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EVA FURNARI: ENTRE QUADRINHOS E LIVRO ILUSTRADO1.

Victor David Custódio Sagica

Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), Florianópolis, Brasil.

RESUMO

Sophie Van der Linden, no livro basilar 'Para Ler o Livro Ilustrado', ressalta que a diferença
entre seu objeto de estudo - o livro ilustrado - e a história em quadrinhos está no fato desta
última se estruturar fazendo uso das chamadas 'imagens solidárias', termo conceituado por
Thierry Groensteen na também fundamental obra ‘O Sistema dos Quadrinhos’ que as
caracteriza por serem, ao mesmo tempo, separadas e sobredeterminadas, enquanto o livro
ilustrado constrói sua narrativa a partir da articulação entre imagem e texto, mesmo quando
este é ausente. Portanto, a diferença estaria na linguagem, na constituição de uma forma
própria, e bastante específica, de expressão. Mas tal formulação seria mesmo capaz de
responder satisfatoriamente a tantas variáveis que compõem dois mundos aparentemente
tão diversos como o dos quadrinhos e o do livro ilustrado, apesar de se valerem dos
mesmíssimos elementos, imagem e (às vezes) texto? A mera questão formal – o modo de
relacionar as imagens na construção da narrativa – é suficiente para dar conta da tamanha
diferença entre essas áreas de estudo distintas? A partir do trabalho da escritora e
ilustradora ítalo-brasileira Eva Furnari, cujas obras vagueiam livre e despudoradamente por
ambos os campos, o presente artigo pretende traçar marcos que auxiliem na compreensão
da constituição do espectro próprio de cada área, fazendo da artista uma ponte entre os
teóricos de quadrinhos e do livro ilustrado.

PALAVRAS-CHAVE: quadrinhos; livro ilustrado; ilustração.

INTRODUÇÃO

Existem duas galáxias irmãs, nascidas na mesma época e contexto, que, a despeito
da origem em comum e de fazerem uso dos mesmíssimos elementos de construção –
imagem e, possivelmente, texto, foram compondo constelações tão ricas e distintas que
tendem a confundir o viajante desavisado que não se recordar de as diferenciar, pois não há
marcos de fronteiras entre o mundo dos quadrinhos e o do livro ilustrado.

1
A expressão brasileira livro ilustrado é entendida como correspondente ao album ou livre d’images francês,
ao álbum ilustrado português, ao picturebook inglês, e não deve ser confundida com a expressão livro com
ilustração, caracterizada pela predominância do texto e rasa relação com as imagens.
O volume de produção, as cadeias de profissionais envolvidos, a especificidades nas
composições, as feiras e premiações, os domínios técnicos, artísticos, narrativos, literários,
enfim, diversos fatores dão mostras de que o amadurecimento e diferenciação dos dois
campos de conhecimento os tornam independentes entre si.
Enquanto para o leitor médio a ciência dessas distinções é irrelevante, pois não
impede a boa fruição da obra, para o pesquisador, é fundamental, pois só dominando os
meandros mais sutis de seu objeto de estudo poderá elaborar a correlata teoria, história e
crítica desses tipos de arte.
É à procura dos rastros luminosos dessas diferenciações que o presente artigo se
debruçou sobre as definições conceituais de três teóricos – dois deles advindos do estudo
dos quadrinhos, e um terceiro, da reflexão sobre o livro ilustrado, para estabelecer algumas
marcações que auxiliem a navegação daqueles que se aventuram pelo estudo do universo da
narrativa visual.

EVA FURNARI

Nascida na Itália em 1948, mudando-se para o Brasil aos 2 anos de idade, Eva
Furnari, que tinha na ascendência uma mãe que desenhava e um avô que pintava,
aproximou-se da arte durante a faculdade de arquitetura (FAU/USP), onde possivelmente
aderiu à clareza das formas e à simplicidade na resolução dos problemas visuais,
produzindo cadernos de desenhos sem texto, e tratando sobre livros ilustrados em seu
trabalho de conclusão de curso.
Depois da faculdade Eva trabalha por seis anos como professora de artes no Museu
Lasar Segall, e apenas com o nascimento de sua filha é que atenta para a ilustração como
uma possibilidade profissional. Estreia em 1981 com uma coletânea de quatro livros pela
editora Ática, e em seguida torna-se colunista na Folhinha, onde durante quatro anos
publica semanalmente os quadrinhos da antológica tirinha bruxinha, posteriormente
batizada como Zuzu (figura 1).
Figura 1 – A bruxinha, famosa personagem de quadrinhos nos anos 80.
Fonte: FURNARI, Eva. "Bruxinha Zuzu", pgs. 4 e 5. São Paulo: Moderna, 2010

O aparecimento da bruxinha foi um marco na produção de quadrinhos, pois surge


em publicação semanal de grande circulação, contendo apenas imagens em histórias curtas
e originais, cheia de personalidade, rapidamente passando a fazer parte do imaginário
brasileiro, sendo posteriormente reproduzida sob diversas formas nos currículos escolares.
Adepta desde o início de livros sem texto, explicada em grande parte por sua
admiração pela produção alemã, Eva vai aos poucos sentindo-se confortável para também
fazer uso da narrativa verbal, que surge inicialmente em pequenos jogos de palavras, segue
em experimentações que permanecem ao longo de toda a sua carreira, e tem como ápice o
livro A Bruxa Zelda e os 80 Docinhos, de 1993, onde pela primeira vez na produção da
artista o texto sobrepuja as imagens.
A composição relacional entre imagens e textos em algumas das experimentações de
Eva Furnari é muito similar às primeiras experiências do livro ilustrado. Basta uma breve
comparação entre Book of Nonsense, de 1846 por Edward Lear, e Travadinhas (figura 2),
da Eva Furnari em 2004 para se compreender como soluções gráficas adotas há quase dois
séculos ainda produzem o mesmo efeito nos leitores atuais. Artista muito premiada, Eva
ultrapassou a marca de 60 livros publicados, tendo obras traduzidas por todo o mundo. Seus
livros são comumente adotados nas escolas por todo o Brasil e possuem estreita relação
com a educação.
A genialidade de sua produção está na simplicidade com que resolve os problemas
gráficos, na leveza dos personagens – onde mesmo os personagens mais feiosos são
extremamente cativantes, numa técnica que se aproxima muito do cotidiano da criança, por
vezes parecendo que foi desenhado ali mesmo, na página, pouco antes do leitor abrir o
livro.
Mesmo sendo imortalizada por sua personagem em tirinhas, tendo a supremacia das
imagens em relação ao texto, e fazendo uso de ‘imagens solidárias’ em diversas narrativas2
– todas essas, características dos quadrinhos, Eva toma abrigo no panteão das
autoras/ilustradoras de livro infantil, e não no das quadrinistas. Por quê?

Figura 2 – Imagem e texto em relação, como nos inícios do livro ilustrado.


Fonte: FURNARI, Eva. "Travadinhas", p. 5. São Paulo: Moderna, 2011

2
Por exemplo, o livro "Cacoete", pgs. 7 e 10. São Paulo: Moderna, 1996.
PARA BAIXO E PARA CIMA

Em seu livro A Banda Desenhada3, publicado em Paris no ano de 1978 e


referenciado em diversas disciplinas sobre quadrinhos4, Jean-Bruno Renard redige uma
introdução com páginas preciosas, pois em poucos parágrafos faz um levantamento do
desenvolvimento histórico dos quadrinhos como campo de estudo na França, e propõe uma
definição de quadrinhos, inclusive elencando e discutindo possíveis elementos
constitutivos.
Procurar definições de quadrinhos para poder confrontá-las com as do livro
ilustrado, e vice-versa, é primordial para a presente investigação, que, recordamos, pretende
elencar semelhanças e diferenças que auxiliem na melhor compreensão de ambos os
campos de estudo.
O primeiro item discutido é a presença ou não de balão com texto para que se defina
uma produção como quadrinhos. Essa discussão foi levantada pela definição para
quadrinhos do também francês Michel Pierre, em 1976, como “um processo narrativo que
utiliza uma sucessão de imagens, incluindo ou não um texto, do qual todo ou parte se separa
das personagens através de um balão”5. Renard, contradizendo Pierre, apresenta provas
como Bécassine e La Famille Fenouillard, cujos textos encontram-se sob as imagens, e o
Professeur Nimbus e Azor, que não contêm palavras. Seguindo os sinais da nossa artista
Eva Furnari, essa definição de quadrinhos também é invalidada pela bruxinha, cujas
histórias, em quadrinhos, se desenvolvem sem o uso de nenhum texto.
Depois de refutar também o argumento do público alvo como critério de definição,
descartando a faixa etária como fundamento, e também o gênero de história como
determinante do que venha a ser quadrinhos, pois embora tenha tido seu início ligado à
caricatura cômica, os quadrinhos já àquela época apresentava gêneros dos mais diversos –
do policial, western, realista ao fantástico e familiar, o autor aponta para uma definição
mais precisa:

3
Banda desenhada é uma expressão portuguesa derivada do original francês bande dessinée.
4
Por exemplo, CJE0539 - Editoração em História-em-quadrinhos, do curso Jornalismo e Editoração da
ECA/USP.
5
PIERRE, Michel, La Bande Dessinée, p. 11, Paris: Libraire Larousse, 1976.
Em resumo, só existem três elementos sempre presentes, qualquer que seja a banda
considerada: uma história, traduzida em desenhos, e impressa (ou susceptível de sê-
lo). Definir-se-á portanto a banda desenhada como uma história desenhada e
impressa.6

O desenvolvimento disso é que, para se constituir quadrinhos, deve haver


necessariamente a presença de uma história, ou seja, uma “sucessão temporal de situações
reais ou imaginários tendo em comum um ou vários personagens” (1981, p.11) cujo
encadeamento de acontecimentos se traduzam em cenas desenhadas, quer dizer, em ao
menos duas, afirma o autor. Embora possamos refinar esse conceito trocando história por
narratividade7 e desenho por imagem8, até aqui não há diferenciação alguma com o livro
ilustrado, que também contém uma história desenhada.
No entanto, o terceiro componente, muito importante na definição proposta por
Renard, que é a noção de impresso, parece começar a sugerir uma diferenciação. Duas são
as justificativas do autor para esse requisito: primeiramente a noção de um objeto que seja
manejável, ou seja, onde o leitor tenha o controle sobre a ordem e duração dos eventos,
como na literatura propriamente dita (e no livro ilustrado) e diferentemente do que ocorre
na animação, cinema, escultura, pintura, etc; já a segunda justificativa é que esse caráter
impresso estabeleceria uma relação dos quadrinhos com o “conjunto dos mass media ou
técnicas de difusão coletiva” (1981 p.13), implicando aqui a possibilidade de reprodução
em larga escala.
A relação dos quadrinhos com a comunicação em massa é um ponto nevrálgico para
a compreensão não só dos quadrinhos mas das diferenças que buscamos com o livro
ilustrado, pois ainda que ambos tenham surgido a partir do desenvolvimento da imprensa
periódica no século XIX, ou seja, das possibilidades técnicas da invenção da imprensa e da
popularização de imagens impressas, os quadrinhos mantiveram uma relação visceral com a
produção caricatural, satírica, política, urbana, panfletária, de crítica e de entretenimento.

6
RENARD, Jean-Bruno, A Banda Desenhada, p. 11, Lisboa: Editorial Presença, 1981.
7
Narratividade pois não se refere à cronologia convencional de tempo, mas àquela estabelecida pela relação
dos quadros.
8
Imagem por abarcar as diversas técnicas de registro de um meio sobre um suporte, sem ater-se à
especificidade de nenhuma fatura.
Quer dizer, a comunicação em massa não se refere apenas à tiragem em larga escala, mas
ao anseio dos quadrinhos em atender a demanda da massa, ocupando-se de seus interesses
mais imediatos, urgentes e cotidianos, incluindo aí suas contradições, partidarismos,
incoerências e obscuridades. Aqui reside a alma dos quadrinhos: uma produção adulta sobre
a vida imanente.
Isso é de fácil comprovação quando se vê que nos Estados Unidos o
desenvolvimento dos quadrinhos foi desencadeado pelos suplementos dominicais nos
jornais de Joseph Pulitzer e de William Randolph Heaster, com a intenção de estender seu
alcance à massa de imigrantes e semianalfabetos. Na Europa, o surgimento dos quadrinhos
vem dos jornais satíricos ou caricaturais, como demonstrou o historiador de quadrinhos
Gérard Blanchard9.
Esse ponto exposto por Jean-Bruno Renard sobre a origem dos quadrinhos, o da
influência dos jornais satíricos, subentendidos como expressão das diversas confluências da
sociedade numa composição frenética, fragmentada e revolucionária, será o primeiro marco
na busca pela diferenciação dos conceitos de quadrinhos e livro ilustrado. Mais à frente
veremos como esse marco terá um desdobramento significativo na composição temporal da
obra.
Mas e o livro ilustrado? Por ter exatamente a mesma origem não teria, portanto, o
mesmo espírito? Renard aponta então uma segunda fonte de influência sobre a produção de
narrativas visuais que surgiu na mesma época. A ascensão das burguesias coincide com
uma nova compreensão sobre a infância, que passa a uma posição central na célula familiar,
gerando uma nova abordagem em técnicas pedagógica, que passaram a privilegiar a
instrução associada à distração. Surgem então dezenas de jornais infantis mensais, repletos
de conteúdos morais e histórias moralizadoras, e que os tornaram uma espécie de segundo
professor:
Em todas estas revistas as imagens têm mais a ver com a ilustração do que com a
banda desenhada. É certo que o desenho a traço tinha o sulfuroso odor das
caricaturas contestárias! Mas estes jornais formavam uma “estrutura de
acolhimento” demasiado ideal (RENARD, 1981, p. 31).

9
BLANCHAR, Gérard, Histoire de la Bande Dessinée, Verviers (Bélgica), Marabout, 1974 (nova edição).
Fica claro, assim, que a abordagem do livro ilustrado, influenciada pelos jornais
infantis do século XIX, estabelece desde o início uma outra relação com o leitor, primeiro
porque procura o leitor infantil, que é aquele que se inicia no conhecimento do mundo, não
estando apto a assimilar as contradições da existência humana, e que por isso mesmo
precisa ser acolhido; e segundo por ser muito mais voltado para o desenvolvimento
educacional, que almeja empurrar para além (ex-ducere, conduzir para fora), talvez ao
plano platônico das ideias, transcendente, numa perspectiva propositiva e positiva que
supõe diferentes estágios de aprendizagem. Essas duas características farão com que o livro
ilustrado seja recebido de forma muito mais orgânica no espaço de ensino, pois parece
cumprir certa vocação inata à sua invenção.
Essa “‘estrutura de acolhimento’ demasiado ideal” citada por Renard se faz presente
em toda a obra de Eva Furnari, onde mesmo o desequilíbrio e desacerto encontro refúgio na
harmonização do todo. As tensões são apaziguadas pelo traço a lápis, pelos tons pastéis da
aquarela, pelo sorriso incomum dos personagens. Enfim, há um otimismo esperançoso que
subjaz à produção e que naturalmente catapulta o leitor para esferas mais elevadas que a
vivência cotidiana (figura 3).
Vimos então que enquanto a história em quadrinhos faz um movimento
descendente, de mergulho na realidade humana, se constituindo assim em terra da
dubiedade, da insolvência, da dura, rasteira e aparentemente contraditória realidade, o livro
infantil faz um movimento ascendente, de voo em direção às ideias lapidadas, ordenadas e
conciliadas, tornando-se então território do devir.
Figura 3 – Mesmo a figura da bruxa, cheia de deformações, torna-se agradável.
Fonte: FURNARI, Eva. "Cacoete", p. 23. São Paulo: Moderna, 2016

FRAGMENTADO

Em 1999, Thierry Groensteen publica O Sistema dos Quadrinhos, que pretende uma
abordagem semiológica – portanto a partir do entendimento de quadrinhos como
linguagem, considerando-o ser um complexo sistema onde o mais importante são as
relações em sincronia das partes, que criam “um conjunto original de mecanismos
produtores de sentido”10, e não a fixação pelo signo e pelos elementos mínimos de unidade
(pontos, linhas, manchas...), razão pela qual o autor prefere dizer-se representante de uma
neossemiótica sobre o assunto.

10
GROENSTEEN, Thierry, O Sistema de Quadrinhos, p. 13, Nova Iguaçu: Marsupial Editora, 2015.
Mesmo tratando os quadrinhos como linguagem, e não como fenômeno histórico,
sociológico e econômico, Groensteen reconhece que, mesmo do ponto de vista da
semiótica, o olhar pormenorizado e mesquinho para seus elementos menores não ajudam
em sua definição:

Da minha parte, estou convencido que não é abordando as HQs ao nível do detalhe
que poderemos, ao preço de uma ampliação progressiva, chegar numa descrição
coerente e fundamentada da sua linguagem. Proponho o contrário: que os
abordemos do alto, ao nível de suas articulações maiores (GROENSTEEN, 2015, p.
13).

Ainda que a afirmação se refira à sua técnica epistemológica, essa percepção da


ineficiência da microssemiótica na resolução do conceito ajustado de quadrinhos poderia
ser uma pista intuitiva sobre a limitação de uma definição conceitual quando abordada
apenas do ponto de vista da linguagem ou da constituição formal. Pode-se antever aí a
existência de outros elementos não-formais tão ou mais importantes na constituição desse
fenômeno, que só são capturados numa visão holística.
De qualquer forma, o primeiro movimento de Groensteen é no intuito de abandonar
a corrente semiótica de pesquisa que assume que para se analisar o objeto de estudo seja
necessária a decomposição das histórias em quadrinhos em unidades constitutivas
elementares. Ainda que esse tipo de análise da semiótica ortodoxa faça sentido na
abordagem de uma imagem singular e global, como por exemplo no estudo de uma imagem
única, em quadrinhos cada imagem (quadro ou vinheta) é “fragmentária e encontra-se em
sistema de proliferação” (2015, p.13), o que faz com que a unidade mínima seja cada
quadrinho me si, e não mais os elementos que o compõe.
Disso tem-se que uma das chaves principais para o entendimento dos quadrinhos
está no código espaçotópico, quer dizer, na organização desses quadros, que aparecem
todos no mesmo plano, e nas relações que estabelecem entre si, já que o conjunto de
códigos específicos que o compõe (visuais e discursivos) não pertencem exclusivamente
aos quadrinhos, que deve ser entendido então como “uma combinação original de uma (ou
duas, junto com a escrita) matéria(s) da expressão e de um conjunto de códigos. É a razão
pela qual podem ser descritos apenas em termos de sistema” (2015, p.14).
É, portanto, das relações entres os quadros que se vai tecendo o sistema dos
quadrinhos, o que leva Groensteen a afirmar de forma categórica que “faz-se necessário
reconhecer como único fundamento ontológico dos quadrinhos a conexão de uma
pluralidade de imagens solidárias” (2015, p.27). E completa:

Esta informação pode ser conferida por qualquer pessoa que folheia um álbum ou
uma revista em quadrinhos. O que se oferece ao olhar é uma espaço fragmentado,
compartimentado, uma coleção de quadros justapostos, ou, para citar a bela
formulação de Henri Van Lier, uma ‘aeronave de multirrequadros’ navegando,
suspensa, ‘no branco nulo da página impressa’ (GROENSTEEN, 2015, pgs. 29 e
30).

Temos assim, de forma cristalina, pelo menos do ponto de vista formal, uma
definição de quadrinhos que abarca satisfatoriamente a todo o tipo de produção conhecida,
ao mesmo tempo em que o diferencia dos livros ilustrados, que não apresentam a mesma
relação especial entre as imagens, pois estas só são solidárias quando “participam de uma
sequência, apresentando a dupla característica de estarem apartadas (...) e serem plástica e
semanticamente sobredeterminadas pelo simples fato da sua coexistência in praesentia”
(2015, p. 28).
O que deve nos deter aqui não é a ótima definição de quadrinhos que se estabelece
na relação entre as imagens fragmentadas, mas a própria existência de toda essa
fragmentação. Afinal, qual seria o motivo das imagens serem fragmentárias nos
quadrinhos? É essa a pergunta que nos conduz ao segundo importante marco para a
compreensão e consequente diferenciação dos quadrinhos para o livro ilustrado.
Lembremos que a primeira baliza é a relação estreita dos quadrinhos com o fenômeno de
massa, absorvendo deste sua dinâmica frenética, satírica, adulta, contraditória, tornando-se
expressão legítima dessa novidade antropológica. A consequência disso é que a linguagem
que melhor expressa esse mundo de massas recém inaugurado é a do cinema, do
movimento, do plano e contraplano, do zoom-in e do zoom-out, do corte e da transição. O
tempo deixa de ser estático para assumir a incerteza, a efemeridade, a contingência. A
narrativa é construída na impossibilidade de conclusão em uma só imagem, e por isso se
expande de frame em frame, de quadro em quadro. A fragmentação e a multiplicidade de
imagens são, portanto, uma consequência esperada da imanência. Mais do que uma opção
gráfica, são resultado de uma cosmovisão.
Ainda em O Sistema dos Quadrinhos, interessante observar os comentários do autor
a respeito da primazia da imagem sobre a palavra, desmontando de forma habilidosa a ideia
de que a escrita seria um veículo privilegiado da narração, ideia essa advinda, segundo o
autor, de um logocentrismo milenar e da invasão nos anos 60 e 70 de conceitos linguísticos
nas análises de artes visuais, entendendo qualquer tipo de contemplação de uma
representação figurativa como um tipo de leitura, capitulando tudo na simbologia da escrita.
De forma muito clara Groesnteen evidencia que “o predomínio da imagem no cerne do
sistema deve-se ao fato de que a maior parte da produção de sentido ocorre através dela”
(2015, p. 17). Essa conceituação sobre a relação entre escrita e imagem na narrativa é
igualmente válida para os livros ilustrados.

SIMBÓLICO

Publicado na França em 2006, Para Ler o Livro Ilustrado, da francesa Sophie Van
der Linden, constata inicialmente a escassez de publicações especializadas sobre o livro
ilustrado, cujas análises acabam “parciais ou restritas ao campo da didática”11, certamente
por surgirem voltadas para o público infantil. Aliás, cabe mencionar que o pioneiro
Rodolphe Töpffer, já mencionado na origem dos quadrinhos, era pedagogo de profissão, e
entretinha seus alunos com caricaturas, o que corrobora para o entendimento de uma índole
educacional na gênese do livro ilustrado.
Não à toa, muitas publicações da Eva Furnari são, na prática, apoios a livros
didáticos. Títulos como Você Troca?, Assim Assado, Não Confunda, que trazem jogos de
palavras e rimas, Problemas Boborildos e os Problemas da Família Gorgonzola, que
apresentam criativas questões matemáticas, ou o Adivinhe se Puder, com problemas de
lógica e adivinhação, são livros com doses descaradamente pedagógicas. Assim, temos
também a partir desta pesquisadora de livro ilustrado a mesma constatação que obtivemos a

11
LINDEN, Sophie Van der. Para Ler o Livro Ilustrado, São Paulo: Cosac Naify, 2011.
partir de Jean-Bruno Renard, estudioso de quadrinhos: a relação natural entre livro ilustrado
e a educação.
No intuito de delimitar seu objeto de estudo, a Linden elenca diversos tipos de livros
que contenham imagens, fazendo uma breve descrição a partir do objeto livro e sua
organização interna. São citados, além do livro ilustrado e dos quadrinhos, livros com
ilustração, primeiras leituras, livros pop-up, livros-brinquedos, livros interativos, e
imaginativos. Mas atentemos para sua definição dos objetos aos quais nos propusemos a
investigar:

Livros Ilustrados. Obras em que a imagem é espacialmente preponderante em


relação ao texto, que aliás pode estar ausente [é então chamado, no Brasil, de livro-
imagem]. A narrativa se faz de maneira articulada entre texto e imagens.
Histórias em Quadrinhos (HQ). Forma de expressão caracterizada não pela presença
de quadrinhos e balões, e sim pela articulação de “imagens solidárias”. A
organização da página corresponde – majoritariamente – a uma disposição
compartimentada, isto é, os quadrinhos que se encontram justapostos em vários
níveis (LINDEN, 2011, pgs. 24 e 25).

Observamos assim que Linden resolve a diferenciação entre quadrinhos e livro


ilustrado pela forma com que a construção narrativa é feita: nos quadrinhos, através do
conceito de Groesnteen visto anteriormente, isto é, na relação estabelecida pela sequência
das imagens entre si, enquanto no livro ilustrado é definida pela articulação entre imagem e
texto (que pode estar ausente), sendo, portanto, mais fixado numa lógica interna própria de
cada imagem, mesmo que considerada a página dupla.
Quando se passa a discutir o leitor das obras, surge mais um elemento de
diferenciação: o interesse e adesão dos adultos pela produção. O texto presume que o livro
ilustrado se destina em grande parte a não leitores, quer dizer, àqueles que ainda não
dominam a leitura, ou ao menos a leitores em formação. Isso traz à tona uma terceira figura,
a do mediador, a quem acabam se destinando, de forma indireta, a criação e difusão das
obras. Pais, professores, educadores se tornam como que um segundo destinatário da
produção. Mesmo oportunizando o convívio com o livro ilustrado, não se verificou
organicamente o surgimento de um público adulto para o livro ilustrado. Nas palavras da
autora, “ao contrário da HQ, o livro ilustrado nunca chegou a conquistar um público adulto
afora os mediadores” (LINDEN, 2011, p. 30).
Apesar das iniciativas de autores, editores, ilustradores em produzir livro ilustrado
com conteúdo adulto, como demonstra Linden, o resultado ainda é incerto. Mesmo assim, a
autora aposta, temerariamente, no “surgimento de uma editora de livros ilustrado ‘para
adultos’ – sem que essa distinção apareça como tal” (2011, p. 31). Ainda que haja essa
possível acomodação do público adulto, o que devemos apreender aqui é que há uma
dissonância entre o livro ilustrado e os adultos que não ocorre com as histórias em
quadrinhos. Novamente, portanto, vemos confirmada uma argumentação obtida entre os
pesquisadores de quadrinhos, que estes sejam obras eminentemente adultas e para adultos.
Outro ponto importante do percurso que temos feito na diferenciação entre
quadrinhos e livro ilustrado está na manifestação temporal da narrativa enquanto linguagem
que expressa de forma mais adequada a relação da obra com o mundo em seus diversos
aspectos – social, educacional, econômico, etc. Enquanto nos quadrinhos o tempo é
fragmentado, no livro ilustrado a presença do tempo é simbólica.

Embora uma imagem fixa não possa representar o tempo, como faz a imagem
animada, ela pode, em contrapartida, sugerir uma evolução temporal para além dos
próprios limites. Se ela extrapolar, mesmo que bem pouco, seu âmbito temporal
estrito, torna possível a apreensão de um instante. Por menor que ele seja, trata-se
de uma duração (LINDEN, 2011, pg. 102).

No livro ilustrado o tempo está condensado, em potência e tensão, num único


instante que parece situar-se na eternidade. A autora aponta três técnicas diferentes do livro
ilustrados para manusear essa imagem singular: o ‘instante capital’, que é a composição que
busca representar em uma única imagem a essência de todo um acontecimento, servindo-se
de instantes distintos para, de forma artificial e sintética, reconstituir aquilo que seria o mais
significativo da cena; o ‘instante qualquer’, que almeja contrapor-se à artificialidade do
tempo construído, pinçando um momento instantâneo que se pretende aleatório e natural,
dando a ideia de uma narratividade mais lenta e descritiva; e o ‘instante movimento’, que é
um breve instante que normalmente antecede à uma grande ação da narrativa, aumentando a
força sugestiva da imagem.
Vemos, assim, que há todo um esforço técnico para demonstrar a temporalidade da
narrativa em uma única cena justamente porque “nada predispõe uma imagem fixa a
expressar o tempo” (2011, p. 102). Por isso no livro ilustrado o tempo será sempre
simbólico, como nas construções mitológicas, e nunca literal, como é nos quadrinhos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de inúmeras semelhanças, nós iniciamos a pesquisa de diferenciação entre


livro ilustrado e quadrinhos com a definição deste último como uma narrativa imagética
possivelmente impressa – aprofundada posteriormente como um sistema de imagens
apartadas, mas justapostas e sobredeterminadas, enquanto o livro ilustrado foi caracterizado
como uma narrativa visual com predomínio da imagem sobre a palavra (quando presente),
sendo a imagem quem carrega a maior produção de sentido na obra.
Entretanto, avançamos na diferenciação ao desnudarmos a imbricada dependência
dos quadrinhos do fenômeno de massa, de onde retira sua vitalidade e significado,
expressos numa fragmentação temporal adulta, ao passo que o livro ilustrado permanece
ligado ao mundo da educação infantil, utilizando a composição de tempo simbólico.

REFERÊNCIAS

GROENSTEEN, Thierry, O Sistema de Quadrinhos, Nova Iguaçu: Marsupial Editora, 2015.

LINDEN, Sophie Van der. Para Ler o Livro Ilustrado, São Paulo: Cosac Naify, 2011.

RENARD, Jean-Bruno, A Banda Desenhada, Lisboa: Editorial Presença, 1981.

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