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Carlos Benedito Martins

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dá sociedade.

j / Áreas de interesse:
* Política e Sociologia

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PRIMEIROS*'
PASSOSf; ISBN 85-11-01057-2
57 .oleção

PASSOS*
9" 788511" 010572' 57
INTRODUÇÃO

A sociologia constitui um projeto intelectual


tenso e contraditório. Para alguns ela representa uma
poderosa arma a serviço dos interesses dominantes,
para outros ela é a expressão teórica dos movimentos
revolucionários.
A sua posição é notavelmente contraditória. De
um lado, foi proscrita de inúmeros centros de ensino.
Foi fustigada, em passado recente, nas universidades
brasileiras, congelada pelos governos militares argenti-
no, chileno e outros do género. Em 1968, os coronéis
Para Vavy Pacheco greg°s acusavam-na de ser disfarce do marxismo e
teoria da revolução. Enquanto isso, os estudantes de
Paris escreviam nos muros da Sorbone que "não terí-
amos mais problemas quando o último sociólogo fosse
estrangulado com as tripas do último burocrata".
O que é sociologia
8 Carlos B. Martins
Procuro apresentar, em termos de debate, a di-
Como compreender as avaliações tão diferentes
mensão política da sociologia, a natureza e as conse-
dirigidas com relação a essa ciência? Para esclarecer
quências de seu envolvimento nos embates entre os
esta questão, torna-se necessário conhecer, ainda que
grupos e as classes sociais e refletir em que medida os
de forma bastante geral e com algumas omissões, um
conceitos e as teorias produzidos pelos sociólogos con-
pouco de sua história. Isso me leva a situar a sociolo-
tribuem para manter ou alterar as relações de poder
gia— este conjunto de conceitos, de técnicas e de mé-
existentes na sociedade.
todos de investigação produzidos para explicar a vida
social — no contexto histórico que possibilitou o seu
surgimento, formação e desenvolvimento.
Este livro parte do princípio de que a sociologia
é o resultado de uma tentativa de compreensão de si-
tuações sociais radicalmente novas, criadas pela então
nascente sociedade capitalista. A trajetória desta ciên-
cia tem sido uma constante tentativa de dialogar com a
civilização capitalista, em suas diferentes fases.
Na verdade, a sociologia, desde o seu início,
sempre foi algo mais do que uma mera tentativa de
reflexão sobre a sociedade moderna. Suas explicações
sempre contiveram intenções práticas, um forte dese-
jo de interferir no rumo desta civilização. Se o pensa-
mento científico sempre guarda uma correspondência
com a vida social, na sociologia esta influência é par-
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ticularmente marcante. Os interesses económicos e í
políticos dos grupos e das classes sociais, que na socie-
dade capitalista apresentam-se de forma divergente,
influenciam profundamente a elaboração do pensa-
mento sociológico,
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• ' - O que é sociologia . . " 'U

representa o resultado da elaboração de um conjunto


de pensadores que se empenharam em compreender as
novas situações de existência que estavam em curso.
CAPÍTULC»RIMEIRO: O século XVIII constitui um marco'importante
O SURCM4ÊNTO para a história do pensamento ocidental e para o surgi-.
mento da sociologia. As transformações económicas,
políticas e culturais que se aceleram a partir dessa épo-.
ca colocarão problemas inéditos para os homens que
experimentavam as mudanças que ocorriam no ociden-
te europeu. A dupla revolução que esse século teste-
munha — a industrial e a francesa — constituía os dois
Podemos entender a sociologia como uma das
manifestações do pensamento moderno. A evolução lados de um mesmo processo, qual seja, a instalação
do pensamento científico, que vinha se constituindo definitiva da sociedade capitalista. A palavra sociolo-
desde Copérnico, passa a cobrir, com a sociologia, uma gia apareceria somente um século depois, por volta de
nova área do conhecimento ainda não incorporada ao 1830, mas são os acontecimentos desencadeados pela
saber científico, ou seja, o mundo social. Surge poste- dupla revolução que a precipitam e a tornam possível.
riormente à constituição das ciências naturais e de di- Não constitui objetivo desta parte do traba-
versas ciências sociais. lho proceder a uma análise dessas duas revoluções,
A sua formação constitui um acontecimento mas apenas estabelecer algumas relações que elas
complexo para o qual concorrem uma constelação de possuem com a formação da sociologia. A revolução
circunstâncias, históricas e intelectuais, e determinadas industrial significou algo mais do que a introdução da
intenções práticas. O seu surgimento ocorre num con- máquina a vapor e dos sucessivos aperfeiçoamentos
texto histórico específico, que coincide com os derra- dos métodos produtivos. Ela representou o triunfo da
deiros momentos da desagregação da sociedade feudal indústria capitalista, capitaneada pelo empresário ca-
e da consolidação da civilização capitalista. A.sua cria- pitalista que foi pouco a pouco concentrando as má-
ção não é obra de um único filósofo ou cientista,, mas quinas, as terras e as ferramentas sob o seu controle,
12 Carlos B. Martins O que-e sociologia 13

convertendo grandes massas humanas em simples do campo para a cidade, assim como engajou mulhe-
trabalhadores despossuídos. res e crianças em jornadas de trabalho de pelo menos
Cada avanço com relação à consolidação da so- doze horas, sem férias e feriados, ganhando um salário
ciedade capitalista representava a desintegração, o so- de subsistência. Em alguns setores da indústria inglesa,
tapamento de costumes e instituições até então exis- mais da metade dos trabalhadores era constituída por
tentes e a introdução de novas formas de organizar a mulheres e crianças que ganhavam salários inferiores
vida social. A utilização da máquina na produção não dos homens.
apenas destruiu o artesão independente, que possuía A desaparição dos pequenos proprietários ru j
um pequeno pedaço de terra, cultivado nos seus mo- raís, dos artesãos independentes, a imposição de pro-
mentos .livres. Este foi também submetido a uma seve- longadas horas de trabalho etc., tiveram um efeito
ra disciplina, a novas formas de conduta e de relações traumático sobre milhões de seres humanos ao modi-
ficar radicalmente suas formas habituais de vida. Es-
de trabalho, completamente diferentes das vividas an-
sas transformações, que possuíam um sabor de cata-
teriormente por ele.
clismo, faziam-se mais visíveis nas cidades industriais,
Num período de oitenta anos, ou seja, entre 1780
local para onde convergiam todas essas modificações
e 1860, a Inglaterra havia mudado de forma marcante e explodiam suas consequências. Essas cidades pas-
a sua fisionomia. País com pequenas cidades, com uma savam por um vertiginoso crescimento demográfico,
população rural dispersa, passou a comportar enormes sem possuir, no entanto, uma estrutura de moradias,
cidades, nas quais se concentravam suas nascentes in- de serviços sanitários, de saúde, capaz de acolher a
dústrias, que espalhavam produtos para o mundo intei- população que se deslocava do campo. Manchester,
ro. Tais modificações não poderiam deixar de produzir que constitui um ponto de referência indicativo desses
novas realidades para os homens dessa época, A for- tempos, .por voíta do início do século XIX era habita-
mação de uma sociedade que se industrializava e urba- da por setenta mil habitantes; cinquenta anos depois,
nizava em ritmo crescente implicava a reordenação da possuía trezentas mil pessoas. As consequências da rá-
sociedade rural, a destruição da servidão, o desman- pida industrialização e urbanização levadas a cabo pelo
telamento da família patricial etc. A transformação da sistema capitalista foram tão visíveis quanto trágicas:
atividade artesanal em manufatureira e, por último, em aumento assustador da prostituição, do suicídio, do al-
atividade fabril, desencadeou uma maciça emigração coolismo, do infanticídio, da criminalidade, da violên-

,- Carlos B. Martins
O que é sociologia :

cia, de surtos de epidemia de tifo e cólera que dizima- ciedade num plano de análise, ou seja, esta passava a se
ram parte da população etc. É evidente que a situação constituir em "problema", em "objeto" que deveria ser
de miséria também atingia o campo, principalmente os investigado. Os pensadores ingleses que testemunha-
trabalhadores assalariados, mas o seu epicentro ficava,
vam essas transformações e com elas se preocupam
sem dúvida, nas cidades industriais.
não eram, no entanto, homens de ciência ou sociólo-
Um dos fatos de maior importância relacionados
gos que viviam dessa profissão. Eram antes de tudo ho-
com a revolução industrial é, sem dúvida, o apareci-
mens voltados para a ação, que desejavam introduzir
mento do proletariado e o papel histórico que ele de-
determinadas modificações na sociedade. Participavam
sempenharia na sociedade capitalista. Os efeitos ca-
tastróficos que essa revolução acarretava para a classe ativamente dos debates ideológicos em que se envol-
trabalhadora levaram-na a negar suas condições de viam as correntes liberais, conservadoras e socialistas.
vida. As manifestações de revolta dos trabalhadores Eles não desejavam produzir um mero conhecimento
atravessaram diversas fases, como a destruição das sobre as novas condições de vida geradas pela revolu-
máquinas, atos de sabotagem e explosão de algumas ção industrial, mas procuravam extrair dele orientações
oficinas, roubos e crimes, evoluindo para a criação de para a ação, tanto para manter como para reformar ou
associações livres, formação de sindicatos etc. A con- modificar radicalmente a sociedade de seu tempo. Tal
sequência dessa crescente organização foi a de que os fato'significa que os precursores da sociologia foram
"pobres" deixaram de se confrontar com os "ricos"; recrutados entre militantes políticos, entre indivíduos
mas uma classe específica, a classe operária, com que participavam e se envolviam profundamente com
consciência de seus interesses, começava a organizar- os problemas de suas sociedades.
-se para enfrentar os proprietários dos instrumentos Pensadores como Robert Owen (1771-1,858),
de trabalho. Nessa trajetória, iam produzindo seus jor- William Thompson (1775-1833), Jeremy Bentham
nais, sua própria literatura, procedendo a uma crítica (1748-1832), só para citar alguns daquele momento his-
da sociedade capitalista e inclinando-se para o socialis- tórico, podiam discordar entre si ao julgarem as novas
mo como alternativa de mudança. condições de vida provocadas pela revolução industrial
Qual a importância desses acontecimentos para e. as modificações que deveriam ser realizadas na nas-
a sociologia? O que merece ser salientado é que a pro- cente sociedade industrial, mas todos eles concorda-
fundidade das transformações em curso colocava a.só- vam que ela produzira fenómenos inteiramente novos
16 Carlos B. Martins : O que é sociologia i?

que mereciam ser analisados. O que eles refletiram e XVI, não poderiam deixar de provocar modificações na
escreveram foi de fundamental importância para a for- forma de conhecer a natureza e a cultura.
mação e constituição de um saber sobre a sociedade. A partir daquele momento, o pensamento pau-
A sociologia constitui em certa medida uma res- latinamente vai renunciando a'uma visão sobrenatural
posta intelectual às novas situações colocadas pela re- para explicar os fatos e substituindo-a por uma inda-
volução industrial. Boa parte de seus temas de análise e gação racional. A aplicação da observação e da expe-
de reflexão foi retirada das novas situações, como, por rimentação, ou seja, do método científico para a ex-
exemplo, a situação da classe trabalhadora, o surgimen- plicação da natureza, conhecia uma fase de grandes
to da cidade industrial, as transformações tecnológicas, progressos. Num espaço de cento e cinquenta anos, ou
a organização do trabalho na fábrica etc." E a formação, seja, de Copérnico a Newton, a ciência passou por um
de uma estrutura social muito específica — a socieda- notável progresso, mudando até rnesmo a localização
de capitalista — que impulsiona uma reflexão sobre a do planeta Terra no cosmo.
sociedade, sobre suas transformações, suas crises, seus O emprego sistemático'da observação e da expe-
antagonismos de classe. Não é por mero acaso que a rimentação como fonte para a exploração dos fenóme-
sociologia, enquanto instrumento de análise, inexistía nos da natureza estava possibilitando uma grande acu-
nas relativamente estáveis sociedades pré-capítalístas, mulação de fatos. O estabelecimento de relações entre
uma vez que o ritmo e o nível das mudanças que aí se esses fatos ia possibilitando aos homens dessa época
verificavam não chegavam a colocar a sociedade como um conhecimento da natureza que lhes abria possibili-
"um problema" a ser investigado. dade de a controlar e dominar.
O surgimento da sociologia, como se pode per- O pensamento filosófico do século XV11 con-
ceber, prende-se em parte aos abalos provocados pela tribuiu para popularizar os avanços do pensamento
revolução industrial, pelas novas condições de exis- científico. Para Francis Bacon (1561-1626), por exem-.
tência por ela criadas. Mas uma outra circunstância, pio, a teologia deixaria de ser a forma norteadora do
concorreria também para a sua formação. Trata-se das pensamento. A autoridade, que exatamente constituía
modificações que vinham ocorrendo nas formas de urn dos alicerces da teologia, deveria, em sua opinião,
pensamento. As transformações económicas, que se ceder lugar a uma dúvida metódica, a fim de possibili-
achavam em curso no ocidente europeu desde o século tar um conhecimento objetivo da realidade. Para ele,
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18 Carlos B. Martins ' • . - O que é sociologia • 19.

o novo método de conhecimento, baseado na obser- contribuindo assim para a renovação dos costumes e
vação e na experimentação, ampliaria infinitamente o hábitos mentais dos homens da época.
poder do homem e deveria ser estendido e aplicado ao Se no século XVI í í os dados estatísticos voavam,
estudo da sociedade. Partindo dessas ideias, chegou a indicando uma produtividade antes desconhecida, o
propor um programa para acumular os. dados disponí- pensamento social desse período também realizava
veis e com eles realizar experimentos a fim de descobrir seus voos rumo a novas descobertas, A pressuposição .
e.formular leis gerais sobre a sociedade. de que o processo histórico possui uma lógica passível
O emprego sistemático da razão, do livre exame de ser apreendida constituiu um acontecimento que
da realidade — traço que caracterizava os pensadores abria novas pistas para a investigação racional da so-
do século XVII, os chamados racionalistas -, repre- ciedacje. Esse enfoque, por' exemplo, estava na obra
sentou um grande avanço para libertar o conhecimen- de Viço (1668-1744), para o qual é o homem quem
produz a história. Apoiando-se nesse ponto de vista,
to do controle teológico, da tradição, da "revelação"
afirmava que a sociedade podia ser compreendida por-
e t consequentemente, para à formulação de uma nova
que, ao contrário da natureza, ela constitui obra dos
atitude intelectual diante dos fenómenos da natureza
próprios indivíduos. Essa postura diante da sociedade,
e da cultura.
que encontra em Viço um.de seus expoentes, influen-
Diga-se de passagem que o progressivo abando-
ciou os historiadores escoceses da época,.como David
no da autoridade, do dogmatismo e de uma concepção
Hume (1711-1776) e Adam Ferguson (1723-1816), e
providencialista, enquanto atitudes intelectuais para seria posteriormente desenvolvida e amadurecida por
analisar a realidade, não constituía um acontecimento Hegel e Marx.
circunscrito apenas ao campo científico ou filosófico. A Data também dessa época'a disposição de tratar
literatura do século XVII, por exemplo, constituía uma a sociedade, a partir do estudo de seus grupos e não
outra área que ía se afastando do pensamento oficial, dos indivíduos isolados. Essa orientação estava, por
na medida em que se rebelava contra a criação literária exemplo, nos trabalhos de Ferguson, que acrescen-
legitimada pelo poder. A obra de vários literatos des- tava que, para o estudo da sociedade, era necessário
sa época investia contra as instituições oficiais, procu- evitar conjecturas e especulações. A obra desse histo-
rando desmascarar os fundamentos do poder político, riador escocês Vevela a influência de algumas ideias de
4*
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20 Carlos B. Martins O que é sociologia -

Bacon, como a de que é a indução, e não a dedução, influenciados mais por Newton, com seu modelo de
que nos revela a natureza do mundo, e a importância conhecimento baseado na observação, na experimen-
da observação enquanto instrumento para a obtenção tação e na acumulação de dados, do que por Descartes,
do conhecimento. com seu método de investigação baseado na dedução.
No entanto, é entre os pensadores franceses do Influenciado por esse estado de espírito, Condor-
século XVIII que encontramos um grupo de filósofos cet (1742-1794), por exemplo, desejava aplicar os mé-
que procurava transformar não apenas as velhas formas todos matemáticos ao estudo dos fenómenos sociais,
de conhecimento, baseadas na tradição e na autorida- estabelecendo uma área própria de investigação a que
de, mas a própria sociedade. Os iluministas, enquanto denominava ."matemática social". Admitia ele que, uti-
ideólogos da burguesia, que nessa época posicionava-se lizando os mesmos procedimentos das ciências naturais
de forma revolucionária, atacaram com veemência os para o estudo da sociedade, este poderia atingir a mes-
fundamentos da sociedade feudal, os privilégios de sua ma precisão de vocabulário e exatidão de resultados
classe dominante e as restrições que esta impunha aos obtidas por aqueles.
interesses económicos e políticos da burguesia. Combinando o uso da razão e da observação, os
É a intensidade do conflito entre as classes domi- iluministas analisaram quase todos os aspectos da so-
nantes da sociedade feudal e a burguesia revolucionária ciedade. Os trabalhos de Montesquieu (1689-1755),
que leva os filósofos, seus representantes intelectuais, por exemplo, 'estabelecem uma série de observações
a atacarem de forma impiedosa a sociedade feudal e a sobre a população, o comércio, a religião, a moral, a fa-
sua estrutura de conhecimento, e a negarem aberta- mília etc. O objetivo dos iiuministas, ao estudar as ins-
mente a sociedade existente. tituições de sua época, era demonstrar que elas eram
Para proceder a uma indagação crítica da socieda- irracionais e injustas, que atentavam contra a natureza
de da época, os iluministas partiram dos seus anteces- dos indivíduos e, nesse sentido, impediam a liberdade
sores do século XVII, como Descartes, Bacon, Hobbes do homem. Concebiam o indivíduo como dotado de
e outros, reelaborando, porém, algumas de suas ideias razão, possuindo uma perfeição inata e destinado à
e procedimentos. Ao invés de utilizar a dedução, como liberdade e à igualdade social. Ora, se as instituições
a maioria dos pensadores do século XVII, os iluminis- existentes constituíam um obstáculo à liberdade do
tas insistiam numa explicação da realidade baseada no indivíduo e à sua plena realização, elas, segundo eles,
modelo das ciências da natureza. Nesse sentido, eram deveriam ser eliminadas. Dessa forma reivindicavam

«»«
O que é sociologia 23
22 Carlos B. Martins
percebê-las como produtos da atívidade humana, por-
liberação do indivíduo de todos os laços sociais tradicio-
tanto passíveis de serem conhecidas e transformadas.
nais, tal como as corporações, a autoridade feudal etc.
A intensidade da crítica às instituições feudais
Procedendo dessa forma, os íluministas confe-
levada a cabo pelos Íluministas constituía indísfarçáveí
riam uma clara dimensão crítica e negadora ao conhe-
cimento, pois este assumia a tarefa não só de conhecer indício da virulência da luta que a burguesia travava no
o mundo natural ou social tal como se apresentavam, plano político contra as classes que sustentavam a do-
mas também de criticá-lo e rejeitá-lo. O conhecimen- minação feudal Na França, o conflito entre as novas
to da realidade e a disposição de transformá-la eram, forças sociais ascendentes chocava-se com uma típica
portanto, uma só coisa. A filosofia, de acordo com esta monarquia absolutista, que assegurava consideráveis
concepção, não constituía um mero conjunto de no- privilégios a aproximadamente quinhentas mil pesso-
çÕes abstratas distante e à margem da realidade, mas, as, isso num país que possuía ao final do século XVIII
ao contrário, um valioso instrumento prático que criti- uma população de vinte e três.milhões de indivíduos.
cava a sociedade presente, vislumbrando outras possi- Essa camada privilegiada não apenas gozava de isen-
bilidades de existência social além das existentes, ção de impostos e possuía direitos para receber tributos
O visível progresso das formas de pensar, fru- feudais, mas impedia ao mesmo tempo a constituição
to das novas maneiras de produzir e viver, contribuía de livre-empresa, a exploração eficiente da terra e de-
para afastar interpretações baseadas em superstições . monstrava-se incapaz de criar uma administração pa-
e crenças infundadas, assim como abria um espaço dronizada por meio de uma política tributária racional
para a constituição de um saber sobre os fenómenos e imparcial.
histórico-sociais. Essa crescente racionalização da vida A burguesia, ao tomar o poder em 1789, inves-
social que gerava 'um clima propício à constituição de tiu decididamente contra os fundamentos da sociedade
um estudo científico da sociedade não era, porém, um feudal, procurando construir um Estado que asseguras-
privilégio de filósofos e homens que se dedicavam ao se sua autonomia em face da igreja e que protegesse
conhecimento. O "homem comum" dessa época tam- e incentivasse a empresa capitalista. Para a destruição
bém deixava, cada vez .mais, de encarar as instituições
do "ancien regime", foram mobilizadas as massas, espe-
sociais, as normas, como fenómenos sagrados e imu-
cialmente os trabalhadores pobres das cidades. Alguns
táveis, submetidos a forças sobrenaturais, passando a
Carlos B. Martins '

meses mais tarde, elas foram "presenteadas" pela nova ..


classe dominante, com a interdição dos seus sindicatos.
A investida da burguesia rumo ao poder, suce-
deu-se uma liquidação sistemática do velho regime. A
revolução ainda não completara um ano de existência,
mas fora suficientemente intempestiva para liquidar a
velha estrutura feudal e o Estado monárquico.
O objetivo da Revolução de 1789 não era apenas
mudar a estrutura do Estado, mas abolir radicalmen-
te a antiga forma de sociedade, com suas instituições
tradicionais, seus costumes e hábitos arraigados, e ao
mesmo tempo promover profundas inovações na eco-
r

nòmia, na política, na vida cultural etc. E dentro desse


contexto que se situam a abolição dos grémios e das
corporações e a promulgação de uma legislação que
limitava os poderes patriarcais na família, coibindo os -
rorte
abusos da autoridade do pai, forçando-o a uma divi-
são igualitária da propriedade. A revolução desferiu
as camadas
também seus golpes contra a Igreja, confiscando suas distribuição social
propriedades, suprimindo os votos monásticos e trans- necessário e das
ferindo para o Estado as funções da educação,-tradi- A posse
cionalmente controladas pela Igreja. Investiu contra e
destruiu os antigos privilégios de classe, amparou e in-
centivou o empresário.
O impacto da revolução foi tão profundo que,
passados quase setenta anos do seu triunfo, Alexis de
Tocqueville, um importante pensador francês, referia-
-se a ela da seguinte maneira: A Revolução Francesa: uma nova realidade.
O que é sociologia
26 Carlos B. Martins
como "anarquia", "perturbação", "crise", "desordem",
A Revolução segue seu curso: à medida que vai apare-
para julgar a nova realidade provocada pela revolução.
cendo a cabeça do monstro, descobre-se que, após ter
destruído as instituições políticas, ela suprime as institui- Nutriam em geral esses pensadores um certo rancor
ções civis e muda, em seguida, as leis, os usos, os cos- pela revolução, principalmente por aquilo que eles de-
tumes e até a língua; após ter arruinado a estrutura do signavam como "os seus falsos dogmas", como o seu
governo, mexe nos fundamentos da sociedade e parece ideal de igualdade, de liberdade, e a importância confe-
querer agredir até a Deus; quando esta mesma Revolu-
rida ao indivíduo em face das instituições existentes.
ção expande-se rapidamente por toda a parte com pro-
cedimentos desconhecidos, novas táticas, máximas mor- A tarefa que esses pensadores se propõem é a de
tíferas, poder espantoso que derruba as barreiras dos im- racionalizar a nova ordem, encontrando soluções para
périos, quebra coroas, esmaga povo^e — coisa estranha o estado de "desorganização" então existente. Mas •
— chega ao mesmo tempo a ganhá-los para a sua causa; para restabelecer a "ordem e a paz", pois é a esta mis-
à medida que todas estas coisas explodem, o ponto de
são que esses pensadores se entregam, para encontrar
vista muda; O que à primeira vista parecia aos príncipes
da Europa e aos estadistas um acidente.comum na vida um estado de equilíbrio na nova sociedade, seria neces-
dos povos, tornou-se um fato rrovo, tão contrário a tudo sário, segundo eles, conhecer as leis que regem os fatos
que aconteceu antes no mundo e no entanto tão geral, sociais, instituindo portanto uma ciência da sociedade.
tão monstruoso, tão incompreensível que, ao apercebe- A verdade é que a burguesia, uma vez instala-
-Io, o espírito fica como que perdido. da no poder, se assusta com a própria revolução. Uma
O espanto de Tocquevilie diante da nova realida- das facções revolucionárias, por exemplo, os jacobinos,
de inaugurada pela Revolução Francesa seria compar- estava disposta a aprofundá-la, radicalizando-a e levan-
tilhado também por outros intelectuais do seu tempo. do-a até o fim, situando-a além do projeto e dos inte-
Durkheim, por exemplo, um dos fundadores da socio- resses da burguesia. Para contornar a propagação de
logia, afirmou certa vez que, a partir do momento em novos surtos revolucionários, enquanto estratégia para
que "a tempestade revolucionária passou, constituiu- modificação das sociedades, seria necessário, de acor-
-se como que por encanto a noção de ciência social". O do com os interesses da burguesia, controlar e neutra-
fato é que pensadores franceses da época, como Saint- lizar novos levantes revolucionários. Nesse sentido, era
-Simon, Comte, Lê Play e alguns outros, concentrarão de fundamental, importância proceder a modificações
suas reflexões sobre a natureza e as consequências da substanciais em sua teoria da sociedade.
revolução. Em. seus trabalhos, utilizarão expressões


23 Carlos B. Martins : O que é sociologia 29

A interpretação crítica e negadora da realidade, utilização intensiva do trabalho barato de mulheres e


que constituiu um dos traços marcantes do pensamento crianças, uma desordenada migração do campo para
iluminista e alimentou o projeto revolucionário da bur- a cidade, gerando problemas de habitação, de higiene,
guesia, deveria de agora em diante ser "superada" por aumento do alcoolismo e da prostituição, alta taxa de
uma outra que conduzisse não mais à revolução, mas mortalidade infantil etc.
à "organização", ao "aperfeiçoamento" da sociedade. A partir da terceira década do século XIX, inten-
Saint-Simon, de uma maneira muito explícita, afirma- sificam-se na sociedade francesa as crises económicas
ria a este respeito que "a filosofia do último século foi e as lutas de classes. A contestação da ordem capita-
revolucionária; a do século XX deve ser reorganizado- lista, levada a cabo pela classe trabalhadora, passa a
ra". A tarefa que os fundadores da sociologia assumem ser reprimida com violência, como em 1848, quando
é, portanto, a de estabilização da nova ordem. Comte a burguesia utiliza os aparatos do Estado, por ela do-
também é muito claro quanto a essa questão. Para ele, minado, para sufocar as pressões populares. Cada vez
a nova teoria da sociedade, que ele denominava de "po- mais ficava claro para a burguesia e seus representan-
sitiva", deveria ensinar os homens a aceitar a ordem tes intelectuais que a filosofia iluminista, que passava
existente, deixando delado a sua negação. a ser designada por eles como "metafísica", "atividade
A França, no início do século XIX, ia se tornan- crítica inconsequente", não seria capaz de interromper
do visivelmente uma sociedade industrial, com uma aquilo que denominavam estado de "desorganização",
introdução progressiva da maquinaria, principalmen- de "anarquia política" e criar uma ordem social estável.
te no setor têxtil. Mas o desenvolvimento acarretado Determinados pensadores da época estavam im-
por essa industrialização causava aos operários fran- buídos da crença de que, para introduzir uma "higiene"
ceses miséria e desemprego. Essa situação logo en- na sociedade, para "reorganizá-la", seria necessário
contraria resposta por parte da classe trabalhadora. fundar uma nova ciência. Durkheim, ao discutir a for-
Em 1816-817 e em 1825-1827, os operários destroem mação da sociologia na França do século XIX, refere-se
as máquinas em manifestações de revolta. Com a in- a Saínt-Simon da seguinte forma:
dustrialização da sociedade francesa, conduzida pelo
O desmoronamento do antigo sistema social, ao instigar
empresário capitalista, repetem-se determinadas situ-
1 a reflexão à busca de um remédio para os males de que a-
ações sociais vividas pela Inglaterra no início de sua ' sociedade padecia, incitava-o por isso mesmo a aplicar-se
Revolução Industrial. Eram visíveis, a essa época, a às coisas coletivas. Partindo da ideia de que a perturba-
30 Carlos B. Martins O que é sociologia 21

cão que atingia as sociedades europeias resultava do seu cão de seu papel de "unidade social básica" a reafir-
estado de desorganização intelectual, ele entregou-se à mação da autoridade do "chefe de família", evitando a
tarefa de pôr termo a isto. Para refazer uma consciência igualdade jurídica de homens e mulheres, delimitando.o
nas sociedades, são estas que importa, antes de tudo, papel da mulher às funções exclusivas de mãe, esposa
conhecer. Ora, .esta ciência das sociedades, a mais im- e filha.
portante de todas, não existia; era necessário, portanto,
Procedendo dessa forma, ou seja, tentando ins-
num interesse prático, fundá-la sern demora.
taurar um estado de equilíbrio numa sociedade cindi-
Como se percebe pela afirmação de Durkheim, da pelos conflitos de classe, esta sociologia inicial re-
esta ciência surge com interesses práticos e não "como vestiu-se de um indisfarçável conteúdo estabilizador,
que por encanto", como certa vez afirmara. ligando-se aos movimentos de reforma conservadora
Enquanto resposta intelectual à "crise social" da sociedade.
de seu tempo, os primeiros sociólogos irão revalorizar Na concepção de um de seus fundadores, Comte,
determinadas instituições que, segundo eles, desempe- -a sociologia deveria orientar-se no sentido de conhecer
nham papéis fundamentais na integração e na coesão e estabelecer aquilo que e!e denominava leis imutáveis
da vida social. A jovem ciência assumia como tarefa in- da vida social, abstendo-se de qualquer consideração
telectual repensar o problema da ordem social, enfati- crítica, eliminando também qualquer discussão sobre a
zando a importância de instituições como a-autorídade, realidade existente, deixando de abordar, por exemplo,
" a família, a hierarquia social, destacando a sua impor- a questão da igualdade, da justiça, da liberdade. Veja-
tância teórica para o estudo da sociedade. Assim, por mos como ele a define e quais objetivos deveria ela per-
exemplo, Lê Play (1800-1882) afirmaria que é a família seguir, na sua concepção;
e não o indivíduo isolado que possuía significação para Entendo por física social a ciência que tem por objeto pró-
uma compreensão da sociedade, pois era uma unidade prio o estudo dos fenómenos sociais, segundo o mesmo
fundamental para a experiência do indivíduo e elemen- espírito com que são considerados os fenómenos astro-
nómicos, físicos, químicos e fisiológicos, isto é, submeti-
to importante para o conhecimento da sociedade. Ao
dos a leis invariáveis, cuja descoberta é o objetivo de suas
realizar um vasto estudo sobre as famílias de trabalha- • ; pesquisas. Os resultados de suas pesquisas tornam-se o
dores, insistia que estas, sob a industrialização, haviam : ponto de partida positivo dos trabalhos do homem de
s'e tornado descontínuas, inseguras e instáveis. Diante Estado, que só tem, por assim dizer, como objetivo real
de tais fatos, propunha como solução para a restaura- ; descobrir e instituir as formas práticas correspondentes a
: • *» ' . - ' ' • - ' •
32 Carias B. Martins O que é sociologia 33

esses dados fundamentais, a fim de evitar ou pelo menos em seus diferentes matizes, que o proletariado, esse re-
mitigar, quanto possível, as crises mais ou menos graves bento da revolução industrial, buscará seu referencial
que um movimento espontâneo determina, quando não
teórico para levar adiante as suas lutas na sociedade de
foi previsto. Numa palavra, a ciência conduz à previdên-
• cia, e a previdência permite regular a ação. classes. E nesse contexto que a sociologia vincula-se ao
socialismo e a nova teoria crítica da sociedade passa a
Não deixa de ser sugestivo o termo "física so- estar ao lado dos interesses da classe trabalhadora.
cial", utilizado por Comte para referir-se à nova ciên-
Envolvendo-se desde o seu início nos debates
cia, uma vez que ele expressa o desejo de construí-la a
entre as classes sociais, nas disputas e nos antagonis-
partir dos modelos das ciências físico-naturais. A ofi-
mos que ocorriam no interior da sociedade, a sociologia
cialização da sociologia foi, portanto, em larga medida
sempre foi algo mais do que mera tentativa de reflexão
uma criação do positivismo, e uma vez assim cons-
sobre a moderna sociedade. Suas explicações sempre
tituída procurará realizar a legitimação intelectual do
novo regime. contiveram intenções práticas, um desejo de interfe-
Esta sociologia de inspiração positivista procu- rir no rumo desta civilização, tanto para manter como
rará construir uma teoria social separada não apenas para alterar os fundamentos da sociedade que a impul-
da filosofia negativa, mas também da economia políti- sionaram e a tornaram possível. - . , ' - ' '
ca como base para o conhecimento da realidade social.
Separando a filosofia e a economia política, isolando-as
do estudo da sociedade, esta sociologia procura criar
um objeto autónomo, "O social", postulando uma in-
dependência dos fenómenos sociais em face dos eco-
nftmicos.
Não será esta sociologia, criada e moldada pelo
espírito positivista, que colocará em questão os funda- rl
mentos da sociedade capitalista, já então plenamente
configurada. Também não será nela que o proletaria-
do encontrará a sua expressão teórica e a orientação
para suas lutas práticas. E no pensamento socialista,
O que é sociologia :

dividida pelos antagonismos de classe. A existência de


interesses opostos na sociedade capitalista penetrou e
invadiu a formação da sociologia. As alternativas histó-
ricas existentes nessa sociedade, seja a de sua conser-
CAPITU® SilGUNDO: vação ou de sua transformação radical, eram situações
AFCÍMÍEÃO reais com que se deparavam os pioneiros da sociologia.
- Este contexto histórico influenciou enormemente suas
visões a respeito de como deveria ser analisada a so-
ciedade, refletindo-se também no conteúdo político de
seus trabalhos. Tal situação, evidentemente, continua
afetando os trabalhos dos sociólogos contemporâneos.
• No final do século passado, o matemático francês O caráter antagónico da sociedade capitalista, ao
Henri Poicaré referiu-se à sociologia como ciência de impedir um entendimento comum por parte dos soci-
muitos métodos e poucos resultados. Ao que tudo indi- ólogos em torno ao objeto e aos métodos de investiga-
ca, nos dias de hoje poucas pessoas colocam em dúvida ção desta disciplina, deu margem ao nascimento de di-
os resultados alcançados pela sociologia. As inúmeras ferentes tradições sociológicas ou distintas sociologias,
pesquisas realizadas pelos sociólogos, a presença da
como preferem afirmar alguns sociólogos.
sociologia nas universidades, nas empresas, nos orga-
Não podemos perder de vista o fato de que a so-
nismos estatais, atestam a sua realidade. Ao lado desta
ciologia surgiu num momento de grande expansão do
crescente presença da sociologia no nosso cotidiano,
capitalismo. Alguns sociólogos assumiram uma atitude
continua, porém, chamando a atenção daqueles que
de otimismo diante da sociedade capitalista nascente,
se interessam por ela os frequentes e acirrados debates
que são travados em seu interior sobre o seu objeto de identificando os valores e os interesses da classe domi-
estudo e os seus métodos de investigação. nante como representativos do conjunto da sociedade.
A falta de um entendimento comum por parte A perspectiva que os norteava era a de buscar o pleno
dos sociólogos sobre a sua ciência possui, em boa me- funcionamento de suas instituições económicas e po-
dida, uma relação com a formação de uma sociedade líticas. Os conflitos e as lutas em que se envolviam as
Carlos B. Martins

classes sociais, constituíam para alguns deles fenóme-


nos passageiros, passíveis de serem superados.
Uma das tradições sociológicas, que se compro-
meteu com a defesa da ordem instalada pelo capitalis-
mo, encontrou no pensamento conservador uma rica
fonte de inspiração para formular seus principais con-
ceitos explicativos da realidade.
Os conservadores, que foram chamados de ''pro-
fetas do passado", construíram suas obras contra a he-
rança dos filósofos iíuministas. Não eram intelectuais
que justificavam a nova sociedade por suas realizações
políticas ou económicas. Ao contrário, a inspiração do
pensamento conservador era a sociedade feudal, com
sua estabilidade e acentuada hierarquia social. Não es-
tavam interessados em defender uma sociedade mol-
dada a partir de determinados princípios defendidos pe-
los filósofos iíuministas, nem um capitalismo que mais e
mais se transformava, apresentando sua faceta indus-
trial e financeira. O fascínio que as sociedades da Idade
Média exercia sobre eles conferiu a esses pensadores e
às suas obras um verdadeiro sabor medieval.
O ponto de partida dos conservadores foi o im- 3

pacto da Revolução Francesa, que julgavam um castigo f


de Deus à humanidade. Não cansavam de responsabili-
zar os iíuministas e suas ideias como um dos elementos
desencadeadores da Revolução de 1789. Considera-
vam as crenças iíuministas aniquiladoras da proprie- 05 profetas do passado.
5-
Carlos B. Martins
O que é sociologia 39

dade, da autoridade, da religião e da própria vida. Os


estavam tecendo uma nova teoria sobre a sociedade
conservadores eram defensores apaixonados das insti-
cujas atenções centravam-se no estudo de instituições
tuições religiosas, monárquicas e aristocráticas que se
sociais como a família, a religião, o grupo social, e a
encontravam em processo de desmoronamento, tendo
contribuição delas para a manutenção da ordem social.
alguns deles, inclusive, interesses diretos na preserva-
ção dessas instituições. Preocupados com a ordem e a estabilidade, com a co-
esão social, enfatizariam a importância da autoridade,
Pensadores como Edmund Burke (1729-1797),
da hierarquia, da tradição e dos valores morais para a
Joseph de Maistre (1754-1821), Louis de Bonald (1754-
conservação da vida social.
1840) e outros procuraram desmontar todo o ideário
As ideias dos conservadores constituíam um
dos filósofos do século XV1IÍ, atacando suas concepções
ponto de referência para os pioneiros da sociologia, in-
do homem, da sociedade e da religião, posicionando-se
teressados na preservação da nova ordem económica
abertamente contra as crenças iluministas. A socieda-
e política que estava sendo implantada nas sociedades
de moderna, na visão conservadora, estava em franco
europeias ao final do século passado. Estes, no entanto,
declínio. Não viam nenhum progresso numa sociedade
modificariam algumas das concepções dos "profetas do
cada vez mais alicerçada no urbanismo, na indústria, na
passado", adaptando-as às novas circunstâncias histó-
tecnologia, na ciência e no igualitarismo. Lastimavam o
ricas. Estavam conscientes de que não seria possível
enfraquecimento da família, da religião, da corporação
voltar à velha sociedade feudal e restaurar as suas ins-
etc. Na verdade, julgavam eles, a época moderna era
tituições, como desejavam os conservadores. Alguns
dominada pelo caos social, pela desorganização e pela
dos pioneiros da sociologia, preocupados com a defesa
anarquia. Não mediam esforços ao culparem a Revo-
da nova ordem social, chegavam mesmo^a considerar
lução Francesa por esta escalada do declínio da histó-
algumas ideias dos conservadores como reacionárias,
ria moderna. A Revolução de 1789 era, na visão dos
mas ficavam decididamente encantados com a devo-
"profetas do passado", o último elo dos acontecimen-
cão que eles dedicavam à manutenção da ordem e ad-
tos nefastos iniciados com o Renascimento, a Reforma
Protestante e a Era da Razão. miravam f
seus estudos sobre esta questão.
E entre os autores positivistas, de modo desta-
Ao fazer a crítica da modernidade inaugurada
cado Saint-Simon, Auguste Comte e Emile Durkheim,
por acontecimentos como a economia industrial, o
que as ideias dos conservadores exerceriam uma gran-
urbanismo e a Revolução Francesa, os conservadores
de influência. Alguns deles chegavam a afirmar que a
Cor/os B. Martins O que é sociologia ..

"escola retrógrada", por eles considerada imortal, seria .entusiasta da sociedade industrial. A sociedade france-
sempre merecedora da admiração e da gratidão dos po- sa pós-revolucionária, no entanto, parecia-lhe "per-
sitivistas. São estes autores que, de modo destacado, turbada", pois nela reinava, segundo ele, um clima de
iniciarão o trabalho de rever uma série de ideias dos "desordem" e de "anarquia". Uma vez que todas as re-
conservadores, procurando dar a elas uma nova roupa- lações sociais tinham se tornado instáveis, o problema
gem, com o propósito de defender os interesses domi- a ser enfrentado, em sua opinião, era o da restauração
nantes da sociedade capitalista. da ordem.
E comum encontrarmos a inclusão de Saint- Ele percebia novas forças atuantes na sociedade,
-Simon (1760-1825) entre os primeiros pensadores capazes de propiciar uma nova coesão social. Em sua
socialistas. O próprio Engels rendeu-lhe homenagem visão, a nova época era a do industrialísmo, que trazia
reputando algumas de suas descobertas geniais, ven- consigo a possibilidade de satisfazer todas as necessi-
do nelas o germe de futuras ideias socialistas. Mas, dades humanas e constituía a única fonte de riqueza
por outro lado, ele também é saudado como um dos e prosperidade. Acreditava também que o progresso
fundadores do positivismo. Durkheim costumava afir- económico acabaria com os conflitos sociais e traria
mar que o considerava o iniciador do positivismo e o segurança para os homens. A função do pensamento
verdadeiro pai da sociologia, em vez de Comte, que social neste contexto deveria ser a de orientar a indús-
geralmente tem merecido esse destaque. Dono de tria e a produção.
uma cabeça fértil em ideias e de um espírito irrequieto, A união dos industriais com os homens de ciên-
Saint-Símon sofreu a influência de ideias iluministas e cia, formando a elite da sociedade e conduzindo seus
revolucionárias, mas também foi seduzido pelo pensa- rumos era a força capaz de trazer ordem e harmonia
mento conservador. Teve como um de seus mestres, à emergente sociedade industrial. A ciência, para ele,
ou melhor, como preceptor, o famoso filósofo ilumi- poderia desempenhar a mesma função de conservação
nista D'Alambert, sendo sensível também às formula- social que a religião tivera no período feudal. Os cien-
ções de Bonald, um notório conservador. Vamos aqui, tistas, ao estabelecerem verdades que seriam aceitas
rapidamente, destacar mais o seu lado positivista, por- por todos os homens, ocupariam o papel que possuía
tanto a sua dimensão conservadora. o.clero na sociedade feudal, ao passo que os fabrican-
Saint-Simon tem sido geralmente considerado o tes, os comerciantes e os banqueiros substituiriam os
"mais eloquente dos profetas da burguesia", um grande senhores feudais. Essa nova elite estabeleceria os obje-
42 Carlos B. Martins • ' O que é sociologia 43

tivos da sociedade, ocupando, para tanto, uma posição original, embora rnaís sistemático que Samt-Símon.
de mando frente aos trabalhadores. Durante um certo período, Comte foi seu secretário
O avanço que estava ocorrendo no conhecimen- particular, até que se desentenderam intelectualmente.
to científico foi percebido por ele, que notou, no entan- Vários historiadores do pensamento social têm' obser-
to, uma grande lacuna nesta área do saber. Tratava-se, vado que Comte, em boa medida, deve suas principais
exatamente, da inexistência da ciência da sociedade. ideias a Saínt-Simon. Ao contrário desse pensador, que
Ela era vital, em sua opinião, para o estabelecimento possuía uma faceta progressista, posteriormente incor-
da nova ordem social. Esta deveria, em suas investiga- porada ao pensamento socialista, Comte é um pensa-
ções, utilizar os mesmos métodos das ciências naturais. dor inteiramente conservador, urn defensor sem ambi-
A nova ciência deveria descobrir as leis do progresso e guidades da nova sociedade.
do desenvolvimento social. A motivação da obra de Comte repousa no es-
Mesmo tendo uma visão otimista da sociedade tado de "anarquia" e de "desordem" de sua época his-
industrial, ele admitia a existência de conflitos entre os tórica. Segundo ele, as sociedades europeias se encon-
possuidores e os não possuidores. No entanto, acre- travam em um profundo estado de caos social. Em sua
ditava que os primeiros tinham a possibilidade de ate- visão, as ideias religiosas haviam há muito perdido sua
nuar este conflito apelando a medidas repressivas ou força na conduta dos homens e não seria a partir'delas
elaborando novas normas que orientassem a conduta que se daria a reorganização da nova sociedade. Muito
dos indivíduos. Admitia que a segunda escolha era mais menos das ideias dos iluministas. Comte era extrema-
eficiente e racional. Caberia, portanto, à ciência da so- , mente impiedoso no seu ataque a esses pensadores, a
ciedade descobrir essas novas normas que pudessem i quem chamava de "doutores em guilhotina", vendo em
guiar a conduta da classe trabalhadora, refreando seus suas ideias o "veneno da desintegração social". Para
possíveis ímpetos revolucionários. Jamais ocultou sua , ele, a propagação das ideias iluministas em plena socíe-
crença de que as melhorias das condições de vida dos ; dade industrial somente poderia levar à desunião entre
trabalhadores deveriam ser iniciativa da elite formada i os homens. Para haver coesão e equilíbrio na sociedade
pelos industriais e cientistas. ; seria necessário restabelecer a ordem nas ideias e nos
Várias das ideias de Saint-Simon seriam retoma- i conhecimentos, criando um conjunto de crenças co-
das por Auguste Comte (1798-1857), pensador menos • muns a todos os homens.
44 • Carlos B. Martins O que é sociologia 45
i

Convicto de que a reorganização da sociedade conhecimento científico, já constituído em várias áreas


exigiria a elaboração de uma nova maneira de conhecer do saber. A matemática, a astronomia, a física, a quí-
a realidade, Comte procurou estabelecer os princípios mica e a biologia eram ciências que já se encontravam
que deveriam nortear os conhecimentos humanos. Seu formadas, faltando, no entanto, fundar uma "física so-
ponto de partida era a ciência e o avanço que ela vinha cial", ou seja, a sociologia. Ela deveria utilizar em suas
obtendo em todos os campos de investigação. A filo- investigações os mesmos procedimentos das ciências
sofia, para ele, deixava de ser uma atividade indepen- naturais, tais como a observação, a experimentação, a
dente, com propósitos e finalidades específicas, para comparação etc.
ser reduzida a uma mera disciplina auxiliar da ciência, O positivismo procurou oferecer uma orienta-
tendo por função refietir sobre os métodos e os resul- ção geral para a formação da sociologia ao estabelecer
tados alcançados por ela. que ela deveria basicamente proceder em suas pes-
A verdadeira filosofia, no seu entender, deveria quisas com o mesmo estado de espírito que dirigia a
proceder diante da realidade de forma "positiva". A es- astronomia ou a física rumo a suas descobertas. A so-
colha desta última palavra tinha a intenção de diferen- ciologia deveria, tal como as demais ciências, dedicar-
ciar a filosofia por ele criada da filosofia do século XVIII, -se à busca dos acontecimentos constantes e repetiti-
que era negativa, ou seja, contestava as instituições so- vos da natureza.
ciais que ameaçavam a liberdade dos homens. A sua Comte considerava um dos pontos altos de sua
filosofia positiva era, nesse sentido, uma clara reação sociologia a reconciliação entre a "ordem" e o "pro-
às tendências dos iluministas. O espírito positivo, em gresso", pregando a necessidade mútua destes dois
oposição à filosofia iluminista, que em sua visão apenas elementos para a nova sociedade. Para de, o equívoco
criticava, não possuía caráter destrutivo, mas estava dos conservadores ao desejarem a restauração do ve-
exatamente preocupado em organizar a realidade. lho regime feudal era postular a ordem em detrimento
Em seus trabalhos, sociologia e positivismo apa- do progresso. Inversamente, argumentava, os revolu-
recem intimamente ligados, uma vez que a criação cionários preocupavam-se tão somente com o "pro-
desta ciência marcaria o triunfo final do positivismo gresso", menosprezando a necessidade de ordem na •'
- no pensamento humano. O advento da sociologia re- sociedade. A sociologia positivista considerava que a ;
presentava para Comte o coroamento da evolução do ordem existente era, sem dúvida alguma, o ponto de'
O que é sociologia 47
46 ' Carlos S. Martins

partida para a construção da nova sociedade. Admitia constituíam a tentativa de fornecer uma resposta às
Comte que algumas reformas poderiam ser introduzi- formulações socialistas. Discordava das teorias socia-
das na sociedade — mudanças que seriam comandadas listas, principalmente quanto à ênfase que elas atri-
pelos cientistas e industriais —, de tal modo que o pro- buíam aos fatos económicos para diagnosticar a crise
gresso constituiria uma consequência suave e gradual das sociedades europeias. Durkheirn acreditava que a
da ordem; raiz dos problemas de seu tempo não era de natureza
^Também para Durkheim (1858-1917) a questão económica, mas sim uma certa fragHidade da moral da
da ordem social seria uma preocupação constante. De época em orientar adequadamente o comportamen-
forma sistemática, ocupou-se também em estabelecer to dos indivíduos. Com isso, procurava destacar que
o objeto de estudo da sociologia, assim como indicar os programas de mudança esboçados pelos socialistas,
_e

o seu método de investigação. E por meio dele que a que implicavam modificações na propriedade e na re-
sociologia penetrou a Universidade, conferindo a essa distribuição da riqueza, ou seja, medidas acentuada-
disciplina o reconhecimento académico. mente económicas, não contribuíam para solucionar
Sua obra foi elaborada num período de constan- os problemas da época.
tes crises económicas, que causavam desemprego e mi- Para ele, seria de fundamental importância en-
séria entre os trabalhadores, ocasionando o aguçamen- contrar novas ideias morais capazes de guiar a conduta
to das lutas de classes, com os operários passando a uti- dos indivíduos. Considerava que a ciência poderia, por
lizar a greve como instrumento de luta e fundando os meio de suas investigações, encontrar soluções nesse
seus sindicatos. Não obstante essa situação de conflito, sentido. Compartilhava com Saint-Simon a crença de
o início do século XX também é marcado por grandes que os valores morais constituíam um dos elementos
progressos no campo tecnológico, como a utilização eficazes para neutralizar as crises económicas e políti-
do petróleo e da eletricidade corno fontes de energia, o cas de sua época histórica. Acreditava também que era
que criava um certo clima de euforia e de esperança em a partir deles que se poderia criar relações estáveis e
torno do progresso económico. ; duradouras entre os homens.
Vivendo numa época em que as teorias socia- ; Possuía uma visão otimista da nascente socieda-
listas ganhavam terreno, Durkheim não podia desco- i de industrial. Considerava que a crescente divisão do
nhecê-las, tanto que as suas ideias, em certo sentido, i trabalho que estava ocorrendo a todo vapor na socie-
48 Carlos B. Martins O que é sociologia --

dade europeia acarretava, em vez de conflitos sociais, Preocupado em estabelecer um objeto de estudo
um sensível aumento da solidariedade entre os homens. e um método para a sociologia, Durkheim dedicou-se a
De acordo com ele, cada membro da sociedade, tendo essa questão, salientando que nenhuma ciência pode-
uma atividade profissional mais especializada, passava ria se constituir sem uma área própria de investigação.
a depender cada vez mais do outro. Julgava, assim, que A sociologia deveria tornar-se uma disciplina indepen-
o efeito mais importante da divisão de trabalho não era dente, pois existia um conjunto de fenómenos, na rea-
o seu aspecto económico, ou seja, o aumento da pro- lidade que se distinguia daqueles estudados poir-outras
dutividade, mas sim o fato de que ela tornava possível a ciências, não se confundindo seu objeto, por exemplo,
união e a solidariedade entre os homens. com a biologia ou a psicologia. A sociologia deveria se
Segundo Durkheim, a divisão do trabalho deve- ocupar, de acordo com ele, com os fatos sociais que se
ria em geral provocar uma relação de cooperação e de apresentavam aos indivíduos como exteriores e coerci-
tivos, O que ele desejava salientar com isso é que um
solidariedade entre os homens. No entanto, como as
indivíduo, ao nascer, já encontra pronta e constituída
transformações socioeconômicas ocorriam velozmen-
a sociedade. Assim, o direito, os costumes, as crenças
te nas sociedades europeias, inexistia ainda, de acordo
religiosas, o sistema financeiro foram criados não por
com ele, um novo e eficiente conjunto de ideias morais
ele, mas pelas gerações passadas, sendo transmitidos às
que pudesse guiar o comportamento dos indivíduos.
novas por meio do processo de educação.
Tal fato dificultava o "bom funcionamento" da socieda- As nossas maneiras de comportar, de sentir as
de. Essa situação fazia com que a sociedade industrial coisas, de curtir a vida, além de serem criadas e es-
mergulhasse em um estado de anomia; ou seja, experi- tabelecidas "pelos outros", ou seja, por meio das ge-
mentasse uma ausência de regras claramente estabele- rações passadas, possuem a qualidade de serem co-
cidas. Para Durkheim, a anomia era uma demonstração ercitivas. Com isso, Durkheim desejava assinalar o
contundente de que a sociedade encontrava-se social- caráter ímpositivo dos fatos sociais, pois, segundo ele,
mente doente. As frequentes ondas de suicídios na comportamo-nos de acordo com o figurino das regras
nascente sociedade industrial foram analisadas por eíe socialmente aprovadas.
como um bom indício de que a sociedade encontrava- Ao enfatizar ao longo de sua obra o caráter ex-
-se incapaz de exercer controle sobre o comportamen- terior e coercitivo dos fatos sociais, Durkheim menos-
to de seus membros. - " . prezou a criatividade dos homens no processo histó-

*
50 Carlos B. Martins : O que é sociologia 51

rico. Estes surgem sempre, em sua sociologia, como francês foi quase imediata, formando vários discípulos
seres passivos, jamais como sujeitos capazes de negar que continuaram a desenvolver as suas preocupações.
e transformar a realidade histórica, A sua influência fora do meio académico francês come-
O positivismo durkheimiano acreditava que a çou um pouco mais tarde, por volta de 1930, quando, na
sociedade poderia ser analisada da mesma forma que Inglaterra, dois antropólogos, Malinowski e Radcliffe-
os fenómenos da natureza. A partir dessa suposição, Brown, armaram a partir de seus trabalhos os alicerces
recomendava que o sociólogo utilizasse em seus estu- do método de investigação funcionalista (busca de ex-
dos os mesmos procedimentos das ciências naturais. plicação das instituições sociais e culturais em termos
Costumava afirmar que, durante as suas investigações, da contribuição que estas fornecem para a manutenção
o sociólogo precisava se encontrar em um estado de da estrutura social). No Estados Unidos, a partir daque-
espírito semelhante ao dos físicos ou químicos. la data, as suas ideias começaram a ganhar terreno no
Disposto a restabelecer a "saúde" da sociedade, meio universitário, exercendo grande fascínio em inú-
insistia que seria necessário criar novos hábitos e com- meros pesquisadores. No entanto, foram dois sociólogos
portamentos no homem moderno, visando ao "bom americanos, Mertom e Parsons, em boa medida os res-
funcionamento" da sociedade. Era de fundamental im- ponsáveis pelo desenvolvimento do funcionalismo mo-
portância, nesse sentido, incentivar a moderação dos derno e pela integração da contribuição de Durkheim ao
interesses económicos, enfatizar a noção de disciplina pensamento sociológico contemporâneo, destacando a
e de dever, assim como difundir o culto à sociedade, às sua contribuição ao progresso teórico dessa disciplina.
suas leis e à hierarquia existente.
A função da sociologia, nessa perspectiva, seria
a de detectar e buscar soluções para os "problemas so-
ciais", restaurando a "normalidade social" e se conver- Se a preocupação básica do positivismo foi com a
tendo dessa forma numa técnica de controle social e de manutenção e a preservação da ordem capitalista, é o
manutenção do poder vigente. pensamento socialista que procurará realizar uma críti-
O seu pensamento marcou decisivamente a so- ca radical a esse tipo histórico de sociedade, colocando
ciologia contemporânea, principalmente as tendências em. evidência os seus antagonismos e contradições. E
que se têm preocupado com a questão da manuten- a partir de sua perspectiva teórica que a sociedade ca-
ção da ordem social. Sua influência no meio académico pitalista passa a ser analisada como um acontecimento
Carlos B. Martins

transitório. O aparecimento de uma classe revolucioná-


ria na sociedade -o proletariado - cria as condições para
o surgimento de uma nova teoria crítica da sociedade,
que assume como tarefa teórica a explicação crítica da
sociedade e como objetivo final a sua superação.
A formação e o desenvolvimento do conhecimen-
to sociológico crítico e negador da sociedade capitalista
sem dúvida liga-se à tradição do pensamento socialis-
ta, que encontra em Marx (1818-1883) e Engels (1820-
1903) a sua elaboração mais expressiva. Esses pensa-
dores não estavam preocupados em fundar a sociologia
como disciplina específica. A rigor, não encontramos
neles a intenção de estabelecer fronteiras rígidas entre
os diferentes campos do saber, tão ao gosto dos "espe-
cialistas" de nossos dias. Em suas obras, disciplinas que
hoje chamamos de antropologia, ciência política, econo-
mia, sociologia, estão profundamente interligadas, pro-
curando oferecer uma explicação da sociedade como
um todo, colocando em evidência as suas dimensões
globais. Grosso modo, seus trabalhos não foram elabo-
rados nos bancos das universidades, mas com bastante
frequência no calor das lutas políticas.
A formação teórica do socialismo marxista cons-
titui uma complexa operação intelectual, na qual são
assimiladas de maneira crítica as três principais cor-
rentes do pensamento europeu do século passado, ou
seja, o socialismo, a dialética e a economia política (para Marx e Engels.
54 Carlos B. Martins O que é sociologia -

maiores informações sobre a primeira corrente ver nes- • suas atenções em Saint-Simon, Owen e Fourier. Sa-
ta coleção O que é socialismo?). lientando sempre que possível as ideias geniais desses
A persistência na nascente sociedade industrial pensadores, procuravam, no entanto, apontar as suas
de relações de exploração entre as classes sociais, ge- limitações. Assinalavam que as lacunas existentes nes-
rando uma situação de miséria e de opressão, desen- te tipo de socialismo possuíam uma relação com o está-
cadeou levantes revolucionários por parte das classes gio de desenvolvimento do capitalismo da época, uma
exploradas. Paralelamente aos sucessivos movimentos vez que as contradições entre burguesia e proletariado
revolucionários que iam surgindo nos primórdios do sé- não se encontravam ainda plenamente amadurecidas.
culo XIX na Europa Ocidental, aparecia também uma Para eles, os socialistas utópicos elaboraram uma
nova maneira de conceber a sociedade, que reivindica- crítica à sociedade burguesa mas deixaram de apresen-
va a igualdade entre todos os cidadãos, não só do pon- tar os meios capazes de promover transformações radi-
to de vista político, mas também quanto às condições cais nesta sociedade, isso se devia, na avaliação de Marx
sociais de vida. A questão que vários pensadores colo- e Engels, ao caráter profundamente apolítico desse so-
cavam já não dizia respeito à atenuação dos privilégios cialismo. Os "utópicos" atuavam como representantes
de algumas classes em relação a outras, mas à própria dos interesses da humanidade, não reconhecendo em
eliminação dessas diferenças. nenhuma ciasse social o instrumento para a concretiza-
O socialismo pré-marxista, também denomina- ção de suas ideias. Acreditavam eles que, se o socialis-
do "socialismo utópico", constituía portanto uma clara mo pretendesse ser mais do que mero desabafo crítico
reação à nova realidade implantada pelo capitalismo, ou sonho utópico, seria necessário empreender uma
principalmente quanto às suas relações de exploração. análise histórica da sociedade capitalista, colocando às
Marx e Engels, ao tomarem contato com a literatura claras suas leis de funcionamento e de transformação
socialista da época, assinalaram as brilhantes ideias de e destacando ao mesmo tempo os agentes históricos
seus antecessores. No entanto, não deixaram de elabo- capazes de transformá-la.
rar algumas críticas a este socialismo, a fim de dar-lhe A filosofia alemã da época de Marx encontrara
maior consistência teórica e efetividade prática. eni Hegel uma de suas mais expressivas figuras. Como
Geralmente, quando faziam o balanço crítico do se sabe, a diaíética ocupava posição de destaque em seu
socialismo anterior às suas formulações, concentravam sistema filosófico (para maiores informações sobre este
«1»
« • «J
-O que é sociologia 57

56 ' Car/os B. Martins


motor da história eram os conflitos e as oposições entre
tema, ver, nesta coleção, O que é dialética?}. Ao toma- as classes sociais.
rem contato com a dialética hegeliana, eles ressaltaram A aplicação do materialismo dtalético aos fenó-
o seu caráter revolucionário, uma vez que o método de menos sociais teve o mento de fundar uma teoria cien-
análise de Hegel sugeria que tudo o que existia, devi- tífica de inegável alcance explicativo: o materialismo
do às suas contradições, tendia a extinguir-se. A crítica histórico. Eles haviam chegado à conclusão de que seria
que eles faziam à dialética hegeliana se dirigia ao seu necessário situar o estudo da sociedade a partir de sua
caráter idealista. O idealismo de Hegel postulava que base material. Tal constatação implicava que a inves-
o pensamento ou o espírito criava a realidade. Para ele, tigação de qualquer fenómeno social deveria partir da
as ideias possuíam independência diante dos objetos da estrutura económica da sociedade, que a cada época
realidade, acreditando que os fenómenos existentes constituía a verdadeira base da história humana.
eram projeções do pensamento. A partir do momento em que constataram serem
Ao constatar o caráter idealista da dialética he- os fatos económicos a base sobre a qual se apoiavam
geliana, procuraram "corrigi-la", recorrendo para tanto os outros níveis da realidade, como a religião, a arte e a
ao materialismo filosófico de seu tempo. Mas para eles política, e que a análise da base económica da socieda-
o materialismo então existente também apresentava de deveria ser orientada pela economia política, é que
falhas, pois era essencialmente mecanicísta, isto é, con- ocorre o encontro deles com os economistas da Escola
cebia os fenómenos da realidade como permanentes e Clássica, como Adam Smith e Ricardo.
invariáveis. Segundo eles, esse materialismo estava em Uma das principais críticas que dirigiam aos eco-
descompasso com o progresso das ciências naturais, nomistas clássicos dizia respeito ao fato destes supo-
. que já haviam colocado em relevo o funcionamento rem que a produção dos bens materiais da sociedade
dinâmico dos fenómenos investigados, desqualifican- era obra de homens isolados, que perseguiam egoisti-
do uma interpretação que analisava a natureza como camente seus interesses particulares. De fato, assinala-
coisa invariável e eterna. Paralelamente ao avanço das vam Marx e Engels, na sociedade capitalista o interesse
pesquisas sobre o caráter dinâmico da natureza, os fre- económico individual fora tomado como um verdadeiro
quentes conflitos de classes que ocorriam nos países objetivo social, sendo voz corrente nessa sociedade que
capitalistas mais avançados da época levavam Marx e a melhor maneira de garantir a felicidade de todos seria
Engels a destacar que as sociedades humanas também os indivíduos se entregarem à realização de seus negó-
se encontravam em contínua transformação, e que o
j'.- Carlos B. Martins O que é sociologia --••

cios particulares. No entanto, admitir que a produção palmente o marxista, que despertou a vocação crítica
da sociedade fosse realizada por indivíduos isolados uns da sociologia, unindo explicação e alteração da socie-
dos outros, como imaginava a escola clássica, não pas- dade, e Hgando-a aos movimentos de transformação da
sava, segundo eles, de uma grande ficção. ordem existente.
Argumentando contra essa concepção extre- Ao contrário do positivismo, que procurou elabo-
mamente individualista, procuravam assinalar que o rar uma ciência social supostamente "neutra" e "impar-
homem era um animal essencialmente social. A ob- cial", Marx e vários de seus seguidores deixaram claro
servação histórica da vida social demonstrava que os a íntima relação entre o conhecimento por eles produ-
homens se achavam insenidos em agrupamentos que, zido e os interesses da classe revolucionária existente
dependendo do período histórico, poderia ser a tribo, na sociedade capitalista - - o proletariado. Observava
diferentes formas de comunidades ou a família. Marx, à esse respeito, que, assim como os economistas
A teoria social que surgiu da inspiração marxista clássicos eram os porta-vozes dos interesses da bur-
não sé limitou a ligar política, filosofia e economia. Ela guesia, os socialistas e os comunistas constituíam, por
deu um passo a mais, ao estabelecer uma ligação entre sua vez, os representantes da classe operária.
teoria e prática, ciência e interesse de classe. O pro- Vimos anteriormente que a sociologiapositivista
blema da verdade não era para eles uma simples ques- preocupou-se com os problemas da manutenção da or-
tão teórica, distante da realidade, uma vez que é no dem existente, concentrando basicamente sua atenção
terreno da prática que se deve demonstrar a verdade na estabilidade social. Como consequência desse enfo-
da teoria. O conhecimento da realidade social deve se que, as situações de conflito existentes na nascente so-
converter em um instrumento político, capaz de orien- ciedade industrial foram em larga medida omitidas por
tar os grupos e as classes sociais para a transformação essa vertente sociológica. Comprometida com a trans-
da sociedade. formação revolucionária da sociedade, o pensamento
A função da sociologia, nessa perspectiva, não marxista procurou tomar as contradições do capitalis-
era a de solucionar os "problemas sociais", com o pro- mo como um de seus focos centrais. Para Marx, assim
pósito de restabelecer o "bom funcionamento da socie- como para a maioria dos marxistas, a luta de classes, e
dade", como pensavam os positivistas. Longe disso, ela não a "harmonia" social, constituía a realidade concre-
deveria contribuir para a realização de mudanças radi- ta da sociedade capitalista. Ao contrário, da sociologia
cais na sociedade. Sem dúvida, foi o socialismo, princi- positivista, que via na crescente divisão do trabalho na
60 Carlos B. Martins ; O que é sociologia 6!
j
sociedade moderna uma fonte de solidariedade entre cam ao seu belprazer, mas a partir de certas condições
os homens, Marx a apontava como uma das formas pe- históricas existentes.
las quais se realizavam as relações de exploração, anta- A sociologia encontrou na teoria social elabo-
gonismo e alienação. rada por Marx e Engels um rico legado de temas para
' As contradições que brotavam no capitalismo e posteriores pesquisas. Forneceram uma importante
que o caracterizavam, derivavam grosso modo do anta- contribuição para a análise da ideologia, para a com-
gonismo entre o proletariado e a burguesia. Os-traba- preensão das relações entre as classes sociais, para o
Ihadores encontravam-se completamente expropria- entendimento da natureza e das funções do Estado,
dos dos instrumentos de trabalho, confiscados pelos para a questão da alienação etc. De considerável va-
capitalistas. Estavam submetidos a uma dominação lor, deve ser destacado o legado que deixaram às ciên-
económica, uma vez que se encontravam excluídos da cias sociais: a aplicação do materialismo dialético ao
posse dos meios de trabalho. A dominação estendia- estudo dos fenómenos sociais. A sociologia encontrou
se ao campo político, na medida em que a burguesia também, nessa vertente de pensamento, inspiração
utilizava o Estado e seus aparelhos repressivos, como para se tornar um empreendimento crítico e militante,
a polícia e o exército, para impor os seus interesses ao desmistificãdor da civilização burguesa, e um compro-
conjunto da sociedade. A dominação burguesa esten- misso com a construção de uma ordem social na qual
fossem eliminadas as relações de exploração entre as
dia-se também ao plano cultural, pois, ao dominar os
classes sociais.
meios de comunicação, difundia seus valores e con-
cepções às classes dominadas.
Contrariamente à sociologia positivista, que con-
cebia a sociedade como um fenómeno ''mais importan-
A intenção de conferir à sociologia uma reputa-
te" que os indivíduos que a integram, submetendo-o e ção científica encontra na figura de Max Weber (1864-
dominando-o, a sociedade, nessa perspectiva, era con- 1920) um marco de referência. Durante toda a sua vida,
cebida como obra e atividade do próprio homem. São insistiu em estabelecer uma ciara distinção entre o co-
os indivíduos que, vivendo e trabalhando, a modificam. nhecimento científico, fruto de cuidadosa investigação,
Mas, acrescentavam eles, os indivíduos não a módifi- e os julgamentos de valor sobre a realidade. Com isso,
62 Carlos B. Martins O que é sociologia DJ

desejava assinalar que um cientista não tinha o direito utilizado por ele na luta pela liberdade intelectual, uma
de possuir, a partir de sua profissão, preferências políti- forma de manter a autonomia da sociologia em face da
cas e ideológicas. No entanto, julgava ele, sendo todo burocracia e do Estado alemão da época.
cientista também urn cidadão, poderia ele assumir posi- A produção da vasta obra de Weber ocorreu
ções apaixonadas em face dos problemas económicos e num período de grande surto de industrialização e
políticos, mas jamais deveria defendê-los a partir de sua crescimento económico, levado a cabo por Bismarck e
atividade profissional. continuado por Guilherme H. Tratava-se de uma indus-
A busca de uma neutralidade científica levou We- trialização tardia, comparada com a industrialização
ber a estabelecer uma rigorosa fronteira entre o cientis- da Inglaterra e da França. O capitalismo industrial ale-
ta, homem do saber, das análises frias e penetrantes, e mão não nasceu de uma ruptura radical com as forças
o político, homem de ação e de decisão comprometido feudais tradicionais, tal como se verifica na sociedade
com as questões práticas da vida. O que a ciência tem a francesa. O arranque económico da Alemanha des-
oferecer a esse homem de ação, segundo Weber, é urn :sa época foi realizado com base em um compromisso
entendimento claro de sua conduta, das motivações e entre os interesses dos latifundiários prussianos - os
das consequências de seus atos. Junkers - e os empresários industriais do oeste alemão.
Essa posição de Weber, que tantas discussões A classe trabalhadora, constituída por mais da metade
tem provocado entre os cientistas sociais, constitui, ao da população, estava submetida a uma rígida disciplina
isolar a sociologia dos movimentos revolucionários, um nas fábricas, a prolongadas jornadas de trabalho, o que
dos momentos decisivos da profissionalização dessa a levava a desencadear, de forma organizada, uma luta
disciplina. A ideia de uma ciência social neutra seria um por seus direitos políticos e sociais.
argumento útil e fascinante para aqueles que viviam e A debilidade da burguesia alemã da época para
iriam viver da sociologia como profissão. Ela abria a pos- controlar o poder político, mesmo dominando a vida
sibilidade de conceber a sociologia como um conjunto económica, abriu um formidável espaço para a buro-
de técnicas neutras que poderiam ser oferecidas a qual- cracia enfeixar em suas mãos a direção do Estado. Essa
quer comprador público ou privado. Vários estudiosos burocracia, que geralmente recrutava seus membros
da formação da sociologia têm assinalado, no entanto, , na nobreza, passava a impor a toda a sociedade suas
que a neutralidade defendida por Weber foi um recurso opções políticas, exercendo um verdadeiro despotismo
64 Carlos B. Martins O que é sociologia 65

burocrático. E nesse contexto de impotência política da guras destacadas no meio académico, comoToennies,
burguesia que Weber observou, certa vez, que o que Windelband, Simmel, Georg Lukács e vários outros,
o preocupava não era a ditadura do proletariado, mas alguns dos quais frequentavam a sua casa.
sim a "ditadura do funcionário", numa clara alusão ao Weber receberia também forte influência do pen-
poder conferido ao funcionário prussiano. samento marxista, que a essa época já havia penetra-
O surto de crescimento económico que vivia a do o mundo político e universitário. Boa parte de suas
sociedade alemã dessa época teria repercussões em sua obras foi realizada para testar o acerto da concepção
vida académica. A universidade também enriqueceria marxista, principalmente no que dizia respeito à rela-
e o professor pequeno-burguês, atormentado com pro- ção entre a economia e as outras esferas da vida social.
blemas de subsistência, deu lugar ao docente de classe Suas inúmeras pesquisas indicavam, até certo ponto,
alta ou média, com tempo para pesquisas e sem fortes em sua visão, o acerto das relações estabelecidas por
pressões para publicá-las. Marx entre economia, política e cultura. Mas para ele
A formação da sociologia desenvolvida por We- 1 não possuía fundamento admitir o princípio de que a
ber é influenciada enormemente pelo contexto inte- : economia dominasse as demais esferas da realidade so-
lectual alemão de sua época. Incorporou em seus tra- cial. Para ele, só a realização de uma pesquisa detalha-
balhos algumas ideias de Kant, como a de que todo 1 da sobre um determinado problema poderia definir que
ser humano é dotado de capacidade e vontade para dimensão da realidade condiciona as demais.
assumir urna posição consciente diante do mundo. A sociologia por ele desenvolvida considerava
Compartilhava com Nietzsche uma visão pessimis- o indivíduo e a sua ação ponto chave da investigação.
ta e melancólica dos tempos modernos". Com Som- -Com isso, ele queria salientar que o verdadeiro ponto
bart possuía a preocupação de desvendar as origens de partida da sociologia era a compreensão da ação dos
do capitalismo. Em Heidelberg, em cuja universidade indivíduos e não a análise das "instituições sociais" ou
foi catedrático entre os anos de 1906 e 1910, entrou do "grupo social", tão enfatizadas pelo pensamento
em contato comTroeltsch, estudioso da religião, que conservador. Com essa posição, não tinha a intenção
já havia evidenciado a ligação entre a teologia calvi- de negar a existência ou a importância dos fenómenos
nista e a moral capitalista. Durante o período em que sociais, como o Estado, a empresa capitalista, a socie-
permaneceu naquela cidade, travou relações com fi- dade anónima, mas tão-somente a de ressaltar a neces-
66 . Carlos B. Martins O que é sociologia 67

sidade de compreender as intenções e motivações dos A análise da religião ocupou lugar central nas
indivíduos que vivenciam essas situações sociais. '• preocupações e nos trabalhos de Weber. Ao estudar os
A sua insistência em compreender as motivações fenómenos da vida religiosa, desejava compreender a
das ações humanas levou-o a rejeitar a proposta do po- : sua influência sobre a conduta económica dos indivídu-
sitivismo de transferir para a sociologia a metodologia os. Com esse propósito, r
realizou investigações sobre as
de investigação utilizada pelas ciências naturais. Não grandes religiões da índia, da China etc. O seu trabalho
havia, para ele, fundamento para essa proposta, uma A ética protestante e o espírito do capitalismo, publicado
vez que o sociólogo não trabalha sobre uma matéria j em 1905, ficaria particularmente famoso nessa área de
inerte, como acontece com os cientistas naturais. j estudo. Tinha ele a intenção de examinar as implica-
A contrário do positivismo, que dava maior ên- •i coes das orientações religiosas na conduta económica
fase aos fatos, à realidade empírica, transformando ge- ' dos homens, procurando avaliar a contribuição da ética
protestante, especialmente a calvinista, na promoção
ralmente o pesquisador num mero registrador de infor-
do moderno sistema económico. Weber reconhecia
mações, a metodologia de Weber atribuíarlhe um papel
;.que o desenvolvimento do capitalismo devia-se em
ativo na elaboração do conhecimento.
grande medida à acumulação de capital a partir do final
A obra de Weber representou uma inegável con-
da Idade Média. Mas, para ele, o capitalismo era tam-
tribuição à pesquisa sociológica, abrangendo os mais
• bem obra de ousados empresários que possuíam uma
variados temas, como o direito, a economia, a histó- nova mentalidade diante da vida económica, uma nova
ria, a religião, a política, a arte, de modo destacado a forma de conduta orientada por princípios religiosos.
música. Seus trabalhos sobre a burocracia tornaram-no : Em sua visão, vários pioneiros do capitalismo perten-
um dos grandes analistas desse fenómeno (ver, nesta ciam a diversas seitas puritanas e em função disso leva-
coleção, O que é burocracia?). Foi um dos precursores vam uma vida pessoal e familiar bastante rígida. Suas
da pesquisa empírica na sociologia, efetuando investi- ! convicções religiosas os levavam a considerar o êxito
gações sobre os trabalhadores rurais alemães. A sua económico um sintoma de bom indício da benção de
importante reflexão sobre a metodologia a ser utilizada Deus. Como esses indivíduos não usufruíam seus lu-
nas ciências sociais foi elaborada a partir de sua intensa cros, eram avidamente acumulados e reinvestidos em
atividade de pesquisa. 1 suas atividades.

4%
f»»*
Carlos B. Martins

Esse seu trabalho jamais teve a intenção de afir-


mar, como interpretaram erroneamente alguns de seus
críticos, que a causa explicativa do capitalismo era a éti-
ca protestante, ou que os fenómenos culturais explica-
riam a vida económica. Sua pesquisa apenas procurou
assinalar que uma das causas do capitalismo, ao íado de
outras, como os fatores políticos e tecnológicos, foi a
ética de algumas seitas protestantes.
Vivendo em uma nação retardatária quanto ao
desenvolvimento capitalista, Weber procurou conhe-
cer a fundo a essência do capitalismo moderno. Ao
contrário de Marx, não considerava o capitalismo um
sistema injusto, irracional e anárquico. Para ele, as ins-
tituições produzidas pelo capitalismo, como a gran-
de empresa, constituíam clara demonstração de uma
organização racional que desenvolvia suas atividades
dentro de um padrão de precisão e eficiência. Exaltou
em diversas oportunidades a formação histórica das so-
ciedades inglesa e norte-americana, ressaltando a figu-
ra do empresário, considerado às vezes um verdadeiro
revolucionário. De certa forma, o seu elogio ao caráter
antitradicional do capitalismo inglês, especialmente do
norte-americano, era a forma utilizada por ele para ata-
car os aspectos retrógrados da sociedade alemã, princi-
palmente os latifundiários prussíanos.
O capitalismo lhe parecia a expressão da moder-
Max Weber,
nização e uma eloquente forma de racionalização do
O que é sociologia "
70 • ' Carlos B. Martins '
Em boa medida, os clássicos da sociologia, inde-
homem ocidental. No entanto, não manifestava gran-
pendentemente de suas filiações ideológicas, procura-
de entusiasmo pelas realizações da civilização ociden- ram explicar as grandes transformações por que passa-
tal. A crescente racionalização da vida no Ocidente, va a sociedade europeia, principalmente as provocadas
abarcando campos como a música, o direito e a eco- pela formação e desenvolvimento do capitalismo. Seus
nomia, implicava, em sua visão, um alto custo para o trabalhos forneceram preciosas informações sobre as
homem moderno. Essa escalada da razão, a sua utili- condições da vida humana, sobre o problema do equilí-
zação abusiva, levava a uma excessiva especialização, brio e da mudança social, sobre os mecanismos de do-
a um mundo cada vez mais intelectualizado e artificial, minação, sobre a burocratização e a alienação da época
que abandonara para sempre os aspectos mágicos e in- moderna. Geralmente, esses estudos clássicos, ao exa-
tuitivos do pensamento e da existência. Suas análises o minarem problemas históricos de seu tempo, fornece-
convenceram da inevitabilidade desse processo de ra- ram uma imagem do conjunto da sociedade da época.
Suas análises também estabeleceram, via de regra, uma
cionalização. Não via nenhum atrativo no movimento
rica relação entre as situações históricas e os homens
socialista, chegando mesmo a considerar que o Estado
que as vivenciavam, propiciando assim uma importante
socialista acentuaria os aspectos negativos da racio- contribuição para a compreensão da vinculação entre a
nalização e burocratização da vida contemporânea. A biografia dos homens e os processos históricos.
sua visão sociológica dos tempos modernos desemboca
numa apreciação melancólica e pessimista, capitulando
de forma resignada diante da realidade social.
A obra de Weber, assim como a de Marx,
Durkheim, Comte, Tocqueville, Lê Play, Toennies, Spen-
cer etc., constitui um momento decisivo na formação
da sociologia, estruturando de certa forma as bases do
, pensamento sociológico. É no período.que vai de 1830
às primeiras décadas do século XX que ocorre a forma-
- cão dos principais métodos e conceitos de investigação
da sociologia.
«m
«»«j
Herbert José de Souza

As experiências realizadas com este método foram muito


interessantes tanto pelo que foi produzido como análise
coletiva da conjuntura, como pela tomada de consciência
dos participantes sobre o seu nível de informação e conhe-
cimento da realidade. A representação é reveladora
também das atitudes básicas que temos sobre as dife-
rentes forças sociais que atuam na luta política e o quanto
estamos ou somos influenciados pela informação e ideo-
Como se faz
logia dominantes.
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conu

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VOZES 32a edição

-v;.
-j:
SSTf''
Introdução

No momento em que toda a sociedade brasileira acom-


panha ativamente o desenrolar dos acontecimentos políti-
cos, fica evidente que não basta apenas estar com a leitura
dos jornais em dia para entender o que está ocorrendo. No
volume de informações que é veiculado todos os dias é ne-
cessário identificar os ingredientes, os atores, os interesses
em jogo. Fazer isso é fazer análise de conjuntura.
Na verdade a todo momento e em relação às mais varia-
das situações fazemos "análises" de conjuntura sabendo ou
não, querendo ou não: quando decidimos sair de casa, sair
do emprego, entrar num partido, participar de uma luta
política, casar, colocar o filho num colégio, evitar ou buscar
uma briga, descansar ou ficar atento, em todas essas situa-
ções, tomamos decisões baseados em uma avaliação da si-
tuação vista sob a ótíca de nosso interesse ou necessidade.
Nessas decisões levamos em conta as informações que te-
mos, buscamos nos informar, avaliamos as possibilidades,
fazemos hipóteses de desenvolvimento dos fatos, das rea-
ções possíveis das pessoas ou dos grupos, medimos a "for-
ça" ou o perigo de nossos eventuais "inimigos" ou dos "pe-
rigos" e, a partir desse conjunto de conhecimentos, infor-
mações e avaliações, tomamos nossas decisões.
A análise da conjuntura é uma mistura de conhecimem
to e descoberta, é uma leitura especial da realidade e que se
faz sempre em função de alguma necessidade ou interesse,
Nesse sentido não há análise de conjuntura neutra, desinte-
ressada: ela pode ser objetiva, mas estará sempre relaciona-
da a uma determinada visão do sentido e do rumo dos
i
acontecimentos.
Algumas categorias para a análise da
A análise da conjuntura é não somente parte da arte da conjuntura
política como é em si mesma um ato político, Faz análise po-
lítica quem faz política, mesmo sem saber.
Mas a análise da conjuntura é uma tarefa complexa,
Para se fazer análise de conjuntura são necessárias al-
difícil e que exige não somente um conhecimento detalha-
gumas ferramentas próprias para isso. São as categorias
do de todos os elementos julgados importantes e disponí-
com que se trabalha:
veis de uma situação determinada, como exige também
um tipo de capacidade de perceber, compreender, desco- acontecimentos
brir sentidos, relações, tendências a partir dos dados e das cenos
informações. atores
Não deixa de ser surpreendente que para uma ativida- relação de forças
de tão importante como é a de analisar e acompanhar o de- articulação (relação) entre "estrutura" e "conjuntura". •
senvolvimento da situação política e económica de um país Cada uma destas categorias merece um tratamento à
falte a elaboração de teorias e métodos específicos. O texto parte, mas no conjunto elas poderiam ser estudadas como
que segue visa oferecer alguns elementos metodológicos elementos da "representação da vida" ou uma peça de tea-
para se analisar a realidade política e perceber mais clara- tro. Essas categorias, por exemplo, foram utilizadas por
mente a conjuntura. Marx em seu estudo da Revolução Francesa, no "18 Brumá-
rio", que constitui um dos mais brilhantes estudos de uma
situação política (uma conjuntura) já realizados,
Tentemos ver um pouco mais o sentido de cada uma.

Devemos distinguir fato de acontecimento. Na vida


real ocorrem milhares de fatos todos os dias em todas as
partes, mas somente alguns desses fatos são "considera- bem a percepção que uma sociedade ou grupo social, ou *
dos" como acontecimentos; aqueles que adquirem um sen- classe, tem da realidade e de si mesmos.
tido especial para um país, uma classe social, um grupo so- Identificar os principais acontecimentos num determi-
cial ou uma pessoa. nado momento, ou período de tempo, é um passo funda- s
Alguém pode cair de um cavalo e isso se constituir so- mental para se caracterizar e analisar uma conjuntura.
mente num fato banal, mas, se esta é a queda de um presi-
dente, provavelmente será um acontecimento. O nascimen- d) Cenários
to do filho de um rei é um acontecimento para o país, o nas-
As ações da trama social e política se desenvolvem em
cimento do filho de um operário é um acontecimento para a
determinados espaços que podem ser considerados como
família. O beijo pode ser um fato comum, mas o beijo de Ju-
cenários. Ouvimos sempre falar nos cenários da guerra, ce-
das foi um acontecimento.
nários da, luta. O cenário de um conflito pode se deslocar de
Existem ocorrências que se constituem em "aconteci- acordo com o desenvolvimento da luta: passar das ruas e
mentos" tais como greves gerais, eleições presidenciais (prin- praças para o parlamento, daí para os gabinetes ministeri-
cipalmente se são diretas...), golpes militares, catástrofes, ais e daí para os bastidores.., Cada cenário apresenta parti-
. descobertas científicas de grande alcance. Estasocorrências cularidades que influenciam o desenvolvimento da luta e
por sua dimensão e seus efeitos afetam o destino e a vida de muitas vezes o simples fato de mudar de cenário já é uma
milhões de pessoas, da sociedade em seu conjunto. indicação importante de uma mudança no processo, A ca-
Na análise da conjuntura o importante é analisar os pacidade de definir os cenários onde as lutas vão se dar é
acontecimentos, sabendo distinguir primeiro fatos de acon- um fator de vantagem importante. Quando o governo con-
tecimentos e depois distinguir os acontecimentos segundo segue deslocar a luta das praças para os gabinetes já está de
sua importância. Essa importância e peso são sempre relati- alguma forma deslocando as forças em conflito para um
vos e dependem da ótica de quem analisa a conjuntura, campo onde seu poder é maior. Daí a importada de iden-
porque uma conjuntura pode ser boa para alguém e péssi- tificar os cenários onde as lutas se desenvolvem e as parti-
ma para outros: um ladrão que chega num lugar policiado cularidades dos diferentescenários.
vai verificar que a conjuntura está ruim para ele naquele
Numa ditadura militar os cenários do poder e da luta
dia, a mãe que chega na praça com seu filho vai pensar o
contrário. contra esse poder serão necessariamente diferentes dos ce-
nários de uma sociedade democrática. Numa, talvez o quar-
Á importância da análise a partir dos acontecimentos é i
tel; noutra, o parlamento, as ruas e as praças,
que eles indicam sempre certos "sentidos" e revelam tam-

11
Outras vezes devemos buscar formas de verificação
c) Piores menos "visíveis": qual é a força de um movimento sodal ou
Outra categoria que podemos usar na análise da con- político emergente? Como medir o novo, aquilo que não
juntura é a de atores. tem registros quantitativos?
O ator é alguém que representa, que encarna um papel Outra ideia importante é a de que a relação de forças
dentro de um enredo, de uma trama de relações, Um deter- não é um dado imutável, colocado de uma vez por todas: a
minado indivíduo é um ator social quando ele representa relação de forças sofre mudanças permanentemente e é por
algo para a sociedade (para o grupo, a classe, o país), encar- isso que a política é tão cheia de surpresas: um candidato,
na uma ideia, uma reivindicação, um projeto, uma promes- um empresário, um partido político podem achar que man-
sa, uma denúncia. têm uma relaçãode superioridade e quando são chamados
Uma classe social, uma categoria social, um grupo po- a demonstrar sua "força" percebem que a relação mudou e
dem ser atores sociais. que a tjerrota ou vitória devem ser explicadas depois...
Mas a ideia de "ator" não se limita somente a pessoas
ou grupos sociais. Instituições também podem ser atores t] Mllst è/flíos, «ifostowtocomo jmfojunáoas
sociais: um sindicato, partidos políticos, jornais, rádios, "esfrate", ow aúicukçk eníre esfrafwra e conjunta
emissoras de televisão, igrejas.
A questão aqui é que os acontecimentos, a ação desen-
volvida pelos atores sociais, gerando uma. situação, defi-
nindo uma conjuntura, não se dão no vazio: eles têm rela-
As classes sociais, os grupos, os diferentes atores sociais ção com a história, com o passado, com relações sociais,
estão em relação uns com os outros. Essas relações podem económicas e políticas estabelecidas ao longo de um pro-
ser de confronto, de coexistência, de cooperação e estarão cesso mais longo. Uma greve geral que marca uma conjun-
sempre revelando uma relação de força, de domínio, igual- tura é um acontecimento novo que pode provocar
* mudan-
dade ou de subordinação. Encontrar formas de verificar a ças mais profundas, mas ela não cai do céu, ela é o resultado
relação de forças, ter uma ideia mais clara dessa relação é de um processo mais longo e está situada numa determina-
decisivo se se quer tirar consequências práticas da análise da estrutura industrial que define suas características bási-
da conjuntura, Algumas vezes essa relação de forças se re- cas, seu alcance e limites. Um quadro de seca no Nordeste
vela através de indicadores até quantitativos, como é o caso pode marcar uma conjuntura social grave, mas ela deve ser
de uma eleição: o número de votos indicará a relaçãode for- relacionada à estrutura fundiária que, de alguma maneira,
ças entre partidos, grupos e classes sociais.
13
12
interfere na forma como a seca atinge as populações/ a Quando somos capazes de perceber a lógica interna de uma
quem atinge e como. . determinada política económica ficará mais fácil entender o
A isso chamamos relacionar a conjuntura (os dados, os sentido dos decretos, das ações e até mesmo das visitas dos
acontecimentos, os atores) à estrutura. ministros do Planejamento...
Além de considerar essas categorias, existem outras in- Existem duas leituras possíveis dos acontecimentos ou
dicações que devem ser levadasím conta para se fazer uma dois modos de ler a conjuntura:
análise de conjuntura.
- a partir da situação ou do ponto de vista do poder do-
É fundamental perceber o conjunto de forças e proble- minante (a lógica do poder);
mas que estão por detrás dos acontecimentos. Tão impor- - a partir da situação ou do ponto de vista dos movi-
tante quanto apreender o sentido de um acontecimento é mentos populares, das classes subordinadas, da oposi-
perceber quais as forças/ os movimentos, as contradições, ção ao poder dominante.
as condições que o geraram, Se o acontecimento aparece di- De modo geral as análises de conjuntura são conserva-
retamente à nossa percepção este pano de fundo que o pro- doras: sua finalidade é reordenar os elementos da realidade,
duz nem sempre está claro. Um esforço e um cuidado maio- da situação dominante, para manter o funcionamento do sis-
res devem então ser feitos para situar os acontecimentos e tema, do regime. Uma análise feita tendo como pressuposto
extrair deles os seus possíveis sentidos. uma correção de rota, mas não de direção fundamental. Esse
Procurar ver também os sinais de saída para o "novo", tipo de análise parte do ponto de vista do poder dominante
o não aconteddo, o inédito, Tão importante quanto enten- e, de certa forma, determinará não somente a seleção dos
der o que já está acontecendo é estar atento aos sinais dos acontecimentos e atores a serem analisados, como atribuirá a
fenómenos novos que começam a se manifestar. estes acontecimentos um sentido afinado com os interesses
das classes dominantes. Todo acontecimento é uma realida-
Buscar ver o fio condutor dos acontecimentos, Não se
de com um sentido atribuído, não é um puro fato, mas um
pode afirmar a pnori que todos os acontecimentos "aconte-
fato lido e visto por interesses específicos. ,
cem" dentro de uma lógica determinada, seguindo um en-
Partir do ponto de vista dos movimentos populares
redo predeterminado. Na realidade, os processos são cheios
não é, obviamente, inventar situações, acontecimentos e
de sentidos e dinâmicas que escapam ou não estão subordi-
correlações de forças que beneficiem o campo popular no
nados a determinações lógicas. Isto, no entanto, não nos im-
nível da fantasia e da imaginação dos analistas interessa-
pede de procurar, de pesquisar o encadeamento, a lógica,
dos. É partir dos acontecimentos social e historicamente de-
as articulações, os sentidos comuns dos acontecimentos,
terminados, existentes, concretos, mas percebê-los, anali-

15
sá-los sob a ótica dos interesses das classes subordinadas, ação, as estratégias empregadas por estes atores sociais
dado que toda análise de conjuntura só'adquire sentido para conseguir realizar seus objetivos. Poderíamos definir
quando é usada como um elemento de transformação da estratégia como a articulação, a definição de um conjunto
realidade. de meios, de forças, de elementos tendo em vista realizar
A análise de conjuntura deve levar em conta as articu- objetivos gerais ou "projetos" mais globais que respon-
lações e dimensões locais, regionais, nacionais e internacio- dem a interesses e objetivos sociais, económicos e políticos
nais dos fenómenos, dos acontecimentos, dos atores, das de determinadas forças ou classes sociais,
forças sociais. Se na estratégia observamos os objetivos e Mas de
A importância dos elementos na análise de conjuntura ação mais gerais, na tática observamos os meios e formas
depende de cada situação, de relação ou posição num con- particulares, concretas de ação, tendo em vista a realização
texto mais amplo e mais permanente. de estratégias determinadas. Nem sempre, porém, um acon-
A análise de conjuntura de modo geral é uma análise tecimento, ou um conjunto de ações aparentemente articu-
interessada em produzir um tipo de intervenção na políti- ladas entre si constituem uma tática ou uma parte de uma
ca; é um elemento fundamental na organização da política, estratégia. Na sociedade, no processo social, o que acontece
na definição das estratégias e táticas das diversas forças so- não tem que ver necessariamente com uma lógica ou um
ciais em luta. plano estabelecido, Só as teorias conspirativas ou "estrutu-
ralistas" da história aaeditam nisso. Por isso as análises de
Uma questão chave na análise de conjuntura é a per-
conjuntura deveriam estar sempre abertas a descoberta de
cepção da complexidade e da dificuldade em determinar
varias
relações de causalidade de tipo unilinear, simples. Existe
i
um uni
ação política: sua existência, seus efeitos, suas causas. A
ação política é em si mesma um elemento da realidade polí-
tica: é a base da possibilidade de transformações, de mu-
dança, do surgimento do novo. Falar de uma lógica da ação
é falar também de sua imprevisibilidade,
As categorias "estratégia" e "tática" são também ins-
trumentos úteis para a análise da ação dos diferentes ato-
res sociais. E possível buscar identificar as linhas gerais de

i
2
Sistema do capital mundial.
Dados eerais

E importante relacionar a conjuntura com os elementos


mais permanentes; mais estruturais da realidade e levar em
conta as dimensões locais, regionais, nacionais e internacio-
nais da realidade.
O sistema do capital mundial se constitui no pano de
fundo do processo económico, social e político que se de-
senvolve em nosso país. O sistema do capital mundial não
determina todos os acontecimentos de nossa realidade, mas
seguramente ele é um elemento condicionante do conjunto
dos acontecimentos que definem o.nosso processo históri-
co. Neste sentido, é fundamental ter uma ideia global de
suas características e das formas concretas através das quais
a realidade está relacionada a este sistema.

Descrição do sistema do capital mundial,

As empresas transnadonais são a ponta avançada do capi-


talismo contemporâneo, Elas se caracterizam principalmente:
- pelo uso da tecnologia mais avançada;
- pela capacidade fantástica de produzir bens sofisticados;
- em escala de massa e em nível mundial,

19
A lógica do capital transnacional não é a maximização - um aparelho de TV é decomposto em 10,000 peças,;
do uso da ciência na produção para atender às necessidades produzidas por milhares de empresas que se subme-1
do conjunto da sociedade/ mas a maximização dos, lucros. tem ao sistema produtivo de algumas poucas monta-i
O desenvolvimento do sistema transnacional de pro- doras transnacionais. .-
dução aprofunda ainda mais e em escala mundial as con- As empresas transnacionais estão concentradas nos pai-!
tradições do modo de produção capitalista: sés capitalistas desenvolvidos. .[
- concentração dos bens de produção sob o controle de Mais de 2/3 dos investimentos transnacionais estão,
uma minoria; concentrados nestes países.
- concentração da riqueza nas mãos de pequenas par- Este sistema se realiza no interior das nações, orienta,
celas da população; reorienta, determina o sentido, o estilo, os limites do desen-
- acirramento da competição entre as formas oligopóli- volvimento das nações.
cas e não oligopólicas e entre os grandes oligopólios en- Articula-se, sob formas determinadas, até mesmo com os
tre si no interior e através de sua existência nas diferen- países e economias socialistas. Muitas empresas transnatio-
tes nações do mundo. nais produzem hoje no interior dos países socialistas através
Uma noção fundamental é que o capital mundial não é de contratos realizados entre os governos e as empresas,
igual à soma das corporações, das empresas transnacionais
existentes no mundo ou no interior dos países, é um sistema Limites e contradiçõesdo sistema do capital mundial
produtivo articulado em escala mundial sob a liderança das
- o processo de acumulação assenta-se sobre a explora-
grandes corporações e bancos transnacionais: ção do trabalho pelo capital: contradição entre proprie-
- este capital mundial (o sistema produtivo mundial) tários dos meios de produção em escala mundial e for-
submete a seu processo e integra a milhares de unida- ça de trabalho viva organizados e definidos em nível
des produtivas (empresas) de tamanho médio e peque- nacional.
no, independentemente de sua localização geográfica, Daí o confronto decorrente de expropriação dos capi-
nacionalidade ou propriedade;
tais mais débeis pelos mais fortes, agora estabelecendo-se
- nas montadoras de automóveis por exemplo, o pro-
duto final, o carro, é propriedade das transnacionais, em nível mundial,
mas as peças de tais carros são produzidas (cadeia pro- Outro aspecto importante é a contradição entre as ne-
dutiva) por milhares de pequenas e médias empresas cessidades e vocação mundial das transnacionais e os limi-
de autopeças; tes e necessidades nacionais das sociedades onde operam. O
capital não tem compromisso com o nacional, com o parti-

20 21
cular, com as realidades e necessidades definidas em nível ora ampliando sua intervenção direta, ora fazendo-a dimi- :
local ou nacional. Sua vocação é universal; quer o mundo nuir. Centraliza o poder estatal no executivo, aprofunda as '
como seu limite. As nações, os países devem organizar as crises de legitimidade afetando os mecanismos tradicionais
respostas às suas necessidades locais, nacionais, e aí reside de constituição e definição do poder do Estado.
inclusive a base de legitimidade de seus sistemas económi-
cos e políticos. Alguns dados sobre o Brasil e o processo de
À lógica da acumulação definida em nível mundial não transnadonalização
corresponde, portanto, a lógica de acumulação definida no in-
terior de um país. Para poder existir nos espaços nadonais, no - O capital transnacional é um dos principais atores de
entanto, o capital mundial necessita do consentimento do po- nossa economia política. Ele está presente em posição
estratégica nos setores fundamentais da economia. Con-
der político de cada país. Deste fato decorrem em grande me-
trola os setores industriais mais dinâmicos e pratica-
dida as contradições existentes entre as instândas de poder
mente determina a natureza e os rumos de nosso pro-
em nível mundial e os Estados nadonais transnadonalizados.
Há uma articulação contraditória do poder político em escala cesso económico.
mundial e nacional. - A dívida externa de 100 bilhões de dólares é um pro-
blema do sistema financeiro mundial e corresponde de
Para o capital transnacional, que planeja e opera tendo certa forma a um "crédito" interessado concedido ao
em vista o longo prazo, a estabilidade dos regimes é um fa- Brasil como parceiro do sistema e em função do desen-
tor essencial. volvimento transnadonalízado, É um sinal da força do
Outra contradição básica é a que se estabelece entre as sistema financeiro mundial e da debilidade do sistema
funções do Estado em relação às necessidades populares e político brasileiro que foi praticamente ocupado e sub-
um Estado íransnacionalizado, cuja ordem e lógica internas metido ao M.
transcendem o espaço nacional. Os Estados nacionais pas- - A dívida externa brasileirade certa forma é, portanto,
sam a desempenhar uma dupla função transnacional e na- um indicador do grau de transnacionalização da eco-
donal - da qual decorrem novos problemas relativos à acu-
mulação e à legitimidade. - A transnadonalização capitalista torna evidente e
Como legitimar um Estado nacional que não tem como acentua ainda mais as desigualdades económicas e so-
objetivo central atender os interesses nacionais? ciais: os níveis salariais, o leque salarial no interior do
O processo de transnadonalização exerce pressões vi- Brasil e entre o Brasil e outros países, mesmo entre os
'subdesenvolvidos, mostram uma situação de extrema
l síveis no sentido de mudar o papel do Estado na economia,
desigualdade. A diferença salarial entre o trabalhador

22 23
brasileiro e um americano pode chegar a 10 x 1. Cerca
de 70% da população brasileira não são mercado para 3
os produtos das transnacionais, particularmente os mais Sistema do poder político
sofisticados. Mas mesmo assim existe um mercado de
10 a 15 milhões de brasileiros para as transnacionais transnacionalizado
que operam no Brasil.
A transnacionalização da economia e da política é um
fenómeno que caracteriza o processo brasileiro de forma
global e determina o rumo de seu desenvolvimento. Como É artificial separar o económico do político. O ato de
o Estado transnacionalizado teve que se impor à nação e se produzir é também um ato político. O capital é uma relação
divorciou dela, daí derivam as grandes questões políticas e social de produção. Por isso é importante perceber o con-
a origem de suas crises. O Estado brasileiro está sendo diri- texto económico e político como duas dimensões de um
gido por atores políticos que não têm condições de se apre- mesmo fenómeno global. Devemos falar, portanto, de um
sentar clara e diretamente à sociedade, porque respondem sistema do capital mundial que existe porque também é um
aos interesses do grande capital transnacional instalado no sistema de poder político transnacionalizado, que submete
país, A história política de Roberto Campos, Mário Henri- os Estados nacionais a sua dinâmica, limites e contradições.
que Simonsen e Delfim Netto ao longo desses 20 anos ilus- No sistema de poder transnacionalizado o Estado pas-
tra esse ponto, Enquanto essa situação perdurar será pro- sa por uma série de transformações políticas? de modo ge-
blemático institucionalizar o poder do Estado. Nacionali- ral se caracteriza por seu caráter centralizado, desnacionali-
zar o Estado passou a ser uma questão fundamental e nova. zado, tecnocrático e repressivo sob diferentes formas.
Tão nova que para muitos esta proposta pode parecer sem Como é um Estado nacional, mas está submetido a uma
sentido, já que não se consegue pensar um Estado que não lógica de acumulação transnacionalizada, a questão central
seja nacional, por definição. A realidade ultrapassou a defi- deste Estado passa a ser a da legitimidade e/portanto, o de
nição e a transnacionalização redefiniu a natureza dos Esta- sua incapacidade de -institucionalizar-se pelas vias liberais
dos nacionais. e, particularmente, sua institucionalização através dos pro-
cessos eleitorais.
O Estado é praticamente reduzido ao Poder Executivo
federal

24
25
Centralizado e tecnocratizado o Estado passa a exercer é identificado como inimigo potencial da nação. As mani- ;
o seu poder através de decisões autoritárias, com base no fesíações dos movimentos populares são tratadas como j !
uso direto da força ou no recurso visível a coerção armada manifestações agressivas do inimigo do Estado. l
(Forças Armadas) e no uso intensivo dos meios de comuni- Os processos eleitorais de modo geral são banidos, por .
cação
i de massa sob o control e direto e indireto do Estado. O tempo fixado segundo os cálculos do poder dominante, ou
monopólio da produção e difusão da informação, em mãos controlados e manipulados de forma a não ameaçar o nú-
das grandes redes de TV e sob controle do Estado, definem cleo central do poder executivo.
um tipo de poder político que também escapa às análises Os parlamentos, onde se refletem de certo modo os in-
convencionais. Trata-se do poder de "construir o real", de teresses nacionais e populares, capitalistas ou não, são trans-
definir o real, de incluir e excluir atores, forças sociais no formados em instâncias decorativas, chamados a legalizar
quadro do real apresentado a milhões de pessoas. As coi- os atos do poder executivo ou serem marginalizados do sis-
sas, os acontecimentos, as pessoas, os movimentos sociais, tema dépoder.
as ideias, as propostas, as alternativas existem, ou não, atra-
vés de um único canal, na ponta do qual se coloca a vontade
Controle estatal dos meios de comunicação de massa
de um grupo, classe e Estado. Na outra ponta milhões de
pessoas recebem o pacote de imagens que se pretende pas- Essa é uma outra dimensão das transformações do Esta-
sar como a realidade inquestionável. do transnacionalizado em suas formas autoritárias e que me-
Neste Estado transnacionalizado, divorciado do país, rece uma atenção especial:
desaparece a divisão tradicional dos poderes: executivo, le- - a informação é apropriada pelo Estado como elemen-
gislativo, judiciário. No Brasil, principalmente a partir de to fundamental de poder;
1964, o legislativo apresentou milhares de projetos de lei - são os setores dominantes que geram as imagens cor-
sem conseguir transformá-los em lei, enquanto o executivo rentes do país e do mundo;
passou a legislar por decreto. - desenvolve-se o monopólio do executivo na produ-
ção e difusão das informações, a partir das quais a reali-
Da transnacionalização do sistema de poder político e
dade é pensada sem mecanismos de controle público
do Estado decorre a impossibilidade de controlar o poder
sobre a qualidade ou a veracidade destas informações;
executivo através de mecanismos políticos sensíveis às suas
- a produção dos dados é em grande medida privilégio
bases nacionais e populares.
do Estado. A estatística deixa de ser confiável para ser
Neste quadro os movimentos e partidos populares são uma arma política;
submetidos à lógica das leis de segurança nadonal e o povo

26 27
- o Estado, sem fiscalização e controles democráticos, O Estado passa a promover as condições para que a
determina quem somos/ o que produzimos, quanto ga- transnadonalização se dê e administra suas crises, já que é
nhamos e prognostica como será nosso futuro; incapaz de determinar o tipo de desenvolvimento conveni-
- a sociedade civil é pensada como reflexo do Estado, e ente às necessidades e potendalidades do país.
se vê muitas vezes incapaz de contrapor-se aos dados Através da retórica dos grandes projetos "hóspedes"
produzidos e manipulados pelo Estado. de interesses transnacionais, o Estado operadonaliza gran-
Os movimentos de oposição real ao regime são trata- des investimentos internacionais que são no entanto apre-
dos segundo os princípios da guerra e fião da política. Não sentados como projetos nacionais ou programas nacionais
há jogo político, mas guerra política. de desenvolvimento.
As instituições militares são colocadas na direção da A perda da soberania nacional se dá em várias dimen-
política do Estado por força da lógica da ordem, sem serem sões: económica, política, tecnológica, cultural e militar. Por
as que realmente dirigem as opções e os destinos do país, isso também o nadonalismo militar aparece como um perigo
Assumem como profissionais da guerra e da ordem do para os interesses transnadonalizados.
Estado transnacionalizado, caindo prisioneiros da lógica
de um sistema que na verdade os dirige.
A perda da substância popular
Em um Estado transnacionalizado as lideranças milita-
res que dirigem o poder político se afastam da sociedade Como a lógica do sistema é concentradora, elitista e tec-
nacional, do povo e da nação. nocrática, o Estado não consegue camuflar suas políticas
económicas e sociais antipopulares. Enquanto nos países
Contradições deste sistema capitalistas avançados o Estado ainda consegue, apesar das
crises, responder a certas necessidades de bem-estar social,
Este sistema de fato tão poderoso apresenta, no entan- nos países de capitalismo atrasado o Estado transnacionali-
to, contradições que trabalham no sentido de sua superação zado assume características perversas em rdaÇão a suas po-
histórica. A primeira sendo a perda da soberania nacional, líticas sodais, o que aprofunda a distância entre o Estado e a
Impotente frente aos centros de decisão económica e sociedade civil.
política do sistema transnacionalizado,como Estado nacio- A deslegitimação crescente do poder nacional frente às
nal ele não pode abdicar de suas funções nacionais e não maiorias nacionais provoca um amplo movimento de resis-
pode atendê-las, tência e reorganização da sociedade dvil.

28 29
capitalista. Essa regra geral pode ser aplicada à maioria dos
Surgem novas formas de organização que conquistam
espaços de poder fora do Estado, emergem movimentos estados latino-americanos, nas últimas décadas.
populares com conteúdo e formas novas. A emergência dos movimentos populares em luta con-
tra o autoritarismo produziu, no entanto, uma nova etapa
de liberalização dos Estados nacionais que revelam e desa-
Perda da substância democrática
fiam o processo de transnacionalização capitalista. Â luta
A essência da crise do Estado é a questão da democra- pela democracia passa pela reconquista dos Estados nacio-
cia, que se torna um polo catalisador, unificador dos movi- nais e por uma nova articulação da economia e da política
mentos sociais, em nível mundial.
A luta pela democratização das estruturas de poder e a
negação do Estado transnacionalizado passa a unificar e a
orientar a estratégia global de transformação da sociedade
e do Estado.
Setores majoritários da sociedade civil se organizam
desvinculados e em oposição ao Estado, e dessa oposição
nasce a negação da ordem autoritária e a proposta demo-
crática.
A questão da democracia passa a ser o eixo unificador
da questão nacional e popular: a conquista da democracia é
uma condição essencial para a realização das aspirações na-
cionais e populares.
Ás formas autoritárias dos Estados transnacionaliza-
dos variam de ditaduras militares e regimes "civis" com
forte presença das forças armadas na retaguarda da ordem,
o que não varia é sua contradição com a democracia,
Todas essas características e contradições gerais podem
ser encontradas nos estados transnacionalizados, particular-
mente aqueles com um nível atrasado de desenvolvimento

31
30
4
Formas de controle político

As formas de controle político são mecanismos existen-


tes em cada formação social com o objetivo de manter a es-
tabilidade e a ordem dos regimes, O conhecimento dessas
formas é um elemento importante na análise da conjuntura
porque elas atuam de forma permanente e nem sempre são
visíveis à-nossa percepção.

Coerção económica

O Estado e as empresas controlam os diferentes grupos


sociais e particularmente as massas assalariadas através da
coerção económica. Para sobreviver é necessário assalari-
ar-se, portanto, submeter-se ao poder económico do Estado
ou dos proprietários privados dos bens deprodução.
Há inúmeros mecanismos e formas de coerção econó-
mica que funcionam nesse sentido dentro da sodedade,
controlados pelo Estado, por certas instituições da sodeda-
de civil e pelas empresas: impostos, taxas, salários,

Mecanismos de controle sobre a organização social


O Estado estabelece as regras e as normas do que é per-
mitido ou é proibido existir como organização social.

33
T s
Os sindicatos operários são permitidos, mas suas ativi- jetividade do próprio sujeito social, seja ele indivíduo ou
dades são regulamentadas por lei, pelo Estado e não pela classe social. Aceita-se a ordem social, suas leis, seus meca-
vontade livre dos operários. Da mesma forma os partidos nismos, seus horizontes como algo inevitável e que não tem
políticos, as escolas, as universidades, as empresas e a como nem por que sofrer mudanças. Se existe miséria é
maioria das organizações de serviço, as editoras, os meios porque assim tem que ser, é parte do destino de cada um, é
de difusão de massa, são todos organizações regulamenta-
das pela ação do Estado. Exemplo: as leis sobre sindicato. a vontade de Deus.
Através da resignação, a vítima se transforma em carce-
Da mesma forma o Estado proíbe a existência de outras
reira de si própria, daí sua eficiência como arma de domina-
organizações e atividades que são consideradas ilegais, cri-
ção. Através da resignação a ordem se perpetua e afasta do
minosas ou subversivas.
horizonte qualquer possibilidade ou desejo de mudança.
Desta forma o Estado trata de "organizar" e "desorgani-
zar" a sociedade civil segundo os interesses dos grupos ou Na nossa história social e política milhões de pessoas
classes dominantes, como se essa vontade transformada em foram trabalhadas por esse mecanismo ideológico, princi-
lei representasse a vontade de todos e em benefício de todos. palmente através de certa ideologia religiosa que ensinava
os pobres a sofrerem com paciência na terra para se trans-
O Estado também interfere nos mecanismos de repre-
sentação social e política da sociedade, definindo as regras formarem em herdeiros da felicidade no céu. É claro que
e as condições da representação, isto é, estabelecendo as for- enquanto isso os ricos viviam a felicidade na terra e nem
mas legais através das quais os diferentes afores ou sujeitos por isso eram excluídos da felicidade eterna, O desenvolvi-
sociais se constituem institucional e politicamente, e esco- mento capitalista com toda a parafernália consumista e as
lhem e elegem os seus dirigentes. Está claro que a essa pre- transformações mais recentesno pensamento religioso, par-
tensão do Estado não corresponde necessariamente a capa- ticularmente através da teologia da libertação, minaram as
cidade de controlar e definir todos os atores e sujeitos so- bases da resignação e o regime passou a reforçar um outro
ciais, que escapam ao seu controle e se constituem numa es- mecanismo de controle ideológico: o medo.
?
pécie de sociedade submersa. Se na resignação a dominação era internalizada na pró-
pria vítima, no medo é necessário criar a ideia de um peri-
Mecanismos ideológicos de resignação/medo; duas go, ameaça, inimigo poderoso ou força sem limites que se
formas fundamentais de controle sócia! coloca fora e por cima da vítima. Os grupos sociais ou as
pessoas atacadas pelo medo ficam paralisadas enquanto
A resignação é um dos mecanismos mais eficientes de sentirem que esse inimigoexterno os ameaça. Mas retoma-
controle social porque ele se estabelece no interior, na sub- rão os movimentos quando esse inimigo desaparecer. Daí
35
que o regime que usa o terrorismo, o medo como arma de con- gência, uma agência de publicidade ou uma grande empre-
trole soda! deve estar sempre criando as situações de medo, sa transnacional.
inventando perigos, explorando as situações de ameaça, para No Brasil este sentido de manipulação já atingiu o
manter acesa a chama do medo nas pesso». * IBGE e lançou uma onda de descrédito sobre as estatísticas
básicas do país.
Controle da informação A democratização do Estado, do regime, passa pela de-
A forma de controle social talvez mais efidente na sode- mocratização de todas as agendas e instituições, civis e mili-
dade moderna é a informação. Num país continental como o tares, estatais e privadas que produzem a informação, dado
Brasil, o Estado.tem sob seu controle uma fantástica rede na- que informação é poder e produzir informação é produzir as
donal de informações (TV, rádios, jornais, revistas), articula- condições da existência e exercício do poder político.
da às redes internacionais e submetida à Lei de Segurança
Nadonal, à Lei de Imprensa e às pressões fiscais e financei-
ras. O Estado, por outro lado, é produtor exclusivo e sem
controle por parte da sociedade de informações económicas,
financeiras, sociais e políticas através dos órgãos produtores
de estatísticas e de todo o aparato de "inteligênda" militar

mações, Cenimar, CIE, CIA e dezenas de outros).


Neste contexto a identificação destas agências produ-
toras de informação e dos interesses que elas representam é
uma tarefa importante para a leitura adequada da conjun-
tura. Os órgãos de inteligênda trabalham com um sentido
de "guerra" na produção de informação e de contrain-
formação, onde o que interessa é o objetivo que o órgão per-
segue e não a existência do fato, onde predomina a manipu-
lação do dado e não sua veracidade.
Num regime autoritário é difícil saber se o editorial de
um grande jornal está sendo escrito por um órgão de inteii-

36 37
5
Estratégias em jogo
r-o

As ideias que apresentamos a seguir constituem apenas


um pequeno exercido de análise das estratégias em jogo e
que podemos considerar como uma das formas mais interes-
santes de se fazer uma análise de conjuntura, porque a ideia
de estratégia serve para se identificar as intenções dos gru-
pos e classes sociais e tentar descobrir os sentidos mais glo-
bais dos acontecimentos e da ação de diferentes atores.
Como se trata apenas de um exemplo, vamos dispensar
maiores análises, e fiquemos somente com o esquema que
identifique as estratégias existentes no grupo dirigente no
poder, grupo dirigente fora do poder e oposição e movi-
mentos populares.
O fim da forma de dominação autoritária, chamada
agora de Velha República, abriu caminho para uma nova
fase de dominação política liberal, a Nova República. Esse
foi o caminho brasileiro de transição política da "ditadu-
ra" para uma proposta de regime Literal-Democrático. A
Nova República, no entanto, celebrou seus primeiros pas-
sos sepultando seu ator principal, Tancredo Neves. O
vice-presidente da Nova República representana a conti-
nuidade da Velha e teria de encarnar agora toda a esperan-
ça democrática dentro dos limites de uma aliança liberal
que nasceu órfã,

39
»••***•*•»*••••**

Neste quadro de uma peça que apenas começa, as es-


As duas correntes aceitam a alternância do poder como
tratégias em jogo não estão claramente definidas. Como o um princípiopolítico a ser garantido e concordam com um j
jogo apenas começou, as visões e os atores ainda não se calendário de institucionalização do país:
acostumaram ao novo.
1) Remoção imediata do entulho autoritário e liberali-
Por isso, o esquema que propomos é apenas um exercí- zação do Estado e da sociedade e de suas relações.
cio para ilustrar possibilidades de estudo através da identi- 2) Eleições diretas para prefeitos das capitais e antigas
ficação de estratégias: áreas de segurança nacional.
A) Composição entre a oposição liberal e os liberais dis- 3) Constituinte.
sidentes que romperam com o poder dominante, Dentro da 4) Eleições diretas para presidente da República a ser
Aliança podemos identificar duas correntes principais: definida pela Constituinte.
- a) liberais internacionalistas: setores dissidentes do PDS As divergências se situam na definição de política eco-
que ajudaram a constituir a transnacionalização da so- nómica. -
ciedade brasileira, nos períodos Castelo/ Geisel e Fi- As estratégias dos liberais-internaaonalistas é a de acer-
gueiredo; tar o passo do Brasil com o mundo capitalista. Para isso é
b) liberais nacional-reformistas: lideranças de oposição fundamental: . -
ao regime anterior, que expressam aspirações da classe -pagar a dívida externa;
média e das grandes massas marginalizadas.
- combater a inflação, reduzir os gastos públicos;com-
' . As duas correntes têm em comum o objetivo de institu- bater a corrupção;
cionalizar o regime liberal-democrático, que garanta o de- -desestatizar a economia;
senvolvimento do capitalismo no Brasil. Os liberais inter- - acabar com todas as restrições (reservas de mercado, '
nacionalistas acentuam a identificação e compatibilidade proteções alfandegárias etc.);.a atuação do capital trans-
entre o nosso desenvolvimento e a dinâmica do capitalismo nacional. O mundo é um só, assim também o capital. .
mundial (a ordem mundial é benéfica à ordem nacional). A estratégia dos liberais nacional-reformistas é a de re-
Os liberais nacional-reformistas colocam ênfase na necessi- ver o modo pelo qual o Brasil se articula com a economia
dade de atender mais à dinâmica do mercado interno e às mundial, dando maior ênfase às necessidades da sodedade
necessidades de reformas estruturais que integrem no país narional e mais urgência ao atendimento das demandas só- •
real os milhões de marginalizados (a ordem mundial não é riais das nossas populações. Para isso é fundamental:
necessariamente benéfica à ordem nacional). O Brasil vem - condicionar o pagamento da dívida externa à não apli-
em l9 lugar, pela ordem. cação de uma política recessiva sob imposição do M;

40
- combater a inflação sem achatar os salários; bjReativa
- democratizar a gestão da economia sem sacrificar as - é uma estratégia que se dá mais em nível de oposição j
empresas públicas; política;
- rever as estratégias de desenvolvimento de forma a - diante da iniciativa, da ação do governo, faz outra dia-
dar prioridade à empresa nacional, ao mercado inter- metralmente oposta;
no, à criação de empregos e ao combate à miséria. - é uma estratégia subordinada à iniciativa dos grupos
dirieentesnt
B) Setores dirigentes fora do poder
Com o fim do governo Figueiredo, os setores dirigentes c) Alternativa
derrotados refluíram para o PDS, a anonimato ou ao velho - é uma estratégia que toma iniciativa no plano polí-
hábito da conspiração, A estratégia básica destes grupos é a tico;
de apostar no fracasso da Nova República e na desestabili- - leni uma ação própria, comimportância original;
zação política que viria em consequência. Na medida em - existe mais em nível da prática que da formulação de
que a dimensão liberal e reformista do regime se acentua, políticas e estratégias alternativas;
estes setores poderão reaparecer no cenário em defesa dos - exemplos no campo do poder local: experiências de
"sagrados" princípios da ordem. conselhos comunitários e das prefeituras, com partici-
pação popular;
- CEBs: organização, formação e participação delas na
C) Movimentos populares vida e nas lutas dos movimentos populares;
Nos movimentos populares e nas diferentes organiza- - tais experiências retecem o tecido social a partir de
ções políticas podemos encontrar a coexistência de 3 tipos novos valores e objetivos;
de estratégias: - uma estratégia alternativa expressa uma visão e uma
a) Defensiva vontade de transformação global da sociedade; não pa-
rece ser ainda a estratégia dominante nos movimentos
- está presente, dominante nos movimentos populares;
populares e na oposição brasileira, que fica mais em ní-
- os movimentos procuram defender-se dos ataques, vel da resistência e da posição puramente reativa às ini-
das situações graves; ciativas dos grupos dominantes ou do governo;
- pensam nos meios de defesa; evitamficar a descoberto; - a importância desse tipo de estratégia cresce na con-
- não têm proposta de ataque nem alternativa à estraté- juntura da Nova República.
lominante.

42 43
6
Quadro atual

Aspecto importante da análise da conjuntura é a de ca-


racterizar as questões centrais que estão colocadas em evi-
dência na luta social e política num período determinado.
Estas questões fazem parte do debate dos partidos políti-
cos, dos sindicatos, dos movimentos sociais em geral e es-
tão refletidas na grande imprensa. As notas que seguem
constituem apenas um exemplo concreto de composição de
um quadro da situação.

d) Preocupações centrais doymm


-inflação, dívida externa, gastos públicos, recessão;
- greves, crise social, miséria, desemprego;
-reforma constitucional;
- legitimidade e estabilidade da Nova República;
-negociações com o FMI.

- há mais de 35 grandes projetos governamentais em


curso, cujas infraestruturas totais ultrapassam os 300
bilhões de dólares;
- vários destes projetos estão paralisados ou sofrendo - novas relações entre o Estado, a Igreja e o movimento
graves crises; sindicai em relação a propostas políticas e sociais relati-
- a Nova República vai ter que se definir rapidamente vas à situação das populações rurais e à questão fun-
sobre a continuidade ou descontinuidade desses gran-
des projetos. Vários deles envolvem sérios problemas - desenvolvimento das lutas no campo, ocupações e in-
políticos e sociais, como o Nuclear, Cerrados, Nordes- vasões. Violência contra posseiros e povos indígenas;
tão, Ferrovia do Aço. - amplia-se a consciência da urgência e importância da
Reforma Agrária.

e)* Owdáo
i\i ipolítica
- profundas transformações na classe operária;
- no mínimo, um milhão de operários estão emprega- -reforma constitucional;
dos diretamente nas empresas transnadonais; indireta-
mente, mais de 5 milhões estão integrados no sistema - reforma partidária. Surgimento de novos partidos e
transnacionalizado de produção industrial; legalização de partidos políticos comunistas e clandes-
- o achatamento salarial, a inflação, o desemprego, a tinos.
rotatividade e a recessão estão atingindo duramente o
movimento operário; j) Noras relações ettíre Igreja e Estado
- provável modificação em profundidade da CLI, com
o objetivo de implantar a negociação direta entre pa- - a Nova República restabelece o diálogo com a Igreja;
trões e empregados, o sindicato por empresa; - novos desafios políticos na relação entre o Estado, a
-liberalizar a legislação oficial, Igreja e os movimentos populares.
A caracterização das questões centrais tconstituem às
vezes um ponto de partida para se aprofundar a análise da
conjuntura. Seria necessário verificar quais as questões mais
- criação dos Ministérios do Desenvolvimento e Refor- importantes, como elas se relacionam e quais os desenvol-
ma Agrária com novo ministro e nova política; vimentos possíveis de cada uma delas e suas repercussões
- a questão agrária sai da área sobretudo militar e assu- mais gerais.
me sua dimensão social e política;

46
7
Campos de confronto

Um outro aspecto a ser considerado numa análise de


conjuntura é a identificação dos campos de confronto exis-
tentes num determinado momento e que caracterizam os ti-
pos de oposição e os conflitos entre os diferentes atores so-
ciais. A identificação dos campos de confronto é importante
também para a análise da correlação de forças porque o en-
foque é basicamente o do conflito. A título de exemplo po-
deríamos identificar na realidade brasileira atual os seguin-
tes campos de confronto: '

- liberalização do Estado, legitimidade da Nova Repú-


blica e as pressões pelas eleições diretas-já;
- promessas da Aliança Democrática/ discurso do po-
der e demandas dos movimentos sociais;
- as prioridades da Nova República e as urgências eco-
nómicas e sociais da sociedade,

- liberalização da atuação partidária e novo peso do Le-


gislativo dentro do Estado;

49
- desenvolvimento dospartidos políticos e emergência dos
t - a Nova República, para ser liberal, não pode coexistir
partidos clandestinos, até então reprimidos pelo Estado; com a tutelamilitar.
- ocupação dos espaços de poder do Estado pelos
partidos.

- crise da internacionalização da economia brasileira.


Redefinição ou reafirmação da hegemonia do capital
- com a Nova República, redefinição das relações Esta- transnacional sobre a sociedade brasileira;
do e Igreja. O Estado se reabre à influência política da - redefinição das relações do Brasil com o capital financei-
Igreja. Como a Igreja se colocará frente a essa abertura ro internacional e com os grandes conglomerados trans-
do poder?
nadonaise pressões nacionalistas externas e internas;
- a redefinição das relações entre Igreja e Estado provo- - liberalização e abertura da política externa brasileira
ca, e ao mesmo tempo depende, da redefinição da cor- raspressões-conservadoras;
relação de forças entre as várias vertentes (conservado-
- M, Banco Mundial, autonomia ou subordinação po-
ra, liberal e democrático-popular) da própria Igreja.
lítica da Nova República.

ores
- identificação mais profunda entre o conjunto do em-
- a liberalização do Estado amplia os espaços de ação
presariado brasileiro e transnadonal com as perspecti-
dos movimentos populares;
vas da Nova República;
-novas relações de conflito e de pressão se estabelecem
- a ação empresarial sobre o Estado amplia seus espa-
entre o Estado e a sociedade civil;
ços e aprofunda as pressões diretas para definir as polí-
ticas governamentais. - ampliam-se os mecanismos de legitimarão da ordem
liberal, através das práticas políticas (eleições) e sociais
e) Esído e militares (políticas de bem-estar, assistência);
- descongelamento e desenvolvimento político da so-
- os militares deixam a direção política do Estado e se ciedade civil;
retiram para a linha de manutenção da ordem, pedindo
- politizado generalizada das lutas e práticas sociais
silêncio sobre sua aíuação passada na direção do Esta-
testam e definem os limites da nova ordem liberal.
do e na implantação do regime autoritário;

50 51
8
conjuntura com os movimentos
populares; a representação da conjuntura ,

Uma forma concreta de se fazer uma análise de conjun-


tura em reuniões organizadas com os movimentos popula-
res é a de representar a situação através de um exercício de
"teatro" realizado pelos próprios participantes. Este méto-
do já foi aplicado em várias situações com êxito porque pos-
sibilitou uma reflexão coletiva sobre a realidade.
Os passos para se organizar esse tipo de análise seriam
os seguintes:
1. Levantar as grandes questões do momento e listá-las
num quadro-negro, com a participação de todos.
2. Identificar e seledonar as forças sociais que estão di-
retamente envolvidas nestas grandes questões.
3. Identificar e seledonar os atores (pessoas, lideranças)
que representam estas forças sociais.
4. Escolher entre os participantes as pessoas que irão
representar estes atores sociais.
5. Dispor estas pessoas num palco improvisado e orga-
nizar um debate "público e aberto" entre esses atores
• "7/EDITORA
como se estivessem falando para o conjunto do país, V0ZES
debatendo suas ideias e confrontando suas posições,
6.0 debate será livre e sem nenhum tipo de direção e
de intervenção do plenário. Pode ter um tempo de 20
minutos e será interrompido para que logo depois se CATEQUÉTICO PASTORAL
faça uma avaliação do que "aconteceu" na representa-
Catequese -Pastoral
ção e comparar isso com o que acontece na realidade, Ensino religioso
Administração - Antropologia - Biografias
,, : . ..... .y
As experiências realizadas com este método foram mui- Comunicação - Dinâmicas e Jogos
Ecologia e Meio Ambiente * Educação e Pedagogia
to interessantes tanto pelo que foi produzido como análise Filosofia - História - Leiras e Ueraíura
Obras de referência -. Política -Psicologia
coletiva da conjuntura como pela tomada de consciência dos . Saúde e Nutrição -Se

partidpantes sobre o seu nível de informação e conhecimen-


to da realidade. A representação é reveladora também das
atitudes básicas que temos sobre as diferentes forças sociais REVISTAS Biografias - Devodonários - Espiritualidade e Mista
Espiritualidade Maríana - Franáscanisrno
que atuam na luta política e o quanto estamos ou somos in- Auíoconhecimento - Liturgia - Obras de referência
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CAPÍTULO I

Definição do direito

Nossa primeira tarefa consiste em definir o direito.


Esta palavra apresenta vários sentidos. É preciso que
escolhamos um, dentre eles. A etimologia, aqui, pouco
nos auxiliará. A palavra "direito*', em francês (como
em inglês, right, em alemão, Rechí, em italiano, dirifio,
etc.), liga-se a uma metáfora na qual uma figura geo-
métrica assumiu um sentido moral e depois jurídico: o
direito é a linha reta, que se opõe à curva, ou à oblíqua,
e aparenta-se às noções de retidão, de franqueza, de leal-
dade nas relações humanas. Vê-se imediatamente que essa
acepção não nos pode oferecer mais que uma ideia muito
aproximada do conceito. Melhor será examinar o em-
prego que dele se faz.

Direito subjetivo e direito objetivo - Uma primeira


observação, embora superficial, permite-nos constatar
que a palavra direito é tomada correntemente em dois
sentidos diferentes, e costuma-se distingui-los desig-
nando-os pelos qualificativos de subjetivo e objetivo.
O direito subjetivo pertence a uma pessoa-mdivíduo ou
coletividade: é a faculdade que lhe é dada de exercer
esta ou aquela atividade. Fala-se, por exemplo, do di-
reito de voto, do direito à instrução, ao trabalho, etc.
As diversas Declarações dos Direitos do Homem tomam
a palavra nesse sentido subjetivo, que não nos interes-
sara nas páginas que se seguem. Iremos nos ater so-
bretudo ao outro aspecto geral do termo, seu sentido
chamado "objetivo". Entende-se por direito objetivo a
norma — ou o conjunto de normas — que se aplica a que distingue entre o direito público e o direito privado.
indivíduos (ou a coletividades) e que deve ser observada Aparentemente, essa divisão afigura-se simples: perten-
sob pena de incorrer numa sanção. Esta fórmula extre- cem ao direito público as normas que regem os Estados
mamente ampla, e que a presente obra se propõe preci- entre si (direito internacional público, outrora chama-
sar, é, até certo ponto, antagonista da primeira (direito do direito das pessoas) ou as relações entre os indivíduos
subjetivo), pois, enquanto o direito subjetivo é uma e as coletividades de que fazem parte (direito cor>stitu-
faculdade, uma liberdade, o direito objetivo é essencial- cional, direito administrativo, etc.). São, ao contrário,
mente uma obrigação. Como pode a mesma palavra matérias de direito privado aquelas em que se acham em
conotar dois conceitos tão diferentes, tão contraditórios? jogo apenas interesses particulares, como é o caso do di-
É que o direito subjetivo, conquanto se apresente como reito civil e do direito comercial. A realidade, contudo,
uma conquista do indivíduo e, por isso, parece tão dis- é mais complexa. Inúmeras são as situações nas quais
tante quanto possível da ideia de coação, nem por isso se encontram implicados ao mesmo tempo o interesse
deixa de constituir um conjunto de regras providas de geral e o das pessoas privadas. Basta pensar nos delitos
sanções que têm por objetivo assegurar o funcionamen- que lesam em primeiro lugar a vítima, mas que não são
to das liberdades por ele proclamadas. Embora não se sentidos como menor ofensa pelo grupo social em seu
aplicando da mesma maneira, é certo que a ideia de obri- conjunto e constituem em toda parte o objeto de uma
gação permanece na base tanto do direito subjetivo repressão pública. Em menor grau, o mesmo se pode di-
como do direito objetivo. Isto posto, só nos ocupare- zer das contestações civis. Desde o nível bastante infe-
mos, em princípio, deste último. rior de civilização, pelo menos em todas as sociedades
As regras de direito são tão numerosas e diversas modernas, cabe à coletividade a regulamentação dos con-
que, para ter uma ideia clara sobre elas, torna-se indis- flitos e sua respectiva solução. Onde classificar o direi-
pensável dividi-las em certo número de categorias. Essa to penal ou o processo? Segundo as necessida4es do en-
classificação poderá ser feita segundo vários pontos de sino ou da prática, costuma-se classificá-los indiferen-
vista. Assinalarei apenas os principais. temente no direito público ou no direito privado. Ou
melhor, o próprio direito civil, matéria tradicional do
Direito público e direito privado — Antes de tudo, em direito privado, permeia-se em nossos dias de elemen-
virtude do estreito vínculo existente entre a regra de di- tos tomados de empréstimo ao direito público, em con-
reito e o poder político — questão a que retornarei mais sequência da intrusão cada vez maior da coletividade nas
adiante —, costuma-se diferenciar conjuntos jurídicos relações entre particulares. Isso se manifesta notadamente
conforme os Estados em que as normas recebem aplica- em matéria de contratos, e de há muito se tem assinala-
ção. Assim é que se fala de um direito francês, de um do o que veio a chamar-se, com um nome bárbaro, a
direito alemão ou, na Antiguidade, de um direito roma- publicização do contrato, inclusive nos países capitalis-
no, de um direito ático, etc. Se nos ativermos às maté- tas 1 . O mesmo sucede, com mais forte razão, nos paí-
rias regulamentadas, as divisões geralmente adotadas
serão muito numerosas. Uma das mais importantes é a 1. Cf. sobretudo os trabalhos do deão L. Josserrand, em par-

5
sés de estrutura socialista, como a Rússia dos sovietes, grega entre os romanos, a expôs eloquentemente em vá-
onde se pode dizer que o direito privado é extremamen : rias passagens de suas obras, particularmente nas linhas
te reduzido2. seguintes, muitas vezes citadas, de De Republica3: "Há
Muitas outras classificações foram propostas ou uma lei verdadeira, reta razão, conforme à natureza, di-
estão em uso, mas de um modo geral seu valor é mera- fusa em nós, constante, eterna, que conclama ao que de-
mente empírico ou didático (direito das pessoas, direito vemos fazer, ordenando-o, que desvia do mal e o proí-
das coisas, etc.). Não me deterei nelas. Mais importante be; que, todavia, se não ordena nem proíbe em vão aos
é o problema fundamental da própria definição do di- bons, não muda nem por suas ordens nem por suas proi-
reito, da ideia que dele convém fazer. Ainda aqui, as bições os maus. É de instituição divina que não se pode
opiniões apresentam-se muito divididas. Negligenciando propor ab-rogar essa lei e que não é permitido derrogá-
toda e qualquer nuança, exporei as três grandes teorias la... Não se procure um EUo Sexto como seu comenta-
entre as quais se pode agrupá-las: a doutrina espiritua- dor ou intérprete; ela não é uma em Roma e outra em
lista, a doutrina marxista e a doutrina sociológica: é a Atenas, não é uma hoje e outra amanhã, mas sim uma
esta última que me atenho. lei una, eterna e imutável, a mesma para todas as na-
ções e em todos os tempos...
Nutridos pelo pensamento helénico, os jurisconsul-
I. As doutrinas espiritualistas tos romanos elaboraram sobre essas bases uma concep-
ção do direito muito próxima desses princípios e forte-
Reuni sob este vocábulo — de modo bastante arbi- mente impregnada de moralidade. Para Celso (século II
trário - - opiniões muito variadas mas que repousam d.C.), o direito é a arte do bom e do justo (ars boni et
todas, definitivamente, na mesma ideia diretiva, ou seja, aequi). Meio século depois, Ulpiano irá resumi-lo nas
que o direito é uma inspiração - - racional ou sobre- três máximas seguintes: honeste vivere (viver honrosa-
natural, pouco importa - - depositada no coração do mente); alterum non laedere (não prejudicar o próximo);
homem e que lhe traça o caminho a seguir, a conduta suum cuique íribtiere (dar a cada um o que lhe é devi-
a observar. do). Trata-se, como se pode ver, mais de preceitos ideais
de conduta que de normas precisas de direito. Foi-lhe
l. Concepções da Antiguidade — Essa doutrina foi atribuído o nome de direito natural, em oposição ao di-
expressa de início entre os gregos. Vamos encontrá-la reito civil, termo que, então, designava as normas pró-
notadamente em Platão e Aristóteles, mas também e so- prias de cada Estado (civiías). Existe, porém, no espíri-
bretudo nos estóicos, e Cícero, o intérprete da filosofia to dos jurisconsultos uma espécie de hierarquia nas pres-
crições jurídicas, e as leis civis devem sempre inspirar-se
nos grandes princípios acima formulados. Ou seja, o di-
ticular: La publicisation du contrat, in Introduction à 1'étude du droil
compare, Recueil en 1'honneur d'Edouard Lambert, Paris, 1938, t. reito é geralmente concebido como uma prática, como
III, pp. 134 ss.
2. Cf. René David, Lê droit soviétique, Paris, 1954. 3. Cícero, De Republica, 3, 22, 33.
a arte de exercer a justiça. Por mais realista que seja o mente observados e sobre os quais não se exercia nenhuma
direito romano, não será exagero dizer que ele perma- reflexão crítica. Por essas razões, explica-se que o direito
neceu, em seu conjunto, fiel a essas máximas. feudal não tenha sido objeto, por parte dos contemporâ-
neos, de uma elaboração doutrinal mais aprofundada.
2. Concepção medieval — No momento em que É na Igreja, pela voz de seus teólogos e juristas (os
a civilização antiga se desmorona sob a pressão conju- canonistas), que se podem encontrar os elementos de uma
gada dos povos germânicos e da religião cristã, o direi- doutrina jurídica, e essa doutrina corresponde em gran-
to sofre, pelo menos no Ocidente, um certo declínio. de parte à dos jurisconsultos romanos, a despeito do
Assiste-se à construção de uma sociedade de tipo total- paganismo destes últimos. Assim, o mais ilustre dos dou-
mente novo, o feudalismo, na qual as normas de direito tores da Idade Média, São Tomás de Aquino, distingue
já não se fundam no princípio da igualdade -- como três espécies de direito, dos quais o primeiro é, sem dú-
sucedia com as normas do direito romano4 —, mas, vida, o direito divino, fundado nas Escrituras e nas de-
ao contrário, no princípio da hierarquia e da subordi- cisões dos papas e concílios; o segundo, a que ele cha-
nação. Seria, porém, inexato pretender que esse regime ma de direito natural, quase não se distingue do que os
fosse baseado na violência. Como qualquer sociedade, romanos designavam como tal. Suas normas têm um fun-
a sociedade feudal possui o seu direito. O elemento damento racional, e sabe-se que para São Tomás, longe
primordial desse sistema jurídico é o contrato, mas um de opor-se à fé, a razão deve ser vista como sua mais
contrato profundamente distinto do contrato romano ou notória expressão5. Assim, é natural que essas prescri-
do contrato moderno. Antes de mais nada, trata-se de ções do direito prevaleçam sobre as do direito positivo
um direito ao mesmo tempo público e privado, porquan- quando entre elas se levanta uma contradição. Desse
to, tendo a noção da soberania do Estado desaparecido modo, se é levado a preconizar, em certos casos, a de-
quase por completo, as funções públicas se tornaram, sobediência para assegurar o respeiio do direito natu-
em grande parte, patrimoniais. Além disso, e sobre- ral, que é também, indiretamente, poderíamos dizer, de
tudo, esse contrato medieval não responde de forma direito divino.
alguma à definição romana e moderna, segundo a qual
ele é (teoricamente) o produto de duas vontades iguais 3. Renascimento do direito romano — Mais ou me-
e livres. Está muito mais próximo de uma espécie de nos na mesma época, o direito romano, até então conhe-
tratado que situa ou mantém uma pessoa ou uma terra cido apenas por alguns clérigos eruditos, à sombra das
num estatuto preciso que comporta direitos e obriga- bibliotecas monásticas, manifestou-se com força e bri-
ções determinadas. Por outro lado, pelo menos durante lho extraordinários. Partindo de Bolonha no fim do
a primeira parte da Idade Média, o direito era transmi- século XI, o movimento expandiu-se como um rastilho
tido oralmente, sob a forma de costumes escrupulosa- de pólvora nos países da Europa Ocidental, principal-

4. Cf. H. Lévy-Bruhl, Lê droit romain est-il égalitaire? in Ro- 5. Michel Villey, Leçons et histoire de Iaphitosophie du droit,
manitas, t. Í I I - I V , Rio de Janeiro, 1961, pp. 47-56. Paris, Sirey, 1957, pp. 49 s.
mente na Itália e na França. As causas dessa espantosa neira elegante — e também corajosa, se pensarmos nos
ressurreição ainda não estão absolutamente estabele- perigos a que o autor se expunha — de dizer que o di-
cidas, mas concorda-se geralmente que ela se deve em reito não depende de nenhuma vontade exterior, nem
primeiro lugar às mudanças sociais e económicas que mesmo cia \oncade divina?
então se produziram e que levaram à criação de uma Gí oiius é considerado, com razão, como aquele que
população urbana pouco disposta a acomodar-se ao re- deu ao conceito de direito natural sua forma mais aca-
gime jurídico feudal. É verdade que esse despertar do bada. Foi ele quem, pela primeira vez, o aplicou às re-
direito romanto teve, entre outros efeitos, o de provo- lações internacionais, um domínio que, até então, não
car um esforço de reflexão sobre as normas do direito. estava submetido a nenhuma regulamentação. Realizou,
Isso não é ainda muito marcado entre os primeiros ro- assim, um progresso notável, e pode ser considerado, por
manistas, chamados glosadores. Tratava-se, antes, de isso mesmo, como um benfeitor da humanidade. Mas
práticos e eruditos. Mas a segunda "onda" que se lhes não se segue daí que a noção de direito natural esteja
seguiu, e à qual se dá o nome de pós-glosadores ou bar- apta a desempenhar um pape] de relevo em matéria ju-
tolistas (do nome do mais ilustre dentre eles, Bartolo, rídica. Resume-se ela, como vimos, num certo número
1313-1356), não hesitou em edificar construções jurídi- de máximas, das quais enumeramos três: poderíamos
cas das quais algumas são de grande originalidade e in- ajuntar outras. Mas, enquanto permanecerem sob essa
teresse. Permanecem, contudo, no terreno da técnica, forma, poderão quando muito servir para orientar uma
e será preciso aguardar o grande sopro liberador do Re- conduta — não são capazes de responder a uma contes-
nascimento para ver os juristas discutirem a respeito da tação precisa.
natureza do direito.
5. O século XVIII — Por seu fundamento racio-
4. O direito natural — É sobretudo sobre a noção nal, a teoria do direito natural se ligava, corao se viu,
de direito natural que incidirão as controvérsias. Ou me- às doutrinas dos jurisconsultos da Antiguidade. Estava
lhor, ele não foi posto em questão, mas esse conceito também em perfeito acordo com o espírito que anima-
transformou-se. Enquanto no decorrer de toda a Idade va 'OS pensadores do século XVII e mais ainda os do
Média ele era considerado como racional, sem dúvida, século XVIII. Nessa época, preocupações de caráter so-
mas também de direito divino, sofreu então um proces- cial e político vieram reforçar as tendências individua-
so de laicização do qual se pode encontrar um traço sig- listas que traziam em germe as teorias racionalistas. Com
nificativo, pouco mais tarde, em Grotius, o grande ju- exceção de Hobbes e de raros autores, os publicistas fran-
rista neerlandês, que escreveu: "O que dissemos teria al- ceses e ingleses vêem no direito o produto de uma aspi-
gum fundamento mesmo que supuséssemos, o que não ração natural que leva os homens a encontrar as solu-
pode ser suposto sem crime, que Deus não existe ou não ções mais aptas a conciliar sua felicidade individual com
se ocupa dos negócios humanos." 6 Não é esta uma ma- o bem-estar coletivo. Mas convém assinalar duas teorias
que surgiram então e que exerceram profunda influên-
6. Grotius, De jure belli et pacis, prol. § 11.
cia não só sobre os espíritos como sobre as instituições.
10
Ambas se devem a J,-J. Rousseau, ou pelo menos foi ram submetidas a um primeiro e vigoroso ataque por
Rousseau quem as expôs com mais precisão e eloquên- parte de um movimento doutrinal que se produziu en-
cia, A primeira é o mito do ''bom selvagem1', ou seja, tão na Alemanha e que traz o nome de "escola históri-
a ideia de que o homem "saiu virtuoso das mãos de seu ca do direito". Seus principais protagonistas foram Hugo
criador" e depois foi corrompido pela sociedade. Na ori- e sobretudo Savigny, geralmente considerado como seu
gem, o homem teria vivido isolado, o que foi ilustrado fundador. Conforme seu nome indica, o terreno prefe-
por Daniel Defoè na história de Robinson. Para sair de rido da nova escola foi a história. Aqui residia, com
seu isolamento, os homens teriam concebido a ideia de efeito, um dos pontos mais frágeis da teoria reinante.
viverAintos e fundado a sociedade por meio de um pacto, As normas de direito eram concebidas como produtos
o famoso "contrato social", que serve de título a um da razão, que é a mesma em todos os tempos e em to-
dos livros mais célebres do filósofo. dos os lugares. O único, ou quase o único, entre os ju-
A etnologia e a história mostraram a fragilidade - ristas, Montesquieu, em seu Espírito das Leis, chama-
para não dizer a falsidade — de cada uma dessas duas ra a atenção para a extrema variedade das prescrições
teorias. Elas não correspondem à realidade, e quando jurídicas. Ainda não tirara partido dessa constatação
muito podem ser encaradas como mitos destinados a para criticar a doutrina racionalista, a que continuava
exaltar o esforço do indivíduo. Sempre será verdade que firmemente ligado7. Savigny e seus discípulos partem de
essas doutrinas, que se podem, numa palavra, qualifi- um ponto de vista totalmente diverso. Buscando a ori-
car de liberais, nunca encontraram terreno mais propí- gem das normas jurídicas, acreditam encontrá-la na cons-
cio à sua propagação que na França da segunda metade ciência nacional dos povos, em seu Volksgeisl. Cada
do século XVIII. Vão encontrar sua expressão mais ade- comunidade elabora seu próprio direito, e este se expri-
quada na primeira Declaração dos Direitos do Homem me adequadamente em costumes que, melhor que as leis,
e do Cidadão (1789), e pode-se constatar que, a esse lhe traduzem as exigências, as aspirações profundas. Mais
respeito, se produziu uma aproximação significativa en- adiante voltarei à distinção entre o costume e a lei8. Por
tre o sentido subjetivo e o sentido objetivo da palavra ora, basta assinalar a distinção -- ou melhor, a oposi-
"direito". Concebe-se o direito objeíivo, a norma de ção radical — de semelhante doutrina em relação às que
direito, como tendo por finalidade essencial proteger o expusemos mais acima. Em vez de um direito geral e uni-
indivíduo, proporcionar-lhe o máximo de bem-estar e versal, a escola histórica nos apresenta toda uma flo-
liberdade, em suma, garantir-lhe o exercício de "seus ração de direitos particulares, teoricamente nacionais.
direitos". Veremos que, apesar das aparências, essas Assim, se a escola clássica apegava-se às ideias "claras
ideias estão muito vivas e não perderam sua virtude no
mundo de hoje.
7. Montesquieu, Esprii dês íois, 1. I, cap. 3: "A lei, em ge-
6. A escola histórica do direito — No final do ral, é a razão humana enquanto governa todos os povos da Terra,
e as leis políticas e civis de cada nação devem ser apenas casos parti-
século XVIII e no princípio do XIX, as teorias idealis- culares nos quais se apíica a razão humana."
tas, cuja expressão mais notável é o direito natural, fo- 8. Cf. infra, pp. 37 ss.

12 13
e distintas" necessárias à sua expansão, o mesmo não igualmente filósofo. Durante algum tempo foi seduzido
se dava com a nova doutrina que, ao contrário, situava pelos ensinamentos de Hegel, e suas ideias sobre o di-
no instinto e no inconsciente o primeiro móvel do direi- reito lhe foram, até certo ponto, inspiradas por esse
to. No entanto, o conflito entre as duas tendências foi mestre". O que caracteriza a teoria marxista do direi-
menos acentuado, menos agudo do que se poderia su- to, em oposição às que a precederam, é sua ligação ínti-
por. Isso se deve sobretudo à grande largueza de visão ma, indissolúvel, com uma certa organização política e
do chefe da escola histórica, Savigny, que soube evitar social. Para Marx, o direito não existe sem o Estado,
os excessos e levar seus princípios às últimas consequên- nem o Estado sem o direito, e o Estado nada mais é que
cias. Permanecendo fiel à sua doutrina, esse grande ju- um instrumento de dominação de uma classe (a burgue-
rista não cessou de professar a ideia de um parentesco sia) sobre outra (o proletariado). Portanto, para existir,
fundamental entre todos os direitos, como o testemu- o direito supõe uma sociedade hierarquizada e dividida
nha um de seus discípulos franceses, nosso grande his- em classes, é uma arma na luta de classe travada entre
toriador Michelet, no título de uma de suas obras9. Não os capitalistas e os trabalhadores. Porém, nem o direito
é menos verdade que um golpe sensível era desfechado nem o Estado existiram em todos os tempos. Na era
contra o método e o espírito da escola espiritualista. pré-escravagista e, com maior razão, entre as popula-
ções primitivas, não se pode falar de direito. Todos os
litígios regulam-se amigavelmente, sob um regime de ar-
II. A doutrina marxista bitragem ou por uma decisão imperativa emanada, por
exemplo, do chefe de família. No outro extremo da ca-
Por volta da metade do século XIX, surgia uma deia, quando a classe oprimida tiver triunfado sobre seus
nova concepção do direito, devida a dois pensadores ale- inimigos, o direito terá, por isso mesmo, deixado de exis-
mães, Marx e Engels. Distingue-se profundamente das tir, pois a harmonia irá se estabelecer espontaneamente
que a precederam. Não se pode compreendê-la sem ter e sem obstáculo para o bem de cada um e de todos. O
presente ao espírito a preocupação constante de seus au- direito é, pois, uma instituição - - o u um conjunto de
tores: são dois reformadores sociais. Situam-se na linha instituições — puramente temporária e destinada a ser
dos socialistas, sobretudo ingleses e franceses, que es- abolida — mais exatamente, a desaparecer por si mes-
creveram inúmeras obras sobre a condição dos operá- ma -- uma vez cumprida sua tarefa histórica.
rios e as reformas suscetíveis de melhorá-la. São mais
economistas que juristas, ainda que Karl Marx tenha feito teóricos da ordem estabelecida, que, segundo ele, não podem ser se-
estudos na Faculdade de Direito de Berlim10. Marx é não seus defensores. A experiência demonstra, com efeito, que os
juristas são, em geral, conservadores. No entanto, nem sempre é es-
se o caso, e, entre os contemporâneos de Marx, conta-se pelo menos
9. J. Michelet, Origines du droit français cHerchées dons lês um jurista socialista célebre, Ferdinand Lassalíe. O estudo aprofun-
symboles et lês formules du droit universel, Paris, 1837. dado do direito não leva mais à justificação das normas existentes
10. A aversão de Marx pelo direito e pelos juristas tem prova- que à sua crítica.
velmente outra causa, mais profunda: a do reformador social pelos 11. K. Stoyznoviich, Lapensée marxiste et ledroit, Paris, 1974.

14
Essa concepção do direito muito deve a. Hegel, que do direito, ou seja, condutas impostas e munidas de
também unia intimamente o direito ao Estado, porém sanções editadas pela coletividade. Do mesmo modo,
com esta diferença essencial: para ele, o Estado era uma é certamente utópica a asserção segundo a quaj qual-
instituição eminentemente respeitável, ou mesmo serni- quer organização jurídica desaparecerá -- como tendo
divina, o princípio diretor e organizador que tinha por perdido sua razão de ser - - n o dia em que cair o regi-
missão manter a ordem e a paz nas sociedades, ao pás- me capitalista. Sem dúvida, não se poderia tirar urn
só que, como vimos, Marx, ao contrário, considera o argumento muito forte contra ela pelo que vemos ocor-
Estado como um instrumento de opressão que deve ser rer hoje na Rússia e nos países de democracia popular,
combatido por todos os meios e, finalmente, destruído. pois seria fácil responder que o socialismo ainda não se
Essa posição, em grande parte sentimental, foi segura- acha solidamente estabelecido, que está ameaçado por
mente inspirada a Kari Marx pelo espetáculo da miséria inimigos exteriores e que a segurança do regime e suas
que grassava em seu tempo, sobretudo nas regiões in- possibilidades de durar exigem a manutenção provisó-
dustriais que ele pôde ver e pelo apoio que a classe diri- ria de um aparelho de Estado extremamente rigoroso.
gente dava aos capitalistas beneficiários desse regime. Mas esse estado de coisas é essencialmente provisório.
É bem verdade que todo o aparelho do Estado tendia Uma vez afastado o perigo, a autoridade central seria
a defender a ordem estabelecida e a salvaguardar os abolida ou, mais exatamente, cairia por si mesma por-
lucros e privilégios da classe espoliadora. Ninguém que não teria mais objeto.
pretende que esse estado de coisas tenha desaparecido Há aqui uma visão otimista e algo milenarista que
completamente12. não pode deixar de surpreender. Por muito tempo os po-
vos, para fugir à miséria atual, imaginaram uma idade
Exame da doutrina marxista — Parece certo, entretan- de ouro que situavam indiferentemente quer num nas-
to, que a doutrina marxista incorreu, no plano histó- sado muito recuado, quer num futuro distaste, idade
rico, em erros diferentes, mas não menos graves que feliz em que os homens viveriam em paz numa associa-
aqueles que foram censurados nos defensores das dou- ção fraternal, a salvo de qualquer conflito e violência.
trinas idealistas. Ainda aqui, a etnologia e a história ti- É evidente que, então, nem o Estado nem o direito te-
veram que retificar asserções sem fundamento. Assim, riam papel a desempenhar. Parece pouco realista fazer
é falso pretender que não existe direito nas chamadas espalhar tal ideal diante dos homens de hoje. Sem dúvi-
sociedades primitivas. Esse direito, como veremos, apre- da, é legítimo esperar que os conflitos armados possam
senta características particulares. Está, notadamente, cessar e que se constituirá uma sociedade sem classes:
muito misturado à religião. Não é menos verdade que esses dois progressos consideráveis não estão, talvez, lon-
se trata de sistemas jurídicos consuetudinários, pois, ge de realizar-se. Ao contrário, parece excluído de qual-
em toda parte, se encontra o que constitui a essência quer previsão que uma sociedade possa, por homogé-
nea que seja, viver sem norma de conduta, ou que essas
12. Cf. S. Daliigny, Essa i sur lês príncipes d'un droií civil só- normas não provoquem nem incertezas nem conflitos.
cialiste, 1976. Em outras palavras, não se poderia razoavelmente ima-
16 17
ginar um regime social em que os interesses de todos se levar em conta seu papei frequentemente benfazejo. Na
ajustassem automaticamente à satisfação de cada um. realidade, o Estado nada mais é que o aspecto jurídico
Talvez isso não seja sequer desejável: talvez os confli- da sociedade política. É burguês numa sociedade bur-
tos, ou mesmo os crimes, sejam necessários ao progres- guesa. É proletário numa sociedade em que a classe
so da humanidade. É verdade que a doutrina marxista, burguesa foi suprimida. Parece impensável que uma na-
ao sonhar com a supressão do Estado e do direito, ção exista sem esse órgão que o exprime. Bem diversa
mostra-se resolutamente idealista, ou até idílica, o que é a questão de saber se ele não deve ser despojado de
demonstra que o epíteto de materialista, com que se gosta um certo número de suas prerrogativas em proveito (ou
de adorná-la, não lhe convém, ou deve ser tomado em a cargo) de outras coletividades mais restritas, mais pró-
outro sentido. ximas do indivíduo, corno acreditam alguns bons espí-
Pode-se igualmente observar que Marx e Engels fa- ritos. A este respeito, convém observar que o direito
zem uma ideia falsa e truncada do Estado. Designam está longe de confundir-se com o Estado, como acredi-
sob esse nome o aparelho repressivo que viram funcio- tavam Hege! e Marx, e como ainda hoje se acredita com
nar na Inglaterra e na França, na metade do século XIX. frequência. Terei oportunidade de mostrar mais adian-
Seu símbolo é o gendarme ou a prisão. Sem dúvida, é te que existem normas jurídicas em organizações ou agru-
inegável que a salvaguarda das situações adquiridas e da pamentos que não são, em nenhum grau, estatais, e
ordem estabelecida constitui uma das funções primor- isso não somente entre as populações arcaicas, mas nas
diais do Estado, mas não a única. O Estado, especial- nações mais modernas.
mente o Estado moderno, assume, ao lado desta, uma A despeito de todas essas críticas, é preciso reco-
infinidade de outras funções, e das mais importantes, nhecer que as doutrinas marxistas do direito prestaram
como a de ministrar justiça, propagar a instrução, zelar grande serviço à ciência jurídica, menos por sua própria
pela saúde pública, etc. Ademais, pode-se admirar que concepção, que não parece admissível, que pelo traba-
os socialistas esqueçam o papel de liberador que o Es- lho crítico que realizaram e que vem se conjygar com
tado tantas vezes desempenhou na história, e que ele o da escola histórica para destruir as chamadas bases ra-
desempenha ainda hoje em muitas circunstâncias. O cionais das prescrições jurídicas, tais como as compreen-
Estado, isto é, a sociedade global, lutou, no interesse dia a escola anterior. Contribuíram eficazmente para
do indivíduo, contra os grupos secundários mesquinhos secularizar, poderíamos quase dizer para desmistificar
e ciumentos que exerciam sobre ele verdadeira opressão. o direito, permitindo considerá-lo nem mais nem menos
Quebrou seus grilhões e alargou seu horizonte13. É por que um dado normal da vida social, o qual pode e deve
uma visão mais parcial e sentimental que científica que ser observado assim como os outros elementos de qual-
esses violentos ataques se dirigem contra o Estado, sem quer sociedade — a arte, a linguagem, etc. A partir de
então, estava aberto o caminho para uma concepção po-
13. Lembremos aqui as célebres palavras de Lacordaire: "En- sitiva dos fatos jurídicos, isto é, aquela professada pela
tre o rico e o pobre, entre o fraco e o forte, é a liberdade que opri- escola sociológica. É ela que vai constituir o objeto dos
me, é a lei que liberta." desenvolvimentos que se seguirão.
18 19
III. A concepção sociológica dade é frequentemente considerada a mais completa.
Muitos autores vêem reinar aí "a autonomia da vonta-
Para o sociólogo, o direito é antes de tudo um fe- de". Na realidade, como já se demonstrou com vigor 14 ,
nómeno social. Proponho a seguinte definição: *'O di- essa "autonomia" move-se em limites muito estreitos,
reito é o conjunto das normas obrigatórias que deter- e os quadros sociais que a delimitam opõem-se a qual-
minam as relações sociais impostas a todo momento pelo quer solução original, a qualquer inovação importante.
grupo ao qual se pertence." Somente certas modalidades — certamente importantes
Dessa definição reterei os três elementos que se se- na prática, mas teoricamente sem maior alcance — per-
guem e exigem esclarecimentos: l ?) Trata-se de normas manecem à disposição das partes. A estrutura dos con-
obrigatórias; 2?) Essas normas são impostas pelo grupo tratos é fixada pela coletividade mediante prescrições
social; 3?) Essas normas modificam-se incessantemente. legais ou cpnsuetudinárias e não se modifica senão na
medida em que esta tenha mudado de opinião a seu
respeito.
l. A NOÇÃO DE OBRIGAÇÃO
As sanções -- Não poderia existir obrigação sem san-
A obrigação é, sem dúvida, o elemento fundamen- ção. Por isso, definiu-se o direito corno um sistema de
tal do direito. À primeira Vista, isso pode parecer para- sanções. Neste ponto, porém, impõem-se algumas pre-
doxal, pois a palavra "direito" sugere mais a ideia de cisões e matizes. Em primeiro lugar, é preciso afastar
uma faculdade, de uma liberdade, ou seja, ó oposto de da esfera do direito as sanções meramente religiosas e
uma coação. É que, na linguagem corrente, o direito é as sanções meramente morais. Voltarei ao assunto mais
tomado geralmente em seu sentido subjetivo, que, em adiante, quando tivermos de distinguir o direito da reli-
determinados casos, se apresenta como o antagonista da gião e da moral 15 . Por ora, basta dizer que, para se-
norma imposta peia coleíividade. Deixaremos de lado rem jurídicas, as sanções devem ter efeito no plano ter-
esse sentido. restre e social, modificar a condição das pessoas ou seu
Não é claro para todos que o homem se encontre património.
estreitamente coagido em seu comportamento social, pois No entanto, essas próprias sanções jurídicas são
estamos tão acostumados a obedecer a essas normas que muito variadas e devem, por conseguinte, classificar-se
quase não sofremos com elas, da mesma forma que não em diversas categorias. A mais importante dessas divi-
sofremos com certas coerções físicas, como a lei da gra- sões é a que estabelece a distinção entre o direito civil
vidade. Tanto é verdade que, em geral, e por definição, (no sentido mais lato do termo) e o direito penal. Sem
tais normas correspondem à nossa maneira de pensar e entrar em pormenores, e para nos atermos ao essencial,
de sentir. Não é menos certo que a margem deixada à
vontade individual, mesmo sob os regimes jurídicos mais
14. Cf. Emm. Gounot, La doctrine de 1'autonomie de Ia vu-
liberais, é extremamente reduzida. Isso se manifesta in- lonté, tese de direito, Dijon, 1912.
clusive na esfera do direito contratual, em que a liber- 15. Cf. infra, pp. 33 s.

20 21
pode-se dizer que o direito civil é sobretudo retributivo, mosa máxima: Ubi societas, ibi jus e dizendo que esse
enquanto o direito penal é repressivo (mais tarde volta- grupo é a sociedade. Essa palavra também se presta a
remos a esse termo). Que se deve entender por isso? O equívocos: há numerosas espécies de sociedades, e cada
direito civil -- ao qual se pode juntar o direito comer- qual pode pertencer, pertence de fato, a várias delas.
cial, que dele não se distingue sob esse aspecto -- tem Daí a questão: qual é o grupo social de que emanam
por objeto essencial precisar o estado das pessoas, a con- as normas de direito?
dição dos bens patrimoniais, as formas e os efeitos das Porém'uma questão coloca-se. E verdade que cer-
relações de ordem económica. Em princípio, não ie- tas sociedades (qualquer que seja o sentido atribuído a
vanta nenhum problema de ordem passional, ou, pelo esse termo) podem viver sem direito? Em outras pala-
menos, não é de sua natureza emocionar profundamen- vras, o adágio Ubi societas, ibi jus é universal?
te a opinião pública. O mesmo se dá com os assuntos Houve quem o contestasse. Assim, afirmou-se que
puramente administrativos, embora interessem à coisa o direito estava indissoluvelmente ligado ao Estado e só
pública. Eis por que Durkheim dizia, empregando uma existia em determinados tipos de sociedades. Estaria au-
terminologia sociológica, que as sanções civis, ou retri- sente, notadamente, das chamadas sociedades primiti-
butivas, referiam-se aos ."estados frágeis da consciência vas. Já vimos que não era assim, e voltaremos a esse
coletiva"16. Ao contrário, as relativas às prescrições do ponto. Do mesmo modo, nada permite pensar que na
direito penal provocam uma reação violenta no grupo sociedade sem classes do futuro as relações sociais se-
social, sendo a intensidade dessa reação, aliás, variável riam tão perfeitas que tornariam inútil qualquer regula-
segundo o delito cometido e a importância que o grupo mentação. Tal antecipação parece bastante quimérica.
atribui ao objeto, homem ou coisa que sofreu a lesão. Fiquemos no terreno das realidades, e perguntemo-
A sanção complica-se, pois, nessa matéria, pela existên- nos quais são os grupos que podem impor a seus mem-
cia de um elemento passional e não poderia ser simples- bros normas de direito. Será exato dizer que cada agru-
mente restitutiva, porque o ato chocou os "estados for- pamento humano tem seu direito próprio? E, se assim
tes da consciência coletiva". não for, quais são, entre eles, os que elaboram normas
jurídicas e os que não podem fazê-lo?

2. DE QUE GRUPO SOCIAL SE TRATA? Escola monista; escola pluralista — Existem, a esse res-
peito, duas escolas, uma das quais pode ser chamada mo-
Toda sociedade tem seu direito — As normas de direi- nista e a outra pluralista. A primeira, onde se situam
to, como foi dito acima, são impostas a cada um pelo quase todos os juristas, acredita que um único tipo de
grupo de que se faz parte. Mas essa afirmação deve ser grupo social, o grupo político — atualmente conhecido
precisada. Não o seria suficientemente alegando-se a fa- pela denominação genérica de sociedade global —, está
habilitado a criar normas de direito. O outro, que com-
16. Durkheim, Lês règles de Ia méthode sociologique, 7? ed. preende — afora alguns juristas — sociólogos e filóso-
1919. fos, professa que qualquer agrupamento, seja qual for

22 23
a sua consistência, pode instituir — e quase sempre lia, a propriedade, as sucessões, as obrigações, etc. Ora,
institui -- normas de funcionamento capazes de ultra- a autoridade de que emanam essas normas não é o po-
passar o caráter de simples regulamentos para elevar-se der político, ainda que muitas vezes se confunda com
à categoria de verdadeiras normas jurídicas 17 . Melhor este último (nos Estados chamados teocráticos). Pode
que considerações teóricas, o exame da realidade irá nos até acontecer que entre em conflito com ele, e que o po-
permitir emitir uma opinião. der secular não reconheça nas normas impostas pela au-
A primeira doutrina que se aparenta, como se pode toridade religiosa nenhum poder coercitivo. É o que
observar, às teorias hegeliana e marxista, mas que é igual- acontece em certo número de países modernos, nos quais
mente ensinada pelos juristas mais clássicos, é manifes- o Estado laicizou-se e separou-se das igrejas. Outras há,
tamente errónea. Uma simples vista de olhos sobre a porém, em que o direito canónico é aplicado pelo me-
vida social permite convencer-nos de que existem pres- ncs em certos assuntos, como o casamento.
crições legais, ou pelo menos jurídicas, fora das que fo- Pode-se também citar como exemplos de um direito
ram impostas pela autoridade política. Existiram, e exis- supranacional certas instituições consuetudinárias pro-
tem hoje, direitos que não emanam da competência dos fissionais que se propagaram em grande número de pai*
órgãos da sociedade global. Há direitos supranacionais sés sem levar em conta as fronteiras dos Estados ou a
e direitos infranacionais. nacionalidade dos interessados. A mais característica pa-
rece ter sido o direito dos mercadores (jus mercatorum),
disseminado na Idade Média e observado tão escrupu-
a) Direitos supra-estatais losamente quanto uma lei nacional.

Direitos religiosos — O exemplo mais notável é o dos Organizações internacionais -- Mais delicado é o caso
diferentes direitos religiosos: direito canónico-(católico das regulamentações editadas pelos organismo^ interna-
e protestante), direito muçulmano, direito judaico anti- cionais que se multiplicam em nossos dias, e cuja pró-
go, direito de certas religiões do Oriente e do Extremo- pria proliferação constitui seguro indício de uma huma-
Oriente. As prescrições desses sistemas religiosos têm um nidade que procura tomar consciência de sua unidade 18 .
caráter jurídico inegável. Basta ler o Alcorão ou a Bí- A maioria desses organismos são técnicos ou culturais,
blia, por exemplo, para constatar que esses textos não mas há os que têm um caráter nitidamente jurídico. À
se restringem ao domínio religioso — entendo por isso Liga das Nações, surgida após a Primeira Guerra Mun-
as relações do homem com o divino —, mas estão re- •t- dial e vítima da Segunda, sucedeu a Organização das
pletos de regulamentações, não raro minuciosas, rela- Nações Unidas, que compreende teoricamente todas as
tivas a problemas estritamente humanos, como a famí- nações animadas por um mesmo espírito democrático.
Num plano mais restrito, assistimos a tentativas de agru-
17. O principal defensor da doutrina pluralista foi G. Gurvítch,
que*a advogou em vários escritos, notadamente em seu Traíté de So- Jv- 18. Poderíamos dizer, invertendo os termos do adágio; Ubi jus,
ciologie, t. II, Paris, 1960, pp. 173 ss. ibi societas.

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pamento de Estados abrangendo vastos conjuntos, como b) Direitos infra-esiaíais
a Europa hoje, e talvez a África ou a Ásia amanhã, ou
esta ou aquela parte desses continentes. Já se criaram Agrupamentos inferiores ao Estado -- Haverá um di-
órgãos técnicos, tanto no plano económico como no pla- reito infranacional, isto é, um direito elaborado por gru-
no judiciário, a respeito dos quais pode-se perguntar se pos inferiores à sociedade política? Se examinarmos a
suas injunções não têm um caráter jurídico, a despeito história, seremos tentados a responder pela afirmativa.
da ausência de qualquer poder político suscetível de fazê- Sem dúvida, para a Antiguidade a questão é controver-
las executar. É a eterna questão da natureza do direito sa, pois os costumes famiíiaís, na medida, muito precá-
internacional. Será ele um verdadeiro direito? Alguns ria, em que podemos conhecê-los em Roma, na Grécia
autores, baseando-se precisamente nessa carência, re- e entre os germânicos, não forneceriam a prova de um
cusam-íhe ainda essa denominação. No entanto, são direito propriamente infra-estatal, visto que a gens, o
cada vez mais raros. O direito internacional não se situa genos, a Sippe, etc. exercem, na ausência quase completa
no terreno da moral. É algo muito diverso do "direito de um Estado organizado, funções políticas. Mais segu-
natural". Vimos mais acima que, se todas as normas de ras são as constatações que se podem fazer durante a
direito são, em princípio, obrigatórias, sua sanção é fre- Idade Média, na Europa Ocidental, notadamente na
quentemente indecisa ou incerta. É o que ocorre tam- França. Pode-se observar aí, a partir da queda do Im-
bém aqui. As "recomendações" da ONU ou da Corte pério Carolíngio, o início de uma proliferação de costu-
Internacional de Justiça de Haia merecem sem dúvida mes jurídicos locais ou regionais, cuja área territorial nem
a denominação de normas de direito, mesmo que não sempre coincide, longe disso, com a mobilidade de uma
sejam execuíórias pela força pública. Em todo caso, autoridade feudal. Basta considerar um bom mapa da
estamos na presença de um direito em formação, em França consuetudinária para se convencer disso. A ori-
gestação, que não se apoia numa organização política gem desses costumes permanece problemática^ mas, em
constituída. todo caso — e é o que nos interessa aqui —, estão longe
Ao contrário, é necessário precaver-se para não de manter uma ligação estreita com o poder político.
considerar como direitos superestatais direitos universa-
listas como o direito romano durante a idade Média ou Nos Estados modernos — A questão apresenta-se tam-
até mesmo mais tarde. Sem dúvida, este espalhou-se por bém para as sociedades modernas, fortemente centrali-
diversos países, mas foi recebido a título de costume ou zadas, e é sobretudo a propósito delas que foi discutida.
de lei pelas autoridades legítimas e incorporou-se aos di- Indagou-se, em especial, se agrupamentos secundários
versos direitos nacionais, dos quais passou a ser um dos podiam, a exemplo do Estado, elaborar normas jurídi-
elementos. Depois da queda do aparelho político que lhe cas. Ao contrário dos monistas, que reservam tal mo-
servia de suporte, ele perdeu sua força coercitiva. nopólio ao Estado, os pluralistas julgam que, teorica-
mente pelo menos, qualquer agrupamento humano tem
seu direito, assim como um clube esportivo, uma socie-
dade de comércio, um sindicato, uma nação.

26 2~
Parece que se lhes deve dar razão, evitando porém 3. CARÁTER ESSENCIALMENTE PROVISÓRIO DAS
algumas de suas asserções manifestamente exageradas. NORMAS DO DIREITO
Assim, parece de todo inexato pretender que, cada vez návta pEÍ. (Heráclito)
que uma associação elabora seus estatutos, crie um di-
reito corporativo que se opõe ao direito comum. Isso Já que o grupo muda, o direito muda — Contrariamente
equivale a dizer que se forma um novo direito cada vez a uma doutrina por muito tempo dominante, e ainda hoje
que dois particulares concluem um contrato! Na maior muito difundida, as normas jurídicas, para o sociólo-
parte das vezes, o grupo secundário permanecerá no qua- go, não têm caráter estável e perpétuo. Sua precarieda-
dro traçado pela lei ou pelo costume, e suas decisões irão de pode ser deduzida da própria definição que propus
se conformar a ele. Mas poderá também ocorrer que se acima. Com efeito, se o direito emana do grupo social,
afaste da prática jurídica seguida até então. Nesse caso, não poderia ter mais estabilidade que esse mesmo gru-
as inovações podem ser de dois tipos: ou permanecerão po. Ora, um agrupamento humano não é senão uma reu-
na linha do direito comum e não farão mais que precisá- nião mais ou menos natural, voluntária ou fortuita, de
lo, aperfeiçoá-lo: não se pode dizer que haja então, real- indivíduos de sexo e idades diferentes, grupo que nunca
mente, criação de um novo direito; ou essa-criação se permanece semelhante a si mesmo, uma vez que os ele-
produzirá, ao contrário, quando grupos secundários, não mentos de que se compõe modificam-se a todo instan-
encontrando nas regras jurídicas normais a possibilida- te pelo efeito do tempo. Se o considerarmos em dois
de de exercer sua atividade e de desempenhar o papel momentos de sua existência, por exemplo, a dez anos
que a si mesmos atribuíram, modificarem, consciente de intervalo, mesrno supondo (o que é raro) que ainda
ou inconscientemente, as norma:, do direito comum me- se compõe exatamente das mesmas pessoas, estas mu-
diante prescrições paralegais ou até francamente ilegais. daram: os adultos envelheceram, os jovens tornaram-
Como essas práticas ilegais podem ser consideradas ele- se homens e mulheres na força da idade, tendo neces-
mento do direito de uma sociedade? É o que veremos sariamente uma visão diferente das coisas. De resto,
no capítulo seguinte. Contentemo-nos, por ora, em as- ao cabo de certo tempo, esse grupo renovou-se mais ou
sinalar esse aparente paradoxo: quando, no seio de uma menos inteiramente pela morte de uns, pela introdução
sociedade global, um agrupamento cria normas diferentes de novos membros, sensíveis a outras influências.
das que são comumente observadas, e essas normas são Como o direito, sendo a expressão da vontade de um
aplicadas sem oposição pelos interessados, estamos em grupo, poderia ser imutável, enquanto o grupo modi-
presença de normas jurídicas, que às vezes permanecem fica-se constantemente?
no estado latente, ou mesmo clandestino, mas que, ou- Aliás, a observação demonstra de maneira incon-
tras vezes, assumirão grande extensão e serão incorpo- testável que o direito está sujeito a perpétuas modifica-
radas ao conjunto do sistema jurídico. ções. Sem dúvida, muito tempo se passou antes que
se compreendesse essa verdade. É que, durante longos
séculos, os juristas só se interessaram pelo direito de seu
próprio país, preocupando-se tão-somente com as nor-
2S
mas em vigor em seu tempo. Só em época recente o ponto tos inconstantes. Nem o direito criminal deixa de estar
de vista histórico, assim como o ponto de vista compa- submetido à lei da perpétua mudança. Nenhum ato
rativo, introduziu-se nos programas, nos métodos, nos humano é, por si mesmo, inocente ou delituoso. Os
espíritos. Uma confrontação com os sistemas jurídicos crimes que nos parecem mais abomináveis, como o
do passado ou dos países estrangeiros basta para se per- parricídio, são permitidos em certos grupos sociais, en-
ceber a prodigiosa diversidade das normas jurídicas pra- quanto outros, como a violação de certos tabus, severa-
ticadas sobre a superfície do globo. Já antigamente os mente castigados entre certas populações arcaicas, nos
juristas - - os sofistas na Grécia 19 ou Montaigne na deixam absolutamente indiferentes.
França20 - - tinham chamado a atenção para esse pon- Temos, pois, que nos decidir: os "princípios imor-
to. Acabou-se por constatar que não existe, por assim tais" do direito são um engodo, e os espíritos realistas
dizer, nenhum princípio de direito que seja universal podem apenas constatá-lo. Veremos mais adiante 22 que
e eterno. Aqueles pelos quais se exprime o direito natu- talvez não seja ilusório esperar que essa perenidade,
ral, e dos quais falei acima, não devem dar margem a a qual não se encontra nem no passado nem no presen-
ilusões. Sem dúvida, sempre e em toda parte, prescreve-se te, se realize em certa medida no futuro. Em todo caso,
lí viver honestamente", "dar a cada um o que lhe é de- esse caráter perpetuamente inconstante das normas ju-
vido 1 ', etc., mas trata-se apenas de preceitos morais muito rídicas levanta certos problemas que devemos agora
gerais e que o direito não poderia levar em conta, por- examinar.
que toda a questão consiste em saber o que esse ou aquele
grupo social entende por honestidade, quando é que ele O direito e sua formulação — Antes de tudo, se o direi-
julga que cada um recebeu o que lhe é devido, e, como to é instável, frequentemente sua expressão permanece
acabo de dizer, as soluções são as mais variadas e con- fixa, ou, pelo menos, não segue o seu ritmo e atrasa-se
traditórias. Em desespero de causa, alguns defensores ou, às vezes — o que é mais raro —, adianta-se a ele.
do direito natural inventaram uma noção a que deram O caso mais comum é o de uma norma de direito que,
o nome de L( direito natural de conteúdo variável*' 21 , e por ter sido formulada oralmente ou por escrito e ter
que não passa, a bem dizer, de uma concha vazia, ou se transmitido nos mesmos termos, durante longos anos,
melhor, de um conceito que encerra uma contradição de geração a geração, é cercada de um certo respeito,
em seus termos, visto como pretende realizar a impossí- que se prende ao fato de ela emanar da coletividade ou
vel conjunção de um direito imutável e de seus elemen- de seus representantes: por isso é geralmente muito difí-
cil modificá-la. Mas chega um momento em que sua for-
mulação já não é adequada. A partir daí, pode-se colo-
19. A. Papachristos, La sociologie juridique dês Soprastes, car para aquele que é encarregado de aplicá-la — nor-
Année Sociotogique, 1974, pp. 441 s. malmente, o juiz — um verdadeiro caso de consciência
20. Montaigne, Essais, 1. I, cap. X X I I I : "De ia Coutume, et
que, em certas circunstâncias, pode assumir um aspecto
de ne changer aisément une loi recue."
21. R. Stammler, Lehrbuch der Rechtsphiiosophie, Berlim,
22. Cf. infra, pp. 121 ss.
1928.

31
30
dramático. O juiz está submetido, profissionalmente, a cada circunstância. Aliás, é esse mesmo dado que se acha
dois deveres igualmente imperativos: deve "administrar na base do adágio: "Ninguém tem o direito de ignorar
justiça 1 ', isto é, trazer ao litígio que lhe é submetido a a lei", adágio que, pelo menos nas sociedades moder-
solução que lhe parece mais equitativa; mas, ao mesmo nas, às vezes é abusivamente aplicado. Em todo caso,
tempo, está ligado ao texto da norma jurídica que deve a obrigação que se impõe ao juiz de subordinar sua de-
servir de base à sua decisão, pois não pode se esquecer cisão a uma norma anteriormente formulada é a única
de que deve fazer abstração de sua opinião pessoal e garantia que os particulares podem ter de que a justiça
tornar-se o intérprete da coletividade em nome da qual está, de maneira geral, em conformidade com as aspira-
pronuncia seu julgamento. Posto na presença de uma ções do grupo e que é administrada em toda parte sobre
norma que lhe parece iníqua, ou pelo menos inadequa- as mesmas bases.
da, que deverá ele fazer? Se estiver convencido, como Para completar essa definição do direito, convém
tentei demonstrá-lo, de que o direito é a expressão da analisar aquilo que o distingue da religião e da moral,
vontade do corpo social tal como ele existe a todo mo- que são igualmente sistemas de obrigações providos de
mento — portanto, no instante em que ele emite sua sen- sanções, sistemas de normas.
tença —, o juiz, escravo do direito vivo mais que de sua
norma imperfeita e esclerosada, deverá, por todos os Direito e religião — No que concerne à religião, já tive
meios de que dispõe, procurar infletir o sentido dessa oportunidade de dizer que, nas sociedades primitivas,
norma para uma solução equitativa, se necessário mes- o direito ainda não se diferencia da religião, o que
mo fazendo-lhe sofrer uma interpretação astuta e abu- se explica facilmente se considerarmos que todo o pen-
siva. Terei a oportunidade de voltar a esse ponto samento, todo o comportamento dessas populações
capital 23 . banha-se numa atmosfera mística. Por conseguinte, as
No entanto, é uma obrigação à qual ele não pode- prescrições consuetudinárias, geralmente muito estritas,
ria subtrair-se: cabe-lhe apoiar-se na norma de direito, que os regem têm apenas sanções sobrenaturais. Somente
a qual será, segundo os tempos e os lugares, consuetu- depois de um lento processo de laicização — ou sob o
dinária ou legal. O direito não pode ser arbitrariamente impacto de civilizações mais adiantadas — é que o di-
isolado da norma que o exprime. Se o caráter social do reito assumiu seu caráter próprio, separando o mundo
direito requer-que sua prática seja conforme às aspira- profano do mundo sagrado. Nas sociedades de tipo mo-
ções do corpo social, nem por isso ele exige menos im- derno, mesmo as legislações religiosas, como os diferentes
periosamente que seu conhecimento seja colocado ao al- direitos canónicos, estabelecem distinção entre foro ex-
cance de cada um: a segurança de todos tem esse preço. terno e foro interno. A religião propriamente dita
Sem dúvida, sendo o direito a obra do grupo social, to- preocupa-se apenas com este último. Ora, não seria pos-
dos os seus membros têm, mais ou menos confusamen- sível confundi-la com o direito, seja pela natureza dos
te, consciência do comportamento que lhe compete em atos que ele regulamenta, seja pela natureza das sanções
que lhes apíica.
23. Cf. infra, pp. 66 ss.

33
Direito e moral -- A distinção entre direito e moral é Obrigações naturais — Moral e direito estão muito per-
mais delicada, pois ambos situam-se no mesmo terreno, to um do outro para que não exista uma zona interme-
com a diferença, porém, de que a moral, mesmo aquela diária. Assim, o direito conhece obrigações incomple-
que se costuma designar pelo nome de "moral social", tas, chamadas obrigações "naturais", providas de semi-
tem um caráter social muito menos acentuado que o di- sancões, no sentido de que o credor não pode dirigir-se
reito. Seu verdadeiro domínio é a consciência individual, à justiça para obter dela a execução, enquanto o deve-
ao passo que as prescrições do direito íêm necessaria- dor que a cumpriu não pode, por sua vez, pretender ter
mente caráter coletivo e visam tanto ao grupo social pago o indevido e exigir o reembolso. A moral é, sobre-
quanto ao interessado. Assim, o campo de aplicação das tudo, o inesgotável reservatório em que se alimenta o
normas morais difere do das normas jurídicas, ainda que direito. À proporção que se refina, suas exigências fazem-
esses dois domínios se confundam em grande parte. A se mais imperiosas e, de simples deveres, transformam-
moral é mais exigente e, ao mesmo tempo, menos exi- se em obrigações jurídicas. A evolução contrária tam-
gente que o direito. Enquanto as prescrições jurídicas, bém pode ser encontrada, embora mais raramente; exis-
em geral, evitam penetrar nos meandros da consciência tem regras de direito que degeneram, que deixam de ser
e não se interessam pelas intenções para considerar uni- munidas de sanção jurídica para referir-se apenas à cons-
camente os atos e as atitudes24, é a intenção, ao contrá- ciência moral.
rio, que constitui o lugar de eleição da moral. Ou seja,
uma grande quantidade de atos e comportamentos amo- Conflito entre direito e moral -- Por outro lado, as es-
rais ou mesmo francamente imorais são perfeitamente treitas relações entre a moral e o direito podem, em cer-
indiferentes aos olhos do direito, para o qual "tudo o tos casos, dar origem a conflitos. Pode acontecer que
que não é proibido é permitido". Mas, em sentido in- uma norma seja imposta no terreno jurídico e repudia-
verso, pode-se dizer que o direito é mais coagente que da, em nome da moral, por membros da comunidade
a moral, do ponto de vista da sanção. A infração de uma que julgam, em sã consciência, não poder observá-la 25 .
norma moral é a desaprovação. Não é de forma algu- Tal será, por exemplo, o caso de militares a quem se te-
ma negligenciável, pois a censura ou mesmo o ridículo nha dado a ordem de executar atos contrários a suas con-
podem ter efeitos muito graves, criar uma psicose, des- vicções religiosas ou filosóficas (oficiais designados pa-
truir uma carreira ou até provocar o suicídio. No entanto, ra proceder aos "inventários" das igrejas, soldados "in-
não atingirão o interessado tanto quanto o faria um ato submissos por razões de consciência", etc.). A norma
da autoridade pública -- por exemplo, uma condena- jurídica deverá ceder diante da norma moral, ou deve-
ção penal. se preconizar a solução contrária? Para o sociólogo, a
24. Isso só é verdade de maneira geral. Os direitos modernos resposta não apresenta dúvidas: é a norma do direito que
concedem amplo lugar à intenção, não só em matéria penal como
também nos casos civis. Por outro lado, os novos dados da vida so- 25. Esse é um dos fenómenos estudados sob a expressão fenó-
cial multiplicaram os casos de responsabilidade dita objetiva, isto é, menos de internormatividade (cf. J. Carbonnier, Essats sur lês iois,
independente de qualquer delito. 1979, p. 251)-' dois sistemas de normas estão em concorrência.
deve ser obedecida, já que representa, durante sua vi- CAPÍTULO II
gência, a vontade do corpo social, enquanto a outra ex-
prime uma opinião pessoal ou, quando muito, uma fra-
ção da sociedade, devendo, portanto, estar subordina- As fontes do direito
da à primeira -- até que obtenha a adesão do grupo.
É, decerto, permitido criticar a lei, fazer campanha contra
ela e trabalhar por sua abolição. Mas, enquanto esta não
se concretiza, é necessário obedecer-lhe26. Nesse ponto, A palavra fonte é tomada em empréstimo aos fe-
convém assinalar duas ressalvas. Há casos em que todo nómenos da natureza. Refere-se ao ponto em que um
o sistema legislativo é ilegítimo por ser a obra de um po- curso de água emerge da terra, ao lugar onde ele nasce.
der usurpado, imposto pela força, não reconhecido pe- Em matéria de direito, a palavra liga-se igualmente a
lo conjunto da nação. Já passamos por essa provação. essa ideia de nascimento, de origem, mas costuma ser
É evidente que, em tal hipótese, o dever de obediência utilizada em duas acepções diferentes, que convém não
pode e deve sofrer sérias transgressões. Na mesma or- confundir.
dem de ideias, quando um poder, embora legítimo, abusa Nurn primeiro sentido, que chamarei de "históri-
de sua força coercitiva para se manter, suas ordens já co1' ou "documentário", entendem-se por fontes os da-
não expressam a vontade do corpo social e a desobediên- dos de qualquer natureza que permitem que conheça-
cia passa a ser não só urn direito como um dever, con- mos o direito. Trata-se, quase sempre, a partir de um
forme proclamou a Constituição francesa de 179327. certo nível de civilização, de documentos escritos. Po-
Não será exagero dizer que, no conjunto, os poderes le- demos dizer, portanto, que as fontes do direito romano
gítimos de hoje têm por origem urna insurreição. consistem nos manuscritos, nas inscrições, nos papiros,
nas alusões ao direito contidas na literatura latina, etc.
Podem ser também monumentos arqueológicos, ritos,
tradições orais, etc. Em suma, tudo aquilo que nos po-
de informar sobre as instituições jurídicas presentes ou
passadas é uma fonte de nosso conhecimento. Por ora,
deixarei de lado esse primeiro sentido da palavra fonte.
Mais adiante iremos retomá-lo.
O sentido dogmático da palavra fome, o único de
26. Os juristas católicos tendem a admitir como legítima a de- que devemos nos ocupar aqui, está mais próximo da me-
sobediência à lei civil, na medida em que ela se acha em conflito com táfora da qual procede. Designa, com efeito, a origem
imperativos julgados superiores. Nesse sentido, cf. P. Coste-Floret, do conjunto das normas jurídicas. Responde à pergun-
Lês problèmes fonàameniaux du droit, Paris, 1946.
27. An. 35: "Quando o governo viola os direitos do povo, a ta: "De onde vem o direito?"
insurreição é para o povo e para cada porção do povo o mais sagra- Para a teoria sociológica, à qual me atenho, essa
do dos direitos e o mais indispensável dos deveres." questão comporta uma única resposta, já referida aci-

36 ;"
ma: o direito emana do grupo social; as normas jurídi- detectado. É por ele que começarei, antes de estudar o
cas expressam a maneira pela qual esse grupo entende sentido que normalmente se empresta a essa palavra.
devam ser estabelecidas as relações sociais. Esse modo Se, como já escrevi em diversas oportunidades, o
de ver é bastante diverso daquele que geralmente é ensi- direito, longe de ser urn sistema rígido, é essencialmente
nado. A doutrina corrente sobre as fontes do direito não fluido e se transforma a todo instante, é preciso desig-
coloca claramente a questão da origem da norma jurí- nar com uma palavra essa ação ao mesmo tempo dis-
dica, a qual, não obstante, é primordial; dirige seus es- solvente e criadora que, a exemplo da erosão para a cros-
forços para as diferentes modalidades que elas revestem ta terrestre, modifica incessantemente as relações sociais.
(lei, costume, jurisprudência, doutrina), dando assim a Não estaremos violentando a palavra costume se a em-
impressão de que tais modalidades são radicalmente di- pregarmos nessa acepção mais extensa. Nesse sentido am-
ferentes umas das outras. Ao contrário, para o sociólo- plo, o costume elabora surdamente o novo direito do
go, as fontes formais do direito, que os juristas distin- mesmo modo que a vida latente opera nas espécies vege-
guem, não passam de variedades de uma só e mesma fon- tais e animais. É a fonte vital das instituições jurídicas.
te, que é a vontade do grupo social. Por outro lado, Tem, pois, uma esfera de aplicação indefinida. Não
afasto-me da teoria corrente pelo fato de atribuir gran- é uma fonte de direito entre outras: não seria exagera-
de importância ao costume. É por ele que iniciarei este do dizer que é a única fonte do direito.
estudo. Embora surdo ou latente, o costume não seria per-
ceptível se não se manifestasse exteriormente por meio
de atos. Essas manifestações são negativas ou positivas.
I. O costume Negativas, consistem na falta de aplicação do direito po-
sitivo. Eis um fenómeno de grande importância, sobre
l. Generalidade do costume — É comum colocar o qual só agora os juristas começam a se debruçar. Não
a lei à testa das fontes formais do direito. Essa posição surpreende, aliás, que lhes tenha escapado por tanto tem-
justifica-se por razões práticas e didáticas evidentes. po. O valor e o alcance de uma norma jurídica existente
Nossas sociedades modernas são, como veremos, de base não eram postos em dúvida. Bastava que uma norma
legalista, e parece de bom método proceder do conhe- figurasse no arsenal legislativo para que fosse, sem mais,
cido para o desconhecido. No entanto, se atribuo o considerada como em pleno vigor. Melhor ainda, a ques-
primeiro lugar ao costume, é porque acredito poder tão não se colocava. Foi necessária a irrupção muito
conferir a essa fonte de direito uma amplitude, uma ge- recente do espírito sociológico no domínio do direito
neralidade e mesmo uma atualidade que em geral não para que se percebesse a existência e a importância do
lhe é reconhecida. Existe, a meu ver, além do costume problema.
no sentido técnico, que desempenha, com efeito, um
papel meramente secundário nas sociedades contempo- 2. O desuso -- Todos concordam em constatar que
râneas de tipo evoluído, um costume muito mais difun- existe, em todos os sistemas jurídicos, um certo número
dido e muito mais eficiente, apesar de mais difícil de ser de normas que não recebem aplicação, seja porque, desde

39
sua criação, em virtude de sua má redacão ou por outro jurídicas nem sempre tinham necessidade de receber apli-
motivo qualquer, não tenham sido adaptadas à realida- cação para exercer sua influência, ou antes — pois esse
de, seja porque — o que acontece mais frequentemente modo de falar é sem dúvida obscuro —, que convém dis-
—, depois de terem sido aplicadas durante algum tem- tinguir várias maneiras de aplicação, uma das quais,
po, deixaram de sê-lo porque não atendiam às novas ne- aquela em que se pensa em primeiro lugar, é manifesta
cessidades da sociedade: é o fenómeno bem conhecido e se expressa o mais das vezes sob forma judiciária, en-
ao qual se deu o nome de extinção por desuso. É desne- quanto as demais não são menos reais, embora menos
cessário sublinhar até que ponto ele concorda com a facilmente perceptíveis3.
teoria sociológica do costume acima exposta. Em todo Sob essa ressalva, é possível dizer que a não-aplica-
caso, o certo é que uma grande proporção das normas ção de uma norma de direito ou o seu desuso constitui
inscritas em nossos códigos não é observada. Que pen- o efeito de um costume, já que, sem proceder por uma
sar a respeito disso? Pode-se ser tentado a concluir que via formal, sem empregar um verdadeiro processo, ela
elas estão fora do direito porque estão fora da vida. põe termo a uma solução jurídica para substituí-la por
Dando a essa metáfora seu sentido mais enérgico, seriam outra que será, conforme o caso, ou a antiga, que re-
"letra morta", e o jurista, se se ativer, como deve, mais tomará assim o seu vigor, ou uma nova, que nascerá,
às realidades do que às aparências, deveria, ao que pa- também ela, de maneira espontânea e clandestina. Claro
rece, suprimi-las deliberadamente do direito 1 . Na ver- está que esse costume destruidor de um direito em vigor
dade, porém, a coisa não é tão simples, e parece neces- deve ser distinguido da ab-rogação formal que se liga
sário introduzir aqui uma certa nuança. É impossível, às leis propriamente ditas e que reencontraremos mais
em matéria de direito, empregar em todo o seu rigor o adiante.
raciocínio lógico e matemático. Assim, é falso dizer que
nesse domínio um ato nulo seja sem efeito ou que se pos- 3. Costume ab-rogador e costume criador — Ao
sam recolocar exatamente as coisas em sua situação an- lado desses costumes ab-rogadores (no sentido amplo do
terior, "restituí-las por inteiro", conforme a expressão termo), devem-se colocar os costumes criadores, enten-
do direito romano 2 . Da mesma forma, apressamo-nos dendo-se que, como acabo de dizer, alguns podem ser,
em afirmar que as normas jurídicas que não são aplica- ao mesmo tempo, um e outro. Essa virtude criadora do
das, ou mesmo que nunca o foram, são absolutamente costume é um fenómeno geral e universal, pelo menos
inoperantes. Demonstrou-se recentemente que as normas nas sociedades em que a vida coletiva manifesta certa
espontaneidade e um mínimo de intensidade. É o caso,
por exemplo, das sociedades primitivas, mas aqui as dei-
1. Essa é a tese que eu próprio sustentei em diversas oportuni- xaremos de lado porque vivem sob o regime do costu-
dades, nQt&damente em Aspectssociologiques du droíl. Paris, 1955,
p. 78. As observações de Carbonnier, citadas infra, p. 41, n. 3,
levaram-me a uma visão mais matizada do problema. 3. J. Carbonnier, Effectivité et ineffectivité de Ia règle de droit,
2. H. Lévy-Bruhl, Os efeitos dos atos nulos (em italiano), in t- in Année Sociologique, 3.a série, 1958, pp. 3-17, e Fiexible Droit,
Rivista iníernazionale di filosofia didiriíto, t. V! (1926), pp. 177-181. 4 . a ed., 1979, p. 99.

40 41
me no sentido técnico do termo, que examinaremos mais seria do maior interesse conhecer a razão de seu suces-
adiante 4 . O costume, no sentido geral da palavra," do so, a marcha de sua progressão. Com muita frequên-
qual nos ocupamos, mal existe entre eles, ao passo que, cia, a nova solução progride primeiro clandestinamen-
nas sociedades mais evoluídas, constitui o principal fa- te, num meio restrito — por exemplo socioprofissional;
tor do progresso jurídico. Se até aqui ele tem sido negH- - depois, tendo obtido a adesão de todos, transpõe os li-
genciado ou desconhecido, isto se deve a esse traço que mites da profissão para transformar-se em prática cor-
lhe é comum às outras acepções da mesma palavra, ou rente e, por fim, ao termo de um prazo muito variável,
seja, sua espontaneidade, o mistério que cerca seu nas- recebe a sanção legislativa, que comporta igualmente a
cimento. Só se toma consciência de sua existência quando sanção judiciária. Deve-se observar, com efeito, que, en-
ele produziu seus efeitos. Apesar desse mistério, que o quanto vive obscuramente, sob o aspecto de um cos-
torna sem dúvida difícil de ser detectado, não é impos- tume, a norma em questão não pode ser reconhecida
sível ter algumas luzes sobre o modo como o costume pelo juiz, pelo menos no sistema jurídico francês. O
introduz-se, difunde-se e impõe-se. Certamente, para se juiz não tem o direito de referir-se a um costume, salvo
ter uma ideia, mesmo imprecisa, a seu respeito seria pre- em casos extremamente particulares, em que se trate de
ciso dispor de um número muito maior de dados, mas usos locais, não raro em matéria de propriedade rural.
vários de seus elementos já se podem discernir. Parece, Mas, se o costume não pode ser sancionado em justiça,
em primeiro lugar, que todo costume novo deve-se a uma será lícito afirmar que ele é uma fonte de direito? A
invenção individual. No grupo social, alguém se dá conta sanção judiciária não será precisamente o que caracteri-
de uma imperfeição do aparelho jurídico e tem a ideia za a norma jurídica e a distingue da lei moral, por exem-
de melhorá-lo ou, pelo menos, de adaptá-lo às novas plo? Não sou dessa opinião, e tomei o cuidado, na defi-
necessidades. Assim fazendo, essa pessoa torna-se, na- nição do direito que propus, de não fazer intervir a
turalmente, o intérprete, o instrumento das aspirações sanção judiciária. Por importante que seja este última,
coletivas que tendem a manifestar-se, mas só podem não é indispensável aos olhos do sociólogo, e <. obriga-
fazê-lo por esse intermediário humano que, aliás, quase ção, como afirmei acima, nem por isso deixa de ser ju-
sempre permanece anónimo. Para citar um exemplo: sar rídica. O que a caracteriza é menos a sanção judiciária
bemos quem é o autor do cheque cruzado, inventado em que o vigor da reação do grupo provocada por sua vio-
nosso tempo? Com maior razão, ignoramos o autor do lação. A sociedade global é geralmente a única que
próprio cheque, muito mais antigo. Quando uma ino- possui um aparelho judiciário; vimos, porém, que ou-
vação produz-se no seio de um grupo, pode ser bern- tros grupos sociais, superiores ou inferiores ao Estado,
sucedida ou fracassar. A última hipótese ocorre frequen- elaboravam, também eles, normas de direito que não po-
temente. Inúmeras são as tentativas que abortaram por- dem, por definição, ser homologadas pelos tribunais. De
que eram ineptas ou prematuras, ou por outro motivo resto, uma investigação mais atenta evidenciaria sem dú-
qualquer. Mais importantes são as que tiveram êxito, e vida que, sendo os costumes que derrogam o direito em
vigor, pelo menos até certo ponto, antilegais, evita-se,
4. Cf. infra, pp. 47 s. por uma espécie de acordo tácito, deferi-los à autorida-

43
de judiciária. Consideraremos como norma jurídica con- francamente ilegais. É por seu intermédio que as ideias
suetudinária toda nova norma aceita explícita ou im- introduzem-se na legislação de um país, é por eles que
plicitamente pela grande maioria dos membros desse se criam novas instituições. Pode parecer surpreendente
grupo, sob a condição de que não apresente um caráter que um sistema jurídico venha a receber, sem se deslo-
simplesmente moral. car completamente, normas muito diferentes e quase con-
Disse há pouco que esses costumes são frequente- traditórias. Um corpo de direito não deve apresentar certa
mente difundidos em grupos profissionais. Encontraría- unidade? E que ainda não se avaliou suficientemente a
mos exemplos disso sobretudo nos meios comerciais, grande flexibilidade do direito, sobretudo do direito
bancários, marítimos, ou entre os operários da grande privado 6 . Uma legislação como a nossa contém nume-
indústria 5 . Mas seria erróneo acreditar que só a profis- rosas disposições de data e de espírito muito diferentes.
são tem seus costumes. Vamos encontrá-los também em Darei alguns exemplos. No direito de família, os re-
outros meios. Assim, o mundo camponês se distingue datores do Código Civil de 1804 concebiam o casamen-
do mundo citadino e do direito comum pela observação to como uma associação, mas uma associação em que
de práticas obrigatórias como o emprego, ainda geral em a mulher estava longe de ser igual ao marido. Ele é o
muitos campos franceses, de antigas escalas de medida chefe da comunidade conjugal e a esposa só pode pro-
opostas ao sistema métrico, que, não obstante, é impe- ceder à maior parte dos atos da vida jurídica com sua
rativamente imposto há mais de século e meio. Do mes- autorização. Além disso, a mulher é considerada, em cer-
mo modo, existem costumes regionais que são igualmente tos aspectos, como um elemento estranho introduzido
sobrevivências de um direito anterior e que se mantêm na família, sem nela estar realmente integrada, o que se
graças aos artifícios fornecidos pela cautela notarial: traduz em sua inferioridade com relação aos parentes
tal é o direito de primogenitura em certas províncias sanguíneos em questão sucessora!. Uma evolução devia
francesas, como o Béarn. Os dois últimos casos men- ocorrer em seu favor no decorrer do século e meio que
cionados põem-nos em presença de costumes regressi- se seguiu à redação do Código Civil, especialmente no
vos: são a exceção. A maioria deles mereceriam antes curso dos últimos anos. Novas leis e decisões jurispru-
a qualificação de progressivos, e constituem verdadei- denciais introduziram no sistema jurídico francês uma
ras inovações que, propagando-se inicialmente num meio concepção muito mais liberal dos direitos da mulher ca-
restritivo e aí sendo postos à prova, são acolhidos pela sada: fora preparada pelo costume, que se exprime pela
sociedade global e recebem a consagração legislativa. prática. O direito das obrigações é rico em dados desse
género. Basta lembrar, em poucas palavras, os mais co-
4. Costume contrário ao direito comum — Afirmei nhecidos. O Código Civil parece exigir, em seu artigo
que os costumes estão muitas vezes em desacordo com 1382, que o autor de um dano tenha cometido um deli-
o direito em vigor, É preciso insistir um pouco nesse pon-
to. Os costumes são sempre paralegaís, mas, às vezes,
6. Lévy-Bruhl, Tensions et conflits au sein d'un même système
juridique, in Cahiers internationaux de sociologie, vol. XXX, 1961,
5. Maxime Leroy, La coutume ouvrière, Paris, 2 vol., 1913. pp. 35 s.

44
série de medidas que procedem desse espírito. Tais me-
to para que se possa imputar-lhe a responsabilidade. Ora, didas são dificilmente compatíveis com prescrições do
verificou-se que muitas vezes a vítima não está em con- Código Penal em vigor. Mas, ainda uma vezf não se pode
dições de estabelecer esse delito. Deverá ela sofrer o da- exigir de um sistema de direito grande coerência formal.
no sem reparação possível? Progressivamente, durante Mais exatamente, essa coerência e essa unidade existe,m
o século XIX, afirmou-se a ideia de que, mesmo fora para além. das contradições aparentes das fontes: são rea-
de qualquer delito ou negligência, podia-se ser o autor lizadas pela opinião coletiva, que é, como vimos, a úni-
de um risco, ter criado a eventualidade de um dano, e ca fonte genuína do direito.
que se era obrigado a repará-lo, Essa nova concepção, O que foi dito parece afastar-nos de nosso assunto:
que consagra uma série de dispositivos, entre os quais o costume. A bem dizer, ele não é nada disso. As ino-
a lei de 9 de dezembro de 1898 sobre os acidentes de vações de que falei, que modificaram tão profundamente
trabalho, coexiste em nossa legislação com o artigo 1382. nosso sistema jurídico em suas obras vivas, aparecem,
Outro exemplo: o artigo 1119 do Código Civil estipula à primeira vista, como legislativas ou jurisprudenciais:
que os efeitos das obrigações ficam limitados às partes na realidade, são consuetudinárias; constituem o produto
contratantes. Essa concepção estritamente individualis- da prática. Isso é evidente para os seguros de vida, que
ta do contrato foi bombardeada pelas exigências da por algum tempo tiveram uma vida ilegal antes de se-
vida moderna. A grande indústria não pôde acomodar- rem homologados pela lei e pelos tribunais. Mas é ver-
se a esse regime, que podia convir a empresas do tipo dade também para as convenções coletivas, criadas pela
artesanal. Foi-se obrigado a concluir convenções coleti- vida sindical; para a nova condição da mulher casada,
vás cujas cláusulas impõem-se a outros organismos além preparada pela prática notarial e ampliada ainda mais
daqueles que as assinaram. Na mesma ordem de ideias, pela prática bancária; para as reformas na ordem cri-
esse artigo 1139 obstaculava a existência dos seguros de minológica, que nasceram em grande parte do tratamento
vida, cuja necessidade se fazia sentir. O artigo foi man- da infância delinquente, progressivamente estendido aos
tido, mas uma jurisprudência engenhosa — para não di- adultos... De resto, pensando bem, tal é a origem da
zer astuta — conseguiu desviá-lo de seu sentido inicial maioria de nossas normas de direito, e, quando se diz
e levantar o obstáculo que ele constituía. Esses exem- correntemente que na maior parte das vezes a lei só faz
plos poderiam ser multiplicados facilmente. Contentar- consagrar um estado de fato, exprime-se a mesma ideia,
me-ei em citar um último, extraído de uma ordem de ou seja, que o grupo social já exercia semelhantes práti-
fatos inteiramente diversa: o direito criminal. Sabe-se cas. No entanto, sinto-me inclinado a corrigir a fórmu-
que, para o Código Penal de 1810, a pena tinha por fun- la corrente considerando que essas práticas já eram, com
ção emendar o culpado e intimidar, por seu castigo, os frequência, direito, e não meros fatos. De qualquer mo-
que se sentissem tentados a cometer os mesmos delitos. do, percebe-se a extrema importância que o costume pos-
Essa concepção é, em larga medida, caduca. Tende-se, sui na formação do direito, mesmo nas sociedades mais
hoje em dia, a considerar o delinquente como um doen- evoluídas.
te ou um inadaptado que a sociedade deve procurar an-
tes curar ou reerguer do que punir, e tomou-se toda urna
47
5. A lei superior ao costume parcial — Nesse pon- esse direito consuetudinário é fortemente impregnado de
to, porém, é necessário fazer uma observação importante. misticismo. As sanções às violações de numerosos tabus
Se é verdade que uma norma de conduta tem um valor são de natureza religiosa. Em segundo lugar, esses cos-
jurídico em determinado meio se for unanimemente ob- tumes são extremamente tenazes e só se modificam muito
servada, ainda que se afaste mais ou menos das prescri- lentamente. À primeira vista, isso poderia opor-se ao que
ções legais (sob a condição, naturalmente, de que não escrevi no início deste estudo, ou seja, que o direito está
constitua nem um crime nem um delito), deve-se reco- em perpétua mudança. Na realidade, essa afirmação só
nhecer, entretanto, que essas normas consuetudinárias, é plenamente verdadeira para as sociedades modernas,
praticadas numa sociedade regida pela lei, são bastante onde a vida social é intensa. Nas sociedades primitivas,
frágeis e não têm o alcance de uma norma ratificada pela as condições ecológicas e económicas de existência ex-
sociedade global, isto é, de uma lei. Se se levanta um cluem qualquer modificação rápida das relações huma-
conflito entre a lei geral e o costume regional, profissio- nas. Os grupos sociais são geralmente muito restritos,
nal, etc., é evidentemente a primeira que deve prevale- muito fechados, sem comunicação uns com os outros, de
cer. Isso é fácil de se constatar: num país legalista — tal sorte que os elementos estranhos, que constituem po-
por exemplo, na França atual —, se o costume é de derosos fermentos de renovação do direito, estão quase
fato, como creio, uma fonte de direito, não tem, contu- completamente ausentes. Além disso, o caráter religio-
do, a solidez conferida pela sanção legislativa. so do direito, decorrente de sanções sobrenaturais temí-
veis, entretém um conformismo favorável à estagnação.
6. O costume nas sociedades primitivas — Acaba- Por todos esses motivos, o costume dos primitivos é, pois,
mos de examinar o costume em sua acepção mais geral relativamente muito estável. O que aumenta ainda mais
e apreendida nas sociedades mais civilizadas, onde sua o interesse do estudo dos costumes primitivos é o fato
existência e seu alcance são quase sempre pouco conhe- de que eles são praticados em nossos dias poj" seres vi-
cidos ou ignorados. Sem ser substancialmente diverso, vos cujo comportamento podemos observar e de que as
o costume apresenta outro aspecto nos grupos sociais em circunstâncias históricas nos permitem constatar os efei-
que constitui ou a única fonte formal do direito ou pelo tos produzidos pelo contato, às vezes brutal, desses sis-
menos a mais importante, não existindo ou sendo rara- temas consuetudinários com outros sistemas jurídicos de
mente empregado o mecanismo legal. O primeiro caso um nível superior.
é o das populações primitivas ou arcaicas, o segundo o
da Europa medieval. 7. Os costumes'medievais — O direito consuetudi-
As sociedades primitivas que desconhecem a es- nário da Europa medieval, que em certos países, como
crita vivem necessariamente sob o regime dó direito a França, prolonga-se até o fim do século XVIII, per-
consuetudinário. Os costumes aí são numerosos e va- tence irrevogavelmente ao passado e não pode, conse-
riados. Entretanto, pode-se reconhecer neles caracterís- quentemente, ser reconhecido senão indiretamente. Por
ticas comuns. Em primeiro lugar, como afirmei mais outro lado, ele coexiste com outras fontes de direito e
acima, como o direito quase não se distingue da religião, coloca um certo número de problemas que ainda não

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foram resolvidos. O mais importante é o da oralídade. preciso dos direitos e deveres de cada um — em outros
É natural, e até necessário, que o costume seja oral en- termos, a publicidade das normas jurídicas. Esse resul-
tre os povos primitivos, já que estes ignoram a escrita. tado foi obtido graças a dois fatos convergentes. Primei-
Muito menos explicável é que ele tenha esse caráter tam- ro, sentiu-se a necessidade de fixar o costume por es-
bém na Idade Média, isto é, numa época em que a es- crito, mas as primeiras redações devem-se a iniciativas
crita, embora ainda não se tenha difundido universal- individuais e não tiveram nenhum caráter oficial. Foram
mente, é de uso corrente em certos meios. Como é que, simples particulares que tiveram o cuidado de recolher
enquanto muitos atos de interesse privado, como doa- e ordenar de maneira mais ou menos sistemática, para
ções ou testamentos, preenchem numerosos cartulários si mesmos ou para seus concidadãos, as normas em vi-
e são cuidadosamente redigidos e conservados, os cos- gor em seu meio. Numa segunda etapa, tendo os pode-
tumes, esses documentos de interesse geral, não o são res públicos, nesse entretempo, assumido maior auto-
e permanecem numa espécie de estado fluido e precário, ridade e, portanto, mais responsabilidades, tomaram
desprovidos, se assim se pode dizer, de consistência ma- consciência de que lhes incumbia dar conhecimento ao
terial, reduzidos ao estado de palavras transmitidas de público das normas segundo as quais cada qual devia
boca em boca no curso de inúmeras gerações, com to- comportar-se. Ao mesmo tempo, a área de aplicação ter-
dos os riscos de deformação que isso comporta? Os ju- ritorial dos costumes tendeu a coincidir com os limites
ristas não parecem ter-se preocupado com esse parado- de uma circunscrição administrativa. Não surpreende que
xo, que requer, não obstante, uma explicação. Eis a que medidas desse género tenham sido tomadas num momen-
proponho, a título de simples hipótese. O direito, nessa to em que o Estado centraliza-se e reforça-se. Na Fran-
época — pelo menos o que chamamos de direito priva- ça, foi na metade do século XV, em 1454 (novo estilo),
do —, não é considerado como um dos atributos do po- que Carlos VII, pelo célebre decreto de Montil-lès-Tours,
der político, e as relações entre particulares, nascidas um prescreveu que os costumes do reino fossem-redigidos
pouco ao acaso das circunstâncias, difundem-se à ma- oficialmente por escrito e instituiu um procedimento para
neira de uma mancha de óleo, sem obedecer, ao que pa- esse efeito. O decreto só foi observado com alguma
rece, a nenhuma regulamentação. O costume não tira, negligência, e nem todos os costumes ainda estavam re-
pois, a princípio, sua força coercitiva de uma autorida- digidos no momento da Revolução. Mas o que nos in-
de pública organizada, mas apenas da pressão social im- teressa aqui é saber qual foi o efeito dessa redação.
posta por esta ou aquela solução tradicional que pare- Perdendo seu caráter oral, deixava o direito de ser con-
ceu mais satisfatória. Durante algum tempo, as pessoas suetudinário? De fato, sim. O costume escrito era obser-
contentaram-se com esse estado de coisas um pouco anár-
quico, mas os defeitos desse sistema evidenciaram à me-
dida que as relações sociais tornaram-se mais frequen- toriais do costume era um ninho incessante de dificuldades e proces-
sos. Para pôr-lhe um fim, organizou-se um processo sob o nome de
tes7. A segurança exige um conhecimento antecipado e
"inquérito por turbe", que consistia essencialmente no interrogató-
rio dos notáveis da região. Os resultados não foram muito felizes,
7. A incerteza em torno da existência, conteúdo e limites terri- nem podiam sê-lo.

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vado à maneira de um texto legal, e nada de essencial de uma lei ou de um costume contrário — ou ainda por
distingue, por exemplo, as disposições do Costume de desuso8. Vimos acima que os pretensos princípios fun-
Paris (o mais importante do reino) dos artigos de uma damentais não passam de um engodo.
declaração real. Todavia, perpetuou-se o hábito, até o
fim do Antigo Regime, de dividir a França em duas par-
tes, das quais a primeira e a mais vasta trazia o nome il. A lei
do país de costume, enquanto certas províncias, sobre-
tudo do Sul, antigamente regidas pelo direito romano, A lei não é essencialmente distinta do costume: am-
recebiam a denominação de 4< país de direito escrito". bos são a expressão da vontade do grupo. O que os di-
Esses nomes possuíam um interesse meramente histórico. ferencia é um dado técnico: enquanto o costume, como
vimos, é espontâneo e "inconsciente' 1 , a lei emana de
8. O costume deve ser racional? — Os juristas da um órgão especializado e nasce por meio de um proces-
Idade Média atribuíam ao costume outro traço que con- so que, em nossos dias e em nossas sociedades, recebe
vém sublinhar. Exigiam que ele fosse racional. Ao for- o nome de promulgação. Além disso, a lei exprime-se
mular essa exigência, queriam, antes de tudo, lutar por fórmulas muitas vezes redigidas, enquanto o costu-
contra certos costumes que lhes pareciam inaceitáveis me, em princípio, é oral. Examinarei sucessivamente o
porque estavam em contradição formal com o direito modo de elaboração da lei, sua forma e seu alcance. An-
canónico e a organização constitucional da Igreja. Ain- tes, porém, devo dizer algumas palavras acerca de sua
da em nossos dias, os juristas anglo-saxônicos exigem história.
a reasonableness do costume, entendendo por isso que
um costume que esteja em conflito com os princípios fun- l. As primeiras leis — A lei aparece mais tarde que
damentais do direito não pode ser reconhecido como vá- o costume, e por duas razões. Em primeiro.lugar, ela
lido pelos tribunais. Semelhante concepção supõe uma implica o emprego da escrita, e a escrita só foi inventa-
hierarquia entre as normas juridicas bastante análoga à da num período relativamente recente da história da hu-
que encontraremos daqui a pouco entre as leis ordiná- manidade. Na verdade, esse critério não é muito rigo-
rias e as leis constitucionais. Implica a existência das nor-
mas jurídicas superiores, fundamentais, contra as quais
nenhuma outra norma de direito poderia valer. Sob um 8. À pane a questão da constitucionalidade, que, pelo menos
nos países continentais, se refere apenas às leis, não só os costumes
regime como o da Europa medieval, onde se observa o têm igual autoridade como não se pode conceber que um costume,
pulular de uma grande quantidade de costumes diver- desde que seja unanimemente recebido pelo grupo social, possa ser
sos, esse princípio era sem dúvida gerador de ordem e condenado ern nome de uma autoridade superior. Pois de onde viria
clareza e tinha uma eficiência prática certa. Do ponto essa autoridade? Ao contrario, como ficou dito mais acima (pp. 47-48),
de vista teórico, é muito mais discutível, pois todo cos- num dado sistema jurídico de um sistema legislativo os costumes par-
ticulares, regionais, locais, profissionais, etc., devem ceder o passo,
tume reconhecido como tal é a expressão soberana do em caso de conflito, à lei, que exprime, ao menos provisoriamente,
grupo social e só pode ser abolido pelo estabelecimento a vontade da sociedade global.

52 53
roso. Podem-se imaginar normas de direito proclama-
cia é, aliás, como vimos, quase sempre mais aparente
.das oralmente e tendo o alcance das normas legislativas.
que real.
Mais exata e mais importante é a segunda razão: a lei,
por requerer a existência de um órgão especializado que
2. Costume e lei — Levantou-se a questão de saber
a elabore, não é encontrada entre as populações mais
arcaicas, as quais vivem sob o regime de costumes tra- qual dos dois sistemas - - o do costume ou o da lei —
deveria ser preferido. Uma controvérsia célebre envolveu
dicionais, pois a lei supõe uma divisão do trabalho, uma
na Alemanha, no começo do século XIX, dois juristas,
diferenciação de funções ainda não conhecidas por elas.
Savigny e Thibaut, o primeiro, partidário do costume,
As leis mais antigas de que se tem conhecimento são tex-
o outro, da codificação 9 . Savigny, líder da escola his-
tos mesopotâmicos do segundo milénio a.C., das quais
tórica, tinha discernido a ideia justa, e que a sociologia
a mais conhecida, mas não a primeira em data, é o fa-
contemporânea confirmou, segundo a qual o direito pro-
moso Código de Hamurábi, rei da Babilónia. As outras
cede da consciência coletiva. Daí ele chegar à conclusão
leis são sensivelmente mais recentes, tais como o Decá-
de que o costume devia ser preferido à lei, porque cons-
logo hebraico (alguns séculos posterior), as leis indianas
tituía a expressão direta e pura das aspirações da coleti-
de Manu (século III). As XII Tábuas de Roma datam
vidade nacional. Porém, o exame dos fatos é contrário
da metade do século V a.C., e os povos germânicos re-
a essa tese. Constata-se, com efeito, que, longe de ser
digiram suas leis (entre as quais a célebre Lei Sálica) ape-
mais flexível que a lei, e de natureza a adaptar-se mais
nas por volta do século VI d.C. Além disso, essas indi-
facilmente a condições novas, o costume tende a
cações cronológicas não têm grande alcance. O que im-
incrustar-se, a perpetuar-se e modificar-se com dificul-
porta é constatar em que etapa de seu desenvolvimento
os povos experimentaram a necessidade de possuir leis. dade. Thibaut, nesse ponto, tinha razão contra Savigny.
Essas leis, muitas vezes, não são isoladas, mas apresen- Aliás, quase todos os Estados modernos vivem sob o re-
gime da codificação, que, além disso, apresenta sobre
tam-se sob o aspecto de conjuntos mais ou menos siste-
o costume, como vimos, a grande vantagem de urn co-
máticos que recebem o nome de códigos. Parece que os
nhecimento mais rápido e mais seguro,
primeiros códigos estão muito próximos dos costumes
e deveriam ser considerados — pelo menos no que con-
cerne ao fundo do direito -- antes como uma redação 3. Elaboração da lei — Como se elabora a lei? Sabe-
oficial de costumes de origem e datas diversas que co- se que, na época mais antiga, o direito e a religião eram
mo leis propriamente ditas. Os códigos modernos têm indiferenciados. A lei era editada sob a forma de orácu-
los e o rei legislador constituía o órgão do deus que fa-
um caráter totalmente distinto. Todo elemento de espon-
taneidade lhes é estranho. São o produto de uma elabo- lava por sua boca. Depois de um processo de laicização,
fenómeno de grande generalidade e alcance, a lei pás-
ração consciente e refletida. Ademais, salvo excecão, não
constituem uma "suma" composta de elemento de ori-
gem e idade diferentes, mas um conjunto que se quer 9. Z. Krystufek, La querelle entre Savigny et Thibaut et son
coerente e sistemático do direito em vigor. Essa coerên- influence sur Ia pensée juridique européenne, in Revue hístorique de
droit, XLIV, 1966, pp. 59-75.
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sou a expressar-se pelas autoridades do Estado, segun- mós mais acima qualquer característica jurídica. Esta,
do procedimentos muito variados. O privilégio de expres- ao contrário, pertence, no meu entender10, às Declara-
sar o direito formulando uma norma imperativa para ções dos Direitos, das quais a primeira e a mais célebre
o futuro — em outros termos, o poder legislativo -- é é, para a França, a de 1789. Na maioria das vezes, elas
um atributo essencial da autoridade política. Ele varia formam um preâmbulo às constituições, o que levou al-
conforme os regimes constitucionais. Nos países de de- guns autores a dar-lhes o nome de "íeis superconstitu-
mocracia direta, a lei emana do conjunto dos cidadãos. cionais". Outros, ao contrário, acreditam que sejam nor-
Sob um regime parlamentar, é votada pelos represen- mas puramente morais. No entanto, fazem parte do di-
tantes da nação eleitos para esse fim; sob um regime de reito positivo e serviram de base para decisões de jus-
monarquia absoluta, emana do rei, que se supõe encar- tiça. Quanto às leis constitucionais propriamente di-
nar em sua pessoa a nação por ele governada. Essas mo- tas, todos concordam que são verdadeiras leis, mas de
dalidades, que têm grande importância prática, não po- uma natureza particular, tanto pelas matérias que regem
deriam esconder o princípio comum a todos, isto é, que como pelo lugar superior que ocupam. Têm por objeto
a lei — como, aliás, o costume — é a expressão da von- essencial definir o papel dos poderes públicos. Sua im-
tade geral. Resulta desse princípio que uma lei é tanto portância é capital e seu agenciamento delicado: devem
melhor quanto mais atende a uma necessidade sentida permitir aos particulares e aos agrupamentos usar ple-
pela coletividade. Eis por que sua elaboração deve ser namente de suas liberdades sem que seja entravado o jogo
operada com cuidado. Geralmente, sob o regime parla- das instituições. Formam uma espécie de quadro no qual
mentar, as leis são preparadas em comissões. Pode-se inscrevem as leis ordinárias. Em vista de sua importân-
perguntar se, apesar do cuidado e da consciência que tais cia, são votadas segundo um procedimento especial e,
comissões dedicam na maioria das vezes a esse trabalho, em certos países, como na França atual, submetidas à
ele não seria mais frutuoso se as mesmas dispusessem ratificação popular, feita por meio de um referendo.
de uma documentação estatística permanente, que pu-
sesse os poderes públicos ao corrente das necessidades 5. Consíitucionalidade das leis — A subordinação
do corpo social. Na França, começa-se a perceber isso. das leis ordinárias às leis constitucionais coloca um pro-
blema delicado. Que acontece se uma lei regularmente
4. Classificação dos leis -- Nem todas as leis têm votada é contrária à letra ou ao espírito da Constitui-
o mesmo valor, e podem-se distinguir várias categorias ção? Em outros termos, como se traduz nos fatos a su-
delas, que examinarei rapidamente de acordo com sua perioridade da Constituição sobre a lei? Na verdade, ne-
importância. No alto da escala encontram-se prescrições nhuma solução, satisfatória foi apresentada. Alguns pen-
cuja natureza é contestada e que, para certos juristas, saram que caberia ao poder judiciário constatar a incons-
não são leis. Trata-se das Declarações dos Direitos do titucionalidade das leis e pronunciar a anulação daque-
Homem. Esses atos situam-se entre as leis propriamen-
te ditas e os "princípios gerais do direito", que nada mais 10. S/c, Georges Scelle, Lê droit public et Ia théorie de 1'Etat,
são que máximas de direito natural e aos quais recusa- in íníroducíion à !'étude du droit, t. I, Paris (1951), pp. 46 s.
Ias que se acham manchadas por esse vício. Os Estados vra. De resto, esse problema da constitucionalidade das
Unidos adotaram esse sistema. As leis podem ser defe- leis é talvez mais teórico que real, porquanto o legis-
ridas à Corte Federal de Justiça, que tem competência lador, no mais das vezes, evita votar íeis em contra-
para ab-rogá-las. Esse sistema, que permite ao poder ju- dição formal com a letra ou o espírito dos textos cons-
diciário controlar o poder legislativo, não poderia ser titucionais.
aceito. É contrário ao princípio sociológico, em cujos
termos a norma jurídica constitui a expressão da vonta- 6. As leis parciais — Se considerarrnos agora o al-
de coleíiva. Esta, com efeito, expressa-se por meio de cance da lei, convém observar de início seu? limites no
mandatários eleitos, e não por uma corporação profis- espaço e no tempo. No espaço, sua aplicação é, em prin-
sional, quaisquer que possam ser sua ciência e impar- cípio, dominada pela estreita ligação entre a lei e o po-
cialidade. Estaríamos na presença de um regime que foi der político. ,Por oposição ao costume, que pode ser, se-
justamente designado pelo nome de "governo dos jui- gundo vimos, supra-estatal ou infra-estatal, a lei, ela-
zes", os quais seriam superiores à nação, fato que está borada pelo poder político, não se aplica teoricamente
em flagrante contradição com o princípio democrático. nem além nem aquém dos limites nos quais se exerce es-
Pode-se objetar que os juizes são, efetivamente, os in- se poder e está, em consequência, estreitamente relacio-
térpretes da nação, e não uma simples corporação, já nada com a noção de nacionalidade. No entanto, esse
que, no exercício de suas funções judiciárias, tomam suas princípio comporta várias ressalvas importantes. Em pri-
decisões em nome da coletividade. Nada mais verdadei- meiro lugar, ele não implica que a lei se aplique neces-
ro. No entanto, há mais de duzentos anos Montesquieu sariamente a todos os cidadãos do Estado, ou, pelo me-
denunciou os graves perigos da confusão dos poderes. nos, convém evitar aqui um equívoco: a norma de di-
Se a autoridade judiciária deve permanecer independente reito que ela edita impõe-se a todos, mas pode visar tão-
em relação ao poder político, não é menos-indispensá- somente a uma categoria de pessoas; tais são, por exem-
vel que o órgão designado para governar o país e espe- plo, as leis destinadas à proteção do trabalho das mu-
cialmente para legislar guarde sua autonomia em face lheres e das crianças — ou mesmo, no limite extremo,
dos iuízes, encarregados de todas as outras funções. a uma única pessoa, individualmente designada, como
A solução adotada na França pela Constituição de a lei que concede recompensa honorífica ou pecuniária
1958 não parece, tampouco, satisfatória: confia o con- a um cidadão a quem se deseja honrar. Alguns autores 11
trole da constitucionalidade das íeis a um Conselho com- acreditam não ser esse o papel da lei, a qual deveria ter
posto de certo número de personalidades. Esse procedi- um caráter abstraio e geral. Todavia, nada se opõe a que
mento choca-se corn a mesma objeção contraposta ao a lei se aplique apenas a uma categoria de cidadãos ou
precedente parece que a melhor solução seria a seguin- mesmo a um simples particular. Basta que a sociedade,
te: o citado Conselho ficaria encarregado de advertir do em seu conjunto, esteja interessada em suas atividades
vício da lei e o órgão legislador seria obrigado a proce-
der a nova deliberação, mas continuaria sempre sobera- 11. G. Ripert, Lê regime démocratique et lê droit civil mo-
no, pois é a ele, em definitivo, que cabe a última pala- derne, Paris, 1936, pp. 396 ss.

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e experimente a necessidade de expressar sua vontade em tribunais do lugar onde cometeram seu delito, sob a res-
relação a eles. Convém distinguir esse caso daquilo que salva do exercício do processo de extradição.
se chama de privilégios. Estes estão ligados à noção de
classe social entendida não no sentido económico e po- 8. Quando a lei entra em vigor? — Quanto ao al-
lítico, como se costuma tomar esse termo, mas em seu cance da lei no tempo, reencontramos aqui, pelo menos
sentido jurídico. Os privilégios não poderiam existir nos para o terminus a quo, a distinção, na qual insisti mais
países de regime democrático, fundados na igualdade dos acima, entre a lei e o costume. Enquanto este último apa-
direitos, mas encontram-se nas sociedades hierarquiza- rece de maneira imperceptível, a lei nasce num momento
das, onde cada classe social tem um estatuto juridica- bem definido do processo cronológico, sendo esse nas-
mente definido, como, por exemplo, a índia das castas. cimento geralmente marcado por um processo ad hoc
que, nos Estados modernos, recebe o nome de promul-
7. A personalidade das leis — Por outro lado, a li- gação. Esta consiste essencialmente em levar os termos
gação interna da lei com o Estado faz nascer, em deter- da norma legal, por meios apropriados, ao conhecimento
minadas circunstâncias históricas, o problema conheci- dos interessados. A lei só tem efeito a partir desse mo-
do pelo nome de personalidade das leis. Esse fenómeno mento. Em todo caso, ela não poderia visar aos atos exe-
produz-se quando o poder político sofre um eclipse ou, cutados anteriormente: é o que se chama de princípio
pelo menos, não exerce mais que uma autoridade redu- de não-retroatividade, que se expressa, por exemplo, em
zida. Um dos exemplos mais típicos é o da Europa Oci- direito francês, pelo artigo 2 do Código Civil. Esse ca-
dental após as invasões bárbaras. Não se poderia dizer ráter da lei é importante: é particularmente benéfico em
que então a lei tenha estado ausente, já que, ao contrá- matéria penal, em que constitui uma das mais sólidas
rio, os soberanos germânicos tomaram o cuidado de re- garantias da segurança dos cidadãos.
digir códigos para os povos submetidos ao seu domínio.
Porém o caldeamento dos elementos étnicos estava lon- 9. Quando ela deixa de ser aplicada? — Para o ter-
ge de completar-se, e foi necessário, em quase todos os minus ad quem, ou seja, para a determinação do mo-
novos reinos, promulgar duas séries de leis, uma para mento em que a lei deixa de estar em vigor, a doutrina
uso dos romanos, outra para os súditos germânicos. Essa comumente ensinada estima que uma lei permanece vá-
medida revelou-se insuficiente, e inúmeros conflitos de lida enquanto não tiver sido regularmente ab-rogada por
leis não tardaram a surgir na ausência de uma autorida- outra lei, solução perfeitamente conforme à tese segun-
de legislativa suficientemente forte. Finalmente, a nor- do a qual a lei é, em nossos dias, e nas sociedades evo-
ma segundo a qual a nacionalidade prevalece sobre a luídas, a fonte até certo ponto única do direito. Após
competência legislativa é também, com muita frequên- a exposição que desenvolvi acerca do costume,
cia, posta em xeque em matéria penal. Em virtude do compreender-se-á a impossibilidade de minha adesão a
princípio segundo o qual um Estado tem, entre suas fun- essa doutrina. Uma visão menos dogmática, mais rea-
ções, a de assegurar a ordem e a segurança sobre seu ter- lista das coisas leva a pensar que, quando — depois de
ritório, os criminosos estrangeiros são subordinados aos ter sido aplicada durante algum tempo — uma lei deixa
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de sê-lo, seja ela substituída ou não por um novo texto, silogismo. Conhecendo o caso típico sobre o qual o le-
pode-se, salvo exceção, considerá-la como ab-rogada, gislador ofereceu sua solução, ele deverá verificar se a
não, sem dúvida, pelo procedimento regular e formal, espécie que lhe é submetida está ou não em conformi-
mas pelo desuso, isto é, pelo efeito do costume. Limito- dade com esse caso típico e tirar daí as conclusões que
me aqui a lembrar o fato, uma vez que já o abordei mais se impõem. Porém, aqui se trata, como se vê, de uma
acima. Retenhamos simplesmente que, no quadro da so- questão de aplicação que pode, sem dúvida, ser delica-
ciologia do direito, a ab-rogação de uma lei tanto pode da, mas que permanece encerrada no quadro da lei. A
ser tácita como explícita: basta que ela deixe de corres- princípio, não se vê como esse trabalho do juiz pode mo-
ponder às aspirações do grupo social para que se tenha dificar as normas jurídicas existentes, e muito menos
o direito de considerá-la como abolida. acrescentar-lhes algo. Esse raciocínio vale, à primeira vis-
Por fim, o alcance de uma lei depende naturalmente ta, para os,sistemas de direito legalistas, como a maio-
do sentido que se atribui a seus termos: portanto, ela ria dos países modernos, a França em particular. É muito
está muito mais próxima do problema de sua interpre- menos válido para as sociedades em que a lei é ignorada
tação. Porém, como o intérprete mais importante da lei ou pouco difundida e que vivem sob" o império do cos-
é o juiz encarregado de resolver um litígio, isso nos leva tume. Nessas sociedades — quer se trate de povos pri-
a falar da terceira fonte do direito segundo a doutrina mitivos ou da Europa medieval, ou ainda, em nossos
clássica: a jurisprudência. dias, dos países anglo-saxônicos — o papel do juiz é ne-
cessariamente mais importante. Ele não poderia ser o ser-
vidor de uma prescrição legal inexistente por definição.
III. A jurisprudência Por outro lado, sendo o costume mal conhecido, não
poderia servir, na maioria dos casos, de guia eficaz. Nada
l. A jurisprudência pode criar o direito? — No sen- mais natural, portanto, que o juiz dê provas de uma ini-
tido técnico, a jurisprudência designa as decisões ema- ciativa bem maior, a ponto de aparecer como uma fon-
nadas dos órgãos judiciários, isto é, dos tribunais. Na te viva do direito 12 . Alguns autores, um pouco apres-
França atual, esses tribunais são numerosos e variados. sadamente, concluíram daí que o direito era essencial-
Vão desde a humilde instância de simples polícia, que mente de origem judiciária 13 . Essa teoria é inaceitável.
estatui sobre as contravenções, até a Corte de Cassação, Em primeiro lugar, de há muito tempo observou-se que
geralmente chamada Corte Suprema, que tem por fun- grande número das normas de direito nunca tinham si-
ção zelar pelo respeito da aplicação da lei pelas jurisdi-
ções de todos os graus e assegurar assim a unidade da
lei. Mas uma questão surge prontamente: como esses ór- 12. Isso exprime-se de maneira sugestiva na terminologia anglo-
gãos judiciários podem ser fontes do direito? Em que saxôníca. O direito é chamado Judge made law, e a palavra "justi-
ça" incorpora-se ao seu nome civil: "Sr. Justiça Smith".
consiste, com efeito, a função do juiz senão na aplica- 13. Tal é a teoria professada pelo grande historiador do direi-
ção de um direito preexistente? Na maioria das vezes, to e comparatista francês Edouard Lambert, notadamente em sua
o problema apresenta-se para ele sob o aspecto de um obra La foncíion du droit civil compare, Paris, 1903.

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do submetidas aos tribunais porque eram unanimemen- ser intentada em justiça. Ora, quem decide sobre isso
te admitidas. Ora, essas normas eram precisamente as não é o juiz. É, em parte, o legislador, mas sobretudo
mais importantes. Por outro lado, e sobretudo, seria gra- um magistrado que não se deve confundir com o juiz,
ve erro pensar que, mesmo nesse meio social, o juiz (ou uma vez que não resolve os processos e chama-se pre-
o feiticeiro) possa resolver o litígio que lhe é deferido tor. E o esforço de toda uma linhagem de juristas pro-
seguindo as sugestões de sua convicção pessoal. Sua sen- fissionais, os Prudentes, empenhou-se em determinar,
tença aqui é necessariamente conforme à opinião coleti- com grande sagacidade, os limites nos quais uma pre-
va. Sem dúvida, o costume não lhe dita explicitamente tensão podia receber satisfação em justiça. E a esse tra-
sua decisão, mas exerce sobre ele uma pressão latente balho combinado dos pretores e dos Prudentes que se
e irresistível, e o papel do juiz consiste não em encon- chama, em Roma, jurisprudência. Vê-se que ela pôde
trar uma solução nova, mas em procurar aquela que se ser extremamente fecunda como fonte do direito, mas
mostra mais adequada às aspirações do meio que o cir- vê-se também que designa um estado de coisas muito di-
cunda. Não é, pois, exato dizer que os juizes criaram, ferente daquilo que -hoje se designa por esse nome.
elaboraram normas de direito — elas já existiam: foram
"encontradas" pelos juizes, segundo a exatíssima expres- 3. Nas sociedades modernas — Que dizer da juris-
são dos velhos textos germânicos, que por vezes desig- prudência em nossos dias, em nossas sociedades moder-
nam esses juizes com a palavra Urteilsfinder. nas, notadamente no direito francês, que se pode consi-
derar como o tipo mesmo do direito regido pela lei? À
primeira vista, como foi dito acima, não parece que o
2. A jurisprudência em Roma — O direito romano
juiz tenha alguma possibilidade de criar a menor norma
apresenta, em relação ao problema que abordamos, um
de direito; sua missão consiste em aplicar a lei: um pon-
aspecto particular. Em primeiro lugar, a lei não ocupa,
to, eis tudo. Nessa perspectiva, a jurisprudência não po-
longe disso, um lugar preponderante no arsenal jurídi-
deria ser uma fonte de direito.
co dos romanos: abrange tão-somente um setor relati-
vamente limitado da vida social. Isso significa que eles 4. A interpretação — À luz da reflexão, as coisas
vivem sob o regime do direito consuetudinário? Tam- parecem menos simples. Semelhante doutrina supõe que
pouco é esse o caso. Sua organização judiciária, muito o legislador tenha dado antecipadamente a resposta a to-
original, é tal que faz do processo o grande motor de das as questões que se apresentam ao juiz. Tal era a pre-
seu progresso jurídico. No entanto, não são, como se tensão dos autores do Código Civil. Inebriados peia am-
poderia pensar, as decisões dos juizes que são importantes plitude e novidade da obra que realizavam e pelos lou-
e criadoras do direito: são mais ou menos desprezíveis14. vores que em toda parte ela suscitava, imaginaram, com
O que, ao contrário, desempenha um papel primordial uma boa fé que hoje nos parece um pouco ingénua, que
é a análise das condições nas quais uma pretensão pode as normas que formulavam eram simultaneamente ra-
cionais e imutáveis 15 . Ou seja, faltava-lhes, à exceção de
14. P. Collinet, Lê role dês juges dans Ia formation du droit
romain classique, in Recuei! Gény (1933), pp. 23-31. 15. O aparecimento do Código Civil foi saudado com elogios

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Portalis, que tinha uma visão mais correia 16 , ao mes- papel positivamente criador, muitas vezes comparado,
mo tempo espírito histórico e espírito sociológico. Em mutatis mutandis, ao desempenhado em Roma pelo pre-
todo caso, acreditavam ter previsto tudo, pois criavam tor, de tal modo que se fala correntemente da função
uma obrigação formal aos juizes de apoiar-se num arti- pretoriana da jurisprudência. Esta consiste, como se vê,
go de lei para motivar suas decisões. Ora, é bem eviden- em dar a textos de lei uma interpretação ora extensiva,
te que é impossível ao legislador prever todas as hipóte- ora restritiva, em todo caso diferente do sentido normal
ses infinitamente numerosas e complexas que faz nascer da lei tal como fora concebida pelo legislador, uma vez
a vida social. Estaremos ainda mais propensos a aceitar que esse sentido normal já não convém. Esse trabalho
essa afirmação se admitirmos a natureza essencialmen- de interpretação merece ser examinado por alguns ins-
te dinâmica das instituições jurídicas. O texto de lei é tantes.
rígido ou, pelo menos, tem uma elasticidade apenas re- Antes de mais nada, indiquemos os casos em que
duzida. É, pois, por definição, incapaz de satisfazer às ele ocorrerá. A questão não se colocará se a lei não apre-
novas necessidades de uma sociedade em contínuo sentar obscuridade: sua intepretaçao é, então, inútil, ou
movimento 17 . No limite extremo, uma lei em contradi- mesmo perigosa. Muito sabiamente, o projeto francês
ção com as exigências de um corpo social modificado de Código Civil do ano VII dizia: "Quando a lei é cla-
deixa de ser aplicada e é tacitamente ab-rogada pelo cos- ra, não é preciso eludir-lhe o texto sob pretexto de
tume. Mas a obrigação imposta ao juiz de apoiar-se, para respeitar-lhe o espírito." Em particular, não será tole-
estatuir, num texto de lei levou os tribunais, em certos rado introduzir arbitrariamente exceções ou distinções
casos, a criar verdadeiramente um novo direito, pare- que permitam eximir-se à injuncão legal: isso equivale-
cendo, na forma, aplicar somente as leis existentes. De- ria a substituir'por uma opinião individual e subjetiva
sempenharam aqui, no tocante ao fundo do direito, um uma regra de caráter geral e imperativo. O único caso
em que uma lei clara tem necessidade de ser interpreta-
hiperbólicos, nos quais se discerne uma certa dose de bajulação para da é aquele em que o legislador cometeu um lapso ou
com o poder. Para Grenier, "a observação do Código Civil irá se um equívoco manifesto 18 . Por outro lado, pode suce-
converter na moral universal' 1 . Bigot de Préameneu qualifica-o de der que o juiz se veja em presença de uma situação to-
"arca santa, digna de respeito religioso". Para Portalis, enfim, a lei
é "a imagem da ordem eterna". Esse "fetichismo da lei", como lhe
talmente nova, devida, por exemplo, aos progressos da
chamaram, perpetuou-se, salvo raras exceções, durante todo o sécu- ciência ou da técnica, progressos tão rápidos que a lei
lo XIX — por sinal, o esforço dos juristas limitava-se a comentar não tenha podido acompanhá-los19. Que fazer em tal
os textos da lei. Recebeu o nome de escola da exegese. Cf. J. Bonne-
case, La Thémis e! son fondateur Athanase Jourdan, Paris, 1914.
16. Portalis, Discours préliminaire du Code civil: "As leis 18. Exemplo clássico: a regulamentação da policia das estra-
fazem-se corn o tempo: propriamente falando, não são feitas por nin- das de ferro de 11 de novembro de 1917, que prescrevia aos viajan-
guém," tes descer do trem antes que ele estivesse completamente parado.
17. Chegou-se inclusive a dizer, não sem certo exagero, que uma 19. A questão colocou-se para o roubo da corrente elétrica, que,
lei começa a caducar no dia seguinte à sua promulgação. Isso pode com justa razão, não pudera s£r previsto pelos autores do Código
ser verdade em teoria pura, mas não na prática. Penal de 1810.

66 67
caso? Nesse ponto, convém distinguir entre direito mo- mente ser aplicada ao caso litigioso. Por a contrario:
derno, entre a justiça penal e a justiça civil. O juiz pe- quando um texto legal, em presença de dois casos mui-
nal tem o recurso de "classificar" o assunto ou de en- to próximos, estipula nitidamente que a solução por ele
cerrar a instrução por improcedência. Muito excepcio- prescrita vale para um deles, deixando assim entender
nalmente, fará uso do raciocínio por analogia20. Em que a outra hipótese, embora aparentemente vizinha, de-
matéria civil, o artigo 4 do Código Civil irá puni-lo se ve receber uma solução diferente. Mas o emprego des-
ele se recusar a julgar "sob pretexto do silêncio, da ses procedimentos de raciocínio é muito delicado e ex-
obscuridade ou da insuficiência da lei". Assim, a insu- põe a graves erros.
ficiência — digamos mais claramente, a carência — da
lei não permite ao juiz eximir-se. Ela dá lugar, como sua 6. Os trabalhos preparatórios — Pode-se ser tenta-
obscuridade, a um delicado problema de interpretação. do a acreditar que o verdadeiro sentido de uma lei po-
deria ser esclarecido pelos diversos documentos que
5. Os métodos de interpretação da lei — Suponha- precederam ou acompanharam o seu nascimento, pelos
mos, pois, que o juiz, depois de ter estabelecido os fa- debates a que sua elaboração pôde dar lugar, numa pa-
tos, encontre-se em dificuldades diante de um texto de lavra, pelo que se costuma chamar de trabalhos prepa-
lei que só imperfeitamente lhe parece responder aos da- ratórios. Ainda aqui, ressalta o caráter específico, a na-
dos da causa. Seu primeiro cuidado, seu primeiro dever tureza social do direito. O verdadeiro autor de uma lei,
será procurar-lhe o sentido exato. Que procedimentos nunca é demais repeti-lo, é menos o legislador individual-
adotará para isso? mente considerado que o grupo do qual ele é o porta-
Muitas vezes acontecerá que um texto só venha a vpz mais ou menos fiel, de modo que as intenções pes-
adquirir seu verdadeiro significado no conjunto das dis- soais deste ou daquele redator da lei podem ser encara-
posições que o acompanham, ou que a rubrica sob a qual das como quantidade desprezível 21 . Isso é tanto mais
ele figura precise sua parte aparente. Às vezes seu senti- verdadeiro quanto um maior lapso de ternpo decorreu
do será esclarecido pela comparação com outros textos desde a promulgação da lei. O texto desta desprendeu-
- outros artigos da mesma lei ou do mesmo código. Nes- se de seu autor e passou a viver sua própria vida. Per-
ses casos, far-se-á uso do raciocínio por analogia ou do deu um certo número de características e adquiriu
raciocínio a contrario. Por analogia: se se constata que outras 22 . Qualquer busca de seu sentido antigo seria um
esse outro texto fornece uma solução numa dificuldade contra-senso, pois ele só permaneceu vivo na medida em
vizinha, é-se levado a pensar que tal solução deve igual- que pôde adaptar-se às necessidades novas da socieda-

20. O raciocínio por analogia, muito utilizado no direito mu- 21. Henri Capitant, Recueil Gény, Paris, 1935, t. U, pp.
çulmano, como também no direito romano, no qual constitui o fun- 204-216, era igualmente adversário do recurso aos trabalhos prepa-
damento das ações denominadas "úteis", apresenta grandes perigos ratórios, mas por razões bem diversas.
em matéria penal, em que a interpretação estrita da lei é uma ga- 22. Contra, Gény, Méthode d'in(erpréta(ion eí sources en droil
rantia essencial da segurança dos cidadãos. prive posilif, 2*. ed., 1932, pp. 258 ss.

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de. O mesmo afirmou-se das obras-primas literárias, das seria se, em presença de todas as mudanças que, de um
obras de arte que são, de certa forma, recriadas por ca- século para cá, se operaram nas ideias, nos costumes,
da nova geração que as vê sob um outro aspecto e mui- nas instituições, no estado social e económico da Fran-
tas vezes descobre nelas algo muito diverso do que o autor ça, a justiça e a raz^o recomendam adaptar liberalmen-
quisera inculcar-lhe 2 3 , isso é ainda muito mais verda- te o texto às realidades da vida moderna." 24 Essa con-
deiro para as normas jurídicas, já que, segundo a defi- cepção choca-se com uma objeção bastante forte: pode
nição que propus no início deste trabalho, elas expres- parecer que ela abre a porta a um subjetivismo perigo-
sam a vontade aluai do corpo social. A consequência so. Que critérios empregar para saber "o que seria" a
desse princípio enuncia-se por si mesma: não é colocando- vontade do legislador se ele estatuísse no momento em
nos na época da redação da lei — por vezes muitas dé- que o julgamento deve ser emitido? Nenhuma regra pre-
cadas antes — que encontraremos o verdadeiro sentido, cisa pode ser formulada a esse respeito, e somos obriga-
isto é, o sentido eficiente, de uma disposição legal, mas, dos a confiar-nos à prudência e à ponderação dos jui-
ao contrário, transpondo-a para o meio presente. Pelo zes, geralmente conservadores por temperamento.
que sei, esse ponto de vista nunca foi melhor expresso
que por Ballot-Beaupré, primeiro presidente da Corte de 7. O recurso aos precedentes — Outro procedimento
Cassação, que escreveu em 1904: "O juiz não deve que de bom grado o intérprete utilizará é o recurso aos
ernpenhar-se em investigar obstinadamente qual foi, há precedentes. Diante de um litígio, e incerto quanto ao
cem anos, o pensamento dos autores do Código ao re- texto legal a aplicar, o reflexo profissional do jurista irá
digir este ou aquele artigo. Deve perguntar-se o que ele irnpeli-lo a verificar se a situação já se apresentou em
justiça e em que sentido a lei foi compreendida pelos tri-
bunais que tiveram de conhecê-la. Em se tratando de altas
23. Um exemplo lógico nos é fornecido pelo direito romano
antigo. Um dispositivo da lei das XII Tábuas (século V a,C.) proibia jurisdições — na França, a Corte de Cassação ou o Con-
ao pai de família colocar seu filho à venda mais de três vezes (tal selho de Estado —, bem raros são os casos em que essa
é, pelo menos, a interpretação que se costuma dar-lhe). Depois da interpretação será contestada. Evidentemente, essa é uma
terceira venda, perdia sobre ele o poder paterno. Essa norma teria solução preguiçosa e incerta, pois muitas vezes a nova
por finalidade reprimir urn abuso. Ora, em certo momento, sentiu- espécie apresenta características diferentes da anterior,
se a necessidade de dar ao filho de família uma autonomia jurídica
que ele não podia, em princípio, adquirir enquanto seu pai vivesse. e a decisão, válida para a primeira vez, não é, por isso
A engenhosidade dos primeiros juristas romanos, que pareciam ter mesmo, justificada para a segunda. O recurso aos pre-
sido os pontífices, resolveu essa dificuldade utilizando, evidentemente cedentes, embora frequente na prática judiciária fran-
em sentido contrário, a norma das XII Tábuas acima citadas. Já que cesa, não tem na França a mesma autoridade que nos
o pai perdia seu poder paterno por ter vendido três vezes o filho,
países anglo-saxônicos, onde uma tradição consuetudi-
bastava-lhe vendê-lo três vezes seguidas, ficticiamente, a um amigo,
que se apressava em libertá-lo. Assim, sem mudar uma só palavra
de um dispositivo legislativo particularmente venerado, conseguia-
se fazê-lo dizer, por uma interpretação astuciosa, mais ou menos o 24. Livre du centenaire du Code civil, Paris, Imprimerie Na-
contrário daquilo que e!e significava originalmente. tionale, 1904.

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nária muito forte recomendava seu emprego, sob a for- ele era senhor soberano e podia agir como bem enten-
ma do adágio: Stare decisis. desse sob 'a única ressalva das leis e dos regulamentos.
Dessas breves observações decorre que o juiz, mui- Segundo essa maneira de ver, não poderia haver aí abu-
tas vezes, se vê dividido entre a obrigação em que se en- so do direito. Essa nova noção aparece quando, tendo-
contra de aplicar a lei e a obrigação, não menos impe- se intensificado as relações sociais, começou a impor-se
riosa, de ministrar uma justiça equitativa e adaptada às a cada um a ideia da interdependência dos seres huma-
exigências do momento atual. Eis por que ele será fre- nos e de sua solidariedade. Até então ela existia, mas
quentemente coagido a dar ao texto legal um sentido no- apenas no interior de grupos estreitos e fortemente or-
vo, manifestamente distinto daquele que seu autor lhe ganizados, como o clã ou a gens. Quando ela transpôs
atribuía. Ou seja, nessa conjuntura, o juiz participa, até os limites desses organismos, passou-se a admitir que o
certo ponto, do trabalho legislativo: na medida em que uso de um direito, por mais absoluto que seja, não deve
modifica o significado da norma25. É nessa medida que ser feito com um pensamento malévolo27. Não basta que
a jurisprudência é realmente criadora e pode, em conse- uma pessoa tenha o direito a seu favor para obter ga-
quência, ser incluída entre as fontes do direito. O nú- nho de causa: é preciso, também, que não tenha feito
mero das inovações, dos progressos jurídicos que lhe de- mau uso desse direito, e essa é uma questão submetida
vemos, é considerável 26 . à apreciação dos tribunais. Sem dúvida, a aplicação dessa
máxima tem sido bastante tímida - - s e fosse aplicada
8. A teoria do abuso do direito -- É preciso men- rigorosamente, teria tido um alcance revolucionário; não
cionar, na mesma ordem de ideias, uma teoria que teve, é menos verdade que ela foi largamente admitida pela
desde o início do século, um desenvolvimento conside- jurisprudência francesa e que é de natureza a aumentar
rável e que assinala também certa independência da ju- os poderes do intérprete, isto é, do juiz 28 .
risprudência em relação aos textos. Refiro-me ao abuso
do direito. 27. No terreno legislativo, essa extensão da solidariedade se tra-
A teoria do abuso do direito só pôde vir à luz em duz, em direito penal, pela criação de um novo delito: a recusa de
consequência de uma profunda transformação na con- assistência à pessoa em perigo.
cepção dos direitos individuais ou subjetivos. Durante 28. Numa ordem de ideias aproximada, convém assinalar a cha-
mada teoria da imprevisão. Trata-se de casos nos quais, tendo-se con-
algum tempo, acreditou-se que cada indivíduo era, de cluído uma convenção ern determinadas circunstâncias, sua execu-
certo modo, o centro de um domínio fechado no qual ção deve ter lugar quando essas circunstâncias mudaram, em detri-
mento do devedor ou do credor, sem que se pudesse razoavelmente
25. Afirmou-se, não sem razão, que toda interpretação era, prevê-la. (O exemplo típico é a brusca desvalorização da moeda.) Nes-
por si só, uma alteração do texto. Eis por que um certo número se caso, deve-se executar o contrato segundo sua letra ou, ao contrá-
de grandes legisladores, ciosos de ver perpetuar-se sua obra, proi- rio, com base na intenção comum das partes, adaptá-lo às novas con-
biram que ela fosse comentada. dições? Ainda aqui, o juiz encontra-se às voltas com um caso de cons-
26. Cf. J. Charmont, Lês transformalions du drott civil, Pa- ciência. Nota-se que, nessa matéria da imprevisão, a jurisprudência
ris, 1912; R. Savatier, Lês métamorphoses économiqites e( socía/es ; francesa mostrou-se bem mais tímida que em matéria de abuso do
du drott civil d'aujourd'ftui, Paris, 1948; reed., 3 vol., Paris, 1964. direito, e parece ter cedido frequentemente a um nominalismo fácil.

72 73
9. O arbítrio do juiz — Diante dessa atividade fe- tudo por sua aplicação. Ora 7 é um princípio salutar que
cunda da jurisprudência, houve quem se perguntasse se a lei seja elaborada pelo conjunto dos cidadãos, e não
não convinha ir mais longe no mesmo caminho e con- por um corpo profissional, quaisquer que sejam seu
ceder, pelo menos tacitamente, ao juiz o direito de in- valor moral e sua competência técnica. De resto, a ex-
terpretar a lei mais segundo a equidade que segundo os periência de uma excessiva independência dos juizes em
textos. A questão foi colocada diante da opinião públi- relação ao texto foi feita no passado e não deu bons
ca, nos últimos anos do século, por ocasião de julgamen- resultados: gerava insegurança. Sob o Antigo Regime,
tos emitidos por um magistrado muito honorável, Mag- o povo exclamava: "Deus nos livre da equidade dos Par-
naud, presidente do tribunal de Château-Thierry 29 . Suas lamentos!" e exigia uma justiça comum a todo o reino
decisões, imbuídas de grande espírito de humanidade, e fundada em bases sólidas. Sob a condição de moderar-
levaram o público a conceder-lhe o título de "bom juiz''. lhe o rigor po.r uma larga liberdade de interpretação, é
É preciso reconhecer, entretanto, que muitas delas necessário que o juiz continue sendo o servidor da lei30.
afastavam-se excessivamente dos textos, mesmo ampla-
mente entendidos, e foi nessa ocasião que se discutiu a
questão do subjetivismo judiciário. Esse problema é eter- IV. A doutrina
no e nunca será resolvido, já vimos por quê. Ele resulta
da contradição fatal entre os textos, por definição rígi- A doutrina não é uma fonte de direito — A teoria clás-
dos, e a fluidez da vida social. Será necessário, na espe- sica conhece geralmente uma quarta fonte de direito, de-
rança de'obter uma justiça mais exata, suprimir os tex- signada pelo nome de doutrina. Entende-se por ela, na
tos, pois é a isso que equivaleria a liberdade de interpre- linguagem técnica, as opiniões motivadas daqueles que
tação deixada ao juiz? Seria, a meu ver, um remédio se dedicam ao direito, daqueles a quem se chama, em
pior que a doença, pois o juiz, privado do freio que é sentido lato, juristas (professores de direito, magistra-
para ele o texto legal, seria levado a estatuir segundo suas dos, advogados, homens da prática judiciária e extraju-
convicções políticas, filosóficas ou religiosas, e o mes- diciária). Essa fonte de direito distingue-se claramente
mo litígio correria o risco de encontrar urna solução di- das demais. Na verdade, no direito francês moderno, ela
ferente segundo se apresentasse o caso perante este ou está imbuída de um caráter muito particular. Pode-se di-
aquele tribunal. Isso seria uma coisa detestável e de molde zer que, enquanto as outras fontes que examinamos ra-
a abalar a confiança que, no conjunto, as pessoas ainda pidamente acima constituem fontes diretas de direito, a
depositam na justiça. Além disso, tal solução, apesar das
aparências, seria visivelmente antidemocrática, porque
teria como resultado atribuir ao juiz, não teoricamente, 30. Nos países angto-saxônicos, mas também na França, a so-
mas de fato, o poder legislativo, já que a lei vale sobre- ciologia do juiz e das instituições judiciárias tende a desenvolver-se
como um ramo da sociologia jurídica: ver, por exemplo, as obras
29. Cf. H. Leyret, Lesjugements du presidem Mognaud, Pa-
analisadas pelo Année Sociohgique, 1970, pp. 397 s.; cf. J. Car-
bonnier, Flexible droit, 4? ed., 1979, pp. 319 s., e Sociologique ju-
ris, 1900.
ridique, 1978, p, 46.
".L
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doutrina não passa, quando muito, de uma fonte indi- CAPÍTULO III
reta. As opiniões dos juristas, tal como se acham expres-
sas em seus escritos (tratados teóricos ou práticos, con-
sultas, comentários de leis ou de sentenças, estudos par- Os fatores da evolução do direito
ticulares de instituições, etc.), não têm, por si mesmas,
nenhuma força jurídica, nenhuma virtude coercitiva. So-
mente adquirirão essa eficácia quando e na medida em
que forem consagradas pela lei, pelo costume ou pela A concepção sociológica do direito, tal como a ex-
jurisprudência 31 . Ou seja, existe, a meu ver, um certo pus nas páginas anteriores, representa-o como produto
abuso em considerá-las como fonte de direito. A dou- de múltiplas influências. Por ser a expressão das vonta-
trina, em nossos dias — o mesmo não ocorria em Ro- des do corpo social, tudo quanto age sobre a sociedade
ma —, nada mais é do que um dos fatores da evolução repercute no direito. Sem dúvida, é interessante exami-
jurídica, tal como os fatores de ordem política, moral, nar brevemente se e em que medida os diferentes fato-
económica, religiosa, etc. A "livre pesquisa científica" res atuam sobre o direito e fazem-no oscilar, à maneira
ressaltada por Gény32 facilita singularmente o trabalho de uma agulha imantada sob a ação de uma corrente elé-
do legislador e do intérprete; quando realizada num es- trica. Indagaremos inicialmente quais são esses fatores
pírito objetivo, permite, e só ela permite, a elaboração e, em segundo lugar, como eles atuam.
da ciência do direito, dessa "jurística" de que falaremos
logo mais e que normalmente pode produzir resultados
importantes no campo prático. Mas não poderia, tam- I. Exame dos fatores de evolução
pouco, criar diretamente normas de direito. Enquanto
não são adotadas pelo grupo social, as opiniões dos au- Pode-se estabelecer uma distinção entre os fatores
tores pertencem apenas a eles e não exercem influência económicos, os fatores políticos e os fatores culturais.
sobre a vida jurídica.
1. Os fatores económicos — a) Em Roma; A es-
trutura económica de uma sociedade traduz-se de ma-
neira inelutável em seu direito. Isso é bem conhecido e
não insistirei nesse ponto. Limitar-me-ei a dar dois exem-
plos, um extraído da Antiguidade, outro dos tempos mo-
31. Apesar das aparências, o mesmo ocorria em Roma: uma dernos. Sabe-se que, no momento em que podemos
pretensão só podia ser levada à justiça se revestisse a forma de uma conhecê-la por nossas fontes mais antigas, a sociedade
"acão", e essas açòes, embora frequentemente inspiradas pelos Pru-
romana compunha-se de camponeses, os quais, em sua
-deaiei (digamos hoje: a doutrina), deviam ter sido ratificadas pela
autoridade juridiária. Cf. H. Lévy-Bruh!, Prudent et préteur, in Re- maioria, se dedicavam à agricultura. Ora, seus costumes,
vue historique de droit français el étranger, 1926, pp. 4-39. na medida em que nos são acessíveis, são exatamente os
32. Cf. Gény, Méthode..., t. II, pp. 74-190. que convêm a agricultores. Caracterizam-se por forte

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