Objetivo específico

Naturalmente, a linha problemática que pressupõe o objetivo geral indica como


objetivos específicos: a) demonstrar teoricamente a crise orgânica do valor na estrutura da
relação capital; b) demonstrar empiricamente a crise do paradigma de mensuração de valor; c)
definir e demonstrar a importância da ciência e da educação como forças sociais que por seu
duplo caráter, de categoria subsumida ao capital e ao mesmo tempo força social subversiva a
este, desempenham papel estratégico na transição de paradigma pela revolução científica; d)
identificar e definir as categorias de transição e transcendência entre o paradigma de valor e
de organicidade social; e e) fundamentar e defender a proposição da constituição de um
núcleo estratégico de estudos pedagógicos para acompanhar a crise e suas tendências.

1.3 Relevância

A proposição temática funda-se, em primeiro lugar, no pressuposto de que a crise


de paradigma da relação valor, sob a qual se ramifica a totalidade das relações sociais que
conformam o sistema do capital, constitui uma tendência inevitável para todas as formações
econômicas sociais assentadas neste paradigma. Este devir histórico hoje é mais crível que em
qualquer outro momento, como se pode observar na sucessão de crises de caráter global que
derivam da organicidade dos países de economia avançada, líderes da economia mundial, o
G7, ou mais sintomaticamente neste momento, EUA, Alemanha, França e Japão, justificando
as soluções drásticas e violentas, a exemplo do processo vivido no Oriente Médio, Ásia menor
e Leste Europeu, que turvam o horizonte humano à paz e ao desenvolvimento duradouro,
fundado nas conquistas da ciência e da técnica, transmitidas por meio da educação social aos
sujeitos cognoscentes, formando o conhecimento e domínio das leis sociais e naturais que
regulam o metabolismo da sociedade humana em si e desta com a natureza (BEVILAQUA,
2009).
Desta forma, quando se tem em conta o esforço da sociedade brasileira, em
28
especial de sua população trabalhadora, em romper com as estruturas arcaicas e avançar para
ocupar um papel mais destacado no mundo contemporâneo, é consequente considerar a
importância de formulações alternativas para cenários bastante plausíveis e verossímeis. É
assim que a pesquisa em questão aponta para um maior aprofundamento da temática e da
crítica que contribua para que a educação no Brasil vá mais além dos propósitos da UNESCO
(2010), fixados em Dacar, em 20003. Pois no seu informe de seguimento da EPT, as
considerações em torno da crise são inteiramente superficiais e limitados, como se segue:

[...] La crisis financiera mundial ha venido a recordarnos con toda crudeza que la
interdependencia económica tiene un rostro humano. Son los niños de los países
pobres los que van a pagar el hundimiento de los sistemas bancarios occidentales,
víndose privados de su posibilidad de recibir una educación que les permita salir de
la pobreza. Este resultado es inaceptable porque reforzará un esquema de la
mundialización basado en desigualdades que ya son extremas (UNESCO, 2010, p. 5,
6 e 8).

Este relatório, ao diagnosticar os efeitos da crise econômica, sugere a relação


visível entre crise econômica e educação, sobre o viés do “entorno da educação”: “redução de
investimentos na educação pelos governos”, “aumento da pobreza”, “desemprego”, “saúde e
alimentação”, etc, que afeta o sujeito cognoscente (docente e discente). Contudo, esquece as
relações pelo viés intrínseco às crises, ou seja, através dos paradigmas, que unem meios e fins
da educação e a própria atividade científica e educativa. O desprezo por estas relações
intrínsecas entre os conceitos de ciência e educação, subsumidas ao conceito de capital, como
sugere a presente pesquisa, poderá comprometer sumamente todo o esforço dos países mais
pobres em atingirem as metas globais traçadas pela própria UNESCO. Pois, ao contrário do
que se imagina, tal processo não ocorrerá devido meramente à crise econômica, mas
sobretudo, devido aos paradigmas em crise que fundamentam tais metas, uma vez que estes
governam a educação nos países avançados do capitalismo, responsáveis pela crise do capital,
em particular EUA, União Europeia e Japão. Portanto, mesmo que a UNESCO aponte a
desigualdade entre os países ricos e pobres, como se pode observar em seu Informe de 2005
sobre a “Educação de Qualidade”, seu padrão é o “domínio de competências” em lugar de
suficiência; atitudes, valores e condutas cívicas, ao invés de socialização e valores culturais do
país; chegando ao ponto de associar “domínio de competências” com “melhoria de renda”

3
Metas globais estabelecidas pelo Fórum Mundial de Educação de Dakar em 2000: 1) Atenção e educação da
primeira infância; 2) Ensino primário universal; 3) Aprendizagem de jovens e adultos; 4) Alfabetização; 5)
Igualdade entre os sexos; 6) Qualidade. (UNESCO, 2005).
29
;
(UNESCO, 2005, pp. 1-3 GADOTTI, 2000). Nestes termos, o que se pode esperar desta
qualidade de educação? Uma boa ilustração é o debate suscitado pelos documentários Waiting
for Superman (Esperando pelo Super-homem), de Davis Guggenheim (2010) e Ivory Tower
(Torre de marfim: a crise universitária norte-americana), de Andrew Rossi (2014).

1.4 Quadro teórico

O referencial teórico capaz de sustentar a validade das provas a partir das


evidências arroladas no trabalho anterior tem sua base de sustentação principal em Marx, e
sua base auxiliar nas formulações presentes na literatura marxista como Engels (1975), Lênin
(1986), Grossmann (2004), Santos (1983, 1987), Frigotto (2010), Horkheimer (2003), ou
mesmo não-marxista contemporânea, como Kuhn (2004), Bachelard (1978) Schultz (1973) e
Bradley (1997). Esta posição não contraria de modo algum a formulação em Marx, segundo
se pode concluir de seu Prefácio a Contribuição à Crítica da Economia Política, quando
explica:

Quando se examinam tais transformações, é sempre necessário distinguir entre a


transformação material – que pode ser constatada com a exatidão própria das
ciências naturais – das condições de produção, econômicas e as formas jurídicas,
políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em suma, as formas ideológicas sob as
quais os homens tomam consciência deste conflito e lutam para resolvê-lo (MARX,
1989a, p. 8, tradução nossa).

Considerando o referencial teórico principal, a pesquisa se insere na teoria do


valor desenvolvida por Marx mediatizada pelos conceitos de crise, paradigma e pedagogia
subsumidos ao conceito de capital; neste caso, compreende a análise destas categorias e suas
relações desenvolvidas no trabalho de investigação anterior (a dissertação de mestrado) e
adiciona o conceito de valor no centro das relações e análise teórica entre estas categorias.
Portanto, ao contrário de uma definição menos precisa, como é o caso das categorias crise,
paradigma e pedagogia, a categoria valor é um conceito muito mais definido em Marx,
inclusive projetado em análises abstratas de tendências latentes no processo de produção do
capital e seu sistema social. Neste sentido, os Grundrisse (1857-1858), a Contribuição à
Crítica da Economia Política (1859) e O Capital (1867) são as obras de maior relevância para
30
a pesquisa.
A hipótese da diferença essencial entre a crise atual e as anteriores não está
simplesmente no fenômeno da alteração e variação constante da composição orgânica do
capital, que matematicamente pode ser expressa por c/v, considerando que C=c+v (C= capital
total, c = capital constante, e v = capital variável). Esta variação da composição orgânica é um
processo que se desenvolve historicamente desde a subordinação real do trabalho à relação
capital, cujo marco é a passagem da reprodução ou acumulação simples à ampliada, que
resulta da revolução industrial, como processo que primeiramente introduz o mecanismo (a
máquina) na mediação entre o trabalho vivo e o material de trabalho, e logo submete o
trabalho vivo, como mediação, entre a máquina e o objeto de trabalho, dando lugar à mais-
valia relativa e à formação da “superpopulação relativa” regulada pela “lei populacional”,
segundo a relação inversa entre a magnitude da acumulação do capital no polo capitalista e a
magnitude da miséria e “tormento de trabalho [...] do lado da classe que produz seu próprio
produto como capital.” (MARX, 1988, Livro 1, v. 2, p. 201).
Em síntese, a pesquisa considera o pressuposto teórico de que a estruturação geral
da sociedade é assentada na relação de valor do capital ou lei do valor que se expressa na
equação: x da mercadoria A = y da mercadoria monetária D, em que x e y são quantidades
iguais de tempo de trabalho socialmente necessário, enquanto trabalho humano abstrato, e
enquanto trabalho concreto são diversos. Esta expressão se reveste de relações econômicas
sociais de produção (reprodução de valor e produção de mais-valia sob a forma de valores de
uso ou trabalho concreto) e de circulação ou troca (realização do valor e do mais-valia sob a
forma de trabalho abstrato), que vertebram as relações sociais em geral (reprodução humana e
da estrutura de valores sociais). Portanto, a crise na relação de valor do capital faz desmoronar
o pilar principal e ameaça a existência do seu sistema socioeconômico ou sociometabólico.
Marx enunciou esta tendência nos Grundrisse há mais de um século e meio:

O próprio capital é a contradição no processo, [pelo fato de] que tem que reduzir a
um mínimo o tempo de trabalho, enquanto que por outro lado põe o tempo de
trabalho como única medida e fonte da riqueza. Diminui, portanto, o tempo de
trabalho na forma de tempo de trabalho necessário, para aumentá-lo na forma do
trabalho excedente; assim, põe em medida crescente o tempo excedente como
condição – questão de vida e morte – do necessário. Por um lado, desperta à vida
todos os poderes da ciência e da natureza, assim como da cooperação e do
intercâmbio sociais para fazer com que a criação da riqueza seja (relativamente)
independente do tempo de trabalho empregado nela. Por outro lado, se propõe a
medir com o tempo de trabalho essas gigantescas forças sociais criadas desta
31
maneira e reduzi-las aos limites exigidos para que o valor já criado se conserve
como valor. As forças produtivas e as relações sociais – uns e outros aspectos
diversos do desenvolvimento do indivíduo social – aparecem ao capital unicamente
como meios, e não são para ele mais que meios para produzir fundando-se em sua
mesquinha base. No entanto, constituem de fato as condições materiais para fazer
essa base explodir pelos ares. 'Uma nação é verdadeiramente rica quando em vez de
12 horas se trabalha seis. A riqueza não é disposição de tempo de mais trabalho
(riqueza efetiva), mas o tempo disponível a parte do usado na produção imediata,
para cada indivíduo e toda a sociedade' (The Source and Remedy, etc., 1821.p. 6).”
(MARX, 2009, v. 2. pp. 229, tradução nossa).

Mas a hipótese da crise do capital fundada na crise de paradigma do valor,


também encontra referência relevante na literatura marxista contemporânea, como se pode
observar em Mészáros (2006), Hardt e Negri (2003), Kurz (2004), Rosdolsky (2001),
Lazzarato (2001), entre outros. Embora não seja um debate inédito na teoria marxista e nem
no mundo acadêmico, enquanto crise de paradigma, tal debate ainda não se cristalizou em
definitivo, nem mesmo na economia política, onde a polêmica em torno do conceito de valor
constitui controvérsia tão antiga quanto o processo histórico de desenvolvimento dos
elementos ou pré-condições ao sistema do capital. Do ponto de vista da teoria marxista, o
debate antecede os Grundrisse, a Contribuição à Crítica da Economia Política e O Capital, e
muito menos se encerra nele, como se pode observar na resposta de Marx a Adolfo Wagner,
em suas Notas Marginais ao Tratado de Economia Política de Adolfo Wagner, bem como a
resposta de Engels ao Professor Lória, no posfácio ao Livro III, (MARX, 1988, Livro 3. v.5,
pp. 301-314) de O Capital.
Naquele tempo, o debate se dava em torno da validade ou não da Lei do Valor,
formulada por Marx, entre os que aceitam e os que não aceitam a tese de que o elemento
comum que permite a mensuração entre as mercadorias é o trabalho, ou mais precisamente o
trabalho abstrato na fórmula da quantidade de tempo de trabalho socialmente necessário. A
dificuldade de aceitação da teoria do valor de Marx provinha em grande parte, por um lado,
da dificuldade dos teóricos burgueses pensarem dialeticamente as relações econômicas; por
outra, do ardil de classe, que escamoteia a essência da noção de riqueza para evitar problemas
à sua acumulação no processo de produção do capital, ou seja, a mais-valia. Assim, o
momento dialético do valor expresso em preços distintos para uma mesma quantidade de
trabalho abstrato é apresentado como contradição da teoria do valor em Marx, o mesmo em
relação à diferença de valor entre o preço do trabalho simples e o complexo, ou a
impossibilidade teórica de um conceito de equivalente geral ao trabalho objetivado e tantas
outras questões demandadas simploriamente contra a teoria formulada por Marx (1988).
32
Já no momento atual a questão do valor é tematizada, tomando como pressuposto
a própria predição de Marx nos Grundrisse, de tendência do emprego do capital fixo substituir
o trabalho vivo (força de trabalho) corrompendo a relação trabalho objetivado e trabalho vivo,
na composição orgânica do capital e seu valor cristalizado no produto. Os autores que
avançam nesta formulação, mais incisivamente são Kurz (2004), Bensaïd (1999), Mészáros
(2006), Hardt e Negri (2003) e Vercellone (2011). Contudo, mesmo partindo da abstração de
Marx como tendência histórica chegam a desdobramentos e resultados diferentes da mesma
na realidade concreta. Neste aspecto é possível alinhá-los em três vertentes:
A primeira que sustenta mediações entre a abstração pura de Marx e sua
concreção na realidade atual, a exemplo de Mészáros e sua tese da Taxa de Utilização
Decrescente como lei que se impõe, impedindo o processo de mudança de paradigma do
tempo necessário ao tempo livre ou disponível (MÉSZÁROS, 2006, pp. 634-656 e 675-85).
A segunda gira em torno de Hardt e Negri, que reconheçam a abstração de Marx
como realidade atual, porém no quadro de virtualidade do império, derivada da subjetividade
da multidão, e como tal depende da ação desta para a sua realização. A categoria trabalho
imaterial distorce a concepção de Marx de knowledge geral ou intelecto geral ao transferir o
papel protagonista que têm as categorias ciência, educação e o trabalhador coletivo na crise e
solução do paradigma de valor para a subjetividade da multidão, que compreende o
conhecimento empírico religioso mitológico e o individualismo, diluindo o protagonismo das
primeiras (HARDT E NEGRI, 2003, pp. 242, 310-316 e 383-386).
A terceira e última, a concepção de Kurz que considera que toda teoria tem uma
parte histórica e um núcleo abstrato estável e mais permanente; no caso da teoria do valor é o
capital o núcleo estável, logo, o trabalho se torna supérfluo e perde sua importância
modificando-se historicamente em personificações distintas de sujeitos históricos perdendo
sua efetividade. Deste modo a crise do capital é a crise do trabalho abstrato, ou mais
precisamente do fim do trabalho abstrato, que permanece pela imposição do capital e que,
portanto, a superação do dilema se resolve pela abolição do trabalho (KURZ, 2004, pp. 22-25
e 74-75).
Estas formulações à primeira vista torcem as palavras de Marx, apesar de
apoiarem-se nos Grundrisse. Contudo, o que é mais importante fixar aqui é o locus teórico em
que se insere a problematização da crise do valor - e em consequência a crise a que é
submetida a ciência e a educação - que requer uma precisão maior do que as formulações
33
alinhadas em torno da proposição que aceita a abstração de Marx como verdade absoluta para
a situação histórica atual do capital, como é o caso de Kurz (2004, p. 74) e Hardt e Negri
(2003, p. 386), e/ou daquelas que mediatizam a tendência ou até mesmo negam sua
efetividade mediante artifícios atribuídos ao capital, como por exemplo a noção da destruição
criativa de Schumpeter (1985, pp. 142-143), como faz Mészáros e sua Taxa de Utilização
Decrescente ou uma formulação genérica como faz Harvey (2011, p. 100). Portanto, é a partir
destes pressupostos teóricos que a investigação pretende desenvolver e responder
teoricamente o problema.

1.5 Indicações metodológicas

As técnicas metodológicas aplicadas são de caráter qualitativo (DEMO, 1987):


pesquisa bibliográfica e documental; análise comparativa dos trabalhos sobre a temática e
autores focados (DEMO, 1987). Em termos da pesquisa bibliográfica, a seleção da literatura
teórica obedece ao critério de notória representatividade na pesquisa sobre o tema-problema,
ou ainda o subtema-problema enfocados. O mesmo presidirá em relação aos documentos e
dados empíricos, que confirmem ou neguem as teorias ou hipóteses teóricas pesquisadas ou
formuladas em torno do tema e problema investigado. Quanto à análise comparativa, esta
obedece ao método epistemológico fundado na lógica dialética do materialismo histórico de
Marx (2009). As teorias metodológicas de Bachelard (2005), Kuhn (2004) e Horkheimer
(2003) são utilizadas como instrumental auxiliar nas temáticas pertinentes.
A revisão bibliográfica compõe-se do estudo e da síntese dos trabalhos mais
recentes dos autores que têm por escopo a problemática sugerida pelo tema da presente
pesquisa: A Crise Orgânica do Capital: o Valor, a Ciência e a Educação. Seu foco geral
localiza-se nas relações entre crise do capital, a ciência e a educação, realçando as
implicações causais entre seus paradigmas normativos: economia política e pedagógica
educacional. Deste modo, a revisão condensa os trabalhos atuais em torno de três conceitos
chaves da presente pesquisa: a) o conceito de crise do capital; b) o conceito de crise de
paradigma da ciência; e c) o conceito de crise na pedagogia da educação.
O critério de seleção dos trabalhos para esta revisão foram: atualidade, ineditismo,
34
classificação como enfoque marxista e notoriedade acadêmica; em relação às obras clássicas
do marxismo (Marx, Engels, LÊNIN), o critério foi a pertinência em relação ao tema.
Também se agregam os autores clássicos e atuais, cujo espectro teórico transcende o enfoque
marxista e a temática específica, na forma de leitura auxiliar e consultas, além de pesquisas
empíricas de organismos oficiais e independentes publicadas pelos meios reconhecidos
(periódicos impressos e meios digitais). Em relação às últimas, o critério de seleção da
amostra será por representatividade em relação ao objeto de investigação, no caso em questão,
estatísticas do setor produtivo elaboradas por instituições internacionais como o FMI, Banco
Mundial e publicações especializadas, com abrangência de cerca de 3 décadas, portanto,
factível de expressar durante este período as transformações na composição orgânica do
capital e na estrutura do valor e preços de mercado. Particularmente, estatísticas sobre a
formação bruta de capital fixo, taxas de juros e taxas de lucro.
Em termos do método geral da pesquisa, a dialética marxista, é mister esclarecer
que a sua aplicação se desdobra de duas formas: a investigativa, recorrendo a métodos
auxiliares e obedecendo aos critérios monográficos nos temas de concentração como
totalidade, tais como, crise do capital, ciência e educação (MARX, 1989a), bem como sínteses
de suas conexões categóricas e implicações causais, em termos abstratos e concretos; já em
torno da análise expositiva dos resultados da pesquisa, o procedimento tentará obedecer
rigorosamente ao método de exposição de Marx (1988, passim), ou seja, o movimento real
destas relações sociais, como sistema teoricamente articulado da totalidade destas relações,
enfatizando seus elementos de conexão, transição e transcendência, que abarcam a totalidade
viva concreta dos seus sujeito-objetos (MARX, 2009 e 1988).
Por último, cabe observar também que o método de Marx, será objeto de
abordagem específica na parte que tematiza a categoria crises do capital, além disso ele
também será tratado de forma menos específica e limitado nas temáticas que se façam
pertinentes. A divisão temática do trabalho, se compõe de 6 partes:
A primeira parte apresenta o tema geral, destacando suas partes mais relevantes, a
hipótese e o problema teórico e metodológico, fixa o objetivo geral e específico da pesquisa,
justifica e situa o locus teórico, finaliza indicando a metodologia aplicada; a segunda parte
desenvolve o conceito teórico de Crise Orgânica do Capital, enquanto crise do paradigma do
valor, examina a bibliografia pertinente, fundamenta a teoria conceitual em Marx e
Grossmann e demonstra sua efetividade com dados empíricos dos organismos oficiais (FMI,
35
BIRD, OCDE); a terceira parte, desenvolve o conceito de revolução industrial como
revolução científica a partir de Marx, Horkheimer, Kuhn e Santos, analisa o duplo caráter da
ciência, como aplicação tecnológica subordinada à produção e como relação dominante do
processo de produção e da vida social, demonstra a crise de paradigma da ciência econômica
por meio das emendas da Curva de Phillips; a quarta parte, desenvolve o conceito de
educação marxista face a crise orgânica do capital, analisa a relação entre as mudanças de
paradigma na economia e as mudanças de teorias da educação a partir de Suchodolski e
Frigotto, revela o duplo domínio da educação pelo capital – diretamente pela produção e
indiretamente pela ciência – anulando o potencial revolucionário da pedagogia, demonstra o
progressivo domínio da teoria do capital humano e do capital intelectual sobre a educação
como teoria compensatória da crise do valor, apresenta dados empíricos sobre o resultado
pedagógico das teorias econômicas da educação; a quinta, conclui das relações entre a crise
do valor, a crise de paradigmas e a crise pedagógica a necessidade e possibilidade de uma
mudança na teoria e na prática do sujeito cognoscente para conduzir uma revolução
educacional, científica e social, propõe a formação de núcleos pedagógicos estratégicos que
desenvolvam experiências a partir do paradigma do tempo livre; a sexta parte, apresenta a
bibliografia; a sétima parte traz os anexos e apêndices.
36
2 A CRISE ORGÂNICA DO CAPITAL

A concepção de crise econômica ipso facto desempenha uma posição relevante em


toda a teorização de Marx sobre o capital. Comprova-se esta assertiva por sua presença já em
seus primeiros manuscritos dedicados ao estudo da economia política e do socialismo e
comunismo – nos Manuscritos Econômico-Filosóficos (1989b, p. 106-7, p. 135-6) de 1844; a
Miséria da Filosofia (2010l, Prefácio, Introdução, Capítulo II), de 1847; o Manifesto do
Partido Comunista (2010i, Capítulo I), de 1948; As Conferências Sobre o Trabalho
Assalariado e Capital (1982), de 1852; os Grundrisse (2009; v.1, p. 311, 353-404; v.2, p. 216-
236), entre 1857 e 1858; Contribuição para a Crítica da Economia Política (1977, p. 146), de
1859; até sua obra magna O Capital (1988), Livro I de 1867, e os manuscritos e resenhas
econômicas de 1861 a 1864, que através de Friedrich Engels e Helena Demuth (1994, v. 27, p.
529), completam a obra de O Capital (1988), o Livro II em 1885 e o Livro III, em 1894;
finalmente, nas resenhas e estudos sobre As Teorias da Mais-Valia (1974; Tomo 1, 559-566;
Tomo 2, p. 09-64; 97-128), editadas e publicadas por Karl Kautsky, entre 1905 e 1910.
Contudo, a questão fundamental da presente pesquisa não é definir o locus teórico
do conceito de crise nas obras de Marx, mas sua pertinência e desenvolvimento como
categoria crucial à investigação da estrutura teórica do conceito de capital, de acordo com seu
método dialético materialista. Neste aspecto, é necessário sustentar o fundamento teórico do
próprio método, ou teoria do conhecimento do autor, diante de dois fatos históricos que
conduzem uma dupla viragem no mesmo: a crise do socialismo, que culminou com a queda
da URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – e, com ela, o prestígio dos seus
paradigmas teóricos dominantes no marxismo; e a crise do “capitalismo triunfante” nos
Estados Unidos da América, União Europeia e Japão, que igualmente desmoraliza os
paradigmas teóricos da ciência burguesa, apesar do intenso esforço teórico e propagandista
para ocultar este fato reconhecido pelos seus próprios teóricos. Diante destes dois fatos
históricos, o ressurgimento de Marx tem sido marcado pela reinterpretação da teoria do
capital e, com ela, da teoria marxiana como um todo. Todo o repensar se fundamenta
teoricamente na redescoberta dos Grundrisse, como se pode observar nas interpretações mais
recentes, especialmente Mészáros, Hardt e Negri, Arrighi, Harvey, Vercellone, Gorz,
37
Lazzarato, Boutang, Bensaïd, entre outros, para precisar os matizes ideológicos que dominam
a literatura acadêmica atual (AMADEO, 2007).
Para estes “novos” intérpretes de Marx, a teoria nos países socialistas tornou-se
um “anátema”, e com isso, a própria compreensão do método aplicado na Contribuição à
Crítica da Economia Política de 1859, sintetizada pelo autor em prefácio, tendo sob suas
vistas os Grundrisse. Mas não param por aí, as referências ao método no segundo prefácio da
edição alemã de O Capital (Marx, 1988) e os próprios conceitos fundamentais desenvolvidos
nesta obra também foram questionados. A defesa da revisão da teoria em O Capital – a
propósito de salvá-la do “stalinismo”, “positivismo”, do “mecanicismo do marxismo-
leninismo”, “unilateralidade” e etc. - acentuou o caráter inconcluso da obra de Marx,
justificando sua complementação inclinada, ora na direção ricardiana, ora sismondiana, ou ora
smithiana; sob o manto do método hegelianizado a partir de Lukács ou a partir de Gramsci.
Porém, o mais complicado neste processo, sobretudo, é que o núcleo racional
reconhecido pelo próprio Marx do seu “método”, a “lógica dialética do materialismo
histórico”, que ele afirmava ser “totalmente oposta ao idealismo e mistificação da mesma em
Hegel” (Marx, 1988, Livro I, v. 1, p. 26), passou a ser questionado e, com ele, a tríade lógica
em que repousa toda a crítica da economia política: a lei do valor (que passa do tempo
necessário ao tempo livre, cujo objeto é a negação da mais-valia como quantum de trabalho
excedente no valor das mercadorias); a lei geral da acumulação (o processo de valorização do
capital, composição orgânica, taxa de mais-valia e/ou lucro, as crises); e a lei da luta de
classes (tempo necessário e tempo excedente, trabalho pago e trabalho não pago, trabalho
assalariado e capital, reforma e revolução). Por isso, a questão se tornou complexa, pois tal
qual os conceitos de crise, também o conceito teórico do método aplicado por Marx não foi
sistematizado por ele (ENGELS apud LÊNIN, 1983, Tomo 20. p. 89).
No esboço das linhas gerais do método no Prefácio à Contribuição à Crítica, de
1859, Marx faz referência aos trabalhos que expõem cientificamente seu pensamento e de
Engels, – Miséria da Filosofia (1847), Manifesto Comunista (1848), Discurso sobre o Livre
Câmbio e os artigos Trabalho Assalariado e Capital (1849); incluindo a própria Contribuição
à Crítica e O Capital (1859) – estes, além de não conterem uma exposição sistemática do
método, ainda têm suas interpretações contestadas. As publicações do Livro II (1885) e do
Livro III (1894) de O Capital, e outros escritos como Crítica ao Programa de Gotha (1875) e
38
Notas Marginais ao Tratado de Economia Política de Adolph Wagner (1879), não encerraram
o ciclo de formulação sequer da teoria conceitual de O Capital, como se pode observar pela
inconclusão do Livro III. A publicação por Kautsky dos estudos da Teoria da Mais-Valia
(1904-1910) e a descoberta dos cadernos contendo os manuscritos da crítica da economia
política, por David Riazanov (ex-dirigente do IMEL4), que apesar da censura de Marx5, a
publica em 1939, sob o título de “Elementos Fundamentais Para a Crítica da Economia
Política Rascunhos 1857-1858” [Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie
(rohentwurf) 1857-1858], ampliou ainda mais a profusão de interpretações da obra de Marx,
chegando a rupturas teóricas e aporias que obscurecem, até os dias atuais, uma clara
demarcação do conteúdo histórico, da estrutura teórica e significado lógico do que se
denomina método do materialismo histórico e dialético aplicado à teoria conceitual de capital,
como modo de produção e seu sistema social ou formação socioeconômica historicamente
determinada, o capitalismo. Finalmente, a própria censura de Mészáros a Engels, pelo que
considera um erro na tradução ao Inglês da Edição de O Capital, a definição de “sistema do
capital por sistema capitalista” (MÉSZÁROS, 2002, p. 1064), lançando uma nuvem de
suspeição sobre as demarcações conceituais da obra.
Portanto, a presente investigação centrará sua referência em três obras principais
de Marx: Os Grundrisse, em cuja introdução Marx realiza uma aplicação comentada do
método, especialmente em relação à sua concepção de conceito e categoria em economia
política, diferenciando-a, criticamente, da formulação do método aplicado pelos economistas
clássicos do capitalismo e economistas vulgares, tanto do capitalismo quanto do socialismo e,
sobretudo, do método dialético hegeliano; a Contribuição à Crítica da Economia Política, de
1859, cujo prefácio tornou-se o centro de controvérsia a partir do enfoque estruturalista dado
por Althusser (1992); e, finalmente, O Capital, Livro I, em especial o Prefácio à Edição
Alemã, que é dedicado ao método, bem como suas partes explicativas e definidoras,
diferenciando-o da lógica vulgar e do idealismo hegeliano. Naturalmente, sempre que
necessário se recorrerá a outras obras do autor e aos seus principais intérpretes e
continuadores: Engels e Lênin.

4
IMEL – Instituto Marx Engels Lênin de Moscou.
5
“Tengo ante mis ojos todos los materiales en forma de monografías escritas con largos intervalos para mi propio
esclarecimiento y no para su publicación; la elaboración sistemática de las mismas conforme al plan indicado
dependerá de circunstancias externas.” (MARX, 1989, p. 6).
39
2.1 Marx e o conceito de crise

Embora o Prefácio à Crítica da Economia Política, de 1859, seja o escrito mais


conhecido, e quiçá reconhecido, no qual Marx apresenta seu caminho metodológico e
categorias analíticas com que elaborou suas obras principais, é na Introdução aos Grundrisse
que se encontram mais didaticamente aplicados e resumidamente expostos os fundamentos
gerais do método científico da economia política, no qual a teoria de conceito em geral, como
o “meio” ou instrumental pelo qual a “ciência”, diferente de outras formas de saber, se
“apropria da realidade”. No início desta Introdução, o autor situa o objeto de investigação, a
produção social, e o sujeito da investigação, a humanidade, condensando-os na expressão
“produção dos indivíduos em sociedade”, rejeitando a formulação de Ricardo e Adam Smith
que investigam a economia política com base no sujeito individual. Este pressuposto
conceitual de Marx indica a ideia que os conceitos, enquanto categorias teóricas de per si, não
são uma unidade universal que se apresentam no espaço e no tempo sem mudança em seu
conteúdo essencial, mesmo quando são abstrações teóricas calcadas em fundamentos
razoáveis, como se observa nesta passagem:

Entretanto, o geral e o comum, extraído por comparação, é algo completamente


articulado e desdobrado em distintas determinações. Algumas pertencem a todas as
épocas; outras são comuns só a algumas. Certas determinações são comuns a épocas
mais modernas e as mais antigas. Sem elas não poderia se conceber nenhuma
produção, pois se até os idiomas mais evoluídos têm leis e determinações que são
comuns aos menos desenvolvidos, o que constitui seu desenvolvimento está
precisamente naquilo que os diferencia destes elementos gerais e comuns [..]. as
determinações que valem para produção em geral são precisamente as que devem
ser separadas, para não se esquecer a diferença essencial quando se enfatiza só a
unidade, o que já ressalta o fato de que o sujeito, a humanidade, e o objeto, a
natureza, são os mesmos (MARX, 2009, pp. 5-6).

Vê-se, pois, que Marx enfatiza que o conceito geral só faz sentido quando: a) se
fundamenta nos traços comuns a todas as épocas históricas de um objeto de investigação; b) a
concepção geral do objeto permite identificar o conceito em particular do mesmo; e c) o
isolamento da parte geral do conceito (os elementos comuns, repetitivos, a unidade
conceitual) permite ressaltar a diferença essencial. E é, justamente esta diferença essencial o
que explica, em última instância, o sentido particular, entre o singular e o geral no
desenvolvimento do conceito. Portanto, para Marx, o conceito é a forma com que a
40
consciência científica se apropria do concreto, do mundo vivente, “reproduzindo-o como
concreto pensado”, “distinto da religião”, da “arte” e do senso comum, “se elevando do
singular ao geral” e “do abstrato ao concreto” (pp. 21-22). Em seu princípio metodológico,
não há espaço para “neutralidade” ou “imparcialidade da ciência”, uma vez que “sujeito e
objeto, no fundo, são os mesmos” (pp. 21-23).
O método indica o primado do sujeito na construção do objeto abstrato, do
singular ao geral, do concreto figurado ao concreto pensado. Porém, ao se inverter o processo,
passando do abstrato geral ao concreto particular, o primado do objeto sobre o sujeito orienta
a reconstituição do movimento real da matéria investigada (MARX, 1988, Livro 1, v. 1, pp.
26 e 27). Considerando que esta última existe objetivamente, independente do pensamento,
ela se desenvolve e não se mantém igual ao momento dialético de sua formulação abstrata
(HEGEL, apud LÊNIN, OC, Tomo 29, pp. 161-162 e 191-199, passim). E, finalmente,
quando se pensa a unidade sujeito e objeto, isto implica que não existe sujeito (humanidade)
sem objeto (natureza) e sua diferença essencial é intrínseca ao caráter orgânico e inorgânico à
própria unidade da natureza em geral, destacando-se da sua parte orgânica a humanidade
enquanto sujeito; logo, seu papel ativo na cognição pressupõe a natureza em geral como
objeto e primado do qual até mesmo o sujeito e seu ato cognitivo são partes (HEGEL, apud
LÊNIN, OC, Tomo 29, pp. 200-216, passim; ADORNO, 2009, p. 160).
Assim, a demarcação do locus de conceitos determinados, subsumidos ao sistema
teórico complexo do conceito em geral, pressupõe que sejam expressões abstratas dos
momentos dialéticos do movimento histórico do substrato material, real e concreto; portanto,
sínteses de múltiplas determinações que podem expressar aspectos dimensionais e/ou
subdimensionais do todo social (LÊNIN, OC, Tomo 29, pp. 205-212; MARX 1988, Livro I,
v.1, pp. 21-27) ou abstrações conceituais subsumidas e mediatizadas por estas dimensões ou
subdimensões (Marx, 2009, v. 1, pp. 22-27). No caso em questão, a crise econômica, sua
respectiva dimensão está subsumida à esfera conceitual da produção e do conceito de capital
em geral.
Qual é, pois, o fulcro da questão que determina a validade ou não de um conceito
para a teoria do conhecimento, em Marx? Situando o problema nestes termos, chega-se a uma
resposta desdobrada em dois aspectos: o primeiro, é o critério da práxis e o segundo, a
coerência lógica. Para Marx, desde as teses sobre Feuerbach, “se um pensamento humano
corresponde a uma verdade objetiva, não é um problema teórico, mas prático”, “é na prática
41
que se comprova a verdade”, “realidade, poder e caráter terreno do pensamento” (1973, p. 7).
Contudo, esta definição não pode ser confundida com a tese do falseamento da
ciência de Popper (1974, pp. 41-43), pois não se trata de considerar uma teoria válida por sua
“aproximação da verdade”, mas porque ela deve ser “confirmada pelos fatos” (MARX, 2010e,
pp. 407 - 408); portanto, esta noção em Marx está mais próxima do conceito de Kuhn (1971,
pp. 53 – 54), que exige da “teoria eleita como paradigma de uma comunidade científica” a
coerência lógica de sua função na estrutura conceitual, portanto, que sempre produza o efeito
esperado ao “funcionamento normal da práxis teórica”. Uma definição também corroborada
por Horkheimer (2003, p. 223), em que o modelo serve para aferir se o exemplar é condizente
ou não com ele.

2.2 A teoria da crise em Marx

A pesquisa nas obras fundamentais de Karl Marx sobre o conceito de crise do


capital, permite afirmar que não existe uma teoria sistemática sobre o tema desenvolvida de
per si, o que aparenta corroborar com a “teoria das lacunas” na obra magna do autor, O
Capital, consensual a grande número de estudiosos da temática, no passado e no presente.
Estas “lacunas” são atribuídas às mudanças no plano de investigação inicial de Marx
apresentado nos anos 1857-1858, para o plano definitivo que resultou na estrutura de O
Capital. Este processo foi estudado minuciosamente por Rosdolsky através das notas,
prefácios, cartas, índices (sumários) e temas formulados por Marx nos Grundrisse, nos
manuscritos de 1861 e 1863 e em O Capital.
A pesquisa inicia apresentando as duas estruturas planejadas: o plano de 1857 que
dividia a obra em seis livros:

“LIVRO I. SOBRE O CAPITAL: a) O capital em geral 1) Processo de produção do


capital, 2) Processo de circulação do capital-trabalho, 3) Lucro e juros; b) Seção
sobre a concorrência; c) Seção sobre o sistema de crédito; d) Seção sobre o capital
dividido em ações.
LIVRO II. SOBRE A PROPRIEDADE DA TERRA. LIVRO III. SOBRE O
TRABALHO ASSALARIADO. LIVRO IV. SOBRE O ESTADO. LIVRO V.
SOBRE O COMÉRCIO EXTERIOR. LIVRO VI. SOBRE O MERCADO
MUNDIAL E AS CRISES”. (ROSDOLSKY, 2001, p. 27).
42
E o plano de 1865 (1866) que dividiu a obra nas seguintes partes:

“LIVRO I. O PROCESSO DE PRODUÇÃO DO CAPITAL; LIVRO II. O


PROCESSO DE CIRCULAÇÃO DE CAPITAL; LIVRO III. O PROCESSO
GLOBAL DA PRODUÇÃO CAPITALISTA; LIVRO IV. HISTÓRIA DA TEORIA”
(pp. 27-28).

A mudança começa com a exclusão da introdução que Marx planejara preambular


sua obra, pois considerou incorreto “antecipar resultados que deviam ser demonstrados” (p.
27). Da análise comparativa entre os Grundrisse, o plano inicial e O Capital, Rosdolsky
conclui que eles “não ultrapassam os três pontos enumerados do plano inicial em I (a)” (p.
30). Sobre o segundo manuscrito de O Capital, elaborado entre 1861 e 1863, devido à não
publicação de partes importantes deste, o autor analisa as notas apresentadas e comentadas
por Kautsky, das seções I e III do 'Livro sobre o capital', de janeiro de 1863. Ressalta os erros
deste último ao considerar que Marx excluiu o conceito de “trabalho produtivo e trabalho
improdutivo” do seu plano definitivo; e que raciocinou por “inversão [a] lei de apropriação”
para desenvolver a “tendência histórica da acumulação capitalista” do primeiro tomo (p. 32).
Rosdolsky demonstra que o conceito de trabalho produtivo e improdutivo foi
abordado nos capítulos XIV e XV do primeiro tomo e remetido ao Livro quarto, editado pelo
próprio Kautsky, onde seria abordado mais profundamente. Quanto ao “raciocínio” por
“inversão”, o autor sustenta que: “Trata-se de outra coisa: com a passagem à produção
burguesa, a lei da apropriação da economia mercantil simples se transforma em lei de
apropriação capitalista”. E que Marx dedicou “um parágrafo especial a este tema no primeiro
tomo de O Capital” (p. 33).
Desta análise inicial, Rosdolsky conclui que:

“Em primeiro lugar, a transição do antigo para o novo plano não se produziu antes
de 1864-1865; além disso, no que diz respeito à modificações dos planos, devemos
estabelecer uma distinção entre os livros primeiro, segundo e terceiro originais, e os
livros quarto, quinto e sexto. Embora os temas previstos para constar destes últimos
não tenham sido incorporados à estrutura posterior, parece que eles não chegaram a
ser propriamente 'abandonados', permanecendo à espera de um “desdobramento
eventual” da obra. Mas, como esses temas só são abordados ocasionalmente em O
capital, parece justificar-se o que se convencionou chamar a 'teoria das lacunas', para
usarmos a expressão de Grossmann (que, não obstante, nega a existência de
qualquer tipo de 'lacuna' em O capital)”(ROSDOLSKY, 2001, p. 37).

Quanto aos Livros segundo e terceiro, são considerados incorporados à nova


estrutura de O Capital, pois o mesmo seria inimaginável sem as questões abordadas naqueles,
43
o que também é válido para os temas b-d do “Livro sobre o capital”, originalmente concebido.
Portanto, o problema da modificação do plano só existe em relação aos livros segundo e
terceiro e as seções b-c do plano inicial.
Diante destas constatações, Rosdolsky volta-se para compreender os motivos que
levaram Marx a modificar seu plano original e que relação a mesma teria com a metodologia
da obra deste. Ressalta que se trata de uma questão crucial para a compreensão da construção
doutrinária de Marx, porém, somente formulada em 1929 por Henryk Grossmann, em sua
obra Das Akumulations- und Zusammmenbruchsgesetz des kapitalistischen Systems [A lei da
acumulação e a derrocada do sistema capitalista]. A resposta apresentada por Grossmann e a
de seus críticos, precisamente Behrens, são insuficientes para o autor, apesar do aparente
respaldo na carta de Marx a Engels em 15 de agosto de 1863. O primeiro respondeu que foi “a
descoberta da reprodução” que levou o plano de Marx da investigação da “superfície
empírica” dos fenômenos ao “conhecimento” destes, “uma visão poderosa da totalidade, da
mais-valia total, e do capital total” (GROSSMANN apud ROSDOLSKY, 2001, pp. 38, 484-
485). O segundo respondeu que na “subdivisão em seis livros [Marx] partia originalmente de
pontos de vista exteriores e se ajustavam mais à subdivisão tradicional da economia anterior,
agora [...] ele estruturou a obra segundo os pontos de vista metodológicos rigorosamente
científicos” (BEHRENS apud ROSDOLSKY).
A conclusão de Rosdolsky sobre o estudo dos manuscritos de O Capital, das
modificações e dos motivos para as mesmas foi que “Marx nunca abandonou os últimos três
dos seis livros planejados”, e que “a verdadeira modificação” diz respeito “aos Livros I, II e
III”. O Livro II (Sobre a propriedade da terra) foi incorporado ao tomo terceiro da obra
definitiva de Marx e o Livro III (Sobre o trabalho assalariado) incorporado à penúltima seção
do tomo primeiro. O “Livro sobre o capital” da primeira parte do plano inicial foi
reestruturado: as seções b-d foram incorporadas na mesma ordem ao terceiro tomo de O
capital; enquanto a “seção a” corresponde, em traços gerais, aos dois primeiros tomos da obra,
ou seja, a análise do “capital em geral”. Quanto aos motivos que levaram Marx a modificar
seu plano, o autor afirma que não foram os apresentados por Grossmann e Behrens, e sim que
poderiam ser vários “pelo fato de que, quando Marx concluiu a parte mais importante de sua
tarefa – a análise do capital industrial –, a antiga estrutura da obra tornou-se supérflua” (p. 58)
(Ver fac-símile no anexo que ilustra as modificações no Plano de Investigação de Marx).
O estudo de Rosdolsky é importante porque situa o problema da inexistência de
44
uma teoria sistemática da categoria crise do capital, de per si, nas obras principais de Marx, ao
método aplicado na estruturação da mesma, que “exclui do âmbito de investigação de O
Capital o problema das 'conexões do mercado mundial'”, como “declarou repetidamente
Marx” no tomo terceiro desta obra. O que – segundo o autor – é válido também para “os
problemas, estritamente vinculados a elas: os ciclos industriais, 'a alternância de prosperidade
e crise', 'cuja análise mais aprofundada ... se situa fora do âmbito de nosso tema', podendo vir
a ser tratado em um 'desdobramento eventual da obra'”. Diante destas declarações de Marx, o
autor conclui: “Isso demonstra que de fato a teoria de Marx sobre as crises apresenta uma
'lacuna', no sentido de que ele mesmo não previra tratar o problema em seu nível mais
concreto” (pp. 36-37).
O trabalho de Simon Clarke sobre a Teoria Marxista da Crise (1994), elaborado
trinta e seis anos após o trabalho de Rosdolsky, mesmo se apoiando nos Grundrisse, não
coloca em primeiro plano o método utilizado por Marx na elaboração teórica de seus
trabalhos principais. Embora o objetivo de Clarke seja apresentar uma teoria da crise
consequente com a obra de Marx, parte do pressuposto de que ele “não nos oferece uma teoria
da crise como tal” devido à mudança em sua concepção teórica da crise no curso cronológico
e contextual em que elabora sua obra, especialmente, durante a elaboração dos Grundrisse
(1857-1858) até O Capital (1867). O autor sustenta assim, que o primeiro problema à
apresentação de uma teoria de Marx sobre a crise é que sua “discussão teórica da crise nos
trabalhos publicados em vida [...] não constitui nada mais do que breves comentários
epigramáticos”, e que isto “torna simplesmente impossível extrair uma teoria da crise (…)
presente nestes”, logo, uma teoria de Marx sobre a crise só poderia ser apresentada “como
uma parte da caracterização mais ampla da dinâmica do modo de produção capitalista” (1994,
pp. 12-13).
O método de trabalho aparece como o segundo problema à apresentação da teoria
sobre a crise pelo autor e não como aplicação científica que explica o porque Marx não
aborda a crise enquanto tal em suas obras principais, mas como um processo confuso e
especulativo que consistia em “seguir através de várias linhas de pensamento para ver onde
elas iriam levá-lo, em seguida, voltar aos [...] cadernos para tentar trazer alguma ordem às
suas ideias, antes de começar novamente desde o início e tentar encaixar tudo no lugar”.
Segundo Clarke, todo o processo resultava em “um grande número de fragmentos”, devido às
“diferentes maneiras com que Marx trabalha as ideias, chegando às vezes a conclusões,
45
abandonando às vezes uma linha de pensamento, e se perdendo às vezes em seu caminho
(geralmente em um emaranhado de exemplos aritméticos)”, sem fornecer “qualquer indicação
da importância sistemática de suas observações”. Deste modo: “Qualquer tentativa de
apresentar a teoria de Marx sobre a crise, inclui necessariamente um elemento substancial de
interpretação e reconstrução” (p. 13).
Por último, Clarke enuncia o terceiro problema em sua abordagem da crise: “toda
a discussão da crise estava profundamente enraizada nos comentários críticos de Marx sobre a
economia política”, o que leva a conclusão do autor que “a forma de exposição da teoria da
crise por Marx é dominada pelo papel que ela desempenha em sua crítica da economia
política”, e que isto não a torna necessariamente “um guia para o seu papel em um diagnóstico
do capitalismo do próprio Marx”. Desta maneira, “a teoria da crise” deve ser apresentada,
“não somente no contexto de uma interpretação da análise mais ampla de Marx da dinâmica
do capitalismo, mas também no contexto da sua crítica da economia política”. Portanto, estes
“problemas significam que qualquer discussão da teoria da crise em Marx envolve um
compromisso entre exposição, interpretação e contextualização”. Logo, a apresentação desta
teoria por Clarke tenta “manter algum equilíbrio entre estes três elementos.” (pp. 14-15).
Em linhas gerais, a maior parte do trabalho de Clarke reproduz os principais
debates e teorias sobre a crise baseadas na obra de Marx, que tomam lugar, após a morte de
Engels (1895)6, na década final do século XIX estendendo-se ao longo do século XX. O autor
classifica estes eventos como: debates sobre a teoria do colapso ou da crise terminal do
capitalismo, provocado por Bernstein, (1896-1887 e 1899), contra Kautsky (1892), apoiado
em Böhm-Bawerk (1894) e Tugan-Baranovski (1895), e criticado por Rosa Luxemburgo
(1900) e Lênin (1902); debates sobre o subconsumo, desproporcionalidade e realização
iniciado por Hilferding (1910), criticado por Rosa Luxemburgo (1913), que por sua vez é
criticada por Otto Bauer (1913), Kautsky (1914), Lênin (1916), Bukharin (1925), entre outros;
debates sobre a tendência decrescente da taxa de lucro e subconsumo, que participam Preiser
(1924), Grossmann (1929), Strachey (1935), Dobb (1937), eclipsadas pelas teses de Sweezy
(1942) e deste com Baran (1966). Finalmente, os debates da tendência decrescente da taxa de
lucro, na década de 1970, em que participam Paul Mattick (1969) recuperando Grossmann,
David Yaffe (1972) e Mário Cogoy (1972 e 1973), Glyn e Sutclife (1972) que defende o profit

6
As datas entre parênteses nesta passagem correspondem aos anos da publicação original das obras, de forma a
situar cronologicamente os debates.
46
squeeze, continuando na década de 1980, com Weeks (1981), Shaikh (1978), Nakatani (1980),
Makoto Itoh (1980 e 1988) e Armstrong, Glyn e Harrison (1984), chegando a Reuten (1991).
Todos estes debates e profusão de teorias, o autor atribui à mudança na concepção
de Marx sobre a crise, ora definindo-a como “superprodução”, ora como “subconsumo”, ora
como “tendência a queda da taxa de lucro”, sem precisar uma teoria conceitual sistemática
sobre esta. Em conclusão, o autor sustenta que a concepção de Marx sobre a crise é:

Para Marx crises não eram a verdade suprema do capitalismo, nem eram o ponto
culminante da história. Crises eram a expressão superficial e transitória da
contradição fundamental do modo de produção capitalista. Mas ao mesmo tempo a
tendência de crise é inerente a todos os aspectos da realidade cotidiana da existência
social capitalista (CLARKE, 1994, p. 192).

Por isto, ele afirma: “Insistir que Marx não tinha nenhuma teoria da crise é insistir
que o foco do trabalho de Marx não é a crise como um evento catastrófico, mas a tendência
inerente à crise que está por trás da instabilidade permanente da existência social sob o
capitalismo.” (p. 193). Pois, o foco do “marxismo ortodoxo na crise geral, em oposição ao seu
caráter contraditório, permanentemente e constitutivo da acumulação do capital”, provoca
apenas “distração”. E, apesar de Marx e Engels terem reafirmado sua “fé revolucionária,
apelando à crise inevitável, na prática, calmamente abandonaram a ilusão de que a revolução
seria precipitada por uma crise geral quando, em 1857, acabou por ser um rojão úmido”.
Finalmente, o autor conclui:

A crise não tem mais um efeito cataclismo, ela é uma parte do padrão normal de
acumulação capitalista, o padrão de superacumulação e de crise que está subjacente
a permanência da luta de classes, como meio que os capitalistas procuram resolver
as tendências de crise de acumulação à custa da classe trabalhadora.” (p. 198).

Mészáros, a exemplo de Rosdolsky e Clarke, também sustenta a proposição que


Marx não desenvolveu uma teoria da crise. Contudo, diferencia-se dos dois últimos autores,
primeiro definindo para qual tipo de crise Marx não desenvolvera uma teoria, que é sobre a
crise geral, como se pode deduzir da passagem a seguir:

“A crise do capital percebida por Marx em meados do século XIX no 'cantinho


europeu do mundo' por muito tempo não foi uma crise geral. [...] Hoje, a situação é
radicalmente diferente [...] o aprofundamento da crise estrutural do capital significa
que “a realidade está começando a se movimentar em direção ao pensamento”
(MÉSZÁROS, 2002, p. 219).
47
Segundo, também se percebe da citação acima que o autor atribui à determinação
histórica - o desenvolvimento do capital ou de suas forças produtivas -, um fator que impede
Marx de elaborar uma teoria sobre a crise geral, tal como ela se apresenta hoje aos olhos de
Mészáros. Portanto, este autor, reduz a concepção teórica de crise em Marx a um fenômeno
cíclico e conjuntural ou, mais precisamente, como um momento do ciclo econômico ou
industrial, logo, incapaz de conceituar uma crise geral ou estrutural. Isto é observado também
em outra passagem da obra deste autor em que distingue crise estrutural de crise conjuntural
através dos seguintes traços: “uma crise estrutural afeta a totalidade de um complexo social
em todas as relações como as partes constituintes ou subcomplexas, com os complexos às
quais é articulada”, enquanto que “uma crise não estrutural (…) afeta apenas algumas das
partes do complexo em questão”; em uma “crise parcial” a “contradição” pode ser deslocada,
enquanto a “crise estrutural [ao contrário] põe em questão a própria existência do complexo
global envolvido”; todo complexo social tem “limites imediatos”, aos quais “pode
transcender” e “limites absolutos” aos quais “não pode transcender”: a “crise estrutural não
está relacionada aos limites imediatos, mas aos últimos de uma estrutura global” (pp. 797-
798).
O outro fator relevante, que o autor argumenta a favor da não existência de uma
teoria da crise geral ou estrutural em Marx e na defesa de sua “teoria da transição”, é a tese da
“obra inacabada” deste autor. Mészáros afirma que seu trabalho é continuação da obra de
Marx, enfocando mais os aspectos que afirmam a crise geral que aqueles que contrariam a
mesma. E para demonstrar esta continuidade da obra de Marx, recorre ao método da
economia política contida na introdução dos Grundrisse de 1857-1858, destacando a
passagem final em que Marx trata o conceito de sociedade burguesa e do capital em geral e
apresenta seu plano de trabalho, como se segue:

A ordem obviamente deve ser: 1) os determinantes gerais abstratos que prevalecem


em quase todas as formas de sociedade, […]; 2) as categorias que compõem a
estrutura interna da sociedade burguesa e na qual se apoiam as classes
fundamentais. Capital, trabalho assalariado, propriedade fundiária. Suas relações
internas. Cidade e campo. As três grandes classes sociais. Trocas entre elas.
Circulação. Sistema de crédito (privado); 3) concentração da sociedade burguesa na
forma de Estado. Vista em relação a si mesma. As classes 'improdutivas'. Impostos.
Dívida estatal. Ordem pública. A população. As colônias. Emigração; 4) as relações
internacionais de produção. Divisão internacional do trabalho. Troca internacional.
Exportação e importação. Taxa de Câmbio. 5) O mercado mundial e crises (MARX,
apud MÉSZÁROS, 2002, p. 702).
48
Com base nesta citação, Mészáros estabelece uma série de considerações, sendo a
mais importante:

Nessa base conceitual, o conjunto da análise marxiana deveria ser levada à sua
conclusão, em relação aos problemas enumerados 4 e 5, pela demonstração da
insolúvel crise estrutural do sistema, que ele [Marx] esperava que se desdobraria
pelos antagonismos que emanam da divisão internacional do trabalho e do mercado
mundial (p. 704, itálico nosso).

O autor acrescenta que, embora Marx não tenha completado seu pensamento
sobre as “relações de classe” (referindo-se à interrupção dos manuscritos do Livro III de O
Capital), “a abordagem de Marx do complexo de problemas a ser investigado em conjunto é
suficientemente clara na passagem acima citada” do método (p. 703, itálico nosso).
Mészáros, em uma breve avaliação da vida e obra de Marx, afirma que ele
identificou o verdadeiro objetivo dos socialistas que é o de “superar a subordinação do
trabalho ao capital” (p. 535). Lamenta e compreende que não tenha se interessado em
“explorar detalhes” de como o capital poderia “deslocar suas contradições”, adiando, por
largo período, “a erupção da sua crise estrutural”, vendo na Comuna de Paris uma “evidência
irrefutável da ativação efetiva de tal crise: daí as suas referências à época da revolução social”
(p. 535). Portanto, não há uma ruptura entre o jovem e o maduro Marx, e quem a procurou
perdeu tempo e não percebeu o óbvio: “a incapacidade de Marx de levar a uma conclusão
satisfatória (sic) O Capital, apesar de todos os anos de heroicos esforços despendidos” e da
saúde debilitada (p. 536). Explica-se, assim, o “desconforto sobre o manuscrito abandonado
de O Capital, pois a Parte III do Volume II, que trata da reprodução e da circulação do capital
social, parecia a ele necessitar de uma profunda revisão”; posto que trata a “questão do
consumo”, retomada de “forma muito polêmica, sem explorar suas implicações até as suas
conclusões lógicas no que diz respeito às suas potencialidades positivas para o capital” (p.
536). Conclui que os apologistas do capital, viram que “há pelo menos um conflito potencial
entre a efetividade da militância e o nível de desenvolvimento do sistema de consumo, ligado
até o final às inflexíveis limitações, do mercado capitalista” e a expansão capitalista” (p. 537).
Em Grossmann, também se observa a ideia de que Marx não desenvolveu uma
teoria sobre a crise enquanto tal, apesar de Rosdolsky afirmar o contrário do autor quando se
refere a “teoria das lacunas” contestada por este (36-37). Contudo, uma leitura rigorosa de
Grossmann observará que ele traça uma nítida distinção entre “teoria” e “lei” em seu estudo
49
de O Capital, segundo o método de Marx aplicado ao mesmo, como se pode comprovar em
sua conclusão, ao buscar uma definição precisa da teoria do colapso nesta: “Marx se referiu
apenas ao colapso e não à teoria do colapso, da mesma forma que ele não escreveu sobre
teoria do valor ou a teoria dos salários, mas desenvolveu a lei dos valores e a lei dos salários”
(GROSSMANN, p. 93, tradução nossa).
Sem dúvida, esta distinção epistemológica efetuada pelo autor entre o
desenvolvimento da categoria colapso, enquanto lei em si, no sistema teórico do capital
unificado pela categoria valor – ou a lei do valor – e a teoria do colapso enquanto tal, em
analogia a outras categorias, desenvolvidas por Marx sem que apresente uma teoria sobre as
mesmas, demonstra claramente que Grossmann não sustentava a tese que existiria uma teoria
da crise, enquanto tal, em Marx. Esta afirmação parece tão distante do que pensa e desenvolve
o autor em sua pesquisa, que até mesmo a concepção da lei do colapso em Marx ele declara
que é uma derivação porque não há uma descrição concisa da mesma:

Mesmo que Marx não tenha nos legado uma descrição concisa da lei do colapso em
alguma passagem específica, ele especificou todos os elementos necessários para tal
descrição. É possível derivar a lei como uma consequência natural do processo de
acumulação capitalista com base na lei do valor. (p. 15).

Mas isto não é tudo sobre o trabalho deste autor. Na verdade, sua compreensão de
que a “teoria da lacuna”, arguida por Rosa Luxemburgo e outros, não era pertinente ao
sistema teórico de Marx em O Capital, deve-se a sua concepção do método aplicado à obra. O
Livro II, em que desenvolve os esquemas de reprodução, é considerado como a expressão
mais abstrata ou modelo teórico puro, subsumido à “lei do valor”. Neste, os fenômenos
empíricos e superficiais são abstraídos, distinguindo-se da totalidade viva, real e concreta,
portanto, não podendo ser comparado com a construção categorial do Livro I, no qual Marx
processa as categorias abstratas essenciais ao seu sistema, entre estas, a categoria valor, que é
a categoria dominante e unificadora do conceito de capital em geral, e menos ainda com a
formulação teórica do Livro III, onde Marx passa ao processo de concreção sucessiva,
incorporando categorias anteriormente abstraídas ao seu modelo teórico centrado na
reprodução.
Neste sentido, não há lacunas, ou ausências no sistema teórico de O Capital e é
por isso que Grossmann, coerente com sua concepção da teoria de Marx, refuta todas as
tentativas de estabelecer uma deficiência à coerência teórica e metodológica da teoria de Marx
50
em O Capital. Entretanto, esta posição teórica do autor não autoriza afirmar que ele defenda a
existência de uma teoria sobre a crise de per si em Marx, especialmente em O Capital. Na
verdade, a posição defendida pelo mesmo, como já citado acima, é que inexiste esta teoria.
Inclusive isto pode ser deduzido da afirmação do autor que as tentativas anteriores de
entender a crise falharam porque “não levavam em conta o método de Marx. A crise não era
seu objeto de estudo, mas sim a reprodução do capital.”
Para Grossmann, Marx enunciou a ideia de que “o capitalismo 'cria sua própria
negação com a inexorabilidade de um processo natural', já no Volume I do Capital, na seção
da tendência histórica da acumulação capitalista”; porém, “não explicitou como essa
tendência de negação se impõe, como ela leva ao colapso do capitalismo, ou através de quais
causas imediatas o sistema encontra seu declínio econômico.”. O autor ao analisar “a lei da
tendência decrescente da taxa de lucro” no curso da acumulação, que demonstra que a mesma
não ocorre em proporção ao nível da taxa de lucro, mas de forma relativa a sua massa, destaca
a seguinte afirmação de Marx: “Esse processo traria em breve o colapso da produção
capitalista se não fosse pelas tendências contraditórias que tem um contínuo efeito
descentralizador, a margem do efeito centrípeto.” (MARX apud GROSSMANN, 1974, p. 187,
tradução nossa).
Entretanto, a resposta as indagações de Grossmann somente confirmam a tese de
que não há uma teoria de per si do colapso, ou mesmo a enunciação de sua lei, como se
comprova desta passagem do autor:

Se formos ao Volume 3, na seção que lida com a Lei da tendência decrescente da


taxa de lucro tampouco encontramos a resposta. A mesma causa que afeta o processo
de acumulação também produz a queda na taxa de lucros. Mas seria essa queda um
sintoma do colapso? Como essa tendência se desenvolve? Aqui Marx deveria ter
demonstrado a tendência ao colapso. Ele chega a perguntar “Qual deve ser a forma
desta lei de dois gumes do decréscimo da taxa de lucro e simultaneamente do
aumento na massa absoluta de lucro que ocorre pelas mesmas causas?”. Mas não
segue a resposta decisiva (p. 15).

De todo este processo, o autor conclui que o móbile da produção capitalista é a lei
do valor ou a valorização do capital, portanto, a reprodução ou acumulação de capital
(reprodução de valor e produção de mais-valia), o que é o mesmo, constitui a categoria chave
no método de Marx para se compreender o colapso como tendência natural da acumulação
capitalista e que por isso, “As 'aparências ilusórias da competição' não atuam sobre a
tendência geral, nem se confundem com ela. [...] Por isso, a teoria da acumulação e do
51
colapso é também teoria da crise” (GROSSMANN). Nestas circunstâncias: “As condições
gerais da crise, na medida em que são independentes das flutuações de preços, devem ser
explicadas a partir das condições gerais da produção capitalista.” (Marx apud Grossmann).
Portanto, “a causa do estado insatisfatório da teoria atualmente se deve à negligência com o
método de Marx. Focou-se apenas nos resultados da investigação científica, mas não no
caminho da sua formulação”.
Como se pode demonstrar, pelo exame das interpretações dos quatro autores
acima, todos concordam com a assertiva que na obra de Marx, especialmente, em seus
trabalhos principais, não existe uma teoria sobre as crises econômicas no capitalismo, nem tão
pouco sobre a crise do capital, isto é, da relação social fundamental do sistema
socioeconômico. Este fato, entretanto, não nega que, nesta mesma obra de Marx, exista uma
teoria da crise em si, isto é, como parte subordinada a categoria principal e unificadora da
estrutura de relações econômicas derivada da relação capital. Mas, isto não é tudo, todos
autores concordam também que é possível desenvolver, a partir das indicações metodológicas
e formulação teórica de Marx, uma teoria geral sobre a crise econômica no capitalismo,
enquanto tal, e além disso a crise da relação capital ou crise do capital, que domina o sistema
capitalista. É desta teoria conceitual da crise econômica enquanto tal que se pode extrair como
formulação articulada do sistema de relações complexas do capital, que trataremos a seguir.

2.2.1 As concepções em Marx e Engels

Até o momento, tem sido aceito por todos os estudiosos do marxismo que o
Manifesto Comunista de 1848 condensa, em linhas gerais, o pensamento teórico de Marx e
Engels em torno da revolução social, anterior e posterior à colaboração teórica de ambos
iniciada em 1844 e 1845; logo, não é arbitrário considerar que no mesmo também se encontre
a concepção sobre as crises econômicas do capitalismo destes. Os trabalhos individuais que
antecedem esta colaboração entre os fundadores do Socialismo Científico são: O Esboço
Para Uma Crítica da Economia Política, escrito por Engels no final de 1843 e início de 1844,
publicado nos Anais Franco-Alemães neste último ano, que segundo estudiosos, exercem
forte influência sobre o pensamento de Marx (DEUS, 2012); e os Manuscritos Econômicos e
52
Filosóficos, escritos por este último entre abril e agosto de 1844.
No trabalho de Engels, as “crises de superprodução”, “monetárias” e “comerciais”
que se manifestam “periodicamente” são atribuídas à “propriedade privada”, “à anarquia da
produção”, à “concorrência” e à “concentração de capital”, motivadas pelo “egoísmo”, o
individualismo e desejo de “lucro”; portanto, uma contradição frontal às ideias de livre
comércio, internacionalismo, cosmopolitismo e liberdade individual que vinculavam a
economia política nascente ao iluminismo. Embora o artigo de Engels seja mais descritivo e
uma condenação moral a “prática comercial”, “a especulação na bolsa”, a “adulteração de
produtos”, a “exploração” e “miséria” dos “trabalhadores” e “pequenos comerciantes”, acaba
por chegar aos clássicos da economia política (Smith, Ricardo, Say, Betham, Mill, Malthus,
MacCulloch, Ure entre outros) e aos críticos destes (Fourier, Sismondi, entre outros) em
exercício teórico mais abstrato sob a lógica hegeliana humanista; contudo, lança desafios na
investigação dos fenômenos econômicos que encontram ressonância em Marx (MARX;
ENGELS, 1975, pp. 418-443).
No trabalho de Marx, a situação se inverte; sua compreensão da crise deriva da
sua crítica à dialética hegeliana aplicada à análise das categorias da economia política
presentes nos clássicos (Smith, Ricardo, Say, Mill, Schulz, entre outros) e na crítica
econômica destes (Sismondi, Proudhon, Pecqueur, entre outros). No Primeiro Manuscrito em
que analisa os salários, sua concepção de crise econômica surge associada à estrutura de
relações econômicas da sociedade burguesa, como tendência que acompanha o crescente
processo de “acumulação”, e consequente “superprodução”, convertendo-se em
desdobramento necessário deste. Tal processo resulta da “divisão do trabalho” e da
“concorrência”. Estas, desdobradas da “objetivação do operário” em “produto ou máquina”,
devido à relação da “propriedade privada”, conduzem ao “estranhamento” deste ao seu
produto, consumando-se a contradição fundamental da sociedade entre a “riqueza do trabalho
acumulado” nas mãos dos capitalistas e “pobreza” acumulada de seus produtores, os
“operários” (MARX, 1989, pp. 106-118).
Neste trabalho de Marx, categorias que mais tarde serão desenvolvidas mais
profundamente em sua teoria sobre o capital, tais como “trabalho abstrato”, “acumulação”,
“tempo de trabalho”, “valor”, “taxa decrescente dos lucros”, “divisão do trabalho”,
“superprodução”, “lei populacional” (exército industrial de reserva), “propriedade privada”,
“alienação”, “estranhamento”, “exploração”, entre outras; já se apresentam articuladas como
53
sistema de contradições representativo da dinâmica da sociedade capitalista, cuja essência de
seu “desenvolvimento”, “riqueza” e “refinamento” revela-se como “desumanização”,
“pobreza” e “exploração da classe trabalhadora”. A concepção de pobreza não se resume
apenas a salários abaixo das condições necessárias à existência humana dos trabalhadores,
mas também a sua “redução a condição de máquina ou mercadoria”, isto é, sua redução à
coisa, que é o fundamento da sociedade mercantil (passim).
No trabalho que marca o início da colaboração teórica entre Marx e Engels, A
Ideologia Alemã, a concepção de crise econômica aparece primeiramente como parte do
universo de problemas vivido pelos burgueses, seja na França ou na Inglaterra, diferenciando-
a da falta de mercados (débouchés), (MARX e ENGELS, 2007, pp. 121 e 122). Também é
possível identificar neste trabalho a concepção implícita de crise que transcende a
determinação econômica, seja superprodução, financeira ou comercial, chegando à dimensão
histórica: o “desaparecimento do Império romano, do feudalismo, do Império alemão e do
domínio de Napoleão”. Estas concepções de “crise histórica” e “crise comercial”, irredutíveis
uma a outra “sem mediação”, são usadas para demonstrar a incoerência da “sinonímia
etimológica” de Max Stirner, que se reduz à busca direta de um nexo etimológico entre
radiciais de palavras ou expressões conceituais e é, portanto, incapaz de resolver fenômenos
empíricos reais (p. 238).
O mesmo enfoque apresenta-se quando os autores utilizam o fenômeno da crise
monetária ou financeira para demonstrar a incoerência da Associação defendida por Stirner
como meio de constituir uma sociedade igualitária, porém sem uma transformação de fato das
relações econômicas e sociais. Esta formulação idealista, ao reproduzir as relações de
produção capitalistas, está submetida às crises deste sistema econômico. A concepção de crise
financeira é apresentada de forma descritiva como momento em que a escassez de dinheiro se
apresenta na relação entre devedores e compradores, exigindo a capacidade de pagamento em
dinheiro de dívidas contraídas. A concepção de dinheiro, cujas determinações o qualificam
como meio de troca, meio circulante e meio de pagamento, incorpora “títulos públicos, ações
públicas”, “letra de câmbio” e papel-moeda, ultrapassando a noção de moeda metálica
concebida por Stirner, que como as demais expressões do valor ou dinheiro é também
definida pelos custos de produção, ou seja, pelo trabalho. A crise financeira sob este enfoque
de Marx e Engels subentende-se como contradição entre a produção social, definida pelo
trabalho, e a expressão desta produção social em termos de trabalho abstrato, ou de valor
54
expresso em dinheiro (pp. 383-386).
Por último, os autores nesta obra conjunta definem a crise de superprodução a
partir da crítica de Karl Grün a Fourier em torno da unidade entre produção e consumo na
teoria do socialismo verdadeiro. Para Grün, Fourier perturba a unidade entre produção e
consumo com a ideia da superprodução; nestes termos, os autores demarcam precisamente a
diferença entre o conceito de superprodução e crise ao afirmar que “a superprodução só
provoca crises quando tem influência sobre o valor de troca dos produtos” (p. 498). Neste
sentido, à medida que se parte do pressuposto que “o valor de troca desapareceu” (Idem), isto
é, que as mercadorias se desvalorizaram a ponto de não se intercambiarem, isto implica que
no processo de produção ocorreu uma queda do trabalho abstrato contido nas mesmas, seja
pelo barateamento de custos de produção, seja pelo aumento da produtividade; em ambos
casos, a redundância provoca uma crise de realização do valor abstrato cristalizado na
superprodução, o que, por sua vez, acarreta a desvalorização da sua expressão monetária, o
dinheiro. Eis porque os autores criticam a concepção da unidade entre produção e consumo de
Grün, que, a partir da ótica do consumo, atribui o problema da contradição entre esses dois
fatores à má educação e falta de humanidade dos consumidores (Idem).
Na Miséria da Filosofia, a concepção de crise aparece na crítica de Marx à
formulação do valor de Proudhon, na qual o valor ou preços das mercadorias é determinado
pelo tempo de trabalho nelas contido, que por sua vez equivale ao valor do trabalho, ou
salário. Nesta lógica, o valor do produto e o valor dos salários são iguais, efetuando-se
supostamente uma troca justa, segundo a lei da proporcionalidade, que se expressa na unidade
entre oferta e demanda ou produção e consumo. Marx argumenta, entretanto, que o valor de
troca de um produto só coincide com o tempo de trabalho em uma situação de perfeito
equilíbrio entre oferta e demanda, e que tal situação já não existe diante da grande indústria,
da concorrência e do monopólio; tornando a lei da proporcionalidade de Proudhon em lei da
desproporcionalidade devido aos diferentes tempos de trabalho com os quais os capitalistas
individuais produzem. Neste contexto, a crise apresenta-se como uma fase do ciclo industrial
inaugurado com a grande indústria, como se observa na seguinte passagem:

Fuit Troja!* Esta correta proporção entre a oferta e a demanda […] há muito que
deixou de existir, tornou-se uma velharia. Ela só foi possível em épocas nas quais os
meios de produção eram restritos, nas quais a troca se operava em limites

*
“Troia já não existe!”
55
extremamente reduzidos. Com o aparecimento da grande indústria, esta justa
proporção teve de acabar, e a produção é fatalmente obrigada a passar, numa
sucessão perpétua, pelas vicissitudes de prosperidade, depressão, crise, estagnação,
nova prosperidade e assim por diante.” (MARX, 2010l, p. 137, tradução nossa).

No Discurso sobre o livre-câmbio, preparado para pronunciamento no congresso


dos economistas livre-cambistas, que não efetuou, Marx claramente desenvolve uma noção de
crise econômica como expressão dialética das relações contraditórias entre acumulação e
população operária, como mais tarde desenvolveria mais rigorosamente na Lei geral da
acumulação capitalista, em O Capital (MARX, 1988, Livro 1, v. 2, pp. 178-203). Nesta
formulação, as relações de causalidade entre crescimento do capital produtivo, aumento da
procura por trabalho e o valor do trabalho, subindo os salários, que é esgrimida pelos
economistas, encontra em Marx a seguinte contra-argumentação:

“Se o capital permanece estacionário, a indústria não apenas estacionará mas entrará
em declínio, e o operário será, neste caso, a primeira vítima. […] O crescimento do
capital produtivo implica a acumulação e a concentração de capitais. A concentração
de capitais conduz a uma maior divisão do trabalho e a um maior emprego de
máquinas. Uma maior divisão do trabalho liquida a especialidade do trabalho e
destrói especialidade do trabalhador, e, substituindo-a por um trabalho que todo
mundo pode fazer, aumenta a concorrência entre os operários.” (MARX, 2010m, pp.
459-460).

Vê-se aqui a clara relação entre duas fases do ciclo econômico da indústria como
momentos de alta e baixa, ou prosperidade e declínio, mediados pelas fases ou momentos de
depressão, crise e estagnação; e todo este processo do capital como movimento de expansão e
contração da acumulação, determinado pelas variações quantitativas nas relações entre o
trabalho não pago e o trabalho pago, sob o envólucro do valor. Marx, todavia, localiza dentro
das relações econômicas as contradições que impulsionam a tendência às crises e afirma:

Enfim, quanto mais aumenta o capital produtivo, tanto mais ele é obrigado a
produzir para um mercado cujas necessidades desconhece, tanto mais a produção
precede o consumo, tanto mais a oferta tende a forçar a procura e, por consequência,
as crises são cada vez mais intensas e frequentes. Mas toda crise, por sua vez,
acelera a concentração de capitais e engrossa as fileiras do proletariado (Idem).

Em Carta a Annenkov, em Dezembro de 1846, Marx define a crise econômica de


1825 como a “primeira crise universal” do capitalismo, resultante do desenvolvimento da
grande indústria e da introdução da maquinaria à produção. Segundo o autor, antes desta data,
a introdução da maquinaria no processo produtivo da Inglaterra foi devido ao crescimento no
56
consumo acima da capacidade de produção industrial, portanto, atendia às necessidades do
mercado deste país; posteriormente, a aplicação da maquinaria deriva da luta entre patrões e
empregados. Nos outros países do continente europeu, a maquinaria é introduzida em função
da concorrência com a própria Inglaterra; já nos Estados Unidos decorre tanto da concorrência
quanto da insuficiência da força de trabalho para atender às necessidades de produção. Esta
relação estabelecida entre o desenvolvimento da primeira crise de caráter universal do sistema
do capital, acompanhando o processo de mecanização da produção industrial, atribui um
papel importante à aplicação tecnológica na universalização do modo de produção do capital
e, com ele, da crise de acumulação que lhe é intrínseca (209).

2.2.2 A concepção no Manifesto Comunista

A concepção de crise de Marx e Engels condensada no Manifesto Comunista de


1848 expressa, em linhas gerais, uma articulação conceitual mais ampla que as desenvolvidas
em seus trabalhos anteriores. Ela é apresentada como termo que exprime a contradição
histórica entre forças produtivas e relações de produção no curso da existência humana, nas
relações metabólicas do homem com a natureza e entre si. Estas relações de produção,
determinadas pelas relações de propriedade, mediatizam a unidade entre as estruturas
econômicas, sociais e políticas e ordenam a relação entre as forças produtivas – a força de
trabalho e meios de produção – que se desdobram, economicamente, nas categorias capital e
trabalho, socialmente, nas classes burguesa e proletariado, e, politicamente, em
contrarrevolucionários e revolucionários. Quando a forma histórica dessas relações de
produção perde sua funcionalidade de propiciar o desenvolvimento harmônico das forças
produtivas, obstaculizando ambas, à uma ou outra, apresentam-se crises singulares nas esferas
econômica, social e política da sociedade, expressando a contradição histórica que, sob o
influxo da luta de classes, conduz à transição de caráter revolucionário entre modos de
produção, ou à contra-revolução e barbárie.
A análise histórica no Manifesto inicia com a descrição do processo de crise e
transição entre modos de produção, que tem por pressuposto a contradição histórica entre as
forças produtivas e as relações de produção, sob o aspecto da luta de classes:
57
[...]A história de toda a sociedade até aqui é a história de lutas de classes.
[Homem] livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo [Leibeigener], burgueses
de corporação [Zunftbürger] e oficial, em suma, opressores e oprimidos, estiveram
em constante oposição uns aos outros, travaram uma luta ininterrupta, ora oculta ora
aberta, uma luta que de cada vez acabou por uma reconfiguração revolucionária de
toda a sociedade ou pelo declínio comum das classes em luta (MARX, 2010i, p.
483).

Esta relação conceitual entre crise histórica e crise particular ou geral na


sociedade é deduzida da descrição do papel revolucionário que a burguesia desempenhou no
desenvolvimento das forças produtivas em relação às demais classes dirigentes que
precederam a sociedade burguesa. Nesta descrição, Marx e Engels estabelecem uma metáfora
entre este papel desempenhado pela burguesia e o do feiticeiro que desperta com suas
fórmulas forças superiores a que pode controlar. Continua a analogia apresentando, por um
lado, o desenvolvimento das forças produtivas sob as relações de produção e intercâmbio
capitalistas, na esfera nacional e mundial, como feito que ultrapassa as obras faraônicas, e o
desenvolvimento da grande indústria revolucionando, pela incorporação da ciência e da
técnica, a base produtiva anterior e as indústrias nacionais, submetendo-as à nova divisão
internacional do trabalho e reconfigurando as classes sociais no desdobramento sintético entre
burgueses e proletários; em síntese, “transformando o mundo a sua imagem e semelhança”
(Marx, 2010i). Por outro lado, o resultado de todo este processo de expansão e acumulação do
capital, que se consuma em grandes crises que, periodicamente, se manifestam no comércio e
na indústria, em escalas cada vez maiores, expressa a contradição histórica entre as forças
produtivas e as relações de produção como se observa na passagem seguinte:

De decênios para cá, a história da indústria e do comércio é apenas a história da


revolta das modernas forças produtivas contra as modernas relações de produção,
contra as relações de propriedade que são as condições de vida da burguesia e da sua
dominação. Basta mencionar as crises comerciais que, na sua recorrência periódica,
põem em questão, cada vez mais ameaçadoramente, a existência de toda a sociedade
burguesa (pp. 490-491).

Os autores apontam os efeitos destas crises do comércio sobre as forças


produtivas já desenvolvidas, como a aniquilação de grande parte destas. Mas, nesta
formulação, deve-se compreender forças produtivas não apenas como mercadorias ou
produtos de consumo imediatos (alimentos, vestuários, calçado, entre outros), mas também
meios de produção (máquinas, equipamentos, matérias-primas e auxiliares) e, sobretudo,
58
força de trabalho. Os autores chegam a estabelecer a analogia entre o fenômeno social da
“superprodução”, que se apresenta nas crises, e as “epidemias” mais terríveis do passado,
chegando ao “contrassenso” se comparada à peste negra, por exemplo. Qualificam este
processo como uma regressão momentânea da sociedade ao estado de barbárie: “parece-lhe
que uma fome, uma guerra de aniquilação universal lhe cortaram todos os meios de
subsistência: a indústria, o comércio, parecem aniquilados” (p. 491).
Diante deste quadro, os autores passam da descrição da aparência e dos efeitos
superficiais do fenômeno social da crise à determinação de sua essência, revelando como tal a
contradição histórica entre forças produtivas sociais e as relações de produção, ou o que não é
mais que sua expressão jurídica: a propriedade privada capitalista. Esta, chegando ao limite de
seu desenvolvimento pela supressão da propriedade individual, já não é mais capaz de
acompanhar o desenvolvimento das forças produtivas – os meios de produção condensados na
grande indústria, nas conquistas da ciência e da técnica; e a força de trabalho, cujo
crescimento enquanto classe proletária em si, para atender à acumulação ampliada do capital,
aumenta sua luta pela reprodução da prole – e passa a impedi-las, constituindo assim um
momento de crise histórica do modo de produção, por trás das crises gerais ou particulares
que se manifestam na superfície da sociedade burguesa. Os autores formulam assim o
problema:

E porquê? Porque ela possui demasiada civilização, demasiados meios de vida,


demasiada indústria, demasiado comércio. As forças produtivas que estão à sua
disposição já não servem para promoção das relações de propriedade burguesas;
pelo contrário, tornaram-se demasiado poderosas para estas relações, e são por elas
tolhidas; e logo que triunfam deste tolhimento lançam na desordem toda a sociedade
burguesa, põem em perigo a existência da propriedade burguesa. As relações
burguesas tornaram-se demasiado estreitas para conterem a riqueza por elas gerada
(p. 491).

Os autores, seguindo a mesma lógica de diálogo, indicam não apenas a forma


racional como a burguesia supera as crises, mas sobre tudo a tendência histórica em que se
consumará finalmente este processo:

E como triunfa a burguesia das crises? Por um lado, pela aniquilação forçada de uma
massa de forças produtivas; por outro lado, pela conquista de novos mercados e pela
exploração mais profunda de antigos mercados. De que modo, então? Preparando
crises mais omnilaterais e mais poderosas, e diminuindo os meios de prevenir as
crises (p. 491).
59
Marx e Engels, a partir desta concepção da contradição essencial do
desenvolvimento tendencial do sistema capitalista, demonstram como tal contradição se
expressa na esfera social, em termos da constituição objetiva das classes sociais e interesses
de classes, e na passagem da consciência de classe de classe em si para si. O mesmo
desenvolvem na análise da esfera política, na luta pelo poder político e na organização tática e
estratégica da luta de classes. Finalizam com o exame da literatura socialista contemporânea,
classificando-a ideologicamente segundo o projeto de classe ou fração de classe que o
formula.

2.2.3 A concepção em O Capital

O Capital é a obra magna de Marx, considerada assim por todos seus estudiosos,
embora a redescoberta dos Grundrisse tenha se transformado na pedra de toque da literatura
contemporânea socialista e, em especial, do marxismo acadêmico. Entretanto, é O Capital que
condensa o pensamento teórico crítico deste autor sobre a economia política clássica do
capital, apesar da controvérsia sobre “as ausências”, “esquecimentos”, “lacunas” e
“unilateralidade” (MÉZSÁROS, LEBOWITZ, ROSDOLSKY) que permeia a inconclusão
desta obra, como se observa na interrupção da mesma ao iniciar a análise das classes sociais
na sociedade capitalista (MARX, 1988, Livro III). Contudo, é impossível negar a existência
de uma concepção teórica da crise em si, como categoria científica que expressa o momento
dialético de negação da relação capital desenvolvida em toda sua amplitude neste trabalho de
Marx. Este fato pode ser inferido tanto pelas 267 citações diretas e indiretas da expressão
crise nos três primeiros livros de O Capital, quanto da multiplicidade de significados, funções
e determinações diretas e indiretas desta a cada contexto em questão. Aqui é importante
esclarecer que o Livro quarto, Teorias da Mais-Valia, não foi pesquisado em sua integralidade,
restringindo-se apenas as partes diretamente relacionadas a temática.
Uma consideração geral em torno da aplicação da categoria crise por Marx,
seguindo o método de investigação e exposição expresso na divisão temática final de O
Capital, permite defini-la sob duas dimensões e significados: primeiro, de caráter geral e
histórico, como momento dialético de negação da relação social dominante de um modo de
60
produção determinado, limite e transição histórica deste a outro modo de produção superior,
ou regressão histórica a um estágio de desagregação e barbárie social. Segundo, de caráter
particular e determinado pelos contextos específicos da construção teórica do autor, ao
designar um momento de mudança qualitativa nas relações internas de uma categoria, ou em
sua relação com um corpus teórico, seja como estrutura de relações da totalidade, seja da parte
social.
Nestes termos, o Livro I de O Capital apresenta a primeira aplicação teórica da
categoria crise no contexto de construção das categorias fundamentais da economia fundada
no trabalho social, em que a categoria valor-trabalho constitui-se em conceito principal; o que
permite uma primeira análise da relação capital enquanto conceito geral e modelo abstrato que
explica as leis tendenciais e gerais que atuam sobre a estrutura das relações econômicas e
sociais da totalidade concreta. O Livro II, sob o contexto de aprofundamento e refinamento
das determinações da relação capital, elevando seu conceito teórico e modelo abstrato, cujo
pressuposto e suposto são as categorias valor e mais-valia (mais-valor) enquanto trabalho
abstrato, para explicar idealmente em termos teóricos o mecanismo, a dinâmica e o objetivo
da produção e reprodução social sob a lógica da apropriação privada capitalista. O Livro III,
apresenta a crise sob o contexto da reincorporação das categorias abstraídas, sob a mediação
do movimento histórico real destas, através do processo de aproximação ou concreção
sucessiva da totalidade viva, social e concreta de forma inteiramente articulada a partir do
modelo abstrato da relação capital e da categoria dominante: o valor (e mais-valia).
Finalmente, o Livro IV, situa a categoria crise no contexto da crítica à Ricardo sobre sua
concepção de acumulação, como fenômeno imanente ao processo de produção e reprodução
do capital.

2.2.3.1 Livro I - O Processo de Produção do Capital

No livro primeiro de O Capital, podemos observar que a concepção de Marx


sobre a categoria crise aparece em cinco desenvolvimentos lógicos e históricos de sua
construção teórica. O primeiro consiste na concepção da categoria valor que, a partir da
análise da mercadoria, como “forma elementar” da riqueza nas “sociedades em que domina o
61
modo de produção capitalista”, chega à descoberta sine qua non da categoria mais-valia,
como aspecto essencial do valor, fundada na dialética da categoria trabalho, como substância
do valor das mercadorias, que se desdobra em seu aspecto qualitativo, útil, concreto e
particular e seu aspecto quantitativo, de troca, abstrato e social. A concepção de crise na
construção teórica do valor como categoria simples se apresenta como potencialidade da
tendência ao desdobramento exterior da contradição intrínseca à categoria trabalho que, como
atividade humana ontológica e relação metabólica com a natureza, exige do sujeito histórico
sua objetivação, em meio e instrumental de trabalho, e o desenvolvimento de relações técnicas
e organizativas na exploração e apropriação desta e da natureza. É justamente a relação de
apropriação que o sujeito histórico desenvolve com sua própria objetivação, passando da
propriedade comum à propriedade privada, que desdobra exteriormente a autonomia dos
aspectos internos da unidade dialética do trabalho, objetivados na forma valor de uso e valor
ou mercadoria e dinheiro, ao limite intransponível de independência entre ambos,
desencadeando o processo violento de crise como meio de reconstituição da unidade dialética
deste sujeito histórico.
O segundo contexto teórico, em que Marx se refere à categoria crise, é o da
análise das formas de ser do valor enquanto trabalho abstrato geral da sociedade, cuja
expressão mais desenvolvida se encontra no dinheiro. Nesta, situa na função do último como
meio de pagamento o processo pelo qual se exterioriza a contradição entre o caráter social do
trabalho, expresso idealmente como medida de valor, e o caráter privado do trabalho, exigido
como meio de pagamento, como expressão determinada de certa quantidade de valor sob a
forma de moeda circulante. Este processo conduz à crise monetária na medida em que a
quantidade de moeda circulante deixa de corresponder à fórmula: “volume de dinheiro
funcionando como meio circulante = soma dos preços das mercadorias / número de cursos das
peças monetárias” (p. 242). Isto acontece devido à aceleração dos circuitos unilaterais de
compra e venda, especialmente as trocas simultâneas e paralelas decorrentes do
desenvolvimento do sistema de crédito como meio de pagamento, que substitui parte do
material circulante, expande as transações e amplia o tempo de circulação, distanciando o
momento de venda do momento de compra e autonomizando estas duas metamorfoses da
mercadoria, M-D e D-M. Nestas circunstâncias, o circuito de compra acaba por adiantar-se ao
circuito de venda, dado o pagamento a prazo e parte do material circulante deixar essa esfera e
se converter em tesouro para voltar à circulação no momento do pagamento. Neste ponto,
62
qualquer distúrbio provoca a corrida aos meios de pagamento na forma monetária e, assim, a
massa deste material em circulação apresenta-se insuficiente para atender a demanda pelo
mesmo, exteriorizando a contradição entre o dinheiro como medida de valor ideal do trabalho
social e a quantidade exigida deste valor como meio de pagamento e trabalho determinado. A
crise se instaura e violentamente reconstitui a unidade dialética e equivalência entre esses dois
aspectos do trabalho na forma dinheiro, aproximando-os da equação já expressa
anteriormente.
Nesta construção teórica de Marx, a categoria crise aparece sob duplo caráter: o
de crise monetária como parte de uma crise geral da indústria e do comércio e como crise
monetária específica a esta esfera da economia. Ele enunciou assim esta definição:

A função do dinheiro como meio de pagamento implica uma contradição direta: na


medida em que pagamentos se compensem, ele funciona apenas idealmente, como
dinheiro de conta ou medida de valor. Na medida em que tem se de fazer
pagamentos efetivos, ele não se apresenta como meio circulante, forma evanescente
e intermediária de metabolismo, senão como a encarnação individual do trabalho
social, existência autônoma do valor de troca, mercadoria absoluta. Essa contradição
estoura no momento de crises comerciais e de produção a que se dá o nome de crise
monetária (Marx, 1988, Livro 1, v. 1, p. 115).

Após enunciar o processo pelo qual se apresenta a crise monetária, destaca em


nota:

Deve-se distinguir bem a crise monetária, definida no texto como fase particular de
cada crise geral de produção e comércio, do tipo especial de crise que se chama
também de crise monetária, mas que pode aparecer independentemente, de modo
que ela só afeta a indústria e comércio por repercussão. Estas são crises cujo
movimento se centra no capital monetário e, por isso, bancos, bolsas de valores, e
finanças são sua esfera imediata (p. 115).

O terceiro contexto teórico em que a categoria crise apresenta-se no Livro I de O


Capital situa-se na análise da acumulação de capital, enquanto processo de reprodução do
valor e produção de mais valor (mais-valia), cuja tendência histórica é culminar na crise geral
como momento de mudança da sua expansão em contração, demarcando o ciclo periódico da
indústria sob incidência da Lei Geral da Acumulação. Esta última, como resultado da
acumulação – governada por leis intrínsecas – sobre a demografia da classe trabalhadora,
expressa-se em dois polos: de um lado, o crescimento do montante da acumulação de capital,
cuja tendência é a superprodução relativa de mercadorias e, de outro, o crescimento do
proletariado, cuja tendência é a superpopulação relativa ou exército industrial de reserva, que
63
pressiona os salários à baixa relativa. Marx enunciou esta questão da seguinte forma:

A lei da produção capitalista, que subjaz à pretensa 'lei natural da população',


redunda simplesmente nisso: a relação entre capital, acumulação e taxa de salário
não é nada mais que a relação entre o trabalho não-pago, transformado em capital, e
o trabalho adicional necessário à movimentação do capital adicional. Não é,
portanto, de modo algum, uma relação de duas grandezas independentes entre si, por
um lado a grandeza do capital, por outro o tamanho da população trabalhadora, mas
é, em última instância, muito mais a relação entre o trabalho não-pago e o trabalho
pago da mesma população trabalhadora (Marx, 1988, Livro 1, v. 2, p. 184).

Nesta análise, Marx demonstra que os fatores que conduzem à redundância


relativa da produção são os mesmos que concorrem para redundância relativa da população
trabalhadora. A reprodução simples ou em escala ampliada sempre reproduz a relação capital
e, com isto, a “[reprodução da força de trabalho] […] é apenas um momento do processo de
reprodução do capital.” (p. 205). Também são reproduzidas as relações de dependência do
trabalhador com seu próprio produto como capital “personificado no capitalista” (p. 180). A
força de trabalho se torna força de valorização do capital crescente e, no caso do aumento da
demanda em relação à oferta, o aumento dos salários significa apenas redução na proporção
do trabalho não-pago em relação ao pago, redução que “nunca pode ir até o ponto em que ela
ameace o próprio sistema.” (p. 185). Contudo, mesmo sob estas condições sobrevêm a crise
geral e com ela todas as contradições fundamentais da sociedade, em especial, as que se
expressam pela Lei Geral da Acumulação, riqueza e pobreza, acumulação e miséria, e a
essencial entre o capital e trabalho. Marx demonstrou exaustivamente este fato no capítulo
que dedicou à ilustração da Lei Geral.
Entretanto, os pressupostos deste processo estão nas forças produtivas – força de
trabalho e meios de produção – personificadas respectivamente em trabalhadores e
capitalistas, que se desenvolvem sob relações de produção, técnicas e de apropriação, tendo
como objetivo o lucro decorrente da mais-valia. Portanto, um processo inteiramente
subsumido à lei do valor, posto que a categoria mais-valia é sua parte dinâmica, como indica o
autor: “Produção de mais-valia ou geração de excedente é a lei absoluta desse modo de
produção.” (MARX, 1988, Livro 1, v. 2, p. 182). Porém, a composição entre as forças
produtivas constitui mais que relações de produção, constitui a relação entre os fatores
fundamentais da estrutura de produção e de reprodução do capital, portanto, a relação capital
que determina o modo de produção e sistema social e que se desenvolve com a acumulação,
impulsionando-a e regulando-a segundo sua composição orgânica e as leis que lhe são
64
7
intrínsecas .
Deste modo, o movimento de acumulação desenvolve-se em duas direções:
expansão e contração, que correspondem respectivamente aos dois métodos de produção de
mais-valia, a absoluta e a relativa, e ao grau de composição orgânica do capital, ou seja, a
proporção entre o capital variável e o capital constante, relativos ao nível de produtividade do
trabalho e de aplicação da ciência e da técnica do modo de produção. Nestes termos, sob
composição orgânica constante, o progresso da acumulação só pode se realizar pela expansão
decorrente do método de produção de mais-valia absoluta. Isto significa que a cada ciclo da
reprodução ampliada do capital, a mais-valia adicional incorporará na mesma proporção força
de trabalho e meios de produção, gerando uma demanda por estes fatores que
inexoravelmente acarretará o aumento relativo dos salários (capital variável) ou de
equipamentos e matérias-primas (capital constante); em ambos os casos, a demanda torna-se
superior à oferta, os lucros são deprimidos, desenvolvendo-se a crise por escassez. Segundo
Marx, essa foi de fato a tendência histórica entre os séculos XV e XVIII, considerando o
pressuposto de composição orgânica do capital constante (246).
Porém, neste caso, duas determinações recairão sobre os salários: primeira, eles
continuam aumentando à medida que aumentem a acumulação e os lucros com o crescimento
do capital, um grande capital com taxa de mais-valia menor se apropria de uma massa maior
de mais-valia do que um pequeno capital com taxa de mais-valia maior; segunda, acumulação
decresce porque o lucro embota devido à desproporção entre capital e força de trabalho
explorável. A acumulação estaciona, conduz ao desemprego, pressiona os salários para baixo
até o nível das necessidades de valorização do capital, que pode ser igual, ligeiramente
superior ou abaixo do que antes da alta era considerado 'normal'. Assim, o “próprio
mecanismo do processo de produção capitalista elimina, portanto, os empecilhos que ele
temporariamente cria.” (252).
Este processo acontece porque as leis que determinam a acumulação – a lei da
produtividade, a lei dos salários, a lei da concorrência e a lei da tendência decrescente da taxa

7
A composição orgânica do capital é a composição-valor, porque expressa a composição técnica e as
modificações desta. Em termos de composição valor, isto é, do dinheiro ou capital adiantado (C), o valor gasto
em meios de produção denomina-se capital constante (c), já o valor gasto em força de trabalho, capital variável
(v). A composição orgânica é a relação proporcional em que C é repartido entre c e v, ou seja, se C=c+v, logo, a
proporção do capital constante sobre o capital adiantado é c/C=c/(c+v) ou a proporção do capital variável sobre o
capital adiantado é v/C = v/(c+v), e a proporção entre capital variável e capital constante = v/c. (MARX, 1988,
Livro 1., v. 2, pp. 245-250).
65
de lucro – todas subsumidas às leis do valor e da luta de classes, passam a interagir e mudam
a trajetória da acumulação. A lei do valor, que regula o montante e a oscilação da taxa de
acumulação nos limites do padrão da reprodução ampliada, alterna o movimento da
acumulação da expansão à contração, reordena as leis imanentes à composição orgânica,
elevando a proporção do capital constante (meios de produção) em relação ao capital variável
(força de trabalho), e com isto eleva a produtividade 8, modifica o padrão de acumulação e,
consequentemente, sua taxa, ampliando-a ao máximo grau de desenvolvimento das forças
produtivas, em especial, da ciência e da técnica (educação) aplicadas ao processo de
produção, o que impulsiona a reestruturação das relações de produção da sociedade. O
método de exploração da força de trabalho na produção da mais-valia modifica-se, passando a
predominar a mais-valia relativa em lugar da absoluta e a acumulação passa do crescimento
extensivo ao intensivo; a concentração de capital passa à centralização, o movimento de
repulsão da força de trabalho pela fábrica se expande para toda a economia, ramo após ramo
de produção, reconfigurando os departamentos da economia I e II (respectivamente bens de
produção e bens de consumo), desenvolvendo o exército industrial de reserva, que passa a
regular os salários e a sujeição do exército ativo, constituindo-se assim uma nova base técnica
e social da qual ascende o novo movimento de expansão da acumulação ampliada.

Uma vez dados os fundamentos gerais do sistema capitalista, no transcurso da


acumulação, surge sempre um ponto em que o desenvolvimento da produtividade do
trabalho social se torna a mais poderosa alavanca da acumulação.
[…] Esses meios de produção desempenham duplo papel: o crescimento de uns é
consequência; de outros, condição da crescente produtividade do trabalho. […] O
acréscimo desta última [da produtividade] aparece, portanto, no decréscimo da
massa de trabalho proporcionalmente à massa de meios de produção movimentados
por ela ou no decréscimo da grandeza do fator subjetivo do processo de trabalho em
comparação com seus fatores objetivos.” (Marx, 1988, Livro 1, v. 2, p. 185).

Porém, este novo movimento de expansão também tem seus limites críticos e
intransponíveis fixados de certo modo no padrão (base técnica e social) da acumulação ou
reprodução ampliada: o mínimo, o da reprodução simples, cujo progresso sob mesma
composição orgânica demanda força de trabalho, eleva os salários e esmaga o lucro; e o

8
Abstraindo as condições naturais, como fertilidade do solo, etc., e a habilidade dos produtores os quais
trabalham independentemente, isoladamente, que, no entanto, se patenteia mais qualitativamente na perfeição do
que quantitativamente na massa do produto, o grau de produtividade social do trabalho se expressa no volume
relativo dos meios de produção que um trabalhador durante um tempo dado, com o mesmo dispêndio de força de
trabalho, transforma em produto. A massa de meios de produção com que ele funciona cresce com a
produtividade de seu trabalho (Marx, Livro I, Vol II, p. 194).
66
máximo, da reprodução ampliada, sob composição orgânica e produtividade crescentes e taxa
de lucro declinante, que atinge a superprodução relativa e o subconsumo relativo,
consumando-se no súbito colapso de todos os preços e na paralisação da indústria e comércio.
Em ambos casos, “os vaivéns do ciclo periódico que a indústria moderna percorre e em seu
ponto culminante – a crise geral” (MARX, Livro 1, v. 1, p. 27) instauram-se: as leis da
acumulação passam à contratendência, impedem a realização da taxa de acumulação, negam a
lei do valor e exigem nova mudança no padrão de acumulação, ou seja, na composição-valor
ou composição orgânica do capital. Eis assim o movimento cíclico periódico sob as duas
trajetórias da acumulação, expansão e contração, e seus efeitos sobre a classe trabalhadora,
que dialeticamente interage com a primeira, ora como causa, ora como consequência. Nas
palavras de Marx:

O curso de vida característico da indústria moderna, sob a forma de um ciclo


decenal, interrompido por oscilações menores, de vitalidade média, produção a todo
vapor, crise e estagnação, repousa na contínua constituição, na maior ou menor
absorção e na reconstituição do exército industrial de reserva ou superpopulação.
Por sua vez, as oscilações do ciclo industrial recrutam a superpopulação e tornam-se
os mais enérgicos agentes de sua reprodução (MARX, Livro 1, v. 2, p. 192).

Deste modo, uma síntese lógica da concepção de Marx sobre a crise, enquanto
categoria em si, no contexto de construção teórica da “Lei Geral da Acumulação”, pode ser
expressa pela fórmula da taxa de lucro: L = M / C = M / (c + v), ou seja, a taxa de lucro (L) é
igual à massa de mais-valia (M) sobre o capital total adiantado (C), ou massa de mais-valia
(M) sobre a soma de capital constante (c) e capital variável (v). Nestes termos, considerando a
massa de mais-valia (M) constante, todo aumento no valor do capital total adiantado (C), seja
em capital variável (v) ou em capital constante (c), acarretará necessariamente a diminuição
da taxa de lucro (L). Desta abstração, pode-se deduzir as duas fases da acumulação do capital,
a expansão e a contração, em seu ciclo periódico, cujo ponto culminante, unidade dialética e
mudança qualitativa expressa-se nas crises gerais que ocorrem desde 1825, como indicou
Marx (p. 17).
No caso da fase de expansão, partindo-se do pressuposto da composição orgânica
inalterada, o aumento do valor do capital variável (trabalho pago) implica a redução dos
lucros (trabalho não pago), como se pode deduzir da equação da taxa de lucro acima. Neste
caso, ou o capital continua a se expandir em termos de escala, ainda que sob taxa de lucro
menor, até seu ponto crítico; ou paralisa a produção, pois o crescimento do capital variável
67
passa a comprometer o lucro, configurando-se a crise na forma de superconsumo relativo em
contradição à escassez relativa. Este tipo de crise vigorou antes de 1825, período em que as
leis do salário foram dominantes no processo de acumulação. Marx explicou assim o
processo:

Nesse caso, é evidente que uma diminuição do trabalho não-pago de modo algum
entrava a expansão do domínio do capital. — Ou, este é o outro lado da alternativa,
a acumulação afrouxa devido ao preço crescente do trabalho, pois o aguilhão do
lucro embota. A acumulação decresce. Mas, com seu decréscimo, desaparece a causa
de seu decréscimo, ou seja, a desproporção entre capital e força de trabalho
explorável. O próprio mecanismo do processo de produção capitalista elimina,
portanto, os empecilhos que ele temporariamente cria (MARX, 1988, Livro 1, v. 2,
p. 183).

No caso da fase de contração, partindo-se do pressuposto da variação da


composição orgânica e, em consequência, aumento da produtividade, o capital constante
aumenta em detrimento do capital variável no valor do capital total adiantado (C), a queda da
taxa de lucro será inevitável, excetuando-se o caso em que a taxa de mais-valia aumente mais
do que a necessária compensação da queda no capital variável. Posto que a produtividade
significa tão somente uma maior quantidade de produtos e matérias-primas consumidas no
processo de produção sem alterar a massa de mais-valia ou valor criado. Marx exemplifica a
questão da seguinte forma:

A razão disso é simplesmente que, com a crescente produtividade do trabalho, não


apenas se eleva o volume dos meios de produção por ele utilizados, mas cai o valor
deles em comparação com seu volume. Seu valor se eleva pois de modo absoluto,
mas não proporcionalmente ao seu volume. O crescimento da diferença entre capital
constante e capital variável é, por isso, muito menor do que o da diferença entre a
massa dos meios de produção em que o capital constante é convertido e a massa da
força de trabalho em que se converte o capital variável. A primeira diferença cresce
com a última, mas em grau menor.
Além disso, se o progresso da acumulação diminui a grandeza relativa da parte
variável do capital, não exclui, com isso, de modo algum, o crescimento da sua
grandeza absoluta. Suponhamos que um valor de capital se divida inicialmente em
50% de capital constante e 50% de variável, mais tarde em 80% de constante e 20%
de variável. Se, entrementes, o capital original, digamos 6 mil libras esterlinas,
aumentou para 18 mil libras esterlina, sua componente variável cresceu também em
1/5. Era de 3 mil libras esterlinas e agora monta a 3.600 libras esterlinas. Mas se,
antes, um crescimento de 20% de capital teria bastado para elevar a demanda de
mão de obra em 20%, isso agora exige triplicação do capital original (p. 186).

A análise de Marx sobre a Lei Geral da Acumulação apresenta, como se verificou,


uma concepção importante e decisiva da categoria crise no processo de acumulação do
68
capital. Sua definição ultrapassa a noção de ponto de inflexão na alternância de fase no ciclo
econômico periódico da indústria moderna. Ele a definiu como a categoria que exprime o
processo de incidência da Lei Geral da Acumulação, que exterioriza, por sua vez, a
contradição fundamental da relação capital, das forças produtivas entre si e destas com as
relações de propriedade. A noção também se estende à mudança na correlação entre as leis
que atuam sobre a acumulação e que definem o caráter da mesma em ambas fases do
processo, como se pode observar no predomínio das leis do salário sobre a fase de expansão
inicial da acumulação e o predomínio da lei da produtividade na fase da contração. Outro
atributo importante na concepção do autor sobre a crise é o seu papel de restabelecer a
unidade entre dois aspectos contraditórios da relação capital, que se expressam na fase de
contração do ciclo nas formas da superprodução relativa e superpopulação relativa, por
intermédio da destruição violenta das forças produtivas desenvolvidas e da constituição da
nova base de relações técnicas e sociais, nas quais se destaca a aplicação da ciência e da
técnica. A crise, portanto, constitui-se assim mais que uma noção conjuntural, ela é
compreendida como parte da estrutura orgânica do capital, como se pode comprovar pela
composição-valor do mesmo. Neste sentido, compreende também o caráter dialético de
momento de negação da relação capital, ou seja, momento de antivalor que tende a se
converter de crise geral e aspecto essencial do ciclo econômico do capital em crise histórica
de transição revolucionária, processo pelo qual a subjetividade das classes exploradas supera
o modo de produção constrangedor.
O quarto contexto teórico em que a categoria crise se apresenta na análise de
Marx constitui a demonstração por intermédio de dados empíricos da incidência da Lei Geral
da Acumulação Capitalista. Neste, a crise aparece como periodização 1847/1848; 1857/1858;
1866/1867 de dois ciclos decenais da economia, compreendendo os pontos de inflexão entre
as fases da acumulação da contração à expansão, e desta à contração. As estatísticas sobre
estes períodos fornecidas pelo autor constituem uma base de dados robusta na sustentação
empírica das assertivas sobre a existência e a efetividade da Lei Geral da Acumulação
Capitalista, enquanto uma resultante dos efeitos das leis que governam a acumulação de
capital sobre a classe trabalhadora, em especial sobre sua demografia, como é o caso do
fenômeno da superpopulação relativa ou exército industrial de reserva, que se constitui lei
demográfica peculiar ao modo de produção capitalista e que interage com a acumulação,
como explicou o autor nesta passagem:
69
A superficialidade da Economia Política evidencia-se, entre outras coisas, quando
ela faz da expansão e contração do crédito, mero sintoma dos períodos de variação
do ciclo industrial, a causa do mesmo. Como corpos celestes que uma vez lançados
em determinado movimento sempre o repetem, assim a produção social tão logo
tenha sido posta naquele movimento de expansão e contração alternadas. Efeitos
tornam-se por sua vez causas, e as alternâncias de todo o processo, que reproduz
continuamente suas próprias condições, assumem a forma de periodicidades. Uma
vez esta consolidada, então até mesmo a Economia Política entende a produção de
uma população excedente relativa, isto é, em relação à necessidade média de
valorização do capital, como condição de vida da indústria moderna (p. 192).

Marx apresenta o quadro empírico de vinte anos de acumulação capitalista na


Inglaterra, de 1846 a 1866, como modelo, devido a sua importância no mercado mundial, o
pleno desenvolvimento dos meios de produção capitalistas e da vigência do livre-câmbio.
Inicia oferecendo os dados demográficos da população entre 1811 e 1861, seu aumento
absoluto e o declínio da taxa vegetativa (p. 202). Em seguida, fornece os dados sobre o
crescimento da riqueza, extraídos do movimento dos lucros e rendas tributáveis, sua
quantidade absoluta e crescimento anual, compreendendo os dados disponíveis para os anos
entre 1853 e 1865 (p. 203). Demonstra a concentração de riqueza com base no censo oficial,
imposto de renda e outros relatórios oficiais em dados de anos alternados entre 1815 e 1865,
apresentando o decréscimo de pequenos arrendamentos; o aumento na quantidade de heranças
por fortuna acima de um milhão de libras; o aumento nos valores da rubrica específica de
“lucros excluindo arrendatários” do imposto de renda; o aumento no valor dos rendimentos
tributáveis; e o aumento no total de renda tributável, porém distribuída entre um número cada
vez menor de pessoas (pp. 204-205).
Em relação aos bens de produção, o autor fornece os dados sobre o aumento, tanto
em volume quanto em valor, da produção de carvão e de ferro e da extensão e valor de
estradas de ferro construídas entre os anos de 1864 e 1865. Também registra o crescimento da
importação e exportação globais da Inglaterra entre 1854 e 1864. Sobre esses dados, Engels
afirma em nota que os mercados indiano e chinês estavam saturados como “prelúdio da crise”
de 1866-1867. Paralelamente a este processo de superprodução, o autor destaca o
encarecimento do valor médio dos meios de subsistência (1860-1862) e de algumas
mercadorias específicas (1851-1853) (p. 205).
Por outro lado, mostra o crescimento do exército industrial de reserva, a sua
extensão de indigentes, e relaciona sua oscilação ao ciclo econômico (1855/1856, 1863-65),
destacando o aumento anual dos indigentes principalmente nos anos de crise, em 1865, 1866 e
70
1867. Por último, enfatiza o “terrível aumento” no número de mortes por fome, ainda que não
apresente cifras exatas. Continua demonstrando os efeitos da acumulação sobre as camadas
mal remuneradas do exército ativo de trabalhadores na indústria inglesa: o nível de
subnutrição após a crise algodoeira de 1862; a diferença nas condições de subsistência dos
trabalhadores da cidade e do campo; o fato de somente uma pequena porcentagem da classe
trabalhadora consumir certos itens básicos de alimentação; e compara o valor médio dos
salários com o aluguel de moradias em 1866 e com o gasto médio semanal em alimentação
(pp. 206-213), demonstrando a impossibilidade dos salários comprarem o elementar para
sobrevivência em 1863.
Em torno da reprodução da classe trabalhadora, suas condições de moradia,
sanitárias e educação, a partir dos relatórios dos inspetores e fiscais do governo, demonstra,
por um lado, a concentração cada vez maior do proletariado nas cidades e em regiões em
torno das grandes fábricas, constituindo bairros operários, onde as condições precárias e
insalubres facilitam grandes epidemias e doenças contagiosas, um número crescente de
mortalidade e, em contradição, uma taxa alta de natalidade. Observa a situação ainda mais
precária nas condições de existência das populações nômades, que o autor denomina
“infantaria ligeira do capital” (p. 215), que acompanham os grandes empreendimentos
temporários como obras de drenagem, mineração, construção de ferrovias, etc., e constituem-
se em vetores de grandes epidemias.
Marx demonstra também os efeitos das crises sobre a parte mais bem remunerada
da classe trabalhadora. Expõe diversos relatos oficiais e reportagens sobre trabalhadores que
antes da crise eram assalariados com emprego estável e passam a viver em total miséria, tanto
na Inglaterra em 1865 e 1866, como na Bélgica em 1857. Compara e demonstra que os gastos
médios com subsistência da família proletária belga entre 1847 e 1849 são inferiores aos
gastos de manutenção do marinheiro, soldado e prisioneiro (p. 221-230). Finalmente, aborda a
situação do proletariado agrícola britânico e demonstra como se efetuou o processo de
regressão em suas condições de existência, comparando os anos de 1737, 1777, 1797, 1808 e
1814 com 1845, conclui que os trabalhadores se assemelham a “escravos” ou “indigentes”.
Indica que os salários aprofundam sua queda abaixo do mínimo de subsistência entre 1795 e
1814 (p. 231), apresenta um quadro sobre a situação da família de trabalhadores agrícolas em
1845 e cita um economista liberal de 1866:
71
O Prof. Rogers chegou, no entanto, à conclusão de que o trabalhador rural inglês de
nossos dias, sem falar de seus antepassados da segunda metade do século XIV e do
século XV, mas apenas comparando-o com seus predecessores do período de 1770 a
1780, teve sua situação extremamente piorada, de que 'ele novamente se tornou um
servo', e um servo mal nutrido e mal acomodado (p. 225).

Paralelo a essa situação dos trabalhadores agrícolas, Marx demonstra que na


época da revogação das leis do trigo há um enorme aumento na fertilidade do solo, um
aumento na área cultivada entre 1846 e 1856, enquanto declina a quantidade de trabalhadores
empregados na produção agrícola entre 1851 e 1861 (p. 225).
Finalmente, nesta ilustração da Lei Geral da Acumulação, Marx aborda o caso
específico da Irlanda e explica que a grande emigração não foi capaz de valorizar os salários
nem evitar que o processo de mecanização da agricultura levasse à morte mais de um milhão
de pessoas durante a crise de 1846. Esta “catástrofe” conduziu trabalhadores agrícolas e
pequenos arrendatários à perda total de seus meios próprios de subsistência, constituindo-se
desta forma uma classe de trabalhadores assalariados propriamente dita (p. 244).
Como vimos, Marx demonstrou que durante as crises os efeitos provocados pela
acumulação do capital sobre as condições de existência da classe trabalhadora tornam-se mais
evidentes, na medida em que exigem um esforço acelerado de autodestruição das forças
produtivas já desenvolvidas e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento de uma nova base técnica
e social, superando todos os obstáculos que se apresentam. Neste sentido, o autor fornece
dados que indicam uma súbita mudança na reprodução da classe trabalhadora para atender as
necessidades de acumulação nos períodos de expansão e contração do ciclo industrial. E que
este fenômeno é visível na velocidade com que se constitui e aumenta o exército industrial de
reserva a partir dos estratos latentes das diversas classes sociais, que durante a crise perdem
seus meios próprios de subsistência. Esta mesma dinâmica acelerada observa-se nos dados
sobre concentração e centralização da riqueza (renda e propriedade); na aplicação da ciência e
da técnica na indústria, agricultura e comércio; no aumento da produtividade; no
desenvolvimento do comércio internacional (importação e exportação); no acirramento da
competição e no crescimento das condições de miséria, degradação moral, e “todos os
tormentos do trabalho […] da classe que produz seu próprio produto como capital” (p. 200-
201).
O quinto e último contexto teórico em que Marx expressa uma concepção de crise
no Livro I de O Capital localiza-se no capítulo sobre a acumulação primitiva, em que analisa
72
a transição histórica do modo de produção feudal ao capitalista e indica a tendência deste
último a desenvolver as condições objetivas e subjetivas à sua própria superação, portanto seu
caráter histórico. Sobre esse processo, o autor afirmou: “A estrutura econômica da sociedade
capitalista proveio da estrutura econômica da sociedade feudal. A decomposição desta liberou
os elementos daquela.” (p. 179) Embora não tenha especificamente definido a transição como
um processo que pressupõe uma crise final do modo de produção feudal, esta não pode se
conceituar de outra forma sem tal pressuposto, à medida que o autor expõe a decomposição
do ancien régime, sua estrutura de relações econômicas e instituições e a transformação de
suas forças produtivas, terra e servos ou camponeses independentes, em forças produtivas
capitalistas, meios de produção e força de trabalho “livre”. O contexto histórico, por assim
dizer, de constituição dessas forças produtivas, fundado no que Marx denomina de
acumulação primitiva ou pré-história do capital, é ao mesmo tempo o contexto da crise
histórica de transição do feudalismo ao capitalismo.
O autor expõe este processo de decomposição do sistema feudal, que na Inglaterra
assumiu um aspecto modelar dado a multiplicação de produtores independentes, como ponto
de partida do desenvolvimento e constituição das forças produtivas e relações de produção
fundamentais do sistema do capital, tendo por pressuposto o próprio capital. Um processo
pelo qual opera-se a separação violenta dos produtores individuais dos seus meios de
subsistência, suprimindo a propriedade comunal e individual, instituindo em seu lugar a
propriedade privada capitalista. A transformação dos meios de produção (terra e instrumental
de trabalho) em capital e de servos e camponeses independentes em trabalhadores
assalariados, também é o processo mediante o qual os setores que detém dinheiro e
mercadorias - comerciantes, usurários, banqueiros, arrendatários - convertem-se em
capitalistas, conformando-se os dois polos da contradição fundamental da relação-capital: em
sua expressão econômica, de um lado a força de trabalho, do outro, os meios de produção, ou
seja, capital e trabalho; ou, em sua expressão social, proletariado e burguesia. Assim se
desenvolve o sistema social em que o capital é posto e pressuposto. O autor sintetizou esse
processo nas seguintes palavras:

O que faz época na história da acumulação primitiva são todos os


revolucionamentos que servem de alavanca à classe capitalista em formação;
sobretudo, porém, todos os momentos em que grandes massas humanas são
arrancadas súbita e violentamente de seus meios de subsistência e lançadas no
mercado de trabalho como proletários livres como os pássaros. A expropriação da
73
base fundiária do produtor rural, do camponês, forma a base de todo o processo. Sua
história assume coloridos diferentes nos diferentes países e percorre as várias fases
em sequência diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na Inglaterra, que,
por isso, tomamos como exemplo, mostra-se em sua forma clássica (p. 253).

Porém, no feudalismo, com sua corte de instituições e corporações, as classes


sociais possidentes – nobreza feudal, clero, mestres de corporações – e mesmo os servos da
gleba e camponeses individual, não renunciaram a seu modo de vida, ser e consciência social
sem resistência. O Estado absolutista surgiu em grande parte da Europa, sob o estatuto da
reação e contenção da desagregação e crise histórica do sistema feudal, tal processo conduziu
aos “déspotas esclarecidos” e acelerou a crise final do regime. A nobreza morde a maçã, e o
Estado, leis e finanças tornam-se cúmplices do pecado original: as leis sobre a expropriação
das terras comuns, as legislações sanguinárias, a dívida pública e o tesouro fornecem o molde
e a massa das novas classes. A expropriação das terras comuns – sejam da Igreja, da
comunidade ou do Estado – e individuais dos camponeses e até grandes proprietários feudais
falidos, se por um lado concentra os meios de produção e os transforma em força produtiva do
capital, por outro, cria a classe que em si mesma vende sua força de trabalho no mercado
como condição da compra dos meios de sua subsistência, e também a classe que necessita do
consumo produtivo da força de trabalho e do produto que ela cria.
Assim surge o mercado capitalista, condição sine qua non do processo de trocas
mercantis e da circulação do capital, cujo desenvolvimento acelera a dissolução do sistema
agrícola feudal e sua transição à agricultura capitalista, fixando seus agentes fundamentais:
proletariado agrícola e o arrendatário capitalista. Nos centros dos burgos em formação, a
transição das corporações de ofício ao sistema manufatureiro e deste ao sistema fabril acelera-
se até a grande indústria e, com esta, comerciantes e usurários que corromperam as
corporações e o Estado se firmam como cavalheiros da indústria, acompanhados pelo exército
ativo e de reserva da classe trabalhadora. Surgem os bancos, a rede comercial, o mercado
mundial e a divisão internacional do trabalho, integrando os países dependentes ao sistema de
produção e consumo, destruindo suas iniciativas nativas como foi o caso exemplar da Irlanda
e das colônias.
É quase desnecessário ressaltar que precedendo e acompanhando o processo de
transição desenvolve-se uma revolução nas ideias, na cultura e nas ciências, que se refletiu no
próprio processo de produção e no modo de ser dos sujeitos históricos. As ideias de riqueza,
liberdade, justiça e moral do ancien régime caem ante o pragmatismo racionalista do lucro,
74
dos juros e da renda da terra, ou seja, da fórmula trinitária constituída pelo valor-trabalho e
seu enigma da mais-valia. A Igreja é despojada do monopólio sobre o conhecimento humano e
o poder e a ciência e a técnica tornam-se alavancas da produtividade do trabalho e riqueza
sociais, que, por sua vez, como forças produtivas, impulsionam as demais a ultrapassarem as
próprias relações de produção moldadas pela relação-capital. Deste modo, o sistema do
capital que se consolida fundado no roubo, no sangue e ardil de seu pressuposto, isto é, o
próprio capital, como conta a história da sua acumulação primitiva, tal qual o sistema feudal,
também desenvolve as contradições que o caracterizam como modo de produção e sistema
social histórico. Portanto, seu desenvolvimento, como prenunciam todas as crises gerais que
lhe são intrínsecas, tende historicamente para a autonegação, como negação da negação da
propriedade individual pela subjetividade das classes exploradas, que, elevadas à cooperação
do trabalho, aplicação técnica consciente da ciência, exploração planejada da terra, meios de
trabalho coletivos e produção social combinada e entrelaçada a todos os povos na rede do
mercado mundial, exigem uma forma superior de relações de apropriação social. E que
projeta a crise final do sistema capitalista. Marx, em uma síntese sobre este processo,
escreveu:

Com a diminuição constante do número dos magnatas do capital, os quais usurpam e


monopolizam todas as vantagens desse processo de transformação, aumenta a
extensão da miséria, da opressão, da servidão, da degeneração, mas também a
revolta da classe trabalhadora, sempre numerosa, educada, unida e organizada pelo
próprio mecanismo do processo de produção capitalista. O monopólio do capital
torna-se um entrave para o modo de produção que floresceu com ele e sob ele. A
centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho atingem um ponto
em que se tornam incompatíveis com seu invólucro capitalista. Ele é arrebentado.
Soa a hora final da propriedade privada capitalista. Os expropriadores são
expropriados (p. 283-284).

2.2.3.2 Livro II - O Processo de Circulação do Capital

Vê-se aqui que, abstraindo propriamente nosso objetivo, considerar o processo de


reprodução em sua forma fundamental – em que todos os intermediários que o
obscurecem estão eliminados – é absolutamente necessário a fim de nos livrarmos
dos falsos subterfúgios que nos fornecem a aparência de explicação científica,
quando tomamos diretamente o processo social de reprodução na complexidade de
sua forma concreta com o objeto de análise (MARX, 1988, Livro 2, v. 3, p. 317).
75
O Livro II de O Capital constitui a parte mais polêmica da teoria de Marx em
torno do conceito de capital em geral, como sustentam vários estudiosos deste autor, como
Grossmann (2004), Shaikh (1986), Rosdolsky (2002), Mészáros (2002), entre outros. Isto se
deve, por um lado, à passagem da teorização do autor à sua abstração mais elevada,
constituindo o modelo dos esquemas de reprodução do capital, simples e ampliado, que se
distancia acentuadamente da sua primeira abstração no Livro I e de sua formulação mais
concreta no Livro III; por outro lado, devido à polêmica desencadeada por Bernstein sobre a
“teoria do colapso” entre os membros da Segunda Internacional Socialista, após o lançamento
do Livro III, em 1894 e a morte de Engels em 1895. Este debate, embora relevante à
compreensão desta parte da obra de Marx, e envolver nomes expressivos da formulação
marxista – Lênin, Rosa Luxemburgo, Kautsky, Hilferding, Otto Bauer, Bukharin, Tugan-
Baranovski, entre outros – será abordado mais adiante. Aqui, basta sua menção para situar o
essencial e a importância do conteúdo do mesmo: a teoria da crise final do capitalismo e o
modelo abstrato dos esquemas de reprodução do capital neste livro.
Contudo, esta parte da obra de Marx constitui um trabalho de abstração teórica
mais amplo que o foco restrito ao equilíbrio entre os departamentos I (bens de produção) e II
(bens de consumo) da economia e à concepção de crise que se atribui, neste momento da
pesquisa, ao debate mencionado. Marx, após conduzir seus leitores pelo mundo da produção
de mais-valia, que compara no Prefácio da Contribuição Para a Crítica da Economia
Política literalmente ao inferno de Dante, em A Divina Comédia, através da expressão "Qui si
convien lasciare ogni sospetto; Ogni viltá convien che qui sia morta"9 (MARX, 1977, pp. 31-
33) e no Livro I de O Capital ao afirmar que “Dante sentiria nessa manufatura suas fantasias
mais cruéis sobre o inferno ultrapassadas” (MARX, 1988, Livro 1, v. 1, p. 189); pede a todos
que o acompanhem ao mundo da circulação, ou seja, da rotação do valor em sua dupla forma,
mercadoria e dinheiro, passando do inferno ao céu pelo percurso da reprodução simples ou
ampliada do capital. Inicia sua exposição do Livro II pela análise das metamorfoses do capital
e seus ciclos, abordando o ciclo do capital monetário, D – M (FT + MP) … P … M' (M + m)
– D' (D + d)10 e cada um de seus estágios; o ciclo do capital produtivo, P … M' – D' – M … P,

9
Que aqui se afaste toda a suspeita / Que neste lugar se despreze todo o medo
10
Esta fórmula se traduz em: O capitalista com seu dinheiro (D) compra mercadorias (D-M) na forma de força
de trabalho (FT) e meios de produção (MP), que entram ao âmbito da produção (P), produzem mercadorias cujo
valor (M') contém o valor reproduzido das mercadorias consumidas produtivamente (M) e o valor criado durante
o processo de trabalho (m), ou seja (M + m), e cuja venda ou realização (M'-D') completa o ciclo do dinheiro
(D'), que retorna ao capitalista como valor investido inicialmente (D) e mais-valia criado na produção (d), ou
76
na reprodução simples e em escala ampliada; e o ciclo do capital mercadoria M' – D' – M … P
… M'; as três figuras do processo cíclico, o tempo de circulação e seus custos (MARX, 1988,
Livro 2, v. 3, p. 38-39).
Nesta primeira seção, a concepção de crise aparece como resultado da autonomia
entre os ciclos do capital produtivo e o ciclo do capital mercadoria, devido a que o produtor
de mercadorias considera realizada sua mais-valia à medida que vende sua produção (M' –
D'), por exemplo ao comerciante atacadista, dando lugar ao novo ciclo de produção. Contudo,
o fato das mercadorias estarem no processo de circulação e serem um valor de uso, no ciclo
do capital mercadoria, só se realizam com o consumo final, seja individual, seja produtivo. E
quanto maior a mediação – por intermédio de grandes comerciantes, formação de estoque, etc.
– entre a produção de mercadorias e sua realização, maior será o divórcio entre os ciclos da
produção, que se seguem ininterruptamente indiferente ao ciclo de realização do consumo
final da mercadoria, configurando-se, no limite da saturação do mercado, a assincronia que
leva à superprodução e à corrida por meios de pagamento, que obriga a venda a qualquer
preço: “Essa venda não tem absolutamente nada a ver com a verdadeira situação da demanda.
Só tem a ver com a demanda por pagamentos, com a necessidade absoluta de transformar
mercadoria em dinheiro. Então, eclode a crise.” (p. 58-60).
Na segunda seção, sobre a rotação do capital, Marx analisa o tempo e número de
rotações; o capital fixo e circulante, suas diferentes formas e seus componentes. Continua com
a análise da rotação global do capital adiantado; debate teoricamente essas concepções com os
fisiocratas, Adam Smith e Ricardo; define o período de trabalho e os tempos de produção e
circulação; avalia os efeitos da rotação sobre o capital adiantado; a rotação do capital variável;
a circulação da mais-valia na reprodução simples e ampliada. Nesta seção, destacam-se duas
relações entre a rotação do capital adiantado e as crises. A primeira diz respeito à renovação
do capital fixo, que decorre por um lado da concorrência e da aplicação da ciência e da
técnica, acelerando as inovações e a obsolescência prematura (depreciação moral) do capital
fixo existente. Por outro lado, por sua qualidade de bem durável que retém capitais e torna-se
um obstáculo à sua rápida renovação, provoca crises e catástrofes que impõe a “renovação
prematura do equipamento das empresas em grande escala social.” (p. 125) Esta contradição
constitui “uma base material das crises periódicas, nas quais o negócio passa por períodos
sucessivos de depressão, atividade média, precipitação, crise. […] a crise constitui sempre o
seja (D + d).
77
ponto de partida de um grande investimento novo.” (p. 127).
A segunda referência às crises, nesta segunda seção sobre a rotação do capital,
consiste na relação entre o tempo de circulação ou produção e os componentes do capital em
geral. Primeiro, no caso em que as crises provocam interrupções ou paralisações do período
de trabalho, prolongam o processo de produção e afetam de forma diferente a produção
discreta, aquela que o período de trabalho coincide com o período de produção, como, por
exemplo, uma padaria; e a produção contínua, em que o período de trabalho é menor que o
tempo de produção, exigindo jornadas conexas de trabalho para a conclusão do produto,
como, por exemplo, a construção de um navio. Em ambos casos, haveria uma desvalorização
do capital fixo e da produção já realizada ou em curso, o capital circulante seria destruído,
porém, no caso da produção contínua, seria destruído também o capital fixo (pp. 172-175).
Segundo, a crise novamente aparece como impulsionadora das inovações tecnológicas que
diminuem o tempo de circulação das mercadorias, propiciando nova conformação nas
relações de troca e de financiamentos internacionais (p. 189).
Em um terceiro momento, a crise, ao impulsionar a renovação tecnológica,
diminui o tempo de rotação, seja encurtando o tempo de circulação, seja o de produção,
permitindo um refluxo mais rápido do capital adiantado e tornando-o ocioso por um período
de tempo maior que o exigido para renovação do capital fixo. Este capital ocioso constitui
uma pletora relativa de capital monetário que permite especulação em investimentos com
retornos mais rápidos; amplia-se assim a esfera de crédito e o risco de refluxos malsucedidos,
comprometendo o prazo exigido para renovação do capital fixo; em consequência, eclode a
crise de meios de pagamento. A crise também apresenta-se como causa dessa pletora à medida
que, após sua incidência no ciclo industrial, sob o efeito da corrida por meios de pagamento e
o encarecimento do dinheiro, altas taxas de juros, produz-se uma drástica redução na demanda
por empréstimos ou crédito, efeito que se prolonga por inércia após o início da recuperação
econômica. Durante esse processo, forma-se a pletora relativa de capital monetário mesmo
com as taxas de juros baixas, próximas de zero (p. 211).
Ao analisar a rotação do capital variável, Marx demonstra que a variação na
rotação deste desenvolve dois tipos de acumulação, aquela em que a rotação repõe o capital
adiantado em capital variável mais rapidamente, propiciando uma pletora de capital monetário
disponível para ampliar a produção, à medida que repõe maior produção que a consumida no
processo. A segunda, é a acumulação cujo tempo de rotação do capital variável é maior, o que
78
exige sucessivos adiantamentos de capital variável sem retorno até que se produza a rotação,
ao mesmo tempo que constantemente consome os produtos do mercado sem reposição dos
mesmos, gerando uma demanda por mercadorias e dinheiro que eleva seus preços. A primeira
acumulação com pletora de capital monetário encontra na demanda da segunda acumulação o
local de investimento que dá continuidade e amplia a produção, conduzindo-a a aquecimento
e crescimento, que se refletem na demanda por força de trabalho. A facilidade de crédito faz
crescer novamente o ciclo industrial e o aumento da demanda por força de trabalho, esgotando
o exército de reserva e crescendo a pressão dos salários sobre os lucros. No limite da ativação
de todas as potências produtivas em que se opera a superprodução, chega-se à incapacidade de
produzir e realizar mais-valia, instaura-se o colapso e a crise. Então, muda-se a composição
do capital, o investimento em capital constante torna-se maior que o em capital variável e,
com isto, cresce o desemprego em massa e reconstitui-se o exército industrial de reserva;
logo, os salários caem ao mínimo, às vezes abaixo do mínimo anterior, até que se produza
nova recuperação sob nova base social e técnica, que conduz ao encurtamento do tempo de
rotação do capital variável e às perturbações peculiares a esse processo. Marx o explicou da
seguinte forma:

É absorvida parte do exército industrial de reserva, cuja pressão mantinha o salário


mais baixo. Os salários sobem de modo geral, mesmo nas partes até então bem
empregadas do mercado de trabalho. Isso dura até que o colapso inevitável
novamente libera o exército industrial de reserva e os salários são novamente
reduzidos a seu mínimo e até abaixo dele.” (p. 221).

A redução no tempo de rotação do capital variável, como foi visto, desencadeia o


processo de superprodução que, no limite do colapso, conduz as economias nacionais ao
processo de exportação para outros mercados e, ao mesmo tempo, o excesso de capital
monetário nas mesmas permite o financiamento das exportações ao mercado importador e
assim a crise é exportada dos países onde se processa a superprodução e a pletora de capital
monetário para o mercado importador e devedor. Os casos exemplificados por Marx indicam
que diante do colapso dos preços que se segue à superprodução e crise, os mercados credores
pressionam os devedores por refluxo do capital monetário emprestado, por outro lado, a
bancarrota de bancos e financeiras com filiais nos países importadores que receberam o
crédito ou financiamento dos bancos nestes países entram também em colapso. A redução do
tempo de circulação, estreitando os mercados e facilitando o comércio e o financiamento
79
internacional, universalizam os efeitos da crise, ora fazendo-a irromper nos mercados
exportadores e credores, ora fazendo-as eclodir nos mercados importadores e devedores,
refletindo-se nas balanças comerciais e de pagamentos, até que se torna simultânea,
constituindo-se em crise geral (p. 235-236).
A seção III, A Reprodução e a Circulação do Capital Social Total, Marx subdivide
em quatro capítulos: Introdução; Apresentações Anteriores do Objeto; Reprodução Simples;
Acumulação e Reprodução Ampliada. Nos dois primeiros capítulos, o autor define o objeto de
investigação, “a reprodução de capital” como processo que abarca tanto o “processo direto de
produção como ambas as fases do processo de circulação [...], isto é, o ciclo global, que como
processo periódico [...] constitui a rotação do capital”. Esta demarcação conceitual, sob o
pressuposto que o “processo direto de produção do capital” é seu processo de trabalho e de
valorização, cujo resultado é o produto-mercadoria e o motivo “a produção de mais-valia” (p.
61-69), considera que a produção de P é apenas um elo do ciclo D …D' ou P …P, que ora
media, ora é mediada pela circulação; sua constante renovação e a reapresentação que ela faz
do capital como capital produtivo são condicionadas por esta última; e que, com sua própria
renovação, condiciona a mudança e alternância do capital na circulação, ora como capital
monetário, ora como capital-mercadoria. Por último, considera que cada “capital individual”
constitui apenas “uma fração autonomizada do capital social total” e que seu movimento
consiste na totalidade dos movimentos de suas frações autonomizadas. A metamorfose do
capital individual, sua rotação, é o elo no ciclo do capital social, assim como a metamorfose
da mercadoria é um elo no mundo das mercadorias.
O capital monetário apresenta-se sob duplo aspecto: primeiro, o aspecto
qualitativo, em que desempenha a função de “primus motor” em todo capital individual novo
que “inaugura seu processo como capital”; e de “motor contínuo”, fornecendo parte do capital
adiantado que deve ser renovada a cada ciclo do processo de produção. Segundo, em relação à
sua quantidade, o primeiro é determinado pelo total de meios de produção e força de trabalho
que capitaliza inicialmente; no caso do segundo, é uma proporção do primeiro que varia de
acordo com a duração da rotação do capital, determinada pelas diferentes proporções entre
seus componentes, o período de trabalho e o período de circulação, considerando uma rotação
normal e média abstrata. Esta propriedade do capital monetário o faz parceiro do capital
produtivo, acompanhando-o sob “a lei da representação do produto como mercadoria”, ou
seja, em sua duplicação em mercadoria e dinheiro; o que, entretanto, não restringe o capital
80
produtivo às proporções do capital monetário. Nesta análise, afirma Marx: “O que vale aqui
para o capital individual, vale para o capital social, que funciona apenas na forma de muitos
capitais individuais” (p. 263).
Esta demarcação conceitual do objeto de investigação expressa uma crítica de
Marx à concepção da reprodução do capital de Adam Smith por sua regressão em relação aos
fisiocratas e a si mesmo: primeiro, não diferencia os conceitos de capital fixo e circulante em
sua análise do produto anual e valor do produto, quando Quesnay, já os havia classificados em
sua Tableau Économique como avances primitives e avances annuelles, que o próprio Smith
generalizou-os como capital fixo e circulante; segundo, em relação à sua própria teoria do
valor-trabalho, à medida que nega o caráter universal desta categoria, enquanto fonte de valor,
e adota a concepção fisiocrata do trabalho agrícola a única que produz valor, ao se esforçar
em demonstrar que o arrendatário capitalista é que produz mais valor que os demais. Estas
aporias de Smith em relação a sua própria teoria, segundo Marx, deriva:

O primeiro erro de Adam Smith consiste em que ele iguala o valor do produto anual
ao produto-valor anual. […] Por meio dessa confusão, Adam Smith manipula a parte
constante do valor, fazendo-a desaparecer do produto anual. Esta confusão repousa
sobre outro erro em sua concepção fundamental: ele não distingue o caráter
conflitante do próprio trabalho: o trabalho enquanto dispêndio de força de trabalho
cria valor e, enquanto trabalho útil, concreto, cria objetos de uso (valor de uso). […]
O produto anual global é, portanto, o resultado do trabalho útil despendido durante o
ano; mas do valor do produto anual apenas parte foi criada durante o ano, essa parte
é o produto-valor anual, em que se representa a soma do trabalho realizado durante o
ano (pp. 263-264, ênfase do autor).

Na seção sobre a reprodução simples, o autor define o produto-mercadoria como o


resultado do funcionamento anual do capital social e as características que diferenciam e as
que são comuns à reprodução do capital social e à reprodução dos capitais individuais.
Considera que capital social e capital total têm o mesmo significado, e que os capitais
individuais são frações constitutivas do mesmo. O produto social anual compreende “tanto as
partes que repõem o capital, a reprodução social, como as partes que entram no fundo de
consumo, que são consumidas por trabalhadores e capitalistas”; ou seja, consumo produtivo e
individual. Este processo reproduz também a classe capitalista e a classe trabalhadora e,
portanto, a “reprodução do caráter capitalista do processo de produção global”.(p. 274).
O autor apresenta a fórmula da circulação M' – {D – M … P … M' (d – m)} como
ponto de partida à compreensão da reprodução social pela ótica do consumo, considerando
81
que o produto social, expresso em M' = M + m, compõe-se do valor-capital constante, do
variável e da mais-valia (c + v + m) e que seu movimento implica o consumo produtivo e
individual, diferenciando-se dos ciclos do capital monetário e do capital produtivo, em que o
consumo também se realiza, porém, para o movimento do capital individual, após sua
realização, o que acontece com a mercadoria lhe é indiferente. No movimento de M' … M', ao
contrário, as condições de reprodução social transparecem pelo fato de demonstrar o que
acontece com cada parte do valor desse produto global M'. “O processo de reprodução em sua
totalidade compreende, nesse caso, tanto o processo de consumo mediado pela circulação
como o próprio processo de reprodução do capital.” (p. 274).
Marx demarca a diferença entre a análise da reprodução social e a individual,
explica que o objetivo da primeira é entender a reposição do valor e da matéria de cada parte
componente de M' (c + v + m), e que tal processo não é possível a partir da análise do valor-
produto do capital individual. Aqueles, enquanto elementos de produção de natureza material,
são componentes do capital social e, ao mesmo tempo, produto individual acabado que é
intercambiado e reposto. O movimento da parte do produto-mercadoria social que o
trabalhador consome com o salário, e o capitalista com a mais-valia integra o movimento
global e se entrelaça com os movimentos dos capitais individuais, portanto, não pode ser
explicado por pressuposição.
A questão imediata é a seguinte: “como o capital consumido na produção é
reposto, quanto ao valor, a partir do produto anual, e como se entrelaça o movimento dessa
reposição com o consumo da mais-valia pelos capitalistas e do salário pelos trabalhadores?”
(p. 275). A reposta é a reprodução em escala simples, cujos pressupostos são: os produtos se
trocam conforme seu valor, não há nenhuma revolução nos componentes do capital produtivo,
e intercambia-se as mesmas massas de produtos. O autor, embora enuncie a reprodução
simples como uma abstração do processo de reprodução social, considera que esta tem
fundamento real e que é parte da reprodução em escala ampliada ou acumulação ampliada.
Finalmente, sob o pressuposto da reprodução simples, indica as possíveis variações entre o
valor do produto anual e a massa de valores de uso, isto é, a relação entre valor e valor de uso,
cuja oscilação eventual indica apenas uma reprodução imperfeita, porém, representam tão
somente alterações quantitativas “dos diversos elementos da reprodução, mas não o papel que
desempenham como capital em reprodução ou renda reproduzida no processo global.” (p.
276).
82
Sobre os dois departamentos da produção social, Marx, analisando o produto
global, conclui que a produção global da sociedade constitui-se de dois grandes
departamentos: I - Meios de produção, voltados ao consumo produtivo; II – Meios de
consumo, voltados ao consumo individual da classe capitalista e de classe trabalhadora. Os
diferentes ramos de cada um destes constituem um único grande ramo de produção, e o
capital empregado um grande departamento particular do capital social. O capital de cada
departamento se subdivide em dois componentes: 1. Capital variável: o valor da soma dos
salários pagos à força de trabalho social empregada nesse ramo de produção e a matéria, a
própria força de trabalho em atividade ou trabalho vivo posto em movimento por esse valor-
capital. 2. Capital constante: o valor de todos os meios de produção, que se subdivide em
capital fixo (máquinas, instrumentos de trabalho, construções, gado de trabalho etc.,) e em
capital constante circulante (materiais de produção como matérias-primas e auxiliares,
produtos semimanufaturados, etc.).
O valor do produto anual global de cada departamento decompõe-se em: capital
constante (c) que consumido na produção transfere o valor correspondente ao seu consumo na
própria reposição e o valor corresponde ao consumo na parte de valor agregada pelo trabalho
anual global, na reposição do capital variável (v) e no excedente sobre ele, a mais-valia (m).
Como na mercadoria, o valor do produto anual global de cada departamento compõe-se de c +
v + m (p. 277). Marx ressalta a diferença entre o valor do capital constante empregado na
produção e o valor consumido do mesmo, diferença que decorre da subdivisão do capital
constante em capital fixo, que transfere gradualmente seu valor ao produto, e capital
circulante, que transfere integralmente este valor. No exame do valor do produto global, o
prolongamento da vida útil do capital fixo, que segue funcionando, e a depreciação ocorrida
no ano que não é reposta in natura, devem ser abstraídas.
Com base nesses pressupostos, Marx desenvolve um primeiro esquema em que c
= capital constante, v = capital variável, m = mais-valia, admitindo uma taxa de valorização
m/v = 100%, cujo valor global = 9000, excluindo o capital fixo que continua funcionando em
sua forma natural (de acordo com pressuposto).
O produto-mercadoria global por ano:
I. 4000c + 1000v + 1000m = 6000 em meios de produção
II. 2000c + 500v + 500m = 3000 em meios de consumo
A partir deste esquema, o autor examina a reprodução simples, considerando que:
83
toda mais-valia é consumida improdutivamente e circulação monetária abstraída das
transações necessárias. Chega a três pontos de referência: (1) os 500v e 500m do
departamento II consomem meios de consumo no valor de 1000 neste mesmo departamento,
ou seja, repõe ele mesmo 500v e 500m. Desaparecem, assim, do produto global (500v +
500m)II = 1000 em meios de consumo; (2) 1000v + 1000m do departamento I são
consumidos no departamento II, ou seja, são intercambiados por 2000 em capital constante
(2000c)II. Com isto, anulam-se da conta por compensação 2000c e (1000v + 1000m); e (3) os
4000c do departamento I devem ser consumidos por transações entre capitalistas dentro do
mesmo departamento e, como aconteceu com o valor do consumo interno no departamento II,
desaparecem do produto global. Neste exame das relações entre os departamentos sob o
pressuposto da reprodução simples, como vimos, o resultado é nulo em termos de crescimento
do valor do produto social global. As transações em cada departamento e as transações entre
os departamentos se compensam, anulando-se e, com isto, mantendo-se o valor do produto
global sempre o mesmo.
Marx passa à análise da transação entre os dois departamentos do exemplo
anterior: I(v+m) por IIc. Primeiro, explica que as trocas entre I(1000v + 1000m) e II(2000c)
constituem mudanças na forma que contém o valor, mediadas pela circulação. Essa transação
entre capitalistas é uma transformação na forma e função do valor: o valor do capital
constante que estava em meios de consumo passa à forma de meios de produção de meios de
consumo (IIc) e o que constitui meios de produção que se transforma em meios de consumo
I(v+m). Esta mudança de forma da mercadoria é mediada pela circulação, ou seja, o capital
mercadoria transforma-se em capital monetário e este retorna a capital mercadoria (M – D –
M), o que tanto facilita quanto dificulta, porém “é de importância decisiva” (p. 278) uma vez
que a parte do valor que corresponde ao capital variável sempre tem que ser paga em dinheiro.
Contudo, para que isso aconteça, o capitalista deve vender sua mercadoria, apesar de o
trabalhador adiantar, no valor do produto, o capital variável com que será pago e a mais-valia
correspondente à sua exploração. O autor exemplifica como o valor relativo ao capital
variável fornecido pelo trabalhador ao capitalista do departamento I circula nas transações
entre os departamentos para voltar na forma de salário aos trabalhadores, indicando que é o
consumo do capitalista II que transforma em dinheiro a produção de I, do qual paga seus
trabalhadores, e que é o consumo destes que transforma em dinheiro a produção de II, com
que este compra o produto de I.
84
Resulta daí que na reprodução simples a soma de valor v + m do capital-mercadoria
I (e, portanto, uma parte proporcional correspondente do produto-mercadoria global
I) tem de ser igual ao capital constante IIc, que se separa também como parte
proporcional do produto-mercadoria global da classe II; ou I(v+m) = IIc (p. 281).

A análise do intercâmbio no interior do departamento II inicia com sua subdivisão


segundo seus produtos em dois subdepartamentos específicos: os de meios de subsistência
necessários (a) e meios de consumo de luxo (b). Cada um desses subdepartamentos representa
uma proporção do produto global do departamento e certa proporcionalidade entre si, o que
expressa a relevância social do seu produto. O consumo dos produtos de sub IIa é realizado
por todo capital variável (trabalhadores) e parte da mais-valia (capitalistas) do departamento
II; enquanto que o consumo dos produtos de IIb é restrito à mais-valia dos capitalistas, em
momentos de crescimento do ciclo econômico, também uma pequena parcela dos setores
melhor remunerados dos trabalhadores participam deste consumo de sub IIb. Porém, a crise,
como afirma Marx, “diminui momentaneamente o consumo de luxo; retarda, adia a
reconversão de (IIb)v em capital monetário, permite-a apenas parcialmente e joga, assim, na
rua parte dos trabalhadores de luxo.” (p. 286). Isso implica que a existência e reprodução da
classe operária ocupada em IIb está condicionada pela “prodigalidade” da classe capitalista.
Outro aspecto que se evidencia das transações no departamento II é que a
alteração na proporção entre o sub IIa e sub IIb a favor deste último, sob as condições da
reprodução simples, conduz tendencialmente a uma desproporção entre o consumo do capital
variável e a produção dos meios necessários, que pode se expressar em escassez destes
últimos, devido à desproporção dos próprios capitalistas para com o consumo de sua mais-
valia. Marx apontou esta possibilidade na seguinte passagem:

a relação proporcional entre a produção dos meios de consumo necessários e a


produção de luxo condicionava a repartição de II(v+m) entre IIa e IIb – portanto,
também a de IIc entre (IIa)c e (IIb)c. Ela afeta, pois, o caráter e as relações
quantitativas da produção até as raízes e é um momento que determina
essencialmente sua estrutura global. […] À medida que a reprodução simples é
parte, e a parte mais significativa de cada reprodução anual em escala ampliada, esse
motivo [obtenção de mais-valia] continua acompanhando e se opondo ao motivo do
enriquecimento como tal. A coisa apresenta-se na realidade de maneira mais
complicada, porque participantes (partners) no despojo – a mais-valia capitalista –
aparecem como consumidores independentes dele (p. 287).

Deste modo, esta desproporção conduz à pressão pelo aumento de salários e, ao


mesmo tempo, uma contradição entre o sub IIa e sub IIb, que se resolve apenas pela crise ou
85
passagem da reprodução simples à ampliada em sub IIa.
O autor aborda a mediação das transações entre e intra os departamentos I e II
pela circulação monetária. Explica que o capitalista industrial lança na circulação, ao mesmo
tempo, dinheiro e mercadorias, o primeiro através do capital variável e a segunda como
produtos in natura, cujo valor constitui-se de (c + v + m). Contudo, para que possa efetuar seu
consumo individual, necessita da realização da mais-valia, o que é impossível com base
apenas no capital variável pago aos trabalhadores, à medida que este repõe apenas o
componente v do valor de seu produto e que só apenas em pequena escala e períodos curtos
poderia financiar este consumo. Daí, a única maneira da realização da sua mais-valia é o
lançamento na circulação de parte adiantada de sua própria mais-valia, seja através de
empréstimo ou do seu fundo de reserva, sob a “lei geral […] de que o dinheiro que os
produtores de mercadorias adiantam à circulação retorna a eles no decurso normal da
circulação de mercadorias” (p. 288). A circulação da mercadoria é mediada pelo capital
monetário, que se desenvolve no próprio capital comercial decorrente do comércio específico
de dinheiro, no que o capitalista financeiro passa a se tornar o ponto de principal fluxo e
refluxo de dinheiro. Desta forma, Marx demonstra que é o próprio consumo da mais-valia
existente em fundo de reserva ou através de financiamento por parte dos capitalistas que
realiza a mais-valia contida nas mercadorias lançadas na circulação. Esse processo é
obscurecido devido, primeiro, ao “aparecimento do capital comercial (cuja primeira forma é
sempre dinheiro […]) e do capital monetário como objeto de manipulação de uma espécie
particular de capitalista no processo de circulação do capital industrial.” e, segundo, “à
divisão da mais-valia” - que aparece sempre nas mãos do capitalista industrial - em diversas
categorias nas mãos das demais frações de classe, que aparecem como compradores ao
capitalista industrial, que, por sua vez, “[...] se esquece sempre de que fonte eles o receberam
originalmente, e sempre de novo o recebe.” (p. 311).
Ao examinar o movimento do capital constante dentro do próprio departamento I,
observa que 2/3 do que foi produzido em capital constante permanece em I e reaparece em
toda sua produção anual, intercambiando-se entre os setores de meios de produção. Volta a
abordar em profundidade a relação direta entre mais-valia e salários em ambos os
departamentos (v+m) e apresenta a concepção de jornada social de trabalho como soma das
jornadas individuais de trabalho durante o ano, elemento que pode se relacionar
proporcionalmente tanto ao valor do produto anual (c+v+m) como ao produto-valor anual
86
(v+m). Segundo pressuposto usado como exemplo, dentro da jornada de trabalho social anual,
o valor do produto anual gerado corresponde a 9000 (c+v+m), do qual 6000 é o valor do
produto de I e 3000 é o valor do produto de II. Contudo, o produto-valor criado é de 3000 =
I(1000v+1000m) + II(500v+500m) – que equivale ao valor do produto anual total de II
(2000c+500v+500m), que corresponde a 1/3 do valor do produto anual total; e isto deve ser
assim considerando o pressuposto de Marx da reprodução simples, no qual toda mais-valia é
consumida improdutivamente. Segundo o autor:

O valor global dos meios de consumo anualmente produzidos é, portanto, igual ao


valor-capital variável II reproduzido durante o ano plus a mais-valia II produzida de
novo (isto é, igual ao valor produzido sub II durante o ano), plus o valor-capital
variável I reproduzido durante o ano e a mais-valia I produzida de novo (portanto,
plus o valor produzido em I durante o ano) (p. 296).

Por outra parte, explica que na jornada social de trabalho anual está incorporado o
valor das jornadas decorridas em anos anteriores, como pressupostos à produção do valor do
produto anual, embora, do ponto de vista do produto-valor, elas só sejam visíveis na forma de
valor de uso; o que não permite ver a totalidade da reprodução do produto social em todos
seus componentes; contudo, ao abordar a reprodução do capital constante em ambos os
departamentos, completa sua concepção da reprodução de todos os componentes de valor
(c+v+m) do produto social total.
Passa à análise em retrospectiva de Smith, Storch e Ramsay enfatizando o
equívoco de Smith ao não reconhecer a demarcação conceitual entre capital fixo e circulante,
dissolvendo assim a diferença entre capital constante e variável. Em seguida, debate os
conceitos de capital e rendimento relacionados às categorias de capital variável e salário.
Neste tema, diferencia essas categorias destacando que capital variável não significa capital
nem renda para o trabalhador, mas salário, ou seja, valor da força de trabalho que adianta ao
capitalista e é determinada pelo tempo de trabalho necessário aos produtos de sua
subsistência. O trabalhador, como capital variável, funciona como capital apenas nas mãos do
capitalista e o fato de vender sua força de trabalho não significa que a mesma possa ser
considerada um capital, posto que é a única propriedade que dispõe para subsistir.
Sobre a “reposição do capital fixo”, o autor inicia diferenciando o capital fixo do
circulante. Afirma que o capital circulante é consumido integralmente no processo de
produção, repassa todo seu valor ao produto e precisa ser reposto in natura, assim como o
87
capital variável. Para a reposição do capital fixo, pelo contrário, é necessário uma reserva de
dinheiro para converter-se de novo em mercadoria no futuro, apenas quando completar sua
depreciação. O valor parcial que foi passado para as mercadorias produzidas e que volta como
dinheiro, quando são vendidas, deve se manter em um fundo de reserva, ao lado do capital
produtivo.
Surge, portanto, uma “dificuldade” na transação entre I(v+m) e IIc, posto que o
valor de I(v+m) não pode ser trocado integralmente, pois uma parte do valor dos meios de
consumo vendidos a I precisa permanecer como reserva para reposição futura de IIc.
Considerando o exemplo já apresentado pelo autor, do valor de 2000 da compra de meios de
consumo realizada por I em II, apenas 1800 poderão comprar meios de produção em I, uma
vez que 200 deverão ser entesourados por II. Se este dinheiro simplesmente deixa a
circulação, II fica com 200 de excedente e I fica com excesso de meios de produção no valor
de 200. Neste caso, ou II não realiza sua reprodução simples, ou I vende por 1800
mercadorias no valor de 2000. Isso implica desproporcionalidade entre ambos, que está fora
do pressuposto da acumulação simples. Portanto, essa troca é de fato realizada e não se pode
recorrer a subterfúgios fora dessa transação, há que investigar de onde saem os 200 para
completá-la.
A reposição de capital constante evidencia uma relação desproporcional que
aparentemente contradiz o pressuposto da reprodução simples. Como Marx explica, o próprio
departamento II lança os 200 em dinheiro devido ao movimento que se produz entre os
capitalistas do mesmo em relação à necessidade de reposição do capital fixo, pois existem
aqueles que devem repor seu capital fixo in natura e os que devem entesourar para reposição
no futuro. Neste caso, os primeiros lançam o dinheiro que, ao retornar a II, passará às mãos
destes últimos. Em situação de desproporção no valor a ser reposto, haverá “crise de
produção”, mesmo na reprodução simples. De outro modo, esta desproporção também se
apresenta em I. O aumento (com respeito ao ano anterior) da fração do capital fixo de II que
há de se repor em espécie, implicaria necessariamente redução no valor da reposição do
capital fixo que continua em funcionamento e vice-versa. Porém, se há aumento na demanda
de capital fixo e o circulante permanece constante “a produção global I teria de crescer, ou
haveria, mesmo abstraindo as relações monetárias, deficit de reprodução.” (p. 341); no caso
contrário, se a demanda por capital fixo cai, há excedente em I; o autor indica que ambos
deficit e excedente poderiam ser remediados recorrendo ao comércio exterior. Portanto,
88
haverá crise sempre que não se parta do suposto de “uma proporção constante entre o capital
fixo que se extingue” e o que “continua operando em sua forma natural”, desproporção que se
manifesta, para os economistas, em um “desequilíbrio na produção de capital fixo e capital
circulante”.
Nos dois subtemas seguintes, Marx debate com a teoria de Tooke, ao abordar a
reprodução do material monetário como setor específico do departamento I, e com a teoria da
reprodução de Destutt de Tracy.
Para considerar a possibilidade da passagem da reprodução simples à ampliada,
considera-se na abstração que o capitalista A entesoura sua mais-valia pouco a pouco para
convertê-la integralmente em capital, ampliação de sua produção ou para abertura de nova
empresa. O autor enfatiza que a condição para essa conversão em novo capital é que antes já
exista produção em escala ampliada, isto é, que os elementos materiais necessários podem ser
comprados no mercado ou adquiridos por encomenda, possibilidade material que não depende
do dinheiro, que, “em si mesmo, não é um elemento da reprodução real” (p. 341).
Enfatiza a diferença entre o departamento I, que aborda primeiro de maneira
separada, e o departamento II. O primeiro passo em qualquer processo de acumulação é obter
capital-monetário em potencial, portanto o autor investiga as possibilidades de
entesouramento dentro de I, cuja forma natural do mais-produto é de capital constante, e
recorda que entesourar não é uma atividade produtiva. A passagem da reprodução simples à
ampliada implica necessariamente que a produção do departamento I aumente a proporção
dos elementos que destina a si mesmo com base em sua produção regular, em detrimento de
sua venda a II. Mas não basta apenas que os capitalistas (I) A, A', A'', etc., aumentem sua
produção; é necessário que outros capitalistas – (I) B, B', B'', etc. – façam funcionar o mais-
produto dos primeiros “efetivamente como capital constante adicional” (p. 342-347), ou seja
que realizem sua mercadoria, e para tal fim a mais-valia acumulada deve ser usada para
consumo produtivo, necessariamente, diferente do pressuposto da reprodução simples. Mais-
valia “capitalizada” e a conversão direta de mais-produto em capital constante são os
mecanismos com que contam A e B (I) para ampliar seu capital. Dotado de novo capital
constante, os capitalistas sempre podem encontrar no exército industrial de reserva a força de
trabalho adicional (p. 348).
Esclarecida a possibilidade de acumulação de capital-monetário em potencial
internamente em I, passa-se a avaliar as relações entre este e o departamento II. Segundo a
89
análise da reprodução simples, a troca entre os dois departamentos, sob pressuposto de
proporcionalidade, resumia-se a IIc = I(v+m); ou seja, que o valor do capital-mercadoria de II
dedicado à reposição de seu capital constante (IIc) equivale ao valor do capital-mercadoria de
I cuja realização se reconverte em capital variável e mais-valia I(v+m). Supõe-se agora que os
capitalistas B, B', B'', etc., pertençam a II; considerando que I dedicará parte de Im à
acumulação, em sua troca com B, portanto, uma parte das vendas de I serão “unilaterais”, isto
é, que se torne “invendável” uma parte “das mercadorias de B (II)”, entorpecendo assim a
própria reprodução; portanto, haverá “subconsumo” em I, do ponto de vista de II, e
“superprodução relativa” em II; e ao mesmo tempo “capital monetário excedente em I e
deficit [de mesmo valor] na reprodução de II”. Depois de examinar a acumulação em II mais
de perto, Marx explica que esta superprodução é uma prática comum na realidade concreta do
capitalismo como formação de estoque em ambos departamentos da economia, ainda que esta
desproporção possa ser considerada aqui como “fenômeno específico”, devido à
reorganização diferente dos elementos I. Na realidade, ajuda a demonstrar que “dentro da
reprodução simples se produz o substrato material da reprodução ampliada” (p. 349).
Antes de passar aos esquemas da reprodução ampliada, o autor resgata o exemplo
original de reprodução simples (Tab. 1) e apresenta dois exemplos preliminares – “esquema
a)” (Tab. 2) e “esquema b)” (Tab.3) – cujos produtos anuais totais (M' = 8.252) são menor que
do esquema original (M' = 9.000) para evidenciar que a escala ampliada não depende da
magnitude do produto. A taxa de mais-valia é de 100% (m/v = 1), como em todos os
exemplos ulteriores.

Tabela 1: Esquema de reprodução simples


Departamento cc v m M'
I 4.000 1.000 1.000 6.000
II 2.000 500 500 3.000
Produto Total: 9.000
Fonte: MARX, 1988, v. III, p. 353.

Com base na reprodução simples, pode ser visto que ambos esquemas (a) e (b)
têm um produto total anual de M' = 8.252, porém ao começar a reprodução, em (a) ela se
ampliará, ou seja, na troca de I(v+m) por IIc haverá excedente: (1.000v + 1.000m)I =
2.000(v+m) > 1.500IIc; um excedente de 500m para a reprodução ampliada de I.
90
Tabela 2: Esquema a) de reprodução simples
Departamento c v m M'
I 4.000 1.000 1.000 6.000
II 1.500 376 376 2.252
Produto Total: 8.252
Fonte: MARX, 1988, v. III, p. 353.

A disposição dos elementos de (b) realizará apenas reprodução simples, pois a


mesma troca, I(875v + 875m) = 1.750(v+m) = 1.750IIc não deixará excedente. Portanto, o
que importa não é a quantidade, mas a “determinação qualitativa dos elementos dados da
reprodução simples […] e essa alteração é o pressuposto material da reprodução subsequente,
em escala ampliada” (Idem).

Tabela 3: Esquema b) de reprodução simples


Departamento c v m M'
I 4.000 875 875 5.750
II 1.750 376 376 2.502
Produto Total: 8.252
Fonte: MARX, 1988, v. III, p. 353.

Depois desta explicação, Marx apresenta um “primeiro exemplo” para


acumulação ampliada, comparando-o ao esquema de reprodução simples (Tab.4 abaixo), que
também soma 9.000, porém com elementos reorganizados.

Tabela 4: Esquema inicial para a reprodução ampliada – Primeiro exemplo


Departamento c v m M'
I 4.000 1.000 1.000 6.000
II 1.500 750 750 3.000
Produto Total: 9.000
Fonte: MARX, 1988, v. III, p. 353

Partindo do esquema inicial de reprodução ampliada (Tab. 4), se este é reordenado


a efeitos da acumulação, mantendo os pressupostos de (m/x = m/2) e (m/v = 100%), assim
como uma composição-valor inalterada (I(c:v) = 4:1; II(c:v) = 2:1), teremos (p. 354):
I. 4.400c + 1.100v + 500m = 6.000
II. 1.600c + 800v + 600m = 3.000
Isto deriva de que metade de 1.000m, ou 500m será usado para acumulação,
91
distribuído na proporção 4:1 em c (4.000c + 400m) e v (1.000 + 100m). Já foi explicada a
capitalização interna à I, neste caso a conversão de 400m de mais-produto diretamente em
capital constante; a parte do produto I que se converte em consumo individual comprará de IIc
a soma 1.600(v+m), portanto, são necessários 1.600 em meios de consumo, ou seja, II deverá
capitalizar 100m adicionais de meios de consumo e, para colocar esse novo capital em
movimento, II terá que empregar 50 em capital variável adicional, um incremento total de 150
no capital de II que terá de ser retirado de sua mais-valia; ou seja, II “transfere 100m em
estoque de mercadorias a I e, ao mesmo tempo, 50 em estoque de mercadorias a sua própria
classe trabalhadora”. A seguir, operando-se a acumulação “real”, teremos no final do primeiro
ano um produto total de 9.800:
I. 4.400c + 1.100v + 1.100m = 6.600
II. 1.600c + 800v + 800m = 3.200
Supõe-se que I siga acumulando sob as mesmas condições: seus trabalhadores
consomem todo seu salário I(1.100v) em II, e 550m que seus capitalistas consomem
individualmente. A outra metade de sua mais-valia (550m) será capitalizada para reprodução
ampliada. Isso implica que IIc = 1.650 e, para preservar a composição de seu capital (c:v =
2:1), deverá empregar outros 25v adicionais:
I. 4.400c + 550m (a capitalizar) + 1.650(v+m)
II. 1.650c + 825v + 725m
A mais-valia de I convertida em dinheiro, será distribuída segundo c:v em I(440c
+ 110v). Consequentemente, os 110v adicionais servirão para converter 110IIm em capital
constante adicional de II, o que, por sua vez, exigirá 55v em capital variável. No final do
segundo ano, o produto global seria de 10.780; e apenas no final do terceiro ano é que seria
11.858 (p. 355).
I. 4.840c + 1.210v + 1.210m = 7.260
II. 1.760c + 880v + 880m = 3.520
Observa-se que a acumulação em II deverá ser mais acelerada que em I para
acompanhar o crescimento de I(v+m), o único elemento pelo qual IIc pode trocar-se.
Seguindo as mesmas condições de acumulação (Tab. 5), no final de uma reprodução
quinquenal em escala ampliada, o capital total será de 11.566 - I(6442c + 1610v) + II(2342c
+ 1172v) - o que representa um aumento de capital na proporção de 100:160.
92
Tabela 5: Reprodução ampliada – primeiro exemplo, anos 4 e 5
Ano 4
Departamento c v m M'
I 5.856 1.464 1.464 8.784
II 2.129 1.065 1.065 4.259
Produto Total: 13.043
Ano 5
Departamento c v m M'
I 6.442 1.610 1.610 6.000
II 2.342 1.172 1.172 4.686
Produto Total: 14.348
Fonte: MARX, 1988, v. III, p. 356.

No “segundo exemplo”, supõe-se uma nova composição-valor ou relação de c:v =


5:1, o que segundo Marx implica “desenvolvimento considerável da produção capitalista […];
considerável ampliação prévia da escala de produção; finalmente, desenvolvimento de todas
as circunstâncias que produzem superpopulação relativa da classe trabalhadora.” (p. 356).
Essa composição é igual em ambos departamentos e se mantém inalterada durante três anos,
mantém-se a mesa taxa de acumulação (m/2) e taxa de mais-valia (m/v = 1) como no exemplo
anterior (Tab. 6).

Tabela 6: Acumulação Ampliada – 1o ano


Ano 1 – Produto anual inicial*
Departamento c v m M'
I 5.000 1.000 1.000 7.000
II 1.430 285 285 2.000
Produto Total: 9.000
Ano 1 – Produto final*
Departamento c v m M'
I 5.417 1.083 1.083 8.215
II 1.583 316 316 2.215
Produto Total: 9.798
*Fonte: p. 356-360

Ao considerar os passos deste processo separadamente teríamos:


I. 5.000c + 1.000v + 500m + 500m (a capitalizar)
II. 1.430c + 70m (a capitalizar) + 285v + 215m;
93
O aumento no departamento II de 1.430c a 1.500c implicaria um aumento
correspondente de 285v a 299v, ou seja, 14m adicionais a serem capitalizados, reduzindo a
parte da mais-valia a ser consumida por seus capitalistas individualmente a 201m.
I. (5.000c + 417m)c + (1.000v + 83m)v
II. (1.500c + 83m)c + (299v + 17m)v.
Observa-se que, com a composição orgânica mais alta, maior parte da mais-valia
de ambos departamentos é dedicada a capitalizar mutuamente os valores utilizados pelo outro
departamento para sua acumulação. Ainda que os capitalistas II adquiram diretamente seu
capital constante necessário em I, a conversão dos valores deste para a acumulação depende
do consumo de Iv de seus trabalhadores. Deste modo, a reprodução ampliada de I levou II a
uma reprodução em escala ampliada. Este segundo exemplo é levado até o terceiro ano (Tab.
7) e apresenta os seguintes resultados:

Tabela 7: Acumulação Ampliada – 2o ano


Ano 2-Final*
Departamento c v m M'
I 5.869 1.173 1.173 8.215
II 1.715 342 342 2.399
Produto Total: 10.614
Ano 3 – Final**
Departamento c v m M'
I 6.358 1.271 1.271 8.900
II 1.858 371 371 2.600
Produto Total: 11.500
Fonte: p. 360

Pode-se observar três casos como resultados dos três exemplos: (1) IIc =
I(v+m/2); esse seria o pressuposto da reprodução simples, que não existe em termos concretos
no capitalismo, apenas como exceção; (2) IIc < I(v+m/2); acumulação de I exige que uma
parte de IIm seja somada a IIc para levar a cabo a conversão. Isso leva II à acumulação
ampliada, que não apenas aplique parte de seu mais-produto em capital constante, mas
também em variável; e (3) IIc > I(v+m/2); para realizar sua reprodução simples, II precisa
aplicar parte de seu mais-produto sem que isso implique reprodução ampliada.
Marx observa que o pressuposto da reprodução simples, de que I(v+m) = IIc, é
94
incompatível com a produção capitalista. Embora isto não exclua que no ciclo industrial de 10
a 11 anos, em um destes anos possa ocorrer que a produção global seja menor que a do ano
anterior, ou seja, que não haja nem reprodução simples. Inclusive, pode haver reprodução
simples, porém ao efetuar-se ao mesmo tempo que o crescimento anual natural da população,
a mesma mais-valia produzida deverá ser consumida por mais membros improdutivos da
sociedade, o que significa que não poderia ocorrer acumulação de capital. Contudo, é possível
ainda que durante os anos que antecedem esta reprodução simples, o departamento II tenha
superproduzido, ou seja, que IIc seja maior que I(v+m), desencadeando uma crise que
compense esta superprodução com a transferência de valor ao departamento I.
Com base na reprodução ampliada segundo os pressupostos usados nos exemplos,
Marx conclui que, considerando m/x a fração da mais-valia que os capitalistas consomem
individualmente, “I(v+m/x) pode ser igual, maior ou menor que IIc; mas I(v+m/x) sempre tem
de ser menor do que II(c+m)”, e que essa diferença é “precisamente igual à parte de IIm que a
classe capitalista II tem de consumir em qualquer circunstância” (p. 361).

2.2.3.3. Livro III - O Processo Global da Produção Capitalista

O livro terceiro de O Capital constitui-se de sete seções que de acordo com o


escopo deste trabalho podem ser destacadas para efeito de síntese expositiva duas seções: a
terceira, que trata a lei da tendência decrescente da taxa de lucro, que supõe um olhar geral
sobre as duas primeiras em torno da transformação da mais-valia em lucro e da transformação
do lucro em lucro médio; e a seção V que analisa a divisão do lucro em juro e ganho
empresarial e continuando a abordagem do capital portador de juros, especificamente os
capítulos XXX, XXXI, XXXII, que analisam as relações entre o capital monetário e o capital
real, nos quais a concepção de crise é teorizada de forma mais concreta. No mais, as seções IV
a VII que tratam, consecutivamente, o capital comercial, o capital “portador de juros”, a renda
da terra e do rendimento e suas fontes, embora ofereçam elementos importantes, como toda a
obra de Marx, não estão no escopo desta pesquisa.
Este livro é considerado como a parte da obra de Marx em que o conceito de
95
capital em geral, desenvolvido nos Livros I e II, passa ao plano concreto do movimento real
da totalidade viva, a sociedade historicamente determinada. A concepção de crise deste autor
que se depreende do seu modelo abstrato da relação capital representado no esquema de
reprodução simples, portanto igualmente abstrata, da primeira concreção no esquema da
reprodução ampliada, ainda no Livro II, passa agora a ser teorizado no plano da relação com
as categorias abstraídas na construção teórica anterior. Nestes termos, a taxa média de lucro
como expressão do valor e a lei tendencial da queda da taxa de lucro como termômetro do
ponto de inflexão do movimento cíclico da acumulação passam a ocupar um papel decisivo na
análise da crise, posto que seu movimento sofre a mediação das categorias do capital
comercial, do capital portador de juros, da renda da terra e dos impostos do Estado, na esfera
nacional e, ainda que em linhas gerais, na esfera do mercado mundial.
Marx inicia a análise do preço de custo, demarcando a diferença entre o custo da
mercadoria para o capitalista e o que custa realmente sua produção como duas grandezas
diferentes, porque a “parte do valor da mercadoria que consiste na mais-valia nada custa ao
capitalista”(Livro III, v. 4, p. 22), é trabalho não pago ao trabalhador. Deste modo, custo de
produção para ele é igual ao valor de reposição do capital constante e o valor do capital
variável, assim, denominando preço de custo como p, o valor de M = c + v + m, passa a ser M
= p + m (preço de custo mais a mais-valia). Contudo, uma vez que o capitalista não aceita a
categoria da mais-valia, admitindo porém o lucro, denominando-se lucro por l, então o valor
de M = p + l, preço de custo mais lucro, o que não é mais que M = p (c+v) + l (m) ou seja: M
= c+v+m (pp. 22-26).
Em torno da taxa de lucro, como foi explicado no Livro I, ela esconde a taxa de
mais-valia, posto que o conceito de lucro do capitalista consiste no acréscimo de valor que a
venda da mercadoria lhe proporciona além do custo de produção, ou do que denomina de
valor intrínseco, e este último corresponde em geral a quantidade de mais-valia que o trabalho
não pago do trabalhador lhe forneceu durante o processo de trabalho. Seu cálculo é resultado
da diferença entre duas grandezas em valor monetário: o valor adquirido com a venda da
mercadoria D' menos o valor adiantado D, isto é, D' - D = l, o que corresponde inteiramente
ao cálculo da mais-valia. Entretanto, ao passar ao cálculo da taxa de lucro, ou seja, a relação
percentual entre o lucro e o capital adiantado, l/C (p) ou l/C (c+v), que é o mesmo que m/C ou
m/c+v, claramente contrasta com o cálculo da taxa de mais-valia que é m/v. Portanto, afirma
96
Marx:

Da transformação da taxa de mais-valia em taxa de lucro, deve se derivar a


transformação da mais-valia em lucro, e não o contrário. […] Mais-valia e taxa de
mais-valia são, em termos relativos, o invisível e o essencial a ser pesquisado,
enquanto a taxa de lucro e, portanto, a forma da mais-valia como lucro se mostram
na superfície dos fenômenos (MARX, 1988, Livro 3, v. 4, p. 32).

A relação entre a taxa de lucro (l') e a taxa de mais-valia (m'), segundo o autor,
trata-se de “um terreno puramente matemático”. Pressupõe inicialmente que o valor do
dinheiro, a rotação, fatores que interferem na taxa de mais-valia, sejam considerados dados.
Sustenta que se m' = m/v, e l' = m/c+v = m/C, a relação entre a magnitude de ambas taxas
equivale à relação entre o capital variável e o capital total, isto é, l' : m' = v : C 11, então, l' será
sempre menor que m'. O autor, na “relação orgânica” entre o capital variável e a valorização,
define que no capital variável, o importante é seu valor como “índice do trabalho global que
põe em movimento”; no capital constante, é o valor global de seus elementos e não seu preço
individual e sua quantidade. Em seguida, com base nas premissas anteriores, determina a
composição do capital em dois níveis: primeiro, a composição orgânica como o quociente C/
(v+m); segundo, a composição em valor como a relação C/v. A análise das relações que se
segue entre m' e l' se desenvolve sob dois pressupostos: primeiro, m' constante (variando v, C
ou ambas); segundo, m' variando (v/C constante ou variável) para chegar a duas conclusões:
1) l' decrescente, crescente ou constante pode corresponder a uma m' crescente, decrescente
ou estável; e 2) l' é determinada “por dois fatores principais: taxa de mais-valia e a
composição de valor do capital” [dado que l'= m/C = m' / (C/v)] (p. 42-52 ).
Em termos da formação de uma taxa geral de lucro (taxa média de lucro) e a
transformação dos valores mercantis em preços de produção, o autor sustenta que a
composição orgânica é uma relação de valor que depende da relação técnica e também do
preço dos meios de produção. A partir da TABELA 8 contendo cinco capitais com valor
global de 100 cada um, com diferentes composições orgânicas de “diversas seções”,
imaginados como partes de um único capital, obtêm-se a taxa média de lucro de 22% em que
se reflete a taxa de mais-valia comum de 100%. Neste exemplo considera-se que apenas uma
parte do capital constante é consumido e passado ao valor da mercadoria.

11
“A taxa de lucro está para a taxa de mais-valia, assim como o capital variável está para o capital global ”
(MARX, 1988, Livro 3, v. 4 p. 37).
97
Tabela 8: Efeito das variações na composição orgânica
Valor das Preço de Preço das
Capitais Mais-valia c consumido Taxa de lucro Desvio
Mercadorias Custo Mercadorias
I. 80c + 20v 20 50 90 70 92 20% +2
II. 70c + 30v 30 51 111 81 103 30% -8
III. 60c + 40v 40 51 131 91 113 40% -18
IV. 85c + 15v 15 40 70 55 77 15% +7
V. 95c + 5v 5 10 20 15 37 5% +7
390c + 110v 110 – – – – – – Soma
78c + 22v 22 – – – – 22% – Média
Fonte: MARX, 1988, Livro 3, v. 4, pp. 115-117.

Quanto aos “preços de produção”, o autor revela que eles correspondem a “média
das diversas taxas de lucro” somada aos preços de custo (l' + p), portanto, uma “forma
transmutada de valor”. A taxa “média” de lucro é obtida pela média das diferentes taxas de
lucro, decorrentes do valor da mercadoria nos diversos setores da produção, niveladas “pela
concorrência”. É a partir desta que cada capital retira o valor relativo ao seu consumo
produtivo, porém não retira toda a mais-valia ou lucro produzido, somente uma quantidade
proporcional ao capital global investido, uma “parte alíquota”, uma “enésima parte” desse
total, como se fossem “meros acionistas de uma sociedade anônima”. O preço de custo é
específico, o lucro é apenas uma média; “[...] a soma dos preços de produção das mercadorias
produzidas é igual à soma dos seus valores”, porém não se formam do mesmo modo que os
preços e valores individuais (pp. 124-125).
Contudo, no capital constante, os preços de seus insumos entram e o desviam do
valor-trabalho que contém (os preços de produção tomam seu lugar e os preços de custo
mudam de significado). A lei do valor se impõe como tendência dominante somente de
maneira “complicada e aproximativa, como média nunca fixável de eternas flutuações” (p.
126); e, neste caso, poderá ocorrer um erro ainda que se trate de um erro “passado” e o
capitalista seja indiferente a este frente a sua produção. Não obstante, é certo que o preço de
produção será maior, menor ou igual que o valor, em função de que a composição no valor do
capital do setor seja “superior”, “inferior” ou igual à média da economia. Porém já não é a
soma do trabalho pago e não-pago para a produção da mercadoria, exceto por casualidade,
mas do trabalho pago mais “determinado quantum de trabalho não-pago” em geral do qual se
apropria cada capitalista. O lucro que cada capital individual apropria é definido pela taxa
média de lucro em relação ao tamanho do capital individual, ou seja, p (1+l') (pp. 127-129).
98
Apesar desta modificação “quantitativa” - observa-se que, até agora, a mudança
entre mais-valia e lucro era somente “qualitativa” -, a lei do valor realiza-se igualmente, como
reflete o fato dos preços de produção somente variarem, em última instância, em
consequência das modificações no valor das mercadorias. E isso ocorre tanto através de uma
modificação na taxa média de lucro - “produto muito tardio de uma série de flutuações que se
estendem por períodos muito longos”, porque os movimentos nas distintas esferas se
“compensam” e “neutralizam” reciprocamente -, como se o faz através de uma mudança nos
preços de custo. Se revela então a conexão entre a “aparência” dos preços e sua
“determinação interna” pelos valores; e como o lucro que entra nos primeiros está “mediada
pela exploração global do trabalho por parte do capital global”. Desta maneira, compreende-
se porque para cada capitalista parece uma “operação inteiramente acertada” uma “maior
aplicação de trabalho morto” (p. 132), porque não somente não compromete a taxa média de
lucro, mas também lhe aparece como uma “fonte” de maior rentabilidade.
Na abordagem sobre a equalização da taxa geral de lucro pela concorrência –
preços de mercado e valores de mercado e superlucro – como visto anteriormente, a soma dos
lucros coincide com a soma da mais-valia e a concorrência simplesmente redistribui ou
equaliza esse total entre as distintas esferas, de acordo com o capital investido em cada setor.
Nos capitais de composição “média”, o preço coincidirá “inteira ou aproximadamente” com o
valor, e a taxa geral de lucro tem que coincidir com a taxa destes capitais médios, ainda que,
por qualquer motivo, capitais de alguma esfera “não fossem submetidos ao processo de
equalização” (p. 136). O importante é observar que a taxa média se impõe como taxa “geral”.
No capitalismo, as mercadorias são “produtos de capitais” e isto faz que cada capitalista exija
uma “participação na massa global de mais-valia” proporcional à magnitude de seu capital. O
valor deve ser estudado antes dos preços, porque é seu pressuposto lógico e também histórico.
O “valor de mercado” é o valor social médio em uma esfera, seja seu valor ou
preço de produção; porém em seu interior pode conter valores “individuais” que não
coincidem com este. Entretanto, o “preço de mercado” somente pode ser “uniforme” para
cada tipo de mercadoria devido à concorrência; e o normal será que coincida com o preço que
pode obter o produtor de condições médias. Contudo, aqueles que produzem em melhores
condições, “cujo valor individual está abaixo do valor de mercado”, auferem uma mais-valia
extraordinária acima da média de lucro praticada, portanto um superlucro; os que produzem
em piores condições não realizam o total da mais-valia contida em suas mercadorias. A
99
pressão concorrencial força os vendedores a lançarem ao mercado a quantidade demandada de
produtos; uma variação no valor, para cima ou para baixo, provoca um movimento respectivo
de contração ou expansão na média das “necessidades sociais”, entendendo estas sempre
como “necessidades solventes” (p. 140). Ainda assim, distinguem-se diferentes casos. Em
primeiro lugar, se a maior parte das mercadorias de um setor é produzida em condições
“normais”, estas compensam e anulam as produzidas em condições extraordinárias. Porém,
podem ocorrer situações em que prevaleça o valor nas mercadorias produzidas em condições
piores, os demais produtores obteriam um valor de acordo com suas condições de produção
em relação aos preços de mercado.
Ao avaliar o efeito das variações em salários sobre os preços de produção, o autor
usa um exemplo numérico para demonstrar que, com as demais condições constantes, um
aumento salarial que reduz a taxa de mais-valia não altera o preço de produção das
mercadorias com composição orgânica média, assim como a soma total de preços de
produção; enquanto que, no caso da mercadoria com composição baixa, eleva o preço de
produção, e com alta composição, o diminui; com a diminuição do salário, ocorre justamente
o contrário. O autor conclui destas variações que:

Todas as variações de preço de produção das mercadorias reduzem-se, em última


instância, a uma variação de valor, mas nem todas as variações do valor das
mercadorias têm de se expressar numa variação do preço de produção, uma vez que
este é determinado não apenas pelo valor da mercadoria particular, mas pelo valor
global de todas as mercadorias (p. 158).

A tendência à equalização das taxas de lucro nos diferentes setores não é imediata,
mas se efetua no curso de “certo ciclo de anos” e “com essa experiência o capital logo
aprende a calcular” (p. 158) e também a extrair superlucro.
A lei tendencial da queda da taxa de lucro constitui uma expressão lógica e
histórica do processo real da acumulação ampliada do capital, como já havia sido enunciada
por Marx no Livro I, ao tratar da Lei Geral da Acumulação Capitalista, e também no Livro II,
quando da tendência à desproporção, devido ao próprio consumo individual da classe
capitalista e classes improdutivas para com os subsetores de cada departamento, que acarreta
movimentos contraditórios entre produção e consumo em ambos, constituindo os momentos
de superprodução relativa e subconsumo relativo, que se resolvem pelas crises, onde o
embotamento dos lucros se apresenta como resultado do processo. A análise da Lei enquanto
100
tal apresenta um exemplo, que considera a jornada de trabalho e salários dados, um capital
variável v de 100, que põe 100 trabalhadores semanalmente em movimento, executando a
mesma quantidade de trabalho: o necessário para si mesmos, que pagam seus salários, e o
mais-trabalho, isto é, a mais-valia para o capitalista; o produto global seria = 200 libras
esterlinas e a mais-valia = 100 libras esterlinas. A taxa de mais-valia m/v seria = 100% e
expressaria diferentes taxas de lucro de acordo com a variação do volume do capital constante
c e, com isso, do capital global C. Deste modo, como a taxa de lucro é = m/C e a taxa de
mais-valia de 100% obtêm-se:
se c = 50, v = 100, então l' é = 100/150 = 66, 2/3%;
se c = 100, v = 100, então l' é = 100/200 = 50%;
se c = 200, v = 100, então l' é = 100/300 = 33, 1/3%;
se c = 300, v = 100, então l' é = 100/400 = 25%;
se c = 400, v = 100, então l' é = 100/500 = 20%.
No exemplo acima, torna-se evidente a crescente produtividade do trabalho social,
considerando que um “mesmo número de trabalhadores”, empregando a mesma quantidade de
trabalho, põe em movimento “uma massa sempre crescente de meios de trabalho”. Portanto,
um volume maior de mercadorias em que se expressa uma mesma quantidade de trabalho, o
que implica que cada mercadoria contém menor quantidade de trabalho, logo, uma queda no
valor das mesmas que se expressa em diferentes taxas de lucro. Deste modo, o decréscimo
relativo do capital variável em relação ao capital constante progressivamente gera uma
composição orgânica crescente do capital global, “cuja consequência imediata é que a taxa de
mais-valia, com grau constante e até mesmo crescente de exploração do trabalho, se expressa
numa taxa geral de lucro em queda contínua” (p. 154).
Marx também sustenta que essa lei da queda na taxa de lucro é uma expressão
peculiar ao modo de produção capitalista para o desenvolvimento progressivo da força
produtiva social do trabalho e, embora não seja absoluta, é uma tendência progressiva que se
torna visível antes de uma divisão do lucro em suas partes componentes. A economia política
debateu-se com a diferença entre capital constante e capital variável sem uma formulação
precisa, nunca apresentou uma demarcação entre, por um lado, mais-valia e lucro e, por outro,
entre o lucro e suas divisões como lucro comercial, lucro industrial, juros e renda fundiária
devido a não examinar em profundidade a diversidade da composição orgânica do capital e a
formação da taxa geral de lucro; daí o enigma. A apresentação da lei da tendência decrescente
101
antes desta distribuição dos lucros prova sua independência e generalidade, bem como
expressa a proporção decrescente entre a mais-valia e o capital global adiantado.
Esta tendência também se expressa de acordo com a composição orgânica
superior ou inferior nos diferentes países, onde taxas de lucro são, respectivamente, mais
baixas nos países desenvolvidos ou onde prevalecem taxas mais altas, nos países menos
desenvolvidos. Contudo, também alerta para o fato de que um país pouco desenvolvido, dado
as condições de subordinação formal do trabalho ao capital, impliquem também taxa de lucro
baixa, inclusive naqueles em que as taxas de juros são mais altas que as taxas de lucro devido
ao domínio de relações pré-capitalistas.
Marx, na análise dos efeitos da incidência da lei sobre o desenvolvimento da
produção social e da sociedade em geral, além de considerar as mudanças nos aspectos
econômicos sintetizadas nas alterações quantitativas dos componentes orgânicos do capital –
tais como capital variável, capital constante, mais-valia, lucro, capital global, valor, entre
outros – através das relações puramente matemáticas da composição entre estes elementos
orgânicos – tais como composição-valor, taxa de mais-valia, taxa de lucro –, também
estabelece relações qualitativas das variações entre estes componentes, suas composições e
interações com as mudanças sociais, como é o caso da demografia dos trabalhadores, que
flutua segundo a reprodução do capital, e a própria subjetividade das classes sociais em suas
variadas combinações em termos do trabalho, do convívio e valores sociais, modelados pela
aplicação das ciências naturais e sociais à produção e às relações sociais; um processo que
aponta para a multiplicação, por um lado, da riqueza social pela diversidade de valores de uso
e, por outro, das necessidades objetivas e subjetivas que acompanham a crescente
produtividade social e as crises do capital. Relações causais que tornam a própria lei causa e
consequência de mudanças gerais na reprodução do capital e da sociedade.
A lei como tendência, significa que seu efeito final, o colapso do capitalismo, não
se realiza de imediato e este fato implica a existência de fatores ou contratendências que
neutralizam temporariamente ou amenizam sua incidência; quando rompe com estes fatores,
por outro lado, manifesta-se de forma aguda, geralmente acompanhando as crises cíclicas do
capital. Estas contratendências as resume em: 1) elevação do grau de exploração do trabalho,
ou aumento da taxa de mais-valia, cujo método é aumentar a duração ou a intensidade da
jornada de trabalho por métodos organizativos ou qualquer outra via para aumentar a
produção sem aumentar e capital; 2) a redução do salário abaixo de seu valor; 3) O
102
barateamento dos elementos do capital constante, que possibilitam uma ampliação da taxa de
mais-valia maior que a aplicação de tecnologias que ampliam a capacidade produtiva; 4) a
superpopulação relativa, que permite a redução do valor da força de trabalho; 5) o comércio
exterior, que pode baratear tanto os elementos de c como de v, e o investimento no
estrangeiro, em especial nas “colônias”, pode lançar uma maior rentabilidade; 6) o aumento
do capital por ações, que permite deixar fora da equalização muitos poupadores que se
conformam com um “dividendo” inferior ao que seria necessário.
Diante dessas contratendências, Marx enuncia o desdobramento das contradições
internas da lei:

[...] à medida que a taxa de valorização do capital global, a taxa de lucro, é o


aguilhão da produção capitalista (assim como a valorização do capital é sua única
finalidade), sua queda retarda a formação de novos capitais autônomos, e assim
aparece como ameaça para o desenvolvimento do processo de produção capitalista;
ela promove superprodução, especulação, crise, capital supérfluo, ao lado de
população supérflua (p. 174).

Este fato, a queda da taxa de lucro, embora desperte horror a Ricardo, como
afirma o autor, na verdade indica que o modo de produção capitalista encontra no
desenvolvimento das forças produtivas uma barreira peculiar que não diz respeito à produção
de riqueza enquanto tal, porém testemunha seu caráter limitado, histórico e transitório, “que
ele não é um modo de produção absoluto para a produção de riqueza, mas que antes entra em
conflito com seu desenvolvimento em certo estágio.” (p. 175).
Neste sentido, a lei da tendência decrescente da taxa de lucro desdobra-se em três
contradições básicas. A primeira, diz respeito às relações entre a valorização e a produtividade
social do trabalho; a segunda, decorrente do movimento de concentração e centralização em
relação aos pequenos capitais individuais; e a terceira, derivada do valor de uso e do valor de
troca, que também se expressa em tempo necessário e excedente. Em relação à contradição
entre a produtividade social e a valorização, o autor destaca os exemplos em que as barreiras
que se apresentam ao objetivo da produção de mais-valia, dadas as condições de produção ou
acumulação de capital, são a população trabalhadora e seu grau de exploração; nestes termos,
os diversos métodos de exploração – seja pela mais-valia absoluta, seja pela mais-valia
relativa – só encontram limites do declínio da taxa de lucro que com força de lei natural
impõe uma mudança no processo de acumulação, através de crises violentas “que
reestabelecem momentaneamente o equilíbrio perturbado” (p. 179). Nestas condições, a
103
magnitude do capital se impõe sobre sua diversidade, desenvolvendo-se pela concentração e
centralização dos pequenos capitais pelos grandes, sob condições concorrenciais um grande
capital pode, com pequena taxa de lucro, acumular uma grande massa de lucros enquanto o
pequeno capital, mesmo com grande taxa de lucro, apropria-se de uma massa menor sendo
atraído pela força centrípeta do primeiro decorrente de sua tendência histórica ao monopólio.
Marx escreveu: “Esse processo levaria em breve a produção capitalista ao colapso, se
tendências contrárias não atuassem constantemente, com efeito descentralizador, ao lado da
força centrípeta.” (p. 177). Em relação à contradição entre valor de uso e valor de troca,
externaliza-se o processo pelo qual a produtividade social multiplica a produção de valores de
uso, sob a condição da acumulação de mais-valia, ou do valor de troca das mercadorias; o
divórcio entre a produção de valores de uso para atender as necessidades humanas e a
produção destes valores para acumulação de valor se manifesta em crises que repõem a
unidade perdida entre esta relação capital; também sinalizam por meio da repartição de tempo
na sociedade como um todo, entre o tempo necessário à produção de meios de subsistência da
humanidade, e o tempo excedente para todos, que ao capitalista não interessa, devido ao fato
que para o seu objetivo de lucro, o que interessa é converter o tempo excedente dos
trabalhadores em seu produto privado; neste aspecto, a crise estabelece claramente a barreira
do capital como próprio limite ao capital.
Finalmente, Marx apresenta três características fundamentais da produção
capitalista:

1) Concentração dos meios de produção em poucas mãos, pelo que eles deixam de
aparecer como propriedade dos trabalhadores diretos e, pelo contrário, se
transformar em potências sociais da produção. Ainda que inicialmente como
propriedade privada dos capitalistas. Estes são trustees (curadores) da sociedade
burguesa, mas eles embolsam todos os frutos dessa curadoria.
2) A organização do próprio trabalho como [trabalho] social: mediante cooperação,
divisão do trabalho e ligação do trabalho com a ciência natural. Em ambos os
sentidos, o modo de produção capitalista supera a propriedade privada e o trabalho
privado ainda que em formas antitéticas.
3) Estabelecimento do mercado mundial. A enorme força produtiva em relação à
população, que se desenvolve dentro do modo de prodição capitalista e, ainda que
não na mesma proporção, o crescimento dos valores capital (não só seu substrato
material), que crescem muito mais depressa do que a população, contradizem a base
cada vez mais estreita em relação à riqueza crescente, para a qual coopera essa
enorme força produtiva, e as condições de valorização desse capital em expansão.
Daí as crises (p. 191).

Nos três capítulos em que o autor trata as relações entre o capital monetário e o
104
capital real, a crise geral aparece como expressão da fase de contração do ciclo econômico,
demarcada pela retração do crédito em geral devido à alta máxima das taxas de juros
(encarecimento do dinheiro), momento em que o crédito já havia há muito deixado a esfera do
crédito industrial e comercial e passado integralmente ao domínio do crédito bancário, e no
interior deste, dos setores do capital fictício e especulativo. Por outro lado, a crise demarca
também o momento em que se inicia a recuperação econômica, em que a retração do crédito
continua, porém, agora, não pela restrição das taxas de juros, que chegam a patamares
mínimos, mas devido à inércia no comportamento de credores e tomadores de empréstimos
em relação ao período anterior do ciclo, ou seja, de crise, formando-se nestas circunstâncias
uma pletora de capital monetário em relação à procura. Esta oferta de capital de empréstimo é
dominada quase inteiramente pelo crédito industrial e comercial, embora o empréstimo
bancário também se apresente. Este momento de recuperação cede lugar a outro de animação
da acumulação em que as taxas de juros atingem um nível médio, no qual o crédito passa ao
domínio dos bancos, apoiados inteiramente nos depósitos dos capitalistas industriais,
comerciais e dos próprios banqueiros. Porém, o processo de acumulação transcende o limite
do crescimento do ciclo anterior, atingindo um novo patamar da produção social e neste
momento o crédito bancário passa a ser dominado pelo capital fictício, base sobre a qual
expande-se a acumulação e a produção para além dos limites sociais de consumo. Neste
ponto, qualquer abalo ou refluxo frustrado desaba todo o sistema em que se apoia o consumo
social, as taxas de juros, refletindo a corrida por meios de pagamento, chegam novamente à
estratosfera e o comércio e a indústria paralisam; a crise geral encerra o período de expansão
da acumulação.
Com base nesta relação, Marx responde suas indagações iniciais. Em torno da
questão de se a acumulação do capital monetário indica acumulação real de capital ou
reprodução em escala ampliada, a resposta é que apenas em dois momentos há coincidência
entre estes movimentos de acumulação, porém, em momentos que antecedem a crise e durante
a crise, constituem-se em movimentos contrários. Explica que a pletora de capital monetário
nem sempre coincide com a existência de massas de dinheiro estagnadas; desde o momento
da recuperação haverá capital bancário utilizado durante a crise que volta a estar disponível
para empréstimo, porém, como o capital comercial e industrial têm certa independência do
capital bancário durante esta recuperação, então este se encontra paralisado, disponível mas
sem aplicação. Durante este período de recuperação e crescimento, a estagnação do capital
105
monetário coincide com a expansão e desenvolvimento do capital industrial.
O autor, entretanto, para chegar a tais respostas, primeiramente define as diversas
categorias aplicadas em sua análise, tais como, capital monetário, capital fictício, capital
portador de juros ou de empréstimo, bem como as diferentes formas de crédito, como o
crédito comercial, industrial e o bancário. Refere-se a este último como capital de empréstimo
“propriamente dito” (p. 24) e o subdivide entre o que se apoia nos depósitos de capital real –
seja da indústria, do comércio e inclusive dos trabalhadores, além dos próprios banqueiros e
outras classes improdutivas – e o capital formado por duplicatas e títulos de propriedade sobre
o capital real, que constitui o capital fictício. Demonstra que a acumulação de capital fictício
sob títulos de propriedade é um movimento totalmente independente do capital real e que o
primeiro se desenvolve principalmente através do jogo da Bolsa de Valores. Por último,
relaciona a própria capacidade expansiva das mercadorias como capacidade expansiva do
capital monetário. Todas estas definições relacionadas com os movimentos de expansão e
contração da acumulação que perfazem o ciclo econômico, cuja mudança de fase é demarcada
pela crise geral, ao cabo refletem-se sobre o próprio ciclo econômico, adquirindo um
significado distinto nas fases do mesmo. Por exemplo, durante as crises, o capital monetário
se contrai, perdendo sua capacidade de representar o valor das mercadorias na sociedade, ao
mesmo passo que a própria mercadoria contrai seu valor numa relação de causa e efeito.
Do ponto de vista da crise, no movimento do capital real e do capital monetário,
também observa-se a relação de causa e efeito quando este passa a elevar a capacidade de
expansão da base produtiva além do patamar atingido no período anterior, através do
financiamento da produção e principalmente do consumo. Por outro lado, a crise desvaloriza o
capital monetário e o capital real à medida que diminui o valor das mercadorias e sua
capacidade de ser expresso monetariamente. A taxa de juros torna-se um termômetro entre o
limite mínimo e máximo de crescimento da economia; a balança comercial e de pagamentos
refletem o enlace internacional entre o capital monetário (devedores e credores) e o capital
real (importações e exportações) dos países envolvidos na crise, atribuindo a esta um caráter
geral e mundial.
A análise desta forma chega à definição causal da crise através de uma abstração
onde só existem trabalhadores assalariados e capitalistas industriais, não há flutuações de
preços nem especulação:
106
[...] uma crise somente seria explicável por desproporção da produção nos diversos
ramos e por uma desproporção do consumo dos próprios capitalistas para com sua
acumulação. Mas como as coisas são, a reposição dos capitais investidos na
produção depende, em grande parte da capacidade de consumo das classes não
produtivas; enquanto a capacidade de consumo dos trabalhadores está limitada em
parte pelas leis do salário, em parte pelas circunstâncias de só serem empregados
enquanto puderem ser empregados com lucro para a classe capitalista. A razão
última de todas as crises reais é sempre a pobreza e a restrição ao consumo das
massas em face do impulso da produção capitalista a desenvolver as forças
produtivas como se apenas a capacidade absoluta de consumo da sociedade
constituísse seu limite (Livro 3, v. 5, p. 17).

Marx ao final revela a lógica em que repousa o capital monetário, que é o


“capital-mercadoria”, que “em tempos de crise e paralisação dos negócios” perde em grande
parte a qualidade de representar capital monetário potencial, isto é, deixa de realizar a mais-
valia. E que esse processo também acontece com o capital fictício, os papéis portadores de
juros que nas bolsas circulam como capital monetário. A alta dos juros faz cair seu preço, à
medida que a escassez geral do crédito faz com que “seus proprietários os lancem em massa
no mercado para obter dinheiro”. Também cai devido à desvalorização das ações e pelo
“caráter fraudulento de muitos empreendimentos”. O capital fictício se reduz enormemente
nas crises e, com ele, o poder de seus proprietários em transformá-lo em dinheiro no mercado.
Contudo, a desvalorização do “nome monetário destes papéis de créditos nos boletins das
Bolsas nada tem a ver com o capital real que representam, muito, porém, com a solvência de
seus proprietários” (p. 24).

2.3 Os debates em torno da obra O Capital

O debate que toma lugar sobre a obra de Marx, O Capital, após a morte de Engels,
como já foi adiantado, tornou-se de grande relevância tanto para teoria econômica em geral,
quanto para o movimento socialista mundial. A luta interna entre os dirigentes da II
Internacional Socialista, iniciada por Eduard Bernstein, na série de artigos publicados sob o
título “Probleme des Sozialismus” (Problemas do Socialismo), na revista Die Neue Zeit
(1896-1897) dirigida por Karl Kautsky, condensados no livro Die Vorausselzungen des
Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokratie (As Premissas do Socialismo e as Tarefas
da Socialdemocracia) publicado pela Dietz de Stuttgart em 1899, adquiriu expressão histórica
107
menos pelo teor revisionista à teoria de Marx, comparado ao debate de Engels com Dühring,
do que pelo status de “amigo pessoal” de Engels e membro do staff que o auxilia na edição do
Livro III de O Capital. Na verdade, apenas uma década depois do início da polêmica, ela
transforma-se qualitativamente de uma luta política interna pela direção no congresso do SPD
(Partido Social-Democrata Alemão) em 1891 e da II Internacional (o congresso de 1896), em
termos da formulação programática, em debate teórico dos esquemas de reprodução do
capital, cujo ápice são as teses sobre o imperialismo de Hilferding, publicadas originalmente
em 1910; Rosa Luxemburgo, em 1913; de Lênin, em 1916; Bukharin, em 1924; e, com a
morte do líder bolchevique, o resgate da importância da crítica da economia política na teoria
de Grossmann de 1929 sobre a crise.
A formulação crítica revisionista de Bernstein ancora-se, precisamente, na
situação econômica e social vivida pela Alemanha da última década do século XIX e, até
certo ponto pela Europa, como a prova empírica da inconsequência do método dialético de
Hegel do materialismo histórico de Marx. Sua lista de incongruências dessa teoria com a
realidade indica, entre outros aspectos, que: o capitalismo era capaz de superar as crises
gerais; os acordos entre industriais, trustes, a ampliação do sistema de crédito e das
informações inviabilizavam a teoria do colapso geral do sistema, a teoria do valor, a teoria da
pauperização, a teoria da polarização das classes; não há concentração no campo, na indústria,
nem da riqueza social entre poucos magnatas. Em termos políticos, as transformações
caminhavam em direção à democratização da sociedade, extinção de privilégios da burguesia,
controle social sobre a exploração do capital, legislação sobre as fábricas, administrações
municipais democráticas, autonomia dos sindicatos e cooperativas (BERNSTEIN, 1982;
JOHNSTONE, 1988, pp. 32; LUXEMBURGO, 1986, passim). Conclui pela rejeição da
dialética e adoção de novo fundamento para o socialismo, com base na ética de Kant e na
filosofia de Comte. Finalmente, que em lugar de esperar a grande catástrofe para tomar o
poder pela violência revolucionária, a tarefa da social-democracia era organizar a classe
operária para a democracia e a luta por reforma. Segundo Rosa Luxemburgo: “Bernstein
conclui seu livro com o conselho ao partido de que se atreva a aparecer como o que na
realidade é: um partido reformista democrata-socialista.” (LUXEMBURGO, 1986, p. 34)
Esta postulação de Bernstein para o SPD e a II Internacional, não poderia ficar
sem uma devida resposta e, ainda no Congresso da Internacional em 1896, os setores
revolucionários iniciam a campanha pela expulsão do seu grupo do SPD, que foi dado de
108
ombros por Kautsky e outros de seus dirigentes. Entretanto, com a publicação do livro
contendo a coletânea de seus artigos, a ala revolucionária do partido respondeu primeiramente
com o ensaio de Rosa Luxemburgo Reforma ou Revolução publicado em 1900; também na
Rússia, Lênin, em seu célebre livro Que Fazer? De 1902 rechaça as correntes no interior do
movimento social-democrata que, apoiadas nas posições de Bernstein, postulavam “liberdade
de crítica”, denunciavam o dogmatismo e a ortodoxia.
Contudo, no centro em que se trava o debate suscitado pelo revisionismo, a
Alemanha, é o artigo de Rosa Luxemburgo que sustenta a defesa do marxismo. Nesse
trabalho, a autora parte do princípio que as teses do socialismo científico sobre o capitalismo
e a revolução fundamentam-se:

1º, na anarquia crescente da economia capitalista que conduzirá fatalmente ao seu


afundamento; 2º, sobre a socialização crescente do processo de produção que cria os
primeiros fundamentos positivos da ordem social futura; 3º, finalmente, na
organização e na consciência de classe cada vez maiores do proletariado e que
constituem o elemento ativo da revolução iminente (LUXEMBURGO, 1986, p. 3).

Todos esses princípios foram abandonados pelo revisionismo e toda sua teoria
visa uma única coisa: conduzir ao “abandono do objetivo último da social-democracia, a
revolução social e, inversamente, fazer da reforma social, simples meio da luta de classes, o
seu fim último” (LUXEMBURGO, 1985). Para a autora, reforma social e revolução
constituem um elo indissolúvel: “a luta pela reforma social é o meio, a revolução social o
fim”, portanto, a proposição revisionista corresponde “à questão: ser ou não ser” para a social-
democracia (p. 2). Embora o próprio Bernstein não veja nada de novo em suas teses e acredite
que estão em conformidade tanto com algumas declarações de Marx e Engels como com a
orientação geral até então seguida, é incontestável que estava em absoluta contradição com os
princípios do socialismo científico.
O trabalho de Luxemburgo representa, em primeiro lugar, uma resposta política ao
revisionismo e ao mesmo tempo uma crítica ao reformismo da social-democracia, que está na
base do primeiro. Pode-se observar esse fato na crítica às concepções de Conrad Schmidt do
“controle social” crescente como método para instauração progressiva do socialismo, o que
implica considerar uma forma de propriedade e do Estado capitalista evoluindo para o
socialismo; é verdade – afirma a autora – que as relações de produção da sociedade capitalista
aproximam-se das socialistas, porém as relações políticas desta constroem entre ambas
109
sociedades um muro cada vez mais alto: “Nesse muro, nem as reformas sociais nem a
democracia abrirão brechas, contribuirão, pelo contrário, para o segurar e consolidar. Apenas
um golpe revolucionário, isto é, a conquista do poder político pelo proletariado, o poderá
abater.” (LUXEMBURGO, 1986, p. 13). A autora, ao final, estabelece o vínculo histórico da
presença do oportunismo na social-democracia alemã com o revisionismo, afirmando que
“[...] as tendências oportunistas no interior do nosso movimento vêm de longe. Mas somente
em 1890 se esboçou uma tendência declarada e única nessa via: depois da abolição da lei de
excepção contra os socialistas, quando a social-democracia reconquistou o terreno da
legalidade.” (p. 32). Conclui que a teoria de Bernstein era a primeira e última tentativa para
fornecer ao oportunismo uma base teórica, pois seu livro marca o fim da evolução teórica do
oportunismo, extraindo-lhe as últimas consequências (pp. 32-33).
Em segundo lugar, adianta elementos do debate sobre o desenvolvimento do
capitalismo que estarão na questão de fundo dos esquemas de reprodução e da teoria do
imperialismo. Isto observa-se em sua afirmação de que o desenvolvimento das fusões e dos
monopólios era um fenômeno ainda não estudado em todas as suas diversas consequências
econômicas e só poderia se resolver recorrendo à doutrina marxista, apesar das associações
patronais já demonstrarem que não conseguem deter a anarquia capitalista à medida que as
fusões, os monopólios, etc., tornem-se uma forma de produção generalizada ou dominante.
Segundo a autora:

Normalmente as concentrações só obtêm esse aumento de lucro no mercado interno


relacionando-o com o estrangeiro, […] quer dizer, vendendo as suas mercadorias no
estrangeiro a melhor preço que no interior do país. Dai resulta um agravamento da
concorrência no estrangeiro, um reforço da anarquia no mercado mundial,
exatamente o contrário do que se propunham conseguir.” (p. 5).

Portanto, as ideias de que o colapso total do capitalismo é improvável devido à


capacidade de adaptação do sistema e sua produção diferenciada são falsas, apesar de
Bernstein argumentar sobre o papel do sistema de crédito, das comunicações, serviços de
informações, sobrevivência da classe média e a suposta melhoria das condições de vida do
proletariado.
Terceiro, Luxemburgo identifica o revisionismo com a infiltração da ideologia
burguesa e do idealismo na teoria do socialismo científico. Ao criticar a associação que efetua
Bernstein das teorias do trabalho social de Marx e da utilidade abstrata de Menger como
110
opiniões equivalentes por serem dois casos de pura abstração, ela indica a diferença específica
da abstração de Marx, como uma descoberta deste na economia mercantil e não uma invenção
pura e simples, saída de sua cabeça. Finalmente, qualifica a ideia da utilidade abstrata de
Böhm e Jevons como efetivamente uma construção do espírito, sem vínculo algum com a
realidade de qualquer sociedade, mas exclusivamente com a economia burguesa vulgar.
Luxemburgo conclui sua crítica ao revisionismo e ao reformismo afirmando:

Bernstein abandonou as categorias do pensamento do proletariado revolucionário, a


dialéctica e a concepção materialista da história; ora é a elas que deve as
circunstâncias atenuantes da sua mudança. Porque só a dialéctica e a concepção
materialista da história podem mostrá-lo, com grande magnanimidade, tal como o
foi inconscientemente: o instrumento predestinado que, revelando à classe operária
um desfalecimento passageiro do seu ardor, a forçou a rejeitá-lo com um gesto de
desprezo escarnecedor (p. 34).

Esta resposta contundente de Luxemburgo ao revisionismo, conceituando-o como


forma aguda do reformismo, suscitou destes setores, por sua vez, um posicionamento claro no
debate, que surge em artigos e livros como os de Kautsky (1901), Eckstein (1905) e
Hilferding (1904, 1910), que ao publicar a obra O Capital Financeiro (1910) eleva o debate à
interpretação do modelo abstrato dos esquemas de reprodução no Livro II de O Capital à
definição da nova fase que passa a viver o capitalismo. Contudo, o debate no nível dos
esquemas de reprodução de Marx já se processava na Rússia desde 1893 entre os social-
democratas e o grupo Naródnichestvo, como se pode comprovar pela obra de Lênin Acerca de
la llamada cuestión de los mercados (Acerca da chamada questão dos mercados), bem como
de marxistas legais como Tugan-Baranovski (1895), embora o foco do debate dirigia-se à tese
da possibilidade ou não do desenvolvimento capitalista na Rússia como pressuposto à
passagem do regime czarista ao socialismo. Este processo permitiu que, durante os debates
sobre os esquemas de reprodução na Alemanha, o trabalho dos marxistas-legais e dos
bolcheviques tomassem parte do debate.
Este foi o caso dos trabalhos dos marxistas legais Bulgakov e Tugan-Baranovski.
Como expôs Rosdolsky, o primeiro afirmava que o equilíbrio nos esquemas entre os
departamentos I e II comprova que o capitalismo é um sistema autônomo em relação ao
mercado externo e sustentável; ou seja, resgata a “harmonia” de Ricardo. Bulgakov sustentava
que a necessidade humana é elemento secundário no capitalismo, que o “volume de produção
é determinado pelo volume de capital e não pelo tamanho das necessidades sociais”
111
(ROSDOLSKY, 2001, p. 388). Considerando que a produção de bens de consumo é muito
pequena relativa à de bens de produção, o principal mercado na produção capitalista é o
departamento I e a crise é um desvio “do verdadeiro objetivo da produção.” (ROSDOLSKY,
2001, p. 388). Portanto, Bulgakov admite as crises periódicas, mas não o problema da
realização; as crises seriam resultados de um desenvolvimento desequilibrado. Combate a
ideia de Luxemburgo de que o mercado externo é uma condição para que se desenvolva o
capitalismo; poderia ser uma válvula de escape para proteger o país contra a superprodução,
mas isso é uma faca de dois gumes: ao que é exportado corresponde um volume igual de
importação (ROSDOLSKY, 2001, p. 386-390).
Com relação ao segundo, Rosdolsky indica que a posição de Bulgakov se
aproxima de Tugan-Baranovski, que este último difere apenas pelo seu método de levar as
contradições ao paroxismo. Ao desenvolver o modelo matemático com base nos esquemas de
Marx, conclui que é possível que o capitalismo exista eternamente e que o único limite para o
mercado é o desenvolvimento das forças produtivas; chegou a pensar na sociedade futura
onde a produção era composta apenas por máquinas e um único trabalhador controlando todas
(ROSDOLSKY, 2001, p. 390-393). No entanto, na concepção de Tula (apud GROSSMANN,
2004, p. xiii), Tugan-Baranovski interpreta os esquemas de reprodução de Marx segundo a
teoria do equilíbrio de Say e conclui que uma partilha proporcional da riqueza social igualaria
oferta e demanda. A redução do consumo humano (Dep II), devido à substituição do homem
pela máquina, seria compensada pelo consumo produtivo (Dep I); ou seja, a acumulação de
capital teria como consequência uma restrição à demanda social dos meios de consumo ao
mesmo tempo que cresce a demanda social das mercadorias. O problema do capitalismo é que
os proprietários se apropriam do mais-trabalho, é um problema ético. A queda do capitalismo
virá pela “contravenção da norma ética kantiana”, segundo a qual o homem existe como fim
em si mesmo (p. xiv).
Rudolf Hilferding, segundo Tula, discorda de Tugan-Baranovski ao afirmar que
não é possível acumulação ilimitada do capital, porém concorda com este em que a produção
depende da valorização e não do consumo. A exploração de fato restringe o consumo, mas as
crises não podem ser produto do subconsumo, pois mesmo na reprodução simples há crises;
um crescimento muito rápido do consumo também gera crises, assim como constância ou
redução na produção do Departamento I. Uma superprodução geral seria impossível, o
problema está na circulação. Como resultado da concentração, o desenvolvimento do
112
capitalismo levaria a uma cartelização completa da produção, inclusive no plano
internacional; uma cartelização geral que permitiria regular os preços e planejar a distribuição.
A transição ao socialismo pode ser pacífica. O sistema financeiro ocupa lugar cada vez mais
importante na centralização do sistema econômico internacional e é possível, portanto,
controlar a economia mundial se o Estado proletário tomar o sistema financeiro (TULA apud
GROSSMANN, 2004, p. xvi). Rosdolsky confirma esta leitura de Tula sobre Hilferding à
medida que este concluía dos esquemas de Marx que a reprodução precisa que se mantenha
um equilíbrio entre I e II; que as crises não se originam do subconsumo e que qualquer
ampliação é sempre possível a partir de uma mesma base. Afirma que Hilferding praticamente
rebatizou as “crises de subconsumo” como “crises de desproporção” ao negar a possibilidade
de superprodução para afirmar que é possível haver proporcionalidade na produção capitalista
com base nesse modelo ideal (ROSDOLSKY, 2001, p. 404-406).
Nestas condições, o trabalho de Hilferding responde tanto a Bernstein,
concordando e refutando em parte de sua formulação, quanto à Rosa Luxemburgo, refutando
sua tese da revolução pela tomada do poder. Em relação ao primeiro, sustenta que a
desproporção entre os departamentos I e II da economia, devido a taxas de acumulação
anárquicas, torna a crise cíclica inevitável e que a formulação da teoria do colapso é uma
interpretação vulgar da teoria de Marx. Além disso, que a aparente refutação da crise nas
últimas duas décadas pela realidade econômica e social do capitalismo, indicava sua
passagem a uma nova fase, a do capital financeiro. Quanto à segunda, argumenta que nesta
nova fase no capitalismo, as crises são contornáveis pelo planejamento e um governo
parlamentar, portanto, refuta a ideia de colapso e a proposição de que só a revolução socialista
é o processo para chegar ao poder.
Rosa Luxemburgo volta a intervir no debate suscitado pela defesa da teoria do
colapso agora sob novo enfoque: os esquemas de reprodução de Marx e a análise da nova fase
no desenvolvimento do capitalismo, o imperialismo. Segundo Tula, Luxemburgo argumenta
que o revisionismo regride ao socialismo pré-marxista: a luta pelo socialismo é uma luta ética,
devido às injustiças e por pura decisão revolucionária do proletariado; noção que retira a base
da necessidade histórica do socialismo. A autora indaga, se a superprodução é o resultado do
desequilíbrio contínuo entre os departamentos, para quem e para que se destina esta produção;
ou, de outra forma, se a sociedade capitalista é composta apenas por operários e capitalistas,
quem consumiria as mercadorias produzidas em excesso, isto é, quem realizaria a mais-valia?
113
Segundo Luxemburgo, a acumulação capitalista depende das camadas sociais e sociedades
não capitalistas; a parte da mais-valia que se destina à capitalização tem que ser consumida
“fora”. Em um cenário no qual o capitalismo já estaria em todo o mundo, o desenvolvimento
das forças produtivas seria impossível, a competição pela expansão mundial chegaria ao
paroxismo e levaria a “catástrofes econômicas e políticas, a guerras e revoluções.”
(LUXEMBURGO apud TULA apud GROSSMANN, 2004, p. xviii).
Do ponto de vista de Rosdolsky, Luxemburgo ataca os esquemas de reprodução de
Marx dizendo que, no exemplo 1, as “proporções são arbitrárias no departamento II”; que a
acumulação em II é errática e por saltos, além de incluir “mudanças arbitrárias na mais-valia”.
Afirma ainda que a acumulação de II é dependente de I, que este “inicia e participa
ativamente e II passivamente” (ROSDOLSKY, 2001, p. 373). Por outro lado, afirma que
Luxemburgo tinha razão ao dizer que as relações fundamentais do esquema de Marx seriam
rompidas caso se considerasse o avanço tecnológico, mas que não se pode deduzir que a
acumulação é impossível, pois “qualquer revolução nas forças produtivas, em escala social,
deve pôr fim ao estado de equilíbrio entre os setores produtivos, levando, através de todo tipo
de perturbações e de crises, ao estabelecimento de um novo equilíbrio temporário.”
(ROSDOLSKY, 2001, p. 411). Considera que ela não viu a diferença entre analisar o capital
global e o individual, entre o capitalismo em geral e em sua realidade, e nem compreendeu o
papel da abstração de uma sociedade puramente capitalista ao afirmar que esta não serve para
analisar a realidade da sociedade capitalista em seu conjunto; ou seja, não compreendeu que
isso foi um princípio heurístico de Marx.
Entretanto, Calleja, em sua análise dos esquemas de reprodução em Marx, destaca
que a principal divergência da tese de subconsumo de Rosa Luxemburgo é que o capitalismo
necessita de um 'terceiro' mercado não-capitalista para evitar seu colapso por insuficiência de
demanda consumo, um problema que se apresentaria ao esquema de reprodução caso
incorporasse as mudanças tecnológicas que economizam trabalho. Esta questão esgrimida
pela crítica de Luxemburgo propiciou o debate com Otto Bauer sobre a viabilidade da
reprodução do capital nesse contexto (CALLEJA, 2010, p. 3).
De acordo com Tula, Rosdolsky e Calleja, Otto Bauer reconstrói o esquema de
reprodução de Marx incorporando as críticas de Luxemburgo para refutá-las e demonstrar a
possibilidade de acumulação sem necessidade de recorrer ao mercado externo. Usa o esquema
para argumentar que a reprodução do capitalismo pode ser indefinida, que os fatores
114
perturbadores são apenas externos, a crise é uma desproporção temporária entre o crescimento
populacional e a acumulação, e apenas a ação consciente do proletariado derrubará o capital,
pois a acumulação tende a se adequar ao crescimento da população (TULA apud
GROSSMANN, 2004, p. xix). Porém, neste, foi necessário abandonar a ideia de que apenas
IIc se trocava por I(v+m), e seu modelo implicava que o departamento II “permanece sempre
com um resíduo de mercadorias invendáveis” e investe uma soma equivalente a esse valor em
I, “para que este último departamento amplie sua produção diminuindo no ano seguinte o
resíduo real de mercadorias do departamento II.” (ROSDOLSKY, 2001, p. 413).
Segundo Rosdolsky, essa consideração de Otto Bauer deve ser excluída porque,
como afirmou o mesmo Marx, uma transferência de valor de um departamento ao outro, teria
sua contraparte na troca do valor, que deveria ser então deduzida de ambos lados
(ROSDOLSKY, 2001, p. 414) e que mesmo admitindo taxas de acumulação mais realistas
(menos díspares) entre os dois departamentos, o departamento I cresceria mais rapidamente
que o II.(ROSDOLSKY, 2001, p. 417). No entanto, Grossmann demonstrou em seu livro La
ley de la acumulación y del derrumbe del sistema capitalista: una teoría de la crisis (A lei da
acumulação e do colapso do sistema capitalista: uma teoria da crise, 1979) que, partindo do
esquema de Bauer, a viabilidade do sistema capitalista não está garantida devido ao efeito a
largo prazo da mudança tecnológica sobre a taxa de lucro, cuja trajetória descendente leva
inevitavelmente ao colapso, “ainda que por uma causa muito diferente (superacumulação) que
a postulada por Luxemburgo (subconsumo).” (CALLEJA, 2010, p. 3).
Tanto Tula quanto Rosdolsky apoiam-se em uma carta escrita por Lênin aos
editores do periódico russo Sozialdemocrat em 1913 em sua análise da posição deste em torno
do livro de Luxemburgo. Sustentam que Lênin critica a obra de Luxemburgo com base nos
mesmos argumentos que havia usado há anos contra os narodniki na Rússia, que também
afirmavam que o mercado interno não era capaz de realizar a mais-valia produzida. Os
autores, com base nos trabalhos de Lênin que correspondem ao conteúdo da polêmica travada
com os narodniki, asseveram que para ele o mercado externo não resolve o problema, apenas
o posterga, tornando-se um problema maior e que é preciso encontrar “um equivalente para a
parte do produto a colocar” no mercado externo. Além disso, que as dificuldades de realização
se apresentam para todo o produto e “não apenas a realizar a mais-valia, mas também ao
realizar o capital e variável e o constante; não apenas na realização do produto em artigos de
consumo, mas também em meios de produção” (LÊNIN apud GROSSMANN, 1979, p. xx,
115
tradução nossa). Em seu artigo Acerca de la clamada cuestión de los mercados (Acerca da
chamada questão dos mercados, 1893), Lênin já havia constatado que no capitalismo o
departamento I cresce mais rápido que o departamento II e que inclusive parte da missão
histórica desse sistema econômico é justamente essa: desenvolver ao máximo as forças
produtivas e excluir seu uso pela massa da população (p. xxi). Constata que os esquemas de
reprodução do Livro II deixam de fora o crescimento da composição orgânica do capital e que
para entender a análise de Marx é necessário vincular aos estudos do Livro III (TULA apud
GROSSMAN, 2001, p. xx-xxi).
Segundo Rosdolsky, Karl Kautsky rebatia a ideia de Luxemburgo que o
capitalismo ruiria por razões econômicas (2001, p. 375). Tula entretanto complementa
afirmando que Kautsky também refutava a posição de Tugan-Baranovski, sob argumento de
que o subconsumo é o “fundamento último” das crises no capitalismo, mas não sua causa; que
o problema não é a anarquia da produção, mas a acumulação de trabalho não-pago; e que a
contradição não é apenas entre produção e consumo, mas é interna à própria produção.
Segundo Kautsky, sempre houve subconsumo, mesmo antes do capitalismo, mas o
proletariado é a classe cuja condição social tem como resultado o subconsumo. Não obstante,
25 anos depois – indica o autor – Kautsky aceita completamente os esquemas de Tugan-
Baranovski “sem alteração alguma” (TULA apud GROSSMAN, 2001, p. xxiii, tradução
nossa).
Bukharin participa do debate apenas em 1924, como indica Tula, com os textos
que compuseram a obra Imperialismo y la acumulación de capital (Imperialismo e
acumulação de capital), concorda com Luxemburgo sobre a relação entre capitalistas e não
capitalistas e defende o colapso, porém não devido ao problema de realização, mas por
contradições internas do capitalismo. Afirma que o aumento no consumo dos trabalhadores,
ainda que em menor proporção que de bens de produção, seria suficiente para realizar a mais-
valia produzida, a queda do capitalismo seria consequência da guerra, um fator fora da
economia. Grossmann afirma que, para Bukharin, “o colapso é a manifestação de uma causa
que atua no interior da economia, porém que a transcende, para Marx é o contrário, o colapso
é um resultado imanente do mecanismo capitalista e das leis econômicas que lhe são
próprias.” (TULA apud GROSSMANN, 2001, p. xxiv, tradução nossa).
116
2.4 A teoria de Grossmann: a Lei da Acumulação e do Colapso do Capitalismo

Grossmann apresenta sua obra como uma tentativa de trazer à luz parte da teoria
marxista, pouco compreendida durante a vida de Marx e depois deste, e dar continuidade ao
estudo das crises; além disso, contribuir com a compreensão do capitalismo como sistema
transitório e histórico, o que pode ser demonstrado cientificamente. Ele se apoia no debate
acerca da teoria do colapso, muito presente na passagem do século XIX ao XX, para levar
adiante esta comprovação. Inicialmente apresenta uma citação de Tugan-Baranovski onde este
afirma que há que demonstrar a impossibilidade econômica do capitalismo para que seja
“demonstrada também a necessidade da transformação do capitalismo em seu contrário, e o
socialismo haverá passado felizmente do reino da utopia ao da ciência” (Tugan-Baranovski
apud GROSSMANN, 2004, p. 43); o autor afirma que “[…] Marx efetivamente ofereceu
todos os elementos necessários para esta demonstração.” (GROSSMANN, 2004, p. 43).
A crise não era o objeto de estudo de Marx, em sua obra há referências ao colapso
e não à teoria do colapso, da mesma forma que não escreveu uma teoria do valor ou dos
salários, mas desenvolveu a Lei do Valor e a Lei dos Salários. Grossmann afirma que o objeto
de estudo de Marx era a reprodução de capital; ele examina os circuitos de conversão do
capital dinheiro, do capital produtivo e do capital mercadoria em escala cada vez maior e
identifica possíveis fatores que geram obstáculos ou perturbações, voltando constantemente à
questão da crise para investigar isoladamente a influência de cada fator (GROSSMANN,
2004, p. 93). Parte importante da obra de Grossmann foi, portanto, resgatar e explicar o
método de Marx, debruçando-se detidamente sobre os esquemas de reprodução apresentados
no Livro II, pois para ele os economistas tiveram dificuldade em compreender a obra de Marx
por não compreender seu método:

A teoria marxiana da acumulação que foi exposta nos conduz não apenas a uma
teoria do colapso, mas simultaneamente também a uma teoria das crises. A
incapacidade da literatura marxista precedente para compreender a essência desta
teoria, tem sua origem tanto no que se refere a esta questão como às demais, no
desconhecimento do método que é o fundamento da análise marxiana e da
construção de sua obra principal.” (GROSSMANN, 2004, p. 92, tradução nossa).

Segundo Tula, as conquistas metodológicas de Grossmann em relação à obra de


Marx foram, em primeiro lugar, ter exposto a importância da diferenciação entre essência e
117
fenômeno, o que traz consigo “não tomar em consideração os fatos tal como são, mas
entendê-los em função daquilo que os funda”; nesse sentido, “para Marx a teoria do valor é a
ciência da economia política” e não apenas uma “primeira hipótese simplificante”. Em
segundo, o procedimento de aproximação, que implica abstrair diversos aspectos da realidade
para colocar ao descoberto a conexão interna do sistema e que tem “expressão exemplar na
'construção do esquema marxiano de reprodução'”; assim, é possível compreender o
movimento concreto, mesmo depois que as abstrações voltem a ser incluídas na análise. Em
consequência, Grossmann compreendeu a importância da categoria de “capital em geral” em
oposição à ideia de “múltiplos capitais”, pôde desconstruir a tese de “Böhm-Bawerk sobre a
contradição entre os Livros I e III de O Capital” e demonstrar “o vínculo interno que une a
crítica de Marx à economia política com a Lógica de Hegel”, a dialética em sua forma
materialista. Principalmente, identificou o papel central da categoria valor na teoria de Marx,
“que contém in nuce todo o mistério do desenvolvimento capitalista e de seu inevitável fim.”
(TULA apud GROSSMANN, 2004, p. xxxii-xxxiv).
O modelo adota diversos pressupostos, entre eles o de preços constantes que,
sendo na circulação o caso mais simples, constitui “[…] um sistema de coordenadas
econômicas, um sólido ponto de referência a partir do qual podem medir-se com exatidão
todas as variações quantitativas que sofre o lucro no transcurso do processo de produção e
acumulação.” (Grossmann, 2004, p. 56-57, ênfase do autor, tradução nossa); neste caso,
também o valor do ouro e do dinheiro é considerado constante (Grossmann, 2004, p. 60,
tradução nossa). Como consequência dos dois primeiros, decorre como suposto que os preços
correspondem aos valores, “[…] em cujo caso a massa global de valor, socialmente
considerada, permanece inalterada, pois aumentos de preços de um lado da sociedade
correspondem à queda dos preços de outro lado” (Grossmann, 2004, p. 62, tradução nossa).
Como consequência deste, “o pressuposto de um estado de equilíbrio entre a demanda e a
oferta, tanto no mercado de mercadorias como no da força de trabalho” (ênfase do autor, p.
62, tradução nossa), pois o pressuposto simplificador do equilíbrio, serve como sistema de
coordenadas, para identificar com exatidão toda variação que se produz na análise
(Grossmann, 2004, p. 63). O mesmo se aplica à competição, que ao estudá-la dentro deste
equilíbrio hipotético permite entender que, contraditoriamente, “a distribuição do produto
social de valor e da regulação dos preços de produção se efetuam sobre uma base capitalista,
mas com eliminação da concorrência” (Grossmann, 2004, p. 67, ênfase do autor, tradução
118
nossa). Por último, devido à conclusão a priori e incorreta de Bauer de que “a acumulação
encontra limites objetivos na magnitude da população” (Grossmann, 2004, p. 40) e apenas
nela, o modelo considera o crescimento da massa de mais-valia correspondente ao
crescimento da população. Só abstraindo de todos estes outros fatores que podem causar
perturbações, e consequentemente crises conjunturais, é possível demonstrar que o colapso
não é apenas possível, mas inevitável como parte do capitalismo (Grossmann, 2004, p. 65,
ênfase do autor, tradução nossa). Como resume o autor: “[…] se se deixa de lado em primeira
instância as perturbações conjunturais, isso implica que se está adotando como ponto de
partida da análise o caso mais favorável que possa se imaginar da produção capitalista, ou
seja, que a acumulação se produz sobre a base de um equilíbrio dinâmico, […].” (Grossmann,
2004, p. 70, ênfase do autor, tradução nossa).
Bauer, ao incorporar as críticas feitas aos esquemas de reprodução do Livro II de
O Capital, tanto as exigências formais como as falhas apontadas por Luxemburgo, pretendeu
comprovar com esse modelo que só ocorrem crises na reprodução em escala ampliada quando
não são mantidas proporções entre a população e a acumulação. Grossmann explica que adota
o mesmo modelo pois este (1) “Considera […] o desenvolvimento das forças produtivas, e
mostra uma composição orgânica constantemente crescente do capital”; (2) a acumulação em
ambos departamentos não segue uma lógica arbitrária, mas responde a regras fixas; 3) o
consumo dos capitalistas aumenta, porém também a massa de mais-valia, o que lhes permite
destinar uma parte crescente à acumulação; (4) estabelece-se a proporcionalidade entre a
acumulação realizada por ambos setores do esquema, “[…] todos os anos a mesma
porcentagem de mais-valia nos dois setores”; e, por último, 5) […] a taxa de lucro
efetivamente cai, em consonância com a Lei de Marx da queda tendencial da taxa de lucro
(Grossmann, 2004, p. 70, ênfase do autor, tradução nossa).
No entanto, após justificar sua escolha, o autor diferencia-se das posições de
Bauer e sobre a conclusão deste agrega que: “De fato, a teoria harmonicista da população
sobre a que repousa o esquema de Bauer do processo de acumulação, […] é absolutamente
irreconciliável com os conceitos fundamentais do marxismo.” e que por isso a crítica de
Luxemburgo à mesma é “plenamente justificada” (Grossmann, 2004, p. 71, tradução nossa).
A descrição do processo feita por Grossmann, ainda que partindo do modelo
proposto por Bauer, é totalmente diferente. Ele demostrou que, mesmo se todas as condições
de proporcionalidade forem mantidas e a acumulação ocorrer dentro dos limites impostos pela
119
população, a preservação destes limites é objetivamente impossível; o sistema tem que
colapsar ou as condições especificadas para o sistema devem ser violadas. A partir de um
ponto definido no tempo, a reprodução ampliada não pode ser efetuada sob mesma taxa de
acumulação e exploração, há uma crescente escassez de mais-valia e, nas condições dadas,
uma superacumulação contínua. Portanto, desenvolve-se o exército industrial de reserva e os
salários devem sofrer cortes continuamente e periodicamente, de modo a elevar ainda mais a
taxa de mais-valia, não como um fenômeno puramente temporário que desaparece uma vez
que o equilíbrio seja restabelecido.
Grossmann inicia o capítulo Fundamentação lógica e matemática da tendência
ao colapso, explicando que sua base pode ser compreendida “com uma simples reflexão”
(GROSSMANN, 2004, p. 120, tradução nossa). Ainda que a massa de mais-valia cresça em
consonância com o crescimento da população, ela deve cobrir gastos que são maiores que esse
aumento, como “o incremento de salários av equivalente a 5% da quantidade da população
(ou seja, 5% de v) e os gastos em que deve incorrer além dos anteriores para o capital
constante adicional que cresce mais rapidamente do que aumenta a população” (10% de c).
Esse capital crescente entra em contradição com uma base da acumulação, a mais-valia, cada
vez relativamente mais estreita “até chegar a um ponto que fracassa como tal.”
(GROSSMANN, 2004, p. 120, tradução nossa).
Com base no esquema de Bauer, assume-se um mecanismo produtivo no qual o
capital constante é de 200.000 e o capital variável de 100.000. Os outros pressupostos são os
seguintes: 120.000 deste capital constante é aplicado no Departamento I (meios de produção)
e 80.000 no departamento II (meios de consumo); que o capital variável é dividido igualmente
entre ambos departamentos (50.000 cada); que o capital constante cresce anualmente 10% e o
capital variável 5%; que a taxa de mais-valia é de 100% e que, em qualquer ano dado, a taxa
de acumulação é igual nos dois departamentos. A massa de mais-valia consequentemente
aumentará 5% ao ano, a mesma taxa de crescimento da população economicamente ativa.
Utilizando ferramentas de cálculo atuais, reproduzimos o modelo de Grossmann e
encontramos o mesmo resultado: colapso no 35o ano. Não incorporamos as restrições em
relação à população por estar fora do escopo desta pesquisa, porém mantivemos os mesmos
parâmetros e variáveis citados acima12 para executar a reprodução em escala ampliada:

12
Para uma explicação de todo o modelo em abstrato, ver Apêndice I. Tivemos diferenças diminutas nas cifras
dos últimos anos devido ao arredondamento de resultados.
120
c = capital constante;
v = capital variável;
m = mais-valia
k = parte da mais-valia consumida individualmente pelos capitalistas;
ac = parte da mais-valia dedicada à ampliação do capital constante;
av = parte da mais-valia dedicada à ampliação do capital variável.
Partindo dos valores iniciais (TABELA 9, Ano 1), já nos primeiros anos pode-se
observar uma queda na taxa de lucro (coluna 9) e na porcentagem da mais-valia que não é
destinada à acumulação, ou seja, que é consumida improdutivamente pelos capitalistas
(coluna 8). Porém, Bauer, fixando-se no crescimento da massa de k (coluna 5), acreditava ter
chegado à prova necessária para afirmar o caráter eterno do capital como sistema de
reprodução social, e seu modelo foi assim considerado pela economia durante muitos anos.

Tabela 9: Modelo de Bauer


3. 4. 5. 6. Taxa de 7. Taxa de 8. Consumo 9.
1. 2.
Capital Capital Consumo acumulação - acumulação capitalista - Taxa de
Ano Depto.
constante variável capitalista capital - capital porcentagem da lucro
[c] [v] [k] constante [ac] variável [av] mais-valia [k/m] [m/(c+v)]
I 120.000 50.000 37.500 10.000 2.500 75%
1 II 80.000 50.000 37.500 10.000 2.500 75%
Total 20.000 100.000 75.00 20.000 5.000 75% 33,3%
I 134.667 53.667 39.739 11.244 2.683 74,05%
2 II 85.333 51.333 38.011 10.756 2.567 74,05%
Total 220.000 05.000 77.750 2.200 5.250 74,05% 32,3%
I 151.048 57.576 42.059 12.638 2.879 73,05%
3 II 90.952 52.674 38.478 11.562 2.634 73,05%
Total 242.000 110.250 80.538 24.200 5.512 73,05% 31,3%
I 169.336 61.742 44.457 14.198 3.087 72,00%
4 II 96.864 54.021 38.897 12.422 2.701 72,00%
Total 266.200 115.762 83.354 26.620 5.788 72,00% 30,3%
13
Fonte: Elaborada pelo autor com dados do modelo original

Grossmann demonstra que Bauer cometeu o erro de não levar seu esquema
adiante por mais que quatro anos, do contrário teria visto que, mesmo abstraindo perturbações

13
A partir do quarto ano, nosso modelo, rodado com o código descrito no ANEXO A, apresenta uma pequena
diferença com o original em relação aos valores do capital fixo devido a um equívoco de cálculo de Bauer, que
foi reproduzido por Grossmann, no qual a acumulação de 10% no capital fixo não é cumprida; em seu modelo,
ao final do ano quatro, o capital constante total é de 266.000, incoerente também com o pressuposto de equilíbrio
que o produto do ano deve consumir-se plenamente no ano seguinte. Para uma explicação resumida dessa
diferença, ver ANEXO B.
121
e considerando as críticas de Luxemburgo aos esquemas de Marx, o capitalismo tende ao
colapso; em seu próprio esquema, entraria em colapso no ano 35 (TABELA 10), pois a
reserva de valor excedente (k, coluna 5) é progressivamente esgotada e chegaria a valores
negativos – -9.951 no departamento I e -1.934 no departamento II – e o capital acumulado só
poderá ser valorizado a um ritmo cada vez mais desfavorável. Se não há acúmulo para o
consumo do capitalista, seu ser social é negado e o sistema perde sua lógica de ser. Depois de
certo tempo, as taxas pressupostas para capitalização implicarão somas superiores à massa
disponível da mais-valia, mesmo que teoricamente sejam apenas frações desta mais-valia.
Esta é a contradição: na taxa assumida hipoteticamente para a acumulação, ainda que muito
pequena, a massa de mais-valia já não é suficiente para mobilizar o volume de capital
acumulado no processo.

Tabela 10: Modelo de Grossmann


2. 3. 4. 5. 6. Taxa de 7. Taxa de 8. Consumo 9.
1.
Depto Capital Capital Consumo acumulação - acumulação - capitalista - Taxa de
Ano
constante variável capitalista capital capital porcentagem da lucro
[c] [v] [k] constante [ac] variável [av] mais-valia [k/m] [m/(c+v)]
I 120.000 50.000 37.500 10.000 2.500 75%
1 II 80.000 50.000 37.500 10.000 2.500 75%
Total 20.000 100.000 7.500 20.000 5.000 75% 33,3%
I 371.767 99.428 62.792 31.665 4.971 64,6%
10 II 146.982 63.461 40.078 20.210 3.173 64,6%
Total 518.748 162.889 102.870 51.875 8.144 64,6% 24,75%
I 1.101.087 189.481 83.920 96.087 9.474 46,59%
20 II 244.413 75.848 33.593 38.463 3.792 46,59%
Total 1.345.500 265.330 117.513 134.550 13.266 46,59% 17,12%
I 4.279.516 415.009 8.958 385.300 20.750 17,92%
30 II 365.515 85.310 1.841 79.203 4.265 17,92%
Total 4.645.031 500.319 10.800 464.503 25.016 17,92% 11,48%
I 4.740.786 439.851 -9.951 427.810 21.993 -2,26%
35 II 368.748 85.484 -1.934 83.144 4.274 -2,26%
Total 5.109.534 525.335 -11.885 510.953 26.267 -2,26% 9,32%
Fonte: Elaborada pelo autor com dados do modelo original14

Grossmann aponta esta contradição entre taxa e massa, como uma das causas

14
Ver nota anterior.
122
pelas quais os marxistas que o precederam não puderam compreender a teoria do colapso de
Marx: “Como poderia uma relação percentual, como a taxa de lucro, um número puro,
produzir o colapso de um sistema real?!” (GROSSMANN, 2004, p. 130, tradução nossa). A
taxa de lucro em si, no ano em que se produz o colapso, continua em 9,32% (Tabela 10);
inclusive no ano anterior (34) havia sido de 9,72% e foi possível a valorização do capital –
aparentemente, não há lógica. Porém, Grossmann apresenta de maneira simples a explicação:
“A massa de lucro cresce absolutamente e a mesma massa de lucro decresce em sentido
relativo. […] A queda relativa da mesma magnitude constitui a antítese do crescimento
absoluto. Isso só pode se referir então à massa de mais-valia. A taxa de lucro não decresce de
forma relativa, mas absoluta.” (GROSSMANN, 2004, p. 130, tradução nossa).
Independente dos valores utilizados no modelo matemático, ele descreve uma
tendência geral do processo de acumulação que aponta ao colapso do sistema (para a
formulação abstrata do modelo, ver Apêndice I). Para Grossmann, o modelo demonstra
também a importância do capital fixo e do desenvolvimento da produtividade do trabalho,
cujo incremento não é específico ao capitalismo, mas adquire neste preponderância como
relação expressa na categoria composição orgânica. A composição orgânica é a relação entre a
composição técnica do capital e sua composição valor, ou seja: “O aspecto característico e o
fato impulsor da produção capitalista, os meios de produção MP [matéria-prima] e FT [força
de trabalho] apresentam-se como partes integrantes do capital, como valores, e como tais
devem ser valorizados, isto é, produzir lucro”; o capitalismo tende ao colapso não “pelo fato
teórico da introdução da máquina, mas pela insuficiente valorização que se apresenta em uma
certa fase avançada da acumulação.” (GROSSMANN, 2004, p. 88).
Segundo este modelo, o número de anos (n) até a crise absoluta depende de quatro
condições: (1) o nível de composição orgânica do capital (Ω), pois à medida que cresce, a
crise é acelerada; (2) a taxa de acumulação do capital constante (ac), que influencia na mesma
direção que o nível da composição orgânica do capital; (3) a taxa de acumulação de capital
variável (av), cujo impacto é ambivalente; e (4) o nível da taxa de mais-valia (s), que tem um
impacto inversamente proporcional, isto é, quanto maior s, a tendência ao colapso tende a
frear-se.
O processo de acumulação pode ser mantido se alguns fatores ou pressupostos
forem alterados: (1) a taxa de acumulação do capital constante ac é reduzida, e o ritmo de
acumulação desacelera; (2) o capital constante é desvalorizado, o que novamente reduz a taxa
123
de acumulação de ac; (3) a força de trabalho é desvalorizada, portanto, corte de salários, de
modo que a taxa de acumulação de capital variável av é reduzida e a taxa de mais-valia s
reforçada; e (4) finalmente, o capital é exportado, de modo que novamente a taxa de
acumulação ac é reduzida. Estes quatro casos importantes nos permitem deduzir todas as
variáveis da realidade aplicadas como contratendência ao colapso, que conferem ao modo de
produção capitalista certa elasticidade; estudá-las permite entender, por exemplo, porque em
sua essência o capitalismo empurra os salários para abaixo do mínimo necessário à
reprodução da força de trabalho.
Deste modo, a teoria do colapso apresentada inicialmente por Grossmann tem
como objeto a acumulação do capital da perspectiva da crise e sua principal proposição pode
resumir-se a que “[…] se este processo pode se expandir sem obstáculos, ou seja, sem ver-se
afetado pelas tendências contrárias, atenuantes, deve conduzir necessariamente – a partir de
uma certa altura da acumulação de capital, em um nível que pode ser determinado exatamente
– ao colapso.” (GROSSMANN, 2004, p. 93, tradução nossa). O autor apresenta dois gráficos
para ilustrar essa concepção. Na Figura 1, considera-se que o eixo O-X representa uma
situação de equilíbrio do sistema e que a linha O-Z é a linha de acumulação equilibrada. Um
desvio desta linha de acumulação refletiria uma “insuficiente valorização que se apresenta a
uma certa altura do processo de acumulação”, por exemplo Z-S (Breakdown, ou colapso em
inglês), ou seja, a “tendência básica do sistema, sua secular 'linha tendencial'.”
(GROSSMANN, 2004, p. 94, tradução nossa).

Figura 1: Acumulação e colapso

Fonte: GROSSMANN, 2010.

Já na Figura 2, expressa-se a interferência de contratendências ao colapso nos


124
pontos x1, x2, etc. Suponhamos que irrompe a tendência ao colapso no ponto z1 (Figura 2),
evidenciando a desvalorização do capital (linha z1-o1) que se superacumula desde O. O capital
superacumulado chega a um ponto mínimo de valor o1, a partir do qual volta a reproduzir-se
sobre uma base ampliada, ajustando sua magnitude para retomar a valorização em equilíbrio
sem perturbações (r2), até que o capital acumulado novamente torne-se grande demais, a
massa de mais-valia e a valorização comecem a minguar até o ponto z2, onde a tendência ao
colapso manifesta-se uma vez mais (linha z2-o2).
Figura 2: Acumulação, colapso e contratendências

Fonte: GROSSMANN, 2010

As diversas contratendências que atuam sobre a acumulação impedem a expressão


plena da tendência ao colapso (linha Z-S na Figura 1), fazendo com que sua manifestação
concreta seja periódica em uma séria de ciclos que aparentam independentes (linha Z-z1-o1-z2-
o2, etc). Portanto, para Grossmann, as crises cíclicas ou periódicas do capital são,
fundamentalmente, a expressão momentânea de sua tendência ao colapso, um “desvio
passageiro da 'linha tendencial' seguida pelo capitalismo” (GROSSMANN, 2004, p. 95,
tradução nossa), cujo efeito é atenuado pelas contratendências sobre o processo de
acumulação. Porém, o mecanismo global de produção capitalista chegará a seu fim
inexoravelmente, pois

[…] com o crescimento absoluto da acumulação de capital, cada vez se torna


gradualmente mais difícil a valorização do capital gerado. Se estas tendências
contrárias chegarem a enfraquecer-se ou se paralisar […], então a tendência ao
colapso adquire predomínio e se impõe com sua validade absoluta como 'última
crise'.” (GROSSMANN, 2004, p. 95, tradução nossa).

Grossmann avalia em sua obra os motivos que levaram a Lei do colapso, como
125
expressão da principal contradição inerente ao sistema do capital, a permanecer relativamente
desconhecida dentro da ciência econômica, inclusive entre os marxistas. Um dos fatores que
influenciou os estudiosos nesse sentido foi a própria realidade concreta do continente europeu
quando Marx concluiu seu trabalho, pois foram necessárias duas gerações antes que o
capitalismo chegasse à sua fase imperialista, levasse essa contradição ao paroxismo da I
Guerra Mundial para chegar ao momento histórico quando o “socialismo começa a descender
das nebulosas regiões dos programas socialistas à realidade da práxis diária” interpelando,
portanto, a “reconstrução da doutrina marxiana do colapso.” (GROSSMANN, 2002, p. 129).
Segundo o autor, o próprio contexto europeu e principalmente alemão contribuía a eclipsar as
descobertas de Marx imediatamente depois da publicação do Livro I de O Capital – um
movimento operário imaturo, referências teóricas enraizadas no socialismo utópico e um
“período de pujante acumulação de capital (1890 até 1913)” (GROSSMANN, 2002, p. 128) –,
como evidenciaram os debates subsequentes sobre o imperialismo e o surgimento do
revisionismo, que, segundo Grossmann é como se o “medo da economia burguesa perante o
desenvolvimento do problema do colapso se trasladou de alguma maneira ao campo marxista”
(GROSSMANN, 2002, p. 128), em sua expressão reformista e revisionista, cujos porta-vozes
dedicavam-se a estudar o marxismo para argumentar a existência absoluta e eterna do capital.
Grossmann considera que não é “nenhuma casualidade” que esta comprovação
dos limites históricos do capitalismo tivesse permanecido encoberto na economia burguesa,
que há tempo vivia submersa em uma “pura apologética”, sem nunca considerar a
possibilidade de que este sistema de reprodução e exploração social pudesse ter um fim
(GROSSMANN, 2002, p. 128). Apesar da crítica ao trabalho de Grossmann efetuado de
forma superficial por Sweezy sobre as imperfeições do esquema de reprodução de Bauer,
como aponta Calleja (2010), segundo os economistas Orzech e Groll, Otto Bauer em sua obra
A acumulação de Capital teria antecipado em 26 anos o trabalho de Harrod-Domar,
normalmente situado na origem dos modelos macroeconômicos pós-keynesianos. Usando a
teoria do valor e o esquema de reprodução de Marx da reprodução ampliada como base para a
agregação, Bauer supostamente demonstrou que a igualdade nas taxas de acumulação entre
capital constante e variável “é necessária para o crescimento equilibrado”, indicando “as
características da teoria da Idade de Ouro [período entre o fim da segunda guerra em 1945 e o
colapso do sistema de Bretton Woods em 1971]" (1983, p.).
126
2.5 A concepção de crise nos Grundrisse

A concepção de Marx sobre a crise nos manuscritos econômicos de 1857-1858 ou


esboço da crítica da economia política – Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie –
diferencia-se singularmente de sua apresentação tanto em seus trabalhos anteriores como no
próprio O Capital, obra em que condensa seus estudos sobre o conceito do capital em geral. O
estudo e análise deste trabalho permite construir uma noção do significado lógico e histórico
desta categoria, enquanto desdobramento ontológico do metabolismo entre as partes orgânica
e inorgânica da natureza, cuja expressão sintética consiste, por um lado, no duplo estatuto da
humanidade como sujeito-objeto, ou animal político criado pela subjetivação da natureza; e,
por outro lado, na relação inversa, mediada pela segunda natureza, tecnológica e cultural,
criada pela objetivação humana em sua hominização da primeira natureza; que ora se
condensa em unidade, ora em conflito violento e transições históricas, consumando as
relações entre os homens e natureza, e dos primeiros entre si, mediados pela segunda natureza
(MARX, 2009, pp. 84 e 453-454).
Este pressuposto à noção de crise é, justamente, a diferença específica que permite
definir esta categoria teórica como potência imanente à substância da mercadoria, o trabalho
humano constrangido a uma dupla existência pelo sistema mercantil do capital, uma vez como
produto, valor de uso, e outra como dinheiro, valor de troca. Esta forma objetivada do
trabalho, a mercadoria, externaliza a contradição intrínseca à sua força produtiva, o trabalho
vivo, entre sua expressão determinada e sua expressão social ou entre sua expressão concreta
e sua expressão abstrata, que no limite conduz suas propriedades antitéticas ao paroxismo e à
crise, que reclama violentamente a unidade natural entre as formas de ser do trabalho social,
enquanto valor. Marx no curso de seus estudos sobre o conceito de capital em geral apresenta
esta concepção de crise como o desdobramento natural ante a ruptura da unidade e
autonomização destes aspectos fundamentais do trabalho vivo e sua objetivação no sistema do
capital.
Sua construção teórica na presente obra inicia justamente no debate sobre o
sistema do bônus-horário proposto por Darimon, um seguidor teórico de Proudhon. A
concepção de crise aparece enquanto potência resultante da contradição interna da força
127
produtiva do trabalho vivo, objetivado em mercadoria e dinheiro. Marx explica que Darimon
atribui ao privilégio do “ouro e da prata”, por ser “o único instrumento autêntico da circulação
e da troca, não apenas a crise atual, mas as crises periódicas do comércio”, e que este
diagnóstico requer “para controlar todos os inconvenientes das crises […] que o ouro e a prata
fossem mercadorias como as outras”, isto é, “que todas as mercadorias fossem instrumentos
de troca com o mesmo estatuto [...]” (p. 112). Segundo Marx, os economistas ingleses
também pensam solucionar o problema com uma distinção, argumentando que “nos
momentos de crises monetárias não é o ouro e a prata como moeda que é requerido”, mas
“capital”; porém, “se esquecem de adicionar: capital, mas capital sob a forma determinada de
ouro e prata”. Contudo, se “o capital é exportável sob qualquer forma, como explicar o efluxo
precisamente dessas mercadorias, quando a maioria das outras se deprecia devido à falta de
escoamento?” (p. 115).
O autor recorre a várias hipóteses em que um país possa necessitar exportar ouro
para cobrir um deficit, por má colheita, excesso de importação e a guerra, para em seguida
demonstrar que a “exportação de ouro não é a causa da crise de cereais, mas a crise de cereais
que é a causa da exportação de ouro”. Explica que poderia se afirmar que apenas em duas
direções o ouro e a prata interferem e agravam os sintomas de uma crise:

1) se a exportação de ouro é dificultada em virtude das condições da reserva


metálica às quais estão ligados os bancos; porquanto as medidas tomadas pelo banco
contra essa exportação de ouro repercutem negativamente sobre a circulação
doméstica; 2) se a exportação de ouro torna-se necessária porque as nações
estrangeiras só querem aceitar capital na forma de ouro e em nenhuma outra forma
(p. 120).

Entretanto, a Escócia, em que o dinheiro de papel é preferido ao metálico, todas as


crises sociais advindas da Inglaterra que viveu por imposição da lei de 1844, não registrou
nenhuma crise monetária propriamente dita, nenhuma “depreciação das notas”, nem queixas
para saber se o “quantum de moeda circulante” era suficiente ou não, etc (p. 124).
Os economistas que argumentam a não depreciabilidade nominal do dinheiro de
metal durante as crises, segundo Marx, não observam que ele se deprecia durante os
momentos de prosperidade econômica (p. 125). A ilusão dos partidários do bônus-horário de
que suprimir a “diferença nominal entre valor real e valor de mercado, entre valor de troca e
preço” faz o valor objetivado em determinado tempo de trabalho (ouro ou prata) expressar-se
128
no próprio tempo de trabalho e eliminar “a diferença e a contradição efetiva entre preço e
valor”, está implícita a noção de que a “simples introdução do bônus-horário elimina todas as
crises, todas as anomalias da produção burguesa. […] Cada mercadoria seria assim
transformada diretamente em dinheiro, e o ouro e a prata, por seu lado, seriam rebaixados à
posição de todas as outras mercadorias” (p. 131).
Nesta controvérsia, Marx desenvolve sua concepção da categoria crise indagando:
“a existência do dinheiro ao lado das mercadorias não envolve desde logo contradições que
estão dadas nessa própria relação?”. A resposta do autor é que a dupla existência da
mercadoria, como produto determinado, que “contém idealmente seu valor de troca e, depois,
como valor de troca manifesto (dinheiro), tem de continuar até a diferença, a antítese e a
contradição” (p. 143). A antinomia entre “sua natureza particular como produto e sua natureza
universal como valor de troca”, que “gerou a necessidade” de desdobrá-la em mercadoria e
dinheiro, contém ab ovo “a possibilidade de que essas duas formas de sua existência
separadas não sejam mutuamente convertíveis”. O dinheiro como “coisa exterior e ao lado da
mercadoria submete sua permutabilidade a condições externas”. Na troca, a mercadoria é
demandada por seu valor de uso, enquanto que o dinheiro por seu valor de troca, “como valor
de troca simbolizado”, estas circunstâncias “podem acarretar a inconvertibilidade” entre
ambos, pois “a permutabilidade existindo fora” destes, “torna-se algo distinto e estranhado”
com quem devem “se igualar”, logo pressupostos desiguais, dependentes de condições
externas e contingente (p. 144).
O valor de troca da mercadoria existindo duplamente, “como mercadoria
determinada e como dinheiro”, decompõe a troca “em dois atos mutuamente independentes”:
M-D (mercadoria em dinheiro) e D-M (dinheiro em mercadoria); ou seja, compra e venda.
Atos que adquirem formas de existência espacial e temporal separados e que podem se
corresponder ou não, coincidir ou não, ou entrar em relações recíprocas discrepantes. Atos
que buscam se equalizar em constante movimento de equiparação, que “só pode ser
plenamente atingida percorrendo as mais extremas dissonâncias”. A separação da compra e
venda revela uma “nova relação”, a troca separa-se dos produtores das mercadorias, dando
lugar a um segmento mercantil que se interpõe entre os produtores, os que compram para
vender e os que vendem para comprar (p. 145).
A duplicação da troca – a troca para o consumo e a troca pela troca – dá origem a
129
uma nova desproporção. O negociante, se diferencia pela compra e venda das mercadorias; o
consumidor repõe o valor de troca da mercadoria que compra. Na circulação, a troca inicial,
interna ao setor mercantil, e a final, entre o segmento mercantil e os consumidores, embora
reciprocamente condicionadas, “são determinadas por leis e motivos muito diferentes e
podem cair na maior das contradições uma com a outra”. Portanto, afirma Marx:

Nesta separação já reside a possibilidade de crises comerciais. Entretanto, como a


produção trabalha imediatamente para o comércio e só mediatamente para o
consumo, da mesma forma que tem de ser capturada por essa incongruência entre
comércio e troca para consumo, ela tem, por sua vez, de gerá-la (As relações entre
demanda e oferta tornam-se completamente invertidas.) (O negócio de dinheiro
separa-se, por sua vez, do comércio propriamente dito.) (p. 146).

O autor sustenta que em preços correntes “todos os valores são medidos em


dinheiro”, independente do caráter social das coisas em relação às pessoas; ao passo que, na
atividade do comércio sobre a “condição estranhada [Fremdartigkeit] [...] as relações globais
de produção e intercâmbio confronta-se ao indivíduo”, apesar disso, a todos parece que ela se
subordina a cada um. A “autonomização do mercado mundial” (incluída a atividade de cada
indivíduo singular) “cresce com o desenvolvimento das relações monetárias”. A “conexão
universal e a dependência generalizada na produção e no consumo crescem” par e passo à
“independência e a indiferença recíproca de produtores e consumidores; dado que essa
contradição conduz a crises etc.”, o estranhamento que se desenvolve neste processo busca-se
suprimir por intermédio de “listas de preços correntes, taxas de câmbio, conexão postal dos
comerciantes entre si, telégrafos etc. [...], em que cada indivíduo singular obtém informação
sobre a atividade de todos os outros e procura em seguida ajustar a sua própria”.(p. 163).
Como se observa desta primeira aplicação da concepção de crise por Marx, ela
aparece como demarcação do limite de cisão da unidade entre o sujeito trabalho e sua
objetivação, enquanto capital, mercadoria e dinheiro; pela relação capital, produção e
circulação ou consumo; e como relação capital, reprodução material, humana e social.
Portanto, constitui um momento crítico e autocrítico que perpassa a reflexão consciente
exprimindo-se em práticas que reafirmam, negam ou superam as múltiplas conexões, relações
e condições sociais e históricas da duplicação humana em sujeito e objeto, ou força produtiva
(força de trabalho e meios de produção).
Com base nesta concepção, Marx conclui sobre a proposição dos proudhonianos
130
acerca do bônus-horário, que é impossível se resolver as crises monetárias e comerciais que se
desenvolvem da contradição entre valor e preço, enquanto não forem transformadas as
relações de produção e sociais que estabelecem o valor de troca como a medida social de
valores. Marx expressou assim seu pensamento:

Portanto, querer transformar o trabalho do indivíduo singular imediatamente em


dinheiro (i.e., também seu produto), em valor de troca realizado, significa
determiná-lo imediatamente como trabalho universal, i.e., significa negar
precisamente as condições sob as quais tem de ser transformado em dinheiro e em
valores de troca, e nas quais depende da troca privada. Tal pretensão só pode ser
satisfeita sob condições em que não pode mais ser posta. Sobre a base dos valores de
troca, o trabalho pressupõe justamente que nem o trabalho do indivíduo singular
nem seu produto sejam imediatamente universais; que o produto só consiga essa
forma por uma mediação objetiva [gegenständlich], por um dinheiro distinto dele
(pp. 179-180).

O autor descreve o processo em que se desenvolve a crise explicando que os


economistas mostram a necessidade de diferenciar o dinheiro da mercadoria, ao mesmo tempo
sustentam que não existe nenhuma diferença entre ambos. Usam esta abstração para esconder
as contradições desagradáveis à apologética do senso comum burguês no desenvolvimento do
dinheiro. Contudo, se “compra e venda são dois momentos essenciais da circulação […]
mutuamente indiferentes e separados no espaço e no tempo, [...] não precisam de maneira
nenhuma coincidir”; a indiferença entre ambas pode consolidar-se e a “aparente autonomia de
uma em relação à outra”. Porém, como “momentos essenciais de um todo único”, chega o
momento em que a figura autônoma é violentamente rompida e a unidade interna é
restabelecida exteriormente por uma violenta explosão”. Portanto, o “dinheiro como
mediador” do desdobramento da troca em dois atos, já contém “o germe das crises, pelo
menos sua possibilidade, [...] ali onde estão presentes as condições fundamentais da
circulação, classicamente constituída, adequada a seu conceito” (p. 214).
Ao final de sua análise, Marx cita Steuart, sobre o papel do ouro e da prata como
“objeto do comércio”, “equivalente universal” e “medida de poder das distintas comunidades”
no sistema mercantilista, do qual conclui que “em períodos de crises gerais o ouro e a prata se
apresentam precisamente nessa determinação, tanto em 1857 como em 1600”, mesmo os
economistas considerando o sistema mercantilista ultrapassado; porque, segundo o autor,
“neste caráter, ouro e prata [desempenham] papel importante na criação do mercado mundial”
(p. 253).
131
Marx encerra sua formulação da primeira seção dos Grundrisse situando o
conjunto temático considerado até então – “valor de troca, dinheiro, preço”, em que as
mercadorias sempre aparecem como dadas – em relação à continuidade das seções e temas de
seu estudo. Explica que a determinação formal da troca simples exprime determinações da
produção social que são pressupostas, porém, é uma “superfície que aponta para além de si
mesma”, para “relações econômicas […] postas como relações de produção”. Com esta
explicação, passa a detalhar a continuidade do seu estudo, na qual apresenta uma ampliação
em sua concepção da crise:

[…] a produção é posta como totalidade, assim como cada um de seus momentos;
que todas as contradições simultaneamente entram em processo. O mercado
mundial, portanto, constitui ao mesmo tempo o pressuposto e o portador da
totalidade. As crises são, nesse caso, a indicação universal para além do pressuposto
e o impulso para a adoção de uma nova configuração histórica (p. 254).

Vimos que o autor amplia sua concepção de crise para uma categoria que exprime,
mais do que o momento e processo de reestabelecimento violento da unidade interna de um
todo social, “uma indicação universal”, o que significa demarcar um processo social que
transcende o modo de produção capitalista e seu sistema, o mercado mundial, como totalidade
determinada dentro da história universal. Além disso, exprime também o impulso à adoção de
uma nova configuração histórica, o que significa movimento de força, força motriz
transformadora, reconfiguradora da história; portanto categoria que indica o sentido ou
direção da história e ao mesmo tempo força que impele a atividade transformadora e de nova
configuração social; logo, uma categoria que expressa a transição histórica das forças
produtivas e da sociedade humana. Esta é uma dedução direta da seguinte passagem: “As
crises. Dissolução do modo de produção e da forma de sociedade fundados sobre o valor de
troca. O pôr real do trabalho individual como trabalho social, e vice-versa.” (p. 325).
A concepção da categoria crise neste estudo de Marx, apresenta-se também nos
limites que o capital tem que superar ou contornar na objetivação do trabalho e sua realização
enquanto valor e mais-valia no processo de valorização, ou seja, na produção e na circulação.
O autor explica que a relação entre capital e trabalho assemelha-se a relação entre dinheiro e
mercadoria. O capital, em sua “aspiração incansável pela forma universal da riqueza […]
impele o trabalho para além dos limites de sua necessidade natural”, desenvolvendo sua
“universalidade na produção e consumo”. Isto decorre porque “uma necessidade
132
historicamente produzida tomou o lugar da necessidade natural” e por isso o “capital é
produtivo”; ou seja, é uma “relação essencial para o desenvolvimento das forças produtivas
sociais. Só deixa de sê-lo quando o desenvolvimento dessas próprias forças produtivas
encontra um limite no próprio capital” (p. 405).
Porém, o capital, “como representante da forma universal da riqueza – do dinheiro
–, é o impulso ilimitado e desmedido de transpor seus próprios limites”, Marx descreve este
processo da seguinte forma:

Cada limite é e tem de ser obstáculo para ele. Caso contrário, deixaria de ser capital
– o dinheiro que se produz a si mesmo. Tão logo deixasse de sentir um determinado
limite como obstáculo, mas se sentisse à vontade nele como limite, o próprio capital
teria degenerado de valor de troca a valor de uso, da forma universal da riqueza a
uma existência substancial determinada dela. O capital enquanto tal cria um mais-
valia determinado porque não pode pôr de uma vez um mais-valia ilimitado; ele é o
movimento contínuo de criar mais mais-valia. O limite quantitativo do mais-valia
aparece para o capital somente como barreira natural, como necessidade que ele
procura incessantemente dominar e transpor (pp. 417-418).

Nestas condições, o capital se confronta com dois níveis de limites em seu


processo de valorização, que configuram momentos de desvalorização. Em primeiro lugar, os
internos à produção de mais-valia em novo produto, limites físicos, biológicos e sociais como
jornada de trabalho, salário e a resistência dos trabalhadores, entre outros, cujos limites
naturais são transpostos “[...] em um dado nível do desenvolvimento das forças produtivas”
(p. 509). Em segundo lugar, os limites externos que enfrenta como mercadoria ao ingressar na
esfera da circulação: a) o consumo devido a sua qualidade como valor de uso e a quantidade
de consumidores que necessitam deste valor de uso determinado; b) equivalente de troca
existente, à medida que é um valor novo, excedente e exige uma quantidade excedente de
valor equivalente para realizá-lo; c) o dinheiro, cujas peculiaridades relativas à quantidade de
meios circulantes e à variedade de meios de pagamento, que decorrem da concentração,
entesouramento e crédito, podem acarretar desvalorização do capital-mercadoria.
Sobre os limites e barreiras ou obstáculos, o autor enuncia uma certa hierarquia
entre os mesmos e os meios com que o capital tenta superá-los, como observa-se no emprego
estratégico da tecnologia para contornar os limites na produção de mais-valia, as contradições
entre o capital e o trabalho vivo, ou força de trabalho, e o processo que desencadeia na
superação dos limites na circulação através da expansão e ampliação quantitativa do consumo
existente, da criação de novas necessidades e expansão da produção. Contudo, como afirmou
133
Marx:

Essas são as contradições tais como se apresentam por si mesmas a uma simples
interpretação objetiva e imparcial. Um problema aparte é o de como, na produção
fundada no capital, são continuamente eliminadas estas contradições, mas também
constantemente são reproduzidas, e como são eliminadas apenas de forma brutal
(embora essa eliminação apareça meramente como um ajuste tranquilo). O
importante é, por enquanto, comprovar a existência dessas contradições. Todas as
contradições da circulação revivem sob nova forma (MARX, 2009, v. 1, pp. 357-
358).

Neste sentido, desenvolver uma concepção de crise em Marx a partir das


contradições que se apresentam como limites ou barreiras ao capital exige reconhecer, além
de seus limites internos ao próprio sistema do capital, a existência de limites externos ao
mesmo, tais como aqueles que se opõe à sua tendência intrínseca a criar o mercado mundial,
isto é, os modos de produção anteriores. Este processo decorre da fase de expansão da
acumulação ampliada, desenvolvendo as forças produtivas sociais e constituindo um modo de
produção e circulação universais, ou como a descreveu Marx, o capital

[…] por outro lado, cria um sistema da exploração geral das propriedades naturais e
humanas, um sistema da utilidade geral; como suporte desse sistema, apresentam-se
tanto a própria ciência como todas as propriedades físicas e espirituais, ao passo que
fora dessa esfera da produção e troca sociais nada se apresenta como superior-geral,
como justificado-em-si (p. 362).

Deste processo, o autor derivou a concepção da “influência civilizatória do


capital” (Idem), uma vez que, diante dos modos de produção anteriores, o sistema do trabalho
assalariado permite ao trabalhador participar mesmo que limitadamente da riqueza social
objetivada.
Marx denominou de “verdadeiras crises modernas” as crises de superprodução
decorrentes das “barreiras ao consumo e as que se opõem a circulação, apresentando
contravalores em todos os pontos” (p. 363). As crises, como fenômeno imanente ao processo
de acumulação do capital, segundo o autor, não eram devidamente compreendidas por
Ricardo nem por Sismondi. O primeiro absolutizava a essência positiva e tendência à
universalização do desenvolvimento das forças produtivas e o crescimento da população
industrial – da oferta fazendo caso omisso da demanda –; enquanto o segundo só via a
unilateralidade negativa das limitações particulares do processo de produção capitalista à sua
época. Ricardo não conseguia compreender o desequilíbrio estrutural do sistema e sua
134
tendência a negar-se a si próprio, ao encarar “todos os limites como barreiras” à sua
autovalorização e autorreprodução ampliada. Não chegava às últimas consequências em sua
teoria do “valor-trabalho”, ao negar a “mais-valia” como fundamento do lucro através da sua
“falsa e unilateral teoria da renda da terra” e “do mercado mundial” (p. 268); daí sua
tendência a definir as crises como distúrbios sempre superáveis, ad infinitum. Já Sismondi,
pelo contrário, não apenas enfatizava o embate com as barreiras, mas também “a criação das
mesmas pelo próprio capital”; o que leva o sistema a contradições que necessariamente o
conduzem ao “downbreak dele mesmo”. Daí a proposição de Sismondi de impor “travas à
produção, a partir de fora através dos costumes, a lei, etc”. E justamente, por “tratarem-se de
barreiras puramente exteriores e artificiais, o capital as leva abaixo de maneira inevitável”
(pp. 362-363).
A interpretação da teoria da crise tem por fundamento principal o sistema de
contradições definidas como barreiras e limites, que são continuamente sobrepostas ao fim e
ao cabo do processo de valorização e também continuamente repostas ao reiniciar cada
processo de autovalorização e autoexpansão do capital, portanto, o ciclo de autorreprodução
ampliada do capital. Marx apresentou estes limites da seguinte ordem:

1) o trabalho necessário como limite do valor de troca da capacidade viva de


trabalho, ou do salário da população industrial; 2) o mais-valia como limite do
tempo de trabalho excedente e, em relação ao tempo relativo de trabalho excedente,
como barreira ao desenvolvimento das forças produtivas; 3) o que é a mesma coisa,
a transformação em dinheiro, o valor de troca em geral, como limite da produção; o
intercâmbio fundado sobre o valor, ou o valor baseado no intercâmbio, como limite
da produção. Isto é: 4) de novo o mesmo, como limitação da produção de valores de
uso pelo valor de troca; e que a riqueza real tem que adotar uma forma determinada,
diferente de si mesma e portanto não absolutamente idêntica a ela, para transformar-
se, em geral, em objeto da produção (pp. 318-319).

Entretanto, as barreiras e limites assinalados pelo autor se fundamentam nos dois


métodos de produção de mais-valia e expansão do modo de produção pela circulação: o
método de produção da mais-valia absoluta que expande o capital de forma extensiva; e o
método de produção da mais-valia relativa que expande o capital de forma intensiva. No
primeiro caso, as barreiras e limites são resultantes dos modos de produção anteriores que
emperram temporariamente a expansão do capital e do mercado mundial, seja por problemas
econômicos sociais (infraestrutura, protecionismo, limitação técnica, revoltas, etc.); seja por
causas naturais (esgotamento de matéria-prima, secas, enchentes, etc.), apresentando-se como
135
desequilíbrio entre oferta e demanda. No segundo caso, as barreiras e limites são resultantes
do próprio capital, tais como, reivindicações salariais, concorrência, monopólio, que alteram a
composição do capital, isto é sua relação estrutural, que implicam a queda da taxa de lucro, ou
redução na taxa de acumulação; apresentando-se ao término do ciclo de produção e
reprodução, como crise setorial ou geral da economia nacional, continental ou mundial.
O autor em sua construção teórica estabeleceu a seguinte concepção sobre as
crises de superprodução:

[…] em uma crise geral da superprodução, a contradição não se dá entre os


diferentes tipos do capital produtivo, mas entre o capital industrial e o de
empréstimo – entre o capital tal como aparece diretamente envolvido no processo de
produção e o capital que, como dinheiro, aparece (relativamente) autônomo e
exterior àquele processo. Finalmente: produção proporcional […] é igualmente sua
tendência necessária ultrapassar a proporção – posto que ele persegue de maneira
desmedida o trabalho excedente, a produtividade excedente, o consumo excedente,
etc (pp. 365-66).

Mas a crise teorizada nos Grundrisse também vai mais além da transcendência da
crise geral para uma crise de transição ou revolucionária através da luta pela hegemonia da
sociedade e da luta pelo poder; existe também a possibilidade da crise se tornar uma crise
terminal do modo de produção sem se produzir uma nova sociedade e modo de produção,
conduzindo, pelo contrário, ao profundo retrocesso da humanidade, em que as classes sociais
perecem em luta, um retorno à barbárie social. E este processo se apresenta justamente pela
alta capacidade produtiva da sociedade capitalista, onde prevalece a tendência absoluta da
substituição do homem pela máquina, como se depreende do significado do capital fixo
teorizado por Marx no Caderno VII deste estudo. Neste caderno, a distribuição do tempo total
disponível pela sociedade entre tempo necessário – para produção dos meios necessários à
subsistência – e tempo livre – para estudo, cultura e lazer – tende a subverter a lei do valor
com base no tempo de trabalho necessário, pois, à medida que se desenvolve o capital fixo, o
tempo necessário à produção diminui e o tempo livre cresce, tornando-se este último o
conteúdo da riqueza e não mais o trabalho objetivado. Neste momento e estágio da sociedade,
é impossível mensurar pela medida de tempo de trabalho necessário a importância e o valor
da ciência e da educação, do intelecto geral ou conhecimento social geral, em síntese do
trabalho intelectual objetivado, desdobrando-se uma crise de todos os valores da sociedade –
uma crise de paradigmas para a humanidade e impasse geral (MARX, 2009, v. 2, pp. 227-
241).
136
2.6 A teoria da crise na literatura marxista atual

A crise do capital, na passagem do século XX ao século XXI, voltou a constituir


um tema de grande concentração de trabalhos científicos nas ciências sociais em
universidades, centros e grupos de pesquisas em todo o mundo; ela também figura em artigos
jornalísticos e até em cenários de roteiros cinematográficos em Hollywood. Este fato deu
lugar a um grande fluxo de publicações científicas (teses, dissertações, ensaios e artigos) e
não científicas (opiniões, especulações e impressões empíricas) em livros, periódicos, meios
de comunicação de massa e interativos (internet) e outros, tornando-se difícil a compreensão
do fenômeno. Ao lado de superstars e nobéis do mundo acadêmico, que analisam as crises
nos centros do capitalismo avançado, Estados Unidos, Europa e Japão; entre estes Krugman
(2009), Stiglitz (2002), Schiller (2003, 2005 e 2008), surgiram obras apologéticas como Sachs
(2005), Greenspan (2008), Rifkin (2012), inclusive Piketty (2014), formando uma constelação
de opiniões teóricas clássicas e econômicas vulgares que revelam o estado decadente da arte,
porém cumprem a tarefa medíocre de impedir o protagonismo crítico da literatura marxista
contemporânea, apesar de terem função auxiliar à ciência oficial, que voltou a investigar o
tema, resgatando as obras clássicas de Marx, especialmente os Grundrisse, como é possível
observar em Kurz (2004), Negri e Hardt (2003), Mészáros (2006), Arrighi (2008), Harvey
(2011), Vercellone (2012), Boutang (2011) Gorz, (1993), Lazzarato (2001); expressando
correntes de pensamento no marxismo acadêmico.
No estudo precedente, a dissertação de mestrado, A Crise do Capital em Marx e
suas Implicações nos Paradigmas da Educação – Contribuição ao Repensar Pedagógico no
Século XXI (2011), parte da pesquisa foi dedicada a revisão bibliográfica da literatura oficial e
marxista contemporânea, o trabalho atual restringe esta revisão aos autores marxistas
contemporâneas focados na temática da teoria do valor que é o centro da concepção de crise
em Marx nos Grundrisse. A apresentação dos autores atende ao seguinte critério: aqueles que
abordam a crise do capitalismo, desconsiderando a concepção de Marx sobre a crise nos
Grundrisse, particularmente a crise de mensuração do valor, ou da categoria do tempo
socialmente necessário; aqueles que consideram esta categoria relevante, porém não atribuem
papel determinante a ela na explicação deste fenômeno na realidade atual; e aqueles que
consideram que esta formulação de Marx explica as crises atuais. Não está no escopo da
137
presente investigação o exame da literatura econômica oficial de per si, porém será inevitável
o tratamento pontual da mesma.

2.6.1 Harvey e O enigma do capital

David Harvey, em sua obra O Enigma do Capital: e as crises do capitalismo


(2011) aborda a crise de 2008/2009. Parte da aparência da crise para explicar aspectos da sua
origem, desenvolvimento e consequências, posto que a “confusão atual” sobre estes poderia
sinalizar o fim do modelo de desenvolvimento econômico do neoliberalismo, que o autor
define como “um projeto de classe que surgiu na crise dos anos 1970” (p. 16). Porém adverte
que “[...] o caminho a ser escolhido hoje definirá o caráter da próxima evolução do
capitalismo” (Idem). Portanto, trata-se de um momento onde o capital reconfigura-se e busca
novas alternativas de desenvolvimento, logo, a crise atual pode ser vista como uma
oportunidade para mudança social (p. 37).
Argumenta que o desenvolvimento do capitalismo nos EUA, durante o período
keynesiano, foi marcado por aumentos salariais e pelos compromissos sociais do Estado e
suas políticas de bem-estar social, um período governado pela demanda efetiva. O trabalho,
em consequência, tornou-se um obstáculo à acumulação de capital, conduzindo a
reconfiguração neoliberal na década de 1970. Neste novo período, cresceu o investimento em
novas tecnologias, a produção abre-se à globalização – importa-se força de trabalho, matérias-
primas mais abundantes e bens de produção mais baratos para reduzir os custos de produção e
de circulação até os novos mercados de consumo –, aumentando o desemprego e a
fragilização da força do trabalho organizada, conduzindo ao desmantelamento do Estado de
bem-estar social. A criação de um sistema financeiro internacional e sua desregulamentação
preenchem a “lacuna entre o que o trabalho estava ganhando e o que ele poderia gastar” (p.
22). Observa que: “Cada vez menos capital excedente tem sido absorvido na produção […]
porque as margens de lucro global começaram a cair depois de um breve ressurgimento na
década de 1980.” (p. 32).
Segundo o autor, isto explica porque a crise das hipotecas subprime tem origem
no financiamento da moradia de baixa renda durante o período de baixos salários e
138
desemprego. A crise das hipotecas atingiu o sistema financeiro dos EUA em geral, chegou ao
setor produtivo e se tornou global, abalando o sistema financeiro mundial e a dívida pública
dos países envolvidos na especulação – Finlândia, Grécia, Espanha, Portugal, Inglaterra e
Irlanda.
Harvey não apresenta uma teoria estruturada do conceito de crise nem de seu
movimento, inclusive utiliza 'crise' não como uma categoria econômica, mas em sentido ético
como, por exemplo, “crise de legitimidade” em relação à perda de legitimidade da classe
dominante nos EUA durante a crise (p. 34). Porém, o autor oferece uma primeira explicação
que poderia ser considerada uma definição da categoria: “as crises são momentos de
reconfiguração radical do desenvolvimento capitalista” (p. 37), afirmando em outro momento
da obra que estas “assumem um papel fundamental […] como 'racionalizadores irracionais' de
um sistema inerentemente contraditório” e são “tão necessárias para a evolução do
capitalismo como o dinheiro, o poder do trabalho e o próprio capital.” (p. 100).
Aponta para a necessidade de ampliação do capital, isto é, sua reprodução
ampliada, como um “problema fundamental subjacente, que eu chamo de 'problema da
absorção do excedente de capital'. Os capitalistas estão sempre produzindo excedentes na
forma de lucro. Eles são forçados pela concorrência a recapitalizar e investir uma parte desse
excedente em expansão.” (p. 30) Com base na teoria de que são os investimentos que
garantem a demanda efetiva, o autor sustenta que é necessário a cada ano investir uma taxa de
excedente em torno de três por cento, pois é esta taxa média de excedente que a acumulação
ampliada exige. O autor afirma que chegou a este percentual a partir da economia burguesa:

consenso atual entre os economistas e na imprensa financeira é que uma economia


saudável do capitalismo, em que a maioria dos capitalistas obtém lucro razoável,
expande-se em 3% ao ano. Quando se cresce menos do que isso, a economia é
considerada lenta. Quando se obtém abaixo de 1%, a linguagem de recessão e a crise
estouram (muitos capitalistas não têm lucro) (p. 30).

Segundo Harvey, em seu movimento infinito de acumulação, o capital encontra


limites. Aqui, o autor aproxima-se da concepção de crise apresentada por Lebowitz de
barreiras que o capital ultrapassa ad infinitum (BEVILAQUA, 2011, pp. 87-96) ao afirmar
que: “Há, portanto, dentro da geografia histórica do capitalismo, uma luta perpétua para
converter limites aparentemente absolutos em barreiras que possam ser transcendidas ou
contornadas.” (p. 46).
139
Assim, para que “3% de taxa de crescimento composto que constitui a força
motriz do capitalismo” (p. 64) se concretize, é necessário superar seis “barreiras potenciais à
acumulação” ou pontos cujo bloqueio “interrompe a continuidade do fluxo de capital e, se
prolongado, acaba produzindo uma crise de desvalorização” (p. 47). Estas barreiras são:

i) capital inicial sob a forma de dinheiro insuficiente; ii) escassez de oferta de


trabalho ou dificuldades políticas com esta; iii) meios de produção inadequados,
incluindo os chamados 'limites naturais'; iv) tecnologias e formas organizacionais
inadequadas; v) resistências ou ineficiências no processo de trabalho; vi) falta de
demanda fundamentada em dinheiro para pagar no mercado.” (Idem).

Em clara analogia com os limites e barreiras definidas por Marx nos Grundrisse
para explicar as crises, Harvey também infere das barreiras os diferentes tipos de crise, ao
explicar a maneira como o capital as supera ou contorna. Começa sustentando que a
acumulação primitiva, definida como “acumulação por despossessão […], continua a
desempenhar um papel na reunião do poder do dinheiro inicial” (p. 48). Relaciona a formação
dos Estados nacionais modernos e o conceito de nexo Estado-finanças, como a “a confluência
do poder estatal e das finanças”, ou seja, “estruturas de governança […] nas quais a gestão do
Estado para a criação do capital e dos fluxos monetários torna-se parte integrante, e não
separável, da circulação do capital” (p. 47). O nexo Estado-finanças funciona como “'sistema
nervoso central' da acumulação do capital” e quando indicam erro do seu funcionamento
interno, as crises surgem (p. 52).
O autor afirma que a frequência e profundidade das crises financeiras vem
aumentando desde a década de 1970. No âmbito internacional, os possíveis defeitos em
“arranjos institucionais adequados que facilitem a continuidade desse fluxo [de capital] pelo
espaço e pelo tempo” (p. 63) foram resolvidos mediante a criação do Banco Mundial, do FMI,
da OMC, etc. Explica também que crises podem surgir da relação capital-trabalho, com base
na “chamada teoria da crise por 'esmagamento de lucros'”, um “problema perpétuo das
relações de trabalho e da luta de classes, tanto no processo quanto no mercado de trabalho.”
(p. 60). Contudo, esta origem das crises é questionável hoje devido o “capital ser muito mais
poderoso e o trabalho muito fraco” (p. 61). Os “modos de vida não mercantis e não
capitalistas” também podem constituir entraves e o acirramento das contradições na relação
metabólica com a natureza não poderão ser superados “sem passar por algum tipo de crise
ambiental geral” (p. 69). Porém explica que hoje em dia já quase não existem espaços onde o
140
capital não há chegado a subverter relações de produção.
Enfatiza o papel do desenvolvimento tecnológico e organizacional ao referir-se às
teorias de “'ondas longas' ou 'ciclos de Kondratiev' […] fundados em inovações tecnológicas”.
E afirma que

é possível olhar para trás e definir 'eras' do desenvolvimento capitalista, que


correspondem aproximadamente às ferrovias, navios a vapor, indústria do carvão e
do aço e telégrafo; ao automóvel, petróleo, indústrias de borracha e plásticos e rádio;
ao motor a jato, geladeiras, condicionantes de ar, indústrias de metais leves
(alumínio) e TV; e ao chip de computador e nova indústria eletrônica, que sustentou
a 'nova economia' da década de 1990 (p. 84).

Destaca o papel das necessidades militares do Estado na pesquisa científica e da


competitividade intracapitalista, apontando ambos como motores revolucionários do
desenvolvimento capitalista:

Da mesma maneira como o nexo Estado-finanças passou a desempenhar um papel


fundamental no desenvolvimento capitalista, um nexo Estado-corporação também
surge em torno das questões de pesquisa e desenvolvimentos em setores da
economia considerados de importância estratégica (p. 81).

Analisa o fluxo do capital na cadeia produtiva e aponta à crise de desproporção


em espiral, que pode surgir do “desenvolvimento desigual das capacidades tecnológicas nos
diferentes setores” ou por “desequilíbrios na produção de bens de sobrevivência versus meios
de produção.” (p. 81).
Harvey critica a Lei Tendencial da Taxa Decrescente de Lucros de Marx ao
afirmar que a criação de novos produtos “colocou o desenvolvimento do consumismo e de
uma crescente demanda efetiva no centro da sustentabilidade do capitalismo contemporâneo
de uma forma que Marx, por exemplo, teria achado difícil de reconhecer.” (p. 82). Porém, ao
mesmo tempo que critica a tese de Marx, não nega sua relevância:

Por mais que o relato de Marx de como os processos de mudança tecnológica e


organizacional inevitavelmente levam a uma tendência de queda da taxa de lucro
possa ser indevidamente simplista, sua visão fundamental de que tais mudanças têm
um papel essencial na desestabilização de tudo e, por isso, produzem crises de um
tipo ou de outro é, sem dúvida, correta (p. 87).

Segundo o autor, para evitar essa crise, deve-se partir de suas possíveis causas:
Primeira, reinvestimento dos excedentes produzidos no ciclo anterior, pois o contrário leva ao
141
que Keynes define de armadilha da liquidez: “quanto mais pessoas ou instituições […]
acumularem dinheiro em vez de gastá-lo, maior será a probabilidade de a demanda efetiva
entrar em colapso e menor será a rentabilidade de reinvestimento na produção. O resultado é
uma espiral descendente” (p. 95); segunda, redução do tempo entre geração de lucro hoje e
reinvestimento, considerando que praticamente não há mais relações sociais de produção não
capitalistas a serem subvertidas, “o crédito se torna o único meio importante de cobrir o
problema de demanda efetiva.” (Idem); e, por último, que o crédito outorgado seja reinvestido
em consumir bens de consumo ou produção (pp. 95-96).
Harvey argumenta que sua abordagem para pensar a formação de crises é superior
às teorias marxistas de crise anteriores, que ele resume a três “grandes campos tradicionais de
pensamento”: o esmagamento de lucro, a queda da taxa de lucro e as tradições do
subconsumo (p. 99). Porém considera a abordagem de limites ou barreiras à circulação do
capital como “maneira muito melhor de pensar a formação de crises”, como explica mais
adiante: “Acho que está mais de acordo com a frequente invocação de Marx sobre o caráter
fluido e flexível do desenvolvimento capitalista identificar esse reposicionamento perpétuo de
uma barreira à custa de outra e, assim, reconhecer as múltiplas formas em que as crises podem
se formar” (p. 99). Contudo, agrega que apenas essas ferramentas são insuficientes e é
necessário incorporar o papel do desenvolvimento desigual setorial e geográfico.
Neste sentido, apresenta uma reconceitualização das crises com base nas “sete
esferas de atividades” do capitalismo, através de uma análise que considere suas
interconexões em uma teoria da coevolução, pois tensões e antagonismos entre estas seriam
causas de crises. Essas sete esferas - “tecnologias e formas de organização; relações sociais;
arranjos institucionais e administrativos; processos de produção e de trabalho; relações com a
natureza; reprodução da vida cotidiana e da espécie; 'Concepções mentais do mundo'” (p. 104)
- ele afirma ter derivado da seguinte elaboração de Marx em O Capital: “a tecnologia revela a
relação ativa do homem com a natureza, o processo direto da produção de sua vida e, assim,
define também o processo de produção das relações sociais de sua vida e das concepções
mentais que fluem dessas relações.”15 (MARX apud HARVEY, 2011, p. 106). Independente

15
A citação original de Marx encontra-se no segundo tomo do primeiro livro de O Capital, no capítulo XIII
Maquinaria e Grande Indústria. Depois de afirmar que o estudo de Darwin sobre a história da “tecnologia
natural” despertou muita atenção, prossegue: “Será que não merece igual atenção a história da formação dos
órgãos produtivos do homem social, da base material de toda organização social específica? E não seria mais
fácil reconstituí-la, já que, como diz Vico, a história dos homens difere da história natural por termos feito uma e
não a outra? A tecnologia revela a atitude ativa do homem para com a Natureza, o processo de produção direto
142
de suas considerações subjetivas acerca da crise, enfatiza uma vez mais que: “Não importa
que tipo de inovação ou mudança ocorra, a sobrevivência do capitalismo a longo prazo
depende da capacidade de atingir 3% de crescimento composto.” (p. 109).
Aborda a constante transformação geográfica do mundo devido ao
desenvolvimento do capitalismo global, explicando que os setores de “construção e
manutenção do espaço edificado” ou “processo de desenvolvimento urbano […] tornaram-se
o epicentro de formação de crises” (p. 137). E que as crises localizadas “podem desencadear
um espiral fora de controle e criar crises globais da ordem geográfica e econômica” (p. 136),
como foi o caso da crise imobiliária nos EUA em 2006, que se globalizou entre 2007 e 2009.
Inverte a explicação de Marx e Engels em O Manifesto Comunista da destruição das forças
produtivas já existentes como processo de superação das crises, ao falar de “episódios
repetidos de reestruturação urbana com 'destruição criadora'. Isso destaca a importância das
crises como momentos de reestruturação urbana.” (p. 144).
Em diversos momentos da obra, Harvey associa as causas da crise também a
questões mais subjetivas, como o risco moral de certas decisões políticas; a crise de
legitimidade que o governo dos EUA poderia atravessar ao salvar os bancos em 2009, ou que
levou ao “movimento social de massa (tanto progressista quanto fascista) depois de 1932.” (p.
177); chegando a atribuir papel de destaque na origem da atual crise a concepções mentais
“associadas às teorias neoliberais e a neoliberalização e corporatização” (p. 192).
Apesar de evitar categorias marxistas, faz referência à intencionalidade de uma
classe social específica que pode haver por trás do surgimento das crises na seguinte
passagem:

A provocação deliberada de crises pelas políticas do Estado e ação coletiva


empresarial é um jogo perigoso. Embora não haja evidência de conspirações ativas e
estreitas para criar essas crises, há uma abundância de macroeconomistas e
formuladores de políticas econômicas influentes da 'Escola de Chicago' ao redor do
mundo, juntamente com todos os tipos de oportunistas empresariais, que acreditam
que um bom incentivo de destruição criativa é necessário de vez em quando para o
capitalismo sobreviver e para a classe capitalista ser reformada (p. 199).

de sua vida, e com isso também suas condições sociais de vida e as concepções espirituais decorrentes delas.
Mesmo toda história da religião que abstraia essa base material é — acrítica. É efetivamente muito mais fácil
mediante análise descobrir o cerne terreno das nebulosas representações religiosas do que, inversamente,
desenvolver, a partir das condições reais de vida de cada momento, as suas formas celestializadas. Este último é
o único método materialista e, portanto, científico. As falhas do materialismo científico natural abstrato, que
exclui o processo histórico, já se percebem pelas concepções abstratas e ideológicas de seus porta- vozes, assim
que se aventuram além dos limites de sua especialidade.” (MARX, 1988, l.1, v. 2, p. 6).
143
Em relação às consequências estruturais da atual crise internacional, no Epílogo
da obra reafirma uma tendência, identificada pelo Conselho de Inteligência Nacional dos EUA
e citada por ele na Introdução, de uma “mudança sem precedentes na riqueza relativa e no
poder econômico de maneira geral do Oeste para o Leste” (p. 37), agregando que
provavelmente este dirigir-se-á para a China. Inclusive especula: “se as dívidas [dos EUA]
podem ser pagas no prazo ou se a China se tornará o epicentro de outra crise global é uma
questão em aberto.” (p. 219).

2.6.2 Arrighi: os ciclos longos e a crise de hegemonia

A interpretação da crise atual, que o autor denomina de “turbulência global”, se


fundamenta a partir da noção da financeirização do sistema capitalista e crise da hegemonia,
sob olhar geopolítico e do desenvolvimento econômico. A noção de desenvolvimento
capitalista, deriva de Gunder Frank e da crítica à concepção de Brenner em torno do
smithianismo do primeiro. Arrighi, através de análise comparativa entre Smith, Marx e
Schumpeter sobre o tema, conclui que a sociologia histórica de Smith tem mais a dizer sobre a
emergência da China que Marx (ARRIGHI, 2008, p. 85), e ao comparar a crise de hegemonia
do século XVI da Itália, no século XVIII, da Holanda; do século XIX, da Inglaterra; e do
século XX, dos EUA (p. 97), conclui que a turbulência global se explica mais pela crise de
hegemonia que pela economia.
Diferencia a crise de superprodução em Marx, superacumulação em Smith e do
obstáculo demográfico em Malthus (pp. 81-83), indicando que a tendência decrescente da
taxa de lucro não é formulação do primeiro, mas do segundo e que a grande divergência entre
o desenvolvimento capitalista na China e Europa se encontra na noção de Smith de
desenvolvimento natural e antinatural do capitalismo, pois a China seria o modelo natural, a
partir do mercado interno, e que o da Europa era antinatural porque se centrava no mercado
externo e que enquanto a primeira fugiu a armadilha de baixo (crescimento econômico menor
que da população) e alto nível (crescimento econômico igual ao da população ou estado
estacionário), o segundo fugiu a esta armadilha pelo caminho antinatural, o da acumulação
capitalista (pp. 93-106; passim).
144
Esta noção é fundamental para o autor, pois é dela que conclui a tese da crise da
hegemonia, pois capitalismo, industrialismo e militarismo são elementos que conduzem a
interpretação da crise do capitalismo a outro nível que incorpora a noção de geopolítica pouco
explorada por Marx na teoria do capital (pp. 273-274). Quanto ao conceito de Hegemonia,
Arrighi toma por base Gramsci, distinguindo dominação e consenso: o primeiro, a classe
dominante tornar seus objetivos o interesse das classes dominadas pela força (militarismo); o
segundo, pela identidade de objetivos (domínio ideológico ou cultural) (pp. 159-160).
Nestes termos, as crises de hegemonia são classificadas de duas formas: as crises
sinalizadoras, que são resolvidas em longo período de tempo (ondas largas); e crises
terminais, que se resolvem pelo fim da hegemonia de um detentor da mesma. E assim, para
Arrighi o fim da belle époque, ou ciclo virtuoso do capital, da década de 1990 (p. 171), não
passou de recuperação de uma crise sinalizadora, iniciada na década de 1970, conduzindo à
contrarrevolução monetária da década de 1980, expansão da década de 1990 (pp. 126-127), e
inaugurando a crise terminal da hegemonia dos EUA na esteira de 11 de setembro de 2001, e
consolidando a liderança da China no renascimento econômico da Ásia Oriental (pp. 160-182
e 309-315; passim).
Quanto à análise de Arrighi sobre a crise em Marx, apoia-se na concepção de
Schumpeter da “acumulação 'infinita' de dinheiro [que] é a fonte primária de poder da
sociedade capitalista” (p. 87) através da “destruição criativa” e do “ciclo de invenções” (p.
98), enquanto destruição e reconstrução de arcabouços sociais de acumulação no processo do
“ciclo de realização de investimentos e renovação dos mesmos”. Naturalmente, sua análise da
crise em Marx comporta a mesma noção extraída dos Grundrisse, da tendência a superação
das barreiras ad infinitum (passim).

2.6.3 Bensaïd: Marx, o intempestivo

Desta obra de Daniel Bensaïd (1999), Marx, o Intempestivo, o capítulo 10,


Coreografias Caóticas, e o capítulo 11, Os Tormentos da Matéria (Contribuição a Crítica da
Ecologia Política), estão diretamente relacionados ao escopo desta pesquisa. No capítulo 10
no item O baile de máscaras da mercadoria Bensaïd localiza a teoria de Marx como proposta
145
de paradigma dentro das ciências humanas, que segundo ele, tendem a unificar-se com as
ciências naturais. Nasce em meados no século XIX, poucos anos depois de publicadas as
teorias de Darwin e Clausius, que vêm questionar a física de Newton da mesma maneira que a
crítica à economia política questiona a economia clássica e as ideias de Locke,
contemporâneo ao pai da mecânica.
O autor relaciona a economia a outras ciências: “abstração física do espaço” e
“abstração econômica do mercado” em que trabalho e riqueza tornam-se “comensuráveis” por
meio da relação monetária; a “utopia do equilíbrio da mecânica e da economia clássicas” e
“neoclássica de Walras”; a teoria do “caos” e as “inconstâncias do mercado e as turbulências
da bolsa”; a “mecânica quântica” e os “processos estocásticos apoderam-se da economia com
a revolução econométrica dos anos trinta”; “em 1963, Benoït Mandelbrot publica um artigo
sobre a variação dos preços, considerado desde então como uma das 'fontes da geometria
fractal'. […] À contracorrente do senso comum, ele sublinha a diferença fundamental entre o
tempo econômico e o tempo newtoniano” (p. 421-422).
O autor, insere a obra de Marx no processo de transformação da ciência
econômica, que sob “constrangimento do objeto específico – a economia política –, as aporias
do capital” acentuam um modo de fazer ciência e os seus limites. Sustenta que “tais aporias
levantam problemas, sem resposta no universo epistemológico do século XX, cuja
fecundidade salta à vista” (p. 424). Considera a teoria econômica em Marx um processo
dinâmico que assume paradigmas científicos que rompem com a causalidade linear, o
determinismo e o mecanicismo. “'Ordem da desordem', a lei do valor regula assim do interior
o jogo das aparências, como uma espécie de estranho ímã que controlaria os desvios do
mercado”. Como Darwin e Espinoza romperam com a teleologia religiosa, de uma finalidade
pré-determinada; assim como a “doutrina hegeliana do conceito desenvolve a teleologia do
vivo” (p. 428, itálicos do autor); o autor explica:

Em Marx, a relação dos preços com o valor, o papel da moeda como pressuposto da
própria circulação, o papel do mercado como pressuposto do trabalho abstrato são
tantos outros sinais da passagem do ponto de vista mecanicista para o ponto de vista
teleológico assim compreendido (p. 429).

Encerra o capítulo sobre a crise das ciências destacando o papel da crítica à


economia política como contribuição ao avanço científico “Marx parece às vezes anunciar o
devir ciência da filosofia, como se a certeza positiva das luzes devesse levar definitivamente a
146
melhor contra as obscuras incertezas hermenêuticas”(p. 430). Porém, cita o próprio Marx para
ressaltar que “no terreno da economia política, a livre pesquisa científica encontra bem mais
inimigos que em outros campos de exploração.” (MARX apud BENSAÏD, 1999, p. 430).
Bensaïd no capítulo 11, Os tormentos da matéria (contribuição à crítica da
ecologia política), que tentado a definir Marx como um teórico que não era um
desenvolvimentista desenfreado, mas tampouco isento das “ilusões prometeicas de seu
tempo” (p. 433). Porém propõe que na concepção de Marx, o ser humano é um ser vivo
natural, e que seu trabalho científico inscreve-se numa tentativa de unir as ciências sociais e
naturais, concluindo: “A fórmula do Capital, ao considerar o trabalho o pai das riquezas
materiais e a natureza sua mãe, não é portanto lançada ao acaso: ela se inscreve numa estrita
continuidade.” (p. 434).
Essa é a ideia central da primeira parte do capítulo 11, o autor afirma que as
“antinomias filosóficas clássicas (entre materialismo e idealismo, entre natureza e história
resolvem-se nesse monismo radical [de Marx]” (p. 436), o que dispensa comentários. Porém,
traça uma linha argumentativa em que apresenta diferentes pontos onde a ecologia, como
ciência, encontra-se com a crítica da economia política, como ferramenta de luta desveladora
das relações sociais no capital e como novo paradigma científico, desenvolvida por Marx.
O autor, em suas considerações acerca da teoria de Marx sobre o desenvolvimento
do capitalismo e as transformações decorrentes das relações entre homem e natureza, sustenta
que o primado do valor de troca sobre o valor de uso distancia o homem da natureza.
Argumenta que no capital, as transformações que possibilitam maior produção de
mercadorias, também implicam exploração da natureza para descobrir novos possíveis valores
de uso; para satisfazer o consumo existente no presente e novo consumo futuro. O capitalismo
ao dessacralizar a natureza, tirando o seu caráter místico e de obscurantismo, a converteu num
“mero objeto para o homem” (p. 441), numa mercadoria ao passo que no ser humano o
“desenvolvimento quantitativo e qualitativo das carências é portanto um enriquecimento de
sua personalidade genérica e individual.” (p. 442).
Para Marx – segundo o autor - o “desenvolvimento histórico é um processo geral
de hibridização (naturalização/humanização)”. Tais “'objetos híbridos' (ao mesmo tempo
forças naturais e sociais) e a compreensão da 'ciência como relação social'” rejeitam as Teses
sobre Feuerbach, o materialismo passivo e do ativismo mítico (p. 444). Sobre o trabalho no
capitalismo, afirma:
147
No trabalho, o homem não é apenas objetivado, mas ainda alienado. Seu corpo é-lhe
inteiramente roubado, sua existência é reduzida à sua função econômica. A
separação do trabalho junto com suas condições naturais leva à aniquilação da
condição natural do homem enquanto homem que vive da terra e de seu trabalho (p.
445).

Insiste que Marx tentava de fato unir ciências sociais e naturais, que não era um
defensor cego do progresso e produtivismo desenfreado, colocando-o em um suposto
antagonismo com Engels e as experiências do socialismo no século XX. Como exemplo,
alega que as analogias feitas em O Capital entre o funcionamento de um órgão vivo, seres
vivos, biologia, etc e o próprio capital não são fortuitas. O capital é “um ser vivo, que além
disso é um vampiro” (p. 448). Afirma que a “conceituação marxiana do processo de trabalho e
das indústrias de transformações permaneceria defeituosa”, devido ao fato de não ter previsto
os limites de natureza material no uso de matérias-primas; que a apropriação da natureza pelo
homem se mantém mesmo mediada; e porque “o próprio trabalho […] permanece sob a
exigência da determinação natural.” (p. 453).
Da correspondência entre Marx e Engels sobre os trabalhos de Podolinski, o autor
argumenta que Engels é o principal “responsável pelo desencontro entre crítica da economia
política e ecologia” (p. 458). Resgata os diversos debates teóricos em que ele é contrário a
trazer para a economia as categorias das ciências naturais, devido a contradição, “por um lado,
da redução do social ao físico”, a própria concepção de energia, como também foi pensada
por Lênin, e a ciência contemporânea veio a dar-lhe razão, era matéria em movimento, logo, o
próprio desenvolvimento da ciência negaria a percepção fatalista da época de que o mundo ia
acabar, de algumas falsas interpretações das leis da termodinâmica (p. 463).
“A segunda crítica de Engels é de ordem epistemológica” (p. 464), afirma Bensaïd
no início da sessão Trabalho físico, trabalho social. Explica:

No imediato, Engels recusa-se a 'juntar a física e a economia', a confundir as noções


de 'forças' específicas a uma e outra, a 'aplicar à sociedade a teoria das ciências da
natureza'. Desconsiderando que se possam avaliar em 'joules' a mão de obra e o
capital, ele combate o dogmatismo energético na moda […] e a redução dos
indivíduos a simples conversores energéticos (p. 464).

O autor apresenta diversas tentativas científicas de aplicar conceitos físicos à


economia, como o conceito de trabalho na física, usado para otimizar máquinas e homens, ou
a “média de Coulomb” com a “preocupação declarada de maximizar a relação efeito/fadiga
que exprime a eficácia econômica do trabalho” (p. 465) Prossegue o autor: “Marx se coloca,
148
ao contrário, na contradição social da quantificação da força de trabalho, ao mesmo tempo
necessária do ponto de vista do trabalho abstrato e impossível do ponto de vista do trabalho
concreto” (p. 466).
Contextualiza, portanto, a importância de defender as ciências e “emancipar os
procedimentos científicos de seu invólucro ideológico” (p. 467), luta muito mais necessária há
século e meio atrás do que hoje. Além disso, aponta explicitamente que:

ele [Engels] compreende realmente que a confusão das duas [a teoria da energia e a
do valor] poderia levar, por extensão da lei da entropia, à ideia de uma mais-valia
negativa, de uma perda pura e simples que ameaçasse a própria coerência da relação
de exploração enquanto resposta ao enigma do lucro e da acumulação (p. 469).

Não obstante, insiste na união das duas teorias, porém sem que seja uma
transposição entre teorias: “A validade da teoria do valor no quado de relações de produções
específicas não elimina o interesse dos balanços energéticos em uma outra escala de duração”
(p. 469). Insinua, portanto, que seria uma questão reconsiderar o próprio tempo: “Queneau
insiste sobre as diferenças entre o tempo biológico e o tempo astronômico” (p. 473).
Após abordar o surgimento da consciência ecológica nos anos 70, do século
passado, ressalta como Marx considerou já em seus estudos os limites naturais como limites
ao desenvolvimento e remete uma vez mais ao trabalho de outros cientistas de uma incipiente
ecologia que já em meados do século XIX tentam considerar fluxos de energia como maneira
de “introduzir o problema da energia na crítica da economia política” (p. 478): Liebig (1840),
Podolinski (1880), Clausius (1885). Porém as descobertas nesse sentido não tiveram impacto
sobre a economia, fundamentalmente porque o próprio capitalismo não favorecia a unidade
das ciências, muito menos as que impunham obstáculos à sua acumulação.
Dentro desta perspectiva, destaca o que chama de “reducionismo mercantil”, no
qual “Bastaria então internalizar o custo social do dispêndio ecológico para restabelecer a
harmonia da regulação mercantil” (p. 479). Assim, “Todo bem material seria então exprimível
pela quantidade de energia que ele encerra.”. Esboça uma concepção da ecologia radical, que
poderia considerar essas duas esferas científicas e temporais do desenvolvimento humano, na
qual “uma escolha cívica determinada pelas carências e inscrita no tempo longo deveria
prevalecer sobre os automatismos mercantis” (p. 480) e reafirma adiante: “Só uma
democracia política radical poderia introduzir um meio-termo entre esferas sem medida
comum imediata” (p. 481).
149
Chega finalmente à união entre economia e ecologia, não formalmente como
ciências, em cujo caso as teorias contemporâneas dos sistemas e da informação poderiam ter
contribuições interessantes, porém como em condições “de marcar um encontro numa crítica
comum de incomensurabilidade” (p. 484) no capitalismo e a miserável medida de toda
riqueza que rege suas relações sociais. Depois de citar a passagem dos Grundrisse onde Marx
sustenta a falência do tempo de trabalho socialmente necessário como medida de valor, o
autor afirma: “A crítica ecológica acrescenta a esse diagnóstico que o tempo de trabalho
aparece a fortiori como uma unidade de medida bastante 'miserável' para regular as trocas
entre o homem e a natureza ou para estabelecer uma relação de solidariedade entre gerações”
(p. 484).
Atenta também ao risco de teorias que chama de “ecocracias”, que se dedicam à
“denúncia da liberdade humana como fator de perturbação do ecossistema” (p. 486). Segundo
o autor, “não é fortuito que um naturalismo radical possa desembocar num 'realismo' anti-
humanista.” Nesse sentido, usa o exemplo da ECO-92, que “ilustrou à sua maneira a
imbricação da ecologia nas relações sociais de exploração, de dependência e de dominação”
(p. 487), para concluir: “A ecologia não escapa à política” (p. 488).
Em seguida enfatiza sua posição: “A crítica da ecologia política reforça a da
economia política” (p. 494) e explica de maneira bastante elucidativa como a perda de
vigência do paradigma de valor se desenvolve na atualidade, principalmente em relação às
ciências, relacionando esse processo com seu conceito de “temporalidades heterogêneas”:

A exploração mercantil da força de trabalho e a redução das relações sociais com a


medida comum do tempo de trabalho social revela a perda de funcionalidade
profetizada pelos Grundrisse através de um desemprego de massa endêmica, de
novas precariedades e marginalidades, das crises de produção excedente, mas
também através da incomensurabilidade crescente de atividades sociais não
redutíveis ao trabalho abstrato. Já acontecia isso com a obra de arte, cujo valor
mercantil é determinado especulativamente, sem relação concebível com o tempo de
trabalho socialmente necessário à sua produção. E assim vem acontecendo cada vez
mais com os trabalhos intelectuais e científicos: 'Se o processo produtivo torna-se
esfera de aplicação da ciência, então a ciência torna-se inversamente uma função do
processo produtivo […]. Enquanto produto do trabalho intelectual, a ciência se acha
sempre abaixo de seu valor. Porque o tempo de trabalho necessário à sua reprodução
não tem nenhuma relação com o tempo de trabalho necessário à sua produção
original.' A economia política tropeça exatamente aqui com a incomensurabilidade
entre temporalidades heterogêneas (ciclo do capital e ciclos da natureza, relações
temporais entre as gerações) e com o caráter miserável de suas próprias medidas,
que sua crítica ecológica confirma (p. 494-495).

O autor usa uma citação do jovem Marx para insistir em sua tese de que Marx não
150
apenas queria unir todas as ciências, mas foi um precursor desta união (p. 490).

2.6.4 Kurz: O Colapso da Modernização

O trabalho de Kurz (2004), O Colapso da Modernização: da derrocada do


socialismo de caserna à crise da economia mundial, publicado ainda em 1992, tem sem
dúvidas o mérito de ser a primeira formulação teórica que problematiza a crise do valor, cuja
tese central enunciada é de que o trabalho abstrato, sobre o qual se senta a base da sociedade
moderna, tende a desaparecer: “A controvérsia social e histórica que até agora dominou a
modernidade, compreendida pelo marxismo como luta de classes, apoiou-se em um
fundamento comum, a sociedade do trabalho, fundamento que mostra agora sua limitação e,
imerso em uma crise, luta para não desaparecer.” (p. 17).
Explica como historicamente a humanidade, em busca de satisfazer suas
necessidades, tem procurado submeter as forças da natureza. Porém, segundo o autor,
precisamente por essa transição da primeira à segunda natureza que se caracteriza o trabalho
moderno:

[…] à medida que as forças produtivas, mediante a industrialização e cientificização,


rompem a coação e a prisão da 'primeira natureza', passam a ser presas numa coação
social secundária, inconscientemente produzida. A forma de reprodução social da
mercadoria torna-se uma 'segunda natureza', cuja necessidade apresenta-se aos
indivíduos igualmente sensível e exigente como a da 'primeira natureza', apesar de
sua origem puramente social” (p. 21).

Reconhece o caráter transformador que o capitalismo teve sobre o


desenvolvimento das forças produtivas e do próprio ser humano, ao explicar que “Enquanto
cumpria essa 'missão civilizatória' (Marx) esse sistema funcionava perfeitamente […]. As
crises eram apenas interrupções em seu processo de ascensão e pareciam, a princípio,
superáveis.” (p. 24) Para o autor, as crises se apresentam primeiramente como interrupções no
processo de acumulação ampliada do capital, cujo processo de produção já não obedece às
necessidades humanas, mas tem sua força motriz no “movimento de reprodução e
autorreflexão tautológica do dinheiro” (p. 23).
Mais adiante, no capítulo O sacrifício do Terceiro Mundo como advertência
151
fatídica, o autor argumenta que tanto a noção de uma 'Acumulação Primitiva' em andamento
no chamado Terceiro Mundo, assim como o deslocamento da produção ao mesmo tempo
devido à oferta de mão de obra barata não explicam a crise atual, a desvalorização de capitais
no mundo desenvolvido, nem o desemprego em massa que assistimos. Segundo o autor, quem
assume essa posição está “vivendo ideologicamente no passado e deixa de ver os potenciais
entrementes nascidos da cientificização e o nível daí resultante da produtividade” (p. 155).
Afirma que, ao contrário de fomentar o crescimento global do capital mundial, esse
desenvolvimento da indústria o está corroendo.
Explica como a brecha entre países desenvolvidos e o Terceiro Mundo, que chama
de “vencedores” e “perdedores” respectivamente (passim), no que se refere a investimento e
consequente desenvolvimento industrial só tende a aumentar, reproduzindo o problema
causador da crise das dívidas e aprofundando a pobreza e sua incapacidade de vencer perante
a concorrência internacional. Conclui: “De fato, abstraindo-se algumas exceções, a suposta
'industrialização para a exportação', em vez de tornar-se uma possível alternativa, somente
contribui para agravar a crise de dívidas” (p. 163). Por outro lado, esse processo aponta a uma
dependência das economias desenvolvidas às oscilações da conjuntura mundial e ao
mecanismo de dívida.
Explica que nessa economia global, as economias desenvolvidas já não têm mais
como recorrer a mercados externos para resolver seus problemas, pois não há lugares que não
foram integrados a esse sistema e a seu revestimento ideológico e político” (p. 166).
Tampouco essas economias são capazes de alcançar outro patamar de desenvolvimento,
afirmando que já passaram por processos de modernização que foram fracassados, “do mesmo
modo que as sociedades em desenvolvimento pró-ocidentais, as pró-soviéticas estão decaindo
sobre o mesmo fundamento do trabalho abstrato.” (p. 168). Apresenta, portanto, a própria
crise do trabalho abstrato como fundamento para a crise geral do sistema capitalista, que ele
chama de “sistema produtor de mercadorias” (passim).
De certa maneira, aponta à degenerescência da medida de valor, sem mencioná-la
explicitamente, ao referir-se à predominância da ciência e da técnica no processo produtivo
como na passagem a seguir:

Já que as formas do sistema produtor de mercadorias subsistem incólumes, perdendo


porém de mês para mês uma parte de sua substância 'produtiva' em comparação ao
nível mundial, desenvolve-se uma fome insaciável pela entrada de capital monetário,
152
que já não pode ser satisfeita mediante a substância de valor existente.” (p. 175).

Argumenta que existem três tipos de Acumulação Primitiva: a original que cunhou
o termo na Europa no início do capitalismo; a modernização recuperadora da ex-URSS; e a
modernização tardia do Terceiro Mundo; e que os três “somente têm uma coisa em comum: a
expulsão violenta, realizada em formas bárbaras, dos tradicionais 'produtores diretos' […] de
seus meios de produção e as 'torturas' por elas sofridas ao serem forçados aos status moderno
de trabalhadores assalariados”. Nesse processo civilizatório, o capital dispôs de
aproximadamente três séculos na Europa, onde “as massas podiam desenvolver-se em
sujeitos-dinheiro 'civilizados' e socialmente pacificados em alto grau e em sujeitos-cidadãos
democráticos” (p. 178). Já na URSS, o processo de modernização foi extenso, porém,
paralisado pela abertura ao mercado internacional, a acumulação primitiva não concluiu sua
obra. Já no Terceiro Mundo, ela só se dá depois da Segunda Guerra Mundial e, sem
capacidade de concorrer com a alta produtividade já desenvolvida pelo capital global, também
fracassou. O autor nos elucida: “O que faz sofrer as massas do Terceiro Mundo não é a
provada exploração capitalista de seu trabalho produtivo, […], mas, ao contrário, a ausência
dessa exploração” (p. 181). Anuncia, assim, que

[…] o sistema de mercadoria moderna chegou ao fim, e junto com ele a


subjetividade burguesa do dinheiro, porque esse sistema, na área da produtividade,
passou de seus próprios limites e já não consegue integrar em sua lógica a maioria
da população mundial. Mas para que a crise da forma mercadoria possa entrar na
consciência da sociedade, […] é mister haver outro perdedor, […] o Ocidente, o
criador do capitalismo, que morrerá asfixiado por seus próprios triunfos (p. 184).

Ou seja, o autor considera, acompanhando teóricos como Mészáros, que a crise


atual é uma crise estrutural ou final do capital por haver ultrapassado certo limite estabelecido
por sua própria dinâmica, e, como Harvey e outros, pressagia essa crise como o fim da
hegemonia do Ocidente sobre a economia mundial. A mesma abstração usada para exploração
do trabalho humano está “[...] destruindo com velocidade crescente os fundamentos naturais
comuns da humanidade” (p. 189). A crise ambiental evidencia com mais força a conformação
de um mundo único e a impossibilidade das economias desenvolvidas externalizarem a
origem e consequência da crise.
De certa maneira e sem fazer referências diretas, o autor põe no centro da
dinâmica da crise o que Marx anunciou como Lei da Queda da Taxa de Lucro, como pode se
153
observar na seguinte passagem:

Se o nível global da produtividade, e com ele o nível correspondente da


rentabilidade, é tão alto (e já alcançamos essa fase) que 'perder' significa, para um
número cada vez maior de empresas, a exclusão do mercado e, portanto, a destruição
de capital, acontece que em cada nova volta do processo de concorrência diminui a
massa global da mais-valia disponível, que pode ser apropriada, em relação à massa
global do capital monetário aplicado, já que este tem de 'crescer' antes de se
transformar na forma dinheiro (p. 192).

Explica como o mecanismo de transferência de renda das economias perdedoras


para as vencedoras não pode se manter indefinidamente, apesar de se fazer cada vez mais
necessária para estas, sintetizando a dificuldade de sua manutenção “a cada paralisação de
recursos numa região de perdedores que cai abaixo do nível exigido de rentabilidade diminui
também a margem para outras transferências desse tipo” (p. 193). Fala que essa foi uma crise
que começou na periferia do sistema e depois dos colapsos “do Terceiro Mundo nos anos 80 e
do socialismo real no começo dos anos 90, chegou a hora do próprio Ocidente” (p. 192),
alastrando-se pelos centros do capitalismo mundial:

A queda de todos esses países da OCDE a posições inferiores no mercado mundial,


seu atraso em relação ao padrão global de produtividade, não apenas conduz ao
crescimento de regiões pós-catastróficas internas, […] mas também torna esses
países […] cada vez mais dependentes de uma inspiração artificial monetária na
base de capital monetário estrangeiro (p. 197).

Indica que este processo configura sua crise das dívidas, que afeta de maneira
diferente os países do centro e da periferia do sistema, apesar de ser realidade apremiante em
ambos, e explica que “dentro da OCDE são os credores aqueles que acumulam excedentes de
exportação, fluindo estes para os devedores” (p. 199) e que “a existência de capital fictício
podia ser prolongada graças à internacionalização deste e ao crescimento de uma fantástica
superestrutura especulativa, protelando-se assim a crise” (p. 204). Porém, conclui, “[…] a
causa da crise é a mesma para todas as partes do sistema mundial produtor de mercadorias: a
diminuição histórica da substância de 'trabalho abstrato', em consequência da alta
produtividade ('força produtiva ciência') alcançada pela mediação da concorrência” (p. 205).
Assim, essa crise tem uma especificidade e importância histórica: “Ninguém pode prever a
duração desta maior época de crise da História, nem as formas que percorrerá. Mas com toda
certeza não haverá nenhum retorno às formas atualmente familiares do sistema produtor de
mercadorias, que incluem a subjetividade moderna em todos os níveis de sua existência.”
154
2.6.5 Hardt e Negri: Império

A obra de Hardt e Negri (2003) está composta por dois volumes – Império e
Multidão. O enfoque deste trabalho foi o primeiro volume, priorizando os capítulos e itens
pertinentes ao escopo da pesquisa, nas partes 3 e 4 da obra. Os autores investigam “a
transformação material do paradigma de governo […] os meios e as forças de produção da
realidade social, bem como as subjetividades que a animam.” (p. 41). O biopoder na
sociedade de controle é compreendido a partir do estudo de Michel Foucault, que reconhece
“[…] uma transição histórica, de época, nas formas sociais da sociedade disciplinar para a
sociedade de controle” (p. 42, itálico dos autores). Na sociedade disciplinar, o comando social
é uma rede difusa de dispositivos ou aparelhos que produzem e regulam os costumes, os
hábitos e as práticas produtivas, por meio de instituições disciplinares (a prisão, a fábrica, a
escola e outros), que estruturam e fornecem explicações lógicas para a “razão” da disciplina.
Foucault refere-se ao ancien régime para ilustrar o surgimento da disciplinaridade, que vigora
como paradigma de poder durante a primeira fase da acumulação capitalista. A sociedade de
controle se desenvolve nos limites da modernidade à pós-modernidade, os mecanismos de
comando são mais “democráticos” e imanentes ao campo social, distribuídos por corpos
(sistemas de bem-estar, atividades monitoradas, etc) e cérebros (em sistemas de comunicação,
redes de informação, etc.) dos cidadãos. A integração e exclusão sociais, próprias do mando,
são cada vez mais interiorizadas nos próprios súditos, com o objetivo de um estado de
alienação, independente do sentido da vida e do desejo de criatividade. O biopoder é esta
forma de poder que regula a vida social por dentro, adquire comando efetivo sobre a vida total
da população ao tornar-se função integral, vital, que todos os indivíduos abraçam e reativam
por sua própria vontade. Como disse Foucault, “a vida agora se tornou objeto de poder” (apud
HARDT e NEGRI, 2003, p. 43).
Os autores comparam a passagem da sociedade disciplinar à sociedade de
controle, em Foucault, com a passagem da subordinação formal à subordinação real em Marx;
e também a transição na cultura, do estado totalitário à “perversa dialética do Iluminismo” da
escola de Frankfurt, para concluírem que a formulação de Marx é unidimensional e, mesmo
na formulação frankfurtiniana, continua menos abrangente que a de Foucault, porque este
envolve o biossocial e não apenas aspectos econômicos e sociais ou culturais. Contudo, a
155
abordagem de Foucault é mais abrangente e clara em Deleuze e Guattari, porque o poder
unifica e envolve todos os elementos da vida social, revela o paradoxo de “um novo milieu de
máxima pluralidade e incontornável singularização – um milieu do evento.” (44, itálico dos
autores). Quanto aos marxistas italianos, suas análises reestabelecem a importância da
produção dentro do processo biopolítico da constituição social, mas também em certos
aspectos a isolam ao capturá-la de forma pura, refinando-a no plano ideal. Elas atuam como se
a descoberta de novas formas de forças produtivas – trabalho imaterial, trabalho intelectual
massificado e trabalho do “intelecto geral” – bastassem para compreender as relações
dinâmicas e criativas entre produção material e reprodução social.
Após estas críticas aos autores do biopoder e do intelecto geral, Hardt e Negri
indicam os três aspectos primários do trabalho imaterial na economia contemporânea: o
trabalho comunicativo de produção industrial que recentemente se tornou ligado a redes de
informação; o trabalho interativo de análise simbólica e resolução de problemas; e o trabalho
de produção e manipulação de afetos. Esse terceiro aspecto, com foco na produtividade do
corpóreo, do somático, é elemento sobremodo importante nas redes contemporâneas de
produção política. Para os autores de Império, esta escola de análise do intelecto geral é pura,
quase angelical, embora seja um avanço, limita-se a arranhar a superfície da dinâmica
produtiva da nova estrutura teórica do biopoder.
Os autores argumentam que a legitimidade das organizações da ONU e das
grandes agências transnacionais de finanças e comércio – FMI, Banco Mundial, GATT – na
constituição jurídica supranacional, em termos de produção biopolítica, é a função atual
destas na simbologia da ordem imperial: “As grandes corporações transnacionais constroem o
tecido conectivo fundamental do mundo biopolítico […]” (p. 50).
Os nexos imateriais da produção de linguagem, da comunicação e do simbólico,
desenvolvidos pelas indústrias de comunicação, são o lugar da produção biopolítica da ordem,
a indústria da comunicação assumiu posição central e tornou imanente a justificação do poder
adequado ao espaço global; produz e organiza; enquanto organiza, fala e se expressa como
autoridade. Esta realidade vai além do conceito de ação comunicativa de Jürgen Habermas,
que demonstra sua forma produtiva e consequências ontológicas, mas não conta com a
globalização que pode constituir uma opinião e verdade oposta à colonização do ser. Mas,
com a máquina imperial, comunicação e legitimidade marcham juntas: autoavaliantes,
autopoiéticas, ou seja, sistêmicas.
156
Hardt e Negri explicam que a crítica ao imperialismo foi realizada pelos setores
mais ativos da teoria marxista, mas os argumentos estão superados pelo tempo, a realidade
mudou. Pode-se aprender com essa crítica, pois ela ajuda a compreender a transição do
imperialismo ao Império. Esta crítica relaciona capitalismo e expansão; a expansão leva ao
imperialismo. Nos Grundrisse, segundo os autores, Marx afirma: “A tendência a criar o
mercado mundial está incluída diretamente no próprio conceito de capital. Todo limite
aparece como barreira a ser derrubada” (apud HARDT; NEGRI, p. 242); identificam no
caráter indócil do capital o ponto de crise que diz respeito à essência do próprio conceito de
capital. Afirmam que tais crises e barreiras não levarão ao colapso do capital, a crise é para o
capital uma condição normal, que indica sua tendência e seu modo de operar. O imperialismo
e sua marcha além dele são dados do complexo jogo entre limites e barreiras.
Afirmam que Marx analisa a expansão do capital a partir da relação desigual entre
o trabalhador produtor e o trabalhador consumidor de mercadorias. Defendem as teses do
subconsumo apoiados no fato de que o salário do trabalhador (que corresponde ao tempo
necessário) é sempre menor que o valor total que ele produz, o que significa que sua demanda
nunca pode ser adequada à realização da mais-valia. Também o consumo do capitalista e das
classes que partilham seus lucros é limitado pela necessidade de investir e que abstinência é a
regra capitalista para acumulação (p. 243).
Acerca da internalização do exterior, os autores indicam que o capital se relaciona
com o ambiente não capitalista e nele confia, mas não o internaliza, isto é, não o torna
capitalista. Contudo, defendem a definição de Hilferding de: “O que se exporta é a relação”,
uma forma social que gera a si mesma. Explicam que a capitalização abre novamente a lacuna
entre produção e realização, criando nova barreira para realização e vice-versa. A conclusão é:
“Essa tensão contraditória [...] só é exposta à luz do dia no limite, no ponto de crise” (p. 248).
Hardt e Negri, identificam na obra de Lênin a noção do imperialismo como estado
transitório para outro sistema, ou para uma nova fase do capital além do imperialismo, o lugar
(ou não lugar) da soberania imperial emergente:

Em cada estágio desse desenvolvimento, o Estado precisou inventar novos meios de


obter o consenso popular e [...] incorporar a multidão e suas formas espontâneas de
luta de classes e suas estruturas ideológicas de estado; precisou transformar a
multidão em povo (LÊNIN apud HARDT e NEGRI, 2003, p. 252).

Concluem que esta análise “[...] é a articulação política inicial do conceito de


157
hegemonia, que mais tarde seria essencial para o pensamento de Gramsci” (p. 252) e
diferenciam a análise feita por Lênin, da análise feita por Rosa Luxemburgo com base no
conceito de hegemonia.
Consideram que existe um paradoxo no pensamento de Marx que pode resolver o
problema de uma teoria sobre a subjetividade na transição do imperialismo ao Império: Os
Volumes que Faltam ao Capital, mais especificamente os volumes sobre o Estado e o
Mercado Mundial. No pensamento de Marx, valorização de capital e processos políticos de
comando se sobrepõe no nível mundial. Para esboçar os volumes que faltam de Marx,
seguindo seu espírito, método e concepções sobre o Estado e o mercado mundial, deve se ter
como base a crítica ao Império.
Os autores finalizam este capítulo de Império com uma controvérsia: Transição
histórica ou ciclo? Para eles o que se vive é uma transição histórica do imperialismo ao
Império, do Estado-nação à regulação política do mercado global, que deve ser qualificada
como uma passagem à pós-modernidade, mesmo reconhecendo a pobreza desta definição.
Existem muitas teorias acerca do ciclo histórico: as de forma de governo da tradição greco-
romana e as de declínio de civilização, como as de Oswald Spengler e Ortega y Gasset,
entretanto, essas teorias de ciclo desprezam a ação humana. Encerram o tema com uma crítica
à obra de Arrighi, O Longo Século XX pois nesta análise, a história do capitalismo é um eterno
retorno à mesma coisa que mascara o motor do processo de crise e reestruturação.
Os autores chegam ao tema mais importante que fundamenta sua tese do Império
como ordem global: Pós-Modernização ou a Informatização da Produção. Nele, sustentam
que é natural a sucessão de paradigmas econômicos e enumeram três deles: o primeiro
dominado pela agricultura e extração de matérias-primas; o segundo dominado pela indústria
de bens duráveis; e o terceiro e atual, dominado pelos serviços e a informação. A ordem em
que são apresentados indica a sucessão destes na produção social; logo, a modernização
econômica implicou a passagem do paradigma agrícola ao industrial; e a pós-modernização, a
passagem deste ao de serviços e informatização.
A sustentação desta concepção, embora mais óbvia no percentual da população
ocupada em cada setor ou no percentual de valor produzido por estes, pode levar a enganos.
Os indicadores quantitativos não capturam a “[...] transformação qualitativa na progressão de
um paradigma para outro, nem a hierarquia entre os setores econômicos no contexto de cada
paradigma.” (p. 302). Na passagem do paradigma agrícola ao industrial, o qualitativo foi a
158
transformação da agricultura, que se industrializou. Outro grave erro é estabelecer analogias
entre os paradigmas produtivos de países em momentos históricos díspares, pois ainda que
assentados em um mesmo paradigma, a importância de cada um é distinta devido ao sistema
econômico global de cada época.
O discurso do desenvolvimento econômico foi imposto pelos EUA com base no
New Deal. É uma concepção que se apoia em fatores quantitativos ou nas estruturas internas,
mas não considera a posição de cada país no sistema global. Para os autores, os teóricos do
subdesenvolvimento repetem a ilusão desenvolvimentista; partem de duas premissas
aceitáveis, mas chegam a uma falsa conclusão. Primeiro, que o subdesenvolvimento foi
causado pelo colonialismo ou formas imperialistas e mantido pela integração dos países ou
regiões submetidas à rede global de economias capitalistas dominantes. Segundo, que as
economias dominantes se desenvolveram com suas estruturas plenamente articuladas e
independentes, em relativo isolamento e limitada interação com outras economias e redes
globais. A conclusão errada é que o isolamento implica desenvolvimento e independência,
“Esse silogismo […] quer nos fazer acreditar que as leis de desenvolvimento econômico de
alguma forma transcenderão as diferenças da mudança histórica.” (p. 305).
Na época atual, a modernização acabou; um indicador deste fato está no emprego.
Na modernização, o emprego migrava da agricultura para a indústria, na pós-modernidade ou
informatização, ele migra da indústria para os serviços. Este fato ocorre nos EUA desde a
década de 1970. Os empregos são “altamente movediços, e envolvem flexibilidade de
aptidões”, sua característica central é o “conhecimento, informação, afeto e comunicação.”
(306). A economia pós-moderna é uma economia da informatização, a produção industrial não
é descartada ou deixará de ser importante até nas regiões dominantes do globo. Porém, como
a industrialização tornou mais produtiva a agricultura, a informatização rejuvenescerá a
fabricação. O novo imperativo administrativo é “trate o fabril como se fosse um serviço”
(BAR apud HARDT e NEGRI p. 307).
Os autores de Império afirmam que nem todos os países capitalistas dominantes
entraram na pós-modernização da mesma maneira e identificam duas vias de informatização,
com base nas estatísticas de emprego nos países do G-7 desde 1970, de Manuel Castells e
Yuko Aoyoma. Ambos os modelos implicam o aumento do emprego no setor de serviços
(pós-industriais), porém com diferenças em espécies de serviços e em suas relações com a
atividade fabril. Estados Unidos, Reino Unido e Canadá seguem o modelo de economia que
159
implica trabalho declinante na indústria e respectivo aumento em serviços financeiros; Japão e
Alemanha seguem o modelo infoindustrial, o que implica a diminuição mais lenta do emprego
na indústria e informatização integrada à produção industrial. “Ambos caminham
resolutamente na direção da informatização da economia e da elevada importância dos fluxos
e redes de produção” (p. 307).
O processo de pós-modernização impõe mudanças irreversíveis aos países e
regiões subordinadas. O fato da informatização e mudança para os serviços acontecer
primeiramente nos países capitalistas dominantes não implica a constituição de estágios
lineares no desenvolvimento da economia global atual do tipo: primeiro agricultura, depois
industrialização e por último informatização de serviços. Não se pode fazer analogias entre
uma fábrica em Detroit de 1930 com uma fábrica da Ford no Brasil em 1990. Elas são
desiguais em tecnologia e práticas produtivas. “Hoje toda a atividade econômica” tende a ser
dominada pela “economia da informação” (p. 308). As diferenças econômicas regionais não
são estágios diferentes de desenvolvimento, mas a nova hierarquia da produção global.
A pós-modernização ou informatização indica uma nova maneira de tornar-se
humano. Os autores parafraseiam Musil sobre as técnicas tradicionais sendo substituídas pela
inteligência cibernética de informação e pelas tecnologias da comunicação. Citam Pierre
Levy, que define esse “tornar-se humano” ao produzir-se a alma como “antropologia do
ciberespaço” (p. 310). Hardt e Negri estabelecem uma relação necessária entre a passagem à
economia informacional e a mudança na qualidade e natureza do trabalho; como implicação
sociológica e antropológica mais imediata da transição entre paradigmas econômicos. Hoje, a
informação e a comunicação desempenham um papel fundamental nos processos de
produção. Uma primeira mudança é no trabalho fabril – usando a indústria automobilística
como ponto central de referência do modelo fordista ao modelo toyotista. A principal
mudança estrutural entre esses modelos envolve o sistema de comunicação entre produção e
consumo de mercadorias, isto é, a passagem de informação entre fábrica e mercado (p. 310).
Os autores afirmam que nos setores de serviços da economia há um modelo mais
rico de comunicação produtiva, baseado na permuta contínua de informação e conhecimento.
Como a produção de serviços não resulta em bem material durável, conceituam o trabalho
envolvido nessa produção como trabalho imaterial. O uso cada vez maior do computador
tende progressivamente a redefinir as práticas e relações de trabalho, torna-se uma
qualificação primária geral. Antes, os trabalhadores agiam como máquinas, a atividade
160
humana era mecânica. Hoje pensamos como computadores, as tecnologias da comunicação
por modelos de interação são cada vez mais indispensáveis às atividades laborais.
Robert Reich chama o trabalho imaterial envolvido na informática e comunicação
de “serviços simbólico-analíticos”. O trabalho que reivindica alto valor, na informatização da
produção, é a primeira forma de trabalho imaterial, chave para a competição na nova
economia global; paralelamente, cresce também o emprego de baixo valor e de pouca
qualificação no manuseio rotineiro de símbolos, a segunda forma de trabalho imaterial. O
terceiro tipo de trabalho imaterial, não explicado pelo modelo do computador, é o trabalho
afetivo na interação humana, como serviços de saúde, baseados em trabalho de cuidado e em
trabalho afetivo. A indústria do entretenimento da mesma forma está centrada na criação e
manipulação de afeto.
No trabalho imaterial, “a cooperação é totalmente imanente à própria atividade
laboral.” (p. 315) Põe em questão a velha noção comum à economia clássica e à economia
política marxista segundo a qual a força de trabalho é concebida como “capital variável”, isto
é, força ativada e tornada coerente apenas pelo capital, porque os poderes cooperativos da
força de trabalho – particularmente a força de trabalho imaterial – dão ao trabalho a
possibilidade de se valorizarem. A produtividade, a riqueza e a criação de superavit sociais
hoje em dia tomam a forma de interatividade cooperativa mediante redes linguísticas, de
comunicação e afetivas.
A passagem da produção industrial à economia da informação é a descentralização
geográfica da produção. No paradigma industrial, concentração e proximidade eram chave
para a produção em massa em grandes fábricas, para o transporte e a comunicação. A
informatização e o domínio da produção de serviços tornaram desnecessária a concentração
da produção. Os operários podem acessar a rede de casa. O trabalho informacional (tanto de
serviços como de bens duráveis) baseia-se na cooperação abstrata. “O circuito de cooperação
é consolidado na rede e na mercadoria num nível abstrato. […] a produção tende agora a ser
organizada em redes horizontais de empresas.” (p. 317).
As redes liberam a produção das barreiras territoriais, põe o produtor em contato
direto com o consumidor, independente das distâncias de ambos. Bill Gates prevê o
surgimento do capitalismo ideal, “livre de atritos” (p. 317); as superestradas da informação
ampliariam o mercado eletrônico, tornando-o mediador e revendedor universal. Mas a
desterritorialização e mobilidade do capital não são absolutas, existem tendências
161
compensatórias que aos poucos são derrubadas e conduzem o trabalho enfraquecido à
negociação. O capital não negocia ou usa sua mobilidade como arma de negociação e os
trabalhadores perdem a estabilidade. A rede acomoda formas antigas de trabalho não-
garantido: trabalho freelance, trabalho em casa, trabalho parcial e trabalho por tarefa.
A decentralização e dispersão global dos processos e lugares da produção na pós-
modernização provocam uma centralização correspondente do controle sobre a produção. O
movimento centrífugo da produção é equilibrado pela tendência centrípeta do comando. A
dispersão da atividade fabril criou administração e planejamento mais centralizados e também
uma nova centralização de serviços especializados financeiros voltados aos negócios em
cidades-chave como Nova Iorque, Londres e Tóquio, que administram e dirigem as redes de
produção global. “Os EUA consideram a regulamentação dessa infraestrutura global de
informação a mais alta prioridade. Elas são terreno ativo de fusões e competições entre as
corporações transnacionais mais poderosas” (p. 319).
Em termos políticos, a infraestrutura global da informação é a combinação de um
mecanismo democrático com o mecanismo oligopolista; que opera sob diferentes modelos de
sistema de redes. Toda a indústria cultural – jornais, livros, filmes e vídeos – opera dentro
deste modelo, controlado por um universo pequeno de figuras como Rupert Murdoch, Silvio
Berlusconi ou Ted Turner. A competição entre as corporações transnacionais atuais pelo
controle da nova infraestrutura de informação é análoga à corrida monopolista nos tempos de
Lênin pelas ferrovias, bancos, energia elétrica etc. Embora haja resistência, já “está em
marcha uma maciça centralização do controle por meio da unificação (de facto ou de jure) dos
elementos principais da estrutura de poder da informação e comunicação: Hollywood,
Microsoft, IBM, AT&T e assim por diante. A conclusão dos autores é que as novas
tecnologias da comunicação, que prometiam nova democracia e igualdade social, de fato
criaram novas linhas de desigualdade e exclusão, dentro e especialmente fora dos países
dominantes.
Os autores de Império no tema Terras Comuns traçam as relações entre a
propriedade pública, a propriedade privada e as políticas de Estado. Afirmam que o processo
de acumulação primitiva foi a passagem das coisas públicas ao domínio da propriedade
privada e que o mesmo se dá no processo neoliberal. Embora em certas conjunturas o Estado
desaproprie o privado tornando-o público, o fato atual é que o Estado passou a privatizar a
coisa pública. Neste contexto, o importante é saber qual o significado da propriedade pública
162
na economia da informação, onde a produção efetua-se em rede, por interação e
comunalidade. Nesta nova situação, o conceito de propriedade privada perde o significado. “É
cada vez menor o número de bens que podem ser possuídos e criados exclusivamente [...]; é a
comunidade que produz e que, ao produzir, é reproduzida e redefinida.” O “conceito de
propriedade privada é […] dissolvido no modo pós-moderno de produção.” (p. 323).
Deleuze e Guattari argumentam que na produção comunicativa e interativa, a
construção de conceitos não é apenas uma operação epistemológica, mas também ontológica.
Para os autores, construir conceitos, “nomes comuns” (p. 323), é um ato que combina
inteligência e ação da multidão; é fazer existir na realidade um projeto, uma comunidade; é
trabalhar em comum. A comunalidade é, do ponto de vista fenomenológico da produção, da
epistemologia do conceito e do ponto de vista prático, um projeto no qual a multidão está
completamente empenhada. “Os bens comuns são a encarnação, produção e a liberação da
multidão” (p. 324, itálico dos autores).
Hardt e Negri afirmam que ao longo de sua análise fizeram uma crítica ontológica
(do que existe) do Império. A problemática deste foi abordada em discurso ético-político,
calculando a mecânica das paixões e dos interesses na analogia com paradigmas anteriores de
poder a partir da multidão. A teoria política inglesa, de Hobbes a Hume, já não é útil porque se
apoia num sujeito pré-social e fora da comunidade, sua socialização é transcendental. No
Império, nenhuma subjetividade está do lado de fora, todos os lugares estão agrupados num
“não-lugar” geral (p. 375). Portanto, “quando reconhecemos esta determinação radical da pós-
modernidade, a filosofia política nos obriga a entrar no terreno ontológico” (p. 376).
Os autores definem que a política deve tratar da ontologia porque não é construída
de fora para dentro, mas “dada de imediato” e “campo de pura imanência” (p. 376). O Império
forma-se neste campo de imanência que embebe nossos corpos e mentes, é positivo. A política
imperial articula o “ser” em sua extensão global.
“O político precisa também ser entendido como ontológico devido ao fato de que
todas as determinações transcendentais de valor e medida que costumavam ordenar as
disposições de poder (ou melhor determinar seus preços, subdivisões e hierarquias) perdem a
coerência” (p. 376). Dos mitos sagrados do poder aplicados à nova ciência política, dos
direitos humanos às formas de lei pública internacional, segundo os autores, tudo desaparece
com a transição ao Império. É “na estrutura biopolítica do ser que a estrutura interna da
constituição imperial é revelada, porque na globalidade do biopoder toda medida fixa de valor
163
tende a ser dissolvida, e o horizonte imperial de poder é revelado finalmente como um
horizonte fora de medida. Não só o transcendental político mas também o transcendental
como tal deixou de determinar a medida” (p. 376-377).
A abordagem antinômica entre transcendência e imanência, definida por Hardt e
Negri como ontológica, permite concentrar em um campo da metafísica: Aristóteles e sua
teoria sobre a virtude da medida; Hegel e sua teoria da medida como chave para passagem da
existência à essência; até Marx e sua teoria do valor, reduzida a uma “teoria da medida de
valor” (p. 377). Em outro campo, situa-se a ideia do incomensurável, que sob a ontologia do
Império revela-se insuportável à metafísica transcendental. A questão é que em nome da
transcendência, o incomensurável foi proibido, considerado impensável, porém no contexto
biopolítico do Império, a transcendência que se tornou impensável; quando é reivindicada
politicamente, degenera em tirania e barbárie.
Os autores esclarecem que ao dizerem incomensurável querem dizer fora de
qualquer medida pré-constituída. As relações entre os modos de ser e os segmentos do poder
são sempre construídas de novo e variam infinitamente. Os índices de comando (os de valor
econômico) são definidos por elementos contingentes e convencionais, embora “existam
ápices como o monopólio das armas nucleares, o controle do dinheiro e a colonização do éter”
(p. 377). Eles garantem que a contingência se torne necessidade e não degenere em desordens.
Estes altos poderes não representam uma figura da ordem ou uma medida do cosmo; sua
eficácia é baseada na destruição (bomba), no julgamento (pelo dinheiro) e no medo (pela
comunicação) (p. 378).
Argumentam que mesmo a política estando fora da medida, o valor permanece.
Primeiro porque persiste a exploração, segundo porque a inovação produtiva e a criação de
riqueza prosseguem. No Império, a construção do valor tem lugar além da medida. O
contraste entre os sucessos incomensuráveis da globalização imperial e a atividade produtiva
que está além da medida precisa ser interpretado do ponto de vista da atividade subjetiva que
cria e recria o mundo em sua totalidade.
Os autores afirmam sustentar algo mais substancial que a centralidade do trabalho
na sociedade nesta transição ao estágio pós-moderno. Para eles, 'fora de medida' implica não
poder calcular e ordenar a produção global e 'além da medida', a vitalidade produtiva, desejo e
capacidade do trabalho construir o tecido biopolítico de baixo pra cima. 'Além da medida'
também se refere ao “novo lugar no não-lugar” da atividade produtiva autônoma a “qualquer
164
regime externo de medida” (p. 379, itálico dos autores).
Para os autores, o virtual é o conjunto de poderes para agir da multidão construído
por lutas e consolidado em desejo. O virtual exerce pressão nas bordas do real e o toca; passa
ao real através do possível no ato da criação do trabalho ativo, que é o veículo da
possibilidade. “O trabalho abriu as jaulas da disciplina econômica, social e política e
ultrapassou todas as dimensões reguladoras do capitalismo moderno e forma estatal” (p. 379).
Tornou-se atividade social geral e excesso produtivo em relação à ordem e à reprodução. É ao
mesmo tempo produto da “força coletiva de emancipação e substância da nova virtualidade
social das capacidades de produção e libertação do trabalho” (p. 379).
Na transição à pós-modernidade, o trabalho funciona fora de medida, rompeu com
a determinação temporal e demais medidas econômicas e políticas. Hoje o trabalho é uma
força social animada “pelos poderes do conhecimento, do afeto, da ciência e da linguagem
[…], é a atividade produtiva de um intelecto geral e de um corpo geral fora da medida” (p.
380). É “poder de agir” singular e universal: singular porque é domínio exclusivo do cérebro e
do corpo da multidão; universal porque “o desejo da multidão”, expresso em “movimento
virtual para o possível”, é constituído como “uma coisa de todos”. “Só quando se forma o
comum pode ocorrer a produção e a produtividade social subir” (p. 380). Qualquer coisa que
bloqueie esse poder de agir é um obstáculo a ser vencido pelos poderes críticos do trabalho e
da sabedoria passional cotidiana dos afetos.
Assim, Nomadismo e miscigenação são figuras de virtude como práticas éticas no
terreno do Império. Desta perspectiva, o espaço objetivo da globalização capitalista sucumbe.
As celebrações locais são repressivas e fascistas, reforçam os muros da nação, da etnicidade,
da raça, do povo e coisas do gênero. Pela circulação, a comunidade humana é constituída.
Fora do iluminismo e do kantianismo, o desejo da multidão é uma espécie universal. Como
um pentecostes secular, corpos se misturam e nômades falam a mesma língua.
Os autores definem o papel da Ontologia como ciência não abstrata que reconhece
conceitualmente a produção e reprodução do ser, sua dimensão espacial é demonstrada pelos
processos multitudinários concretos da globalização do desejo da sociedade humana. Um
exemplo está no processo que pôs fim ao Terceiro Mundo. “O êxodo do localismo, a
transgressão de alfândegas e fronteiras, a deserção da soberania foram as forças que operaram
a libertação do Terceiro Mundo”. Os autores, interpretando Marx, diferenciam da seguinte
forma libertação e emancipação: a primeira representa “a entrada de novas nações e novos
165
povos na sociedade imperial de controle”; a segunda, em contraste, significa destruição de
barreiras e padrões de migração forçada, a reapropriação de espaço e o poder multitudinário
de determinar a circulação global e a mistura de indivíduos e populações (p. 385).
Reafirmam suas considerações acerca da importância e, ao mesmo tempo,
limitação do conceito marxista de intelecto geral. Definem este conceito como “uma
inteligência coletiva, social, criada por conhecimentos, técnicas, e know-how acumulados” (p.
386, itálico dos autores) e sustentam que foi previsto por Marx como tendência futura: “a
certa altura do desenvolvimento capitalista, os poderes do trabalho são insuflados pelos
poderes da ciência, comunicação e linguagem”. Neste contexto, o valor do trabalho “é
realizado por uma nova força de trabalho universal e concreta, por meio da apropriação e livre
utilização das recentes forças produtivas”. Segundo os autores de Império, “o que Marx viu
como futuro é a nossa era” […] Essa transformação radical do poder do trabalho e a
incorporação da ciência, da comunicação e da linguagem na força produtiva redefiniram toda
fenomenologia do trabalho e todo o horizonte mundial da produção” (p. 386).
Enfatizam o perigo do discurso do intelecto geral ficar apenas no plano intelectual
e não corpóreo. O trabalho afetivo caracteriza a força de trabalho tanto quanto o trabalho
intelectual. Os poderes de produção são biopolíticos, perpassam e constituem a produção
quando o contexto da reprodução é submetido ao mando capitalista e à própria reprodução e
suas relações virtuais tornam-se produtivas. “O biopoder é outro nome da real submissão da
sociedade ao capital, e ambos são sinônimos da ordem produtiva globalizada” (p. 386-387).
A ciência, o conhecimento, o afeto e a comunicação constituem os principais
poderes da virtualidade antropológica, dispostos nas superfícies do Império. Estes estendem-
se pelos territórios linguísticos que interseccionam produção e vida. O trabalho torna-se
imaterial e realiza seu valor pela inovação contínua da produção, consome ou usa os serviços
de reprodução social mais refinada e interativa. Inteligência e afeto, quando se tornam os
poderes produtivos básicos, fazem coincidir produção e vida.
Na economia política, a relação entre produção e vida está invertida. O ciclo de
reprodução, subordinado ao dia de trabalho, não produz a vida, ao contrário, a vida é que
infunde e domina toda a produção. É por isso que, sepultado na imensidão da vida, o valor
está além da medida. O excesso de valor está nos afetos, no conhecimento, na inteligência e
no poder de agir. A produção de mercadorias tende a ser alcançada pela linguagem, quer dizer,
máquinas de inteligência que são continuamente renovadas pelos afetos e pelas paixões
166
subjetivas.
Os autores definem cooperação social como sinergias da vida ou manifestações
produtivas da vida sem disfarces; expressão última utilizada por Giorgio Agaben ao se referir
ao “limite negativo de humanidade” como “condição de passividade humana” (mais ou menos
heroica) por trás dos abismos políticos do totalitarismo moderno. Para os autores, a
monstruosidade de reduzir os seres humanos à “vida sem disfarces” (p. 388) realizada pelo
fascismo e nazismo, não destruiu o poder da cooperação produtiva e acumulação da multidão.
O delírio reacionário do fascismo e do nazismo surgiu quando o capital descobriu que a
cooperação social já não era resultado de investimento de capital, mas antes “um poder
autônomo, o a priori de todos os atos de produção” (p. 388). Quando o poder humano aparece
como uma força autônoma da cooperação coletiva, a pré-história do capitalismo chega ao fim
e a vida sem disfarces se torna poder produtivo, digna riqueza da virtualidade.
As forças científicas, afetivas e linguísticas da multidão transformam
agressivamente as condições de produção social. A reapropriação das forças produtivas pela
multidão é um campo de transformações radicais – cena de uma operação demiúrgica.
Consiste na revisão da produção de subjetividade cooperativa; ato de fundir e hibridizar com
máquinas reapropriadas e reinventadas pela multidão; um êxodo espacial e mecânico que
transforma o sujeito da cooperação em máquina – êxodo maquinal. “A história do trabalhador
moderno e do indivíduo da soberania moderna já contém um longo catálogo de metamorfoses
maquinais, mas a hibridização de humanos e máquinas já não é definida pela rota linear que
ela seguiu através do novo período” (p. 389). Chegou o momento em que a relação de poder
que domina a hibridização e as metamorfoses maquinais pode ser revertida. Os autores citam
Marx em O Capital quando tratam da relação entre o homem e a máquina para concluir que as
novas virtualidades, a vida sem disfarces do presente, tem a capacidade de assumir o controle
dos processos de metamorfoses maquinais. No Império, a definição da virtualidade maquinal,
ou seja, as diferentes alternativas de transição entre o virtual e o real, é o terreno central da
luta política. Ele abre ao trabalho um futuro de metamorfoses que a cooperação subjetiva pode
e deve controlar ética, política e produtivamente.
Em Res Giestae/Machine os autores afirmam a crítica à Tese do Fim da História e
que, apesar do poder do capital e de suas instituições de soberania exercerem um sólido
domínio e autoridade sobre a história, os poderes virtuais da multidão na pós-modernidade
são claros sinais do fim de tal autoridade e suas instituições. O domínio capitalista revela-se
167
transitório, a teleologia transcendental da modernidade capitalista acaba, exigindo da multidão
um telos materialista.(p. 390). As res gestae, as virtualidades singulares que operam a
conexão entre o possível e o real, estão, na primeira transição, fora de medida como uma arma
destrutiva (desconstrutiva da teoria e subversiva na prática); e, na segunda, além da medida
como poder constituinte. O virtual e o possível estão casados como inovação irredutível e
como máquina revolucionária.

2.6.6 Mészáros: Para além do capital

A abordagem da crise por István Mészáros (2006) constitui o elemento central de


seu trabalho no livro Para Além do Capital: Rumo a uma teoria da transição, e este, por sua
vez, como explica o próprio autor, é uma “contribuição à reavaliação e esclarecimento
teórico” no sentido indicado em seu Prefácio da terceira edição de Marx's Theory of
Alienation de 1971, cuja motivação é saber se “a preocupação de Marx com a emancipação
da regra do capital pertencia ao século XIX” (p. 44, itálicos do autor).
É importante indicar que o exame que se realiza do trabalho de Mészáros segundo
o escopo da presente pesquisa apoia-se inteiramente no trabalho anterior de sustentação à
mesma, a dissertação de mestrado (BEVILAQUA, 2011). Neste, identifica-se que a
abordagem da crise do capital em Mészáros claramente se diferencia da abordagem de Marx,
porém, buscando um nexo essencial com esta. O autor sustenta uma teoria conceitual da crise
em Marx fundada na gênese histórica da contradição da mediação de segunda ordem do
capital entre a parte orgânica e inorgânica das relações metabólicas dos indivíduos sociais e
com a natureza, e destes entre si. Esta contradição se expressa na relação entre capital e
trabalho assalariado ou trabalho objetivado e trabalho vivo, presa à noção de ciclo econômico,
e enfatiza a teorização problemática do consumo, dado que o próprio Marx admitiu, segundo
o filósofo húngaro, que necessitava aprofundar a importância deste conceito nos esquemas de
reprodução do capital ( pp. 536-539).
Apesar do procedimento metodológico e categórico de Mészáros suscitar uma
larga controvérsia, na medida que sustenta que o método de Marx se compõe dos princípios
da “revisão” e de “liberdade de escolha” ( pp. 518-522) e outras tantas ilações polêmicas, a
168
exemplo de suas metáforas com a biologia; é este que orienta o ordenamento lógico do seu
livro ao objetivo que se propõe:

1) […] ir além do capital em si e não meramente além do capitalismo. […];


2) Além da versão publicada de O capital de Marx […]. Todo o projeto a que Marx
dedicou sua vida não permaneceu apenas inacabado, mas [...] só foi completado em
seus estágios iniciais;
3) Além do projeto marxiano em si, como ele poderia ser articulado sob as
circunstâncias da ascendência global da sociedade de mercado no século XIX,
quando as possibilidades de adaptação do capital como sistema de controle 'híbrido'
[...] ainda estavam ocultas do exame teórico ( pp. 44-45).

Desta definição sintética é possível supor o grau de dificuldade para uma síntese
articulada do livro de Mészáros sob o escopo da presente pesquisa, restrita à teoria da crise do
capital em Marx. A diversidade de temas analisados sob inclinação visivelmente histórico-
filosófica vão desde o resgaste do legado hegeliano (p. 54); à reconstrução do corpus teórico
do capital como “ordem sociometabólica” e “incontrolável sistema de controle” que chega aos
“limites imediatos e absolutos” (pp. 94-346); o tema da Crise Estrutural do Sistema do
Capital, sua Taxa de Utilização Decrescente e a ativação dos limites absolutos (675-700); até
chegar a diferenciação Das crises cíclicas à crise estrutural do capital (pp. 695-697 e 795-
798); finalizando com o Significado de Para além do capital (p. 1064) e A necessidade de
uma Teoria da Transição (p. 1068).
No que se refere à diferenciação conceitual entre Crise Estrutural e Crise Cíclica
sustentada pelo autor, a pesquisa realizada sobre a obra deste sugere que tal nexo é melhor
compreendido pela sua concepção do método dialético e do procedimento metodológico com
que reconstrói categorialmente o conceito de capital em geral, apoiado na leitura dos
Grundrisse de Marx. No capítulo 17, Mészáros faz referência ao Método da Economia
Política, o item 3 da Introdução dos Grundrisse, destacando a passagem final em que Marx
trata o conceito de sociedade burguesa e do capital em geral e apresenta seu plano de trabalho,
como se segue:

A ordem obviamente deve ser: 1) os determinantes gerais abstratos que prevalecem


em quase todas as formas de sociedade […]; 2) as categorias que compõem a
estrutura interna da sociedade burguesa e na qual se apoiam as classes fundamentais
[…]; 3) concentração da sociedade burguesa na forma de Estado […]; 4) as relações
internacionais de produção. Divisão internacional do trabalho. Trocas
internacionais. Exportação. Taxa de Câmbio. 5) O mercado mundial e crises
(MARX, apud MÉSZÁROS, 2002, p. 702).
169
Com base nesta citação, Mészáros estabelece uma série de considerações; a mais
importante é que “[…] o conjunto da análise marxiana deveria ser levada à sua conclusão, em
relação aos problemas enumerados 4 e 5”, indicando que tal conclusão deveria ser “pela
demonstração da insolúvel crise estrutural do sistema, que ele [Marx] esperava que se
desdobraria pelos antagonismos que emanam da divisão internacional do trabalho e do
mercado mundial.” (pp. 704, grifos nossos). O autor acrescenta que, embora não tenha
completado seu pensamento sobre as “relações de classe”, referindo-se à interrupção dos
manuscritos do Livro III de O Capital, “a abordagem de Marx do complexo de problemas a
ser investigado em conjunto é suficientemente clara na passagem acima citada” do método (p.
703, grifos nossos). Portanto, com base nestas considerações do autor, é crível afirmar que
esta é a linha problemática e a indicação metodológica do nexo entre Crise Cíclica e Crise
Estrutural em Para Além do Capital.
Neste sentido, a pesquisa passa a enfocar diretamente a parte do livro de Mészáros
dedicada à crise estrutural do sistema do capital. O Capítulo 14 analisa essencialmente o
conceito de riqueza, o mesmo ponto de partida de Marx tanto nos Grundrisse como em O
Capital, distinguindo-se, entretanto, na abordagem e nos resultados perseguidos. Indaga se
“[…] é possível uma abordagem radicalmente diferente do desenvolvimento das
potencialidades produtivas humanas em resposta a uma necessidade genuína, oposta à prática
da reprodução social subordinada à produção do capital”, e desdobra em dupla preocupação:
a) “não é crível sustentar por muito mais tempo a disjunção entre necessidade e produção de
riqueza” e b) “é falsa a ideia de que não existe alternativa fora da prática dominante”. O
fundamento para a mesma consiste em que “o ponto de vista da eternização do capital é
incorreto” apesar das vitórias deste, porque necessita “apagar as diferenças” com as
características dos modos de produção passados, que contrastam com a acumulação de capital
para “negar a possibilidade de alternativa ao futuro” de forma apriorista e a-histórica (p. 605).
A partir deste preâmbulo, o autor passa a abordar o problema da “disjunção entre
necessidade e produção de riqueza”, que traduz a contradição fundamental da crise estrutural
entre o valor de troca e valor de uso. Inicia sustentando que “a completa subordinação das
necessidades humanas à reprodução do valor de troca – no interesse da autorrealização
ampliada do capital – tem sido o traço marcante do sistema do capital” (p. 606). Em seguida,
explica que para o capital “tornar a produção de riqueza a finalidade humana, antes teve que
dissociar o valor de uso do valor de troca”, depois submeter o primeiro ao segundo, e nisto
170
consiste “o grande segredo da sua dinâmica” capaz de superar as limitações das necessidades
ao desenvolvimento, orientando a produção e reprodução ampliada para o valor de troca,
adiantando-se à demanda existente em extensão significativa, agindo como estímulo a esta.
Nestes termos, sua organização da divisão do trabalho se diferenciou das sociedades em que o
valor de uso e a necessidade exercem a função reguladora, a exemplo da descrição realizada
por Marx em O Capital, da comunidade indiana e do sistema de guildas (pp. 606-608).
Nesta reconstrução e redimensão categorial dos fundamentos do sistema do
capital a partir de sua contradição fundamental, Mészáros cita novamente os Grundrisse:

Não é a unidade da humanidade viva e ativa com condições naturais, inorgânicas da


sua troca metabólica com a natureza, e portanto sua apropriação da natureza, que
requer uma explicação ou é resultado de um processo histórico, mas antes a
separação entre estas condições inorgânicas da existência humana e sua existência
ativa, uma separação que está posta completamente na relação entre trabalho
assalariado e capital (MARX apud Mészáros, 2002, p. 608).

Mészáros afirma que o sistema não poderia “controlar com sucesso o


sociometabolismo a menos que tornasse permanente todas aquelas separações artificiais que
constituem seus pressupostos”; portanto, a questão fundamental é como recuperar esta
unidade perdida não somente da natureza externa que confronta o ser humano, mas também a
natureza interior, que é a própria natureza da humanidade. O autor conclui, tendo em vista a
Teoria da Transição, que a superação desta contradição só é possível num nível superior de
desenvolvimento das forças produtivas no socialismo.
Mészáros considera que o significado de riqueza “que a tudo absorve” imposta
pelo capitalismo, implica o “desaparecimento do verdadeiro significado de riqueza”,
esvanecido pela concepção reificada das “estruturas materiais e relações igualmente
fetichizadas que determinam o sociometabolismo em geral” (p. 610). É assim que “a categoria
propriedade foi perversamente alterada” pela reificação do capital, que surge da “separação (e
alienação)” do sujeito ativo da reprodução social das “condições inorgânicas da existência
humana”. “O significado de propriedade mudou a ponto de se tornar irreconhecível” (p. 610).
Desta reflexão filosófica do “eu proprietário partido do homem natural”, Mészáros extrai o
desdobramento categórico do trabalhador, pois, substituída a mediação das relações
indivíduos/natureza da comunidade pelo capital, a unidade entre produção/reprodução é
reconstruída pela relação entre trabalho assalariado e capital, na qual o primeiro é, ao mesmo
tempo, produtor de mais-valia e consumidor manipulado pelo mercado (p. 610-614).
171
Sobre as categorias produtividade e uso, Mészáros sustenta que diante do
avançado do desenvolvimento histórico do sistema do capital e que, antes mesmo do seu
triunfo global, salientava-se a contradição problemática nas condições generalizadas de
produção de mercadorias entre a diversidade de possibilidades qualitativas e o domínio
fetichista da quantificação. Que tal processo implicava uma “perversidade inteligível” e que
justamente por isso, “o modo de reprodução social é sobrecarregado com uma contradição
explosiva que transforma suas potencialidades positivas em realidades destrutivas”, portanto,
uma sinalização clara da virada no desenvolvimento do sistema com o aproximar dos seus
limites e cada vez mais perdulárias quantificações e expansão num mundo de recursos finitos
(p. 614).
Com base em Marx, sustenta também que “como a expansão dialética das
necessidades está ligada ao processo de reprodução ampliada das condições de satisfação”
(aspecto qualitativo), a criação de novas necessidades fica implícita na criação dessas
condições. Nestes termos, o capitalismo ao “subordinar a qualidade à quantidade em seu
presente estágio é um retrocesso” (p. 615) e não afeta apenas as condições objetivas do
processo de produção parcializando-o, também afeta o aspecto subjetivo, isto é, o trabalhador
objetivado técnica e historicamente, parcializado, até mesmo fisiologicamente e transformado
em apêndice da máquina, como Mészáros ressalta ao citar a Miséria da Filosofia16 (p. 615).
O enlace entre organização hierárquica e divisão do trabalho na fábrica e a
subversão dos conceitos da economia política clássica de produtividade e uso, trabalho
produtivo e não produtivo, é demonstrado pelo autor apoiado no modelo de Baran de uma
padaria hipotética cujo número de funcionários e atividades não ligadas à produção imediata
de mais-valia, passam a desempenhar papel protagonista no controle e na determinação dos
objetivos da produção. A partir desta, analisa as contradições que surgem imediatamente entre
o trabalhador produtor de mais-valia e o não produtor, e a reversão dos conceitos de
necessidade, utilidade e valor. Indica que a resistência dos trabalhadores ao comando geral do

16
“Se a mera quantidade do trabalho funciona como medida de valor sem qualquer consideração para com a
qualidade, isto pressupõe que o trabalho simples se tornou o pivô da indústria. Pressupõe que o trabalho foi
equalizado pela subordinação do homem à máquina ou pela extrema divisão do trabalho; que os homens são
obliterados pelo seu trabalho, que o pêndulo do relógio se tornou uma medida tão acurada da atividade relativa
de dois trabalhadores como o é da velocidade de duas locomotivas. Portanto, não devemos dizer que a hora de
um homem vale a hora de outro homem, mas sim que um homem durante uma hora vale tanto quanto outro
homem durante uma hora. Tempo é tudo, o homem é nada, ele é, na melhor das hipóteses, carcaça do tempo. A
qualidade não mais importa. A quantidade sozinha decide tudo; hora por hora, dia por dia” (MARX, apud
MÉSZÁROS, 2002, p. 615).
172
capital (o capitalista) conduz o desenvolvimento de uma estrutura de comando hierarquizada
no processo de produção e trabalho, que passa a mediar a relação entre capitalistas e
trabalhadores, alterando as categorias de trabalho produtivo e não produtivo, ou trabalho
necessário e inecessário e negação do antivalor (pp. 616-624).
O processo de racionalização da produção e reprodução social com base na
contradição entre trabalho produtivo e improdutivo tem sua origem nos pressupostos do
sistema do capital, como destaca Mészáros na análise de Marx sobre cooperação. Porém, o
mais importante a destacar aqui é a posição defendida pelo autor que afirma: “Extensões
posteriores dos constituintes não produtivos, que geram antivalor no processo de trabalho
capitalista, compartilham as mesmas premissas e são construídos sobre os mesmíssimos
fundamentos materiais.” (p. 618). Este fato implica o redimensionamento da estrutura de
produção, a torna cada vez mais dependente deste setor parasitário, tanto do sustento quanto
do consumo, aumentando as contradições do complexo global.
Assim, as limitações intrínsecas dos paradigmas orientadores capitalistas da
produção tornam-se visíveis e notabilizam a crise do sistema que se aprofunda e que já não
podem ser resolvidas pela “simples expansão da 'produção de riquezas', já que em sua
estrutura 'riqueza' se iguala a mais-valia, e não a produção de valor de uso pela aplicação
criativa do tempo disponível” ( pp. 618-619). A partir deste ponto, Mészáros chega ao fulcro
da contradição fundamental do capital do qual Marx desenvolve toda a sua dialética
conceitual dos fundamentos essenciais causais das crises do capital: a contradição entre tempo
necessário e tempo excedente, ou o que é o mesmo, trabalho necessário e trabalho excedente,
ou ainda trabalho vivo e trabalho morto. Mészáros introduz a temática afirmando que “a
produtividade está indissoluvelmente associada ao tipo de utilidade e à utilização compatível
com as práticas produtivas dominantes de toda sociedade” (p. 620) Chama em seu concurso
Marx nos Grundrisse, onde este coloca as relações entre a lei da produtividade e a lei
demográfica dentro da jornada simples de trabalho, relacionando o crescimento da produção
ao crescimento demográfico, e este último à diminuição do tempo socialmente necessário e
respectivo aumento do tempo excedente, logo, ao excesso de produção. Assim, conclui Marx
na passagem citada: “Capital, como postulado do trabalho excedente é, igualmente e ao
mesmo tempo, o postulado e não-postulado do trabalho necessário; só existe enquanto o
trabalho necessário simultaneamente existir e não existir.” (MARX, apud MÉSZÁROS, 2002,
pp. 621).
173
O autor conclui que o sistema capitalista demarca os seus próprios limites,
historicamente específicos, como limites da produção em geral. O capital apenas legitima as
necessidades humanas que estejam dentro dos imperativos de sua autorrealização ampliada,
por isso, “não é capaz de perceber a destrutividade que emerge das contradições entre o
trabalho supérfluo e necessário”, nem que sua “própria existência depende da existência e não
existência simultânea do trabalho necessário e da condição de continuar a reproduzir-se com
base nesta contradição”. Independente disto, “as contradições, no microcosmo único do
capital, são inevitavelmente reproduzidas em todo o seu macrocosmo, na jornada de trabalho
singular,” como característica específica de toda a atividade produtiva, “das menores fábricas
às mais gigantescas corporações transnacionais” (p. 621).
Em termos da estrutura de comando do capital e sua determinação verticalizada
do processo de trabalho, Mészáros destaca a importância da redução do trabalho vivo à
condição de mercadoria força de trabalho, que conduz à contradição artificial de dupla
existência: a primeira, como organismo biológico vivo que necessita se reproduzir,
subordinando-se às exigências materiais e organizacionais do capital; a segunda, coisificada
em mercadoria, reduzida a tempo quantificável (“carcaça do tempo”), o que permite grande
flexibilidade horizontal e vertical em sua exploração e aplicação no processo de reprodução
ampliada. Neste dinamismo e flexibilidade do sistema, a verticalização se constitui na
garantia do processo de acumulação pela expansão horizontal do capital, através da economia
de escala e da cooperação simultânea das jornadas de trabalho, logo, da exploração da força
de trabalho. Contudo, uma vez terminada a fase ascensional do sistema, se converte em
determinação unilateral e desagregadora do intercâmbio entre as duas dimensões, “indicando
os limites estruturais insuperáveis” do sistema ( pp. 622-624).
A homogenização, segundo Mészáros, é a relação mais importante do processo
produtivo e distributivo porque “completa o círculo vicioso do capital e é condição absoluta
da ordem sociometabólica controlada” pelo mesmo ( pp. 622-624, pp. 622-624, pp. 622-624).
A unidade entre necessidade e produção é duplamente rompida: primeiro, porque os
produtores estão radicalmente separados do material e dos meios de trabalho (instrumentos,
matéria-prima, etc.) e sem o controle do processo de produção; segundo, porque as
mercadorias produzidas neste processo separado não podem emergir como valor de uso direto
para os consumidores, sendo mediadas pelo comércio, portanto, “exigindo um momento
estranho à produção para se realizarem desdobradamente como valor de uso, no consumo, e
174
como valor de troca, na mais-valia do capitalista, bem como o movimento inverso de retorno
à reprodução ampliada” (p. 625).
O importante a sublinhar neste processo é que as determinações e contradições
distorsivas e constrangedoras da estrutura mercadoria não decorrem de um estágio avançado
do modus operandi do sistema do capital, na verdade, são o seu pecado original, pois a ação
unificadora da relação capital/trabalho assalariado tem por pré-condição a imposição desta
separação entre trabalhadores e os meios materiais de produção e subsistência. E como não
pode funcionar sem as mesmas, então assume uma posição contraditória: por um lado, afirma
positivamente reproduzindo as contradições existentes e relações conflituosas, o que
caracteriza o próprio modo como processo metabólico limitado, dado o antagonismo
estrutural irreconciliável; por outro, deve encontrar as garantias objetivas necessárias à
coesão operativa/prática dos constituintes diversos e conflitantes do seu próprio sistema.
O mais absurdo paradoxo de todos é que o “próprio trabalho mercantilizado
auxilia a suspensão da contradição entre produção e troca”, assegurando a necessária
continuidade da produção – ao “participar da unidade peculiar, dos dois momentos
objetivamente opostos, e se submeter a ela”. O modo de reprodução societária pode
prosseguir sem distúrbios até que a crise de acumulação e superprodução rompa
periodicamente todo o conjunto de relações e determine sua reconstituição sintonizada em
novas circunstâncias. Deste modo, a unidade destroçada entre necessidade e produção é
remendada mesmo que de forma extremamente perversa, como é característico do modo do
ajuste aos limites do processo metabólico do capital. Refeita a unidade da estrutura
homogenizada entre necessidade e produção por meio da troca, a própria necessidade e
imperativos do capital são internalizados pelo trabalhador como suas próprias (p. 628).
A homogenização priva o trabalho vivo da supervisão e controle do processo de
trabalho, que é a questão fundamental do processo de trabalho global. A alienação forçada
institucionalmente dos meios materiais de trabalho do trabalhador constitui apenas a
precondição material da articulação capitalista fragmentária e homogenizada do processo de
trabalho e da completa subjugação do trabalhador ao comando do capital. Alterado o
microcosmo reificado da jornada de trabalho singular, é utilizado e reproduzido apesar das
contradições internas, através do macrocosmo homogenizado e equilibrado do sistema como
um todo. Ao contrário das premissas necessárias do capital, como modo de controle, tudo o
que o sistema poderia realizar seria a transformação de uma crise periódica mais ou menos
175
temporária e conjuntural em uma crise estrutural crônica afetando diretamente, pela primeira
vez na história, toda a humanidade (pp. 630-632).
Como se pode observar, essa definição da crise de Mészáros reproduz a
formulação tradicional da crise em Marx, porém existe um elemento novo formulado como
diferencial teórico entre a crise estrutural e a crise cíclica conjuntural, que explica a
transformação da segunda na primeira, cujo fundamento é a noção de economia de tempo, que
segundo o autor passa a ser a característica principal e apresentar-se como tendência
plenamente no “capitalismo avançado” enquanto Taxa de Utilização Decrescente.
A fundamentação desta tese parte da narrativa de Charles Babbage, sobre a
maximização da “vida das mercadorias” pelo aspecto positivo, destacando as vantagens do
maquinário e manufaturas capitalistas: a) acréscimo que elas geram às forças humanas; b) a
economia do tempo humano que produzem; e c) a conversão de substâncias aparentemente
comuns e sem valor em produtos valorosos. Destas características, destaca-se a “economia de
tempo mínimo”, que como categoria genérica expressa as demais. A narrativa de Babbage
revela o segredo da eficácia do capitalismo avançado em “gerar desperdício e dissipação em
escala monumental”, indicando que este fenômeno “não é um desvio em relação ao espírito
capitalista, nem dos princípios econômicos, mas uma tendência destrutiva da tirania do
tempo mínimo constituinte da gênese do capital” (p. 635). Babbage não vê o aspecto negativo
na tendência das inovações tecnológicas e das máquinas porque estas inicialmente aparecem
apenas nos “momentos especiais, de crises de especulação” e outras, acelerando a
produtividade e tornando obsoletos inventos que sequer foram utilizados inteiramente e “são
substituídos por outros mais úteis”, “aquilo que seria eficiente no capitalismo avançado,
acompanhando a produtividade” ( pp. 634-635).
Portanto, no curso da história “o avanço da produtividade inevitável altera o
padrão de consumo, bem como a maneira que são utilizados tanto os bens a serem
consumidos, como os instrumentos com que são produzidos”. Um processo que afeta
“profundamente a própria natureza da atividade produtiva”, e determina a proporção de tempo
disponível total da sociedade, distribuído entre as atividades necessárias para o intercâmbio
metabólico com a natureza e outras funções e atividades levadas a cabo pelos indivíduos da
mesma ( pp. 639-640). Segundo Mészáros, a Taxa de Utilização Decrescente se manifesta
“em primeiro lugar, na proporção variável segundo a qual uma sociedade tem que alocar
quantidades determinadas de seu tempo disponível total para a produção de bens de consumo
176
rápido (por exemplo, produtos alimentícios), em contraponto aos que continuam utilizáveis
(isto é, reutilizáveis) por um período de tempo maior: uma proporção que obviamente tende a
se alterar a favor dos últimos”. Mészáros não fornece uma aplicação prática da mesma,
embora afirme literalmente que a TUD poderia ser mensurada (p. 640).
Mészáros ao remontar todo o processo de desenvolvimento da TUD,
argumentando que, apesar da histórica separação dos trabalhadores da matéria e meio de
trabalhos e da conversão destes em capital, pela qual supera os limites da demanda,
adiantando a produção à mesma e estimulando-a pela oferta; tal processo representou “uma
faca de dois gumes”. Por um lado, porque implicou a perda dos limites da produção, pois “do
papel ativo e estimulador da oferta passou a manipulação da demanda”; por outro lado,
porque “o capital a partir disto perde a capacidade de controlar a produção”. Neste aspecto,
destaca o autor, a recuperação da noção de luxo como riqueza, um valor de uso ambíguo,
arrasta parte dos “trabalhadores ao mercado de consumo, evidenciando-se claramente a
manipulação da demanda”, conformando-se a problemática “reversão” do capitalismo
avançado em “sociedade dos descartáveis”. O “retorno ao equilíbrio entre produção e
consumo para contínua reprodução ampliada” só é possível pelo “consumo artificial em
grande velocidade”; bem como o “invento de um tipo de produção – centrada no complexo
industrial-militar – onde o consumo útil é marginal, ao passo que se consume destrutivamente
na produção, imensos recursos materiais e humanos”. Esta produção se junta “à montanha de
mercadorias consumidas, já antes de atravessarem os portões das fábricas” (pp. 640 e 660).
Segundo o autor, a dinâmica expansiva dos meios de produção é determinada pela
lógica do capital em si, e não pela particularidade de sua forma de existência como materiais e
instrumentos de produção, o que implica sérias repercussões para a TUD, tanto na fábrica e
maquinário, como também no funcionamento do sistema como um todo (produção e
distribuição). O capital autoexpansivo implica retorno lucrativo da totalidade de suas unidades
adicionais, compondo seu poder e recompondo as contradições, devido à necessidade da
realização da mais-valia como pressuposto para novo ciclo de expansão. O processo deve
continuar ad infinitum, independente da magnitude do capital acumulado e de suas partes (p.
664). No processo contínuo da “acumulação ampliada, paradoxalmente, quanto maior o
capital convertido em meios de produção, tanto maior a pressão para superá-la por uma
grandeza maior e a espera da sentença de morte”.(p. 665). O expansionismo pela
concentração e centralização de capital, decorrente da contradição capital e trabalho e da
177
competição entre os diversos capitais, faz da TUD um instrumento de “eliminação da
concorrência” e dos pequenos e médios capitalistas, na base da economia de escala; a
utilização em uma ponta implica subutilização na outra, ou capacidade ociosa.(p. 666).
A Taxa de Utilização Decrescente, segundo Mészáros, “é resultado da confluência
de todas as determinações”, tanto do trabalho, na redução produtiva do tempo necessário,
convertido em ganhos ao capital; passando pelos diversos “planos de funcionamento do
trabalho vivo, na forma de desemprego crescente”; até “superprodução/subutilização de
mercadorias e uso perdulário de máquinas produtivas”. A única saída do “ponto de vista do
trabalho é a generalização e a utilização criativa do tempo disponível”, um “anátema para o
capitalismo porque não pode ser adaptado ao sistema de reprodução”. Portanto, “o impulso à
multiplicação da riqueza reificada e pelo incremento concomitante em forças produtivas
abstratas” da sociedade não pode ser detido quaisquer que sejam as implicações para a TUD e
o desperdício associado na administração dos recursos materiais e humanos da sociedade.
Tempo disponível para o capital ou é útil à sua expansão ou é inútil. Daí a tirania do tempo
mínimo unido à TUD ter que prevalecer aos obstáculos, até que o sistema entre em colapso
sob peso das suas próprias contradições (p. 668).
O capital não tem grandes alternativas, para continuar funcionando necessita que:
a) “o círculo de consumo se expanda com sucesso de forma que uma ampla e crescente massa
de forças de trabalho conviva com os imperativos da produção ampliada, absorvendo os
produtos disponíveis sem dificuldade”; b) uma “força de trabalho relativamente limitada ou
estacionária – nos países capitalistas avançados – possa proporcionar uma demanda suficiente
dinâmica para corresponder às necessidades de expansão do capital gerada pelo sistema”,
tanto de “âmbito ampliada”, quanto de “taxa de consumo acelerada”.(p. 669).
A TUD afeta todas as três dimensões fundamentais da produção e do consumo
capitalista negativamente, a saber: a) bens e serviços; b) instalações e máquinas; e c) força de
trabalho. Na primeira, a tendência é sintomática na crescente velocidade da circulação e do
turnover do capital, desdobrado em “capitalismo de consumo”. Na segunda, é visível na
crescente obsolescência planejada e embutida, na subutilização crônica, sucateamento, e
mesmo nos fundos do Estado para renovação tecnológica. Na terceira, observa-se a tendência
no uso e não uso da força de trabalho, que é uma questão explosiva no desemprego corrente
como manifestação da TUD, que retira o manto da “maximização das utilidades marginais”. A
tentativa de explicar o “desemprego estrutural” pelo progresso tecnológico ou pela mística do
178
trabalhador consumidor e do capitalista produtor, apagam a demarcação entre “tempo mínimo
e tempo disponível”, o que revela o “caráter estratégico dos trabalhadores e seu potencial
emancipador” (p. 674).
Mészáros fundamenta teoricamente sua tese da Taxa de Utilização Decrescente no
trabalho de Babbage, em superação às três deficiências que ele aponta na análise de Marx em
O Capital, apoiando-se em Rosa Luxemburgo. Segundo o autor, Marx não foi capaz de ver as
potencialidades do consumo positivo para o capital, da ampliação dentro da própria classe
operária ou do consumo perdulário do Estado. Afirma que Marx tampouco conseguiu ver a
capacidade destrutiva do aumento da produtividade, extraído de sua interpretação da obra de
Babbage. Por último, Mészáros diz que compreende que Marx não tenha se interessado “em
explorar as possibilidades do capital deslocar suas contradições” ao resto do mundo, adiando
por um largo período “a erupção da sua crise estrutural” (p. 535). Ou seja, não conseguiu
enxergar a potencialidade e incidência da TUD, segundo o autor, a lei mais importante hoje no
funcionamento do capitalismo avançado por ser o veículo através do qual as crises cíclicas se
transformaram numa crise estrutural: “De fato, as manifestações destrutivas dessa lei
tendencial – dificilmente visíveis na época de Marx – entraram em cena com ênfase drástica
no século XX, particularmente nas últimas quatro ou cinco décadas” (p. 675).
Termina este capítulo sobre a Taxa De Utilização Decrescente definindo o
significado do complexo industrial-militar como de produção destrutiva e perdulária,
indiretamente ligada à “obsolescência planejada” e ao “desvio da ciência” (p. 694); um
exemplo que corrobora sua tese. Além disso, lança mão da análise de Marx em sua
perspectiva negativa sobre o capital para afirmar a existência “das 'grandes tempestades' e um
continuum de depressão”, e demarcar sua posição com Marcuse, de quem extrai a tese da
sociedade unidimensional, agregando-a à sua análise. Sua demarcação com os membros da
Escola de Frankfurt, inclusive Lucien Goldman que segue os passos de Marcuse, está em não
se deixar confundir pela “capacidade recém descoberta pelo capital de evitar tempestades nas
circunstâncias atuais [...] como remédio estrutural fundamental [...] e natureza radicalmente
alterada [...], caracterizada pela 'integração' das classes trabalhadoras e pelo triunfo do
'capitalismo organizado' sobre a contradição do capitalismo em crise” (p. 696).
Conclui seu raciocínio, afirmando que esta tendência apontada por Rosa
Luxemburgo, que apresenta como a “primeira a visualizar o papel da produção militarista
antes da primeira Guerra Mundial”, continua a mesma em suas determinações básicas, em
179
termos da “realização capitalista”; e que “apenas sua implementação assume uma forma […]
mais avançada […] flexível e dinâmica, assim como ideologicamente menos transparente e,
por isso, politicamente menos vulnerável” (p. 778).
Mészáros diferencia e historiciza a passagem das crises cíclicas à estrutural. O
mais relevante neste aspecto é a tentativa de concreção da crise atual, relacionando-a a
observações empíricas e às crises históricas, tanto as que viveram Marx em sua época, como a
grande depressão dos anos 30 do século passado. Sua abordagem inicia enfatizando que a
crise que se vive “hoje é fundamentalmente uma crise estrutural” que se associa “às crises de
intensidade e duração variadas” do capital, pois é seu “modo natural de existência” e maneira
de “progredir para além de suas barreiras imediatas” e “estender, com dinamismo cruel sua
esfera de operação e dominação”. Deste modo, o capital não pensa em superar
permanentemente todas as crises, apesar dos seus ideólogos e propagandistas frequentemente
sonharem com ou ainda reivindicarem a realização exatamente disso. Sendo assim, Mészáros
indica como novidade histórica da crise atual os seguintes aspectos principais:

(1) seu caráter universal, em lugar de restrito a uma esfera particular […]; (2) seu alcance é
verdadeiramente global […], em lugar de limitado a um conjunto particular de países […];
(3) sua escala de tempo é extensa, contínua, se preferir, permanente, em lugar de limitada e
cíclica […]; (4) em contraste com as erupções e os colapsos mais espetaculares e
dramáticos do passado, seu modo de se desdobrar poderia se chamar de rastejante […]: a
saber, quando a complexa maquinaria agora ativamente empenhada na 'administração da
crise' e no 'deslocamento' mais ou menos temporário das crescentes contradições perder sua
energia (p. 796).

Em síntese: é uma “crise de caráter universal, global, permanente e rastejante”.


Esta aproximação analítica da realidade concreta da crise e sua justificativa, sem subestimar o
arsenal de autodefesa contínua do capital, encontra-se no revés cada vez maior das ações para
neutralizá-la, indicando a sua “severidade e aprofundamento”. Concentrando-se em alguns
dos seus componentes, é necessário ter em conta que o longo silêncio da classe operária sobre
a crise tem explicação não apenas no sucesso do capital em deslocar as contradições, mas
também na mistificação ideológica deste deslocamento através das ideias do “fim das
ideologias”, “triunfo do capitalismo organizado” e “integração da classe trabalhadora”, como
se fosse um “remédio estrutural” e “solução permanente”. Contudo, atualmente, quando não é
mais possível ocultá-la, a mesma mistificação ideológica reaparece sob o manto tecnológico
da “segunda revolução industrial”, “colapso do trabalho”, “revolução da informação” e
“descontentamento cultural na sociedade pós-industrial” (p. 796).
180
Mészáros, em sua contextualização da crise, distingue ainda a crise estrutural da
crise conjuntural pelos seguintes traços: a) “uma crise estrutural afeta a totalidade de um
complexo social” em todas as suas relações, se diferenciando de “uma crise não estrutural que
afeta apenas algumas das partes do complexo em questão”; b) o deslocamento da contradição
só pode ser feito quando a crise é parcial, “ao contrário de uma crise estrutural”; e c)
Qualquer complexo social tem limites imediatos dos quais pode ir além, isto é, transcender; e
limites absolutos que não pode transcender: a “crise estrutural não está relacionada aos limites
imediatos, mas aos últimos de uma estrutura global” ( pp. 797-798).
Desta definição em diante, ele retoma as citações diretas dos Grundrisse,
justamente se apoiando na parte da análise do capital em torno das contradições de sua
valorização, em que Marx aponta como tendência intrínseca “o mercado mundial como
própria à ideia de capital” e sua superação dos “limites como barreiras”, dentro e através das
três dimensões fundamentais do sistema do capital. Portanto, “não pode haver uma crise
estrutural enquanto tal mecanismo vital de autoexpansão, que simultaneamente é o
mecanismo para transcender ou deslocar internamente as contradições, continuar
funcionando”. Apresenta como exemplo a “crise de 1929-1933”, que para ele “foi
essencialmente uma 'crise de realização', devido ao nível absurdamente baixo de produção e
consumo se comparado ao período pós-guerra” (p. 798).
Conclui diferenciando, uma vez mais, a crise estrutural da conjuntural, indicando
que nesta última o impedimento de uma das vias “pode emperrar todo o sistema dando a
aparência de uma crise estrutural”. Exemplifica com os limites da produção que podem ser
expressos pelo colapso total do suprimento de certas matérias-primas; ou igualmente pelo
colapso total da maquinaria produtiva disponível, devido à 'subutilização' ou ao abuso
irresponsável dos recursos energéticos (p. 799). Mészáros faz sua concreção conceitual da
crise estrutural, indicando:

A crise estrutural do capital que começamos a experimentar nos anos 70 se relaciona, na


realidade, a algo mais modesto que as tais condições absolutas. Significa simplesmente que
a tripla dimensão interna da autoexpansão do capital exibe pertubações cada vez maiores.
Ela não apenas tende a romper o processo normal de crescimento mas também pressagia
uma falha na sua função vital de deslocar as contradições acumuladas do sistema
(Mészáros, 2002, p. 799).

Após estas considerações, o autor as relaciona ao “aprofundamento da crise na


'sociedade civil', que reverbera em todos os aspectos das instituições políticas. Indica que a
181
crise do capital é uma crise de dominação em geral”, que se desenvolve há cerca de “duas
décadas através dos 'consensos', resultando no desaparecimento do Estado de Bem-Estar
Social”. Argumenta em sua defesa: o fim da influência civilizadora do capital; o orçamento
militar dos EUA de 300 bilhões de dólares, em 1981 ( pp. 800-801); a devastação sistemática
da natureza; o fim da tranquilidade na velhice e da “rebelião da juventude”; a desmitificação
do “fim das ideologias” que apagavam as contradições de classe. Segundo o autor, “o sistema
de dominação está em crise” porque sua “raison d'être e sua justificativa histórica
desapareceram”. Neste aspecto não há solução, pois o que “está em jogo é o papel do trabalho
no universo do capital” (p. 802). Essa desumanização é hoje mais evidente entre as mulheres,
que além de força de trabalho muito mais variada e convenientemente flexível, cumprem
também o papel de gerir o verdadeiro microcosmo da sociedade e ser “correia de transmissão”
da estrutura de valores predominantes na mesma.
As considerações sobre a crise de 1929-1933 por Mészáros partem do pressuposto
que esta era fase em que o capitalismo havia transitado da “totalidade extensiva” para a
“totalidade intensiva” (pp. 804 e 805), não foi de modo algum uma crise estrutural como
formação global. Forneceu estímulo e pressão necessários para o realinhamento das forças
constituintes do capital conforme as relações de poder objetivamente alteradas, contribuindo
muito para o desenvolvimento das potencialidades do capital inerentes à sua “totalização
intensiva”. Assim, teve consequências sobre a ordem mundial e significou uma
reconfiguração interna do capital.
O Capítulo 19, apresentado por Mészáros em forma de debate com Lukács sobre o
caráter transitório e não universal da Lei do Valor, permite estabelecer relações de
interdeterminação entre a erosão do tempo de trabalho necessário como paradigma de valor, a
Taxa de Utilização Decrescente (TUD) e a crise estrutural. As interdeterminações são visíveis
na definição da TUD como mecanismo de contratendência à manifestação das crises cíclicas
ou conjunturais caracterizadas pela superprodução, cuja superação implica sempre o
aprofundamento da tirania do tempo mínimo, enquanto tempo socialmente necessário que se
estreita como medida de valor em relação ao tempo disponível social, apropriado como tempo
excedente pelo capital. É justamente este processo de mitigação da Lei Geral da Acumulação
Capitalista pela TUD, como produção destrutiva e consumo perdulário, que aprofunda a
erosão do paradigma de valor e explica o salto mortal da crise conjuntural em crise estrutural
e orgânica do capital, ativando os limites absolutos do sistema, apesar de Mészáros não
182
enfocar diretamente este aspecto, como pode se observar em sua análise, atribuindo tão
somente à TUD a “causa das causas da crise”.
Esta interpretação da tese de Mészáros não é arbitrária devido, por um lado, a seu
vínculo à teorização da Crise Estrutural do Sistema do Capital; por outro, às conexões que
estabelece da Lei do Valor sobre a erosão do mesmo e a crise estrutural, como se pode
observar a seguir:

[…] a passagem categorial da troca de produtos (sob o capitalismo de produtos


mercantilizados) para a troca mediadora de atividades produtivas baseadas numa
medida viável – a necessidade – na ausência de critérios ou constrangimentos
efetivamente limitadores (que não a própria crise estrutural), oferece uma saída às
contradições destrutivas da objetivação reificada, quando a autoexpansão inexorável
do valor de troca sair do controle (MÉSZÁROS, 2002, p. 884).

Nesta citação, o autor reconhece que a crise estrutural impulsiona, como momento
de constrangimento, a redefinição categorial de troca entre produtos (quantitativa) a uma
medida com base na necessidade (qualitativa), admitindo que “quando a autoexpansão
inexorável do valor de troca sai do controle”, exige a mudança do paradigma de mensuração
do valor.
Em outra passagem, Mészáros também relaciona a erosão do paradigma de valor,
decorrente da tirania do tempo mínimo, à aplicação da TUD como contratendência que atua
sobre a economia de tempo:

[…] o desenvolvimento do capitalismo torna a própria noção de 'economia de


tempo' absolutamente problemática. […] Inevitavelmente, sob o domínio do capital,
essa mudança assume a forma de uma contradição extrema, pois o sistema
capitalista de contabilidade de custos nunca renuncia completamente à imposição do
tempo mínimo sobre o processo de produção. […] Ao mesmo tempo, porém, o
impulso para economizar (característica da fase ascendente do desenvolvimento
capitalista) é, em conformidade com o imperativo de diminuir a taxa de utilização,
deslocado progressivamente pela tendência sempre crescente à perdulariedade, que
se afirma não só em relação aos bens, serviços e à maquinaria produtiva mas
também à força de trabalho total da sociedade (p. 891).

Em seu debate com Lukács, argumenta em diversos momentos contra a


permanência da lei do valor e do tempo de trabalho socialmente necessário na transição ao
socialismo e reconhece a passagem do paradigma para o tempo disponível social. Para
explicar que a ideia de Lukács da “permanência a-histórica da lei do valor” é injustificável (p.
867), cita uma passagem dos Grundrisse onde Marx afirma explicitamente o fim da vigência
183
da Lei do Valor: “Assim que o trabalho na forma direta deixa de ser a grande fonte de riqueza,
o tempo de trabalho deixa e tem que deixar de ser, sua medida, e consequentemente o valor de
troca tem que deixar de ser a medida do valor de uso” (MARX apud MÉZSÁROS, 2002, p.
867). Apesar de não usar o termo paradigma, nem de mencionar a Lei do Valor, expressa em
suas próprias palavras exatamente a concepção de “conceito-chave com base no qual o
sociometabolismo desse novo sistema reprodutivo torna-se inteligível, a saber, o tempo
disponível total da sociedade” (p. 891, itálicos do autor).
Por último, o aumento da composição orgânica do capital, também ausente em sua
teoria de crise, aparece neste último capítulo vinculado diretamente à erosão do paradigma de
valor e pela primeira vez como aspecto positivo no desenvolvimento do capitalismo, expresso
na aplicação do conhecimento geral humano ao processo de produção:

[…] o desenvolvimento dos poderes produtivos da sociedade, assumindo a forma de


ciência e tecnologia, ou seja, a objetivação cumulativa, ao longo de séculos, de
trabalho vivo e da mente coletiva sob forma de conhecimento (vantajosa ou
destrutivamente) utilizável e de seus instrumentos, torna obsoletos os limites do
tempo mínimo diretamente explorável; […] (p. 889).

2.6.7 Trabalho imaterial de Maurizio Lazzarato

Lazzarato e Negri (2001) discutem o paradoxo do modelo pós-fordista, no qual


houve a derrota do operário fordista e o reconhecimento da centralidade de um trabalho vivo
sempre mais intelectualizado. Embora este processo produza efeitos variados sobre os
operários, em termos gerais, cabe agora ao novo trabalhador certas decisões de “interface”
entre diferentes funções, equipes, etc., e sua subjetividade deve ser organizada e comandada.
A atividade abstrata ligada à subjetividade é o valor de uso da força de trabalho como um
todo: se no trabalhador mais qualificado o modelo comunicacional já está constituído, no
jovem trabalhador ou no precário tal capacidade está em potência.
A análise do ciclo social da produção ("fábrica difusa" e formas de terceirização)
evidencia o papel estratégico do trabalho imaterial: as atividades terciárias se redefinem no
interior das redes informáticas e telemáticas. O ciclo do trabalho imaterial pressupõe uma
força de trabalho social e autônoma, capaz de se auto-organizar nas relações com a empresa.
184
A primeira fase da reestruturação pós-fordista em 1970 iniciou o processo de reconhecimento
e valorização da nova qualidade do trabalho (trabalho imaterial) que se torna hegemônico. O
modelo pós-fordista tem por base duas condições: primeira, a transformação do trabalho em
trabalho imaterial e a força de trabalho em "intelectualidade de massa" (o General Intellect de
Marx) e, segundo, tal intelectualidade podendo transformar-se em sujeito social e
politicamente hegemônico.
Com base nos Grundrisse, os dois autores refletem que, na medida em que se
desenvolve a grande indústria, a criação da riqueza real vem mais da potência dos agentes que
são colocados em ação durante o tempo de trabalho, algo que depende do estado geral da
ciência e da tecnologia, do que propriamente do tempo e quantidade de trabalho.
O capital reduziu a força de trabalho a "capital fixo" e, ao subordiná-la, o ator
fundamental do processo social se torna "o saber social geral". Houve uma transformação da
subjetividade: a independência em relação ao tempo de trabalho imposto pelo capital e
autonomia em relação à exploração. No trabalho imaterial, fica mais difícil distinguir o tempo
produtivo e o tempo de lazer. Com sua generalização como base da produção, não se reproduz
na forma de exploração, mas na forma de reprodução da subjetividade. Há uma independência
progressiva da força de trabalho intelectual e do trabalho imaterial frente ao domínio
capitalista: o empreendedorismo como "personificação do capital" se adapta e se articula
independente da sua organização na fábrica. Com o controle capitalista da totalidade social, o
empreendimento capitalista funciona no controle e vigilância do processo produtivo fora da
fábrica, na medida em que constitui um processo de cooperação social do trabalho imaterial.
O empreendedor ocupa-se mais com a reunião dos elementos necessários à exploração da
empresa do que com as condições produtivas.
Muitas correntes filosóficas recentes já lidam com o conceito de trabalho
imaterial. Em maio de 1968, ocorreu um deslocamento epistemológico: os focos da
resistência desta revolução de novo tipo eram "múltiplos" e "heterogêneos" e a definição da
relação com o poder é subordinada à "constituição de si" como sujeito social (relação política
que parece evitar o problema do poder). Na releitura do General Intellect de Marx, pode-se
mencionar a Escola de Frankfurt, que afirma, em Habermas e Krahl, a novidade desta nova
composição de classe. Foucault descobre a constituição da "intelectualidade de massa" como
"relação para si" distinta das relações de poder e saber. Deleuze aprofunda esta visão enquanto
interface comunicacional que se internaliza aos sujeitos pela atividade. Isso implica se
185
aproximar da perspectiva dos Grundrisse, na qual o conjunto do capital fixo se transforma em
seu contrário, em produção de subjetividade. Na produção autônoma, a subjetividade, de
elemento de indeterminação absoluta, torna-se elemento de potencialidade absoluta. O
processo de produção da subjetividade se constitui 'fora' da relação de capital, na subjetivação
do trabalho constitutivo da intelectualidade de massa.
Neste contexto, a contradição que opõe a criação de valor ao domínio capitalista
da sociedade pós-industrial não seria dialética, mas alternativa à medida que a relação capital-
trabalho está além do antagonismo. A alternativa é obra dos sujeitos independentes,
constituindo-se no plano da potência, e não somente do poder (e das formas de poder
existentes). O velho antagonismo das sociedades industriais era uma relação entre sujeitos
opostos, a vitória de um deles, uma "transição". Nas sociedades pós-industriais, não existe
esta "transição", mas "poder constituinte" como expressão radical do novo, destacando-se os
processos sociais de contestação e alternativos das sociedades pós-industriais. A organização
da sociedade não se dá mais no trabalho: hoje, na época da política comunicacional, ela se
manifesta como potência autônoma e constitutiva dos sujeitos. O tornar-se revolucionário do
sujeito é revolucionar a própria subjetividade.
O ciclo de produção imaterial, no qual a comunicação e a relação social que a
constituem se tornam produtivas, obriga à reformulação e reorganização das formas clássicas
de "produção". No primeiro caso, na grande indústria na economia pós-industrial, fundada na
informação, um produto deve ser vendido antes de ser fabricado: há agora a mobilização de
importantes estratégias de comunicação e marketing para conhecer a tendência de mercado e
fazer a mercadoria circular. Surge uma nova indústria da singularização e qualidade, que
investe em pesquisas permanentes de novas aberturas comerciais para a elaboração de gamas
de produtos mais amplos ou diferenciados. A inovação é subordinada a imperativos
comerciais: o processo de criação envolve produtor e consumidor.
A comunicação nos serviços superou a organização taylorista e se caracteriza pela
intervenção ativa do consumidor na constituição do produto. O serviço torna-se uma
construção e um processo social de "concepção" e inovação: os empregos clássicos na área
(back office) diminuem, enquanto aumentam os de front office (relações com os clientes).
Quanto mais imaterial for o produto, mais integrada é a relação entre produção e consumo.
Por se evidenciar cada vez mais esta intervenção do consumidor, torna-se mais difícil definir
as normas de produção dos serviços e estabelecer uma medida objetiva de produtividade.
186
No caso do trabalho imaterial, ele é a interface desta nova relação
produção/consumo, ativando-a e organizando-a. A particularidade da mercadoria está no fato
de que ela não se destrói no ato de consumo, mas transforma, cria o ambiente ideológico e
cultural do consumidor. A produção de mais-valia, forma de autoprodução do capital, assume
nova configuração: a "necessidade do consumo" é produzida de maneira direta por
dispositivos da "comunicação social". A publicidade e produção do impulso ao consumo
transformaram-se num "processo de trabalho". A "matéria-prima" do trabalho imaterial é a
subjetividade e o "ambiente ideológico" no qual vive e se reproduz; além de instrumento de
controle social, torna-se produtiva. Os trabalhadores imateriais, ao mesmo tempo que
satisfazem uma demanda do consumidor, constituem-na, já que trabalho imaterial produz ao
mesmo tempo subjetividade e valor.
O processo de produção da comunicação tende a tornar-se processo de
valorização. O modelo da "produção estética" (autor/reprodução/recepção) é o mais adequado
para se utilizar na tentativa de apreender o processo de formação da comunicação social e seu
diálogo com o "econômico". A atividade do trabalho imaterial obriga a que se coloque em
discussão as definições clássicas de "trabalho" e de "força de trabalho", uma vez que resulta
da síntese de diferentes tipos de conhecimentos e habilidades. O trabalho imaterial se constitui
em formas imediatamente coletivas e não existe senão sob a forma de rede ou fluxo.
O "produto ideológico" torna-se uma mercadoria: estes produtos produzem novas
estratificações da realidade e novas formas de ver e sentir. Estes produtos ideológicos são
idealmente significantes: eles são completamente internos aos processos de formação da
comunicação social. O conjunto destes produtos ideológicos constitui o ambiente mental do
homem.
Uma análise dos diferentes "momentos" do ciclo do trabalho imaterial permite
atestar que aquilo que é "produtivo" é o conjunto de relações sociais (relação autor-obra-
público), segundo modalidades que colocam diretamente em jogo o "sentido". Este tipo de
produção não somente estabelece uma nova relação entre produção e consumo, como também
põe um problema de legitimidade da apropriação capitalista deste processo. Por se tratar da
própria vida da sociedade, esta cooperação não pode ser predeterminada pelo econômico (este
pode apenas normatizar e padronizar as formas e produtos desta cooperação). "Os elementos
criativos, de inovação, são estreitamente ligados aos valores que somente as formas de vida
produzem". Não tem mais sentido a ideia do empreendedor schumpeteriano legitimado por
187
sua "capacidade de inovação": o econômico limita-se à gestão e regulação da atividade de
trabalho imaterial e a criação de dispositivos de controle, bem como a criação do
público/consumidor (por seu domínio da comunicação e da informação).
Questiona-se, assim, o modelo de criação e difusão do trabalho intelectual, além
de se superar a ideia de criatividade como expressão de uma "individualidade" ou exclusiva às
classes "superiores". Há dois modelos que permitem demonstrar a relação entre trabalho
imaterial e sociedade: o primeiro, proposto por Simmel, apresenta uma teoria da criatividade
do trabalho intelectual e parte da divisão entre trabalho manual e intelectual, e o segundo, de
Bakhtin, se recusa a assumir a divisão capitalista do trabalho como inevitável e elabora uma
teoria da criatividade social.
Para Lazzarato, a função do empresário é fazer correr os fluxos e capturá-los (sic).
Dessa forma, a máquina comunicativa é um enorme dispositivo de captura de mais-valia, não
de produção de ideologia. O novo capitalismo se constitui sobre a potência dos fluxos,
enquanto o empresário se define pela capacidade de funcionar como elo multiplicador de sua
velocidade de circulação. "Se não se vê mais a fábrica, não é porque desapareceu, mas porque
se socializou, e neste sentido tornou-se imaterial; de uma imaterialidade que continua assim
mesmo a produzir relações sociais, valores, lucros (sic) (LAZZARATTO et. al., 1993)."
Categorias de mediação e legitimação entre os diversos atores (bancos, unidades produtivas,
etc.) devem ser usadas para entender a figura do empresário.
Duas observações: a) ação do consumidor se integra diretamente, como momento
criativo, no interior da rede social da empresa. Fluxos de desejo são diretamente convocados,
verificados e estimulados pela comunicação da empresa pós-fordista. O marketing constrói o
produto e solicita formas de subjetivação. b) trata-se de uma máquina de guerra que, como a
empresa material, produz o sentido. A Guerra do Golfo foi a prova geral da gestão e da
regulação dos fluxos de informação, imagens, sons, e da sua velocidade de circulação. A
separação entre a economia e a política está materialmente ultrapassada.
É a máquina social pós-fordista que explica a natureza da mídia, e não o contrário.
Esta nova máquina, diz Lazzarato, funcionou como dispositivo de captura das novas forças e
de suas formas de expressão, para reconduzi-las ao Estado. No capitalismo pós-fordista
nenhum código externo à lógica do capital-dinheiro (seja político, comunicativo, etc.) pode
sobrecodificar e integrar as relações de poder. O capitalismo pós-fordista requer uma
imanência absoluta das formas de produção, de constituição, de regulação, de legitimação, de
188
subjetivação.
Lazzarato discute as correntes teóricas que, no âmbito da transformação da
estrutura produtiva pós-1970, estariam ocupadas em forjar "novas" ideologias do trabalho.
"As análises e tomadas de posição que neste período estão sendo produzidas sobre a questão
do trabalho podem ser resumidas em duas grandes correntes" (sic). A primeira corrente está
ligada ao movimento operário "tradicional", que, segundo ele, descende da social-democracia
e para a qual as mutações na estrutura da produção pós 1970 não põem em discussão o
"papel" fundamental do trabalho industrial. Para essas tendências, é necessário "liberar" o
trabalho da empresa capitalista, "distribuindo-o".
Sem dispensar muito tempo com esta corrente, considerando-a menos importante,
Lazzarato encerra o trecho sobre ela com uma citação de Walter Benjamin que comenta a
Crítica do programa de Gotha:

A velha moral protestante do trabalho celebrava a sua ressurreição - em forma


secularizada - entre os operários alemães. O programa de Gotha já tem traços desta
confusão. Ele define o trabalho como 'a fonte de toda riqueza e de toda cultura'.
Alarmado, Marx rebateu que o homem que não possui outra propriedade do que sua
força de trabalho, 'não pode não ser o escravo dos outros homens que se tornaram
[…] proprietários' (BENJAMIN, 1976, p. 77-78).

A segunda corrente, para Lazzarato, apesar de conter em si posições muito


diversas, coincide no essencial: as transformações do modo de produção e a crise do "valor
trabalho". Todas essas tendências coincidiriam em que o trabalho, ao ser cada vez utilizado
em menor volume para produzir mais riqueza, cessa, para um número crescente de indivíduos,
de ser o lugar de sua subjetivação. Para essa segunda corrente, capitalismo e exploração são
identificados com um regime particular de produção, o trabalho operário assalariado. Assim, a
crise no "valor do trabalho" seria também uma "crise do capitalismo" e abriria a possibilidade
de fundar a "relação social" sobre uma alteridade nas relações mercantis da esfera capitalista.
Lazzarato liga o fundamento destas posições à crítica habermasiana da concepção
marxiana de trabalho, ou seja: de que Marx reduziria a relação capitalista ao "trabalho
instrumental". Também diz que outra fonte destas posições é Hannah Arendt. Dessa forma, o
autor recapitula as críticas de Habermas e Arendt a Marx para em seguida refutar esses dois
autores, provando que: a) Em Marx, o conceito de produção é metaeconômeico (sic). Que o
"trabalho instrumental" é um resultado muito tardio do desenvolvimento capitalista, que
mistifica a relação política na objetividade do econômico. Que a descoberta científica de
189
Marx é o conceito de "trabalho vivo" e "força de trabalho". Marx encontra o elemento
subjetivo, político, comunicativo no interior do conceito de "trabalho vivo". b) A esfera da
produção capitalista se estendeu, de uma vez por todas da "organização do tempo de trabalho"
à "organização do tempo de vida"."E isto porque são exatamente as atividades "culturais,
relacionais, informacionais, cognitivas, educativas, ambientais" e o "tempo liberado de
trabalho" que se tornam os "objetos" e os "sujeitos" das novas relações de exploração e de
acumulação que a revolução da informação organiza (sic). Diversamente destas posições,
Lazzarato prefere ler o "tempo livre" e as "atividades culturais, relacionais, cognitivas etc."
não como uma exterioridade dada às relações de mercado e espaço que deveríamos defender
contra "a extensão a todos os âmbitos da economia capitalista de mercado", mas como novo
terreno de enfrentamento político. Para ele, a exterioridade ao capitalismo necessita ser
construída através de formas de recusa, de cooperação e de organização que atravessem de
modo antagonístico o "tempo de vida" colonizado pela produção de mercado (sic). c) Por
último, o autor tenta provar que, se existe algum "economicismo" em Marx, este deve ser
superado com a radicalização do conceito de "trabalho vivo" enquanto categoria ontológica e
constitutiva.
Em seguida, passa ao desenvolvimento destas posições, contrapondo Habermas e
Arendt à Krahl e este aos Grundrisse de Marx, onde, segundo Lazzarato, está a descoberta do
trabalho vivo como categoria "ontológica e constitutiva". O autor debate com o operaísmo
italiano, insistindo na complementaridade destes trabalhos. Primeiramente, cabe discutir a
ideia de "trabalho autônomo" de Sergio Bologna, destacando-o como o novo filão da
produtividade e como forma renovada de exploração. Frente ao lado liberatório e inovativo
das teorizações do General Intellect, Bologna discute o lado obscuro das novas condições de
produção: o retorno às formas de exploração pré-fordista (mais intensas).
Lazzarato acredita que tal enfoque incorre no risco de passar para segundo plano a
qualificação geral da relação social pós-fordista e do trabalho, do qual o "trabalho autônomo"
é apenas uma parte. "A continuidade da exploração não deve nos impedir de apreender a
descontinuidade de suas formas de organização e comando". O trabalho autônomo e o
"artesanato" das épocas fordista e pré-fordista são diferentes do trabalho autônomo pós-
fordista, uma vez que agora há uma socialização-intensificação dos níveis de cooperação,
saberes, subjetividades, etc. que redeterminam profundamente a questão.
Para Bologna, a jornada de trabalho fica porosa, pois os trabalhadores autônomos
190
trabalham sempre. E, com efeito, em sua jornada de trabalho, o trabalhador autônomo não tem
mais possibilidade de separar espaços de não-trabalho: enquanto a disciplina do trabalho
fabril era exercida sobre uma parte, definida contratualmente, da vida, hoje o controle indireto
se exercita sobre a totalidade da vida do trabalhador autônomo.
Esta "autonomia" renovada do trabalho precisa ser definida, porque é a partir dela
que podem ser abertas alternativas políticas. Além de possuir grande capacidade
"empreendedora" (cooperação, inovação etc), ela existe somente sob a forma de redes e
fluxos, a atividade cooperativa que desenvolve não pode ser definida fora da dimensão
coletiva da vida, sendo colocadas no trabalho capacidades laborativas genéricas (relacionais,
comunicativas, organizativas). A "autonomização" do trabalho deve ser apreendida
fundamentalmente para capturar as "externalidades" positivas e sociais que a cooperação
espontaneamente produz e organiza. Enfim, a autonomia do trabalho pós-fordista não se
limita a uma intensificação da exploração, mas a uma intensificação dos níveis de cooperação,
do saber etc., que esvazia e deslegitima as funções de comando do empreendedor e do Estado.
A nova natureza do trabalho passa a reorganizar o conjunto da sociedade
capitalista, requalificando também o trabalho assalariado clássico. É fundamental destacar o
que Bologna nos diz, a saber, que o capitalismo sempre foi a coexistência de diversos modos
de produção, comandados e organizados pelo mais desterritorializado (abstrato) dentre eles,
no caso, este "trabalho autônomo". A capacidade profissional do empreendedor político atual
não consiste somente em explorar um monopólio, na exploração do trabalho "servil" ou na
gerência racional de uma nova ciência de produção, mas se situa em colocar em sequência os
segmentos de trabalho que não estão situados em continuidade e recuperar as externalidades
implícitas produzidas pela cooperação produtiva.
Christian Marazzi, por sua vez, destaca fundamentalmente a dimensão coletiva,
social, intelectual do trabalho pós-fordista, avaliando esta nova fase do capitalismo como uma
desarticulação da comunidade e sua reconstrução de acordo com os imperativos da empresa.
Há, portanto, uma subsunção da comunidade à lógica capitalista, processo completamente
visível na economia da informação, em que aquilo que é mais comum entre os homens, a
linguagem e a comunicação, é posto ao trabalho. Marazzi problematiza como redefinir a
distinção entre o "trabalho vivo" e o "trabalho morto" neste nível de socialização. O "trabalho
vivo" é encarado a partir do contexto linguístico: a qualidade do trabalho passa a se referir à
produção de "mais-comunidade", um excedente nas relações sociais, durante o processo de
191
trabalho (o comando sobre o trabalho alheio é comando sobre trabalho linguístico e necessita
estruturar esta faculdade comum a todos de forma hierárquica).
Lazzarato acredita que a introdução da dimensão coletiva seja insuficiente para
explicar a produção da língua, uma vez que não consegue apreender as alterações sofridas por
uma língua. Trata-se de determinar o "excedente da produção linguística", que produz novos
valores de novas formas de vida e tal excedente é um ato criativo. A homologia entre trabalho
e linguagem pode até evidenciar os pressupostos histórico-sociais da língua (sua estrutura),
mas não as condições materiais e formais do processo de criação. O problema é definir o
trabalho vivo, não o trabalho. Mikhail Bakhtin dá um passo importante neste sentido, ao
colocar a valorização social no centro de uma teoria da enunciação. Para Lazzarato, a
produção pós-fordista identifica-se com a produção linguística no sentido bakhtiniano do
refazer-se, no qual a estrutura se transforma em criação contínua de novas formas de vida e
expressão e onde a avaliação estética, política, ideológica está no fundamento da relação
mundo-linguagem.
Por fim, Paolo Virno explora, em seus trabalhos, os paradoxos do General
Intellect. Para Virno, a causa do rompimento das fronteiras entre trabalho, ação e linguagem
encontra-se na nova qualidade do trabalho pós-fordista, identificável com a faculdade da
linguagem, disposição à aprendizagem e inclinação à autorreflexão. O trabalho toma o
aspecto de uma atividade sem obra e realizado em relação com o outro, assumindo
características do virtuosismo.
O modo de produção pós-fordista, para Lazzarato, deve ser entendido como uma
ativação de diferentes modos de produção ("materiais" e "imateriais") e, portanto, de
diferentes formas de subjetividade. O debate italiano definiu bem uma "fenomenologia" e
"ontologia" do pós-fordismo, mas o avanço da pesquisa na área será determinado por uma
antecipação da possível recomposição da nova natureza das relações sociais.

2.6.8 Gorz: O imaterial, conhecimento, valor e capital

Gorz (2005) parte do pressuposto que a elevação do conhecimento como principal


força produtiva provocou mudanças que comprometem a validade de categorias econômicas
192
como trabalho, valor e tempo socialmente necessário. A partir daí o autor conduz sua
argumentação para a instrumentalização do homem e a nova orientação da ciência, traduzida
no projeto de inteligência artificial voltado para substituir a “máquina de carne humana” por
seres “superiores” dotados de inteligência e próteses artificiais.
O trabalho não mensurado pelo tempo socialmente necessário deve ser
conceituado como trabalho imaterial. Na produção de serviços, o trabalho imaterial torna-se a
“forma hegemônica do trabalho”, embora seja “remetido à periferia do processo de produção
ou abertamente externalizado”. Torna-se portanto, “um ‘momento subalterno’ desse processo,
ainda que permaneça indispensável ou mesmo dominante do ponto de vista qualitativo”.
Porém, o trabalho imaterial constitui o “coração” da produção, “o centro da criação de valor”
(p. 19).
O autor opõe conhecimento cristalizado a trabalho cristalizado para discutir a
chamada “economia do conhecimento”. Ao se constituir o conhecimento como principal força
produtiva, alterou a teoria do valor:

“Indica também que o valor de troca das mercadorias, sejam ou não materiais, não é
mais determinado em última análise pela quantidade de trabalho social geral que
elas contêm, mas, principalmente, pelo seu conteúdo de conhecimentos, de
inteligências gerais. É esta última, e não mais o trabalho social abstrato mensurável
segundo um único padrão, que se torna a principal substância social comum a todas
as mercadorias. É ela que se torna a principal fonte de valor e de lucro, e assim
segundo vários autores, a principal forma do trabalho e do capital” (p. 29).

O autor afirma que o tempo socialmente necessário se torna cada vez mais
“incerto”, fazendo com que esta incerteza repercuta sobre a mensuração do valor:

“O caráter cada vez mais qualitativo, cada vez menos mensurável do trabalho, põe
em crise a pertinência das noções de ‘sobretrabalho’ e de ‘sobrevalor’. A crise da
medição do valor põe em crise a definição da essência do valor. Ela põe em crise,
por consequência, o sistema de equivalência que regula as trocas comerciais” (p.
30).

A distinção entre saberes e conhecimento ocupa papel importante na definição do


que seria um “comunismo do saber”. Considera os saberes como parte do patrimônio cultural,
quanto ao conhecimento, mesmo de caráter mais universal, não se prestaria à apropriação
privada:

“Thomas Jefferson já dizia que eles [os conhecimentos] ‘não se prestam à


193
apropriação privada’, nem à troca comercial, pois é impossível reduzi-los a uma
substância social comum mensurável que permita determinar as relações de
equivalência entre eles. Um mercado do conhecimento em que eles possam se trocar
por seus ‘valores’ é impensável. Não podendo se exprimir em unidades de valor, sua
avaliação como capital resta problemática” (p. 31).

Para o autor o conhecimento resultaria em grande parte de atividade não


remunerada, daí não ter valor no sentido de poder ser quantificado:

“O conhecimento é em grande parte ‘inteligência geral’, cultura comum, saber vivo


e vivido. Ele não tem valor de troca, o que significa que ele pode, em princípio, ser
partilhado à vontade, segundo a vontade de cada um e de todos, gratuitamente,
especialmente na Internet” (p. 36).

Para ilustrar o peso que o chamado capital imaterial assumiu no capitalismo


contemporâneo, o autor recorre a Jeremy Rifkin, descrevendo a trajetória dos “ativos
imateriais” na bolsa de Nova York nas décadas de 1990 e 2000:

“O interesse da Bolsa pelos ‘ativos imateriais’, também chamados ‘inatingíveis’, foi,


na segunda metade dos anos 1990, a excrescência mais espetacular de uma alta da
Bolsa que não teve precedentes. Essa alta era alimentada por massas de capital
financeiro sem emprego, cujo reengineering, no qual a ‘revolução digital’
desempenhava um papel determinante, havia consistido essencialmente em aliviar as
estruturas produtivas e os fatores de produção: a organização, o aparelho de gestão e
de administração, o capital fixo, os efetivos, os custos salariais diretos e indiretos, e
os custos de comercialização” (p. 40).

Quanto à produção do consumidor, Gorz reproduz a trajetória do sobrinho de


Freud, Edward Barnays, que deslocou a publicidade da ideia de que o consumidor responde a
necessidades práticas e racionais e passou a dirigir-se para seu “eu mais íntimo”,
transformando os produtos, mesmo os mais triviais, em vetores de um sentido simbólico (p.
48).
Na reafirmação do que seria o valor no capitalismo atual, Gorz recorre a Yann
Moulier-Boutang: “A atividade gratuita, isso que está além e aquém do que é considerado pela
economia política (todas as escolas confundidas) como o único trabalho que merece
remuneração, é a principal fonte de valor” (p. 54).
As referências a Marx são frequentes no intuito de fundamentar a visão ecológica
do autor, o pensador alemão teria visto que a fonte de riqueza é ao mesmo tempo destruição.
A alternativa seria “outra economia”:
194
“Somente nessa outra economia, que também é o outro da economia, aprendemos a
humanizar a nós mesmos reciprocamente e produzir uma cultura de solidariedade e
da coletividade. Tão logo ela é reconhecida, o significado prioritário das riquezas
não fabricáveis e não computáveis remete à inversão necessária das relações entre a
primeira economia formal, que produz o valor mercantil, e a segunda, invisível, que
cria a riqueza da vida que não pode ser trocada, ‘possuída’, dividida, consumida. A
primeira economia deve estar subordinada à segunda, a criação de riqueza deve ser
desatrelada da criação de valor” (p. 57).

Apresenta uma definição mais clara da “outra economia”. Em razão das categorias
fundamentais trabalho, valor e capital se manifestarem somente numa sociedade que tenha
como base a troca de mercadorias, no capitalismo contemporâneo, a força produtiva principal
– o conhecimento – tem valor indeterminável, podendo se multiplicar indefinidamente e sem
custos: “Uma autêntica economia do saber seria uma economia comunitária, na qual as
categorias fundamentais da economia política perderiam seu valor e a força produtiva mais
importante estaria disponível a uma tarifa zero” (p. 59).
A proposta mais objetiva apresentada para a “outra economia” é a renda de
existência:

“É realmente evidente, por conseguinte, que a renda de existência não pode ser uma
moeda qualquer, tampouco é financiável pelos impostos incidentes sobre uma parte
da mais-valia auferida pelos negócios. Uma economia que gera cada vez mais
mercadorias com cada vez menos trabalho produtivo remunerado; uma economia,
portanto, que graças ao aumento da produtividade, mesmo com produção em
crescimento, distribui cada vez menos moedas, não pode financiar transferências
crescentes de benefícios mediante a taxação do trabalho e da mais-valia” (p. 72).

Para o autor, há uma ruptura entre o saber cientificamente formalizado e a


realidade como experiência sensível. Por sua vez, a economia política teria reproduzido os
modos de funcionar do seu objeto, chegando a se constituir numa “máquina de símbolos
cibernética”:

“O próprio capitalismo foi uma jornada de vitórias do simbólico e do formal sobre


as dimensões não computáveis, relacionadas à experiência e à vivência, do mundo
social da vida. Suas leis de movimento dizem respeito a relações só concebíveis
algebricamente e que são indiferentes à realidade empírica, aos objetos materiais da
produção. O cálculo simbólico, que a tudo domina, desvinculado da experiência
sensível, torna-se uma desqualificação do mundo da vida que se infiltra no próprio
mundo da vida. O conceito de ‘valor’ e as relações de ‘valor’ que a tudo domina são
inacessíveis ao pensamento contemplativo. O fetichismo do dinheiro e da
mercadoria, a monetarização da vida e de si mesmo são as consequências dessa
inacessibilidade” (p. 85).

No último capítulo, o autor constrói, com base em relatórios e pesquisas dos


195
teóricos do capital, um cenário envolvendo projetos em inteligência artificial e engenharia
genética em torno de uma nova humanidade ou nova civilização, onde o autômato perfeito se
concretizaria na forma de robôs e máquinas inteligentes e homens-máquina. Afirma que boa
parte das promessas distópicas da tecno-elite podem não se concretizar, mas que isso não é
suficiente para que possamos nos sentir seguros.

2.6.9 O capitalismo cognitivo de Moulier Boutange

Esta obra foi lançada em 2007 e, segundo o autor, deu início a um debate no qual
ele pôde dialogar com diversos setores, como ativistas de internet e gerentes de corporações.
Segundo escreveu em prefácio da edição consultada, escrito após a crise de 2008, a mesma
apenas confirmou a necessidade deste debate, no qual ele se posicionou afirmando que
protestar contra o capitalismo financeiro é uma postura passiva que demonstra uma preguiça
ao exercício da reflexão (BOUTANG, 2011, p. xi, xii).
Para ele, apenas alguns perceberam que o Intelecto Geral dos Grundrisse, a ideia
do comunismo de O Capital, não era mais uma utopia, e sim o espírito de época do
capitalismo contemporâneo. Os teóricos de esquerda não teriam sido capazes de analisar esse
movimento, perdidos nas tentativas de manter a ortodoxia dos textos sagrados sobre o valor.
Erroneamente, apontaram o dragão chinês e não a Revolução da Califórnia, o Vale do Silício,
como o ícone das transformações do Terceiro Capitalismo. Acreditavam que o próximo
pânico no mercado e as correções da “exuberância do mercado” colocariam as coisas de volta
ao seu lugar, sempre segundo o autor (p. 6-7).
Ele afirma que a produção imaterial não é uma renda ilegítima sobre a “produção
real”, mas sim que ela se encontra no coração do valor econômico. Ele propõe um programa
de pesquisa que batiza de Capitalismo Cognitivo. Nesta perspectiva, a atual globalização deve
ser vista à luz da emergência, a partir de 1975, de um terceiro tipo de capitalismo, com poucas
semelhanças com o capitalismo industrial, que nasceu entre 1750 e 1820, rompendo com o
mercantilismo e com o escravismo. Para ele não estamos vivenciando um período de transição
ao socialismo (p. 9).
Boutang nota que, a partir de 1975, o crescimento dos países desenvolvidos
196
desacelerou consideravelmente, chegando a zero em algumas regiões e o desemprego se
tornou estrutural. Contudo, mesmo com esse esgotamento não houve uma crise financeira
generalizada como nos anos 1930s, e os preços não colapsaram. Cresceu a interdependência
entre todo o mundo, a globalização neoliberal é a matriz de emergência do capitalismo
cognitivo. Uma das categorias utilizadas para caracterizar esse processo é a financeirização
neoliberal, novas regras de desregulamentação impostas aos estados nacionais. Apesar de ser
parcialmente explicada pelos desequilíbrios do passado como o deficit dos EUA, ela também
corresponde a patrimonialização da economia pela sistemática conversão de posições de renda
de atividades intelectuais em ativos comercializáveis. O poder das finanças deriva das novas
tecnologias de informação e comunicação. Isso criou o mercado sonhado pela descrição
neoclássica (pp. 11-14).
Falando sobre o domínio de um ambiente complexo e da biosfera, o autor aborda
a questão das matérias-primas, que desde o começo da era industrial, eram vistas como
ilimitadas. Recursos escassos eram vistos como exploráveis economicamente, e sua extração
pressupunha um gasto de capital e trabalho, o que determinava seu valor. A escassez se dava
pelo fato de matérias como os combustíveis fósseis se renovarem apenas na escala geológica
de tempo. Esses recursos são considerados externalidades, ou seja, recursos pelos quais não se
paga. Boutang chama de vingança das externalidades o esgotamento do biofundo, esse tipo de
“adiantamento primitivo”, nas palavras de François Quesnay. Por isso, a revolução ecológica,
por manter e preservar a biosfera, pode ser vista como uma segunda revolução neolítica, em
uma escala totalmente diferente (p. 18-21).
A economia política não pode ignorar o papel das externalidades, sejam elas
positivas ou negativas. Isso principalmente no novo modelo de produção que emergiu nos
últimos 30 anos e que é caracterizado pela ascensão do trabalho imaterial e da inteligência
coletiva como fator primordial de produção e a real substância da riqueza e do valor (p. 22-
30).
O autor então aborda o conceito de trabalho imaterial, que não procede da
observação empírica da desaparição do trabalho em geral, como fazem crer os principais
críticos deste conceito como Harribey, J. Bidet e M. Husson. Quando fala de trabalho
imaterial e de sua crescente importância na acumulação, não se refere a valores de uso, não se
esquece da lei do valor trabalho. Pelo contrário, ele indica que hoje, do ponto de vista do valor
de troca, e do ponto de vista do sobrevalor e da mais-valia (o valor acrescido ao investimento
197
de capital), que sempre é do capitalista, o ponto essencial não é mais o dispêndio de força de
trabalho humana, mas da força de invenção, do know-how vivo que não pode ser reduzido a
máquinas e das opiniões compartilhadas pelo maior número de seres humanos. Está claro
também que, em termos de trabalho cristalizado, de tempo médio social para o capitalismo,
uma marca como Nike ou Adidas é resultado de horas de trabalho realizado não apenas pelos
designers, mas pelos estilistas, pelos advogados que cuidam da marca, etc. Esses valores
existem, mas, mesmo difíceis de serem identificados tangivelmente, se tornaram
hegemônicos, não porque eles se tornaram mais nobres, mas porque eles contêm a parte
dominante do valor de troca dos bens. Diferentes nomes são dados a esses elementos P&D,
capital intelectual, organização, bancos de dados dos consumidores, direitos de propriedade
intelectuais, imagem, confiança, e por aí vai. Aos poucos os sistemas de contabilidade
nacionais passaram a normatizar esses ativos intangíveis (p. 31-32).
Se a economia está se tornando cada vez mais flexível, é porque o núcleo central
do valor reside agora na imaterialidade. Na definição de Boutang, longe de significar um
esquecimento da realidade material, ou de um voo ao idealismo, a tese do aumento da
imaterialização do trabalho no capitalismo é uma forma de atualizar o conceito de trabalho
abstrato em Marx. Na economia política industrial clássica (incluindo Keynes), a ascensão da
produção imaterial é vista como uma forma de extorsão de renda praticada pelo financista que
cuida do patrimônio dos fundos de pensão dos idosos do norte. Essa visão leva a uma
percepção negativa dos financistas como avarentos e clama pelo retorno da “boa e velha
indústria”. Boutang acredita vivenciar a transição de um mundo no qual a produção material
exigia a maior parte dos investimentos (máquinas e mão de obra barata) para um mundo no
qual a reprodução de bens complexos, como a biosfera, a noosfera (pensamento humano), a
diversidade cultural, requerem investimento no capital intelectual (educação, treinamento) e
trabalho qualificado coletivo através de novas tecnologias de informação e comunicação (p.
33-34).
Na visão do autor, depois da crise de 1857, Marx abandonou uma visão mecânica
de uma crise fatal e elaborou a visão de um capitalismo dinâmico dos Grundrisse e de O
Capital. Os avanços do capitalismo sempre têm a ver com a socialização do capitalismo e dos
seus interesses. A invenção das sociedades anônimas por ações reequilibrou o sistema no
segundo império, levando as tensões às periferias. O capitalismo é forçado a realizar essas
mudanças para sobreviver, não por ele ser criativo, inovador ou revolucionário (pp. 35-36).
198
Nos últimos anos caiu a participação dos salários no PIB, o que demonstra como a
perda da centralidade do trabalho material levou a uma derrota do movimento operário. Mas,
para Boutang, o que os trabalhadores não ganharam com as greves, por outro lado ganharam
na sociedade através das universidades, do uso dos computadores, da internet, da mobilidade
global e da democratização (pp. 36-37).
O autor define O que é o capitalismo cognitivo: Um sistema coerente e um
processo dinâmico; um terceiro capitalismo para uma economia mundial globalizada, após as
fases anteriores, mercantil e industrial (p. 50).
Ele destaca 15 características mais marcantes do desenvolvimento das forças
produtivas no capitalismo cognitivo: 1 - a virtualização da economia; 2 - o imaterial como
produto da computação; 3 - entre os intangíveis destaca a inovação; 4 - a apropriação de
conhecimento pelas empresas (tecnologia); 5 - uma nova divisão do trabalho pelo critério
cognitivo; 6 - maiores processos de aprendizagem exigidos pela complexidade; 7 - produção
flexível na qual os usuários se tornam coautores da inovação; 8 - dissolução das linhas entre
capital e trabalho, entre trabalho qualificado e não qualificado, levando a conceitos como
capital humano e capital intelectual (ele descarta contudo o conceito de capital imaterial); 9 -
a rede como modelo produtivo de cooperação; 10 - a cooperação entre cérebros faz declinar a
energia e o paradigma do valor trabalho (Reich e Rifkin) e do trabalho; 11 - apesar dos
Grundrisse preverem um domínio do trabalho morto, expresso no papel da ciência, a
novidade é a centralidade do trabalho vivo que não é consumido ou reduzido a máquinas
(aspecto bioprodutivo da força de invenção, que define a forma específica de apropriação de
mais-valia no capitalismo cognitivo); 12 – fim do conceito de performance individual no local
de trabalho, a produtividade se torna agregada; 13 - natureza imaterial dos bens produzidos no
capitalismo cognitivo; 14 - as externalidades não são marginais, pois o núcleo do valor a ser
extraído está na inovação e na cooperação em rede; 15 - enquanto o capitalismo industrial era
definido como produção de mercadorias através de mercadorias, o capitalismo cognitivo é
produção de conhecimento através de conhecimento e produção da vida através da vida, logo
bioprodução (pp. 50-56).
Para se ter uma definição do capitalismo cognitivo o autor apresenta a necessidade
de se abordar três elementos: um tipo de acumulação, um modo de produção e um tipo
específico de exploração do trabalho vivo. O sistema de acumulação do capitalismo cognitivo
é baseado no conhecimento e na criatividade, em outras palavras em investimento imaterial. A
199
transformação da matéria pelo dispêndio de energia e trabalho não cessa, mas perde a
centralidade para a cooperação entre cérebros para a produção do vivo através do vivo,
através das tecnologias de informação, os computadores em rede.
O capital humano e a qualificação da população passam a ser fatores cruciais na
definição da riqueza das nações. Essa sociedade tenta integrar no centro de sua produção e de
sua esfera econômica recursos (do mercado ou não) que antes eram externos a eles. A captura
das externalidades positivas e sua validação na criação de lucro privado. O comportamento
errático dos mercados pode ser interpretado como uma função dessa mutação. Boutang chama
em sua defesa Alan Greenspan, segundo ele, uma das pessoas mais poderosas do mundo nos
últimos 15 anos, que reconheceu o avanço da economia conceitual sobre a física (pp. 57-59).
Através da rede digital se cria uma divisão superior do trabalho, mais eficiente,
que responde mais rápido, que gera mais inovações. O tamanho da rede é que torna possível
identificar e alocar recursos e minimizar o custo das transações. Cada membro da rede recebe
benefícios pelos quais não terá que pagar. Não se trata de uma rede inteligente com
operadores idiotas, como a AT&T fez por anos. Mas sim de uma rede simples com terminais
interessantes. A inteligência e a complexidade estão nos membros da rede, na periferia do
aparato tecnológico.
Resumindo os três aspectos que diferenciam a divisão do trabalho cognitivo da do
capitalismo industrial: 1 – A redução do trabalho complexo ao simples e a execução manual
de acordo com uma concepção intelectual que buscava reduzir o tempo de aprendizado não
são mais fatores que determinam a produtividade. 2 – O tamanho do mercado se torna menos
relevante em uma economia de variedades, que lida com incertezas na demanda. 3 – Há uma
coordenação descentralizada na entrega de serviços baseada no processamento de
informações. Não se trata mais de padronização e homogenização, mas da natureza fractal dos
módulos encontrados em cada camada do software. Isso explica porque as ondas de inovações
em sequência não conduzem à queda na produtividade e no aumento dos custos de
aprendizado. A economia mercantil tinha que lidar com escassez de capital e de trabalho. A
economia clássica lidava com escassez de capital e trabalho disponível. A neoclássica lidou
com a alocação de capital abundante quando o trabalho era escasso. A economia
contemporânea tem que lidar com a abundância do imaterial enquanto o tempo e a atenção
são escassos (p. 59-72).
O autor aborda a produção de conhecimento pelo conhecimento: a relação entre
200
tempo e atenção. Mesmo sem poder-se afirmar que estejamos na era da abundância de bens
materiais, até por conta do desequilíbrio ecológico, o autor aponta três recursos chaves que
aparecem agora como escassos: atenção cognitiva, tempo e atenção afetiva. Trabalhar no
computador permite continuadamente solicitar atenção das pessoas. Uma extraordinária
densificação do tempo de atividade. Muitos trabalhadores são levados à exaustão nervosa.
O autor também destaca a natureza incompleta do trabalho cognitivo e a
impossibilidade de medi-lo com unidades temporais. Na produção de bens materiais o tempo
é uma grandeza discreta. A produção de bens de conhecimento resiste a esse fatiamento. O
cuidado de uma criança, por exemplo, é ilimitado. Existe sempre um sentimento de não se ter
concluído o trabalho, ele torna-se fonte de ansiedade constante, algo que anteriormente
prevalecia apenas no trabalho acadêmico ou artístico (p. 72-75).
Os principais incentivos que o capitalismo industrial usou para motivação ao
trabalho em sua história podem ser classificados de duas formas de satisfação das paixões
humanas: a libido sentiendi (desejo de consumir bens materiais) e a libido dominandi (desejo
de poder). No capitalismo cognitivo vemos a exploração de uma terceira paixão libido
sciendi, a paixão por entender (p. 75 -79).
O autor se pergunta se está tomando o caminho dos apologetas neoliberais ao
apontar a natureza libertadora do capitalismo cognitivo em relação ao industrial. Ele aponta
dois fatores que tornam o capitalismo cognitivo tão instável quanto os dois tipos que o
precederam. O primeiro é a presença da exploração, mesmo não sendo uma exploração que
miserabilize as pessoas. O segundo é a natureza antagônica entre o novo tipo de relações
sociais e as relações de produção que ele engendra (p. 92 -93).
Boutang identifica o principal problema da produção de bens de conhecimento: o
caráter cada vez mais público destes coloca em questão a possibilidade de serem produzidos
apenas através do mercado, o que leva a uma reação das empresas. Contra todo o pessimismo,
o autor argumenta que a virulência reacionária dos apoiadores das DRM (gestão de direitos
digitais em inglês) e dos caçadores de piratas na internet tem pouco futuro. A primeira razão
tem a ver com a necessidade de se haver troca de conhecimentos para surgir a inovação
necessária. Até a Microsoft abraçou o Linux. A segunda razão tem a ver com a necessidade de
uma apropriação pelo maior número possível de pessoas como pré-condição necessária à
exploração de nível 2 e sem a polinização das multidões, a colheita de mel (capitalismo
tradicional) se enfraquece. Se abrirmos mão disso, voltamos para o reino da entropia e da
201
tendência decrescente das taxas de lucro (p. 107) A terceira razão para o fracasso da
contrarrevolução dos novos cercamentos é que um retorno à aplicação dos direitos de
propriedade do velho capitalismo industrial é incompatível com as liberdades civis e com a
democracia (p. 110).
As empresas ponto.com são como o surfista, para se manterem na crista da onda,
precisam de inovação constante. O surfista não cria a onda, ele apenas está no local e no
tempo certo para pegá-la. A sociedade do conhecimento prefere o capitalismo cognitivo ao
seu antecessor e busca ver o anterior morto e enterrado o mais rápido possível (p. 109).
Essa visão quebra com o forte vínculo da propriedade burguesa, desde Locke,
entre usus, fructus e abusus, com o último (transferibilidade) sendo hegemônico. Uma
pergunta surge: se estamos testemunhando uma transformação das relações de propriedade tão
grande que impacta na noção de espaço público e do papel do estado, isso não coloca em
questão o modo de produção capitalista, como um todo, e não apenas seu sistema dominante
de acumulação? Explica-se por uma diferença entre essas batalhas e a luta contra os
cercamentos no século XVIII: naquele momento, infelizmente para os camponeses irlandeses
despejados pelos britânicos, a produtividade estava do lado dos latifundiários, a tecnologia
estava monopolizada por eles. Uma difusão da tecnologia aos camponeses teria permitido a
eles resistir melhor à proletarização. A batalha atual contra os cercamentos é diferente. O
capitalismo cognitivo não expropria a internet diretamente, pois ele precisa da polinização na
sociedade em rede (p. 115-117).
Na visão do autor, o sistema de trabalho assalariado entra então em uma crise
constitutiva. Entendendo a exploração de nível 2, ou seja, do poder de inovação, deve-se
repensar completamente a noção de proletarização. No capitalismo cognitivo, a separação da
força de trabalho da pessoa do trabalhador individual se torna muito difícil. No capitalismo
cognitivo, para um trabalhador ser produtivo ele precisa ter acesso a computadores, a
programas, a rede. A liberdade de acesso suplanta o conceito de propriedade exclusiva. O
trabalho vivo se mantém vivo e se reproduz no ciclo produtivo separadamente da depreciação
do capital e da cristalização da atividade em divisão física do trabalho; se torna um
beneficiário do capital mais do que uma parte anexada ao capital. Boutang não se considera
um sonhador, ele afirma que Bill Gates percebeu isso e deu ações para seus programadores,
sendo criticado por ter pervertido o sistema salarial. Ele disse que o fez para segurar esses
engenheiros que não ficavam mais de 6 meses na empresa. O trabalho manual não é mais
202
condição para o acesso à comida (lembrado pelo quem não trabalha não come de Lênin). Para
o capitalismo cognitivo realizar sua exploração de nível 2, o acesso à vida é uma pré-condição
do trabalho produtivo (p. 117-121).
Boutang aborda a questão das classes sociais e a composição do capitalismo
cognitivo. Se o quadro apresentado está longe de ser sombrio, ele questiona por que muitos
apontam uma piora das desigualdades e a precarização da relação salarial? A subordinação do
trabalhador assalariado não desapareceu, em muitos casos ela piorou. O autor afirma que o
Movimento Operário, no singular e em maiúsculas era mais um mito mobilizador que uma
realidade. Na época de Marx, a situação da classe operária se deteriorava, mas outros
cantavam loas ao progresso e ao desenvolvimento. Hoje haveria um movimento semelhante.
O autor afirma que o desejo de mudança radical, que começou com os levantes estudantis dos
anos 1960s não era nem a realização do socialismo, nem a coroação do capitalismo do norte,
mas antecipava e tornava possível o salto do capital no desconhecido. Temos que adicionar ao
quadro elementos que o movimento de liberação sempre levantou: sexo, gênero, idade,
cidadania, etnicidade, religião, fenótipo, história colonial, etc. O bom e velho povo se torna
uma multiplicidade. Para ele o capitalismo cognitivo acrescenta uma outra camada nesta
transição. Se o capital intelectual é o fator de discriminação na distribuição da divisão
cognitiva do trabalho e na divisão social, os grupos associados a instituições de educação são
mais importantes que o background social. Ele acredita ter chegado a uma visão de classe
social que se unem, que se mesclam, que se ignoram, uma combinação de Marx com as
descrições da Escola de Chicago (p. 122 -128).
Boutang afirma que existe muita controvérsia sobre o que é considerado pobreza.
Para ele é um conceito subjetivo, muitas pessoas de baixa renda não se consideram pobres.
Outras se sentem pobres porque percebem muito mais possibilidades oferecidas pelas redes
digitais do que antes. O capitalismo cognitivo seria mais igualitário na distribuição de renda
que seus predecessores, mesmo havendo uma competição terrível emprestada do mundo da
arte e da excelência aristocrática da universidade. Neste sentido o cognitariado substitui o
proletariado (p. 129-135).
O autor se propõe a superar a insuficiência das explicações sobre a financeirização
neoliberal, que seria apenas um sintoma, não uma causa em última instância. As finanças
podem ser vistas como uma forma de governar a instabilidade inerente ao capitalismo
cognitivo, considerando o ascenso do imaterial (intangíveis) e do aumento do papel das
203
externalidades (p. 136).
A financeirização aparece como uma forma de rentismo inteligente, em
comparação ao lucro relacionado ao capitalismo industrial, já que a riqueza de uma
companhia será cada vez menos contabilizada pelas convenções que foram desenvolvidas nos
últimos 200 anos. O problema atual é como identificar os intangíveis. Esse valor teria que
levar em conta a força viva das empresas (wetware) e suas redes (netware) (p. 137-141).
Para ele, neste contexto, há uma transformação no mercado de trabalho. A
terceirização e a constituição dos autônomos levam ao início da desaparição das funções
hierárquicas de gerência. A subordinação ao empregador é eliminada, aqui a subordinação é
mantida através de um contrato provisório que cai no mercado comercial e não no mercado de
trabalho regido pelo código laboral (p. 141-143).
Contudo, para Boutang, o capitalismo cognitivo tem uma instabilidade intrínseca.
O papel determinante das finanças tem a ver com o fato de que torna possível, pela primeira
vez, identificar externalidades, e mapeá-las de forma a absorvê-las, absorvendo trabalho
grátis. Isso estabelece uma correlação entre o valor de um bem cognitivo e a atribuição
financeira do valor de uma ação na bolsa (p. 145).
O autor finaliza seu livro com Um manifesto para a sociedade pólen. Neste o
autor basicamente propõe um novo New Deal, que represente o abandono do paradigma do
salário. Segundo ele, devem ser abandonados o antigo capitalismo industrial e o seu anexo
socialista. Ele propõe uma renda mínima, medida que seria capaz de estabilizar o capitalismo
cognitivo e tornar possível remunerar a polinização, considerando os intangíveis. Para ele
Vercellone e Monnier mostraram que essa política é plausível e praticável. O dinheiro
necessário seria arrecado a partir de taxas, como a Tobin, e do corte de outros benefícios
sociais (p. 149-166).

2.6.10 Vercellone: A crise da Lei do Valor e rentismo

Vercellone (2011) em sua tese “devir rentista do lucro e da crise da lei do valor”
(p. 109), afirma que o lucro e a lei do valor, com o desenvolvimento do capital, vão
adquirindo um caráter mais rentista. Depois da crise do fordismo, pode-se observar um
204
retorno e multiplicação do rentismo, o que implica uma inversão geral da relação entre
salário, renda e lucro. Segundo o autor, há uma abordagem muito difundida no seio das teorias
marxistas que consideram o rentismo uma herança pré-capitalista que obstaculiza o
desenvolvimento do próprio capital; o capitalismo puro não admite rentismo. Da mesma
forma, existe hoje uma visão muito similar, que substitui a renda da terra pela renda financeira
e interpreta a crise atual como um conflito entre essa vocação rentista do capital financeiro e o
“bom” capital produtivo, que gera lucro e emprego. Segundo a mesma, capital e trabalho
fizeram um acordo que implicaria controlar o preço das mercadorias, inclusive os salários,
com o objetivo de garantir o pleno emprego e de reestabelecer o funcionamento da lei do
valor/tempo de trabalho socialmente necessário, contra as distorções causadas pela
intervenção do setor financeiro sobre o produtivo.
Vercellone afirma discordar desta leitura por quatro motivos: (1) o rentismo não
está fora da dinâmica do capital, nem é oposto ao lucro; (2) o rentismo não está separado do
aumento da “dimensão imaterial e cognitiva do trabalho” (p. 111), ocorrida após a crise do
fordismo, da qual os serviços financeiros são uma parte; (3) há um esgotamento da lógica
industrial da acumulação do capital e um aumento da vocação rentier e especulativa do
próprio capitalismo produtivo; (4) ela nega a natureza abrangente das finanças, que agora
estão em todo o ciclo econômico, tornando inclusive mais difícil distinguir entre a economia
financeira e a real.
O poder das finanças se manifesta na fase de crescimento, como capacidade de se
apropriar dos lucros, e na fase seguinte ao estouro da bolha especulativa, tornando os
governos e instituições reféns da ameaça da crise global, obtendo dos mesmos concessões
formidáveis. Porém, acreditar em uma autonomia completa do setor financeiro “que
fagocitaria a chamada economia real”, omite as interpenetrações entre um e outro setor, assim
como outras causas socioeconômicas da crise. Para o autor, a transição da crise das empresas
ponto.com para a crise subprime imobiliária não é resultado apenas da lógica financeira, mas
representa uma virada decisiva na dinâmica do capitalismo cognitivo.
A Crise da Nasdaq em março de 2000 assinala o fim da nova economia,
representando os limites à tentativa do capital de submeter a economia imaterial e da internet
à lógica mercantilista. Depois da queda do fordismo, vê-se o aprofundamento das
“contradições subjetivas e estruturais do capitalismo cognitivo” (p. 112), ligadas à
impossibilidade de integrar a economia do imaterial e do conhecimento ao crescimento do
205
capital.
Segundo Vercellone, a financeirização e o rentismo são causas e também
consequências das contradições globais internas ao capitalismo cognitivo. A crise atual não é
uma crise financeira que chega a envolver toda a economia real, já havia evidências da crise
econômica antes dela. O autor apresenta, portanto, uma hipótese: “a crise atual, sua
profundidade, exprime acima de tudo o caráter inconciliável do capitalismo cognitivo com as
condições sociais subjacentes ao desenvolvimento de uma economia baseada no
conhecimento e necessária para preservação do equilíbrio ecológico do planeta” (p. 114).
Acrescenta que ela é também uma crise estrutural, ligada à lei do valor e à tendência desta e
do lucro a tornar-se rentista.
Vercellone explica que a crise da Lei do Valor é uma “crise da unidade métrica
vigente que desestabiliza o próprio significado das categorias fundamentais da economia
política: o trabalho, o capital e, naturalmente, o valor” (p. 115). Segundo o autor, dois
elementos demonstram o esgotamento da força progressiva do capital e seu caráter mais
parasitário. Primeiro, “o esgotamento da lei do valor como critério de racionalização
capitalista de produção, capaz, como no capitalismo industrial, de fazer do trabalho abstrato,
medido em unidade de tempo de trabalho simples, […] um instrumento conjunto do controle
do trabalho e do crescimento da produtividade social” (p. 115). Esta crise está relacionada ao
crescimento da potência cognitiva do trabalho e o que ele chama de “nova hegemonia dos
saberes incorporados no trabalho com respeito aos saberes incorporados no capital fixo e na
organização do trabalho”, que nesse contexto a dinâmica do lucro opera cada vez mais com
base na expropriação de valor a partir “da relação de exterioridade a respeito da organização
da produção” (p. 115).
Segundo, observa-se o “esgotamento da lei do valor como uma relação social que
faz da lógica da mercadoria critério-chave e progressivo para o desenvolvimento da produção
de valor de uso e da satisfação das necessidades” (p. 116). O capitalismo industrial era
legitimado por promover o aumento da produtividade e satisfazer de maneira cada vez mais
barata as necessidades “verdadeiras ou supérfluas” (p. 116). Era instrumento de luta contra a
escassez. Hoje, a relação positiva entre valor e riqueza é de dissociação. O primado do valor
de troca e do próprio capitalismo se baseia na destruição e na criação de escassez. A lei do
valor sobrevive como um invólucro vazio que já não cumpre sua missão civilizatória.
Assim, o antagonismo entre capital e trabalho assume nova forma como
206
antagonismo entre as “instituições do comum na base de uma economia fundada no
conhecimento” e as “constituídas na lógica da expropriação do capitalismo cognitivo” (p.
117), lógica que se desenvolve sob a forma de rentismo. Partindo deste ponto, o autor
apresenta definições para salário, rendimento e lucro, assim como a teoria de Marx de “tornar-
se rentista do capital”, que está relacionada ao desenvolvimento do general intellect.
Salário, rendimento e lucro são as três principais categorias da distribuição de
renda e surgem a partir das relações capitalistas. Para entender sua relação, é necessário
primeiro especificar suas definições. O salário é a remuneração do trabalho produtivo, no
sentido de ser produtor de mais-valia, e é a base do rendimento e do lucro, e este, por sua vez,
se apropria do trabalho excedente de cada trabalhador, e também do excedente gerado pela
cooperação do trabalho.
A renda do rentista é composta por três elementos. O primeiro, a gênese e essência
do rendimento capitalista é a “expropriação das condições sociais de produção e reprodução”
(p. 119), ou seja, as diferentes formas de rentier associadas às privatizações das condições
sociais de produção e transformação do comum em mercadoria fictícia. Para enfatizar a
importância da renda no desenvolvimento capitalista, o autor cita a elaboração de K. Polany
sobre as fases de dessocialização, ressocialização e, de novo, dessocialização da economia.
O neoliberalismo hoje representa um novo tipo de Acumulação Primitiva,
diferente da original, pois expropria um comum que foi construído coletivamente, e não
naturalmente, “que as lutas têm construído nos lugares avançados de desenvolvimento das
forças produtivas, colocando algumas bases, institucionais e estruturais de uma economia
baseada no conhecimento” (p. 120); ou o que o autor chama de “produção coletiva do homem
pelo homem” como a saúde, a educação e a pesquisa.
O segundo elemento é a renda ligada à escassez natural ou artificial de um
recurso, como a renda baseada na propriedade monopolista. Já o terceiro, a renda baseada
numa mera relação de distribuição, que é um “título de crédito ou direito de propriedade […]
a partir de uma posição de exterioridade em relação à produção” (p. 121). Pode-se pensar
também a remuneração do capital como rentismo se o capitalista não estiver vinculado à
atividade produtiva, nem como gestor ou controlador do processo.
A diferença entre renda e lucro é que este último fica na empresa e é reinvestido
na produção, desempenhando assim um papel positivo no desenvolvimento das forças
produtivas. Além disso, está ligado ao caráter interno do capital à produção, na figura do
207
capitalista ou do empreendedor, o que implica necessariamente uma oposição “entre trabalho
intelectual (atributo do capital e de seus funcionários) e trabalho de execução banalizado
(atributo do trabalho). Essa oposição entre renda e lucro é “produto transitório de uma época
do capitalismo, a do capitalismo industrial” (p. 123).
Em diversos escritos, Marx parece concordar com esta leitura, mesmo porque em
sua época o capitalista ainda participava do processo produtivo, trabalhava e, na tendência à
subsunção real, “as funções produtoras puramente despóticas e as funções objetivas da
organização capitalista de produção parecem confundir-se” (MARX apud VERCELLONE,
2011, p. 124); o que, junto com a divisão do trabalho no processo de trabalho, com a
“incorporação da ciência no capital fixo e a separação do trabalho abstrato do de execução
parecem dar à função de direção do capital um sentido objetivo, inscrito na materialidade
mesma das forças produtivas” (p. 125). Portanto, para Marx, o proprietário da terra no
capitalismo, o rentista, parece ser um agente do feudalismo, uma reminiscência deste.
Segundo Vercellone, no Livro III de O Capital, Marx desenvolve a teoria do
“tornar-se rentista do lucro e da propriedade do capital” e faz uma distinção conceitual de
duas determinações de capital: uma segundo a propriedade, que leva à renda do proprietário, e
segundo sua função, que leva ao lucro do empreendedor. Ele apresenta duas hipóteses
complementares, primeiro a que o desenvolvimento do crédito e ações separam a propriedade
da gestão do capital, citando uma passagem de O Capital para dizer que este se adiantou a
Keynes nessa constatação. Segunda, que na evolução da relação capital-trabalho, o capital sai
da produção devido a “uma crise da subsunção real ligada a um processo operário de
reapropriação dos saberes” (p. 126).
Afirma que a teoria do capital rentista adquire mais pertinência quando vinculada
à tese do general intellect porque se pode observar no local de trabalho a “emergência de uma
intelectualidade difusa”, ou seja, “o aumento do conhecimento e educação por parte de mais
trabalhadores” (p. 127), assim, com uma economia baseada no saber, o capital recorre a
mecanismos de rentier para tentar manter a Lei do Valor.
Na passagem do capitalismo industrial ao capitalismo cognitivo, há uma mudança
na relação entre salário, renda e lucro; que o autor passa a abordar mais detalhadamente.
Depois da crise de 1929, pode-se observar uma queda do rentismo e um aumento do capital
industrial porque há uma regulamentação dos mercados, a implementação de impostos
progressivos, a regulamentação da oferta da moeda – todas medidas que impoem obstáculo ao
208
rentismo e implicam também uma queda na taxa de juros.
Em segundo lugar, no pós-crise, a força de trabalho se encontrava em melhores
condições no estado de Welfare, o que reduzia a massa de dinheiro para o capital, portanto,
para apropriar-se como renda. Além disso, porque a ascensão da administração científica (com
Taylor e Ford) e, como consequência, dos núcleos de pesquisa e desenvolvimento, tiram
dinheiro da valorização não produtiva do capital. Por último, porque naquele momento a
relação de propriedade intelectual ainda é muito limitada apesar da ascensão do capital fixo. O
autor conclui que naquela época, a distribuição de renda era quase exclusivamente resultado
da luta entre salário e lucro.
Com a crise do modelo fordista, essa situação é invertida. Com a ascensão do
capitalismo cognitivo, o lucro é cada vez resultado de dois mecanismos relacionados ao
capitalismo improdutivo. Por um lado, do papel central que começam a desempenhar a
propriedade intelectual e os títulos de crédito; por outro, o controle sobre o mercado passa a
substituir o controle sobre a produção, devido à constituição de monopólios, à apropriação do
valor criado fora da empresa com o fenômeno da terceirização.
Essa inversão aponta a duas tendências. No capitalismo cognitivo, a
competitividade da empresa depende do que o autor chama de “produtividade diferencial”, a
vantagem sobre os outros capitalistas “em função de seus recursos cognitivos e da qualidade
do sistema de formação e pesquisa pública” (p. 131), ou seja, da “cooperação produtiva
realizada fora do espaço da empresa” (p. 132).
O capitalismo é, portanto, obrigado a reconhecer o aumento da autonomia do
trabalho na organização da produção e percebe que “deve obter uma mobilização e
participação ativa do conjunto do conhecimento e de toda vida dos trabalhadores” (p. 132) e
faz isso através da internalização dos objetivos da empresa, da pressão dos clientes, e pelo
constrangimento ao trabalho principalmente devido à precarização, o que, segundo o autor,
explica a estagnação da classe média.
Nessa época pode se observar o aumento das políticas de crédito, que se
desenvolvem para evitar a estagnação do consumo; funcionando como novo mecanismo de
transferência de mais-valia ao capital, através dos juros; e como constrangimento ao
trabalhador, um mecanismo de submissão ao capital. Vercellone chega a duas conclusões, a de
que os conceitos de capital produtivo e de mais-valia devem ser repensados e a negociação
entre capital e trabalho devem incluir também atividades fora do tempo de trabalho. Além
209
disso, como se pode observar, as empresas se dedicam cada vez mais a atividades financeiras
e menos de organização da produção. Assim, segundo o autor, é como se “ao movimento de
autonomização da cooperação do trabalho correspondesse um movimento paralelo de
autonomização de capital sob a forma abstrata, altamente flexível e móvel de capital-
dinheiro” (p. 134); ou seja, há uma tendência geral do capital de tornar lucro em mecanismo
rentier.
Para Vercellone, o ponto de partida e o motor principal da mutação do capitalismo
não são a financeirização nem a revolução informática, mas a constituição de uma
intelectualidade difusa devido ao aumento da escolarização e do nível de formação da classe
trabalhadora, assim como as lutas e conquistas do estado de bem-estar social (Welfare State).
Ele afirma: “parte do capital chamado intangível […] incorporado essencialmente aos
homens, superou a parte do capital material no estoque real de capitais e se tornou o principal
fator de crescimento”, e que isso tem três significados maiores. O primeiro, que a formação da
intelectualidade difusa e a nova hegemonia do capital cognitivo são a base do crescimento do
chamado capital imaterial ou intangível. Ao explicar o segundo significado de sua afirmação,
o autor chama atenção para a possibilidade de categorias como capital imaterial, intangível ou
humano introduzirem distorções para ocultar que o capital cognitivo nada mais é que
inteligência coletiva, ou o “papel hegemônico [do trabalho vivo] em relação às ciências e aos
saberes codificados, incorporados ao capital fixo”, que escapa de medidas objetivas e cujo
valor é determinado atualmente pela lógica bursátil; para isto ele se apoia no conceito de
Mario Tronti, “o trabalho vivo como não capital”.
Vercellone agrega que não só o capital, mas o próprio produto do trabalho é “cada
vez mais imaterial e se incorpora em bens de inovação, em conhecimento, em serviços de
informática que constituem mercadorias fictícias” (p. 138). Explica que mercadorias fictícias
são aquelas que fogem dos critérios tradicionais para se definir uma mercadoria “em razão de
sua característica não rival, cumulativa e dificilmente exclusiva” (p. 138. Itálicos do autor).
Segundo o autor, na origem da crise da nova economia se encontra a seguinte
situação contraditória. De maneira singular, a produção imaterial não atrai recursos mercantis
para competir com outros setores e compensar a falta de demanda efetiva. Em sua tentativa de
transformar o conhecimento em capital e mercadoria fictícia, o capital gera uma situação
paradoxal. À medida que aumenta o valor de troca do conhecimento devido à privatização,
por exemplo, de universidades e centros de pesquisa e desenvolvimento (P&D), reduz-se seu
210
valor de uso justamente devido à privatização e escassez do serviço.
Finalmente, o terceiro significado que assume o desenvolvimento do capital
cognitivo é que o setor que movimenta a economia baseada no conhecimento não está nos
laboratórios de P&D, mas nas instituições de Welfare, fora da lógica mercantil; pois a
subordinação destas instituições à lógica mercantil cria escassez artificial de recursos.
Como mencionado anteriormente, as relações de produção capitalista hoje
representam um obstáculo para o desenvolvimento das forças produtivas, e há três fatores que
podem explicar essa contradição. Primeiro, o caráter cognitivo e afetivo do trabalho, que age
sobre o homem e não sobre a matéria inanimada. Em segundo lugar, a impossibilidade de
aumentar a produtividade do mesmo medido a partir de sua quantidade em detrimento da
qualidade, já que são hoje serviços como saúde, educação, etc. Em terceiro, a distorção que
decorre da tentativa de aplicar a lógica da demanda solvente a bens comuns, cuja produção
“se baseia na gratuidade e livre acesso”; seu custo “não pode ser representado senão como
preço coletivo e político representado pelos impostos” (p. 140). Pode se observar na Europa
hoje, em países como Itália, França e Grécia uma luta forte entre o neoliberalismo, com sua
expropriação rentista do comum, e o resgate do Welfare, que propõe o desenvolvimento
baseado na produção do homem pelo homem.
No capitalismo cognitivo, o desenvolvimento do rentismo, do qual a
financeirização é apenas uma parte, adquire uma dimensão estrutural que se expressa na
contradição entre o aumento da importância do trabalho imaterial e a lógica de valorização
industrial. A crise representa o ponto máximo dessa contradição entre trabalho e capital e
entre a produção social e a apropriação privada. Perante essa situação, o capital não será capaz
de implementar um novo New Deal, ou seja, um novo acordo entre capital e trabalho devido
ao fim da capacidade revolucionária do capital e ao fim da Lei do Valor. Uma proposta desse
tipo ameaçaria a coerção que o capital exerce sobre o trabalho através de sua precarização. O
desenvolvimento da própria produção, no estilo industrial, já não satisfaria as necessidades
humanas, pois está baseada em “atividades como produção do homem pelo homem, às quais a
lógica de mercantilização e rentabilidade não podem ser aplicadas senão ao preço de
insustentáveis desigualdades e de uma drástica redução da produtividade social” (p. 142).
Depois de apresentar algumas considerações e propostas para a luta política,
Vercellone conclui que “hoje se assiste a uma extensão importante dos tempos de trabalho não
remunerados que, fora da jornada oficial, estão envolvidos direta ou indiretamente na
211
formação do valor capturado pelas empresas” (p. 145). Assistimos, portanto, “tendências que
levam a uma erosão das fronteiras tradicionais entre trabalho e não trabalho, esfera da
produção e esfera do tempo livre” (p. 146).

2.7 Crítica à literatura marxista contemporânea

O exame da literatura marxista contemporânea sobre a crise nesta pesquisa


permite subdividi-la em três linhas gerais de interpretações da obra de Marx: a primeira
constitui a formulação tradicional, desenvolvida pela II Internacional e que se fundamenta na
concepção de crise presente no Manifesto Comunista (2010i) de 1848 e no Livro I de O
Capital (1988) de 1867, tradicionalmente denominada de teoria de superprodução ou
subconsumo, que propõe que as tendências seculares da acumulação do capital (Lei Geral da
Acumulação) conduziriam ao colapso do capitalismo; a segunda, que se fundamenta na
concepção de crise cíclica, desenvolvida a partir do debate sobre os esquemas de reprodução
teorizados por Marx no Livro II de O Capital, cuja concepção de crise se resume a demarcar a
mudança de fase do ciclo econômico da expansão à contração, e a mudança da base técnica,
social e do padrão de acumulação do capital para novo período de expansão da economia; e a
terceira, que se fundamenta na desvalorização do capital devido à superacumulação, cuja
manifestação se observa na Lei da Tendência Decrescente da Taxa de Lucro presente no Livro
III, indicando o colapso da reprodução do capital. Naturalmente, as três perspectivas estão
presentes na obra de Marx, o que permite o isolamento de um destes aspectos e
desenvolvimento da sua incidência em teoria específica, subsumindo os demais enquanto
relações secundárias. Por este critério, chega-se até a teoria do Profit Squeeze (compressão do
lucro), mas claro está que já não se trata de uma lógica resultante das leis da acumulação.
Todas estas interpretações da crise em Marx sofreram uma significativa
modificação com a redescoberta dos Grundrisse de 1858-59. Este estudo de Marx,
considerado um esboço da sua obra magna, desenvolve o conceito de capital em geral
articulado pela categoria valor e, necessariamente, desenvolve também a categoria crise
enquanto momento que expressa sua negação. Neste sentido, apresenta uma concepção do
movimento do valor ao seu antivalor mediado por uma série histórica de momentos de
212
negação do valor que permeiam o movimento do substrato material do conceito de capital em
geral até a transformação do mesmo, real e conceitual, ou objetiva e subjetiva. Esta concepção
permite uma compreensão da unidade conceitual da crise presente em O Capital, que pode ser
traduzida como a dialética de limites e barreiras, de leis gerais e leis específicas que
conformam a relação capital-trabalho.
No entanto, a categoria crise, como conceito que exprime um processo histórico
concreto, cujo significado dialético geral é momento de negatividade e mudança do ser, não
tem sua concepção originária no pensamento marxista; antes de Marx ela já era aplicada pela
economia política clássica burguesa e, sua crítica, pelo socialismo pequeno burguês, por
exemplo, no livro Nouveaux Principes d'Économie Politique (1819) de Sismondi, que
responde ao livro de Ricardo Princípios da Economia Política e da Tributação, dois anos
depois de seu lançamento; e inclusive antes deste em A riqueza das nações de Adam Smith. É
possível também, por um exercício de digressão histórica, chegar à gênese do aspecto
universal desta categoria enquanto categoria para si, como tragédia em Homero (2003, p.31),
economia em Heródoto (2006, p. 56), paradigma literário em Platão (1997, pp. 83-84),
mudança de estado ou falimento vital em Hipócrates (2010, passim), momento crítico em
Aristóteles (1995, p. 95), conjuntura política em Júlio César (2001, pp. 206-236) e Maquiavel
(2000, p. 14), finalmente, como revolução em Rousseau (1995, p. 213). Com a passagem do
feudalismo ao capitalismo, e o consequente domínio da ciência econômica sobre o
desenvolvimento das demais ciências, a categoria crise, tendo por substrato a economia do
capital, ganha significado sistêmico, mesmo quando se limita apenas a uma de suas esferas
particulares, pois trata-se de uma crise que expressa uma negação ao processo de reprodução
do capital; logo, de todo seu sistema, embora este aspecto essencial da categoria crise não seja
admitido diretamente pelos economistas clássicos e vulgares.
Desta maneira, a crise como expressão de um processo social e histórico concreto,
que existe independente do conceito marxista da mesma, também é definida por outras
concepções, como se observa nos clássicos; portanto, nada de extraordinário que a própria
interpretação do conceito de crise em Marx seja mediado por estas outras formas de
concepção da crise. Daí as definições que se postulam marxistas na prática constituírem
interpretações smithianas, ricardianas ou sismondianas da formulação de crise em Marx. Não
poderia ser diferente, se bem pensado, na base sobre a qual Marx constrói suas concepções de
superprodução, equilíbrio e desproporção da reprodução, e queda dos lucros, encontraremos o
213
estado estacionário de Adam Smith incorporado por Stuart Mill (MARX, 1989b, p. 106-108;
ARRIGHI, 2008, p. 80), bem como os rendimentos decrescentes da terra de Ricardo e as teses
de subconsumo de Sismondi, embora tenha aprofundado estas formulações e redefinido sua
articulação conceitual sobre o fundamento da Lei do valor-trabalho, que se acumula enquanto
mais-valia a cada rotação do capital e em que se desenvolve a reprodução ampliada do
mesmo. É sobre esta consideração das concepções de crise preexistentes e contemporâneas a
Marx que se pode entender as interpretações feitas deste autor no passado, por exemplo,
durante o debate sobre os esquemas de reprodução, assim como no presente, com a
redescoberta dos Grundrisse.
Marx nos Grundrisse parte da concepção de Adam Smith de estado estacionário
(MARX, 1989, V. 1, p. 6), desenvolvido mais precisamente por J. St. Mill, e, após suas
considerações sobre as limitações de Smith acerca do valor da força de trabalho (p. 268),
chama a atenção para os equívocos na interpretação das “verdadeiras crises modernas”, isto é,
as crises de superprodução decorrentes das “barreiras ao consumo” e das que se opõem à
circulação (MARX, 2009, p. 363), que se manifestavam como realidade imanente à relação e
processo socioeconômico do capital. Afirmava que tanto Ricardo quanto Sismondi não as
compreendiam corretamente. O primeiro absolutizava a essência positiva e tendência à
universalização, o desenvolvimento das forças produtivas e o crescimento da população
industrial – a oferta, fazendo caso omisso da demanda; enquanto o segundo só via a
“unilateralidade negativa das limitações particulares do processo de produção capitalista” à
sua época (p. 363). Ricardo não conseguia compreender o desequilíbrio estrutural do sistema
e sua tendência a negar-se a si próprio, ao encarar “todos os limites como barreiras” à sua
autovalorização e autorreprodução ampliada. Não chegava às últimas consequências em sua
teoria do “valor-trabalho”, ao negar a “mais-valia” como fundamento do lucro, através da
“unilateralidade da sua teoria da renda da terra” e “sua falsa teoria do comércio internacional”
(MARX, 2009, p. 268, tradução nossa); daí sua tendência a definir as crises como distúrbios
sempre superáveis, ad infinitum. Já Sismondi, pelo contrário, não apenas enfatizava o embate
com as barreiras, mas também “a criação das mesmas pelo próprio capital”; o que leva o
sistema a contradições que necessariamente conduzem ao “downbreak dele mesmo”. Daí a
proposição de Sismondi de impor “travas à produção, a partir de fora através dos costumes, a
lei, etc.”. E justamente, por “tratarem-se de barreiras puramente exteriores e artificiais, o
capital as leva abaixo de maneira inevitável” (MARX, 2009, V. 1, pp. 362-363).
214
Uma apreciação das diferentes concepções de crise presentes na literatura
marxista contemporânea, tendo por pressuposto as definições sustentadas por Marx em
relação a Smith, Ricardo e Sismondi, (MARX, 1989b, pp. 106-108, 133-137) permite uma
primeira classificação dessas formulações sob três vertentes. A primeira, pode ser definida
como interpretação ricardiana de Marx, conceituando as crises como meras perturbações ou
períodos de renovação ou racionalização do processo de produção, sempre superáveis,
permitindo a expansão do sistema capitalista e sua autorreprodução ad infinitum; na qual
poder-se-ia classificar as formulações de Harvey, Hardt e Negri. A segunda, deriva da
concepção de Sismondi que relaciona o acúmulo de riqueza entre as leis da acumulação e a
Lei da População, da qual deriva o subconsumo e a superprodução e na qual participa
destacadamente Mészáros. A terceira, que inclui Arrighi, tem seu horizonte no estado
estacionário de Adam Smith, em que a produtividade social, ao atingir pleno
desenvolvimento, conduz à baixa nas taxas de lucro e salários. Isto é, um mesmo
comportamento para os lucros na teoria da renda da terra de Ricardo, embora estes
divergissem sobre a possibilidade de superprodução e os limites à acumulação (MARX, 1974,
v. 2, p. 48-56). Naturalmente, estas interpretações da concepção de crise em Marx acabam por
não compreender sua nova formulação em O Capital, posto que tal compreensão só é possível
a partir de seu conceito do capital em geral, que resulta do movimento de produção e
reprodução do valor em suas diferentes formas de ser, inclusive em sua forma de negação de
si mesmo. O que implica dizer que esta interpretação só é possível a partir do próprio método
de Marx como o autor observou no Posfácio da Segunda Edição Alemã (1985, V. 1, pp. 19-
21) e problematizou no Prefácio à edição francesa (1985, V. 1, p. 25) de O Capital. Este fato
foi o que argumentou Grossmann (1979, passim) ao desenvolver seu esforço teórico na
interpretação desta formulação da crise em Marx e justamente por ter partido deste
pressuposto, constituiu o trabalho mais fecundo sobre este autor até o presente momento
histórico, em que novamente se reacende o debate em torno dos limites históricos do capital e
do caráter singular da sua crise atual. Com base nestas quatro perspectivas é que se pode
considerar:
a) a concepção de Harvey da crise como “um processo para racionalizar as
irracionalidades do capitalismo” (HARVEY, 2011, p. 100), bem como um momento no qual o
capital reconfigura-se e busca novas alternativas de desenvolvimento ou uma oportunidade
para mudança social (p. 37), que se fundamenta no pensamento ricardiano, definido por Marx
215
como de absolutização do desenvolvimento do capital que supera todas as barreiras ad
infinitum; ele próprio denomina tal processo como “acumulação do capital sem fim” (p. 106).
Embora considere o problema fundamental do capital e enigma de suas crises o que definiu
como “problema de absorção do excedente de capital”, ou seja, os três por cento que
considera uma média cotizada a partir dos próprios economistas burgueses e suas publicações,
tal formulação encontra-se do lado oposto a todas as definições de crise presentes na obra de
Marx, porém muito mais provável na ideia de estado estacionário de Smith e nos rendimentos
decrescentes da terra de Ricardo. Sua alusão às diferentes concepções de crise, tais como crise
de desproporção, crise da taxa de lucro, de compressão de lucro, de desvalorização, e até
mesmo as formas longas de ciclos de Kondratieff, apenas confirmam sua concepção das
irracionalidades do sistema, inclusive atribuindo papel significativo ao animal spirit
formulado por Keynes como justificativa para o que chama de armadilha da liquidez ou o que
teorizam os neokeynesianos de crise de desmoralização financeira. Sua especulação sobre a
possível crise de conspiração dos economistas da Escola de Chicago e empresários, bem
como da possibilidade da nova crise mundial advir da China, traduzem certa confusão de
ideias e injunções teóricas sem uma sistemática definida na obra de Marx. A sua autodefinição
de superioridade na formulação da crise sobre as demais concepções marxistas preexistentes a
partir de uma dedução de uma definição de Marx da relação homem-natureza, de sete esferas
de problemas ou barreiras que o capital deveria vencer para manter seu equilíbrio e
desenvolvimento sem os percalços de crises, tais como “tecnologias e formas de organização;
relações sociais; arranjos institucionais e administrativos; processos de produção e de
trabalho; relações com a natureza; reprodução da vida cotidiana e da espécie; 'Concepções
mentais do mundo'”, constitui apenas indicações tautológicas, que na verdade têm o mesmo
significado e não são capazes sequer de compor uma teoria simplista e tanto é um fato quanto
sua conclusão sobre o enigma das crises do capital: 3% de investimento composto ao ano.
b) Arrighi, ao se apoiar em Schumpeter para definir as crises como ciclo de
renovação e inovações tecnológicas, como formulação que não contraria a concepção de Marx
de acumulação infinita de capital, acaba por se definir como smithiano, portanto, mais
próximo da concepção de Ricardo. Sua concepção da crise como longo ciclo que finaliza por
uma crise de hegemonia, na qual se alternam as potências mundiais, desenvolvendo-se novo
ciclo histórico de hegemonia e poder, tendo por base Fernando Braudel (ARRIGHI, 2008, p.
103), atribui a crise do capitalismo atual à nova mudança no poder mundial dos EUA à China,
216
configurando-se uma nova geopolítica global. Naturalmente, sua análise, embora também se
sustente no conceito de hegemonia de Gramsci, não chega a constituir uma concepção de crise
essencialmente marxista.
c) Bensaïd pensa a crise do capital do ponto de vista filosófico, como parte da
crise das concepções cartesianas e positivistas. Apresenta a concepção marxista como
paradigma alternativo à ciência burguesa e sugere que a própria crítica da economia política
formulada por Marx se insere no quadro da modificação da ciência econômica geral. Contudo,
observa que na própria concepção da crítica da economia política, as concepções de espaço e
tempo apresentam contradições, dado que se apoiam em paradigmas superados do positivismo
que continuam regulando a produção e a reprodução do capital. Daí sua tese da
desfuncionalidade do paradigma de mensuração de valor fundado no tempo socialmente
necessário à produção de riquezas, como manifestação dos limites absolutos do capitalismo e,
mesmo centrada na lei do valor, surge como uma formulação smithiana que não guarda
relação direta com as crises cíclicas da economia. Para Bensaïd, a ecologia coloca para o
capital um valor impossível de ser mensurado em tempo social, portanto, conduzindo à crise
da teoria do valor. Sua citação de Marx, no final do capítulo da crítica da ecologia política, do
problema da mensuração da ciência, isto é, que seu tempo de produção original é totalmente
distinto do seu tempo de reprodução, fugindo, portanto, da concepção abstrata do tempo
social, tem o mesmo significado que o da ecologia, ambas demonstram as limitações do
paradigma de mensuração do valor e denunciam a crise da ciência em geral através da crise da
economia política fundada na economia de tempo que sustenta o modo de produção
capitalista.
d) O trabalho de Kurz considera a crise vivida pelo sistema mundial do
capitalismo como uma transição histórica a um novo modelo de sociedade, sem uma definição
precisa, pois considera a crise de transição um processo de longa duração. Sua concepção da
crise se sustenta no desenvolvimento absoluto da produtividade social pela incorporação da
ciência e da técnica na produção do sistema, constituindo a contradição entre a massa cada
vez maior de capital monetário investido na produção e o retorno em acumulação de trabalho
abstrato cada vez menor, ruindo a base em que se sustenta o valor que é o fundamento suposto
e pressuposto da sociedade que ele define como “produtora de mercadorias”. A relação entre
os países centrais do capitalismo, que atravessam esta crise estrutural, e os países do Leste
Europeu e do chamado Terceiro Mundo, cuja modernização “fracassou” nas formas
217
consideradas de Acumulação Primitiva, se expressa na incapacidade cada vez maior do
sistema absorver esses países e suas respectivas populações, em particular os trabalhadores;
para o autor, o problema para os povos nesses países não é a exploração capitalista, porém sua
falta. Esta noção de crise, como se pode notar, fundamenta-se, por um lado, na formulação de
Marx em torno do processo de desvalorização, que se faz notar pela tendência decrescente da
taxa de lucro; por outro lado, enquanto aplicação que ultrapassa os limites absolutos do
sistema, deformando o objeto de sua existência, o trabalho abstrato ou mais precisamente o
valor, insere-se na crise do paradigma de valor da sociedade, que, para se sustentar diante do
mesmo, indica um horizonte de barbárie, exclusão e terror. Embora o autor considere que a
consciência pelo sujeito histórico da crise final do sistema produtor de mercadorias exija o
colapso dos países centrais do capitalismo, isto é, um novo perdedor, e que tal processo
resulte da superacumulação a que chegaram durante a modernização, fica evidente a natureza
smithiana da sua concepção. Kurz oblitera a importância da luta de classes e da categoria
trabalho, como atividade humano-sensível, ao defender o fim da sociedade do trabalho
abstrato sem propor o fim das relações sociais de produção que lhes têm suposto e
pressuposto. Sua análise obedece à lógica de sistema composto por um centro mais
permanente e uma periferia mais histórica, como se pode deduzir dos países centrais onde o
trabalho abstrato se desenvolveu inteiramente e da modernização fracassada dos demais; esta
relação faz do capital um núcleo mais estável enquanto as formas de ser do outro do capital, o
trabalho, perdem as suas formas à medida que a própria relação capital fracassa. A ideia que
resta de libertação do trabalho nesta lógica reduz-se à passividade ecológica.

e) Os autores Hardt e Negri, em seu livro Império, sustentam a tese de uma crise
de transição histórica do modo de produção capitalista, em sua fase imperialista, para uma
nova configuração que denominam Império ou que chamam de pós-modernidade. Trata-se de
uma concepção da constituição de uma superestrutura jurídica e política fundada nas
instituições de caráter supranacional que compõem a ONU e também das articulações entre as
corporações da economia em âmbito mundial, tais como OMC, Banco Mundial, FMI, BIRD,
etc. Indicam que as primeiras se sustentam juridicamente nas concepções de Hans Kelsen e
Kant, cujo telos é o supremo da ética; na verdade, há uma correlação entre o que os autores
denominam de “governo do biopoder”, que resulta da passagem da sociedade disciplinar à
sociedade de controle, e a concepção de Marx sobre a passagem da subsunção formal à real
218
do trabalho ao capital, apesar das considerações restritivas dos autores a este último conceito
em relação ao que consideram amplitude do biopoder: o governo sobre a produção e
reprodução da vida, cuja formulação original encontra-se em Foucault, ampliada por Deleuze
e Guattari e fundamentada pelos autores marxistas italianos que sustentam os conceitos de
intelecto geral e trabalho imaterial, que para os autores de Império constituem formulações
ainda limitadas em relação à que desenvolvem. No essencial, afirmam que a base real do
biopoder é aquela que produz o biopoder e cuja expressão concreta encontra-se nas novas
corporações que compõem a revolução informacional, conduzindo o modelo industrial do
capitalismo ao modelo pós-industrial em que dominam as empresas de comunicação e
informação na legitimação da nova superestrutura jurídica e em sua autolegitimação como
produtora simbólica. Segundo os autores, na base destas corporações estão as empresas de
informatização que produzem o trabalho imaterial; este constitui o devir do trabalho em geral,
assim como a informatização, enquanto o setor de serviços é o devir da indústria. Portanto, no
centro da produção do biopoder está a revolução tecnológica que se expressa na passagem do
modelo industrial do capital ao modelo pós-industrial ou de serviços. O trabalho imaterial,
enquanto decifrador de signos e construtor simbólico, operador de símbolos e textos e afetivo,
dissolve os conceitos de classe social no conceito de multidão, desintegra o conceito de valor
ou do paradigma de valor se autovalorizando e altera o significado de propriedade privada e
pública. À medida que o trabalho imaterial pressupõe o mais alto grau de desenvolvimento
científico e das relações de intercâmbio multilaterais e comunitárias, seu desenvolvimento
expressa o potencial virtual das subjetividades de alterar o conteúdo do Império, de sistema
que mantém e até mesmo amplia a exploração do trabalho, e o fundamento do valor no tempo
social, ou seja, de um sistema que mantém o status quo das classes dominantes para uma
sociedade de conteúdo libertário, além das fronteiras, comunal e ética.
Embora os autores do Império reivindiquem uma concepção de crise de transição,
em que aplicam a noção de revolução por cima ou pacífica que extraem de Gramsci, na
verdade trata-se de uma apologia à globalização e ao que foi denominado de indústria da
informação ou nova economia. A declaração destes de que sua formulação expressa um
método não dialético, ao mesmo tempo em que toda a construção teórica que fundamenta a
noção de Império reside na base econômica, independente da qualificação com que estes a
denominam – como serviço, informatização, trabalho imaterial – faz com que a mesma se
219
erga contra os autores, denunciando a relação entre infra e superestrutura que tanto condenam
em Foucault. A fundamentação subconsumista que extraem de Marx e Rosa Luxemburgo para
sustentar a formação do mercado mundial, que ao fundo de tudo é a base de sustentação do
Império e nele o domínio dos monopólios torcem seu conceito de crise de transição histórica a
uma interpretação de Marx fundada em Sismondi e só aparentemente contraditória com a
definição ricardiana da crise cíclica como barreira sempre superável e incapaz de conduzir ao
colapso do sistema. A formulação que esgrimem apoiados na diferenciação de Lênin dos
demais intérpretes da teoria do imperialismo, isto é, a hegemonia que é ao fim ao meio e ao
cabo; tentam associar as teses de Lênin sobre o imperialismo, como sistema de transição do
capitalismo a outro modo de produção superior ao capitalismo de monopólio ou financeiro,
isso revela tão somente a dimensão minúscula de suas proposições do Império ao conceito de
ultraimperialismo de Kautsky. O mesmo se pode observar na tentativa de reivindicar a
continuidade da obra inacabada de Marx e seu método para atribuir a seu escrito Império
status de obra crítica obrigatória à formulação complementar de Marx sobre o Estado e o
mercado mundial ou este complemento. Finalmente, a incorporação que fazem do conceito de
intelecto geral de Marx, a partir dos escritores marxistas italianos, como realidade virtual do
Império, que constrói pela comunalidade da subjetividade da multidão um mundo superposto
de autovalores que rompem a ditadura do paradigma do tempo socialmente necessário, que
constrói novas formas de cooperação e intercâmbio na produção e consumo como alternativa
dentro do Império, resume-se a uma aplicação estéril deste conceito que se perde na
dissolução das classes sociais, no desaparecimento do trabalho concreto em trabalho abstrato
ou, mais precisamente, trabalho imaterial e turva o objeto da ação revolucionária
transformadora da subjetividade das massas, ocultando as formas de ser do capital pela
dissolução da propriedade privada e a despersonificação do capital pela relação coisificada no
Império entre o homem-mercadoria e a máquina, a que é impossível resistir ou confrontar a
sua determinação absoluta e universal. A tese de Maquiavel aplicada ao Império como
governo mundial de exceção, que se embebe de autoridade e poder da crise de transição e da
resistência das classes sociais e povos que lutam por sua condição nacional e independência,
condensa a genuflexão da luta de classes e da resistência dos povos por sua autodeterminação.
As teses do Império de Hardt e Negri não apenas desaparecem com as categorias e conceitos
que conformam teorias políticas, sociológicas, filosóficas e econômicas, sentido sistemático e
220
lógico, dialético e histórico, mas as substituem por uma bricolagem de categorias,
neologismos e formulações vazias. Sua concepção de crise se resume ao que não quer ser:
tese de subconsumo, tanto quanto a tese de Mészáros.
f) A concepção de crise em Mészáros está diretamente determinada pela teoria
subconsumista de Rosa Luxemburgo, seguindo a tradição sismondiana, e pela teoria da
destruição criativa de Schumpeter na tradição ricardiana, que supõe a acumulação
interminável de riqueza e poder pelo capital. Embora pareça paradoxal ou contraditória tal
concepção, na verdade, ambas se completam na teoria smithiana vulgarizada por Mill do
estado estacionário, em que superprodução e subconsumo colapsam os lucros, oferecendo um
horizonte de processo de definhamento do sistema sem um comprometimento de sua parte
essencial, pois como postula este autor, as sociedades pós-capitalistas supõem o capital além
do capitalismo. A explicação que fundamenta sua concepção de crise sistêmica ou estrutural é
a que deriva da leitura de Marx do conceito de capital em geral, em que a relação capital sob a
forma do duplo estatuto do trabalhador como produtor e consumidor, requer a exportação do
hiato de demanda à solvência por terceiros mercados, do qual é derivado o conceito de
mercado mundial, cujo limite exige a superação de obstáculos já intransponíveis, constituindo
os limites absolutos de sua forma sistêmica. Este processo, resultante da superação do que
Mészáros define como crises conjunturais ou setoriais, chama em seu concurso todo o poder
da ciência e da tecnologia na destruição criativa ao limite da constituição de bens de capital,
cujo tempo útil decresce constantemente, encurtando cada vez mais o tempo necessário
através da obsolescência programada, impactando os custos do capital variável e seu volume
na composição do capital, acarretando o desemprego estrutural e demais consequências da
situação defensiva do trabalho, tais como precarização das condições de trabalho e violenta
amputação de seu consumo. A expansão do capital através da totalidade extensiva, ancorada
no complexo industrial-militar, ao atingir os limites do macrocosmo global voltou-se à
totalidade intensiva, chegando à unidimensionalidade do microcosmo individual, em que a
tendência à aplicação tecnológica de bens e serviços impulsiona a tirania do tempo mínimo à
produção social, transformando a tendência à obsolescência do capital fixo na lei que o autor
considera a mais importante do momento histórico atual e principal responsável por
potencializar o capital a saltar sobre as barreiras de seus limites absolutos: a Tendência à
Utilização Decrescente (TUD). Contudo, o salto mortal do capital sobre seus limites absolutos
221
não foi capaz de ultrapassar verdadeiramente estas barreiras, que se expressam na distribuição
do tempo disponível de toda a sociedade entre aquele dedicado a produção dos meios
essenciais à reprodução da sociedade e aquele dedicado ao tempo livre da produção para a
arte, a ciência, o lazer, etc., que sob regime da propriedade privada, apesar da desfiguração
que lhe atribui o autor, impede que a ampla massa de trabalhadores e pobres da terra possam
apoderar-se do mesmo em condição de desfrutá-lo, à medida que tem que dedicar todo seu
tempo de vida como tempo de trabalho necessário à aquisição dos meios essenciais à sua
subsistência. A TUD, neste contexto, deixa a função de contratendência à queda dos lucros
pela diminuição do tempo necessário em relação ao tempo excedente internamente ao
processo de produção, configurando um quadro de alta produtividade do trabalho concreto,
isto é valores de uso, e baixa criação de valor abstrato, valor de troca, que, em termos do
tempo disponível social, expressa-se em tempo necessário cada vez menor em relação ao
crescimento do tempo livre. O emprego subsumido e sem limites da ciência e da técnica e o
desenvolvimento de formas superiores de cooperação e intercâmbio social, que atuam sobre a
produção e a sociedade em geral, conduzem à deformação da ciência ao limite da violação do
paradigma de mensuração do valor do tempo socialmente necessário, que então se revela no
colapso estrutural do capitalismo e sua visível condição estacionária. A tese de Mészáros é a
tese do colapso de subconsumo.
g) O estudo de Lazzarato é parte do trabalho de um grupo de intelectuais italianos
que desenvolvem os conceitos de intelecto geral para entender as transformações que se
operam no mundo do trabalho face ao que foi considerado revolução informacional. Embora a
crise não seja o objeto de estudo de seu trabalho, à medida que identifica os obstáculos à
transição do modelo fordista ao pós-fordista, acaba por enfocá-la. A transição tem por
vanguarda a indústria da comunicação, que passou a desempenhar papel relevante no processo
de globalização e reestruturação pós-fordista. Neste sentido, a tematização conceitual do
trabalho imaterial é a chave para explicar as conformações tendenciais do que define o autor
como modelo pós-industrial. O estudo identifica a tendência à transformação da indústria
tradicional em indústria informacional, em que a subjetividade do trabalho transita da força de
trabalho viva para o capital fixo, e o sujeito social assume característica autônoma em relação
à produção industrial. O autor pensa o ciclo social do trabalho imaterial como processo que
inicia com a existência de força de trabalho viva autônoma e capaz de se autogerir durante o
222
trabalho, em relação à empresa capitalista; esta última considerada como fábrica difusa ou
empresa que se sustenta no trabalho terceirizado. Na produção da comunicação, a "matéria-
prima" do trabalho imaterial é a subjetividade e o "ambiente ideológico" no qual vive e se
reproduz; além de instrumento de controle social, torna-se produtiva. A publicidade constitui
um momento de trabalho que, através de dispositivos, atua na construção do consumo. A
máquina comunicativa é um enorme dispositivo de captura de mais-valia, através da produção
de ideologia. O estudo, embora se atenha a uma longa descrição do processo de trabalho, das
funções desempenhadas pelos agentes da produção, as redes de colaboração em que se
estrutura a produção da mercadoria imaterial, reduzindo este processo à atividade linguística,
localiza também a crise na concepção de valor, que se desenvolve com o avanço da transição
e da hegemonia do trabalho de comunicação, enquanto trabalho geral sobre a produção social
e a produção da vida. A tese de que as condições do trabalho imaterial pressupõem o alto
desenvolvimento da ciência e a transformação da atividade subjetiva dos trabalhadores em,
por um lado, intelectualidade de massa e, por outro, em capital fixo, inteligente, que produz
subjetividade, rompendo o paradigma do tempo necessário, expressa os limites a que fica
condenado o trabalho tradicional e a barreira epistemológica à plena vigência do trabalho
imaterial e as dificuldades da crise de transição. Naturalmente, esta formulação se encontra
plenamente desenvolvida pelo trabalho de Hardt e Negri em Império e Multidão, em que a
crise se apresenta como subconsumo que subsume sua noção ricardiana de ciclo ou barreira
transponível. A utilização das categorias “intelecto geral”, “tempo socialmente necessário”,
“mais-valia”, “capital fixo”, “valor de uso”, “força de trabalho”, “trabalho abstrato”,
“subjetividade” não faz de sua análise uma construção teórica marxista.
h) A formulação de Gorz compreende uma teorização sobre o essencial da crise
que se apresentou com a revolução informacional e a reengenharia dos processos produtivos.
Nesta, o conhecimento é a força produtiva principal da sociedade. Sua tese é a da crise do
valor, decorrente do paradigma de mensuração de valor, do tempo de trabalho socialmente
necessário, que não é adequado para medir a nova propriedade qualitativa do trabalho
imaterial, que é imensurável, na estrutura do valor das mercadorias. Seu exemplo, apoiado em
Rifkin, da especulação na bolsa de valores dos ativos intangíveis na década de 1990 nos EUA,
indica claramente sua concepção da crise de subconsumo que se revela após a desmoralização
do capital fictício na inflação de preços e no superconsumo individual, além dos limites
223
naturais da sociedade. Contudo, ao relacionar este processo de crise de superprodução à
distorção da categoria valor, pela aplicação do paradigma de sua mensuração
especulativamente sobre o conhecimento, acaba por enfocar a concepção de crise em Marx,
enquanto crise de valorização do capital que se consuma em crise do valor, fugindo assim da
determinação sismondiana, mantendo-se, entretanto, na noção ricardiana e smithiana. Para o
autor a nova realidade desempenhada pelo conhecimento, enquanto ciência e
instrumentalização do trabalhador, altera os conceitos de trabalho, valor e mensuração do
valor. Define o trabalho imaterial como atividade não mensurável pelo paradigma do tempo
socialmente necessário e coração da criação do valor na realidade produtiva atual, apesar de
não constituir quantitativamente a maior parte da produção material. Também sustenta que a
importância do trabalho imaterial na produção de valor altera qualitativamente as
propriedades do trabalho, implicando uma mudança no seu conceito e, em consequência, no
conceito de valor, acarretando a perda de validade do paradigma de sua mensuração. Gorz
sustenta que a imensurabilidade do trabalho imaterial reside no desdobramento do
conhecimento em conhecimento abstrato e conhecimento sensível e que a separação entre
ambos conduziu ao processo de especulação, devido à incerteza de mensuração do primeiro
em comparação ao domínio do saber individual, atribuindo assim ao primeiro a principal
fonte de formação do valor, processo que se multiplica na razão em que cada vez mais avança
a parte do conhecimento (ciência e técnica, imensurável) na formação do valor (tempo
necessário, mensurável) das mercadorias. Apesar desta teorização da crise por Gorz ter
fundamento em Marx e de sua solução final, a partir de uma outra economia, que pressupõe a
transformação da sociedade, uma vez que a crise do valor a torna incapaz de atender aos
requisitos de uma nova concepção de remuneração do trabalho, que o autor denomina “renda
de existência”, a aplicação de categorias como “trabalho imaterial”, “economia do
conhecimento” e suas referências à inteligência artificial e hibridização homem-máquina
sugerem certa especulação e tendência a fetichização da tecnologia, subjetivismo e negação
das classes sociais.
i) O trabalho de Boutang, seguindo a linha de pesquisa dos intelectuais italianos,
apresenta o Capitalismo Cognitivo como um programa de estudos, que descreve o surgimento
de um terceiro capitalismo, após o mercantil e o industrial, a partir de 1975, momento em que
a crise do valor se apresenta como barreira ao capitalismo industrial, exigindo para sua
224
superação a mudança qualitativa no conceito de trabalho, destacando seu aspecto de trabalho
imaterial ou intelectual, o que pressupõe um novo modo de acumulação de trabalho abstrato,
não mais baseado no dispêndio de tempo de trabalho necessário, mas sim na captura do poder
de inovação, que, como trabalho implícito, não pode ser reduzido à máquina, teimando em
manter-se como trabalho vivo. Nesta concepção, que o autor considera a única maneira
possível de se escapar do efeito da tendência decrescente da taxa de lucro, própria do
capitalismo industrial, evidencia-se sua filiação ricardiana, isto é, a ideia de crise sempre
superável pelo capital. O próprio autor busca apoiar sua concepção a partir de uma leitura dos
Grundrisse e de O Capital, em que Marx, após a crise de 1857, teria abandonado a visão de
uma crise final do sistema capitalista, ou seja, o mesmo argumento esgrimido por Bernstein
para refutar a teoria do colapso durante a passagem do século XIX ao século XX. O autor
define esta nova acumulação do trabalho imaterial como resultante da alta produtividade
alcançada pela capacidade de criação, e também da incorporação, através do mercado
financeiro, das externalidades pressupostas a esta mudança qualitativa no conceito de
trabalho, valor e mais-valia: o intelecto geral em sua forma de conhecimento implícito e a
multiplicidade de relações e combinações do trabalho na cooperação e no intercâmbio através,
por exemplo, das redes. Admite, entretanto, que o terceiro capitalismo, ou capitalismo
cognitivo, também pressupõe obstáculo, ou barreiras, ao seu processo de acumulação, tais
como a crise constitutiva dos salários, a crise de mensuração dos intangíveis, a escassez de
tempo, de atenção cognitiva e de atenção afetiva. Agrega contudo a ideia de que tais
descompassos e perturbações decorrem da incapacidade de adaptação do capitalismo
industrial ao novo paradigma, e para contornar esta doença congênita, o autor propõe um
novo New Deal, centrando em uma proposta reformista de renda mínima. Seu trabalho pode
ser sintetizado, apesar das categorias da crítica da economia política desenvolvidas por Marx
e da identificação da crise do paradigma de valor, um problema real do capitalismo, como
uma obra de embelezamento e apologia dos horrores do sistema do capital globalizado,
distorcendo a ideia de decomposição do sistema capitalista através do papel do capital
financeiro em Lênin. Enquanto este denunciava e apontava para a sua superação, Boutang faz
a apologia deste processo de decomposição.
j) O trabalho de Vercellone, assim como o de Gorz, foge à perspectiva que parece
dominar os intelectuais italianos que teorizam o trabalho imaterial e o intelecto geral, como
aspectos que explicam a transição do capitalismo industrial ou fordista ao capitalismo
225
cognitivo ou pós-fordista. Estes concebem a crise do ponto de vista ricardiano, e o capitalismo
cognitivo como maneira de superar as barreiras impostas à forma anterior. Mesmo
participando do trabalho de investigação sob os mesmos pressupostos de autores como
Boutang e Lazzarato, a concepção de crise em Vercellone configura-se como limite absoluto
que também se aplica ao capitalismo cognitivo, enquanto expressão do capital em geral. O
autor define a crise do capitalismo cognitivo como a crise da lei do valor, mais precisamente
de sua unidade métrica, que afeta o significado das categorias fundamentais da economia
política: o trabalho, o capital e o valor. Sua formulação de que a produtividade social está
potencializada pelo trabalho cognitivo, enquanto trabalho vivo, que hegemoniza o acúmulo de
saberes, antes restrito ao capital fixo na forma de máquinas e na organização do processo
produtivo pelo capital, leva à alteração da forma de acumulação de mais-valia, pela
incorporação de externalidades, esvanecendo o limite entre lucro e renda e impossibilitando a
mensuração de valor pela medida de tempo social. Vercellone também observa que as
categorias de capital imaterial, intangível, ou humano, introduziram distorções à concepção
do capital cognitivo, que se constitui da inteligência coletiva incorporada à força de trabalho.
Mesmo com esta observação do autor, ao se considerar sua formulação do rentismo como
contrapartida da apropriação do capital financeiro sobre o capital cognitivo, concebendo-o
como investimento, pode-se concluir que se trata da mesma concepção definida por Schultz
de capital humano, e que o fato do autor reivindicar a definição de Tronti de “trabalho vivo
como não capital” não altera em nada a sua utilização como capital variável no processo de
produção capitalista. Portanto, apesar da formulação em torno da crise do capital cognitivo,
enquanto expressão do capital em geral, na forma rentista, logo um sistema parasitário, sua
proposição de uma renda mínima garantida, como forma de aumento da participação do
trabalho na riqueza social, fortalecendo assim sua capacidade de negociação, constitui tão
somente uma solução reformista à exploração dos trabalhadores pelo capital, que permite o
desenvolvimento em paralelo de uma outra economia baseada no comum, fora da lógica
mercantilista, como sugere Gorz em seu trabalho. Contudo é necessário observar que, tal
proposição, independente do que pensa o autor, também funciona como contratendência à
consumação da crise geral do sistema ao ampliar a capacidade de consumo e ter o efeito de
frear a tendência decrescente da taxa de lucro ao incidir sob a composição orgânica.
Conclui-se dos autores marxistas contemporâneos cujos trabalhos foram
apreciados nesta pesquisa, que todos fazem referências aos Grundrisse, confirmando a
226
assertiva que este trabalho de Marx é a base fundamental das novas abordagens sobre a crise
do capital. Entretanto, evidencia-se também que nestas novas interpretações continuam a
subsistir os pontos de vista sobre a crise, exteriores e anteriores à concepção deste autor, tais
como a noção do estado estacionário de Smith, de crise cíclica superável de Ricardo e dos
limites do subconsumo de Sismondi. Neste aspecto, como já havia alertado Grossmann em
relação aos seus contemporâneos, durante os debates sobre o colapso e a reprodução, e
continua válido para as interpretações da crise atual, quando se perde de vista o método de
Marx, fixando-se em seus resultados, as interpretações se distanciam de sua concepção em O
Capital e nos Grundrisse.
A concepção de Marx sobre a crise, com base em suas obras mais relevantes, em
uma síntese abstrata, pode ser compreendida como uma concatenação dialética de momentos
quantitativos de negação relativa do valor, como expressão da tendência ao momento
qualitativo de negação absoluta da sua essência, a mais-valia. Sua lógica reside na relação
dialética do ser ao devir do trabalho ao capital e do capital à sua negação, o comunismo, como
resultado do movimento histórico da contradição entre as forças produtivas (meios de
produção e força de trabalho), subsumidas à relação capital e na luta contra esta, portanto
personificadas em capitalistas e trabalhadores. Um processo no qual o conflito é harmonizado
e constrangido pela aplicação da ciência e da técnica (educação), como forças produtivas
sociais cativas do capital, que no limite de seus efeitos positivos passa a potencializar
negativamente o conflito, externalizando a contradição em lógica de negação do valor e crise
violenta, cujos efeitos aparentes, tomados isoladamente, justificam as concepções derivadas
das formulações em Ricardo, Sismondi e Smith.
Assim, em linhas gerais, à exceção de Harvey e Arrighi, todas as formulações
arroladas admitem de forma direta ou indiretamente a crise do paradigma de valor como o
substrato ou mais precisamente, a contradição fundamental do capital e seu sistema. Esta
constatação é de importância decisiva para a presente pesquisa, porque, independente das
conclusões e proposições a que chegam os autores analisados, ela sustenta a tese de que a
crise atual é uma crise da organicidade do capital, portanto da sua composição valor. Desta
análise também se conclui que, à exceção de Lazzarato e Boutang, os demais autores
consideram a crise atual como uma transição histórica no modo de produção e sistema do
capital, mesmo considerando que o capital enquanto tal possa continuar a subsistir em outras
formações sociais de produção e sociedades pós-capitalistas, como admite Mészáros, Hardt,
227
Negri, Gorz e Vercellone, embora não seja tão clara em Kurz.
Do mesmo modo, também é importante concluir que à exceção de Harvey e
Arrighi, os demais autores concordam que o papel da ciência e da educação são fundamentais
para a crise atual. Embora esta formulação não esteja totalmente plasmada nas formulações de
Mészáros e Kurz, os demais autores tematizam o que definem como trabalho imaterial e
intelecto geral ou intelectualidade de massa, enquanto expressão destas forças produtivas
sociais que impulsionam a crise, a exemplo do que sustentava Marx nos Grundrisse, um
século e meio atrás. Portanto, é plausível considerar que estas concepções teóricas são
evidências suficientes para sustentar a assertiva desta pesquisa sobre o caráter orgânico da
crise do capital, bem como do seu locus teórico o paradigma de mensuração do valor, o tempo
de trabalho socialmente necessário, em decorrência da mudança nos conceitos de trabalho e
valor, a partir da presença cada vez maior do intelecto geral e do conhecimento social geral,
no conteúdo ou substância destes.
Nestes termos, considerando a apreciação das formulações marxistas
contemporâneas, a questão que se apresenta é: na medida que as formulações atuais sobre a
crise se focam apenas nos resultados da teoria marxiana, seguindo uma metodologia distinta
da utilizada por Marx, como retomar a trajetória lógica de sua concepção sobre a crise e
empiricamente demonstrá-la? Eis o problema fulcral da presente pesquisa, cuja solução passa
pelo resgate da tese de Henryk Grossmann na sua obra Sobre a lei da acumulação e do
colapso do capitalismo, que representa o trabalho teórico mais relevante após a obra de Lênin,
O Imperialismo, em torno da teoria da crise; tanto por sua compreensão e aplicação do
método de Marx em O Capital, quanto por sua concepção de crise que, com a redescoberta
dos Grundrisse, tem sido confirmada, como atesta a própria tematização da literatura marxista
atual.

2.8 A crise orgânica do capital e sua singularidade

A pesquisa sobre a crise orgânica do capital demonstrou até o momento que a


hipótese acerca de seu locus e natureza encontra sustentação teórica tanto na obra de Marx,
quanto na literatura marxista contemporânea, apesar desta última chegar a ponto de vista
228
distinto sobre o significado da mesma. Grossmann, entretanto, em sua teoria sobre a crise, que
responde ao debate sobre a teoria do colapso e dos esquemas de reprodução, tendo em vista,
que os marxistas de seu tempo não conseguiram compreender o método utilizado em O
Capital, permite resgatar o caminho lógico entre a concepção de Marx e a tese apresentada
nesta pesquisa.
Sua formulação consiste na concepção de que o valor, mais precisamente a mais-
valia, é o fundamento da produção capitalista, e nestes termos, sua reprodução torna-se a
questão principal a ser estudada para a demonstração da crise que está presente na teoria geral
de Marx, isto é, no conceito do capital em geral.
Com base no fundamento científico que toda teoria deve compreender, Marx, em
O Capital, parte da superfície do fenômeno, as mercadorias, passando pelas concepções mais
abstratas, os esquemas de reprodução no Livro II de O Capital, para posteriormente, por meio
de concreções, integrar os fatores que foram abstraídos anteriormente, e, finalmente, chegar à
totalidade concreta, como conceito articulado do real. O fato deste movimento produzir uma
aparente contradição entre os resultados provisórios (abstratos), e sua formulação final
(concreta), não constitui argumento para a refutação da teoria, pelo contrário, este percurso
lógico é o que permite a validação da teoria, não apenas de Marx, mas da teoria científica em
geral.
Grossmann, diante destes pressupostos metodológicos, apoiou-se no modelo dos
esquemas de Bauer, que pretendia refutar Luxemburgo incorporando todas as suas críticas aos
esquemas de Marx e comprovar que estes demonstravam o equilíbrio ou harmonia do sistema,
ad infinito, como pregam os clássicos do liberalismo, a escola neoclássica e marginalista.
Porém, como Grossmann demonstrou, aplicando o próprio esquema de Bauer, no curso de 35
rotações, ou iterações, ceteris paribus, o capitalismo colapsa. Com esta aplicação teórica dos
esquemas de reprodução em Marx, sob as emendas de Bauer, Grossmann demonstrou, teórica
e abstratamente, não somente o caráter histórico do modo de produção capitalista e a crise
terminal deste, mas sobretudo o caráter orgânico e estrutural da crise, localizando o colapso
na própria lógica interna da acumulação, ao negar a relação capital, isto é, a própria existência
da classe burguesa enquanto tal, a medida em que opõe a fração k da acumulação contra as
frações ac e av. A Figura 1, construída sobre os dados da TABELA 10 apresentada no item
2.4, apresenta essa relação de maneira gráfica:
229
Figura 3: Acumulação de capital

Fonte: Elaborado pelo autor com dados obtidos na execução do modelo original de Grossman (ver ANEXO A)

Na Figura 3 os discos grandes representam o valor do produto anual total produzido, dividido
em suas frações: capital constante (c) em azul, capital variável (v) em vermelho e mais-valia
(m) em amarelo – aqui apenas representados o primeiro ano, o ano 10, o ano 20 e o ano 34, o
último antes do colapso. A parte da mais-valia é então novamente apresentada nos discos da
parte inferior do gráfico, de maneira proporcional a seu valor absoluto, e dividida entre as
seguintes frações: a parte da mais-valia a ser consumida individualmente pelos capitalistas (k)
em verde, e as outras que serão usados para a acumulação: a parte a ser capitalizada em
capital constante (ac) em roxo, e a parte destinada à acumulação em capital variável (av), em
rosa.
Esta descrição do processo de reprodução ampliada, e repartição da mais-valia
entre consumo produtivo e individual do capitalista pode ser expressa na seguinte fórmula:

A massa de mais-valia S resulta de uma taxa de mais-valia constante s, que incide


230
sob um determinado nível de salários w, após um acúmulo de j anos, a partir de um valor
inicial de capital variável vo. Ela se reparte em três frações, a parte que o capitalista se
apropria para seu consumo próprio k; a parte que será recapitalizada como incremento ao
capital constante, que se expande a uma dada taxa ac, por j anos, a partir de um montante
inicial de capital constante c0; e finalmente a parte que é destinada a ampliar o capital
variável, que cresce a uma dada taxa av, pelos mesmos j anos, a partir de um montante inicial
de capital variável v0.
Esta expressão pode evoluir até a demonstração em que k tende a 0, portanto,
obrigando o capitalista a optar entre a reprodução simples, ou mesmo imperfeita, aceitando a
desvalorização do seu capital, ou manter a reprodução ampliada e negar seu ser social.
Contudo, como também alertou o próprio Grossmann, “o sistema tem que colapsar ou as
condições especificadas para o sistema devem ser violadas”. Neste ponto se insere a
desconexão entre a teoria de Grossmann e os Grundrisse, sobre uma segunda natureza causal
da crise presente no segundo, que a literatura contemporânea de modo distorcido, ou,
tergiversado lança mão, fora da sua lógica teórica, para sustentar proposições claramente
contrárias ao significado definido por Marx e abstratamente desenvolvido até a condição da
crise orgânica do capital dos dias atuais.
A análise da concepção de crise em Marx, nos Grundrisse, revela a unidade lógica
e dialética desta, enquanto expressão contraditória do trabalho humano, que se externaliza em
mercadoria e valor na circulação do capital nos momentos de desvalorização. No entanto, seu
fundamento consiste na composição orgânica do capital que condensa as relações de
exploração e apropriação das forças produtivas, que estão na base da produção do valor e
mais-valia, isto é, o capital constante e o capital variável, ou meios de produção e forças de
trabalho, relações que sofrem a intervenção direta das forças produtivas sociais da ciência e da
educação, ou do que Marx definiu como tendência a se constituir em dado momento do
desenvolvimento histórico da sociedade em general intelect e knowledge social geral,
decorrente da passagem da máquina ao sistema de máquinas e do trabalhador individual ao
trabalhador coletivo.
Neste nível de formulação, Marx sugere que o conceito de valor sofre uma
alteração na sua forma e conteúdo, tornando o paradigma do tempo de trabalho socialmente
necessário estreito para mensurar o valor que representa a incorporação da ciência e da
231
educação, como forças produtivas sociais, na formação do valor do produto social. Este
processo, não observado por Grossmann, constitui-se na base da violação sistemática da lei do
valor, retardando até certo ponto o colapso, como se deduz desta formulação de Marx:

Por um lado, desperta à vida todos os poderes da ciência e da natureza, assim como
da cooperação e do intercâmbio social para fazer com que a criação da riqueza seja
(relativamente) independente do tempo de trabalho empregado nela. Por outro lado,
se propõe a medir com o tempo de trabalho essas gigantescas forças sociais criadas
desta maneira e reduzi-las aos limites exigidos para que o valor já criado se conserve
como valor (MARX, 2009, v. 2. pp. 229, tradução nossa).

Desta forma, observa-se claramente que, embora Grossmann teorizasse a partir do


modelo de Bauer, e projetasse a partir do mesmo o crescente aumento do capital fixo como
fração da acumulação que engole as frações destinadas ao capital variável e ao consumo do
capitalista, não percebeu que acompanhando este processo também crescia a participação da
ciência como potência autônoma, que vai alterando a composição de valor do próprio capital
fixo e dominando todo o processo de produção até a mudança qualitativa na composição-valor
do capital, ao passo que a redução relativa do capital variável é acompanhada pela crescente
presença da força produtiva da educação de forma a atender a complexificação de suas
atividades, mesmo que estas se limitem a uma operação simples. Estas duas forças produtivas,
ciência e educação, constituem a principal contratendência que atualmente é empregada pela
intelligentzia capitalista para neutralizar os efeitos da erosão do paradigma de valor e
postergar o colapso. As teses sobre nova economia, capitalismo cognitivo, sociedade do
conhecimento, capital humano e capital intelectual são expressões teóricas destas
contratendências como demonstra esta pesquisa.
A desconexão lógica entre a teoria de Grossmann do colapso, derivada de Marx
em O Capital e a teoria deste último nos Grundrisse, no que diz respeito ao papel da ciência e
da educação, na crise do paradigma de mensuração do valor, são temas que constituem
objetos específicos desta investigação que serão tratados nas partes 3 e 4 do presente trabalho:
a ciência enquanto Revolução Científico-Técnica, ou terceira fase da Revolução Industrial e a
educação como teoria do capital humano, ou intelectual. Contudo, o papel de ambas não
constitui a única contratendência que atua até certo ponto impedindo o colapso. O caráter cada
vez mais estratégico da luta de classes entre capital e trabalho, sob as condições do intelecto
geral e do conhecimento social geral, também projeta-se sobre o movimento da acumulação
232
do capital, métodos de produção da mais-valia, técnicas de organização, cooperação do
trabalho e intercâmbio social. Isto tudo pode ser observado nas mudanças do método fordista
ao toyotista que acompanham a mudança das teorias econômicas que dirigem o sistema do
capital; do paradigma teórico liberal para o keynesiano (inspirado no debate sobre os
esquemas de reprodução em Marx, como se deduz da cooperação de Kalecki com seus
estudos sobre o ciclo econômico, e, sobretudo, devido ao modelo de Bauer servir de base à
aplicação macroeconômica do marginalismo keynesiano) e deste ao neoliberalismo.
Esta teoria atuou como contratendência ao colapso durante a depressão dos anos
20 e 30, passando à política oficial com o tratado de Bretton Woods, de 1944. O período
keynesiano, conhecido como de formação do Estado de Bem-Estar Social, do ponto de vista
da acumulação e reprodução ampliada do capital, constituiu não apenas o processo de
reposição das forças produtivas destruídas, mas também de expansão do capital sob o pacto
social-democrata ancorado na ampliação das funções do Estado planejando e regulando a
demanda efetiva e harmonizando-a com a oferta através das políticas econômicas monetárias,
de juros e de empregos. Em cerca de duas décadas e meia, em que a economia mundial é
dirigida por este paradigma teórico, a acumulação e reprodução ampliada do capital atingem
seu limite de expansão. Na década de 70, o ciclo de crescimento do capital se esgota, os
salários e os custos com o petróleo esmagam os lucros e os Estados Unidos rompem com o
tratado de Bretton Woods. Desde então a tendência ao colapso tornou-se uma constante do
capital até o momento, embora esta última se apresente de forma intermitente.
A mudança do paradigma keynesiano ao neoliberal desencadeia o processo de
globalização, em meados da década de 1970, como resposta à crise de acumulação no centro
do sistema capitalista mundial, os EUA, que ficou visível no declínio da taxa de lucros neste
período, como se pode comprovar no gráfico elaborado por Duménil e Lévy (Figura 4), taxas
de lucro nos Estados Unidos, considerando e desconsiderando o impacto dos vínculos
financeiros. Apesar de toda controvérsia17 entre os estudiosos da taxa de lucros, um certo
padrão pode ser visto na Figura 4:

17
Os que utilizam de estudos empíricos são: “Fred Moseley, Thomas Michl, Anwar Shaikh e Ertugrul Ahmet
Tonak, Gérard Duménil e Dominique Lévy, Ufuk Tutan e Al Campbell, Robert Brenner, Edwin N. Wolff e Piruz
Alemi, junto com Duncan K. Foley”; e todos seguiram invariavelmente “os passos de Joseph Gillman e Shane
Mage, que se utilizaram de estudos empíricos da evolução das taxas de lucro na década de 1960” (HARMAN,
2007).
233
Figura 4: Taxa de Lucros EUA considerando e
desconsiderando vínculos financeiros

Fonte: (DUMÉNIL e LÉVY apud HARMAN, 2007).

Também observar-se o mesmo padrão no gráfico elaborado por Brenner (Fig. 5):

Figura 5: Taxas de lucro líquidas do setor


industrial nos Est. Unidos, Alemanha e Japão:

Fonte: (BRENNER apud HARMAN, 2007)

Ao interpretar os gráficos, Chris Harman (2007) afirmou que “as taxas de lucro se
recuperaram aproximadamente a partir de 1982”, e “só alcançam o nível médio” em relação à
queda anterior. Segundo Harman, para Wolff, “a taxa de lucro caiu 5,4% entre 1966 e 1979 e
depois voltou a 3,6% de 1979 a 1997”; para Fred Moseley esta recuperação foi somente de
cerca de “40% da queda anterior”. “Duménil e Lévy estimam que a taxa de lucro em 1997 era
somente a metade de seu valor em 1948, e entre 60 e 75% de seu valor médio para a década
de 1956-1965”. Porém, para obter esta recuperação de meados da década de 1980 até 1997 foi
necessário romper unilateralmente com a política financeira internacional – o tratado de
Bretton Woods –, e desfazer o pacto econômico em torno do Estado de Bem-Estar Social
234
(Welfare State): desregulamentando as leis trabalhistas, flexibilizando a mão de obra e
minimizando a intervenção do Estado na economia com a privatização das estatais. Desta
feita, promoveu-se forçadamente um grande movimento de concentração e centralização de
capital e expandiu-se a reação neoliberal em todo o mundo, segundo cânones da nova santa
aliança, entre ele, Ronald Reagan (EUA), Margareth Thatcher (Inglaterra) e Helmut Khol
(Alemanha).
A contradição maior da estratégia neoliberal está no próprio desenvolvimento
econômico dos EUA que, centrado no complexo industrial militar, não permite que os
princípios neoliberais sejam levados a cabo em sua integralidade neste último, posto que para
garantir o sucesso da globalização é necessária a sua hegemonia bélica, o que limita a redução
dos custos com as forças armadas, sobretudo, seu projeto avançado de informação e
contrainformação, a DARPA (Defense Advanced Research Projects Agency). Deste modo, os
Estados Unidos, sob as condições de altos custos das matérias-primas, tiveram que arcar com
os custos da recomposição do aparelho produtivo capitalista decorrente da Revolução
Científico-Técnica, desenvolvida durante a Guerra Fria, com toda a produção do seu
complexo industrial militar por se realizar; o que pressupõe um esforço de acumulação
gigantesco. A crise dos anos 70 nos Estados Unidos é típica do modelo de colapso sustentado
por Grossmann, como demonstra o gigantismo do capital fixo empregado pelo complexo
industrial-militar.
Portanto, sobre a projeção efetuada por Grossmann, a partir dos esquemas de
reprodução, também se faz presente a incidência da subjetividade das massas, como se pode
comprovar pela grande resistência ao paradigma neoliberal por parte dos trabalhadores e
demais setores partícipes do pacto em torno do Estado de Bem-Estar Social, cuja expressão
mais evidente foram os governos antineoliberais que chegaram ao poder político em várias
partes do mundo, principalmente na América Latina. Este processo, no entanto, não impediu
que o neoliberalismo cumprisse seu desiderato econômico e político, embora rapidamente
tenha demonstrado seu esgotamento como se observou na crise do capital, no final de década
de 90, encerrando o ciclo de globalização fundado no que se denominou revolução
informacional, inaugurando uma série de manifestações da crise. Os traços comuns a todas
estas, observáveis empiricamente na Figura 6, elaborado pelo FMI ilustrando a evolução dos
PIBs mundial e dos países avançados e emergentes de 1980 a 2015, permitem a análise dos
vínculos destas com a crise geral.
235
Figura 6: As crises e o PIB dos desenvolvidos e emergentes

Fonte: (FMI, 2015)

O gráfico indica períodos de relativa sincronia e assincronia convergente e


divergente no crescimento e declínio do PIB dos países de economias avançadas e dos países
de economias emergentes. Na série apresentada pelo FMI, observa-se que em apenas 4 pontos
de inflexões há relativa sincronia e convergência entre os PIBs de avançados e emergentes,
embora representem proporções distintas do PIB mundial: na alta de 1984, ao se recuperar da
crise energética e do início da crise das dívidas externas dos países da América Latina (1982-
1983); no declínio de 1986, puxado pela queda do crescimento dos EUA e do Japão, devido à
sobrevalorização do dólar e deficit do primeiro e a crise de superprodução e passagem do
segundo a principal exportador de capital e credor mundial; na tentativa de recuperação de
1987 destes países até o crash das bolsas de valores em todo o mundo em outubro deste
mesmo ano; e no declínio de 1998, durante a crise no sudeste da Ásia. A trajetória
relativamente assincrônica e divergente em 1980, que volta a acontecer entre 1988 e 1997, dá
lugar à trajetória relativamente sincrônica, porém divergente, entre 1999 e 2012, como se
observa na alta de 2000, em recuperação da crise na Ásia; na baixa de 2001 devido à crise das
Ponto.Com (nova economia); na alta em 2004 derivada da guerra no Afeganistão e Iraque; na
baixa de 2005 puxada pelo Japão, Alemanha e França, devido à fraca demanda por produtos
de tecnologia da informação, da alta nos preços do petróleo e da frágil recuperação dos países
da Zona do Euro; na alta de 2007 quando acentua a divergência entre avançados e emergentes,
236
devido à crise subprime, que se revela como crise geral da economia dos EUA e arrasta os
avançados e a economia mundial à baixa histórica de 2009. A alta na tentativa de recuperação
em 2010, logo é tragada pela crise das dívidas públicas dos países da União Europeia
conduzindo às baixas em 2011 e 2012. A recuperação que se segue entre 2013 e 2014 parece
indicar uma tendência à baixa dos emergentes e à alta dos avançados, apontando para o
retorno à assincronia e divergência entre estes. Deve-se destacar também que de acordo com a
série do FMI, o crescimento dos avançados jamais voltou a atingir os índices de 1984 e 1988;
bem como, pode-se atribuir aos emergentes o PIB mundial positivo durante a crise dos
avançados entre 2000 e 2014, confirmando o movimento já pronunciado nos períodos
anteriores de assincronia e divergência entre ambos.
A crise orgânica do capital enquanto crise geral de desvalorização, que se
manifesta em suas expressões particulares ou crises setoriais, decorrentes do movimento da
acumulação e reprodução ampliada, também pode ser comprovada pela observação do
comportamento das taxas de juros neste período. Considerando que a taxa de juros constitui
apenas uma fração dentro da taxa de lucro, assim como esta última é também apenas uma
fração dentro da taxa de mais-valia, logo se a taxa de juros tende a zero isto implica que o
lucro e a mais-valia estão comprimidos, o que é válido também para a correlação inversa. Este
processo se torna ainda mais visível, quando se observa o novo declínio das taxas de juros,
quase zeradas na zona do Euro, EUA e Japão. O gráfico abaixo (Fig. 7) ilustra este quadro:

Figura 7: Taxa de Juros (curto prazo) países desenvolvidos

Fonte: Elaborado pelos autores com dados do Fundo Monetário Internacional - Principal Global Indications
Disponível em: http://principalglobalindicators.org
237
Figura 8: Taxa de Juros (curto prazo) Brasil e Desenvolvidos

Fonte: Elaborado pelos autores com dados do Fundo Monetário Internacional - Principal Global Indications

No outro gráfico (Figura 8) é possível observar esta correlação inversa entre as taxas de juros
a curto prazo dos países emergentes e a dos países avançados, usando-se os casos do Brasil,
Zona do Euro, Japão e Estados Unidos como ilustração: Observa-se na correlação entre o
gráfico (Figura 6) de comparação de PIBs com o gráfico da Taxa de Juros (Figura 7) que
inclui o Brasil, como exemplo de país emergente, que a correlação inversa entre taxas de juros
e PIBs, dos países avançados e países emergentes, não decorre apenas em consequência de
uma política econômica imposta pelos países avançados que se sobrepõe às estruturas
socioeconômicas dos países emergentes; na verdade, a situação é mais complexa: são as
próprias estruturas socioeconômicas que se hierarquizam devido ao particular processo
histórico de acumulação de capital e desenvolvimento gradual ou por salto de sua composição
orgânica de capital. Nesta lógica hierárquica os países de alta composição orgânica são os
denominados de economias altamente desenvolvidas (avançados) cujos produtos têm alto
percentual de capital constante (intensiva tecnologia) em relação ao capital variável (mão de
obra); os países de mediana composição de capital (que têm equilíbrio relativo entre capital
constante e capital variável) são os que são denominados de economias emergentes; e os
países de baixa composição de capital são os denominados atrasados ou subdesenvolvidos.
Portanto, ao analisar-se a crise do capital atual, deve-se considerar como questão
fundamental os limites do desenvolvimento do capital, uma vez que após atingir o estágio de
alto grau de composição orgânica, o capital passa a viver a crise de acumulação pelo declínio
238
da taxa de lucros. Parece muito difícil calcular empiricamente esta relação entre os níveis de
composição orgânica de capital nos países na atualidade, mas é possível compreender e até
certo ponto determinar esta composição se partindo da correlação inversa da formação bruta
do capital fixo nos casos exemplificados como o Brasil (média composição orgânica de
capital) em comparação aos países da Zona do Euro, Estados Unidos e Japão (alta composição
orgânica de capital) no gráfico (Figura 9) que se segue:

Figura 9: Formação bruta de capital fixo (Volume) Brasil e Desenvolvidos (index 2005)

Fonte: Elaborado pelos autores com dados do Fundo Monetário Internacional - Principal Global Indications

Depreende-se do gráfico (Figura 9), pela correlação inversa do volume da


formação bruta do capital fixo, que os países da Zona do Euro, Japão e Estados Unidos,
chegaram ao limite de desenvolvimento em sua composição orgânica de capital, pois não
podem crescer acima de 100%; enquanto que o Brasil, que representa o bloco dos países
emergentes, ao contrário, desenvolve trajetória ascendente em sua composição do capital. Este
quadro fica ainda mais claro quando se traduz esta expressão no cálculo da taxa de lucros que,
nas economias que atingem o limite – a alta composição orgânica do capital – passam a
conviver com sua tendência decrescente.Quando se estuda este processo no capítulo da “Lei
Geral da Acumulação Capitalista” ou a “Lei da Queda da Taxa de Lucro” em Marx (1986) e
o relacionamos com sua outra formulação – a “Variação de Grandeza no Preço da Força de
Trabalho e da Mais Valia”, sabe-se bem a importância da expressão c+v, ou seja, c (capital
constante) e v (capital variável), pois quanto maior a proporção do primeiro sobre o segundo,
mantendo-se inalterada a Taxa de Mais-Valia, mais a crise de acumulação se aprofunda devido
239
ao decréscimo da quantidade de trabalho (mão de obra) por produto, em relação ao capital
(intensiva tecnologia), sobre os quais incide a “Lei da Queda da Taxa de Lucro”; portanto,
quanto mais alta a composição do capital, mantendo-se inalterada a taxa de mais-valia, menor
é a massa de mais-valia por produto, exigindo maior produtividade e produção para recuperar
no atacado (na massa total) o que perde no varejo (massa por unidade); logo, um processo que
tende ao paroxismo, como o que se passou a viver no mundo desde o default das Ponto.Com e
da guerra dos EUA e aliados contra o Afeganistão e Iraque. Este raciocínio é análogo ao
desenvolvido por Grossmann quando formula sua teoria do colapso, identificado o ponto do
colapso, através da expressão matemática que demonstra que o nível de acumulação de capital
constante (r) sobre o nível de acumulação de capital variável (w), potencializado pelo número
de anos (n) é igual à taxa de mais valia (s) menos a taxa de acumulação de capital variável
sobre a composição orgânica inicial (Ω) multiplicada pela taxa de acumulação de capital
constante18:

Também pode ser demonstrado graficamente, na Figura 10 através da seguinte


imagem (curva z1), que já considera a expansão da acumulação pela demanda artificial
produzida pelo crédito (curva z2):

Figura 10: Colapso com e sem influência do crédito

Fonte: GROSSMAN, 2010

Desta relação entre alta composição orgânica do capital, queda da taxa de lucros e

18
A demonstração completa do esquema matemático de Grossmann encontra-se no apêndice 1.
240
baixa na taxa de juros fica bastante claro o caráter orgânico da crise de acumulação de capital
atual, pois quando se está falando do aumento do capital constante (máquinas e
equipamentos), em relação ao capital variável (força de trabalho) está implícita a mudança
qualitativa na relação capital/trabalho, resultante da Revolução Científico-Técnica (herdada
da Guerra Fria, em particular, da corrida aeroespacial e nuclear: mecânica quântica,
microeletrônica, química fina), que tem deslocado o papel de vanguarda do proletariado para
outro patamar de complexidade à medida que retira o seu peso de massa enquanto classe em
si (quantitativo) e enfatiza seu peso de classe para si (qualitativo), tendo em vista o que se
denominou de desemprego estrutural (MÉSZÁROS, 2002), devido à substituição do homem
pela máquina, quanto mais cresce a composição do capital, fazendo incidir a Superpopulação
Relativa, ou Exército Industrial de Reserva, enquanto Lei Demográfica elevada à exacerbação
(MARX, 1986). Mas a característica da crise vai além da crise orgânica de acumulação, ela
adquiriu aspecto de crise de transição do modo de produção, posto que a mudança qualitativa
da relação capital/trabalho implica uma nova reconfiguração das classes sociais e da luta de
classes que exige da análise marxista um novo enfoque na determinação de suas
características e tendências principais.
Nesta nova perspectiva, o problema posto pela crise é o processo de erosão do
paradigma de mensuração do valor – o quantum de tempo de trabalho socialmente necessário
– dado que as transformações na composição técnica e orgânica do capital (substituição do
trabalho vivo pelo trabalho morto ou objetivado) desenvolve-se tendencialmente na lógica
negativa e destrutiva da propriedade fundamental do conceito de valor que é o trabalho vivo.
Este fenômeno é facilmente comprovado na atualidade. Jeremy Rifkin (1995), no livro O Fim
dos Empregos afirmou que dentro de 100 anos ¼ da força de trabalho mundial seria
necessária para produzir todos os bens necessários para a humanidade. Ele, em 1995, contou
800 milhões de desempregados e subempregados; em 2004, para o mesmo autor, este número
havia subido para 1 bilhão, apontando como causa a tecnologia na substituição da força de
trabalho humana. Tomando por base a sociedade americana, em que as fábricas de 1980 a
1990, cortaram 80% da força de trabalho, afirmou que 11% dos empregos são eliminados no
mundo a cada sete anos. Um quadro atual da estrutura dos empregos apontado pelo Relatório
do Banco Mundial em 2013 mostra que, do total de empregos na Alemanha, o setor primário
detinha 3.2% em 1995 e caiu para 1.6% em 2010; o setor secundário 36% para 28.4% para
iguais datas; enquanto seu setor terciário cresceu de 60.8% para 70% também no mesmo
241
período. No Japão, o setor primário que ficava com 5.7%, em 1995, caiu para 3.7%, em 2010;
o setor secundário de 33.6% caiu para 25.3% para as mesmas datas; enquanto que o setor
terciário cresce 60.4% para 69.7% para iguais datas. Nos EUA, do total de empregos, o setor
primário que ficava com 2.9%, em 1995, caiu para 1.6%, em 2010; o setor secundário de
24.3% caiu para 16.7% para mesmas datas, enquanto o setor terciário cresceu de 72.9% para
81.2% também para as mesmas datas.
Marx, brilhantemente, há mais de um século e meio, havia identificado esta
tendência da substituição do homem pela máquina no modo de produção capitalista, e
fundado neste fato, que se faz notório na alta composição orgânica do capital atualmente,
previu com precisão a nova contradição presente no paradigma de mensuração do valor, o
tempo de trabalho, entre o tempo necessário e o tempo livre da sociedade. Contradição esta
que Marx passa a problematizar da seguinte forma nos Grundrisse:

Tal como vimos, o aumento da força produtiva do trabalho e a máxima negação do


trabalho necessário são tendências necessárias do capital. A realização desta
tendência é a transformação do meio de trabalho em maquinaria. Na maquinaria o
trabalho objetivado se enfrenta materialmente ao trabalho vivo como poder que o
domina e como subsunção ativa do segundo sob o primeiro (MARX, 2009. Vol II,
pp. 219-220).

Contudo, Marx desenvolve esta proposição a partir de uma abstração em torno da


tendência do emprego do capital fixo em substituição ao trabalho vivo no processo de
produção. Seu fundamento, a dialética das revoluções tecnológicas na indústria, segue as três
partes que compõem a máquina (máquina ferramenta, máquina motor e máquina de
transmissão e controle) até chegar à ideia do autômato perfeito, o “Leviatã industrial”, cuja
análise mais atual, que será apresentada na parte 3 do presente trabalho, encontra-se em
Santos (1983, 1987). Em O Capital, Marx dirige sua análise sob o foco da mais-valia relativa
para outro aspecto, o de que “a grande indústria por uma questão de vida ou morte”, devido a
“suas próprias catástrofes”, é obrigada a reconhecer a “mudança dos trabalhos (como lei
natural)” e a “polivalência dos trabalhadores” (“como lei geral e social”), tema abordado com
maior atualidade no trabalho de Frigotto (2001, 2010), que será apresentado na parte 4, do
presente trabalho, relativa à educação, capaz de “substituir a monstruosidade de uma
miserável população trabalhadora em disponibilidade, mantida em reserva para as mutáveis
necessidades de exploração do capital, pela disponibilidade absoluta do homem para as
exigências variáveis do trabalho” (MARX, 1986), o que se desdobra no processo de
242
acumulação de capital e na lei geral da acumulação capitalista; enquanto que nos Grundrisse,
Marx aprofunda a tendência à erosão do paradigma de valor:

Na mesma medida que o tempo de trabalho - o mero quanto de trabalho - é posto


pelo capital como único elemento determinante, desaparecem o trabalho imediato e
sua quantidade como princípio determinante da produção – da criação de valores de
uso – na mesma medida, o trabalho imediato se vê reduzido quantitativamente a uma
proporção mais exígua, e qualitativamente a um momento, sem dúvida,
imprescindível, porém, subalterno frente o trabalho científico geral, à aplicação
tecnológica das ciências naturais por um lado, e por outra frente a força produtiva
que aparece como dom natural do trabalho social (ainda [que seja na realidade, um]
produto histórico). O capital trabalha, assim, em favor de sua dissolução como
forma dominante de produção (MARX, Vol II, pp. 220-221).

Este sucessivo processo de negação do trabalho necessário pela maquinaria


transforma o papel da ciência e da técnica condensada no capital fixo, no dinamismo do
processo de produção. A economia do trabalho vivo com a máxima aplicação de tecnologia –
trabalho objetivado – traduz-se em alta composição orgânica do capital e baixo valor das
mercadorias produzidas (tempo socialmente necessário), em consequência, a escala de
acumulação do capital exige o paroxismo da produtividade e da produção social para manter o
volume do valor (mais-valia) já existente, figurando no pensamento a imagem análoga a dos
custos de produção nos solos esgotados da terra na teoria dos rendimentos decrescentes de
Ricardo (MARX, 1986, Livro III, Volume V, pp. 151-152), ou o que não é outra coisa senão a
imagem dos estados estacionários em Smith. Nestas circunstâncias, o que se vê na superfície
da crise geral – superprodução, pletora de capital monetário e apreciação das mercadorias –
encontra uma nova explicação objetiva na contradição entre composição orgânica do capital e
a expressão desdobrada de valor: valor de troca (dinheiro) e valor de uso (massa de
mercadorias) tensionadas pelo declínio da taxa de lucro:

O roubo do tempo de trabalho alheio sobre o qual se funda a riqueza atual, aparece
como uma base miserável comparada a este recente fundamento, criado pelo
desenvolvimento da grande indústria mesma (MARX, 2009, Vol II, pp. 227-241,
passim).

Esta abstração de Marx aparenta uma contradição com sua definição anterior de
crise geral: “superprodução promovida pelo crédito e pela inchação geral dos preços, que a
acompanha”. Mas, tal contradição se desfaz quando entendemos aquela definição como
características superficiais das propriedades essenciais da crise, no momento em que o capital
fixo ainda não se desenvolveu plenamente, dando lugar a desproporções quantitativas de
243
transformação do capital circulante em capital fixo porque emprego de tempo de trabalho vivo
neste último implica tempo de trabalho excedente na produção imediata (capital circulante).
Neste particular, a teoria de Marx demonstra o quanto é irracional a tentativa de superar a
crise através do emprego da ciência e da tecnologia – capital constante – como se comprova
por sua crítica a Lauderdale (p. 586), pois é a própria ciência e tecnologia aplicada sob o
modo de produção capitalista que é a principal responsável pela erosão do paradigma (tempo
necessário ou valor de troca) de mensuração do valor de uso e riqueza social. O mesmo se
aplica para as medidas de política monetária (taxa de juros e câmbio), na verdade, como diz
Marx elas podem causar mais danos do que superar o problema (MARX, 1986, Livro III,
Volume V, p. 28). Na formulação do autor a questão é insolúvel, porque se trata de uma nova
contradição fundamental que passa a dinamizar o processo de produção, entre o tempo de
trabalho socialmente necessário à (re)produção social (atual paradigma de mensuração do
valor ou valor de troca) e o tempo disponível social (além do trabalho necessário) que se
apresenta como novo paradigma de valor, acentuando os efeitos da lei geral da acumulação,
quanto mais avança o domínio do capital fixo, ou seja, o emprego da ciência e da tecnologia
na composição do valor.
Portanto, o avanço do domínio da ciência e da educação ou intelecto geral da
sociedade no processo produtivo não se trata de uma mudança na categoria trabalho, da forma
material em “imaterial”, que Hardt e Negri (2012, pp. 149-150) argumentam em defesa do
conceito de “multidão” em lugar do conceito de classes sociais e da luta de classes, formulada
por Marx; ou do que denominou Mandel (1996) de “Nova Economia” em seu artigo na revista
Business Week denominado The Triumph of the New Economy - A powerful payoff from
globalization and the Info Revolution ("O triunfo da Nova Economia - Uma poderosa
recompensa da globalização e da revolução da informação"). Na verdade, trata-se da
passagem da lei geral da acumulação ao domínio da lei do valor, (subsumindo a lei
demográfica e a lei da concentração), como condição dominante do sistema do capital. Este
fato demonstra toda a irracionalidade da burguesia e seus intelectuais de plantão quando
tentam criar artifícios para mensurar, por intermédio do tempo necessário (valor de troca), a
biblioteca de saber teórico e prático da sociedade humana, construída historicamente. Aqui se
apresenta um paradoxo, posto que a própria medida pressupõe seu objeto de mensuração,
portanto, o roubo de força produtiva social da ciência e educação como propriedade
capitalista. Quiçá, seja necessária uma nova história da acumulação primitiva para adicionar
244
ao roubo dos meios de produção materiais (terras e instrumentos do trabalho), também o
roubo do intelecto geral até então constituído.
Na verdade, com a medida de tempo de trabalho necessário (ou valor de troca)
não é possível mensurar o valor do tempo de trabalho empregado pela humanidade para
constituir o intelecto geral da sociedade (valor de uso). Em tese, a mensuração possível é pelo
seu contra valor de troca: o tempo disponível social, isto é, que toda pessoa individual,
singular, deve dispor para além do trabalho imediato. Contudo, a estreiteza do paradigma de
valor do tempo necessário do capitalismo ao reduzir esta força produtiva social (a ciência e a
educação) à dimensão de propriedade privada, se por um lado impede a mudança do
paradigma de valor de se mensurar pelo tempo disponível social, por outro, alavanca o
processo de crise geral à dimensão global e insustentável independente da vontade das classes
sociais, à medida que faz avançar o controle (poder) da ciência (do intelecto geral) sobre a
produção social.
Eis, assim, o novo nível de tensão que surge das relações de classes desenvolvidas
nos países que chegaram ao imperialismo capitalista, cujo gigantesco sistema de máquinas,
conformada em monopólio (ou oligopólio) global e multifacetado intermedeia as relações
metabólicas diretas e indiretas entre o homem e a natureza:

A natureza não constrói máquinas, nem locomotivas, estradas de ferro, telégrafos


elétricos, selfacting mules, etc. São estes produtos da indústria humana; material
natural, transformado em órgãos da vontade humana sobre a natureza ou de sua
atuação na natureza, são órgãos do cérebro humano criados pela mão humana; força
objetiva do conhecimento. O desenvolvimento do capital fixo revela até que ponto o
conhecimento ou knowledge social geral se converteu em força produtiva imediata e,
portanto, até que ponto as condições do processo de vida social mesmo, entraram
sob o controle do general intellect e remodeladas conforme o mesmo. Até que ponto
as forças produtivas sociais são produzidas não somente na forma do conhecimento,
mas como órgãos imediatos da prática social, do processo vital real (MARX, 2009,
Vol II, pp. 229-230).

Vê-se assim que Marx indica como desdobramento inevitável da tendência à


erosão do paradigma de valor, a tomada de consciência por parte dos sujeitos históricos de
que ele mesmo é o principal responsável pela construção do gigantesco edifício do capital, e
que assim como foi capaz de construir é capaz também de pô-lo abaixo, e o que concorre
objetivamente para este fato é como afirma o próprio Marx: “a diminuição do tempo
necessário para aumentar o excedente, criando o tempo disponível, torna o próprio capital a
contradição. [...] as condições materiais para fazer essa base saltar pelo ar.” (p. 241, passim).
245
3 A CRISE DE PARADIGMA DA CIÊNCIA

A perda da capacidade de mensuração do valor através do paradigma do tempo de


trabalho socialmente necessário, embora não constitua um tema inédito para a teoria marxista
e tão pouco para a pesquisa científica das ciências sociais, como se pode comprovar por
trabalhos teóricos passados e atuais como em Rosdolsky (2001); Santos (1983 e 1987), entre
outros, também não se pode deixar de reconhecer que este tema voltou a constituir objeto de
crescente preocupação em trabalhos recentes, como se verificou na parte anterior desta
pesquisa: Bensaïd (1999), Hardt e Negri (2003), Mészáros (2002), Lazzarato (2001), Gorz
(2005), Boutang (2008), Vercellone (2012), entre outros. Nesta, independente da tese a que
chegam os autores apreciados, a crise da lei do valor está associada ao papel cada vez mais
protagonista que a ciência assume no processo produtivo capitalista, seja de forma distorcida,
como assinala Mészáros, seja na forma de revolução informacional, como assinalam os
defensores da sociedade pós-industrial, ou do capitalismo cognitivo. Desta constatação
apresentou-se a tese, fundada em Marx, da crise orgânica da composição-valor do capital, que
se expressa na erosão do seu paradigma de mensuração: o tempo de trabalho socialmente
necessário.
A importância da ciência para a tese sobre a crise orgânica do capital, apresentada
neste trabalho, pode ser compreendida a partir da análise de Marx no capítulo XII de O
Capital, Maquinaria e Grande Indústria que sugere a invenção da máquina de fiar como o
marco inicial do processo da Revolução Industrial. Com esta, inicia a trajetória histórica da
ciência enquanto força produtiva social que passa a desempenhar duplo papel no processo de
produção e reprodução do capital, ora cativa, ora libertadora, chegando ao momento atual em
que esta contradição se externaliza em crise de paradigma. Marx, em uma nota de rodapé em
apoio à sua análise enfatiza a relação entre os conceitos de natureza, história, indivíduo,
máquina, tecnologia, materialismo, ideologia (religião), e ciência:

[…] Uma história crítica da tecnologia provaria, sobretudo, quão pouco qualquer
invenção do século XVIII cabe a um só indivíduo. Até hoje não existe tal obra.
Darwin atraiu o interesse para a história da tecnologia da Natureza, isto é, para a
formação dos órgãos de plantas e animais como instrumentos de produção para a
vida das plantas e dos animais. Será que não merece igual atenção a história da
formação dos órgãos produtivos do homem social, da base material de toda
organização social específica? E não seria mais fácil reconstituí-la, já que, como diz
246
Vico, a história dos homens difere da história natural por termos feito uma e não a
outra? A tecnologia revela a atitude ativa do homem para com a Natureza, o
processo de produção direto de sua vida, e com isso também suas condições sociais
de vida e as concepções espirituais decorrentes delas. Mesmo toda história da
religião que abstraia essa base material é acrítica. É efetivamente muito mais fácil
mediante análise descobrir o cerne terreno das nebulosas representações religiosas
do que, inversamente, desenvolver, a partir das condições reais de vida de cada
momento, as suas formas celestializadas. Este último é o único método materialista
e, portanto, científico. As falhas do materialismo científico natural abstrato, que
exclui o processo histórico, já se percebem pelas concepções abstratas e ideológicas
de seus porta-vozes, assim que se aventuram além dos limites de sua especialidade
(MARX, 1988, Livro 1, v. 2, p. 6).

De acordo com Marx, a análise das relações entre crise do valor e ciência, de uma
perspectiva histórica, se escreve na ontologia da humanidade devido ao papel do trabalho na
formação da espécie humana e sua indissociabilidade do progresso técnico, por um lado
subsumido às determinações do modo de produção pertinente, por outro ao seu impulso
autônomo que conduz à Revolução Industrial se completar na Revolução Científico-Técnica,
produzindo-se a “síntese entre o desenvolvimento do sistema produtivo e o desenvolvimento
do conhecimento humano sistemático” (SANTOS, 1983, p. 13).

3.1 As forças produtivas e a natureza humana

Os avanços técnicos não foram inaugurados pelo modo de produção capitalista.


Pelo contrário, como observa Santos, um certo grau de desenvolvimento das forças produtivas
é um pré-requisito para o surgimento deste:

O modo de produção capitalista surge num estágio bastante elevado da luta do


homem para submeter a natureza. De fato, este modo de produção surge como
consequência do alto desenvolvimento das forças produtivas devido à expansão das
indústrias e do comércio mundial (SANTOS, 1983, p. 11).

O sistema de máquinas, que representa um dos aspectos da síntese entre capital e


ciência, em que o primeiro assume a forma de capital fixo, tornando a segunda sua cativa, é
produto de uma acumulação histórica, tanto de conhecimento, quanto de outros fatores que
permitiram um determinado nível de produtividade do trabalho, herança dos modos de
produção anteriores, como se depreende de dois trechos selecionados dos Grundrisse:
247
A acumulação do saber e da habilidade, das forças produtivas gerais do cérebro
social, é dessa maneira absorvida no capital em oposição ao trabalho, e aparece
consequentemente como qualidade do capital, mais precisamente do capital fixo, na
medida em que ele ingressa como meio de produção propriamente dito no processo
de produção. A maquinaria aparece, portanto, como a forma mais adequada do
capital fixo, e o capital fixo, na medida em que o capital é considerado na relação
consigo mesmo, como a forma mais adequada do capital de modo geral (MARX,
2009, v. 2, p. 220).
Por conseguinte, o fato de que uma parte cada vez maior [da produção] seja
empregada na produção dos meios de produção depende do grau de produtividade já
alcançado – de que uma parte do tempo de produção seja suficiente para a produção
imediata. Para tanto, é preciso que a sociedade possa esperar; que uma grande parte
da riqueza já criada possa ser retirada tanto da fruição imediata quanto da produção
destinada à fruição imediata, para empregar essa parte no trabalho não
imediatamente produtivo (no interior do próprio processo de produção material)
(MARX, 2009, v. 2, p. 230).

Se por um lado, nos modos de produção anteriores, como nota Santos (1983, p.
14), “seu ritmo havia sido muito lento […] ainda não se estabelecia uma relação clara entre o
conhecimento científico do mundo físico e social e sua aplicação ao sistema produtivo”, por
outro, esse desenvolvimento se deu numa extensão de tempo da ordem de milhões de anos.
Engels, em seu texto O papel do trabalho na transformação do primata em homem, chama
atenção para condição ontológica do trabalho, seu papel transformador e mediador da relação
homem e natureza, dos homens entre si e deste consigo mesmo:

[o trabalho] é a condição básica e fundamental de toda a vida humana. E em tal grau


que, até certo ponto, podemos afirmar que o trabalho criou o próprio homem. […] O
rápido progresso da civilização foi atribuído exclusivamente à cabeça, ao
desenvolvimento e à atividade do cérebro. Os homens acostumaram-se a explicar
seus atos pelos seus pensamentos, em lugar de procurar essa explicação em suas
necessidades (refletidas, naturalmente, na cabeça do homem, que assim adquire
consciência delas). Foi assim que, com o transcurso do tempo, surgiu essa
concepção idealista do mundo que dominou o cérebro dos homens, sobretudo a
partir do desaparecimento do mundo antigo, e continua ainda a dominá-lo, a tal
ponto que mesmo os naturalistas da escola darwiniana mais chegados ao
materialismo são ainda incapazes de formar uma ideia clara acerca da origem do
homem, pois essa mesma influência idealista lhes impede de ver o papel
desempenhado aqui pelo trabalho (ENGELS, 2010, p. 452).

Não é possível falar em trabalho sem falar em desenvolvimento da técnica, afinal,


como também nota Engels (2010), “O trabalho começa com a elaboração de instrumentos”.
Este autor afirmou que a postura do ser humano foi o ponto de partida que liberou suas mãos
para o uso das ferramentas, o primeiro passo da jornada humana. Esta dedução de Engels, que
não tinha como em sua época, ter acesso a qualquer descrição de um fóssil de hominídeo, foi
confirmada com as descobertas arqueológicas realizadas na segunda metade do século XX. O
248
Australopithecus, gênero de hominídio que viveu entre 3.9 e 2.9 milhões de anos, que é
considerado ancestral direto, ou parente muito próximo de um ancestral ainda desconhecido
do gênero Homo (do qual a espécie Homo Sapiens faz parte), mesmo com caixa craniana de
tamanho proporcional aos símios, já andava ereto e manipulava ferramentas, conforme
atestam as recentes descobertas no sítio arqueológico de Lomekwi, no Quênia, datadas em 3,3
milhões de anos. Este fato demonstra que a criação de ferramentas de pedra tiveram um papel
determinante na formação dos primeiros hominídeos (HARMAND et al., 2015).

Uma linha histórica que interconecte a primeira ferramenta de pedra com a mais
avançada das máquinas, não implica uma linha reta no desenvolvimento das forças
produtivas, mas processos graduais, por saltos e mediações à mera acumulação de
conhecimentos. O Homo Sapiens surgiu há pelo menos 195 mil anos, conforme a descoberta
dos fósseis anatômicos mais antigos provenientes do Parque Nacional de Omo, no sudeste da
Etiópia. O desenvolvimento da forma biológica da espécie humana e do comportamento
considerado moderno ocorreram concomitantemente. No concernente à subjetividade, pode-se
identificar e datar cientificamente diversas e sofisticadas expressões culturais, como as
pinturas rupestres nas cavernas de Chauvet, na França, ou na Toca da Bastiana, no Parque
Nacional da Serra da Capivara, ambos sítios arqueológicos datados em cerca de 32 mil anos.
Porém, mais que um ponto de partida para a conformação do ser humano, essas expressões
são, em si, uma síntese de um longo processo.
O Paleolítico, velha idade da pedra (do grego), foi o período das primeiras
ferramentas líticas. Engels, em sua obra A origem da família, da propriedade privada e do
estado, acompanhando a nomenclatura de Lewis Henry Morgan, um dos fundadores da
antropologia, denominou este período de estado selvagem. Foi durante esta fase do
desenvolvimento que a humanidade criou diversas tecnologias, além da ferramenta, como a
linguagem, o domínio sobre o fogo, a construção de abrigos, as roupas, as lanças, os arcos, as
balsas, as redes, as representações pictóricas, os pigmentos, as flautas, a cerâmica, a
domesticação dos cães, o curtimento do couro, os primeiros calendários, entre outras.
Mesmo levando em consideração a extensa lista de importantes descobertas do
Paleolítico, é consenso identificar uma intensificação no desenvolvimento das forças
produtivas, em um período entre 12 e 2 mil anos atrás, indicando um grande salto qualitativo
em diversas partes do globo, que segundo as evidências conhecidas até o momento, ocorreu
de forma independente. A Revolução Neolítica, também chamada de Revolução Agrícola, foi
249
uma transformação radical na relação entre o homem e a natureza, que ficou conhecida como
período caracterizado principalmente pela domesticação das plantas.
Na região do Crescente Fértil foram encontradas evidências de cultivos, entre
outros, de cevada, trigo e linho; na China, ocorreu a domesticação do milhete e do arroz; na
África foi domesticado o café, o ensete e o khat; em Papua Nova Guiné, o inhame e outros
tubérculos; na América Central, iniciou-se a plantação da abóbora, do milho e do feijão; nos
Andes foram encontrados vestígios da plantação de batatas e da quinoa, enquanto que no
litoral do Peru, na região próxima à antiga cidade de Caral (primeira grande cidade descoberta
no continente) se destaca a domesticação do algodão; e, finalmente na Amazônia, na região do
alto rio Madeira, berço do tronco linguístico Tupi, foram domesticadas a mandioca, a
pupunha, a pimenta, o amendoim, o abacaxi e o guaraná (MEDEIROS E MURRIETA, 2015)
(DIAMOND e BELLWOOD, 2003).
Paralelamente a este processo ocorreu a domesticação de algumas espécies
animais como a ovelha, o porco, o boi, a galinha, o porquinho da índia, entre outros. Também
foi importante a domesticação dos fungos como a levedura e o bolor, o primeiro utilizado na
fabricação de cerveja e pão e o último nos queijos. Finalmente, os seres humanos também
aprenderam a tirar proveito do cultivo de bactérias, como as colônias utilizadas na produção
de cremes azedos, tipos de queijos e kefir.
A Revolução Neolítica se diferencia dos avanços do período anterior, Paleolítico,
pois representou o domínio da espécie humana sobre os objetos inanimados e sujeição de
seres animados. Se a construção de ferramentas levou à criação de uma nova natureza
humana, que se diferencia dos outros animais, dominar a reprodução e o melhoramento de
outras espécies de seres vivos, agora domesticados, complexificou o processo criando um
novo ecossistema em todo o mundo. A revolução agrícola (Neolítica) inaugura o período
Antropoceno (ou Holoceno), termo cronológico que identifica o ponto sem retorno a partir do
qual a história geológica da terra não pode mais ser compreendida separadamente do impacto
das atividades humanas.
O excedente, antropologicamente controverso, na produção surgido neste período,
permitiu pela primeira vez na história da humanidade a liberação de uma parcela da
sociedade, do trabalho direto na produção ou com a coleta de alimentos, o que levou à divisão
social do trabalho e aparecimento de outras atividades produtivas, como o artesanato e a
tecelagem, e as classes não produtivas como os sacerdotes e os guerreiros em tempo integral.
Este processo representou uma vitória do intelecto humano sobre a natureza e ensejou uma
250
série de novas contradições nas relações entre os seres humanos, animais sociais. Da antiga
comunidade primitiva surge a sociedade dividida em classes, como ilustrou Engels, focando-
se no caso da dissolução da gens grega e da criação do Estado:

Desse modo, na constituição grega da época heroica vemos, ainda plena em vigor, a
antiga organização gentílica, mas já observamos igualmente o começo de sua
decadência: o direito paterno, com herança das propriedades pelos filhos, facilitando
a acumulação das riquezas na família e tornando esta um poder que se contrapõe à
gens; a diferenciação de riquezas, repercutindo sobre a constituição social pela
formação dos primeiros sinais de uma nobreza hereditária e de uma monarquia; a
escravidão, a princípio restrita aos prisioneiros de guerra, aberta depois para a
perspectiva da escravização de membros da própria tribo e até da própria gens; a
degeneração da velha guerra entre as tribos na busca sistemática, por terra e por mar,
de gado, escravos e gens que podiam ser capturados, o que chegou a ser uma fonte
regular de enriquecimento (ENGELS, 2010B, p. 212).

Esta digressão histórica não traduz um determinismo tecnológico, pois no


conceito de forças produtivas está a expressão reificada das classes sociais, logo, as relações
de produção, que derivam destas, e que expressam tanto o seu desenvolvimento material,
quanto intelectual, condensados em sua atividade prática, interesses imediatos e futuros;
portanto, a luta de classes, consequentemente o fundamento histórico de todas as
transformações revolucionárias na sociedade humana; seja nas relações de produção, seja nas
formas ideológicas, jurídicas e políticas, com que toma consciência das contradições da vida
material e chega às últimas consequências para resolvê-las.
Deste modo, a indissociabilidade entre o desenvolvimento das forças produtivas e
a transformação da natureza do homem, mediada pelo trabalho, é assim causa e consequência
das relações sociais. Na análise do modo de produção capitalista, foco do presente trabalho,
pode-se afirmar que a contradição expressa entre capital, condensado como sistema de
máquinas, e trabalho é apenas a expressão de um novo patamar desta contradição mais
profunda entre orgânico e inorgânico, entre subjetivo e objetivo.

3.2 A Revolução Industrial e suas três fases

Os autores contemporâneos diferem quando se trata do conceito de Revolução


Industrial, o que naturalmente leva a discrepâncias em sua periodização. Alguns autores
251
consideram a existência de uma única revolução industrial, outros de duas, outros de três. Sem
menosprezar a importância de se pensar as periodizações, Hobsbawm faz uma observação
sobre as tentativas de se buscar enquadrar a Revolução Industrial dentro de marcos temporais
rígidos:

De fato, a revolução industrial não foi um episódio com um princípio e um fim


[pontuais]. Não tem sentido perguntar quando se “completou”, pois sua essência foi
a de que a mudança revolucionária se tornou norma deste então. Ela ainda prossegue
(HOBSBAWM, 1997 p. 45).

Desta forma, a proposição apresentada neste trabalho é a de uma única Revolução


Industrial ainda em curso, e que pode ser dividida em três fases, que eventualmente se
sobrepõem temporalmente, mas que, ao serem derivadas das transformações nas três partes
que conformam o sistema de máquinas, permitem a compreensão da dialética entre as três e,
como cada uma delas, dentro de um determinado processo histórico, assume o lugar de polo
dinâmico da relação, ditando o ritmo e a direção das transformações operadas nas outras.
Hobsbawm também afirma que não se pode datar o início deste processo a partir
do momento em que os homens tomam consciência dele, lembrando que o termo Revolução
Industrial só foi instituído na década de 1820, “provavelmente por analogia com a revolução
política na França”. Contudo, ele afirma em seguida:

[…] uma investigação cuidadosa levou a maioria dos estudiosos a localizar como
decisiva a década de 1780 e não a de 1760, pois foi então que, até onde se pode
distinguir, todos os índices estatísticos relevantes deram uma guinada repentina,
brusca e quase vertical para a “partida” (HOBSBAWM, 1997 p. 44).

Esta definição poderia ser percebida de outro modo, pois, assim como a luz das
estrelas leva um tempo para chegar à Terra, depois de ter escapado do campo gravitacional
das mesmas, também se poderia firmar que os fenômenos, cujos efeitos aparecem nos índices
estatísticos a partir de 1780, demonstram que um processo anterior já vinha sendo gestado. A
periodização aqui utilizada se baseia não em uma história meramente descritiva de inventores
e invenções, ou das lutas sociais que aceleraram ou retardaram esse desenvolvimento, mas na
categorização histórico-econômica do conceito de maquinaria por Marx como objetivação da
relação capital, o que pressupõe um novo patamar da relação entre o homem e a natureza, de
forma análoga à objetivação do corpo humano nas ferramentas produzidas desde o paleolítico.
Portanto é fundamental a compreensão do movimento que separa a ferramenta como uma
252
simples objetivação do corpo humano, que serve como uma interface para ele manipular o
mundo material, do sistema de máquina, que completa esta objetivação, já subsumida à
relação capital, diluindo o conceito de trabalhador individual no de trabalhador coletivo, e
levando ao surgimento do intelecto geral.
A compreensão da mudança de qualidade que significou este estágio de
desenvolvimento está profundamente fundada na teoria do valor de Marx, na qual este é uma
medida imanente da mercadoria, um efeito do trabalho abstrato contido nela, e não do
trabalho concreto. O trabalho abstrato só pode ser entendido como uma relação social e
qualquer tentativa de reduzi-lo ao trabalho concreto leva a uma confusão. Marx já havia
definido bem a questão em O Capital: “Em direta oposição à palpável e rude objetividade dos
corpos das mercadorias, não se encerra nenhum átomo de matéria natural na objetividade de
seu valor” (1988, l.1, V. 1, p. 53). Portanto, o trabalho abstrato existe apenas como uma
categoria social, apenas como trabalho socialmente necessário. Esta forma de trabalho guarda
uma relação direta com o desenvolvimento tecnológico:

“Apenas o trabalho social é capaz de aplicar os produtos gerais do desenvolvimento


humano, como a matemática, etc, ao processo direto de produção, assim como,
reciprocamente, o desenvolvimento da ciência pressupõe que a produção material
tenha atingido um certo nível.” (MARX, 2010b, p. 429).

Conforme Marx (1988, Livro 1, v. 2, p. 6) demonstra, toda maquinaria, ou sistema


de máquinas, pode ser dividida em três partes constitutivas: a máquina motriz (motor), o
mecanismo de transmissão (polias, engrenagens, roldanas) e a máquina-ferramenta (a
interface que entra em contato direto com o objeto de trabalho.) É uma composição dessas
três máquinas que opera uma transformação do trabalho humano, a Revolução Industrial
talvez seja apenas análoga às Revoluções Paleolíticas e Neolíticas.
O Ministério da Educação e Pesquisa da República Federativa da Alemanha criou
nos últimos anos, em parceria com grandes conglomerados, como a Siemens, um programa
chamado Projeto Indústria do Futuro 4.0 (Zukunftsprojekt Industrie 4.0), no qual propõe, a
partir da interação entre sistemas ciberfísicos, a criação da fábrica inteligente. 19 Contudo, este
programa, ainda que aponte para uma intensificação importante do uso da cibernética, não
difere qualitativamente das transformações inseridas na terceira fase da Revolução Industrial,
nem pode ir além dela, por limitações decorrentes do modo de produção dominante na
19
http://www.bmbf.de/de/9072.php
253
contemporânea formação social, representando uma ideia de futuro que busca perpetuar
relações do passado.
Nesta tese considera-se a primeira fase da Revolução Industrial, segundo a
classificação proposta de três fases, em oposição ao conceito de três revoluções distintas,
como o processo no qual a máquina-ferramenta condicionou a primeira fase desta
transformação, sendo ela a interface entre trabalho e meio. Pode-se especular uma analogia
entre esta dinâmica com o surgimento de qualquer espécie biológica, ou ainda com o papel já
abordado das ferramentas na criação da espécie humana, pois é um truísmo considerar que o
desenvolvimento de qualquer sistema fechado depende da interface de contato entre ele e sua
externalidade, da qual começa a se diferenciar, assim as proteínas surgiram antes do RNA que
em um segundo momento passou a comandá-las, e as ferramentas antes do complexo sistema
cultural.

3.2.1 A máquina como categoria econômica subsumida ao conceito de capital

Ainda que nas disciplinas da física e da mecânica costume-se chamar de máquina


simples objetos aqui considerados ferramentas, como alavancas, planos inclinados, cunhas,
parafusos e martelos, essa diferenciação é importante na economia, pois incorpora uma
dimensão histórica. As máquinas não se diferenciam das ferramentas por serem uma
composição das mesmas, o que as reduziriam a ferramentas compostas, nem se pode fazer
essa diferenciação a partir da origem da energia que alimenta o mecanismo. Marx observou
que máquinas como o tear circular de Claussen, que “movido pela mão de um único
trabalhador, apronta 96 mil malhas por minuto”, não poderiam ser consideradas meras
ferramentas (MARX, 1985, l.1 v. 2, p. 6 ).
Para se entender a máquina como categoria da crítica da economia política, é
fundamental observar sua transformação ao longo da história. Para Santos (1983), antes do
capitalismo, o ritmo de desenvolvimento econômico era muito mais lento, não sistemático e
separado de sua aplicação produtiva. O capitalismo conseguiu realizar a síntese entre o
desenvolvimento do sistema produtivo e o desenvolvimento do conhecimento humano
sistemático; inclusive muitos conhecimentos desenvolvidos anteriormente foram finalmente
254
aplicados no capitalismo. A indústria, a produção organizada em torno do sistema de
máquinas, surge como uma consequência histórica da produção manufatureira europeia,
derivada de suas duas formas fundamentais, a heterogênea e a orgânica.

A manufatura já tinha um caráter capitalista e nela “já se apresentavam


embrionariamente estes três elementos fundamentais (divisão do trabalho, cooperação e
concentração)” (SANTOS, 1983, p. 17). Contudo, a manufatura não poderia:

apossar-se da produção social em toda a sua extensão, nem revolucioná-la em sua


profundidade. […] Sua própria base técnica estreita, ao atingir certo grau de
desenvolvimento, entrou em contradição com as necessidades de produção que ela
mesma criou (MARX, 1988, Livro 1 V. 1, p. 275).

Nesta fase a maquinaria ainda desempenha um papel secundário, por isso a visão
de Smith, da preponderância da divisão e da organização do trabalho no desenvolvimento
capitalista, manteve-se presa a esse momento de transição, impedindo-o de apreender o
movimento que levaria da manufatura à indústria moderna, tendo sido esta a raiz da sua
polêmica com Lauderdale (SMITH, 1996) (MARX, 1988, Livro 1, V. 1, p. 262 ).
Segundo Marx, mesmo sendo um matemático e mecânico superior, Charles
Babbage, também revelou-se incapaz de pensar o papel das máquinas na economia, pois
“compreende a grande indústria apenas do ponto de vista da manufatura.”(p. 263). No
capítulo XII de O Capital, intitulado A maquinaria e a indústria moderna, Marx descreve o
que diferencia a manufatura da indústria moderna:

O revolucionamento do modo de produção toma, na manufatura, como ponto de


partida a força de trabalho; na grande indústria, o meio de trabalho. É preciso,
portanto, examinar primeiro mediante o que o meio de trabalho é metamorfoseado
de ferramenta em máquina ou em que a máquina difere do instrumento manual
(MARX, 1988, Livro 1, v. 2. p. 5).

Se não é então por sua mera descrição físico-mecânica, nem de acordo com sua
fonte de energia, como conceituar a máquina como uma categoria? Marx chega a uma
definição, que leva em consideração o local que a máquina ocupa no centro do processo
produtivo:

A máquina-ferramenta é, portanto, um mecanismo que, ao ser-lhe transmitido o


movimento correspondente, executa com suas ferramentas as mesmas operações que
o trabalhador executava antes com ferramentas semelhantes (p. 7).
255
Como Marx nota, Andrew Ure, apologeta do sistema industrial, já havia
distinguido o momento no qual o trabalhador coletivo aparecia combinado com a máquina,
com o primeiro ainda ocupando a posição de sujeito, do novo momento resultante da
transformação operada pela revolução industrial, na qual conforma-se:

um enorme autômato, composto por inúmeros órgãos mecânicos e conscientes,


agindo em concerto e sem interrupção para a produção de um mesmo objeto, de
modo que todos estão subordinados a uma força motriz, que se move por si mesma
(URE apud MARX, 1988, Livro 1, v. 2, p. 38).

Lauderdale percebe o papel central que as máquinas assumem neste processo de


transição, contudo, este autor comete um outro erro, de acreditar que as mesmas substituem o
trabalho humano, o que o leva a descartar erroneamente a descoberta de Smith, compartilhada
por Locke de que o trabalho é a fonte de riqueza e responsável pela origem do lucro. Isso para
ele levaria à inaceitável conclusão de que: “o lucro não seria nada mais que uma transferência
do bolso do trabalhador para o do capitalista”. Para este autor:

O lucro dos capitais provém sempre ou do fato de que eles substituem uma porção
do trabalho que o ser humano deveria fazer com suas próprias mãos; ou do fato de
que eles realizam uma porção do trabalho que excede os esforços pessoais do ser
humano e que ele próprio não saberia executar (LAUDERDALE apud MARX,
2009, v. 2, p. 213, tradução nossa).

Essa visão de Lauderdale foi refutada diversas vezes por Marx, que mostrou a
mistificação resultante desta fantasia dos próprios capitalistas, de que as máquinas eram
capazes de criar valor, da mesma forma que a ilusão de que uma suposta máquina de
motoperpétuo fosse capaz de gerar energia. A máquina, como categoria econômica, só pode
ser entendida em sua dimensão histórica, na medida em que sua utilização no processo de
produção de valor é o que permite a passagem da subordinação formal típica do período
manufatureiro, à subordinação real do trabalho ao capital. Ela é responsável por levar a
mistificação da relação capital a um novo patamar:

Este desenvolvimento da força produtiva do trabalho socializado, ao contrário do


trabalho do indivíduo, etc. mais ou menos isolado, e, ao lado dele, a aplicação da
ciência, esse produto geral de desenvolvimento social, ao processo de produção
direta, tem a aparência de uma força produtiva do capital, não do trabalho, ou apenas
aparece como uma força produtiva do trabalho na medida em que esta última é
idêntica ao capital e, em qualquer caso, não aparece como força produtiva do
indivíduo trabalhador ou dos trabalhadores combinados em conjunto no processo de
produção. A mistificação que se encontra na relação capital em geral é agora muito
256
mais desenvolvida do que era, ou poderia ser, no caso da subsunção meramente
formal do trabalho ao capital (MARX, 2010d, p. 429, tradução nossa).

Um aspecto essencial que está intrinsecamente relacionado à compreensão da


máquina como uma categoria econômica, subsumida ao conceito de capital, é entendê-la
como capital constante em geral, como trabalho morto cristalizado. Neste sentido, máquina é
um armazenador de trabalho vivo, que pode ser despendido em um outro ciclo produtivo.
Contudo, não basta reduzir o conceito econômico da máquina para si apenas ao fato de tratar-
se de capital constante, também é possível encontrar em Marx elementos para compreender as
determinações históricas concretas de todo este processo, ligado diretamente à questão da
produtividade do trabalho. A categoria máquina se diferencia da categoria ferramenta pela
posição que ela ocupa não apenas no processo de produção, mas no processo de valorização
do capital, ao qual o primeiro está subsumido. Para este autor, o objetivo do capital quando
emprega a maquinaria é: “baratear as mercadorias, encurtar a parte do dia de trabalho da qual
precisa o trabalhador para si mesmo, para ampliar a outra parte que ele dá gratuitamente ao
capitalista. A maquinaria é meio para produzir mais valia” (MARX, 1988, Livro 1, v. 2, p. 5).
Em busca de trabalho excedente, o capital aplica os frutos da ciência na produção
de forma a reduzir o tempo de trabalho socialmente necessário; uma capacidade expressa pela
primeira vez no desenvolvimento da indústria. Como nota Santos (1983), a causa dessa
qualidade “revolucionária” da introdução da maquinaria é a própria separação entre produtor
e meio de produção, pois ela traz vários ganhos para o capitalista dentro da lógica da
acumulação: reduz salário ao aumentar a produtividade nos setores que produzem para meios
de consumo ordinários, além de aumentar a exploração e aprimorar técnicas de produção;
aumenta a rotatividade do capital fixo; diminui o custo de circulação, ao desenvolver e
otimizar uso de infraestrutura; aumenta a jornada de trabalho. (SANTOS, 1983)
Esse processo foi conflituoso e ensejou diversas reações dos trabalhadores que
temiam pelos seus empregos, algo que demonstrou não ser infundado; o emprego das
máquinas alterou profundamente as relações dos homens entre si, dentro do contexto da luta
de classes, agindo como uma arma dos patrões para enfraquecer a classe operária, o que foi
bem analisado por Marx:

Poder-se-ia escrever toda uma história dos inventos que, a partir de 1830, surgiram
apenas como armas do capital contra motins de operários. Lembramos, sobretudo, o
257
selfacting mule, porque ele abre nova era do sistema automático.(pp. 50).

Na tradução inglesa de O Capital, Marx cita as palavras de Andrew Ure que


afirma que “o efeito de substituir o tear comum pelo tear automático é o de descartar a maior
parte dos tecelões homens e reter adolescentes e crianças” (URE apud MARX, 1988, Livro 1,
v. 2, p. 48). Marx relembra contudo que as palavras deste, que é considerado um grande
acadêmico, químico, e teórico da burguesia, não tem caráter condenatório e sim apologético.
Em seu texto, Ure, demonstra bem a hipocrisia da ciência burguesa quando se trata de
defender seus interesses. Ainda sobre as crianças que a aplicação das máquinas trouxe para a
fábrica, afirma:

Elas pareciam estar sempre alegres e alertas, sentindo prazer no leve acionar de seus
músculos, - desfrutando da mobilidade natural para sua idade. […] [As crianças
estão] melhor quando empregadas em nossas fábricas modernas, do que deixadas em
casa em apartamentos muitas vezes mal arejados, úmidos e frios (URE, 1967, p. 301
tradução nossa).

A difusão da máquina não se explica apenas pela luta entre as classes, mas
também pela luta interna da classe burguesa. Cabe aqui repetir uma pré-condição para o papel
da máquina no processo de valorização: este papel só faz sentido ao observar-se a tendência à
equalização da taxa de lucro entre os capitalistas que atuam em diversos ramos. A adoção das
máquinas apenas se justifica em um mercado no qual se confrontam diversos capitalistas,
sejam eles os primeiros industriais que expropriaram os tecelões de Lancashire no século
XVIII, ou os grandes monopólios que nos dias de hoje travam guerras entre si. Sem isso a
mecanização não se sustentaria; não seria possível a sobrevivência dos setores com alta
composição orgânica se eles não fossem capazes, através das trocas desiguais, de se
apropriarem da mais-valia produzida nos outros ramos, onde o uso do capital variável é mais
intenso.

3.2.2 A conformação do Intelecto Geral

A máquina, vista de uma perspectiva histórica e econômica, é condição para o


258
surgimento do trabalhador coletivo. A manufatura, na qual as máquinas já eram utilizadas, dá
lugar à fábrica, que operou a junção de várias máquinas, baseada no trabalho cooperativo de
diversos trabalhadores, resultando na criação do sistema de máquinas, a maquinaria. Esse foi
o início da Revolução Industrial, mais um momento de alteração qualitativa da relação do
homem com a natureza.

A produção mecanizada encontra sua forma mais desenvolvida no sistema orgânico


de máquinas-ferramentas combinadas, que recebem todos os seus movimentos de
um autômato central e que lhes são transmitidos por meio do mecanismo de
transmissão. Surge, então, em lugar da máquina isolada, um monstro mecânico que
enche edifícios inteiros e cuja força demoníaca se disfarça nos movimentos ritmados
quase solenes de seus membros gigantescos e irrompe no turbilhão febril de seus
inumeráveis órgãos de trabalho (MARX, 1988, Livro 1, v. 2, p. 12).

O processo de industrialização confunde-se com a conformação da classe


operária, isto porque ela torna possível uma nova divisão do trabalho: de uma divisão de uma
etapa em várias para a divisão entre vários trabalhadores, permitindo a especialização
individual em cada etapa, e exigindo a cooperação de muitos na fabricação de cada item
(SANTOS, 1983).
Desde a primeira fase da Revolução Industrial, o intelecto geral, ou cérebro social,
aparece como potência, como uma tendência lógica do desenvolvimento das forças
produtivas, porém, contrariamente aos teóricos do capitalismo cognitivo, como Boutang e
Lazzarato, que sustentam que a chamada Revolução Informacional comprova a realização
deste fenômeno apresentado por Marx nos Grundrisse, a presente tese sustenta que as
relações capitalistas de produção impedem, ou retardam, a absolutização desta tendência. A
Revolução Científico-Técnica confirma a possibilidade da realização processo, mas este
permanece inconcluso, como demonstra a polarização do conhecimento, objeto do estudo de
caso realizado por Marques (2014) no Vale do Silício, utilizado como exemplo por Boutang.
Neste contexto, o domínio dos monopólios sobre a educação, que se traduz no crescimento da
educação corporativa, torna-se essencial para limitar o knowledge social da classe operária ao
mínimo, afastando-a da produção científica, limitando o desenvolvimento da inteligência
coletiva.
259
3.3 A revolução na máquina ferramenta, a primeira fase da Revolução Industrial

O desenvolvimento do sistema capitalista, sua passagem a uma relação que


abarcou todo o globo, sob a base das grandes navegações do período mercantilista, que já
apontavam para a superação do sistema feudal, foi alavancado principalmente, neste primeiro
momento, pela expansão da indústria têxtil. Na Inglaterra a produção deste ramo era
principalmente de lã e de linho, enquanto que os tecidos de algodão, que foram conquistando
parcelas cada vez mais significativas do mercado consumidor, eram maciçamente importados
pela Companhia Britânica das Índias Orientais, que quebrou o monopólio português sobre o
comércio com esta região. A promulgação da série de leis que progressivamente proibiram a
importação de tecido, as Calico Acts (nome relacionado ao tecido que por sua vez foi batizado
assim por ser carregado no porto de Calicute), entre 1690 e 1721, forneceu um grande
impulso à manufatura têxtil britânica que passou a abastecer o mercado destes produtos, antes
importados, o que levou à concentração física dos trabalhadores como forma de se obter
maior controle sobre o processo de produção. Na Inglaterra esse fenômeno se deu
principalmente na região sul do condado de Lancashire, levando ao inchaço de cidades como
Manchester e Liverpool (que depois se emanciparam deste condado).
Antes da revolução industrial, essa produção era feita por uma indústria artesanal,
doméstica, subordinada à burguesia comercial, como descreve SANTOS (1983, p. 17), “o
comerciante entregava matérias-primas aos artesãos e garantia a compra de seus produtos,
fazendo com que os artesãos trabalhassem para ele, sem em nada mudar suas condições de
trabalho”. O autor também nota que “apesar da excessiva ênfase [da literatura atual] ao
surgimento da máquina a vapor como causa da Revolução Industrial”(p. 18), Marx confere
papel preponderante ao desenvolvimento da máquina-ferramenta, conforme se pode conferir
em o Capital:

É dessa parte da maquinaria, a máquina-ferramenta, que se origina a revolução


industrial no século XVIII. Ela constitui ainda todo dia o ponto de partida, sempre
que artesanato ou manufatura passam à produção mecanizada. […] A própria
máquina a vapor, como foi inventada no final do século XVII, durante o período
manufatureiro, e continuou a existir até o começo dos anos 80 do século XVIII, 11
não acarretou nenhuma revolução industrial. Ocorreu o contrário: foi a criação das
máquinas-ferramentas que tornou necessária a máquina a vapor revolucionada
(MARX, 1988, Livro 1, v. 2, p. 6).
260
A tecelagem é o produto final de um processo produtivo que se inicia com a
tosquia (no caso da lã), ou com a colheita do linho, que seguem para a fiação, processo
intermediário de preparação das fibras, anterior à combinação de várias fibras em um tecido.
Diversas técnicas manuais de produção de tecidos como o tricô e o trançamento eram
utilizadas desde o Paleolítico, assim como o tear de cintura, uma ferramenta milenar que
permitia que um eixo com fios fosse atado em uma árvore e sua outra extremidade na cintura
do tecelão, liberando os braços do trabalhador para a tarefa em si.
Uma primeira máquina de tear, o tear de fitas, teria surgido ainda no início do
século XVII, na cidade livre de Dantzig, hoje parte da Polônia, de lá ele foi levado para a
Holanda e depois para a Inglaterra, onde há registros do seu uso em Londres no ano de 1616.
A partir de 1680 ele é introduzido em Lancashire onde passa a ser adotado maciçamente. Em
uma parte do capítulo XIII intitulada Luta entre trabalhador e máquina, o autor de O Capital
descreve como a adoção dos teares de fita na Europa foi retardada pela resistência dos
artesãos organizados no sistema corporativo de guildas:

“Anton Müller de Dantzig viu, há cerca de 50 anos [o autor, padre Lancellotti


escrevia em 1629], uma máquina muito engenhosa, que fabricava de 4 a 6 tecidos ao
mesmo tempo; mas como o Conselho Municipal receava que essa invenção
transformasse uma porção de trabalhadores em mendigos, suprimiu o emprego da
invenção e mandou secretamente estrangular ou afogar o inventor”. […] Essa
máquina, que causou tanta barulheira no mundo, era efetivamente precursora das
máquinas de fiar e tecer, portanto da Revolução Industrial do século XVIII (MARX,
1988, Livro 1, v. 2, p. 45).

A produção de tecidos através do tear de fitas é um processo mais complexo,


que consiste no entrelaçamento de dois conjuntos de fios dispostos em ângulo reto. O
conjunto de fios longitudinais é chamado de urdidura e os transversais de trama. O tear de
fitas é um instrumento de madeira, basicamente uma armação retangular, apoiada por pés, na
qual estão presas as travessas. Inicialmente as fibras do primeiro conjunto são colocadas
paralelamente no tear, então os fios são levantados alternadamente, utilizando-se os liços, no
caso do tear manual normalmente acionados pelos pés, e com a lançadeira, que tem função
análoga a uma agulha de trico, o tecelão passa um fio da trama através dos outros.
Posteriormente o pente é utilizado para compactar o tecido apertando os fios uns contra os
outros.
Trabalhando desta forma, o comprimento do braço do trabalhador representava
um limite para o tamanho do tecido, pois a lançadeira só poderia chegar aonde o braço
261
chegava. Desta forma, o primeiro invento que iniciou o processo de mecanização da indústria
têxtil foi a lançadeira volante, que não era em si uma máquina, mas uma ferramenta. John
Kay, nascido em Lancashire, patenteou-a em 1733. Sua ideia foi colocar rodinhas na
lançadeira e fazê-la correr por uma ranhura de madeira. O tecelão não manipulava mais a
lançadeira diretamente, mas uma vara que estava ligada à lançadeira através de fios que
passavam por uma roldana. Isso não só permitiu a fabricação de tecido mais compridos, como
também acelerou todo o processo, já que o tecelão não precisava mudar a posição de sua mão
(MCNEIL, 2000 p. 821).
Esta invenção despertou a ira dos trabalhadores e levou a uma nova reação destes:
Kay viu-se forçado a fugir para a França, onde ficou até o final de sua vida. Além disso, ele
travou uma série de batalhas judiciais contra os mecânicos, artesãos que construíam os teares,
e que ignoraram sua patente. Estes se organizaram em um cartel para se apoiarem
mutuamente contra as investidas de Kay nos tribunais. Uma versão aprimorada da lançadeira
volante se tornou muito popular em Lancashire após 1760 (HENDRICKSON, 2014, p. 500).
Conforme nota Mcneil, com a lançadeira volante e outros inventos, apesar das
estimativas variarem entre os estudiosos, em média, eram necessários oito fiadores para
produzir o material utilizado por um tecelão:

Todas as novas invenções que emergiram durante o século dezoito para produzir
diferentes tipos de tecido de forma mais rápida precipitaram uma crise: porque todo
linho, lã ou algodão tinham que ser fiados na roca de fiar medieval, que operava
com uma única fibra, fazendo com que o suprimento de fios se tornasse inadequado
(MCNEIL, 2000, p. 824).

Este é um exemplo de que na própria gênese da fase industrial do capitalismo se


encontra na desproporção entre os setores, um movimento que enseja toda uma dinâmica de
transformações tecnológicas. Foi desta necessidade, de mais fios para a indústria, que surge a
máquina-ferramenta que Marx escolhe como marco para descrever o início da revolução
industrial, a máquina de fiar de John Wyatt. No início do século XVIII já haviam sido criados
instrumentos mais complexos para a fiação da seda, inclusive o moinho de Lombe, em 1717,
movido com a força da água. Mas o processo de fiação do linho e do algodão permanecia
sendo feito com rodas de tear, uma ferramenta milenar. John Wyatt e Lewis Paul patentearam
sua invenção em 1738 e uma outra versão em 1758, mas foi a versão aprimorada da máquina
de fiar mecânica de múltiplos fios, por James Hargreaves, que causou um primeiro impacto na
262
produção de fios de linho. A princípio a mecanização desta tarefa parecia improvável pois o
trabalho de fiar dependia muito da sensibilidade dos dedos do fiador. Se ele torcesse pouco as
fibras, as mesmas se desintegravam, se as torcesse demais elas se compactavam antes de
saírem da roca, ocasionando um travamento. Mas a engenhosidade de Hargreaves superou
esse desafio, uma braçadeira de madeira era capaz de aplicar a pressão necessária, ainda que a
princípio os fios produzidos fossem de qualidade inferior. Desta forma, a objetivação do corpo
humano, não apenas em ferramentas, mas em ferramentas acopladas a máquinas, logo
máquinas-ferramentas, tornou-se, do ponto de vista tecnológico, o primeiro grande motor da
Revolução Industrial. As primeiras máquinas de Hargreaves, batizadas de spinning jenny,
tinham 8 fusos e equipararam novamente a produção de um fiador com a de um tecelão.
Novamente, como no caso de Kay, e no caso de Jacquard, Hargreaves foi alvo da fúria dos
trabalhadores: em 1767, sua máquina foi desmontada por fiadores receosos de perderem seus
empregos e ele foi obrigado a sair de Lancashire (HENDRICKSON, 2014) (MCNEIL, 2000)
(MARX, 1988, Livro 1, v. 2).
Logo a máquina de Hargreaves passou a incorporar 16 fusos, depois 80 e
finalmente 120 fusos, um crescimento aproximadamente exponencial. Outras máquinas
seguiram, como a máquina de fiar hidráulica de Richard Arkwright e de John Kay (um
homônimo do inventor da lançadeira volante, 30 anos antes), que produzia um fio muito mais
forte, através da passagem das fibras em cilindros de arrefecimento, e que era movida pela
água. Depois o princípio da máquina de Arkwright foi combinado com a de Hargreaves
criando a spinning mule, elevando enormemente a produção, o que gera uma nova
desproporção entre os setores, inversa à provocada pela lançadeira volante, como nota Marx:
“Assim, a mecanização da fiação tornou necessária a mecanização da tecelagem e ambas
tornaram necessária a revolução mecânica e química no branqueamento, na estampagem e na
tinturaria.” (MARX, 1988, Livro 1, v. 2, p. 13) É a colossal quantidade de fios disponibilizada
pela spinning mule que leva à criação do tear mecânico, já que, como também nota Marx, os
teares baseados na lançadeira volante, na qual o trabalhador ainda ditava o ritmo do trabalho,
não cumpriam o critério de uma forma “totalmente emancipada da antiga forma corpórea
tradicional da ferramenta, que se metamorfoseia em máquina” (p. 13) (MCNEIL, 2000).
A difusão das máquinas decorre naturalmente da concorrência entre os países e as
nações, levando ao crescimento da demanda por elas, o que criou um novo ramo da produção:
“As invenções de Vaucanson, Arkwright, Wyatt etc. só foram, no entanto, concretizadas
263
porque esses inventores encontraram à mão um quantum considerável de hábeis trabalhadores
mecânicos fornecidos prontos pelo período manufatureiro.” Além de uma força de trabalho
especializada, a fabricação dessas máquinas exigiu uma maneira de produzir mecanicamente
“as formas geométricas das partes componentes da máquina”. O mecanismo inventado para
tal é o torno mecânico, que substitui a própria mão humana no manuseio do metal. A
aplicação técnica deste desenvolvimento científico levou também ao surgimento de outras
máquinas, como a fresadora e a limadora, que permitiram o trabalho sobre o metal, material
que passou a se tornar o esqueleto da maquinaria (MARX, 1988, Livro 1, v. 2, p. 14).
É verdade que a metalurgia, uma das tecnologias que acompanham o ser humano
desde o paleolítico, já vinha sendo aprimorada desde o século XVII. Contudo, a demanda
originada pela construção de máquinas, forma cristalizada do capital fixo, que têm no metal
seu material de excelência, levou a um novo patamar o desenvolvimento da técnica,
principalmente com a invenção da laminação e da pudelagem (purificação do ferro através da
oxidação). Diferentemente da madeira, instrumento de mais fácil acesso, a utilização de metal
na construção das máquinas é outro fator que contribui na separação entre os trabalhadores e
os meios de produção. A necessidade de transformação das matérias-primas também ensejou o
desenvolvimento da química, o que levou a processos industriais de fabricação de produtos
químicos como ácido sulfúrico, carbonato de sódio (soda) e hipoclorito de cálcio (alvejante).
Durante a primeira fase da Revolução Industrial, a ciência recebeu um grande
impulso advindo da transição da manufatura à indústria dentro do modo de produção
capitalista. Muitas dessas descobertas decorrem do surgimento de novas necessidades
imediatas da produção. Contudo as transformações tecnológicas não se limitaram apenas à
fábrica. O processo de cercamento das terras, com a consequente expulsão de diversos
camponeses que se proletarizaram e foram viver nos grandes centros urbanos, foi
acompanhado de um grande aumento de produtividade da agricultura britânica, agora
impulsionada pelo capitalismo agrário, a partir da utilização de técnicas como a rotação de
cultivos, drenagem e arados de ferro. Outros centros urbanos, como Nottingham, se
desenvolveram na medida em que os camponeses foram sendo expulsos de suas terras e a
Inglaterra foi se tornando uma grande exportadora de tecido, demonstrando o poder de atração
de trabalhadores que o capital tem em determinados momentos. Porém, a face reversa deste
processo logo se expressaria, gerando os ciclos de atração e repulsão de trabalhadores,
conforme notou Marx: “Daí a afluência de pessoas para a tecelagem de algodão, até que, na
264
Inglaterra, os 800 mil tecelões gerados pela jenny, throstle e mule foram, afinal, novamente
liquidados pelo tear a vapor.” (p. 56).).
Neste processo pode-se observar claramente como a técnica se coloca à frente da
ciência, na medida em que o próprio desenvolvimento do sistema de máquinas apresenta
problemas essencialmente práticos. O germe da automação, a revolução dos mecanismos de
transmissão e controle, também foi criado nos primórdios da Revolução Industrial, mas sua
conversão a polo dinâmico deste processo se dá muito depois, levando à terceira fase da
Revolução Industrial. A necessidade de se movimentar colossais quantidades de matéria, além
da capacidade da força física dos seres humanos e dos animais, levou ao desenvolvimento dos
motores, nesta fase ainda muito identificados com a máquina a vapor:

Só depois que as ferramentas se transformaram de ferramentas manuais em


ferramentas de um aparelho mecânico, a máquina-motriz adquiriu forma autônoma,
totalmente emancipada dos limites da força humana. Com isso, a máquina-
ferramenta que examinamos até agora se reduz a simples elemento da produção
mecanizada. Uma máquina motriz podia agora mover, ao mesmo tempo, muitas
máquinas de trabalho. Com o número das máquinas de trabalho movidas
simultaneamente, cresce a máquina-motriz e a expansão do mecanismo de
transmissão transforma-o num aparelho de grandes proporções (MARX, 1988, Livro
1, v. 2, pp. 9-10)

Desta forma se comprova a observação de Marx, de que as inovações na fiação e


na tecelagem tiveram o papel de força primordial nesta primeira fase, mas seu alcance teria
sido limitado, não fosse por avanços paralelos nas outras partes do sistema de máquinas,
principalmente na utilização do vapor. A transformação nesta parte da maquinaria se tornará o
centro dinâmico do desenvolvimento na próxima fase.

3.4 A segunda fase, um motor para chegar a todo o mundo

A Lei da Produtividade crescente conferiu ao capitalismo um dinamismo que


levou a Europa a controlar os mercados mundiais, como afirma Marx no Manifesto
Comunista: “A indústria moderna estabeleceu o mercado mundial, para o qual a descoberta da
América preparou terreno. Esse mercado deu um imenso desenvolvimento ao comércio, à
navegação e à comunicação por terra.” (MARX, 2010i, p. 485) As transformações são menos
265
locais e o mundo todo sente os efeitos da Revolução Industrial:

A Inglaterra começou por privar os algodões indianos do mercado europeu;


introduziu depois o fio no Indostão e, no fim, inundou de algodões a própria terra
natal do algodão. […] O vapor e a ciência britânicos destruíram, em toda a
superfície do Indostão, a união entre a agricultura e a indústria manufatureira (Marx,
2010j, p. 128).

Ter sido a primeira nação a adotar essas tecnologias permitiu a Inglaterra uma
grande sobreacumulação através da troca desigual com outras nações, já que o valor praticado
dos tecidos comercializados no mercado mundial estava relacionado com o nível de
produtividade anterior à manufatura. Um exemplo deste fenômeno foi o Tratado de Methuen,
também conhecido como Tratado de Panos e Vinhos, que vigorou entre 1703 e 1836, e que
contribui efetivamente para o declínio do império português e a ascensão do britânico.
O estabelecimento de um sistema verdadeiramente global, coloca novos
problemas para a humanidade que ensejam o surgimento de novos paradigmas científicos.
Segundo SANTOS:

as fontes de energia e os objetos de trabalho sofrem transformações muito


significativas para poder ajustar-se às novas máquinas e se dá um movimento
internacional do capital para controlar as fontes de energia e as matérias-primas
[que] […] por sua vez podem ser transportadas a grandes distâncias devido ao
desenvolvimento dos transportes e das comunicações intra e interoceânicas nas
últimas décadas do século XIX. […] Surgem novas linhas de produção e se
desenvolvem novos campos de conhecimento. (1983, p. 21).

A partir do mesmo critério utilizado para definir a primeira fase da Revolução


Industrial, como aquela na qual o maior dinamismo do processo de desenvolvimento
tecnológico residiu na máquina-ferramenta, neste segundo momento, esse polo se transfere
para o desenvolvimento da máquina motriz. Se no período anterior a força do vapor era
utilizada de forma limitada para drenar minas e pântanos, e para mover algumas máquinas,
como teares, neste segundo momento ela passa a ser empregada em diversas aplicações, como
nos transportes. Contudo, rapidamente o vapor se torna insuficiente para movimentar a
imensa massa de matéria na qual se expressa o capital fixo acumulado e cede seu lugar ao
óleo combustível, levando ao surgimento da indústria petroquímica com o primeiro campo de
exploração na Escócia em 1848.
No final do século XIX surge também a produção e utilização da eletricidade,
após milhares de anos desta força intrigar a humanidade e de pelo menos 300 anos sendo
266
manipulada por mágicos como meio de entretenimento de plateias. A eletrificação, não
representa apenas, através do gerador elétrico, um salto do desenvolvimento da máquina
motor durante o século XIX, mas também, com o telégrafo, cria as bases para uma integração
instantânea do mundo, através da troca de mensagens, o que também aponta para a fase
seguinte, a revolução nos meios de transmissão e controle, base da Revolução Científico-
Técnica.
Esse ciclo de transformações na produção de energia culminou, já em meados do
século XX, com a manipulação do átomo e a liberação da energia contida em seu interior, que
não foi apenas utilizada na fabricação das armas nucleares, propósito para o qual foi
desenvolvida pelos estadunidenses, mas também resultou na fissão nuclear para a produção de
energia elétrica, inaugurada pela União Soviética, na Usina Nuclear de Obninsk. Apesar da
descoberta da manipulação da energia atômica poder ser considerada a culminação desta
segunda fase, ela ocorre já num período sobreposto com início da próxima fase. Afirmar que
uma das três partes da maquinaria concentrou o dinamismo do desenvolvimento não significa
que as outras partes permaneceram estáticas.
Durante esta segunda fase ocorre um novo salto na metalurgia com o
aprimoramento da produção do ferro, que passou a exigir cada vez menos carvão, e, mais
destacadamente, com o processo de Bessemer, o primeiro de produção em massa de aço, a
baixo custo. A junção do aço e do vapor permitiu o surgimento de embarcações com
propulsão por hélice, como o Grã-Bretanha, primeiro grande navio moderno, lançado em
1843. Também da junção do vapor e do aço surgiram as locomotivas, que levaram à expansão
das ferrovias. Em 1850, a Inglaterra já contava com uma malha ferroviária de 11.000 km, e os
Estados Unidos, país de dimensões continentais com 14.000 km, interligando pela primeira
vez o leste e o oeste desta nação. Em suma, neste período, o sistema fabril capitalista que
havia nascido no nordeste da Inglaterra se espalha para outras regiões, e, sempre ávido por
mais valia, integra todo o mundo em um único mercado. É neste momento que a França, a
Alemanha e os Estados Unidos realizam sua industrialização e emergem como fortes
competidores dos britânicos (HENDRICKSON, 2014) (MCNEIL, 2000).
Nesta dialética entre técnica e ciência, o movimento material no qual reside a
infraestrutura somente pode ser aprendido em sua totalidade quando integrado ao movimento
dos conceitos na cabeça dos homens, para a ciência, algumas tecnologias tiveram um papel
destacado. A industrialização da fabricação do papel, a partir de 1840, foi fundamental na
267
popularização não apenas do saber científico, mas da difusão das notícias sobre o mundo,
incidindo também sobre a educação. As publicações que até então eram caras e circulavam de
forma compartilhada por um pequeno número de pessoas passaram a ter um maior alcance,
com a publicação de jornais que eram vendidos por centavos. A fotografia, que se popularizou
no final do século XIX, também cumpriu um importante papel tanto no protocolo, quanto na
divulgação científica.

3.4.1 Novos paradigmas científicos

No século XIX ocorre uma ruptura com a visão aristotélica de se conhecer o


mundo, a história natural, que se ocupava até então de colecionar, classificar e exibir a
diversidade do mundo. Neste período a filosofia da ciência é impelida a um salto, de forma a
acompanhar o grande desenvolvimento técnico dos anos anteriores. Mas além disso, a ciência
passa a ter um caráter global, universal, deve dar conta de explicar qualquer fenômeno em
qualquer parte do globo terrestre.
Nesta época rupturas epistemológicas destruíram a credibilidade de antigas
tradições como a Astrologia e a Alquimia. Em seu lugar sugiram as modernas disciplinas
científicas da Química e da Astronomia. Elas representam uma nova postura com relação à
transformação e ao processo. Tome-se o caso da Geologia, uma nova disciplina, que não se
limitou apenas a traçar mapas e identificar jazidas para um império capitalista ávido por
carvão e outras matérias-primas, mas também inaugurou os estudos sobre a formação do
planeta, se preocupou em calcular sua idade, única forma de entender os processos que
levaram este ou aquele mineral a se depositar em dada região, de forma análoga à passagem
da mera descrição dos movimentos por Galileu (cinemática) para uma explicação das forças
mecânicas causais (dinâmica) por Newton no século XVII. Tratava-se de penetrar
analiticamente nas causas do movimento, a partir das descrições feitas. Não é difícil traçar um
paralelo entre a revolução burguesa e a aceitação dos paradigmas de transformação e
mudança, como o fazem:

No final do século dezoito e dezenove, a ideologia de mudança, central às


268
revoluções burguesas e à sublevação social necessária ao crescimento do
capitalismo, foi facilmente transferida ao mundo natural. Herbert Spencer declarou
que a mudança era uma “necessidade benéfica”, e ainda que [o poeta] Tennyson
tenha se sentido triste, ele escutou a natureza gritar, “Eu não me importo com nada,
tudo deve perecer (…) (LEVINS e LEWONTIN, 2007, p. 13).

Segundo Bensaïd, em meados do século XIX, as ciências passavam por um


momento histórico de efervescência e transformação, no qual o paradigma newtoniano estava
sendo minado. Como evidência desse processo, cita três inovações “simultâneas, mas
logicamente heterogêneas” (p. 401): a teoria darwiniana da evolução, os princípios de
conservação e degradação da energia, e a crítica marxiana da economia política.
Jim Secord, professor de História e Filosofia da Ciência da Universidade de
Cambridge, que dirige o trabalho em curso de edição da correspondência de Darwin, em uma
conferência ministrada em 2009, relembra o caráter global que significava ser um naturalista
neste período de apoteose do capitalismo gentry, sob o qual o império britânico foi fundado.
Analisando sua correspondência ele nota: “Em um dia típico ele [Darwin] poderia receber
uma carta de um missionário na África, de uma pessoa que trabalhava em um jardim botânico
de Calcutá, […] informações de um médico que trabalhava no meio-oeste dos Estados
Unidos.” (SECORD, 2009, tradução nossa) Reside aí um exemplo das diversas mediações que
implicam a compreensão da Segunda Fase da Revolução Industrial como uma resposta às
necessidades da expansão do capitalismo pelo globo. Cabe recordar que o Beagle, navio no
qual Darwin fez sua famosa viagem, muito antes de formular sua teoria, era um navio
imperial enviado para realizar serviços da marinha britânica, entre os anos de 1831 e 1836, e
sua passagem pela América do Sul esteve ligada à abertura dos portos nesses países, o que
despertou os interesses ingleses.
O paradigma que estava sendo abalado era o correspondente às ciências positivas,
suas “certezas factuais” agora cediam espaço para as “ciências da transformação” (p. 401).
Segundo Bensaïd, “Nas teorias clássicas do equilíbrio, o sistema tende a encontrar sua
estabilidade dinâmica pela resolução das perturbações. Na lógica do desequilíbrio,
estabilidade dinâmica e instabilidade estrutural são compatíveis.” (p. 402). É neste contexto
que surge o marxismo, que segundo Lênin “é o sucessor legítimo do que de melhor criou a
humanidade no século XIX: a filosofia alemã, a economia política inglesa e o socialismo
francês.”. O revolucionário russo afirma:
269
A história da filosofia e a história da ciência social ensinam com toda a clareza que
no marxismo não há nada que se assemelhe ao “sectarismo”, no sentido de uma
doutrina fechada em si mesma, petrificada, surgida à margem da estrada real do
desenvolvimento da civilização mundial (LÊNIN, 1985c, p. 23).

A dialética de Hegel, seu método revolucionário, foi o ponto de partida a partir do


qual Marx começou a pensar sistematicamente o mundo, no caderno de anotações para sua
tese de doutorado, ele afirma: “Como Prometeu, tendo roubado o fogo dos céus começou a
construir casas […] O mesmo agora com a filosofia de Hegel.” (MARX, 2010g, p. 491).
Contudo, sem deixar de reconhecer a profunda influência que Hegel teve em sua formação,
Marx desenvolveu sua dialética como sendo não apenas diferente da de Hegel, mas seu oposto
direto. Não se tratava agora do movimento de realização do absolute Geist através da história,
na lógica da tríade abstrato – negação – concreto, presente na fenomenologia do espírito de
Hegel, mas de inverter este método. Somente esta inversão, que dá origem ao materialismo
dialético é capaz de reunificar a história do homem e a história da natureza.
Para Bensaïd, Marx propõe, em sua concepção, que o ser humano é sobretudo um
ser vivo natural, considerando inclusive que o trabalho científico de Marx se inscrevia numa
tentativa de unir as ciências sociais e naturais, e conclui “A fórmula do Capital, ao considerar
o trabalho o pai das riquezas materiais e a natureza sua mãe, não é portanto lançada ao acaso:
ela se inscreve numa estrita continuidade.” (p. 434). O autor chega, inclusive a afirmar que as
“antinomias filosóficas clássicas (entre materialismo e idealismo, entre natureza e história
resolvem-se nesse monismo radical [de Marx]” (p. 436). Na Ideologia Alemã, Marx havia
exposto da seguinte forma a indissociabilidade entre o ser humano e a natureza:

A história pode ser considerada de dois lados, dividida em história da natureza e


história dos homens. No entanto, estes dois aspectos não se podem separar; enquanto
existirem homens, a história da natureza e a história dos homens condicionam-se
mutuamente. A história da natureza, a chamada ciência da natureza, não é a que aqui
nos interessa; na história dos homens, porém, teremos de entrar, visto que quase toda
a ideologia se reduz ou a uma concepção deturpada desta história ou a uma completa
abstração dela. A ideologia é, ela mesma, apenas um dos aspectos desta história
(MARX, 2010k, pp. 28-29).

Como Engels, três décadas depois, escreveu no trabalho Sobre a Dialética: “Está
se tornando igualmente imperativo realizar a correta conexão entre as esferas individuais do
conhecimento. Ao fazê-lo, contudo, a ciência natural ingressa em um novo campo da teoria e
aqui os métodos do empiricismo não funcionarão”. Ele continua mais adiante:
270
A dialética constitui a mais importante forma de pensamento na ciência natural dos
dias de hoje, já que apenas ela oferece uma analogia para, e assim o método de
explicação, do processo evolucionário que ocorre na natureza, as interconexões em
geral, e as transições de um campo de investigação para outro (ENGELS, 2010C, p.
339).

A visão dialética de Marx e Engels os afastam igualmente da visão positivista e do


reducionismo cartesiano, ainda que uma visão caricatural da obra dos dois seja apresentada
pelos seus críticos burgueses. O próprio Engels realiza uma advertência contra esta
deturpação, em um trecho de uma carta de 1890 para Joseph Bloch:

De acordo com a concepção materialista da história, o elemento determinante final


na história é a produção e reprodução da vida real. Mais do que isso, nem eu e nem
Marx jamais afirmamos. Assim, se alguém distorce isto afirmando que o fator
econômico é o único determinante, ele transforma esta proposição em algo abstrato,
sem sentido e em uma frase vazia. As condições econômicas são a infraestrutura, a
base, mas vários outros vetores da superestrutura […] também exercitam sua
influência no curso das lutas históricas e, em muitos casos, preponderam na
determinação de sua forma. Há uma interação entre todos estes vetores entre os
quais há um sem número de acidentes […], mas […] o movimento econômico se
assenta finalmente como necessário. Do contrário, a aplicação da teoria a qualquer
período da história que seja selecionado seria mais fácil do que uma simples
equação de primeiro grau (ENGELS, 2010D, p. 34).

Assim que a burguesia consolidou seu domínio político sobre o mundo, relegando
a nobreza, privada de suas terras, a uma mera posição decorativa, ela rapidamente assume
uma visão conservadora, de manutenção do status quo, que trespassa para a sua ciência.
Negando a dialética, a ciência burguesa não conseguiu captar a essência do movimento.
Durante a terceira fase da Revolução Industrial, os novos problemas oriundos da sempre
crescente complexidade da relação entre o homem e a natureza, aprofundaram a crise de
paradigmas que atinge em cheio a ciência burguesa, cativa do capital.

3.5 A terceira fase, a Revolução Científico-Técnica e o autômato

A partir do desenvolvimento dos sistemas de informação, a terceira fase da


Revolução Industrial, que se desenvolveu a partir do final da Segunda Guerra Mundial,
também chamada de Revolução Científico-Técnica, e que segue em curso, tem como seu polo
dinâmico os mecanismos de transmissão e controle, sua forma mais condensada de
271
desenvolvimento pode ser localizada em duas tecnologias interligadas, a automação industrial
e a rede de computadores. O grande impulso no desenvolvimento dessas máquinas ocorre já
sob a sombra da crise orgânica do capital, mas, a primeira arma que ela municia ao capital, a
automação, que se traduz num aumento de produtividade sem paralelo representa também a
incidência do limite absoluto da relação capital, que se nega, ao tornar impossível a
possibilidade de se mensurar o valor da ciência, como força produtiva, pelo tempo de
trabalho, como Marx afirma nas Teorias sobre a mais-valia:

O produto do trabalho intelectual – a ciência – é sempre muito inferior a seu valor,


porque o tempo de trabalho necessário para sua reprodução não guarda proporção
alguma com o [trabalho] exigido para sua criação original. Por exemplo, qualquer
jovem no colégio pode aprender em uma hora a teoria dos binômios (MARX, 1980,
V. 1, p. 327, tradução nossa).

Uma contradição desta fase de decomposição do sistema capitalista, na qual o


desenvolvimento das forças produtivas é restringido pela crise do valor, pode ser constatada
quando se observa que um operário de uma indústria de composição orgânica média, carrega
em seu bolso um smartfone que incorpora mais tecnologia do que as máquinas na qual ele
trabalha para seu sustento. A única explicação possível para tal fenômeno é a ação dos
grandes monopólios que buscam desesperadamente retardar a adoção da automação, em uma
tentativa de prolongar a vigência da lei do valor. Contudo, não conseguem reter esse
movimento, dada a impossibilidade de um único monopólio dominar todo o mercado
mundial, mas também, de forma cada vez mais acentuada, pela emergência da China, que se
converteu nas últimas décadas na fábrica do mundo, investindo maciçamente em automação,
o que renova a competição entre os sistemas.
Um exame mais detalhado, que não é escopo deste trabalho, é necessário sobre a
segunda grande transformação desta fase, a rede de computadores, que não exerce o papel que
alguns dos autores analisados anteriormente enxergam nela, de concretização do intelecto
geral dos Grundrisse. Neste momento, basta registrar que a mesma, como novo ramo da
indústria cultural, sem se restringir a isso, também atua como uma eficiente maneira de
controle subjetivo das massas, não constituindo o espaço de comunalidade e de liberdade que
seus apologetas identificam, o que não significa negar as profundas transformações operadas,
mas reafirmar a proposição dos núcleos pedagógicos estratégicos, necessários para se ir além
do véu de misticismo com o qual o sistema encobre a real natureza destes fenômenos.
272
3.5.1 A invenção do computador, base da moderna automação

Apesar de ter vivido durante a primeira fase da Revolução Industrial, da qual


participou ativamente, este é o momento de situarmos um dos pioneiros da automação,
Joseph-Marie Jacquard, que em 1801, desenvolveu um tear no qual o padrão do tecido era
controlado por cartões perfurados. Apesar do mito criado em torno de seu nome, como herói
da República Francesa, baseado na figura do inventor como um gênio isolado, ele se apoiou
no trabalho anterior de outros, principalmente no tear automático de Vaucanson, que havia
ficado famoso por construir brinquedos autômatos, como o Tocador de Flauta, uma figura em
tamanho real que tocava um repertório de 12 músicas utilizando um tamborim e uma flauta.
Jacquard nasceu em Lyon, em 1752, que, de entreposto comercial com a Itália, se
tornou um dos centros manufatureiros mais ricos do mundo, concentrando alguns dos
melhores artesãos da Europa, que produziam brocados de seda, e enriqueciam os aristocratas e
banqueiros que lá viviam. Estima-se que naquele momento cerca de um terço dos habitantes
da cidade trabalhassem para a indústria manufatureira têxtil e que havia 14.000 teares em
funcionamento. A demanda por esses tecidos era imensa, mas o processo de produção era
muito vagaroso, já que demandava intensiva mão de obra: duas pessoas trabalhando o dia
inteiro produziam apenas alguns poucos centímetros do valioso tecido.
Na virada do século XVIII para o XIX, quando foi criado, o tear patenteado por
Jacquard era o mecanismo mais complexo já produzido pela humanidade. Seu trabalho, de
cunho absolutamente prático, foi uma primeira demonstração do poder dos sistemas de
informação; era capaz de produzir qualquer padrão através do uso de cartões perfurados. Estes
comandavam o levantamento dos pentes correspondentes, tornando possível que qualquer
desenho fosse decomposto e codificado em um código binário, através do qual tornou-se
possível codificar a informação de qualquer figura imaginável.
Esta primeira aparição da automação no processo industrial intensificou ainda
mais a contradição decorrente da substituição do homem pela máquina e o agravamento da
luta de classes. Desde o início, os tecelões resistiram à implantação do tear, tendo obtido,
através da pressão, a proibição de sua implantação durante certo tempo. O primeiro protótipo
foi destruído na praça de Bellecour, sob os aplausos da multidão, porém Jacquard reconstruiu
seu protótipo em Paris. Após uma visita do imperador Napoleão e da imperatriz Josefina à
273
Lyon, ambos ficaram impressionados com a máquina, considerando-a uma importante arma
na competição com os britânicos. O imperador tornou a patente do tear pública, e em troca
Jacquard recebeu uma pensão de 3 mil francos, além de 50 francos por tear comprado e usado
entre 1805 e 1811. Isso garantiu sua implantação em larga escala em Lyon, o que causou
sérios efeitos negativos sobre as condições de vida dos tecelões, que trabalhavam em seus
domicílios. Os teares de Jacquard forçaram os artesãos a realizarem custosas reformas em
suas casas, que passaram a ter um piso reforçado, e um pé-direito alto para abrigar as
máquinas de grandes dimensões, o que tornou costumaz as famílias dos tecelões se abrigarem
em um mezanino, em cima das máquinas, enquanto que os aprendizes muitas vezes dormiam
em armários (MCNEIL, 1990).
Anos depois, em 1831, os canuts, como eram conhecidos os tecelões, se revoltam
sob o lema “Viver trabalhando livremente, ou morrer lutando”, no que é considerado um dos
primeiros levantes de trabalhadores contra o capital. Eles expressaram seu ressentimento
contra as máquinas ameaçando jogar Jacquard no rio Reno, o que o obrigou a fugir e se
esconder até que sangrentas batalhas restaurassem a ordem na cidade. A luta desses pioneiros
inspirou a composição de uma canção em 1894 que até hoje ecoa a revolta dos trabalhadores
contra o capital:

Para governar é preciso ter // Mantos ou condecorações em brasões // Nós tecemos


para vós, grandes da terra, // E nós, pobres operários, sem lençol onde nos enterrar //
Somos os operários // Nós estamos nus.// Porém, quando chegar o nosso reino //
Quando o vosso reino terminar // Então nós teceremos a mortalha do velho mundo //
Porque já se percebe a revolta que troa // Somos nós os operários // Não estaremos
mais nus (HOBSBAWM, 1997, p. 221).

A diferença do tear de Jacquard dos outros teares mecânicos e das máquinas de


fiar como a spinning mule, era justamente o fato de ser programável, ou seja, os padrões que
ele era capaz de tecer não eram determinados na sua construção. Este princípio, materializado
nos cartões perfurados, inicialmente restrito a teares e a instrumentos musicais, tendo sido
também estudado por Babbage, foi adotado no final do século XIX, pela IBM, que na época
se chamava CTR, tornando-se uma das mídias mais utilizadas na primeira metade do século
XX, sendo empregada por recenseadores, pelo setor financeiro, e também pelos
administradores do campo de concentração de Dachau, mantido pelos nazistas na cidade
homônima da Baviera.
274
3.5.2 A crise de 29 e a Segunda Guerra Mundial

Os conflitos bélicos desempenham o papel de uma das mais eficazes


contratendências ao colapso do capitalismo. A destruição de nações inteiras e a dizimação de
grandes parcelas da população de uma região faz com que o valor do capital acumulado
retorne a patamares ultrapassados há anos, ou até décadas, dependendo da escala do conflito,
o que permite um novo ciclo de acumulação e expansão.
A crise de 1929 foi a primeira manifestação histórica do caráter orgânico da crise
do capital, demonstrando que as medidas de contratendência que vinham sendo utilizadas
durante o século XIX eram limitadas e efêmeras. Após a eclosão da crise, a recessão causada
pela superacumulação de capital durou mais de uma década. Por meio de um gráfico criado
utilizando os dados do projeto Maddison, para a série do PIB mundial, entre 1919 e 1950,
pode-se observar que em 1938 o PIB dos Estados Unidos ainda se encontrava no mesmo
patamar do período pré-crise, de 1928, mesmo após uma década de fortes medidas anticíclicas
(paradigma keynesiano) tomadas pelo presidente Franklin Roosevelt, como subsídios a alguns
setores, investimento público maciço em obras, destruição de estoques de produtos agrícolas
para garantir um preço mínimo e controles sobre os preços e a produção, entre outras, que
ficaram conhecidas como New Deal.
Neste contexto, a disputa interimperialista e intersistemas (capitalismo vs
socialismo), acirradas com o ascenso do nazifascismo, leva à eclosão da Segunda Guerra
mundial, o maior conflito militar da história da humanidade, que envolveu, direta, ou
indiretamente, a maioria das nações do mundo. A guera custou a vida de dezenas de milhões
de pessoas e, apesar da intensificação do trabalho que representou o esforço de guerra, ela
destruiu uma enorme massa de valor, levando o PIB das 30 nações que conformam a Europa
Ocidental a cair 21,47% entre 1939 e 1946 (segundo a série de Maddison), sem levar em
consideração o que ele deveria ter crescido nestes anos, não fosse o conflito. Além da Europa
Ocidental, berço do sistema capitalista, a destruição de capital fixo (infraestrutura e
indústrias) e capital variável (força de trabalho), ocorreu também em outras regiões do globo,
mais destacadamente na União Soviética, país que enfrentou e derrotou o grosso do exército
hitlerista. Gigantescas metrópoles como Leningrado e Stalingrado foram reduzidas a
escombros, mas nunca conquistadas.
275
Figura 11: Evolução do PIB dos EUA e Europa Ocidental (1919-1950)

Fonte: The Maddison-Project, http://www.ggdc.net/maddison/maddison-project/home.htm, 2013

Grossmann já havia notado o erro conceitual de Luxemburgo, de assumir que a


relação primordial entre a guerra e a crise do capital residia no fato do militarismo ser mais
uma forma de realização de mais-valia, sendo em si uma esfera de acumulação. Ele mostrou
que as coisas podem parecer assim do ponto de vista de um dado capital individual, como o
de suprimentos para o exército. Mas do ponto de vista do capital total, o militarismo é uma
esfera de consumo improdutivo, em vez de serem guardados, os valores são pulverizados
(GROSSMANN, 2004). Os Estados Unidos que não sofreram ataques em seu território, salvo
algumas ilhas no Pacífico, e que passaram por um forte esforço de guerra, incorporando a mão
de obra feminina à produção, experimentaram um crescimento considerável do PIB durante a
guerra. Mas essa acumulação deve ser em parte relativizada pelo efeito de uma concentração
de capitais já existentes (centralização).
A utilização das armas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, em 1945, criou uma
nova situação no mundo, na qual a deterrência atômica impunha um limite para a escala que
poderiam assumir os conflitos bélicos que envolvessem as superpotências, dando origem à
Guerra Fria. Isso não quer dizer que a guerra tenha deixado de ser uma importante medida
anticíclica. Pelo contrário, o seguinte gráfico do relatório anual referente ao ano de 2014, do
Instituto Heidelberg para Pesquisa Internacional de Conflitos, uma associação independente e
interdisciplinar sediada no Departamento de Ciências Políticas da Universidade de
Heidelberg, pode ilustrar o crescimento dos conflitos militares pelo mundo, do final da
segunda guerra aos dias atuais.
A situação de dualidade de poder, originada da divisão do mundo, após a Segunda
276
Guerra, entre o campo capitalista e os socialistas, fez com que o número de conflitos de baixa
e média intensidade crescesse muito mais rapidamente que os de grande intensidade, que
poderiam desembocar em uma guerra nuclear. Na elaboração deste relatório anual são
consideradas 5 variáveis: tipo de armamento empregado, pessoas envolvidas, baixas,
refugiados e deslocados, e grau de destruição. Entre os 46 conflitos de alta intensidade, em
2014, foram contabilizadas 21 guerras e 25 guerras limitadas.

Figura 12: Conflitos Globais (1945-2014)

Fonte: Institute for International Conflict Research at the Department of


Political Science at the University of Heidelberg, Conflict Barometer, 2014

Outro fator que acompanha todas as crises e as guerras em particular é o aumento


na taxa de inovações tecnológicas, decorrentes do esforço de guerra, da mobilização nacional,
da necessidade de substituição de matérias-primas que leva ao desenvolvimento de novas
armas e de novos materiais, como a borracha sintética durante a Segunda Guerra. Uma das
invenções mais impactantes deste conflito, foi o controle da fissão nuclear, através do
bilionário Projeto Manhattan, em 1944, que empregou cerca de 129.000 trabalhadores,
principalmente operários envolvidos na construção das fábricas de materiais físseis e campos
de testes, mas também diversos físicos renomados como Niels Bohr, Enrico Fermi, Richard
277
Feynman e Robert Oppenheimer, este último dirigia o Laboratório Nacional de Los Alamos
(Jones, 1985). Contudo, esse desenvolvimento pode ser melhor entendido como a culminação
da fase anterior, de transformação das fontes de energia. Os cientistas que trabalhavam no
projeto tinham à sua disposição apenas calculadoras analógicas, que eram incapazes de
realizar simulações mais complexas. A palavra “computador” designava ainda uma profissão,
normalmente mulheres com graduação em matemática, que eram recrutadas para resolver as
complicadas equações que descrevem os processos no interior do átomo.
Outro setor que sofre um grande impulso neste período, e a partir do qual
podemos entender as transformações técnicas de toda esta terceira fase, foi a eletrônica;
instrumentos como radares e sonares, que já haviam sido inventados nas décadas anteriores,
foram difundidos entre todas as potências militares. Atribui-se à batalha entre criptógrafos e
criptoanalisas um papel destacado na inovação dos computadores. Os alemães construíam
desde a década de 20 as máquinas eletromecânicas ENIGMA, que permitiam encriptar uma
mensagem de forma a transmiti-la com segurança por canais abertos, como transmissões de
rádio. Elas já haviam sido fornecidas, antes de 1939, para uso militar pelos italianos e pelos
franquistas durante a Guerra Civil Espanhola. Outras máquinas mais avançadas foram
produzidas durante a Segunda Guerra como o Lorenz SZ 40/42. A corrida para decifrar esses
códigos levou os ingleses a produzirem o Colossus, considerado por alguns o primeiro
computador eletrônico programável, em 1943. Na verdade o alemão Konrad Zuse, recebendo
financiamento do governo nazista, já havia construído um computador funcional em 1941, o
Z3, utilizado na indústria aeronáutica, mas seu financiamento foi depois cortado porque os
alemães não reconheceram essa tecnológica como importante em tempos de guerra. Um ano
após o fim da guerra, em 1946, os estadunidenses completaram a criação do ENIAC, o
primeiro computador que pode ser considerado uma máquina universal, ainda que seu
propósito se limitasse a calcular equações diferenciais, como as utilizadas no campo da
balística.
A história do desenvolvimento dos computadores é uma demonstração de como
diferentes ideias e inovações podem ser articuladas mesmo com séculos de distância entre elas
e que nem toda invenção resulta imediatamente em uma inovação, e que sua difusão,
revelando seu potencial, pode ocorrer muito tempo depois de seu primeiro uso. Um exemplo é
o caso de Jacquard, que realizou uma contribuição prática e da subsequente teorização sobre
as máquinas analíticas e algoritmos por Charles Babbage e Ada Lovelace, contribuições
278
realizadas ainda no século XIX. Nos anos 30 do século XX, Turing formalizou teoricamente o
conceito que ficou conhecido como Máquina de Turing, base teórica de todos os
computadores existentes. Essa descrição implicou a resolução do problema de decisão,
Entscheidungsproblem, proposto por David Hilbert como um desafio em 1928.
Desde a invenção dos computadores, o poder dos sistemas de informação
transcendeu a esfera militar e operou uma transformação profunda no processo produtivo, ao
concluir a cisão, pelo menos em potencial, do operário manual com o controle do processo
produtivo na fábrica, tornando o trabalho científico determinante ao ser a fonte da tecnologia
que é incorporada na máquina.

3.5.3 A Revolução Científico-Técnica por Theotonio dos Santos

A terceira fase da Revolução Industrial, desenvolvida nesta pesquisa, considera


como uma das referências contemporâneas principais os trabalhos de Santos, Revolução
Científico-Técnica e Capitalismo Contemporâneo e Revolução Científico-Técnica e
Acumulação de Capital (1983 e 1987). Sua relevância é inquestionável por continuar as ideias
de Marx sobre a Revolução Industrial identificando a terceira fase desta pelo conceito de
Revolução Científico-Técnica de Radovan Richta, momento em que se forma a base material
para o comunismo e de paroxismo do duplo papel da ciência, de subordinação e rebeldia, no
processo de produção capitalista, devido à sua tendência do emprego crescente de capital fixo
integrado ao uso dos computadores, potencializando o intelecto geral na corrosão do
paradigma de mensuração do valor como havia teorizado Marx nos Grundrisse.

3.5.3.1 Revolução Científico-Técnica e Capitalismo Contemporâneo

Santos (1983) faz uma análise histórica da continuidade e ruptura da revolução


industrial e científico-técnica como auge da substituição do homem pela máquina, inclusive
no trabalho mais subjetivo (automação e computadores); mostra como a ciência sai da
279
marginalidade e vira atividade que chega a modificar o ciclo do capital:

não é mais um resultado de avanços pragmáticos e empíricos na maneira de


produzir. A ciência assumiu o papel de dirigente do desenvolvimento tecnológico os
ramos de produção se convertem em campos de atividades criados e controlados por
ela. A ciência se converte em uma força produtiva direta (1983, p. 9).

Este processo só é possível com forte intervenção do estado, o autor também nota
que a URSS teve influência sobre o desenvolvimento do próprio capital: seja por estimular o
desenvolvimento da tecnologia (majoritariamente militar), seja por estimular pesquisa,
descoberta e criação de soluções econômicas mais integrais (p. 13).
Segundo o autor, Buckingham, elenca os quatro princípios da automação:
mecanização, retroalimentação, processo contínuo e racionalização. Enquanto que E. R. F. W.
Grossman, da Universidade de Oxford, define a automação como a substituição do cérebro
humano por máquinas de processamento de informação, o que também pode ser chamado de
cibernética. Ele observa o desenvolvimento da indústria dos computadores e da informação,
destacando que o custo da unidade de processamento de informação foi se reduzindo
sucessivamente por conta de inovações no computador (pp. 31-33, 36).
O autor identifica que seus contemporâneos ainda debatem sobre o significado
dessas transformações: uma nova fase da revolução industrial, ou se as mudanças decorrentes
do papel revolucionário da ciência significa considerarmos a inauguração de uma nova “era”,
como defendia Radovan Richta, que desenvolveu a concepção teórica de Revolução
Científico-Técnica, nos anos 60, na Checoslováquia. Para este autor, a separação do homem
do processo direto de produção caracteriza mudanças radicais que, segundo ele, vão além da
revolução industrial ao “potencializar uma estrutura de dinâmicas novas das forças produtivas
e da vida do homem”. Segundo esta definição, os instrumentos de trabalho viram complexos
autônomos de produção, os objetos de trabalho não são mais matérias-primas naturais, sofrem
transformações químicas e os computadores começam a assumir parte do trabalho subjetivo
que antes era só do homem; a ciência se converte em força produtiva (pp. 47 – 48).
A Revolução Científico-Técnica afeta os fatores do processo de trabalho
identificados pelo Capital, de Marx: o grau de desenvolvimento da ciência; a destreza dos
trabalhadores; formas sociais de produção; qualidade das formas de produção. Com isso ele
questiona se o capitalismo desenvolvido pode absorver todas as potencialidades da Revolução
Científico-Técnica e levá-las “às suas últimas consequências” (pp. 51 e 52).
280
O autor então passa a analisar a ciência como investimento. Explica como o
aumento na composição orgânica do capital implica redução de mais-valia no médio prazo. A
implementação de nova tecnologia será benéfica ao capitalista enquanto for sua
exclusividade, permitindo-o auferir mais-valia extraordinária, enquanto que a difusão da
tecnologia é benéfica ao consumidor, seja ele um indivíduo ou outro capitalista (p. 53).
Os efeitos da inovação tecnológica são apresentados a partir de vários ângulos. Do
ponto de vista da produção de valores, reduz o valor do capital constante; reduz o valor do
capital variável; diminui o valor final da mercadoria e altera a composição orgânica do capital
e reduz a taxa de mais-valia. Do ponto de vista do processo material de produção: aumenta a
produtividade do trabalho; cria novos produtos e ramos de produção; diminui o período de
rotação do capital; diminui a vida útil das máquinas; aumenta o domínio dos meios de
produção sobre o trabalhador. Do ponto de vista da produção de mercadorias, o capitalista
individual tem ganhos extras enquanto a inovação não estiver difundida; depois de difundida,
cai o preço unitário por mercadoria. Do ponto de vista do capitalista individual, a inovação é
uma força estabilizadora, pois o ganho extra é vantagem na concorrência; eventualmente, com
a difusão, cai a taxa de lucro; há uma desvalorização da capacidade instalada (pp. 55-58).
Assim, a acumulação do capital se torna dependente da inovação. Essa
dependência acirra a tendência ao monopólio do conhecimento tecnológico, e o
direcionamento da produção de conhecimento científico ao aumento da produtividade. Esse
domínio se vê acompanhado pelo apoio do estado para garanti-lo, além de reposicionar a
ciência como objeto central da formação cultural e da educação (pp. 59-60).
O papel da ciência na produção foi impulsionado após a Segunda Guerra Mundial,
a quantidade de cientistas e gastos com ciência cresceram como nunca visto. A atividade
científica vira parte essencial da acumulação. Os custos de P&D são parte do custo final do
produto e os laboratórios e centros de P&D vão para dentro das empresas. Aqueles vinculados
a pesquisas nacionais e internacionais são patrocinados pelo Estado e universidades. A
atividade científica é agora vista como um investimento que se incorpora ao capital constante
e ao variável; entra nos custos de produção (pp. 61-62).
Santos diferencia então a pesquisa básica, da pesquisa aplicada e do
desenvolvimento. A primeira destinada à “compreensão dos fenômenos naturais, humanos e
sociais” implica a formação e manutenção de cientistas improdutivos e de infraestrutura. Ela é
indicativa da riqueza de uma sociedade. Já a aplicada refere-se a um campo específico do
281
conhecimento, analisando a aplicação prática dos resultados da primeira. E finalmente o
desenvolvimento são os estudos que “buscam adaptar os produtos ou processos à produção e
ao mercado.” Enquanto que o estado assume os gastos com a pesquisa básica e a aplicada,
através das universidades, os laboratórios privados que contam com forte subvenção do
Estado dedicam-se quase que exclusivamente ao desenvolvimento (pp. 64,67-68).
A proporção de investimento entre o desenvolvimento e pesquisa aplicada no
capitalismo demonstra um “desperdício da capacidade intelectual”, principalmente quando
consideramos o caso do investimento militar. A mercadologia domina parte da pesquisa
científica; enquanto que nos países socialistas, a “concentração quase absoluta” favorece o
aperfeiçoamento e invenção de processos com ênfase na automação.
A chave da hegemonia tecnológica está na capacidade financeira de se realizar o
desenvolvimento final. Devido à redução no tempo entre pesquisa pura, invenção e inovação,
é cada vez mais importante para o capital controlar diretamente a produção de novos
conhecimentos. Aumenta a parte dos investimentos de capital em P&D e, portanto, o
financiamento estatal para melhorias nas empresas através do uso de isenção fiscal, de
espaços públicos para pesquisa privada e da garantia que os resultados da pesquisa se tornem
propriedade privada (pp. 70-74).
Após distinguir as duas grandes áreas do esquema de produção científica, a
ciência e a tecnologia, o autor passa a analisar a incorporação dos gastos com P&D no ciclo
do capital, ampliando o esquema original D-M-D de Marx, que se converte em:
CI ….. eI ____________
D–M |
CP …… M' – D – M' – CPI … MI – DI
No qual CI é o capital investido em tecnologia, que permite que um capital,
acumulado anteriormente, torne-se CPI, ou capital investido em um novo produto, tornado
possível por esta nova tecnologia. Este esquema permite entender os inúteis e anárquicos
gastos em concorrência em P&D, e o risco implícito nestas pesquisas (pp. 76-81).
Ele ilustra também como o investimento em P&D só gera lucro à medida que sua
implementação implica um barateamento do produto final (permite superlucro) ou ampliação
de mercado. Se o resultado não for implementado só serviu para aumentar o investimento. CI
se converte em custo de produção se for necessário para manter a competitividade. Há uma
contradição entre avanço de P&D e apropriação privada, pois o primeiro depende da
282
capacidade centralizadora do Estado.
Para a educação, esse processo implica não apenas a formação de mais cientistas,
como de mão de obra qualificada. O excedente econômico gerado possibilita um aumento nas
atividades de serviço. Cresce o investimento em educação, inclusive naquela que não está
voltada à produção.
Santos analisa o caráter exponencial do desenvolvimento científico, seu caráter
quantitativo. Essa ideia, de crescimento exponencial, está presente em Engels. O autor usa
alguns indicadores quantitativos para demonstrar esta relação, que depende de uma base
material: “os cientistas, as instituições e os meios de produção” (pp. 92-96). Mesmo com
dados incompletos, Santos afirma que é possível concluir que o desenvolvimento científico
será uma questão fundamental na luta por hegemonia, inclusive entre os países capitalistas e
socialistas. Ele então apresenta uma análise da distribuição da P&D nos setores da economia,
com os dados disponíveis na época para os países capitalistas mais avançados (pp. 97, 99-
130).

3.5.3.2 Revolução Científico-Técnica e Acumulação do Capital

Neste trabalho, o autor abordou de forma mais precisa a invenção, a inovação e a


difusão como fontes de crescimento econômico e sua relação com o capital monopólico.
A invenção é a criação de novo produto ou processo que não era óbvio. Uma
invenção pode não ser convertida numa realidade econômica, vai depender de vários
interesses. Os monopólios buscam controlar a etapa da invenção, pois sucessivas inovações
tecnológicas podem apresentar riscos ao criarem oportunidades para outras empresas entrarem
no ramo. Seu caráter revolucionário está limitado pela capacidade das empresas de retardar
sua introdução.
A inovação representa o passar da invenção de um novo produto para a sua
utilização comercial. Existe uma demora, de décadas em alguns casos, entre a invenção e a
inovação, determinada pelos cálculos dos custos econômicos. O autor considera gastos como
a publicidade um exemplo de falsas invenções.
Para a determinação do período da difusão de uma inovação, as relações entre as
283
empresas é fundamental. Grandes empresas aguardam o efeito de inovações de pequenas e
médias para adotar um novo produto ou processo. A difusão segue uma curva logarítmica em
S, primeiro um longo período de pequena adesão, em seguida um crescimento exponencial na
difusão para depois retornar a um período no qual a difusão volta a diminuir retornando a
curva para uma linha horizontal (pp. 11-26).
Por um lado, o capitalismo monopólico aumenta a capacidade do homem para
produzir conhecimento científico por concentrar recursos e meios de produção; por outro lado
ele utiliza essa capacidade de maneira fragmentada, anárquica e desperdiçadora. Também
orienta a P&D para caminhos que se chocam com os interesses das maiorias sociais e limita o
crescimento da economia, desviando a inovação para determinados setores como o militar, no
qual o estado atua assumindo os riscos. A competição internacional intercapitalista e com o
socialismo também rompe os efeitos dos monopólios no comércio internacional. A tese geral a
ser confirmada é que grande parte do crescimento econômico do pós-guerra se deveu à
introdução de novas tecnologias, à Revolução Científico Técnica (pp. 27-34).
A visão dos economistas burgueses é limitada porque separa capital e trabalho,
quando ambos são a mesma relação de produção. O pensamento econômico burguês em sua
versão neoclássica, keynesiana ou neokeynesiana mede o progresso técnico, a produtividade
como uma função de capital e trabalho, ou seja, P = f(K,L). Essa medição tem limitações,
pelas falsas suposições em que se baseiam, mas tem importância fundamental pois trata-se de
saber o grau do desenvolvimento tecnológico na composição orgânica do capital. A tendência
histórica de fazer o crescimento econômico depender cada vez mais do progresso da ciência
leva a uma revolução constante no processo educativo, na estrutura da mão de obra e na
organização da força de trabalho em vários sentidos: aumenta a parte da educação formal na
formação da força de trabalho; aumenta a força de trabalho dedicada às tarefas do
conhecimento; aumenta a parte do investimento global e de sua importância no crescimento
econômico. Tais mudanças se realizam fora das empresas e aumenta a participação do Estado,
o que leva a choques com o caráter privado da produção (pp. 42-51).
Do ponto de vista do crescimento econômico os estudos demonstram que os
investimentos em P&D proporcionam altas taxas de retorno diretos e indiretos. Nem sempre
os países que produzem P&D são os que obtém o maior crescimento por isso. Há casos em
que uma determinada máquina causa mais impacto no país que a importa do que no que a
desenvolveu e exportou. Os países que mais investem em P&D são os que tem as taxas de
284
crescimento mais baixas (pp. 51-56). Os estudos também demostram os efeitos sobre a
concentração tecnológica, o impacto sobre o sistema de produção e como a tendência à
concentração econômica, intrínseca à expansão das forças produtivas em geral e do
capitalismo monopólico em particular, fortalece o monopólio e debilita a dinâmica do
crescimento. A lei que rege o desenvolvimento é a maximização dos lucros e não o
desenvolvimento geral da sociedade (pp. 69-70).
Marx integrou o desenvolvimento da tecnologia nas leis de desenvolvimento do
capitalismo. A evolução das forças produtivas, através da manufatura, depois da indústria,
criando o operário coletivo é o que permitiu o desenvolvimento do sistema. Porém, o
desenvolvimento do operário coletivo é ao mesmo tempo a negação do capitalismo, pelo
aumento do caráter social da produção. A resposta que o capital dá é a concentração de mais
capital levando a violentas lutas intercapitalistas. Ocorre o aumento da composição técnica do
capital e da composição orgânica do capital, além de aumento da escala de produção (pp. 71-
80).
Santos analisa as formas de concentração: no nível das unidades produtivas –
fábricas, unidades de transporte, de armazenamento, de comercialização. Mas também a
concentração vertical da empresa. Neste último caso a unidade que concentra não é a
produtiva, mas uma concentração do centro de decisão econômico na empresa. O fenômeno
da concentração é sobretudo um fenômeno de poder (pp. 81-87).
Uma tabela apresentada com dados do Departamento de Comércio dos EUA
demonstra o crescimento da composição orgânica, entre 1964 e 1972, e sua disparidade nos
diferentes ramos da produção; os mais dinâmicos são os de maior concentração (pp. 101-104).
As mudanças tecnológicas levam às seguintes tendências: concentração da produção em
poucas empresas; taxas de produtividade mais altas; concentração dos lucros; aumento do
lucro enquanto cai porcentagem de capital pago em salários; diminuição das horas de trabalho
necessárias (pp. 104-108).
Em seguida, o autor aborda a relação entre a mudança tecnológica e excedente
econômico. A socialização da produção é fruto da tendência de aumento da concentração, da
monopolização, da internacionalização do capital e também de maior participação do Estado
(p. 121). Aplicando o conceito de Paul Baran, o excedente é visto como o que é produzido,
mas não necessário para a reprodução imediata da população, em uma formação social dada.
Esse excedente será consumido conforme sua apropriação. Uma parte será consumida
285
socialmente ou de forma privada, não produtiva, e outra produtiva. O que destaca o
capitalismo dos modos anteriores é o estímulo constante para o consumo produtivo do
excedente.
O conceito de excedente econômico não é o mesmo que a mais-valia. Ele é mais
abstrato e geral, enquanto que a mais-valia só faz sentido em uma relação capitalista. Para
entender a relação entre a Revolução Científico-Técnica e a formação, apropriação, utilização
e ampliação do excedente econômico, é necessário entender a relação trabalho necessário e
excedente (pp. 122-126). O aumento da produtividade do trabalho está no centro das
transformações capitalistas e se manifesta como aumento da riqueza social, de excedente
econômico de bens físicos, mas há uma tendência contraditória, pois crescem setores não
diretamente produtivos, como pesquisa e design, administração, transporte, comércio e
também o setor de serviços. Esses gastos não acrescentam valor à mercadoria, os capitalistas
do setor de serviços transferem para si parte da mais-valia extraída no setor produtivo como
parte do trabalho não remunerado. As contradições são aprofundadas. Crescem gastos com a
superestrutura (pp. 137-153).
O autor então analisa as tendências entre produtividade, excedente e investimento.
O excedente econômico disponível para novos investimentos é igual ao excedente econômico
total menos o com fins não produtivos (trabalhadores não diretamente produtivos, consumo
dos capitalistas, e despesas com estado). O desenvolvimento das forças produtivas, como
resultado do processo de acumulação, coloca novas etapas de contradições e estabelece um
limite histórico para a existência do capitalismo (pp. 153-161).
Vendo essas tendências em conjunto, percebe-se que no capitalismo o
desenvolvimento das forças produtivas leva ao empobrecimento das massas. Seu processo
produtivo incha com a produção de toda a superestrutura, o que tira a racionalidade da
produção. O sistema capitalista é incapaz de reduzir a jornada de trabalho. Cresce a mão de
obra desempregada. Aumenta a contradição entre as forças produtivas e as relações de
produção (pp. 162-170).
O autor analisa a Revolução Científico-Técnica no contexto da reprodução de
capital. No que se refere à apropriação do excedente, investimento e reprodução, afirma que a
crise do capitalismo, iniciada em 1966, tem um caráter estrutural. Existem limitações
estruturais que impedem o capitalismo de absorver os desenvolvimentos tecnológicos: 1) a
capacidade que o monopólio tem de adiar emprego de tecnologias que torne obsoleto o capital
286
constante já investido; 2) a dificuldade de resolver os problemas advindos da automação,
como o desemprego; 3) os limites de organização e centralização necessários à pesquisa que
faz crescer a importância do papel do estado; 4) o problema da realização das mercadorias; 5)
o estilo de consumo individualista, como no caso do transporte individual em vez do
transporte de massa; 6) o planejamento científico é limitado por ausência de economia
planificada; 7) o problema do valor: a automação não é compatível com o uso do valor como
base de troca, como se depreende dos Grundrisse; 8) as reservas energéticas e de matérias
primas exigem o uso racional, o fim do consumo supérfluo, questões que têm que ser
planejadas globalmente (pp. 185-197).
Os monopólios têm poder de atrasar a inovação. Os saltos tecnológicos dependem
da pressão de empresas usuárias de máquinas para diminuir o custo de capital constante, da
competição internacional e da intervenção do estado. As constantes mudanças tecnológicas
são o fator perturbador do equilíbrio do sistema, que afeta a distribuição dos ramos da
produção, a composição orgânica do capital e a produção (pp. 197-203). Marx distinguiu dois
setores da economia: setor I, bens de produção, e setor II, bens de consumo. Em sua abstração
para que haja equilíbrio nas proporções entre esses setores deve haver uma certa composição
orgânica e uma certa taxa de exploração. Sempre ocorrem desequilíbrios e crises. Para Santos,
são inúmeros os fatores que afetam o esquema puro, por isso, é infrutífera qualquer tentativa
de explicação da crise e dos ciclos econômicos baseada nesse esquema. Contudo, os esquemas
de reprodução ressaltam as dificuldades de um equilíbrio capitalista. Podemos citar algumas
tendências: desproporcionalidade do setor I, subutilização permanente da capacidade
instalada, depreciação moral do capital fixo, e obsolescência tecnológica. Os capitalistas
resistem enviando máquinas para o exterior, o que aumenta o dinamismo do sistema e a
diferenciação interna do setor I, entre fábricas que produzem máquinas e fábricas que
produzem máquinas que produzem máquinas, nas quais a automação é de maior intensidade.
A industrialização de matérias-primas leva à criação de indústrias como a petroquímica. A
produção de instrumentos científicos mais complexos leva a toda uma nova indústria dentro
do setor I, e a criação de setor de P&D ligado à Comunicação e à Educação. Alguns setores se
desenvolvem por saltos, enquanto outros, como o ferroviário, o cimento, o têxtil sofreram
mudanças mínimas desde o pós-guerra. O desenvolvimento de bens de consumo duráveis
(carros, geladeiras) se deu com bastante força após a guerra. As residências das camadas altas
tornaram-se um depósito de aparelhos eletrônicos, com uma média de dois filhos por casal.
287
Essa evolução se dá em uma direção individualista e demasiadamente cara. A falta do
restaurante coletivo, do tempo integral na escola, da biblioteca, do acesso ao lazer implica
uma perda do tempo livre para que essas tarefas de cuidados dos filhos, transporte ao trabalho,
etc, sejam realizadas. A solução é evitar os filhos e as taxas de crescimento populacional
tendem a zero (pp. 203-214).
O desenvolvimento tecnológico fez baixar o uso de força de trabalho por produto,
diminuiu em proporção a demanda de capital fixo por produto, baixou em menor escala os
custos de matérias primas, utilizando-se novos materiais sintéticos como o plástico, aumentou
os gastos em energia, transporte, comunicação, comércio e administrativos. O resultado
dessas tendências: diminui a parte do capital variável diante do constante, pois os gastos em
capital variável decrescem mais. O aumento da composição orgânica não é pelo crescimento
do capital constante, mas por uma brusca queda do variável empregado.
O capital empregado em salários no setor de serviços cresce em proporção maior
que os outros setores como produção e transporte. Os serviços e o governo tem fundamental
importância na transferência de renda que ajuda a evitar a eclosão de uma violenta crise de
realização. O aumento da composição orgânica do capital é compensado em parte pelo
crescimento dos salários pagos nos setores de serviços (pp. 215-217). Santos analisa os
resultados no processo produtivo global, no ciclo. Há descompassos entre a produção de
valores, objetivo do capitalismo e a produção de valores de uso, requisito de qualquer modo
de produção. Nos momentos de crise se produz uma violenta contradição entre a valorização e
a produção de bens úteis. A economia não é capaz de atender a prioridade das classes sociais,
por isso, toda crise é uma crise do processo de dominação político-ideológico e leva a grandes
movimentos de contestação.

Com relação ao desenvolvimento tecnológico, essa contradição só é resolvida pela


socialização da produção (centralização em monopólios, estado, etc), mas essa socialização
está em contradição com o caráter privado da acumulação. A expansão após a crise de 1929 a
1945, destruiu muito capital fixo existente, aumentou a taxa de lucros rebaixando o valor da
força de trabalho. Essa expansão desenvolveu a corporação multinacional e ampliou o deficit
do estado que financiou esses monopólios, sobretudo em P&D. A partir de 1966 os
desequilíbrios começaram a se manifestar, estando apenas ainda em seu estágio inicial. A
recuperação da Europa e do Japão fizeram retornar a competição intercapitalista. A
288
acentuação do ritmo de acumulação no pós-guerra está ligada às mudanças tecnológicas
revolucionárias que afetam o processo de trabalho e as relações sociais. A redução do tempo
de trabalho necessário abre a possibilidade de redução da jornada de trabalho. Ao negá-la o
capitalismo revive o desemprego, grande inimigo da classe trabalhadora (pp. 218-226).
Em sua conclusão, o autor tece alguns comentários sobre a relação entre a
mudança tecnológica e o processo de valorização. Ele chama atenção para o fato de que não é
possível analisar o capitalismo eliminando o valor de uso. As mudanças tecnológicas afetam o
caráter útil e concreto dos bens. São produzidas na vida material e não no plano mercantil.
Essas mudanças são relativamente independentes das leis de produção capitalista. Elas são um
acúmulo da experiência produtiva do homem, do desenvolvimento da ciência, independem de
modo de produção. Isso não significa atribuir uma neutralidade à tecnologia. O capitalismo
impulsiona as mudanças que favorecem o aumento da taxa de lucro. Acontece que,
independente do desejo do capitalista, essas mudanças levam a uma socialização da produção.
Um modo de produção tem que obedecer às leis do desenvolvimento das forças produtivas.
Ele não cria suas forças produtivas, apenas as desenvolve. Ele não pode criar um
conhecimento que não se submete à própria lógica do conhecimento (pp. 237-250).
Na relação entre processo de valorização e processo de trabalho, o valor é uma
unidade do processo de intercâmbio, mas é criado na produção, que não contém, independente
do intercâmbio, uma única gota do valor. A produção só é produção de valor se inserida num
processo de trocas regido pelo valor. Mas o valor tende ao zero, ao não-valor. A contradição
fundamental é entre o processo de valorização e o desenvolvimento das forças produtivas.
Elimina-se a base material do valor e a possibilidade do intercâmbio mercantil, do processo de
valorização, da exploração baseada na mais-valia, quer dizer, do modo de produção
capitalista. Esse é o limite histórico do capitalismo. A contradição assume a forma de uma
crise da civilização que o capital criou. O atual desenvolvimento Científico-Técnico alterou o
trabalho concreto. A ciência passou a dirigir a produção substituindo a destreza do artesão
pela automação de processos complexos.
Cresceram os bolsões de miséria, que tem como causa a propriedade privada dos
meios de produção. O efeito da revolução técnica no processo de produção faz com que esse
se rebele contra os limites estreitos das relações de produção. Mas o capital pode empregar
muitos artifícios para se manter. Pode dar novos saltos no processo de socialização da
289
propriedade privada, levando à maior concentração. O Estado pode intervir mais. Tudo isso é
um barril de pólvora pois mantém a irracionalidade fundamental do sistema. Aumentará a
violência das classes dominantes (pp. 251-258).
A análise chega às tendências fundamentais da evolução do capitalismo
contemporâneo, que para o autor são: concentração tecnológica e socialização da produção.
Conglomeração, com a quebra da unidade entre a empresa e a fábrica; socialização dos
capitais privados, através das sociedades anônimas; centralização dos capitais no sistema
financeiro. O capital financeiro leva à alta socialização do capital privado. As camadas
parasitárias que surgem são as que tornam possível a sobrevivência do sistema capitalista.
Para assegurar esse funcionamento surge o capitalismo monopolista de Estado, com
participação do estado na regulação. Essas tendências não se explicam sem a conexão entre o
aumento da composição orgânica e a queda drástica na taxa de lucro, à luz da teoria do valor.
O autor então lista as dimensões mal compreendidas do aumento da fração
constante do capital sobre a variável: cresce o planejamento e o tempo de produção de meios
de produção e matérias-primas; cresce o trabalho morto na sociedade; na dimensão contábil-
financeira aumenta a necessidade de se adiantar cada vez mais capital e o decréscimo da taxa
de lucro. O capitalismo luta contra os efeitos. A política de monopólios permite manter os
preços acima do valor de mercado. Eles mantém as empresas médias funcionando, com uma
produtividade inferior de forma a fazer com que o custo médio social de produção seja maior
que o seu custo (pp. 259-273). A crescente socialização da produção exige mudanças nas
relações de produção. Uma segunda etapa da revolução científico-técnica está se delineando
nos anos 80. Isso não levará, conforme afirmam os sociais-democratas, a uma transição
pacífica ao socialismo e, sim, a violentas contradições nas sociedades capitalistas. Conforme
decai a conjuntura expansiva do pós-guerra, entra em crise as políticas de pleno emprego
atingidas por países após 1945. O retrocesso é operado através de governos conservadores e
violentos, tal como o fascismo que antes havia varrido as conquistas operárias.
Em momentos de crises as classes dominantes dos países subdesenvolvidos
podem aspirar papel protagonista, inclusive se apoiando nas classes exploradas. Isso leva a
formas políticas inéditas com importante participação dos setores populares. Para a
sobrevivência do capitalismo, ele precisa se apoiar em formas de produção com graus mais
elevados de socialização da produção. O papel do Estado também sofre transformação e ele se
290
torna mais intervencionista. Ele se transforma no representante supremo do capital. O capital
busca ciclicamente corrigir o papel do Estado. Sempre que vem uma nova crise ele é
depurado. Na recuperação seu papel é ampliado (pp. 274-280).
Santos conclui relembrando que para autores como Richta as forças produtivas
não cabem nem nas relações capitalistas nem nas socialistas. Elas constituem a base de um
sistema inteiramente novo, o comunismo. O próprio socialismo, como estado de transição,
não pode assimilar a revolução científico-técnica. O avanço do socialismo, com sua
demonstrada superioridade, obriga o capitalismo a socializar ainda mais os meios de produção
como concessão. O socialismo avança e o Ocidente vê com temor o surgimento da potência
euro-asiática que rompe a hegemonia estadunidense (pp. 281-286).

3.5.3.3 Revolução Científico-Técnica e crise do capital

A obra de Radovan Richta insere-se no debate travado dentro do campo socialista


sobre o significado do salto tecnológico ocorrido no pós-guerra à luz dos Grundrisse. Richta
observou a concretização da tendência prevista por Marx sobre a ciência efetivamente assumir
um novo papel como força produtiva central no processo de valorização do capital. Contando
com diversos colaboradores que participaram do programa de pesquisa proposto, ele pôde
atestar as mudanças quantitativas de qualitativas que indicam as transformações na dinâmica
das forças produtivas.
Richta subsumiu o conceito de revolução tecnológica ao de revolução política, e
enxergava os limites que as relações capitalistas impunham à consolidação da automação, que
para ele representaria um nível de desenvolvimento tecnológico correspondente aos padrões
da sociedade comunista. A Revolução Científico-Técnica seria responsável por eliminar o
trabalho elementar, substituindo-o pelo trabalho científico, que no núcleo da produção e da
vida social, torna o desenvolvimento humano um fim em si mesmo. Esta tendência ao general
intelect não está contudo concretizada em absoluto, mas já aparece como potência.
Santos em sua obra busca analisar sistematicamente as consequências decorrentes
da submissão da produção à ciência e o desenvolvimento da automação sobre os processos de
291
invenção, inovação e difusão, bem como dos seus impactos sobre o crescimento econômico.
Para explicar os gastos em desenvolvimento das forças produtivas, o autor utiliza o conceito
de excedente econômico de Baran, mas também aponta a especificidade e subversão que
representa a relação capital, fundada na mais-valia, também identificando a contradição que
advém do fato de cada vez mais se eliminar a base material do valor e a possibilidade do
intercâmbio mercantil. Entre 8 fenômenos observados que limitam a incorporação de
tecnologia pelo sistema capitalista está a crise da mensuração do valor teorizada nos
Grundrisse, posto que a automação não é compatível com o uso do valor como base de troca.
Nesta tese foi recuperada a demonstração de Grossmann de que a crise de
valorização do capital por sobreacumulação está presente na teoria de Marx sobre as crises, e
que, mesmo que sejam inúmeros os fatores que afetam os desdobramentos dos esquemas de
reprodução de O Capital, este permanece um importante passo para a teoria da crise e dos
ciclos, e não apenas dos desequilíbrios da reprodução ampliada. O próprio Santos demonstra a
validade metodológica dos esquemas abstratos na crítica da economia política quando
expande a descrição do circuito D-M-D para explicar a incorporação do investimento em
P&D, o que contribui a entender o caráter anárquico que surgem como efeito da concorrência
entre os capitais. Também revela o papel do Estado como ator que busca implementar as
medidas de contratendência que estão fora do alcance da esfera privada.
A presente tese buscou demonstrar que existe uma identidade entre a erosão do
paradigma de mensuração do valor e as crises econômicas empiricamente observadas no
momento atual, ressaltando, que os novos papéis da ciência e da educação como forças
produtivas das quais o capital se apropria, violando a Lei do Valor ao inserir uma especulação
nos custos de produção, encerram uma contratendência poderosa que permite prorrogar o
tempo de vida do capital. Santos também demonstra que a importância que a ciência assume
no crescimento econômico leva a profundas transformações no processo educativo, na
estrutura da mão de obra e na organização da força de trabalho. Ele nota que o aumento da
participação do Estado é corrigido ciclicamente pelo capital. A onda de privatizações
neoliberal iniciada nos anos 90 atingiu inclusive os países centrais, solapando o paradigma
keynesiano e afirmando cada vez mais os monopólios como os detentores da produção
científica socializada.
Contudo, longe de representar uma barreira transponível, a crise que a automação
292
apresenta à valorização do capital reabre a discussão acerca dos paradigmas de transição para
o socialismo e permite prever a existência de uma violenta reação. Cabe notar que quando o
autor escreveu este texto, ao analisar a dinâmica da Revolução Científico-Técnica nos países
socialistas e o papel desta na dinâmica dos países capitalistas centrais, ele se referia à União
Soviética e outros países aliados. Mesmo com os retrocessos operados nos anos 80 que
culminaram com o fim da União Soviética, a análise de Santos sobre as diferenças entre os
dois campos permanece válida, como demonstra o recente e impressionante desenvolvimento
científico-técnico na China, sobretudo no campo da automação, e os efeitos que este
ocasionou no mercado global.

3.6 Paradigmas e Crise

A segunda fase da Revolução Industrial levou à expansão do sistema capitalista


por todo o mundo, o movimento de passagem da burguesia de classe revolucionária à classe
reacionária se refletiu nas ideias científicas relacionadas ao papel da transformação na
história. Este problema foi aprofundado durante o século XX, que ficou marcado pela
manifestação da crise orgânica do capital, levando a humanidade a um conflito bélico de
proporções globais, sem contudo resolvê-la. Sobre o que denominou de “universo galileano
[que] supõe uma estrutura causal restrita”, Bensaïd considera que, sendo abalado “desde a
segunda metade do século XIX, ele claudica no entreguerras sob o efeito combinado de um
grande choque cultural (a guerra e o ‘declínio do Ocidente’) e de uma controvérsia científica
(em torno da mecânica quântica em física e da psicanálise em ciências sociais)” (1999, p.
402).
No trabalho anterior “A crise do capital em Marx e suas implicações nos
paradigmas da educação: uma contribuição ao repensar pedagógico no século XXI”,
apresentado inicialmente na forma de dissertação, foi estabelecida a relação entre os conceitos
de crise e de paradigma (universo na formulação Bensaïd), que auxiliam a entender o
movimento do desenvolvimento científico, conforme refletido subjetivamente na cabeça dos
homens, inclusive a questão do método científico.
293
3.6.1 Conceito de paradigma em Popper, Kuhn, Horkheimer e Marx

Popper negava todo o procedimento de verificação, como forma de distinguir


ciência da não ciência, apresentando em seu método a prova de falsificação da ciência, que de
acordo com o resultado negativo,leva à rejeição de uma teoria estabelecida, contudo este autor
não discordava de Bacon sobre a visão do progresso científico como um acúmulo
quantitativo. Esta é a raiz de sua polêmica com Kuhn, que não aceita a visão teleológica do
progresso científico, preferindo compará-lo com a evolução orgânica, ou seja, um processo no
qual não há uma lógica que impunha uma direção no desenvolvimento. Contudo, pode-se
atribuir, quanto a sua função, uma semelhança entre o papel atribuído à falsificação por
Popper e o atribuído por Thomas Kuhn às experiências anômalas. No primeiro a falsificação
responde a uma contradição lógica com a natureza do objeto investigado, enquanto que para o
segundo a anomalia diz respeito a uma discrepância com relação ao que a comunidade
científica assume como texto base.
O conceito de paradigma, uma categoria-chave na epistemologia histórica da
evolução da ciência em Kuhn, ao explicar a anomalia que resulta na crise de paradigma, que é
resolvida através de uma revolução científica, serve para sustentarmos que a crise do capital,
ao transitar da esfera da produção para a ciência, incide também sobre a educação, e vice-
versa. Os textos bases já superados indicam que as anomalias já constituem uma crise da
ciência e uma crise na educação. Considerando a importância do conceito de paradigma para a
presente proposta, torna-se necessário delimitar o significado teórico que ele assume à luz da
teoria de Marx, diferente do conceito na filosofia platônica, como modelo ideal e arquétipo de
perfeição. Isso não significa relevar a debilidade da visão orgânica de Thomas Kuhn, da
ciência como atividade não determinada pela história econômica da sociedade, mesmo
considerando as rupturas, caracterizada pela ingovernabilidade e impasse, que resultam da
dualidade de poderes entre teorias científicas concorrentes. O autor busca reduzir a dinâmica
destes conflitos apenas a atos de fé. A abstração da comunidade científica, ignorando o
desenvolvimento histórico desta, leva a uma visão irracionalista, que justifica a
incomensurabilidade entre paradigmas. Contudo, o significado de paradigma na crítica da
economia política, para a qual certos aspectos, estruturas e fundamentos da ciência são meros
constructos sociais não significa uma rendição ao pós-modernismo, apenas a constatação
294
leninista de que:

De uma forma ou de outra, toda a ciência oficial e liberal defende a escravidão


assalariada, enquanto o marxismo declarou uma guerra implacável a essa
escravidão. Esperar que a ciência fosse imparcial numa sociedade de escravidão
assalariada seria uma ingenuidade tão pueril como esperar que os fabricantes sejam
imparciais quanto à questão da conveniência de aumentar os salários dos operários
diminuindo os lucros do capital (LÊNIN, 1985c, p. 23).

“Horkheimer procura demonstrar que o processo social envolve o trabalho do


cientista pela divisão do trabalho, sugerindo que o dualismo entre pensar e ser, entendimento e
percepção, é peculiar à sua atividade teórica, como no processo de trabalho na indústria,
parcializado” (BEVILAQUA, 2011, p. 113). Este autor percebe a natureza dual que a ciência
assume no capitalismo, e que ela herda da mercadoria. Apesar de ser considerada uma aporia
ao marxismo, sua contribuição, publicada 25 anos antes da formulação de Kuhn, guarda
semelhanças com a formulação em Marx, autor que influenciou profundamente a Escola
Crítica, inclusive o papel das condições subjetivas na formação do conhecimento objetivo. Ele
afirma:

A teoria crítica da sociedade, parte, pois, de uma ideia do intercâmbio mercantil


simples, determinada por conceitos relativamente gerais, sob o pressuposto da
totalidade do saber disponível, da admissão do material tomado de investigações
próprias e alheias, (…) sem que seus próprios princípios, expostos pela economia
política como disciplina especializada, sofram qualquer transgressão. (…) Enquanto
os juízos categóricos das ciências especializadas possuam no fundo caráter
hipotético e os juízos de existência, quando existem, apenas ocorrem em capítulos
especiais, em partes descritivas ou práticas, a teoria crítica da sociedade é em sua
totalidade um único juízo de existência desenvolvido. (…) Posto que a figura de
pensamento que mais avança é, no presente, a teoria crítica da sociedade. (…)
[porém] a qualquer enunciado científico que não especifique fatos incluindo-os nas
categorias mais usuais, e na mais neutra das formas possíveis, a matemática, por
exemplo, é em seguida reprovada por ser demasiado teórica.(HORKHEIMER, 2002,
pp. 256-257 e 262).

Para Horkheimer ao invés de uma mudança de paradigmas, uma anomalia pode


levar simplesmente a uma reestruturação das ideias vigentes em hipóteses auxiliares que têm
o efeito de evitar a substituição total da teoria em xeque. Como coloca o autor:

Entre as formas de julgamento e as épocas históricas existem relações que queremos


brevemente esboçar aqui. O julgamento categórico é típico da sociedade pré-
burguesa: é assim, o homem não pode mudar nada. A forma hipotética e a disjuntiva
dos julgamentos responde especialmente ao mundo burguês: em determinadas
circunstâncias pode aparecer este efeito, é assim ou ainda de outra maneira. A teoria
crítica afirma: não deve ser assim, os homens podem mudar o ser, as circunstâncias
295
para isso estão agora presentes (HORKHEIMER, 2002, p. 257).

A teoria crítica postula o juízo de existência como princípio de validade de um


modelo teórico, indicando o caráter histórico da práxis científica que responde que é
mediatizada pelas relações sociais, pela divisão do trabalho, por todas as determinações
econômicas nas quais os sujeitos cognoscentes estão imersos. Isto contribui aprofundando a
noção de paradigma na dinâmica da totalidade social e das relações de poder que influem nos
processos de mudanças teóricas, ou revoluções científicas. Essa ligação se contrapõe ao
irracionalismo de Kuhn ao tratar dialeticamente a relação entre o sujeito e objeto no processo
de investigação (LAKATOS, 1998, pp. 11-20; KUHN, 1974, p. 244). Como afirmado no
trabalho anterior:

Os trabalhos de Pécheux e Fichant (1971), demonstram claramente que a tese da


descontinuidade teórica na história da ciência é plenamente demostrada por
Bachelard na Física e, por Canguilhem na Biologia. A noção de corte epistemológico
como ponto sem retorno à teoria anterior, como é o caso do corte produzido pelo
trabalho “A queda dos corpos” de Galileu, “sobre as noções de física e cosmologia
aristotélicas e escolásticas, dando base à elaboração dos conceitos físicos
(velocidade instantânea, aceleração) e matemáticos (cálculo infinitesimal)”, deu base
ao surgimento de uma nova ciência (PÉCHEUX e FICHANT, 1971, p. 11). A
metáfora do obstáculo, que é vencido pelo acúmulo de forças ou impulso mediante
rupturas intraideológicas (demarcações) e intracientíficas (reformulações),
equivalem ao que Kuhn chama de período pré-paradigmático ou o que Horkheimer
atribui como disputa entre os vários modelos teóricos de validação das teorias ou
material fático (Bevilaqua, 2011).

Na crítica da economia política, a ciência moderna manifesta a mesma natureza


contraditória da mercadoria, o trabalho humano subsumido à relação capital. Ao mesmo
tempo em que ela é um momento do acúmulo de conhecimento humano, que pode ser
traduzido em uma aplicação concreta (seu valor de uso), ela também é uma indústria, um
departamento da produção capitalista, que só pode ter sua dinâmica explicada pelo processo
de valorização do capital (seu valor de troca).
A crítica à produção científica capitalista, contudo, não pode se limitar a apontar
os desvios da ciência de seus objetivos iniciais, apontando o mau uso do método, que é
acriticamente aceito como neutro e desinteressado na busca pela verdade. Trata-se de uma
visão liberal, na qual rompe-se o que mesmo contraditório existe como unidade, a natureza
dual da ciência. Mesmo as conquistas mais reconhecidas, nos campos considerados mais
insuspeitos e supostamente afastados da vida política, carregam as marcas das crenças de seus
296
produtores e de seus possuidores, além das condições específicas do momento histórico no
qual foram criadas. Apenas desta forma pode-se compreender porque os anos 80 deram luz à
teoria “inflacionária” na cosmologia, porque enxergamos as relações sociais no mundo
animal, elegendo uma abelha rainha, porque falamos em um mundo selvagem, mais uma
sensação que uma realidade, ou porque a contabilidade de receitas e custos foi essencial para
a formulação sobre a carga elétrica, que nos foi legada por Benjamin Franklin.
Entretanto, no marxismo, o componente político-econômico não pode ser
subestimado ao explicarmos como paradigmas superados se mantêm dominantes na
comunidade científica mesmo após a prática tê-los refutado reiteradamente. Há que se buscar
uma explicação além do mero movimento das ideias. No marxismo, como valor de uso, a
ciência tem um potencial subversivo, e guarda uma relação com a natureza dos objetos
estudados, já que ela representa o conhecimento das necessidades, logo, a liberdade. “As
matemáticas, assim como todas as outras ciências, surgiram das necessidades dos homens”
(Engels, Anti-Dühring). Desta forma ela ilumina o caminho e se converte em um momento
especial da atividade consciente livre, que distingue a espécie humana das demais. Ela
permitiu conhecer, ainda que de forma imperfeita, a idade da Terra, o funcionamento do
coração, o papel dos neurotransmissores, a existência dos seres microscópicos e sua relação
com o corpo humano, a composição química do sol, entre um sem número de outras
conquistas. Como valor de troca, a ciência, cativa do capital, atende àqueles que se apropriam
dela, que escolhem quem se tornará um cientista, quais remédios serão desenvolvidos e quais
camadas serão condenadas a uma morte precoce por falta de ação. Suas limitações mais
prementes não são impostas pela estrutura da matéria no mundo físico, mas pelas amarras do
frio interesse do capital.
A crise na produção científica é uma realidade que fica patente ao observarmos a
falta de capacidade da ciência econômica dominante de fornecer uma explicação à crise,
como exemplifica o caso das emendas sobre a curva de Phillips. Porém, também nas ciências
naturais, há farta evidência de que os paradigmas atuais tornaram-se estreitos e atuam agora
como uma barreira ao desenvolvimento do corpo teórico. Existe uma perda da capacidade
teleológica da ciência, uma cisão entre seus objetivos de longo prazo e sua prática imediata.
Mais grave ainda, como apontam os biólogos Levins e Lewontin (1985), em sua disciplina:

Algumas vezes os problemas são criados pelas próprias soluções inventadas para
297
lidar com eles. A competição de certas espécies de ervas com os cultivos é um sério
problema para os fazendeiros, um problema que agora é resolvido com a aplicação,
em larga escala, de uma série de herbicidas. Mas nem todas as ervas são prejudiciais
ao cultivo, e as espécies de ervas competem entre si. Usando herbicidas de amplo
espectro, ervas benéficas, aquelas que competem com as ervas daninhas, são
destruídas conjuntamente com as daninhas que elas substituem, então o “problema
das ervas” é parcialmente criado pela própria solução que supostamente lidaria com
ele. O mesmo é verdadeiro para os insetos, que são selecionados pela sua resistência
genética aos inseticidas, pelos próprios inseticidas usados para controlá-los. Como
consequência, quanto maior o remédio, maior o problema (LEVINS E LEWONTIN,
1985, p. 270-271).

Esta situação não foi superada pelo surgimento das novas disciplinas modernas
que surgiram da constatação deste abalo, porém natimortas ao negarem a dialética como
método de entender o movimento. Por isso Jean Paul Sarte, em seu Discurso sobre o Método,
texto no qual busca distanciar-se do marxismo, é obrigado a afirmar que:

Longe de estar exausto, o Marxismo ainda é muito jovem, praticamente na sua


infância; ele mal começou a se desenvolver. Ele permanece, desta forma, a filosofia
do nosso tempo. Não podemos ir além dele, porque não fomos ainda além das
circunstâncias que o engendraram (Sarte, 2002).

3.6.2 Paradigmas e crise da produção científica

A presente tese abordou na parte sobre o valor, como a ideia de estado


estacionário de Adam Smith está presente na obra de John Stuart Mill: um dos capítulos de
seu livro Princípios da Economia Política se chama justamente Estado Estacionário de
Riqueza e população, temido por alguns escritores, mas não indesejável em si. Ele afirma que
o aumento de riqueza não é ilimitado, pelo contrário, atingir este limite levaria a uma
melhoria da condição humana. A visão de um ponto final da história também pressupõe um
ponto inicial, e sem entrar no mérito dos argumentos, totalmente alheios ao presente trabalho,
não é de estranhar que um religioso, o padre belga Georges Lemaître, batizasse a Teoria do
Big Bang.
Este autorretrato que a burguesia faz de si mesma, na qual o sistema capitalista
representa a culminação de todo o processo histórico, incluindo da história natural, a
realização do Espírito Absoluto de Hegel, acompanha-a desde então, como podemos
exemplificar com os 15 minutos de fama concedidos à tese do fim da história de Francis
298
Fukuyama. Após a terceira fase da revolução industrial tornou-se lugar-comum afirmar que a
cibernética representaria o fim da história política, concepção que durante o século passado, e
no presente, volta à tona sob os auspícios de laureados cientistas de diversas áreas do
conhecimento humano. Quando recebeu seu prêmio Nobel em 1976, no discurso realizado no
banquete oferecido pelo rei da Suécia, Milton Friedman externou sua ideia de que
computadores poderiam substituir os economistas dos bancos centrais:

O prêmio memorial Nobel de Ciências Econômicas foi estabelecido apenas em 1968


pelo Banco Central da Suécia para celebrar seu tricentenário. Esta circunstância me
deixa numa espécie de conflito de interesse. Como alguns de vocês sabem, meus
estudos monetários me levaram à conclusão de que os bancos centrais poderiam ser
substituídos, de forma benéfica, por computadores programados para promover uma
taxa constante de crescimento da massa monetária. Felizmente para mim […] essa
conclusão não teve impacto prático, senão não haveria um Banco Central da Suécia
para criar o prêmio que tenho a honra de receber (FRIEDMAN, 1976).

Da economia, passando para a história da sociedade, este paradigma também


chegou às ciências biológicas:

As revoluções burguesas venceram e a interpretação Whig da história tornou-se uma


biologia Whig. Estamos no fim da História Natural. O mundo se acalmou, depois de
um começo difícil, para um estado estacionário. Constância, harmonia, leis simples
da vida que predizem características universais dos organismos vivos, e da
autorreprodução e domínio absoluto de uma única espécie de molécula, o DNA, são
os temas hegemônicos da biologia moderna (LEVINS e LEWONTIN, 2007, p. 14,
tradução nossa).

O caso do relatório Limites do Crescimento, demonstra como os paradigmas têm


papel determinante na crise à qual o capital conduziu a produção científica. Ele apresenta os
resultados de uma simulação computacional de 1972 financiada pela fundação Volkswagen e
encomendada pelo Clube de Roma, um think-thank criado em 1968 para debater temas
relacionados ao meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável. O Clube de Roma foi uma
iniciativa do cientista Alexander King e do industrial Aurelio Peccei, presidente do comitê
econômico da OTAN e sua cerimônia de fundação ocorreu na propriedade da família
Rockfeller em Bellagio na Itália. Muitos ex-governantes fazem parte do Clube de Roma como
Fernando Henrique Cardoso, Mikhail Gorbachov, o rei Juan Carlos I, o que denota a relação
desta entidade com as estruturas de poder pelo mundo. Este relatório (MEADOWS, 1972),
lançado com grande alarde, pouco antes da Conferência de Estocolmo que discutiu o papel
dos países industrializados e dos países pobres na preservação do ambiente, apresentava o
299
experimento realizado por uma equipe de pesquisadores do MIT, que modelava 5 variáveis:
população mundial, industrialização, poluição, produção de alimentos e escassez de recursos.
Eles apontavam, que o mundo caminhava para um colapso: “O resultado mais provável [das
coisas seguirem seu curso], como tentamos mostrar aqui, será um incontrolável decréscimo de
população e de capital” (p. 169). As medidas apresentadas pelos autores para evitar esse
colapso são de caráter técnico, a tarefa de gerir o planeta como um todo transcenderia a
política. “Enquanto que a tecnologia pode mudar rapidamente, as instituições políticas e
sociais normalmente mudam mais vagarosamente. Ainda mais, elas quase nunca mudam se
antecipando a uma necessidade social, mas apenas em resposta a ela”(p. 148).
Sob a falácia expressa em seu prefácio de que “Nenhum dos seus membros
mantêm um emprego público, nem o grupo busca expressar um único ponto de vista
ideológico, político ou nacional” (p. 10), o relatório apresentava uma combinação do estado
estacionário de Stuart Mill com o malthusianismo:

Muitos acreditarão que as mudanças que apresentamos neste modelo para evitar o
modo de comportamento – crescer e colapsar – não são apenas impossíveis, mas
desagradáveis, perigosas, até desastrosas em si. Estas políticas, como a redução da
natalidade e o desvio de capital da produção de bens materiais, por qualquer forma
que isso seja implementado, parecem não naturais e inimagináveis, porque elas não
foram, na experiência da maioria das pessoas, tentadas, ou ao menos sugeridas com
seriedade. […] Desta forma a definição mais básica do estado de equilíbrio é quando
a população e capital forem essencialmente estáveis, com as forças que tendem a
aumentá-los ou diminui-los em um equilíbrio cuidadosamente balanceado (pp. 167,
171).

A ênfase no controle populacional e na transferência de capitais para o setor de


serviços (monopolizado pelos países ricos) buscava dar um xeque-mate nos países
subdesenvolvidos nas vésperas da conferência de Estocolmo, na qual confrontavam-se a tese
do “desenvolvimento zero”, defendida pelos países desenvolvidos; e do “desenvolvimento a
qualquer custo” das nações do terceiro mundo. Como colocam Levins e Lewontin:

Este […] tipo de resposta nega as constantes transformações e instabilidade dos


organismos vivos, enquanto aliena a espécie humana do resto da natureza e reafirma
a realidade da distinção entre artificial e natural. A sociedade humana tecnológica,
perturba o mundo natural de seu estado de harmonia e equilíbrio, se torna uma
externalidade. […] Sob este modelo, o papel da ciência é descobrir as leis
comportamentais do mundo natural não perturbado e usar essas leis para impedir os
efeitos da força externa perturbante (LEVINS e LEWONTIN, 2007, p. 16, tradução
nossa).
300
Não se pode negar que a postura da humanidade com relação ao meio ambiente
deve ser repensada sob o risco da própria extinção da espécie, mas não se pode escamotear o
fato de que é a mercantilização da natureza, necessidade do processo de valorização do
capital, que responde por grande parte da situação atual. Mas além dessa constatação, os
dados apresentados neste relatório apresentavam um paradigma que já havia sido refutado no
final do século XIX. Em 1887, o rei da Oscar II da Suécia lançou a competição matemática
em torno da resolução do problema dos três corpos, que responderia a uma inquietação
presente desde sua formulação por Newton, saber se o sistema solar era estável, ou se em
determinado momento a órbita dos planetas, através das múltiplas interações entre suas
massas, colapsaria (LASKAR, 2012). O matemático Henri Poincaré, vencedor do prêmio fez
uma importante contribuição que depois seria fundamental na definição da teoria do caos
determinista. Neste problema os 3 corpos são representados por 21 variáveis (para cada um
dos corpos são consideradas 3 variáveis de posição, 3 variáveis que compõe o vetor
velocidade, mais a massa de cada corpo). Ele mostrou que pequenas perturbações na interação
entre essas múltiplas variáveis podem ter um efeito cumulativo e inesperado, através da
retroalimentação, tornando impossível a modelagem de certos fenômenos, a não ser que
conhecêssemos as variáveis iniciais com uma precisão infinita, algo inalcançável. Por isso,
mesmo com o avanço dos satélites e dos computadores a previsão do tempo não pode ser feita
além de alguns poucos dias. Pequenas diferenças causam grandes distúrbios ao final, no que
ficou conhecido como efeito borboleta, devido ao formato dos diagramas de trajetória criados
pelo meteorologista Edward Lorenz em 1963, e não pela sua apropriação popular de que uma
borboleta batendo asas de um lado do mundo causa um furacão no outro lado (STEWART,
1989).
Se um problema com três corpos e 21 variáveis já está além da capacidade de
simulação exata, o que dizer de 5 variáveis que em si congregam uma infinidade de outras
como as da simulação proposta no relatório “Limites do Crescimento”. Com o tempo o
computador não foi capaz de cumprir todas as promessas que haviam sido vendidas desde o
pós-guerra. O paradigma mecânico determinista que ainda resistia se tornou incapaz de
abordar fenômenos complexos, mesmo com um gigantesco poder computacional. Por isso as
simulações computacionais para se investir na bolsa não tem muito mais sucesso que
simulações para se jogar na loteria, ou se apostar em cavalos.
Para responder a este paradigma surgiram uma série de disciplinas que buscavam
301
dar conta do movimento da matéria e suas múltiplas determinações. Porém, ao refutarem a
dialética e a história, estas disciplinas foram sendo sucessivamente emendadas. Elas falham
porque não levam em conta que não se pode modelar uma realidade apenas com dados
quantitativos e negar uma análise qualitativa da mesma, baseada em categorias. Jay Forrester,
envolvido com o Clube de Roma, e considerado um dos pais da cibernética é o fundador da
disciplina dinâmica de sistemas. Os modelos apresentados em seu livro Dinâmicas Urbanas,
foram a base da simulação feita pelo grupo de cientistas do MIT que embasou o relatório
Limites do Crescimento. Sua visão é de que o mundo era um conjunto de sistemas dinâmicos,
que podiam ser explicados pelo mecanismo de retroalimentação. Em uma entrevista exibida
em um documentário, Forrester afirma que vivemos em redes de loops de retroalimentação,
que nos controlam e a maior parte das coisas com as quais interagimos. Somos apenas parte
de um sistema, o que, segundo ele, é um anátema para muitas pessoas, pois elas gostam de
pensar sobre si como independentes, enquanto que elas são impelidas na maior parte de suas
ações por loops de retroalimentação. Sistemas físicos, sistemas elétricos, sistemas sociais,
sistemas políticos, sistemas biológicos, sistemas médicos, são todos fundamentalmente redes
de loops de retroalimentação.
Esta visão antidiatética já havia sido criticada de forma demolidora por Marx em
sua terceira tese sobre Feuerbach, na qual afirma:

A teoria materialista de que os homens são produto das circunstâncias e da educação


e de que, portanto, homens modificados são produto de circunstâncias diferentes e
de educação modificada esquece que as circunstâncias são modificadas
precisamente pelos homens e que o próprio educador precisa ser educado. Leva,
pois, forçosamente, à divisão da sociedade em duas partes, uma das quais se
sobrepõe à sociedade (Marx, 2010k, p. 7, tradução nossa).

A teoria dos sistemas dinâmicos de Forrester sofreu diversas emendas durante o


curso do século XX como teoria da catástrofe, teoria do caos e teoria da complexidade, nomes
que, como apontam Levins e Lewontin “são metáforas para a ansiedade da falta de sentido
que as engendrou”. Como eles lembram “aonde reina a teoria do caos, a contingência
histórica desaparece. [Nesta perspectiva] toda a história demográfica de uma população a
partir de uma condição inicial já está imanente na equação de seu crescimento.” Nunca
podemos nos esquecer de que o desenvolvimento da sociedade, das espécies ou do sistema
solar são processos históricos, logo, sujeitos a acidentes. As leis da física explicam porque os
planetas gravitam em torno do sol, mas não porque, ao se observar o sistema solar elegendo a
302
direção norte como topo, todos os planetas giram no sentido anti-horário. A possibilidade de
que orbitassem na direção inversa ou de que a posição da Terra estivesse invertida com a de
Marte, não viola nenhuma das leis da física, apenas deriva das condições históricas da
formação da nuvem de gás que deu origem ao Sistema Solar. Da mesma forma, é através de
uma explicação histórica e não de uma teoria racial que se pode explicar porque o capitalismo
industrial foi gestado em Lancashire e não no Rio de Janeiro, e não a partir de teorias racistas,
como as defendidas pelo prêmio Nobel James Watson, a quem é creditada indevidamente a
descoberta da estrutura da molécula de DNA. Mais uma vez, é uma explicação dialética
histórica que nos permite explicar as contradições nas ideias deste cientista e porque o
racismo é um objeto mais real do que as raças e que o primeiro é que determina as categorias
raciais (Levins e Lewontin, 2007).
Um exemplo claro disso nos tempos atuais é a sociobiologia, que desfruta de
status de ciência, dentro da sociedade burguesa, mesmo tratando-se de mera pseudociência,
que, como todas as crenças desse tipo faz uma confusão deliberada entre conceitos científicos
e não científicos, normalmente para justificar uma posição política ou religiosa. A
sociobiologia é definida como o estudo de todas as formas de comportamento, de todas as
espécies, incluindo o ser humano, a partir de sua base genética.
As afirmações da sociobiologia tem um espaço garantido nas páginas da mídia.
Uma rápida busca em matérias sobre o assunto em populares sites de notícias nos retorna
alguns títulos que exemplificam bem o caráter anticientífico da sociobiologia, ainda que a
mesma esteja incrustada em grandes universidade. Começamos com o exemplo clássico, o
site G1, da Globo que publicou: Genes influenciam propensão à infidelidade, diz estudo20,
matéria que relata estudo, “publicado na revista científica "Evolution & Human Behaviour",
que chegou a esta conclusão analisando o comportamento de mais de 7 mil pares de gêmeos
na Finlândia.”
Muitas vezes os experimentos não são nem realizados em seres humanos, como o
caso Odeia acordar cedo? Cientistas descobriram que isso é culpa da genética 21, um
experimento da Universidade de Leicester que observou moscas separando aquelas com
hábitos noturnos, fazendo com que elas cruzassem umas com as outras de modo a reforçar
este comportamento. Mas, para a sociobiologia, a genética não explica apenas as relações
afetivas, mas também as profissionais. Assim reza matéria do portal UOL, para a qual Filho

20
http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2014/11/genes-influenciam-propensao-a-infidelidade-diz-
estudo.html
21
http://www.brasilpost.com.br/2015/05/18/acordar-cedo-genetica_n_7309936.html
303
22
desobediente tem mais chances de se tornar CEO de empresa , segundo a qual estudo da
Universidade do Kansas descobriu que “em crianças, o [gene]DAT1 leva a um
comportamento desobediente […] fornece qualidades de liderança positivas em adultos, que,
muitas vezes, são responsáveis por gerir grandes empresas.”. Também há uma explicação para
a abstinência de certas pessoas. Não consegue economizar? A culpa pode ser genética 23, que
afirma que “estudo do professor de economia na Universidade de Washington, Stephan
Siegel, […] publicado no Journal of Political Economy, mostra que 39% da diferença de
quantias poupadas pelas pessoas ao longo da vida pode ser explicada pela genética.”
Outra vertente muito comum, que tem sua origem no pensamento lombrosiano é a
publicação de matérias que apontam um caráter inato da violência, como Estudo vincula
genes com inclinação a cometer atos violentos24, na qual os genes MAOA e CDH13, são
responsabilizados por comportamentos criminosos. Ainda que estas matérias representem uma
tendência sensacionalista e desinformadora no que se refere à divulgação científica, muitas
vezes distorcendo resultados ao tecer ilações não presentes nos artigos originais, como o
exemplo da exaustiva repetição da nomeação do Bóson de Higgs como a Partícula de Deus, o
fato é que a sociobiologia é apenas um exemplo de como a pseudociência ocupa um
importante espaço nas universidades pelo mundo, o que constitui uma prova inequívoca da
crise na ciência.
Um exemplo relevante para seja confirmado este diagnóstico decorre do fato de
um dos mais citados artigos da prestigiosa revista PLOS Medicine seja “Por que a maioria das
conclusões de pesquisas publicadas é falsa?” do doutor John P. A. Ioannidis, da Escola de
Medicina de Stanford, publicado em 2005. Neste estudo ele afirma que:

Há uma preocupação crescente de que a maioria dos resultados de pesquisas


publicados atualmente sejam falsos. A probabilidade de que a afirmação de uma
pesquisa seja verdadeira depende do poder do estudo e de seu viés, do número de
outros estudos sobre o mesmo assunto, e, de forma importante, da razão entre as
relações sim/não demonstradas em cada campo científico (IOANNIDIS, 2005).

Esse problema não decorre apenas do erro estatístico envolvendo o problema dos
falsos positivos que proveem da aceitação acrítica de que um resultado é cientificamente
significante se a metodologia estatística utilizada garantir um valor de "p" (nível descritivo)

22
http://mulher.uol.com.br/gravidez-e-filhos/noticias/redacao/2015/06/01/crianca-desobediente-tem-mais-chance-
de-virar-ceo-de-empresa-diz-estudo.htm
23
http://www.infomoney.com.br/minhas-financas/planeje-suas-financas/noticia/4018886/nao-consegue-
economizar-culpa-pode-ser-genetica
24
http://exame.abril.com.br/tecnologia/noticias/estudo-vincula-genes-com-inclinacao-a-cometer-atos-violentos
304
menor que 0.05%, o que leva à equivocada impressão de que a confiabilidade deste trabalho
seria de 99,5%, quando na verdade eles podem representar falsos positivos em até 40% dos
casos (isso vai depender também do tamanho da amostra, n). Esse problema já vem sendo
abordado há bastante tempo, o que levou publicações como a Basic and Applied Social
Psychology (BASP) a banirem a utilização deste critério nos trabalhos aceitos.
O mesmo John Ioannidis cunhou o termo "Fenômeno Proteus", para se referir à
distorção representada pela diferença entre as taxas de discrepâncias entre resultados
temporãos de experimentos no campo da genética e as mesmas taxas em estudos com maior
intervalo de tempo entre si, o que só pode ser explicada pelo tendencialismo e pelo papel da
controvérsia na forte competição entre os grupos de pesquisa.
Alguns críticos falam sobre a irreplicabilidade do “conhecimento tácito”, do
talento e dos anos de prática que se leva para se dominar uma técnica. Mina Bissell, do
Lawrence Berkeley National Laboratory, publicou no site da Revista Nature um artigo no qual
afirmava ser injusta a exigência de replicabilidade, dando o exemplo do fracasso de certos
cientistas de replicarem experimentos utilizando linhagens de células epiteliais. Este fracasso,
segundo ela, se dá porque estas linhas de células são extremamente sensíveis, ou seja,
qualquer alteração em seu ambiente provoca resultados diferentes. A tese do conhecimento
tácito, apresentada por Michael Polanyi, é uma das bases das formulações posteriores do
capital humano, mas como quantificar os valores decorrentes deste fator? Por mais que as
ciências contábeis tenham definido modelos matemáticos que supostamente dão conta de
realizar essa conta, essa questão persiste como uma fonte de especulação, à semelhança do
valor do passe de um jogador de futebol.
Bissell, em seu artigo na Nature, ao comentar o caso da empresa Amgen que
relatou ter conseguido reproduzir os resultados de apenas 11% dos artigos de pesquisa sobre
tratamento do câncer, sugere que uma solução seria as empresas de biotecnologia enviarem os
cientistas para visitar os laboratórios originais. Ela desmerece o princípio da replicabilidade,
praticamente acusando as pessoas que se baseiam nele de apenas buscarem destruir a
reputação de cientistas respeitáveis:

Se um pesquisador gasta seis meses, digamos, buscando replicar esse trabalho e


reporta que o mesmo é irreplicável, isto pode impedir que outros cientistas sigam
uma linha promissora de pesquisa, prejudicar as chances dos cientistas originais de
obterem financiamento para prosseguirem, e potencialmente danar suas reputações
(BISSELL, 2013).
305
Nunca podemos esquecer que no ramo das pesquisas farmacológicas e médicas,
onde essa controvérsia foi gerada, bilhões são gastos todos os anos. Na verdade, por trás da
não replicabilidade está o sistema de “publicar ou perecer”, que foi emendado por “publicar
(qualquer coisa) ou perecer”. Esse é um sintoma do fato da ciência ter se tornado cativa do
capital. Sob essa lógica, quem se atreve a publicar um resultado negativo de uma pesquisa
após a mesma ter custado uma certa quantidade de recursos, públicos ou privados? O
problema da publicação dos resultados negativos já havia sido abordada pelo biólogo e
divulgador científico Stephen Jay Gould (1997, p. 123), que o batizou de Dilema de Cordélia
referindo-se à peça Rei Lear de Shakespeare, em que as filhas do rei, Goneril e Regan,
buscam ganhar a simpatia de seu pai com discursos falsos e aduladores, enquanto que
Cordélia, a caçula, que se nega a entrar neste jogo é deserdada. Francis Bacon, em seu livro O
progresso do conhecimento, de 1605, já havia apontado para esse problema:

Porque, tal e como agora se transmitem os conhecimentos, há uma espécie de


contrato de erro entre o transmissor e o receptor: pois o que transmite conhecimento
deseja fazê-lo da maneira que seja mais bem acreditado, e não mais bem examinado;
e o que o recebe, mais deseja satisfação imediata que indagação antecipada, e assim
antes não duvidar que não errar, fazendo o afã de glória com que o autor não
descubra sua fraqueza, e a indolência com que o discípulo não conheça sua força
(BACON, 2007. 203).

Finalmente, o exemplo da curva de Phillips constata como a crise do capital se


transforma em uma crise na ciência e esta é insuperável, da mesma forma que os limites do
capital, a não ser na medida em que a ciência insira em uma transformação radical de toda a
sociedade.

3.6.3 O estranho caso da curva de Phillips

Em a Crise do Capital em Marx e suas implicações nos Paradigmas da Educação


foi apresentado, na forma de um anexo, sob o título de O Estranho Caso da Curva de
Phillips, um resumo comentado do trabalho de Curado, Neduziak e Silva (2007), A curva de
Phillips e sua Aplicação na Economia Contemporânea.
306
Os autores, ao questionarem como um “instrumento de credibilidade parcial é
utilizado na atualidade, seja cientificamente, seja na elaboração de políticas
macroeconômicas”, apresentam a história comumente aceita do desenvolvimento da Curva de
Phillips e algumas de suas principais emendas, cuja síntese é aqui reproduzida:
Uma possível correlação entre inflação salarial e desemprego já é mencionada no
Livro I de O Capital. Irving Fisher também escreveu um artigo sobre esta relação em 1926.
Alban Phillips, professor da London School of Economics propôs em 1958 uma fórmula que
relaciona a taxa de desemprego com a taxa de variação do salário nominal para o Reino
Unido, no período de 1861 a 1957. Em 1960, dois futuros ganhadores do Nobel de Economia,
Samuelson e Solow, aplicam este modelo para os Estados Unidos, propondo substituir, dada
sua equivalência, a taxa de variação dos salários pela taxa de preços, batizando esta relação de
“Curva de Phillips”, que passa a ser um importante instrumento de tomada de decisões
macroeconômicas pelos governos. Os bancos centrais poderiam então escolher, através do
controle da massa monetária, entre uma inflação alta ou um desemprego alto, uma relação de
compensação (trade-off). Esta relação demonstrou perda de validade após a década de 70, por
conta da inflação decorrente dos “choques” do petróleo. Como resposta, Phelps e Friedman,
ambos laureados com o prêmio Nobel, criticam a utilização desta ferramenta, propondo a
“Emenda Friedman – Phelps”, na qual esta curva teria validade apenas a curto prazo, por
conta das expectativas adaptativas; a longo prazo ela se tornaria uma linha reta, ou seja,
qualquer tentativa de regulação, ao final, apenas produziria mais inflação. Robert Lucas e
Thomas Sargent, ambos nobéis, propuseram o conceito de “expectativas racionais”, o que
confirmaria a ineficácia da curva, segundo alguns autores da economia neoclássica, mesmo a
curto prazo. Ela não explicaria a situação estadunidense dos anos 90, período em que baixas
taxas de desemprego coexistiram com uma inflação controlada (CURADO et al, 2007). Surge
então o modelo de Ball & Boffitt que incorpora a produtividade do trabalho. Para os autores
citados:

A história mostrou que a relação entre variação dos salários e desemprego é


demasiadamente simples, faltando ao trabalho do próprio Phillips uma consistência
teórica. A suposta igualdade entre inflação de preço agregado e inflação salarial
também é inconsistente, posto que existem outros fatores não inerentes ao trabalho
que provocam flutuação no nível de preços (CURADO et al, 2007, p. 12).

A primeira parte desta narrativa, sem a menção a Marx e Fisher, é contada pelo
307
próprio Milton Friedman na tradicional conferência dada pelos galardoados com o Nobel, no
dia 13 de dezembro de 1976, que ele intitulou Inflação e Desemprego. Nesta conferência ele
faz questão de se diferenciar dos economistas do período pós-guerra e de criticar o
keynesianismo, algo esperado para um porta-voz do neoliberalismo, escola econômica que se
encontrava em plena consolidação como paradigma dominante, após a onda neoconservadora
que se espalhava pelo mundo. Enquanto Friedman recebia o prêmio, militantes dos direitos
humanos protestavam do lado de fora. Três anos e três meses antes havia ocorrido o golpe de
Pinochet no Chile, que em poucos dias após o bombardeio do palácio presidencial e do
assassinato do presidente Salvador Allende, cobrou a vida de milhares de pessoas,
assassinadas friamente, por seu envolvimento com os movimentos sociais, convertendo o
Chile no laboratório de aplicação das políticas neoliberais propostas por Friedman. Muitos
dos chilenos que ocuparam posições de comando no governo do Chile foram seus alunos de
pós-graduação em Chicago.
Segundo o professor James Forder, do Departamento de Economia da
universidade de Oxford, autor do artigo Nove visões da curva de Phillips: oito autênticas e
uma não autêntica, de 2014, a narrativa em torno da curva de Phillips é um mito inventado
pelos adversários do keynesianismo. Como coloca o autor: “Todos os componentes da história
são falsos. Ela é completamente não autêntica. Ela é uma invenção.” Ele demonstra que
Phillips não descobriu a relação inversa entre inflação e desemprego, que já era bem
conhecida antes dele; Samuelson e Solow não apresentaram uma interpretação de
compensação da curva; ninguém nos anos 60 viu essa relação na curva de Phillips, que não
teve nenhuma influência sobre os tomadores de decisão dos anos 70; o argumento das
expectativas convencionalmente atribuído a Friedman e Phelps data do meio ou final dos anos
60 e era lugar-comum antes deles. Ele sugere que o desenvolvimento do pensamento neste
caso não se conforma com as ideias de progresso científico e que os economistas dos
primeiros anos do período pós-guerra nunca foram tão ingênuos como são normalmente
representados (Forder, 2014). Friedman é o responsável por criar uma caricatura do que seria
a curva de Phillips, para se afirmar em contraposição a ela:

Conforme a história convencional foi contada, ela foi uma grande vitória para
Friedman e Phelps porque eles supostamente haviam ‘previsto o colapso’ da curva
de Phillips. Bem, essa história convencional é falsa. Nenhum deles previu nada
assim. Mas, o que ocorreu depois de 1970, foi que simplesmente se tornou um termo
conveniente, afirmar que a curva de Phillips mudou (ou ‘quebrou’, ‘desapareceu’,
308
‘deteriorou-se’, etc) como uma forma de resumir o problema daquela época: inflação
e desemprego estavam piores do que antes (FORDER, 2014, p. 10).

O fato é que a discussão em torno da curva de Phillips teve papel destacado na


teoria de 7 prêmios nobéis, durante 4 décadas, todos ligados ao liberalismo econômico:
Friedrich Hayek (1974), Milton Friedman (1976), Robert Lucas (1995), Robert A. Mundell
(1999), Edward Prescott (2004), Edmund Phelps (2006), Thomas Sargent (2011) e
Christopher Sims (2011).
E esse movimento segue, em recente artigo publicado na Revista Economia &
Tecnologia, de abril/junho de 2013, Veloso et al se propuseram a “avaliar se existe na
economia brasileira uma relação funcional inversa entre inflação e desemprego” no período
pós Plano Real. Os autores pretendem validar essa relação com um modelo matemático para
testar se essa correlação existe em uma série que compreende 123 observações mensais entre
2002 e 2012. Segundo suas palavras:

O procedimento de Johansen é, na verdade, a generalização multivariada do teste de


Dickey-Fuller. Assim, a metodologia de Johansen (1991), apesar de sua
complexidade teórica (Margarido, 2004), é extremamente utilizada porque, além de
revelar a existência ou não de cointegração entre as séries, permite também obter o
número de vetores de cointegração entre as variáveis (VELOSO et al, 2013, p. 9).

Para verificar se as variáveis encontradas provavam a aplicabilidade da curva de


Phillips para o Brasil, eles realizaram o teste de relação estatisticamente significativa, com um
nível de significância (valor de p) de 5%. Isso em si já seria motivo de um questionamento,
pois os autores não discutem a aplicabilidade ou não desta metodologia, que é uma fonte
considerável de erros de interpretação, recentemente banida de diversas publicações
acadêmicas de prestígio. Porém, o problema encontra-se na conclusão a que chegaram:

Pela metodologia de Johansen, constatou-se a existência de uma relação de longo


prazo entre as variáveis, no entanto, a relação que estas apresentaram não confirmou
a relação inversa entre taxa de inflação e a taxa de desemprego, sendo que o
desemprego também não exerceu influência significativa sobre a variação da
inflação. No modelo de curto prazo, a relação inversa entre taxa de inflação e taxa
de desemprego foi verificada, porém a mesma não apresentou relação
estatisticamente significativa, o que nos permite concluir que a curva de Phillips não
é verificada para a economia brasileira para o período estudado. Porém, se
considerarmos o sentido econômico e não a significância estatística, ‘pode-se’ dizer
que se encontrou para a economia brasileira a relação inversa entre taxa de inflação
e taxa de desemprego no curto prazo, mesmo sendo esta relação de baixa magnitude.
Se esse resultado for passível de avaliação, mesmo sem apresentar inferência
estatística, é possível alinhavá-lo ao que Friedman abordou em seu estudo sobre a
309
curva de Phillips, como visto, sendo que a curva de Phillips só se verificava a curto
prazo devido à assimetria de informação entre trabalhadores e empregadores, pois
não havia ilusão monetária (VELOSO et al, 2013, p. 17).

Realmente “pode-se” (as aspas estão no original) dizer qualquer coisa, mas o que
significa o “sentido econômico” de uma medida de econometria, que não pode ser provada
estatisticamente? Os autores não dizem. Quando o discurso científico entra neste labirinto é
um claro sinal de que existe um grave problema paradigmático nas ciências econômicas.
Como afirma Forder (2014):

O desafio não era que a ‘curva de Phillips’ havia mudado, mas entender exatamente
por quê. Então aqui, outra ‘curva de Phillips’. Ela não tem nenhuma formulação
econométrica específica; não tem nenhuma base lógica teórica específica. É uma
mera coisa, da qual a mudança deve ser econometricamente explicada (FORDER,
2014, p. 11).

Essa falta de conexão com a realidade, da emenda da emenda, em si, já tem um


significado negativo, mas para si, na medida em que a curva emendada de Phillips, ao gosto
dos neoclássicos, é a base do regime de metas de inflação:

Os defensores do regime de metas de inflacionárias têm como principais


argumentos: a hipótese da taxa natural de desemprego, Curva de Phillips com
expectativas e o denominado viés inflacionário (SICSÚ,2002). O viés inflacionário
estaria ligado à tendência de que os políticos têm de querer implantar políticas
expansionistas, com redução nos juros, o que provocaria somente inflação de acordo
tanto com as expectativas adaptativas como racionais. Ficando claro desde já que o
Regime de metas inflacionárias está embasado claramente na teoria da Curva de
Phillips (CURADO et al, 2007).

No Brasil, a taxa SELIC representa uma forma de se controlar a inflação a partir


de uma suposta relação direta entre esta e a taxa de juros, uma simplificação reducionista que
não se comprovou na prática. O que sim é automático é o fato de que cada décimo de variação
da taxa SELIC representa uma transferência automática de bilhões de reais dos fundos
públicos para o setor bancário privado. Como afirmou o economista Judas Mendes, da EBS
Business School, em entrevista a um site de notícias, em abril de 2015, um aumento de cada
ponto na taxa de juros tem um impacto catastrófico na dívida pública:

No início de 2013, a Selic estava em 7,25%. […] Subimos para 13,25%. O que
aconteceu com a inflação nesse período? Só aumentou. Estava na casa de 6% e
agora já passou de 8%. […] Em um país com uma dívida de R$ 2,3 trilhões, nós
vamos jogar no lixo esse ano a mais R$ 150 bilhões com juros. Isso é o dobro do
que o governo investe em educação.(Matéria: Veja a repercussão do aumento dos
310
juros para 13,25% ao ano).

Neste caso a ciência econômica torna-se um mero discurso, uma forma de


justificar uma decisão política, rompendo a dualidade com seu valor de uso. Como afirmou
Theotonio dos Santos, em um artigo no jornal Monitor Mercantil, trata-se de mais um caso no
qual o remédio aplicado torna-se o próprio veneno:

Contra os delírios monetaristas, baseados numa lógica formal elementar, as altas


taxas de juros são, na verdade, inflacionárias porque a inflação não é um fenômeno
somente da demanda e sim principalmente ligado à oferta. E o preço dos produtos
está fortemente influenciado pelos custos, entre os quais a taxa de juros representa
um papel fundamental (Matéria Ensinar economia ao Lula? 13 de Novembro de
2006).

Buscamos nesta terceira parte do presente trabalho apresentar evidências de que


todos os ramos da Ciência, de forma distinta, atravessam uma crise de paradigmas que resulta
da contradição entre sua natureza subversiva de ser uma expressão da liberdade humana sobre
a realidade, pois como Engels reconheceu o mérito de Hegel, foi ele o primeiro que soube
expor a relação entre realidade e necessidade:

Para ele, a liberdade não é outra coisa senão a convicção da necessidade. ‘a


necessidade somente é cega enquanto não compreendida,’ A liberdade não reside,
pois, numa sonhada independência em relação às leis naturais, mas na consciência
dessas leis e na correspondente possibilidade de projetá-las racionalmente para
determinados fins (ENGELS, 2010D, p. 105, tradução nossa).

Desta forma demonstra-se que está correta a ideia de Marx de que “a crítica a que
a economia burguesa submeteu as sociedades anteriores […] assemelha-se à crítica do
paganismo pelo cristianismo, ou até a do catolicismo pelo protestantismo” (Marx,
Introdução), ou seja, a ciência só poderá ser consequente com a superação dos paradigmas do
século XIX, mantendo os objetivos anunciados por muitos de seus formuladores, se for capaz
de fazer uma crítica da sociedade que a gerou.
311
4 A CRISE PEDAGÓGICA DA EDUCAÇÃO

O trabalho de pesquisa anterior apresentou um quadro de interdeterminações entre


a crise econômica, a ciência e a educação que permitiu concluir que uma crise de paradigmas
na ciência dissocia a educação de seu objetivo social e humano, a formação da consciência
científica e técnica da sociedade e sua acumulação sistemática reprodutiva e criativa, de
saberes qualitativamente diversos e socialmente necessários à produção e reprodução dos
sujeitos históricos. À medida que modelos teóricos equivocados e refutados pela práxis social
permanecem no domínio das disciplinas do ensino, seja por resistência e/ou inércia (KUHN,
1971; HORKHEIMER, 2003), seguem constituindo a atividade e conteúdo educativo. A
ciência, força produtiva que permitiu à sociedade e o conhecimento humano em geral libertar-
se das amarras do feudalismo, hoje se encontra deformada e retida, presa a dedicar-se apenas
a resolver os problemas da produção e, mesmo assim, tem-se demonstrado cada vez mais
incapaz de fazê-lo.

A crise de paradigma na ciência implica a perda de efetividade do ensino


porque imobiliza a pedagogia, amplia o hiato entre a teoria e a prática social,
ampliando assim a contradição entre a escola e a vida real, o docente e o discente,
embotando o desiderato pedagógico que a sociedade atribui à Educação. É isto, por
um lado, que dá visibilidade às tendências à deficiência do ensino formal e redução
de sua importância social, justificando os índices de evasão escolar [...] e a
banalização da ciência; por outro lado, a tendência a compensar este hiato
qualitativo, quantitativamente, superdimensiona o ensino tecnológico e instrumental
até o esvanecimento da dimensão social do ensino público que, por via transversa,
legitima a formação corporativa [...] (BEVILAQUA, 2011, p. 257).

O trabalho anterior também sustentou que a crise do capitalismo atual é resultante


do acúmulo de contradições que se manifestam mundialmente de forma gradual e por rupturas
súbitas, logo, constitui uma crise orgânica do capital na produção, na ciência e na educação,
transformando a categoria paradigma em veículo de transcendência de uma esfera à outra da
sociedade, da produção à ciência, da ciência à educação, atribuindo à pedagogia o instrumento
de sua reversão da educação à ciência e da ciência à produção (2011, p. 256).
O impacto da crise do capital sobre a educação torna-se visível nos diferentes
momentos do ciclo econômico: tanto na expansão da produção, em que falta mão de obra
adequada para servir a áreas de desenvolvimento da ciência, como nos momentos da
contração da produção, quando esta se torna redundante. A educação não apenas acompanha o
312
movimento do Exército Industrial de Reserva, da superpopulação relativa nos momentos de
expansão e contração, mas tem traços característicos distintos em cada momento: no primeiro,
dedica-se à formação da mão de obra necessária; no segundo, o excesso de pessoas formadas
leva à desvalorização geral dos trabalhadores. Assim, a educação desempenha também papel
similar ao do Exército Industrial de Reserva sobre os salários, atuando a cada passo do
desenvolvimento da produção: quando na produção se aplica uma nova tecnologia, a
educação volta-se a isso; logo, há um excesso de pessoas formadas em determinada área, o
que implica uma desvalorização da força de trabalho formada cujo impacto é ainda maior
sobre o conhecimento acumulado que foi substituído pela inovação.
Na crise, todo esse processo se acentua, acelera e fica mais visível; as descobertas
científicas que abrem novos campos de produção reclamam e denunciam a incapacidade da
educação de satisfazer essas novas exigências. Assim como a mais-valia necessita da rotação
para realizar-se, a educação tem um tempo de rotação que não acompanha a velocidade com a
qual surgem novas demandas produtivas e o mesmo acontece com a ciência; pois até que esta
possa gestar uma solução teórica para os problemas práticos, eles gritam por seu atraso,
conduzindo esta à aplicação tecnológica mais imediata, que tem maior êxito a curto prazo que
a construção teórica. Reduzir esse tempo de resposta às necessidades da produção é um dos
motivos que leva empresas a estabelecerem centros avançados de estudo e tecnologia com
linhas de pesquisa enquadradas dentro dos objetivos da própria empresa. Essa diferenciação
na ciência atua, dialeticamente, sobre a educação, exigindo uma formação mais técnica e
prática que a formação humana integral, que deveria ter predomínio sobre essa prática.
No momento atual, a crise vem à luz sob a ótica burguesa como excesso de força
de trabalho qualificada nos países desenvolvidos; o indivíduo passa pela formação que
prepara a força de trabalho para a produção, mas não consegue entrar no 'mercado de trabalho'
após esse processo (Figura 13); há uma dissonância entre a educação e sua própria função
social designada pelo capitalismo. A educação submete-se, portanto, aos imperativos do
ensino profissionalizante e corporativo para tentar responder a essas necessidades do capital, o
que só reproduz e amplia sua subsunção e crise, pois o ensino instrumental é
consequentemente mais efêmero, implica desvalorização mais rápida das capacidades
adquiridas.
313
Figura 13: Taxas de desemprego juvenil (2008 e 2012) na Europa

(Fontes: OIT 2013 Tendencias mundiales del empleo juvenil 2013).

Assim, com a crise, a educação passa a ser agrilhoada pelos dois pulsos: por um
lado, pelos paradigmas ultrapassados da ciência que, incapazes de explicar a realidade aos
sujeitos cognoscentes, perde-se em uma retórica dissociada de seus objetivos sociais; por
outro, pela necessidade da produção, que impõe a lógica produtivista sobre os métodos
pedagógicos e de avaliação e estabelece conteúdos voltados ao lucro em detrimento do
desenvolvimento humano.

4.1 Paradigmas pedagógicos na história

No presente trabalho em suas partes II e III, a educação é apresentada como


aparelho produtor e reprodutor da sociedade e, como tal, da crise vivida pela mesma,
desempenhando duplo papel; por um lado, de instrumento de política econômica aplicada
como contratendência à crise orgânica do capital; e por outro lado, de tendência emancipatória
e corrosiva do equilíbrio orgânico do capital, atuando como força propulsora da crise. Neste
aspecto, externaliza esta contradição básica em crise própria de paradigma quanto ao seu
314
papel como atividade criativa, produtora e reprodutora do saber sistemático e aplicado da
humanidade e a atividade estéril e transmissora de conhecimento e valores, voltados
perpetuum mobile ao domínio da relação capital.
Mas a história da educação não se resume a este papel, ela tem uma origem tão
antiga quanto se pode imaginar os primeiros momentos de uma comunidade ou família
ampliada cujo trabalho para subsistência e reprodução exige a subjetivação de movimentos
repetidos e articulados dos membros e músculos coletivos para explorar a natureza objetiva,
segundo um plano teleológico. A mímese que requer este processo metabólico da humanidade
e da natureza exige, como formulou Marx nos Grundrisse (2009), a repetição dos
movimentos, uma tecnologia que deve ser acumulada e transmitida, portanto, o ato criativo, o
ato produtivo, o ato transformador é ao mesmo tempo, por mímeses, o ato educador. O
trabalho humano que atua na transformação da natureza exterior, transforma a natureza
interior da própria humanidade: trabalho manual é trabalho intelectual. E este registro
histórico se encontra no conceito de Paideia.
Até a Idade Média não havia escolas, tal qual as conhecemos, a educação se dava
através de preceptores e estava voltada a alcançar o ideal, espelhando-se nos deuses, como o
conceito de cópia de Platão. O que retrata também o aspecto mitológico para atingir o aretê, e
isso explica ainda mais porque o herói representado na figura de Aquiles (JAEGER, 2013, p.
28), em Ilíada, com sua honra e virtudes tenta alcançar o aretê, e assim se igualar ao mito dos
deuses. O objetivo da formação era o aretê (passim), o ponto máximo que o ser humano pode
alcançar em uma técnica determinada, como a luta, a arte, a religião, etc. Todas as concepções
sobre a educação desta época são derivadas das grandes obras escritas que ficaram como
legado à humanidade; em cada referência deduz-se os ensinamentos passados. Em a Odisseia
(HOMERO, 2003, passim) expressa o domínio da razão na sagacidade demonstrada por
Ulisses em sua viagem de 12 anos de volta à sua ilha, Ítaca. Ao desafiar os deuses durante os
eventos dramáticos que levaram à derrocada de Troia, Ulisses precisa enfrentar a fúria dos
deuses, como Poseidon, assim, tem que lutar e dominar as forças da natureza externa, o mar é
um dos exemplos flagrantes, e sua natureza interna, ao dominar seu próprio instinto, como se
pode verificar no Canto XII de Odisseia, quando Ulisses, o Odisseu, é alertado pela deusa
Circe quanto ao mortal encantamento das sereias e a necessidade de amarrar-se ao mastro da
embarcação para resistir e seguir sua viagem até Ítaca (p. 265-285).
Surge o conhecimento do mundo através da razão e seu desenvolvimento leva à
315
sua separação em conhecimentos específicos como economia, história, etc. A Paideia., desde
cedo, é caracterizada pela formação de classes, uma vez que os deuses narrados pelo poeta
Homero representavam uma “sociedade imortal de nobres”, assim, a essência de toda piedade
e do culto grego era honrar a nobreza, a classe senhorial, dessa maneira, aproximando-se das
divindades. A educação recebida por Telêmaco, filho de Ulisses e Penélope, que nada mais é
que a educação para a elite com o predomínio da racionalidade, afinal, ele teria que ser sábio
para proteger Ítaca até o retorno de seu pai, o rei, proteger sua mãe dos vários pretendentes
que queriam, desposar a rainha Penélope e governar Ítaca (HOMERO, 2003, passim). Por
outro lado, Teogonia, de Hesíodo, conta a origem dos deuses, com base na relação planetária,
a formação do universo (HESÍODO, 2007, passim). Segundo Jaeger esta obra constitui o
discurso para formação do homem camponês, que precisa se relacionar com as estações do
ano, a visão de mundo com relação ao telúrico:

O poema de Hesíodo permite-nos conhecer com clareza o tesouro espiritual que os


camponeses beócios possuíam, independentemente de Homero. Na grande massa
das sagas da Teogonia encontramos muitos temas antiquíssimos, já conhecidos de
Homero, mas também muitos outros que nele não aparecem. E nem sempre é fácil
distinguir o que já estava elaborado em forma poética daquilo que corresponde a
simples tradição oral (JAEGER, 2013, p. 88).

Assim, surge o conceito da educação propriamente dita como maneira de manter


o sistema para as elites; porém, isto já não é válido para o camponês ou atividades ligadas às
necessidades básicas da comunidade ou sociedade em questão, tais como ferreiros,
marceneiros, etc; nestas, o trabalho e a educação estão unidas; contudo, o conceito dominante,
a ideia de reprodução, transforma-se com o tempo. A pedagogia supera a ideia de formação de
crianças, é uma pedagogia dirigida que acompanha a racionalidade do desenvolvimento da
sociedade: a divisão do trabalho. A educação surge como reprodução e se altera; a Paideia
demonstra este processo de desenvolvimento e superação como debate entre ideias; como por
exemplo os debates entre os dialéticos, pré-socráticos e Aristóteles; ou entre Platão e os
sofistas. Isso mostra como a educação tem em sua origem a visão de totalidade, surge como
reprodução da sociedade e desenvolve-se junto ao desenvolvimento desta: acompanha a
divisão entre classes sociais, a divisão do trabalho.
A concepção que emerge como formação humana depois da Paideia acompanha a
construção do outro mundo que vai surgindo: o Império Romano, que se levanta como centro
de formação cultural e de conhecimento do mundo antigo, apesar das outras experiências que
316
existiam antes, como o Império Oriental, o Império Andino, os Impérios Africanos, etc.
Acompanhando seu crescimento, o caráter de classe da educação também se acentua, há
formações diferentes para o imperador, os senadores, etc; especialmente a educação das
classes dominantes caracterizava-se pela força, pela guerra, que nesta época era uma atividade
importante para a manutenção da estrutura social. A educação em Roma pulverizou-se e, em
seu período de decadência, retorna a uma forte base religiosa, com adoração dos deuses, etc.
Surge também na Europa forte resistência, tanto militar e econômica como cultural, o que
implica o domínio de uma certa concepção de formação das próprias pessoas; o ensino oficial
oprime toda outra forma de educação, a alternativa se dá através de pequenos círculos
(SUCHODOLSKI, 1974, pp. 25,82).
Assim como Alexandria foi refúgio de várias correntes de pensamento e de
pedagogia durante o tempo de Platão, sob domínio da Academia, as periferias do Império
Romano, nas regiões onde concentravam-se as populações oprimidas e inclusive em Roma,
desenvolveram-se pequenos grupos de formação e resistência, dentre estes, o que chega a
dominar a própria ciência e educação. Das diferentes maneiras de explicar o mundo,
iniciando-se com os preceptores de origem religiosa, a formação através de pequenos grupos
agora passa a ser uma formação única, dominada pelo monismo católico, a interpretação do
mundo a partir da igreja.
A igreja domina o ensino durante toda a Idade Média, o domínio sobre a educação
chega ao monopólio através do Estado absolutista; porém no decurso do tempo, esse
monopólio foi se enfraquecendo; o mesmo que foi feito antes contra Roma agora é feito
contra a igreja: a educação começa a desenvolver-se através dos preceptores, que formavam o
sujeito em técnicas e comportamentos que distinguiam as classes abastadas, os únicos que
tinham recursos para se dedicar aos estudos. O Emílio de Rousseau (1995, passim) marca a
insurgência a tudo isso e a passagem para outro tipo de pedagogia.
O Renascimento resulta também da crise do sistema Lombardo, a sociedade
feudal sofre mudanças. Roma assiste a um renascimento como tentativa de se livrar do
constrangimento da igreja, para buscar nos antigos a dialética, as ciências e a racionalidade;
sua pedagogia ativa, a exemplo de Comênio (SUCHODOLSKI, 1978, pp. 18-38), e a própria
igreja tem que se adaptar à nova realidade, o que se reflete na pedagogia. A educação tem um
novo papel, uma nova relação com a criança que não é mais concebida apenas como um
receptáculo da pedagogia, há um relaxamento na didática que busca a intervenção do próprio
317
aluno. Surge a Tese do Livre Arbítrio (AGOSTINHO, 1995. pp. 15-18) em que Santo
Agostinho preconiza que o arbítrio dos homens representa a generosidade de deus para que a
humanidade escolha seus próprios caminhos, ao contrário dos “[…] maniqueus, os quais
negam o livre-arbítrio da vontade e pretendem fazer recair em Deus a responsabilidade pelo
mal e pelo pecado. É contra eles que o tratado insiste, valorizando grandemente o papel da
liberdade humana.” (p. 17). Surge o Ratio Studiorium, com base em São Tomás de Aquino,
contrapondo-se à proliferação de didáticas inspiradas no livre-arbítrio. A unidade da
concepção de mundo da Igreja não resiste ao desenvolvimento das práticas capitalistas,
vivendo um processo de contradição e crise. O poderio da igreja sobre o conhecimento
humano é contestado no interior da própria igreja, como se observa nos casos de Giordano
Bruno, Galileu e Copérnico, este último desenvolveu uma teoria que teve que esperar 250
anos para poder efetuar-se; o Livre Arbítrio que representava uma tentativa da igreja de
absorver tudo que surge de novo, considerando sua incapacidade de combatê-lo; sofre a
contestação da Reforma, que leva a igreja a uma divisão histórica entre os romanos e o
protesto. Nas regiões onde predomina o protesto, há maior liberdade para ciência e a
economia está em outro nível de desenvolvimento. Por outro lado, emerge a contrarreforma, a
reação católica parte para a contestação do renascimento e os “soldados de Cristo” da
Companhia de Jesus, fundada pelo jesuíta Inácio de Loyola (VAINFAS, 2012), vêm garantir
as posses católicas nas colônias, arrefecendo e concentrando seu domínio sobre estas; a
Inquisição destaca-se como instrumento de repressão que exerce forte influência também
sobre a ciência e a educação. Este é um traço distintivo da educação nos países da América
Latina de maneira geral, diversas nações vão surgindo na tentativa de resistência, inclusive de
subsistência no mundo feudal.
Com o desenvolvimento das relações de produção capitalistas, ainda que
subsumidas ao absolutismo feudal, um novo deslocamento surge nos conceitos de educação:
Emílio ou Da Educação (1995), de Jean Jacques Rousseau, em que se obtém uma noção
próxima do que representou o Iluminismo e o projeto pedagógico moderno. Convidado a ser
um tutor, Rosseau declina e explica que a sociedade tolhe a criatividade e inteligência da
criança e isso ocorre desde que ela é recém-nascida, toda amarrada em mantas, quando o ideal
e natural é que criança é movimento. Rosseau defende o respeito ao desenvolvimento físico e
cognitivo da criança e propõe uma educação sem os artificialismos próprios da sociedade
existente. Daí, apresenta através do personagem Emílio como seria a criação ideal, da infância
318
até a fase adulta. O autor defende uma instrução pública geral dos “cidadãos” coesa e
solidária; um dos pontos essenciais de seu projeto político é a defesa de que a liberdade não é
alienável, sendo assim vinculada à própria natureza humana. Essa obra pedagógica resgata o
conceito de formação humana da Paideia, com um significado de transformação para a
pedagogia, cujo objetivo é criar o homem livre, o cidadão do mundo; uma pessoa capaz de
sobreviver em sociedade, um ser humano formado para a república, para o Contrato Social, ou
seja, formado para a revolução, para o capitalismo, que não está preso às correntes da
desigualdade que a sociedade feudal e escravista desenvolveram; agora o indivíduo é livre,
mas vive dentro de um sistema social. A educação aqui deixa a esfera da mera reprodução e
converte-se em educação transformadora enraizada em uma concepção de humanidade:
quanto mais livre o homem, mais perto ele está do bom selvagem, do homem puro
(ROUSSEAU, 1995, passim).
Esses processos históricos nos ajudam a entender o que vivemos hoje: a educação
muda com as mudanças na sociedade, sofre os constrangimentos do poder e da força sobre ela
para que não se desenvolva, porém, encontra seus meios de escape e resistência – como
resistiu ao monopólio do conhecimento da Arcádia, de Platão, ao Império Romano e ao
domínio da igreja. As crises, processos de transformações econômicas e sociais são refletidas
na educação ao passo que a educação se reflete nessas transformações; há uma interação
dialética. O destino da educação está inextricavelmente ligado ao da ciência, da mesma
maneira como o desenvolvimento desta está ligado à racionalidade; na ciência e pedagogia
modernas, essa unidade é indissolúvel. Com a divisão do trabalho, essa unidade se rompe,
cada vez mais ciência e educação sofrem uma separação, cuja expressão maior são os
paradigmas autonomizados de ambas partes. A ciência é usada pela sociedade na produção de
valores de uso por sua qualidade de acelerar, ampliar e aperfeiçoar a produção econômica; a
educação fica relegada à noção de reprodução da sociedade, limitando-se a oferecer os
elementos humanos para a produção, ou seja, a formar o sujeito cognoscente para a ciência,
porém, só até o momento no qual esta passa a não funcionar para os objetivos da sociedade.
Os paradigmas da educação que estão divorciados da criação científica ou os efeitos que os
paradigmas da sociedade têm sobre a formação e reprodução humana perdem sua eficácia e a
ciência e educação entram em crise; a ciência já não tem mais aplicação prática e a crise não
pode se resolver colocando mais pessoas na escola para aprender paradigmas ultrapassados
(BEVILAQUA, 2011).
319
4.2 Os paradigmas marxistas da educação

O problema de definir uma concepção de educação na tradição marxista que possa


contribuir a reverter o quadro da educação hoje, ou mesmo na obra dos supostos marxistas
atuais, como vimos ao abordar a temática da crise, reside, por um lado, no fato das
interpretações ditas marxistas serem insuficientes para oferecer uma alternativa coerente com
a doutrina de Marx e Engels, comprometida com a classe trabalhadora em sua luta contra o
domínio burguês não apenas sobre a produção, mas sobre a ciência e a educação; por outro
lado, porque o pressuposto para que uma educação marxista se realize de fato é a mudança do
modo de produção do capitalismo para o socialismo. Esse processo se agravou após a queda
das experiências socialistas da antiga URSS e do Leste Europeu, e que resultou num desgaste
das formulações e paradigmas teóricos marxistas e da própria ideia de revolução, limitando ao
mínimo o espaço de resistência e luta por uma educação revolucionária nas escolas, institutos,
universidades e demais instituições da educação no ensino e pesquisa pública e privada na
sociedade capitalista atual, apesar do momento de crise que esta atravessa.

4.2.1 Limites do marxismo ocidental

Como demonstramos em trabalho anterior, a prática revisionista e a tática


reformista têm raízes na luta de classes expressa no interior da teoria marxista, como
demonstra o debate sobre a Teoria do Colapso, os debates teóricos de Lênin com os narodniki
e os marxistas legais, e as críticas pré-marxistas e liberais ao próprio trabalho de Marx e
Engels. A verdadeira dimensão do que significa para a luta de classes as tendências do que se
convencionou denominar de marxismo ocidental, incluindo as atuais, tais como se observa
nos teóricos da sociedade do conhecimento, do capitalismo cognitivo, do conceito de
multidão, do fim da sociedade do trabalho abstrato (FRIGOTTO, 2010), assim como até bem
pouco tempo, dos teóricos do eurocomunismo, da democracia como valor universal, etc, ainda
está por investigar-se; neste sentido, a Escola de Frankfurt é exemplar.
320
As raízes teóricas do Marxismo Ocidental são mais profundas que a mera aporia
hegeliana ou historicista-pragmática de Lukács, Korsch ou Gramsci, elas chegam a Labriola,
Sorel, Croce, Gentile, Simmel, Weber, Dilthey, Andler, ao pré-marxismo idealista liberal,
utópico e anarquista. Tais raízes semeiam a “confusão nos conceitos fundamentais da teoria de
Marx e Engels” e conduzem à sua “ambiguidade” (LUKÁCS, 1989, passim); no entanto, as
principais consequências são seus desdobramentos ulteriores. O Instituto de Pesquisas Sociais
de Frankfurt, fundado por decreto do Ministério da Educação da República de Weimar, em 13
de Fevereiro de 1923, que contou com a participação de Georg Lukács, Karl Korsch,
Friedrich Pollock, Karl August Wittfogel e outros (JAY, 1974), exprime a viragem na história
do “marxismo ocidental”, fazendo com que a prática e teoria revolucionárias unidas à
atividade partidária e das massas passasse à esfera universitária, circunscrita ao “marxismo
legal” ou “marxismo de cátedra”, distanciando-se portanto dos objetivos traçados por seus
fundadores (ANDERSON, 1976; passim). As abundantes referências na academia até hoje aos
intelectuais da escola de Frankfurt são evidência da abertura e respaldo que receberam da
institucionalidade burguesa e abrangência que suas ideias alcançaram.
A derrota da república de Weimar para o nazismo tem grande importância, mas a
passagem ao marxismo legal não tem origem neste processo, ou na presumida tradição
ocidental. O marxismo legal já era diagnosticado por Lênin como corrente liberal no
marxismo internacional, existente na Rússia desde a década de 1890 (LÊNIN, 1986, v. 23, pp.
18-19). Logo, este desvio não deriva tão somente da chegada de Max Horkheimer à direção
do Instituto. A hipótese mais provável para este processo talvez seja a da renúncia, por um
lado, ao paradigma bolchevique; por outro, ao paradigma dos partidos sociais-democratas da
II Internacional (JAY, 1974). Este fato conduz o Instituto à dependência estrutural da
instituição universitária, ou ao governo, e, portanto, à sua subsunção teórica aos paradigmas
ordenadores da ciência ou às disciplinas que lhes dizem respeito. Naturalmente, estes
fundamentos não estão em Lukács, Korsch e Gramsci, que, bem analisados, caricaturam
Lênin na luta contra a ortodoxia reformista da II Internacional; mas no pré-marxismo e no
liberalismo burguês. O fulcro da questão é mais visível na crítica de Benedetto Croce a Marx
e Engels no livro Materialismo Histórico e Economia Marxista (CROCE, 1921; pp. 37-40),
que identifica a resistência ideológica do pré-marxismo e do liberalismo econômico na
concepção de materialismo histórico de Labriola e Lória (Itália), Sorel e Andler (França) e
Sombart e Bernstein (Alemanha), etc (CROCE, 1921, pp. 78-88, 112-113 e 129-131).
321
Porém, Croce apresenta suas próprias críticas contemporâneas à teoria marxista
que incluem lugares-comuns como “a tendência ao 'positivismo' e 'evolucionismo' […] que
'introduz o materialismo metafísico' na sistematização do materialismo histórico”; a tendência
ao 'dogmatismo da interpretação extrema' de Marx”; “a crítica do materialismo histórico como
'ciência' ou 'método' da história”; e “seus 'conceitos ou categorias abstratas' (BEVILAQUA,
2011, pp. 212-213). Em toda a obra de Croce é evidente a resistência à ciência marxista, como
observou Gramsci em El materialismo histórico y la filosofía de Benedetto Croce (1971,
passim). Mesmo tomando como referência outros acadêmicos, podemos encontrar tais críticas
em trabalhos acadêmicos destes conceituados cientistas, pois os conceitos do marxismo
ocidental foram amplamente divulgados em toda Europa e também na América Latina. A
demarcação conceitual do marxismo ocidental não se sustenta tão somente em uma releitura
de Marx, ou uma abordagem sob nova ótica devido a avanços científicos ou filosóficos na
Europa. Os ataques à doutrina marxista, que resulta da crítica à economia política clássica
inglesa ao socialismo utópico francês e à filosofia idealista alemã, foram melhor explicados
por Lênin, de forma resumida, na seguinte passagem de seu ensaio As três fontes e partes
constitutivas do marxismo: “Os homens em política sempre foram vítimas ingênuas do
engano dos outros e de si mesmos, e continuarão a sê-lo enquanto não aprenderem a
descobrir, por trás de todas as frases, declarações e promessas morais, religiosas, políticas e
sociais, os interesses de uma ou de outra classe” (LÊNIN, v. 23, p. 48).

4.2.2 Experiências pedagógicas sob a teoria marxista

A teoria marxista da educação acompanha a crise do marxismo em geral e do


marxismo ocidental em particular, que ora nega, ora afirma a experiência soviética. Os autores
que utilizamos para uma investigação aprofundada das teorias pedagógicas marxistas que
influenciaram a educação ocidental foram Manacorda em Marx e a Pedagogia Moderna
(2007) e Bogdan Suchodolski (1974) em A Teoria Marxista de Educação (1974), que, apesar
de apresentarem formulações insuficientes como candidatas a paradigma nesta crise que afeta
a educação, continuam sendo referência por serem teses inspiradas na totalidade do
pensamento de Marx e Engels.
322
Manacorda fez um estudo sobre diferentes trabalhos de Marx e identifica
diferenças em como é conceituada educação em cada uma das obras avaliadas. Contudo, essa
constatação não apresenta dificuldades em uma abordagem a partir da totalidade da obra dos
autores, ao considerar que as diferentes concepções obedecem ao objeto imediato de cada
trabalho em questão, seja de ordem programática como no Manifesto do Partido Comunista
(MARX, 2010i), de natureza mais tática como nas Instruções aos Delegados da Associação
Internacional (MARX, 2010f), uma concepção de fundo sobre uma educação revolucionária
para a classe trabalhadora como na Crítica ao Programa de Gotha (MARX, 2010a) ou como
denúncia do trabalho infantil(MARX, 1985) em O Capital. O autor atribui esta variação à
divergência entre Marx e Engels ao redor do conceito de educação, o que não lhe impede
extrair uma definição sintética, com base na teoria gramsciniana da educação como ensino
ligado à produção social para a construção da hegemonia da classe trabalhadora e ferramenta
de luta.
Suchodolski em Teoria Marxista da Educação (1976) também considera a
educação uma ferramenta na luta de classes, e vê a educação socialista como introdução à
compreensão da realidade objetiva e estrutural da sociedade, suas leis e tendências, bem como
atividade social que forma o ser social para lutar pela transformação dessa estrutura
(SUCHODOLSKI, 1976, p. 18-74). No entanto, em seu trabalho posterior, A pedagogia e as
grandes correntes filosóficas, abandona a concepção marxista e defende a necessidade de
vincular a pedagogia da existência à pedagogia da essência, em uma pedagogia “voltada para
o futuro”, isto é, numa corrente pedagógica que guarda afinidades com o idealismo ao mesmo
tempo que se aproxima do materialismo, pois “esse ideal se caracteriza por uma diretriz de
ação no presente, que deve transformar a realidade social de acordo com as exigências
humanas” que têm a vida como ideal futuro (apud WOJNAR, 2010, p. 133).
Naturalmente, as formulações teóricas de Manacorda e de Suchodolski se
diferenciam substancialmente das formulações constituídas na experiência da União Soviética
e dos demais países socialistas, entre estas: a teoria da educação de Makarenko (1985), como
ode ao trabalho coletivo, como educação interativa entre instrução e atividade produtiva na
formação do homem novo; e a pedagogia histórico-crítica de Vygotsky (1991), centrada em
uma psicologia educacional fundada histórica e socialmente. Teorias até hoje estudadas no
ocidente e adaptadas às singularidades históricas de cada país, que as tomam como
paradigmas auxiliares em sua pedagogia educacional. Isto é válido até mesmo para as
323
experiências educativas da revolução chinesa, inclusive tendo em conta toda a controvérsia de
sua tentativa de revolução cultural e, mais proximamente, para a Revolução Cubana, que
mescla às concepções de educação marxista às concepções pedagógicas do liberalismo
iluminista revolucionário de José Martí.

4.3 Os teóricos brasileiros e os paradigmas pedagógicos

As teses de Saviani (2008) sobre as “concepções pedagógicas contra-


hegemônicas” no Brasil – segundo as quais o marco inicial de predomínio das ideias
socialistas sobre o movimento operário remontaria a 1890 – sustenta que não teria existido
uma formulação pedagógica claramente comunista no país até 1980. No primeiro momento,
as escolas anarquistas “autônomas” e “autogestionárias” predominam, sob os “princípios e
conceitos de ‘educação integral’ de Robin e [do] ‘ensino nacionalista’ de Ferrer”. Num
segundo momento, a conjuntura de “derrota da revolução no ocidente” (1922, na Itália e 1923,
na Alemanha) e de derrotas teórico-táticas, iniciando a etapa da “revolução democrático-
burguesa”, leva os comunistas (PC) a apoiarem o “movimento escolanovista”. Segundo o
autor, entre os “anos 60 e 70, o que surge como concepção alternativa é a pedagogia
libertadora de Paulo Freire” (SCOCUGLIA apud SAVIANI, 2008). Na “década de 1980,
emerge como proposta contra-hegemônica a concepção pedagógica histórico-crítica”
(SAVIANI, 2008, pp. 114-118).
No Brasil, estas referências se concentram em três autores atuais: Moacyr
Gadotti (2010), que defende uma conciliação entre o discurso pós-moderno e a teoria crítica,
através da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire (1987), na versão da Pedagogia do
Conflito (1991); Dermeval Saviani, que defende a concepção pedagógica histórico-crítica,
que une Gramsci a Vygotsky (2008) e Gaudêncio Frigotto, que sustenta sua tese da
Produtividade da Escola Improdutiva (1989) e a reafirma em polêmica eclética, contra o pós-
modernismo e o “dogmatismo”, em seu trabalho A Educação e a Crise do Capitalismo Real
(2010).
Quanto a Gadotti (2000, 2010), o escopo do seu trabalho é problematizar as novas
referências e tendências pedagógicas no século XXI, centradas na noção de pós-modernidade.
324
O autor localiza nas transformações tecnológicas (revolução informacional) e políticas (crise
do capitalismo e do socialismo) a crise de paradigmas e o fundamento das categorias do
discurso pós-moderno, em analogia ao que prediz MacLuhan, em 1969. Sua formulação
sugere a unidade conceitual entre as categorias filosófico-pedagógicas do discurso pós-
moderno com as categorias da pedagogia tradicional (eclesiástica), da pedagogia
escolanovista e da pedagogia do oprimido de Freire. Para o autor, categorias como projeto,
ruído, ambiguidade, finitude, escolha, síntese, vínculo e alteridade, fundadas na concepção
holonômica, não são novas na reflexão filosófico-pedagógica, sendo, portanto, passíveis de
utilização por um novo paradigma educacional unitário no século XXI. Esta conciliação
fundaria a Pedagogia da Unidade, inspirada em Paulo Freire (1982).
Frigotto, embora não apresente diretamente uma formulação teórica de pedagogia,
implicitamente ao sustentar a centralidade da categoria trabalho na perspectiva de classe como
fundamento da educação, focando sua crítica nas relações econômicas e políticas que estão na
base das teorias da educação, apoiado diretamente em Marx e Gramsci, constitui um polo
avançado na elaboração de uma pedagogia de resistência marxista que dialoga com outras
proposições progressistas. Sua formulação sobre a escola, como imediatamente ligada à
reprodução social e mediadamente à produção, na superação da contradição das teses da
escola produtiva e da escola improdutiva, constitui objeto de apreciação desta pesquisa e base
para fundamentação da concepção da teoria do capital humano, transfigurada em teoria do
capital intelectual, ou capitalismo cognitivo, como contratendência à crise da erosão do
paradigma de valor do capital. Portanto, sua formulação permite a crítica a este sequestro da
educação pela economia, no contrafluxo histórico da própria relação capital, possibilitando
desvelar-se a ligação orgânica entre a composição-valor do capital e as teorias do capital
humano, intelectual ou cognitivo.
Já o próprio Saviani (2008) sustenta a noção de uma “pedagogia histórico-crítica”,
com base em Gramsci e Vygotsky e na interpretação do desenvolvimento do pensamento
pedagógico no Brasil, apoiado na tese de Suchodolski (1978), que reduz a compreensão da
diferença essencial entre as teorias pedagógicas ao dualismo entre o “essencialismo e [o]
existencialismo”. Naturalmente, é uma formulação que necessita da análise crítica e
comparativa: será que, apoiando-se na interpretação de Manacorda (2007) – que tematiza a
educação em Marx sob a ótica de Gramsci – chegar-se-ia ao mesmo resultado, em termos
metodológicos?
325
Em “A pedagogia no Brasil: História e Teoria”, Saviani (2008) compila alguns de
seus trabalhos anteriores, ordenando-os em três unidades lógicas pertinentes ao escopo
didático. Visa, portanto, a fornecer, na primeira unidade, uma definição histórica do conceito
de pedagogia (tanto nominalista quanto teorético) e uma síntese histórica da introdução da
disciplina e do curso de formação de professores no Brasil – em termos de conteúdo, que
define como matriz produtivista. Na segunda unidade, o autor estabelece uma relação entre as
correntes pedagógicas provenientes do iluminismo e recria o percurso da história pedagógica
no país, à luz do trabalho de Suchodolski (1978), reduzindo o problema pedagógico à
antinomia entre os métodos essencialista e existencialista, dominando a concepção
produtivista da educação, reconfigurada em teoria do Capital Humano. A solução desta
problemática seria dada, segundo Saviani, pela formulação de um método histórico-crítico
fundado na dialética. Na última unidade do livro, o autor formula um glossário conceitual de
Pedagogia e das teorias pedagógicas presentes na prática educacional no Brasil (2008, pp.
125-128, passim).
Ao reduzir o impasse pedagógico à antinomia metodológica entre as concepções
filosóficas de Kant e Hegel, Saviani foca a diferença essencial entre ambos na lógica formal
do primeiro e na lógica dialética do segundo. Dessa maneira, o problema pedagógico se reduz
a contradições como ensino e aprendizagem, teoria e prática, professor e aluno, essência e
existência. Tal problema se reproduziria ainda, em linguagem cognitiva, não na “oposição
binômica, mas quadrilátera, entre teoria e prática e verbalismo e ativismo”. Saviani apresenta
sua solução da seguinte forma:

A solução do dilema demanda outra formulação teórica que supere essa oposição
excludente e consiga articular teoria e prática, assim como professor e aluno, numa
unidade compreensiva desses dois polos que, contrapondo-se entre si, dinamizam e
põem em movimento o trabalho pedagógico. E essa nova formulação teórica foi a
tarefa a que se propôs a pedagogia histórico-crítica (SAVIANI, 2008, p. 129).

Após enunciar sua proposição pedagógica, o autor aponta os fundamentos da


mesma, precisando, em linhas gerais, as seguintes definições conceituais: a) a educação é
entendida como “mediação no seio da prática social global [ao passo em] que a prática social
é o ponto de partida e o ponto de chegada da prática educativa”; b) “não nega a essência para
admitir o caráter dinâmico da realidade, nem nega este último para captar a essência do
processo histórico, como fazem contrapostamente as pedagogias da essência e da existência,
326
fundadas respectivamente no humanismo tradicional e moderno da filosofia de educação” e c)
a pedagogia histórico-crítica busca superar as pedagogias da essência e da existência
dialeticamente, isto é, incorporando suas críticas recíprocas numa proposta radicalmente nova.
O cerne dessa novidade radical consiste na superação da crença na autonomia ou na
dependência absolutas da educação em face das condições sociais vigentes (SAVIANI, 2008,
pp. 131-132).
Um olhar sobre a história da educação no Brasil, comparada à da Europa segundo
a literatura vigente, sugere que um paradigma teórico de caráter universal e social de uma
sociedade ou comunidade de especialistas não pode ser alterado sem uma revolução científica
(KUHN, 1971, pp. 151-152). De acordo com a teoria de Marx (2001, pp. 18-19), tais
mudanças no pensamento resultam das “contradições entre as forças produtivas materiais e as
relações sociais de produção”. A Europa demonstrou que, para se libertar do método
eclesiástico e afirmar o paradigma teórico iluminista, teve que fazer uma revolução radical,
em termos econômicos, políticos e teóricos, nos séculos XVII e XVIII (SUCHODOLSKI,
1974, pp. 25, 82).
No Brasil, toda a sabedoria pedagógica sedimentou-se na contrarrevolução à
revolução burguesa e a sua pedagogia Iluminista, através da Companhia de Jesus
(AZEVEDO, 1958, pp. 9-11 e 42; SAVIANI, 2007, pp. 29-31) e, apesar da expulsão dos
jesuítas em 1759 e da proibição do ensino religioso nas instituições federais pela Constituição
Imperial de 1891 (SAVIANI, 2007, pp. 107 e 254; AZEVEDO, 1958, pp. 118-119), foi
somente com a grande crise mundial, quase dois séculos depois, em 1930, que surgiu um
movimento de expressão nacional crítico à pedagogia jesuíta: o escolanovismo. Isto não quer
dizer que não tenham ocorrido protestos e contestações, como as próprias reformas
Pombalinas (1859) ou o discurso de Rui Barbosa sobre a escola pública primária (em
1882)2546, que se constituem como exemplos de fato. Porém, nada se compara ao período
25
Escola Nova é um dos nomes dados a um movimento de renovação do ensino que foi especialmente forte na
Europa, na América e no Brasil, na primeira metade do século XX . “Escola Ativa” ou “Escola Progressiva” são
termos mais apropriados para descrever esse movimento que, apesar de muito criticado, ainda pode ter muitas
ideias interessantes a nos oferecer. Os primeiros grandes inspiradores da Escola Nova foram o escritor Jean-
Jacques Rousseau (1712-1778) e os pedagogos Heinrich Pestalozzi (1746-1827) e Freidrich Fröebel (1782-
1852). O grande nome do movimento na América foi o filósofo e pedagogo John Dewey (1859-1952), enquanto
que o psicólogo Edouard Claparède (1873-1940) e o educador Adolphe Ferrière (1879-1960), entre muitos
outros, foram seus expoentes na Europa. No Brasil, as ideias da Escola Nova foram introduzidas já em 1882, por
Rui Barbosa (1849-1923). No século XX, vários educadores se destacaram, especialmente após a divulgação do
Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932. Podemos mencionar Lourenço Filho (1897-1970) e Anísio
Teixeira (1900-1971), grandes humanistas e nomes importantes de nossa história pedagógica (Glossário
Pedagógico. Disponível em: <http://www.educacional.com.br/glossariopedagogico/ verbete.asp?idPubWiki
327
definido por Nagle como “entusiasmo pela educação” (2001, pp. 132-133 e pp. 308-312,
passim).

Contudo, o movimento escolanovista comprovaria, sobretudo, a força e o poder


secular da Igreja e de seu paradigma pedagógico, que orienta os princípios da educação na
constituição de 1934, no Estado Novo, (SCHWARTZMAN, BOMENY e COSTA, 2000, pp.
198, 216 e 242), consagrando constitucionalmente tanto o ensino privado quanto o ensino
religioso facultativo e, sobretudo, a concepção de educação e do método de ensino, que
vigoram até os dias atuais. Esta simbiose entre a pedagogia tradicional eclesiástica e a
pedagogia nova do iluminismo, entretanto, não é estranha ao processo histórico da luta teórica
na Europa, pois no próprio processo da revolução burguesa na França desenvolve-se a
conciliação e unidade entre ambas. O filósofo e pedagogo polonês Suchodolski (1976, v. 2,
pp. 13-14) registra este fato.
Nestes termos, a tese histórica que fundamenta a proposição de Saviani é
problemática. Mas a questão maior não está no fundamento histórico, mas sobretudo no
fundamento filosófico, pois as relações entre a pedagogia eclesiástica e a pedagogia de Dewey
se sintetizam por assimilação, mesmo sob os termos reducionistas de Suchodolski, entre
essencialismo e existencialismo, pois se o essencialismo humano privilegia o conteúdo e o
existencialismo humano a forma, o que impede o essencialismo de abandonar sua forma e
assumir a forma existencialista? E, em troca, o que impede o existencialismo de abandonar
seu conteúdo e assumir o conteúdo essencialista? Aqui, tudo se explica a partir de uma
categoria comum que propicie esta síntese: se observarmos bem o fundamento pedagógico do
essencialismo e do existencialismo, pode-se encontrar a dialética hegeliana como categoria de
superação, conservando a metafísica; permite-se, portanto, como finalidade dialética
existencial, a metafísica essencial, justamente através de sua redução ao pragma utilitário e ao
aspecto comum de pedagogia ativa.
Esta é a noção de fundo da pedagogia de Dewey, que permeará substancialmente
o conteúdo crítico do movimento escolanovista e reorientará o novo arcabouço da pedagogia
nacional contra a pedagogia tradicional eclesiástica. Desta forma, chega-se à questão crucial
que serve de argumento para a problematização da proposição de Saviani: por que as ideias de
John Dewey não superam a pedagogia tradicional no Brasil? Em síntese, porque estas ideias

=9577>. Acesso em: 22 Mar 2010.).


328
sucumbiram em sua essência: educação como guia em torno de um ideal de vida; indivíduo
como possuidor de suas “aptidões naturais”, independente de sua ordem econômica e/ou
social; trabalho como a melhor maneira de estudar a realidade e a si mesmo; respeito à
personalidade humana, como fim em si; educação como dever do Estado, junto a instituições
privadas com total liberdade; uma educação que abarque as mudanças que passam a ocorrer
na sociedade; a educação sob o prisma psicológico; princípios básicos como laicidade,
gratuidade, obrigatoriedade e coeducação; a diretriz de que todas as crianças (de sete a quinze
anos) sejam confiadas à escola pública, com uma educação comum a todas; a autonomia
técnica, administrativa e econômica da escola pública, além de uma educação descentralizada;
constituição de professorado com formação universitária independente do nível que lecione;
escola secundária como “ponto nevrálgico”; concepção de que apenas através da educação os
princípios democráticos poderiam vir a ser legitimados (AZEVEDO, 1932).
A resposta hipotética se sustenta em três evidências básicas, acerca das
dificuldades enfrentadas pelos escolanovistas e pelas ideias do pedagogo norte-americano ao
seu tempo: a) a particularidade da Revolução Liberal no Brasil, pela via prussiana, quase três
séculos depois da primeira revolução liberal na Inglaterra, um século e meio após a Revolução
Francesa, ou três quartos de século após a Guerra Civil Americana; b) a base social e política
do sistema educacional, dado o contexto histórico da formação da sociedade brasileira – a
reforma e contrarreforma religiosa na Europa – e as contradições internas entre a própria
classe burguesa na luta contra o modo de produção feudal e c) na incompreensão dos
escolanovistas sobre as relações de unidade e contradição entre a superestrutura de domínio
ideológico e o povo e sobre as contradições do sistema filosófico e metodológico do
pedagogo norte-americano com esta realidade.
Nestes termos, o singular processo de conformação do sistema educacional
brasileiro, no curso de dois séculos e meio seguidos pelo trabalho dos jesuítas – no espírito de
uma organização militar de combate a qualquer cultura fora dos paradigmas eclesiásticos –,
mais que um sistema educacional, forjou um sistema de unidade linguística e identidade
nacional através da transfiguração étnica e simbólica impossível de ser alterada por quaisquer
métodos, leis ou ideias. Isto está além das manobras políticas da Igreja para impedir a
nomeação de um membro da Escola Nova para o governo, tal qual ocorreu no ministério de
Capanema no Estado Novo. Aqui, há algo mais: trata-se de raízes sociais, “o Brasil profundo”
329
do qual falou o poeta Carlos Drummond de Andrade, e como tal é necessário uma revolução
na mesma profundidade para libertar a consciência social do secular domínio econômico,
social, político, cultural e intelectual de classe e da relação capital.
A conclusão sobre o problema das ideias pedagógicas de Dewey não reside tão
somente na alteração substancial de suas ideias aplicadas a uma conjuntura e realidade
histórica distinta e resultante portanto da particularidade histórica do sistema educacional
brasileiro. Há que se atentar para o aspecto mais importante, que está relacionado às próprias
ideias do sistema educacional deste filósofo: este problema reside justamente em que nenhum
modelo educacional, político, ou cultural pode ser aplicado diretamente em uma realidade
histórica particular. Fazê-lo denota uma concepção mecânica e pobre do ponto de vista
intelectual. Naturalmente, isso não quer dizer que não devemos copiar as coisas boas, ou ao
menos tentar adaptá-las à realidade nacional, desde que se tenha em vista as particularidades
históricas. Contudo, a abstração do liberal John Dewey, por maior que seja sua idealização de
liberdade, justiça e humanidade, não é capaz de perceber que todo o idealismo rousseauniano,
como a dialética hegeliana, não se sustentam diante de uma sociedade de classes, que se
organiza para a exploração do homem pelo homem.
A redução do problema pedagógico ao essencialismo ou existencialismo não
supera a questão fundamental da filosofia da ciência: do primado entre ser e consciência,
materialismo ou idealismo, objeto e sujeito. E, na sociedade de classes, coloca-se ainda a
questão: a que classe interessa esta ou aquela interpretação da ciência ou método? O
idealismo, como sistema filosófico em sua versão pragmática e utilitária conduz à ilusão das
massas, pois, na prática, não se realiza. A prova mais contundente deste fato é que nos
próprios Estados Unidos suas ideias não vingaram.
Deste modo, ao contrário do que afirma Saviani (2008, pp. 98-109, passim), não
foi o método escolanovista que assimilou o método eclesiástico, mas o oposto, resultando no
método pedagógico atual, que é uma simbiose entre a matriz técnica (pragmática-
instrumental) e a matriz filosófica eclesiástica, metafísica ou dialética, que se move entre
avanços e recuos de acordo com a correlação de forças entre seus defensores em termos
nacionais e internacionais. Encontramos o exemplo mais contundente deste fato na
formulação pedagógica de Paulo Freire em Educação como Prática da Liberdade, atualmente
defendida por Gadotti, que expressa a condensação entre a pedagogia tradicional e o
330
escolanovismo inspirada na vertente dialética de Dewey (2001), como se pode observar nesta
passagem:

Do ser inacabado que é, e cuja plenitude se acha na ligação com seu Criador.
Ligação que, pela própria essência, jamais será de dominação ou de domesticação,
mas sempre de libertação. Daí que a Religião – religare – que encarna este sentido
transcendental das relações do homem, jamais deva ser um instrumento de sua
alienação. Exatamente porque, ser finito e indigente, tem o homem na
transcendência, pelo amor, o seu retorno à sua Fonte. Que liberta (FREIRE, 1982, p.
40).

Diante desta realidade pedagógica nacional, a proposta de Saviani de uma nova


“pedagogia histórico-crítica”, sob argumento de que a pedagogia “diz respeito ao método”,
enquanto “nem todo método pedagógico é uma teoria da educação” (SAVIANI, 2007, pp.
125-132, passim), apoia-se num substrato muito frágil para sustentar a superação da
contradição entre o método essencialista e o método existencialista mediante a dialética dos
conceitos hegeliano. Talvez seja necessário demonstrar o que une o método à teoria da
educação. Logo, faz-se necessário enfocar os fundamentos do método e o que este nos tem a
dizer sobre paradigmas da educação, sua concepção de fundo estratégico e tático mediatizada
pela luta de classes e pelos interesses de Estado. Como já foi aludido, a tese de fundo de
Frigotto também é problemática, pois encerra concepções díspares em torno do substrato
ontológico do antropos, afinal, se a relação entre homem e natureza (orgânico e inorgânico) se
dá através do trabalho, como categoria abstrata mais geral e “antediluviana”, ipso facto, se faz
necessário observar as relações de trabalho, pois “o como” se produz é mais importante do
que “o quê” produz. Nestas condições, as tecnologias que definem o estágio da técnica de
exploração do trabalho são importantes, porém, mais importante ainda, é o caráter das
relações de apropriação do produtor com o produto do seu trabalho (MARX, 2009, pp. 20-
25).
Apoiando-se em Marx e Engels, o conceito de educação deve ser considerado
como atividade humana virtualmente “transformadora” e “força produtiva social”, (MARX,
2009, v. 2, pp. 302-303; MARX, 1973, pp. 7-8); posto que seu objetivo é a transformação da
consciência empírica das novas gerações humanas em consciência científica e técnica formal
– transmitindo o universo conceitual teórico e a norma culta pertinentes ao sujeito histórico
ordinário do fazer prático e, sobretudo, ao sujeito cognoscente que produz e reproduz a
atividade educativa e as ciências na sociedade vigente.
331
4.4 Efeitos da crise orgânica do capital na educação

Ao investigar-se a situação da educação hoje é necessário identificar quais os


paradigmas que a dominam neste atual momento de crise estrutural do capitalismo. A crise na
educação é motivo de pesquisas e debates em órgãos e instituições internacionais desde o
início da atual crise econômica em 2008, tornando supérfluas as tentativas de escamotear suas
causas em explicações ideológicas ou subjetivas; a crise da educação é apresentada
claramente como consequência da crise econômica. Porém, as constatações acerca da precária
condição dos professores e da infraestrutura, a falta de investimento, interesse ou capacidade
dos discentes, apontam a fatores externos sem avaliar o momento interno da educação de sua
própria negação pelo seu conteúdo pedagógico dissociado da realidade social. O processo de
crise exige a reestruturação de nova base de acumulação para o capital e, assim como a
ciência é responsável por fornecer uma nova base técnica pela acumulação em mudanças
tecnológicas e aceleração dessas mudanças; é exigida uma educação diferente daquela
existente, um salto qualitativo que dê respostas a uma sociedade que tem como força
impulsora e finalidade a acumulação, que se encontra estagnada. A incapacidade de responder
a essa situação revela uma crise de paradigmas dentro da educação.
No ano 2000, os países-membros da UNESCO assinaram o acordo de Dakar onde
estabeleciam metas para a educação até o ano 2015. Na Coreia do Sul foi realizada reunião de
avaliação deste compromisso adotado e as cifras de acompanhamento demonstram um quadro
insatisfatório. Em pleno século XXI, o relatório constata que faltam condições para oferecer
uma educação básica para a primeira infância em parte devido à falta de condições de vida
para as crianças nos países mais pobres: apenas em 2013, 6,3 milhões de crianças morreram
de causas consideradas evitáveis, uma em cada quatro crianças padece de deficiência crônica
dos nutrientes essenciais para seu desenvolvimento biológico (UNESCO, 2015, p. 1).
Como parte de suas conclusões, a UNESCO afirma que os avanços não atingiram
o previsto e foram insuficientes para responder às expectativas de uma agenda inacabada,
“com uma desigualdade crescente, em muitos casos, os menos favorecidos continuam sendo
os últimos a beneficiar-se (UNESCO, 2015, p. 53). Nos países de renda baixa e média, onde a
educação primária universal ainda não é uma realidade, as crianças dos lares mais pobres têm
cinco vezes menos chance de frequentar a escola (UNESCO, 2015, p. 7); a redução nessa
332
desigualdade foi pouca em relação a 1999. Esse é apenas um exemplo da falência dos
paradigmas norteadores da educação mundial e de sua vinculação direta com os paradigmas
que dirigem o desenvolvimento econômico da sociedade.
As instituições internacionais, no entanto, insistem com medidas similares
esperando obter resultados distintos. Cobram dos países avaliações padronizadas e políticas
de inclusão social, educação por competências para aquisição de melhores salários.
Comemora a redução do trabalho infantil em nível mundial, porém, em seu relatório
esforçam-se para justificar, tentando explicar novamente os procedimentos falidos que não
resultaram na esperada mudança de paradigma. O Banco Mundial, parece sofrer de amnésia,
repete de quando em quando o mesmo discurso do combate a pobreza, para comprovar, basta
comparar o que diz o Relatório de 2014, com o Relatório de 1990. Neste último dizia:

Segundo projeções deste Relatório, se nos próximos 10 anos os países


industrializados crescerem cerca de 3% ao ano (O que é a tendência histórica) e se
houver nos fluxos reais de assistência um crescimento similar, as rendas per capita
dos países em desenvolvimento crescerão entre 5,1 % ao ano no Leste asiático e
0,5% ao ano na África subsaariana. Caso passe a ser mais adotada a estratégia que o
Relatório preconiza, é possível que no mundo em desenvolvimento levando em
conta êxitos e fracassos – O número de pobres diminua em mais de 300 milhões até
o final do século. Havendo maiores esforços para reduzir a pobreza, O progresso
será ainda maior (WBR, 1990, p. 5.).

Em 2014, afirma:

Nas Reuniões Anuais de 2013, o Banco Mundial adotou uma nova Estratégia do
Grupo Banco Mundial centrada no alinhamento do trabalho de todas as instituições
com os dois objetivos de erradicar a pobreza extrema e impulsionar a prosperidade
compartilhada de forma sustentável. Os dois objetivos são agora o âmago do
trabalho do Grupo Banco Mundial. O primeiro propõe a erradicação da pobreza
extrema até 2030 — reduzindo para um máximo de 3% a fração da população
mundial que vive com menos de US$ 1,25 por dia. Para acelerar o progresso, o
Grupo Banco Mundial também definiu um objetivo intermediário de reduzir a
extrema pobreza para 9% da população mundial até 2020. O segundo objetivo de
impulsionar a prosperidade compartilhada exigirá a promoção do crescimento da
renda dos 40% que estão na faixa inferior da população de cada país em
desenvolvimento (WBR, 2014, p. 12).

Ao promover os paradigmas de sociedade do conhecimento e do capital humano,


a UNESCO acompanha as demais instituições, Banco Mundial, OCDE, OMC, entre outras
que buscam firmar seus paradigmas educacionais, apesar do fracasso dos programas de
educação nos países que controlam estas instituições. A situação da educação nos Estados
Unidos hoje demonstra o fracasso desses paradigmas. Desde a década de 1980, tanto a
333
educação básica como a educação superior foram submetidas à lógica da mercantilização sob
a égide do capital humano. A insuficiência do sistema público de educação básica,
principalmente nos centros urbanos e distritos rurais, privam crianças de famílias da classe
trabalhadora do acesso às escolas públicas ou privadas de qualidade, como retrata o
documentário de Davis Guggenheim, Esperando pelo Super-Homem/Waiting for Superman
(2010), que defende a privatização da educação através do discurso da ineficiência da
administração pública. Por outro lado, também se pode observar a crise no ensino superior
nos Estados Unidos, através da dívida estudantil, no documentário intitulado Torre de
Marfim/Yvory Tower, de Andrew Rossi (2014). A crise universitária americana é emblemática
como se observa no relatório de 2013/2014 do Banco Federal de Nova Iorque, sob o título
Student Debt Overview - Postsecondary National Policy Institute (PNPI) 8/14/13 Meta
Brown, Federal Reserve Bank of New York, do qual foi extraída a Figura 14.

Figura 14: Dívida do financiamento estudantil vs cartão de crédito (EUA)

Fonte: (Student Debt Overview, 2014)

O capital enquanto outro do trabalho no processo de produção se desenvolve com


base na unidade entre a ciência, enquanto meios de produção, e a educação, enquanto força de
trabalho viva, ou seja, composição orgânica do capital, capital constante e capital variável;
essa unidade contraditória, ao ser mediada pela divisão técnica do trabalho e a propriedade
privada no processo de produção, leva a uma dissociação cada vez maior entre as duas, que se
334
expressa na separação entre trabalho intelectual e trabalho manual, teoria e prática,
considerando as variáveis mediações deste processo. Entretanto, a partir do momento em que
se apresenta uma desproporção entre estes dois termos da produção, esta unidade é rompida e
o desenvolvimento destas se desarmoniza, parando de crescer proporcionalmente. Neste
ponto, o processo passa a ser dominado pelo momento de crise da produção, e quanto mais
profunda e prolongada mais as contradições entre ciência e educação tornam-se inelutáveis.
Quanto mais a ciência se volta para resolver o problema da crise de produção, mais a
educação se torna dissociada da produção e, contraditoriamente, passa a acompanhar a
distorção da ciência e quanto menos esta soluciona os problemas da produção, mais a
educação se torna supérflua; ou, quanto mais ela resolve superficialmente os problemas da
produção, mais a educação se torna efêmera. Há uma ruptura na relação entre ciência e
educação porque, independente da incapacidade da ciência de resolver os problemas da
produção, a educação continua funcionando cada vez mais voltada para a própria reprodução
da ciência e diretamente para a produção.
Neste sentido, quanto menos a educação formal é capaz de aumentar a
produtividade do capital, quanto mais ganha força a educação corporativa, que não defende
um caráter universal; a ciência e a educação vão, portanto, perdendo sua qualidade social. No
ensino corporativo a empresa passa a ser o mundo da formação mental das pessoas, ela
recorta a formação e retira sua dimensão social, seu caráter de formação para a humanidade se
perde devido ao conjunto do imaginário das pessoas imposto por esse limite corporativo. A
relação capital não apenas atrofia fisicamente, mas também mentalmente molda as pessoas. A
percepção humana se altera – percepções, sensações, valores – criando verdadeiras facções;
com isso, ocorre a destruição progressiva da acumulação humana de conhecimento, a ciência
é desprezada assim como a cultura.
Da mesma maneira que o valor se desdobra em valor de uso (expresso nas
qualidades físicas e espirituais da mercadoria) e valor de troca (expresso no dinheiro) há uma
duplicidade interna no conhecimento humano, que se desdobra em ciência e educação. A
ciência é a produção e a reprodução sistemática do conhecimento humano e a educação é a
produção e reprodução da ciência, enquanto ensino e pesquisa, e que aplica teórica e
praticamente seus resultados; romper essa relação significa regredir ao empirismo ou, no
extremo oposto, a uma concepção ético-religiosa. Assim, perfilam-se dois extremos: de um
lado, a liberdade pragmática e, do outro, a contenção religiosa. A ciência precisa encontrar
335
uma síntese dentro desses dois marcos.
Todas as concepções teóricas que se destacam sobre o fundamento educacional
produtivista, cuja expressão na Europa tem destaque na pedagogia de Durkheim e, nos EUA,
em Dewey, atendem às demandas de reprodução do capital em escala mundial e da educação
das massas para a produção social. As derivações pedagógicas que se diferenciam nesta
matriz produtivista de Dewey concebem a escola como processo de integração da criança,
seja na força de trabalho da sociedade diretamente ligada à produção social, a noção da
“escola do trabalho”, seja como parte das classes dirigentes ou da intelligentsia, a noção da
“meritocracia” (escolanovismo).
Esta concepção fornece a base para a tese de Schultz da formação educacional
como um investimento ou negócio, que reclama sua parte alíquota em remuneração salarial ou
rendimentos futuros e abre um campo de investimento para o capital financeiro na
contratendência da desvalorização do capital. A teoria do capital humano, como investimento
de capital implica que D = D', isto é, que dinheiro se transforme em mais dinheiro, o que
pressupõe uma mediação escondida, de que D para se transformar em D', necessita passar
pelo processo de produção de mais-valia, D = MP + FT […], ou de qualquer outra forma de
trabalho acumulado, em propriedade ou qualquer outro bem que garanta este objetivo do
financiamento. No caso das famílias trabalhadoras que investem em capital humano, com
financiamento do capital bancário, isto implica que o pagamento dos seus empréstimos se
faça através da renúncia de parte do seu salário; e desta maneira o capital financeiro abocanha
parte do capital variável da indústria, investida em salários (SCHUTZ, 1979, passim).
Porém, no quadro de ruptura do próprio capital com suas regras de valorização,
momento em que o tempo de trabalho socialmente necessário tende a um mínimo histórico,
ou seja, a proporção do capital variável como elemento de valor em relação ao capital
constante já não sustenta níveis de mais-valia capazes de satisfazer as necessidades de
reprodução ampliada do capitalismo desenvolvido, a teoria do Capital Humano dá seu salto
mortal, transfigurando-se em teoria do capital intelectual ou do capital cognitivo, entre outras
expressões designadas pelos teóricos do capitalismo pós-industrial, da sociedade do
conhecimento, da nova economia do pós-modernismo, para violar a lei do valor incorporando
os benefícios da produtividade do trabalho social em geral, do intelecto geral e do
conhecimento social geral, tais como as grandes teorias científicas e pedagógicas que
permitem aplicações tecnológicas à substância da composição-valor do capital, considerando-
336
os produto intangível ou trabalho imaterial.
A contabilidade destes produtos intangíveis ao preço de custo de produção
expressa a clara distorção teórica da economia política burguesa sob concepção marginalista
para deter as contradições internas entre as forças produtivas que mobilizam principalmente o
capital fixo e a força de trabalho viva, atualmente reduzida a uma parcela mínima de valor nos
produtos. Por outro lado, mobilizam a ampliação do conceito de capital ao fator humano e ao
fator intelectual, cujo desenvolvimento decorre da sociabilidade em geral e da experiência
mundana que se reiteram em aplicações empíricas e se ramificam pelas relações sociais dos
indivíduos que compõem o quadro produtivo das empresas capitalistas. A instrução
corporativa constitui a malha que recolhe esses benefícios da formação do sujeito cognoscente
sem os custos diretos relativos ao ensino formal, que até certo ponto passa a compor a massa
salarial, ou se reflete na mesma na parte variável da composição orgânica da produção de
capital, operando no sentido contrário à crise do valor, que se expressa no fenômeno
decrescente da taxa de lucro.

4.5 A Crise do Valor e os paradigmas da educação

A educação enquanto força produtiva social que atua duplamente no ensino e na


pesquisa; por um lado, forma o sujeito cognoscente, reproduzindo o conhecimento
sistemático, os paradigmas teóricos, e valores da sociedade; por outro, produzindo o
conhecimento científico e paradigmas que dirigem o conhecimento e atividade humana em
sociedade. Contudo, sob a dinâmica da relação capital, da divisão técnica e social do trabalho,
a atividade de pesquisa autonomiza-se ao ponto de tornar-se o polo dominante da educação,
conformando-se como ciência cujos paradigmas teóricos subsumidos ao capital subsumem a
atividade de ensino. Este último, ao se distanciar da pesquisa, torna-se dependente e reativo,
torcendo-se ao pragmatismo do mercado e da produção social.
A dissociação entre estes dois aspectos e atividades da educação, com a crise
orgânica do capital, aprofundou a tal ponto esta divisão e subsunção da atividade de ensino à
ciência que a educação passou a ser pensada e dirigida politicamente sem a consciência dos
paradigmas que governam sua atividade a exemplo do próprio processo de produção e
337
trabalho cuja divisão técnica opõe o trabalho intelectual ao trabalho manual, a ciência ao
operário, o capital constante ao capital variável, em síntese, a organicidade contraditória da
relação capital e trabalho.
É deste modo que o agravamento da crise exige mudanças na educação; devido ao
seu caráter subsumido à ciência se esqueceu de questionar os seus meios de trabalho, mais
precisamente, os paradigmas teóricos que conformam as disciplinas científicas que formam o
sujeito cognoscente. O que a conduziu à crise de paradigmas que vive na atualidade. O
exemplo da ciência econômica que foi apresentado na parte desta pesquisa que trata da
ciência demonstra claramente como a educação enquanto reprodutora do saber sistemático
deixa de cumprir seu desiderato, contraditoriamente ao realizá-lo a partir de paradigmas
teóricos superados ou refutados pela realidade social.
A torção da ciência aos caprichos do capital e sua urgência diante da crise que se
aprofunda, não somente arrasta a ciência para um papel impossível de se manter enquanto
ciência, resvalando para a pseudociência. Teorias são formuladas sem consistência e a própria
educação, como reprodutora do conhecimento, é a primeira vítima de sua própria criação. A
teoria do Capital Humano, a teoria do Capital Intelectual, a teoria do Capitalismo Cognitivo,
demonstram até que ponto as leis que fundamentam a economia política, como a lei do valor,
é claramente burlada para manter o paradigma do tempo trabalho socialmente necessário
diante da emergência do paradigma do tempo livre, que exige a transformação histórica e
revolucionária do modo de produção social.
A violação da lei do valor é a declaração de falência da economia política
burguesa e reclama em seu lugar a crítica revolucionária desta teoria e, mais precisamente,
quando ela avança sobre o domínio da educação, tanto diretamente através de suas teorias
educacionais, quanto indiretamente através da crise de paradigmas da ciência em geral.

4.5.1 Capital humano: paradigma atual

O trabalho O Valor Econômico da Educação (1973) de Theodore William Schultz


é parte de uma trilogia sobre economia da saúde, da educação e da prosperidade, patrocinada
pela Fundação Ford no início da década de 1960. Na introdução da obra, a Fundação Ford
338
apresenta três motivos para financiar os estudos: os gastos nas três áreas somavam mais de
100 milhões de dólares; eram áreas importantes e sensíveis da economia; o desentrosamento
entre economistas e os que orientam e tomam sobre as políticas públicas (SCHULTZ, 1973, p.
8). Schultz foi escolhido devido aos seus estudos em relação à educação, na época era diretor
do departamento de economia da Universidade de Chicago. Este é o primeiro estudo onde
apresenta a categoria de capital humano como tal e, em relação a seu conteúdo, pouco se
diferencia da obra Capital Humano, que deu-lhe o Prêmio Nobel em 1979. Todo glamour em
torno de sua obra escapa ao fato de que o autor adverte sobre a insuficiência de dados ou
métodos para avaliar os temas abordados.
No Prefácio, o autor explica que sua motivação para a pesquisa residia no fato de
que na avaliação do produto nacional os conceitos de capital e trabalho eram inadequados
para explicar o crescimento econômico do país, o denominado problema do “resíduo” nas
contas nacionais que atormentava os economistas da época. Apoiando-se na qualificação e
avaliação da contribuição dos fatores de produção (input), junto ao resultado desta
contribuição (output) surgia a questão: “Que está sendo omitido, quanto à estruturação do
crescimento de forma a '‘atribuir’', a um '‘resíduo’', tão grande parcela do aumento da
produção?” (p. 11).
Nos Estados Unidos do pós-guerra, segundo o autor, crescia o investimento das
pessoas em si mesmas, “investimentos humanos” predominantemente em educação que
passavam a influenciar o crescimento econômico; partindo desse pressuposto, ele sustenta que
era mais necessária uma correção aos critérios analíticos da economia, um novo conceito
integrado de capital para abranger “habilidades e conhecimentos adquiridos pelo agente
humano e que elevam a sua produtividade econômica”, ou seja, a produtividade da educação,
que um estudo sobre a mesma, pois ater-se apenas aos elementos materiais do capital seria
uma abordagem equivocada e que:

[…] tem estimulado o conceito restritivo, patentemente errôneo, de que o trabalho


prescinde do capital e de que somente importa o número do homens-hora. Mas,
conforme já tive oportunidade de acentuar, os trabalhadores veem-se tornando
capitalistas, no sentido de que têm adquirido muito conhecimento e diversas
habilidades que representam valor econômico. Nesta correlação impõe-se
evidentemente, um conceito integral de capital (p. 12-13).

O autor cita Adam Smith, que considerava como parte do capital todas as
habilidades adquiridas e utilizadas pelos habitantes de um país, assim como H. Von Thunen e
339
Irving Fisher. O conceito de capital humano parte da concepção que as pessoas ao investirem
em instrução “valorizam suas capacidades”, e que o valor do trabalho conceituado apenas
como tempo de trabalho, não dá conta das alterações observadas na acumulação de
poupanças, na formação de capital, na estrutura de salários e no aumento da renda (p. 13).
Schultz define educação etimologicamente ligando-a à economia pela origem
comum com a cultura, pois esta compreende também a produção. Afirma que esta inclui
atividades além da escola, como a produção de conhecimento através da pesquisa, cuja
unidade institucional poderia ser considerada uma indústria. A análise econômica pode,
portanto, ser aplicada à educação apesar de algumas distinções entre a instituição educacional
e a indústria tradicional26: escolas não são organizadas e administradas para obtenção de lucro;
seus títulos não são apregoados na bolsa de valores; e os estudantes não pagam todos os
custos da instrução. Na concepção econômica do autor a instrução possui “atributos de
investimento”, pois aumentaria a renda dos estudantes; ainda que o autor considere que o
capital humano assim adquirido não possa ser negociado como o capital comum, dada sua
característica especial, ele é a base para valorização da produção de terceiros.
Nesta análise econômica, o autor diferencia instrução de educação, atribuindo a
esta última um objetivo mais abrangente: fazer progredir o conhecimento além de “produzir
instrução”; enquanto a primeira se restringe aos “serviços educacionais ministrados pelas
escolas primárias, secundárias e por institutos superiores” (p. 19) e que será o principal foco
da análise. Em seguida, considera os elementos para a elaboração de uma estrutura de custos,
que são em grande parte invisíveis, para poder calcular os lucros gerados pela educação.
A educação, definida como indústria, suas despesas conhecidas e significativas, na
maioria das vezes, é financiada pelos estudantes, independente se a escola é pública ou
privada. A atividade escolar implica para os alunos veteranos abrir mão de salários que
“provavelmente excedem todos os gastos escolares que possam acarretar” (p. 20), um
elemento dos custos de suma importância, a qualquer avaliação de renda por tempo de vida
em relação ao nível de instrução. Sem ele a taxa de lucro torna-se excessivamente alta em
comparação aos gastos reais dos estudantes (p. 21). O autor apresenta a proposição de que
estes salários deveriam ser pagos aos estudantes, sem explicar quem deveria arcar com este
gasto. Ao considerar “todo o dispêndio escolar, público e particular”, a taxa de lucro seria
reduzida em cerca de 60%, porém se manteria elevada em relação ao lucro de outros
26
Importante destacar que essas diferenças têm diminuído desde a publicação do trabalho de Schultz.
340
investimentos (Idem).
O autor argumenta que os salários não-recebidos, por constituírem uma
contribuição à renda do estudante, poderiam resolver outras três situações que prejudicam a
educação: (a) crianças de famílias de baixa renda que não continuam a instrução além da
idade legalmente obrigatória; (b) crianças da zona rural que frequentam as escolas com menos
regularidade; e (c) crianças dos países de baixa renda. Ele oferece dados reunidos de diversos
estudos sobre gastos escolares em países de baixa e alta renda, apontando que nestes últimos,
à medida que aumenta a renda familiar, o custo da instrução aumenta.
Explica que considerar o valor da instrução é estabelecer um preço para a mesma
e que apesar de muitos entenderem isso como um aviltamento da educação, é injustificado
pois: “Embora seja verdadeiro que alguns aspectos do conhecimento econômico são utilizados
como armas políticas, não há nenhuma razão para acreditarmos que a educação seja mais
vulnerável […] do que outras formas de empreendimentos.” (p. 22). A distinção entre os
atributos culturais e os econômicos implica uma dicotomia que isola cultura e economia, mas
que um conceito amplo de cultura não exclui as atividades de produção e consumo, bem como
a ciência e a tecnologia nas universidades e por toda a economia moderna fazem parte da
cultura. Para o autor, é uma distorção não considerar a cultura de uma perspectiva econômica
(p. 23).
Como o investimento afeta tanto rendas futuras como despesas, os componentes
dos gastos com a instrução tem duas variantes: a que atende despesas atuais, ou seja, o
consumo atual da instrução; e a que representa um investimento futuro que, como bem de
consumo, é um componente mais rentável do que a maioria dos bens permanentes. Este
componente durável de consumo eleva a futura renda efetiva, embora são seja computado na
avaliação da renda nacional (pp. 23-24).
O preço médio dos serviços educacionais não flutua com a escassez, como ocorre
com as matérias-primas e produtos agrícolas, por isso, o custo real aumenta mais que o custo
de vida nos países onde o salário efetivo dos trabalhadores, inclusive dos professores, eleva-se
proporcionalmente aos demais fatores de produção (p. 24). É importante considerar a variação
da renda que resulta da procura por educação “porque, segundo Schultz, a renda real por
família elevou-se constantemente na época, tanto nos EUA como em muitos outros países” (p.
25).
A elevação da renda pela instrução é um investimento no capital humano sob
341
forma de habilidades adquiridas na sala de aula: “A capacidade produtiva do trabalho é
predominantemente um meio de produção 'produzido'”. Produzimos a nós mesmos e os
‘recursos humanos’ são consequência de investimentos, dentre estes a instrução é da maior
importância” (p. 25). Schultz afirma que nos Estados Unidos o investimento em capital
humano crescia a uma taxa maior que a taxa de crescimento do acervo material do capital
reprodutivo, mas não considera estudos que relacionam instrução aos ciclos econômicos ou
que avaliam eficiência escolar e aponta diversas áreas que exigem estudos. Dessa maneira,
conclui que “os salários que os estudantes deixam de receber, enquanto frequentam as
universidades e os colégios são mais importantes do que todos os outros recursos empregados
na educação nestes dois níveis.” (p. 29).
O autor relaciona o nascimento da escola pública e as reformas educacionais com
as reformas sociais do país: a defesa do adestramento prático agroeconômico, a educação
vocacional, reconhecimento dos benefícios da ciência e da tecnologia, reestruturação da
cultura, americanização dos imigrantes, “civilização” do expansionismo econômico,
assistência à comunidade rural em deterioração; tudo isto exigiu mudanças na educação e seu
tratamento prioritário (p. 31). Ao atribuir a seu trabalho Investment in Human Capital a
proposição da teoria do capital humano, identifica-se com o neoliberalismo, pois dá a mesma
importância da proposição de Ricardo sobre o problema dos alimentos não acompanharem a
produção industrial através da investigação sobre preços e suas implicações no livre
comércio; a proposição de Keynes ao enfrentar o desemprego em massa em 1939 e
desenvolver o conceito de instabilidade econômica; e finalmente, ao lançamento das “bases
intelectuais da política de livre comércio” como resposta aos principais problemas levantados
pela política econômica (SCHULTZ, 1973, p. 35).
Depois de justificar a teoria do Capital Humano, Schultz explica sua estrutura para
o cálculo econômico. Define todos os gastos anuais com a instrução como "fator total do
custo", mais oneroso que as despesas escolares, pois não abarcariam as despesas não arcadas
pelos estudantes e familiares, os impostos escolares, a contribuição financeira para escolas
paroquiais e os salários não-recebidos por estudantes (p. 37). Porém, o fator total do custo
pode ser apenas aproximado e o dado real em que se pode apoiar são as despesas, pagas
majoritariamente pelos estudantes e suas famílias. Ao comparar a instrução a qualquer outro
investimento, seu rendimento é bastante sedutor, ainda que, ao considerar apenas as despesas,
a taxa de rendimento seja muito maior que aquela baseada no fator total de custos. Há, porém,
342
desestímulo em investir por parte dos estudantes e a oferta de capitais de empréstimos é
deficiente (pp. 38-39).
Para estabelecer o fator total de custos é necessário distinguir o custo dos serviços
educacionais ministrados pela escola (as despesas pagas pelos estudantes e as cobertas por
outros setores), e o valor potencial do tempo de permanência dos estudantes na escola.
Schultz cita estudos que tentam estimar o primeiro, nos Estados Unidos e no exterior, que
consideram escolas públicas e privadas, mas conclui que não são tão importantes quanto o
cálculo do segundo, seja por insuficiência de dados ou por não considerar os salários não-
recebidos.
O conceito de salários não-recebidos surge da ideia de que a partir das escolas
secundárias os estudantes poderiam garantir sua própria manutenção com empregos
adequados às suas idades e experiências. A universidade tem sido historicamente associada à
educação das elites, o que contribui para justificar que apenas quem tem condições de não
trabalhar poderia se dedicar aos estudos; porém, tanto nos EUA como na URSS, aumentou a
quantidade de jovens que recebiam educação de nível secundário ou superior. Nestas
circunstâncias, é significativo reconhecer o valor do tempo que os estudantes dedicam à
escola e calcular os salários que deixam de receber, tanto no ensino superior como secundário,
por ano de instrução (p. 45).
O autor apresenta mais um exemplo onde calcula o custo total da instrução, ao
somar à despesa escolar sua estimativa de salário não-recebido, constatando a porcentagem
que estes representam do custo total para educação secundária e universitária em dois países
de renda alta – Estados Unidos (60% e 59%) e Israel (60% e 54%) – e dois países de baixa
renda – México (61% e 57%) e Venezuela (81% e 71%). Com base nesses estudos, enumera
os equívocos na Educação que podem ser explicados pelos salários não-recebidos: 1)
diferença entre treinamento prático e aprendizado na escola: tem maior expressão no primeiro,
se não for específico aos interesses da empresa, do que no custo da instrução, que
normalmente é pago pelo estudante com apoio de entidades públicas e privadas; 2) o valor do
tempo da criança camponesa é maior que o da família urbana, devido à quantidade de trabalho
que a primeira pode fazer deixando de comparecer à escola; 3) apesar de bolsas ou gratuidade
da instrução, as crianças talentosas de famílias de baixa renda não se beneficiam; 4) a evasão
escolar nos países de baixa renda, devido à necessidade de trabalhar para contribuir com a
renda familiar; 5) a importância em relação ao fundo de empréstimos a estudantes, para
343
modificações das leis fiscais a considerar a instrução como investimento em capital humano.
As taxas de rendimentos se elevariam muito se não são levados em conta os salários não-
recebidos, pois o custo real da instrução se veria muito reduzido (p. 47).
Schultz passa a avaliar como os custos da educação se alteraram entre os anos de
1930 e 1960 para países com cifras disponíveis e como variam entre países. Observa que o
custo da instrução se eleva nas economias em desenvolvimento de acordo com o índice da
população e o valor do PNB, embora tal relação “não seja conhecida totalmente”. O custo de
um ano de instrução superior é muito maior que um ano de primária e o autor considera que
quanto mais os níveis de despesas crescem, maior o crescimento da instrução. Aponta
dificuldades nas estimativas como determinação de limites de idade por nível de instrução e
fatores que influenciam na quantidade de jovens matriculados. Infere também que o aumento
quantitativo da instrução eleva os preços dos fatores que a integram, associados ao
crescimento econômico que caracterizou os Estados Unidos na época, e que: “Caso o
rendimento unitário do potencial da instituição educacional permanecesse constante,
justificar-se-ia a suposição de que o custo real da unidade de instrução se desenvolve de
acordo com o crescimento.” (p. 52).
Há seis problemas referentes ao objeto, fatores essenciais aos dados e à lógica do
que se pretende analisar: (1) há dificuldade em especificar quais instituições incluir no estudo,
por exemplo escolas vocacionais de comércio, residenciais típicas, estagiários e residentes de
medicina, programas especiais de defesa e outras atividades educacionais federais que
implicaram um investimento público altíssimo; (2) privilégios fiscais das escolas, embora seja
questionável considerá-los como custos de instrução; (3) um conceito mais amplo de
instrução implica estimar um fator total de custo maior devido, em parte, ao valor dos salários
não-recebidos; (4) itens omitidos dos componentes do custo de instrução não incluídos no
PNB que o aumentariam; (5) identificar quem arca com os custos depende da precisão com
que se determina a dimensão e objetivos, pois mesmo indiretamente, a família do estudante
paga grande parte da instrução (donativos ou impostos); e, (6) a distribuição dos custos de
instrução “entre 'consumo' e 'investimento' em salários permanece sem solução” (SCHULTZ,
1973, p. 53).
Para efeito de análise econômica, fez-se a distinção entre consumo atual, consumo
futuro (um investimento) e capacidade futura do produtor (também investimento) (p. 55) O
autor volta a enfatizar a distinção entre “instrução” e “instituição educacional”, porque as
344
atividades em que se empenham a segunda não se ajustam à primeira. E passa a considerar
importantes atribuições das instituições educacionais. Avalia a pesquisa como atividade
produtiva e investimento, oferecendo cifras de investimento de valores e quantidade de
profissionais envolvidos; encontrar e desenvolver talentos para a indústria; uma força de
trabalho mais instruída implica maior mobilidade; flexibilidade e reajustamento ocupacional
ou funcional (p. 57); a educação como investimento futuro, que forma jovens, profissionais,
engenheiros, cientistas, que garantem o consumo (58); por último, destaca o papel central do
“potencial humano” vinculado aos interesses nacionais para o crescimento econômico de um
país, principalmente países em desenvolvimento e de baixa renda. Neste sentido, uma
concepção baseada em investimentos na instrução e em rendimentos potenciais pode ser mais
apropriada para otimizar a distribuição e aumento na taxa de rendimento para os capitais
aplicados.
Crescimento econômico significa aumento do produto nacional avaliado em
dólares, mas, segundo o autor, a elevação dos níveis de instrução tem sido investigada, assim
como a pesquisa universitária, a ciência e tecnologia, para conhecer seu efeito sobre a
produtividade do esforço humano e determinar em que medida é fonte do crescimento
econômico (59). Apresenta uma hipótese simplificadora para resolver esse problema: Parte do
suposto que toda instrução é um investimento em salários, que a taxa de rendimento é a
mesma para os níveis de instrução (primária até superior) e que o número de trabalhadores é
constante; nestas condições, “caso o cabedal de instrução, por trabalhador, não se elevasse, a
instrução não poderia ser considerada uma fonte de crescimento econômico.” (p. 59); a partir
de outra perspectiva, o autor afirma que se um país atingisse um alto nível de instrução, esta
deixaria de ser uma fonte de crescimento; do mesmo modo que em um país com baixa renda a
instrução não necessariamente é fonte de crescimento econômico, ainda que possa se
converter facilmente em fonte de crescimento – mas o autor não diz como.
Em outras palavras, com uma tautologia de lógica vulgar do tipo 'a instrução é
fonte de crescimento enquanto há crescimento', o autor omite o nexo causal que explicaria a
relação entre instrução do trabalhador e aumento nas taxas de lucro: o aumento da
produtividade promovido pela aplicação da ciência e da técnica ao processo de produção, a
qualificação do trabalho apenas permite um crescimento econômico proporcional, ou aumento
nos lucros, à medida que se vê associada a um aumento do capital constante e consequente
aumento na taxa de mais-valia. Aqui se pode fazer uma analogia com os rendimentos
345
decrescentes da teoria de Ricardo ou a tendência decrescente da taxa de lucros de Marx pelo
aumento do capital constante. Ao final fica claro o vínculo do conceito de capital humano
como fonte de crescimento do lucro dependente do capital variável, pois o autor afirma “[…]
mesmo que a instrução por trabalhador permaneça inalterada, qualquer acréscimo da força de
trabalho elevaria o cabedal total de instrução e, neste caso, tornar-se-ia uma fonte de
crescimento econômico.” (p. 60).
O autor apresenta dados históricos de investimento em educação e crescimento
econômico nos EUA de distintos estudos que avaliam a instrução como fonte de crescimento
econômico e conclui que entre 1930 e 1960 a instrução tem se constituído em uma fonte de
rendimento econômico maior do que o capital mobilizado em estruturas, equipamentos e
patrimônios; e que desempenhou um papel mais importante neste período que entre 1909 e
1929.
Essa categoria do capital humano permitiria identificar oscilações nesse tipo de
investimento e realizar análises mais profundas sobre os motivos que levam um país a investir
mais ou menos em habilidades humanas que em capital material, ou aumentar esse tipo de
investimento de um ano a outro. Em relação às políticas nacionais, é um conceito mais preciso
do que a noção de ano letivo, pois não se podem somar igualmente anos de formação
primária, secundária ou superior; nem considerar iguais os subgrupos de trabalhadores ativos
e a serem formados, como engenheiros, químicos, médicos, etc; os fundos destinados à
educação para reposição da força de trabalho servem de melhor índice para instrução que anos
letivos.
O conceito de estoque baseado no custo de reprodução é útil para algumas
finalidades, apesar de aparentemente simples, mas é falacioso considerar que a instrução
adquirida não se deprecie ou se torne obsoleta até que se aposente o trabalhador; o que
poderia ser também desenvolvido sobre o conceito de capital humano. Outro aspecto que
poderia se considerar é a fuga deste capital humano de um país, o autor cita os exemplos da
Alemanha Oriental e Israel, que tiveram grande evasão de pessoal altamente qualificado, e os
Estados Unidos, cujo Fundo Educacional da Força de Trabalho se elevou rapidamente.
O autor considera um questionamento que se apresenta ao conceito de capital
humano em relação à pesquisa, principalmente pesquisa básica nas universidades: “Será que
isto avilta a Educação?” (p. 67, ênfase do autor). Procede a argumentar contra esta posição:
Primeiro, como no caso da instrução básica, ver a pesquisa como investimento que acarreta
346
aumento da produtividade e de salários futuros não exclui os benefícios advindos da instrução
e os consequentes impactos positivos sobre o consumo. Segundo, permitirá avaliar melhor o
conceito e tornar investimentos algumas atividades que não o são. Por último, o autor
apresenta sua discórdia, ainda que de maneira sutil, à ideia da pesquisa como “procura do
conhecimento por seus próprios méritos” como melhor “política” para progredir o
conhecimento, pois seus objetivos são sempre teorias e técnicas utilizadas em atividades
econômicas subsequentes (p. 68).
O autor indica que este conceito de que uma parcela da instrução constitui um
investimento apoia-se em três variedades de estudos que comprovam que este é um fator
determinante. O primeiro examina sua relação com o crescimento econômico; o segundo
refere-se aos equívocos na mudança na estrutura de pagamentos e salários; e o último avalia a
redução na desigualdade em distribuição da renda pessoal, que não pode ser explicada pela
“pequena redução na concentração de riqueza particular” (p. 69). Afirma que os estudos
realizados por ele próprio nos EUA constituem “sólidos comprovantes de que instrução e
pesquisa universitária constituem as mais importantes fontes de crescimento” (p. 69) e agrega
dois estudos internacionais, um realizado no Chile e outro em países “subdesenvolvidos” para
reafirmar este ponto. O autor passa então a listar uma série de estudos que demonstram a
influência do investimento em capital humano sobre salários, e que “a longo termo, as
diferenças entre os totais investidos no capital humano, nos trabalhadores, poderão constituir
o mais importante fator isolado responsável pelas diferenças de salários” (p. 70). Primeiro,
cita Friedman e Kuznets que observam que associações médicas e governo dificultam a
entrada na profissão de medicina, reduzindo o nível ótimo de investimentos nesta profissão.
Cita Zeman, que usa a correspondência entre educação e salário para explicar a diferença de
renda entre os trabalhadores brancos e negros nos EUA. Também afirma que estudiosos que
verificaram um declínio nos salários qualificados em relação aos não qualificados foram
induzidos a erros de avaliação da instrução e do treinamento prático, pois a diferença em
rendimentos, como em qualquer investimento, “depende das diferenças absolutas em
pagamentos combinados com o investimento em habilidades” (p. 70) e não de pagamentos
relativos. Para reafirmar esse ponto, cita ainda Mincer que estuda o investimento em capital
humano, principalmente na instrução e na distribuição de renda. Além deste, há referência a
outros estudos sobre a relação entre o nível de instrução e a diferença salarial com Clark,
Glick, Miller, Houthakker, Rivlin.
347
Um conceito genérico de investimento em capital humano incluiu vários outros
aspectos além da instrução como “saúde, treinamento prático, a busca de informações ligadas
a empregos e migrações” (p. 70). A contribuição de Becker, publicada na edição do Journal of
Political Economy em outubro de 1962, é altamente significativa pois determina que é
necessária uma reformulação da teoria para investimentos pessoais, que todavia seguiam a
estrutura de investimentos materiais; nesta, Becker define que o rendimento e o total investido
podem ser deduzidos dos montantes de salário e indica algumas características fundamentais
como: custo de instrução, adestramento operativo, outros investimentos no homem, e o
esquema de salários dos trabalhadores de diferentes idades. Becker demonstra que sua
reformulação da teoria básica oferece interpretação unificada para fenômenos empíricos (p.
71).
O autor apresenta um método para avaliar a instrução que supõe “que o total do
custo da instrução seja atribuído ao investimento na capacidade de produção dos estudantes”
(p. 74), para deduzir as taxas de rendimento, tendo em conta as limitações da informação em
relação a educação universitária. Estabelece a seguinte relação entre estas variáveis: quando
uma taxa de rendimento, baseada no custo total, é tão elevada quanto a de outro investimento
qualquer, ocorre que, quanto maior o componente do consumo atribuído ao estudante e à sua
família, e quanto maiores os benefícios usufruídos por terceiros, tanto maior será a escassez
de investimentos (p. 74).
O autor estabelece uma escala dos níveis de instrução considerando o consumo do
estudante e sua família, os benefícios à produção e ao consumo de terceiros. Deste modo, as
taxas de rendimento expressas em salários na instrução primária são mais elevadas, o que
permite deduzir que há que dedicar pelo menos oito anos de instrução como investimento
aceitável (p. 74).
Schultz comenta que esta análise poderia ser aplicada a outros países para
classificá-los segundo nível de instrução, o que se traduziria em variações de perspectivas
salariais decorrentes da instrução, seus custos, “a organização da economia, renda das
famílias, e diferenças de gosto” (p. 74). Classifica, deste modo, os níveis de educação nos
Estados Unidos. Afirma que a instrução especializada superior (ex. engenharia, medicina,
direito, etc.) tem baixo consumo e poucos benefícios a terceiros são investimentos em
capacidade produtiva que influenciam salários e valorizam as pessoas que o recebem. Os
estudantes de programas gerais de instrução e de instituições secundárias não vocacionais se
348
beneficiam substancialmente do consumo, assim como terceiros; o autor considera a hipótese
de que metade a três quintos dos custos destas instituições é investimento em capacidade de
produção, elevando salários futuros. Finalmente, a instrução primária é considerada
componente de consumo que, por outro lado, “dá lugar a uma ampla faixa de benefícios da
produção e do consumo” (p. 75) para estudantes e familiares; e, em complemento, traz
imensos benefícios à capacidade produtiva, eleva salários e aumenta a possibilidade de
instrução e treinamento prático; o que, para o autor, explica sua universalização (p. 75).
É importante a distinção entre rendimento e taxa de rendimento. O rendimento é a
parcela dos salários atribuída à educação; ou, de outra perspectiva, apoiando-se na definição
de Denison, o rendimento seria o crescimento da renda nacional efetiva associada à instrução
adicional da força de trabalho. Para calcular a taxa de rendimento é necessário identificar qual
parte do custo em instrução é investida na capacidade de produção (p. 76), mas, antes de
prosseguir com sua análise, apresenta três proposições sobre essas taxas, que subentendem
que todos os custos são atribuídos a futuros salários: A primeira, que indica que em países da
alta renda, a taxa de rendimento em relação ao custo de oito anos do curso primário é mais
elevada do que o ciclo subsequente. Esta hipótese está baseada nos seguintes fatos: (a) Os
custos de instrução são mais baixos e não há salários não-recebidos; (b) ainda que o aumento
em salários seja maior para pessoas que receberam instrução adicional, expressam uma taxa
de rendimento menor, pois os custos são muito mais elevados; as possibilidades de colocação
de pessoas que não completam o curso básico são escassas, o que significa taxas de
rendimento menores (HANSEN apud SCHULTZ, p. 77).
Em segundo lugar, apresenta uma proposição similar, porém, tomando o México
como exemplo para países de baixa renda. A taxa de rendimento é elevada em relação aos
custos de seis anos de instrução, principalmente considerando os escassos salários de
trabalhadores analfabetos. A partir do 7 o ano, pode se computar os custos dos salários não-
recebidos. Este quadro é explicado pelo tempo reduzido de vida ativa dos trabalhadores nos
países de baixa renda e a alta taxa de rendimentos que os investimentos nele devem
proporcionar. Neste caso, todos os custos são atribuídos aos salários futuros (p. 77).
Por último, nos países de alta renda, um reajuste dos custos de instrução com
consumo e benefícios a terceiros elevaria a taxa de rendimento da instrução primária em
relação à superior. Nos Estados Unidos foi estipulado que metade ou dois terços da instrução
primária são destinados ao consumo e benefícios de terceiros; enquanto que na instrução
349
superior só uma fração pequena não se destina ao benefício individual do estudante (p. 78).
Os países de alta renda com instrução primária universal poderiam estar próximos
a um limite superior, como o caso da Europa Ocidental, no Norte e no Reino Unido. Porém,
nos Estados Unidos grupos populacionais como mexicanos, negros, emigrados e alguns
brancos pobres recebem menos de 8 anos de instrução primária de má qualidade. Nos países
pobres, considera-se que a melhor compensação em produção e lucro é a instrução primária. A
partir destas considerações o autor expõe estudos de estimativas de taxas de investimento e de
rendimentos na Venezuela, em Israel e nos Estados Unidos. No primeiro, as taxas de
rendimento na educação primária chegam a ser superiores a 100% devido às condições de
trabalhadores agrícolas analfabetos, o que corrobora as hipóteses do autor supracitadas. A
teoria do capital humano serve ao propósito, portanto, de justificar também a diferença de
renda das diferentes classes sociais através de um discurso de investimentos pessoais.
O autor cita estudo realizado em 1957-58 que indica que investimento em
instrução primária cresceu de 82% para 130%; taxas de rendimento de 17% para instrução
secundária para os quatro anos de instrução universitária. Em Israel a taxa de rendimento para
8 anos de instrução primária é de 17%. 18% do custo total com instrução são salários não
recebidos, a taxa de rendimento para os 4 anos de estudo secundário é de 6,5%. A instrução
superior são 4% para médicos e 5% engenheiros e advogados (pagos em prestações de
serviços ou salários). A taxa de rendimento para o curso universitário é dos autônomos são de
3,4 a 20%, engenheiros 30%, advogados e médicos assalariados 25%. Nos Estados Unidos
estimativas (1940-50) para educação universitária são de 9%, segundo Becker. 4 anos de
estudos secundários, em 1939, a estimativa de taxa era de 14,3%. Em 1958, as taxas de
rendimento para o primário era de 35%, secundário 10% e universitário 11%.

4.5.2 Capital intelectual: continuidade de um paradigma

Nossa referência será o artigo Capital intelectual e a nova riqueza das nações de
Keith Bradley que apresenta, em linhas gerais, a categoria de capital intelectual: a habilidade
de transformar conhecimento e ativos intangíveis em recursos de criação de riqueza, tanto
para empresas quanto para países (BRADLEY, 1997, p. 53). A época atual, definida com
350
base no conhecimento, constitui uma importante ruptura em relação a períodos anteriores. Até
o começo do século XX, a criação de riqueza derivava principalmente da aquisição de terras
que, com a adição de trabalho, produzia comida e renda; por volta de 1915, a manufatura
suplantou a agricultura como fonte de riqueza principal tanto nos EUA quanto no Reino
Unido; e nos 50 anos seguintes, a criação de riqueza resultou da combinação entre capital,
matérias-primas e trabalho. Segundo seu autor, em meados da década de 1970, os
trabalhadores especializados da era do conhecimento começam a substituir os da era industrial
nas economias avançadas e, no decorrer da década de 1980, esta nova era do capitalismo,
baseada na inovação e no desenvolvimento cerebral, consolida-se. A importância estratégica
do capital intelectual como vantagem competitiva foi intensificada pela liberalização dos
mercados internacionais. O livre comércio, abarcando os países em desenvolvimento,
tornaram as matérias-primas, as finanças e os processos disponíveis para todos no mundo
inteiro em maior ou menor grau(p. 54). Atualmente, o conhecimento é acumulado em taxas
crescentes e a tecnologia facilita a velocidade com que estas ideias se propagam. Houve uma
mudança do mundo dos átomos para o mundo dos bites: o autor como professor, por exemplo,
considera mais efetivo escrever um artigo que atinja milhões de pessoas na internet do que
redigir um livro que seria lido por poucos milhares de estudantes em bibliotecas
universitárias. Este caso ilustra o papel cada vez mais relevante que o capital intelectual
desempenhará nas indústrias do século XXI, tais como biotecnologia, software,
telecomunicações etc, embora não se possa descartar sua importância na manufatura em
setores como design, logística, marketing etc. A questão central é que há uma transformação
no processo de criação de riqueza do mundo físico para o mundo intangível. A revolução da
informação representa um avanço sem igual em relação às revoluções tecnológicas anteriores,
por ser potencialmente mais "penetrante", por sua velocidade de introdução bem mais
acelerada e por tornar o trabalho mais disperso e móvel.
Há, entretanto, um problema: nos últimos vinte anos, houve uma ampliação da
brecha entre os valores que as empresas demonstravam em seus balanços corporativos e as
avaliações dos investidores sobre estes valores. Esta diferença indica que uma boa parcela do
valor público destas empresas não é computado na folha de balanços. Em indústrias
fortemente baseadas no conhecimento, tal incapacidade ou falta de interesse na capitalização
do capital intelectual gera profundas distorções que deprimem os valores reais.(p. 57)
Tampouco há ferramentas para administrar ativos escondidos, uma vez que estas são
351
dominadas pelas finanças e pela contabilidade derivadas do modelo de negócios da primeira
metade do século XX (manufatura). "A pouca relação entre os dados contábeis e os valores
de capital limitam o valor dos relatórios financeiros para investidores em potencial,
particularmente no caso de empresas fortemente baseadas no conhecimento"(p. 55).
A ciência administrativa não tem teorias ou práticas explicativas deste "novo"
mundo de ativos intelectuais. O capital intelectual parece desafiar os mais básicos princípios
de administração - baseados no trabalho físico. Não se pretende defender que o conhecimento
era desimportante para a criação de riqueza no passado (eras da agricultura e da manufatura),
mas deve-se reconhecer que a exploração de ideias adquiriu novas proporções. A
"intangibilidade" tornou-se a característica definidora da futura criação de riqueza e da
vantagem competitiva (e isso é válido no caso das manufaturas, bem como no setor de
serviços). Por isso, diz-se que existe uma convergência entre a manufatura e os serviços a
despeito das velhas divisões entre os dois setores do passado. Além disso, diferentemente das
finanças e das matérias-primas, o capital intelectual é incrivelmente maleável e não escasso. É
possível vender seus ativos intelectuais e ainda mantê-los(p. 56). Pelo contrário: em vez de
diminuir, tais ativos tendem a aumentar de valor quanto mais se expandirem. É de replicação
barata, consumo constante e pode gerar ainda mais capital intelectual, traduzido em riqueza e
em vantagem competitiva.
O capital intelectual erodirá as fronteiras tradicionais entre as empresas: os ativos
intangíveis permitem a descentralização dos negócios, o que torna os limites empresariais
menos definidos. O conhecimento e o know-how, essência para os negócios na atualidade,
podem ser codificados e transmitidos digitalmente(p. 56). Há uma grande demanda por
capital intelectual, um recurso global com poucas delimitações geográficas.
Pessoas com capital intelectual rejeitam as estruturas tradicionais e entendem seu
significado estratégico, abandonando as organizações tradicionais. Foi Hollywood que deu
início a este processo com a explosão da TV nos anos 1960/1970. Outro elemento novo é o
fenômeno "o vencedor-leva-tudo". O mercado não paga os "vencedores" por seu desempenho
absoluto, mas relativo a outros e a tendência é os "vencedores" ganharem muito dinheiro
comparativamente(p. 57). Para quem tem capital intelectual, uma pequena diferença pode
implicar grandes diferenças de ganhos, já que pode constituir a linha entre ganhar e perder. O
fenômeno "o vencedor-leva-tudo" é potencializado pelas comunicações que tornaram globais
os mercados de capital intelectual locais. Em circunstâncias normais, grandes remunerações
352
atrairiam mais pessoas para setores específicos, equilibrando salários, mas no caso do
capital intelectual há uma diferença considerável entre vencer e ficar em segundo lugar (p.
57).
Deve-se registrar uma mudança na natureza da competição: um crescimento mais
acelerado de companhias fortemente baseadas no conhecimento e um domínio de mercados (o
que não implica que devam ser reguladas). A manufatura tradicional chega a um limite
condicionado pela competência administrativa ou pelo tamanho do mercado, já numa
empresa de capital intelectual os custos fixos são altos (pesquisa e desenvolvimento), mas os
variáveis são baixos.(p. 58) “Isso significa que, diferentemente das manufaturas tradicionais,
as quais têm dificuldade de monopolizar mercados competitivos, empresas baseadas no
conhecimento, pelos seus custos variáveis baixos, podem crescer rápido e dominar mercados
como fez a Microsoft”. Além disso, a padronização também facilitou o domínio de mercados,
porque permitiu a compatibilização tecnológica e/ou de serviços. Por outro lado, a inovação e
a mudança tecnológica podem encorajar a emergência de novos produtos ou serviços
[contradição com padronização(p. 58)] que, ao lado das mudanças tecnológicas, criam as
condições para novos players no mercado. Há então uma espécie de monopólio competitivo e,
por este motivo, os governos precisam recuar na regulação e se prepararem para tolerar este
grau de competição monopolística.(p. 58).
O gerenciamento do capital intelectual exigirá mudanças gerenciais: um gerente
pode entender de treinamento, valores etc (recursos físicos e financeiros), mas o capital
intelectual tem capacidade de inovação e isso é ainda pouco compreendido. Há ainda outro
problema: conhecimento é confundido com informação. Esta consiste em saber números,
símbolos etc, ao passo que aquele consiste na interpretação destes dados. Informação é fácil
de ser produzida e barata para compra, mas a aplicação do poder cerebral adiciona-lhe o
valor, exigindo tempo, experiência e esforço(p. 58). Para localizar e mapear o capital
intelectual, a empresa sueca Skandia o entendeu como uma combinação entre indivíduos com
habilidades de inovação e geração de ideias e uma estrutura empresarial capaz de trabalho
em rede e disseminação de know-how de qualidade(p. 58).
A Skandia foi a primeira empresa no mundo a tornar públicas suas medições sobre
ativos intangíveis e, a despeito de iniciativas anteriores de medição (e com toda a dificuldade
já mencionada), é mais detalhada e concentra-se especificamente em inovação e renovação.
Seu "Relatório sobre Capital Intelectual" não só contribui para a eficiência interna, como
353
também auxilia acionistas e investidores a ponderar sobre sua competitividade no futuro.
Estes indicadores compreendem clientes (redução no atendimento a queixas, sensibilidade ao
preço e satisfação em longo prazo), estruturas empresariais (sistemas físicos empregados para
transmitir e armazenar conhecimento), capital humano (base de empregados e especialistas
espalhados pelo mundo).
O armazenamento do capital intelectual é fundamental para converter o capital
humano num atributo corporativo por meio de sua decantação nas estruturas empresariais(p.
59), as quais são comumente caras para serem criadas, rápidas e baratas para serem usadas e
podem ser acessadas de qualquer lugar do mundo. Os avanços na tecnologia da informação
facilitaram a captura, a capitalização e o desenvolvimento dos ativos intelectuais, como é o
caso dos softwares com databases operacionais pelo mundo. A Skandia, ao compartilhar com
seus funcionários detalhes de como lançar e tornar operacional a empresa mundo afora,
potencializou sua penetração em novos mercados num contexto de desregulamentação na
América do Norte e na Europa (p. 59). Há muitas iniciativas neste sentido atualmente, mas o
fundamental é que todas tendem a enfatizar a divulgação de conhecimento e informação,
focando menos na forma como o conhecimento é construído (p. 60) (deve-se destacar a
importância da linguagem). A atividade linguística controla o conhecimento técnico
complementar, uma vez que a terminologia permite um uso regular dos conceitos. A
padronização linguística melhorará significativamente a competência comunicativa. Além
disso, em negócios tão dinâmicos como biotecnologia ou mercado financeiro, manter o
conhecimento em um só lugar não é isento de custos. Este precisa ser constantemente
atualizado para um ganho de eficiência. Decantar e armazenar capital intelectual assegura
que um importante know-how individual seja convertido em conhecimento empresarial,
mesmo que o empregado saia (p. 60). Isso melhora também o processo empresarial de tomada
de decisões.
Por fim, cabe pontuar que, devido à importância estratégica do capital intelectual
para o crescimento futuro, as economias nacionais enfrentarão dificuldades para gerar
empregos por meio de políticas tradicionais que encorajem investimentos em ativos físicos.
No futuro, as melhores economias serão aquelas que administrem seu capital intelectual mais
eficientemente (p. 60) (governos devem estimular a criação de ambientes que permitam o
florescimento do capital intelectual). Primeiramente, devem aceitar que crescimento
econômico vem de ideias, as quais não têm limites, não de alocação de recursos escassos(p.
354
61). Governos têm que desregulamentar mercados para encorajar a competição e aumentar os
padrões educacionais, de treinamento e tecnológicos, permitindo que se invista em tecnologia
e pesquisa. "Governos precisam direcionar seus recursos para criar quadros de capital
intelectual que se espalharão pela economia e gerarão ideias e novas tecnologias". O sucesso
econômico só será alcançado se o capitalismo se reestruturar e der espaço a uma nova riqueza
das nações. Não será um processo rápido, tampouco fácil.
O artigo parte da premissa de que a criação de riqueza e o crescimento econômico
no futuro dependerão fundamentalmente do capital intelectual: a geração de ideias convertida
em renda.
Deve-se ressaltar que há diferenças profundas entre o capital intelectual e o físico,
sendo aquele a habilidade de combinar elementos físicos com baixo valor intrínseco relativo
em combinações que valham significativamente mais. Ainda que lide com recursos limitados,
o capital intelectual não tem limites (p. 61), além de ser de reprodução barata, pode estar em
vários lugares ao mesmo tempo e, com o uso, melhora cada vez mais em vez de se desgastar.
As técnicas administrativas ortodoxas, que sugerem a avaliação do desempenho
produtivo a partir de uma razão entre inputs e outputs para determinar o comportamento
administrativo e as decisões de investimento, já não são mais adequadas para a mensuração do
capital intelectual(p. 61) e para empresas fortemente baseadas no conhecimento. Este tipo de
relatório financeiro foi desenvolvido há 500 anos e era válido para a estrutura industrial
anterior intensamente maquinizada, entretanto mantê-lo representaria incorrer em grandes
distorções no mundo atual. Entre suas inadequações, encontram-se: a ênfase em eventos
históricos, sua inabilidade de medir ativos intangíveis, seu foco nos custos e sua atenção em
pronunciamentos regulares.
Tanto as empresas baseadas em conhecimento quanto as fábricas maquinizadas
tradicionais têm dois tipos básicos de inputs: humano e não-humano. Podem até existir
diferenças na produtividade individual das pessoas ou no valor das máquinas utilizadas - os
quais seriam explicados pela teoria tradicional de administração como diferentes níveis de
investimento, tendendo gerentes a pensar em crescimento como acumulação de inputs -, o
problema é que não conseguem explicar o processo fundamental de geração de riqueza nos
dias de hoje (BRADLEY, 1997B, p. 33). As fábricas hoje são incrivelmente mais produtivas e
eficientes do que há 50 anos, mas não houve nenhuma alteração biológica que tenha
diferenciado as pessoas de hoje em relação as desta outra geração, tampouco uma mudança
355
significativa nos inputs e nos materiais e máquinas com os quais são feitas as fábricas. Ou
seja, os inputs humanos e físicos não foram alterados. A diferença está na forma como estes
têm sido combinados e organizados, ou seja, o capital intelectual e a tecnologia resultante(p.
35). O capital humano é importante por ser responsável pela formulação de hipóteses e
experimentação e o capital físico também, mas uma vez estabelecida a inovação (a partir de
uma combinação precisa dos inputs físicos determinada pelo capital intelectual) o novo
processo requererá seus próprios inputs (sua fórmula particular) (p. 36) [contradição].
Devido ao fato de o capital humano e intelectual estarem tão relacionados, por
vezes são vistos como um mesmo bem, porém seus atributos para a criação de riqueza e suas
implicações administrativas são bem diferentes. Enquanto o capital humano é como um objeto
e tem seus custos de oportunidade (em outros termos, um indivíduo qualificado que trabalhe
para uma empresa específica não consegue trabalhar simultaneamente em outra), o capital
intelectual pode estar em vários lugares ao mesmo tempo (p. 38). O que confere a este capital
a capacidade de geração de riqueza é a possibilidade de ser transposto numa forma
"linguística" (verbal ou não-verbal), como fórmulas, desenhos, bites etc (p. 38). Sem esta
forma, o capital intelectual não teria nenhum valor, já que uma ideia na cabeça de alguém não
vale nada até ser expressa de alguma forma. É necessário distinguir, por fim, o capital
intelectual que potencializa o capital humano daquele que este capital humano pode produzir.
Tais distinções também indicam como o capital intelectual influencia na criação
de riquezas. O valor de um indivíduo está relacionado com as demandas por suas habilidades
e, para tal, é necessária sua permissão. Com o tempo, estas habilidades tendem a se deteriorar,
principalmente em áreas com transformações tecnológicas muito dinâmicas. Quando uma
pessoa sai de uma organização, suas habilidades vão junto e há todo um custo associado ao
processo de treinamento (passagem de habilidades de um indivíduo para outro). O capital
intelectual, por sua vez, não se deteriora, não sai arbitrariamente da organização e sua
transferência é barata (p. 40). Devido aos altos custos de transferência de capital humano, os
administradores desenvolveram técnicas de recrutamento, desenvolvimento e retenção pessoal
nas organizações. O capital intelectual tem muito mais potencial para criação de riquezas: a
preocupação de um especialista em recursos humanos é a manutenção da motivação e do
compromisso, mas uma organização pode afundar se contar com trabalhadores motivados e
comprometidos conduzidos por decisões erradas.
Uma dificuldade em relação ao capital intelectual é que este é difícil de ser
356
controlado (fórmulas podem ser roubadas, por exemplo) e muitas corporações fortemente
baseadas em conhecimento tentam contorná-lo com mecanismos de controle para que não
caia na mão de competidores (p. 40) (políticas de patentes e processos judiciais, por exemplo).
Há também as que, por reconhecerem a dificuldade de controlar este capital, tiram ênfase da
propriedade intelectual e desenvolvem serviços altamente qualificados (como empresas de
software). Mais importante que isso, porém, é a característica do capital intelectual de estar
simultaneamente em diferentes lugares: seu custo de reprodução, depois de desenvolvida a
primeira unidade, é próximo a zero (p. 40). Tais capacidades são influenciadas por, ao menos,
dois outros fatores: o tamanho do mercado (a abrangência mundial de uma Microsoft ou uma
Intel, por exemplo) e os preços (os preços dos softwares são bem mais altos do que os custos
marginais para idealizá-lo e produzi-lo de modo a que os lucros sejam revertidos novamente
em pesquisa e desenvolvimento). Este capital intelectual pode ser influenciado por políticas
governamentais e práticas administrativas, além de flexibilidade laboral, amplitude da rede de
abastecimento, padrões educacionais, cultura e acesso a capitais voláteis, principalmente este
último (p. 40).
Uma administração adequada no âmbito governamental e empresarial é também
crucial para otimizar o potencial de geração de riqueza do capital intelectual. Assim como o
capital físico, este exige uma série de instituições robustamente estabelecidas para sua
produção e distribuição, diferindo estas das instituições administrativas ortodoxas. Em termos
nacionais, há muitas lições que podem ser extraídas da experiência do Vale do Silício: desde a
grande disponibilidade de capital volátil até incentivos que beneficiem os donos do capital
intelectual (incentivos fiscais, alteração de leis de falência ou flexibilização da legislação
trabalhista, por exemplo). Os desafios impostos pelo capital intelectual para políticos e
administradores estão principalmente relacionados à estrutura de pesquisa e desenvolvimento
(ainda que se recorram a técnicas de mensuração tradicionais como proporção do PIB ou
gastos administrativos, tempo de treinamento e qualificações obtidas, estas não ajudam aquela
estrutura a impulsionar o capital intelectual e gerar riqueza). Laboratórios do governo e
pesquisas em universidades são pagos pelos impostos, enquanto laboratórios privados são
comumente subsidiados por divisões operacionais lucrativas. Nos dois casos, o resultado da
pesquisa pode ser visto como um bem público ou privado: no primeiro caso, torna-se
disponível a todos e, no segundo, protegido legalmente e distribuído na forma de transações
de mercado. Estas atividades laboratoriais (nacionais ou corporativas) ou os departamentos de
357
pesquisa podem estar descolados das demandas e necessidades dos contribuintes. Os limites
entre o que deve ficar com a administração pública ou privada ainda precisam ser respondidos
e isso determinará a estrutura de pesquisa e desenvolvimento nestes dois níveis
(governamental e empresarial), o que, em consequência, influencia no ambiente de apoio ao
capital intelectual. A dicotomia tradicional entre conhecimento público e privado está se
tornando cada vez menos relevante, dando espaço a formas híbridas que não são nem
públicas, nem privadas (p. 42).
Desde os anos 1970, evidencia-se a estruturação de uma economia baseada no
capital intelectual: grande parte da riqueza e do emprego nas sociedades industriais mais
avançadas resultam do poder do cérebro mais do que de músculos. Apesar desta grande
transformação global, a pesquisa administrativa e a educação têm sido lentas no
acompanhamento desta nova era do conhecimento (p. 42). Isso é compreensível. Antes, as
escolas de administração tendiam a reagir às mudanças nos negócios, não liderá-las: em seus
anos de formação, na década de 1920, isso representou uma atenção maior a tarefas a serem
realizadas, ou seja, a administração seria ensinada como uma série de processos e
procedimentos. No decorrer deste tempo, as mudanças realizadas diziam mais respeito ao
detalhe do que ao enfoque mais amplo num crescimento econômico em longo prazo. Os
programas de ensino administrativos apresentavam que um desempenho de sucesso era
motivado por resultados financeiros em curto prazo. Nos EUA e no Reino Unido, esta
perspectiva educacional seria reforçada pela pressão das comunidades financeiras que
exigiam que a eficiência administrativa fosse medida a partir destes critérios. Há ainda o
agravante de que, atualmente, a propriedade empresarial tem-se deslocado de indivíduos a
instituições, as quais querem avaliar o próprio desempenho.
O legado da educação e da pesquisa desenvolvida pela administração do século
XX, apoiada no modelo da fábrica maquinizada, é o estabelecimento de padrões para alocação
de ativos físicos (capital, trabalho e matérias-primas), os quais são escassos, inflexíveis e de
utilidade decrescente (p. 43). Tal legado foi reforçado com a profissionalização da
administração em linhas funcionais: estratégia, contabilidade, recursos humanos etc. Em
consequência, a pesquisa e a prática da ortodoxia administrativa tendeu a focar na geração
rápida de renda mais do que na criação de riqueza (p. 43) e isso poderia ser atingido de duas
formas: uma autoritária e a outra consensual. A primeira, relacionada a uma estratégia de
negócios, observa os resultados dos outputs e redireciona para os inputs físicos, ao passo que
358
a segunda, relacionada à administração de recursos humanos e comportamento empresarial,
sugere que o controle da organização não esteja concentrado no administrador, mas num
processo interativo entre acionistas, clientes, governos, trabalhadores etc.
A questão central é que, nos dois casos, um comportamento dissidente é
penalizado e a conformidade recompensada, o que encoraja o comportamento voltado à busca
de resultados financeiros em curto prazo, reforçando o status quo pela racionalização do
comportamento não-produtivo. Isso cria obstáculos à criação de um ambiente favorável para o
capital intelectual e impõe obstáculos significativos para o crescimento. Para as empresas
terem sucesso no futuro, têm que romper com este comportamento de busca a curto prazo,
voltado para o passado e que retarda o crescimento e não confere a importância ao capital
intelectual. As organizações devem olhar para o futuro, buscando a criação de riqueza: o
crescimento das indústrias fortemente baseadas no conhecimento e seus efeitos na economia
global estão associados à mudança dos padrões das empresas e dos mercados de trabalho (p.
44) Apesar de esta ter sido uma mudança relativamente abrupta, a prática e educação
administrativas têm se transformado de maneira bem mais lenta, adeptas ainda de uma
mentalidade ortodoxa que busca o crescimento curto prazo. Para a educação e a prática terem
um papel de liderança no processo de criação de riquezas, precisam recorrer à nova ortodoxia,
focada no capital intelectual e na nova riqueza das nações.

4.6 A contribuição crítica de Gaudêncio Frigotto

Pode-se afirmar que há na educação hoje uma luta interna de paradigmas


pedagógicos, como aponta Gadotti (2010) ao problematizar as novas referências e tendências
pedagógicas no século XXI, centradas na noção de pós-modernidade. O autor localiza nas
transformações tecnológicas (revolução informacional) e políticas (crise do capitalismo e do
socialismo) a crise de paradigmas e o fundamento das categorias do discurso pós-moderno,
em analogia ao que predisse MacLuhan em 1969. Neste sentido, os estudos de Gaudêncio
Frigotto constituem importante contribuição para o entendimento da subsunção da educação
ao processo produtivo e de dominação política e ideológica capitalista, em relação à teoria do
capital humano e de sua transfiguração em capital intelectual.
359
Em seu trabalho Educação e a Crise do Capitalismo Real (2010), Frigotto
sustenta que a crise do capitalismo real é, na essência, a crise do Estado do Bem-Estar Social,
cujos pressupostos são a crise de superprodução e a queda da taxa de acumulação (2010, pp.
86-87). O autor argumenta ainda que a mudança de paradigma econômico do keynesianismo
ao neoliberalismo teria conduzido a economia a uma reestruturação produtiva, passando do
fordismo ao toyotismo (ou “acumulação flexível”), de modo que a reconfiguração do conceito
de Educação acompanharia a mudança nas relações de trabalho. A aparente contradição entre
a teoria do capital humano de Schultz (1973) e as teorias de Adam Schaff (1990), Claus Offe
(1984) e Robert Kurz (1992) – que tomam o seu lugar e desfocam a centralidade da categoria
trabalho – constituiria tão somente a transfiguração continuísta da concepção produtivista,
acentuando ainda mais a mercantilização da educação e, sobretudo, o emprego da pedagogia
dos “homens de negócio” (FRIGOTTO, 2010, passim).
Neste trabalho, o objeto de estudo de Frigotto é desdobrado em dois aspectos
centrais: primeiro, que o capitalismo enfrenta sua crise estrutural mais profunda e sua
recomposição se materializa em violência, barbárie e exclusão; e segundo, que as concepções
ontológicas e teóricas do processo histórico, elaboradas pelo marxismo, continuam sendo a
base da análise do capital (FRIGOTTO, 1989, pp. 17-19).
Em relação ao vínculo desta crise de paradigmas da burguesia e sua implicação
sobre as teorias da educação, o autor analisa duas questões principais: por um lado, as novas
demandas explicitadas pelos novos senhores do mundo, que incluem os grandes
conglomerados internacionais do setor produtivo e financeiro como o FMI, BID e BIRD,
baseadas nas categorias de “sociedade do conhecimento”, “qualidade total”, “educação para a
competitividade”, e “formação abstrata e polivalente”, que expressam os limites das
concepções da teoria do capital humano e as redefinem sob novas bases (p. 21); e as teses
sobre o fim do trabalho, ou a perda de centralidade do trabalho para explicar as relações
sociais. Ainda que se apresentem como posições politicamente divergentes, o autor explica
que tomá-las como ponto de partida pressupõe seu vínculo:

O pressuposto do qual partimos neste trabalho é que estas duas ordens de questões
diferem e, de um modo geral, são conflitantes, mas que, paradoxalmente, se
articulam, se reforçam e se identificam em alguns aspectos, como é o caso da ideia
de sociedade do conhecimento e do desaparecimento das classes sociais (p. 22).

Apresenta a educação como um campo social de disputa hegemônica. Define o


360
trabalho como atividade central do ser humano e princípio educativo e criador da realidade
humana, sustentando que “Marx e Engels postulam a união do trabalho manual, industrial,
produtivo, com o trabalho intelectual.” (p. 34). No desenvolvimento do capitalismo, a
submissão da educação aos interesses do capital, no que tange à formação do trabalho para
suas necessidades de acumulação, “toma formas e conteúdos diversos, no capitalismo
nascente, no capitalismo monopolista e no capitalismo transnacional” (p. 35), o que se
evidencia nas relações contraditórias entre a sociedade e os processos educativos, ou destes
processos com a produção. O autor faz um relato do desenvolvimento e aplicação dos
diferentes paradigmas educacionais no Brasil, que acompanham as crises do capitalismo real
no plano internacional, vinculando esse processo à luta política ampla, assim como dos
movimentos de trabalhadores e pela educação, e destaca que na atualidade enfrentamos um
embate de natureza muito diversa aos anos 1930 e 1950 no país, ainda que também seja um
processo de reestruturação do capital. Aponta que o monopólio sobre o sistema de
comunicação no Brasil hoje representa um “verdadeiro poder fascista” (PASOLINI apud
FRIGOTTO, p. 42) que se desenvolveu com o apoio do Estado desde a década de 1930, com
a maior parte da população analfabeta ou semianalfabeta; o que põe a luta pela
democratização dos meios de comunicação ao lado da luta contra o analfabetismo.
A concepção marxista do trabalho como categoria ontológica e econômica central
é um dos eixos da principal crítica às perspectivas economicistas, instrumentalistas e
moralizantes da educação. Esta última se desenvolve no país desde finais do século XIX, foi
usada contra a “influência comunista” durante o governo Vargas com apoio da igreja e hoje é
resgatada como possibilidade de medida punitiva contra crianças de rua. A ótica
instrumentalista e pragmática da educação no país, que evidencia claramente a subordinação
da educação aos imperativos da produção, teve seu auge com o desenvolvimento da rede de
escolas técnicas industriais e agrícolas nos anos 1940, como se pode observar na Lei 5692/71,
que define a profissionalização compulsória no primeiro e segundo graus (p. 49). Segundo o
autor, esta segue sendo a perspectiva dominante da educação no país, ainda que o
economicismo se apresente como principal alternativa na atual disputa pelos paradigmas da
educação em crise.
No momento atual, “o espaço de luta por alternativas tanto nos processos quanto
no conteúdo educativo” (p. 60) está inserido em um contexto maior de redefinição das
necessidades educativas do capital, que enfrenta problemas para fixar sua nova base de
361
acumulação sobre novo patamar científico-técnico. As diferentes perspectivas educacionais
que se apresentam decorrem de diferentes compreensões deste momento histórico de crise do
capital. Por um lado, as teses de formação geral e abstrata que acompanham “as perspectivas
neoconservadoras de ajuste no campo econômico-social” que apontam como solução aquilo
que historicamente se mostrou como sendo a raiz do problema: o mercado como regulador do
conjunto das relações sociais (p. 59). Por outro, as propostas de Offe, Schaff e Kurz, que
apresentam a perspectiva “neorracionalista ou (ir)racionalista do fim da sociedade do
trabalho” (p. 61) e com ele o fim das classes sociais fundamentais, colocando para a educação
a função social de apenas preparar o homem para o tempo livre. Ao analisar a crise de
maneira mais lógica que histórico-dialética, “suprimem os sujeitos sociais em luta
hegemônica e apontam a travessia mediante soluções de natureza meramente institucional ou
alternativas idealistas ou ‘escatológicas’.” (p. 62, ênfase do autor).
O autor analisa a crise atual, assim como as crises anteriores que resultaram em
mudanças nos paradigmas que guiam a atividade humana. Começa com uma comparação
entre as crises de 1930 e 1970, indicando que as causas da crise nos anos 1970 foram,
contraditoriamente, o “mecanismo de solução da crise dos anos 30: as políticas estatais,
mediante o fundo público, financiando o padrão de acumulação capitalista nos últimos
cinquenta anos”. Ao contrário do que explica a ideologia neoliberal, a crise é elemento
constitutivo, estrutural, da acumulação capitalista e que, sua incidência nos anos 1970-90 é
“uma manifestação específica de uma crise estrutural.” (p. 66). A necessidade do capital de
acumulação incessante exigiu que o estado interviesse, colocando o fundo público à
disposição para o financiamento do capital privado; modelo de desenvolvimento que na
economia se apresentou como teoria keynesiana; e na produção como modelo fordista e
neofordista de produção. Porém, as consequências que essa medida trouxe se desenvolvem
também de maneira contraditória, pois os subsídios públicos constituem por outro lado o que
Oliveira chama de “antimercadorias” e “desmercantilização significativa da reprodução da
força de trabalho” (apud FRIGOTTO, p. 73), deslocando o foco do embate político para a
esfera pública.
Após analisar a reestruturação econômica que resultou da crise do keynesianismo
e suas consequências políticas, Frigotto aborda os custos sociais e humanos da alternativa
neoconservadora, demonstrando com cifras a barbárie que a crise representa para a população
mundial, dados que mostram que “ao lado das ilhas de riqueza e ostentação, aninham-se o
362
abandono infantil, a fome, a miséria, as doenças endêmicas e, consequentemente, a morte
prematura.” (p. 94) ou o relatório da ONU que aponta “A Tecnologia Empobrece o Terceiro
Mundo” (Idem), considerando principalmente as medidas neoliberais que se impuseram aos
países latino-americanos e outros chamados subdesenvolvidos. O autor apresenta um quadro
da pobreza atual, que se desenvolve de maneira inversa ao gigante desenvolvimento técnico e
econômico que a sociedade testemunha, mas que se restringe a uma parcela da população.
Vincula esta situação também ao surgimento das teorias que apontam o fim do
trabalho, ocultando a importância dessa atividade para a produção e reprodução da vida e,
principalmente, sua função como produtora de riqueza e fonte de acumulação capitalista. No
terceiro capítulo, O fim da sociedade do trabalho e a não centralidade do trabalho na vida
humana, aborda especificamente esta temática através do estudo de três autores, Claus Offe,
Robert Kurz e Adam Schaff. Para Offe, o trabalho está desaparecendo; perdeu sua “qualidade
subjetiva de centro organizador das atividades humanas, da autoestima e das referências
sociais, assim como das orientações morais” (OFFE, apud FRIGOTTO, p. 97); considerando
a atual situação dos trabalhadores, aponta a profunda diferenciação interna dos que têm
trabalho remunerado contratual (Idem). Kurz defende um cenário de crise do trabalho
abstrato: como alternativa ao caráter destrutivo, violento e excludente da sociedade das
mercadorias e sua razão abstrata universal, postula a emergência de uma razão sensível (p.
107), que Frigotto considera insuficiente para produzir um sujeito social e político capaz de
deflagrar a ruptura com a sociedade capitalista. Para Schaff, o tempo livre seria uma desgraça;
a dimensão ontológica seria mantida mas o trabalho abstrato, ou seja, trabalho como tempo
socialmente necessário, seria extinto (pp. 97-114).
Frigotto analisa os principais traços que caracterizam a educação e a formação
humana hoje, a partir de um quadro de ajuste neoconservador. Primeiro, destaca os
paradigmas que norteiam atualmente a educação como parte constitutiva do novo padrão de
acumulação:

[…] os novos conceitos abundantemente utilizados pelos homens de negócio e seus


assessores – globalização, integração, flexibilidade, competitividade, qualidade total,
participação, pedagogia da qualidade, defesa da educação geral, formação
polivalente e 'valorização do trabalhador' – são uma imposição das novas formas de
sociabilidade capitalista tanto para estabelecer um novo padrão de acumulação,
quanto para definir as formas concretas de integração dentro da nova reorganização
da economia mundial (p. 158).
363
O autor explica que estamos diante da teoria do capital humano com um rosto
mais social. Nestas condições, são impostas exigências ao “novo trabalhador” que implicam
uma formação qualitativamente superior, ainda que o novo padrão tecnológico centrado em
sistemas informáticos tenha reduzido a força de trabalho quantitativamente: “A intervenção
direta de um trabalhador com capacidade de análise torna-se crucial para a gestão da
variabilidade e dos imprevistos produtivos” (SALERNO apud FRIGOTTO p. 164). A
educação brasileira, que ainda se recupera das políticas neoliberais que desestruturaram a
educação em todos os níveis, foi posta ao alcance dos homens de negócio. Os paradigmas da
educação básica brasileira, que exigem a “formação abstrata e polivalente” para atender aos
padrões de “qualidade total, flexibilização e trabalho integrado em equipe”, sinalizam, por sua
vez, “o horizonte e os limites de classe, os dilemas e conflitos em face da educação e
formação humana que, historicamente a burguesia enfrenta.” (p. 181).
Esta é a explicação por trás dos paradigmas de educação, que autores como Offe e
Oliveira não veem ou ocultam. Para o autor, a tese do fim do trabalho “[…] elimina os
sujeitos sociais clássicos fundamentais da relação capitalista e com eles a perspectiva do
conflito, das relações de poder e de força” (p. 210), naturaliza as distinções entre mercadorias
e serviços, trabalho produtivo e improdutivo (Idem) e, neste sentido, contribuem para
fortalecer a burguesia em sua tese contra a educação da classe trabalhadora.
Este estudo de Frigotto demonstra com grande fecundidade o fundamento teórico
das atuais formulações inspiradas nas transformações tecnológicas, em especial, a
informatização do processo produtivo, tais como a teoria do capital intelectual, do trabalho
imaterial ou do capitalismo cognitivo, que polarizam o domínio da educação. Neste sentido,
seu trabalho anterior A Produtividade da Escola Improdutiva (1988), ao analisar mais
detalhadamente a Teoria de Capital humano como ferramenta do capital, em seu período
neoliberal; representa uma fonte importante de formulação que permite uma crítica coerente
às atuais formulações.
Em termos gerais, nesta obra, parte do pressuposto, por um lado, da tese
produtivista da educação, transfigurada nos anos de 1960 na Teoria do Capital Humano, que
demonstra o valor da educação para a economia e o caráter fundamental e decisivo que tem
sobre a mesma; por outro, da tese da educação improdutiva de Salm, que resulta da sucessão
crítica das escolas de pensamento reprodutivista ao produtivismo, como crítica da crítica,
apontando o caráter reprodutivista da concepção “reprodutivista”. A formulação de Salm, que
364
sugere a improcedência da tese que liga direta e mecanicamente a educação com o
desenvolvimento capitalista, segundo Frigotto, absolutiza a separação entre estes dois
aspectos do processo social, produção e reprodução. Na dialética dos conceitos, para a teoria
do capital humano, bem como para seus críticos, a escola é simplesmente produtiva; para
Salm, é simplesmente improdutiva, enquanto para Frigotto, a escola (imediatamente)
improdutiva é (mediatamente) produtiva. Saviani sintetiza este trabalho na seguinte passagem:

[…] a escola não é produtiva a serviço dos indivíduos indistintamente, no seio de


uma sociedade sem antagonismos, como supunham os adeptos da teoria do capital
humano. Também não é ela produtiva a serviço exclusivo do capital como
pretendiam os críticos (reprodutivistas) da referida teoria. E nem mesmo é ela
improdutiva, como pretendeu a crítica da crítica à teoria do capital humano. Como
se coloca, então, as relações entre educação e estrutura econômico-social capitalista?
[…] Esse livro situa, a meu ver, de modo correto a natureza da relação entre
educação e processo produtivo uma vez que capta a existência do vínculo mas
percebe também que não se trata de um vínculo direto e imediato, porém indireto e
mediato; a expressão ‘produtividade da escola improdutiva’ quer sintetizar essa tese
(SAVIANI, apud FRIGOTTO, 1989, pp. 8-9).

Frigotto tematiza a relação educação, trabalho e economia, sua pesquisa procura


entender as determinações históricas que explicam a atribuição da educação como um capital
humano. Segundo o autor, a tese de Schultz havia se constituído como uma teoria do
desenvolvimento e uma teoria da educação. Em primeiro lugar, por conceber a educação
como produção de capacidade de trabalho, potenciadora de renda, “um fator do
desenvolvimento econômico”, no qual – em segundo lugar – a ação pedagógica é reduzida a
seu aspecto puramente técnico “cuja função precípua é ajustar requisitos educacionais a pré-
requisitos de uma ocupação no mercado de trabalho” (p. 16). O autor demonstra que a teoria
do capital humano expressa a forma falsa e reversa da burguesia de conceber as relações
homem, trabalho e educação no interior do processo produtivo.
O autor situa os dois rumos que tem tomado a análise crítica da teoria do capital
humano. De um lado, a tese que vincula diretamente educação e treinamento à produção e vê
a escola como potencializadora da produtividade; nessa perspectiva, é vista simplesmente
como propiciadora do aumento da mais-valia. Cláudio Salm representa a concepção que se
opõe à visão desta vinculação direta, postulando que a escola “não é capitalista” e que
cumpriria o papel de aparelho ideológico (FRIGOTTO, 1989, p. 17). Frigotto identifica nas
duas vertentes críticas à teoria do capital humano limitações, pois “não apreendem, de forma
suficiente, as determinações de caráter orgânico do avanço do capitalismo que as produzem”
365
(Idem) e tampouco admitem o caráter de mediação da prática educativa. A educação é “prática
mediadora que na sociedade de classe se articula com interesses antagônicos, a questão do
vínculo direto ou desvínculo não procede” (p. 18) e que não caberia reduzir essa prática ao
ideológico. Assim, apresenta sua tese central:

[...] buscamos, fundamentalmente, mostrar as diferentes mediações que a prática


educativa escolar estabelece com o modo capitalista de produção onde, no limite, a
‘improdutividade’, a desqualificação do trabalho escolar, uma aparente
irracionalidade e ineficiência em face dos postulados da teoria do capital humano
constituem uma mediação produtiva (p. 18).

O autor se posiciona, portanto, na síntese crítica a essas teses: “Não aceitamos,


porém as teses que definem a escola apenas como um aparato ideológico, reprodutor das
relações sociais de produção capitalista, uma instituição que se coloca à margem do
movimento geral do capital” (p. 24). Para ele, a extrema importância em avaliar a fundo o
capital humano reside não apenas no fato desta tese ter sido disseminada por diversos países
como paradigma norteador para o desenvolvimento e educação dos países
“subdesenvolvidos”, mas também porque sob aparência de rigor científico e pela
matematização da linguagem, “se constitui numa mistificação e reforço do senso comum”,
escondendo o “caráter de classe da visão positivista” desta teoria (p. 19). Para o autor, ela
mascara a natureza dos vínculos entre educação, desenvolvimento e trabalho, e representa
uma apologia efetiva das relações capitalistas de produção. Antecipando sua argumentação
central sobre o papel que progressivamente ocupa a escola, afirma:

A escola será um locus que ocupa – para um trabalho ‘improdutivo forçado’ – cada
vez mais gente e em maior tempo e que, embora não produza mais-valia, é
extremamente necessária ao sistema capitalista monopolista para a realização de
mais-valia; e, nesse sentido, ela será um trabalho produtivo (p. 27, ênfase do autor).

A Teoria do Capital Humano no âmbito da ciência econômica burguesa tem seu


locus, segundo Frigotto, nos economistas clássicos que precederam Marx e que já apontavam
a importância de formar a força de trabalho dentro de moldes práticos e ideológicos que
respondam às necessidades de produção do capital. Apresenta os traços gerais dessa teoria,
tanto da perspectiva do desenvolvimento quanto da perspectiva da educação e a situa no plano
macroeconômico e microeconômico. Derivados da escola neoclássica marginalista, os
fundamentos desta teoria buscam a utilidade marginal, ou seja, apoiam-se na ideia de que os
366
bens têm valor na medida em que escasseiam, tornando sua substância marginal o objeto
dessa valorização:

A renda é tida como função de produtividade, donde, a uma dada produtividade


marginal, corresponde uma renda marginal. Na base deste raciocínio (silogístico)
infere-se literalmente que a educação é um eficiente instrumento de distribuição de
renda e equalização social. O cálculo da rentabilidade é efetivado a partir das
diferenças entre a renda provável de pessoas que não frequentaram a escola e outras,
semelhantes em tudo o mais (critério ceteris paribus) e que se educaram. Daí
decorrem também as teses relacionadas com a mobilidade social (p. 44, comentários
em parênteses do autor).

Como teoria, seus defensores apresentavam divergências internas, que geraram


duas críticas conceituais que, ao final, converteram-se em duas tentativas de dar sustentação
estatística a esta teoria ideológica. A primeira foi em relação ao chamado “índice de
desenvolvimento de recursos humanos” (R²), cuja crítica passa pela seguinte ponderação:

[…] o fato de compararem um fluxo (pessoas no processo educacional) com um


estoque – (PNB per capita) das pessoas que estavam no mercado de trabalho; de
outra parte, o fato de o modelo estatístico de correlação não permitir inferências de
causação, mas apenas de vínculo. Resta saber, dizem os críticos, se é educação que
gera mais desenvolvimento ou se o desenvolvimento gera mais educação” (p. 42).

A segunda refere-se ao que o autor considera uma “forma mais elaborada e até
mesmo altamente formalizada de abordagem do vínculo entre educação e desenvolvimento
econômico” (p. 42): o fator H de recursos humanos onde “toda a variação de PIB ou de renda
per capita não explicada pelos fatores A (nível de tecnologia), K (insumos de capital), L
(insumos de mão de obra) seria devida ao fator H (mão de obra potenciada com educação,
treinamento, etc.)” (p. 43). A base teórica positivista-lógica também não oferece melhores
argumentos à teoria, presa ao movimento circular determinante-determinado: “[…] o
determinante (educação como fator de desenvolvimento e distribuição de renda) se transmuta
em determinado (o fator econômico como elemento explicativo do acesso e permanência na
escola, do rendimento escolar, etc.)” (pp. 38-39).
Frigotto sintetiza os interesses de classe por trás desta teoria que se tornou padrão
de desenvolvimento na década de 1980: “Mascara-se, desta forma, a origem real e única da
produção da mais-valia – o trabalho humano excedente apropriado pelo capital. […] a relação
de classe entre o trabalhador e o capitalista transfigura-se numa relação de troca de agentes de
produção igualmente livres.” (p. 66). Vincula a esses interesses duas considerações
367
importantes sobre a aplicação desta teoria. Do ponto de vista econômico, ela estabelece “um
nivelamento entre o capital constante e o capital variável (força de trabalho) na produção do
valor, […] considera o salário recebido, não como preço desta força de trabalho, mas como
uma remuneração do capital humano adiantado pelo trabalhador” (FGV apud FRIGOTTO,
1989, p. 66). Do ponto de vista educacional, a sua principal consequência é, na realidade, ter-
se transformado em fator econômico, como se observa na seguinte passagem:

[…] o educacional fica assepticamente separado do político, social, filosófico e


ético. Como elemento de uma função de produção, o educacional entra sendo
definido pelos critérios de mercado, cujo objetivo é averiguar qual a contribuição do
'capital humano', fruto do investimento realizado, para a produção econômica
(FRIGOTTO, 1989, pp. 66-67).

Desarticular essa visão burguesa estruturada pela teoria do capital humano


implica, para o autor: (1) sair da visão de superficialidade e de pseudoconcreticidade dos
vínculos entre economia e educação; (2) manter o foco nas relações sociais de produção,
compreendendo a relação dialética entre produção e troca; (3) abandonar a ideia de equilíbrio,
harmonia, entendendo a necessidade de identificar as contradições; e (4) superar a ideia de
utilidade e voltar à ideia de valor-trabalho (pp. 67-68).
Frigotto parte da tese de que a concepção econômica contida na teoria do capital
humano “não é uma invenção da mente humana', mas um produto histórico determinado,
decorrente das relações sociais de produção capitalistas.” (p. 70). Dedica-se, portanto, a situar
historicamente as condições concretas que demandaram esta formulação, permitindo a
continuidade e aceleração da acumulação ampliada do capital. Apoiando-se na teoria marxista
do valor e do imperialismo, em primeiro lugar, explica politicamente o processo de
expropriação do trabalho pelo capital:

Este processo histórico onde o capital, enquanto uma relação social, busca
desvencilhar-se cada vez mais da dependência dos limites impostos pelo trabalhador,
pela resistência que este lhes impõe, desenha-se como um processo onde se busca
expropriar do trabalhador os meios concretos desta resistência – seu ‘saber’, sua
qualificação, o domínio de técnicas, sua agilidade, etc. A separação entre o operário
e o seu domínio vai determinando uma separação entre o trabalhador e
conhecimento, entre trabalhador e ciência (p. 83).

No desenvolvimento da relação capital, configura-se uma relação entre o


trabalhador vivo e seus meios de produção, ou entre trabalho e capital, que é única a este
368
modo de produção. O trabalhador passa a ser um intermediário do processo de trabalho,
comandado pelo autômato, separando-se das faculdades intelectuais de sua atividade (p. 84).
O autor resgata a teoria do valor, destacando o aspecto integrador que ela assume à medida
que o capitalismo chega à sua fase imperialista: “O processo de acumulação, concentração e
centralização, embora distintos na sua manifestação, constituem-se em elementos
indissociáveis de um mesmo movimento – o movimento de autovalorização do capital” (p.
85). A teoria do capital humano é consequência direta desse movimento do capital,
especificamente em sua fase monopolista, em momento de crise e reestruturação tecnológica.
Detém-se na caracterização das condições históricas que explicam o surgimento
da teoria do capital humano. Por que se fala tanto de educação num momento em que o
capital precisa menos de educação para o processo produtivo?
Ter-se-ia, então, no terreno das hipóteses, que a própria dinâmica do capital, em
sua fase monopolística, ao prescindir cada vez mais de pessoal engajado na produção
imediata, necessita deslocar cada vez mais a população economicamente ativa, quer para
funções do próprio capital (gerentes, administradores etc.), quer no âmbito da realização da
mais-valia, comércio, transporte, serviços em geral (tendência à terciarização), quer no âmbito
dos aparelhos repressivos e ideológicos do Estado, igualmente envolvidos seja na produção
seja na realização de mais-valia – ou mesmo relegar ao desemprego ou subemprego forçados.
A ampliação da escolarização serviria então, a um mesmo tempo, para que o capital pinçasse
de seu bojo tanto aqueles trabalhadores necessários à produção imediata como aqueles que se
designam aos serviços – criando, dentro desse âmbito, a elevação constante de prolongamento
da escolaridade e consequente retardamento do ingresso dos jovens no mercado de trabalho,
fazendo da própria escola um mercado improdutivo. Esse processo nada teria a ver com oferta
e demanda de mão de obra qualificada (p. 99).
Depois de examinar em profundidade as relações entre estado e capital no
desenvolvimento do neoliberalismo, que precisam se fortalecer para garantir a continuidade
da acumulação do capital, Frigotto dedica-se a situar historicamente esse paradigma
educacional-pedagógico como solução apresentada especificamente para um período que
classifica de recomposição imperialista. Segundo o autor, seu surgimento nos EUA na década
de 1950 responde a perspectiva desenvolvimentista que imperava no contexto pós II Guerra
Mundial, “onde surgem os EUA e URSS como dois polos antagônicos que disputam a
liderança internacional” (p. 123), sendo o desenvolvimento a ideia motriz dos EUA para
“recompor e rearticular a hegemonia imperialista” (Idem). Nestas condições, sua
369
implementação nos países latino-americanos esteve associada à Aliança para o Progresso, o
Programa de Cooperação Técnica e outras agências e instituições internacionais, assim como
acordos realizados para a região.
O autor primeiro analisa a natureza mediata das relações entre sistema produtivo e
processo educativo. Neste tópico, recupera o papel das classes sociais e sua subjetividade,
avaliando as críticas à teoria do capital humano que se apoiam parcialmente em Marx (p.
136), destacando o trabalho de Salm que desmistifica “a crença que o avanço do progresso
técnico demanda um processo de crescente qualificação”, mas rejeitando a influência
althusseriana da escola como simples aparelho ideológico e questionando sua proposta de
resgatar o ideal instrumentalista de Dewey.
Em seguida, oferece uma visão mais complexa e concreta da educação, ao
considerar a produção do trabalhador coletivo e as dimensões econômicas da prática
educativa. Argumenta que no capitalismo, onde o saber é força produtiva comandada por seus
interesses, a escola pública difunde um conhecimento que “tem uma contribuição nula ou
marginal na qualificação para o trabalho produtivo material e imediato, tendo em vista a
desqualificação crescente deste tipo de trabalho” e sua concentração para minorias que
ocupam nível de gerência e planejamento (p. 153). No entanto, ela cumpre o papel específico
de gerar um conhecimento geral articulado à formação da massa de trabalhadores que será
realizada na própria atividade de produção. Por último, o autor explica como a
desqualificação do trabalho escolar é vista como forma de aligeirar a formação geral e de
cooptação para funções de gerenciamento do capital:

Em suma, o que queremos destacar até aqui é que, efetivamente a escola enquanto
instituição que se insere no interior de uma formação social, onde as relações sociais
de produção capitalista são dominantes, tende a ser utilizada como uma instância
mediadora, nos diferentes níveis, dos interesses do capital. Essa mediação,
entretanto, à medida que se efetiva no interior das relações sociais, onde estão em
jogo interesses antagônicos, não se dá de forma linear. […]. A escola que interessa à
grande maioria dos que a ela tem acesso – ou que gostariam de ter – não é a escola
requerida pelos interesses do capital. Numa sociedade organicamente montada sobre
a discriminação e o privilégio de poucos, não há interesse por uma escolarização que
nivela – em quantidade e qualidade – o acesso efetivo ao saber (p. 179).

A desqualificação da escola e do trabalhador em educação serve, por um lado, à


mercantilização do ensino, mas também, por outro, justifica o deslocamento a que esse
conhecimento especializado recaia sobre responsabilidade do trabalhador como investimento
individual em seu capital humano.
370
Ao encerrar o livro, Frigotto resume seu trabalho ao recolocar questões centrais à
reflexão científica e empírica em torno desta teoria do capital humano. A redução do papel da
educação à formação técnica social de recursos humanos, coisificando o trabalhador vivo em
capital, aparece como uma inversão da relação entre o mundo do trabalho e o mundo da
escola. Ela convoca os indivíduos e os países a dedicar mais esforços e recursos, investi-los
em formação e treinamento, para “superação da desigualdade entre países e entre as classes
sociais” (p. 218); porém o faz justamente em um momento em que:

[…] a competição intercapitalista impele a uma incorporação crescente do progresso


técnico ao processo de produção, cindindo de forma cada vez mais radical o
processo de trabalho; se delineia, de forma cada vez mais acentuada, a divisão
internacional da força de trabalho e a formação do corpo coletivo de trabalho; o
processo de automação, em suma, não só tende a rotinizar, simplificar e
desqualificar o trabalho, mas também, sob as relações capitalistas, tende a aumentar
o subemprego e o desemprego e exasperar a extração de mais-valia (p. 218-219).

Isto que pareceria ser um contrassenso histórico, no entanto, constitui-se em algo


necessário em um momento de aguçamento da crise do capitalismo em sua fase monopolista,
cumprindo uma função predominantemente política e ideológica. Reforça a crença de que “a
desigualdade entre países não é uma questão orgânica do sistema no seu conjunto, mas algo
conjuntural que pode ser corrigido mediante alteração de fatores tais como a qualificação de
recursos humanos, modernização, etc” (p. 220).
A teoria implica reconfiguração das práticas pedagógicas no nível mais imediato,
seja através das políticas públicas a que deve obedecer, da administração escolar ou dos
paradigmas que a regem diretamente, estabelecendo a produtividade como conceito norteador.
A compreensão de seu papel social deve necessariamente passar pela compreensão do papel
da escola como espaço de luta de classes, do qual o capital se apropria como ferramenta
contra a classe trabalhadora. Neste sentido, o autor aponta o caráter de mediação da escola no
processo de acumulação capitalista: “A escola serve ao capital tanto por negar o acesso ao
saber elaborado e historicamente acumulado, quanto por negar o saber social produzido
coletivamente pela classe trabalhadora no trabalho e na vida” (p. 224). E mais adiante, na
seguinte passagem, explicita o caráter mutável desta condição de dominação: “A luta
fundamental capital-trabalho, que é primeiramente uma luta pela sobrevivência material, é
também uma luta por outros interesses, dentre esses, o acesso ao saber social elaborado e
sistematizado e cuja apropriação se dá dominantemente na escola” (p. 225).
371
4.7 A Educação e contratendências à crise orgânica do capital

A concepção de capital humano apresentada no trabalho Valor Econômico de


Schultz serve, evidentemente, à mudança de paradigmas econômicos decorrentes do
esgotamento do modelo keynesiano; como aponta Frigotto, o resultado dos paradigmas
neoliberais sobre a educação, passando do taylorismo à “acumulação flexível” (2010, pp. 86-
87). O tema era de grande centralidade nos anos 60 e 70 e a referida teoria exerceu grande
atração por seu apelo salvacionista: o fraco investimento em educação era a causa das
dificuldades dos países subdesenvolvidos, ou periféricos.
A educação considerada investimento individual das pessoas em si mesmas com o
objetivo de auferir lucros maiores no futuro, desloca a intervenção do Estado, característica do
keynesianismo, e passa a envolver o sistema financeiro como solução neoliberal para o
problema do consumo dos países desenvolvidos que enfrentavam o fim da fase de
prosperidade do ciclo econômico ampliada pelo Estado de Bem-Estar Social no pós II Guerra
Mundial. Nesta perspectiva, a mercantilização do ensino responde aos interesses do capital
nos níveis de mediação apontados por Frigotto como, em primeiro plano, mais imediato,
ampliando a oferta e procura de novas mercadorias através da privatização da mesma;
segundo, “pinçando” ou diferenciando a força de trabalho através da qualificação, designando
indivíduos a tarefas de gerência, serviços, inteligência ou ao desemprego e miséria; terceiro,
postergando a entrada de jovens ao mercado de trabalho saturado incapaz de absorvê-los.
Porém, ao considerar o quadro de crise dessas economias da perspectiva de uma
concepção de crise estrutural e não apenas cíclica, revela-se uma dinâmica oculta que envolve
diversas contratendências utilizadas pelos países cujas economias encontram-se na situação
onde o paradigma de mensuração de valor, através do tempo de trabalho socialmente
necessário, perdeu sua vigência. A teoria do capital humano serve como medida para tentar
manter esse paradigma atuante ao, contraditoriamente, burlar essa mesma medida.
Há uma parte visível desta dinâmica na qual a educação como mercadoria afeta
positivamente a renda nacional ao aumentar o consumo de uma força de trabalho que recebe
os “salários não-recebidos” em forma de empréstimos. O aumento da demanda efetiva é uma
contratendência à queda da taxa de lucros, quando, perante a incapacidade de realização, o
capital fictício amplia ainda mais a separação entre compra e venda, adiantando esta sem
resolver o problema, apenas postergando-o. A crise atual da dívida dos estudantes
372
universitários nos Estados Unidos, que ultrapassou a soma de um trilhão de dólares em 2014
(ROSSI, 2015, 00:24:46; FEDERAL RESERVE OF NY, 2014) e a dívida dos cartões de
crédito, permitiram que a crise econômica nesse país se dilatasse ainda mais, lançando sobre
os jovens o peso dessa medida desesperada para evitar o colapso do sistema. Para além dessa
constatação, isso tem maiores implicações no interior da relação capital-trabalho, de natureza
mais profunda, pois representa contraditoriamente um investimento em capital variável, ou
seja, um freio ao aumento na composição orgânica do capital que se dá fora da esfera da
produção.
Nesse sentido, o conceito de salários não-recebidos apresentado por Schultz em O
valor econômico da educação é elucidativo; não é casual que o autor teve o cuidado de alterá-
lo em seu trabalho posterior O Capital Humano (1973) por “rendimentos previamente
estabelecidos ou renda prévia” (p. 46). Em um momento de crise cíclica nos Estados Unidos,
um investimento em força de trabalho qualificada que se reflete em aumento de produtividade
e na taxa de mais-valia, não se constitui em solução real, pois, na década de 1970, o centro do
imperialismo mundial já se encontrava próximo ao limite superior de composição orgânica na
produção, ou limite mínimo do tempo socialmente necessário, impedindo o aumento na taxa
de mais-valia como contratendência aplicável. Um aumento de salários reveste aparência de
contrassenso, porém, é a expressão real do que concluiu Grossmann como única possibilidade
para o capital: “o sistema tem que colapsar ou as condições especificadas para o sistema
devem ser violadas” (GROSSMANN, p. ). Porém, compreender as possíveis consequências
de um aumento em capital variável, ou seja, aumento nos salários, implica analisar suas
consequências a partir da indagação que Schultz evitou: quem arca com os custos?
Considerando a própria força de trabalho diretamente responsável por seu
investimento em capital humano, ou seja, que seus “salários não-recebidos” sejam cobertos
por seus salários reais, produzidos como tempo socialmente necessário e não apropriados pela
burguesia como excedente, o resultado inevitável é o esmagamento dos lucros e, portanto,
crise. As leis de financiamento federal e estadual para a educação superior dos Estados
Unidos, decretadas na década de 1960 por Johnson, foram revogadas por Ronald Reagan, um
dos principais expoentes do neoliberalismo, enquanto governador da Califórnia, na década de
1970, e presidente dos Estados Unidos, em 1984, justamente sob o argumento de que, sendo
um investimento cujo benefício é individual e privado, os próprios indivíduos deveriam pagar
por ele (ROSSI, 2015, 00:41:47).
Ao retomar o modelo que nos oferece Marx em seus esquemas de reprodução,
examinados por Grossmann, podemos observar a relação matemática que explica como
373
funciona essa contratendência internamente à produção. Considerando a taxa de mais-valia
m/v, a causa principal da tendência ao colapso explica que, ainda que aumente o capital
variável através da qualificação e complexificação do trabalho acompanhada pela
incorporação da ciência e da técnica ao capital produtivo e consequente aumento da
produtividade, essa proporção tende a diminuir, implicando redução na massa de mais-valia a
longo prazo. Porém, a teoria do capital humano significa uma alteração dessa dinâmica, pois
ao aumentar o investimento em capital variável sem um aumento na taxa de exploração do
trabalho; o que resulta, portanto, em um aumento na massa de mais-valia. A escalada da
inflação e as variações unilaterais aplicadas pelo governo dos Estados Unidos são as medidas
econômicas paralelas que coroam a efetividade desse subterfúgio neoliberal.
A grande indústria estadunidense, em sua condição de monopólio, pode manter
preços artificialmente através da aplicação de taxas de lucro desproporcionais em relação aos
verdadeiros custos de produção. A aplicação da ciência e da educação à produção, que
romperam com a capacidade da relação tempo de trabalho socialmente necessário,
constituindo o principal elemento que empurra a relação-capital a seu colapso, são o alvo das
novas teorias utilizadas pela burguesia para frear essa tendência, ao incorporar aos custos de
produção, através da especulação, valores que são impossíveis de medirem-se no paradigma
atual. Em sua condição de império e detentor do monopólio do dólar, os Estados Unidos e
outras economias desenvolvidas mantiveram no mercado internacional relações de troca
desiguais com as economias menos desenvolvidas. O discurso ideológico da teoria do capital
humano e suas teses subsequentes como capital intangível, capital intelectual, cognitivo, etc.,
justifica preços descolados de seu valor ao incorporar supostamente benefícios que não
constituem valores tangíveis ou materiais, como sensações, benefícios de saúde, status, etc.
Como detentores do monopólio da ciência e da tecnologia, assim como da comunicação,
podem fixar preços e estabelecer troca desigual com base nesse discurso. Se um país
subdesenvolvido ou de economia em desenvolvimento adota essa postura de capital humano,
não é capaz de sustentá-la economicamente nas relações de troca no mercado internacional,
como demonstra o preço consideravelmente menor das mercadorias de alta tecnologia
produzidas na China. Os países com alta composição orgânica do capital, cujo tempo
socialmente necessário para produção de mercadorias atingiu um mínimo histórico, estão com
produção estagnada e, ao adotar as teorias que ocultam essa condição e criam valores
artificiais, sustentando uma taxa de lucro acima da média, podem auferir superlucros e
transferir mais-valia das economias com menor composição orgânica que extraem maiores
massas de mais-valia e ainda crescem economicamente com o aumento da produtividade e
374
uma composição orgânica crescente.
Por último, é importante destacar que as novas teorias transfiguradas do capital
humano, a teoria do capital intelectual, cognitivo, a teoria do trabalho imaterial, entre outras,
naturalmente não são aspectos estranhos ao processo histórico da teoria marxista e ao próprio
Marx, que já combatia as tentativas de eternização do capital na introdução aos Grundrisse,
como se segue:

Um exemplo. Nenhuma produção é possível sem um instrumento de produção,


ainda que este instrumento seja somente a mão. Nenhuma é possível sem trabalho
passado, acumulado, ainda que este trabalho seja somente a destreza que o exercício
repetido desenvolveu e concentrou na mão do selvagem. O capital, entre outras
coisas, é também um instrumento de produção, é também trabalho passado
objetivado. De tal modo, o capital é uma relação natural, universal e eterna; porém
só é se eu deixo de especificar, o que faz de um “instrumento de produção”, do
“trabalho acumulado” um capital (MARX, 2009, v. 1, p. 5).

A presente pesquisa identifica todas estas teorias como tentativas de eternização


do capital, na medida em que tentam violar as leis do próprio capital que se opõe ao capital.
Estas, como demonstrou o trabalho de Frigotto, se apoiam na denominada revolução
informacional, sociedade do conhecimento, sociedade pós-industrial, como ponto de viragem
dos conceitos de capital e trabalho, o mesmo que alegou Schultz ao tempo da formulação de
sua teoria do capital humano. Como se observa na obra deste economista patrocinada pela
Ford Foundation, sob mesma denominação, as mudanças tecnológicas e técnicas que ocorrem
ao final da década de 1950 e no transcurso da década de 1960, motivadas pela expansão do
complexo industrial-militar decorrente da corrida aeroespacial, período denominado de guerra
fria, se consumam em fortes contradições e tendências a uma nova crise do capital aos moldes
de 1929.
Desta maneira, uma teoria que explique o crescimento do consumo, em termos
conceituais, do capital e do trabalho aceito, que não era explicável, a famosa tese dos
resíduos, se apresentava incólume às tentativas de desvendá-la. Porém, era bem-vinda para
explicar a intensificação da exploração do capital no próprio país e as diferenças de salariais,
entre brancos, negros e latinos, homens e mulheres e, sobretudo, abrir um campo para o
investimento do capital financeiro e o avanço da educação privada em todos os níveis. A
teoria do capital humano atende a todos estes aspectos, sua tese de que o resíduo na renda
nacional dos Estados Unidos, que era inexplicável, encontra sua justa elucidação no
investimento em capital humano, i. é, custos da educação que os familiares do aluno arcam
sem contabilização na renda nacional, sem dúvida, ofuscou sua verdadeira intencionalidade:
375
ampliar a taxa de mais-valia e de lucro capitalista e neutralizar a tendência decrescente da taxa
de lucro, que já estava plenamente visível ao período em que Schultz é agraciado com o
Prêmio Nobel:

Não obstante, sem qualquer mutação técnica, havia uma estrutura de capital que
consistia de mais de uma forma de capital. Todavia, afirma-se que “... o puro modelo
de Adam Smith é consistentemente levado a seus termos pela suposição de que a
única forma de capital é o capital de circulação”. Exceto pela introdução explícita
dos rendimentos decrescentes concedidos à terra, Ricardo segue estritamente a
análise de Smith e, desta forma, “temos o mesmo confinamento ao capital de
circulação e a mesma homogeneidade de capital” (SCHULTZ, 1973, p. 30).

Este economista, a exemplo da plêiade de teóricos patrocinados por grandes


grupos monopolistas internacionais para formularem teorias distorcidas, pseudoteorias e
discursos apologetas ao capital, sem o menor pudor, já justificava sua formulação perante a
crítica marxista, alegando:

A inevitabilidade histórica do progresso tecnológico não constituía parte da teoria de


Marx que sacudiu a complacência dos economistas, embora essa parte particular
tornou-se crescentemente relevante no campo do moderno crescimento econômico.
[…] não há escassez de modelos econômicos para lidar com a mutação técnica. O
menos útil é uma família de modelos que introduz as mudanças técnicas como uma
tendência variável (SCHULTZ, 1973, p. 24).

Schultz e a teoria do capital humano são arquétipos dos teóricos que agora
esgrimem a formulação de Marx nos Grundrisse em torno do general Intellect e do
knowledge social geral, como o império da subjetividade e base conceitual do que denominam
revolução informacional, sociedade pós-industrial, pós-moderna, trabalho imaterial,
capitalismo cognitivo, sociedade do conhecimento, terceira revolução industrial, para
fundamentar teorias que tentam incorporar a produtividade social geral, desenvolvida até
então pelas forças produtivas no capitalismo, em que a ciência e a educação tornam-se agentes
protagonistas atuando na organicidade do capital e composição-valor, o capital constante e
capital variável, na clara tentativa de justificar ou dar ar de cientificidade à burla histórica da
velha conhecida troca desigual.
Estas novas teorias, a exemplo de Schultz, também reivindicam as transformações
tecnológicas e mudanças na sociabilidade geral dos agentes de produção, trabalhadores e
capitalistas, para incorporarem seus contrabandos aos conceitos de capital, trabalho e valor;
ao primeiro, abarcando a ideia de que o ser humano em sua integralidade pertence ao capital
como nos tempos coloniais reconhecia-se a origem das pessoas pelos sobrenomes dos
376
senhores escravocratas ou dos feudos; a ideia de capital humano é a ideia de aprisionamento
da humanidade à propriedade do capital, a ideia de capital intelectual é a ideia de
aprisionamento do intelecto geral ou knowledge social geral à propriedade do capital:

O desenvolvimento do meio de trabalho como maquinaria não é fortuito para o


capital, mas que é a metamorfose histórica do meio de trabalho legado pela tradição,
transformado em adequado para o capital. A acumulação do saber e da destreza, das
forças produtivas gerais do cérebro social, é absorvida assim, com respeito ao
trabalho pelo capital e se apresenta, portanto como propriedade do capital, e mais
precisamente do capital fixo – na medida que este ingressa como verdadeiro meio de
produção ao processo produtivo (MARX, 2009, pp. 219, 220 e 221).

Mas se é a propriedade sobre o geral também é sobre o particular, o individual; a


ideia da redução da totalidade da vida material ao sistema de linguagem binária ou melhor
dizendo, linguagem de máquina, revela o absurdo da colonização do ser pela consciência
atrofiada às combinações do sim e do não, ou do um e do zero, que justificam a força do
aparato de comunicação sobre os sujeitos históricos e sua subjetividade geral.
Neste contexto, a violação da lei do valor, particularmente do paradigma de
mensuração do valor, o tempo de trabalho socialmente necessário, que se tornou estreito para
mensurar o valor da ciência e da educação incorporados, direta e indiretamente, ao processo
de produção, faz da teoria econômica mero charlatanismo, pois na essência o capital age
como aquele ridículo e retrógrado especulador que valoriza seu capital pelo desenvolvimento
do capital em geral que pressupõe a existência do seu capital cujo exemplo mais simples se
encontra no especulador imobiliário, da mesma forma age o capitalista atual em relação aos
preços de seus produtos: quanto maior o desenvolvimento da ciência e da educação em geral,
do desenvolvimento das relações de intercâmbio e cooperação sociais que atuam como
condições indiretas sobre sua produção, maior a especulação quanto ao valor de seus produtos
e o superlucro do qual participa abandona a esfera do trabalho por tempo, embora seja esta
medida a que toma para estabelecer seu preço especulativo. A educação, a exemplo da ciência,
como explicou Marx em O Capital, nos Grundrisse e nas Teorias da Mais Valia, embora possa
ser objeto de produção de mais-valia, nunca poderá ter seu verdadeiro valor mensurado em
tempo social, posto que incorpora um tempo histórico incomensurável na formação do
intelecto geral e no desenvolvimento do conhecimento social geral da humanidade, com suas
continuidades, descontinuidades, rupturas, saltos e regressões.
A educação, mesmo agrilhoada pela ciência cativa do capital e à produção, deve
377
superar sua dilaceração e reclamar sua unidade congênita com a ciência, do mesmo modo que
o operário, que produz seu próprio produto como capital que o oprime e subsume, deve
reclamar sua unidade com sua própria objetivação como trabalho. Em ambos os casos, a
trajetória para solucionar a contradição está umbilicalmente ligada: a unidade entre educação
e ciência, assim como a unidade entre operário e sua objetivação, exigem a luta direta pela
revolução social. A crise de paradigma da educação é a crise de paradigma da ciência, e a
crise de ambas, a própria crise da relação-capital em sua organicidade e composição-valor. A
resolução encontra-se no outro do capital, no outro da ciência, no outro da educação: nos
trabalhadores e massas oprimidas em todo o mundo.
Marx afirmou nos Grundrisse:

A natureza não constrói máquinas, nem locomotivas, estradas de ferro, telégrafos


elétricos, selfacting mules, etc. São estes produtos da indústria humana; material
natural, transformado em órgãos da vontade humana sobre a natureza ou de sua
atuação na natureza, são órgãos do cérebro humano criados pela mão humana; força
objetiva do conhecimento. O desenvolvimento do capital fixo revela até que ponto o
conhecimento ou knowledge social geral, se converteu em força produtiva imediada
e portanto até que ponto as condições do processo de vida social mesmo, entraram
sob o controle do general intellect e remodeladas conforme o mesmo. Até que ponto
as forças produtivas sociais são produzidas não somente na forma do conhecimento,
mas como órgãos imediatos da prática social, do processo vital real (MARX, 2009,
Vol II, pp. 229-230).

A proposição prática e teórica da presente pesquisa para contribuir com a


verdadeira superação da crise de paradigma da Educação é entendê-la como crise da
organicidade do capital e como tal é necessária a luta de classes, particularmente, na teoria e
na prática educacional com o objetivo da revolução social. Nestes termos, a educação deve
seguir o caminho histórico das grandes revoluções no conhecimento: a formação de núcleos
experimentais de formação e formulação pedagógica estratégica, que resista às investidas do
capital de destruição da escola e da universidade como espaço de domínio público,
conquistado a sangue, nervos e cérebro, dos setores mais comprometidos com a causa comum
da humanidade, articulados à luta histórica dos trabalhadores e classes oprimidas, pela
liberdade; e repensar a pedagogia sob o paradigma do tempo livre como objetivo estratégico
de uma sociedade de igualdade e justiça comum, a pedagogia revolucionária, em que o papel
da educação, em sua unidade de ensino/aprendizagem e pesquisa/interação, seja o pleno
domínio social do conhecimento geral ou do intelecto geral.
378
5 CONCLUSÃO: CRISE ORGÂNICA DO CAPITAL E O NÚCLEO ESTRATÉGICO
DA NOVA PEDAGOGIA DO TEMPO LIVRE NA FORMAÇÃO HUMANA

A presente pesquisa, como enuncia sua introdução, partiu do pressuposto que o


conceito de capital em geral é a expressão da relação social dominante na sociedade
capitalista atual; dessa forma, uma crise do capital é um momento dialético de autonegação;
em consequência, a categoria crise modifica o caráter de conceito subsumido a uma dimensão
da totalidade concreta para um conceito geral, que acompanha a estruturalidade ou
organicidade da relação capital e se externaliza singularmente na economia enquanto teoria e
prática de seu substrato material, o trabalho, precisamente na lei do valor, que, de per si,
revela uma crise de paradigma na ciência, logo, na educação, especialmente na pedagogia. A
temática foi analisada à luz da teoria e do método de Marx em suas obras principais e na
literatura afim, marxista e não marxista contemporânea, visando contribuir com a resolução
de enigmas candentes nas ciências sociais e humanas que voltam à evidência com o retorno
das crises econômicas gerais ou globais; suas naturezas e implicações nos paradigmas da
ciência que dominam a economia e a educação.
O problema fulcral da pesquisa foi delimitar até que ponto a crise teorizada por
Marx nos Grundrisse corresponderia à crise atual. Os obstáculos gerais eram dois: a) fixar
qual é o modelo de crise em Marx, sob o pressuposto de aplicação absoluta do capital fixo; e
b) confrontar este modelo pela via da concreção sucessiva e mediações com a realidade atual
e identificar que elementos confirmam ou refutam o mesmo. A linha problemática era
demonstrar que o modelo de crise orgânica da estrutura de valor do capital sustentava-se
diante de contraprovas do positivismo popperiano e do relativismo kantiano, as aporias da
literatura contemporânea; e, finalmente, precisar a singularidade da crise em Marx em um
referencial teórico qualificado. As dificuldades no que concerne a um modelo teórico que
permita resultados coerentes com os princípios e critérios adotados encontra-se no objeto cuja
abrangência permita superar a formulação ad hoc, chegando-se ao modelo fático na
explicação do fenômeno; contudo, tratando-se de ciência social, este objeto é a própria
sociedade, que como totalidade concreta e viva está em movimento dialético e histórico,
exigindo um modelo científico revolucionário. Neste aspecto, as limitações de tempo e de
recursos econômicos, materiais e humanos explicam a lacuna.
379
Os objetivos da pesquisa, em termos gerais, eram demonstrar teórica e
empiricamente, por um lado, que a crise orgânica do capital é uma crise da Lei do Valor cujo
locus está na erosão do seu paradigma de mensuração – o tempo de trabalho socialmente
necessário – devido à participação, cada vez maior, da ciência e da educação na formação da
composição-valor das mercadorias, revelando a estreiteza deste paradigma para mensurar
adequadamente o valor e a riqueza destas forças produtivas sociais que passam a dominar os
custos e os preços de produção; por outro, a passagem da Ciência e da Educação, de forças
que afirmavam o valor e atuam na contratendência à desvalorização, em forças de antítese que
potencializam a erosão do paradigma vigente e sua superação desenvolvendo um novo
paradigma de valor – o tempo livre social, o que fundamenta a proposição da formação de
núcleos pedagógicos experimentais, teóricos e práticos, para acompanhar a crise e
desenvolver uma proposta pedagógica assentada no novo paradigma do tempo livre.
Os objetivos específicos, derivados da linha problemática em relação ao
objetivo geral, foram os seguintes: a) demonstrar teoricamente a crise orgânica do valor na
estrutura da relação capital; b) demonstrar empiricamente a crise do paradigma de
mensuração de valor; c) definir e demonstrar a importância da ciência e da educação como
forças socais que por seu duplo caráter, de categoria subsumida ao capital e ao mesmo tempo
força social subversiva a este, desempenham papel estratégico na transição de paradigma pela
revolução científica; d) identificar e definir as categorias de transição e transcendência entre o
paradigma de valor e de organicidade social; e, e) fundamentar e defender a proposição da
constituição de um núcleo estratégico de estudos pedagógicos para acompanhar a crise e suas
tendências.
Com relação ao método, a pesquisa foi caracterizada como qualitativa,
pesquisa bibliográfica e documental focada em autores pertinentes ao tema sob a sistemática
da análise comparativa e da epistemologia com base na dialética do materialismo histórico de
Marx, auxiliados por autores contemporâneos. A revisão bibliográfica compõe-se do estudo e
da síntese dos trabalhos dos autores que têm por escopo a problemática da presente pesquisa,
condensados nos conceitos chaves: a) crise do capital; b) paradigma da ciência; e c) crise na
educação. Destacam-se as obras de Marx e Engels, Grossmann, Santos e Frigotto, Mészáros,
Hardt, Negri, Schultz, Boutang, entre outros. Os dados documentais são as estatísticas
elaboradas pelas instituições internacionais como UNESCO, FMI, BIRD, OCDE, OIT, entre
outras. Cabe também esclarecer que a pesquisa segue a concepção do método dialético do
380
materialismo histórico de Marx, diferenciando o procedimento de pesquisa, da exposição.
Quais foram, em linhas gerais, os resultados obtidos nos três temas
pesquisados? Sobre o tema principal da pesquisa, a segunda parte A crise orgânica do capital,
a análise em primeiro lugar confirmou a hipótese de que a crise constitui uma categoria chave
na obra de Marx para a compreensão do caráter histórico do seu conceito de capital, que é
desenvolvido nos Grundrisse e em O Capital. A crise é uma categoria presente na maioria de
seus trabalhos desde sua saída da redação da Gazeta Renana e retorno ao seu gabinete de
estudos. Na verdade, foi uma crise que se instaurou no Vale do Mosela, entre os lenhadores e
latifundiários, em que os primeiros eram acusados de roubo de lenha e violação da
propriedade privada, como explica o próprio autor no Prefácio da Contribuição para a
Crítica da Economia Política de 1859, que o levou a investigar os problemas materiais
(MARX, 1977, pp. 27, 28). Porém, este conceito deve ser compreendido dialética e
historicamente, pois enquanto categoria abstrata é antediluviano e não especifica a diferença
essencial de conteúdo e significado que se transforma com o desenvolvimento das forças
produtivas e com as relações de produção e sociais dominantes nas diferentes épocas
históricas.
A análise também revelou que, segundo os autores pesquisados Rosdolsky (2009),
Mészáros (2005), Clarke (1994) e Grossmann (1979), apesar de ser uma categoria importante
na obra de Marx, em nenhum de seus trabalhos ele desenvolveu uma teoria conceitual da crise
para si, embora tenha sido um tema enunciado nos planos iniciais de elaboração de O Capital,
como último tema a ser tratado conjuntamente com o Mercado Mundial. Isto poderia parecer
que o conceito de crise teria importância secundária, mas na verdade é o contrário, ela aparece
aí como o ápice de um processo em que o capital chega ao colapso e a crise marca a passagem
histórica a outro modo de produção superior ao capitalista, o comunismo. A pesquisa chama
atenção para este fato nos Grundrisse, quando Marx afirma que: “As crises são, nesse caso, a
indicação universal para além do pressuposto [mercado mundial] e o impulso para a adoção
de uma nova configuração histórica” (MARX, 2009, v. 1, p. 254).
Outro aspecto importante é que os primeiros escritos de Marx e Engels sobre
economia política, como O Esboço Para Uma Crítica da Economia Política, escrito pelo
segundo (1843-1844), que influencia o pensamento de Marx nos Manuscritos Econômicos e
Filosóficos, de 1844, já abordam grande parte das categorias da economia política que em
seguida passariam a dominar o pensamento econômico de Marx, como valor, trabalho, capital,
381
mercadoria, e, sobretudo, as crises de superprodução, comerciais, monetárias, escassez, queda
dos lucros, entre outras. Contudo, o mais importante em relação à crise é observar que Marx
se fundamenta no estado estacionário de Adam Smith, que foi levado à condição de tese por J.
St. Mill; na teoria dos rendimentos decrescentes da terra de David Ricardo; e na
superprodução e subconsumo de Simond Sismondi. Naturalmente, encontramos uma vasta
lista de autores pesquisados, economistas vulgares, fisiocratas, socialistas utópicos,
historiadores, filósofos, entre outros de sua época e próceres. Entretanto, são estas três
diferentes formas da crise que se condensam na concepção de crise de Marx, articuladas pela
categoria valor e determinadas historicamente pela luta de classes. É assim que a crise se
apresenta no Manifesto do Partido Comunista como expressão da contradição entre as forças
produtivas e as relações de produção, cuja incidência cíclica tende a elevar cada vez mais sua
condição, por um lado, a sua capacidade de destruição das forças produtivas já desenvolvidas
e, por outro, de aceleração das transformações científico-técnicas, sociais e políticas,
consumando-se em crise geral de superprodução e histórica de transição a um novo modo de
produção.
Da análise de O Capital pode-se destacar uma consideração geral em torno da
aplicação da categoria crise por Marx: primeiro, de caráter geral e histórico como momento
dialético de negação da relação social dominante de um modo de produção determinado,
limite e transição histórica deste a outro modo de produção superior ou regressão histórica a
um estágio de desagregação e barbárie social. Segundo, de caráter particular e determinado
pelos contextos específicos da construção teórica do autor ao designar um momento de
mudança qualitativa nas relações internas de uma categoria ou em sua relação com um corpus
teórico, seja como estrutura de relações da totalidade, seja da parte social.
Nestes termos, o Livro I de O Capital apresenta a primeira aplicação teórica da
categoria crise no contexto de construção das categorias fundamentais da economia fundada
no trabalho social, em que a categoria valor-trabalho constitui-se em conceito principal; o que
permite uma primeira análise da relação capital enquanto conceito geral e modelo abstrato que
explica as leis tendenciais e gerais que atuam sobre a estrutura das relações econômicas e
sociais da totalidade concreta. O Livro II, sob o contexto de aprofundamento e refinamento
das determinações da relação capital, elevando seu conceito teórico e modelo abstrato cujo
pressuposto e suposto são as categorias valor e mais valor (mais-valia) enquanto trabalho
abstrato, para explicar idealmente em termos teóricos o mecanismo, a dinâmica e o objetivo
382
da produção e reprodução social sob a lógica da apropriação privada capitalista. O Livro III
apresenta a crise sob o contexto da reintrodução das categorias abstraídas, sob a mediação do
movimento histórico real destas, através do processo de aproximação ou concreção sucessiva
da totalidade viva, social e concreta de forma inteiramente articulada a partir do modelo
abstrato da relação capital e da categoria dominante: o valor (e mais-valor). Finalmente, o
Livro IV situa a categoria crise no contexto da crítica a Ricardo sobre sua concepção de
acumulação como fenômeno imanente ao processo de produção e reprodução do capital.
A pesquisa destaca da análise do Livro I de Marx, a Lei Geral da Acumulação,
que apresenta uma concepção importante e decisiva da categoria crise no processo de
acumulação do capital. Sua definição ultrapassa a noção de ponto de inflexão na alternância
de fase no ciclo econômico periódico da indústria moderna. Ele a definiu como a categoria
que exprime o processo de incidência da Lei Geral da Acumulação, que exterioriza, por sua
vez, a contradição fundamental da relação capital, das forças produtivas entre si e destas com
as relações de propriedade. A noção também se estende à mudança na correlação entre as leis
que atuam sobre a acumulação e que definem o caráter da mesma em ambas as fases do
processo, como se pode observar no predomínio das leis do salário sobre a fase de expansão
inicial da acumulação e o predomínio da lei da produtividade na fase da contração. Outro
atributo importante na concepção do autor sobre a crise é o seu papel de restabelecer a
unidade entre dois aspectos contraditórios da relação capital, que se expressam na fase de
contração do ciclo nas formas da superprodução relativa e superpopulação relativa, por
intermédio da destruição violenta das forças produtivas desenvolvidas e da constituição da
nova base de relações técnicas e sociais na qual se destaca a aplicação da ciência e da técnica.
A crise, portanto, constitui-se assim mais que uma noção conjuntural, ela é compreendida
como parte da estrutura orgânica do capital, como se pode comprovar pela composição-valor
do mesmo. Neste sentido, compreende também o caráter dialético de momento de negação da
relação capital, ou seja, momento de antivalor que tende a se converter de crise geral e
aspecto essencial do ciclo econômico do capital em crise histórica de transição revolucionária,
processo pelo qual a subjetividade das classes exploradas supera o modo de produção
constrangedor.
No Livro II de O Capital destaca-se a passagem à abstração mais elevada do
conceito de capital em geral a modelo dos esquemas de reprodução simples e ampliada do
capital e, em consequência, do conceito de crise diferindo da sua formulação em potencial na
383
abstração do valor e da Lei Geral da Acumulação no Livro I e de sua concreção no Livro III.
Contudo, esta parte da obra de Marx consiste em um trabalho de abstração teórica mais
amplo, eclipsado pelo foco restrito ao equilíbrio entre os departamentos da economia. A
concepção de crise que flui da análise das contradições entre os ciclos e rotação do capital em
geral, suas partes e dos capitais particulares, bem como das múltiplas relações entre estes, se
apresenta na autonomia e dissincronia entre os ciclos do capital produtivo e do capital
mercadoria; no tempo de rotação do capital fixo, cuja renovação devido à concorrência, a
aplicação da ciência e da técnica, entra em contradição com a sua qualidade de bem durável
que retém capitais, tornando-se um obstáculo e “uma base material das crises periódicas, nas
quais o negócio passa por períodos sucessivos de depressão, atividade média, precipitação,
crise, que […] constitui sempre o ponto de partida de um grande investimento novo.”
(MARX, 1988, Livro 2, v. 3, p. 127). O outro aspecto é que a aceleração da renovação
tecnológica diminui o tempo de circulação e de rotação, propicia retornos mais rápidos do
capital adiantado e a formação de uma pletora de capital de empréstimo. Já a rotação do
capital variável desenvolve dois tipos de acumulação: a que deriva da rápida reposição do
capital adiantado em salários, propiciando uma pletora de capital monetário, e a que o tempo
de rotação é maior, exigindo sucessivos adiantamentos de capital variável e o consumo de
produtos do mercado sem reposição dos mesmos, gerando uma demanda por mercadorias e
dinheiro que eleva seus preços. A pletora de capital monetário da primeira encontra na
demanda da segunda o local de investimento que dá continuidade e amplia a produção até o
limite da ativação de todas as potências produtivas em que se opera a superprodução, chega-se
à incapacidade de produzir e realizar mais-valia, instaura-se o colapso e a crise. Assim, a
redução no tempo de rotação do capital variável desencadeia o processo de superprodução
que, no limite do colapso, conduz as economias nacionais ao processo de exportação para
outros mercados e, ao mesmo tempo, o excesso de capital monetário nas mesmas permite o
financiamento das exportações ao mercado importador e assim a crise é exportada dos países
onde se processa a superprodução e a pletora de capital monetário para o mercado importador
e devedor (p. 235-236).
Sobre os esquemas de reprodução, o que se pode concluir de novo é que a
importância dada à reprodução ampliada não vê que a abstração real está no esquema de
reprodução simples e que é neste que se tem que observar o fundamento do colapso. É
necessário entender que a desproporção é a base do desenvolvimento dos setores da economia
384
e que a própria harmonia entre os departamentos I e II não passa de uma abstração. O que
Marx demonstra é que o equilíbrio é possível no curso da desproporcionalidade entre os
departamentos, ao considerar que as trocas relativas entre estes derivam do valor do consumo
individual (v+m) do departamento I equivalente ao valor do consumo produtivo (c) do
departamento II; neste caso, a desproporção se reduz a duas determinações: a que se
desenvolve entre o setor de bens de consumo imediato e o setor de bens de consumo de luxo,
que implicará a desproporção do departamento I, e daqui decorrerá das contradições entre a
acumulação e a demografia; em todo caso, inalterada a reprodução, o fantasma do estado
estacionário de Smith ou a teoria dos rendimentos decrescentes de Ricardo torna-se um fato e
o obstáculo demográfico malthusiano parecerá verdadeiro diante da crise de escassez. Neste
sentido, é desnecessário dizer que a reprodução ampliada, compreendendo uma taxa composta
de acumulação que se processa sobre a abstração da reprodução simples, na verdade,
representa uma primeira concreção do conceito de reprodução simples.
Em relação ao Livro III, o importante é observar que a ideia do colapso do
capitalismo indicada por Marx pela lei da tendência decrescente da taxa de lucro expressa a
superfície do fenômeno real, pois a essência da questão é a mais-valia, que está escondida no
lucro, em relação a taxa de acumulação. A tentativa de esconder a taxa de mais-valia na taxa
de lucro não permite ver que a formação dos preços de produção ou de mercado é apenas a
soma do preço de custo com a taxa de lucro [M=p+l'] e que isso é a mesma base da formação
dos preços formulada no Livro I [M=c+v+m]. A grande diferença é a oscilação da taxa de
lucro capitalista particular em relação a taxa de lucro média transformada em taxa geral que
também oscila, devido a que m' = m/v, e l' = m/c+v = m/C, neste caso, a relação entre a
magnitude de ambas taxas equivale à relação entre o capital variável e o capital total,
portanto, se l' : m' = v : C27, logo, l' será sempre menor que m', e assim por diante. Desta
maneira, a equalização da taxa geral de lucro pela concorrência – preços de mercado e valores
de mercado e superlucro – implica que a soma dos lucros coincida com a soma da mais-valia
e a concorrência simplesmente redistribua ou equalize esse total entre as distintas esferas, de
acordo com o capital investido em cada setor (MARX, Livro 3, v. 4, p. 136). O importante é
observar que a taxa média se impõe como taxa “geral”. As mercadorias como “produtos de
capitais” no capitalismo faz com que cada capitalista exija uma “participação na massa global

27
“A taxa de lucro está para a taxa de mais-valia, assim como o capital variável está para o capital global.”
(MARX, 1986, v. IV, p. 39).
385
de mais-valia” proporcional à magnitude de seu capital e composição orgânica. Este processo
se efetua no mercado mundial e explica a troca desigual e como a taxa de lucro esconde a taxa
de mais-valia e a taxa de juros esconde as duas, desaparecendo com o valor-trabalho e a mais-
valia como reguladora dos preços e trocas do mercado mundial sob o traje dos lucros
marginais.
Com relação à lei da tendência decrescente da taxa de lucro, a pesquisa
analisou seu desdobramento em três contradições: a primeira, entre a valorização e a
produtividade social do trabalho; a segunda, entre o movimento de concentração e
centralização em relação aos pequenos capitais individuais; e a terceira, entre o valor de uso e
o valor de troca que também se expressa em tempo necessário e excedente na sociedade. E
destaca da primeira a noção que os métodos de exploração – mais-valia absoluta e mais-valia
relativa – só encontram limites no declínio da taxa de lucro que se impõe com a força de uma
lei natural em crises violentas “que reestabelecem momentaneamente o equilíbrio perturbado”
(p. 188). Da segunda, a magnitude do capital que se impõe sobre sua diversidade pela
concentração e centralização dos pequenos, daí a tendência histórica ao monopólio; sobre este
aspecto Marx sublinhou: “Esse processo levaria em breve a produção capitalista ao colapso,
se tendências contrárias não atuassem constantemente, com efeito descentralizador, ao lado da
força centrípeta.” (p. 186). Da terceira, sua externalização pela produtividade social que
multiplica a produção dos valores de uso para obter valores de troca, mais-valia, divorciando
o primeiro das necessidades humanas até que a crise refaça a unidade perdida dessa relação
capital; quanto à contradição na distribuição do tempo disponível total da sociedade, em
tempo necessário à produção de meios de subsistência e o tempo excedente para todos, ela
não interessa ao capitalista, pois seu objetivo é o lucro, portanto, o que lhe interessa é
converter o tempo excedente dos trabalhadores em seu produto privado; neste aspecto, a crise
estabelece claramente a barreira do capital como próprio limite ao capital. Cabe ressaltar
sobre a queda da taxa de lucro que Marx afirmou que esta significa uma lei da tendência ao
colapso do capitalismo, isto não quer dizer que se efetue de imediato, pois existem
contratendências que neutralizam temporariamente ou amenizam sua efetivação; contudo,
quando se rompe estes fatores ela se apresenta de forma aguda, geralmente acompanhando as
crises cíclicas do capital. As contratendências se resumem em: 1) elevação do grau de
exploração do trabalho; 2) a redução do salário abaixo de seu valor; 3) O barateamento dos
elementos do capital constante; 4) a superpopulação relativa; 5) o comércio exterior, em
386
especial, nas “colônias”; e 6) o aumento do capital por ações.
A pesquisa analisou ainda no Livro terceiro as relações entre a acumulação do
capital monetário e o capital real; nesta parte da obra, Marx aplica o modelo da reprodução
ampliada, integrando a concorrência, o crédito e o mercado mundial. Demonstra a
potencialização do capital produtivo pelo capital monetário, conduzindo o primeiro à
superprodução e o segundo à bolha especulativa, chegando ao paroxismo que se reflete na
baixa e na alta da taxa de juros. Explica como a crise cíclica se torna uma crise geral pelas
exportações e importações de capitais mercadoria e dinheiro (empréstimos) até o estouro da
bolha, a queda geral dos preços de ativos (ações) nas bolsas de valores e dos preços em geral
das mercadorias, destruição das forças produtivas, desemprego, falências, bancarrotas,
fraudes. Contudo, o importante a destacar nesta concreção da crise por Marx, é que somente a
abstração em uma sociedade onde só existam trabalhadores assalariados e capitalistas
industriais, sem flutuações de preços nem especulação, é possível chegar à causa das crises,
como se segue:

uma crise somente seria explicável por desproporção da produção nos diversos
ramos e por uma desproporção do consumo dos próprios capitalistas para com sua
acumulação. Mas como as coisas são, a reposição dos capitais investidos na
produção depende, em grande parte da capacidade de consumo das classes não
produtivas; enquanto a capacidade de consumo dos trabalhadores está limitada em
parte pelas leis do salário, em parte pelas circunstâncias de só serem empregados
enquanto puderem ser empregados com lucro para a classe capitalista. A razão
última de todas as crises reais é sempre a pobreza e a restrição ao consumo das
massas em face do impulso da produção capitalista a desenvolver as forças
produtivas como se apenas a capacidade absoluta de consumo da sociedade
constituísse seu limite (MARX, Livro III, v. V, p. 24).

Marx ao final revela a lógica em que repousa o capital monetário, que é a


lógica do “capital-mercadoria”, que “em tempos de crise e paralisação dos negócios” perde
em grande parte a qualidade de representar capital monetário potencial, isto é, deixa de
realizar a mais-valia. E que esse processo também acontece com o capital fictício, os papéis
portadores de juros que nas bolsas circulam como capital monetário. A alta dos juros faz cair
seu preço, a medida que a escassez geral do crédito conduz “seus proprietários os lançarem
em massa no mercado para obter dinheiro”. Também cai devido à desvalorização das ações e
pelo “caráter fraudulento de muitos empreendimentos”. O capital fictício se reduz
enormemente nas crises, com ele, o poder de seus proprietários em transformá-los em
dinheiro no mercado. Contudo, a desvalorização do “nome monetário destes papéis de
387
créditos nos boletins da Bolsa nada tem a ver com o capital real que representam, muito,
porém, com a solvência de seus proprietários” (p. 31).
Acerca dos debates iniciados pelo revisionismo após a publicação do livro
terceiro de O Capital, de Marx, e a morte de Engels, o que se observa é que a teoria do
colapso conduziu a três formulações básicas: a interpretação reformista pelos teóricos da
república de Weimar, que acabou por servir à teoria marginalista de Keynes que salvou o
capitalismo do colapso, em 1929; a interpretação revisionista que se tornou o braço do
imperialismo no movimento operário e antro da aristocracia operária; e a interpretação
revolucionária de Lênin sobre o imperialismo, que se consolidou com a vitória da revolução
bolchevique na Rússia, chegando à Europa e a todos os continentes do mundo. Também se
destaca do debate sobre os esquemas de reprodução de Marx, que uma posição política
revolucionária, como é a defesa do colapso do capitalismo, não significa que a teoria para
justificá-la esteja correta, entretanto, é importante que desta perspectiva do debate também
surgiu uma contribuição teórica que a pesquisa considerou relevante para a compreensão da
crise em Marx e o caráter da crise atual, que é o trabalho teórico de Grossmann, A Lei da
Acumulação e do Colapso do Sistema Capitalista. O estudo do autor vincula à própria
dinâmica da estruturalidade e organicidade do capital no processo de reprodução ampliada
subsumida à lei do valor expressa na lei da tendência decrescente da taxa de lucro, a
contradição entre a massa de lucro e a taxa de acumulação como o fundamento do colapso,
processo pelo qual a magnitude do capital fixo ou constante exige uma taxa cada vez maior de
acumulação até o limite da mesma impedir a reprodução da fração k (consumo dos
capitalistas) e cv (consumo dos trabalhadores) e que, diante deste fato, os capitalistas têm
apenas duas alternativas: bancarrota ou renúncia ao seu ser social.
A redescoberta dos Grundrisse nos dias atuais, cerca de meio século após sua
primeira publicação pelo Instituto Marx, Engels, Lênin (IMEL) de Moscou, em 1939-1941, e
da publicação pela Dietz Verlag de Berlim, em 1953, veio confirmar a interpretação de
Grossmann, apesar de apresentar um desdobramento distinto do formulado por este último.
Em síntese, nos Grundrisse, Marx demonstra como as contradições entre as forças produtivas,
e destas com as relações de produção capitalista, sob o imperativo da lei do valor, encontram
primeiramente as barreiras físicas, sociais e morais à extração da mais-valia no processo de
produção, que contorna com a aplicação da ciência e da técnica na maquinaria e na
organização e divisão do trabalho, exército de reserva, leis coercitivas etc; posteriormente, a
388
contradição interna à produção entre o trabalho concreto e o trabalho abstrato externaliza-se
no processo de circulação como valor de uso e valor de troca, ou seja, mercadoria e dinheiro.
Esta dupla existência, autonomizada no ato de compra e venda, conduz a contradições entre
produção e consumo, que se expressam em superprodução e subconsumo cujo processo de
reprodução ampliada potencializado pelo capital monetário à escala do mercado mundial se
consuma em crise geral alternando a fase do ciclo da acumulação, de expansão à contração na
reprodução do capital. Processo sistemático e periódico cuja superação implica o círculo
vicioso da lei da produtividade crescente, aumento da composição orgânica do capital que
eleva, por um lado, o sistema de máquina ao autômato “inteligente”, avançando o intelecto
geral na reconfiguração do aparelho produtivo; por outro, a força de trabalho individual em
força de trabalho coletiva cuja atividade mais simples pressupõe o knowledge social geral em
que a educação é força protagonista, conduzindo a passagem da produtividade social de força
de trabalho manual à força de trabalho intelectual; chegando-se assim à crise das crises, isto é,
à crise da lei do valor ou precisamente à crise do paradigma de mensuração do valor, que se
expressa em termos do tempo disponível total da sociedade na redução, cada vez maior, do
tempo necessário à produção dos meios imediatos de subsistência e o aumento do tempo livre
social, que é incapaz de ser apropriado pela burguesia como tempo excedente, mesmo com a
formulação de leis e políticas que tentam privatizar o tempo livre.
O exame da literatura marxista contemporânea sobre a crise permite afirmar
que todas as suas interpretações sofreram uma significativa modificação com a redescoberta
dos Grundrisse. Porém, a categoria crise tem existência anterior ao pensamento de Marx na
economia política clássica burguesa e no socialismo pequeno burguês, nos quais já era
aplicada nas suas formulações; portanto, não há nada de extraordinário que as interpretações
efetuadas da concepção deste autor sobre a crise seja mediada por concepções que lhe são
anteriores ou contemporâneas. Daí muitas definições que se postulam marxistas, na prática,
constituírem interpretações smithianas, ricardianas ou sismondianas de Marx. Os autores
contemporâneos cujos trabalhos foram apreciados nesta pesquisa todos fazem referências aos
Grundrisse, confirmando a assertiva de que este trabalho de Marx é a base fundamental das
novas abordagens sobre a crise do capital. Também se constata que nestas novas
interpretações continuam a subsistir as definições de crise exteriores e anteriores à concepção
deste autor, tais como a noção de Smith do estado estacionário presente em Arrighi; a noção
de Ricardo de crise cíclica superável em Harvey, Hardt e Negri e parte dos autores italianos; e
389
a noção de Sismondi dos limites do subconsumo em Mészáros.
Em linhas gerais, à exceção de Harvey e Arrighi, todas as formulações
arroladas admitem de forma direta ou indiretamente a crise do paradigma de valor como o
substrato ou, mais precisamente, a contradição fundamental do capital e seu sistema. Esta
constatação é de importância decisiva para a presente pesquisa porque, independente das
conclusões e proposições a que chegam os autores analisados, ela sustenta a tese de que a
crise atual é uma crise da organicidade do capital, portanto, da sua composição valor. Desta
análise também se conclui que, à exceção de Lazzaratto e Boutang, os demais autores
consideram a crise atual como uma transição histórica no modo de produção e sistema do
capital, mesmo considerando que o capital enquanto tal possa continuar a subsistir em outras
formações sociais de produção e sociedades pós-capitalistas, como admite Mészáros, Hardt,
Negri, Gorz e Versallone, embora não seja tão clara em Kurz. Do mesmo modo, também é
importante concluir que, à exceção de Harvey e Arrighi, os demais autores concordam que o
papel da ciência e da educação são fundamentais para a crise atual. Embora esta formulação
não esteja totalmente plasmada nas formulações de Mészáros e Kurz, os demais autores
tematizam o que definem como trabalho imaterial e intelecto geral ou intelectualidade de
massa, enquanto expressão destas forças produtivas sociais que impulsionam a crise, a
exemplo do que sustentava Marx nos Grundrisse um século e meio atrás. Portanto, é plausível
considerar que estas concepções teóricas são evidências suficientes para sustentar a tese desta
pesquisa sobre o caráter orgânico da crise do capital, bem como do seu locus teórico, o
paradigma de mensuração do valor, o tempo de trabalho socialmente necessário, em
decorrência da mudança nos conceitos de trabalho e valor, a partir da presença cada vez maior
do intelecto geral e do conhecimento social geral, no conteúdo ou substância destes.
A literatura marxista contemporânea chega a um ponto de vista distinto de
Marx sobre o significado da crise; Grossmann, entretanto, em sua teoria sobre a crise permite
resgatar o caminho lógico entre a concepção de Marx e a tese apresentada nesta pesquisa. Sua
formulação consiste na concepção de que o valor, mais precisamente a mais-valia, é o
fundamento da produção capitalista, e nestes termos, sua reprodução torna-se a questão
principal a ser estudada para a demonstração da crise que está presente na teoria geral de
Marx, isto é, no conceito do capital em geral. Com base no fundamento científico, Marx, em
O Capital, teria partido da superfície do fenômeno, as mercadorias, passando às concepções
mais abstratas, aos esquemas de reprodução no Livro II de O Capital, para posteriormente,
390
por meio de concreções, integrar os elementos abstraídos e chegar à totalidade concreta, como
conceito articulado do real. O fato deste movimento produzir uma aparente contradição entre
os resultados provisórios (abstratos) e sua formulação final (concreta), não constitui
argumento para a refutação da teoria, pelo contrário, este percurso lógico é o que permite a
validação da teoria, não apenas de Marx, mas da teoria científica em geral.
Grossmann, diante destes pressupostos metodológicos, apoiou-se no modelo
dos esquemas de Bauer, que pretendia refutar Luxemburgo incluindo todos aspectos criticados
como ausentes aos esquemas de Marx e comprovar que estes demonstravam o equilíbrio do
sistema, ad infinito, como pregavam os clássicos do liberalismo, a escola neoclássica e
marginalista; na verdade, como Grossmann demonstrou aplicando este modelo no curso de 35
rotações, ou iterações, ceteris paribus, o capitalismo colapsa. Com esta aplicação teórica
Grossmann demonstrou, teórica e abstratamente, não somente o caráter histórico do modo de
produção capitalista e a sua tendência à crise terminal, mas sobretudo o caráter orgânico e
estrutural da crise localizando o colapso na própria lógica interna da acumulação, que em sua
dinâmica nega a relação capital, isto é, a própria existência da classe burguesa enquanto tal, à
medida que opõe a fração k da acumulação contra as frações ac e av, como demonstrado
matematicamente e ilustrado na FIGURA 3.
Em termos matemáticos, a expressão pode evoluir até a fração k tender a 0,
portanto, obrigando o capitalista a optar entre a reprodução simples, ou mesmo imperfeita,
aceitando a desvalorização do seu capital, ou manter a reprodução ampliada e negar seu ser
social. Em todo caso, quanto à inexorabilidade da formulação, o próprio Grossmann afirma:
“o sistema tem que colapsar ou as condições especificadas para o sistema devem ser
violadas”. Neste ponto, se apresenta a desconexão entre a teoria de Grossmann e os
Grundrisse, que desenvolve uma segunda natureza causal para a crise histórica do
capitalismo, que a literatura contemporânea distorce ou tergiversa, para sustentar proposições
claramente contrárias ao significado definido por Marx, como crise orgânica do capital que
explica em grande medida as crises atuais.
A análise da concepção de crise em Marx nos Grundrisse revela a unidade
lógica e dialética desta enquanto expressão contraditória do trabalho humano, que se
externaliza em mercadoria e valor na circulação do capital nos momentos de desvalorização.
No entanto, seu fundamento consiste na composição orgânica do capital que condensa as
relações de exploração e apropriação das forças produtivas, que estão na base da produção do
391
valor e da mais-valia, isto é, o capital constante e o capital variável, ou meios de produção e
forças de trabalho, relações que sofrem a intervenção direta das forças produtivas sociais da
ciência e da educação, ou do que Marx definiu como general intellect ou knowledge social
geral, decorrente da passagem da máquina ao sistema de máquinas e do trabalhador individual
ao trabalhador coletivo.
Neste nível de formulação, Marx sugere que o conceito de valor sofre uma
alteração na sua forma e conteúdo tornando o paradigma do tempo de trabalho socialmente
necessário estreito para mensurar o valor da ciência e da educação, como forças produtivas
sociais que passam a compor o valor do produto social. Este processo, não observado por
Grossmann, constitui-se na atualidade a base da violação sistemática da lei do valor, que
retarda até certo ponto o colapso, como se deduz desta formulação de Marx:

Por um lado, desperta à vida todos os poderes da ciência e da natureza, assim como
da cooperação e do intercâmbio social para fazer com que a criação da riqueza seja
(relativamente) independente do tempo de trabalho empregado nela. Por outro lado,
se propõe a medir com o tempo de trabalho essas gigantescas forças sociais criadas
desta maneira e reduzi-las aos limites exigidos para que o valor já criado se conserve
como valor (MARX, 2009, v. 2. p. 229, tradução nossa).

Grossmann, partindo do modelo de Bauer que inclui a tecnologia, projetou o


crescente aumento do capital fixo como fração da acumulação que engole as frações
destinadas ao capital variável e ao consumo do capitalista, mas não percebeu que
acompanhando este processo também crescia a participação da ciência como potência
autônoma, que altera a composição de valor do próprio capital fixo e domina todo o processo
de produção até a mudança qualitativa na composição-valor do capital, ao passo que a
redução relativa do capital variável é acompanhada pela crescente presença da força produtiva
da educação de forma a atender a complexificação das atividades do trabalho pressuposta,
mesmo quando estas se limitam a uma operação simples. Com a redução do Estado na
economia, as forças produtivas da ciência e da educação tornam-se as principais
contratendências empregadas pela intelligentzia capitalista para neutralizar os efeitos da
erosão do paradigma de valor e postergar o colapso. As teses sobre nova economia,
capitalismo cognitivo, sociedade do conhecimento, capital humano e capital intelectual são
expressões teóricas destas contratendências, como demonstra esta pesquisa.
A desconexão lógica entre a teoria de Grossmann do colapso, derivada de Marx
em O Capital e a teoria deste último nos Grundrisse, no que diz respeito ao papel da ciência e
392
da educação, na crise do paradigma de mensuração do valor foram temas investigados nas
partes III e IV deste trabalho: a ciência enquanto Revolução Científico-Técnica, ou terceira
fase da revolução industrial, e a educação como teoria do capital humano ou intelectual.
Contudo, o papel de ambas não constitui as únicas contratendências que atuam até certo ponto
impedindo o colapso. O caráter cada vez mais estratégico da luta de classes entre capital e
trabalho, sob as condições do intelecto geral e do conhecimento social geral, também projeta-
se sobre o movimento da acumulação do capital, isto pode ser observado nas mudanças do
método fordista ao toyotista que acompanham a mudança de teorias econômicas que dirigem
o sistema do capital; do paradigma teórico liberal para o keynesiano (inspirado no debate
sobre os esquemas de reprodução em Marx, sobretudo, no modelo de Bauer que serviu de
base à aplicação macroeconômica do marginalismo keynesiano), e deste ao neoliberalismo, à
queda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, ao fim da guerra-fria.
A teoria keynesiana atuou como contratendência ao colapso durante a
depressão dos anos 20 e 30, passou à política oficial com o tratado de Bretton Woods, de
1944. Porém, em cerca de duas décadas e meia conduziu a economia mundial ao limite de
expansão e à crise no início da década de 1970; esgota-se o crescimento, os salários e os
custos com o petróleo esmagam os lucros, os Estados Unidos rompem com o tratado de
paridade dólar-ouro. Desde então, a tendência ao colapso tornou-se uma constante no sistema,
embora de forma intermitente. A subjetividade das massas se apresenta na resistência ao
paradigma neoliberal, por parte dos trabalhadores e demais setores partícipes do pacto em
torno do Estado de Bem-Estar Social, cresce as forças antineoliberais chegando aos governos
em vários países, principalmente na América Latina. Porém, não impedem que o
neoliberalismo cumprisse seu desiderato econômico e político e rapidamente se consumasse
na crise do final da década de 1990, encerrando o ciclo de globalização fundado na
denominada revolução informacional.
A pesquisa demonstrou por meio de várias estatísticas e gráficos o caráter
orgânico da crise, tais como, o gráfico elaborado pelo FMI da evolução do PIB mundial e o
dos países avançados e emergentes de 1980 a 2015; o gráfico sobre o comportamento da taxa
de juros considera que esta constitui apenas uma fração dentro da taxa de lucro, assim como
esta última é apenas uma fração dentro da taxa de mais-valia, logo, se a taxa de juros tende a
zero isto implica que o lucro e a mais-valia estão comprimidos, o que é válido também para a
correlação inversa. Estes dados demonstram ainda que durante o momento mais duro da crise
393
em 2009 foram os países emergentes que garantiram o PIB mundial positivo e as taxas de
juros altíssimas para transferir os lucros ao capital financeiro nos centros capitalistas. O
gráfico da formação bruta do capital fixo mostra a composição orgânica do capital entre os
países avançados e emergentes, indicando a impossibilidade de crescimento do capital fixo
nos países de alta composição orgânica, inferindo-se deste fato a perda total de efetividade do
paradigma de valor, do tempo de trabalho socialmente necessário, nestes países.
A crise transcende, assim, a organicidade da acumulação, chega à ciência e à
educação entre outros setores sociais e adquire aspecto de crise de transição do modo de
produção, posto que a mudança qualitativa da relação capital/trabalho implica uma nova
reconfiguração das classes sociais e da luta de classes que exige da análise marxista um novo
enfoque na determinação de suas características e tendências principais. Nesta nova
perspectiva, o problema colocado pela crise é o processo de erosão do paradigma de
mensuração do valor – o quantum de tempo de trabalho socialmente necessário – dado que as
transformações na composição técnica e orgânica do capital (substituição do trabalho vivo
pelo trabalho morto ou objetivado) desenvolve-se tendencialmente na lógica negativa e
destrutiva da propriedade fundamental do conceito de valor, que é o trabalho vivo. Este
fenômeno é facilmente comprovado na atualidade. Jeremy Rifkin (1995), no livro O Fim dos
Empregos, afirmou que dentro de 100 anos ¼ da força de trabalho mundial seria necessária
para produzir todos os bens necessários para a humanidade. Em 1995, este autor contou 800
milhões de desempregados e subempregados; em 2004, este número havia subido para 1
bilhão. Tomando por base a sociedade americana, em que as fábricas de 1980 a 1990 cortaram
80% da força de trabalho, afirmou que 11% dos empregos são eliminados no mundo a cada
sete anos.
Marx, brilhantemente, há mais de um século e meio, havia identificado esta
tendência da substituição do homem pela máquina no modo de produção capitalista, e
baseado neste fato, que se faz notório na alta composição orgânica do capital atualmente,
previu com precisão a nova contradição presente no paradigma de mensuração do valor, o
tempo de trabalho, entre o tempo necessário e o tempo livre da sociedade. Contradição esta
que Marx passa a problematizar da seguinte forma nos Grundrisse:

Tal como vimos, o aumento da força produtiva do trabalho e a máxima negação do


trabalho necessário são tendências necessárias do capital. A realização desta
tendência é a transformação do meio de trabalho em maquinaria. Na maquinaria o
394
trabalho objetivado se enfrenta materialmente ao trabalho vivo como poder que o
domina e como subsunção ativa do segundo sob o primeiro (MARX, 2009. v. 2, pp.
219-220).

Porém, Marx desenvolve esta proposição a partir de uma abstração em torno da


tendência do emprego do capital fixo no processo de produção. Seu fundamento, a dialética
das revoluções tecnológicas na indústria, segue as três partes que compõem a máquina
(máquina ferramenta, máquina motor e máquina de transmissão e controle) até chegar à ideia
do autômato “inteligente”, o “Leviatã industrial”, cuja análise mais atual, do ponto de vista
marxista, é apresentada nos trabalhos de Santos (1983, 1987). Em O Capital, Marx dirige sua
análise sob o foco da mais-valia relativa para outro aspecto, o de que “a grande indústria por
uma questão de vida ou morte”, devido às “suas próprias catástrofes”, é obrigada a reconhecer
a “mudança dos trabalhos (como lei natural)” e a “polivalência dos trabalhadores” (“como lei
geral e social”), tema abordado com maior atualidade no trabalho de Frigotto (2001, 2010)
relativo à educação, capaz de “substituir a monstruosidade de uma miserável população
trabalhadora em disponibilidade, mantida em reserva para as mutáveis necessidades de
exploração do capital, pela disponibilidade absoluta do homem para as exigências variáveis
do trabalho” (MARX, 1988, pp. 89-90), o que se desdobra no processo de acumulação de
capital e na lei geral da acumulação capitalista; enquanto que nos Grundrisse, Marx
aprofunda a tendência à erosão do paradigma de valor:

Na mesma medida que o tempo de trabalho – o mero quanto de trabalho – é posto


pelo capital como único elemento determinante, desaparecem o trabalho imediato e
sua quantidade como princípio determinante da produção – da criação de valores de
uso – na mesma medida, o trabalho imediato se vê reduzido quantitativamente a uma
proporção mais exígua, e qualitativamente a um momento, sem dúvida,
imprescindível, porém, subalterno frente ao trabalho científico geral, à aplicação
tecnológica das ciências naturais por um lado, e por outro frente à força produtiva
que aparece como dom natural do trabalho social (ainda [que seja na realidade, um]
produto histórico). O capital trabalha, assim, em favor de sua dissolução como
forma dominante de produção (MARX, vol 2, pp. 220-221).

Este sucessivo processo de negação do trabalho necessário pela maquinaria


transformou o papel da ciência e da técnica condensada no capital fixo, no dinamismo do
processo de produção. A economia do trabalho vivo com a máxima aplicação de tecnologia –
trabalho objetivado – traduz-se em alta composição orgânica do capital e baixo valor das
mercadorias produzidas, em consequência, a escala de acumulação do capital exige o
paroxismo da produtividade e da produção social para manter o volume do valor (mais-valia)
395
já existente, figurando no pensamento a imagem análoga a dos custos de produção nos solos
esgotados da terra na teoria dos rendimentos decrescentes de Ricardo (MARX, 1986, Livro
III, Volume V, pp. 151-152), ou o que não é outra coisa senão a imagem dos estados
estacionários em Smith. Nestas circunstâncias, o que se vê na superfície da crise geral –
superprodução, pletora de capital monetário e apreciação das mercadorias – encontra uma
nova explicação objetiva na contradição entre composição orgânica do capital e a expressão
desdobrada de valor: valor de troca (dinheiro) e valor de uso (mercadoria) tensionadas pelo
declínio da taxa de lucro:

O roubo do tempo de trabalho alheio, sobre o qual se funda a riqueza atual, aparece
como uma base miserável comparada a este recente fundamento, criado pelo
desenvolvimento da grande indústria mesma (MARX, 2009, Vol II, pp. 227-241,
passim).

Esta abstração de Marx aparenta uma contradição com sua definição anterior
de crise geral: “superprodução promovida pelo crédito e pela inchação geral dos preços, que
a acompanha”. Mas, tal contradição se desfaz quando entendemos aquela definição como
características superficiais das propriedades essenciais da crise. A teoria de Marx demonstra o
quanto é irracional a tentativa de superar a crise através do emprego da ciência e da tecnologia
– capital constante – como se comprova por sua crítica a Lauderdale (p. 586), pois é a própria
ciência e tecnologia aplicada em absoluto, sob o modo de produção capitalista, a principal
responsável pela erosão do paradigma do tempo de trabalho necessário ou valor de troca do
valor de uso e riqueza social. O mesmo se aplica para as medidas de política monetária (taxa
de juros e câmbio), na verdade, como diz Marx, elas podem causar mais danos do que superar
o problema (MARX, 1986, Livro III, Volume V, p. 28). Na formulação do autor a questão é
insolúvel, porque se trata de uma nova contradição fundamental que passa a dinamizar o
processo de produção, entre o tempo de trabalho socialmente necessário à (re)produção social
(atual paradigma de mensuração do valor) e o tempo livre social (além do trabalho necessário)
que se apresenta como novo paradigma de valor, acentuando os efeitos da lei geral da
acumulação quanto mais avança o domínio do capital fixo, ou seja, o emprego da ciência e da
tecnologia na composição do valor.
Portanto, o avanço do domínio da ciência e da educação ou intelecto geral da
sociedade no processo produtivo não se trata de uma mudança na categoria trabalho, da forma
material em “imaterial”, que Hardt e Negri (2012, pp. 149-150) argumentam em defesa do
396
conceito de “multidão” em lugar do conceito de classes sociais e da luta de classes, formulada
por Marx; ou do que denominou Mandel (1996) de “Nova Economia” em seu artigo na revista
Business Week denominado The Triumph of the New Economy – A powerful payoff from
globalization and the Info Revolution (“O triunfo da Nova Economia – Uma poderosa
recompensa da globalização e da revolução da informação”). Marx, no Livro IV de O Capital,
já debatia com todas estas formulações vulgares, especialmente nos temas do trabalho
produtivo e improdutivo:

O produto do trabalho intelectual – a ciência – é sempre muito inferior a seu valor,


porque o tempo de trabalho necessário para sua reprodução não guarda proporção
alguma com o [trabalho] exigido para sua criação original. Por exemplo, qualquer
jovem no colégio pode aprender em uma hora a teoria dos binômios (MARX, 1980,
v. 1, p. 327, tradução do autor).

Na verdade, o que se trata é a passagem da lei geral da acumulação ao domínio


da lei do valor, a medida que as contratendências que atuam na mediação desta relação
perdem sua força ou passam a atuar no sentido contrário, como nos casos da ciência e da
educação, tornando a lei do valor a condição dominante imediada do sistema do capital. Este
fato demonstra toda a irracionalidade da burguesia e seus intelectuais de plantão quando
tentam criar artifícios para mensurar, por intermédio do tempo necessário (valor de troca), a
biblioteca de saber teórico e prático da sociedade humana construída historicamente. Aqui, se
apresenta um paradoxo posto que a própria medida pressupõe seu objeto de mensuração,
portanto, o roubo de força produtiva social da ciência e da educação como propriedade
capitalista. Quiçá, seja necessária uma nova história da acumulação primitiva para adicionar
ao roubo dos meios de produção materiais (terras e instrumentos do trabalho), também o
roubo do intelecto geral até então constituído.
Na verdade, com a medida de tempo de trabalho necessário (ou valor de troca)
não é possível mensurar o valor do tempo de trabalho empregado pela humanidade para
constituir o intelecto geral da sociedade (valor de uso). Em tese, a mensuração possível é pelo
seu contra valor de troca: o tempo livre social, isto é, que toda pessoa individual, singular,
deve dispor para além do trabalho imediato. Contudo, a estreiteza do paradigma de valor do
tempo necessário do capitalismo ao reduzir esta força produtiva social (a ciência e a
educação) à dimensão de propriedade privada, se por um lado impede a mudança do
paradigma de valor de se mensurar pelo tempo disponível social, por outro, alavanca o
397
processo de crise geral à dimensão global e insustentável, independente da vontade das
classes sociais, à medida que faz avançar o controle (poder) da ciência (do intelecto geral)
sobre a produção social.
Eis assim o novo nível de tensão que surge das relações de classes
desenvolvidas nos países que chegaram ao imperialismo capitalista cujo gigantesco sistema de
máquinas, conformado em monopólio (ou oligopólio) global e multifacetado que intermedeia
as relações metabólicas diretas e indiretas entre o homem e a natureza:

A natureza não constrói máquinas, nem locomotivas, estradas de ferro, telégrafos


elétricos, selfacting mules, etc. São estes produtos da indústria humana; material
natural, transformado em órgãos da vontade humana sobre a natureza ou de sua
atuação na natureza, são órgãos do cérebro humano criados pela mão humana; força
objetiva do conhecimento. O desenvolvimento do capital fixo revela até que ponto o
conhecimento ou knowledge social geral, se converteu em força produtiva imediata
e, portanto, até que ponto as condições do processo de vida social mesmo, entraram
sob o controle do general intellect e remodeladas conforme o mesmo. Até que ponto
as forças produtivas sociais são produzidas não somente na forma do conhecimento,
mas como órgãos imediatos da prática social, do processo vital real (MARX, 2009,
Vol II, pp. 229-230).

Vê-se assim que Marx indica como desdobramento inevitável da tendência à


erosão do paradigma de valor a tomada de consciência por parte dos sujeitos históricos de que
ele mesmo é o principal responsável pela construção do gigantesco edifício do capital, e que
assim como foi capaz de construir é capaz também de pô-lo abaixo, e o que concorre
objetivamente para este fato é como afirma o próprio Marx: “a diminuição do tempo
necessário para aumentar o excedente, criando o tempo disponível, torna o próprio capital a
contradição. (…) as condições materiais para fazer essa base saltar pelo ar.” (p. 241,
passim).
No concernente à ciência, esta tese partiu da reafirmação do caráter ontológico do
trabalho na constituição do homem, fundamento que não se limita à conformação de nosso ser
social, abarcando inclusive a especiação biológica do homo sapiens. Através do trabalho os
humanos se diferenciaram dos outros seres vivos, o que leva à criação de uma segunda
natureza e ao surgimento de uma segunda história.
O desenvolvimento das forças produtivas ocorre em todos os modos de produção
em que há reprodução ampliada, mas é no capitalismo que a indústria moderna, a maquinaria,
produto do trabalho científico faz aumentar “extraordinariamente a produtividade do trabalho
mediante a incorporação de monstruosas forças da Natureza e das ciências naturais ao
398
processo de produção” (MARX, 1988, Livro 1, v. 2, p. 15).
A máquina como categoria da crítica da economia política deve ser compreendida
não apenas como um armazenador de trabalho vivo, a ser dispendido em um próximo ciclo
produtivo, mas como catalisadora da Lei Geral da Acumulação Capitalista, responsável pela
passagem da subordinação formal à subordinação real do trabalho ao capital. Ela é a forma
mais adequada ao capital fixo, que por sua vez é a forma do capital em geral mais favorável à
classe capitalista, pois aparece como força exterior ao trabalhador, subsumindo-o.
A Revolução Industrial, que marca a ascensão da relação-capital como dominante
por todo o planeta, ocorre na medida em que os diferentes elementos do trabalho humano, de
seu próprio corpo, são objetivados em máquinas. As três partes da maquinaria (máquina-
ferramenta, máquina-motriz e mecanismos de transmissão e controle) se desenvolvem em
cursos lógicos distintos, mas que se interpenetram e se condicionam. Essa concepção presente
em Marx, permite identificar na Revolução Industrial três fases nas quais cada uma das três
partes da maquinaria assume o polo mais dinâmico do desenvolvimento geral. Na primeira
fase da Revolução Industrial a máquina-ferramenta é responsável por uma primeira alienação
entre o trabalhador e o metabolismo da produção manufatureira. Na segunda fase o modo de
produção capitalista abarcou todo o globo ao se beneficiar da energia disponibilizada pela
revolução na máquina-motriz.
A terceira fase, gestada em um período de manifestação da crise do capital e de
conflagração mundial, aponta para a completação da Revolução Industrial, ao implementar a
automação em todos os ramos produtivos. Potencialmente está aberta à possibilidade aventada
por Marx nos Grundrisse, de que o trabalho científico substitua o trabalho manual e que o
trabalhador coletivo opere cada vez mais através do intelecto geral. Essa transformação tem
profundas implicações sobre o paradigma do valor-trabalho, que se tornou estreito para
mensurar a riqueza produzida pela grande indústria. Contudo, como aponta Santos (1983,
1987), as relações de produção, na presente fase monopolística, personificadas no capitalista,
buscam, com todas suas forças, frear esse processo não apenas segurando tecnologias, mas
fraudando artificialmente a lei do valor.
Neste momento, o desenvolvimento científico, que antes havia sido fortemente
impulsionado pelas necessidades do capitalismo em expansão, passa a ser restringido e
deformado. A ciência, que assim como a mercadoria tem uma natureza dual, passa a responder
à crise do paradigma do valor. O valor de troca da ciência, seu emprego por aqueles que a
399
detém, se desprende de seu valor de uso, seus objetivos teleológicos anunciados.
Dado que na terceira fase da revolução industrial a ciência se tornou um ramo da
produção, ao instaurar-se uma crise na ciência ela se reflete, por sua vez, em uma crise da
produção científica. Buscamos delinear esse processo apresentando alguns problemas como o
do alto índice de irreplicabilidade de experimentos, a falta de cuidado com efeitos colaterais,
as distorções causadas pela ação dos monopólios como competição entre grupos e
direcionamento de investimentos, a não publicação de resultados negativos (dilema de
Cordélia), a remendagem de emendas (curva de Phillips), entre outros.
Os investimentos de capital não encontram mais correspondência com os
resultados obtidos e, no caso das Ciências Econômicas, as crenças ideológicas de seus
produtores se sobrepõe a qualquer método científico considerado, quando estes não partem de
uma concepção declaradamente irracionalista, configurando-se uma crise paradigmática. As
contratendências aplicadas contra a crise não se resumem às guerras e destruições, que levam
à morte milhões de seres humanos, pois isso representa a destruição de incomensurável
quantidade de capital na forma da força produtiva mais importante, o trabalhador. Desta
forma, a crise do capital não representa uma transição pacífica a um modo de produção
superior, sem uma revolução social ela leva a um aumento da violência das classes
dominantes para se manterem no poder.
Destaca-se da pesquisa sobre a educação que a concepção de capital humano
de Schultz serviu à mudança de paradigmas econômicos decorrentes do esgotamento do
modelo keynesiano; como aponta Frigotto, o resultado dos paradigmas neoliberais sobre a
educação, passando do taylorismo à “acumulação flexível” (2010, pp. 86-87). A educação
considerada investimento individual das pessoas em si mesmas com o objetivo de auferir
lucros maiores no futuro, desloca a intervenção do Estado, característica do keynesianismo, e
passa a envolver o sistema financeiro como solução neoliberal para o problema do consumo
dos países desenvolvidos que enfrentavam o fim da fase de prosperidade do ciclo econômico
ampliada pelo estado de Bem-Estar Social no pós II Guerra Mundial. Nesta perspectiva, a
mercantilização do ensino responde aos interesses do capital nos níveis de mediação,
apontados por Frigotto, num primeiro plano mais imediato, ampliando a oferta e procura de
novas mercadorias através da privatização da mesma; segundo, “pinçando” ou diferenciando a
força de trabalho através da qualificação, designando indivíduos a tarefas de gerência,
serviços, inteligência ou ao desemprego e miséria; terceiro, postergando a entrada de jovens
400
ao mercado de trabalho saturado incapaz de absorvê-los.
Porém, ao considerar o quadro de crise dessas economias da perspectiva de
uma concepção de crise estrutural e não apenas cíclica, revela-se uma dinâmica oculta que
envolve diversas contratendências utilizadas pelos países cujas economias encontram-se na
situação onde o paradigma de mensuração de valor, através do tempo de trabalho socialmente
necessário, perdeu sua vigência. A teoria do capital humano serve como medida para tentar
manter esse paradigma atuante ao, contraditoriamente, burlar essa mesma medida.
Há uma parte visível desta dinâmica em que a educação como mercadoria afeta
positivamente a renda nacional ao aumentar o consumo de uma força de trabalho que recebe
os “salários não-recebidos” em forma de empréstimos. O aumento da demanda efetiva é uma
contratendência à queda da taxa de lucros quando, perante a incapacidade de realização, o
capital fictício amplia ainda mais a separação entre compra e venda, adiantando esta sem
resolver o problema, apenas postergando-o. A crise da dívida dos estudantes universitários nos
Estados Unidos hoje, que ultrapassou a soma de um trilhão de dólares em 2014 (ROSSI,
2015, 00:24:46; FEDERAL RESERVE OF NY, 2014) e a dívida dos cartões de crédito,
permitiram que a crise econômica nesse país se dilatasse ainda mais, lançando sobre os jovens
o peso dessa medida desesperada para evitar o colapso do sistema. Para além dessa
constatação, no interior da relação capital-trabalho, isso tem implicações de natureza mais
profunda, pois representa contraditoriamente um investimento em capital variável, ou seja,
um freio ao aumento na composição orgânica do capital que se dá fora da esfera da produção.
O conceito de salários não-recebidos apresentado por Schultz em O valor
econômico da educação é elucidativo; não é casual que o autor teve o cuidado de alterá-lo em
seu trabalho posterior O Capital Humano (1973) por “rendimentos previamente estabelecidos
ou renda prévia” (p. 46). Aumento de salários em momento de crise cíclica aparenta
contrassenso, porém, é a expressão real do que concluiu Grossmann como única possibilidade
para o capital: “o sistema tem que colapsar ou as condições especificadas para o sistema
devem ser violadas” (GROSSMANN, p. ). Porém, compreender as possíveis consequências
de um aumento em capital variável, ou seja, aumento nos salários, implica analisar suas
consequências a partir da indagação que Schultz evitou: quem arca com os custos? As leis de
financiamento federal e estadual para a educação superior dos Estados Unidos decretadas na
década de 1960 por Johnson, foram revogadas por Ronald Reagan, um dos principais
expoentes do neoliberalismo, enquanto governador da Califórnia, na década de 1970 e
401
presidente dos Estados Unidos em 1984, justamente sob o argumento de que, sendo um
investimento cujo benefício é individual e privado, os próprios indivíduos deveriam pagar por
ele (ROSSI, 2015, 00:41:47).
Ao retomar o modelo que nos oferece Marx em seus esquemas de reprodução,
examinados por Grossmann, podemos observar a relação matemática que explica como
funciona essa contratendência internamente à produção. Considerando a taxa de mais-valia
m/v, a causa principal da tendência ao colapso explica que, ainda que aumente o capital
variável através da qualificação e complexificação do trabalho acompanhada pela
incorporação da ciência e da técnica ao capital produtivo e consequente aumento da
produtividade, essa proporção tende a diminuir, implicando redução na massa de mais-valia a
largo prazo. Porém, a teoria do capital humano significa uma alteração dessa dinâmica, pois
ao aumentar o investimento em capital variável sem um aumento na taxa de exploração do
trabalho, resulta em um aumento na massa de mais-valia. A escalada da inflação e as
variações unilaterais aplicadas pelo governo dos Estados Unidos são as medidas econômicas
paralelas que coroam a efetividade desse subterfúgio neoliberal.
As novas teorias transfiguradas do capital humano, a teoria do capital
intelectual, cognitivo, a teoria do trabalho imaterial, entre outras, naturalmente não são
aspectos estranhos ao processo histórico da teoria marxista e ao próprio Marx, que já
combatia as tentativas de eternização do capital na introdução aos Grundrisse, como se segue:

Um exemplo. Nenhuma produção é possível sem um instrumento de produção,


ainda que este instrumento seja somente a mão. Nenhuma é possível sem trabalho
passado, acumulado, ainda que este trabalho seja somente a destreza que o exercício
repetido desenvolveu e concentrou na mão do selvagem. O capital, entre outras
coisas, é também um instrumento de produção, é também trabalho passado
objetivado. De tal modo, o capital é uma relação natural, universal e eterna; porém
só é se eu deixo de especificar, o que faz de um “instrumento de produção”, do
“trabalho acumulado” um capital (MARX, 2009, v. 1, p. 5).

A presente pesquisa identifica todas estas teorias como tentativas de


eternização do capital, na medida em que tentam violar as leis do próprio capital que se
opõem ao capital. Estas, como demonstrou o trabalho de Frigotto, se apoiam na denominada
revolução informacional, sociedade do conhecimento, sociedade pós-industrial, como ponto
de viragem dos conceitos de capital e trabalho, o mesmo que alegou Schultz ao tempo da
formulação de sua teoria do capital humano. Desta maneira, uma teoria que explique o
crescimento do consumo, que os conceitos de capital e trabalho não explicavam, considerados
402
resíduos, era bem-vinda para justificar a intensificação da exploração do capital no próprio
país e as diferenças salariais, entre brancos, negros e latinos, homens e mulheres e, sobretudo,
abrir um campo para o investimento do capital financeiro e o avanço da educação privada em
todos os níveis. A teoria do capital humano atende a todos estes aspectos, tudo passar a ser
explicado pelo investimento em capital humano, isto é, os custos da educação que os
familiares dos estudantes arcam sem contabilidade na renda nacional. Isto, sem dúvida,
ofuscou sua verdadeira intencionalidade: ampliar a taxa de mais-valia e de lucro capitalista e
neutralizar a tendência decrescente da taxa de lucro, que já estava plenamente visível ao
período em que Schultz é agraciado com o Prêmio Nobel:

Não obstante, sem qualquer mutação técnica, havia uma estrutura de capital que
consistia de mais de uma forma de capital. Todavia, afirma-se que “… o puro
modelo de Adam Smith é consistentemente levado a seus termos pela suposição de
que a única forma de capital é o capital de circulação”. Exceto pela introdução
explícita dos rendimentos decrescentes concedidos à terra, Ricardo segue
estritamente a análise de Smith e, desta forma, “temos o mesmo confinamento ao
capital de circulação e a mesma homogeneidade de capital”(SCHUTZ, 1973, p. 30).

Este economista, a exemplo da plêiade de teóricos patrocinados por grandes


grupos monopolistas internacionais para formularem teorias distorcidas, pseudoteorias e
discursos apologetas ao capital, sem o menor pudor, já justificava sua formulação perante a
crítica marxista, alegando:

A inevitabilidade histórica do progresso tecnológico não constituía parte da teoria de


Marx que sacudiu a complacência dos economistas, embora essa parte particular
tornou-se crescentemente relevante no campo do moderno crescimento econômico.
[…] não há escassez de modelos econômicos para lidar com a mutação técnica. O
menos útil é uma família de modelos que introduz as mudanças técnicas como uma
tendência variável (SCHULTZ, 1973, p. 24).

Schultz e a teoria do capital humano são arquétipos dos teóricos que agora
esgrimem a formulação de Marx nos Grundrisse em torno do general Intellect e do
knowledge social geral, como o império da subjetividade e base conceitual do que denominam
revolução informacional, sociedade pós-industrial, pós-moderna, trabalho imaterial,
capitalismo cognitivo, sociedade do conhecimento, terceira revolução industrial, para
fundamentar teorias que tentam incorporar a produtividade social geral, desenvolvida até
então pelas forças produtivas do trabalho no capitalismo, em que a ciência e a educação
tornam-se agentes protagonistas atuando na organicidade do capital e composição-valor, o
403
capital constante e capital variável, na clara tentativa de justificar, através da burla científica
do marginalismo econômico, a burla histórica da velha conhecida troca desigual.
As novas teorias, como a anterior, também reivindicam as transformações
tecnológicas e mudanças na sociabilidade geral dos agentes de produção, trabalhadores e
capitalistas, para incorporarem seus contrabandos aos conceitos de capital, trabalho e valor;
ao primeiro, abarcando a ideia de que o ser humano em sua integralidade pertence ao capital
como nos tempos coloniais reconhecia-se a origem das pessoas pelos sobrenomes dos
senhores escravocratas ou dos feudos; a ideia de capital humano é a ideia de aprisionamento
da humanidade à propriedade do capital, a ideia de capital intelectual é a ideia de
aprisionamento do intelecto geral ou knowledge social geral à propriedade do capital:

O desenvolvimento do meio de trabalho como maquinaria não é fortuito para o


capital, mas que é a metamorfose histórica do meio de trabalho legado pela tradição,
transformado em adequado para o capital. A acumulação do saber e da destreza, das
forças produtivas gerais do cérebro social, é absorvida assim, com respeito ao
trabalho pelo capital e se apresenta, portanto como propriedade do capital, e mais
precisamente do capital fixo – na medida que este ingressa como verdadeiro meio de
produção ao processo produtivo (MARX, 2009, pp. 219, 220 e 221).

Mas se a propriedade sobre o geral também é sobre o particular, o individual; a


ideia da redução da totalidade da vida material ao sistema de linguagem binária ou melhor
dizendo, linguagem de máquina, revela o absurdo da colonização do ser pela consciência
atrofiada às combinações do sim e do não, ou do um e do zero, que justificam a força do
aparato de comunicação sobre os sujeitos históricos e sua subjetividade geral.
Neste contexto a violação da lei do valor, mensurando o valor da ciência e da
educação incorporado, direta e indiretamente, ao processo de produção, faz da teoria
econômica mero charlatanismo (RIFKIN, 2012, pp. 219, 223 e 233), pois na essência o capital
age como aquele ridículo e retrógrado especulador que valoriza seu capital pelo
desenvolvimento do capital em geral que pressupõe a existência do seu capital, cujo exemplo
mais simples se encontra no especulador imobiliário: da mesma forma age o capitalista atual
em relação aos preços de seus produtos: quanto maior o desenvolvimento da ciência e da
educação em geral, do desenvolvimento das relações de intercâmbio e cooperação sociais que
atuam como condições indiretas sobre sua produção, maior a especulação quanto ao valor de
seus produtos, o superlucro do qual participa abandona a esfera do trabalho por tempo,
embora seja esta medida a que toma para estabelecer seu preço especulativo. A educação, a
404
exemplo da ciência, como explicou Marx em O Capital, nos Grundrisse e nas Teorias da
Mais-Valia, embora possa ser objeto de produção de mais-valia, seu verdadeiro valor nunca
poderá ser mensurado em tempo social, posto que incorpora um tempo histórico
incomensurável na formação do intelecto geral e no desenvolvimento do conhecimento social
geral da humanidade, com suas continuidades, descontinuidades, rupturas, saltos e regressões.
A educação, mesmo agrilhoada pela ciência cativa do capital e à produção, deve
superar sua dilaceração e reclamar sua unidade congênita com a ciência, do mesmo modo que
o operário, que produz seu próprio produto como capital que o oprime e subsume, deve
reclamar sua unidade com sua própria objetivação como trabalho. Em ambos os casos, a
trajetória para solucionar a contradição está umbilicalmente ligada: a unidade entre educação
e ciência, assim como a unidade entre operário e sua objetivação, exigem a luta direta pela
revolução social. A crise de paradigma da educação é a crise de paradigma da ciência, e a
crise de ambas, a própria crise da relação capital em sua organicidade e composição-valor. A
resolução encontra-se no outro do capital, no outro da ciência, no outro da educação: nos
trabalhadores e massas oprimidas em todo o mundo.
A proposição prática e teórica da presente pesquisa para contribuir com a
verdadeira superação da crise de paradigma da educação é entendê-la como crise da
organicidade do capital e como tal é necessária a luta de classes, particularmente, na teoria e
na prática educacional com o objetivo da revolução social. Nestes termos, a educação deve
seguir o caminho histórico das grandes revoluções no conhecimento: a formação de núcleos
experimentais de formação e formulação pedagógica estratégica, que resista às investidas do
capital de destruição da escola e da universidade como o espaço de domínio público,
conquistado a sangue, nervos e cérebro, dos setores mais comprometidos com a causa comum
da humanidade, articulados à luta histórica dos trabalhadores e classes oprimidas pela
liberdade; e repensar a pedagogia sob o paradigma do tempo livre como objetivo estratégico
de uma sociedade de igualdade e justiça comum, a pedagogia revolucionária, em que o papel
da educação, em sua unidade de ensino/aprendizagem e pesquisa/interação, seja o pleno
domínio social do conhecimento geral ou do intelecto geral.
Cento e cinquenta anos depois, a sociedade humana, o capital, a ciência e a
educação encontram-se diante de um cenário, em tese muito próximo desta projeção de Marx,
mesmo os autores antimarxistas e teóricos contumazes do capital lançam mão da palavra de
ordem sociedade do conhecimento, economia da informação, na tentativa desesperada de
405
naturalizar e eternizar relações históricas resultantes da invenção humana. Mas, a crise
orgânica do capital, que desestrutura o paradigma da relação de valor em que se funda o
próprio capital, indica o cantar do galo gaulês para toda a estrutura de valores assentada neste
paradigma e cada vez mais faz crescer a consciência social de que é o próprio capital o grande
obstáculo à realização humana. A crise é o toque de alvorada da ciência e por sua vez da
educação; os trabalhadores, a verdade prática das mesmas; libertando o trabalho do capital,
liberta-se a humanidade do trabalho imediato, para viver o mundo do paradigma do tempo
livre como riqueza social, vislumbrado desde humanistas e utopistas, mas de fato possível no
socialismo, enquanto ciência e educação revolucionárias como predisseram Marx e Engels. O
Brasil para mudar o seu devir histórico, sob os paradigmas que dominam a sociedade em
geral, a ciência e a educação, necessita repensar seu caminho pedagógico como meio e
finalidade da educação.
Por que Esperar pelo Super Homem? Ou construir uma Torre de Marfim? Com
base em fundamentos teóricos em Marx, Engels, Lênin e autores contemporâneos, dados
empíricos de organismos internacionais, como UNESCO, BIRD, FMI, IBGE e outros;
considerando ainda as abstrações conceituais e relações lógicas e históricas desenvolvidas e
argumentadas cuja base real e concreta é a crise do capital que se manifesta nos países do
capitalismo avançado (EUA, União Europeia e Japão), esta tese sustenta que há mais que
evidências históricas, teóricas e empíricas das relações orgânicas entre a crise do capital na
economia, na ciência e na educação; que estas mesmas revelam que a crise de paradigmas
torna inextrincável uma solução para as mesmas; e nestas circunstâncias vive-se um período
extremamente sensível às mudanças, que exige o debate acadêmico e reflexão crítica da
realidade educacional no país, em relação aos seus fundamentos, aplicações práticas e
finalidades. Portanto, a proposição da formação de núcleos estratégicos ou experimentais
pedagógicos que desenvolvam modelos educacionais com base no paradigma do tempo livre
ou de mediações ao mesmo. Esta proposição pode não aparentar grande relevância, mas
manifesta a inquietude e resistência na luta pelo conhecimento, igualdade e realização
humana, que em muitos momentos históricos se apresentaram como alternativa de
comunidade de combate.
Assim, a pesquisa aponta também para um aprofundamento da temática e a crítica
que contribua com os esforços e propósitos das demandas da UNESCO (2010) ao Brasil
enquanto Pátria Educadora. No relatório que diagnostica os efeitos da crise econômica sobre
406
28
as metas educacionais instituídas em Dacar , a UNESCO sugere a relação visível entre crise
econômica e educação, sobre o viés do “entorno da educação”: redução de investimentos na
educação pelos governos, pobreza, desemprego, saúde e alimentação, etc, que afeta o sujeito
cognoscente (docente e discente). Contudo, deve-se observar também estas relações pelo seu
viés intrínseco às crises, ou seja, através dos paradigmas, que unem meios e fins da educação
e a própria atividade científica e educativa. O desprezo por estas relações intrínsecas entre os
conceitos de ciência e educação, subsumidas ao conceito de capital, como aponta esta tese,
poderá comprometer sumamente todo o esforço de atingir as metas globais da UNESCO, pois
se os paradigmas que fundamentam tais metas são simplesmente os que conformam o
processo educativo nos países avançados do capitalismo, em particular EUA, União Europeia
e Japão, mesmo que a todo momento explicite a desigualdade entre os países ricos e pobres,
como se pode observar em seu INFORME DE 2005, sobre a “Educação de Qualidade”, em
que o padrão é: “domínio de competências” em lugar de suficiência; atitudes, valores e
condutas cívicas, em vez de socialização e valores culturais do país; e assim por diante, ao
ponto de associar “domínio de competências” com “melhoria de renda” (UNESCO, 2005, pp.
1-3)29 O que se pode esperar desta qualidade de educação? Boas ilustrações são os
documentários Waiting for Superman (2010)30 e Torre de Marfim (2014).
O Brasil que hoje desponta como economia que compõe o denominado BRICS –
países de economias emergentes (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) – cuja trajetória
projeta, em termos de desenvolvimento econômico e social, seguir os passos dos países do
atual G-7, quiçá ultrapassar alguns destes, como especulam os futurólogos do plano inclinado,
deve considerar de fato até que ponto a dimensão do problema posto pela crise se apresentará
cedo ou tarde embotando seus esforços. Sobretudo, em termos da formação intelectual das
novas gerações de sujeitos históricos, que têm a tarefa de sustentar semelhante objetivo. Neste
aspecto é sobre a pedagogia, no sentido lato, que deverá ser encarado este desafio posto para a
sociedade, a ciência e a educação. O homem novo surgirá quando nas bases fundamentais de
formação da consciência social, na pedagogia stricto sensu, se libertar dos paradigmas
históricos de sua conformação: o servilismo (o método Brasilis e Ratio Studiorum) e
dependência (método pragmático-instrumental).

28
“Llegar a los Marginados”, UNESCO (2010)
29
“O Imperativo da Qualidade”, UNESCO (2005).
30
Autor e diretor do documentário Waiting for Superman, que retrata a realidade do sistema educacional atual nos
EUA.
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Filmografia

THE IVORY Tower: is college worth the cost? Dir. Andrew ROSSI. Produção: Participant
Media. EUA, 2015, DVD, 90 min.

WAITING for superman. Dir. Davis Guggenheim. Electric Kinney/Participant Media/


Walden Media. New York, EUA, 2010, DVD, 111 min. Disponível em:
<https://vimeo.com/67325868.>
419
APÊNDICE A - FAC-SÍMILE DE GÊNESE E ESTRUTURA DO CAPITAL DE KARL
MARX
420
APÊNDICE B - FÓRMULA MATEMÁTICA DE MODELO DE GROSSMANN

Segue abaixo uma explicação simplificada do modelo de Bauer, como foi


apresentado por Grossmann em seu livro La ley de la acumulación y del derrumbe del
sistema capitalista: Una teoría de la crisis (2004). Além das provas aritméticas e lógicas que
já foram dadas, segue abaixo em uma forma de apresentação mais genérica que evita valores
puramente arbitrários de um exemplo numérico concreto.

Significado dos símbolos:


c = Capital constante. Valor inicial = c0. Valor depois de j anos = cj
v = Capital variável. Valor inicial = v0. Valor depois de j anos = vj
s = taxa de mais valia (escrita como porcentagem de v)
ac = Taxa de acumulação de capital constante c
av = Taxa de Acumulação de capital variável v
k = Parte do consumo dos capitalistas
S = Massa de mais valia, sendo
Ω = composição orgânica de capital ou c/v
j = número de anos

S=

Sendo:
;

Fórmulas:
421
Depois de j anos, com uma dada taxa de acumulação ac, o capital constante c
atinge o nível:

Com uma dada taxa de acumulação av, o capital variável v atinge o nível:

No ano seguinte (j+1) a acumulação continua como usual, segundo a fórmula:

onde:

Para que k seja positivo (k > 0), é necessário que:


;

Se o ano n é o ano a partir do qual a parcela da mais-valia consumida pelos


capitalistas (k) deixará de ser suficiente, ou seja quando k = 0, então:

[Nota: Esta linha segue o original alemão Das Akkumulations- und


Zusammenbruchsgesetz des kapitalistischen Systems (zugleich eine Krisentheorie), porque
está errada na tradução condensada em inglês]

O momento da crise absoluta é dado no ponto em que a porção do consumo dos


capitalista desaparece completamente, bastante tempo depois de já ter começado a declinar.
Assim:
422

onde n =

Este é um número real enquanto s > av

A partir do ponto no tempo n, a massa de mais-valia S não é suficiente para


garantir a valorização de c e v sob as condições postuladas.
423
ANEXO A - CÓDIGO UTILIZADO PARA RODAR ESQUEMA DE BAUER

#linguagem utilizada python


# coding=utf-8
import matplotlib.pyplot as plt
import math

taxa_mais_valia = 1

class Tabela(object):
def rodar(self):
self.ano += 1
# A taxa de acumulação de capital constante em ambos os departamentos é de 10%
self.c = self.c + (self.c * 10 / 100)
# A taxa de acuulação de capital cariável em ambos os departamentos é de 5%
self.v = self.v + (self.v * 5 / 100)
# a massa de mais valia é o capital varíavel multiplicado pela taxa de mais-valia
self.m = self.v * taxa_mais_valia
#calculando o quanto de capital foi acumulado em cada setor e quanto foi transferido
self.depto2()
self.depto1()
#calcular as massas de ac e av
self.ac = self.c * 10 / 100
self.av = self.v * 5 / 100
# a parte do consumo dos capitalistas é o que resta da mais valia além da acumulação de
capital constante e variável
self.k = self.m - (self.ac + self.av)
print(self)

# Função para para calcular o quanto o Depto II acumula menos o que é transferido para
Depto I
def depto2(self):
self.c2 = self.c2 + (self.ac * (((2 * self.av - (self.ac * 10 / 100)) / (2 * self.av + self.ac))))
self.v2 = self.v2 + (self.av * (((2 * self.av - (self.ac * 10 / 100)) / (2 * self.av + self.ac))))
self.m2 = self.v2 * taxa_mais_valia
self.ac2 = self.c * 10/100 * self.v2 / self.v
self.av2 = self.v * 5/100* self.v2 / self.v
self.k2 = self.m2 - (self.ac2 + self.av2)

# Função para para calcular o quanto o Depto I acumula mais o que foi transferido do
Depto II
def depto1(self):
self.c1 = self.c - self.c2
self.v1 = self.v - self.v2
self.m1 = self.v1 * taxa_mais_valia
self.ac1 = self.c*10/100 - self.ac2
424
self.av1 = self.v*5/100 - self.av2
self.k1 = self.m1 - (self.ac1 + self.av1)

# Formatar a impressão de cada ano


def __str__(self):
print ("Ano %s" % self.ano)
print ("Depto1 c:%s v:%s k:%s ac:%s av:%s" % (round(self.c1), round(self.v1),
round(self.k1), round(self.ac1), round(self.av1)))
print ("Depto2 c:%s v:%s k:%s ac:%s av:%s" % (round(self.c2), round(self.v2),
round(self.k2), round(self.ac2), round(self.av2)))
print ("Total c:%s v:%s k:%s ac:%s av:%s" % (round(self.c), round(self.v),
round(self.k), round(self.ac), round(self.av)))
return ("")

#O código começa a rodar daqui


tabela = Tabela()
# inserir dados do ano 0
tabela.ano = 0
tabela.c1 = 120000
tabela.v1 = 50000
tabela.c2 = 80000
tabela.v2 = 50000
tabela.c = tabela.c1 + tabela.c2
tabela.v = tabela.v1 + tabela.v2
tabela.m = tabela.v * taxa_mais_valia
tabela.ac = 20000
tabela.av = 5000
tabela.k = 75000
tabela.ac1 = 10000
tabela.av1 = 2500
tabela.ac2 = 10000
tabela.av2 = 2500
tabela.k1 = 37500
tabela.k2 = 37500

#rodar a simulação por 40 vezes


print (tabela)
tabela.rodar()
425
ANEXO B - EQUÍVOCO NOS MODELOS

Há um equívoco de cálculo na soma total do capital constante no quarto ano, pois,


segundo o pressuposto de que a ampliação do capital constante deveria ser de 10%
anualmente e inclusive segundo o pressuposto do equilíbrio, no qual todo o produto anual do
departamento I é consumido no ano seguinte, essa soma deveria ser 266.200 (242.000 +
24.200). O total é erroneamente apresentado por Bauer é de 266.000, ainda que apareça
corretamente como 266.200 como valor do produto total do departamento I no terceiro ano,
como pode se observar na Imagem I abaixo tirada dos resultados de seu modelo e na Imagem
II, tirada dos resultados do modelo de Grossman.

Imagem I
Modelo de Baeur – Resultados

Fonte: BAUER, 1986, p. 96.


426

Imagem II
Modelo de Grossmann – Resultados

Fonte: GROSSMANN, 2004, p. 69

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