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Entrevistas realizadas,

no início de 1995, por dois


CONVERSANDO
estagiários estrangeiros de
Bonneuil. Abordam-se prin-
cipalmente os temas
seguintes: a singularidade
SOBRE
do dispositivo institucional, 1
a referência à teoria
psicanalítica, os primeiros
BONNEUIL
tempos da escola, o
embate com a adminis-
tração médico-pedagógica, ENTREVISTAS COM
o estatuto dos estagiários e MAUD M A N N O N I , MARIE-JOSÉ
a relação com a família das
crianças. RICHER-LÉRÈS E LITO BENVENUTTI
Mannoni; Bonneuil;
psicanálise.

TALKING ABOUT L e a n d r o de L a j o n q u i è r e
BONNEUIL -
INTERVIEWS WITH
Roberto Scagliola
MANNONI, RICHER-LÉRÈS
AND BENVENUTTI
Two Bonneuil's foreign
trainees performed these
interviews in early 1995. BONNEUIL: PSICANÁLISE E
The main subjects
approached are: the singu-
SAÚDE MENTAL
larity of the institutional ENTREVISTA COM MAUD MANNONI,
scheme, the reference to the
psychoanalytical theory, the REALIZADA EM 0 8 / 0 2 / 9 5
beginnings of the school,
the struggle with the med-
ical-pedagogical adminis-
tration, the status of m várias oportunidades, a senhora afirmou
trainees and the relation-
ship with the children's que Bonneuil é "um lugar para viver) por que, então, a
family. psicanálise para sustentar esse lugar?
Mannoni; Bonneuil; Inicialmente, essa expressão foi utilizada de um mo-
Psychoanalysis do um tanto recorrente. Bonneuil foi fundado em 1969 e,
desde o começo, foi pensado como um lugar à margem
ou na contramão da medicalização própria das institui-
ções hospitalares e, de igual maneira, daquilo que faz o

• M . M a n n o n i , fundadora da École Expérimentale de


Bonneuil-sur-Marne; falecida em 1 5 de março de
1 9 9 8 . M.-J. Richer-Lérès, psicóloga clínica, membro
da equipe de Bonneuil. L. Benvenutti, educador,
membro da equipe de Bonneuil.
• • Professor-doutor do Depto. de filosofia e ciências da
educação da U n i v e r s i d a d e de S ã o Paulo,
i l l Psicólogo clínico do Distretto S a n i t á r i o di Base n. 3 ,
M a i o (Itália). Ex-docente da U n i v e r s i d a d N a c i o n a l de
R o s á r i o (Argentina).
sistema nacional de educação (/'Educa- tar aos exames finais para a obtenção
tion nationale ^ ) , isto é, do enquadra- do diploma, caso ele atingisse no final
mento de crianças psicóticas, débeis, do curso uma média geral de pelo me-
e t c , em um sistema especial de edu- nos 15/20. De fato, a criança acabou
cação com o objetivo de lhes ensinar obtendo essa média mas, nesse mo-
determinados conteúdos curriculares. O mento, surgiu uma nova complicação:
que sempre me interessou foi a intro- agora era o próprio pai quem queria
dução de uma forma um tanto marginal matriculá-la em um curso técnico de
de funcionar e, mais ainda, de mantê-lo, marcenaria. Assim foi que, quando sou-
apesar de sermos reconhecidos depois bemos do acontecido, no mês de agos-
pelo sistema público de assistência to, nós nos mobilizamos novamente,
social.3 Essa maneira marginal foi cha- entrando em contato com um padre
mada posteriormente de instituição bretão amigo, a quem solicitamos ajuda
estilhaçada (institution éclatée^). para colocar a criança em uma escola
Assim, damos importância à escu- de padres onde, ao mesmo tempo em
ta do desejo do sujeito. Algumas curas que a eximissem dos estudos religiosos,
espetaculares devem-se ao fato de se ter ela pudesse se preparar para os exames
podido escutar a rejeição da própria finais. Paralelamente, e com o acordo
instituição. Por exemplo, uma vez acha- da família acolhedora (famille d'ac-
mos um lugar para uma criança na Bre- cueil), apresentamos no colégio uma
tanha, onde havia umas cem vacas e, a documentação falsa — é dessa maneira
partir de sua paixão por elas, conseguiu que as coisas caminham na França! —
retomar seus estudos de primeiro grau. que dizia precisamente que essa criança
Aquilo que sustentava essa criança, era o único herdeiro, por parte de um
considerada psicótica, era a idéia de primo longínquo, da chácara; dessa for-
herdar algum dia a propriedade, pois a ma, ele estaria em condições legais de
dona da chácara tinha lhe dito que, se se apresentar aos exames e, assim, po-
conseguisse o Diploma de exploração der obter o registro agrícola que lhe
agrícola,^ poderia, com um dos filhos permitisse trabalhar no campo.
dela, continuar com a exploração. Des- Pois bem, quando as coisas pare-
sa forma, ele não trabalhava mais que ciam se encaminhar novamente, aconte-
pela vontade de poder passar a sua vida ceu o seguinte: no exame oral, a criança
junto às vacas. Pois bem, nessa oportu- tirou uma pergunta relativa às vacas e,
nidade tivemos que fazer frente à Edu- como essa mesma pergunta tinha sido
cation nationale. tirada no sorteio de pontos pelo aluno
Aconteceu que çssa criança fre- anterior, o professor decidiu pedir-lhe
qüentou a escola normalmente até a que falasse a respeito da criação de por-
terceira série, momento a partir do qual cos. A pergunta era-lhe conhecida mas
suas notas caíram espetacularmente até o fato de que o professor tivesse muda-
chegar a uma média de 7/20.^ Quando do o assunto foi vivido pela criança
fomos vê-la, disse-nos que não valia como uma injustiça e, por outra parte, o
mais a pena continuar estudando já fato de ter que falar sobre porcos foi
que, não sendo filho de um proprietário sentido como uma espécie de ferida
agrícola, não tinha o direito de obter o narcisística. Assim foi como este meni-
título de exploração. Perante esta situa- no se negou a responder, tirando zero.
ção, persuadimos o diretor do colégio No entanto, como todos ficaram cons-
para que abrisse a possibilidade e, por- ternados, pois ele tinha se tornado um
tanto, a esperança de poder se apresen- bom aluno, interviemos novamente so-
licitando um outro exame, em que foi aprovado. Moral da história:
o trabalho de Bonneuil é basicamente esse. Ou, em outras palavras,
digamos que a escuta analítica sustentada em Bonneuil, produto da
transformação produzida pela psicanálise nos membros do grupo,
é uma subversão do discurso médico-pedagógico.

Bonneuil se apresenta publicamente como uma escola experi-


mental e, no entanto, depende do Sistema de Saúde. Não parece
uma contradição?
Bonneuil é, oficialmente, uma escola com hospital-dia, e lar
terapêutico à noite. No entanto, sobre a porta de acesso colocamos
somente escola experimental, para que as crianças tivessem como
significante o de escola e não o de um lugar de doentes. Mais ainda,
pode-se dizer que Bonneuil não depende só do Ministério da
Saúde. Na verdade, nós temos duas inspeções: por um lado, a área
de saúde e, por outro, a de educação; pois os dois professores que
trabalham em Bonneuil são funcionários do Ministério da Educação.

No entanto, continua chamando a atenção essa coexistência,


em Bonneuil, de educação e saúde mental. Talvez algo da saúde
passe pela educação? Como a senhora definiria essa educação?
Tenho definido a educação precisamente nas antípodas do Dr.
Schreber. Por isso, nós não realizamos uma reeducação forçada; em
vez disso, damos a maior importância ao fato de pôr ao alcance,
inclusive daqueles mais comprometidos, uma ferramenta de traba-
lho. A ênfase que nós pomos no escolar é maior da que se põe em
qualquer outro hospital-dia, onde a dimensão educacional está
apagada. Desta maneira, em Bonneuil nos preocupamos para que
as crianças possam ser aprovadas nos exames oficiais. Explica-se às
crianças que, para poder escapar da exclusão e encontrar um tra-
balho em que se possa ganhar mais que um salário mínimo, pre-
cisam de um diploma. Assim, podem se tornar trabalhadores e
mestres-artesãos com a sua cota de loucura. Nesse sentido, e como
dizia Winnicott, o único que pedimos às crianças é que, na vida,
façam semblante de serem normais.

Nestes diasj e referindo-se, em geral, aos avatarespróprios da


transmissão da psicanálise e, em particular, à dissolução do CFRP^,
a senhora falou em psicanalistas-filósofos e psicanalistas hospitala-
res. Em que medida os 25 anos de Bonneuil iluminam esse desen-
contro no seio da transmissão do saberpsicanalitico?
Digamos que cada um deles mantém posições diferentes. É
essa, justamente, a diferença que está na origem da cisão produzi-
da no interior do CFRP. Assim, temos os filósofos universitários que
tentam manter a psicanálise em uma dimensão de saber teórico
sem nenhuma prática ou, quando muito, no âmbito do consultório.
Evidentemente, não são de maneira alguma interpelados pelos
mesmos problemas que os hospitalares.
Poderíamos dizer, talvez, que os 25 em uma perspectiva etnográfica, isto é,
anos de Bonneuil estão nos indicando eram considerados franceses um tanto
que também algo do próprio estatuto da mal-educados e não psicóticos, já que
psicanálise está em jogo nos avatares da na França os pais não sabem educar
educação, da arte, enfim, da vida coti- seus filhos!
diana?
Sem dúvida. É na vida onde se es- Recentemente, em sua conferência
cuta o desejo do sujeito ou, em outras La machine bloquée: structures de
palavras, aquilo que o ativa no que diz soin,10 por ocasião da jornada de estu-
respeito a uma palavra própria. do de L'espace analytique, ^ a senhora
aludia a uma saúde pública de duas
No interior de Bonneuil existe um velocidades. Qual seria a posição de
cruzamento de culturas e línguas, tra- Bonneuil?
ta-se de um efeito buscado em virtude Nós não aceitamos de maneira al-
da problemática das crianças? guma o estado de deterioração da saú-
A lição que podemos tirar de um de pública. Foi, na verdade, o Dr. Jac-
livro de Louis Wolfson, intitulado O ques Defié, professor do College de
esquizofrênico e as línguas? é que para France, quem, analisando o estado
um sujeito considerado esquizofrênico e atual da saúde pública, chamou-a uma
aprisionado em sua língua materna, é saúde pública de duas velocidades.
importante poder descobrir-se diferente Cada vez mais, corremos o risco de ori-
em outra língua. A passagem de línguas entar tudo o que concerne à saúde
em Bonneuil (em certos momentos, tive- mental para o "social", para, no fim,
mos "laboratórios" de línguas bastante produzir uma denegação da doença
vivos) permitiu que determinadas crian- mental que agora, não por acaso, é
ças escapassem do terror da língua ma- chamada "deficiência mental".
terna e habitassem em outra língua com Atualmente não sabemos o que
uma menor sensação de perigo. nos reserva o futuro e, evidentemente,
Bonneuil não tem nenhuma solução
Pareceria também que esse cruza- para dar. Nós só podemos manter uma
mento de línguas é inerente ao caráter posição de rejeição frente a toda políti-
"estilhaçado" da instituição. ca de desmantelamento da saúde públi-
Com efeito, até uma certa época ca; que, diga-se de passagem, essa
trabalhamos muito com o exterior, política iniciou-se nos anos 70 e se ori-
especialmente com a Inglaterra, Alema- ginou nas diretrizes americanas à
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nha e Itália. Houve crianças que não O C D E . Os países nórdicos foram os
adquiriam a palavra em francês e termi- primeiros, nesse contexto, a pagarem o
naram por fazê-lo em outra língua. Um preço dos novos tempos. Eles eram os
aspecto interessante desta abertura ao melhor equipados em pequenos lugares
exterior é, por assim dizer, o benefício de acolhimento (lieu d'accueil) de até
etnográfico. Por exemplo, no caso da dez crianças em dificuldades, e apli-
Inglaterra, como a psicanálise não im- caram as diretrizes chamadas de não-
pregnou o meio intelectual geral, é pos- segregação a partir do modelo italiano.
sível que a criança não seja descrita em Na minha opinião, isto é totalmente ilu-
termos clínicos. Assim, quando enviáva- sório pois, como na Itália não há atual-
mos alguém a alguma das escolas co- mente nada, é um pouco difícil tomar
muns recomendadas por Winnicott, a como modelo o inexistente! Mais ainda,
criança ou o adolescente eram vistos a essa obrigação de colocar na escola as
crianças em dificuldades, soma-se a anos, coincidentemente com a idade
descentralização da saúde pública. Des- oficial dos estudos de segundo grau.
ta maneira, a situação acaba se tornan- Depois, obtivemos um decreto ministe-
do catastrófica, como os próprios país- rial de Jacques Barot, autorizando o
es nórdicos puderam constatá-lo. serviço de seguimento (service de suite)
A política de descentralização da para jovens entre 18 e 25 anos. Preci-
saúde que quer se aplicar na atualidade samente, foi graças a essa autorização
na França é particularmente desastrosa, que, na década de 80, conseguimos pôr
já que, por um lado, condena as regiões em prática toda uma rede de acolhi-
pobres a serem cada vez mais pobres e, mento (réseau d'accueil) no interior,
por outro lado, dá lugar, nas regiões que nos permitiu "dar tempo ao tempo"
mais ricas, ao surgimento de instituições àqueles que, aos 18 anos, ainda estão
privadas e ao desvio dos recursos públi- em dificuldades.
cos para fins eleitorais. Atualmente, enfrentamos outro
problema: o daqueles jovens que che-
Voltando a essa mudança de no- garam aos 25 e que, muito provavel-
menclatura — deficiência mental por mente, a sociedade deverá tê-los a seu
doença mental —, poderia se dizer que cargo durante a vida toda. Obviamente,
é a outra cara da política de desmante- não podemos fazer milagres com os
lamento financeiro, na medida em que retardos profundos, com algumas for-
seria um efeito do ideário empirista mas de autismo, etc. Para eles, encon-
norte-americano de homologar todos os tramos lugares de acolhimento no inte-
deficits ou condições subjetivas? rior, mais ainda, no interior pobre, onde
Com certeza. Estou totalmente de podem participar da criação de animais
acordo. Mais ainda, cabe citar os efeitos ou do trabalho com artesãos, segundo
catastróficos da classificação DSM 3 e suas possibilidades. Desta maneira, ten-
DSM 4, isto é, de toda a nosografia, por tamos dar uma qualidade de vida ex-
signos e sintomas que nada têm a ver cepcional a quem, em geral, está reser-
com a clínica. Nesse sentido, podería- vado o hospício.
mos dizer que a psiquiatria francesa é a Assim, nosso desafio hoje é possi-
melhor do mundo já que, graças ao bilitar que os jovens de 25 anos possam
DSM 4, faz desaparecer a histeria, a se beneficiar dessa espécie de susten-
neurose obsessiva, a esquizofrenia. tação mínima (prise en charge legère).
Desta forma, a situação resulta vanta- Como pode se ver, a única coisa que
josa para as empresas seguradoras. Bonneuil faz é manter vivo um circuito
transferenciai entre as famílias de aco-
Porque desapareceria o sujeito, lhimento, os artesãos e a família de
não? origem.
Exatamente. O ministro Bernard Kouchainer
autorizou, em março de 1994, através
Desde a origem de Bonneuil há de um decreto ministerial, o funciona-
um limite de idade para os jovens. O mento desse serviço de seguimento a
que acontece, então, com aqueles que, partir dos 25 anos de idade. No entan-
chegados a esse limite, ainda não são to, é bom ressaltar que esse decreto
autônomos em seu cotidiano? ainda não foi posto em prática, pois a
Esse problema se apresentou a burocracia administrativa se opõe aber-
nós em dois momentos diferentes. No tamente.
começo, o limite de idade era de 18 Se, enfim, esse decreto fosse posto
em prática, significaria que as famílias cedê-lo. Pois bem, no decreto ministeri-
acolhedoras seriam pagas pela adminis- al da saúde que o Dr. Kouchainer assi-
tração? nou recentemente, prevê-se a conces-
Seriam. Mais ainda, é bom ressaltar são de um novo lieu de repli, localizado
que esse mecanismo não resulta mais na região da Borgonha.
custoso que o pagamento, pelo Estado
francês, da clássica pensão por invali- Qual foi o motivo pelo qual as pes-
dez às famílias de origem. Habitualmen- soas da equipe não quiseram mais ir a
te, acontece que os pais, quando che- essa casa na Normandia?
gam à aposentadoria, perguntam-se Os adultos que costumavam tam-
insistentemente sobre o futuro de seus bém ir nos finais de semana com algu-
filhos e, sem perceber, não poucas ve- mas crianças manifestaram seu desacor-
zes, acabam tomando o pior caminho. do por causa de um problema de trân-
Por exemplo, certa vez, uma jovem es- sito nas estradas regionais; houve uma
quizofrênica, que tinha conseguido crise institucional e, portanto, desativa-
administrar seu dinheiro, morava em mos esse lugar. Preferiram passar os
uma casa cedida pelas pessoas do po- finais de semana nos lieu d'accueil que
voado em contrapartida à fabricação de a escola possui em alguns H L M ^ da
queijo de cabra. Ela tinha feito amizade região. Que se há de fazer! Não se pode
com integrantes da colônia holandesa fazer funcionar um lugar quando nin-
do lugar. Foi tirada por seus pais e, 15 guém quer ir.
dias depois, colocada em um hospital
psiquiátrico. Em relação a isso que a senhora
acaba de dizer, gostaria de comentar-
Qual é a atitude de Bonneuil lhe que, não poucas vezes, quando con-
quando um jovem, tendo deixado a es- versamos com colegas que trabalham
cola e entrado no circuito "normal", em instituições de saúde ou educativas,
atravessa repentinamente uma crise digamos, mais ou menos tradicionais,
mais ou menos grave? somos interpelados da seguinte manei-
Nessas situações procedemos com ra: enfim, nós temos também ateliês e
uma nova acolhida naquilo que chama- desenvolvemos algumas atividades se-
mos um lugar de retiro (lieu de repli). melhantes às de Bonneuil, então, qual é
Atualmente, não temos mais essa possi- a diferença? Em geral, esboçamos a se-
bilidade, pois para tal fim nos valíamos guinte resposta: em Bonneuil tenta se
de uma casa de campo na Normandia, fazer o que queremos convivendo com
que nos tinha sido doada, mas que outros, ã diferença das instituições clás-
acabamos cedendo a outra instituição. sicas, em que imperam regulamentos
Era um lugar maravilhoso, perto de um graças aos quais tenta se prever, com
bosque e a poucos quilômetros do mar. maior ou menor precisão, o que deve ser
Nessa casa houve jovens que chegaram feito em cada situação e momento. Qual
a passar um ou dois anos com alguns é a opinião da senhora a este respeito?
membros da equipe, antes de poder Concordo. No entanto, é bom
retomar o circuito normal de vida. No aclarar, para não pecar por ingenui-
entanto, acontece que, em um momen- dade, que as limitações também exis-
to determinado, a equipe não quis mais tem em Bonneuil. Digamos que aquilo
ir àquele lugar que, diga-se de pas- que nos une é um desejo de participar
sagem, pessoalmente me agradava mui- em uma experiência singular.
tíssimo. E, portanto, acabamos por Sim, obviamente. No entanto,
poderia, talvez, se dizer que as limitações estariam dadas pelo fato
de "fazer junto a outros" que, diga-se de passagem, não é nada
fácil, não?
É bom esclarecer que Bonneuil também não é aquilo que se
costuma chamar "uma instituição democrática", no sentido de "todo
mundo junto". É, em última instância, meu desejo, sustentado no
decorrer dos anos, o que determina que se aceite ou não uma ori-
entação. Mais ainda, diria que não acredito na democracia no inte-
rior das instituições de saúde, já que, em geral, são sustentadas a
despeito dos pacientes e da defesa de certas idéias. Neste sentido,
não colocaria Bonneuil como modelo de instituição e sim apenas
como um lugar ou exercício de interrogação das instituições exis-
tentes; algo que exige, obviamente, uma reformulação própria.

Neste sentido, poderíamos dizer, talvez, que Bonneuil não


pode ser tomado como "um modelo a ser aplicado", posto que está
precisamente sustentado por um desejo chamado Maud Mannoni?
Exatamente.

BONNEUIL: UM ESTILO
DE SE AVENTURAR NO DESEJO
ENTREVISTA COM MARIE-JOSÉ RICHER-LÉRÈS,
REALIZADA EM 0 3 / 0 2 / 9 5

Você participa da experiência de Bonneuil desde o início?


Nos anos 68, 69, quando era estudante de psicologia na uni-
versidade de Nanterre, li o livro de Mannoni A primeira entrevista
com o psicanalista)-^ Destacava-se dos outros textos que tínhamos
de ler na faculdade. Achei-o comovente!
Após a leitura, fiquei interessada em conhecer Mannoni.
Encontrei uma pessoa que a conhecia e foi assim que acabei por
conhecê-la, quando estava, precisamente, fundando com Robert
Lefort a École de Bonneuil, Num primeiro momento, não estava
interessada em fazer um estágio, mas apenas em conversar com ela
sobre o livro. Aí ela me convida a participar da experiência e como,
por outro lado, eu conhecia um aluno de Fedida que já estava
engajado na empreitada acabei formando parte do grupo a partir
de janeiro de 1970. A escola tinha sido criada em setembro do ano
anterior. Assim, foi dessa maneira que ainda estudante me deparei
com esse grande projeto de trabalho que tanto me interpelava.
Cabe lembrar que vivíamos o pós-maio de 68 e eu estava inserida
nesse fórum de interrogação sobre a loucura, de alternativa à
psiquiatria, que teve lugar naquela época. Freqüentava também a
École Freudienne.
Obviamente, nesse contexto, não interessados em desenvolver de forma
hesitei um segundo em fazer um estágio concreta esse tipo de questões, que ca-
em Bonneuil por mim mesma, isto é, da um se colocava em níveis diferentes.
sem obedecer a nenhuma exigência Assim, alguma outra pessoa podia não
acadêmica da faculdade de psicologia ter os mesmos questionamentos que eu
de Nanterre. Por um lado, já tinha feito me colocava a partir da leitura que
um dos estágios requeridos num centro tinha feito do livro de Mannoni. Cada
médico-psicopedagógico e, por outro, o um vinha a partir de sua própria expe-
estágio clínico deveria fazê-lo no ano riência de forma tal que podia haver o
seguinte. grupo de estudantes de Fedida mas
Logo no início, fui tomada por também gente que, por exemplo, como
essa aventura. Estava totalmente com- eu, chegava individualmente.
prometida com o projeto. Escrevi muito
sobre minha experiência pessoal, pen- Essa situação, ou seja, a natureza
sando, inclusive, que esse material e qualidade dos voluntários mudou com
talvez pudesse vir a ser recuperado o tempo?
mais tarde quando da finalização dos Para lhe responder seria necessá-
estudos universitários. No início, havia rio recuperar a história de Bonneuil,
uma dezena de adultos e outro tanto de fragmento por fragmento...
crianças.
Talvez fosse possível identificar
Quando você diz adultos está se períodos?
referindo aos estagiários? Sim. Primeiro, teríamos aquele
Em certo sentido, nessa época só mais importante, o da criação de Bon-
havia estagiários. Havia também um neuil. Poderíamos falar de quatro ou
casal de educadores com os quais cinco anos durante os quais foram pen-
Mannoni havia de fato tido a idéia da sados os primeiros conceitos, aquilo
fundação... que se colocava em prática e se recu-
perava depois na reflexão. Aquele foi
Os Guerin? um tempo totalmente diferente dos ou-
Sim, Rose-Marie e Ives Guerin tros posteriores. Foi o tempo da cons-
foram os que encontraram a casa em trução da experiência, o tempo fun-
Bonneuil-sur-Marne. dador. À continuação temos o tempo
dedicado à obtenção do reconhecimen-
Você disse que chegou a Bonneuil to desse trabalho, da pertinência de
tomada por um espírito de aventura. Os Bonneuil no contexto da política em
outros estudantes voluntários também saúde mental. Foram cinco anos de
chegaram imbuídos de ares semelhantes? grande militância para fazer reconhecer
Cada um chegava por questões o trabalho, para colocá-lo sobre o pa-
pessoais, isto é, cada um tinha motivos pel, articulá-lo, bem como definir a ori-
diferentes dos outros. Pierre Fedida ha- entação. Isto é, tratava-se de colocar a
via falado com seus estudantes sobre o experiência nos trilhos. Quando falo de
projeto de Bonneuil. Então, os estudan- reconhecimento, penso naquele opera-
tes que se interrogavam sobre o proble- do pelas autoridades sanitárias públicas,
ma da segregação, o aspecto sociológi- mas também pelo meio psicanalítico.
co e o psicanalítico da loucura, se lan- Assim, teríamos um primeiro tem-
çaram na prática a partir daquilo que po de invenção e conceituação, um se-
interessava a cada um. Estávamos todos gundo de obtenção de reconhecimento
e do financiamento. Cabe lembrar que Como vimos, no início havia pou-
para tal fim nos valíamos de todos os cos estagiários. Éramos em certo senti-
meios de luta, de questionamento. Foi do estagiários de uma aventura que
através da imprensa, dos textos de Man- podia acabar na virada do ano. Podía-
noni, dos filmes r o d a d o s ^ nessa mos fechar a qualquer momento, sobre-
época, que Bonneuil ganhou existência vivíamos de um ano para outro. Havia
pública. também todo esse lado militante para
Depois temos o tempo do olhar que a experiência fosse reconhecida.
do exterior que vinha nos conhecer, Nesse tempo intermediário, de transi-
nos controlar. Ele acabou introduzindo, ção, não havia os estagiários que há ho-
impondo, uma série de coisas. Faz as je em dia. Entretanto, sempre houve
vezes de um olhar terceiro em nosso pessoas novas que passavam conosco
trabalho, em nosso pensamento. Aqui uma ou três semanas e que depois iam
assistimos a uma mudança na natureza embora. Depois se dá verdadeiramente
dos estagiários. No início todos éramos a oferta institucional de um lugar aber-
estagiários. Entretanto, após o reconhe- to para esse olhar novo, de fora.
cimento administrativo, as pessoas que A instituição é reconhecida da for-
participaram da experiência desde o iní- ma como desejávamos, isto é, com seu
cio e que ainda permaneciam — pois estatuto original, sua natureza de escola
houve pessoas que apenas passaram experimental, e não conforme os crité-
um tempo — foram reconhecidas pelo rios da administração governamental
trabalho passado e portanto começaram para os hospitais-dia. Deu-se valor ao
a ser pagas pelo Estado. Por sinal, cabe que tínhamos feito até então. A partir
assinalar que não desejamos funcionar disso é que deixamos uma fenda de
sob a modalidade do voluntariado. Nos passagem para as pessoas que queriam
primeiros tempos de Bonneuil, recor- vir formar-se ou deformar-se de uma
ríamos todos os anos ao mecenato. Na prática muito restritiva e especializada.
época do voluntariado, não podíamos Isso nos reenvia novamente à categoria
vir mais do que meio dia ou um dia por de estagiários. Os de hoje se fazem eco
semana de nosso tempo pessoal para dos estagiários fundadores. Os estagiá-
fazer funcionar a instituição. Entretanto, rios são aqueles que, vindo de fora,
quando do credenciamento, fizemos trazem esse olhar desinstitucionalizador
questão de manter esse esquema de da loucura, o olhar de uma outra cul-
tempo e trabalho que vínhamos tendo, tura, do exterior. Por isso os estagiários
ou seja, esse esquema sempre aberto às conformam uma categoria sempre mui-
pessoas do exterior que estivessem to festejada, muito bem considerada por
fazendo uma formação qualquer, pois Mannoni e pelos antigos. Eles trazem de
trazem sempre coisas novas por oposi- novo alguma coisa da ordem da aven-
ção aos que permanecem mais tempo tura de outrora, embora seja uma aven-
na instituição como era, por exemplo, o tura menos "perigosa" que aquela vivi-
caso do casal Guerin, que passava lá a da pelos primeiros. Mas são eles que
semana toda. Então, colocou-se a portam um olhar interrogante das coisas
questão de deixar aberta a possibilidade que foram se instituindo no tempo.
para toda pessoa que desejasse vir, por
diversas razões, fazer um estágio conos- Você utilizou uma expressão que
co. Nesse sentido, deveríamos dizer que me parece particularmente interessante,
é nessa oportunidade que surge uma estagiários de uma aventura. Por outra
nova geração de estagiários. parte, temos visto que hoje em dia mui-
tas pessoas fazem estágio em Bonneuil pliquei-lhe que estavam tendo uma
porque isso faz parte da formação uni- experiência muito rica, que freqüentava
versitária delas. Encontramos pedago- também a École Freudienne, os semi-
gos, psicólogos, enfermeiros... Então, até nários de Lacan, falei de Mannoni. Ar-
que ponto nos estagiários de hoje ecoa gumentei também que havia professo-
aquele espírito de aventura das origens ? res de outras universidades ligados à
Tratar-se-ia, talvez, de aventuras dife- experiência de Bonneuil, porém ele não
rentes? aceitou e continuou insistindo que não
Tem gente que vem porque se se tratava de uma instituição reconheci-
sente singularmente interpelada pela da para estágio. Bom... Em suma, tive
experiência de Bonneuil. Aliás, foi o ca- de ir fazer meu estagio clínico durante
so de vocês, como também de tantos as férias de julho e agosto no hospital
outros onde a vinda a Bonneuil não se psiquiátrico de Villejuif (periferia sul de
encaixa dentro de um currículo univer- Paris). Entretanto, acabou se revelando
sitário. Também vem gente porque está uma experiência interessante, pois lá
de fato cansada daquilo que faz ou que tive a oportunidade de ver as coisas do
observa fazer a outros e que não corres- outro lado e assim fazer um contrapon-
ponde àquilo que pensa que deve ser o to com aquilo que estávamos desenvol-
acompanhamento de uma criança psi- vendo em Bonneuil.
cótica. Assim, há um contingente de es- Assinalo esse fato para mostrar
tagiários que vem de estabelecimentos como há uma diferença grande entre os
de formação de educadores especializa- assim chamados, por mim, de estagiá-
dos ou das faculdades de psicologia, rios da aventura ou do risco e os que
mas também há gente que chega por começaram a vir após o reconhecimen-
conta de um processo totalmente pes- to público da instituição. Agora, ao con-
soal de interrogação e formação. No en- trário, são os próprios professores da
tanto, cabe observar que, mesmo aque- universidade que dão a possibilidade
les que vêm por conta da formação uni- de escolher Bonneuil como um lugar de
versitária de base, não são obrigados a estágio.
escolher Bonneuil. Os alunos escolhem
dentro de uma lista extensa de estabe- Qual era a relação desses estag-
lecimentos. Não se diz aonde devem ir. iários dosprimórdios com a psicanálise?
Assim sendo, eles também chegam, até Todos tínhamos um pé no domí-
certo ponto, porque há alguma razão nio da psicanálise. Entretanto, não ha-
ou uma ponte com a instituição, por via nada do tipo: só podem freqüentar
exemplo, ouviram falar de longe ou Bonneuil aqueles que estejam em
leram alguma coisa relativa a Bonneuil. análise. Nào havia a obrigação ou, por
Quando falo de estagiários da a- exemplo, o contrato de iniciar uma aná-
ventura não estou me referindo a uma lise pelo fato de incorporar-se ao traba-
categoria institucional... lho em Bonneuil. Com Mannoni man-
Gostaria de voltar ao início. Em tínhamos reuniões de trabalho e estudo
Nanterre, apresentei meu trabalho final duas vezes por semana. Tratava-se de
de curso sobre a experiência clínica que passar a limpo aquilo que fazíamos e
tinha tido em Bonneuil. Aí o professor queríamos fazer. Alguns podiam, assim,
disse que Bonneuil não estava na lista decidir-se a iniciar um trabalho analítico
de lugares para estágio propostos pela se não o tivesse feito antes ou se ele
universidade e que portanto não podia não estivesse já em curso. Foi assim pa-
aceitar meu trabalho. Obviamente, ex- ra todos aqueles que estávamos desde o
início. É claro, sempre há exceções. que Mannoni nunca nos analisou nem
Havia pessoas que se dedicavam à mar- nos endereçou, em certo sentido, inter-
cenaria, que não participavam do meio pretações pessoais.
típico da reflexão "psi", que não faziam A análise ocorre sobre o diva com
parte do meio universitário e que ape- um analista que, por sua vez, pode nâo
nas queriam lançar-se à aventura com ter nada a ver com a experiência insti-
crianças em dificuldade extrema porque tucional. Mais ainda, pensamos que a
haviam refletido sobre a questão da análise não é uma obrigação institucio-
segregação social. Havia gente que não nal, mas alguma coisa que faz parte do
vinha da psicanálise, mas que acabou processo de interrogação ou questiona-
entrando, aproximando-se cada vez mento pessoal, isto é, de cada um de
mais dela devido à participação na nós, e que tanto melhor se tal coisa é
experiência de Bonneuil. motivada, em parte, pelo trabalho de-
senvolvido junto às crianças enlou-
Voltando à relação dos estagiários quecidas. Quando fazemos o balanço,
com a psicanálise. Você disse que agora percebemos efetivamente que, para
há professores que incluem Bonneuil na poder trabalhar neste campo e, mais
lista de lugares para estágio univer- ainda, se queremos ir um pouco mais
sitário. Então, qual é a quantidade de longe na reflexão, na interrogação à
estagiários que possuem como referên- qual nos leva a criança psicótica, ter fei-
cia a psicanálise? to uma análise revela-se uma coisa be-
A situação não mudou muito. No néfica. Uma análise pode nos levar mais
início éramos dez e nos conhecíamos longe na interrogação sobre por que
todos muito bem. Hoje já somos muitos trabalhamos com essas crianças. Em su-
e Bonneuil se converteu numa grande ma, é a partir de uma atitude clínica, do
instituição. Por outra parte, caberia assi- encontro com a criança, que uns e ou-
nalar que a psicanálise nunca interveio tros podem ser levados a procurar uma
no interior de Bonneuil como se a insti- análise.
tuição fosse um grande diva onde todo
mundo se analisa ou não fala de outra Dentre os estagiários pioneiros
coisa que de sua própria análise. De havia desde poetas a marceneiros. E
maneira alguma! Naquela época, man- agora?
tivemos expressamente distância da psi- Por um lado, cabe observar que a
coterapia e da análise institucional. Aos função desenvolvida por ambos os ti-
poucos fora se perfilando a idéia, críti- pos de estagiários nâo é a mesma. An-
ca, a respeito de algumas correntes. tes, quando chegamos, tinha-se de criar
Pensávamos que Bonneuil não devia tudo, realizar um trabalho de reflexão e
ser um lugar de "psicanálise para to- elaboração junto a Mannoni e a Robert
dos". Assim, efetivamente, recentramos Lefort. Havia uma clareagemS^
e recolocamos o lugar do processo psi- psicanalítica (éclairage
canalítico pessoal como alguma coisa psychanalytique) de nossos questiona-
que faz parte da intimidade das pes- mentos. A partir das coisas colocadas
soas, da vida privada. Ou seja, o proble- pelo trabalho com as crianças, as difi-
ma dito da cura da pessoa se coloca culdades, nos endereçavam para a
fora da instituição. Entretanto, pode problemática da sublimação, da violên-
haver algo da ordem da chamada aná- cia... Nossa posição como estagiários,
lise institucional, mas nunca no sentido nossa função era fazer funcionar a insti-
psicoterápico grupai. Poder-se-ia dizer tuição já que nos estávamos, de fato,
fort eram uma referência. Éramos muito sucedem da mesma maneira que nos
acompanhados em nossas dificuldades hospitais, ou como se faz crer nos cur-
na reflexão, mas nunca o fomos em sos de enfermagem ou de pedagogia.
campo, ou seja, no dia-a-dia. Devíamos No caso, ocorre uma especial subversão
inventar o "estilo de vida". do saber motivada pela inserção no
Os estagiários atuais, embora seja estágio. Nesse aspecto podemos falar
sempre considerada em Bonneuil a de certo paralelismo com a primeira
disponibilidade deles, a invenção no situação. Porém, essa subversão não se
encontro com uma criança, encontram inscreve na mesma estrutura, nem com
um enquadre que já está lá. Por exem- a mesma finalidade, porque a finalidade
plo, os ateliês são encontrados em fun- é conseguir uma formação que será
cionamento. Assim, a criação está des- aproveitada por cada um. Entretanto,
locada, não está mais aí onde nós a no nosso caso, tratava-se de criar algu-
colocávamos, que era viver em conjun- ma coisa radicalmente nova.
to apesar de tudo, conseguir que esse
grupo de crianças conseguisse viver Pois bem, boje a passagem por
sem matar-se, sem bater-se. Antes, trata- Bonneuil reporta aos estagiários algu-
va-se de dar uma estrutura para a vida ma coisa no processo de formação.
cotidiana. É nesse sentido preciso que Porém, o que resta dessa passagem para
falo de estagiários da aventura. Fomos a própria instituição, uma vez que
os pioneiros, os fundadores, criativos às foram aqueles estagiários da aventura
vezes, desesperados outras. os que fizeram Bonneuil?
Entretanto, hoje em dia, os esta- O que resta?
giários se beneficiam da estrutura e dos
conceitos definidos ao longo dos anos Sim, uma vez que você disse que
da história de Bonneuil. A criação sus- foram os pioneiros que fizeram Bonne-
tentada por eles — por exemplo, a uil.
música num ateliê — insere-se num Em meu caso, continuo a inventar
enquadre, num dispositivo, que já está ateliês. Continuo como antes minha
em funcionamento. reflexão e questionamento, aumentada
Em suma, trata-se de uma mesma nos 25 anos de trabalho, que sempre
função que não está de fato ao mesmo me leva mais longe na maneira de tra-
nível que outrora. Atualmente, exceção balhar e entender as coisas. O lado cria-
feita aos que vêm individualmente a tivo e inventivo existe sempre.
partir de um trajeto pessoal, os estagiá- Já a contribuição dos estagiários é
rios vêm para formar-se. A diferença variável, varia de um para outro. Alguns
está lá. Quando chegamos se tratava de vêm um ano e por diferentes razões se
deformar-se de tudo aquilo que havía- aproximam cada vez mais até que aca-
mos aprendido em psicologia sobre o bam ficando para trabalhar perma-
tratamento da psicose, da debilidade nentemente. Ao contrário, há outros
mental, das crianças em dificuldade. que ficam apenas um tempo curto, mas
Tratava-se de tentar esquecer tudo aqui- que enriquecem a vivência cultural e
lo que faz as vezes de muralha defensi- institucional na escola, pontuam seu
va no encontro com uma criança. Não olhar com sua crítica do funcionamento
é, necessariamente, o caso, hoje em dia, do cotidiano em Bonneuil. Mesmo
daquele que vem para formar-se. Na tendo permanecido pouco, alguma
formação que seguem em Bonneuil marca é depois recuperada. Mais ainda,
aprendem de fato que as coisas lá não há um outro lado importante que tem a
ver com a fabricação de um tempo com Quando dizemos que passamos
as crianças que tem efeitos na vida um tempo em Bonneuil ocorre o se-
delas, mesmo se o estagiário vai embo- guinte. Não poucas vezes nos fazem
ra pouco tempo depois, porque houve perguntas acerca dos métodos utiliza-
um encontro excepcional, singular. dos, das novidades em matéria de mé-
todos de ensino especializado. Arrisco-
Poderíamos dizer em poucas me, pessoalmente, a dizer que o segre-
palavras que os estagiários são sempre do não reside nas atividades que, por
essenciais ao dispositivo institucional de sinal, são iguais em todo lugar, mas no
Bonneuil à diferença das instituições compromisso coletivo a se questionar
clássicas? sempre sobre a mesmíssima dialética
Certamente, isso coloca precisa- instituinte/instituído. Entretanto, qual
mente o problema da perenidade das seria, segundo sua opinião, o traço dis-
instituições. Uma instituição não é mor- tintivo de Bonneuil no trabalho com as
tal e portanto as coisas se fixam no seu crianças?
interior a um ponto tal que isso torna- Em poucas palavras, podemos di-
se simplesmente mortífero. Entretanto, zer que se trata simplesmente daquilo
quando pode se abrir efetivamente na que acontece quando vamos a um
vida institucional uma passagem para o restaurante e nos deparamos com a es-
exterior é a vida que entra na institui- colha entre o menu (la formule) e o
ção. Isso contribui a desalojar os fun- cardápio (la carte). O menu possui pra-
cionamentos que sempre tendem a se tos diferentes, uma entrada, um prato
institucionalizar. Por sinal, cabe ressaltar principal, e t c , por um preço fixo de an-
que mesmo nos primeiros anos da vida temão. Como sabemos, os pratos do
de Bonneuil estivemos atentos ao pro- menu integram também o cardápio. En-
blema da institucionalização. Sempre tretanto, comer a la carte sempre é uma
pretendemos desinstitucionalizar mes- escolha pessoal, singular, mesmo se to-
mo aquilo que não estava ainda institu- do mundo está sentado na mesma me-
cionalizado. E verdade que em toda sa. Creio que trata-se de uma imagem
instituição há o instituinte e o instituí- que fala muito bem daquilo que é tra-
do. O instituído sempre é alguma coisa balhar no interior das instituições.
da ordem do mortífero, que se fecha, Aquilo que compõe o menu não é o
fixa e encapsula. Caso nâo exista lugar importante, mas o desejo de realizar es-
para outra coisa que o instituído, isso é ta ou aquela coisa a partir de um en-
mortífero, trata-se da ação da morte, da quadre histórico. Não se trata de inven-
morte no presente. E precisamente do tar um método qualquer, de inventar
lado do instituinte que alguma coisa da um ateliê muito original, por exemplo,
ordem do instituído pode vir a ser des- que não possa ser encontrado em ne-
locada. É graças às pessoas que agem nhum outro lugar. O principal nâo está
de uma outra forma, que colocam ques- ai. O principal, aquilo que é o motor,
tões, que se aproximam da criança de que propulsiona aqueles que trabalham
forma diferente do enquadre — que é a em Bonneuil, é o fato de ir até o fim
repetição, a pura repetição. num trabalho investido por um desejo,
Nesse sentido, os estagiários são uma vez que ninguém é obrigado a
necessários em se considerando que tra- fazer uma ou outra coisa.
ta-se de uma escola que luta contra aqui-
lo que acaba se instituindo. Toda insti- Você falou de "escolha" e de "ir até
tuição produz forçosamente o instituído. o fim". Poderíamos dizer, jogando um
pouco com as palavras, que se trata de cação da criança em termos psicanalíti-
ir até o fim de uma escolha? cos. Ao contrário, trata-se, a partir de
Sim, até o fim do engajamento e uma relação clínica qualquer, de se
do desejo. Até o fim na questão que nos interrogar num dado momento — pois
levou a realizar esse trajeto. Isso faz com é necessário para nosso próprio gover-
que trabalhemos em Bonneuil sempre a no, para nossa consciência — sobre
partir dos questionamentos e das con- aquilo que nos motiva a buscar precisa-
frontações que a criança nos coloca. mente esses pontos de referência para
Como vemos, não se trata da apli- não afundarmos na loucura do outro.
cação de uma teoria, isto é, de uma Então, a clareagem nos ajuda, lembra-
metodologia qualquer. Trata-se, ao con- nos, num trabalho de investigação pes-
trário, de manifestar-se, de expressar-se, soal. Ela não tem por função investigar
numa estrutura estabelecida em Bonne- a criança.
uil que é uma dialética entre o institu- Nesse ponto, fazemos diferença
inte e o instituído, o agir e o sofrer, en- com a dita aplicação da teoria. Não é na
tre a palavra singular e o discurso. Isso criança, na compreensão ou na expli-
faz, efetivamente, que as coisas se des- cação a partir de uma história familiar
dobrem ao longo dos anos. Essa é a di- passada, que sempre há, que a clarea-
reção subjacente a tudo aquilo que se gem psicanalítica intervém, mas na com-
faz em Bonneuil. preensão de nós mesmos. Ela possibilita
a análise daquilo que a criança interpela
No início vocêfalou de clareagem e em nós mesmos. Acaba nos levando pa-
agora diz que não se trata de aplicar. ra o diva num trajeto que é pessoal. Ou
Então, poderia falar mais um pouco so- seja, nos reenvia ao esclarecimento so-
bre por que não se trata de aplicar a psi- bre a própria disposição de cada um
canálise? num trajeto pessoal de trabalho.
É a partir da relação que nutrimos
com a criança, do trabalho com a crian- Você disse relação clínica. Trata-se
ça no interior do enquadre, que nos de uma relação clínica ou, ao con-
questionamos. Nosso objetivo não é trário, educativa?
regrar os sintomas das crianças, mas Em Bonneuil estão presentes tanto
possibilitar que eles se exprimam. É o educativo quanto o clínico. No educa-
verdade que, quando a criança passa de tivo pode também haver uma dimensão
sintoma em sintoma, nós nos questiona- da ordem da clínica. De fato, há pes-
mos, ou seja, tentamos ver um pouco soas que se encarregam mais da função
mais claro. educativa no pólo e s c o l a r ^ da vida de
A clareagem psicanalítica intervém Bonneuil. Porém, isso não significa que
como uma referência para o questiona- essas pessoas, que até certo ponto ensi-
mento no interior de uma prática, frente nam, ignoram necessariamente o que se
a um obstáculo ou fracasso qualquer, passa com a criança. Não há em Bonne-
uma vez que todos precisamos de refe- uil apenas educação ou apenas clínica.
rências no nosso pensamento, na nossa
reflexão. Isto é, não buscamos a com- Quando lhe coloquei essa questão
preensão na criança graças a uma grade não estava pensando o termo educativo
teórica ou aquilo que a teoria diz em ter- no sentido restritivo de uma relação es-
mos explicativos sobre as crianças. colar, mas no fato seguinte. Vejamos.
O princípio é aquele de não tentar Em Bonneuil se fala sempre em adultos,
formar referências a partir de uma expli- estagiários e crianças. Mas, por exem-
pio, Michel Polo possui o atributo de O papel de cada um deriva da impli-
diretor da escola... cação pessoal no trabalho que esco-
Mas os estagiários são adultos... lheram desenvolver em Bonneuil. As-
sim, temos por exemplo o setor escolar,
Sim. Mas, veja bem, nas escolas é o setor de ateliês, o setor de acompa-
habitual encontrarmos professores, alu- nhamento no exterior, o das famílias de
nos, o corpo de direção, etc. Por outro acolhimento (families d'accueil), e o
lado, num hospital encontramos médi- grupo das férias. Mas, também, as pes-
cos, psicólogos, enfermeiros e pacientes. soas se distinguem pelo tempo de pre-
Então, a questão é a seguinte: em Bon- sença em Bonneuil.
neuil, que se diz ser uma escola, os Entretanto, fora de Bonneuil as
adultos que não são "alunos" são o quê? coisas são diferentes. Eu tenho uma for-
Os adultos são aqueles que tem a mação de psicóloga clínica e tenho ou-
tarefa de garantir o enquadre responsá- tras ocupações de trabalho fora de
vel pelo progresso da criança. Eles não Bonneuil. Então, nesses diferentes luga-
devem eximir-se frente à angustia que a res sou conhecida como psicóloga clíni-
criança traz no interior do enquadre. ca. Mas isso não tem nada a ver com o
Então, "esses adultos" são tanto os es- trabalho desenvolvido em Bonneuil.
tagiários, os "temporários" (vacataires), Em Bonneuil é central o engaja-
os "permanentes" (permanents), ou seja, mento num trabalho qualquer. É ver-
todos aqueles que não são "as crianças". dade que tem gente mais criativa que
outra, que possui um viés mais "enqua-
Insistindo novamente sobre esse drado" (mais rígido) que uma outra,
assunto. Quando alguém trabalha num mais educativo que outros, mais escolar
hospital, essa pessoa se apresenta em que outro, porque simplesmente as pes-
público dizendo que é, por exemplo, soas se sentem mais à vontade sendo
psicólogo no hospital "x"... Então, um assim. É precisamente a partir daquilo
"permanente" de Bonneuil apresenta-se que motiva as pessoas, do desejo, que
dizendo "eu sou permanente em Bon- isso vai se modular, se processar.
neuil". Isso é suficiente? Ou ele diz que
é, por exemplo, psicólogo clínico? Poder-se-ia dizer que o convite
No interior de Bonneuil opera endereçado aos estagiários consiste no
apenas uma distinção, aquela que há ensaio de uma vida em conjunto, e não
entre "crianças" e "adultos". Para espe- na administração ou aplicação de um
cificar as diferenças que há entre os saber especializado que possam vir a
adultos, não consideramos as especiali- possuir?
dades de formação de cada um, mas o Sim. Trata-se de passar um certo
tempo de inserção na vida de Bonneuil. tempo juntos a partir do encontro que
Assim, temos os temporários, que são pode vir a acontecer com uma ou outra
pessoas que nâo vêm o tempo todo, criança — pois é impossível partilhar o
eles vêm um, dois ou três dias por se- trabalho com todas — fazendo avançar
mana. Os permanentes vêm normal- os questionamentos pessoais derivados
mente quase todos os dias da semana. da interpelação endereçada pela crian-
Os estagiários são aqueles que vêm do ça, bem como as própria questões das
exterior de Bonneuil e, por sinal, mui- crianças.
tos deles vêm do exterior da França. Po-
rém, as pessoas nunca desenvolvem um
papel a partir de sua formação de base.
BONNEUIL: UM LUGAR PARA VIVER (UM)
POUCO FAMILIAR
ENTREVISTA COM LITO BENVENUTTI, REALIZA-
DA EM 0 4 / 0 2 / 9 5 .

Como você chegou a Bonneuil?


Cheguei como estagiário, no verão de 1977. Eu tinha passado
por Bonneuil dois ou três meses antes. Juliette Greco me deu o
telefone de Maud Mannoni. Um dia, eu tinha ido com uma amiga
assistir a um show e ela estava muito interessada no que acontecia
na Argentina; perguntou-me o que fazia e isso é interessante por-
que, sabendo tudo o que acontecia na Argentina nos anos 77, 78,
os desaparecidos, ela não via só o horror. Então, me perguntou:
mas você, o que é que faz? E lhe contei o que fazia no meu tra-
balho com crianças.
Naquela época tinha um grupo em Juan Rincón (Argentina),
digamos, um projeto educativo, do qual falarei em outro momen-
to. Então, acabei me incorporando como estagiário.

E como se situa? Em que lugar se insere?


Insiro-me como estagiário em um acampamento no sul da
França. Havia cinco crianças e dois permanentes: a questão era vi-
ver quatro semanas com essas crianças. A uma certa altura, me dis-
seram: você tem de ir a Paris com uma criança; naquela época eu
conhecia muito pouco a França, estávamos a 500 km de Paris, tinha
de acompanhar uma criança a Bonneuil. No final de setembro
retomei meu estágio, que era de três meses. De algum modo, tinha
de terminá-lo e fiquei, não sei como fiquei, mas fui ficando.
No começo estive em um lugar muito peculiar, em que havia
gente de diversas partes do mundo. Entrei na cozinha. Da mesma
maneira, "dei uma volta" pelos distintos lugares de Bonneuil: o
escolar, por exemplo, nâo me interessava tanto. Uns meses antes
de eu chegar tinha sido feito credenciamento (Vagrément), vale
dizer que Bonneuil passava a estar credenciado à DASS. Nesse
período, haviam sido criados também os lieu d'accueil e os esta-
giários da época começaram a receber salário, deixaram de traba-
lhar ad honorem.
Nos primeiros três anos fiz diversas coisas: "dei voltas", man-
tendo sempre um pé na cozinha. Interessava-me sobretudo o tra-
balho que era feito no exterior: acompanhar as crianças às provín-
cias, à Itália, à Espanha; mas, sempre que voltava a Bonneuil, tinha
um lugar na cozinha.
A cozinha de Bonneuil era um carrefour, um lugar onde se
cruzavam as crianças que vinham fazer a cozinha, as crianças que
não podiam estar no âmbito escolar ou aquelas que, naquele
momento, não suportavam um ateliê. E sem chegar a ser uma família. Não é
Ao mesmo tempo, era um período limi- fácil por tudo o que desperta uma situa-
tado: começava às dez da manhã e ao ção desse tipo. Falo do meu lieu d'ac-
meio-dia e quinze já tinha de se sentar cueil. Cada um tem um perfil diferente,
para comer... e comer algo saboroso! de acordo com a pessoa que está à
Pelo menos, era isso o que me interes- frente dele. Com certeza, o "182" está
sava! Interessava-me que as crianças muito impregnado das minhas escolhas,
participassem; havia algo de improvisa- meus gostos, meus limites, minha
do: podíamos começar fazendo uma ordem, meu modo de ser.
coisa e acabar com outra. Mas tinha de
ser saboroso. Falando em escolhas, quem deter-
mina quais crianças vão para um
A partir desse momento, o que você determinado lieu d'accueil?
faz? É um pouco ao acaso, tanto no
Depois, no fim de 81, começos de sentido da disponibilidade de vagas co-
82, fiz uma viagem longa, de vários mo da disponibilidade de pessoal. Em
meses, pela América Latina; surpreen- geral, a criança que faz um longo per-
deu-me a Guerra das Malvinas e, quan- curso no lieu d'accueil não fica sempre
do regressei, voltei decidido a aceitar a no mesmo; é interessante que mude.
proposta de Bonneuil de fazer um lieu
IO

d'accueil, que era o " 1 8 2 " . ° Mas quando se tem de decidir por
uma criança ou outra, porque há uma
Por que fazer um lieu d'accueil? vaga só, quais são os critérios? São
Não havia nenhum? critérios de que ordem?
"Fazer" no sentido de viver em um Se há duas crianças que precisam
lieu d'accueil. Minha experiência na ir a um lieu d'accueil, atenta-se para
escola estava já feita. qual das duas se beneficiaria mais. Da
mesma maneira, erramos em um de
O que significa lieu d'accueil? cada dois casos. Não tem jeito. Consi-
Para mim, é um lugar em que as deramos a quem pode ser mais útil na-
crianças entram para sair, para fazer um quele momento; consideramos se há
percurso, para não viver em família. outra criança no mesmo que possa se
Não compartilho da idéia do lieu d'ac- dar bem com essa criança nova; ou,
cueil como uma família; interessa-me consideramos também onde se encon-
mais como um espaço de percurso, on- tra esse lieu d'accueil: por exemplo, se
de há crianças que podem ficar alguns no próprio bairro há alguma possibili-
meses. Para outros, o percurso é muito dade para essa criança. Esse exterior se
mais longo. Eles estão aí justamente constrói com cada criança que chega, já
com a idéia de separação da família, que você pode pensar que algo pode
onde não entra a família, com todos os ser bom para essa criança e acontece o
riscos que isso supõe. Um lugar em contrário.
que, para não entrar na rotina, é preciso
que os estagiários contribuam com Você falava de um lieu d'accueil
outro tipo de coisas. Eles contribuem como de um lugar de passagem, enfati-
com algo da ordem da dinâmica e nós zava que não se pretende substituir a
contribuímos com algo da ordem de família, por que enfatizava isso?
uma permanência. Viver junto, sob o Família e patologia... a minha, a
mesmo teto, com a loucura, não é fácil. sua e quanto mais a das crianças! Que
não pretenda ser uma família não quer que é importante lhes dizer que, para
dizer que não se criem laços. Nós tra- estar juntos novamente, é preciso poder
balhamos com elementos como pre- estar separados. Digo-lhes: que sorte
sença/ausência, apontados por Manno- quando você voltar a encontrar sua fa-
ni em seu livro Amor, ódio, separação^ mília! Paradoxalmente, a solidão apren-
com muita pertinência. Essa é a base. de-se em companhia. Tem de se obser-
var quais os efeitos que produz a sepa-
Que relação existe entre quem tra- ração. A criança é vista desde um outro
balha nos lieu d'accueil e a família da lugar. O fato é que não são filhos nos-
criança? sos. Agora, o que passa pela cabeça das
Em geral, a família não passa do crianças? Imagino que existam tantas
hall. Os pais nos conhecem, os pais perguntas, questões e respostas quanto
estão metaforizados através de uma car- crianças.
ta, de um objeto, que dão à criança. Em É notável. Às vezes, acontece que
geral, prefiro falar com eles de coisas de algumas crianças lhes escapa e, em
concretas. Por exemplo: precisa de um lugar de dizer Lito, dizem "papai" ou,
par de meias, precisa disto ou daquilo. também, "mamãe". Aí, a gente pode rir,
Quase nunca falo do que fazemos no pode resolver algo através do humor.
lieu d'accueil porque esse é nosso se- Nunca respondo "não, eu não sou seu
gredo; eles podem falar ou perguntar pai". Respondo com humor, por exem-
na escola. Em geral, dou uma resposta plo, "que papai mais gordo!" ou "uma
imediata para dar a idéia de que a vida mãe com barba!". Tem-se de brincar um
é possível. Muitas vezes, os pais per- pouco com o humor e, ao mesmo tem-
guntam: como com vocês é possível e po, receber algo das crianças. Muitas
conosco não? Para mim, há algo muito vezes, dizem "Lito, te quero" e, então,
claro e é não substituir os pais, não nos digo-lhes que, para que isso seja acredi-
colocarmos como pais ideais, como tável, tem que se fazer alguma coisa,
pais-modelo. Tento, ao contrário, refor- senão é muito fácil dizer. Digo-lhe "seu
çar a idéia de pertença da criança à sua pai não a colocou aqui para isso; seu
família, isto é, ressalto o fato de que pai a colocou aqui para que aprenda a
podemos "estar juntos porém não mis- ler, escrever, trabalhar". Para que isso
turados". seja acreditável, enfim, não há nada
Acredito que toda criança tem melhor que o trabalho; tem de se deslo-
direitos. O que Dolto dizia: cada criança car para algum lugar.
leva um nome mas tem o direito a uma Introduzir algo nesse espaço que
vida própria. É uma questão muito não duvido que exista; não duvido que
complexa. as crianças possam me amar, mas,
É importante que os pais entrem quando uma delas diz "te amo", escuto
metaforizados. Dizemos aos pais que também algo da ordem do ódio. Não
aqui as crianças têm suas coisas, que são a mesma coisa, mas vêm juntos.
não é necessário reconstruir aqui a casa Todas as crianças que estão em
deles porque isso é uma invasão. Bonneuil têm por trás histórias terríveis.
Por isso, Mannoni repete esse conceito
Então, que seja um outro espaço... — entre Lacan e Dolto — segundo o
As crianças perguntam por que estão lã, qual é preciso pelo menos duas ge-
por que moram lã? rações para "fazer um psicótico".
Perguntam de outra maneira. Po-
dem-se dar muitas respostas. Acredito Mudando um pouco o eixo de
nossa conversa, como surge, dentro da haja um olhar cubista, isto é, como um
escola, a idéia de abrir os lieu d'accueil? objeto visto sob diversos ângulos, não
Havia crianças que não podiam nos iludamos. Nos últimos tempos, as
viver, tinham um limite. Tudo o que nós pessoas que se aproximam de Bonneuil
fazíamos era sistematicamente demoli- vêm de um ou dois tipos de lugares —
do, às cinco da tarde, pela família. Não as faculdades de psicologia ou as esco-
havia espaço para essas crianças. Isto é, las de educadores especializados —,
os lieu d'accueil não foram criados por quer dizer, vêm com um olhar profis-
um problema de distância, para aquelas sional que supõe formações e defor-
que moravam longe. Não. Essa foi só mações. É muito mais interessante
uma das motivações. E claro que uma quando vêm de lugares diferentes: mé-
criança que mora a duzentos quilôme- dicos, juizes, músicos, escultores, arte-
tros de Bonneuil não pode viajar todos sãos, jardineiros, porque, de todo mo-
os dias, mas esse é só um dos motivos. do, o trabalho que se faz em Bonneuil
Penso que o critério que prevalece, o pode ser feito por um ou outro. Muitas
mais interessante, é a idéia de ida e vol- vezes é mais difícil para os psicólogos
ta, ou seja, de separação. Tinha de se ou os educadores fazer o que se faz em
dar a essas crianças um outro lugar que Bonneuil.
não fosse nem a instituição nem a fa-
mília. Depois, vimos que o lieu d'ac- Que diferença há entre as pessoas
cueil nâo era suficiente e pensamos nas que chegam hoje a Bonneuil e as que
famílias acolhedoras (families d'ac- chegavam em anos anteriores?
cueil). Isto é algo que tem a ver com a
formação. Muitas pessoas vêm da uni-
Que diferença bá? versidade porque têm de cumprir certos
Em geral, são famílias de agricul- requisitos de formação, mas também há
tores, artesãos, de diversos lugares de gente como vocês, que vêm do exterior
França, que possibilitam que a criança e para quem isto não acrescenta nem
possa se introduzir em algo dessa vida tira nada.
de família para, outra vez, poder sair
dela. Às vezes, para que as crianças O que é que você pode dizer a
possam aprender algo, às vezes, sim- respeito do "trabalhoso" de se sustentar
plesmente, para aprenderem a viver. E um lugar de vida?
muito melhor se aprenderem um ofício, Não é só trabalhoso. É também di-
uma porta de saída. ficílimo. Eu não poderia dizer muito so-
É um trabalho pago. As famílias bre o que é o autismo, a psicose ou a
são pagas. Atualmente, têm um estatuto neurose grave, como temos nos lieu
de assistência que não é o melhor, mas d'accueil. Não poderia desenhar um
que a administração nos obrigou a ter. perfil perfeito dessas estruturas mas, se
A criança mora com essa família e não de algo posso dar testemunho é do so-
com a família dela. A criança integra-se, frimento, o enorme sofrimento que tu-
na medida do possível, ao trabalho. A do isso comporta e que, muitas vezes, o
família tem um salário que passa a ser conceito de estrutura esquece. •
uma contribuição. Isso é para levar mais
longe a separação. Como dizia Octave
Mannoni, para introduzir algo de uma
outra cultura.
Se bem que na escola de Bonneuil
NOTAS

1 Finalizava um estágio de dois meses na École Expérimentale de Bonneuil-


snr-Marne, quando me ocorreu propor a Roberto Scagliola, amigo desde os
tempos na Argentina, então já radicado na Itália, realizarmos uma série de
entrevistas. De fato, tinha sido Roberto quem, após ter estagiado em Bonneuil
algum tempo antes, ofertou-me as coordenadas de Lito Benvenutti — um
incansável e amável albergador de estrangeiros — para fazer o primeiro con-
tato que me possibilitaria estagiar pela primeira vez durante uma semana no
inverno de 1994. Por sinal, uma forma de chegar a Bonneuil, muito seme-
lhante à de tantos outros, assim chamados, estagiários do exterior.
O teor das entrevistas que se seguem e a escolha das pessoas a serem entre-
vistadas foram objeto de uma análise conjunta. Redigimos algumas perguntas,
deixando aberta a possibilidade de colocar outras no decorrer da conversa.
Decidimos também que cada entrevista seria, a princípio, conduzida de forma
individual. Assim sendo, primeiro, conduzi a entrevista com Marie-José,
depois Roberto realizou em espanhol a entrevista com Lito, e, por último, foi
minha vez de fazer o mesmo com Maud Mannoni. Entretanto, apresentamos
as mesmas numa outra ordem. A transcrição e edição das entrevistas foram
feitas individualmente. A tradução do espanhol foi realizada por Viviana
Gelado, entretanto, aquelas do francês são de minha responsabilidade. Por
último, cabe assinalar que o segundo estágio realizado em Bonneuil, no inver-
no de 1995, contou com o inestimável auxílio financeiro do CNPq.
(Preparação de originais e anotação: L. de Lajonquière.)

^ Os franceses têm o hábito de falar em termos de "a educação nacional" para


se referirem ao sistema público de ensino.

3 A Escola de Bonneuil foi credenciada como "hospital-dia com lares tera-


pêuticos de noite em caráter experimental" junto à DASS (Departamento de
Ação Sanitária e Social regional) de Val-de-Marne em 17/03/75. Para se ter
uma idéia da luta empreendida contra a tecnocracia sanitária e pedagógica
para, primeiro, obter o reconhecimento da natureza institucional sui generis
de Bonneuil e, depois, evitar seu aniquilamento, consultar as cópias anexadas
das cartas enviadas por Mannoni nos livros Education impossible, Paris, Seuil,
1973; e Bonneuil, seize ans après, Paris, Denoél, 1986.

4 Embora seja usual traduzir éclatée por estourada, nós nos permitimos optar
por estilhaçada, uma vez que essa última remete à figura de um espelho esti-
lhaçado. Cf. L. de Lajonquière, "A escolarização de crianças com DGD", Estilos
da clínica, n. 3, 1997, p. 116-129.

5 B.E.P. (Brevet d'etudes professionnelles) Agricole. espécie de diploma de


estudos tecnoagrários. Até os anos 80, dava-se por certo que apenas os filhos
de proprietários rurais empreendessem esse tipo de formação.

6 Na França a nota máxima é 20/20.

7 Trata-se dos últimos dias de janeiro de 1995.

^ Centre de Formation et de Recherches Psycbanalytiques, dissolvido em


30/01/95.
9 Le schizo et les langues, Paris, Gallimard, 1970.

10 A máquina bloqueada: estruturas de atendimento. Conferência proferida


em 05/02/95 no contexto das Jornadas de estudo, com o título "Psicanálise e
psicoterapia. Desejo e cura".

H Associação fundada em 16/10/94 por Maud Mannoni, no início denomina-


da Centre Freudien de Formation et de Rechercbes Psychanalytiques.

12 Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

13 Habitation à Loyer Modéré. moradia popular.

14 Le premier rendez-vous avec le psychanalyste havia sido publicado em 1965


por Denoêl-Gonthier.

15 Refere-se a Vivre à Bonneuil e Secrete enfance, rodados por Guy


Seligmann. O material que deu origem ao último dos filmes encontra-se pu-
blicado em G. Seligmann e M. Mannoni, Secrète enfance, Paris, EPI, 1979-

1^ A propósito da utilização do neologismo clareagem como tradução da


palavra francesa éclairage, consulte-se M. C. Kupfer, "A presença da psi-
canálise na escola de Bonneuil", Psicopedagogia, v. 15, n. 38, 1996, p. 42-47.

17 O escolar gira em torno aos cursos à distância ofertados pelo CNEC. Isso
dá às crianças o estatuto administrativo-escolar de "normais".

1^ Chamado assim apenas pelo fato da casa estar situada no número 182 de
uma avenida próxima à escola.

1^ Amour, haine, separation. Renouer avec la langue perdue de Venfance.


Paris, Denoél, 1993.

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