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da experiência na contemporaneidade
Impulso, Piracicaba • 28(71), 95-104, jan.-abr. 2018 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
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pois cada vez mais se encontra obscureci- estaria reduzindo Erfahrüng à Erlebnis, na
do e obstruído pelas exigências impostas no medida em que os saberes coletivos – oriun-
presente. Se observarmos algumas das do- dos de vivências e recordações profundas da
enças de nosso século, como a depressão, a existência humana – têm sido desprezados
ansiedade e o estresse, veremos que muitas em detrimento de vivências individuais, ime-
delas remetem a uma distorção de aspectos diatas e de natureza narcísica.3 Por isso, todo
relacionados à temporalidade e intensidade. processo que permite ao ser humano ir se se-
Por isso, a sociedade contemporânea padece dimentando no mundo estaria comprometido
de uma notável reconfiguração temporal que por essa forma de experiência mais reduzida
acarreta em novas dimensões da experiência e empobrecida. Ainda nesse texto, Benjamin
tempo-espacial que, por conseguinte, reper- sustenta que a experiência se faz da matéria
cutem na instauração de novos modelos de da tradição, pois ela se coloca como um espa-
interação e subjetividade. Conforme sustenta ço-tempo de um tipo peculiar de saber que se
Oliva-Augusto (2002), a nossa percepção em constitui para além do racional.
relação ao tempo tem sofrido uma dissolução
dos elementos que, pelo menos há três sécu- Uma nova forma de miséria surgiu
los, têm constituído a base temporal dos pro- com esse monstruoso desenvolvi-
cessos sociais. Essa constatação sugere estar mento da técnica, sobrepondo-se
em curso uma preocupante ressignificação do ao homem. (...) Pois qual o valor de
tempo que repercute na progressiva desvalo- todo o nosso patrimônio cultural,
rização do passado, na acentuação exagera- se a experiência não mais o vincula
da do presente, e, por consequência, em um a nós? A horrível mixórdia de estilos
obscurecimento da capacidade de se projetar e concepções do mundo do século
um futuro. passado mostrou-nos com tanta
A progressiva desvalorização do pas- clareza aonde esses valores cultu-
sado vem sendo anunciada por diversos te- rais podem nos conduzir, quando
óricos, entre os quais gostaria de destacar o a experiência nos é subtraída, hipó-
filósofo Walter Benjamin. Desde Experiência crita ou sorrateiramente, que é hoje
e pobreza (1933), o autor procede à crítica da em dia uma prova de honradez con-
modernidade ao sustentar que o retraimento fessar nossa pobreza. Sim, é prefe-
da transmissão de experiências – que já vinha rível confessar que essa pobreza de
ocorrendo desde há muito tempo, entrando experiência não é mais privada, mas
em colapso durante a Primeira Guerra Mun- de toda a humanidade (BENJAMIN,
dial – tem provocado não apenas um dis- 1933, p. 115).
tanciamento em relação ao passado, como
também tem diminuído a capacidade de uma Isso posto, compreendemos que, con-
experiência humana autêntica. Para ele, uma forme o mundo moderno foi avançando, o fio
experiência autêntica deve ser compreendida condutor que liga o passado ao futuro tornou-
a partir de duas dimensões que trazem o sen- -se cada vez mais esgarçado, fazendo que os
tido semântico das palavras alemãs Erfahrüng ensinamentos que remetem a uma tradição
e Erlebnis, em que a primeira se refere a uma adquiram o status de ultrapassado e obsole-
dimensão da experiência que abarca um sen- to. Se tomarmos como referência as antigas
tido coletivo e histórico (que se acumula, se sociedades africanas, mais especificamente
prolonga e se desdobra ao longo do tempo) os impérios sudaneses, os anciãos conhecidos
e a segunda se relaciona a uma vivência mais como griots eram pessoas que exerciam certo
individual, fragmentada e cotidiana. Benjamin
(1933) afirma que o homem tem se destituí- 3
O conceito de narcisismo aqui empregado é
do de toda sua herança tradicional e histórica embasado nas primeiras formações de Freud (1914),
para tornar-se liso, frágil e transparente como porém reinterpretado a partir de abordagens mais
um vidro. Assim, o avanço da modernidade contemporâneas, como a de Lasch (1983) e Amaral
(1997).
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prestígio e respeito, por guardar e transmitir trojetivas.4 Quando esses complexos vincula-
uma tradição ancestral, relacionada à história e res se encontram enfraquecidos pelo “ethos”
cultura de um povo. A apropriação do passado social, as bases de sustentação do indivíduo
e o acúmulo de conhecimento eram sinônimos ficam comprometidas em relação à sua inser-
de autoridade e sabedoria. Já nos dias atuais, ção futura em outros âmbitos institucionais
a palavra passado adquire um tom pejorativo, da sociedade. Christopher Lasch, no livro A
relacionado a algo antigo, velho, que deve ne- cultura do narcisismo (1983), aponta que o
cessariamente ser desprezado ou substituído. homem psicológico do século XX nega o pas-
O sistema capitalista global infinito e de sado e tem dificuldade de enfrentar o futuro,
contínua mudança nos remete a uma dimen- acarretando a perda de significado do próprio
são de tempo que, cada vez mais, tem ignora- presente. Portanto, a falta de conexão entre
do o passado para poder se fixar no presente, o que foi e o que está por vir tem propiciado
no novo e no provisório. A crise de autorida- uma experiência no tempo presente destituí-
de, tão discutida nos dias de hoje, representa, da de sentido, tornando o indivíduo cada vez
nesse caso, um dos resultados desse proces- mais vulnerável às exigências externas e mer-
so. Para Hannah Arendt (1979), a noção de cadológicas de um tempo social acelerado e
autoridade desapareceu desde que o mundo distante das necessidades humanas em ter-
moderno rompeu com suas bases greco-ro- mos de subjetividade.
manas, que trazia como herança a valorização
dos ancestrais e das tradições transmitidas 2. O tempo social e a experiência da
de geração em geração. Para essa autora, o tecnoimagem
conceito de autoridade deve ser compreen-
dido a partir desse processo de transmissão, A sociedade contemporânea é marcada
que traz os ensinamentos apreendidos dos por profundas mudanças em um curto espa-
antepassados. Arendt (1979) defende que a ço de tempo. Embora a história da humani-
crise da autoridade pode ser identificada pelo dade seja definida por um processo contínuo
declínio de suas principais bases de sustenta- de transformação, a questão principal aqui
ção, que vem ocorrendo desde o século XX, colocada está relacionada aos efeitos da velo-
com a progressiva evolução da técnica e da cidade que as transformações vêm ocorrendo,
ciência, junto ao rompimento da tradição e da interferindo substancialmente em nossa per-
religião, identificadas, até então, como pilares cepção do tempo. As mudanças vivenciadas
fundamentais para o processo de construção pela geração que nasceu na década de 1980,
e consolidação da História. Para Jamile Bor- por exemplo, que marca o surgimento da inter-
ges Silva, o mundo perdeu seus padrões nor- net no Brasil,5 foram tão intensas e profundas
teadores e agora “as pessoas não sabem mais que muitos estudiosos defendem a concepção
o que fazer nele e com ele” (2004, p. 190).
A crise de autoridade e a ausência de
4
As identificações projetivas e introjetivas são
processos psicológicos que permitem ao sujeito
referências estáveis também revelam efeitos assimilar aspectos do outro para a constituição de sua
no que diz respeito à constituição da subjeti- própria personalidade. Para os estudos da psicanálise,
vidade. Segundo a teoria psicanalítica, a deca- a integração social acontece a partir desses
dência da figura paterna e o enfraquecimento fundamentais mecanismos básicos que permitem um
da instituição familiar acarretam efeitos nos processo de distinção e identificação entre elementos
externos e internos.
processos identificatórios, na medida em que 5
Apesar de algumas iniciativas anteriores, um grande
a sustentação da teoria se baseia na efetiva- projeto que marca o surgimento da internet no Brasil
ção desses laços afetivos e simbólicos. O ló- foi datado em 1988, quando a Fundação de Amparo
cus fundante da constituição psíquica está à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), junto
voltado para processos que envolvem uma à Secretaria Estatal de Ciência e Tecnologia e em
parceria com um centro de Pesquisa Americano,
autoridade paterna, um acolhimento mater- inauguram a conexão em rede em nível acadêmico
no e identificações parentais projetivas e in- e estatal. Contudo, foi somente a partir da segunda
metade da década de 1990 que a internet se tornou
acessível para a população.
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de uma nova era.6 Comparado com todo o envolvem altura, largura e profundidade, cujos
processo de mudança que ocorreu durante a sentidos podem ser explorados. Conforme a
Antiguidade e a Idade Média, a revolução digi- classificação do antropólogo Ashley Montagu
tal parece ter acentuado esse processo, impul- (1971), por meio do corpo e da presença é pos-
sionando de maneira radical um novo modo de sível experimentar os sentidos de proximidade
se comportar, comunicar ou se relacionar com (tato, olfato e paladar), bem como, os sentidos
as pessoas e com o tempo. O filósofo tcheco- da distância (audição e visão).
-brasileiro Vilém Flusser (2008) apresenta uma Por sua vez, a comunicação bidimensio-
“escala de abstração” para argumentar sobre nal ocorre por um processo de mediação es-
a subtração dos sentidos nas dimensões es- tipulado pelas imagens. Para Flusser (2008),
paço-temporais, acarretadas pelas diferentes a humanidade passou por três movimentos
formas de comunicação que foram desenvol- distintos em termos de comunicação – o pré-
vidas ao longo da História. Suas contribuições -histórico que se relaciona ao surgimento das
apontam para uma perspectiva histórica da primeiras imagens; o histórico em que os tex-
linguagem, identificando em cada período um tos superaram o predomínio das imagens; e o
tipo de imagem que medeia comunicação en- pós-histórico, que “seria uma espécie de sín-
tre o homem e o mundo. Em cada processo de tese dos precedentes, composto de imagens
mediação, a escala de abstração se divide em: técnicas ou tecno-imagens” (DUARTE, 2011).
tridimensional, bidimensional, unidimensional Seguindo essa acepção, o primeiro código
e nulodimensional. Partindo da mais complexa fundante inventado pela humanidade foram
para a mais sintética, cada processo exibe uma as imagens. A ação de transformar a natureza
dialética interna, que revela perdas e ganhos para satisfazer necessidades primitivas per-
em termos de experiência. mitiu que o homem superasse o imediato7 e
Para compreender melhor esse proces- desenvolvesse capacidades de abstração da
so, retomemos algumas ideias sustentadas imaginação para uma forma de pensamen-
pelo comunicólogo alemão Harry Pross: “Toda to que resultou na mediação pelas imagens.
comunicação humana começa na mídia primá- Em contraposição, o plano das imagens de-
ria na qual os participantes individuais se en- senvolveu um tipo de comunicação bidimen-
contram cara a cara e imediatamente presen- sional, na qual se abstraiu a possibilidade de
tes com seu corpo; toda comunicação humana transmissão da profundidade, sendo possível
retornará a este ponto” (PROSS, 1972, 128). realizar representações apenas em termos
A teoria da mídia apresentada por esse autor de altura e largura. Outro ponto de distinção
exibe semelhanças em relação à proposta de- entre a materialidade tridimensional e a co-
fendida por Flusser (2008). Ambos exploram municação bidimensional é que, na última, o
os processos comunicativos a partir de uma representante imagético pode estar ausente,
perspectiva primária do corpo como forma de ou melhor, não presente de forma concreta.
abstração da experiência. Flusser (2008) argu- Posteriormente, a comunicação unidimensio-
menta que a versão mais complexa da escala nal foi inaugurada com a invenção da escrita,
de abstração seria a tridimensional, que permi- que surgiu no intuito de transformar o código
te ao homem uma experiência com o mundo imagético tradicional em uma estrutura linear
mediada pelo corpo, a partir de dimensões que que serviria para explicar as imagens, buscan-
do retirar delas seu caráter ilusório e alienan-
Nicholas Negroponte (1995) identifica na era digital
6 te. Para Flusser (19868), o ato de escrever des-
uma revolução tecnológica diferente da antiga 7
O imediato nesse contexto adquire um sentido
proposta técnica analógica. Pois, enquanto as Hegeliano (1807) sob a luz do conceito de mediação
tecnologias analógicas têm como menor unidade de (Vermittlung). Nas suas principais obras, entre elas
informação os átomos, as tecnologias digitais têm a Fenomenologia do Espírito (1807), Hegel define o
como unidade os bits, que por meio de combinações conceito de mediação como um processo dialético,
lógicas potencialmente infinitas permitem um em que, a partir da negação, encontra-se a superação
processamento de dados cada vez mais veloz, com do imediato no mediato.
um armazenamento e organização de informações 8
Publicado em Cadernos Rioarte, ano II, n. 5, p. 64-68.
muito mais diversificados e dinâmicos. Manuscrito Arquivo Flusser, Berlim.
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cola o tempo circular e mágico das gravuras externos no processo comunicativo modifi-
(no qual diversas imagens podem compor cam nossa percepção em termos de experi-
ou se sobrepor no mesmo plano) do tempo ência. Enquanto que na mídia primária (por
linear composto por letras que adquirem uma meio do corpo) somos capazes de utilizar to-
relação causal e sequencial quando colocadas dos os sentidos em prol da comunicação, na
sobre traços, pontos e linhas. Essa forma de mídia secundária, aqui compreendida como
comunicação origina o pensamento histórico, a imagem e a escrita, o homem se utiliza de
conceitual e lógico. meios para deixar a marca de “sua presen-
Já na pós-história ou na sociedade pós- ça em sua ausência” (BAITELLO JR., 2014, p.
-industrial, Flusser (2008) identifica um novo 46). Já na mediação terciária, que se dá por
predomínio das imagens, porém com um cará- meio da tecnoimagem, é com a inteligência
ter diferente das tradicionais, pois a mediação dos próprios aparelhos que passamos a codi-
se dá por meio de aparelhos. Esse novo tipo ficar ou decodificar os símbolos. Tanto a mídia
de imagem, muito diferente dos primórdios, secundária quanto a terciária são utilizadas
pretende traduzir os códigos lineares eviden- enquanto extensões ou prolongamentos do
ciados na escrita, a partir de uma linguagem corpo, capazes de superar as limitações re-
computacional matemática programada. Tra- lacionadas ao tempo, espaço e intensidade.
ta-se de um “processo circular que retraduz os Entretanto, embora esses recursos facilitem
textos em imagens”, porém, sob a forma de tais processos, torna-se relevante questionar
imagens técnicas (FLUSSER, 2008, p. 78). Ou até que ponto eles subtraem nossos sentidos
seja, as tecnoimagens devem ser reconheci- e capacidade de abstração da experiência. O
das como um produto indireto dos textos que status temporal presente em cada mídia se
possuem uma posição histórica e ontológica exibe da seguinte forma para Pross (1972): na
diferente das imagens tradicionais. Enquan- primária, o tempo se dá no presente em um
to as primeiras imagens eram construídas na espaço definido pela presença, enquanto que
relação direta entre o homem e a realidade na mídia secundária o tempo é mais lento,
fenomênica, as imagens técnicas são represen- pois o ato de escrever e ler necessita de um
tadas por aparelhos científicos previamente processo longo de reflexão, decodificação e
programados por determinados padrões de apreensão das palavras. Quanto à mídia ter-
funcionamento. Destarte, Flusser (2002) faz ciária, o tempo passa de maneira acelerada e
um alerta em relação ao complexo sistema de o espaço é superado pela virtualidade, já que
virtualidades que compõem o aparelho e que, “se eliminam os problemas espaciais da gravi-
na maioria das vezes, não são assimiladas por dade e concretude”, no qual o real e o virtual
seus operadores, que se encontram submeti- atuam simultaneamente (BAITELLO JUNIOR;
dos ao fascínio e poder mágico da superficia- NAVARRETE, 2017, p. 110).
lidade tecnoimagética. O estágio de abstração
que se exibe nesse contexto é o mais sintetizá- 3. O declínio da experiência no
vel ou nulodimensional da comunicação, pois, processo de aceleração social
a subtração dos sentidos acontece em todos
contemporâneo
os níveis. As imagens técnicas adquirem o cará-
ter de não apenas representar o real, como se
Nesta última parte do ensaio, seguem
apresentam sendo a própria realidade a partir
de modelos ilusoriamente tomados como ver- alguns questionamentos com base nos apon-
dade. A subtração dos sentidos é tão intensa tamentos teóricos já apresentados articula-
que o corpo vai se desmaterializando no pro- dos com algumas experiências do cotidiano
cesso de comunicação, não sendo mais capaz social. Se tomarmos como referência as afir-
de reter a experiência, transitando apenas em mações exibidas por Benjamin (1933) – a des-
sua superfície. peito da experiência autêntica – junto às no-
Harry Pross (1972) propõe a teoria dos vas configurações de linguagem e interação
meios para compreender como os recursos social, que trazem consigo a subtração dos
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sentidos e uma aceleração temporal, seguem tir, gostar, jogar, desejar e ouvir. Essa autori-
as perguntas: Que tipo de experiência temos dade se revela muito potente e sagaz, dada
vivenciado em uma sociedade contemporâ- sua característica onipresente na vida cotidia-
nea cujo ritmo social encontra-se demasia- na, que utiliza os recursos tecnológicos para
damente acelerado? Quais os rumos dos pro- transmitir suas abundantes doses diárias de
cessos interacionais, já que nossa experiência ofertas e opções de “ser” e “pertencer” no
tem se tornado cada vez mais empobrecida e mundo. Rosa (2010) afirma que os efeitos da
destituída de sentido? aceleração social apresentam características
Rosa (2010), pensador da Teoria Críti- relacionadas a um novo formato de domina-
ca contemporânea, desenvolveu a Teoria da ção totalitária, inclusive mais persuasiva que
Aceleração Social, dividindo o fenômeno em os regimes políticos ditatoriais vivenciados
três principais categorias: a aceleração técni- em outras épocas. Como as normas tempo-
ca, a aceleração das transformações sociais e rais estão profundamente enraizadas no coti-
a aceleração do ritmo de vida. Os “motores diano social, o indivíduo destituído de crítica e
propulsores” responsáveis pela aceleração contextualização histórica torna-se totalmen-
estariam vinculados a ideologias, convicções te vulnerável ao ritmo social, concebendo-o
e crenças que atuam por trás do fenômeno. como um elemento natural da realidade. Não
Levando em consideração esse diagnóstico, sendo capaz de distinguir a origem histórica e
cabem algumas reflexões advindas do coti- social desta nova percepção temporal, os fra-
diano que se articulam com essas categorias. cassos ocasionados por essa lógica são inter-
De modo geral, todas essas acelerações pretados como uma incapacidade individual
são evidenciadas em diferentes contextos de gerenciar o tempo. Baitello Jr. (2010) afir-
e situações do dia a dia. Quanto ao ritmo de ma que na atualidade há espaços apenas para
vida, por exemplo, precisa-se admitir que, pessoas “fluidas como o vento, evanescentes
além da dissolução entre o passado, presen- como a luz e efêmeras como o tempo” (BAI-
te e futuro, encontramo-nos fixados em um TELLO JR., 2010, p. 55). A exacerbada valori-
tempo presente, cuja experiência do novo, do zação da exposição mediada pelo dispositivo
instantâneo e do provisório não deixa espaço de imagem direciona a experiência individual
para experiências a longo prazo. A busca in- a um reconhecimento pautado na aparência.
tensificada pelo prazer e pela experiência do O que se aparenta é muito mais estimado do
momento, associada à competividade estimu- que o ser em essência. Essa retenção da ex-
lada pela sociedade capitalista, obriga-nos a periência no plano da superficialidade imagé-
um processo contínuo de adaptação às novas tica pode ser intensamente observada pelo
exigências do mercado. A sensação que fica é tempo utilizado com a abundante quantidade
de que a vida é uma constante corrida contra de fotos postadas nas redes sociais ou, ain-
o tempo. E por mais acelerados que esteja- da, pelas ofertas apresentadas por inúmeras
mos, não conseguimos nos livrar da angústia agências de turismo, que oferecem pacotes
de que temos pouco tempo para fazer tudo o irresistíveis de se conhecer um país, ou até
que precisamos ou desejamos fazer. O ritmo mesmo um continente, em pouquíssimos
social e o fluxo informacional estão tão inten- dias. Nesses casos, o viajante passa a maior
sos que nos tornaram escravos do relógio. O parte do tempo, fazendo e desfazendo ma-
excesso de informação a circular pelo mundo las, entrando e saindo de hotéis, aeroportos,
desperta-nos a sensação de que devemos es- carros, ônibus; e quando se chega aos pontos
tar cientes de tudo o que está acontecendo turísticos desejáveis, a principal preocupação
ao nosso redor. A autoridade do passado, do sujeito é virar de costas para a paisagem e
antes exercida pelos anciãos, foi transferida tirar a tão esperada self. Assim, toda a ener-
para o mercado e sua publicidade, que agora gia gasta com bagagens, traslados e correria,
dita ao indivíduo o que se deve consumir, ves- é recompensada por uma mala abarrotada de
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produtos, coincidentemente chamados de não sabemos mais se trabalhamos para viver
“lembrancinhas”, junto a inúmeras fotogra- ou se vivemos para trabalhar. Sentimos culpa
fias que revelam poses e imagens desprovidas de relaxar e quando temos tempo livre, bus-
de experiência. camos insaciavelmente ofertas no mercado
que nos deixam ocupados.
Sofremos continuamente o achata-
mento da riqueza subjetiva, com o A subjetividade contemporânea se
empobrecimento das trocas que so- produz num ambiente em que os
mos capazes de efetuar com o ou- discursos e os signos publicitários
tro; empobrecimento que nos deixa articulam o público e o privado de
ainda mais perplexos na medida em tal modo que a dimensão mais ín-
que, abarrotados de mercadorias, tima de nosso cotidiano parece
estamos plenamente convenci- estar permanentemente exposto
dos de nossa riqueza excepcional às radiografias televisivas e às cam-
(KEHL, 2004). panhas publicitárias. A morada do
sujeito contemporâneo não possui
Constantemente ludibriados por uma mais divisórias, aliás, bem ao estilo
imensidão de promessas e slogans, como: do que se vende na televisão, habi-
Aprenda inglês em 30 dias! Emagreça 3 kg em tamos numa espécie de loft onde
dois dias! nossos sentidos vão sendo entorpe- não é possível separar o espaço de
cidos por máximas que não condizem com a estar do espaço de evacuar (SILVA,
nossa capacidade e limitação humana. Perce- 2004, 190).
bemos que a superação espaço-temporal pro-
piciada pelos aparelhos – programados para Considerações finais
acelerar os processos, dinamizar o trabalho
e flexibilizar as ações – promete economizar Na tentativa de resgatar no passado al-
um tempo que há muito tempo já não existe guma direção para as inquietações suscitadas
mais. A sociedade capitalista pós-industrial, neste artigo, torna-se pertinente conduzir esta
marcada pela supervalorização do trabalho, conclusão a partir da mitologia grega que nos
aproveitou-se dessa nova configuração co- convoca para duas possibilidades de compre-
municacional para invadir as esferas privadas ensão do tempo – o tempo de Chronos e o
do homem contemporâneo. Nesse sentido, tempo de Kairós.10 Representados por duas
fomos obrigados a nos habituar a estar em divindades, eles nos mostram duas possibili-
casa cuidando dos filhos, e, concomitante- dades de experiência temporal. No mito, Chro-
mente, ter que dividir esse tempo, resolvendo nos pertencia a uma raça de Titãs (a segunda
problemas do trabalho. Além disso, a vida das geração de deuses) e era retratado como um
pessoas passou a ser controlada mesmo fora ser que devorava os filhos logo que estes nas-
dos postos de serviço. Os processos seletivos, ciam. Esse comportamento revela a caracterís-
por exemplo, passaram a investigar a história tica de um tempo destruidor, que não poupa
de seus candidatos nas redes sociais e, mes- ninguém. Por receber a profecia de que um de
mo depois de contratado, o trabalhador corre seus filhos iria matá-lo para assumir o seu lugar
o risco de ser demitido, simplesmente porque como senhor da criação, ele buscava eliminar
seu chefe não “curtiu”9 aquela foto postada esse perigo, devorando suas crias. Na contem-
no domingo à noite. A sociedade contempo- poraneidade, Chronos tem um lugar de desta-
rânea elevou de uma maneira tão intensa a que, sendo aquele que amedronta e impera,
questão do trabalho e da produção, que já implacavelmente. Muitos são escravizados por
9
A expressão curtiu faz referência à linguagem 10
In: RIBEIRO, J. C. Vocabulário e fabulário da mitologia.
cibernética popularmente utilizada. São Paulo: Martins, 1962.
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esse deus e acabam sendo devorados por ele. mitologia, também significa a identificação
Vivem sob a tirania das datas e dos prazos e do momento oportuno. Nesse sentido, talvez
invariavelmente adoecem. Sendo subjugado este seja o momento adequado de reestabe-
pela angústia de não dar conta do presente, o lecer velhos padrões afetivos de relaciona-
homem na atualidade oscila entre a mágoa ou mento humano, de se reconectar com alguns
a culpa não elaborada do passado e a ansieda- aspectos importantes da tradição esquecida e
de e o medo do futuro. de retomar o elo entre o passado, o presen-
Enfim, podemos dizer que o tempo te e o futuro, de modo que, a consciência do
presente nos mostra que a sobrevivência da momento presente não carregue os fardos do
sociedade, da forma como aprendemos a per- passado nem sofra por antecipar as ansieda-
cebê-la, está ameaçada e a única proposta de des do futuro. Para Rosa (2010), uma vida livre
reversão possível desse processo encontra-se da alienação imposta por Chronos seria aque-
na compreensão da segunda divindade mi- la que se mostra equilibrada em atingir ex-
tológica de tempo, chamada Kairós. Ao con- periências que provoquem ressonância com
trário de Chronos, Kairós, simboliza um tem- o mundo. Para os gregos, Kairós era a única
po subjetivo, ou seja, um tempo concebido força capaz de enfrentar, lutar e vencer Chro-
pela percepção de cada um. É o tempo que nos. Assim, a crise vivenciada por este tempo
nos permite estar sensível à eternização de só poderá ser superada quando o indivíduo
um momento e que nos dá forças para dizer contemporâneo encontrar em Kairós a cone-
basta ao que acreditamos ser pura perda de xão perdida consigo e com a dimensão de sua
tempo. É o tempo que nos liberta do relógio experiência autêntica.
e nos reconecta à subjetividade humana. Na
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Sobre a autora
Elaine Moraes Santos
Doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), Mestra em Educação Escolar
pela UNESP de Araraquara e graduada em psicologia pela Universidade Metodista de Piracicaba
(2009). Atuação na área da psicologia e educação, com ênfase em psicologia social.
elainecms@usp.br
Impulso, Piracicaba • 28(71), 95-104, jan.-abr. 2018 • ISSN Impresso: 0103-7676 • ISSN Eletrônico: 2236-9767
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