Sei sulla pagina 1di 24

PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 1

Dilemas de uma educação em tempo de crise*

Jean-Pierre Leroy
Tania Pacheco

1. Tempo de Bush, de cassino global e de Fórum Social Mundial

Se você tiver um computador (e o fato de estar lendo um texto como este, num país como o nosso,
sugere que isso seja uma realidade) e se, neste exato momento, decidir dar uma parada na leitura
recém-iniciada para digitar o endereço constante da nota de rodapé abaixo,l vivenciará uma
experiência fascinante. Na tela, verá uma imagem da Terra. Mas não será uma foto qualquer, ao
contrário. Sentado na sua cadeira, de casa, da escola ou do escritório, você terá a oportunidade de
ver a imagem instantânea do planeta, ao vivo, com seus continentes e oceanos. Dependendo da
hora, verá terras e águas ensolaradas, nuvens, escuridão e luzes dos grandes aglomerados
urbanos. Graças a um satélite, à ligação desse satélite com a Web, à ligação do seu micro com a
Internet, e assim por diante, nesse momento você será ao mesmo tempo observador e observado,
autor e personagem, criador e criatura, num exemplo contundente da tecnologia sem dúvida
sofisticada que atingimos.
Sábia e curiosamente, já em A vida de Galileu, Brecht (1978:161) atribuía ao descobridor das
luas de Júpiter uma fala marcante:

"Eu sustento que a única finalidade da ciência está em aliviar a canseira da existência
humana. Se os cientistas] acham que basta amontoar saber por amor do saber, a
ciência pode ser transformada em aleijão, e as suas novas máquinas serão novas
aflições, nada mais. Com o tempo, é possível que vocês descubram tudo o que haja
por descobrir, e ainda assim o seu avanço há de ser apenas um avanço para longe
da humanidade. O precipício entre vocês e a humanidade pode crescer tanto, que
ao grito alegre de vocês, grito de quem descobriu alguma coisa nova, responda um
grito universal de horror".

O dramaturgo alemão escrevia a versão final de sua peça, construída ao longo de cerca de trinta
anos, ainda sob a emoção dos resultados dos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki, quando —
pensava-se — esse "grito de horror” não levaria a humanidade a rever seus caminhos e a
redefinir o uso que desejava fazer do seu saber. Hoje, 60 anos mais tarde, podemos de fato
escolher fotografar a Terra do espaço, do conforto das nossas casas. Mas, além de essa opção
estar ao alcance de muito poucos, o mesmo tipo de satélite que nos oferece a possibilidade dessa
experiência de alguma forma comovente pode ser (e é) usado para determinar bombardeios,
destruição e morte.

* Fsse artigo deve muito ao trabalho desenvolvido no quadro do Projeto interinstitucional Brasil Sustentável
e Democrático. Boa parte das suas reflexões foram condensadas no livro Tudo ao mesmo tempo agora.
Desenvolvimento, sustentabilidade, democracia. O que isso tem a ver com você? de autoria coletiva de Jean-
Pierre Leroy, Ademar de Andrade Bertucci, Henri Acselrad, José Augusto Pádua, Sérgio Schlesinger e Tania
Pacheco.
I. http://www.fourmilab.ch/cgi-bin/uncgi/Earth?imgsize=1024&opt=-l&Iat=9.7916.

E o exemplo pode se desdobrar. A mesma Internet que nos permite consultar bibliotecas de
praticamente qualquer país, ver e trocar ideias com pessoas nos mais diferentes idiomas ou
PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 2
simplesmente optar por uma visita virtual ao Museu d'Orsay, serve à pedofilia, à disseminação do
ódio racial, ao renascimento da propaganda nazista, à espionagem e ao controle dos cidadãos
usuários. O sinal GPS que permite o roteamento (roamming) e o uso de um celular em qualquer
parte do planeta serve como uma "coleira", localizando, rastreando e marcando cada passo de
seu... Será proprietário a palavra correta? O mesmo chip que permite acompanhar e resguardar as
andanças da onça ameaçada, da orca, do pássaro em extinção, pode ser usado para transformar-
nos em presos em liberdade condicional, para o cerceamento da nossa cidadania.

E incontestável que, ao longo do último século, o conhecimento humano deu um salto quantitativo
quase inacreditável. Mas, se decidimos cotejar nos pratos de uma balança os resultados positivos
e os negativos dessa ciência e da tecnologia por ela produzida, onde estará o peso maior? Ou,
sendo menos negativista, onde estará o empenho maior? Para qual prato terá sido desviada a maior
parte dos PIBs, por exemplo? Para a erradicação da fome ou para a fabricação de bombas de
nêutrons, minas terrestres, armas químicas e bacteriológicas? Para a cura da AIDS que ameaça
fazer desaparecer metade da África, matando três milhões de pessoas por ano somente na parte
subsaariana, ou para as diferentes formas de poder imperial e usurpador oferecidas pelas
nanotecnologias? Para garantir alimentos de qualidade à humanidade futura, com métodos que
protejam os solos e conservem as águas, ou para a criação de animais saturados de hormônios e
antibióticos que, usados como alimentos, levam crianças à puberdade precoce, e cujos rejeitos
encharcam e tornam imprestáveis rios e lençóis freáticos?

Dois quintos da humanidade passarão sua vida quase certamente sem sequer chegar perto de um
microcomputador. Para esses 40 % de homens e mulheres, as possibilidades oferecidas pelas
tecnologias de ponta que nos cercam não têm sentido, significado ou registro, na medida em que
grande parte deles terá morrido de fome ou de infecções oportunistas antes que terminemos a
leitura da próxima frase. No outro extremo, está o um quinto dos habitantes do planeta que tudo
pode e, na maioria das vezes, muito mais ainda quer. No meio, entre uns e outros, sobrevivem os
40% restantes; entre eles, muitos de nós.

A evolução histórica do capitalismo até o neoliberalismo atual, passando por seu espelho invertido,
o capitalismo de estado encarnado pelos países comunistas, produziu muito mais do que uma crise
de modelo. Além das guerras e da miséria, estamos sendo por ele submetidos ao desmonte
sistemático das instâncias públicas de regulação (normas e legislação, justiça, serviços públicos,
monopólio da força e planejamento público), nacionais e internacionais. Em contrapartida ao
sucateamento e à desmoralização do espaço e dos aparelhos públicos, vemos a privatização e a
subordinação dessa regulação pública ao mercado e às grandes corporações transnacionais.

Assistimos quase impotentes (ou, às vezes, cúmplices) ao fortalecimento do imperialismo norte-


americano, fundado sobre uma defesa do american way of life que se faz acompanhar de um
profundo desconhecimento do mundo; à imposição consentida de um ersatz cultural hollywoodiano
e de uma ideologia consumista individualista; à quebra das solidariedades tradicionais num mundo
hoje predominantemente urbano. Tudo isso ameaça gerar o naufrágio da civilização, para não dizer
da humanidade. Para os mais desesperançados, estamos numa nau sem rumo, prestes a afundar:
ou nos salvamos todos, ou todos pereceremos. Mesmo para os que mantêm viva a esperança,
entretanto, uma verdade é incontestável: a urgência de modificarmos nossa forma de encarar o
mundo. E isso compreende não só as relações entre os povos, mas também as relações entre seres
humanos e natureza.

Nesse cenário, o papel a ser desempenhado pela educação é de indubitável centralidade. Cada
vez que somos tentados a afirmar ter ela perdido toda a importância nessa nossa sociedade
PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 3
determinada pelo mercado, estamos como que tateando a verdade, sem nela tocar de fato. Afinal,
terão sido inocentes as grandes reformas educacionais de meados e do início da segunda metade
do século XX? Terá sido por acaso que conteúdos programáticos voltados para valores humanistas
foram sumariamente sacrificados e/ ou substituídos por conhecimentos "profissionalizantes
tecnológicos" ou meramente "práticos"? Ou que, dando continuidade ao processo, as provas
discursivas deram lugar aos parênteses das múltiplas-escolhas?

Por que os cursos seriados, em que se formavam coletivos, conhecidos e amigos, foram
substituídos pelos regimes de créditos fragmentadores? E os campi foram exilados dos centros
nervosos das cidades? Por que se deu o processo de desvalorização, humilhação e
desestruturação da profissão e da própria autoestima dos professores? Tudo isso não terá sido
parte imprescindível da receita para a imposição da ignorância, da alienação e da aceitação de
valores que desrespeitam as nossas culturas, realidades, sonhos e diversidades?

E preciso que entendamos antes de mais nada o papel representado pela educação na construção
da crise — se apequenando em tarefas adaptativas/ perdendo batalhas, correndo o risco de se
desmontados ou, em alguns casos se prostituindo mesmo, às vezes por mera omissão — se
desejamos resgatar seu contrário: as possibilidades, o papel e a importância que ela necessita de
sempre ar no enfrentamento dessa ressaltar que essas duas tarefas — adaptativa e transformadora
— não se excluem totalmente no dia-a-dia, o que leva à necessidade de alguma forma nos
"adaptarmos"; mas isso não determina que nos submetamos às leis espúrias deste mundo em que
vivemos. E a garantia da nossa insubmissão estará no fato de que essa contradição deva ser, ao
mesmo tempo, balizada pela ética e tencionada pelo imperativo da mudança.

Esse dilema se amplia se falamos de educação ambiental. Numa visão simplista, poderíamos dizer
que nosso desafio maior seria fazer com que todos entendessem a importância do meio ambiente
para a preservação da própria vida humana. A velha história, enfim, de acabar com a miopia que
de alguma forma coloca ainda em campos opostos e em tola disputa aqueles que lutam pela justiça
social e pelos direitos da cidadania e os que se dedicam à defesa das florestas e das águas, dos
animais e das sementes. Na verdade, o problema é bem mais amplo, na medida em que uma nova
armadilha se instala, especificamente, para aqueles e aquelas que defendem a importância do meio
ambiente e da educação ambiental. Para esses, uma nova opção se apresenta: ou contribuir para
descobrir caminhos e propiciar mudanças, ou alienar-se, enclausurando-se num sistema de valores
e de atitudes que teoricamente se restringe exclusivamente à natureza, mas que, ao fazê-lo, na
verdade marginaliza-a e nega inclusive sua importância como palco da própria experiência humana.

Em Tudo ao mesmo tempo agora retomamos as observações de Henri Acselrad que, ao observar
a ocupação do território brasileiro, distingue a "natureza ordinária", exposta aos diversos apetites
econômicos, da "natureza a preservar" (Acselrad et al., 2002:69). De fato, não faltam
conservacionistas resignados com a ocupação e o uso predatórios do território e dos seus recursos
pelo capitalismo desenvolvimentista. Sua ação, ignorando essa "natureza ordinária", concentra-se
então, com o apoio inclusive dos que a destroem, nas zonas que se pode salvar, transformando-
as em parques, reservas etc. Eles não conseguem (ou não querem) ver que a sobrevivência da
humanidade e, com ela, da vida tal qual a conhecemos, está ligada ao tratamento que damos ao
conjunto da natureza. A educação ambiental, mesmo que inconscientemente, pode se encerrar
nessa "natureza a preservar". Nesse caso, de nada adiantará ela se ligar na Internet para acessar
o planeta; porque ela não saberá mais ajudar a ver o mundo e, menos ainda, abrir caminhos para
a sua transformação.
PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 4
Tudo isso nos conduz a continuar esta reflexão a partir de alguns pressupostos que merecem ser
enfatizados. Em primeiro lugar, somos hoje obrigados a pensar a educação ambiental como uma
educação cidadã; mais que isso, como uma educação planetária. A crise é global, por mais que
algumas poucas nações pareçam pensar ser possíveis sobreviver à eventual destruição do planeta
como se morassem numa bolha. Parênteses: a forma como os Estados Unidos lidam com o
Protocolo de Kioto é um bom exemplo dessa crença infundada, como, aliás, mostra um dos atuais
campeões de bilheteria (blockbusters) da indústria cinematográfica americana, O dia depois de
amanhã, ao retratar exatamente os possíveis efeitos de uma mudança climática radical sobre o
mundo. Feche-se os parênteses.

Nosso segundo ponto óbvio a ser relembrado é que a crise ambiental se constitui como um
somatório dos inúmeros palcos onde vivenciamos essa crise maior, nas suas representações e
especificidades locais, nacionais, regionais, continentais. E cada um deles deve ser analisado,
estudado, respeitado e cuidado, nas suas diversidades, se desejamos melhorar o "todo".

Continuando, vale destacar que a educação ambiental não pode mais ser desvinculada, pois, do
drama que vivem a humanidade e o planeta. Cabe a ela fornece instrumentos para que as pessoas
e as organizações que assumem responsabilidades possam responder aos principais desafios do
mundo de hoje. Caminhando por esse raciocínio, chegamos à hipótese de que, mais do que de
educação ambiental, devamos falar de "educação para a sustentabilidade".

Nesse sentido, nossa tarefa maior é forjar uma educação que nos ofereça as bases para
construirmos um projeto civilizatório baseado numa outra relação dentro de cada sociedade, das
sociedades entre si e da humanidade com o meio ambiente e com os recursos naturais do planeta.
E ela nos impõe muitos desafios.

2. Sobre o método: segurar firme no chão, mas também voar (sem sumir no espaço)

Antes de chegarmos a esses desafios, porém, algumas questões metodológicas merecem ser
explicitadas: esse processo educativo deverá ser, ao mesmo tempo, auto docente, resistente,
coletivo, solidário, crítico, totalizante e permanente. Ora: essas não deveriam ser características de
qualquer processo educativo digno de assim ser chamado? Sem dúvida, mas no caso da educação
ambiental de alguma forma elas são também determinadas pelo que há de novo nesse mirante,
em si, aliado à especificidade do momento em que vivemos.

Comecemos pelo que chamamos de processo auto docente. A educação ambiental obriga o
educador a ocupar, ao mesmo tempo, o papel de educando, na medida em que necessita estar
descobrindo o novo e o ensinando. O passado está sendo agora mesmo construído; não há
caminho já trilhado em relação a um projeto de futuro que reconsidere as relações entre seres
humanos e natureza, entre natureza e cultura. Portanto, o caminho está literalmente sendo feito ao
andar; está sendo inventado e, ao mesmo tempo, transmitido como saber. E é desnecessário dizer
que, como em qualquer (boa) educação, presume-se também que haja, no educador, abertura para
igualmente aprender com as descobertas eventualmente feitas pelos educandos.

Esse sentido de novo, de desbravamento e de descoberta nos leva a uma segunda afirmação: é
uma educação pautada na resistência. Cabe ao educador estar ele próprio sempre vigilante ante
as disputas e a apropriação de ideias e conceitos. O que hoje é "vanguarda", amanhã se torna
PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 5
propriedade do mais conservador dos discursos, sem ter chegado sequer a aproximar-se de vir a
ser uma conquista. E é preciso resistir à solução fácil de simplesmente abrir mão do conceito e
substituí-lo por um novo (que fatalmente será também objeto de disputa), assim como é preciso
buscar garantir a sua não-apropriação.

Um terceiro ponto deveria nos mostrar que é fundamental não se deixar abater pelas eventuais
derrotas ou se intimidar pelo tamanho do desafio. E necessário ter a sabedoria de decupar esse
desafio e assumi-lo nas suas diferentes etapas. E preciso entender que estratégias determinam
táticas; táticas envolvem objetivos específicos; e, para atingi-los, é necessário estabelecer metas a
serem alcançadas, uma a uma. Se cometemos o equívoco de querer encarar de uma só vez cada
grande desafio que se nos apresenta, corremos o risco de nos sentirmos paralisados ante seu
tamanho e importância, ou de desistirmos ante a primeira derrota.

Indo além: resistência não se faz sozinho. É preciso considerar esse processo auto docente também
como um processo coletivo e solidário. Frente à ideologia que nos é inculcada pelos meios de
comunicação, no nosso dia-a-dia e mesmo nas nossas experiências de vida, de lazer e de trabalho,
a resistência só será de fato possível se for produto de uma construção coletiva e solidária. Tanto
para a busca de informações e de conhecimentos que deem consistência a essa resistência (e que
não se encontram nas tevês, nas revistas ou nos jornais) quanto para que ela possa se "impor", ser
reconhecida e aceita frente ao bombardeio conservador e, assim sendo, disseminar novos
conceitos e visões do mundo e usá-los na construção da contra hegemonia.

Chegamos, assim, a um quinto ponto, ligado ao anterior: é uma educação que necessita ser
eminentemente crítica. Ao mesmo tempo em que resistimos coletiva e solidariamente, temos por
obrigação instrumentalizar os educandos para que possam desmontar as práticas e os discursos
vigentes, alertando-os para que desconfiem das soluções fáceis, da ideologização do futuro que
fornece modelos pré fabricados. Educação pressupõe liberdade de pensamento, direito à dúvida
sistemática, que é um dos motores do conhecimento.

Isso nos conduz à necessidade de ser ela, como sexta característica, uma educação sistêmica, que
busca a apreensão da totalidade no sentido marxista. Não porque pensa que vai compreender
determinada realidade ou o mundo em todas as suas dimensões e suas facetas, mas porque as
sociedades humanas e o planeta são formados de relações e interações, que compõem, morrem,
recompõem em permanência a história da vida e da humanidade, no espaço e no tempo.

O que nos leva a uma última questão, talvez também óbvia, mas, ainda que por mera precaução,
merecedora de ser aqui lembrada: trata-se de um processo de educação permanente, pois cada
nova descoberta ou cada desafio vencido propõe de imediato uma nova pergunta, uma nova luta
ou um novo dilema.

Tomemos um exemplo para ilustrar essas observações: o dos transgênicos. Primeiro, tivemos a
natureza se transformando, na alternância de eras de gelo e de períodos de aquecimento, entre
catástrofes que marcaram o fim de uma era e o começo de outra. Através do que, no que
poderíamos considerar, à luz da escala do tempo geológico e biológico, uma evolução harmoniosa
e tranquila, ela nos do ria frutos e grãos selvagens que (acaba de descobrir o Instituto Smithsonian)
já há 22 mil anos eram colhidos, esmagados, assados e comidos por nossos ancestrais,
transformados em pão. Outros 12 mil anos se passariam, antes que esse antepassado extrativista
resolvesse "fixar residência" e se dedicar ao cultivo das plantas e à domesticação dos animais.
PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 6
Nascia finalmente o agricultor, que, para melhor abastecer a sua família e os que se dedicavam a
outros trabalhos, assumiria a tarefa de aprimorar as sementes, adaptando-as às condições
climáticas, ao solo, à altitude.

Tanto o homem de Neanderthal, quanto — dezenas de milhares de séculos depois — o quechua


dos Andes ou, mais próximo de nós, o camponês nordestino, mineiro ou paranaense contribuíram
sucessivamente para esse aprimoramento. E por esse motivo que ainda hoje encontramos
nos Andes dezenas de variedades de batatas deliciosas, totalmente adaptadas, enquanto
numerosas associações de agricultores familiares voltados para a agroecologia identificaram, já, e
cuidam de dezenas de sementes de milho crioulo, que os Xavantes cultivavam antes deles, e o
índio mexicano ou guatemalteca ainda antes.

De repente, em poucos anos, surgem, graças aos progressos da ciência, organismos


geneticamente modificados, que identificamos como sementes transgênicas. Apesar dos protestos
dos cientistas, seduzidos por suas criações, e das empresas, que veem nessas sementes a sua
galinha dos ovos de ouro, as ameaças de erosão e de poluição genéticas que essas sementes
representam para a humanidade exigem prudência; o que os ambientalistas chamam de "princípio
de precaução". O educador, frente a esse tema, deve problematizá-lo. É hora de aprender, hora do
pensamento crítico, de estudar o pró e o contra, de desconfiar. Hora de nos perguntar: a quem isso
interessa? Quem diz que interessa à humanidade? O que pensam os que são contra?

A questão exige que se pense no problema na sua totalidade. A semente em si é somente um


elemento do que está em jogo. Achamos que estamos falando de agricultura, mas estamos falando
antes de tudo de agronegócio, de transnacionais e de transferência de dinheiro do Sul para o Norte.
Venderemos barato os nossos grãos e compraremos caro os conhecimentos embutidos nas novas
tecnologias. Mas, e a semente em si? Nela, como dissemos, estão embutidos milhares de anos de
trabalho de agricultores, milhares de cruzamento entre variedades diferentes, melhorando-a...

Em conferência no Fórum Social Mundial 2002, em Porto Alegre, o professor Marcel Mazoyer, do
Instituto Nacional de Agronomia francês, dizia que o geneticista que fabrica uma semente
transgênica não pode reivindicar mais do que 1% dela como sua criação. Os 99% restantes
pertencem às gerações de camponeses cujo conhecimento sucessivo acumulado culminou no
exemplar manipulado pelo cientista contemporâneo.

Visão de totalidade: o que é uma semente? Uma justaposição de células, elas mesmas compostas
por uma justaposição de genes? Ou um organismo vivo, feito de inter-relações, em que o todo não
se reduz às partes? Técnicos que manipulam genes para fabricar sementes transgênicas
consideram os genes em si: tal gene introduzido em tal lugar da sequência de dupla hélice do DNA
vai fazer com que a planta crie resistência às pragas; um outro vai aumentar seu crescimento; um
terceiro irá enriquecer sua composição com determinada vitamina etc.

Apesar dos poderosos lobbies e da doxa reinante, a pseudociência que serve de álibi à preguiça
de pensar, a realidade não é tão simplista. O biólogo molecular Gilles-Eric Séralini (2000) conclui
seu livro sobre os OGMs com esta reflexão: "A complexidade do funcionamento em rede dos genes,
sua sutil regulação que produz efeitos às vezes inesperados, a estrutura desconhecida dos
genomas, tudo isso deveria nos compelir à humildade científica". Assim, ensinar deve ter como
base educar para o complexo, para a busca de totalidades nunca apreendidas e, portanto, para a
humildade que, neste caso específico, também deve ser traduzida como precaução.
PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 7

3. Desafios para a educação ambiental

Podemos de alguma forma dizer que, senão todos, a maior parte dos nossos desafios tem duas
raízes comuns. A primeira, o fato de vivermos numa sociedade que se caracteriza pela
irracionalidade, das mais variadas formas. A segunda, a contradição inerente ao fato de, ou de
alguma forma gostarmos dos "confortos" que essa irracionalidade nos proporciona, mesmo quando
a denunciamos, ou — se não temos acesso a eles — na maioria dos casos serem eles precisamente
a nossa grande ambição.

A verdade é que, bem antes do neoliberalismo, o receituário capitalista se infiltrou nas nossas veias
e contaminou nossas vontades, dos Fords T aos home theaters, dos computadores cada dia
mais velozes à segurança monitorizada dos condomínios fechados. Fomos ensinados a
desejar a velocidade, o asfalto, as luzes. A maioria de nós aprendeu a viver de e para supérfulos
não o consumimos ou produzimos, vemos nele o nosso grande alvo. Entre o ter e o ser, nos
confundimos e, muitas das vezes, ficamos com o primeiro, trocando nossa cidadania pelos sinais
aparentes de um status que nos é impingido como ideal.

Em nome de tudo isso, sacrificamos a nós mesmos e a natureza. No campo, expulsamos o


camponês e ameaçamos arrasar o cerrado (e, em breve, a Amazônia), transformando-o no
cenário único das monoculturas e dos agronegócios bilionários voltados para a exportação. Nos
grandes centros urbanos, permitimos que nossa qualidade de vida seja comprometida pela
insegurança, pela violência e pelo medo, e reagimos a isso deixando que nossos bairros
sejam transformados, dependendo de nosso poder aquisitivo, em conjuntos de edifícios de luxo que
em nada ficam a dever a guetos ou em favelas e presídios tornadas reféns das guerras entre
quadrilhas.

Como contestar e, até certo ponto, destruir para reconstruir algo que nos fascina, que penetrou
nossas vontades, nossos sonhos, nossos desejos? Esse é o nosso ponto de partida.

Primeiro desafio: transformar a cultura e a concepção de mundo para poder mudar as


relações com a natureza e com o planeta

A luta se inicia, pois, no mundo das ideias. Ou no das ideologias, também podemos dizer. Aí está,
ao mesmo tempo, a questão central e, possivelmente, a mais difícil de ser enfrentada, pois ela é
determinante de tudo o mais, quer como garantia da hegemonia e da perpetuação das ideias
dominantes, quer como a chave para a transformação, para a construção da contra hegemonia.
Sem isso, continuaremos andando em círculos, incapazes de mudar sequer a relação com nossos
semelhantes, quanto menos com a natureza.

Não basta optarmos pelo "ser" contra o "ter", pois é o "ser" que leva ao "ter", como vamos ver ao
tratar do sujeito em ruptura com a natureza. Do outro lado, vamos ver como a corrente que nega a
originalidade do ser humano, fundindo-o no meio da vida, também impede esse "ser" de produzir
um sentido e repensar o que seria um outro "ter". Ambas posturas apelam a necessidade de nos
re-situar (nem totalmente semelhantes a qualquer vida, nem absolutamente diferentes; nem
imersos na natureza, nem artificializados; nem animais, nem deuses) e de buscar qual seria uma
PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 8
nova relação com a natureza, e, em decorrência, um novo modo de ser e de ter.1 Para isso, vale
apelar um pouco para a história, e relembrar um pouco como se deu esse processo.

A humanidade, nos seus primórdios, ou melhor, os hominídeos, na sua luta pela sobrevivência,
tomaram consciência de si mesmos emergindo da sua animalidade. Os filósofos e pensadores, ao
longo do tempo, privilegiaram ou o descolamento da natureza ou a continuidade. A contradição
entre cultura e natureza se instala. A descoberta do uso do fogo alimenta e destrói. No século XII,
a existência de uma série de equipamentos agrícolas pesados e complementares permitiu o
aumento da produção, exigindo roças maiores. Graças a isso, a população pôde crescer.
Consequências, entre outras: mais desmatamento para abertura de roças e, com o aumento
populacional, para aquecer as casas (Mazoyer e Roudart, 1997: 259 e seguintes). Tratava-se então
de domesticação mais do que de dominação.
No século XVII, Descartes, na sua obra mais conhecida, O discurso do método, expressa o objetivo
da ciência moderna nascente:

'Elas [as noções gerais que dizem respeito à física] me fizeram ver que é possível
chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à vida, e que, no lugar dessa filosofia
especulativa que se ensina nas escolas, pode se achar uma prática pela qual,
conhecendo a força e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de
todos os outros corpos que estão ao nosso redor tão claramente quanto nós
conhecemos as diversas profissões dos nossos artesãos, poderíamos usá-los do
mesmo modo para todos os usos que lhes são adequados, e assim nos tornar como
senhores e possuidores da natureza" (Descartes, 1996:84).

A cultura alça voo e prepara o terreno aos artefatos que vão permitir à humanidade soltar as
amarras que a prendem à natureza e empreender doravante a artificialização do mundo.

Com Descartes, o filósofo do cogito, ergo sum — "penso, logo existo (ou sou)" o sujeito que pensa
e conhece (res cogitens) separa-se da natureza, res extensa, coisa estendida que podemos
apreender pelo entendimento. Paradoxalmente, embora separe o cientista (essa coisa que pensa)
do objeto de conhecimento (essa coisa estendida), ele nos mostra que ser e ter não são
forçosamente opostos. Mas o marxista Brecht sem dúvida deve ter lembrado de O discurso do
método ao dar voz crítica à fala de Galileu: o "ser" cartesiano, dominador e onisciente, irá abrir
caminho à ciência moderna, e, com ela, ao capitalismo industrial e à exacerbação do ter.

E assim que tudo desemboca num delírio de tecnologias e de produtos que, mesmo que os seus
inventores, construtores e usuários não o percebam mais, têm a natureza embutida neles.
Lembramos o exemplo das sementes: o geneticista que produz uma semente transgênica e, mais
ainda, o industrial que a paga e que vai patenteá-la não reconhecem (não lhes interessa fazê-lo)
quanto de natureza e de história estão embutidos nela. Pelo contrário, ao reclamar a patente,
negam essa história.

A essa concepção de natureza-objeto, corresponde em reação uma outra, que considera a


natureza, tanto quanto o ser humano, como sujeito, e que encontra sua teorização e práxis no que
é identificado por vários autores como a ecologia profunda, a deep ecology. A sua interpelação é
bem-vinda, ao lembrar que somos seres vivos, em continuidade com a vida vegetal e animal.
Nossa emergência não significa ruptura e necessitamos de "escutar" em permanência o que a vida
tem a nos ensinar. Porém, na sua versão extrema, "o naturalis mo, ao mergulhar o homem no

1 . A reflexão que segue é inspirada em Ost (1995).


PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 9
mundo da vida, ao condená-lo à imanência absoluta da eco esfera, ao lhe recusar qualquer outra
história que a da evolução natural, torna impensável e impossível a intervenção do sujeito livre que
reclamam a ética e o direito'" (Ost, 1995: 83). Se essa postura nega a dignidade do ser humano,
no plano do ter, recomenda a frugalidade e a satisfação somente das necessidades da
humanidade. Mas, como a humanidade, de qualquer modo, precisa de recursos naturais,
desemboca-se no malthusianismo: é preciso controlar o crescimento da população porque, no final
das contas, a humanidade é nociva ao planeta.

Em contraposição a essas natureza-sujeito e natureza-objeto, o filósofo e jurista François Ost


propõe a "natureza-projeto". Segundo ele, "o projeto [...] não rejeita nem o sujeito nem o objeto.
Ao contrário, os pressupõe. Mas, longe de absolutizá-los, coloca-os em interação. Abre-os um ao
outro, sem por isso os confundir. O que vale doravante, mais do que a identidade do sujeito e do
objeto, é a relação ou a tensão que os constitui [...]. A essa rede de relações, chamamos meio"'
(Ost, 1995: 239). E é esse "meio" que constitui o projeto: movimento, mas também significação,
sentido... Algo a construir. Projeto da natureza para o ser humano, se é verdade que "o homem é
a consciência da natureza";2 e projeto do ser humano para a natureza. E Ost (1995:240) conclui:
"Depois de se ter conduzido como o aprendiz de feiticeiro, [o homem] pode agora adotar o papel
de mestre-feiticeiro, aquele que 'se lembra da palavra' e que, para os elementos em fúria,
suspende o dilúvio que ele mesmo desencadeou".

Se fazemos nossa a estratégia proposta por Ost, precisaremos utilizar todas as características que
vimos como imprescindíveis para a educação ambiental para mudar o quadro que nos cerca.
Teremos que ser eminentemente críticos para, coletiva e solidariamente, forjar capacidades de
resistência e alternativas novas que nós permitam transformar o nosso imaginário social e, em
consequência, boa parte do que hoje consideramos "natural", na nossa prática e no nosso dia-a-
dia.

Os meios de comunicação de massa vêm ocupando papel preponderante nesse embate, desde
antes de o cinema iniciar sua tarefa de sedução e de conquista das nossas vontades, aos dias de
hoje. Quando até mesmo o nada inocente New York Times denuncia e comprova o conteúdo
propagandístico e mentiroso veiculado pelo Canal Fox em relação ao próprio povo norte-americano,
o que dizer das "informações" e das "emoções" transmitidas para o resto do mundo pelos grandes
conglomerados midiáticos e por variadas formas de expressão artística, principalmente as
audiovisuais?

Não foi sem motivo que Pierre Bourdieu dedicou seus últimos anos de vida a um combate
intransigente às mídias. Escreveu ele:

"Os adolescentes de todos os países que vestem baggy-pants, calças cujos fundilhos
batem no meio das pernas, provavelmente desconhecem que a moda que julgam
ultrachique e ultramoderna nasceu nas prisões dos Estados Unidos, assim como
certo gosto por tatuagens! Ou seja, a 'civilização' do jeans, da coca-cola e do
McDonald's está submetida não apenas ao poder econômico, mas também ao poder
simbólico exercido por intermédio de uma sedução para a qual as próprias vítimas
contribuem. Ao fazer das crianças e dos adolescentes, sobretudo os mais
desprovidos de sistemas de defesa imunológicos específicos, os alvos privilegiados
de sua política comercial, as grandes empresas de produção e de difusão cultural,
especialmente do cinema, garantem para si, com o apoio da publicidade e das
mídias, ao mesmo tempo coagidas e acumpliciadas, uma influência extraordinária e

2 . Reeves, H., citado por OST (1995: 240).


PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 10
sem precedente, sobre o conjunto das sociedades contemporâneas, que diante disso
vêem-se como que infantilizadas" (Bourdieu, 2001: 86).

E necessário, então, criar alternativas para a democratização da mídia ou, enquanto isso for quase
impossível, para a construção de alternativas viáveis de contrapropaganda e de real veiculação de
informações úteis, formadoras de visão crítica e de cidadanias.

Esse etéreo mundo das ideias que nos cerca é, na verdade, o grande formador de concretudes. É
nele que se formam as nossas utopias, referências do rumo a ser por nós trilhado em direção ao
mundo que ousamos conceber. E com ele, pois, que devemos trabalhar, sempre de forma crítica,
denunciando e combatendo as apropriações de conceitos e as mentiras que nos forem impingidas
e, paralelamente, forjando o novo ao qual almejamos. Para isso, é fundamental, também, que de
um lado, entendamos a cultura de cada um de nossos povos como algo a ser preservado, enquanto
garantia da soberania e da diversidade contra a homogeneização cultural. De outro, que
respeitemos e somemos as diferenças entre nós, transformando-as precisamente em elementos
positivos, capazes de enriquecer o projeto contra hegemônico que nos propiciará um outro amanhã.

Segundo desafio: enfrentar os atuais padrões de produção e de consumo insustentáveis

Segundo a presidente da Conferência Circumpolar dos Inuits (como se autodenominam os "


esquimós"), Sheila Watt-Cloutier, com o derretimento do gelo, "a Terra está literalmente mudando
debaixo dos nossos pés". De fato, prevê-se que dentro de 50 anos a passagem norte-oeste entre
o Atlântico e o Pacífico estará aberta no verão. Longe daqui, na Melanésia, Ilhas Maldivas, uma ilha
artificial, Hulhumale, está sendo construída a dois metros acima do nível do mar, para abrigar cem
mil habitantes (Sinai, 2004). No campo da ficção, o filme mencionado no início deste texto denuncia,
não sem razão, como a arrogância dos Estados Unidos pode ter como consequência (que não deixa
de ser irônica) levar seus habitantes desesperados a cruzar a fronteira em sentido inverso,
buscando salvação e abrigo no México e nos países do Sul.

Para interromper os efeitos do inegável desastre climático que indubitavelmente se avizinha e, ao


mesmo tempo, evitar a perpetuação da injustiça ambiental no que diz respeito ao uso da natureza
pelos diferentes povos, calculou-se que "a média sustentável de gás produtor do efeito-estufa por
ano e por habitante do planeta é estimada em meia tonelada: o cidadão do Burkina poderia passar
dos seus 100 kg atuais para 500 kg, enquanto o morador dos Estados Unidos, que produz em
média 5.000 kg de emissão por ano, deveria teoricamente dividir por dez essas emissões" (Sinai,
2004). Pelo menos até o momento, não há chance de que isso aconteça. E o quadro ameaça mudar
ainda para pior, na medida em que países como a China, a Índia e o Brasil se aproximam dos
países desenvolvidos. Hoje, graças ao desmatamento, nosso país já é o quinto poluidor, atrás
apenas dos EUA, da Rússia, do Japão e da China.

Houve um tempo em que Henry Ford deu a impressão à classe operária que a revolução industrial
a levaria ao paraíso; a ela e, a seguir, ao resto da humanidade. Ao contrário, chegamos à
globalização do apartheid, em que grandes conglomerados multinacionais e elites econômicas
derrubam fronteiras e imperam sobre o mundo, superando em lucro os orçamentos da maioria das
nações. E assistimos de alguma forma impotentes, quando não impassíveis, enquanto dividem o
restante da humanidade em duas partes principais: de um lado, os alienados; de outro, aqueles que
PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 11
sequer merecem ser contados, tornados sumariamente "invisíveis". Em que momento se embalou
o mecanismo pavloviano desencadeado pela revolução industrial, mecanismo que faz salivar, numa
ponta, os acionistas dessas mega empresas e, na outra, os consumidores?

O (mau) uso da ciência e das tecnologias a serviço, de um lado, do aumento do lucro de poucos e,
do outro, da satisfação, real ou imaginária, dos desejos das massas seduzidas, se espraiou,
potencializado pela ação da mídia e de outros meios de propaganda, como já foi dito, levando os
padrões do ocidente e sua "civilização" a todos os continentes, tanto do Sul, quanto do Norte.
Resultado? Uma corrida em que os bens produzidos, não respondendo mais a qualquer
necessidade evidente, têm que ser vendidos como valores imateriais, pelo status que dão, pelo
imaginário que nos faz desejá-los, pelo poder que tê-los representa, pelo que significam de
pertencimento a uma raça que se pensa superior ou a um clã.

Da mesma forma que os acionistas devoram o lucro sem nunca satisfazer sua rapacidade, os
consumidores, transformados em "dependentes químicos da modernidade”, nunca saciam seu
desejo. Assim, ambos precisam que as tecnologias e as gerências que fabricam o dinheiro de uns
e a opulência avarenta de outros programem a obsolescência dos objetos e inventem
continuamente falsas novidades. E como há muito tempo que essa produção foi desconectada das
necessidades da humanidade e como as empresas não têm conta a prestar a ninguém, exceto a
seus acionistas que somente veem cifras na sua frente, tanto faz se o ar se torna irrespirável, se
falta água ou se ela é venenosa, se o planeta se torna uma imensa lixeira. Equivocadamente, julgam
que ainda haja espaço e tempo para que uma minoria seja preservada desses inconvenientes
criados pelo preço a pagar pelo " desenvolvimento". Enquanto isso, a Terra se acaba numa corrida
sem fim em que tanques são preferidos a arados, carros a trens, home theaters a parques públicos.

Nessa reengenharia do capital, uma grande parte dos trabalhadores também se torna descartável,
quer como peças na engrenagem da produção de riqueza, quer mesmo como consumidores. Os
mecânicos da ciência e da tecnologia cuidam da produção; os do cérebro, dos desejos, não só para
satisfazê-los, mas (muitas vezes até preferencialmente) para que a maioria fique suspensa à
expectativa de alcançar um belo dia a sua satisfação; e os mecânicos da economia garantem o
bombeamento da riqueza para os seus detentores, cuidando dos seus múltiplos dutos e
assegurando, com a ajuda dos mecânicos do cérebro, que fomedutos, também chamados de
políticas compensatórias, mantenham os pobres longe de qualquer tipo de “riqueza".

Como inverter ou mesmo pôr um freio a essa espiral enlouquecida? Tudo indica que há algumas
chances de a própria natureza se encarregar de colocar brutalmente limites à loucura da atual
economia capitalista. Mas, se e quando isso acontecer, será provavelmente tarde demais para
corrigir os rumos da humanidade.

Novamente, a tarefa é extremamente complexa quando nos damos conta de que o consumo não é
uma decisão meramente individual. Não adianta apelar à consciência das pessoas e achar que falta
educação ambiental. Os gostos e os desejos são componentes da forma como se desenrola a luta
de classes na sociedade pós-moderna, na falsidade dessa nossa "democracia do consenso"
(Ranciàre, 1996). De um lado, o mercado se dedica a buscar capturar e prender na sua teia o
conjunto da sociedade. Do outro, num momento histórico em que o proletariado tal como o
conhecemos está desaparecendo, e em que os grupos sociais têm dificuldade em definir uma
identidade coletiva, grande parte da sociedade, vai buscar ou nos fundamentalismos ou no
consumo seu fator aglutinador.
PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 12
As dimensões do desafio exigem uma profunda mudança política e uma verdadeira reforma moral,
conquistando parte da humanidade para uma revisão crítica e para a reformulação de suas
expectativas, sonhos e desejos. Só dessa forma chegaremos a um consumo austero, a uma
sociedade da sobriedade, na qual a solidariedade para com os mais pobres e entre pessoas e
povos faça prevalecer o ser sobre o ter, levando a uma nova práxis coletiva na construção da
"natureza-projeto". Sem esse amplo movimento, que não deixa de ser uma verdadeira revolução
filosófica, as propostas de reforma do padrão de produção e consumo se reduzem a boas intenções
e a exemplos de pessoas e de grupinhos sem impacto. No entanto, a educação tem que introduzir
esse debate, para produzir o humo fecundo no qual poderão brotar (ou não, mas isso não é a
educação que decide) as sementes da renovação.

Terceiro desafio: humanizar o território

Essa pode parecer uma ideia paradoxal para uma reflexão que tem como ponto central o meio
ambiente. José Augusto Pádua, no seu livro Um sopro de destruição, cita o jesuíta Antonil, que, em
1711, escrevia sobre o processo de colonização do território brasileiro: "feita a escolha da melhor
terra para a cana, roça-se, queima-se, e alimpa-se, tirando-lhe tudo que podia servir de embaraço".
E Pádua (2002) comenta: "A floresta tropical com toda a sua diversidade, aos olhos do colonizador,
representava em certos momentos pouco mais do que um embaraço". Os pecuaristas e os
plantadores de soja que avançam sobre o cerrado e a floresta amazônica perpetuam essa " tradição
aventureira", na expressão de Sérgio Buarque de Holanda. E o que impressiona é que são
empreendedores na ponta da modernidade, que andam junto com a bolsa de Chicago, a Cargill e
frigoríficos de última geração. Não é de se admirar.

Para não sermos tentados a achar que se fala aqui de fronteira longínqua, lá onde não haveria tido
ainda tempo de instalar o "estado de direito", basta lembrarmos das catástrofes ambientais e sociais
produzidas pela Shell, em Paulínia (SP); pela Rhodia, na Baixada Santista (SP); pela Ingá, em
Itaguaí, na Baía de Sepetiba (RJ); pela Cataguases, em Minas Gerais. São exemplos de
multinacionais e de um empresariado agindo no seu desprezo pelo território e suas gentes. F o pior
talvez ainda esteja por vir, na medida em que o Brasil está sendo objeto de mais um ataque maciço
a seu território. Uma nova e mortal onda de privatização do espaço, da terra, do solo, do subsolo e
das águas nos ameaça, hoje mesmo.

Como se constitui uma nação? Num território delimitado, pessoas, famílias, trabalhadores vão
inscrevendo suas presenças e fincando raízes. Extraem da terra seu sustento: alimentação,
habitação, energia, vestuário, transporte, lazer e cultura. Todas as suas atividades levam a marca
do ecossistema no qual estão inseridos. Esse seria o retrato idílico de um Brasil imaginário. O que
tivemos, de fato, foi o Papa, com o Tratado de Tordesilhas, e os portugueses, com suas expedições
e seus fortes espalhados nos confins, demarcando o território. Depois, prevaleceram os
"aventureiros" (Buarque de Holanda, 1995), o Brasil colônia, os senhores de escravos, os coronéis
e os bandeirantes, ontem como hoje. Como não conhecemos nem déspotas esclarecidos, nem
revolução, nem democracia no seu sentido pleno .com possibilidade real de ascensão de novas
classes que possam mudar os rumos do país), os "trabalhadores" do campo permaneceram nos
interstícios do latifúndio, nos lugares e nas atividades desprezados e/ ou abandonados, ou em
espaços ainda não descobertos pelo mercado dominante e, por isso mesmo, tolerados pelo poder.

Assim, graças a seu tamanho e à resistência do seu povo, apesar das suas elites e dos seus
aventureiros, o país conseguiu até hoje manter uma rica diversidade cultural e social, expressa pela
PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 13
quantidade de nomes com os quais se fala da população interiorana: povos indígenas, quilombolas,
açorianos, caiçaras, pescadores artesanais, marisqueiras, ribeirinhos, extrativistas, seringueiros,
quebradeiras de babaçu, coletores de castanha ou de caju, geraizeiros, colonos, sertanejos,
pequenos produtores, camponeses... A cada um deles, correspondem formas distintas de manter,
manejar, cuidar da biodiversidade e dos ecossistemas.

Atualmente, acabaram-se as ilusões. Até mesmo porções do território outrora desprezados são
cobiçados: o cerrado, pela agricultura de grãos; a Amazônia, pela pecuária e pela soja; o litoral,
pelo turismo; seus manguezais, pela carcinicultura; terras em decadência, pelo eucalipto; rios, pela
irrigação intensiva e pelas hidroelétricas. Essa nova vaga de desenvolvimento e seus promotores,
portados pela torcida nacional midiática em favor do crescimento, só se incomodam com o meio
ambiente por causa da exigência de licenciamento ambiental; não querem saber se há
gente nesse território. E, decididamente, não pretendem levar a classe operária ao paraíso.

O que representa para eles o meio ambiente? A terra torna-se mero suporte às atividades agrícolas
intensivas em insumos químicos, água etc., a tal ponto que a cultura hidropônica dispensa o solo!
Para essas pessoas, a chapada do cerrado mineiro significa água em quantidade suficiente, terra
barata e relativa proximidade das usinas consumidoras de carvão vegetal; decididamente, não
veem nela um complexo ecossistema manejado por comunidades multicentenárias,
interrelacionadas com as vertentes e as veredas. Da mesma forma, o manguezal, para os
carcinicultores, significa apenas solo e água disponíveis, que vão assegurar seus lucros
na exportação do camarão.

A Terra Indígena Cinta Larga significa diamantes para os mineradores, e não uma TI,3 assim como
o lago de Juruti Velho, no Pará, cujos moradores clamam para que sua forma de vida seja
respeitada, significa bauxita para a Alcoa, e não uma comunidade de caboclos. Certos geneticistas
veem nas sementes material para manipulação e não parte da história do campesinato, assim como
a Monsanto calcula na safra seu lucro e não o volume de produção e sua qualidade. É o mesmo
cálculo que fazem empresas da petroquímica ou da metalurgia, quando consideram as doenças
dos seus trabalhadores e o profundo impacto negativo da sua produção sobre o entorno e a
população como meras externalidades que não entram na formação do preço, para não afetar seu
lucro.

A Rede de Justiça Ambienta14 definiu como injustiça ambiental o mecanismo pelo qual sociedades
desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do
desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos
étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis". Humanizar
o território significa reconectar esse território, a produção, a vida, a população com a sua base
material e natural. É assim que a práxis da justiça ambiental, enquanto luta de populações para que
sejam respeitados e/ ou restabelecidos o seu laço e a sua integração com o seu meio ambiente,
contribui para que seja construída a natureza-projeto. No caso urbano-industrial, é através do
impacto sobre a moradia ou sobre a saúde que a população vai tomar consciência da injustiça
ambiental à qual está sendo submetida. E é no enfrentamento dessa injustiça que vai participar
dessa natureza-projeto.

3. Sobre esses exemplos e outros, ver relatórios 2003 e 2004 da Relatoria Nacional para o Direito Humano ao Meio Ambiente em:
vvww.dhescbrasil.org.br ewww.justicaambiental.org.br.
4 . Ver www.justicaambiental.org.br.
PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 14
Há ainda uma questão igualmente importante a ser explicita da, a esse respeito: mais que encarar
esses setores como vítimas do modelo, importa ver neles os artesãos do futuro. Quem pode ser
em contrapartida o portador de um território/ país sustentável e democrático senão a sua gente
teimosa, agarrada ao chão e engenhosa em extrair dele e da sua situação a construção do seu
futuro? Muitos desses grupos sociais foram "desconectados”, ou melhor, arrancados à força do seu
território, mas seu grito de injustiçados é o grito da reivindicação por dignidade, por reconhecimento.
Não se trata de uma " demanda" de subalternos por mais justiça, mas, antes de tudo, de uma
afirmação que coloca os setores dominantes no seu verdadeiro lugar de predadores e de
opressores. Além do mais, esse grito evidencia "a existência de uma relação entre a degradação
ambiental e a racionalidade instrumental do capital" (Acselrad, 2004:22). O clamor por equidade e
igualdade frente ao trabalho, ao território, às políticas de " desenvolvimento" confunde-se aqui com
o grito por um meio ambiente preservado para o futuro. E esse grito se confunde, por sua vez, com
o grito contra o mercado que pretende cuidar desse meio ambiente!

Nos deixamos levar longe demais? Ou não seria um olhar renovado sobre o território, a natureza e
os ecossistemas que nos levam a repensar a condição da nossa humanidade brasileira, que nos
levam a retomar a discussão da equidade e da igualdade? Muitos desses setores mencionados
aqui formaram a sua cultura em continuidade com a natureza. São, portanto, indispensáveis para
a construção do amanhã, sem que isso signifique que queiramos vê-los fixados de uma vez por
todas no seu modo de vida atual.

No primeiro tópico, mencionamos a distinção entre natureza a preservar e natureza aberta à


destruição. Quando postulamos aqui a humanização do território, não queremos fazer sumir a
natureza a preservar, mas somente acabar com a dicotomia do olhar e dos comportamentos. Áreas
preservadas frequentemente o foram porque grupos sociais ou pessoas procuraram conservá-las.
Eles e o poder público as definiram e delimitaram, atribuindo-lhes uma denominação específica:
parque, reserva, estação ecológica. Foram o olhar e a ação desses seres humanos, dotados de
determinada visão de mundo e sensíveis à sua importância, que possibilitaram a esses espaços
serem reconhecidos, nomeados e protegidos. Ganharam, a partir desse momento, uma "identidade
cultural", quer para o acesso restrito de pesquisadores, quer para o usufruto das comunidades
locais. Por outro lado, ao identificarmos essas áreas e ao conceder-lhes essa identidade cultural",
estamos exercendo de forma plena nossa condição humana: é a partir de nossa cultura que
"construímos" a natureza. O que falta a essas áreas a serem preservadas não é, pois, como pregam
alguns e sim mais humanidade e mais cultura: pessoas dotadas de sensibilidade que as torne
capazes e comungar com a natureza-projeto.

Nesse sentido, antes de prosseguirmos, vale ressaltar que impressiona como organizações
urbanas, sindicatos e partidos têm dificuldade em entender o campo. Têm dificuldades em
compreender que a luta dos sem-terra e do campesinato por uma agricultura diversificada,
sustentável, que garanta a biodiversidade, produza água, conserve os solos, mantenha áreas de
preservação, entre outras coisas, deveria fazer parte também dos seus projetos e das suas próprias
lutas. Isso só reforça a importância do papel do educador e de que ele tenha uma percepção
sistêmica, totalizadora da complexidade do real.

Quarto desafio: inserir o trabalho na perspectiva da construção de um projeto de futuro


para a humanidade e o planeta
PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 15
Com a revolução industrial, mesmo quando se combatia a exploração do homem pelo homem, a
referência de luta e de construção do "homem novo" era o trabalho. Ainda hoje, as pessoas
associam trabalho à dignidade. A exploração do ser humano se ampliou. Mais mulheres são
exploradas por salários aviltantes; crianças repetem nos países do Sul a Inglaterra de Dickens;
mantém-se a escravidão. A condição proletária se estendeu ao setor de serviços, aos bancos e ao
comércio. Multidões de trabalhadores rurais continuam sua vida de nômades. Muitos ainda vendem
a sua saúde física e mental, seu corpo e sua mente; outros (e sempre mais numerosos) nem
conseguem isso. Tornaram-se, não mais descartáveis, mas inúteis para o mercado, e, portanto,
invisíveis para ele. Ou será que cumprem funções importantes: ser o agulhão que força os
contemplados por um emprego a aceitar a exploração à qual estão submetidos? Ainda se aposta
que o crescimento econômico poderá fornecer mais empregos. A combinação de inovações
tecnológicas com a robótica, de um lado, e, do outro as “delocalizações (esse deslocamento de
empresas para países que conseguem ofereceras piores condições de trabalho e de salários)
mostram contrário. Estudos recentes da UFRJ, no oposto da propaganda do agronegócio, dizem
que o crescimento da agricultura empresarial na realidade levou à supressão de mais de um milhão
de empregos, nos últimos anos.

É verdade que a retomada do crescimento, no Brasil como em outros grandes e populosos países
do Sul, ainda propiciará bastante empregos. Mas não esqueçamos que nosso país combina duas
economias: uma do século XIX e outra do século XXI. A do século XIX, que usava farta mão-de-
obra, tanto no campo quanto na indústria, está desaparecendo com a modernização. A do século
XXI, baseada na robótica e na informática, dispensa aceleradamente mão-de-obra. Ambas levam
a uma perda violenta de empregos, que nenhuma retomada do crescimento poderá compensar. A
saída forçada estaria então no informal: na melhor das hipóteses, no biscate e no empreendimento
de fundo de quintal; na pior, no tráfico e no contrabando.

Apesar dessa realidade, acreditamos que a ampliação do mercado formal de trabalho, além de
desejável, é possível. No entanto, para isso é preciso repensar os rumos do desenvolvimento.
Quanto à economia informal, neste momento em que interessa ao mercado dominante a
informalidade, deve-se transformar essa informalidade em "virtude". Como? Apostando na
economia solidária, que desenvolve outra visão e prática da produção e do mercado, não baseada
sobre a exploração do trabalho alheio e sobre o lucro a qualquer preço. Mapeamento preliminar da
Secretaria Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho — Senaes — já contabilizou
22 mil empreendimentos sustentados por bases cooperativas de ajuda mútua, sendo auxiliados por
cerca de 800 entidades sociais, religiosas ou associativas, que funcionam como catalisadoras do
processo de reintegração socioeconômica.5

Opõe-se o "desenvolvimento" que promove crescimento e trabalho ao meio ambiente que bloqueia
a criação de empregos. E tempo de enfrentar esse falso dilema, pois vemos os principais setores
que agridem o meio ambiente e expulsam populações se apresentarem como campeões no
fornecimento de empregos. A simples observação empírica mostra que os postos de trabalho
abertos pela pecuária, pela cultura de grãos ou pela carcinicultura são incomparavelmente menores
do que os fornecidos pela agricultura familiar ou a pesca artesanal e a coleta de moluscos.

Quanto a atividades industriais como as do alumínio, ferroligas, cimento, siderurgia, papel e


celulose e, em menor medida os produtos químicos, "se caracterizam — segundo Célio Bermann,
do Instituto de Eletromecânica e Energia da USP — por serem extremamente intensivas no

5 . Informe de Nelson Breve, em 9 de agosto 2004, sobre o Primeiro Encontro Nacional de Empreendimentos de Economia
Solidária (Brasília, 13 a 15 de agosto de 2004). Lista Internet Redesolidária.
PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 16
consumo energético e com capacidade extremamente reduzida de geração de emprego"
(Bermann, 2004:43). Não queremos dizer com isso que o Brasil e nós não precisamos dos produtos
dessas indústrias, mas que é preciso relativizar o discurso supostamente científico da economia,
que não passa de propaganda.

Seria possível valorizar a verticalização dessas indústrias, fazendo com que se agregue valor aos
produtos primários; não dar tanta importância a esses setores, saindo de uma visão que prioriza as
exportações; e incrementar outros setores. E o caso da construção civil. Há hoje um déficit de mais
de seis milhões de habitações. Isso representa um enorme mercado potencial de trabalho, com a
vantagem que não faltam experiências e tecnologia para que esse setor minimize o uso de recursos
naturais e se adapte aos recursos locais disponíveis. Os metalúrgicos da construção automobilística
procuram segurar seu emprego, defendendo uma política voltada para o automóvel. E o transporte
coletivo? Quantos empregos não daria a expansão das ferrovias, na sua implementação ou
reforma, na construção do material ferroviário e na sua manutenção?

A reconstrução da natureza vai se tornar sempre mais tarefa prioritária e vai criar muitos empregos,
mas antes, o cuidado para com ela também. A Secretaria de Desenvolvimento Sustentável do
Ministério do Meio Ambiente está com um projeto inovador, criado sob o impulso dos
trabalhadores rurais do Pará junto com entidades de assessoria, chamado Pro-ambiente. Visa a
criar mecanismos especiais de crédito aos agricultores familiares e agroextrativistas que prestam
serviços ambientais. Esses serviços — cuidar do solo, das águas, da biodiversidade, da paisagem
etc. — deveriam ser remunerados pela sociedade. O princípio seria o mesmo que faz com
que se pague a jovens dos morros cariocas para reflorestar as encostas ou manter os jardins das
calçadas.

Devemos distinguir aqui educação para o trabalho da educação profissional. Se colocamos como
referência e horizonte a natureza projeto, a [re]construção de uma relação de sustentabilidade entre
o ser humano e a natureza, o trabalho constitui uma dimensão central dessa tarefa e é assim que
deve ser visto. Não é porque assume essa dimensão que o trabalho vai se tornar forçosamente
mais leve e menos fastidioso. No entanto, para aqueles que labutam, faz diferença saber se estão
contribuindo para enriquecer a alguns poucos e para a destruição da natureza e da própria
humanidade a sua perda, mesmo que não seja essa sua intenção, ou se, ao contrário, estão sendo
parte atuante na construção de um projeto de futuro.

Quinto desafio: repensar o tempo e o espaço

Voltamos a meditar sobre a imagem da Terra que desfila imperceptivelmente na tela do nosso
computador. Essa lenta sucessão de mares e de continentes representa na realidade uma
vertiginosa volta ao mundo, que deixaria o visionário Jules Vernes, com seus 80 dias, estonteado.
O espaço encolhe; o tempo se acelera. Do endereço da Nasa, é possível fotografar, em close-up,
o brilho dourado de Io e o verde esfumaçado de Ganimedes, duas das luas de Júpiter, Um bom
hacker, capaz de se infiltrar num satélite de observação militar dos EUA, poderia fixar o instante em
que o caboclo amazônico dá o golpe de remo que vai levar sua canoa, horas mais tarde, ao
armazém lá na curva do rio, tão perto e tão longe. Espaço infinito; tempo lento.

Nossas percepções do tempo e do espaço são múltiplas e complexas. Têm a ver com nossos
humores, nossas atividades, nossa sensibilidade, mas também com o modo como nos situamos no
mundo e na história. E isso, por sua vez, tem a ver com o modo como inserimos a preocupação
com a natureza na nossa percepção do tempo e do espaço. Desde a escola, aprendemos sobre o
PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 17
longo tempo geológico, que desafia nossa compreensão pela sua grandiosidade. Mas, para torná-
lo de alguma forma concreto, precisamos associar o lento deslizar das placas tectônicas aos
movimentos sísmicos, à lembrança ou à ameaça dos terremotos.

Já o tempo biológico nos parece mais familiar, embora a prodigiosa natureza tropical, mãe fecunda,
continue sendo um mito cômodo, ao passar um duplo sentimento de imutabilidade e de
prodigalidade. A evolução da vida se mede em ciclos de milhões de anos, mas esta vida que
conhecemos, em dezenas de milhares de anos, até menos. A floresta amazônica tem dez mil anos
de idade: a idade do neolítico, do começo da agricultura, tão próxima e tão distante. Esse tempo
biológico aproxima-se perigosamente do tempo da história humana. Deveríamos dizer: se funde
com a história humana, já que emergimos dessa vida, que fomos feitos dentro desse tempo
biológico (ele mesmo tornado possível pelo tempo geológico). "Perigosamente", porque o que o
tempo teceu ao longo dos milênios estamos desmanchando em décadas.

Nestes dias em que escrevemos (fim de julho de 2004), na III Conferência Científica do LBA —
Experimento em grande escala da biosfera-atmosfera na Amazônia — os cientistas prognosticam
que, num período entre 50 e 100 anos, até 60% da Amazônia brasileira poderá ser
drasticamente alterada, com a sua transformação em savana. Os climas do Centro-Oeste dos
EUA, do Centro Oeste, do Sudeste e Sul do Brasil, do Paraguai, do Uruguai e da Argentina
estariam seriamente afetados. Outra pesquisadora avalia que a fumaça das queimadas já afeta o
Brasil e esses últimos países.6

Uma colega perguntava a um fazendeiro/ grileiro (que nome dar a esses malfeitores, que Sérgio
Buarque de Holanda chamava de “aventureiros"?) o que faria quando não houvesse mais mata a
derrubar na Terra do Meio, entre a BR-163 e o Xingu. Ele respondeu que iria mais adiante. "E
quando não houvesse mais mata no Brasil"? Iria para a Colômbia, o Peru ou o Equador... Os Andes
e os Caribes são a sua fronteira; parece-lhe normal chegar até lá, no tempo da sua vida de
aventureiro. O tempo de uma geração humana se sobrepõe ao tempo biológico. E poucos milhares
de malfeitores da humanidade e do Brasil, somando ao nosso entrevistado os setores econômicos
e políticos que lhe dão sustentação, produzem efeitos que afetam boa parte do planeta.

Para não ficarmos na marginalidade, vamos pensar nos cientistas e técnicos que produzem
sementes transgênicas, por exemplo, de milho. Esse milho, plantado, vai rapidamente, devido à
polinização, suplantar o milho nativo. Essa erosão genética representa uma catástrofe para os
países latino-americanos que são o berço do milho. Se no futuro acontece uma praga que afeta
esses milhos transgênicos, onde a humanidade irá buscar as sementes nativas para continuar
tendo milho? Surgem aqui os princípios de precaução e de responsabilidade.
O filósofo alemão Hans Jonas expressa-os nos seguintes termos:

"Hoje, a ética tem a ver com atos que têm um alcance causal incomparável em direção ao
futuro, e que são acompanhados de um saber de previsão que, independentemente do seu
caráter incompleto, vai muito além, ele também, do que se conhecia antigamente. É preciso
acrescentar à simples ordem de grandeza das ações a longo termo, frequentemente, a sua
irreversibilidade. Tudo isso coloca a responsabilidade no centro da ética, inclusive os
horizontes de espaço e tempo que correspondem aos das ações" (Jonas, 1995: 17).

6 . Jornal do Brasil e O Globo, 28 e 29 de julho de 2004.


PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 18
Sexto desafio: ética, visão de mundo e direitos, humanos e ambientais
O Galileu de Brecht defendia a ciência como o instrumento para aliviar as canseiras humanas,
para nos garantir saúde, moradia, informação, cultura e lazer. Mas uma das principais táticas do
capitalismo foi envolvendo o cientista e o técnico nas suas artimanhas, tornando-os submissos à
" chantagem do desemprego" e convencendo-os da pseudo "neutralidade" de seus trabalhos,
levá-los a abdicar da ética.

De uma forma óbvia, isso se revela no descalabro de toda uma ciência sendo utilizada para a
fabricação não só de ogivas nucleares e bombas de napalm (coisas já do passado, de certa forma),
mas de bombas de nêutrons, de minas terrestres e explosivos de fragmentação, de armas químicas
variadas, de desenvolvimento de vírus e bactérias ultra resistentes. Essa verdadeira prostituição
da ciência tem uma outra face, menos bélica, mas igualmente (senão mais) perigosa: o uso do
saber para a criação, por uns, das falsas necessidades; por outros, das obsolescências
programadas.

Uns constroem armas de intimidação; outros, de convencimento; outros ainda, de destruição, nos
mais variados sentidos, da humanidade e do meio ambiente. De alguma forma, tornam-se, todos,
peças de uma grande engrenagem de dominação, sob a égide de um neoliberalismo que se
permitiu levar ao impensável a capacidade dos seres humanos de aceitarem como natural o que
deveria nos causar, no mínimo repulsa. Um pequeno exemplo: no atual Iraque, o Pentágono vem
ressarcindo aqueles que perderam órgãos (olhos, braços e pernas) ou ficaram mutilados para
sempre, em mil dólares. A morte de civis que não participavam de combates vale um pouco mais:
US$ 2,5 mil. Isso é anunciado, publicado nos jornais, divulgado nas televisões... E nada fazemos.

Muitos de nós perdemos a noção do que sejam justiça, dignidade, violência. Claro que sabemos
muito bem — principalmente os "urbanoides" — o que significam medo, insegurança, temor de
balas perdidas, de assaltos, de sequestros, até. Mas e a violência da exploração do trabalho, da
submissão das ideias, da escravização dos sonhos, da prostituição das esperanças? Sem falar que
mesmo o fato de termos medo, hoje, de deixar nossas casas para ir a um teatro, para visitar amigos,
para passear pelas ruas, pela praia, pela praça deveria ser, em si, inadmissível. O que dizer da
privatização das praias, das margens (e) dos rios, das águas minerais "limpas" de suas
propriedades e transformadas, pelas nestlés, em "águas puras" , enquanto o lençol freático desce
a ponto de ameaçar, mais que a secura das fontes, a própria estabilidade do solo e das velhas
fontes sobre ele edificadas?

Mas há ainda outras facetas, nessa civilização injusta que nos cerca. Como aceitar que um quinto
da humanidade viva abaixo da -Linha da Indigência, padecendo de fome e de desnutrição crônicas?
Como explicar, por outro lado, que um só cidadão norte-americano gaste de energia elétrica o
equivalente ao consumo de 500 indianos?

A ética é, primeiramente, fruto das convicções pessoais de cada um de nós, produto da nossa
cultura, determinante da nossa visão de mundo, dos valores que nos levam a aceitar ou a combater
determinada realidade. Mas só isso não a constrói. Ela é, precipuamente, uma construção coletiva.
E uma construção coletiva em constante transformação, quer no sentido de seu aprimoramento,
quer em direção à sua degradação e aviltamento. Na visão (pessimista?) de Ranciêre (1996: 134),
aliás, a ética dias; precisamente a máscara sob a qual a filosofia se esconde para desumanidade
do homem que é a, face sombria do idílio consensual". Para ele, seria assim travestida que ela
ajudaria a suprimir a política e a estabelecer, no seu lugar, o regime de exclusão legitimada com o
qual convivemos, baseado na falácia da " democracia do consenso". Na mesma linha, Alain Badiou
PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 19
(2003) critica os "direitos humanitários", afirmando que eles reduziriam a ética, no melhor dos casos,
ao papel de "boa consciência do ocidente" , e, no pior, a um pathos manipulador da opinião para
justificar intervenções militares e sociais na defesa de certos interesses econômicos e políticos.

A lenta emergência dos Direitos Humanos e seu reconhecimento, mesmo que teórico, pela maioria
dos países do mundo, no quadro das Nações Unidas, representou uma grande conquista da
humanidade. Apesar de ter partido da burguesia liberal ocidental, o lema da Revolução Francesa
—liberdade, igualdade, fraternidade — ganha um sentido universal, ainda mais quando buscam se
concretizar através da afirmação dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. F verdade
que esse avanço da consciência da humanidade não é linear. Não impediu os genocídios, as
guerras ou a miséria. Mas havia um ideal que fazia com que a humanidade não afundasse no
desespero.

São essas conquistas que estão sendo ameaçadas. As alternativas (e, mais que alternativas, a
realidade que elas vêm determinando de forma crescente) que o capitalismo nos impõe,
atualmente, simplesmente subordinam nossas culturas e nosso meio ambiente a 'acordos" sob a
égide da Organização Mundial do Comércio e seu Acordo Geral de Comércio e Serviços (AGCS).
A natureza é enclausurada em parques privados; as artes são reduzidas a mercadorias; tradições
e valores construídos ao longo de gerações são encaradas como manifestações de um folclore
interessante, mas ultrapassado; a educação se torna tema para barganhas e negociação.

O antiamericanismo crescente no mundo encontra boa parte de suas motivações nesse campo:
para o mercado, cultura é Hollywood. Não mais pensar, mas se entreter; não mais entrar em contato
com o mundo, mas ter acesso a um único padrão de expressão do mundo. E, embora essa visão
restrita seja usada de forma homogeneizadora para todo o planeta, a verdade é que ela é usada
igualmente contra os próprios cidadãos que teoricamente a constroem.

A formação de valores e de uma visão do mundo, que supõem o acesso livre à informação, são
cada vez mais dificultados dentro dos próprios EUA e para os próprios norte-americanos: dez
empresas de comunicação dominam a informação no país. A desinformação que elas puseram em
prática em relação ao Iraque explica em boa parte a adesão dos norte-americanos ao presidente
George W. Bush. Segundo uma pesquisa da Universidade do Maryland, em outubro 2003, 60%
deles, e 80% dos que olham Fox News, acreditavam em pelo menos uma dessas três mentiras,
como justificativas para a guerra: descoberta de armas de destruição maciça no Iraque; provas de
aliança entre Bin Laden e o Iraque; e apoio da opinião pública mundial à intervenção norte-
americana (Klinenberg, 2004).

Ao se recusar a assinar o Protocolo de Kioto, Bush foi acintosamente claro, aliás: seu país não
abriria mão de seus níveis de desenvolvimento, pois sua economia deveria continuar a crescer,
sempre e cada vez mais, para poder servir de " grande farol" e de "parceiro fraterno" para o
progresso de toda a humanidade! A escolha das palavras nunca é gratuita: de um lado, "um grande
farol" iluminando "o" modelo (único) a ser seguido e, se "houver competência para isso", alcançado:
os padrões de produção e consumo que caracterizam o chamado american way of life. De outro,
em vez de um "parceiro fraterno", o desrespeito à soberania e aos direitos dos povos e o desejo
explícito de perpetuação do domínio dos que tudo têm sobre aqueles que são relegados à condição
de objetos necessários à perpetuação desse poder imperial.

Vale ressaltar que a posição dominante dos Estados Unidos é resultado de um conjunto de
vantagens que detêm sobre os demais países: financeiras (apesar de seu enorme déficit);
PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 20
económicas (ressaltando-se a força da microeletrônica e tecnologias de ponta); políticas e militares
(destacando-se seu peso no campo da diplomacia); culturais e lingüísticas (ressalte-se a
quantidade de premiados do Nobel trabalhando em seus laboratórios e o uso praticamente
generalizado do idioma inglês na área da informação e das telecomunicações); e simbólicas
("através da imposição de um estilo de vida quase universalmente reconhecido, pelo menos entre
os adolescentes, sobretudo através da produção e difusão de representações de mundo,
principalmente cinematográficas, às quais está associada uma imagem de modernidade")
(Bourdieu, 2001: 105). Nota-se que, com as forças políticas e econômicas que a dominam
atualmente, se a União Europeia tivesse maior força, provavelmente seguiria o mesmo padrão de
comportamento dos EUA.

Se a escolha das palavras não é gratuita e se conceitos estão sempre em disputa, do que estamos
falando, pois, quando usamos as palavras desenvolvimento sustentável? Nossa primeira questão
deveria ser "desenvolvimento para quem, para quê, de que forma e a que preço". Para construir
alternativas que acabem com a exclusão social, com a miséria, com a contaminação das águas, do
solo e do ar; ou para alimentar ainda mais a ganância da minoria que domina as nações e o próprio
planeta? Como exigir dos trinta milhões que morrerão de AIDS na África Subsaariana nos próximos
anos uma "participação paritária" na Agenda 21 para a salvação do planeta?

Se queremos, de fato, nos salvar e ao planeta (e não conseguiremos sobreviver sem ele, até
segunda ordem), é fundamental que consigamos reestruturar os papéis da cultura e da ética em
nossas vidas. É preciso resgatar nossas identidades nacionais, não de forma xenófoba, excludente,
mais precisamente naquilo que nossas culturas têm de contribuição e de riqueza para o projeto
comum de sociedade que precisamos forjar. É fundamental que sejamos solidários uns com os
outros, fraternos e respeitos os de forma a substituir a globalização que nos aliena, anula e derrota
pela internacionalização — de sonhos, de lutas e de práticas. Só assim seremos capazes de
alcançar uma cultura universal fundada sobre o humanismo e uma nova relação da humanidade
com o planeta.

Sétimo desafio: a democracia

O Estado-Nação, moderna cria s de quatro séculos que viabilizou a passagem mercantilismo ao


capitalismo, está em crise. Na sua versão ocidental, ainda que aos trancos e barrancos, foi no seu
interior que os iluministas e os liberais construíram o ideário da democracia. "Liberdade, igualdade,
fraternidade,", proclamaram os revolucionários franceses de 1789 antes de se matar uns aos
outros. Até para assegurar a manutenção dos privilégios das elites e a prosperidade do capital, a
burguesia teve que negociar com as classes exploradas e aperfeiçoar as regras de convivência
entre cidadãos e de participação democrática aos destinos da nação, aperfeiçoando o arcabouço
estatal, executivo, legislativo e jurídico.

A democracia, mesmo quando alvo de tentativas de apropriação por setores minoritários, não
pertence mais somente à burguesia histórica, que a conquistou inicialmente. As classes
trabalhadoras, as mulheres, as minorias étnicas e outros setores sofreram, lutaram (e continuam
lutando) para serem reconhecidos como cidadãos e para que a economia seja regulamentada pelo
poder público, limitando a exploração e estabelecendo regras de justiça social. Porém, é como se
a maioria dos países latino-americanos (e o Brasil em particular), tivessem retido desse processo
histórico somente mecanismos e palavras. Com o fim das ditaduras e dos regimes autoritários,
pensava-se que teria início um período democrático, em que o Estado — tradicionalmente
PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 21
capturado pelas elites e privatizado por elas — se abriria para a negociação com as classes
desfavorecidas e reconheceria a sua cidadania plena. Trágico engano: descobre-se que corremos
o risco de ver e viver uma democracia que está sendo esvaziada ou, melhor dito, domesticada.

No artigo " A democracia e o consenso de Washington", citado por José Luis Fiori em Os interesses
e as mudanças, John Williamson afirma que a sobrevivência dos regimes políticos nos países
submetidos às políticas ortodoxo-liberais supõe que os principais atores políticos e econômicos
aceitem que existe uma, e somente uma política econômica: justamente a que está sendo aplicada.
Essa política, portanto, não seria mais objeto de debate democrático; qualquer governo eleito pelo
voto universal manteria o mesmo receituário macroeconômico, garantindo, assim, a credibilidade
do país perante os investidores. Paralelamente, as novas e antigas oligarquias, caudilhismos,
caciquismos e coronelismos associam-se politicamente às tecnoburocracias e às transnacionais,
para assegurar a sua manutenção no poder local e, por sua aceitação espontânea da "regra" pro-
posta por Williamson, a subordinação do país ao mercado mundial, o seu enriquecimento marginal.
As "elites" abrem mão assim de qualquer projeto nacional. Na realidade, são as primeiras a
manifestar a sua descrença da democracia.

A democracia é a busca e a construção permanente de acordos, através da negociação, e a gestão


democrática dos dissensos, de forma a assegurar a possibilidade de convivência entre classes e
setores sociais e a execução de políticas que permitem a todos viver com dignidade. Nesse sentido,
o tratamento dado à Reforma Agrária neste país, para ficar num só exemplo, historicamente mostra
que a democracia não chegou ao campo. Os atuais "ruralistas", ferozes opositores à
democratização da terra, não podem mais ser confundidos com o atraso, como se fossem
sobreviventes do passado, pois são capitaneados por modernos empresários e acompanhados pelo
capital bancário, por parte da alta tecnoburocracia, por grande parte dos setores de Ciência e
Tecnologia e por empresas multinacionais. Se a classe operária conquistou a sua "cidadania
mínima" (carteira de trabalho, direito de associação, aposentadoria) em mais de um século de lutas
de classe, o campesinato, nos países ocidentais, conquistou o direito à terra em centenas de anos
de revoltas e revoluções. E o que temos atualmente é um quadro em que os primeiros veem
ameaçadas suas conquistas pelas políticas de flexibilização, enquanto os segundos...

Os debates democráticos sobre o latifúndio e sobre a enorme desigualdade no campo são


escamoteados pelo discurso do mercado, de um lado, e de políticas sociais, do outro, com a
cumplicidade ou a omissão da maioria da sociedade. Como a classe operária europeia foi o grande
agente da construção da democracia ocidental, hoje as organizações dos sem-terra, do
campesinato e dos extrativistas são vistas como agentes da construção da democracia no país. O
grande problema é que, frente a elas, se ergueu o muro multissecular da prepotência e da
indignidade dos senhores de escravos, que se perpetua até hoje. Ao mesmo tempo que recusando
avanças democrático, nega a política o agronegócio usa-a. Os principais espaços do governo e
eraldedicados ao campo são dele. O Itamaraty e a presidência (para alguns transformados, por
imposição da globalização do mercado, em caixeiros-viajantes) têm como uma das suas grandes
estratégias de ação internacional a abertura total dos mercados agrícolas.

Voltemos uma humanização do território. humanizá-lo é reconstruir a relação natureza-ser humano,


de tal modo que possamos imaginar um futuro possível, isso não se fará sem o aprofundamento
da democracia, que permita que as classes subalternas tenham enfim a possibilidade de participar
do poder. Não cabe aqui nos aprofundar, mas importa sublinhar que a democratização do país
passa pela criação de instâncias de participação democrática nos diferentes níveis: local, nacional
e internacional. Vivemos uma conjuntura extremamente perigosa de descrédito da política. E essa
PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 22
desmoralização chega, não por acaso, num momento em que o mercado procura por todos os
meios assumir as tarefas que antes eram do Estado, tornando-as lucrativas. O nosso "meio"
(mundo/ planeta) e nossa humanidade tão massacrados e com tanta desigualdade não serão
salvos pelo mercado. A educação ambiental tem a responsabilidade de formar cidadãos e cidadãs
do Brasil e do mundo que saibam que a natureza projeto somente poderá se tornar realidade pela
política. E se essa está sendo desvirtuada, pertence à nova geração de lhe devolver a nobreza de
ferramenta voltada a construir no planeta solidariedade, liberdade, igualdade, cuidado, carinho,
humildade.

Não há projeto sem utopia, não há caminho e sentido sem sonho. Não há educação sem
imaginação.

4. A educadora e o educador ambiental como protagonistas, neste cenário: algumas


observações finais

Mais do que elaborar algum tipo de conclusão, preferimos aproveitar este final para reafirmar
algumas poucas questões que dizem respeito às características que pensamos essenciais para
aqueles e aquelas que se dedicam à educação ambiental.

Antes de mais nada, vale repetir que ele e ela não podem ser pessoas preocupadas exclusivamente
com a "natureza”, incapazes de enxergar as complexidades, dificuldades e crises do mundo o amplo
meio ambiente a sua volta. A verdadeira educação ambiental deve ter como preocupação proteger
não só as águas, o ar, as florestas, a flora e a fauna, mas, também, os homens e as mulheres que,
muitas vezes exatamente por reunirem todas as características que os tornam mais suscetíveis à
injustiça ambiental — miséria, pobreza, situação de risco em todos os sentidos, principalmente falta
de (in)formação e ignorância — , tornam-se, ao mesmo tempo, vítimas e algozes de seu entorno.

Há aqueles que destroem o meio ambiente provocando desequilíbrios ecológicos; promovendo os


grandes desmatamentos; desgastando os solos com as monoculturas; contaminando solos, águas
e ar; desrespeitando populações tradicionais e envenenando e/ ou arriscando as vidas de seus
empregados, de suas famílias e dos entornos das fábricas, usinas, garimpos etc, onde colhem seus
lucros. Contra esses, não há dúvida de que a ação deve ser radical: de denúncia, de combate, de
exigência por mudança de atitude e/ ou punição. Já em relação àqueles que ao mesmo tempo
sofrem e são agentes de sofrimento (para a natureza, para seus semelhantes e para si mesmos),
nossa estratégia deve ser outra.

Não estamos defendendo, em absoluto, o paternalismo de achar que, pela sua exclusão,
marginalização, miséria ou ignorância, eles e elas tudo possam fazer. Seria o caso, então, de
aceitarmos que ingerissem ou dessem a seus filhos venenos, por exemplo, desculpando tal atitude
em função de um eventual analfabetismo que impedisse a leitura do rótulo de determinado produto.
Aliás, esse exemplo não é gratuito. Basta lembrarmos da "bolinha brilhante" de césio levada para
mostrar à família pelo dono do ferro-velho de Goiás; do pó de broca sendo usado como remédio
para matar piolhos em Duque de Caxias, Rio de Janeiro; ou dos organoclorados servindo de adubos
nas hortas de Paulínea, em São Paulo.

Para essas pessoas, necessitamos ser mais que nunca educadores. Precisamos saber ao mesmo
tempo compreendê-las e respeita-las, nas suas dificuldades, e, " sem perder a ternura",
responsabilizá-las — a partir da ação de torná-las conscientes — pela mudança de atitudes em
relação ao córrego que é usado como lixeira; à encosta despida de suas árvores para construir
mais uma moradia; à mata ciliar devastada; ao manguezal transformado em fornecedor de lenha;
PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 23
ao canto de floresta (que resiste como "testemunho" de que ali esteve presente um dia toda a
riqueza da Mata Atlântica) lá no finzinho da ocupação do MST...

Um outro ponto diz respeito à amplitude de nossa ação e as nossas alianças. Se concordamos que
é preciso construir um mundo novo; se desejamos um planeta verdadeiramente humano e um
projeto civilizatório mais justo; se aceitamos, enfim, nosso papel na construção da cidadania, então
temos que ampliar a arena do nosso combate, da nossa atuação. Temos que forjar espaços de
interseção entre ela e outras luta. Temos, finalmente, que ir além das especificidades e assumir um
papel de coprotagonistas no estabelecimento de bases que viabilizem, pouco a pouco, a
transformação das diversas lutas específicas, corporativas, localizadas, numa grande construção
coletiva.

Essa construção — que envolve o desafio de partilharmos nossos sonhos e estabelecermos uma
utopia comum, mesmo que tenhamos que eventualmente trilhar caminhos evidenciados para
alcançá-la — deve envolver todos e todas que desejam a transformação do nosso projeto
civilizatório. Falamos, aqui, dos verdadeiros intelectuais, entendendo-os como aqueles que têm
compromisso com a mudança em direção à contra hegemonia, mesmo que não usem essa
expressão ou esse tipo de palavras: líderes comunitários, urbanos e rurais; pesquisadores das
academias, das mais diversas especialidades; lideranças sindicais e camponesas; membros de
ONGs e integrantes de movimentos sociais; artistas e trabalhadores das mídias; formadores de
opinião das mais diferentes áreas, enfim.

O Fórum Social Mundial é, hoje, o grande cenário onde esse encontro se faz possível. O grande
cenário que vem se desdobrando, inclusive, em arenas menores, continentais, nacionais, regionais
e locais, temáticas, buscando propiciar a mesma possibilidade de interlocução, de troca, de
construção de alternativas comuns. Será que temos sabido estar presentes da melhor forma em
todos esses eventos? Ou poderíamos estar fazendo melhor? É hora de definirmos o que de fato
queremos, nossa estratégia para chegar lá e, isso feito, nos aliarmos num grande mutirão e numa
grande arrancada. Co protagonizar esse processo é das tarefas mais dignas a serem
desempenhadas pela educação ambiental.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACSELRAD, H. et al. Tudo ao mesmo tempo agora. Petrópolis, Vozes, 2002. "Justiça
ambiental — ação coletiva e estratégias argumentativas". In: • HERCULANO, S. &
PÁDUA, J. A. (orgs.). Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2004.

BADIOU, A. L'éthique — essai sur Ia confiance du mal. Caen, Nous, 2003.

BERMANN, C. Exportando a nossa natureza. Produtos intensivos em energia: implicações


sociais e ambientais. Cadernos sobre Comércio e Meio Ambiente n. 1. Rio de Janeiro, Projeto
Brasil Sustentável e Democrático/ Fase, 2004.

BOURDIEU, P. Contrafogos 2. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001.

BRECHT, B. "Vida de Galileu". In: . Teatro 5. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,


1978.
PENSAMENTO COMPLEXO, DIALETICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL 24
BUARQUE DE HOLANDA, S. Raízes do Brasil. 26. ed., São Paulo, Companhia das Letras, 1995.

DESCARTES, R. Discours de 1a Méthode. Paris, Flammarion, 1966.

JONAS, H. Leprincipe responsabilité. une éthiquepour Ia civilisation technologique. 3. ed.


Paris, Flammarion, 1995.

KLINENBERG, E. "Contestation de l'ordre médiatique américain". Le Monde Diplomatique.


Paris, abril, 2004.

MAZOYER, M. & ROUDART, L. Histoire des agriculfures du monde. Du néolithique à Ia crise


contemporaine. Paris, Seuil, 1997.

OST, F. La nature hors Ia loi. L 'écologie à I 'épreuve du droit. Paris, La Découverte, 1995.

PÁDUA, J. A. Um sopro de destruição. Pensamento político e crítica ambiental no Brasil


escravista (1786-1888). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002.

RANCIÊRE, J. O desentendimento. São Paulo, Editora 34, 1996.

SÉRALINI, OGM Le vrai débat. Paris, Flammarion, 2000.

SINAI, A. "Le Sud se divide sur le front climatique". In: Le monde Diplomatique, Paris,
fevereiro de 2004.

WILLIAMSON, John. A democracia e o consenso de Washington. Apud FIORI, J. L. Costa


da. Os interesses e as mudanças! Revista Carta Capitai. São Paulo, 2003.

Potrebbero piacerti anche