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Muçulmanos ao redor da Kaaba sagrada na Grande Mesquita de Meca, o local mais sagrado do Islã AFP
Imagens mostram o vazio, emocional e físico, provocado por um vírus que mudou a
maneira como enxergamos o mundo
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Para ajudar o leitor a navegar por essa série de esforços do pensamento, a Ilustríssima
apresenta este guia do debate, com um resumo do que cada um desses autores diz.
Angela, neta de Giuseppe Guardabasci, após ligar para os serviços de emergência para obter atendimento
médico para seu avô Andre Liohn
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Jean-Luc Nancy
No dia seguinte à publicação, o filósofo francês (autor de, entre outros, “Corpus”, no
qual aborda sua experiência de transplante de coração), respondeu ao colega
afirmando a gravidade da Covid-19.
O pensador, para quem a noção de comunidade é central, considerou que Agamben
falhava ao não perceber que a exceção já se tornou a regra no mundo atual, em que a
intervenção da técnica sobre todas as coisas atinge uma dimensão nunca antes vista.
Para ele, desconsiderar que o governo é apenas um executor do que é preciso ser feito
parece mais uma manobra diversionista do que uma reflexão política.
Roberto Esposito
Dois dias depois foi a vez do filósofo italiano, que também trabalha com o conceito
de estado de exceção em seus estudos sobre biopolítica, responder a seu conterrâneo.
O autor de “Categorias do Impolítico” (Autêntica) afirma ser um exagero falar em
riscos à democracia neste momento.
Esposito, porém, admite que o estabelecimento da emergência empurra a política para
procedimentos excepcionais que desfazem o equilíbrio do poder. Segundo ele, uma
crescente politização da medicina distorce as tarefas de controle social porque seus
objetivos não incluem mais indivíduos ou classes, mas segmentos de população
diferenciados por saúde, idade, sexo e até etnia.
“Parece-me”, escreve ele, “que o que acontece hoje na Itália, com a caótica e um
tanto grotesca sobreposição de prerrogativas estatais e regionais, tem mais o caráter
de uma decomposição dos poderes públicos que o de uma dramática contenção
totalitária”.
Pacientes de Covid-19 em UTI na Itália
Profissional da área médica com equipamentos de proteção e paciente de Covid-19 em UTI no hospital Oglio
Po, em Cremona, na Itália Flavio Lo Scalzo - 19.mar.2020/Reuters
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Giorgio Agamben
No dia 17 de março, o italiano voltou ao debate, mas sem mudar a postura. Segundo
ele, o pânico mostrou que a sociedade não acredita em nada além de “vidas nuas” e
que os italianos estão dispostos a sacrificar tudo para evitar ficarem doentes.
Agamben se pergunta no que as relações humanas se transformariam se nos
acostumássemos a viver assim, como se outros seres humanos fossem apenas
possíveis contaminadores. “O que é uma sociedade cujo único valor é a
sobrevivência?”, pergunta.
Os homens, acostumados a viver em permanente crise, não percebem que a vida foi
reduzida à condição biológica, perdendo suas dimensões social, política e emocional.
Uma sociedade em permanente estado de emergência, diz, não pode ser livre.
Sua preocupação é com o pós-pandemia, se, passada a emergência médica, os
experimentos que os governos conseguiram implementar se mantiverem e
continuarmos com escolas e universidades fechadas, sem encontros para debater
política e cultura, trocando mensagens virtuais e interagindo somente com máquinas.
Mortes por coronavírus na Itália
Caixões de pessoas mortas por Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, em crematório na cidade de
Serravalle Scrivia, na província de Alessandria, norte da Itália Flavio Lo Scalzo - 23.mar.2020/Reuters
O descrente
Alain Badiou
O filósofo francês, autor de “Em Busca do Real Perdido” (Autêntica), em que
questiona a compreensão do real apenas pela ciência e economia, escreveu no final de
março um artigo no qual se mostra descrente de uma grande mudança política após a
pandemia.
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Ele recusa a ideia de que estejamos vivendo algo inédito com o novo coronavírus,
apontando ameaças anteriores, como o HIV e a Sars. “É verdade que esses deveres
[como o de ficar em casa] são cada vez mais urgentes, mas, ao menos num exame
inicial, não requerem nenhum grande esforço analítico ou a constituição de um novo
modo de pensar”, escreve. Quanto às medidas tomadas pelos governos, são
simplesmente as necessárias nesta situação.
Para Badiou, o Sars-CoV-2 evidencia uma grande contradição contemporânea: a
economia está sob a égide do mercado global, enquanto os poderes políticos
continuam sendo essencialmente nacionais.
Cético quanto ao que alguns aventam como possibilidades políticas na atual crise, ele
percebe uma dissipação da atividade da razão que está levando a “misticismo,
fabulação, profecias e maldições” e que, no pós-pandemia, será preciso avaliar tais
perspectivas que acreditaram que algo politicamente inovador poderia surgir.
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‘Das Novas Espécies de Plantas, Glorianalia Coronavirilis’ (2020), aquarela sobre papel - Camila Rocha
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Ruas vazias em Wuhan, na província de Hubei, epicentro do coronavírus Emilia/Reuters
Entre as províncias com mais de 100 casos registrados estão regiões industriais,
plataformas de comércio exterior, polos agrícolas e centros financeiros
Sociedade do medo
Frank Furedi
Nascido na Hungria e professor da Universidade de Kent, na Inglaterra, o sociólogo e
autor de “Politics of Fear” (política do medo) tem escrito diversos artigos sobre a
Covid-19 na revista online Spiked.
No final de janeiro, Furedi alertava para que a reação à doença não fosse extrema,
dizendo que neste século já vimos o surgimento de outros vírus e que já começavam
as teorias da conspiração e o apontar de dedos em busca de culpados.
Em texto de meados de março, ele trata de como a pressão para que políticos ajam de
forma a aquietar a opinião pública pode impedir que as melhores decisões sejam
tomadas. Mas não são os governos, e sim as comunidades, diz ele, que asseguram que
a dor e o sofrimento sejam minimizados.
Em “Um Desastre sem Precedentes”, de 20 de março, Furedi aborda os impactos do
coronavírus, não pelo aspecto da saúde, mas pelo ângulo da reação de governos,
entidades internacionais e comunidades. “É como a sociedade responde a um desastre
que determina que legado, a longo prazo, o desastre terá”, escreve.
O modo como se responde a uma pandemia é mediado pela maneira como se percebe
a ameaça, pela sensação de segurança existencial e pela capacidade de dar significado
ao imprevisto.
Ele então enumera questões do nosso cenário cultural que influenciam a nossa
resposta: no século 21 os indivíduos deixaram de se enxergar como resilientes e
passaram a se definir por suas vulnerabilidades; existe uma grande “psicologização”
dos problemas da vida cotidiana e da existência; e uma percepção contemporânea de
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que a existência humana está ameaçada —“o termo extinção humana é usado
casualmente nas conversas cotidianas”.
Coronavírus altera rotina de católicos pelo mundo durante a Semana Santa
Homem sozinho carrega cruz enquanto percorre a Via Dolorosa em Jerusalém Ammar Awad -
10.abr.20/Reuters
Resposta imunológica
Han Byung-chul
O filósofo sul-coreano radicado em Berlim, autor de “Sociedade do Cansaço”
(Vozes), em texto de meados de março passa em revista os modos distintos com que
Ásia e Europa enfrentaram a Covid-19 —testagem em massa e controle digital de um
lado, isolamento social de outro.
Ele aponta questões culturais que levam a tais diferenças, como a tradição
confucionista que engendra uma mentalidade autoritária, a maior obediência e menor
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relutância, mais confiança no Estado e sobreposição da coletividade sobre o
indivíduo nos países asiáticos.
Han também aborda uma mudança na ideia de soberania, que, segundo ele, está
ultrapassada como é vista na Europa. É soberano, afirma, quem dispõe de dados. E a
vigilância digital impera na Ásia.
“O capitalismo continuará com ainda mais pujança”, diz ele. E agora a China poderá
vender seu Estado policial digital com orgulho para o Ocidente. O vírus não vencerá
o capitalismo, pois, ao nos isolar e não gerar nenhum sentimento coletivo, não
mobiliza revoluções.
Drive Thru de testes de Covid-19 em Santos
Hospital particular Santa Casa, em Santos, litoral de São Paulo, promove bateria de exames rápidos de
Covid-19 em sistema drive thru Fernanda Luz/Folhapress
A solução socialista
David Harvey
O geógrafo marxista britânico, autor de “Os Limites do Capital” (Boitempo), no qual
reinterpreta Marx à luz das dinâmicas espaciais da urbanização, publicou “Políticas
Anticapitalistas em Tempos de Covid-19” em seu site, em meados de março.
Não há, segundo ele, desastres naturais, porque todos dependem, mais ou menos, da
ação humana. Os impactos econômicos e demográficos do vírus dependem de
fissuras e vulnerabilidades que já existiam no modelo econômico.
Em diversos países as autoridades regionais não tiveram acesso a recursos para a
saúde pública por conta de políticas de austeridade que subsidiaram corporações e os
ricos, escreve.
Ele contesta, ainda, a ideia de que a doença atinja igualmente a todos, pois a força de
trabalho que cuida dos doentes é racializada e feminina. A diferença também está
naqueles que podem ou não trabalhar de casa, e nos que podem ou não se isolar.
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Os trabalhadores na maior parte do mundo, segundo ele, foram ensinados a se
comportar como bons sujeitos neoliberais, mas as únicas políticas que surtirão efeitos
agora serão socialistas.
Greta Thunberg durante manifestação pelo clima em Nova York, em 20 de setembro de 2019 Johannes
Eisele/AFP
A nova fronteira
Paul B. Preciado
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No começo de março, o filósofo trans espanhol, autor do “Manifesto Contrassexual”
(N-1 edições), um marco dos estudos de gênero, adoeceu pela Covid-19. Logo
depois, escreveu um texto a respeito dos dias que passou alheio aos acontecimentos e
sobre como pensou que a nova realidade poderia agora ser escrita em pedra. “Valeria
a pena viver nos moldes do confinamento?”, ele se perguntava.
No dia 28, voltou ao assunto em outro artigo, no qual enfatiza a filosofia de Michel
Foucault da biopolítica, segundo a qual o corpo é o objeto central de toda política.
As diferentes epidemias, segundo ele, materializam na esfera do corpo de cada um as
obsessões que dominam a gestão política da vida e da morte das populações. Sendo
assim, o vírus atua replicando e estendendo a todos as formas dominantes de gestão
da vida e da morte que já existiam, mas em dimensões nacionais.
Estamos, em nossa época, passando de uma sociedade orgânica para uma digital, de
uma economia industrial para uma imaterial. As pessoas não são mais reguladas pela
passagem por instituições disciplinares, como escola, fábrica, casa, mas por
tecnologias biomoleculares, digitais e de transmissão de informação.
“O que está sendo testado em escala planetária por meio do gerenciamento do vírus é
uma nova maneira de entender a soberania em um contexto em que a identidade
sexual e racial está sendo desarticulada”, escreve.
Militar em rua vazia do centro de La Paz, Bolívia, depois de o governo pedir que moradores permaneçam
dentro de casa como prevenção contra o coronavírus David Mercado - 19.mar.20/Reuters
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Golpe no capitalismo
Slavoj Zizek
No fim de fevereiro, o esloveno, o mais pop dos filósofos, publicou um artigo no qual
define o novo coronavírus como um golpe à la “Kill Bill” no capitalismo.
O autor de livros como “Menos que Nada” (Boitempo), no qual articula Hegel e
Lacan, faz referência ao golpe mortal aplicado pela protagonista em seu inimigo ao
final do longa de Quentin Tarantino.
Para Zizek, o novo coronavírus sinaliza que uma mudança radical é necessária. A
crise econômica que se espera como consequência da pandemia mostra a urgência de
uma reorganização da economia global em que não se esteja à mercê dos mecanismos
do mercado.
Ele prepara novo livro sobre a pandemia, que já está em pré-venda. Zizek fala de um
socialismo de emergência, no qual trilhões serão gastos, violando as leis de mercado,
mas que ainda assim corre o risco de ser um “socialismo para os ricos”, ajudando
apenas a elite, como em 2008.
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O filósofo australiano, grande voz na defesa dos animais, e a jornalista e filósofa
italiana, autora de um projeto que estende aos grandes primatas os direitos humanos,
publicaram no início de março um texto no qual traçam um panorama do possível
surgimento do Sars-Cov-2 em mercados de animais silvestres na China.
Eles defendem que não apenas leis que protejam espécies sejam instituídas, mas que
o mundo todo proíba mercados em que animais são vendidos vivos.
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