Documenti di Didattica
Documenti di Professioni
Documenti di Cultura
trabalho mercantil criam o (poder do) dinheiro car a vontade à criação de um novo
e (do) Estado, como 'comunidade abstrata, equilíbrio dasforças realmente existen-
ilusória e estranhada' (Marx, 1846, Marx 1857), tes e atuantes, baseando-se naquela de-
opondo indivíduo mercantil às relações sociais terminada força que se considera
que reproduzem o intercâmbio e a valorização progressista, fortalecendo-a para fazê-
do valor. Mas, para Gramsci, as relações Ia triunfar, significa continuar moven-
mercantis e as relações capitalistas podem do-se no terreno da realidade efetiva,
permanecer prolongadamente num nível de mas para dominá-Ia e superá-Ia (35).
fragmentação local e de poder 'econômico
corpora t ivo ', se em uma dada sociedade o problema, então, é entender porque e
capitalista não se desenvolve em seu interior como, para Marx e para Gramsci, a realidade
uma vontade política ativa, orientada para a efetiva é uma relação de forças, e como a
criação de um Estado Nacional; isto é, para ele, caracterizam.
uma dada sociedade ca pitalista pode existir Para Marx, a atividade política na sociedade
prolongadamente no plano local ou regional e, capitalista tem sua raiz na existência da pessoa
. e não conseguir criar esse estado nacional, esse juridicamente livre!' (Marx, 1867). A liberdade
poder público particular que se constrói a partir jurídica é conseqüência da dissolução das relações
ela vontade dos homens, essa dada sociedade de dependência pessoal, do desmantelamento
local pode ficar muito atrás das outras sociedades das relações feudais ou comunitárias, do
capitalistas - como já aconteceu com a sociedade desenvolvimento de novas forças produtivas e da
italiana anterior a 1875, dividida em múltiplos divisão do trabalho social (Marx, 1857, Introdução).
principados, dominados por forças tradicionais, Todavia, trata-se de uma liberdade econômica e
e. pecialrnente pelos latifundiários. Além disso, politicamente limitada e 'condicionada', em
como a ordem social capitalista é intrinsecamente primeiro lugar, pelas próprias relações mercantis
desarticulada e orientada à crise (Holloway, e capitalistas que dominam os indivíduos, criando
2003), precisa de um Estado aciona I que garanta o poder do dinheiro e do capital; nesse sentido,
tal ordem l'o Governo é o órgão da sociedade pela própria existência do Estado como poder
para a manutenção da ordem social'(Marx, 187')]. social geral (neste caso, é o Estado como
A consecução do Estado Nacional e de totalidade social) que os indivíduos geram com a
novas estruturas sociais e nacionais está associada sua atividade, mas que não controlam e que se
à luta política dos cidadãos e das classes numa opõe a eles; e, em segundo lugar, pelo Estado
determinada realidade histórica nacional. Para político, Estado particular que se constrói
Gramsci, no entanto, a realidade 'efetiva' é uma voluntariamente como poder público específico.
dada 'relação de forças'. Na nota 16, do mesmo Contudo, a liberdade, como capacidade de agir
caderno 13, afirma: pela própria determinação, sem constrangimentos
pessoais externos, como autodeterminação do
o político em. ato é um criador, um indivíduo nos distintos planos da sua vida privada
suscitador, mas não cria a partir do e pública, existe como um fato real na sociedade,
nada nem se move na vazia agitação ainda que, nos interstícios da produção capitalista,
de seus desejos e sonhos. Toma como se transforme em uma 'não-liberdade', perante a
base a realidade efetiua: mas o que é propriedade privada dos capitalistas e perante o
esta realidade efetiva? Será algo está- poder do capital de se apropriar do trabalho social
tico e imóvel, ou, ao contrário, uma - dado que os trabalhadores não podem se
relaçâo de forças em continuo movi- apropriar dos seus próprios produtos nem da
mento e mudança de equilibrio? Apli- mais-valia criada por eles e vêem-se obrigados a
construir na terra, existir como comunidade por homogeneizar-se, desenvolver a sua consciên .
política concreta (isto é, como Assembléia e sua auto-organização, numa determinada relaçã
Constituinte, como Constituição, como Assembléia de forças com as outras classes, relação que
Leg islativa , como Poder Executivo, como em contínua transformação. Daí que os intelectuais
burocracia civil e militar), assim como se assentar e os políticos sejam tão importantes para
numa dada "civilização". A comunidade do construção das classes. Essas classes procuram
dinheiro e do capital toma corpo como criação dar ao seu interesse particular uma universalização
de uma entidade política particular, a "sociedade mas essa universalizaçào, construída ideológic;
política", definida pelos cidadãos e autônoma e politicamente por elas, não existe na realidade
em relação a eles, ainda que 'mediada por eles'. Por isso, a sociedade política, ainda que sej
Mas, os cidadãos são os mesmos indivíduos livres uma encarnação real, ela também é um univer a;
do mundo mercantil, participando dos assuntos como ficção.
gerais do Estado político - comunidade abstrata Como pode o Estado estranhado como
e ilusória -, e eles protegem seus interesses comunidade ilusória e abstrata ser modelado pelo
particulares, a sua propriedade, a propriedade indivíduos e pelas classes? Até onde? Para Marx.
privada, como parte de sua existência vital, quase só até o ponto de essa comunidade estranhada se
natural, no mundo da produção mercantil, e transformar numa comunidade política, abstraída
também no mundo do trabalho e da compra e das relações sociais reais; comunidade que possa
venda de mercadorias. Nesse sentido, o Estado canalizar amplamente os assuntos públicos e
político desce até as próprias relações que privados diversos, sem contradizer os pressuposto
regulam a duração da jornada de trabalho da sociedade capitalista mercantil. Para ele, como
Teixeira, 2004). Embora, a comunidade abstrata para o Gramsci, a influência dos trabalhadores na
que se faz sociedade política concreta continue comunidade política pode chegar até a colocar
endo um espaço separado da sociedade. A em questão as bases privadas da sociedade, e,
. ociedade capitalista mercantil não é diretamente portanto, até gerar uma crise política fundamental .
social, é, ao contrário, diretamente privada; Para Grarnsci, até o Estado político se ver numa
inclusive, na produção capitalista os trabalhadores situação na qual a classe trabalhadora majoritária
não geram um produto social, e sim um produto imponha a esse Estado seu interesse particular
particular, apropriado pelos capitalistas, como como interesse coletivo universal. E qual é o
valor que tem se valorizado, expressão interesse particular da classe trabalhadora/!ê. Para
de. envolvida da contradição entre valor de uso Marx, esse interesse histórico é o comunismo
e valor. Por isso, a sociedade política não pode 'movimento real que enfrenta e anula o atual estado
expressar o social coletivo - inexistente -, e sim de coisas' (Marx, 1846); movimento para abolir
o interesse particularizado de indivíduos ou de todas as formas sociais de dominação, para criar a
classes particulares fragmentadas. As próprias produção diretamente social e abolir a produção
ela: ses só existem como realidade social geral; mercantil capitalista e a propriedade privada da
e. tritamente falando, não existem como tais no grande indústria num plano mundial, para criar a
mundo privado de indivíduos atornízados: só produção social dos indivíduos, a partir das
existem como desenvolvimento 'político potencialidades da pós-grande indústria inteligente
ideológico', ainda que seu fundamento exista dos trabalhadores coletivos combinados e da
na produção capitalista mercantil; no entanto, aí cooperação complexa (Marx, 1857; Teixeira, 2004),
existem o trabalho assalariado e o capital. E, como processo que, segundo a história política européia,
desenvolvimento político ideológico, as classes pode se realizar sob a forma de um Estado não-
e constroem na instabilidade e desarticulação Estado, como a Comuna de Paris, ou num Estado
próprias do movimento do capitalismo e, na luta como os soviets, como era no projeto de Lênin,
PERiÓDICOS
antes da presidência de Stalin e da deformação do Nesse sentido, a política não é a atividade
processo socialista inicial; sendo que esse Estado dos indivíduos num plano separado da vida
comuna nào é o fim, e sim "a forma" dentro da social e sem relação com a sua função na
qual esse processo do comunismo pode se produzir economia. Pelo contrário, a política é a atuação
(Marx, 18')7; Marx, 1871;Lênin, 1917;Teixeira, 2004), de uma força social no plano do Estado político,
Mas, a cidadania é histórica e contraditória. Por organicamente vinculado com a economia,
isso, o processo está associado também à luta de dentro da totalidade da sociedade, com base na
classes I:) e ao desenvolvimento de uma concepção própria força desse mesmo grupo social no
progressista da cidadania, isto é, ao desenvo- plano da produção. Por isso, Gramsci diz:
lvimento da participação dos indivíduos, como
cidadãos, nos assuntos do Estado. É no mínimo estranha a atitude do
Para o Gramsci de 1932, atualizando o economicismo em relação às expres-
argumento de Marx, o interesse dos trabalhadores sões de vontade, de ação e de iniciativa
na luta por mudar a correlação de forças da política e intelectual, como se estas não
realidade efetiva está em desenvolver a fossem uma emanação orgânica das
hegemonia operária ético-político, na sociedade necessidades econômicas, ou melhor,
civil e na sociedade política, e apresentar seus a única expressão eficiente da econo-
interesses, como projeto universal, visando à mia ... Se a hegemonia é ético-política
criação de um Estado em processo de não pode deixar de ser também eco-
desmantelamento, dinamizado por uma nômica, não pode deixar de ter seu
sociedade civil auto-regulada (Gramsci, vol. III, fundamento na função decisiva que o
caderno 6 Miscelânea, nota 12, e vol, III, caderno grupo dirigente exerce no núcleo deci-
6 Miscelânea, nota 88). Só assim a sociedade sivo da atividade econômica (48).
pode ser livre, isto é, subordinar o Estado do
capital a si mesma, transformando, ao mesmo Pode uma classe social moderna ser
tempo, as próprias relações sociais que dão dominante no plano da produção, ou seja,
origem ao Estado do capital. apropriar-se do trabalho social para seus
A política, como influência nos assuntos interesses, e não interferir, isto é, deixar 'livre', o
do Estado político, mesmo que se expresse como plano político dos interesses gerais e da
influência dos cidadãos e como luta entre diversas consciência das sociedades? Ou, pelo contrário,
classes dirigentes na sociedade política e na essa possibilidade de se apropriar do trabalho
sociedade civil, nos fatos reais é luta entre os social se expressa também como luta por modelar
grupos sociais fundamentais de uma dada o Estado e por criar, no plano privado, um tipo
sociedade, firmemente enraizados nas relações de 'civilização' e um tipo de orientação do
sociais de produção, mobilizados e projeta dos interesse comum?
ideológica e politicamente.
o conteúdo lógico da ciência política
(. ..) de fato, na política o elemento poderia ser formulado inclusive nos
volitivo tem uma importância muito períodos de pior reação. Não é talvez a
maior que na diplomacia. Nas relações reação, também ela, um ato constitutivo
internas de um Estado, a situação é de vontade? E não é ato voluntário de
incomparavelmente mais favorável à conservação? Por que então, seria 'utó-
iniciativa central, a uma vontade de pica' a vontade revolucionária ... e não
comando (Grarnsci, 2000, vol. III, ca- a vontade de quem pretende conservar
derno Miscelânea 6, nota 86: 241). o existente e impedir o surgimento e a
organização de forças novas que per- processo que tem como atores os ho-
turbariam e subuerteriam o equtlibrio mens e a vontade e capacidade dos
tradicional (vol. III, caderno 6 Miscelâ- homens -, a situação se mantém
nea, nota 86: 241). inoperante e podem ocorrer desfecbos
contraditórios: a velha sociedade resiste
Acumular capital é também reproduzir a e garante para si um período de 'toma-
sociedade estabelecida a partir da compra e da de fôlego', exterminando fisicamen-
venda de mercadorias; sociedade dos indivíduos te a elite adversária e aterrorizando as
livres, da qual são forçados a participar como massas de reserua; ou, então. verifica-
trabalho vivo social, a serviço da valorização do se a destruição recíproca das forças em
valor. Mas é também lutar por obter e manter a conflito com a instauração da paz dos
direção dessa sociedade no plano da civilização, cemitérios, talvez soh a vigilância de
da consciência e da política. Por isso, para os um sentinela estrangeiro (45).
próprios capitalistas, uma relação de forças
favorável na estrutura econômica, no plano das Cabe a pergunta: qual é, afinal, a
relações sociais objetivas, tem que se projetar importância da política para os trabalhadores
com lutas no plano da consciência e da política modernos poderem influir nos assuntos do
para moldar estes no mesmo sentido da Estado político e, da luta intelectual para influir
dominação que se exerce na economia. Como na consciência da sociedade? A importância, no
afirma Gramsci na nota 17, dedicada a analisar final, está dada porque é aí, no Estado e na fase
os diferentes níveis de relações de forças: da hegemonia, que se decide a manutenção das
contradições da sociedade ou sua resolução:
A questão particular do mal-estar ou
do bem-estar econômicos como causa Esta é a fase mais estritamente política,
de novas realidades históricas é um as- que assinala a passagem nítida da es-
pecto parcial da questão das relações trutura para a esfera das superestrutu-
deforça em seus vários graus. Podem- ras complexas (...) O Estado é certamente
se produzir novidades ou porque uma concebido como um organismo próprio
situação de bem-estar é ameaçada pelo de um grupo, destinado a criar as con-
egoísmo mesquinho de um grupo ad- dições favoráveis à expansão máxima
versário, ou porque o mal-estar se tor- desse grupo, mas este desenvolvimento
nou intolerável e não se vê na velha e esta expansão são concehidos e apre-
sociedade nenhuma força capaz de sentados como a força motriz de uma
mitigâ-lo e de restahelecer uma norma- expansão universal, de um desenvolvi-
lidade através de meios legais. Pode-se mento de todas as energias nacionais;
dizer. portanto. que todos estes elemen- isto é. o grupo dominante é coordena-
tos são a manifestação concreta das do concretamente com os interesses
flutuações de conjuntura do conjunto gerais dos grupos suhordinados e a vida
das relações de força, em cujo terre- estatal é concehida como uma contínua
no uerifica-se a transformação destas formação e superação de equilíhrios
relações em relações políticas de força, instáveis (no âmhito da lei) entre os in-
para culminar na relação militar de- teresses do grupo fundamental e os in-
cisiva. Se não se uerifica este processo teresses dos grupos subordinados,
de desenvolvimento de um momento a equilíhrios em que os interesses do gru-
outro - e trata-se essencialmente de um po dominante prevalecem, mas até um
determinado ponto, ou seja, não até o sua posição social (e, conseqüentemen-
estreito interesse econômico-corporatioo te, de suas tarefas) no terreno das ideo-
(Gramsci, vo1. III, cademo 13, nota 17: 42). logias, o que n ão é pouco como
afirmação de realidade; a própria filo-
Assim, Gra msci destaca, em grande sofia da práxis é uma superestrutura, é
coerência com Marx, a função da política na o terreno no qual determinados gru-
sociedade capitalista: a política é o espaço da pos sociais tomam consciência do pró-
consciência dos conflitos da sociedade moderna prio ser social" da própria força, das
e da luta para resolvê-los. Diz Marx, no Prefácio, próprias tarefas, do próprio deoir. ... A
de 18'59, à Contribuição à Crítica a Economia filosofia da práxis ... não tende a resol-
política: [numa época na qual] ver pacificamente as contradições exis-
tentes na história e na sociedade, ou,
c..) as forças produtiuas materiais da melhor, ela é a própria teoria de tais
sociedade entram em contradição com contradições; não é o instrumento de
as relações de produção existentes ... as governo de grupos dominantes para
formas jurídicas, políticas, religiosas, ohter o consentimento e exercer a
artísticas ou filosóficas, em resumo, as hegemonia sobre as classessubalternas,
formas ideológicas (p.130); [são as for- é a expressão destas classes subalternas,
mas] pelas quais os homens tomam que querem educar a si mesmas na
consciência deste conflito e lutam por arte de governo e que têm interesse em
resoluê-lo (ihid). conhecer todas as verdades, inclusive
as desagradáveis, e em evitar os enga-
Pelo escrito anteriormente, podemos nos (impossíveis) da classe superior e,
concluir que Marx precisou fazer a crítica da ainda mais, de si mesmas .... Se os ho-
economia política para conhecer as leis do mens adquirem consciência de sua
movimento da sociedade capitalista. No entanto, posição social e de seus ohjetivos no ter-
Gramsci desenvolveu a crítica das formas reno das superestruturas, isto significa
ideológicas (incluídas as formas políticas) para que entre estrutura e superestrutura
contribuir à luta dos trabalhadores para tomar existe um nexo necessário e vital (vol.
consciência e resolver os conflitos desta 1: 388-389),
sociedade, superando-a.
A esse respeito, Gramsci desenvolve uma Para os trabalhadores europeus e latino-
longa argumentação no caderno 10 (vol. I, 1932- americanos, desenvolver uma política independente
193'), Sobre a Filosofia de Benedetto Croce), e autônoma, visando a transformação do Estado
destacando, justamente, o papel ativo da político e a criação de novas estruturas econômicas
política na história, e o papel da filosofia da e sociais, tem sido uma prática extremamente difícil
práxis na política das classes trabalhadoras (ou nos últimos dois séculos. A absoluta maioria de
subalternas), na qualidade de uma teoria das partidos e movimentos dos trabalhadores ficou
contradições da sociedade capitalista e dos ancorada nas redes da ideologia dominante, da
meios para enfrentá-Ias: burocracia do poder, do reformismo político, até
o ponto de terminar fazendo parte das estruturas
Para a filosofia da prâxis, as superes- ideológicas e políticas das classes dirigentes e
truturas são uma realidade objetiva e dominantes capitalistas. Hoje, na fase atual da
operante, ela afirma explicitamente produção pós-grande indústria, essa tendência de
que os homens tomam consciência da subordinação ideológica e de inclusão subordinada
dos trabalhadores fabris acentuou-se, em oposição fraqueza do poder institucional do Estado político
à situação de exclusão de uma nova maioria de capitalista; em 1917, perante a fraqueza do poder
desempregados, migrantes ilegais, velhos, jovens. do Governo provisional de Kerenski, e, justamente
Um resultado de tudo isso é o desencanto da por isso, Lênin (1917a), nas "Tarefas do
intelligentsia crítica com a política (Oliver Costilla, proletariado na nossa revolução" (Teses de Abril),
2003), e a visão do Estado capitalista atual como expressou que o trabalho político do partido
fortaleza fechada aos trabalhadores independentes, comunista, nos Conselhos Soviéticos, teria que
esquecendo, com isso, que a política é uma relação ser primordialmente ideológico, isto é, convencer
social de forças no Estado político, dentro dos os trabalhadores de que esse órgão teria que ser
limites do Estado do capital. A burocratizaçào o verdadeiro Estado, em oposição ao Estado
crescente da sociedade política, ligada às leis e formal do Governo provisional, e, ao mesmo
aos compromissos com a acumulação do capital, tempo, teria que ser um "Estado não-Estado",
tem sido contornada como espaço de domínio ou seja, um Estado subordinado a uma sociedade
quase absoluto da lógica do capital e do Estado em transformação, livremente optante pelo
abstrato; daí que se o horizonte da luta social só socialismo; Estado este que Gramsci chamará
fosse a sociedade política, estaríamos sim, perante Estado da sociedade auto-regulada.
o verdadeiro fim da política como relação aberta Vejamos, então, com Grarnsci, porque a
de forças. Embora, como Gramsci esclarece na política não é uma utopia para as classes
nota 18 do Caderno 13, o Estado político não seja trabalhadoras:
só sociedade política; Estado é também sociedade
civil, e, neste âmbito, a possibilidade de disputa A ciência política 'abstrai' o elemento
ideológica e política com a hegemonia dominante 'vontade' e não leva em conta o fim a
está aberta. que uma vontade determinada é apli-
Conforme referi no terceiro ponto deste cada. O atributo 'utópico' não é pró-
artigo, no plano da sociedade civil os homens prio da vontade política em geral, mas
têm a possibilidade de desenvolver a sua das vontades particulares que não sa-
liberdade com horizonte mais amplo que na bem ligar o meio ao fim e, portanto,
ociedade política, justamente porque, na não são nem mesmo vontade, mas ve-
sociedade civil, os homens não estão limitados leidades, sonhos, desejos, etc. (vol, III,
diretamente pelas regulamentações e pelas leis caderno 6 Miscelânea, nota 86: 243).
político-jurídicas. No plano da vida privada, da
cultura, da moral idade, os homens podem pensar, Assim, uma questão fundamental da
lutar e se organizar para formarem uma contribuição de Gramsci para as ciências sociais
verdadeira comunidade pública de consciência, é a sua valoraçào crítica e, ao mesmo tempo
cultura e decisão política. Nesse plano, o próprio propositiva, da política e do Estado modernoS.
Gramsci já tinha experimentado vivências Nesse sentido, bem poderia dizer-se que os
marcantes, em Turim, com os Conselhos de Cadernos são um tratado crítico da ciência política
Fábrica, órgãos 'livres' dos trabalhadores nas ocidental da sua época, assim como o
próprias fábricas para dirigir a produção em desenvolvimento de uma ciência política
oposição à direção dos próprios capitalistas. alternativa, orientada a um novo fim político:
esse mesmo plano da sociedade civil, os o da criação de uma sociedade auto-regulada,
trabalhadores da Rússia czarista criaram, em 1905 na qual a política e o Estado vão se desmanchando
e logo no final da I guerra mundial, os Conselhos como relações sociais coisificadas e estranhadas,
Soviéticos, como expressão autônoma da para serem subsumidos pela própria sociedade
sociedade civil, numa situação de extrema civil organizada.
uma luta exitosa. Inclusive, no caso do França de Luís Felipe de Orleans, de 1830 até
funcionamento normal da Assembléia Nacional 1847, a população que participava da política
de França, de 1848-51, a luta entre partidos dentro eleitoral e parlamentar, população que fazia
da assembléia estava estreitamente vinculada às política propriamente dita, era formada por 250
crises na sociedade e na política, à luta direta mil cidadãos, de um total de 30 milhões de
nas ruas das massas, das classes e dos setores habitantes (Marx, 1849, primeiro capítulo),
de classe contra o governo. As economias eram embora, hoje, possamos dizer que a maioria tinha
relativamente fechadas nacionalmente (os sido já modelada, ideologicamente, pelo menos
Governos oscilavam entre o mercantilismo e o na França, pelas lutas da revolução de 1789-
liberalismo), as instituições estatais e políticas 1793, e pelo Código Napoleônico, isto é, pelos
eram precárias, exceto a burocracia; os ideais gerais de igualdade e liberdade. No entanto,
camponeses, com poucos direitos políticos a adesão das massas aos governos não era
reconhecidos permaneciam expectantes, e o política nem institucional, e sim ideológica,
confronto se desenvolvia principalmente pelas religiosa ou tradicional. Comumente, se tratava
classes urbanas, ora excluídas e ora incluídas de massas excluídas da política, ou seja,
na política formal, contra pequenos exércitos 'a políticas'.
sernídesmoralízados e isolados, nas principais No decorrer do século XIX, foi se
cidades capitais (Paris, Berlim, Londres). desenvolvendo o capitalismo imperialista como
Grarnsci caracteriza a situação assim: modo de produção nacional e internacional, junto
a uma ampla burocracia civil e militar que se
A fórmula - revolução permanente - apoderava de todas as funções estatais e
é própria de um período histórico em comunitárias, e junto às formas jurídico-
que não existiam ainda os grandes par- institucionais de mediação política, herdadas das
tidospolíticos de massa e os grandes sin- monarquias constitucionais, cada vez mais
dicatos econômicos, e a sociedade ainda definidas pelo predomínio crescente do sufrágio
estava sob muitos aspectos, por assim universal masculino (França meados do século
dizer, 110 estado de fluidez: maior atra- XIX, Alemanha finais de século XIX, Inglaterra,
so do campo e monopólio quase com- inícios de século XX; México, Brasil, Argentina,
pleto da eficiência político-estatal em inícios de século XX). Com isso, foi se criando
poucas cidades ou até mesmo numa só a sociedade privada dos indivíduos ideológica e
(Paris, para França), aparelho estatal politicamente organizados, e a participação das
relativamente pouco desenvolvido e massas na vida política foi se desenvolvendo
maior autonomia da sociedade civil em como luta permanente de uma população
relação à atividade estatal, determina- privada, isto é, independente dos funcionários
do sistema dasforças militares e do ar- do Estado e dos governos I').Assim, foi-se criando
mamento nacional, maior autonomia uma complexa rede burocrática e política de
das economias nacionais em face das mediação e participação político-institucional das
relações econômicas do mercado mun- massas, a partir do sufrágio universal. Junto à
dial, etc. (vol. 3, Caderno 13, nota 7: 24). transformação da população pela divisão do
trabalho na sociedade e novas formas de
Institucionalmente, o Estado nessa época articulação entre campo e cidade'", apareceram
era constituído na sua totalidade pela sociedade os partidos políticos de massas, com atividade
política. E a política institucíonal tinha poucas permanente; os sindicatos de massas, também
ligações estruturais com as massas, recentemente organizados permanentemente; os jornais com
saídas da situação de servidão. Por exemplo, na leitores permanentes; o sistema massificado de
escolas e sistemas de educação. Tudo isso gerou trita... Marx não podia ter experiências
mudanças nas Constituições e na vida política, históricas superiores às de Hegel (ao
na regulamentação e na existência da partici- menos muito superiores), mas tinha o
pação político-eleitoral; se fortaleceram e se sentido das massas, por sua atividade
desenvolveram as liberdades e os direitos de jornalistica e de agitação. Marx ainda
opinião, reunião, organização, agrupamento permanece preso aos seguintes elernen-
político, ete., a regulamentação do trabalho tos: organização profissional. clubes
assalariado e a vida privada começou a ter relação jaco hinos. conspirações secretas de pe-
direta com a vida pública. Todo esse quadro foi quenos grupos, organização jornalistica
criando um novo espaço social e político (Gramsci, 2000, vol. III, Caderno Misce-
assentado no privado, a sociedade civil - lânea 1, nota 47: 119),
conjunto de associações da vida civil, espaço
com formas diversas de existência organizada Com o desenvolvimento da sociedade civil
permanentemente - dernandante e fiscalízadora e da sociedade política, muda institucional e
de serviços e direitos públicos, articulada ao politicamente o Estado: de estar configurado
desenvolvimento do Estado político, sujeito e pelos dirigentes políticos e funcionários dos
objeto de novos direitos e novas obrigações governos, nesse momento 'sociedade política',
definidas, garantidas e articuladas pelo Estado. únicos autorizados para mandar em nome da
Foi se cornplexificando e desenvolvendo o que totalidade da população [Durkheim: o Estado é
Hegel já tinha tratado teoricamente como "a trama o único autorizado para mandar e é o cérebro
privada do Estado": da política (Durkheim, 1983, quarta Iiçãoj], o
Estado amplia-se, para incluir a 'trama privada',
A doutrina de Hegel sobre os partidos e a sociedade civil (sociedade formada por
as associações como trama "priuada" do associações de cidadãos ativos permanentemente,
Estado. Ela derivou historicamente das embora estes nào sendo funcionários, nem
experiências políticas da Revolução políticos institucionais, ou burocratas, isto é, são
Francesa e devia servir para dar um apenas cidadãos 'privados'). Antes, a política se
caráter mais concreto ao constitucio- referia ao funcionamento e às políticas dos
nalisrno. Governo com o consenso dos governos ou das personalidades da sociedade
governados, mas com o consenso orga- política; agora, incluindo a sociedade civil, esta
nizado, não genérico e vago, tal como retribui ao Governo com seu apoio ou rejeição,
se afirma no momento das eleições: o com seu consenso ou dissenso, e, pelo mesmo,
Estado tem e pede o consenso, mas tam- é sustento ou oposição política e ideológica dos
bém 'educa' este consenso através das Governos, dos funcionários e das políticas.
associações políticas e sindicais, que, Assim, foi se desenvolvendo, durante sessenta
porém. são organismos privados, deixa- anos (1871 até 1931), um espaço novo da
dos à iniciativa privada da classe diri- sociedade que Gramsci caracterizou como
gente. Assim, em certo sentido, Hegeljá sociedade civil ou 'trama privada' do Estado. O
supera o puro constitucionalismo e mundo político anterior era o dos eleitos como
teoriza o Estado parlamentar com seu funcionários ou burocratas, com o qual, depois
regime dos partidos. Sua concepção de das eleições, a massa passava a ser massa apolítica,
associação não pode deixar de ser ainda longe das atividades políticas e ideológicas.
vaga e primitiva, entre o político e o Com a queda militar de Bonaparte, a
econômico, segundo a experiência Comuna de Paris foi a última tentativa européia
histórica da época, que era muito res- exitosa de revolução permanente. Nessa
versa de Estado para Estado, é claro, Estado não é só "sociedade política". O Estado
mas exatamente isto exigia um acurado moderno, para ele, também é a organização da
reconbecimento de caráter nacional sociedade nos planos privados regulados pelo
(vol. III, Caderno 7, Miscelânea, nota Estado, assim como a participação privada nos
16, p. 262). 18 assuntos públicos. Desse modo, para ele, o Estado
capitalista é a sociedade política em equilíbrio e
o que chama a atenção nesta citação, relação com a sociedade civil.
todavia, é a afirmaçào de que, no Ocidente podia- A esse respeito, parece-me que Nelson
se reconhecer uma relação equilibrada entre Coutinho tem razão quando diz que,
sociedade política e sociedade civil e a idéia
segundo a qual qualquer crise do Governo não Com efeito, na visão de Gramsci, 'socie-
significava automaticamente um questionarnento dade ciuil' é uma arena privilegiada da
à direção da sociedade pelas classes tradicionais, luta de classe, uma esfera do ser social,
nem aparecimento espontâneo do desejo de onde se dá uma intensa luta pela
mudança da sociedade capitalista mercantil, ou begemonia; e precisamente por isso, ela
a passagem da direção da sociedade a novas não é o 'outro' do Estado, mas -junta-
classes. Assim, essa sociedade tradicional estava mente com a 'sociedadepolítica' ou 'Es-
baseada e bem defendida pela robusta estrutura tado coerção'- um dos seus inelimtnâoets
da sociedade civil. Essa imensa superestrutura momentos constitutivos (Serneraro, 1999,
"ideológica" de visões de mundo, tradições, leis, Prefácio de Carlos Nelson Coutinho: 10).
instituições e práticas políticas, organizações
sociais e concepções ideológicas dos problemas Por isso, também Semeraro está certo, ao
nacionais e regionais sustentava o Estado dizer que: "a 'sociedade civil' é o Estado
capitalista muito mais do que os oscilantes e considerado 'de baixo', enquanto a 'sociedade
fracos governos e funcionários da sociedade política é o Estado visto 'do alto" (Semeraro,
política, periodicamente em crise política, 1999: 75).
sobretudo depois da primeira guerra mundial. Pedro Demo, se coloca na posição oposta
Por isso, para Gramsci, o problema do ao afirmar que,
comunismo na Itália e no Ocidente era trabalhar
para criar, também na sociedade civil, uma C ..) nofundo, sociedade civil se contra-
vontade política nacional popular de fundar um põe ao Estado no sentido da organiza-
novo Estado e novas estruturas econômicas e ção do poder. É o não Estado em
sociais. Essa nova vontade política só poderia confronto com o Estado, acrescidas as
aparecer com o desenvolvimento de uma funções de o manter e controlar. Este
hegemonia diferente na sociedade civil, confronto se desenha na determinação
constituída pela classe trabalhadora urbana como do Estado de encampar a SOCiedadeci-
classe dirigente; vontade política da qual o vil, manipulando-a em seu proveito .
partido político dos trabalhadores seria 'ao ...Em vista disso, a discussão sohre esta-
mesmo tempo o organizador e a expressão ativa do e sociedade civil acaha deslocando-
e atuante' (Gramsci, vol. IH, Caderno 13, nota 1, se para outro eixo, na linha do poder
p. 18). Com isto fica claro como e porque a organizado: enquanto que Estado é po-
sociedade civil é a trama privada do Estado, e der organizado, sociedade civil, pelo
como a sociedade civil existe como hegemonia menos em nossa sociedade, aparece
de uma classe dirigente e dominante no Estado, como carente de organização e, por
ou que procura sê-lo. Portanto, para Gramsci, o isso, subserviente ao Estado... Assim, so-
ciedade civil tende a referir-se àquela unicidade dos fins econômicos e políti-
parte majoritária disparatada e entre- cos, também a unidade intelectual e
gue às minorias organizadas como mas- moral, pondo todas as questões em tor-
sa de manobra (Demo, 2001: 60). no das quaisferue a luta não no plano
corporativo, mas num plano 'universal:
A concepção de Demo é errônea, na criando assim a hegemonia de um gru-
medida em que assume a sociedade civil como po social fundamental sobre uma série
'o outro' do Estado, sem entender que o Estado de grupos subordinados (Gramsci, 2000.
em sentido estreito, visto como sociedade política, Caderno 13, nota 17: 41).
e o Estado em sentido amplo, visto como
sociedade civil, expressam uma correlação de A partir das citações anteriores, pode-se
forças dada, e nào são unidades contrapostas, definir a sociedade civil como:
ainda que sejam distintas. 1) um espaço social 'público' de grande
Mas, a hegemonia não flutua no ar. As liberdade privada: trama privada do Estado,
classes dirigentes expressam, no plano político- espaço'privado' das relações sociais e, espaço
ideológico, relações sociais e econômicas social público onde se desenvolve a vida ativa e
existentes na sociedade. A sociedade civil é o atuante dos indivíduos como cidadãos;
espaço no qual os grandes grupos sociais 2) espaço ideológico de confrontação e
históricos, isto é, as classes sociais próprias do luta: em que as ideologias, transformadas em
modo de produção capitalista mercantil, tentam 'partidos' (isto é, concepções de mundo,
desenvolver a sua hegemonia política e cultural- programas de idéias e orientações política
moral. nacionais e sociais diferentes), entram em
Tal como Gramsci afirma, na comentada confronto e lutam entre si;
nota 17 do Caderno 13, dos Cadernos do Cárcere, 3) plano ou fenômeno onde prevalece e
os grupos históricos sociais objetivos, que se impõe uma dada unicidade intelectual e moral.
existem nas relações de produção da sociedade além da unicidade dos fins econômicos e
capitalista mercantil como realidades particulares, políticos; uma das ideologias-partido tende a
se encontram em relação de poder uns com os prevalecer, deve se impor em toda a área social,
outros; mas, para também dominar e dirigir no determinando a unicidade intelectual e moral,
Estado e na estrutura social, terão que além da unicidade dos fins econômicos e
desenvolver a sua consciência política coletiva políticos;
até chegar à fase de hegemonia, fase na qual 4) plano do universal: lugar onde as
seus interesses corporativos se expressam como questões se põem num plano relacionado com
interesses universais, desenvolvem ideologias e todas as energias nacionais, e
políticas para toda a sociedade, e conquistam a 5) expressão da hegemonia de um grupo
sociedade civil para suas posições; conforme social fundamental sobre uma série de grupos
Gramsci, su bordinados.
As distintas determinações da sociedade
(...) fase em que as ideologias geradas civil obrigam a reconhecê-Ia: a) como "espaço
anteriormente se transformam em 'par- social ou lugar social de luta entre diferentes
tido: entram em confrontação e lutam ideologias e vontades coletivas", isto é, novo
até que uma delas, ou pelo menos uma espaço público não-burocrático, diferente - e
única combinação delas, tenda a pre- não oposto a - da sociedade política, o público
valecer, a se impor, a se irradiar por toda baseado no mundo privado, no qual estes
a área social, determinando, além da conceitos - público, privado - já não se
P ,- ,c: 1,-""')-'. -, - -
4" I ~ J'
&.JC
: \." :"":
J "'__"•••.•
contrapõem como planos ou situações fechados Gramsci determina a sociedade civil como
e excludentes'"; e, ao mesmo tempo, b) espaço a ampliação do espaço público além da
da unicidade intelectual e moral da sociedade, sociedade política: desaparece a visão dicotômica
plano do universal e expressão da hegernonía que põe de um lado, o Estado e do outro, o
de um dado grupo social. Por isso, as concepções mercado, para determinar uma nova visão
segundo as quais, a sociedade civil seria o oposto segundo a qual o Estado é tudo: sociedade
do Estado, nào têm nada a ver com o pensamento política + sociedade civil; e o público se constitui
de Gramsci; para este pensador, a sociedade como um espaço de inter-relação entre ambas.
civil é 'trama privada do Estado', ou seja, espaço A sociedade civil é o plano no qual os
público e social de luta pela hegemonia entre trabalhadores podem disputar o interesse público
ideologias e vontades que confrontam diferentes com a sociedade política. A trama privada já
classes dirigentes e dominantes e, também, não é só trama do intercâmbio mercantil e de
resultado político ideológico dessa luta na acumulação de capital, e sim uma trama privada
expressão da supremacia de um dado grupo do Estado, o espaço público no qual a sociedade
social histórico. A sociedade civil fica pode ir subordinando à burocracia política.
determinada, então, ao mesmo tempo como Gramsci construiu, teoricamente, um novo espaço
espaço social de luta entre ideologias e como da política no Ocidente: o espaço público.
hegemonia política e cultural de um grupo social No entanto, no mundo moderno, a
histórico sobre toda a sociedade; grupo que hegemonia 'normal' da 'grande burguesia' se
também luta por comandar o Estado. Assim, desenvolve como 'equilíbrio' entre força e consenso,
Gramsci entende a sociedade civil desta forma: entre sociedade política e sociedade civil:
ociedade civil como tal; mais ainda, a burguesia hegemonias, que se apresenta em cada situação
procura sua hegemonia na sociedade civil pelas particular:
vias do autoritarismo, conformismo, consumismo
e passividade da população. O problema do Unidade do Estado na distinção de po-
conflito de hegemonias de classes diferentes, a deres: o Parlamento, mais ligado à so-
luta por conformar de diversas maneiras tal ou ciedade civil; o Poder judiciário, entre
qual sociedade civil, nem sempre aparece como Governo e Parlamento, representa a
tal luta, e sim como um conflito entre duas continuidade da lei escrita (inclusive
sociedades civis distintas ou como uma luta entre contra o Gouerno ). Naturalmente, os
a sociedade civil e a sociedade política: três poderes são também órgãos da
begemonia política. mas em medida di-
A divisão dos poderes e toda a discus- versa: 1) Parlamento; 2) Magistratura;
são bauida para sua efetioação e a 3) Governo (Ibid).
dogmâtica jurídica derivada de seu ad-
vento constituem o resultado da luta Gramsci também dedicou suas análises à
entre a sociedade civil e a sociedade crise de hegemonia na sociedade civil, ao
política de um determinado período his- aparecimento inicial de uma crise do Estado:
tórico, com certo equilíhrio instável en-
tre as classes, determinado pelo fato de No período do pós-guerra, o aparelho
que certas categorias de intelectuais (a hegemônico se estilhaça e o exercício da
serviço direto do Estado. especialmente hegemonia torna-se permanentemente
burocracia civil e militar) ainda estão difícil e aleatório. O fenômeno é apre-
muito ligadas às velhas classesdominan- sentado e tratado com vários nomes e em
tes... a burocracia, isto é, a cristalização seus aspectossecundários e derivados. Os
do pessoal dirigente, que exerce o po- mais triviais são: 'crise do princípio de
der coercitivo e que, num determinado autoridade' e 'dissolução do regimepar-
ponto, se transforma em casta. Daí a lamentar'. Naturalmente, descrevem-se
reivindicação popular da elegibilidade do fenômeno tão-somente as manifesta-
de todos os cargos, reivindicação que é, ções 'teatrais' no terreno parlamentar e
simultaneamente, liberalismo extremo do governo político (ibid. 95-96),
e sua dissolução (princípio da Constitu-
inte permanente, etc.; nas Repúhlicas, No contexto de crise política e de crise da
a eleição periódica do cbefe do Estado, hegemonia de uma classe dirigente, aparecem
dá uma satisfação ilusória a esta reivin- situações nas quais não só a sociedade civil se
dicação popular elementar) (Caderno põe contra a sociedade política, e sim esta
Miscelânea 6, nota 81: 235). também se coloca 'contra' a sociedade civil:
externa à consciência). ['..J Na dou tri- contra posição às concepções clássicas da ciência
na do Estado) ['. .J sociedade regulada, política, que entendem por espaço da política
de urna fase em que Estado será igual exclusivamente o espaço das barganhas na
a Governo, e Estado se ideruificará com sociedade política e da luta eleitoral para
sociedade civil. dever-se-â passar a uma conquistar o governo. Gramsci abre, então, uma
fase de Rs tado-guarda noturno. isto é, veta para a 'antipolítica', no sentido de enfatizar
de urna organização coercitiva que a importância de uma nova política dirigida a
protegerá o desenvolvimento dos ele- conquistar centralmente a hegemonia política e
mentos de sociedade regulada em con- ideológica na sociedade civil, como base de uma
tínuo incremento e que, portanto, guerra de posições nos espaços públicos e na
reduzirá gradualmente suas interven- sociedade política, guerra prolongada e difícil,
ções autoritárias e coatiuas [...1 se dá o mas nào impossível. Por isso, a noção de fim da
início de uma era de liberdade orgâni- política, de Kurtz - idéia segundo a qual a política
ca (vol. III, caderno Miscelânea 6, nota é uma luta sem sentido, incapaz de influir num
88: 244). Estado capitalista desfalcado e sem poder perante
os grandes conglomerados financeiros (Oliver
Conclusão Costilla, 2003) - não considera que o Estado é
uma relação de forças e que no Estado está
Neste artigo, analisei as bases teoncas também a sociedade civil. A burocracia
da noção de política e ele vontade política de governamental do Estado pode estar sem poder
Antônio Gramsci, no contexto do Estado e sem recursos financeiros perante o novo
ampliado do Ocidente e da noção de sociedade domínio dos grupos capitalistas transnacionais,
civil como criadora potencial de um novo espaço mas, o problema não é conquistar o governo
público não-burocrático. Considero que Gramsci para influir na sociedade nos termos do capital,
situa a noção de política em novas bases, a partir e sim criar uma nova hegemonia política e
dos conceitos de Estado ampliado e de cultural para criar um poder na sociedade. Ou
hegemonia civil. A política deixa de ser seja, para criar a sociedade como poder e, com
unicamente a atividade relacionada com a luta isso, colocar em crise a dominação do capital e
para participar e influir na sociedade política as relações de poder existentes. Gramsci
sob a supremacia do grande capital financeiro, desenvolve, assim, uma nova ciência política.
cada vez mais burocratizada e fechada na Os processos de acumulação de capital e o poder
globalizaçào, para ser uma atividade multilateral, econômico dos grupos financeiros terão que se
encaminhada também, no contexto atual, subordinar aos ditames dos novos espaços
principalmente a modelar e influir na sociedade públicos e, nestes últimos, terá que acontecer
civil e nos espaços públicos. Daí que uma uma reforma intelectual e moral, e ao mesmo
política que seja crítica da sociedade capitalista tempo econômica, que outorgue poder à
e do domínio burocrático-autoritário passa a ter sociedade como um todo; entendido que hoje,
um amplo espaço como atividade de criação de na mundializaçào do capital e na época do
uma vontade nacional popular, de transformação, domínio mundial dos Estados-potência, a luta
assentada na sociedade civil e nos novos espaços política tem um plano internacional mais
públicos democráticos, o que não quer dizer acentuado e determinante, o que nào quer dizer
deixar a sociedade política como espaço livre que o plano nacional deixe de existir.
para as forças conservadoras, e sim uma atividade Possivelmente, a palavra de ordem, hoje, teria
de encurralamento da sociedade política que ser lutar por sociedades civis democráticas
burocratizada para transformá-Ia. Isto, em e espaços públicos não-burocráticos, para
tamente o modo concreto através do qual se apre- interesse universal, atuação a que é constrangida
senta toda reforma intelectual e moral (19). nos primeiros tempos (Marx, 1846).
H Dicionário da língua portuguesa, de Aurélio Buarque. 14 A questão se apresenta para os Estados modernos,
9 O interesse político, vivo, das reflexões do Cárcere não para os paises atrasados e as colônias, onde
de Grarnsci, nào é mais a criação do Estado Nacio- ainda vigoram as formas que, em outros lugares,
nal capitalista na Itália, coisa já feita, tardiamente, já foram superadas e se tornaram anacrônicas (vol,
durante a segunda metade do século XIX. III, Caderno 13, nota 7, p. 24).
10 O próprio Marx, nos textos sobre a revoluçào e a 15 Mas, também, pela submissão dos trabalhadores e
contra revolução na França de 1848-1852, especi- das organizações sociais privadas a formas
almente no XVIII Brurnário, já tinha determinado a clientelistas e parciais desenvolvidas e organizadas
importância, o significado e o papel da política, como pelo Estado.
luta de classes construtora do Estado e definidora 16 Tanto pelo desenvolvimento da economia mercantil
das suas formas. (subsunção formal do trabalho ao capital), como
]] Para transformar dinheiro em capital, tem o pos- pelas disseminações ele manu-faturas e grandes in-
suidor do dinheiro de encontrar o trabalhador li- dústrias no interior dos países (subsunçào real do
vre no mercado de mercadorias; livre nos dois trabalho ao capital).
sentidos: o de dispor como pessoa livre de suafor- 17 A Comuna caiu vários meses depois de ser governo
ça de trabalho como sua mercadoria, e o de estar e, com isso, foi demonstrado que para sustentar o
livre, inteiramente despojado de todas as coisas novo Estado operário teria sido preciso que a classe
necessárias à materializaçâo de sua força de tra- dirigente da Comuna conquistasse a "hegernonía
balbo, não tendo, além desta, outra mercadoria civil", situação que estava distante da revolução
para vendereMarx, 1867: 189). comunal. A maioria nacional era constituída pelos
12 Pelo menos teoricamente, dado que, praticamente, camponeses conservadores do interior, pelos traba-
na história dos séculos XIX e XX, o movimento dos lhadores urbanos ainda dominados pelas idéias de-
trabalhadores desenvolveu, pelas contradições exis- mocráticas, pela pequena burguesia democrática
tentes nele mesmo, interesses burocráticos seus, social, pela burguesia republicana, e todos estes
diferentes dos interesses dos próprios trabalhado- queriam uma Terceira República e não um gover-
res. no comunal. O próprio Marx estava muito consci-
13 É precisamente esta contradição entre o interesse ente disto. No Segundo Manifesto do Comitê
particular e o interesse coletivo quefaz com que o dirigente da Associação Internacional de Trabalha-
interesse coletivo adquira, na qualidade de 'Esta- dores aos comuneros, ele põe como ordem do dia
do', uma forma independente, separada dos inte- trabalhar para consolidar e desenvolver a república
resses reais do indiuiduo e do conjunto e tome democrática e não tentar ainda um governo dos tra-
simultaneamente a aparência de comu nidade ilu- balhadores, e considera que qualquer tentativa de
sória mas sempre sobre a base dos laços existentes derrubar o novo governo republicano seria uma lou-
entre cada conglomerado familiar ou tribal. .. e cura. Isto, embora posteriormente apoiasse o go-
entre esses interesses ressaltam particularmente os verno dos comuneros quando este já era um fato
interesses das classes já condicionados pela divi- irreversivel, A ideologia dominante, da igualdade e
são do trabalho, que se diferenciam em qualquer liberdade republicanas, entrava em contradição com
agrupamento deste tipo e entre as quais existe uma os objetivos radicais dos comunerosôe estabelecer
que domina as restantes. Daqui se depreende que um governo elos trabalhadores. Havia, de fato, uma
todas as lulas no seio do Estado, a luta entre a separação ideológico-cultural entre o novo gover-
democracia, a aristocracia e a monarquia, a luta no e a sociedade. Isso isolou o Estado da Com una e
pelo direito de voto, etc., são apenas as formas fez com que o poderio militar dos republicanos fos-
ilusórias que encobrem as lutas efetivas das dife- se definitivo e significasse a queda cio novo gover-
rentes classesentre si, depreende-se igualmente que no.
toda classe que aspira ao domínio, mesmo que 18 Cabe dizer, com relação à citação anterior, que se faz
seu domínio determine a abolição de todas as necessária uma correção de matiz a tal asseveração,
antigas formas sociais de dominação em geral, tão cortante e global, ele que no Oriente o Estado
como acontece com o proletariado, deve antes de era tudo e a sociedade civil era primitiva e gelatino-
tudo conquistar o poder político para conseguir sa; pois o aparecimento espontâneo dos Conselhos
apresentar o seu interesse próprio como sendo o Soviéticos na Rússia czarista, tanto em 1905 como
em 1917, mostrou que o que aí existia era uma Holloway, John (2003). Mudar o mundo sem tomar o
sociedade civil muito desenvolvida nas capitais ur- poder. Brasil, ed. Viramundo.
banas do Oriente. A afirmação segundo a qual, no
Oriente o Estado era tudo, era verdade só no caso Laclau, Ernesto e Chantal Mouffe (}985). Hegemoniay
da relação Estado-camponeses, mas não o era na estrategia socialista. México: Ed. Fendo de Cultura
relação Estado-trabalhadores urbanos das principais Económica.
cidades. Em todo caso, a afirmação é entendível,
pois, quando Grarnsci a fez, apresentava-se para a Lenin 0917a). As tarefas do proletariado na presente
Rússia o problema de desenvolver o socialismo em revolução (Teses de Abl1D. Abril, 1917. Várias edições.
áreas camponesas, onde existia um culto ao Czar e
a resistência social aos soviéticos era muito forte; Lenin (1917 b). Estado e revolução. Várias edições.
entretanto nessas áreas prevalecia uma sociedade
civil primitiva e gelatinosa. Machiocchi, Maria-antonietta (980). A [auor de
19 Esta noção é contrária à construção teórica de espa- Gramsci. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
(,;0 público não estatal, de Bresser Pereira. Para mim,
e considero que também para Grarnsci, o espaço Marx, Karl (1846). A ideologia alemã. Biblioteca
público é estatal em sentido amplo; faz parte do Electrônica, Brasil, 2004.
Estado, ou seja, dos mecanismos teóricos e práticos
com os quais um grupo social impõe a sua supre- Marx, Karl (1849). As lutas de classes em França. Bibli-
macia na sociedade, isto é, seu domínio e sua oteca eletrônica, Brasil, 2004.
hegemonia. Embora, este espaço público não seja
burocrático-estatal. Marx, Karl (852) O XVlll Brumârio de Luís Bonaparte.
Biblioteca eletrônica, Brasil, 2004.
Referências Bibliográficas
Marx, Karl (857). 4ª edição. Elementosfundamentalcs
Buci-Gluksmann, Christine (1980). Gramsci e o Esta- para Ia Critica de Ia Economia Política. Argentina:
do: por uma teoria materialista da [ilosofia. Rio Siglo XXI, 1973, vol.I.
de Janeiro: Paz e Terra.
Marx, Karl (1867). O capital. Crítica da economia polí-
Dagnino, Evelina (2002). Sociedade civil e espaços tica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, s/f, livro I.
públicos no Brasil. Campinas-São Paulo: Editora da
Universidade de Campinas e Paz e Terra. Marx, Karl (1871). A guerra civil na França. Biblioteca
Eletrônica, Brasil, 2004.
Demo, Pedro (2001). Pobreza política. 6ª edição. Cam-
pinas-São Paulo: autores associados. Marx, Karl (875). Glossas marginais ao Programa do
Partido Operário Alemão. Versão Biblioteca Eletrô-
Durkheim, Émile (983). Lições de sociologia: a Moral, o nica, Brasil, 2004.
Direito e o Estado. São Paulo: T. A Queiroz; Editora da
Universidade de São Paulo. Oliver Costilla, Lucio (2003). "A morte do trabalho ou o
desencanto ela intelligentsia", em Revista de Ciências
Gramsci, Antônio (2000). Cadernos do Cárcere. Rio Sociais, vol. 34, nº 1, Universidade Federal do Ceará,
de Janeiro: Civilização Brasileira, volumes I, Il, III, Brasil.
IV, V e VI.
Serneraro, Giovanni (999). Cramsci e a sociedade ci-
Gruppi, Luciano (1978). O Conceito de Hegemonia em vil. 2ª edição. Petrópolis-Rio de Janeiro: Vozes.
Gramsci. Rio de Janeiro: Graal.
Teixeira, Francisco José (2004). Economia e luta de
Hirsch, Joaquim (998). Globaltzacion, capitaly Esta- classes no capitalismo regulado, Tese de doutora-
do. México, D.F.: ed. Universidad Autônoma Metro- do. Faculdade de Educação, Universidade Federal
politana-Xochimilco. do Ceará. Fortaleza-Brasil. (Digitada)