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RESUMO
Sophie Van der Linden, no livro basilar 'Para Ler o Livro Ilustrado', ressalta que a diferença
entre seu objeto de estudo - o livro ilustrado - e a história em quadrinhos está no fato desta
última se estruturar fazendo uso das chamadas 'imagens solidárias', termo conceituado por
Thierry Groensteen na também fundamental obra ‘O Sistema dos Quadrinhos’ que as
caracteriza por serem, ao mesmo tempo, separadas e sobredeterminadas, enquanto o livro
ilustrado constrói sua narrativa a partir da articulação entre imagem e texto, mesmo quando
este é ausente. Portanto, a diferença estaria na linguagem, na constituição de uma forma
própria, e bastante específica, de expressão. Mas tal formulação seria mesmo capaz de
responder satisfatoriamente a tantas variáveis que compõem dois mundos aparentemente
tão diversos como o dos quadrinhos e o do livro ilustrado, apesar de se valerem dos
mesmíssimos elementos, imagem e (às vezes) texto? A mera questão formal – o modo de
relacionar as imagens na construção da narrativa – é suficiente para dar conta da tamanha
diferença entre essas áreas de estudo distintas? A partir do trabalho da escritora e
ilustradora ítalo-brasileira Eva Furnari, cujas obras vagueiam livre e despudoradamente por
ambos os campos, o presente artigo pretende traçar marcos que auxiliem na compreensão
da constituição do espectro próprio de cada área, fazendo da artista uma ponte entre os
teóricos de quadrinhos e do livro ilustrado.
INTRODUÇÃO
Existem duas galáxias irmãs, nascidas na mesma época e contexto, que, a despeito
da origem em comum e de fazerem uso dos mesmíssimos elementos de construção –
imagem e, possivelmente, texto, foram compondo constelações tão ricas e distintas que
tendem a confundir o viajante desavisado que não se recordar de as diferenciar, pois não há
marcos de fronteiras entre o mundo dos quadrinhos e o do livro ilustrado.
1
A expressão brasileira livro ilustrado é entendida como correspondente ao album ou livre d’images francês,
ao álbum ilustrado português, ao picturebook inglês, e não deve ser confundida com a expressão livro com
ilustração, caracterizada pela predominância do texto e rasa relação com as imagens.
O volume de produção, as cadeias de profissionais envolvidos, a especificidades nas
composições, as feiras e premiações, os domínios técnicos, artísticos, narrativos, literários,
enfim, diversos fatores dão mostras de que o amadurecimento e diferenciação dos dois
campos de conhecimento os tornam independentes entre si.
Enquanto para o leitor médio a ciência dessas distinções é irrelevante, pois não
impede a boa fruição da obra, para o pesquisador, é fundamental, pois só dominando os
meandros mais sutis de seu objeto de estudo poderá elaborar a correlata teoria, história e
crítica desses tipos de arte.
É à procura dos rastros luminosos dessas diferenciações que o presente artigo se
debruçou sobre as definições conceituais de três teóricos – dois deles advindos do estudo
dos quadrinhos, e um terceiro, da reflexão sobre o livro ilustrado, para estabelecer algumas
marcações que auxiliem a navegação daqueles que se aventuram pelo estudo do universo da
narrativa visual.
EVA FURNARI
Nascida na Itália em 1948, mudando-se para o Brasil aos 2 anos de idade, Eva
Furnari, que tinha na ascendência uma mãe que desenhava e um avô que pintava,
aproximou-se da arte durante a faculdade de arquitetura (FAU/USP), onde possivelmente
aderiu à clareza das formas e à simplicidade na resolução dos problemas visuais,
produzindo cadernos de desenhos sem texto, e tratando sobre livros ilustrados em seu
trabalho de conclusão de curso.
Depois da faculdade Eva trabalha por seis anos como professora de artes no Museu
Lasar Segall, e apenas com o nascimento de sua filha é que atenta para a ilustração como
uma possibilidade profissional. Estreia em 1981 com uma coletânea de quatro livros pela
editora Ática, e em seguida torna-se colunista na Folhinha, onde durante quatro anos
publica semanalmente os quadrinhos da antológica tirinha bruxinha, posteriormente
batizada como Zuzu (figura 1).
Figura 1 – A bruxinha, famosa personagem de quadrinhos nos anos 80.
Fonte: FURNARI, Eva. "Bruxinha Zuzu", pgs. 4 e 5. São Paulo: Moderna, 2010
2
Por exemplo, o livro "Cacoete", pgs. 7 e 10. São Paulo: Moderna, 1996.
PARA BAIXO E PARA CIMA
3
Banda desenhada é uma expressão portuguesa derivada do original francês bande dessinée.
4
Por exemplo, CJE0539 - Editoração em História-em-quadrinhos, do curso Jornalismo e Editoração da
ECA/USP.
5
PIERRE, Michel, La Bande Dessinée, p. 11, Paris: Libraire Larousse, 1976.
Em resumo, só existem três elementos sempre presentes, qualquer que seja a banda
considerada: uma história, traduzida em desenhos, e impressa (ou susceptível de sê-
lo). Definir-se-á portanto a banda desenhada como uma história desenhada e
impressa.6
6
RENARD, Jean-Bruno, A Banda Desenhada, p. 11, Lisboa: Editorial Presença, 1981.
7
Narratividade pois não se refere à cronologia convencional de tempo, mas àquela estabelecida pela relação
dos quadros.
8
Imagem por abarcar as diversas técnicas de registro de um meio sobre um suporte, sem ater-se à
especificidade de nenhuma fatura.
Quer dizer, a comunicação em massa não se refere apenas à tiragem em larga escala, mas
ao anseio dos quadrinhos em atender a demanda da massa, ocupando-se de seus interesses
mais imediatos, urgentes e cotidianos, incluindo aí suas contradições, partidarismos,
incoerências e obscuridades. Aqui reside a alma dos quadrinhos: uma produção adulta sobre
a vida imanente.
Isso é de fácil comprovação quando se vê que nos Estados Unidos o
desenvolvimento dos quadrinhos foi desencadeado pelos suplementos dominicais nos
jornais de Joseph Pulitzer e de William Randolph Heaster, com a intenção de estender seu
alcance à massa de imigrantes e semianalfabetos. Na Europa, o surgimento dos quadrinhos
vem dos jornais satíricos ou caricaturais, como demonstrou o historiador de quadrinhos
Gérard Blanchard9.
Esse ponto exposto por Jean-Bruno Renard sobre a origem dos quadrinhos, o da
influência dos jornais satíricos, subentendidos como expressão das diversas confluências da
sociedade numa composição frenética, fragmentada e revolucionária, será o primeiro marco
na busca pela diferenciação dos conceitos de quadrinhos e livro ilustrado. Mais à frente
veremos como esse marco terá um desdobramento significativo na composição temporal da
obra.
Mas e o livro ilustrado? Por ter exatamente a mesma origem não teria, portanto, o
mesmo espírito? Renard aponta então uma segunda fonte de influência sobre a produção de
narrativas visuais que surgiu na mesma época. A ascensão das burguesias coincide com
uma nova compreensão sobre a infância, que passa a uma posição central na célula familiar,
gerando uma nova abordagem em técnicas pedagógica, que passaram a privilegiar a
instrução associada à distração. Surgem então dezenas de jornais infantis mensais, repletos
de conteúdos morais e histórias moralizadoras, e que os tornaram uma espécie de segundo
professor:
Em todas estas revistas as imagens têm mais a ver com a ilustração do que com a
banda desenhada. É certo que o desenho a traço tinha o sulfuroso odor das
caricaturas contestárias! Mas estes jornais formavam uma “estrutura de
acolhimento” demasiado ideal (RENARD, 1981, p. 31).
9
BLANCHAR, Gérard, Histoire de la Bande Dessinée, Verviers (Bélgica), Marabout, 1974 (nova edição).
Fica claro, assim, que a abordagem do livro ilustrado, influenciada pelos jornais
infantis do século XIX, estabelece desde o início uma outra relação com o leitor, primeiro
porque procura o leitor infantil, que é aquele que se inicia no conhecimento do mundo, não
estando apto a assimilar as contradições da existência humana, e que por isso mesmo
precisa ser acolhido; e segundo por ser muito mais voltado para o desenvolvimento
educacional, que almeja empurrar para além (ex-ducere, conduzir para fora), talvez ao
plano platônico das ideias, transcendente, numa perspectiva propositiva e positiva que
supõe diferentes estágios de aprendizagem. Essas duas características farão com que o livro
ilustrado seja recebido de forma muito mais orgânica no espaço de ensino, pois parece
cumprir certa vocação inata à sua invenção.
Essa “‘estrutura de acolhimento’ demasiado ideal” citada por Renard se faz presente
em toda a obra de Eva Furnari, onde mesmo o desequilíbrio e desacerto encontro refúgio na
harmonização do todo. As tensões são apaziguadas pelo traço a lápis, pelos tons pastéis da
aquarela, pelo sorriso incomum dos personagens. Enfim, há um otimismo esperançoso que
subjaz à produção e que naturalmente catapulta o leitor para esferas mais elevadas que a
vivência cotidiana (figura 3).
Vimos então que enquanto a história em quadrinhos faz um movimento
descendente, de mergulho na realidade humana, se constituindo assim em terra da
dubiedade, da insolvência, da dura, rasteira e aparentemente contraditória realidade, o livro
infantil faz um movimento ascendente, de voo em direção às ideias lapidadas, ordenadas e
conciliadas, tornando-se então território do devir.
Figura 3 – Mesmo a figura da bruxa, cheia de deformações, torna-se agradável.
Fonte: FURNARI, Eva. "Cacoete", p. 23. São Paulo: Moderna, 2016
FRAGMENTADO
Em 1999, Thierry Groensteen publica O Sistema dos Quadrinhos, que pretende uma
abordagem semiológica – portanto a partir do entendimento de quadrinhos como
linguagem, considerando-o ser um complexo sistema onde o mais importante são as
relações em sincronia das partes, que criam “um conjunto original de mecanismos
produtores de sentido”10, e não a fixação pelo signo e pelos elementos mínimos de unidade
(pontos, linhas, manchas...), razão pela qual o autor prefere dizer-se representante de uma
neossemiótica sobre o assunto.
10
GROENSTEEN, Thierry, O Sistema de Quadrinhos, p. 13, Nova Iguaçu: Marsupial Editora, 2015.
Mesmo tratando os quadrinhos como linguagem, e não como fenômeno histórico,
sociológico e econômico, Groensteen reconhece que, mesmo do ponto de vista da
semiótica, o olhar pormenorizado e mesquinho para seus elementos menores não ajudam
em sua definição:
Da minha parte, estou convencido que não é abordando as HQs ao nível do detalhe
que poderemos, ao preço de uma ampliação progressiva, chegar numa descrição
coerente e fundamentada da sua linguagem. Proponho o contrário: que os
abordemos do alto, ao nível de suas articulações maiores (GROENSTEEN, 2015, p.
13).
Esta informação pode ser conferida por qualquer pessoa que folheia um álbum ou
uma revista em quadrinhos. O que se oferece ao olhar é uma espaço fragmentado,
compartimentado, uma coleção de quadros justapostos, ou, para citar a bela
formulação de Henri Van Lier, uma ‘aeronave de multirrequadros’ navegando,
suspensa, ‘no branco nulo da página impressa’ (GROENSTEEN, 2015, pgs. 29 e
30).
Temos assim, de forma cristalina, pelo menos do ponto de vista formal, uma
definição de quadrinhos que abarca satisfatoriamente a todo o tipo de produção conhecida,
ao mesmo tempo em que o diferencia dos livros ilustrados, que não apresentam a mesma
relação especial entre as imagens, pois estas só são solidárias quando “participam de uma
sequência, apresentando a dupla característica de estarem apartadas (...) e serem plástica e
semanticamente sobredeterminadas pelo simples fato da sua coexistência in praesentia”
(2015, p. 28).
O que deve nos deter aqui não é a ótima definição de quadrinhos que se estabelece
na relação entre as imagens fragmentadas, mas a própria existência de toda essa
fragmentação. Afinal, qual seria o motivo das imagens serem fragmentárias nos
quadrinhos? É essa a pergunta que nos conduz ao segundo importante marco para a
compreensão e consequente diferenciação dos quadrinhos para o livro ilustrado.
Lembremos que a primeira baliza é a relação estreita dos quadrinhos com o fenômeno de
massa, absorvendo deste sua dinâmica frenética, satírica, adulta, contraditória, tornando-se
expressão legítima dessa novidade antropológica. A consequência disso é que a linguagem
que melhor expressa esse mundo de massas recém inaugurado é a do cinema, do
movimento, do plano e contraplano, do zoom-in e do zoom-out, do corte e da transição. O
tempo deixa de ser estático para assumir a incerteza, a efemeridade, a contingência. A
narrativa é construída na impossibilidade de conclusão em uma só imagem, e por isso se
expande de frame em frame, de quadro em quadro. A fragmentação e a multiplicidade de
imagens são, portanto, uma consequência esperada da imanência. Mais do que uma opção
gráfica, são resultado de uma cosmovisão.
Ainda em O Sistema dos Quadrinhos, interessante observar os comentários do autor
a respeito da primazia da imagem sobre a palavra, desmontando de forma habilidosa a ideia
de que a escrita seria um veículo privilegiado da narração, ideia essa advinda, segundo o
autor, de um logocentrismo milenar e da invasão nos anos 60 e 70 de conceitos linguísticos
nas análises de artes visuais, entendendo qualquer tipo de contemplação de uma
representação figurativa como um tipo de leitura, capitulando tudo na simbologia da escrita.
De forma muito clara Groesnteen evidencia que “o predomínio da imagem no cerne do
sistema deve-se ao fato de que a maior parte da produção de sentido ocorre através dela”
(2015, p. 17). Essa conceituação sobre a relação entre escrita e imagem na narrativa é
igualmente válida para os livros ilustrados.
SIMBÓLICO
Publicado na França em 2006, Para Ler o Livro Ilustrado, da francesa Sophie Van
der Linden, constata inicialmente a escassez de publicações especializadas sobre o livro
ilustrado, cujas análises acabam “parciais ou restritas ao campo da didática”11, certamente
por surgirem voltadas para o público infantil. Aliás, cabe mencionar que o pioneiro
Rodolphe Töpffer, já mencionado na origem dos quadrinhos, era pedagogo de profissão, e
entretinha seus alunos com caricaturas, o que corrobora para o entendimento de uma índole
educacional na gênese do livro ilustrado.
Não à toa, muitas publicações da Eva Furnari são, na prática, apoios a livros
didáticos. Títulos como Você Troca?, Assim Assado, Não Confunda, que trazem jogos de
palavras e rimas, Problemas Boborildos e os Problemas da Família Gorgonzola, que
apresentam criativas questões matemáticas, ou o Adivinhe se Puder, com problemas de
lógica e adivinhação, são livros com doses descaradamente pedagógicas. Assim, temos
também a partir desta pesquisadora de livro ilustrado a mesma constatação que obtivemos a
11
LINDEN, Sophie Van der. Para Ler o Livro Ilustrado, São Paulo: Cosac Naify, 2011.
partir de Jean-Bruno Renard, estudioso de quadrinhos: a relação natural entre livro ilustrado
e a educação.
No intuito de delimitar seu objeto de estudo, a Linden elenca diversos tipos de livros
que contenham imagens, fazendo uma breve descrição a partir do objeto livro e sua
organização interna. São citados, além do livro ilustrado e dos quadrinhos, livros com
ilustração, primeiras leituras, livros pop-up, livros-brinquedos, livros interativos, e
imaginativos. Mas atentemos para sua definição dos objetos aos quais nos propusemos a
investigar:
Embora uma imagem fixa não possa representar o tempo, como faz a imagem
animada, ela pode, em contrapartida, sugerir uma evolução temporal para além dos
próprios limites. Se ela extrapolar, mesmo que bem pouco, seu âmbito temporal
estrito, torna possível a apreensão de um instante. Por menor que ele seja, trata-se
de uma duração (LINDEN, 2011, pg. 102).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
LINDEN, Sophie Van der. Para Ler o Livro Ilustrado, São Paulo: Cosac Naify, 2011.