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James Hollis

PAULUS
Coleção A mor e P sique__________ Psicologia e religião
• Uma busca interior em psicologia e religião, r\
Coordenação James Hillman
D ra . M aria Elci S paccaquerche
Dr. L éon B onaventure Psicoterapia, imagens
e técnicas psicoterápicas
Autoconhecimento e a dimensão social (O)
• Abuso do poder na psicoterapia e na medicina,
• Encontros de psicologia analítica, Maria Elci serviço social, sacerdócio e magistério (O),
Spaccaquerche (org.) Adolf Guggenbühl-Craig
• Família em foco (A): sob as lentes do cinema, • Compreensão e cura do trauma emocional,
Marfiza Terezinha Ramalho Reis; Maria Elci Daniela F. Sieff
Spaccaquerche (orgs.) • Letras imaginativas: breves ensaios de psicolo­
• Jung, o médico da alma, VivianeThibaudier gia arquetípica, Marcus Quintaes
• Meditações sobre os 22 arcanos maiores do • Mistério da coniunctio (O): imagem alquímica
tarô, Anônimo da individuação, Edward F. Edinger
• Mundo interior do trauma (O): defesas arquetí-
Contos de fadas e histórias mitológicas picas do espírito pessoal, Donald Kalsched
• Gato (O): um conto da redenção feminina, • Mundo secreto dos desenhos (O): uma abor­
Marie-Louise von Franz dagem junguiana da cura pela arte, Gregg
-' V
• Individuação nos contos de fada (A), M. Furth
Marie-Louise von Franz • Psicoterapia junguiana e a pesquisa contem­
• Interpretação dos contos de fada (A), porânea com crianças: padrões básicos de
Marie-Louise von Franz intercâmbio emocional, Mario Jacoby
• Mitologemas: encarnações do mundo invisível, • Psiquiatria junguiana, Heinrich Karl Fierz
James Hollis • Saudades do paraíso: perspectivas psicológi­
• O que conta o conto?, Jette Bonaventure cas de um arquétipo, Mario Jacoby

Corpo e a dimensão fisiopsíquica Puer(O)


• Dioniso no exílio: sobre a repressão da emoção • Livro do puer (O): ensaios sobre o arquétipo do
e do corpo, Rafael Lopez Pedraza PuerAeternus, James Hilman
• Medicina arquetípica, A. J. Ziegler • PuerAeternus, Marie-Louise von Franz
• Presença no corpo: eutonia e psicologia analí­
tica, Marcei Gaumond Relacionamentos e parcerias
• Eros e pathos: am or e sofrimento, Aldo
Feminino (O) Carotenuto
• Parceiros invisíveis (Os): o masculino e o femi­
• Deusas e a mulher (As), Jean Shinoda Bolen
nino, John A. Sanford
• Liderança feminina: gestão, psicologia
junguiana, espiritualidade e a jornada global
Sombra
através do purgatório, Karin Jironet
• Medo do feminino (O), Erich Neumann • Mal, o lado sombrio da realidade, John. A.
• Mistérios da mulher (Os), Mary E. Harding Sanford
• O que conta o conto? (II) - Variações sobre o • Pantanais da alma (Os), James Hollis
tema mulher, Jette Bonaventure
• Prostituta sagrada (A), Nancy Qualls-Corbett Sonhos
• Aprendendo com os sonhos, Marion Rausch
Masculino (O) Gallbach
• Deuses e o homem (Os), Jean Shinoda Bolen • Breve curso sobre os sonhos, Robert Bosnak
• Pai e a psique (O), Alberto Pereira Lima Filho • Busca de sentido (A), Marie-Louise von Franz
• Sob a sombra de Saturno, James Hollis • Como entender os sonhos, Mary Ann Mattoon
• Pã e o pesadelo, James Hillman
Maturidade e envelhecimento • Sonhos e a cura da alma (Os), John A. Sanford
• Sonhos na psicologia junguiana: novas pers­
• Assombrações: dissipando os fantasmas que
pectivas no contexto brasileiro, W.AA.
dirigem nossas vidas, James Hollis
• No meio da vida: uma perspectiva junguiana,
Murray Stein
• Passagem do meio (A), James Hollis
JAMES HOLLIS

A P A S S A G E M D O M E IO
da miséria ao significado
na meia-idade

PAULUS
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hollis, James
A passagem do meio: da miséria ao significado na meia-idade / James
Hollis [tradução Cláudia Gerpe Duarte]. — São Paulo: Paulus, 1995.
Coleção Amor e psique.
Título original
The M id d le Passage - From M isery to M e an in g in M idlife

Bibliografia
ISBN 978-85-349-0348-6
1. Maturidade (Psicologia) 2. Meia-idade 3. Meia-idade — Aspectos psico­
lógicos I. Título. II. Série.

índices para catálogo sistemático:


1. Maturidade: Adultos: Psicologia 155.6
2. Meia-idade: Psicologia 155.6

Título origina!
The M id d le Passage - From M isery to M e a n in g in M idlife
Inner City Books - Toronto, Canadá
James Hollis, 1993
ISBN 0-919123-60-0
Tradução
C láudia G erpe Duarte

Editoração, impressão e acabamento


PAULUS

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MISTO
Papel produzido a partir
de fontes responsáveis
FSC® C 108975

1a edição, 1995
14a reimpressão, 2019

© P A U LU S -1 9 9 5
Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 - São Paulo (Brasil)
Tel.: (11) 5087-3700
paulus.com.br • editorial@paulus.com.br

ISBN 978-85-349-0348-6
INTRODUÇÃO À COLEÇÃO
AMOR E PSIQUE

Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, o


homem descobriu novos caminhos que o levam para a
sua interioridade: o seu próprio espaço interior torna-se
um lugar novo de experiência. Os viajantes destes cami­
nhos nos revelam que somente o amor é capaz de gerar
a alma, mas também o amor precisa de alma. Assim, em
lugar de buscar causas, explicações psicopatológicas às
nossas feridas e aos nossos sofrimentos, precisamos, em
primeiro lugar, amar a nossa alma, assim como ela é.
Deste modo é que poderemos reconhecer que estas feri­
das e estes sofrimentos nasceram de uma falta de amor.
Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para
um centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade
e a realização de nossa totalidade. Assim a nossa própria
vida carrega em si um sentido, o de restaurar a nossa
unidade primeira.
Finalmente, não é o espiritual que aparece primeiro,
mas o psíquico, e depois o espiritual. E a partir do olhar
do imo espiritual interior que a alma toma seu sentido,
o que significa que a psicologia pode de novo estender a
mão para a teologia.
Esta perspectiva psicológica nova é fruto do esforço
para libertar a alma da dominação da psicopatologia, do
espírito analítico e do psicologismo, para que volte a si
mesma, à sua própria originalidade. Ela nasceu de refle­

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xões durante a prática psicoterápica, e está começando a
renovar o modelo e a finalidade da psicoterapia. E uma
nova visão do homem na sua existência cotidiana, do seu
tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo dimensões
diferentes de nossa existência para podermos reencontrar
a nossa alma. Ela poderá alimentar todos aqueles que são
sensíveis à necessidade de inserir mais alma em todas as
atividades humanas.
A finalidade da presente coleção é precisamente res­
tituir a alma a si mesma e “ver aparecer uma geração de
sacerdotes capazes de entender novamente a linguagem
da alma”, como C. G. Jung o desejava.

Léon Bonaventure

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A meio-caminho na jornada da vida
Encontrei-me numa floresta escura,
tendo perdido o caminho.
(Dante, O Inferno)

Nossos corações transbordaram novas agonias,


com um novo brilho e silêncio...
O mistério tomou-se agreste,
e Deus ficou maior.
Os poderes das trevas ascendem,
pois também eles se tomaram maiores,
e toda a ilha humana estremece.
(Nikos Kazantzakis, The Saviors ofGod)

Precisamos recordar a vida retrospectivamente,


mas devemos vivê-la para a frente.
(Soren Kierkegaard, The Journals o f Kierkegaard)

Se trouxeres à tona o que está dentro de ti,


o que é trazido à tona te salvará.
Se não trouxeres à tona o que
está dentro de ti,
o que não trouxeres à tona te destruirá.
(Evangelho de Tomé)
PREFÁCIO

Por que tantas pessoas passam por tantos abalos na


meia-idade? Por que consideramos essa fase como crise?
Qual o significado dessa experiência?
A crise da meia-idade, que eu prefiro chamar de
passagem do meio, apresenta-nos uma oportunidade de
reexaminar a nossa vida e fazer a pergunta por vezes
assustadora e sempre libertadora: “Quem sou eu além
da minha história e dos papéis que interpretei?” Quando
descobrimos que vivemos até agora algo que constitui um
falso eu, que temos representado até o momento uma idade
adulta provisória, impelidos por expectativas irrealistas,
nós nos abrimos finalmente para a possibilidade de uma
segunda idade adulta, nossa verdadeira individualidade.
A passagem do meio é a ocasião de redefinirmos e reo-
rientarmos a personalidade, um rito de passagem entre a
adolescência prolongada da primeira idade adulta e o nosso
inevitável encontro com a velhice e a mortalidade. Aqueles
que passam conscientemente pela transição trazem mais
significado à sua vida. Os que não passam permanecem
prisioneiros da infância, não importa o sucesso aparente
que possam ter na vida.
Minha experiência psicanalítica no decorrer da última
década esteve basicamente relacionada com pessoas na
passagem do meio, e pude ver repetidamente o padrão. A
passagem do meio representa uma oportunidade maravi­
lhosa, se bem que por vezes dolorosa, de revermos nossa
concepção do eu. Consequentemente, este livro abordará
os seguintes temas:
Como adquirimos nossa concepção original do eu?
Quais são as mudanças que anunciam a passagem do

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meio? Como redefinimos a nossa concepção do eu? Qual
a relação existente entre o conceito junguiano de indivi-
duação e o nosso compromisso com as outras pessoas?
Quais são as atitudes e as mudanças comportamentais
que apoiam a individuação e nos conduzem, através da
passagem do meio, do infortúnio ao significado?
Os psicólogos da linha da psicologia profunda sabem
que a capacidade de crescimento depende da capacidade
do indivíduo de interiorizar-se e de assumir responsabi­
lidade pessoal. Se encararmos eternamente nossa vida
como um problema causado pelos outros, um problema a
ser “resolvido”, mudança nenhuma ocorrerá. Se não tiver­
mos coragem suficiente não poderemos realizar nenhuma
revisão. Eis o que Jung escreveu numa carta, em 1945, a
respeito do trabalho do crescimento pessoal:
A obra consiste em três partes: insight, persistência e ação. A psi­
cologia só é necessária na primeira parte, e na segunda e na ter­
ceira partes a força moral desempenha o papel predominante.1

Muitos de nós encaramos a vida como romance:


passamos passivamente de página em página, na certeza
de que o autor nos contará tudo na última. Hemingway
disse certa vez que se o herói não morrer é porque o autor
simplesmente não terminou a história. Por conseguinte,
morremos na última página, tendo ou não atingido a
iluminação. O convite da passagem de meio é que nos
tornemos conscientes, que aceitemos a responsabilidade
pelo resto das páginas e nos arrisquemos a enfrentar a
grandeza da vida à qual fomos convocados.
Onde quer o leitor possa estar na sua vida, os apelos que
nos são feitos são os mesmos feitos ao Ulisses de Tennyson:
O longo dia chega ao fim: a lua sobe lentamente: os Profundos
lamentos dobram com muitas vozes. Vinde, Meus amigos, não é
tarde para procurar um novo mundo.2

1C. G. Jung Letters, vol. 1, p. 375.


2 “Ulisses,” em Louis Untermeyer, org., A Concise Treasury o f Great
Poems, p. 299.

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A PERSONALIDADE PROVISÓRIA

Quando eu estava na quinta série primária, logo depois


da segunda guerra mundial, nossa professora comprou al­
guns prismas de vidro que se destinavam a ser usados nos
periscópios dos submarinos. Costumávamos nos divertir
antes e depois da aula cambaleando pelo corredor entre
as carteiras, chocando-nos contra a parede e uns contra
os outros. Estávamos fascinados com a questão da reali­
dade e de como saber para onde estávamos indo através
desses ângulos de visão encurvados. Eu me perguntava
se as crianças que precisam usar óculos o tempo todo en­
xergavam melhor ou apenas mundos diferentes. Quando
eu parava para pensar que a lente dentro de nossos olhos
também refratava a luz, eu me perguntava mais ainda se
a realidade que enxergávamos não dependería totalmente
da lente através da qual a víamos.
Ainda é útil pedir emprestada essa percepção infantil,
reconhecer que seja qual for a realidade, ela será até certo
ponto moldada pela lente através da qual a enxergamos.
Quando nascemos, recebemos múltiplas lentes: a herança
genética, o sexo, uma cultura específica e as variáveis no
nosso ambiente familiar, e todas elas constituem a nossa
ideia da realidade. Olhando para trás, mais tarde, temos
de admitir que talvez tenhamos vivido menos a partir da
nossa verdadeira natureza do que da visão da realidade
definida pelas lentes que usamos.

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Os terapeutas montam às vezes um genograma que
representa uma árvore genealógica emocional. A história
da família prolongada por várias gerações revela temas
que se repetem. Embora as predisposições genéticas
desempenhem um papel fundamental, está claro que as
familías transmitem sua maneira de ver a vida de geração
em geração. A lente passa dos pais para os filhos e, a partir
dessa perspectiva refratada, as escolhas e as consequên­
cias se repetem. E do mesmo modo como vemos alguns
aspectos do mundo através de qualquer lente especificada,
também deixaremos escapar outros.
Talvez o primeiro passo necessário para que a passa­
gem do meio seja significativa seja reconhecer a parciali­
dade da lente que recebemos da nossa família e da nossa
cultura, e através da qual fizemos nossas escolhas e sofre­
mos suas consequências. Se tivéssemos nascido em outra
época e lugar, de pais diferentes que sustentassem valores
diferentes, teríamos recebido uma lente completamente
diferente. A que recebemos gerou uma vida condicional,
que não representa quem somos, mas o modo como fomos
condicionados a ver a vida e a fazer escolhas. Todas as
gerações são seduzidas pelo antropocentrismo, e tendem
a considerar sua visão do mundo superior às dos outros.
Assim sendo, nós também sucumbimos à ideia de que a
maneira como encaramos o mundo é a única forma como
ele pode ser visto, a maneira correta, e raramente suspei­
tamos da natureza condicionada da nossa percepção.
Até mesmo na infância mais privilegiada, a vida
pode ser vivenciada como traumática. Fomos ligados à
pulsação do cosmos no útero da nossa mãe. De repente
fomos lançados violentamente no mundo para dar início
a um exílio e a uma busca de recuperar a ligação perdida.
Até mesmo a religião (do latim religio, “vínculo entre o
homem e os deuses”, ou religare, “ligar novamente”) pode
ser vista como projeção da busca das ligações perdidas
sobre o próprio cosmos. Para muitas pessoas, devido ao
impacto da pobreza, da forma, dos diversos tipos de abuso,
a experiência inicial do mundo é devastadora para sua

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concepção do eu. Quando crianças, elas sintetizam suas
capacidades afetivas, cognitivas e sencientes para não
serem ainda mais magoadas. Elas se transformam nos
sociopatas e nas pessoas com distúrbios de caráter que
enchem nossas prisões e rondam nossas ruas.
Lamentavelmente, para estes assim atingidos, o
potencial de crescimento e de transformação é sombrio;
tornar-se receptivo ao mundo da dor exigido pelo crescimen­
to é por demais assustador. Quase todos nós sobrevivemos
como pessoas meramente neuróticas, ou seja, divididos
entre a natureza intrínseca da criança e o mundo para
o qual fomos socializados. Podemos até concluir que a
personalidade adulta não examinada é um agregado de
atitudes, comportamentos e reflexos psíquicos ocasionados
pelos traumas da infância, cujo objetivo fundamental é
controlar o nível de sofrimento experimentado pela me­
mória orgânica da infância que conduzimos dentro de
nós. Podemos chamar essa memória orgânica de criança
interior, e nossas várias neuroses representam estraté­
gias inconscientemente desenvolvidas para defender essa
criança. (A palavra “neurose” não é usada aqui no sentido
clínico e sim como termo genérico para a divisão entre a
nossa natureza e a nossa aculturação.)
A natureza do sofrimento infantil pode ser genera­
lizada de forma ampla em duas categorias básicas: 1) a
experiência da negligência ou do abandono, e 2) a expe­
riência de ser esmagado pela vida.
Aquilo que podemos chamar de personalidade pro­
visória é uma série de estratégias escolhidas pela frágil
criança para lidar com a angústia existencial. Esses
comportamentos e atitudes são tipicamente agregados
antes dos cinco anos de idade e são elaborados dentro de
um surpreendente leque de variações estratégicas com
um motivo comum — a autoproteção.
Embora as forças externas, como a guerra, a pobreza
ou uma deficiência pessoal, desempenhem um importante
papel na maneira como a criança percebe o eu e o mundo,
a influência fundamental sobre a nossa vida é oriunda

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do caráter do relacionamento entre os pais e a criança.
Os antropólogos descreveram os processos cognitivos das
chamadas culturas primitivas e comentaram que eles
repetem as nossas formas infantis de pensamento. Essas
culturas eram caracterizadas pelo pensamento animista
e mágico.
Para o pensamento não-diferenciado dessas culturas,
bem como para o comportamento infantil, o mundo está
impregnado de elementos anímicos, ou seja, as energias
internas e externas são consideradas aspectos da mesma
realidade. Esta é a característica do pensamento animista.
Além disso, essas culturas supunham, como as crianças,
que a realidade interior exerce um efeito sobre o mundo
exterior e vice-versa. Esta é a característica do pensamen­
to mágico. A semelhança dos homens primitivos, que só
eram capazes de conhecer os limites da sua caverna ou
floresta, a criança tenta interpretar o ambiente a fim de
aumentar seu conforto e sua futura sobrevivência. (Na
famosa parábola de Platão, o limite para o entendimento
humano é comparado aos prisioneiros que tiram conclusões
sobre a vida baseados nos reflexos que veem nas paredes
da caverna à qual estão acorrentados.) As conclusões que
as crianças tiram sobre o mundo são oriundas portanto
de um estreito domínio, sendo inevitavelmente parciais
e prejudiciais. A criança não é capaz de dizer: “Meu pai
(ou minha mãe) tem um problema, e este exerce um efeito
sobre mim”. A criança só consegue chegar à conclusão de
que a vida é preocupante e o mundo um lugar inseguro.
Ao tentar decifrar o ambiente pais-filho, a criança
interpreta a experiência de três maneiras básicas.
1) A criança interpreta fenomenologicamente o vínculo
palpável e emocional, ou sua falta, como declaração sobre
a vida em geral. Ela é previsível e protetora, ou incerta,
dolorosa e precária? E esta percepção primordial que
forma a capacidade de confiar da criança.
2) A criança interioriza comportamentos específicos
dos pais como declaração a respeito do eu. Como a criança
raramente consegue objetivar a experiência ou perceber

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a realidade interior dos pais, a depressão deles, a raiva
ou a ansiedade serão interpretadas como declarações
de fato a respeito da criança. “Eu sou como sou vista,
ou como sou tratada”, conclui a criança. (Um homem de
trinta e sete anos perguntou ao pai moribundo: “Por que
nunca fomos chegados?” O pai respondeu, numa tirada:
“Você se lembra de quando você tinha dez anos e deixou
cair seu brinquedo no vaso sanitário e eu tive o maior
trabalho para tirá-lo de lá?” A lista dos eventos triviais
prosseguiu. O filho sentiu-se um homem livre ao sair do
hospital. Ele sempre se considerara indigno do amor do
seu pai; este libertou-o para uma nova auto-imagem ao
revelar a própria loucura.)
3) A criança observa os comportamentos das lutas
do adulto com a vida e interioriza não apenas esses com­
portamentos, mas também as atitudes que eles sugerem a
respeito do eu e do mundo. Por conseguinte, a criança tira
grandes conclusões a respeito de como lidar com o mundo.
(Certa mulher, exposta à ansiedade onipresente da mãe,
relatou que só começou a questionar a perspectiva dura
e agourenta da mãe quando saiu de casa e foi morar na
universidade. No primeiro ano ela supunha que os outros
alunos simplesmente não sabiam como as coisas eram
ruins. No segundo ano ela começou a suspeitar de que
era prisioneira da ansiedade da sua mãe e que podería
começar a contemplar a si mesma e ao mundo com um
coração mais leve.)
As conclusões sobre o eu e o mundo baseiam-se clara­
mente na experiência extremamente limitada de um pai e
uma mãe específicos que reagem a questões particulares.
Essa experiência é excessivamente personalizada pelo
pensamento mágico, que diz que “toda essa experiência é
organizada para mim e diz respeito a mim”; as conclusões
resultantes também são exageradamente generalizadas,
uma vez que só podemos avaliar o desconhecido através
daquilo que conhecemos até aqui. Com início tão tenden­
cioso, estreito e invariavelmente prejudicial, agregamos
percepções, comportamentos e reações, marchando em
direção à vida com uma visão parcial.
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O caráter individual dessa defeituosa noção do eu,
bem como as estratégias que são desde cedo elaboradas e
moldadas numa personalidade variam segundo a natureza
da experiência infantil. A partir de cada categoria de so­
frimento — de abandono ou de opressão — um complexo
de comportamentos se expande como reação inconsciente
e reflexa.3
Quando a criança é oprimida, ela vivência a imensi­
dão do Outro jorrando através de frágeis fronteiras. Por
não possuir o poder de escolher outras circunstâncias de
vida, por não possuir nem a objetividade de identificar a
natureza do problema como Outro, e por não possuir os
elementos necessários a uma experiência comparativa, a
criança reage de forma defensiva, tornando-se excessiva­
mente sensível ao ambiente e “escolhendo” a passividade, a
co-dependência ou a compulsividade para proteger o frágil
território psíquico. A criança aprende variadas formas
de acomodação, pois a vida é vista como inerentemente
opressiva para um eu relativamente impotente. Desse
modo, certo homem, respondendo à incessante exigência
de sua mãe de que ele superasse o pai e fosse um “suces­
so”, tornou-se um profissional altamente qualificado, ao
mesmo tempo que entregou-se a hábitos de consumo que
levaram sua vida à falência financeira e emocional. Sua
vida adulta, aparentemente a escolha de uma pessoa
livre e racional, era uma aquiescência coagida diante da
pressão esmagadora daquele Outro, ligada a uma rebe­
lião inconsciente que buscava o fracasso como protesto
passivo-agressivo.
Diante do abandono — ou seja, proteção e carinho
insuficientes — a criança poderá “escolher” padrões de
dependência e/ou passar toda a vida na busca incessante
de um Outro mais positivo. Desse modo, uma mulher que

3 Estamos nos referindo aqui a experiências que podem contribuir para


o nosso senso inicial do eu. Ainda bem que isto não é tudo. Existem também,
geralmente, alegrias condicionadas, que nos permitem a possibilidade de, por
exemplo, levantarmos pela manhã sabendo que o café da manhã será servido,
ou que o dia oferecerá possibilidades de uma vida mais ampla.

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na infância sofrerá de negligência passou a procurar mais
tarde um parceiro após o outro, mas sempre terminava
seus relacionamentos desiludida e frustrada. Em parte
sua necessidade emocional afastava os homens, e em parte
ela inconscientemente escolhia homens emocionalmente
distantes. Seu pai nunca estivera emocionalmente dis­
ponível para ela e sua vida formou-se reflexivamente ao
redor da percepção dupla e autodestrutiva de si mesma
como “aquela a quem nada darão e que portanto merece
isto”, e a vã esperança de que o homem seguinte pudesse
compensar a ferida pai-filha interior.
Essas feridas, bem como as várias reações incons­
cientes adotadas pela criança interior, tornam-se fortes
determinantes da personalidade adulta. A criança não
consegue incorporar uma personalidade que se expressa
livremente; em vez disso, é a experiência da infância que
molda seu papel no mundo. A partir do sofrimento da
infância, portanto, a personalidade adulta é mais uma
reação reflexa às primeiras experiências e traumas da
vida do que uma série de escolhas.
O modelo junguiano identifica essa reação reflexa,
carregada de sentimento, com a natureza do complexo
pessoal. O complexo, em si mesmo, é neutro, embora
conduza uma carga emocional associada a uma imagem
experiencial, interiorizada. Quanto mais intensa a expe­
riência inicial, ou quanto maior o período de tempo pelo
qual ela foi renovada, mais poder tem o complexo na vida
da pessoa. E impossível evitar os complexos porque temos
uma história pessoal. O problema é que não somos nós
que temos complexos e sim os complexos que nos possuem.
Alguns complexos são úteis pois protegem o organismo
humano, mas outros interferem com a escolha e podem
até mesmo dominar a vida de uma pessoa.
Os complexos são sempre mais ou menos inconscien­
tes; são carregados de energia e operam autonomamente.
Embora geralmente ativada por um evento do presente, a
psique opera por analogia, afirmando na prática: “Quando
já estive aqui antes?” O estímulo atual pode ser apenas

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remotamente semelhante a algo que aconteceu no passado,
mas se a situação for emocionalmente análoga, a reação
historicamente provocada é desencadeada. Existem poucas
pessoas que não têm uma reação emocionalmente carre­
gada diante de questões como sexo, dinheiro e autoridade
porque estas estão geralmente associadas a importantes
experiências do passado.
De todos os complexos, os mais poderosos são as
experiências interiorizadas dos pais que chamamos de
complexo materno e complexo paterno. Nosso pai e nossa
mãe são geralmente as duas pessoas mais importantes
que já conhecemos. Eles estiveram presentes nos bons e
nos maus momentos. Fomos expostos ao tratamento que
eles nos deram e às suas estratégias diante da vida. Os
heróis machistas de Hemingway, por exemplo, represen­
tavam, entre outras coisas, a supercompensação da parte
da criança de Oak Park, Illinois, com relação ao medo das
mulheres que ele adquiriu de uma mãe que queria que ele
fosse uma menina e que continuou a ser emocionalmente
sedutora e invasiva mesmo depois de ele atingir a idade
adulta. Franz Kafka era tão dominado pelo seu poderoso
pai que encarava o próprio universo como poderoso, remoto
e indiferente. Não estou de modo nenhum sugerindo que
eles e outros não tenham criado uma arte importante,
porque certamente o fizeram, mas a forma e o motivo
particular da sua criatividade era trabalhar, compensar e,
se possível, transcender os complexos paterno e materno
primordiais.
Portanto, todos nós vivemos, inconscientemente, refle­
xos agregados do passado. Mesmo nos primeiros anos de
vida, uma crescente divisão se desenvolve entre a nossa
natureza inerente e o nosso eu socializado. Wordsworth
observou esse fato há dois séculos quando escreveu em
“Ode on Intimations of Immortality”:
O céu nos envolve em nossa infância.
As sombras da casa-prisão começam a se fechar
Sobre o menino em crescimento,...

18
Finalmente o homem o vê desaparecer aos poucos,
E sumir na luz do dia comum.4

Para Wordsworth o processo de socialização era


uma separação progressiva da ideia natural do eu com a
qual nascemos. Na peça de Eugene 0 ’Neill, A Long Day’s
Journey Into Night, a mãe apresenta o caso ainda mais
tragicamente:
Nenhum de nós pode fazer nada a respeito das coisas que a vida
nos fez. Elas são feitas antes que o percebamos. E uma vez que
são feitas, elas fazem com que façamos outras coisas até que
finalmente tudo se coloca entre nós e aquilo que gostaríamos de
ser, e perdemos então para sempre nosso verdadeiro eu.5

Os antigos gregos perceberam essa separação há cerca


de vinte e cinco séculos atrás. Suas figuras trágicas não
eram más, embora pudessem às vezes cometer atos maus;
eram pessoas presas ao que não conheciam a respeito de si
mesmas. A hamartia (às vezes traduzida como “a trágica
falha”, mas eu prefiro “a visão ferida”) representava a
lente através da qual eles faziam suas escolhas. A partir
da acumulação de forças inconscientes e reações reflexas,
faziam-se escolhas e seguiam-se as consequências. A trá­
gica concepção de vida expressa nesses sinistros dramas
sugeria que todos nós, protagonistas dos nossos dramas
particulares, podemos levar vidas trágicas. Podemos ser
movidos pelo que não compreendemos a nosso respeito. O
poder libertador da tragédia grega repousava no fato de
que através do sofrimento o herói alcançava a sabedoria,
ou seja, um relacionamento revisto entre a verdade interior
(o caráter) e a verdade exterior (os deuses ou o destino).
Nossa vida só é trágica à medida que permanecemos
inconscientes tanto do papel dos complexos autônomos
quanto da crescente divergência entre a nossa natureza
e as nossas escolhas.

4Ver Ernest Bernbaum, org.,Anthology o f Romanticism, p. 232.


5 Complete Plays, p. 212.

19
Quase toda sensação de crise na meia-idade é provo­
cada pela dor dessa separação. A disparidade entre a
concepção interior do eu e a personalidade adquirida
torna-se tão grande que o sofrimento não mais pode ser
reprimido ou compensado. Ocorre então o que os psicólogos
chamam de descompensação. A pessoa continua a atuar
a partir de antigas atitudes e estratégias, mas estas já
não são eficazes. Os sintomas de aflição da meia-idade
devem na verdade ser bem recebidos, pois representam
não apenas um eu instintivamente firmado debaixo da
personalidade adquirida, mas também uma poderosa
imposição de renovação.
O trânsito da passagem do meio ocorre no temível
choque entre a personalidade adquirida e as exigências
do Si-mesmo. Uma pessoa que passa por essa experiência
frequentemente entrará em pânico e dirá: “Não sei mais
quem sou”. Com efeito, a pessoa que o indivíduo foi está
para ser substituída pela pessoa que será. A primeira deve
morrer. Não é de causar surpresa que exista essa enorme
ansiedade. O indivíduo é intimado, psicologicamente, a
morrer para o velho eu para que o novo possa nascer.
Essa morte e renascimento não é um fim em si mes­
mo; é uma transição. E preciso passar pela passagem do
meio para nos aproximarmos mais do nosso potencial
e conquistarmos a vitalidade e a sabedoria do envelhe­
cimento maduro. Por conseguinte, a passagem do meio
representa uma intimação interior para que deixemos
a vida provisória e avancemos em direção à verdadeira
idade adulta, do falso eu para a autenticidade.

20
2

O ADVENTO DA PASSAGEM DO MEIO

A passagem do meio é um conceito moderno. Antes


da repentina extensão da duração média da vida por volta
da virada do século, a vida era, nas palavras de Thomas
Hobbes, “desagradável, selvagem e curta”.6O desenvol­
vimento da área da saúde fez com que a expectativa de
vida subisse para quarenta anos no início da nossa época.
Basta percorrermos os cemitérios dos primeiros anos da
América para ver as lamentáveis fileiras de crianças mor­
tas por causa das febres — a peste, a malária, a difteria,
a coqueluche, a varíola e o tifo, que as crianças de hoje
evitam através da imunização. (Lembro-me de quando
minha cidade, de cerca de 100.000 habitantes, foi fechada
a todas as transações exceto as essenciais — os parques,
os cinemas e as piscinas foram interditados — por causa
de uma epidemia de poliomielite.)
Aqueles que sobreviviam até uma idade mais avan­
çada eram talvez mais fortemente controlados pelo poder
das instituições sociais — a igreja, a família, os costumes
sociais — do que pelos limites da duração da vida. (Vi na
minha infância pessoas divorciadas me serem apontadas
no mesmo tom em que se diria: “Ali vai um assassino”.) As
delimitações dos sexos eram claras e absolutas, prejudi­
cando tanto os homens quanto as mulheres. A família e as

6Selections, p. 106.

21
tradições étnicas davam a sensação de raízes, e algumas
vezes de comunidade, mas também eram inatas e desen­
corajavam a independência. Esperava-se que a menina
se casasse, educasse uma família, funcionasse como o
eixo do sistema que sustentava e transmitia os valores.
Esperava-se que o menino amadurecesse e assumisse o
papel do seu pai, fosse arrimo de família, mas que também
apoiasse e defendesse a continuidade dos valores.
Muitos desses valores eram e ainda são louváveis,
mas, devido ao peso dessas expectativas institucionais,
sofria-se também uma grande violência espiritual. Não
deveriamos aplaudir automaticamente o casamento que
durava cinquenta anos sem saber o que aconteceu às
almas dos que participavam do relacionamento. Talvez
elas temessem a mudança e a sinceridade, e sofressem.
A criança que correspondeu às expectativas de seus pais
pode ter perdido a alma ao longo do caminho. A longevi­
dade e a reprodução de valores não são por si próprias
virtudes automáticas.
A ideia de que estamos aqui para nos tomarmos nós
mesmos, esse ser misterioso porém absolutamente único
cujos valores podem diferir dos outros membros da família,
raramente era comunicada aos que viveram em épocas
anteriores. Mesmo hoje, alguns a encaram como uma noção
um tanto herética. Mas o moderno Zeitgeist se caracteriza
principalmente pelo deslocamento radical para o indivíduo
do poder psicológico conferido às instituições. Mais do que
qualquer outra mudança, o significado no mundo moderno
deslocou-se da clava e da mitra para o indivíduo. As gran­
des ideologias unificadoras perderam grande parte da sua
energia psíquica e deixaram as pessoas de hoje num estado
de isolamento. Como Matthew Arnold observou há cento e
cinquenta anos, nós divagamos “entre dois mundos, um mor­
to, e o outro impotente para nascer”.7Seja para o bem, seja
para o mal, a gravidade psíquica deslocou-se da instituição
para a escolha individual. Existe hoje uma passagem do

7Poetry and Criticism of Matthew Arnold, p. 187.

22
meio não apenas porque as pessoas vivam bastante tempo,
mas também porque a maior parte da sociedade ocidental
aceita agora o fato de que desempenhamos o papel principal
na formação da nossa vida.

Pressões tectônicas e intim ações sísm icas


Como foi indicado anteriormente, a passagem do
meio começa como uma espécie de pressão tectônica que
vem de baixo para cima. Como as placas da terra que se
deslocam, roçam umas nas outras e acumulam a pressão
que é expelida sob a forma de terremotos, assim colidem
os planos da personalidade. A noção adquirida do eu,
com suas percepções e complexos agregados, sua defesa
da criança interior, começa a ranger e ringir contra o Si-
mesmo, que busca a própria realização.
Essas ondulações sísmicas podem ser dissolvidas
através da consciência do ego defensiva, mas a pressão
continua a crescer. Invariavelmente, muito antes de a
pessoa tornar-se consciente de uma crise os indícios e
os sintomas já estão presentes: a depressão reprimida, o
abuso do álcool, o uso de maconha para intensificar o ato
sexual, casos amorosos, constantes mudanças de emprego,
e assim por diante — esforços de anular, desprezar ou
deixar para trás as pressões interiores. A partir do ponto
de vista terapêutico, os sintomas devem ser bem recebi­
dos, pois eles não apenas servem de flechas que apontam
para a ferida, como também exibem uma psique saudável
e auto-reguladora em funcionamento.
Jung observou que uma neurose “precisa em última
análise ser compreendida como o sofrimento de uma alma
que não descobriu seu significado”.8 Essa declaração não

8 “Psychotherapists or the Clergy”, Psychology and Religion: West and


East, CW 11, §. 497 (CW refere-se em todo este livro a The Collected Works o f
C. G. Jung). Obra publicada em português com o título Psicologia da Religião
Oriental e Ocidental, OC XI, pela Editora Vozes (OC refere-se a As obras
completas de C. G. Jung - alguns volumes, ou parte deles, ainda não estão
publicados em português).

23
sugere que possamos consumar uma vida sem sofrimento,
e sim que o sofrimento já está sobre nós e somos portanto
obrigados a descobrir o seu significado.
Durante a segunda guerra mundial o teólogo alemão
Dietrich Bonhoeffer sofreu morte de mártir por opor-se a
Hitler. Ele conseguiu fazer sair clandestinamente várias
cartas e documentos do campo de concentração de Flens-
burgo. Num deles lutou com a pergunta óbvia: Deus foi de
alguma maneira responsável pelo campo e suas terríveis
condições? Ele compreendeu que não poderia responder a
essa pergunta, mas concluiu sabiamente que sua tarefa
era trabalhar com o horror e através dele para descobrir
a vontade de Deus nessas circunstâncias.9
É possível, portanto, dizer que, ao sofrer as pressões
tectônicas da psique, poderemos não descobrir o supremo
propósito da vida, mas estamos obrigados a descobrir o
significado do conflito, o choque entre os eus ocasionado
pela passagem do meio. Uma vida nova emerge desse
choque predeterminado, dessa morte-renascimento. So­
mos convidados a recobrar a própria vida, a vivê-la mais
conscientemente, a extrair da desgraça um significado.
O despertar para a passagem do meio ocorre quando
somos radicalmente arremessados em direção à consci­
ência. Já vi muitas pessoas iniciarem sua passagem do
meio quando defrontadas com uma doença grave, em que
há risco de vida, ou com a viuvez. Até esse momento, mes­
mo na casa dos cinquenta ou dos sessenta, elas tinham
dado um jeito de permanecer inconscientes, a tal ponto
dominadas pelos complexos ou valores coletivos que as
questões personificadas pela passagem do meio haviam
sido mantidas afastadas. (Serão fornecidos exemplos no
próximo capítulo.).
A passagem do meio é mais uma experiência psicológi­
ca do que um evento cronológico. As duas palavras gregas
para “tempo”, chronos e kairós, observam essa distinção.
Chronos é um período de tempo sequencial, linear; kairós é

9Letters and Papers from Prison, p. 210.

24
o tempo revelado na sua dimensão profunda. Assim, para
um americano, 1776 é mais do que um ano no calendário;
é um evento transcendente que determina a qualidade de
cada ano subsequente na história da nação. A passagem
do meio ocorre quando a pessoa se vê obrigada a encarar
a sua vida como algo mais do que mera sucessão linear
de anos. Quanto mais ela permanece inconsciente, o que
é bem fácil de acontecer em nossa cultura, mais provável
é que ela encare a vida apenas como uma sucessão de mo­
mentos que conduzem a um vago objetivo, cujo propósito
se tornará claro em seu devido tempo. Quando a pessoa é
lançada em direção à consciência, uma dimensão vertical,
kairós, intercruza o plano horizontal da vida; o intervalo de
vida da pessoa é expressado numa perspectiva profunda:
“Quem sou, então, e para onde estou indo?”
A passagem do meio tem início quando o indivíduo
se vê obrigado a formular novamente a pergunta sobre o
significado que percorria a imaginação da criança, mas
que foi apagado com o passar dos anos. A passagem do
meio começa quando a pessoa precisa enfrentar ques­
tões até então evitadas. A questão da identidade volta a
estar presente e o indivíduo não pode mais fugir da sua
responsabilidade diante dela. Novamente, a passagem do
meio começa quando perguntamos: “Quem sou eu, além
da minha história e dos papéis que representei?”
Como carregamos a história da nossa vida em nossa
psique como presença dinâmica e autônoma, existe forte
probabilidade de sermos definidos e dominados pelo pas­
sado. Uma vez que fomos condicionados a assumir papéis
institucionalizados como o de cônjuge, pai ou mãe, arrimo de
família— nós projetamos nossa identidade nesses papéis.
Assim James Agee começou seu romance auto-biográfico:
“Estamos falando agora sobre as noites de verão em Kno-
xville, no estado de Tennessee, na época em que ali vivi e
fui muito bem sucedido ao me disfarçar de criança para
mim mesmo”.10Todas as grandes perguntas foram feitas

10ADeath in the Family, p. 11.

25
pela criança que fomos um dia, enquanto observávamos
em silêncio os adultos, enquanto nos deitávamos à noite
em nossa cama, meio temerosos, meio alegres por estar­
mos vivos. Mas o peso da educação escolar, a pressão da
vida familiar e o processo de aculturação gradualmente
substituem a sensação de admiração reverente da criança
por expectativas normativas e certezas culturais. Agee
encerra seu prefácio contando como era levado para a
cama pelos adultos, “como um membro querido da família
naquela casa: mas [eles] não me dirão, nem agora nem
nunca, quem eu sou”.11
Essas grandes perguntas conferem valor e dignidade
à nossa vida. Se as esquecermos, estaremos destinados
ao condicionamento social, à banalidade e finalmente ao
desespero. Se tivermos a sorte de sofrer bastante, somos
lançados em direção de uma consciência relutante e as
perguntas voltam a nos importunar. Se formos suficiente­
mente corajosos, nos interessarmos o bastante pela nossa
vida, poderemos recuperá-la através desse sofrimento.
Embora algumas pessoas cheguem a esse encontro
predestinado consigo mesmas em virtude de algum acon­
tecimento catastrófico, todos recebemos avisos muito antes
disso. O solo debaixo dos nossos pés treme tão levemen­
te, que é fácil, no início, não dar atenção aos abalos. As
intimações sísmicas, os irmãos mais velhos das pressões
tectônicas, estão sempre presentes antes que nos tomemos
totalmente conscientes deles.
Conheço um homem que aos vinte e oito anos já havia
conseguido tudo que poderia desejar — obter o grau de
doutor, constituir família, publicar um livro, conquistar
excelente posição como professor. Suas primeiras intima­
ções sísmicas, que se manifestaram anos depois, foram o
tédio e a perda de energia. Ele fez então o que quase todos
fazem: tomou-se mais ativo dentro das mesmas áreas. Nos
dez anos seguintes ele escreveu mais, teve mais filhos,
ascendeu a posições ainda melhores na sua carreira de

11Ibid., p. 15.

26
professor. Toda essa atividade podia ser racionalizada,
uma vez que era exteriormente produtiva e personificava
a típica ascensão profissional na qual temos a tendência
de projetar a nossa identidade. Quando estava com trinta
e sete anos a crescente depressão subterrânea irrompeu
em sua fúria total e ele vivenciou uma fraqueza e perda
de significado quase completas. Pediu demissão do em­
prego, abandonou a família e abriu uma casa de sorvetes
em outra cidade. Estaria ele compensando em excesso
sua vida anterior? Estaria ele reprimindo as perguntas
benéficas e úteis que a passagem do meio estava exigindo
que ele fizesse? Ou teria ele de algum modo descoberto a
melhor maneira de passar a segunda metade da sua vida?
Somente o tempo e ele poderão dizê-lo.
Os tremores sísmicos frequentemente ocorrem no
final da casa dos vinte anos, mas é muito fácil deixarmos
de dar atenção a eles nessa época. A vida está no auge; a
estrada à frente acena; são fáceis as mudanças rápidas, um
maior esforço e mais energia — e desprezamos os avisos.
E preciso percorrer várias vezes uma pista até mesmo
para saber se ela é redonda ou oval. Os padrões, com seus
custos e efeitos colaterais, só podem ser distinguidos como
padrões depois de serem experimentados mais de uma vez.
Considerando retrospectivamente, somos frequentemente
envergonhados, até mesmo humilhados, diante dos erros,
da ingenuidade, das projeções. Mas essa é a primeira
idade adulta: repleta de disparates, timidez, inibições,
suposições erradas, e, sempre, da rotação silenciosa das
fitas da infância. Se não tivéssemos avançado e cometido
esses erros e colidido contra aquelas paredes, teríamos
certamente permanecido crianças. Rever a vida a partir
da posição privilegiada da segunda metade dela requer a
compreensão e o perdão do inevitável crime da inconsci­
ência. Mas deixar de ficar consciente na segunda metade
da vida significa cometer um crime imperdoável.
Vários sintomas ou experiências importantes que
exprimem o apelo da passagem do meio são pormeno­

27
rizados abaixo. Eles ocorrem de forma autônoma, fora
da vontade do ego. Eles transpiram em silêncio, dia por
dia, e perturbam o sono da criança interior que quer o
conhecido e preza a segurança acima de tudo. Mas eles
representam o inevitável movimento da vida em direção à
sua realização desconhecida, um processo teleológico que
serve a natureza e seus mistérios, pouco se importando
com os desejos de um ego nervoso.

Um novo tipo de pensam ento

Como foi explicado anteriormente, a infância se carac­


teriza pelo pensamento mágico. O ego da criança ainda não
foi testado na prática, ainda não está claro a respeito dos
limites existentes. O mundo externo e objetivo, bem como o
mundo interno e do faz-de-conta são frequentemente con­
fundidos. Os desejos parecem possibilidades, e até mesmo
probabilidades. Eles representam o narcisismo da criança
que quer acreditar que é o centro do cosmo. Esse tipo de
pensamento é inflacionado e ilusório, mas numa criança
ele é inteiramente saudável e maravilhoso. “Quando eu
crescer vou usar um vestido branco e me casar com um
príncipe”. “Vou ser um astronauta”. “Vou ser um cantor de
rock famoso”. (Tente se lembrar de seus desejos mágicos
na infância e reflita a respeito do que a vida fez a eles.)
Acima de tudo, o pensamento mágico da criança admite:
“Eu sou imortal. Não vou apenas ser rico e famoso; serei
protegido da morte e do definhamento”. Esse tipo de pen­
samento prevalece mais ou menos até os dez anos de idade,
embora um pouco abalado. A ilusão da superioridade e da
excepcionalidade sofre alguns fortes abalos quando até
as outras crianças não se deixam impressionar. (Quando
eu era criança achava que talvez pudesse vir a substituir
Joe Dimaggio no beisebol jogando no meio-campo para os
New York Yankees. Ai de mim! Os deuses deram a Mickey
Mantle a habilidade necessária.)

28
O pensamento mágico da criança é bastante des­
gastado pela dor e confusão da adolescência. Apesar de
tudo, o ego não testado persiste e exibe o que poderiamos
agora chamar de pensamento heroico, que se caracteriza
por um maior realismo, sem dúvida, mas ainda permeado
de considerável capacidade de esperança, de projeção do
desconhecido através de fantasias de grandeza e realiza­
ção. Podemos contemplar as tristes ruínas do casamento
dos pais e afirmar: “Sou muito mais esperto do que eles
e saberei escolher com mais sabedoria”. Podemos ainda
esperar ser superintendente de uma grande companhia,
escrever o grande romance da época ou ser mãe ou pai
fantásticos.
O pensamento heroico é útil, pois, se desconfiássemos
das provações e dos desapontamentos que nos esperam,
quem avançaria em direção à idade adulta? Ainda não
fui convidado para fazer um discurso numa solenidade
de formatura, mas, por mais abomináveis que possam
ser esses pronunciamentos, mesmo assim eu talvez não
tivesse coragem de dizer a verdade. Quem suportaria
dizer àqueles rostos animados e esperançosos: “Daqui a
alguns anos você provavelmente detestará seu emprego,
seu casamento estará por um fio, seus filhos o estarão
levando à loucura, você poderá estar vivenciando tanta
dor e confusão a respeito da sua vida que pensará até
em escrever um livro sobre ela”. Quem poderia fazer isso
a esses jovens de olhar luminoso, mesmo quando eles
cambaleiam pelo mesmo caminho confuso e tortuoso de
seus pais?
O pensamento heroico, com suas esperanças e pro­
jeções escassamente moderadas pelos hábitos do mundo,
ajuda o jovem a deixar o lar e mergulhar, como deve, na
vida. O jovial Wordsworth, do outro lado do canal e presente
ao início da revolução francesa, escreveu que ser jovem e
estar lá era o próprio céu.12 Alguns anos depois, ele iria
desprezar a forma como a promessa revolucionária fora

12“The Prelude,” Poetical Works o f Wordsworth, p. 570.

29
substituída pelo regime de Napoleão. E T.E. Lawrence,
cansado de lutar, viu suas esperanças no deserto liqui­
dadas pelos velhos nas conferências de paz. Ainda assim,
a juventude avança, como deve, cai, recomeça e anda às
cegas em direção a um encontro com o tempo.
Podemos dizer que a pessoa se encontra na passagem
do meio quando o pensamento mágico da infância e o
pensamento heroico da adolescência não mais coincidem
com a vida que ela vivenciou. Aqueles que passaram dos
trinta e cinco anos sofreram boa dose de desapontamentos
e dores de cabeça capaz de superar até mesmo as crises
das paixonites da adolescência. Qualquer pessoa na meia-
idade terá testemunhado o colapso de projeções, esperanças
e expectativas, e experimentado as limitações do talento,
da inteligência e, frequentemente, da própria coragem.
Por conseguinte, o tipo de pensamento que caracteriza
a experiência da passagem do meio é um tanto prosaica­
mente chamado de realista. O pensamento realista nos
confere senso de perspectiva. A tragédia grega demons­
trava que o protagonista poderia estar mais rico no final,
porém desgraçado, por não ter retomado o relacionamento
adequado com os deuses. O rei Lear de Shakespeare não
era um homem mau; mas era um tolo, pois não sabia o
que era o amor. Sua necessidade de ser lisonjeado o ilu­
dia; ele pagou através da sua carne e da sua sanidade e
ficou mais rico.
Desse modo, a vida nos leva em direção a uma pers­
pectiva diferente, a uma acomodação da inflação e da
arrogância, e ensina a diferença entre esperança, conhe­
cimento e sabedoria. A esperança se baseia no que poderia
ser. O conhecimento é a lição valorizada da experiência.
A sabedoria é sempre humilde, jamais inflacionária. A
sabedoria de Sócrates, por exemplo, era a certeza de que
ele não sabia nada (mas o seu “nada” era muito maior do
que as certezas dos sofistas e dos supostos sábios da sua
época ou da nossa).
O pensamento realista da meia-idade tem como meta
obrigatória o restabelecimento do equilíbrio, a restauração

30
de um relacionamento humilde, porém digno da pessoa
com o universo. Um amigo meu me disse certa vez que
sabia quando começou sua passagem do meio. Ela chegou
como um pensamento, uma frase em sua cabeça, cuja
verdade era evidente por si mesma. Esse pensamento
foi o seguinte: “Minha vida nunca será o todo, somente
as partes”. Sua psique estava anunciando para ele que
as expectativas inflacionárias da juventude não seriam
alcançadas. Essa compreensão poderá ser sentida por
alguns como uma derrota, mas outros serão levados a
fazer a seguinte pergunta:
“Que trabalho precisa então ser feito?”

M udanças na identidade

Admitindo-se a oportunidade de um período de vida


completo, passamos por uma série de diferentes identida­
des. Faz parte do projeto natural do ego administrar a an­
siedade existencial da pessoa estabilizando o mais possível
a vida. Mas a natureza da vida claramente presume e exige
a mudança. Num período que varia aproximadamente de
sete a dez anos ocorre uma importante transformação
física, social e psicológica na pessoa. Pense em quem você
era aos 14, 21, 28 e 35 anos, por exemplo. Embora todos
nós estejamos estirados ao longo de um continuum, temos
transições comuns a fazer. E possível generalizar esses
ciclos e identificar uma programação social e psicológica
para casa fase. Embora o ego arrogantemente suponha que
está no comando da vida e que a sua visão se sustentará
nos anos vindouros, existe claramente um processo au­
tônomo, uma inevitável dialética, que provoca repetidas
mortes e renascimentos. Reconhecer a inevitabilidade
da mudança, e seguir seu fluxo, é uma sabedoria sutil
e necessária, mas a nossa tendência natural é resistir à
destruição daquilo que conseguimos realizar.13
13O inconsciente frequentemente reconhecerá a resistência e exigirá uma
mudança em imagens de sonho como uma casa sendo inundada ou abalada,

31
A popularidade do livro Passages de Gail Sheehy há
alguns anos confirma a importância do tema da mudança
periódica. Não obstante, como sugeriram Mircea Eliade,
Joseph Campbell e outros observadores do cenário social
e antropológico, nossa cultura perdeu o mapa rodoviário
mítico que ajuda a localizar uma pessoa num contexto mais
amplo. Sem a visão tribal dos deuses, e portanto da sua
rede espiritual, os indivíduos de hoje estão à deriva e sem
orientação, sem modelos e sem ajuda para atravessar os
diversos estágios da vida. Desse modo, a passagem do meio,
que exige a morte antes do renascimento, é frequentemente
vivenciada de forma assustadora e separadora, pois não
existem ritos de passagem e quase nenhuma ajuda dos
companheiros que estão igualmente à deriva.
Além das muitas subfases, sendo cada qual uma
transição que exige algum tipo de morte, existem na vida
quatro fases principais, cada qual com o poder de definir
a identidade da pessoa.
A primeira identidade, a infância, se caracteriza
principalmente pela dependência do ego com relação ao
mundo objetivo dos pais. A dependência física é óbvia,
mas a dependência psíquica, na qual a criança se iden­
tifica com a família, é ainda maior. Nas culturas antigas
a idade adulta começava com o despertar da puberdade.
Não importa o quão geográfica, cultural e ideologicamente
diferentes as tribos, todas desenvolviam importantes ritos
de passagem da dependência da infância para a indepen­
dência da idade adulta.
Apesar da disparidade existente entre as práticas
de iniciação, os ritos tradicionais de passagem envolviam
tipicamente seis estágios. Resumidamente, eles eram os
seguintes: 1) a separação dos pais, frequentemente através
de um rapto ritual; 2) a morte, na qual a dependência da
infância é “morta”; 3) o renascimento, com o qual o novo

um carro roubado ou afogado, ou a bolsa ou a carteira da pessoa, contendo


sua carteira de identidade, roubada ou perdida. Essas imagens sugerem que
o antigo estado do ego está se tomando inadequado.

32
ser, apesar de incipiente, é favorecido; 4) os ensinamen­
tos, no qual ensina-se ao neófito os mitos fundamentais
da tribo para fornecer-lhe a ideia de um local espiritual,
dos privilégios e responsabilidades dessa tribo particular,
e do conhecimento da caça, da educação dos filhos e das
demais atividades necessárias ao desempenho das ativi­
dades da idade adulta; 5) a provação, que envolve mais
frequentemente uma outra separação para que o iniciado
possa aprender que existe uma força interior que deve
ser para enfrentar a tarefa exterior; e, finalmente, 6) o
retorno, através do qual a pessoa reingresse na comuni­
dade com o conhecimento, a base mítica e a força interior
necessárias ao desempenho do papel de adulto. Amiúde
o iniciado até mesmo recebia um novo nome, condizente
com a transformação radical.
O rito de iniciação esperava alcançar a separação
dos pais, a transmissão da história sagrada da tribo que
visava o fornecimento da base espiritual e a preparação
para as responsabilidades da idade adulta. Não existem
ritos de passagem para a idade adulta significativos em
nossa cultura, de modo que muitos jovens prolongam sua
dependência. Nossa cultura perdeu suas âncoras míticas e
tomou-se tão heterogênea, que só podemos transmitir as
crenças no materialismo, no hedonismo e no narcisismo
do século vinte — misturadas com algumas técnicas de
processamento de dados. Nada disso proporciona a sal­
vação, a ligação com a terra e seus grandes ritmos, nem
significado ou profundidade à nossa jornada.
A segunda identidade começa na puberdade. Mas
sem os tradicionais ritos de passagem o jovem se carac­
teriza pela confusão espiritual e instabilidade do ego. O
ego incipiente é bastante maleável e vítima da influência
dos companheiros e da cultura pop, ambas adquiridas de
outros adolescentes confusos. (Muitos terapeutas conside­
ram que a adolescência se estende aproximadamente dos
doze aos vinte e oito anos na América do Norte. Cheguei
à conclusão, depois de lecionar durante vinte e seis anos,
que o papel cultural original das universidades era o de

33
servir de tanque de retenção enquanto os jovens procu­
ravam solidificar suficientemente o ego, visando alcançar
um rompimento mais permanente com a dependência dos
pais. Com efeito, grande parte do seu amor e do seu ódio
pelo pai e pela mãe foi desviada para sua Alma Mater.)
A segunda passagem tem como tarefa fundamental,
portanto, a solidificação do ego através da qual o jovem
reúne força suficiente para deixar os pais, ingressar no
mundo maior, e lutar pela sobrevivência e pela realização
do desejo. Essa pessoa precisa dizer ao mundo: “Contrate-
me. Case-se comigo. Confie em mim”. E depois provar que
tem valor. Às vezes, na meia-idade, a pessoa ainda não
deu os passos decisivos que a afastam da dependência
e a conduzem ao mundo. Algumas ainda podem estar
vivendo com os pais. Outras podem não ter a força e o
valor pessoal necessário para arriscar se envolver num
relacionamento. Outras ainda podem não ter conseguido
enfrentar as tarefas profissionais com a força e decisão
necessárias. No caso dessas pessoas, o corpo pode ter
cronologicamente chegado à meia-idade, mas seu kairós
ainda é a infância.
Chamo de primeira idade adulta o período que se
estende aproximadamente dos doze aos quarenta anos.
O jovem que sabe, bem no íntimo, que não possui clara
noção do eu só pode tentar agir como os outros adultos. E
uma ilusão compreensível achar que se nos comportarmos
como nossos pais, ou nos rebelarmos contra seu exemplo,
seremos desse modo um adulto. Se conseguirmos um
emprego, nos casarmos, formos pais e pagarmos nossos
impostos, a confirmação da idade adulta certamente se
seguirá. Com efeito, o que ocorreu foi que a dependên­
cia da infância tornou-se parcialmente submersa e foi
projetada sobre os papéis da idade adulta. Esses papéis
assemelham-se a túneis paralelos. Saímos da confusão
da adolescência e caminhamos por esses túneis supondo
que eles confirmarão nossa identidade, tornar-nos-ão
realizados e paralisarão os horrores do desconhecido. A
primeira idade adulta, que pode na verdade se estender

34
por toda a vida, é uma existência provisória, destituída
da profundidade e da qualidade única que tom a a pessoa
um verdadeiro indivíduo.
A extensão desses túneis é indeterminada. Eles
resistem enquanto a identidade projetada sobre eles e a
dependência deles ainda paracem funcionar. É pratica­
mente impossível dizer a uma pessoa de trinta anos que
tem um emprego produtivo, é casada e está com segundo
filho a caminho que ela está numa forma de infância
prolongada. Os complexos paterno e materno bem como a
autoridade dos papéis oferecidos pela sociedade possuem
poder suficiente para atrair as projeções de qualquer um
que ainda esteja explorando a vida no mundo. Como foi
indicado anteriormente, o Si-mesmo, esse processo miste­
rioso que tem lugar dentro de cada um de nós e que nos
convoca para nós mesmos, frequentemente se expressa
através de sintomas — mas o poder das projeções é tão
grande que podemos manter afastadas as principais
questões da jornada. Como é terrível, então, quando as
projeções se desgastam e a pessoa não mais consegue
evitar a revolta do Si-mesmo. Ela precisa então admitir
sua impotência e perda de controle. O ego nunca esteve
no controle, mas, ao contrário, é dirigido pela energia dos
complexos maternos, paterno e coletivo, sustentado pelo
poder das projeções sobre os papéis oferecidos pela cultura
àqueles que tencionam se tornar adultos. Enquanto os
papéis tiverem poder normativo, enquanto as projeções
funcionarem, o indivíduo conseguirá evitar o encontro
com o Si-mesmo inerente.
A terceira fase da identidade, a segunda idade adulta,
tem início quando as projeções da pessoa se dissolvem. A
sensação de traição, do fracasso das expectativas, o vazio
e a perda de significado que ocorrem com essa dissolução,
criam a crise da meia-idade. E nessa crise, contudo que a
pessoa tem a oportunidade de tornar-se um indivíduo —
além do determinismo dos pais, dos complexos paterno e
materno e do condicionamento cultural. Tragicamente, o
poder regressivo da psique, com seu apoio na autoridade,

35
frenquentemente mantém a pessoa escrava desses comple­
xos, impedindo desse modo o desenvolvimento. O trabalho
com os idosos, em que cada um tem de enfrentar a perda
e antever a morte, expõe claramente duas categorias.
Existem aqueles para quem a parte que resta da vida
ainda está repleta de desafios, ainda merece bom esforço,
e aqueles para quem a vida está cheia de amargura, ar­
rependimento e medo. Os primeiros são invariavelmente
aqueles que passaram por uma luta anterior, experimenta­
ram a morte da primeira idade adulta e aceitaram maior
responsabilidade pela sua vida. Eles passam seus últimos
anos vivendo de modo mais consciente. Os que evitaram a
primeira morte são perseguidos pela segunda, com medo
de que sua vida não tenha sido significativa.
As características da segunda idade adulta serão ana­
lisadas de modo mais completo nos capítulos posteriores.
Mas é importante observar aqui que só é possível alcançá-la
quando as identidades provisórias são abandonadas e o
falso eu é destruído. A dor dessa perda pode ser compen­
sada pelas recompensas da nova vida que se segue, mas
a pessoa envolvida na passagem do meio poderá sentir
apenas a morte. A quarta identidade, a mortalidade, que
envolve aprender a viver com o mistério da morte, tam­
bém será discutida mais tarde, mas já na segunda idade
adulta é essencial aceitar a realidade da morte.
As boas-novas que se seguem à morte da primeira
idade adulta é que podemos reivindicar nossa vida. Um
segundo tiro é lançado na direção do que foi deixado para
trás nos momentos prístinos da infância. As boas-novas
oriundas do nosso confronto com a morte é que nossas
escolhas realmente importam e que nossa dignidade e
profundidade derivam precisamente do que Heidegger
chamou de “o Ser-em-direção-à-morte”.14 A definição de
Heidegger da nossa condição ontológica não é mórbida e
sim reconhecimento dos obj etivos teleológicos da natureza,
a dialética do nascimento-morte.

14Being and Time, p. 97.

36
Outra maneira de examinar essas identidades em
transformação é classificar seus diferentes eixos. Na
primeira identidade, a infância, o eixo atuante é o relacio­
namento entre os pais e a criança. Na primeira idade
adulta, o eixo se encontra entre o ego e o mundo. O ego, o
ser consciente da pessoa, luta para se projetar no mundo
e criar um mundo dentro do mundo. A dependência da
infância foi levada para o inconsciente e/ou projetada
sobre vários papéis, e o indivíduo orienta-se basicamente
para o mundo exterior. Na segunda idade adulta, durante
e depois da passagem do meio, o eixo passa a ligar o ego
ao Si-mesmo. E natural que a consciência suponha que
sabe tudo, e que está dirigindo o espetáculo. Quando sua
hegemonia é derrubada, o ego humilhado começa então
a dialogar com o Si-mesmo. Este último pode ser definido
como a finalidade teleológica do organismo. Trata-se de
um mistério que está além da nossa compreensão e seu
esclarecimento nos proporcionará uma magnificência
maior do que o nosso curto período de vida possivelmente
é capaz de encarnar.
O quarto eixo liga o Si-mesmo a Deus, ou o Si-mesmo
ao Cosmos, como preferirem. Esse eixo é moldado pelo
mistério cósmico que transcende o mistério da encarna­
ção individual. Se não tivermos algum relacionamento
com o drama cósmico, estaremos restringidos a uma vida
efêmera, superficial e árida. Como a cultura que quase
todos nós herdamos oferece muito pouca mediação mítica
para que o eu seja colocado num contexto mais amplo, é
absolutamente imperativo que o indivíduo amplie sua
visão.
Esses eixos em transformação delineiam os altos e
baixos da alma. Quando somos arrastados de um eixo
para outro independentemente da nossa vontade, podem
se seguir a confusão e até mesmo o terror. Mas a natureza
da nossa qualidade humana parece obrigar cada um de
nós a avançar em direção a um papel cada vez maior no
grande drama.

37
A retirada das projeções

A projeção é um mecanismo fundamental da psi­


que, uma estratégia originária do fato de que aquilo que
é insconsciente é projetado. (A palavra “projeção” vem
do vocábulo latino pro + jacere, “atirar à frente”.) Jung
escreveu que “a razão psicológica genérica da projeção é
sempre um inconsciente ativado que busca expressão”.15
Ele declara em outra obra: “A projeção nunca é formada;
ela acontece, está simplesmente presente. Na escuri­
dão de qualquer coisa exterior a mim, eu encontro, sem
reconhecê-la como tal, uma vida interior ou psíquica que
me pertence”.16
Diante do terrível mundo exterior e da imensidão des­
conhecida do interior, nossa tendência natural é projetar a
nossa ansiedade sobre nossos pais, pois os julgamos onis­
cientes e onipotentes. Quando somos obrigados a deixá-los,
temos a tendência de projetar o conhecimento e o poder
sobre as instituições, as figuras de autoridade e os papéis
socializados (os túneis mencionados acima). Admitimos que
agir como os adultos significa tornarmo-nos um deles. Os
jovens que ingressam na primeira idade adulta não podem
saber então que os adultos são frequentemente crianças
num corpo e em papéis avantajados. Alguns podem até
acreditar que são os seus papéis. Os menos inflacionados
têm mais consciência das suas incertezas, enquanto aque­
les que se encontram na passagem do meio e além dela
estão vivenciando a dissilução das suas projeções.
Entre as muitas projeções possíveis, as mais comuns
ocorrem sobre as instituições do casamento, da paterni­
dade, da maternidade, e da carreira. Falarei depois mais
a respeito do papel da projeção no casamento, mas talvez
nenhuma estrutura social esteja submetida a uma tão
grande bagagem inconsciente. Poucos têm consciência
no altar da enormidade das suas expectativas. Ninguém

15“The Symbolic Life,” The Symbolic Life, CW 18, §. 352.


16Psychology andAlchemy, CW 12, § 346. (Psicologia e Alquimia, OC XII).

38
ousaria proclamar em voz alta as imensas esperanças:
“Conto com você para conferir significado à minha vida”.
“Conto com você para estar sempre ao meu lado quando
eu precisar”. “Conto com você para ler minha mente e
antever todas as minhas necessidades”. “Conto com você
para curar minhas feridas e preencher as deficiências da
minha vida”. “Conto com você para me completar, para
me tornar uma pessoa completa, para curar minha alma
ferida”. Do mesmo modo como a verdade não pode ser
dita num discurso de formatura, também a programa­
ção oculta não pode ser proclamada no altar. Ficaríamos
por demais embaraçados se tomássemos conhecimento
dessas expectativas, pela sua própria impossibilidade. A
maioria dos casamentos que chegam ao fim são rompidos
pelo peso dessas expectativas, e aqueles que persistem
são com frequência intensamente marcados. O romance
se alimenta do que é distante, imaginado, projetado; o
casamento sorve o mingau comum da proximidade, da
ubiquidade e da mediocridade.
Robert Johnson sugere, em seu livro He, que a maio­
ria das pessoas modernas, pouco à vontade agora com os
antigos sistemas míticos, transferiram as necessidades
da alma para o amor romântico.17Com efeito, as imagens
do ser amado são carregadas dentro de cada um de nós
desde a infância e projetadas sobre aquele capaz de re­
ceber nosso material inconsciente. Nas palavras do poeta
persa Rumi:
No momento em que ouvi minha primeira história de amor
comecei a procurar por você, sem saber o quão cego eu estava.
Os amantes não acabam finalmente encontrando-se em algum
lugar. Eles estão um no outro o tempo todo.18

Viver diariamente com outra pessoa desgasta au­


tomaticamente as projeções. A pessoa a quem entrega­
mos a nossa alma, a quem abrimos a nossa intimidade,
acaba demonstrando ser apenas mero mortal como nós,

17He, pp. 82-83.


18Ver Sam Kean e Anne Valley-Fox, Your Mythic Journey, p. 26.

39
temerosa, necessitada e que também projeta intensas
expectativas. Os relacionamentos íntimos de qualquer
tipo carregam grande peso porque são os que têm maior
probabilidade de repetir o Outro íntimo que outrora foi
o pai ou a mãe. Não queremos pensar no nosso parcei­
ro como pai ou mãe. Afinal de contas, gastamos muita
energia para nos afastar deles. Mas o ser amado torna-se
esse Outro íntimo, sobre quem são projetadas as mesmas
necessidades e a mesma dinâmica, no mesmo grau em
que estamos inconscientes. Não é de causar surpresa,
então, que as pessoas acabem escolhendo alguém o mais
parecido ou diferente possível dos seus pais, pelo simples
motivo que os complexos paterno e materno participam
o tempo todo da escolha. Quando os povos bíblicos decla­
raram que o casamento exigia que se deixasse a mãe e o
pai,19não imaginavam que isso fosse tão difícil. Assim,
a retirada das projeções de proteção, poder e cura que
lançamos sobre o Outro íntimo só pode ser parcialmente
concretizada. A discrepância entre a esperança silenciosa
e a realidade cotidiana provoca uma dor considerável
durante a passagem do meio.
Outro papel que recebe fortes projeções de identidade
é a paternidade ou a maternidade. Quase todos nós nos
julgamos capazes de saber o que é adequado para nosso
filho. Temos certeza de que podemos evitar os erros que
nossos pais cometeram. Inevitavelmente, porém, todos
somos culpados de projetar a vida que não vivemos sobre
nossos filhos. Jung observou que o maior fardo que uma
criança precisa carregar é a vida não vivida de seus pais.
A mãe e o pai “corujas” são estereótipos, mas o ciúme que
o pai ou a mãe pode sentir do sucesso do filho também
é extremamente insidioso. Desse modo, um fluxo cons­
tante de mensagens, abertas e ocultas, bombardeiam a
criança. Esta portará consigo a raiva e a mágoa dos pais
e sofrerá a amplitude total das manipulações e coerções.
O pior de tudo é que podemos inconscientemente esperar

19 Marcos 10,7-8.

40
que a criança faça com que nos sintamos felizes com nós
mesmos, que preencha nossa vida e nos conduza a um
local mais elevado.
Quando atingimos a passagem do meio, nossos filhos
já estão na adolescência e são espinhentos, carrancudos,
rebeldes e geralmente tão irritantes quanto fomos com
nossos pais, e resistem furiosos às nossas projeções. Se
compreendermos o quão difíceis e perigosos os complexos
paterno e materno são como obstáculos para a jornada do
indivíduo em direção à individualidade, saberemos que
esses adolescentes estão certos ao resistir à exigência
de que sejam extensões dos seus pais. Não obstante, a
lacuna entre as expectativas da paternidade ou mater­
nidade e os atritos da vida familiar causam ainda mais
dor àqueles que se encontram na passagem do meio. O
desapontamento só pode ser atenuado se nos lembrar­
mos do que desejamos que nossos pais soubessem, que a
criança só passa através do nosso corpo e da nossa vida
a caminho do mistério da sua vida. Quando o pai ou a
mãe na meia-idade consegue aceitar este fato, a ambi­
valência da paternidade e da maternidade alcança sua
perspectiva adequada.
Freud acreditava que o trabalho e o amor eram os
requisitos fundamentais da sanidade. Nosso trabalho
representa uma grande ocasião tanto para o significado
quanto para sua negação. Se, como afirmou Thoreau muito
tempo atrás, a maioria das pessoas leva uma vida de de­
sespero silencioso,20 certamente é porque o trabalho para
muitos indivíduos é degradante e desmoralizante. Mesmo
aqueles que conseguiram as posições a que aspiravam
frequentemente darão consigo estranhamente tomados
pelo tédio. Conheci muitos estudantes que se formaram em
administração de empresas ou se tomaram programadores
de computador porque os pais, ou o substituto destes, a
sociedade amorfa, parecia exigi-lo. Tanto aqueles que
alcançam seu desejo quanto os que são pressionados a

20 The Best ofWalden and Civil Disobediense, p. 15.

41
satisfazer a necessidade de outra pessoa, frequentemente
acabam entendiados com sua carreira. Para cada aspirante
na escalada profissional existe um executivo exausto que
anseia por uma vida diferente.
Nossa carreira, como o casamento e a paternidade
ou a maternidade, é um veículo fundamental para a
projeção da 1) identidade, que julgamos ser confirmada
através do visível domínio de um conjunto de habilidades;
2) proteção, que receberemos ao sermos produtivos; e 3)
transcendência, que superará a insignificância do espírito
através de sucessivas realizações. Quando essas projeções
se dissolvem, e a insatisfação com a maneira como esta­
mos usando a energia vital não pode mais ser deslocada,
encontramo-nos na passagem do meio.
Quanto mais tradicional o casamento, quanto mais
rígido o papel de cada sexo, mais provável é que os par­
ceiros se vejam arrastados para direções opostas. Ele
chegou ao topo da montanha e tudo o que consegue ver
dali é o estacionamento de uma grande companhia. Ele
de bom grado diminuiría o ritmo ou se aposentaria. Ela,
tendo-se dedicado totalmente à vida familiar, sente-se en­
ganada, desvalorizada e estagnada, e quer voltar à escola
ou encontrar um trabalho renovador. Para os homens, a
questão do trabalho na meia-idade frequentemente cau­
sa depressão, diminuição da esperança e da ambição. As
mulheres que recomeçam a vida profissional ou escolar
frequentemente experimentam ansiedade em relação ao
seu nível de competência ou de capacidade de competir.
Mais uma vez, existem más notícias e boas notícias. As
más notícias estão ligadas ao fato de que cada um dos
parceiros esgotou uma importante área de projeção de
identidade e deseja recomeçar. As boas notícias dizem
respeito ao fato de que uma genuína renovação pode
surgir dessa insatisfação e outra faceta do potencial do
indivíduo pode ser explorada para benefício de todos.
Outra má notícia é que uma projeção só pode ser trocada
por outra; mas, mesmo assim, a pessoa se aproxima mais

42
daquele encontro com o Si-mesmo. Se um dos cônjuges se
sente ameaçado pela mudança, e resiste, ele pode estar
certo de que passará a conviver com um parceiro zangado
e deprimido. Na provação do casamento, a mudança não
ocorrerá necessariamente para melhor, mas será inevitá­
vel. De outro modo, o casamento poderá não sobreviver,
especialmente se impede o crescimento de qualquer um
dos parceiros.
Ainda outra projeção, que precisa ser dissolvida na
meia-idade, está relacionada com o papel do pai ou da mãe
como o protetor simbólico. Geralmente, na meia-idade,
os pais da pessoa estão perdendo seus poderes ou estão
doentes. Mesmo quando o relacionamento com os pais foi
problemático ou distante, um dos pais, ou ambos, ainda
estão simbolicamente presentes para proporcionar uma
barreira psíquica invisível. Enquanto a figura do pai ou
da mãe estiver viva, sobreviverá um amortecedor psíquico
contra o desconhecido e perigoso universo. Quando ela
é removida, a pessoa frequentemente sente o sopro da
ansiedade existencial. Uma cliente minha, de quarenta e
poucos anos, sofreu ataques de pânico quando seus pais,
de setenta e poucos anos, resolveram se divorciar amiga­
velmente. Ela sabia que o casamento deles nunca dera
certo, mas mesmo assim funcionava para ela como escudo
invisível contra aquele grande universo. Mesmo antes da
morte deles, o divórcio abalou a proteção invisível — mais
uma maneira de nos sentirmos sozinhos e abandonados
na meia-idade.
Embora existam muitos outros tipos de projeção
que não conseguem sobreviver à primeira idade adulta,
a perda de expectativas com relação ao casamento, aos
filhos, à carreira e aos pais como protetores são as que
mais se destacam.
Em Projection and Re-Collection inJungian Psycho-
logy, Marie-Louise von Franz descreve cinco estágios
de projeção.21 Primeiro, a pessoa se convence de que a

21Projection and Re-Collection in Jungian Psycology, pp. 9ss.

43
experiência interior (ou seja, inconsciente) é verdadei­
ramente exterior. Segundo, ocorre um reconhecimento
gradual da discrepância entre a realidade e a imagem
projetada (quando se deixa de amar alguém, por exem­
plo). Terceiro, a pessoa se vê obrigada a reconhecer essa
discrepância. Quarto, ela é levada a concluir que estava
de algum modo errada originalmente. E, quinto, a pessoa
precisa procurar dentro de si mesma a origem da energia
projetada. Este último estágio, a busca do significado da
projeção, sempre envolve a busca de maior conhecimento
de si mesmo.
A erosão das projeções, o retraimento das espe­
ranças e expectativas que elas personificam, é quase
sempre dolorosa, mas é um pré-requisito necessário
do autoconhecimento. A perda da esperança de que
os elementos externos venham a nos salvar dá ori­
gem à possibilidade de que tenhamos de salvar a nós
mesmos. Para cada criança interior, cheia de medo e
procurando abrigo no mundo adulto, existe um adulto
potencialmente capaz de assumir a responsabilidade
por essa criança. Ao tornarmos consciente o conteúdo
das projeções estamos dando um grande passo em
direção à emancipação da infância.

M udanças no corpo e na noção de tem po

A atitude geral da primeira idade adulta é proje­


tarmos o nosso senso de inflação juvenil sobre o futuro
indeterminado. Quando a energia esmorece é muito
fácil descartar o fato. Talvez não tenhamos dormido
o suficiente na noite anterior. Depois voltamos a ter
o mesmo desempenho que antes, mas não nos recupe­
ramos com a mesma facilidade. E as pequenas dores e
incômodos persistem.
O jovem geralmente acha que pode contar incondi­
cionalmente com o corpo. Este sempre estará presente
para nos proteger e podemos recorrer profundamente

44
a ele quando necessário, e ele sempre reabastecerá a si
mesmo. Mas chega o dia em que percebemos, mais uma
vez, que uma inevitável transformação está ocorrendo
independentemente da nossa vontade. O corpo se torna
um inimigo, um antagonista relutante no drama heroico
no qual nos lançamos. As esperanças do coração persistem,
mas o corpo não mais responderá como antigamente. Nas
palavras do lamento de Yeats: “Consome o meu coração;
doente de desejo/e preso a um animal moribundo”.22
Aquele que foi o humilde servo do ego torna-se agora
um rude oponente; sentimo-nos encurralados dentro do
corpo. Não importa o quanto o espírito deseje voar, aquilo
que Alfred North Whitehead chamou de “a testemunha
do corpo”23 nos chama de volta à terra. Assim também,
o tempo, que certa vez pareceu o palco de uma eterna
peça, o campo distante de uma luz que sempre retorna,
também se transforma numa armadilha. A mudança,
a repentina peripeteia, nos faz reconhecer não apenas
que somos mortais, que existe um fim, mas também que
não há como algum dia realizarmos tudo o que o coração
persegue e pelo que anseia. “Apenas as partes, nunca o
todo”, concluiu meu amigo. O corpo gracioso, a capela
mortuária; o interminável verão, um giro na escuridão
— é essa ideia de limitação e imperfeição que faz com
que a primeira idade adulta chegue ao fim. Dylan Tho-
mas escreveu belas e profundas linhas a respeito desse
trânsito:
Não me importava, nos dias brancos como a neve,
que o tempo me levasse
Para o sótão apinhado de andorinhas pela sombra da minha mão,
Na lua que está sempre nascendo.
Nem aquela jornada para o sono
Eu o ouviría voar com os campos elevados
E despertar para a fazenda
para sempre ida da terra sem crianças.
Oh! Enquanto eu era jovem e dócil à mercê dos recursos dele,

22 The Collected Poems ofW. B. Yeats, p. 191.


23Nature and Life, p. 126.

45
O tempo me tomou pálido e agonizante,
Embora eu cantasse em meus grilhões como o mar.24

A dim inuição da esperança

Quando os cordões do coração apertam de repente, e


tomamos consciência de que somos mortais, as limitações
da nossa vida tornam-se repentinamente inevitáveis. O
pensamento mágico da infância, bem como o pensamento
heroico da adolescência estendida, denominada primeira
idade adulta, revelam-se inadequados para as realidades
da vida. O ego imperial e expansionista desvia as insegu­
ranças da infância, transformando-as em algo grandioso.
“Fama: viverei para sempre; aprenderei a voar”. As espe­
ranças de imortalidade e celebridade do ego incipiente são
diretamente proporcionais ao medo e à ignorância infantil
diante do mundo. Analogamente a amargura e a depressão
da meia-idade estão relacionadas com a quantidade de
energia investida nos desejos fantásticos da infância.
O ego precisa estabelecer uma base segura num
universo grande e desconhecido. Analogamente ao atol de
coral que se forma através da incorporação de fragmentos
esqueletais, o ego também reúne fragmentos de experi­
ências, montando-os numa estrutura à qual ele possa se
agarrar nas grandes mudanças ocasionais. E natural que
a consciência do ego chegue à conclusão de que precisa
se defender das experiências avassaladoras da vida e
compensar suas inseguranças através da grandiosidade.
Na nossa insegurança, a ilusão de grandeza serve para
manter as trevas afastadas quando vamos dormir à noite.
Mas tropeçar na mediocridade é o fermento amargo da
meia-idade. E mesmo aqueles que se tornam famosos,
que dão nome a hotéis, que levam os filhos à loucura, não
conseguem mais do que nós escapar do encontro com a
limitação, com o enfraquecimento e com a mortalidade. Se

24“Fern Hill”, em Collected Poems, p. 180.

46
os componentes do poder e do privilégio conferissem paz
ou significado, ou mesmo satisfação duradoura, os desejos
infantis que projetamos conteriam alguma substância.
Outra esperança da juventude relacionada com o ego
é o desejo do relacionamento perfeito. Embora tenhamos
visto proliferar à nossa volta relacionamentos imperfeitos,
temos a tendência de supor que somos de algum modo
mais sábios, mais capazes de escolher, que estamos mais
bem equipados para evitar os revezes da vida. O Alcorão
adverte: “Crês que entrarás no Jardim da Bem-aventu-
rança sem enfrentar as provas pelas quais passaram os
que vieram antes de ti?”25 Imaginamos que esse conselho
seja dirigido aos outros. Embora o assunto vá ser tratado
com mais detalhes neste livro, a segunda maior deflação
das expectativas da meia-idade é o encontro com as limi­
tações dos relacionamentos. O Outro Intimo que satisfará
nossas necessidades, que tomará conta de nós, que sempre
estará presente para nos apoiar, é finalmente visto como
pessoa comum, como nós mesmos, também necessitada, e
que projeta sobre nós expectativas bastante semelhantes
às nossas. Os casamentos frequentemente terminam na
meia-idade, e uma das principais causas é a enormidade
das esperanças infantis que se impõem sobre a frágil
estrutura existente entre duas pessoas. Os outros não
satisfarão e nem podem satisfazer as necessidades gran­
diosas da criança interior, de modo que somos deixados,
e sentindo-nos abandonados e traídos.
As projeções personificam o que não é reclamado ou
é desconhecido dentro de nós. A vida tem uma manei­
ra de dissolver as projeções e precisamos, em meio ao
desapontamento e ao desconsolo, começar a assumir a
responsabilidade pela nossa satisfação. Não há ninguém
lá fora para nos salvar, tomar conta de nós, curar nossas
feridas. Mas existe uma excelente pessoa dentro de nós,
alguém que mal conhecemos, e que está pronta e disposta

25 Citado em Joseph Campbell, The Power ofMyth, p. 126. (Publicado em


português pela editora Palas Athena com o título O Poder do Mito).

47
a ser a nossa constante companheira. Somente quando
reconhecemos a deflação das esperanças e expectativas
da infância e aceitamos a responsabilidade direta de
encontrar por nós mesmos o significado é que a segunda
idade adulta pode começar.
Conheci um homem que reconheceu que seu problema
fundamental era a inveja. Por definição, inveja é a per­
cepção de que outra pessoa tem aquilo que ardentemente
desejamos. Embora esse homem tivesse sofrido privações
genuínas na infância, ele ainda se definia de maneira
negativa: “Eu sou aquela ausência que vê sua plenitude
em outra pessoa”. Reconhecer que não podemos reviver
a infância e nem podemos reverter a sua história, que
ninguém preencherá magicamente nosso vazio interior,
é certamente doloroso, mas é aí que tem início o possível
caminho da cura. O mais difícil é ter confiança de que a
nossa psique se revelará suficiente para curar a si mes­
ma. Mais cedo ou mais tarde, é preciso que ocorra esse
salto para a confiança em nossos recursos pessoais, caso
contrário continuaremos a busca infrutífera das fantasias
da infância. O abandono dessas ilusões de imortalidade,
perfeição e grandiosidade ajuda muito a envenenar nos­
so espírito e nossos relacionamentos. Na experiência de
separação de nós mesmos e dos outros, contudo, repousa
o potencial para o isolamento no qual podemos discernir
a grandeza do ser interior.

A experiência da neurose

Assim como o amor romântico pode ser encarado


como loucura temporária, na qual as pessoas tomam
decisões para a eternidade baseada nas emoções do
momento, também a turbulência da passagem do meio
pode assemelhar-se a uma crise psicótica na qual a pes­
soa age como se fosse “louca” ou se afasta dos outros. Se
entendermos que as suposições nas quais a pessoa se
apoiou a vida toda estão desmoronando, que as estra­

48
tégias reunidas pela personalidade provisória estão se
desequilibrando, que uma perspectiva de mundo está
se desintegrando, então a agitação é perfeitamente
compreensível. Com efeito, podemos até mesmo chegar
à conclusão de que não existe um ato de loucura se com­
preendermos o contexto emocional. Nós não escolhemos
as emoções; são elas que nos escolhem, e possuem uma
lógica toda particular.
Um cliente de uma clínica psiquiátrica repetidamente
atirava cadeiras pelas janelas. Acreditava-se que ele queria
fugir e ele foi então encarcerado. Entretanto, depois de
cuidadoso interrogatório, descobriu-se que ele acreditava
que o ar estava sendo bombeado para fora do seu quarto
e que ele precisava portanto de respirar ar puro. Sua
sensação de encerramento psíquico havia se convertido
simbolicamente em claustrofobia. Seu desejo de mais ar
era lógico, considerando as premissas emocionais. Quando
foi transferido para um aposento mais espaçoso, sentiu-
se seguro. Seu comportamento não era louco. Ele estava
representando logicamente a experiência psicológica de
encerramento e asfixia.
Assim, durante a passagem do meio, quando a
grandeza da emoção invade as fronteiras do ego, frequen­
temente tornamos concreto o que é simbolicamente ferido
ou negligenciado. O homem que foge com a secretária está
morrendo de medo de que sua vida interior, sua dimensão
feminina perdida, murche e desapareça para sempre.
Como essa necessidade é amplamente inconsciente, ele
projeta essa mulher interior desaparecida sobre a mulher
exterior. A mulher que sofre uma depressão está voltando
para dentro de si sua raiva indesejada, sobre a única
pessoa que ela tem permissão de atacar. Nenhuma des­
sas pessoas é louca, embora possa ser assim considerada
pelos outros. Ambas estão reagindo à enormidade das
necessidades e emoções que as perseguem exatamente
numa época em que seus mapas da realidade não mais
correspondem ao terreno.

49
Um excelente exemplo de loucura significativa pode ser
encontrado no conto de Philip Roth, “Eli, the Fanatic”.26A
história se passa logo depois da segunda guerra mundial,
quando o mundo estava repleto de deslocados de guerra,
e Eli é um advogado estabelecido numa região suburbana
dos Estados Unidos. Quando um grupo de sobreviventes de
um campo de concentração é enviado para sua cidade, Eli
recebe a incumbência de atenuar a identidade étnica dessas
pessoas. Por sua vez, ele se vê confrontado com o vazio da
própria identidade e seu vínculo superficial com sua herança
racial. Por fim ele troca seu temo pelo traje surrado do velho
rabino e percorre a m a principal da sua cidade entoando
seu nome bíblico. A cena final da história o descreve sendo
encarcerado e recebendo uma forte dose de tranquilizante.
Ele é considerado louco, quando na verdade simplesmente
livrou-se da sua personalidade provisória, descartou-se das
armadilhas e projeções da ascensão social e reposicionou-se
dentro de uma antiga tradição. Como sua nova identidade não
é condizente com amatriz geralmente aceita, ele é considerado
“louco” e sua nova consciência é medicada. Poderiamos fazer
sobre ele o mesmo comentário de Wordsworth sobre Blake:
“Algumas pessoas acham que este homem está louco, mas
prefiro a loucura dele à sanidade de outros”.27
A experiência da lacuna cada vez maior entre a noção
adquirida do eu, com todas as suas estratégias e projeções
resultantes, e as exigências do Si-mesmo que j az enterrado
debaixo da nossa história, é conhecida de todos nós, pois
todos nos sentimos separados de nós mesmos. A palavra
“neurose,” inventada pelo médico escocês Cullen no final
do século XVIII, sugere que estamos vivenciando um pro­
cesso neurológico. Mas a neurose, ou o chamado colapso
nervoso, não tem nada a ver com a neurologia. Trata-se
simplesmente do termo usado para descrever a divisão
intrapsíquica, e o subsequente protesto da psique. Todos
somos neuróticos porque experimentamos uma separação

26Ver Goodbye, Columbus and Five Short Stories.


27 Martin Price, To the Palace ofWisdom, p. 432.

50
entre o que somos e o que fomos destinados a ser. O protesto
sintomático da neurose, que se manifesta na depressão, no
abuso de substâncias ou no comportamento destrutivo, é
negado o maior tempo possível. Mas os sintomas reúnem
nova energia e começam a atuar autonomamente, fora
da vontade do ego. E tão inútil dizer a uma pessoa que
esteja fazendo dieta para não sentir fome quanto pedir
a um sintoma que se afaste. O sintoma, mesmo quando
contraproducente, é significativo, pois exprime de forma
simbólica aquilo que anseia por se expressar.
O que o indivíduo assustado deseja acima de tudo é
o restabelecimento da noção do eu que anteriormente deu
certo. O que o terapeuta sabe é que os sintomas são indícios
úteis que conduzem ao local da injúria ou da negligência,
apontando o caminho para a cura subsequente. O terapeuta
também sabe que a experiência da neurose da meia-idade,
quando pode ser enfrentada, representa uma enorme aber­
tura à transformação. Jung afirmou: “O irromper da neurose
não é apenas uma questão de probabilidade. Por via de regra
ela é extremamente crítica. E geralmente o momento em que
um novo ajustamento psicológico, uma nova adaptação é
exigida”.28Isso implica que a nossa própria psique organizou
essa crise, produziu esse sofrimento, precisamente porque
houve uma injúria e a mudança precisa ocorrer.
Lembro-me frequentemente do sonho de uma mulher
que começou a fazer análise aos sessenta e cinco anos, logo
depois da morte do marido. Ela havia crescido com um re­
lacionamento muito forte e positivo com o pai e tinha um
poderoso complexo paterno. Seu marido era vários anos mais
velho do que ela. Naturalmente, ela estava arrasada com a
morte de ambos. Ela buscou consolo junto a um clérigo que
sugeriu que fizesse terapia. Inicialmente ela achou que a
terapia acabaria com a sua dor. Como era de se esperar, ela
projetou uma considerável autoridade sobre o terapeuta.
Vários meses depois de começar a análise, ela teve um
sonho no qual ela e seu falecido marido estavam juntos

28“Psychoanalysis and Neurosis”, Freud and Psychoanalysis, CW 4, § 563.

51
numa jornada. Quando chegaram a uma ponte sobre um
riacho, ela percebeu que havia esquecido a bolsa. Seu ma­
rido prosseguiu viagem e ela voltou para buscar a bolsa.
Depois ela voltou e, ao chegar à mesma ponte, foi abordada
por um desconhecido que se aproximou dela pela esquerda,
cruzando a ponte com ela. Ela explicou ao estranho que
seu marido havia seguido na frente, mas também que ele
havia morrido. “Sinto-me tão só, tão só”, queixou-se. “Eu
sei”, retrucou o homem, “mas foi bom para mim”.
Tanto no sonho quanto ao relatá-lo mais tarde, a
mulher estava zangada com o estranho por mostrar-se
tão insensível à sua aflição. Eu fiquei entusiasmado com
o sonho, pois ele demonstrava uma definida mudança psi­
cológica. Embora seu pai e seu marido estivessem de fato
mortos, continuavam a desempenhar um papel dominante
na definição de si mesma. O complexo paterno, aparen­
temente benigno, representara uma autoridade externa,
que a impedira de encontrar a própria. A ponte represen­
tava a capacidade de ela fazer a transição da autoridade
exterior para a interior. E o desconhecido representava
seu princípio masculino interior, o animus, que não se
desenvolvera em virtude do poder do complexo paterno.
Este é um bom exemplo da sabedoria maravilhosa e auto-
reguladora da psique; o sofrimento do seu ego provocara
o crescimento de um componente interior que não estava
sob o domínio do pai. Sua passagem do meio começou,
portanto, aos sessenta e seis anos de idade, quando ela
partiu numa jornada para reclamar a própria identidade
e a própria autoridade, ambas condições indispensáveis
para a idade adulta.
Outra maneira de encarar a neurose é considerar
que o sofrimento resulta de um grau considerável de dis­
sociação. Durante o processo de responder ao processo de
socialização da infância e à pressão das realidades exter­
nas, nós nos tornamos progressivamente afastados de nós
mesmos. Os protestos interiores são reprimidos pelo peso
do mundo exterior. Na meia-idade, porém, a injúria e a
negligência da alma podem ser tão grandes que algumas

52
partes da psique resistem tenazmente a insultos adicionais.
Essa resistência se manifesta através de sintomas. Em
vez de tentar medicar e afastar sua mensagem, devemos
manter um diálogo com eles para provocar a “nova adap­
tação” a que Jung se refere acima.
E extremamente difícil para aqueles que estão sofrendo
muito, na noite escura da alma, aceitar que sua dor é boa
para eles, como o disse o homem misterioso do sonho acima
descrito. Não existe cura, pois a vida não é uma doença, nem
a morte uma punição. Mas existe um caminho que conduz
a uma vida mais abundante e significativa.
Lembro-me de uma mulher com uma história de
grande sofrimento, que começa com uma passagem tur­
bulenta para a vida e um corpo deformado, períodos de
negligência e abandono, e uma série de relacionamentos
dependentes e humilhantes. Na meia-idade seu mundo
desmoronou e ela voltou-se para dentro de si para pro­
curar a pessoa que nunca conhecera. A palavra que ela
usou para descrever a provação da passagem do meio foi
“fragmentação”. Muitos sofreram essa fragmentação, e
muitos, compreensivelmente, fogem para um baluarte
protegido de neurose e se agacham diante do vento da
mudança. Mas quando perguntei a essa mulher o que ela
fez quando se sentiu fragmentada, quem ela era durante
esse doloroso processo, ela respondeu com palavras que
me disseram claramente que ela conseguiría vencer e
alcançar uma vida mais autêntica. Eis o que me disse:
“Falo com esta parte de mim, e depois escuto. Falo então
com aquela outra parte, e depois escuto. E tento aprender
o que a psique deseja de mim”.
Ela referiu-se à psique como uma presença viva, um
conhecimento feminino que a orientaria. Algumas pessoas
diríam: “Ela está ouvindo vozes; ela é esquizofrênica.” Muito
pelo contrário. Todos ouvimos vozes, por assim dizer; são
os complexos — partes de nós mesmos que falam conosco,
e nós, quando não os ouvimos conscientemente, nos tor­
namos seus prisioneiros. Essa mulher estava assistindo
ao diálogo entre o ego e o Si-mesmo, o diálogo que pode

53
curar a separação que a história criou. Sua capacidade
de confiar nesse processo interior é tão necessária quanto
rara. A natureza não está contra nós. O poeta Rilke ob­
servou encantadoramente que nossos dragões interiores
podem na verdade procurar nossa ajuda:
Como poderiamos ser capazes de esquecer os antigos mitos que
estão no início de todos os povos, os mitos a respeito de dragões
que no último momento se transformam em princesas; talvez
todos os dragões da nossa vida sejam princesas que estão apenas
esperando para nos ver uma vez belos e bravos. Talvez tudo que
existe de terrível seja bem no fundo algo indefeso que precisa
da nossa ajuda.29

A ajuda atenciosa ajuda a transformar esses dragões


em fontes de energia para a renovação.
Lembremo-nos de que Jung define a neurose como
“o sofrimento que não descobriu o seu significado”.30Com
efeito, o sofrimento parece ser um pré-requisito para a
transformação da consciência. Em outra obra Jung su­
gere que a neurose é “um sofrimento não autêntico”.310
sofrimento autêntico requer encontros com dragões. O
sofrimento não autêntico implica fugir deles.
Se Jung e Rilke estiverem certos, e eu acho que estão,
nossos dragões representam tudo o que tememos e que
ameaça nos engolir; mas eles também são partes negli­
genciadas de nós mesmos que podem demonstrar imenso
valor. Quando levados a sério, e até mesmo amados por
nós, eles responderão fornecendo enorme energia e grande
significado para a jornada da segunda metade da vida.

29Letters to a Young Poet, p. 69.


30Ver acima, nota 8.
31 “The Significance of the Unconscious in Individual Education”. The
Development o f Personality, CW 17, § 154. (O Desenvolvimento da Personali­
dade - OC XVII).

54
3

VOLTANDO-SE PARA O INTERIOR

O projeto central da primeira metade da vida gira


em torno da formação da identidade do ego. Todos nós
conhecemos alguém que realmente nunca saiu de casa. As
vezes a pessoa vive literalmente com a mãe e o pai e toma
conta deles; outras vezes ela pode viver do outro lado da
rua, na mesma comunidade, ou mesmo a mil quilômetros
de distância e ainda estar sob a influência deles. A pessoa
que não se separou psicologicamente dos pais ainda está
presa a eles. O projeto da primeira metade da vida está
incompleto.
A identidade do ego, quando insuficientemente for­
mada, abceca e impede o desenvolvimento na segunda
metade da vida. O preparo para a segunda idade adulta
exige mais do que a mera separação geográfica dos pais.
E preciso que tenhamos encontrado uma maneira de
empregarmos produtivamente a nossa energia. Isso não
significa apenas ter um emprego; significa que sentimos
um desafio diante de uma tarefa e nos consideramos
produtivos ao realizá-la.
É preciso também que haja um compromisso maduro
com o relacionamento. A incapacidade de fazer concessões,
de nos mantermos firmes nos inevitáveis atritos dos rela­
cionamentos, representa um fracasso básico na tentativa
de obtermos um sentimento da nossa realidade psíquica.
Além disso, devemos estar de algum modo envolvidos como

55
cidadãos no mundo exterior. Todos nós já tivemos momen­
tos em que tivemos vontade de nos afastar da loucura do
mundo, e um recolhimento ocasional certamente pode
renovar a alma. Mas fugir para sempre significa evitar o
posterior desenvolvimento da identidade pessoal. Mais
uma vez, Jung expressou com eloquência essa tarefa:
O curso natural da vida requer que o jovem sacrifique sua infância
e sua dependência infantil dos pais físicos, para que não permaneça
preso em corpo e alma nos laços do incesto inconsciente.32
O medo é um desafio e uma tarefa, porque somente a coragem
pode livrar-nos do medo. E se não corrermos o risco, o significado
da vida será de algum modo violado, e todo o futuro condenado a
uma deterioração sem esperança, a um cinzento opaco iluminado
apenas por quimeras e ilusões.33

Como já vimos, até mesmo a identidade do ego satis­


fatoriamente concluída pode ser abalada na meia-idade.
A dor decorrente de um relacionamento fracassado, a
indiferença por parte daqueles que deveríam nos apoiar
e nos salvar, a perda do entusiasmo pela ascensão profis­
sional — todos representam a erosão das projeções do ego
e do sentimento de identidade até então por eles susten­
tados. Por mais êxito que tenhamos tido na consolidação
do estado do ego, na construção de um mundo pessoal,
as deflações da passagem do meio são vivenciadas como
confusão, frustração e perda de identidade.
Frequentemente, quando estamos passando pela
passagem do meio, as questões não concluídas da pri­
meira metade da vida tornam-se dolorosamente visíveis.
Ao presenciarmos o fracasso do nosso casamento, por
exemplo, podemos nos ver diante da dependência tácita
que ele encobria. Podemos vir a perceber que havíamos
projetado o complexo paterno ou materno sobre o cônjuge,
ou ainda que não temos nenhuma aptidão ou confiança
profissional. E aí que os problemas da primeira metade

32 Symbols o f Transformation, CW 5, ! 553. (Símbolos da Transforma-


ção — OC V).
33Ibid., par. 551.

56
da vida voltam a nos atormentar, gerando ressentimento
e desejo de culparmos alguém.
Um dos choques mais violentos da passagem do meio
é o colapso do nosso contrato tácito com o universo — a
suposição de que, se agirmos corretamente, se nossas
intenções forem boas e sinceras, as coisas darão certo.
Supomos uma reciprocidade com o universo. Se fizermos
a nossa parte, o universo aquiescerá. Muitas histórias da
antiguidade, inclusive o livro de Jó, dolorosamente reve­
lam o fato de que não existe tal contrato, e todos os que
passam pela passagem do meio tomam consciência disso.
Ninguém se casa, por exemplo, sem grandes esperanças e
boas inteções, não importa o quão incertas e variáveis as
circunstâncias. Quando nos erguemos entre os fragmentos
de um relacionamento, perdemos não apenas o parceiro
como também toda uma perspectiva de mundo.
Talvez o choque mais violento seja a erosão da ilusão
de supremacia do ego. Por mais bem sucedido que tenha
sido o projeto de ego, ele não mais pode exercer o controle.
O colapso do ego significa que não estamos mais realmente
no controle da vida. Nietzsche observou certa vez o quão
consternados ficam os seres humanos quando descobrem
que não são Deus. Para isso basta percebemos que não
somos nem mesmo capazes de administrar adequadamente
a nossa vida. Jung enfatizou o tremor que ocorre quando
descobrimos que não somos senhores em nossa própria
casa. Assim, salvo o choque, a confusão, e até mesmo o
pânico, o resultado fundamental da passagem do meio é
sermos humilhados. Sentamos com Jó sobre o monte de
esterco, despojados da ilusão, e nos perguntamos onde foi
que tudo saiu errado. Não obstante, a partir dessa expe­
riência uma nova vida pode surgir. A força adquirida na
luta da primeira metade da vida pode ser agora convocada
para o encontro com a segunda. Se o nosso ego não for
forte, seremos incapazes de efetuar a mudança do eixo ego-
mundo para o ego-Si-mesmo. O que foi deixado por fazer
durante a separação e a solidificação do ego permanece
um obstáculo ao crescimento do futuro indivíduo.

57
A vida é impiedosa quando nos pede para crescermos
e assumirmos a responsabilidade pela nossa vida. Por
mais simplista que isso possa parecer, o crescimento é
realmente a inevitável exigência da passagem do meio.
Ele envolve finalmente enfrentarmos nossas dependências,
complexos e temores sem a mediação de terceiros. Requer
que deixemos de culpar os outros pelo nosso destino e
assumamos total responsabilidade pelo nosso bem-estar
físico, emocional e espiritual. Meu analista me disse cer­
ta vez: “Você deve fazer dos seus temores sua ordem do
dia”. Tratava-se de uma tremenda perspectiva, mas eu
conhecia a verdade de sua afirmação. Essa ordem do dia
estava exigindo uma explicação e esta iria necessitar de
toda a força que eu pudesse reunir.
Durante a passagem do meio, frequentemente ain­
da temos obrigações para com os filhos, com a realidade
econômica e as exigências do dever. Não obstante, mesmo
enquanto o mundo exterior continua a reclamar nossos
esforços, precisamos nos voltar para dentro de nós para
crescer, para mudar, para encontrar a pessoa que é obje­
tivo da jornada.

O diálogo entre a persona e a som bra

O desmoronar do domínio do ego, da ilusão de que


sabemos quem somos e que estamos no controle, conduz
invariavelmente a um embate entre a persona e a sombra.
Esse diálogo, que ocorre na meia-idade, representa um
equilíbrio necessário da personalidade entre aRealpolitik
da sociedade e a verdade do indivíduo.
A persona (“máscara,” em latim) é uma adaptação
mais ou menos consciente do ego às condições da vida
social. Desenvolvemos muitas personas, papéis que são
ficções necessárias. Comportamo-nos de uma maneira com
nossos pais, de outra com nosso patrão e de outra ainda
com o nosso cônjuge ou namorado. Embora a persona seja

58
uma superfície comum de contato necessária com o mundo
exterior, temos a tendência não apenas de confundir aper­
sona das outras pessoas com a verdade interior delas, mas
também de achar que nós também somos os nossos papéis.
Como foi indicado anteriormente, quando nossos papéis
mudam vivenciamos uma perda do eu. A persona imita a
individualidade, mas fundamentalmente, como observa
Jung, ela “não é real: é um acordo entre o indivíduo e a
sociedade”.34 No mesmo grau em que nos identificarmos
com a persona, nosso eu socializado, ficaremos ansiosos
ao sermos arrancados da adaptação exterior para nos
voltarmos para a realidade interior. Um dos aspectos da
passagem do meio, portanto, é uma alteração radical no
nosso relacionamento com a nossa persona.
Como grande parte da primeira metade da vida envol­
ve a formação e a manutenção dapersona, frequentemente
negligenciamos a nossa realidade interior. Examinemos
a sombra, que representa tudo o que foi reprimido ou
que passou desapercebido.353 6A sombra contém tudo o que
é vital, porém problemático — a raiva e a sexualidade,
com certeza, mas também a alegria, a espontaneidade
e a chama criativa não aproveitada. Freud comentou
sucintamente que o preço da civilização é a neurose. As
exigências da sociedade, começando com a nossa família
de origem, divide os conteúdos psíquicos e a sombra se
estende. Esta última representa a mortificação da na­
tureza da pessoa em favor dos valores sociais coletivos.
Consequentemente, a confrontação com a sombra e sua
integração favorecem a cura da divisão neurótica e uma
programação de crescimento. Jung concluiu que
Embora até aqui se tenha acreditado que a sombra humana era
a origem de todo o mal, podemos afirmar agora, com base numa
investigação mais profunda, que ela não consiste apenas de ten-

34 Two Essays on Analytical Psychology, CW 7, § 246. (Estudos sobre


Psicologia Analítica — OC VII).
36A repressão é um mecanismo inconsciente por meio do qual um pen­
samento ou impulso é reprimido a fim de proteger o ego que seria por demais
doloroso para ser reconhecido.

59
dências moralmente repreensíveis, mas que também exibe muitas
qualidades boas , como instintos normais, reações apropriadas,
insights realistas, impulsos criativos etc.36

Quando atingimos a meia-idade já conseguimos re­


primir uma grande parte da nossa personalidade. A raiva,
por exemplo, frequentemente explode durante a passagem
do meio porque fomos encorajados a reprimi-la. A raiz
indogermânica angh, da qual se originam as palavras
anger, ansiedade, angústia e angina, significa “contrair”.
Praticamente toda socialização representa uma constri-
ção dos impulsos naturais, e portanto deve-se esperar
uma crescente acumulação de raiva. Mas para onde foi a
energia associada a esses impulsos naturais? Frequente­
mente ela alimenta nossas ambições cegas e nos conduz
aos narcóticos para amortecer a sua intensidade, ou faz
com que maltratemos a nós mesmos e aos outros. Quando
ensinam a alguém que a raiva é um pecado ou uma falha
moral, a pessoa se separa da sua verdadeira experiência
de constrição. Quando reconhecida e canalizada, a raiva
pode ser um enorme estímulo para a mudança. O indivíduo
simplesmente se recusa a viver de forma não-autêntica a
partir daí. Considerando-se um investimento para a vida
toda na persona, o encontro da sombra com a raiva é sem
dúvida problemático, mas alcançar a liberdade de sentir
a própria realidade é um passo necessário em direção à
cura da divisão interior.
Outros encontros com a sombra também são doloro­
sos quando somos obrigados a reconhecer um contínuo
catálogo de emoções que geralmente não são aceitáveis
para o mundo da persona, como o egoísmo, a dependência,
a luxúria e o ciúme. Antes, podíamos negar essas quali­
dades e projetá-las sobre outras pessoas — ele é vaidoso,
ela é excessivamente ambiciosa, e assim por diante. Na
meia-idade, porém, a capacidade de enganarmos a nós
mesmos é esgotada. Olhamos de manhã no espelho e vemos3 6

36 “The Structure and Dynamics of the Self”, Aion, CW 9ii, § 423. (Aion
- Estudos Sobre o Simbolismo do Si-Mesmo - OC IX/2).

60
o nosso inimigo — nós mesmos. Embora o encontro com
as nossas qualidades inferiores possa ser doloroso, o fato
de as reconhecermos faz com que a sua projeção sobre os
outros comece a se retrair. E preciso muita coragem para
dizermos que o que está errado no mundo está errado em
nós, que o que está errado no casamento está errado em
nós, e assim por diante. Mas, nesses momentos de humil­
dade, começamos a melhorar o mundo que habitamos, e
damos origem às condições que favorecem a cura de nossos
relacionamentos e de nós mesmos.
O compromisso com nós mesmos também significa
recuarmos e recolhermos o que foi deixado para trás: a
joie de vivre, o talento não aproveitado, as esperanças
da criança. Se pudéssemos ver a nossa psique como um
mosaico, não seríamos capazes de contar, e muito menos
de viver, todas as peças, mas cada uma que é confirmada
cura e gratifica a alma ferida. Desse modo, o homem que
queria aprender a tocar piano, a mulher que ansiava por
ir para a faculdade ou passear de barco no lago numa
tarde de verão — cada um deles pode realizar o sonho
que por razão foi deixado para trás. Não escolhemos nosso
equipamento psíquico, mas podemos escolher amar ou
negligenciar seu conteúdo. Ainda assim, muitos de nós
não nos sentimos livres para reconhecer a nossa própria
realidade. Não tivemos apoio suficiente dos nossos pais,
ou a aceitação deles diante da vida; interiorizamos essa
negligência e a interdição implícita contra vivermos o
nosso potencial. Conseguir permissão para viver a própria
realidade é essencial na meia-idade. O fato de sermos
mortais, de o tempo ser limitado, e de que ninguém nos
libertará do fardo da responsabilidade pela nossa vida,
serve de poderoso incentivo para que sejamos mais com­
pletamente nós mesmos.
Durante a passagem do meio a revolta da sombra
faz parte de um esforço neutralizante realizado pelo
Si-mesmo para devolver o equilíbrio à personalidade. A
chave para a integração da sombra, a vida não vivida, é
compreender que as exigências dela provêm do Si-mesmo,

61
que não deseja mais repressão ou uma representação não
autorizada. A integração da sombra exige que vivamos com
responsabilidade na sociedade, mas também que sejamos
mais sinceros com nós mesmos. Aprendemos através da
deflação do mundo da persona que temos vivido uma vida
provisória; a integração das verdades interiores, alegres
ou desagradáveis, é necessária para o surgimento de nova
vida e para a restauração da finalidade.

Problem as de relacionam ento

Como foi demonstrado anteriormente, nada con­


tém um potencial maior para a dor e o desapontamento
na meia-idade do que uma longa intimidade como a do
casamento. Esses relacionamentos carregam o fardo da
criança interior. Levamos para o relacionamento muita
esperança, grande necessidade e enorme capacidade de
desapontamento. Qualquer um que olhe para trás na
meia-idade deve estremecer diante da enormidade das
escolhas como o casamento e a carreira, feitas frequen­
temente décadas antes, e da inconsciência a partir da
qual elas foram feitas. Os jovens sempre se apaixonaram,
juraram compromisso para toda a vida e geraram bebês.
Eles continuarão a fazê-lo. Mas, durante a passagem
do meio, muitos confrontarão a si mesmos e aos seus
parceiros, colocando enorme tensão no relacionamento.
Com efeito, existem poucos casamentos na meia-idade,
quando sobrevivem, que não estejam sob grande tensão.
Ou o divórcio é o evento extraordinário que desencadeia a
passagem do meio, ou o casamento torna-se ponto central
para as pressões tectônicas.
Precisamos refletir mais profundamente sobre a na­
tureza da intimidade para aprendermos mais a respeito
do papel e da importância do relacionamento durante a
passagem do meio. Claramente a pessoa a quem entrega­
mos a nossa alma carrega um grande peso. Além disso, a
cultura moderna frequentemente supõe que casamento e

62
amor romântico são sinônimos. Na maior parte da história
o casamento serviu como um veículo para a conservação e
transmissão dos valores, da etnia, da tradição religiosa e
do poder. Os casamentos de conveniência têm uma ficha
melhor do que os que se baseiam na continuação do amor,
o mais impalpável dos sentimentos. Analogamente, os ca­
samentos fundamentados na dependência mútua podem
dar certo enquanto a morte ou o destino não intervém.
(Um antigo colega meu, arrasado pela experiência do
Holocausto, casou-se com uma mulher que tinha a me­
tade da sua idade e que passou a cuidar da vida dele, o
que trouxe imensa satisfação para ambos.) Na verdade,
considerando os relatos sobre casamentos, tudo indica
que as uniões baseadas em necessidades práticas têm
probabilidade maior de durar do que as fundamentadas
em expectativas românticas e projeções mútuas. Como
comentou George Bemard Shaw,
Quando duas pessoas estão sob a influência da mais violenta,
da mais insana, da mais ilusória e da mais efêmera das paixões,
é-lhes exigido jurar que permanecerão continuamente nessa
condição perturbada, anormal e exaustiva, até que a morte as
separe.37

ego da ego do
mulher homem
* ------------------------------------- ►

37Citado em Gail Sheehy, Passages: Predictable Crises ofAdult Life, p. 152.

63
O diagrama abaixo mostra as transações que ocorrem
tipicamente nos relacionamentos heterossexuais.
No nível consciente temos relações do ego com outras
pessoas, mas não estabeleceriamos uma união romântica
com base nesse relacionamento do ego. Essa honra cabe à
anima e ao animus, que são os elementos contrassexuais
mais ou menos conscientes da psique.
Resumindo, a anima representa a experiência interio­
rizada do aspecto feminino no homem, que inicialmente é
influenciada pela mãe e outras mulheres, além de colorida
por algo desconhecido e único para ele. Essa experiência da
anima representa o relacionamento do homem com o pró­
prio corpo, com seus instintos, com seus sentimentos e sua
capacidade de relacionamento com os outros. O animus da
mulher é a sua experiência do princípio masculino, influen­
ciado pelo pai e pela cultura, mas também misteriosamente
único para ela. Ele personifica seu senso prático, suas aptidões
e capacidade de concentrar suas energias e alcançar seus
desejos no mundo. Apesar disso, a verdade fundamental do
relacionamento é que projetamos no Outro tudo o que não
experimentamos conscientemente de nós mesmos. As setas
na diagonal mostram essa projeção de anima/animus para
o ego, e vice-versa.38 Dentre as inúmeras pessoas de sexo
oposto, só nos sentiremos atraídos por algumas, aquelas
que são boas iscas para a projeção e que podem, pelo menos
temporariamente, sustentá-la. Essa dinâmica diagonal está
por trás do que chamamos de amor romântico.
Este último proporciona sensação de profunda união,
de nova energia, de esperança e um sentimento acolhedor.
O amor à primeira vista é a mais notável dessas projeções.
O Outro pode ser um assassino, só que é capaz de sustentar
a projeção no momento. E óbvio que por trás da projeção
existe apenas um ser humano comum como nós, que sem
dúvida está projetando sobre nós uma pesada programação.

38 Para um estudo mais completo deste processo, ver John Sanford, The
Invisible Partners:How Male and Female in Each ofUsAffects OurRelationships.
(Os parceiros invisíveis, Paulus, São Paulo, 1987).

64
Mas para nós o Outro é especial. “Esta pessoa é diferen­
te”, dizemos, ou “nunca me senti assim antes”. A cultura
popular alimenta a ilusão. Se as “quarenta músicas mais
vendidas” fossem reunidas numa só, sua letra seria algo
assim: “Eu estava me sentindo tremendamente infeliz até
que você entrou na minha vida e depois tudo ficou como
novo e subimos ao topo do mundo até que você mudou e
perdemos o que tínhamos e agora estou profundamente
infeliz e nunca amarei de novo até a próxima vez em que
me apaixonar”. A única variação é o sexo do cantor e a
presença ou não de uma guitarra.
A vida em comum desgasta impiedosamente as proje­
ções; somos deixados com a diversidade do Outro, que nem
que o quisesse podería enfrentar a grandeza das projeções.
Por conseguinte, na meia-idade as pessoas chegam à se­
guinte conclusão: “Você não é a pessoa com quem me casei”.
Na verdade, ela nunca foi. Ela sempre foi outra pessoa,
um estranho que mal conhecíamos e que só conhecemos
um pouco melhor agora. Como a anima ou o animus foi
projetado sobre esse Outro, literalmente nos apaixonamos
pelas nossas partes que estão faltando. Aquela sensação
acolhedora de união era tão boa e a ocasião era tão auspi­
ciosa, que sua perda é sentida como catastrófica.39
A verdade a respeito dos relacionamentos íntimos é
que eles nunca podem ser melhores do que o nosso rela­
cionamento com nós mesmos. A maneira como nos relacio­
namos com nós mesmos determina não apenas a escolha
do Outro como também a qualidade do relacionamento.
Com efeito, todo relacionamento íntimo revela tacitamen-
te quem éramos quando tudo começou. Por conseguinte,
todos os relacionamentos são indicativos do estado da
nossa vida interior, e nenhum relacionamento pode ser
melhor do que nosso relacionamento com o nosso próprio
inconsciente (os eixos verticais do diagrama).40

39 Ver Aldo Carotenuto, Eros e Pathos, amor e sofrimento, Paulus, São


Paulo, 1994)
40Falei sobre este assunto em público e muitos concordaram com minha
lógica, mas se sentiram seriamente ameaçados pela insinuação de que o Outro

65
O relacionamento não seria tão sobrecarregado
se não exigíssemos tanto dele. Mas que significado de­
veria ter o relacionamento se ele não vai satisfazer as
expectativas da criança interior? O significado surge,
comenta Jung,
quando as pessoas sentem que estão vivendo a vida simbólica,
que são atores no drama divino. E isso que confere o único signi­
ficado à vida humana; tudo o mais é banal e podemos desprezá-
lo. A carreira, os filhos e tudo o mais são apenas maya (ilusão)
em comparação com esse algo único, o fato de nossa vida ter
significado.41

A questão deixa então de se concentrar na expectati­


va de que o Outro mágico nos salve, passando a focalizar
o papel que esse relacionamento pode desempenhar em
nossa conquista de maior significado na vida.
O modelo de intimidade típico da nossa cultura,
bem como das esperanças da primeira idade adulta, é
claramente o de fusão ou proximidade — a crença de
que, através da união com o Outro, a metade que eu
represento será completamentada, completada. Juntos
seremos um; juntos seremos completos. Essa esperança
natural da parte da pessoa que se sente incompleta e
inadequada diante da imensidade do mundo serve, na
verdade, de impedimento ao desenvolvimento de ambos.
Quando o desgaste da vida cotidiana consome a espe­
rança e as projeções que a acompanham, vivenciamos
uma perda de significado, ou seja, a perda do significado
projetado sobre o Outro.
Diante da perspectiva da meia-idade, nós nos ve­
mos obrigados a substituir o modelo de fusão porque ele
simplesmente não funciona. O modelo que faz sentido
na segunda metade da vida, se cada pessoa assumir a
responsabilidade pelo bem-estar psíquico, é o seguinte:

mágico não está realmente lá fora. Uma mulher aproximou-se de mim depois da
palestra com o dedo em riste dizendo: “Sim, mas mesmo assim eu ainda acredito
no amor”. Seu tom zangado indicava que ela acabava de perder Papai Noel.
41 “The Symbolic Life”, The Symbolic Life, CW 18, § 630.

66
O recipiente em forma de bacia sugere o caráter ilimi­
tado do relacionamento maduro. Cada parceiro está basi­
camente no comando da própria individuação. Eles apoiam
e estimulam um ao outro através do relacionamento, mas
não podem executar tarefas de desenvolvimento, ou de
individuação, para o outro. (A importância da individuação
será discutida no quinto capítulo.) Este modelo representa
o abandono da noção de que um será salvo pelo Outro. Ele
pressupõe que ambos os parceiros podem aceitar o con­
vite à individuação e que eles servem ao relacionamento
tomando-se mais completos em si mesmos. Tendo superado
o modelo de fusão, o relacionamento maduro exige que
cada parceiro assuma sua responsabilidade pessoal; caso
contrário, o casamento ficará estagnado.
Para que tenhamos um relacionamento maduro pre­
cisamos ser capazes de dizer: “Ninguém pode me dar o que
eu quero ou preciso mais profundamente. Somente eu posso
fazer isso. Mas eu posso festej ar e investir no relacionamento
pelo que ele tem a oferecer”. O que ele geralmente oferece
é companheirismo, respeito e apoio mútuo, e a dialética
dos opostos. Um jovem que usa os relacionamentos como
ponto de apoio para amparar um eu instável não podería
enfrentar o desafio da coragem e disciplina de um relacio­
namento maduro. Enquanto antes queríamos confirmações,
precisamos agora aceitar as diferenças. Enquanto antes
queríamos o amor simples da igualdade, precisamos agora
aprender a difícil tarefa de amar a alteridade.
Quando abandonamos as projeções e a grande pro­
gramação oculta, podemos então ser engrandecidos pela
alteridade do parceiro. Um mais um não é igual a Um,
como no modelo de fusão; é igual a três — os dois como
seres separados cujo relacionamento forma um terceiro
que os obriga a se estenderem além das suas limitações

67
individuais. Além disso, ao abandonarmos as projeções e
colocarmos a ênfase no crescimento interior, começamos a
encontrar a imensidão da nossa alma. O Outro nos ajuda
a expandir as possibilidades da psique.
Rilke descreveu o relacionamento como o com­
partilhar da nossa solitude com outra pessoa.42 Isto
certamente está próximo da verdade, pois tudo que
temos no final é a nossa solitude. Precisamos aceitar
que a projeção não irá durar, mas que talvez será
substituída por algo ainda precioso. Como as projeções
são inconscientes, nem sempre podemos ter certeza de
que nosso relacionamento com o Outro seja genuíno.
Mas, se tivermos assumido a responsabilidade básica
por nós mesmos, é bem menos provável que estejamos
projetando as dependências e as expectativas irrealistas
da criança interior.
O verdadeiro relacionamento, portanto, emana de
um desejo consciente de compartilharmos a jornada
com outra pessoa, de nos aproximarmos do mistério da
vida através da ponte de conversação, da sexualidade
e da compaixão. Nietzsche comentou certa vez que o
casamento era uma conversa, um grandioso diálogo.43
Se não estivermos preparados para realmente nos en­
volvermos num diálogo durante o longo percurso, então
não estaremos preparados para uma intimidade dura­
doura. Muitos casais mais velhos já esgotaram há muito
tempo sua conversa, porque deixaram de crescer como
indivíduos. Quando a ênfase é colocada no crescimento
individual, cada um terá um parceiro interessante com
quem conversar. Se bloquearmos o nosso crescimento,
mesmo que erradamente no interesse do outro, estare­
mos com certeza garantindo que nosso cônjuge estará
vivendo com uma pessoa zangada e deprimida. Ter nosso
crescimento bloqueado pelo outro também não é aceitá­
vel. O casamento precisa se reabrir, caso contrário terá
perdido sua razão de existir. No casamento duradouro,
42Letters ofRainer Maria Rilke, p. 57.
43“Humann, All Too Human”, The Portable Nietzsche, p. 59.

68
ilimitado e dialético, podemos vivenciar o quarto vetor
bilateral do diagrama da página 63, o intercâmbio entre
dois mistérios, as energias contrassexuais interiores;
assim é o encontro da alma com a alma.
O amor, então, é uma maneira de viver a vida sim­
bólica a que Jung se referia, de encontrar o mistério
cujo nome e natureza nunca podemos compreender, mas
sem cuja presença somos aprisionados no superficial.
Na meia-idade muitos casamentos já terminaram ou
apresentam problemas. No passado, as pessoas que so­
breviviam ao recolhimento das projeções encontravam-se
sob uma pressão coletiva excessivamente poderosa para
que pudessem procurar alternativas. Alguns envolviam-
se em casos amorosos, outros se entregavam ao vício,
outros encontravam a sublimação através do trabalho
e dos filhos, e outros ainda ficavam doentes ou sofriam
de enxaqueca ou depressão. As opções positivas estavam
geralmente fora de alcance. Hoje em dias essas opções
existem e, por mais dolorosas que possam ser, não são
tão más quanto permanecer numa estrutura que não
favoreça a individuação dos parceiros. Apesar das boas
intenções e de uma grande vontade do ego, a verdade se
revelará. E preciso coragem para examinar a estrutura
que conduziu nossas esperanças e necessidades, mas
a coragem é capaz de curar, restaurar a integridade e
trazer a vida depois da morte.
Acreditar no Outro mágico significa enganar cruel­
mente a si mesmo. Se encontrarmos alguém assim, po­
demos estar certos de que se trata de uma projeção. Se
depois de um período de tempo adequado o Outro ainda
estiver cuidando de nós, é bem provável que estejamos
presos numa dependência que o Outro alimenta ou satisfaz,
consciente ou inconscientemente. Não estou de modo ne­
nhum diminuindo o poderoso papel de apoio que o parceiro
pode desempenhar em nossa jornada, e sim dizendo que
sempre fugimos da grandeza impressionante de assumir­
mos a responsabilidade pessoal pela nossa vida. Conheci
certa vez uma mulher muito competente que conduziu o

69
marido certa manhã até a porta e instalou em casa seu
futuro marido na mesma tarde. Embora uma excelente
profissional, ela não estava à altura da experiência de
viver consigo mesma e sofrer o diálogo interior.
Quando temos a coragem de nos voltarmos para
dentro de nós, temos a oportunidade de nos abrirmos
a essas partes negligenciadas da nossa personalidade.
Se tiramos do parceiro a obrigatoriedade de encarnar
o significado da vida, somos chamados a ativar o nosso
próprio potencial.
Ouvi recentemente uma representação clássica do pa­
pel dos sexos das gravações interiores que todos recebemos
no início da vida. A beira do divórcio, marido e mulher se
culpavam mutuamente pelo que havia acontecido na sua
vida. O homem disse que trabalhava arduamente para
ser bem sucedido, o que significava progredir profissional­
mente e sustentar a família. Ele cumpriu fielmente seu
objetivo, mas com um ressentimento cada vez maior por
não ter vida própria. Sua raiva voltou-se para dentro, ele
ficou deprimido, e finalmente sentiu que tinha de acabar
com o casamento ou morrer. Sua esposa respondeu que
havia desempenhado o papel de “ministro do interior” e
que havia cuidado dele, da casa e dos filhos, e que não
havia alcançado seus objetivos profissionais. Ela também
estava deprimida.
Claramente, ambos eram vítimas. Eles haviam re­
cebido as gravações dos seus papéis sexuais e as haviam
tocado o melhor que podiam, como seus pais também o
haviam feito, e haviam ficado cada vez mais ressentidos
com o passar dos anos. Cada um havia sido cúmplice da
infelicidade que sentiam, mas o que podemos esperar de
uma pessoa de vinte e poucos anos que não seja seguir o
roteiro da primeira idade adulta? Eles serviram bem à
instituição do casamento, mas esta não serviu bem a eles.
Eles poderiam ou não permanecer juntos, dependendo de
um compromisso mútuo com o crescimento pessoal.
Esta é a verdade inabalável da psique: mude ou mur­
che no ressentimento; cresça ou morra interiormente. Mais

70
uma vez, a tragédia do casamento na meia-idade é que
amiúde o relacionamento está de tal modo contaminado
pelo ressentimento que as possibilidades de renovação
estão fatalmente comprometidas. O bem que pode ser
recuperado, e a projeção da negatividade sobre o cônjuge
que pode ser recolhida, são sempre problemáticos.
Sem dúvida é difícil equilibrarmos nossas obrigações
para conosco mesmos e para com os outros, mas é fun­
damental tentarmos. Esse problema não é novo. A DolVs
House, de Ibsen, é uma obra surpreendentemente moderna.
Quando Nora deixa o marido e os filhos, é advertida de
que deve pensar no seu dever para com a igreja, o marido
e os filhos. Ela retruca que também tem uma obrigação
para consigo mesma. Seu marido não consegue entender
a atitude dela. Seremos capazes de consertar tudo isso,
pergunta ele? Nora responde que não sabe dizer por que,
por ter descoberto que não sabe quem ela é, e que (na
prática) ela só tem satisfeito às gravações da primeira
idade adulta, ela é incapaz de predizer como será essa
pessoa que ela está determinada a descobrir. Ocorreram
distúrbios quando A DolVs House foi apresentada há um
século nas capitais da Europa, tão grande era a ameaça
implícita às instituições do casamento e da paternidade e
maternidade. Mesmo agora, deparamos com alguns obstá­
culos por parte da opinião, dos modelos familiares e temos
de enfrentar alguma culpa antes de sairmos de casa, ou
mesmo mudarmos um padrão constritivo. Nora retirou-se
do círculo doméstico para o ostracismo social e a privação
financeira, pois a lei não lhe permitia ser proprietária, e
lhe recusava a custódia ou direitos econômicos. Mas ela
sabia que tinha que partir para não morrer.
Quanto mais cedo cada parceiro consegue sentir
a necessidade da individuação como a raison dVêtre do
relacionamento, maior a probabilidade de que ele dure.
Existe a suposição natural de que de algum modo o tempo
solucionará a angústia da cabeça e o vazio no estomâgo.
Quando peço aos casais que pensem em ser dez anos mais
velhos com a situação inalterada, eles geralmente passam

71
a ter certeza de que algo precisa mudar. Quando nosso
cônjuge continua a bloquear a mudança, esteja certo de que
ele ainda está sendo controlado pela ansiedade e envolvido
pelas projeções da primeira idade adulta. E bem possível
que o cônjuge obstinado se recuse eternamente a assumir
a necessária responsabilidade; se for assim, ele perde o
direito de veto sobre a vida de qualquer outra pessoa.
Ninguém tem o direito de impedir o desenvolvimento do
outro; este é um crime espiritual.
Quando os parceiros conseguem reconhecer sua
infelicidade e pedem francamente o apoio um do outro,
é bastante possível que o casamento consiga se renovar.
O parceiro, neste caso, não é nem salvador nem inimi­
go, apenas companheiro. Talvez o modelo ideal para a
terapia do casal fosse cada um dos cônjuges fazer uma
análise individual, para encontrar uma posição melhor
sobre suas necessidades de desenvolvimento, e ao mesmo
tempo frequentar algumas sessões junto com o parceiro
para lidar não apenas com padrões esgotados do passa­
do, mas também com esperanças e planos para o futuro.
Desse modo o casamento podería tornar-se o recipiente
da individuação.
Para obter uma atitude de colaboração em vez de
conflito, sempre faço certas perguntas na presença do
cônjuge. Por exemplo: “O que existe na sua história ou
no seu comportamento que podería gerar um conflito ou
abalar o relacionamento?” Isto surpreende aqueles que
pensam que vieram ter com alguém que irá defendê-los
na sua disputa com o outro. A pergunta faz com que eles
tenham de começar a olhar para dentro de si e assumir
maior responsabilidade por cuidar e alimentar o rela­
cionamento. Outra pergunta bastante útil é a seguinte:
“Quais eram seus sonhos em relação a você mesmo e quais
os temores que o bloquearam?” Ao escutar as lutas e os
desapontamentos do cônjuge, o parceiro frequentemente
sente compaixão e desejo de apoiar essa luta. O compar­
tilhar da sensação de fracasso do outro, dos medos e das
esperanças dele, representa a verdadeira intimidade, e

72
poucos casais, mesmo que casados há muito tempo, con­
seguem alcançá-la. O sexo pode ser uma ponte entre eles,
e os filhos também, mas o verdadeiro fator aglutinante é
saber o que é viver dentro da pele do outro.
Nunca podemos amar a alteridade do parceiro se não
tivermos uma boa ideia do que é ser essa pessoa. Talvez o
amor seja realmente a capacidade de imaginar tão vivida-
mente a experiência do Outro a ponto de ratificar esse ser.
A verdadeira conversa ajuda esse tipo de imaginação e é
o antídoto da preocupação narcisista. Já me perguntaram
se a preocupação com o desenvolvimento pessoal não seria
em si mesma narcisista. Não o é, desde que estejamos de­
terminados a realizar nosso potencial e garantir o mesmo
direito ao Outro. Isto exige uma força dupla: a capacidade
de assumirmos a responsabilidade por nós mesmos e a
coragem de validarmos imaginativamente a realidade do
Outro. Nenhuma dessas forças é eficientemente modelada
na nossa cultura, de modo que precisamos encontrá-las
nós mesmos. A alternativa é precisamente o triste estado
de tantos casamentos. Culpamos nosso cônjuge porque
estamos infelizes e secretamente desconfiamos de que
somos cúmplices. Estes são os molhos amargos nos quais
podemos cozinhar nosso casamento.
Muitas pessoas, como Carol Gilligan em In a Different
Voice, disseram que é mais difícil para as mulheres do que
para os homens afirmar suas necessidades de individuação
em virtude das enormes exigências que o relacionamento
faz com relação a elas. A essência da consciência feminina
pode ser descrita como percepção difusa, o que significa que
a mulher presta muita atenção ao seu ambiente imediato
e às exigências que os outros lhe fazem. Portanto, relata
Gilligan, seu seminário de mulheres estava de acordo
com o jovem Stephan Dedaelus, que anuncia no romance
autobiográfico de James Joyce, Portrait oftheA rtist as a
Young Man, como o fez o próprio Joyce, que está deixando
a família, sua fé e sua nação, pois não mais podia servir
aqueles que não o serviam. Mas eles se identificaram com
o dilema de Mary McCarthy no livro de sua autoria Con-

73
fessions o fa Catholic Girlhood; quando ela quis dar seu
salto para o desconhecido foi refreada e paralisada pelo
dever e pela culpa. Embora a permissão para escolher o
próprio caminho esteja ligeiramente mais disponível para
as mulheres hoje do que na época de suas mães, a maioria
ainda se sente reprimida pelas exigências dos outros. Por
conseguinte, a mulher pode ter de dar um salto maior
do que o do homem em direção ao seu direito de ser ela
mesma. Como Nora em A Doll’s House, ela precisa equili­
brar as exigências dos outros com seu dever para consigo
mesma. Afinal, as mártires não são nem boas mães nem
boas companheiras. Há sempre um preço para a santidade
da mulher, que será pago por ela e pelos outros.
As necessidades afetivas da infância permanecem
muito fortes dentro do adulto. Podemos mesmo dizer que
elas são naturais e normais. Mas há falta de maturidade
quando a dimensão básica do valor pessoal e da segurança
da pessoa está voltada para o Outro. O termo “fome de
afeto” descreve o padrão existente quando as necessida­
des naturais pelo Outro estão descontroladas.44 E claro
que costumamos esquecer que temos um companheiro
sempre a postos dentro de nós mesmos, pelo menos po­
tencialmente.
Um grande problema para muitos homens é o fato
de o peito ser uma região entorpecida.45 Condicionado a
esquivar-se do sentimento, a evitar a sabedoria instinti­
va e a não fazer caso da sua verdade interior, o homem
comum é um estranho para si mesmo e para os outros,
um escravo do dinheiro, do poder e da posição social. Nas
profundas linhas de Philip Larkin, eles são
homens cuja primeira trombose coronária se aproxima como o
Natal; que vagam, desamparadamente carregados com compro­
missos, obrigações e hábitos necessários, nas escuras avenidas
da idade e da incapacidade, abandonados por tudo aquilo que

44Howard M. Halpern, How to Break Your Addiction to a Person, pp. 13ss.


45As causas desse entorpecimento psíquico são exploradas em estudos
como o de Guy Corneau, Absent Fathers, Lost Sons; Robert Bly, Iron Hohn;
Robert Hopcke, Men ’s Dreams, Men’s Healing; e Sam Keen, Fire in the Belly.

74
antes tomava doce a vida.

Existem poucos modelos em nossa cultura que con­


vidam ou permitem que o homem seja sincero consigo
mesmo. Quando lhe perguntam o que sente, ele frequente­
mente dirá o que pensa, ou qual é o problema “lá fora”.
Considerem a hábil e tácita mensagem dos comerciais
de cerveja que parecem acompanhar todos os programas
esportivos na televisão. Um grupo alegre de homens bem
masculinos erguem vigas, cortam lenha ou dirigem uma
pick-up. (Nunca estão diante de um computador pessoal
ou com crianças no colo.) Toca o apito e o expediente está
encerrado. Eles marcham para o bar mais próximo e têm
permissão de se tocarem com familiaridade e espírito
de camaradagem. No balcão dõ bar eles levantam seus
copos de cerveja para um brinde, acompanhados de uma
sugestiva loura, que indica que eles não são homossexu­
ais e representa a anima que está prestes a ser chamada
com alegria, raiva, ou sentimento. O álcool, ao afrouxar
as defesas contra a mulher interior, estimula o que não
pode ser reconhecido conscientemente.
Como podem as mulheres esperar ter bom relaciona­
mento com os homens, se os homens não mantêm um rela­
cionamento com sua própria alma feminina? As mulheres
não podem ser essa ligação interior; elas só podem receber
e conduzir parcialmente a projeção que o homem faz dela.
O antigo texto egípcio, O homem cansado do mundo em
busca da sua Ba (alma), nos mostra que o problema não
é novo. O que talvez seja novo é o crescente convite feito
aos homens para que se voltem para dentro de si mes­
mos e descubram o que é verdadeiro para eles diante das
enormes pressões que recebem para que desempenhem os
antigos papéis de guerreiro e animal econômico.
Robert Hopcke, em M ens Dreams, Men’s Healing,
sugere que o homem precisa fazer terapia durante um
ano para que seja capaz de interiorizar seus verdadeiros
sentimentos — um ano para chegar ao ponto de onde as
mulheres geralmente conseguem começar.46 Creio que

75
ele está certo. Mas quantos homens estão prontos para
se submeter a um ano de terapia apenas para chegar ao
ponto de partida? Ainda bem que alguns o fazem, mas
muitos estão à deriva e perdidos. Vítimas do patriarcado,
eles só conhecem a presença ou a ausência do poder como
sinal da sua masculinidade.4 47 Assim sendo, um homem,
6
durante a passagem do meio, precisa voltar a ser criança,
enfrentar o medo mascarado pelo poder, e fazer novamente
as antigas perguntas. São perguntas simples “O que eu
quero? O que eu sinto? O que preciso fazer para sentir-me
bem comigo mesmo?” Poucos homens modernos se dão ao
luxo de fazer essas perguntas. E, assim, eles se arrastam
para o trabalho, sonhando em se aposentar para jogar golfe
em algum Campo Elíseo, se possível antes da chegada do
primeiro ataque cardíaco. A não ser que possa humilde­
mente fazer essas simples perguntas e deixar seu coração
falar, ele não tem absolutamente nenhuma chance. Ele é
má companhia para si mesmo e para os outros.
Muitas mulheres, analogamente, estão impotentes,
com sua força natural corroída por vozes interiores de
negatividade. O animus negativo sussurra sombrias in­
significâncias em seus ouvidos: “Você não pode fazer isso”,
diz ele, com um aperto frio na garganta. O animus que,
entre outras coisas, representa a capacidade criativa da
mulher, seu poder de viver a própria vida e realizar seus
desejos pessoais, se esconde debaixo da sombra do modelo
da sua mãe, do estímulo (ou desestimulo) do pai, e os papéis
constritivos oferecidos pela sociedade. As mulheres tradi­
cionalmente aprendiam que deviam se realizar através
das conquistas do marido e dos filhos. Um dos mais tristes
comentários que já li foi no diário de Mary Benson, uma
perfeita mulher vitoriana que, na qualidade de esposa de

46Men’s Dreams, Men’s Healing, p. 12.


47Como Eugene Monick salienta em Phallos: Sacred Image ofthe Mascu-
line e em Castration and Male Rage: Thephallie Wound, o patriarcado, com sua
ênfase no poder, no pensamento hierárquico e na agressão, é o refugio daqueles
que não se sentem firmados numa profunda sensibilidade masculina. Assim
feridos, eles ferem não apenas as mulheres como também outros homens.

76
Edward, arcebispo de Canterbury, era caracterizada tanto
pela instituição do casamento quanto da igreja. Quando
Edward morre, Mary tem aquele encontro consigo mesma
e depara com a
terrível sensação interior de que toda a minha vida... derivava de
exigências distintas e incessantes... Nada há no interior, nenhum
poder, nenhum amor, nenhum desejo, nenhuma iniciativa: ele
tinha tudo e sua vida dominava inteiramente a minha. Meu Deus,
conceda-me uma personalidade... A Visão da Personalidade....
Como relacionar isso com o encontro de mim mesma? Sinto-me
como se tivesse levado por muito tempo uma vida superficial,
não exatamente de forma proposital ou de maneira errada. Mas
unida como eu estava com uma personalidade dominante como
a de Edward... combinada com as tremendas exigências da sua
posição, como eu podería encontrar a mim mesma? Pareço ter
sido apenas um serviço de respostas e nenhuma essência. Mas
precisa haver uma essência.48

Cara leitora, olhe dentro de si e trema. A vida de


Mary foi a sua? Por mais triste que possa ser seu comen­
tário, e também por mais perdoável, se considerarmos o
peso dos poderes dessa autoridade, mesmo assim devemos
considerá-la responsável no final. A personalidade não nos
é dada pelo Senhor; ela é alcançada na luta diária contra
os demônios da dúvida e da desaprovação cuja progênie
é a depressão e a dessuetude.
Em vez de serem caracterizadas pelo papel sexual, as
mulheres de hoje lutam valentemente para equilibrar a
vida profissional e a família. Pouco sobra para os sonhos
do passado. Frequentemente a mulher é deixada na meia-
idade tanto pelos filhos, que estão justamente envolvidos
com a própria vida, quanto pelo marido, absorvido pelo
trabalho ou pela nova mulher sobre quem caiu a projeção
da sua anima. Poder-se-ia dizer que ela tem o direito de
se sentir traída e abandonada, mas, repito, talvez se ela
tivesse conscientemente previsto e se preparado para
esses acontecimentos, poderia acolher alegremente sua
recémdescoberta liberdade.
48 Katherine Moore, Victorian Wives, pp. 89-90.

77
Conheço um pai que disse à filha, quando ela partiu
para a universidade: “Considerando a média dos divór­
cios, e o fato de que os homens morrem mais cedo, você
tem uma probabilidade de oitenta por cento de ter de
viver sozinha, com ou sem crianças para sustentar, e
sem os recursos financeiros para fazê-lo. Por conseguin­
te, é melhor que você tenha uma profissão e suficiente
autoestima para que seu senso de valor não dependa do
homem da sua vida”. Não foram palavras de otimismo,
nem uma recomendação para que ela se casasse em busca
de segurança, tampouco o estímulo à dependência que a
mãe dela deve ter recebido da avó. Não foram palavras
que ele tenha gostado de pronunciar. Seu único mérito foi
a verdade que continham.
Quando a mulher se sente abandonada na meia-
idade, sua criança interior emerge rapidamente à su­
perfície. E uma experiência traumática. Se ela procura
a terapia, o primeiro ano é gasto dando vazão à dor e
à raiva, superando a descrença e aceitando a anulação
do contrato tácito que pensávamos ter com o universo.
Durante o segundo ano, ela reúne energias para uma
nova vida. Se não tem nem a educação nem a aptidão
profissional necessárias à sobrevivência econômica, ela
faz o possível para adquiri-las. Ela pode ter toda razão,
do ponto de vista coletivo, por sentir que os outros se
aproveitaram dela. Na terapia ela pode reconhecer sua
conivência inconsciente.
Para muitas mulheres que se encontram agora na
passagem do meio é chegado o momento de manter o
compromisso consigo mesmas, marcado, porém não cum­
prido, há muitos anos atrás. Quando cai seu manto de
protetora, a mulher se vê obrigada a perguntar quem ela
é e o que deseja fazer com sua vida. Ela não pode resol­
ver este assunto enquanto não se tom a mais consciente
das várias forças interiores que a estão bloqueando, dos
complexos adquiridos da sua mãe, do seu pai e da cul­
tura ocidental.49A energia negativa do animus corrói a
vontade, a confiança e a crença em si mesma. O animus

78
como energia positiva representa a aquisição de poderes,
a capacidade de se envolver e lutar pelo que queremos e
a formação da força vital. A energia positiva do animus
raramente é dada; ela é conquistada. Encontrar coragem
para arriscar uma nova definição de si mesma, que valorize
o relacionamento, mas que não seja nem limitada nem
definida por ele, é a tarefa da mulher de meia-idade.

Casos am orosos na m eia-idade

Ocasionalmente as forças interiores ascendem violenta­


mente e esmagam a pessoa. Segundo se afirma, a incidência
de casos extraconjugais gira em tomo de cinquenta por cento,
com os homens apenas ligeiramente na frente das mulheres.
Creio que poucas dessas pessoas tenham acordado pela
manhã e dito: “Acho que vou arruinar minha vida hoje; vou
arriscar magoar meu marido (ou mulher) e meus filhos, e
perder tudo o que lutei para conseguir”. Mas acontece.
Sejam quais forem os méritos que a terceira pessoa
possa ter na realidade, ela ou ele certamente serão porta­
dores de projeções. Assim como o casamento é o portador
básico das necessidades da criança interior, o caso amo­
roso é o portador fundamental da projeção renovada de
anima-animus quando o parceiro conjugal demonstra ser
apenas humano. Enquanto escrevo, uma conhecida atriz
anuncia seu oitavo, ou acho que é o nono, casamento. De­
sejo que ela seja feliz, mas sei que nessa idade ela ainda
está projetando. Sua escolha atual é um rapaz bonitão
cerca de vinte anos mais novo que ela. Enquanto escrevo,
vejo um homem de quarenta e oito anos apaixonado por
uma moça de vinte e um. Vejo seu barco indo na direção4 9

49 Entre os excelentes estudos do equilíbrio entre o desenvolvimento do


animus e a feminidade segura estão The Wounded Woman de Linda Leonard,
que lida com o impacto pai-filha; In Her Image: The Unhealed Dauthter’s Search
For Her Mother de Kathie Carlson, que trata do moderno relacionamento entre
mãe e filha; e Addiction to Perfection, The Pregnant Virgin, e The Ravaged
Bridegroom de Marion Woodman.

79
da catarata, mas nada que eu diga poderá detê-lo. É claro
que não a conheço. E claro que não sei o quão ranzinza é
a mulher dele. E claro que não posso saber o quanto ele
se sente renovado. O poder do inconsciente requer mais
respeito do que lógica, a tradição e a Constituição dos
Estados Unidos.
Freud costumava exigir que seu paciente não tomas­
se decisões importantes como se casar, divorciar, mudar
de emprego ou de profissão, enquanto estivesse fazendo
análise. Talvez isso esteja teoricamente certo, mas a vida
continua, as emoções acontecem, é preciso tomar decisões
e continuar a funcionar no mundo real. Não importa que
as projeções vão se dissolver; não importa que de qualquer
modo vamos ficar presos com nós mesmos; a vida conti­
nua e escolhas são feitas. Quando trabalho com casais
sinto-me sempre aliviado quando não existe uma terceira
pessoa, porque então eu sei que os parceiros têm chance
de trabalhar honestamente seu casamento. Se este fra­
cassou, reconheçamos isso diretamente, em vez de afastar
os problemas para um desvio, as projeções que os casos
amorosos personificam. Quando as pessoas estão ativa­
mente envolvidas em casos extraconjugais eu lhes peço que
interrompam o mais possível o contato com o amante (ou
a amante) para que possam examinar seu casamento de
maneira realista. Algumas vezes essa estratégia dá certo,
e o marido (ou a mulher) é capaz de encarar desimpedido
o casamento. Mas na maioria das vezes fico falando com
as paredes. Os indivíduos possuídos pelos conteúdos do
inconsciente são incapazes de ser realistas.
O poder do caso amoroso na meia-idade reside na
atração magnética do retorno à exuberância da primeira
idade adulta. Com a mesma frequência que ouvi mulheres
se lamentarem de que seus maridos se envolveram com
uma jovem encantadora, também vi mulheres se envol­
verem com homens mais velhos. O que isso tem a nos
dizer? Sugere que os homens que têm um desenvolvimento
inadequado da anima se sentem atraídos por mulheres
que se encontram no mesmo nível. Também indica que as

80
mulheres que apresentam um desenvolvimento inadequa­
do do animus se sentem atraídas pelo poder mundano dos
homens mais velhos. Considerando a escassez dos ritos de
passagem para os homens e as mulheres, não é de causar
surpresa que tantas pessoas estejam procurando orienta­
ção, até mesmo de seus amantes. Os homens procuram as
mulheres mais jovens, refletindo sua imatura anima; as
mulheres se sentem atraídas pelos homens mais velhos
ou com uma posição elevada, para compensar seu desen­
volvimento insuficiente do animus. Não é de espantar
que o caso contenha tanta numinosidade. Ele realmente
encerra a emotividade perdida da pessoa. Apesar de tudo
os casos amorosos frequentemente geram ainda mais
perda e tristeza. Um hábil terapeuta, Mae Rohm, disse
certa vez: “O prazer que você obtém não vale a confusão
em que você se mete”.50Mas tente dizer isso a alguém que
está tendo um caso. Tente dizê-lo à pessoa que está sendo
ferida porque o parceiro está tendo um caso.
Depois de mostrar que o modelo de casamento da
primeira idade adulta é de fusão, podemos ver então como
os relacionamentos podem ser complicados. E surpreen­
dente que algum relacionamento dê certo. Considerando
a enorme quantidade de forças inconscientes, projeções,
complexos paternos e maternos etc., como pode alguém se
relacionar sinceramente com outra pessoa? Num primeiro
momento podemos nos sentir inclinados a dizer: “Examine
a história”, e as pessoas funcionaram bem até aqui. Depois,
somos forçados a admitir, com base na história e em nossa
experiência pessoal, que isso não é realmente verdade.
Tudo o que houve foi uma grande e dolorosa confusão.
Sinto-me inclinado a ver a pessoa não como uma metade
em busca da outra metade — o modelo da fusão — e sim
como um poliedro, uma esfera de muitas faces. Não existe
nenhuma maneira possível, mesmo com a Senhorita Per­
feita e o Senhor Maravilhoso, de alinhar todos os planos
de dois poliedros. O máximo que conseguimos é alinhar6 0

60 Comunicação pessoal.

81
alguns deles. Este é um argumento para os casos amoro­
sos? — certamente! Mas é um mau argumento. Conhecí
alguns casamentos chamados de abertos, alguns deles
controlados por indivíduos altamente conscientes. Todos
fracassaram no final, em parte porque, independentemente
do acordo racional, existem os sentimentos. Mesmo no
mais racional dos contratos existe o ciúme, o anseio e a
necessidade de saber qual a nossa posição. Desse modo,
se a metáfora do poliedro faz algum sentido, só podemos
combinar algumas dessas outras faces com uma pessoa.
Sem dúvida ela representa um argumento para amizades
múltiplas, mas isso é certamente possível sem atravessar
a fronteira sexual.
A habilidade de reconhecer a imagem poliédrica da
personalidade, que liberta o indivíduo embora possa ame­
açar o cônjuge, também pode ser a habilidade de escolher
o desenvolvimento. O modelo poliédrico é uma ameaça
para a pessoa que se encontra na primeira idade adulta,
para quem o Outro é sua fonte fundamental de apoio.
Naturalmente, considerando a criança interior com todas
as suas necessidades, a solução é externa — “lá fora está o
Outro que irá me curar e reintegrar”. Mas quando a pes­
soa sofre a excitação e a exaustão e, em última análise, a
depressão do caso amoroso, talvez ela esteja pronta para
indagar o que tudo significou. Considerando que tantas
pessoas têm casos extraconjugais, é preciso reconhecer
que esse padrão possui grande significado. Sugiro que o
significado seja ao mesmo tempo emocionalmente difuso
e conceitualmente muito específico.
O significado do caso amoroso na meia-idade é a
imposição de recuar e recolher o que foi deixado para
trás no desenvolvimento da pessoa. Uma vez que aquilo
que não se desenvolveu se agita debaixo da consciência,
trata-se, portanto, de algo ainda desconhecido. O que con­
tinua inconsciente é projetado sobre outra pessoa que, na
misteriosa perscrutação do inconsciente, se alinha com as
áreas não desenvolvidas. Na verdade, o indivíduo está em
busca de algo que o complete, está à procura da totalidade.

82
O que há de tão surpreendente a respeito dessa busca da
totalidade? Mas como tentar explicar tudo isso a uma pes­
soa apaixonada? Os casos amorosos sempre continuarão
a existir porque a imensidão do desconhecido persiste.
Sim, o Outro na relação pode de fato demonstrar ser uma
pessoa maravilhosa, a verdadeira alma gêmea. Se ele não
tivesse um pouco disso, a projeção não teria nem mesmo
ocorrido. Se a nova ligação sobreviver, a pessoa pode ter
integrado algo que faltou na primeira idade adulta. Ou
então ela teve muita sorte. Ou ainda ela está caminhando
em direção a um grande desapontamento.
Talvez a tarefa mais difícil para o indivíduo seja
aceitar e ratificar sua independência no contexto do re­
lacionamento. O tema que se repete em toda esta exposi­
ção é a necessidade de assumir a responsabilidade pelo
bem-estar pessoal e ainda ser receptivo às outras pessoas.
Sem dúvida, a ligação precisa continuar, mesmo quando
a pessoa conquista maior independência. Assim como o
caso amoroso promete unir o indivíduo às necessidades
não satisfeitas pelo casamento, também o casamento é
sobrecarregado pelo ressentimento e pela raiva resultantes
das necessidades insatisfeitas. A coisa mais fácil que existe
no mundo é culpar outra pessoa. Por que o indivíduo que
está tendo o caso justifica sua atitude dizendo: “Consigo
conversar com você, mas não com a minha esposa (o meu
marido)”?
Na realidade, provavelmente é mais fácil conversar
com o cônjuge do que com uma pessoa relativamente
estranha. O que acontece, na verdade, é que a conversa
conjugal tornou-se de tal modo impregnada de inibição,
repetição e desapontamento que o indivíduo perdeu a
esperança de verdadeiramente encontrar o Outro na me­
diocridade do cônjuge. Além disso, o Outro misterioso no
caso amoroso está sem dúvida atraindo e personificando a
projeção das partes não desenvolvidas do eu poliédrico do
indivíduo. O casamento dificilmente tem alguma chance
quando comparado com a numinosidade do encontro com
os reflexos da própria alma. E necessária, portanto, uma

83
enorme força de vontade da parte dos participantes para
que se afastem do caso amoroso e levem de volta para o
relacionamento original essas partes que estão faltando,
essas conversas nem mesmo tentadas.
Com que frequência tenho visto o verdadeiro com­
partilhar de sentimentos, aspirações e antigas má­
goas somente na terapia ou no processo de divórcio. Não é
tanto que o casamento tenha fracassado; ele não foi nem
mesmo tentado. Se, como sugeriu Nietzsche, o casamento
é uma grande conversa, a maioria dos matrimônios não
consegue ser aprovada no teste. O verdadeiro compartilhar
de como é viver dentro da própria pele e de como são as
coisas para o Outro raramente ocorre. As pessoas podem
viver juntas, ter filhos e sustentar uma estrutura familiar,
e contudo nunca compreender o mistério do parceiro. A
tristeza desse resultado é por vezes esmagadora.
E eminentemente possível para um casamento pe­
netrar no remoinho da passagem do meio, se decompor
e ser reconstituído se, e trata-se de um grande se, os
dois estiverem dispostos a se tornar novamente pessoas
separadas e a dialogar um com o outro a respeito desse
estado de separação. E preciso reconhecer o paradoxo de
que para que o casamento se aglutine é preciso que haja
inicialmente maior separação. A terapia conjugal pode
abordar a resolução do conflito, a identificação e correção
de estratégias inadequadas e a implantação de uma pro­
gramação de crescimento. Isso é claramente importante e
pode ajudar a melhorar a experiência do casamento, mas
a renovação genuína não ocorre a não ser que as pessoas
envolvidas mudem. Cada pessoa precisa se tornar mais
plenamente um indivíduo antes que possa ocorrer uma
transformação no relacionamento. O casamento só pode
ser tão bom quanto, ou se situar no mesmo nível que, as
duas pessoas que dele participam.
A transformação do casamento na meia-idade, por­
tanto, envolve três passos necessários:
1) Os parceiros precisam assumir a responsabilidade
pelo próprio bem-estar psicológico.

84
2) Eles precisam assumir o compromisso de compar­
tilhar o mundo da sua experiência pessoal sem condenar
o Outro por mágoas passadas ou expectativas futuras.
Analogamente, eles devem empenhar-se em ouvir, sem
colocar-se na defensiva, a experiência do Outro.
3) Eles precisam assumir o compromisso de sustentar
esse diálogo no decorrer do tempo.
Esses três passos exigem muito esforço, mas a alter­
nativa é que o casamento siga claudicando ou se dissolva.
O compromisso a longo prazo gira em tom o da conversa­
ção radical. Com ou sem uma cerimônia de casamento,
raramente o verdadeiro matrimônio se realiza sem uma
conversa radical. E somente esta última, o compartilhar
completo do que é ser eu ao mesmo tempo que escuto o
que é realmente ser você, que pode realizar a promessa
de um relacionamento íntimo. Só podemos nos envolver
numa conversa radical se tivermos assumido a responsa­
bilidade por nós mesmos, se tivermos alguma consciência
de nós mesmos e a força flexível de suportar um encontro
genuíno com o verdadeiro Outro.
Amar a diversidade do parceiro é um evento trans­
cendente, pois penetramos no verdadeiro mistério do
relacionamento no qual somos levados ao terceiro local
— não você mais eu, porém, nós, que somos mais do que
nós mesmos um com o outro.

D o filho para os p a is p a ra o filho

Comentei anteriormente que uma das caracterís­


ticas da passagem do meio é a alteração do relaciona­
mento com nossos pais. Não apenas lidamos com eles
num novo contexto de poder, como também observamos
o declínio deles; mas o que é ainda mais importante é
que aprendemos a nos diferenciar. Talvez não exista
nenhuma tarefa mais importante na meia-idade do
que a separação dos complexos materno e paterno,
pela simples razão que essas poderosas influências

85
sustentaram o falso eu discutido antes, a identidade
provisória adquirida durante a primeira idade adulta.
Até que possamos reconhecer o caráter reativo e não
gerador da primeira idade adulta, literalmente nós não
somos nós mesmos.
Independentemente de quão perturbada ou benigna
tenha sido a nossa experiência da infância, o poder do
mundo estava “lá fora”, com os adultos. Fiquei profunda­
mente impressionado quando eu era criança, quando vi
meu pai arrancar um anzol da mão sem piscar ou chorar.
Cheguei à conclusão de que ou os adultos sentiam menos
dor, ou, o que era mais provável, que eles sabiam como
lidar melhor com ela. Eu esperava que ele me ensinasse
essa maravilhosa habilidade, pois eu sabia o quanto eu
temia a dor. Analogamente, sem ter nenhuma ideia de como
era a puberdade, eu reparava que depois da oitava série
primária as crianças de repente passavam a ter um corpo
grande, iam para um lugar chamado escola secundária e
tinham um conhecimento do mundo desconhecido para
mim. Eu não sabia como essa misteriosa transformação
ocorria, mas desconfiava que “eles” chamavam os jovens
para um canto e os ensinavam a ser adultos. Eu tropeçara
na necessidade desses ritos de passagem para a idade
adulta que ajudavam nossos ancestrais mas que estão
ausentes dos nossos dias. O leitor talvez compartilhe do
meu desapontamento de chegar a essa alegre mudança
em direção ao mundo dos adultos sem a devida ilumina­
ção, descobrindo em vez disso a acne, a confusão sexual e
a percepção crescente de que “eles” também não fizeram
nada mágico.
A primeira idade adulta, portanto, é enformada
não através do verdadeiro conhecimento do mundo
interior e exterior, e sim através da confusão e da de­
pendência das instruções e dos modelos dos pais e das
instituições. David Wagoner escreve em “The Hero with
One Face”:
Escolhi o que me disseram para escolher:
Eles me contaram delicadamente quem eu era...

86
Eu espero, e me pergunto o que aprender:
Ó aqui, duas vezes cego ao nascer.61

Existem vários aspectos dos complexos materno e


paterno que precisamos trabalhar na meia-idade. No nível
mais profundo, a experiência dos pais foi uma mensagem
primordial a respeito da própria vida, quer positiva ou
dolorosa, quer calorosa ou fria tenha sido a nossa recepção.
Quão adequada ou inadequadamente a figura dos pais
serviu de mediadora para a ansiedade natural da criança?
É aí que reside a formação da angústia fundamental que
sustenta todas as nossas atitudes e comportamentos.
Em segundo lugar, a experiência entre pais e filho
constituiu o encontro básico com o poder e a autoridade. A
necessidade de encontrar a própria autoridade é essencial
na meia-idade; de outro modo, a segunda metade da vida
permanece dominada pelas fantasias da infância. Através
de que autoridade, ou seja, conjunto normativo de valo­
res, nós vivemos? Quem determina isso? A maioria dos
adultos passa bastante tempo “se apresentando”. Assim,
precisamos tentar captar, tomar conscientes, todas as
nossas conversas interiores. Quantas vezes consultamos
ou pedimos alguma permissão às presenças invisíveis da
nossa mente? O diálogo interior está mais entranhado, é
mais insidioso, do que poderiamos imaginar. Quem é o “eu”
que está “se apresentando”? Quem são “eles”? Existe uma
grande probabilidade de que essas autoridades interiores
sejam nossa mãe, nosso pai ou seus substitutos.
O caráter reflexivo dessas “apresentações” é sur­
preendente. Ele só pode ser combatido se observarmos
o quanto nos sentimos atormentados por uma decisão
ou conflito. Quando somos capazes de parar e perguntar,
simplesmente: “Quem sou eu neste momento? O que
estou sentindo, o que eu quero?” — não estamos no pa­
drão reflexivo, e sim no presente. A natureza insidiosa do
“apresentar-se” é que a pessoa vive no passado. Conheci um5 1

51A Place to Stand, p. 23.

87
homem que, sempre que estava para confiar algo pessoal
ou dizer alguma coisa sobre outra pessoa, olhava para trás
por cima do ombro, mesmo na privacidade da sessão de
análise. Ele chamava isso de “o olhar alemão”. Ele crescera
durante a era do nazismo e, como seus contemporâneos,
aprendera a olhar por cima do ombro sempre que falava
sobre algo particular ou possivelmente contra alguma
autoridade. Embora cinquenta anos depois e a seis mil
quilômetros do lugar onde passou a adolescência, seu cor­
po e sua psique lembravam a ele: “apresentei-me”. Desse
modo, todos nós nos apresentamos de maneira reflexa às
autoridades do nosso passado.
Os preceitos religiosos desempenham papel fun­
damental para muitas pessoas, e elas se tomam infantis
devido à falta de liberdade de expressar seus sentimen­
tos sem culpa. Já vi talvez mais danos do que benefícios
causados às pessoas pelo clero autoritário e inconsciente.
A culpa e a ameaça de ser excluído da comunidade funcio­
nam como poderosos impedimentos ao desenvolvimento do
indivíduo. (Não foi por acaso que os antigos consideravam o
exílio a pior punição que podia ser aplicada a uma pessoa.
O judeu ortodoxo canta o Kaddish, a oração pelos mortos,
por aquele que deixa a comunidade; os menonistas “evitam”
aqueles que seguem um líder diferente.) Ser exilado do
grupo é a grande ameaça da autoridade. Nenhuma criança
pode suportar ser excluída da aprovação e proteção dos
pais e, portanto, aprende reflexivamente a reprimir seus
impulsos naturais. O nome dessa defesa contra a angústia
da exclusão é a culpa. Tão grande é a ameaça da perda
do lar, tão aterradora a perda dos pais, que todos nós,
até certo ponto, continuamos a nos apresentar. O “olhar
alemão” está dentro de nós, quer o nosso corpo se mexa,
quer não.
Sem a capacidade de viver no presente, de viver
como um adulto que define a si mesmo, permanecemos
prisioneiros do passado, separados da nossa verdadeira
natureza e idade adulta. Despertar para essa falta de
autenticidade é inicialmente desmoralizante, porém em

88
última análise libertador. Como é humilhante reconhecer
a dependência interior na autoridade externa projetada
sobre o cônjuge, patrão, igreja ou estado. Frequentemente
parece assustador, mesmo hoje em dia, escolher o próprio
caminho. Como declarou recentemente um cliente meu:
“Disseram-me que pensar em mim mesmo era ser egoísta.
Mesmo hoje em dia sinto-me culpado quando falo de mim
mesmo ou uso a palavra eu.”
O oposto de lidar com os complexos paterno e
materno e com a luta pela autoridade pessoal é o quanto
da nossa identidade é passada para as crianças. Muitos
pais projetam sobre o filho a vida que não viveram. Já
mencionei anteriormente a mãe e o pai “corujas”. A mãe
de Sylvia Plath até mesmo tentou administrar a carreira
da filha depois do suicídio da poeta. A criança frequen­
temente recebe mensagens confusas desse tipo de pais.
“Tenha sucesso na vida e você me fará feliz, mas seu
sucesso não deve ser tão grande a ponto de me deixar
para trás”. Desse modo, o filho vivência o amor dos pais
como sentimento condicional. A identificação do pai ou da
mãe é geralmente mais forte com o filho do mesmo sexo
que eles, embora os pais representem inconscientemente
a anima ou o animus através do filho do sexo oposto ao
seu. Muitos meninos tiveram de carregar as ambições da
sua mãe; muitas meninas tiveram de carregar a anima
do pai, como Gail Godwin relata em Father Melancholy’s
Daughter. O extremo dessa projeção é ilustrado no abuso
sexual quando a anima ou o animus dos pais funcionam
num nível infantil.
A linha de separação entre proteger e amar ca­
rinhosamente um criança ou viver inadequadamente
através dela pode parecer muito tênue. Mais uma vez,
como salientou Jung, o maior fardo que a criança carrega
é a vida não vivida de seus pais. Quando a vida destes
últimos foi bloqueada pela ansiedade, por exemplo, a
criança terá muita dificuldade em superar as barreiras
e poderá até mesmo ficar presa a uma lealdade incons­
ciente ao nível de desenvolvimento dos pais. Mas os pais

89
que vivem a própria vida não são inconscientemente
ciumentos, não projetam expectativas e limitações sobre
a criança. Quando mais individuado o pai ou a mãe, mais
livre pode ser o filho. E. E. Cummings assim descreve
um relacionamento desse tipo:
— eu digo que embora os homens respirem por causa do ódio —
porque meu pai vivia sua alma
o amor é o todo e mais do que tudo.52

Disse Lincoln: “Assim como eu não seria um escravo,


também não seria um senhor”.53 Desse modo, precisamos
garantir aos nossos filhos a mesma liberdade que queríamos
ter recebido de nossos pais. Tivemos de lutar para ser nós
mesmos e frequentemente desejamos que nossos pais ti­
vessem reconhecido que nosso caminho era diferente desde
o início. Por conseguinte, devemos libertar nossos filhos.
Já foi observado que atrito entre pais e adolescentes é a
maneira que a natureza encontrou de romper o vínculo
da dependência mútua. Embora a maioria dos pais fique
feliz quando os filhos saem de casa e vão para a univer­
sidade, arranjam um emprego ou se casam, muitos ainda
sentem uma perda parcial da sua individualidade, aquela
parte que se identificou com o filho. Conheço muitos pais
que telefonam diariamente para seus filhos adultos, até
várias vezes ao dia. Trata-se de uma mensagem tácita
de dependência mútua e não representa um favor para o
filho. Faz com que a pessoa demore a dominar a primeira
idade adulta.
Muitos pais ficam desapontados com os filhos porque
não frequentaram a faculdade adequada ou não casaram
com a pessoa certa, ou ainda porque eles não abraçam o
sistema de valores correto. Seu desapontamento é dire­
tamente proporcional à intensidade com que encaram o
filho como extensão de si mesmos e não como ser diferente,

52 “My Father Moved Through Dooms of Love”, em Poems 1923-1954,


p. 375.
53 The Lincoln Treasury, p. 292.

90
com caminho individual e único. Se realmente amarmos
nossos filhos, a melhor coisa que podemos fazer por eles
é nos individuarmos o mais possível, pois isso os toma
livres para fazerem o mesmo.
Ao contrário do que geralmente se acredita, o analista
não tem um plano formado para a individuação do seu
cliente. O analista procura estimular o diálogo interior, con­
fiando que a voz do Si-mesmo se manifestará e esperando
que o cliente virá a confiar na própria verdade interior. Essa
abordagem trata o paciente como pessoa digna de respeito
e que personifica um chamado misterioso, cuja expansão é
o objetivo da vida. E é assim que deveriamos tratar nossos
filhos — dando-lhes o direito de serem diferentes e não
tendo nenhuma obrigação para conosco. Eles não estão
aqui para tomarem conta de nós; nós estamos aqui para
tomar conta de nós. Como no casamento, a tarefa é amar
a diversidade do Outro. Sentirmo-nos culpados por não
termos sido o pai ou a mãe perfeitos, ou tentar proteger
nossos filhos das provações da vida, não é bom para eles.
O desejo de controlar, de fazer com que eles vivam nossa
vida incompleta, que sigam nosso sistema de valores, não
é amor; é narcisismo e dificulta a jornada deles. Já é bas­
tante difícil realizar a individuação. Por que eles também
deveriam carregar nossas necessidades? Libertar nossos
filhos durante a nossa passagem do meio — se já não o
tivermos feito — não é apenas útil para eles mas também
necessário para nós, uma vez que libera energia para o
nosso próprio desenvolvimento.
Outro aspecto do complexo paterno ou materno que
precisa ser frequentemente enfrentado na meia-idade
é o modo como o relacionamento entre os nossos pais
afetou a nossa capacidade de intimidade. O modelo de
intimidade ao qual a criança é exposta é formativo. O
adolescente geralmente está convencido de que escolherá
um parceiro diferente daquele escolhido pelo pai ou pela
mãe, adotará um estilo diferente de relacionamento e
evitará as armadilhas do casamento dos pais. Adivinhe
só! Enquanto os complexos paterno e materno estiverem

91
ativos, a pessoa escolherá o mesmo tipo de pessoa ou
compensará exageradamente na direção oposta. Isto só se
torna visível com o tempo. E portanto um choque perceber
na meia-idade que somos mais parecidos com nossos pais
do que pensávamos e que o nosso relacionamento segue os
mesmos padrões familiares. Consequentemente, efetuar
uma transformação em nós mesmos na meia-idade poderá
exigir que examinemos atentamente também o nosso re­
lacionamento íntimo. A mudança interior frequentemente
torna necessária a mudança colateral no relacionamento,
quer o parceiro estej a igualmente inclinado a isso quer não.
Lamentavelmente, algumas vezes o complexo paterno ou
materno terá se insinuado tão profundamente a ponto de
contaminar irrecuperavelmente o casamento. (O transbor­
dar dos complexos paterno e materno sobre o casamento
é semelhante ao que os militares, quando descrevem as
baixas civis, chamam de “dano colateral”.)
Recordemos o conceito de complexo de Jung. Ele
representa um agrupamento de energia emocionalmen­
te carregado, dentro da psique, que está parcialmente
separado do ego e que pode, por conseguinte, operar
autonomamente. Trata-se essencialmente de um reflexo
emocional cuja força depende do poder ou da duração da
sua gênese. Alguns complexos são positivos, embora te­
nhamos a tendência de nos concentrarmos naqueles que
exercem uma influência negativa e interruptiva sobre a
vida. Obviamente os complexos paterno e materno serão
poderosos, considerando-se seu importante papel no início
da vida. Talvez seja útil ilustrar dramaticamente o papel
dos complexos negativos paterno e materno através da
obra de um poeta.
Muitos poetas modernos abandonaram a noção con­
duzida por seus antepassados literários de que eles podem
se dirigir ao Zeitgeist como um todo. Em vez disso, eles
tendem a meditar a respeito da sua vida pessoal, procu­
rando nela algum sentido, e esperando, através do poder
da palavra, tocar a vida de outras pessoas. Essa poesia,
frequentemente chamada de “confessional”, é ao mesmo

92
tempo intimamente pessoal e universal, no sentido de que
compartilhamos a mesma condição humana. Examinemos,
como exemplo, três poemas de autoria do poeta americano
contemporâneo, Stephen Dunn. O primeiro se chama “The
RoutineThings Around the House”.
Quando minha mãe morreu
Eu pensei: agora terei um poema de morte.
Isso foi imperdoável
e contudo já me perdoei desde então
como são capazes de fazer os filhos
que foram amados por sua mãe.
Contemplei o caixão
sabendo quanto tempo ela vivería,
quantas encarnações existem
nas doces lembranças da memória.
E difícil saber exatamente
como nos desembaraçarmos da tristeza,
mas lembrei-me de quando eu tinha doze anos,
1951, antes que o mundo
desabotoasse sua blusa.
Eu pedira à minha mãe (tremendo)
se eu podería ver os seios dela
e ela me levou até seu quarto
sem vergonha ou timidez
e eu os contemplei,
com medo de pedir mais.
Agora, anos depois, alguém me diz
que cânceres que nunca tiveram o amor de mãe
estão condenados e Eu, um Câncer,
sinto-me novamente abençoado. Que sorte
ter tido uma mãe
que me mostrou seus seios.
Quando as meninas da minha idade estavam desenvolvendo
seus territórios separados,
que sorte
ela não ter me condenado
com demais ou muito pouco.

93
Se eu tivesse pedido para tocar,
talvez sugá-los,
o que ela teria feito?
Mãe, mulher morta
que eu creio que me permite
amar facilmente as mulheres,
este poema
é dedicado a onde
nós paramos, à não conclusão
que foi suficiente
e a como você abotoou a blusa,
e começou a fazer as tarefas de rotina
dentro de casa.64

Dunn aqui trabalha explicitamente com o complexo


materno, pois ele não apenas se lembra do passado como
também é capaz de observar suas consequências debaixo
do seu presente. Tornar-se consciente dessas experiências
e da sua influência silenciosa é uma tarefa necessária na
passagem do meio.
Podemos ver nesse poema o efeito de uma mãe
positiva irradiando-se em várias direções. Acima de tudo,
tendo sentido o amor da sua mãe, o poeta é capaz de acei­
tar, e até perdoar, a si mesmo. Não podemos nos amar a
não ser que tenhamos nos sentido apoiados por nossos
pais. Em segundo lugar, Dunn percebe que sua primeira
experiência com o aspecto feminino teve uma carga tão
positiva que ele pôde transferir essa confiança e esse amor
para as outras mulheres. E óbvio, neste último caso, que
ele está caminhando sobre terreno perigoso, do mesmo
modo como se aventurou no desconhecido quando criança.
Visitar o Outro é como visitar um planeta estranho. Se
nossa visita inicial receber apoio e for positiva, as seguin­
tes também poderão sê-lo. O terceiro aspecto irradiado
pela mãe — os dois primeiros sendo a experiência de ser
amado e o encontro com o mistério do Outro — é a impu-5 4

54Not Dancing, pp. 30-40.

94
taçâo de sabedoria a ela. Ela sabia, por exemplo, o quanto
devia honrar a necessidade de conhecimento da criança,
sem destruir nem o mistério nem a privacidade. Repare
também que o encontro lembrado é colocado no contexto
do ordinário, do comum, o que realça a qualidade não
traumática e psicologicamente positiva do seu impacto.
Além de sustentar a segurança da criança, o papel
mais profundo dos pais é arquetípico, ou seja, tudo o que
a criança vivência nos pais serve ao mesmo tempo de
modelo para ela e ativa habilidades semelhantes dentro
da própria criança.
Os pais são frequentemente filhos de pais incompletos,
é só podem, portanto, transmitir sua experiência pessoal.
Desse modo o legado de almas parciais e divididas é passa­
do de geração em geração. As duas maiores necessidades
da criança são de proteção e fortalecimento. A proteção
significa que o mundo nos servirá e fará concessões, nos
dará apoio, e nos alimentará tanto física quanto emocio­
nalmente. O fortalecimento significa que possuímos os
recursos para enfrentar os desafios da vida e lutar pelo
que desejamos. Embora tanto o pai quanto a mãe, ou
ambos, possam alimentar e encorajar o fortalecimento,
a proteção está arquetipicamente associada ao princípio
feminino e o fortalecimento ao masculino.
Num longo poema, de muitas partes, entitulado
“Legacy”, Dunn segue a evolução do papel do seu pai no
mito da família. O primeiro poema dentro de um poema
se chama “The Photograph” e representa o encontro da
criança com o arquétipo do fortalecimento implícito.
Meu pai está em Captain Starns,
um restaurente em Atlantic City.
Estamos em 1950,
eu também estou lá, com onze anos de idade.
Ele vendeu mais Frigidaires
do que qualquer outra pessoa. E por isso que estamos ali,
tudo é de graça.
E antes de a casa ter começado
a sussurrar, antes de ser exigido
o testemunho e vidas serem arruinadas.

95
Meu pai está sorrindo. Eu estou sorrindo.
Há uma tigela de camarões
diante de nós.
Vestimos camisas idênticas,
de manga curta com pequenos barcos a vela.
É antes de uma diferença ter se inserido
entre o sentimentalismo e a felicidade.
Logo me levantarei
e meu irmão se sentará do lado dele.
Mamãe tirará a fotografia.
Acreditamos na justiça,
ainda acreditamos que a América
é uma prece, um hino.
Embora esteja ficando calvo
o rosto de meu pai diz que nada
poderá detê-lo.55

Podemos sentir a nostalgia do poeta (palavra de ori­


gem grega que significa “dor pelo lar”) nessas linhas. A
máquina fotográfica captou um momento, uma verdade
para esse momento, uma verdade que não estaria sozinha
entre as verdades e não obstante, uma verdade. Como de­
vemos medir o mundo? Para T. S. Eliot, “medimos a nossa
vida através de colheres de chá... nosso único momento,
autoestradas de concreto e mil bolas de golfe perdidas”.56
Para esse pai e essa criança a vida é medida através de
mais Frigidaires do que o pai de qualquer outra pessoa.
É agora uma infância perdida, uma América perdida de
simples pieguices, mas “o rosto do meu pai diz que nada
poderá detê-lo”. Sentimos a transmissão desse mistério
de pai para filho enquanto a mãe revelava outro mistério
para libertar o futuro homem.
A criança que não testemunhou esses mistérios
ingressa na primeira idade adulta de maneira muito
diferente. Quando os modelos dos pais são a cautela, o
medo, o preconceito, a co-dependência, o narcicismo e a
impotência, a primeira idade adulta se vê contaminada

55Ibid., p. 41.
66 The Complete Poems and Plays, p. 5.

96
pelo domínio deles ou por uma supercompensação deses­
perada em relação a eles. Diferenciar entre o nosso pró­
prio conhecimento e as mensagens dos pais é o prelúdio
necessário da segunda metade da vida.
Outro poema de Dunn ilustra a tarefa de classifi­
car perguntas cruciais. “Em que aspectos sou parecido
com minha mãe?” “Em que aspectos sou diferente dela”?
“Em que me pareço com meu pai?” “Em que sou diferen­
te?” “Quem exerceu o maior impacto sobre mim?” “Onde
estava o outro enquanto isto estava acontecendo?”“De que
modo minha jornada é diferente numa época diferente?”
Perguntas necessárias. As respostas nem sempre estão
disponíveis, pois o que nos estimula é frequentemente
inconsciente, e só podemos começar a discenir os padrões
através da repetição, da terapia ou de repentinos momentos
de insight. Em “Regardless”, escrito dez anos depois dos
dois anteriores, Dunn dá início a esse processo.
Certa vez, meu pai levou-me aos Rockaways
durante um furacão
para que eu visse como o oceano se comportava,
o que enfureceu minha mãe, cujo amor
era correto, protetor.
Vimos um quebra-mar de madeira partir-se. Vimos a água
subir até o passeio de tábuas, sentimos a violência
de seus respingos.
Naquela noite: silêncio ao jantar, uma tempestade
nascida de um ar mais fresco, mais familiar.
Meu pai
sempre se meteu em apuros por causa de seus
encantadores erros. Minha mãe os aguardava, alerta,
da maneira como os oprimidos
aguardam seu momento histórico.
Nos dias de semana, depois das seis, eu ia de bicicleta
até o Fleet Street Inn,
buscá-lo para jantar. Todos os amigos dele
estavam lá, alegres e solidários, irlandeses,
cheios de riso.

97
Era uma vergonha ele estar lá, uma vergonha
insistir para que viesse para casa. Quem era eu então
senão um menino que aprendera a amar
o vento, o vento que seguia seu próprio caminho,
indiferente. Devo ter pensado que o dano
é apenas o que acontece.57

Mais uma vez vemos os pais mediando os mistérios


para o filho, o mar varrido pela tempestade, espumando
com o vento — o pai como psicopompo, orientando a alma
para essas maravilhas. O sentimento protetor da mãe,
correto porém restritivo — também uma forma de amor,
ambos necessários à criança. Duas formas de eros, por­
tanto, enfrentando-se na mesa do jantar, com a criança no
meio. A metonímia do furacão insinua outras tempestades
mais sombrias. Assim a criança entre a mãe e o pai, uma
vergonha chamá-lo para vir para casa, uma vergonha ser
o emissário. Vergonha é o que a criança irá interiorizar, a
lembrança de estar preso entre ambos, amando os dois,
precisando dos dois, necessitando seguir as correntes do
seu próprio vento interior, indiferente. Anos depois, o que
acontece é considerado um dano. Que dano, perguntamos?
Que efeitos? De que modo isso chega até hoje, afetando a
nós e a outras pessoas? Perguntas para outros poemas.
Enquanto o processo permanecer inconsciente, con­
tinuaremos a carregar a tristeza ou a raiva da vida não
vivida dos pais. Vergonha também, pois vergonha significa
que nos sentimos enredados nas feridas dos outros. No final
só podemos julgar os outros pela qualidade do seu coração,
o que não significa que eles não tenham causado danos a
si mesmos e aos outros nesse ínterim. Nesses três poemas
de autoria de Stephen Dunn, vemos em funcionamento os
complexos paterno e materno positivos e negativos. Mais
uma vez o complexo é inevitável, porque a história é inevi­
tável. A parte inconsciente do nosso passado se infiltrará
em nosso presente e determinará nosso futuro. O grau no

57Landscape at the End ofthe Century, pp. 33-34.

98
qual nos sentimos protegidos e queridos afeta diretamente
nossa capacidade de dar carinho para os outros. O grau
no qual nos sentimos poderosos afeta diretamente nossa
habilidade de conduzir a nossa vida. O grau no qual pode­
mos arriscar nos envolver num relacionamento, ou mesmo
imaginá-lo como amigo em vez de passível de nos magoar,
é função direta do nosso diálogo em nível consciente com
os complexos paterno e materno.
Muitos de nós tivemos pais feridos que não foram
capazes de satisfazer nossas necessidades de carinho
ou poder. E essencial examinar a história pessoal du­
rante a passagem do meio. Já ouvi comentários de que a
psicoterapia nada mais é do que culparmos nossos pais
pelas nossas desgraças. Muito pelo contrário, quanto
mais sensíveis formos diante da fragilidade da psique
humana, mais provável é que perdoemos nossos pais
por se deixarem ferir e por serem capazes de nos ferir.
O principal crime é permanecermos inconscientes, um
crime que que não podemos nos permitir cometer. Onde
quer que encontremos feridas e falhas em nossa história,
é exatamente o lugar onde somos obrigados a servir de
pais para nós mesmos.
E claro que é imensamente mais difícil alcançar o que
não foi ativado em nós arquetipicamente. Nada pode ser
realizado sem enorme risco, por precisarmos nos aventurar
numa Terra incógnita margeada pelo medo. Se eu tiver
sido traído por um dos pais, terei muita dificuldade para
confiar nos outros e por conseguinte arriscar envolver-me
num relacionamento. Poderei ter medo do sexo oposto.
Poderei corroer meu relacionamento com meu parceiro,
escolhendo errado desde o início. Se eu não tiver tido meu
valor confirmado, terei medo de fracassar, fugirei do su­
cesso e me programarei para um ciclo repetitivo no qual
evitarei as tarefas da vida. Mesmo que eu não sinta o chão
debaixo dos meus pés, ainda assim preciso dar o primeiro
passo, assentando a cada vez uma tira de realização até
conseguir meu próprio chão.

99
Nada será conseguido se não discernirmos a fonte
dessas mensagens fundamentais, sua origem na vida
de outra pessoa. Nossa tarefa é viver mais plenamente,
mesmo que não tenhamos tido apoio visível nos primeiros
anos de vida. Jung comentou certa vez que não seremos
capazes de crescer enquanto não conseguirmos ver nossos
pais como outros adultos, sem dúvida especiais para a
nossa biografia particular, talvez feridos, mas acima de
tudo simplesmente outras pessoas que podem ou não ter
assumido a grandeza da própria jornada. Certamente
temos a nossa jornada pessoal, e ela é suficientemente
grande para nos levar além da nossa história pessoal em
direção ao nosso pleno potencial.

A esfera profissional: em prego versus vocação

Na meia-idade ninguém precisa ser lembrado da


realidade econômica. Na meia-idade certamente já apren­
demos a verdade sobre o clichê que diz que o dinheiro não
compra a felicidade mesmo quando nos preocupamos com
a possibilidade de uma aposentadoria empobrecida. Mas
o dinheiro, à semelhança de outras projeções da primeira
idade adulta, pode vir a ser encarado apenas como peda­
ços de papel e de metal, úteis, sem dúvida, porém pouco
importantes num sentido fundamental. Assim, cada um
de nós tem sua tarefa econômica e uma ferida econômica.
No caso de muitas mulheres que cuidaram da família,
a liberdade econômica constitui um poder que lhes foi
negado. Para muitos homens na meia-idade, oprimidos
pelas contas dos ortodontistas e pelas anuidades univer­
sitárias, as finanças constituem uma camisa de força, uma
interminável repressão.
Quase todos nós teremos de trabalhar a vida intei­
ra para fazer frente a essas realidades. Para alguns o
trabalho é emocionalmente alentador, enquanto para
outros o sonho da aposentadoria acena como um oásis

100
no deserto. O trabalho, como Freud acreditava, pode ser
um componente necessário da saúde. Mas que tipo de
trabalho? Existe uma enorme diferença entre o trabalho
e a vocação. O trabalho é aquilo a que nos dedicamos
para ganhar dinheiro e satisfazer nossas necessidades
econômicas. A vocação (do latim vocatus) é o que somos
chamados a fazer com a energia da nossa vida. Sentir
que somos produtivos é uma parte fundamental da nossa
individuação, e deixar de responder à nossa vocação pode
causar dano à alma.
Não escolhemos realmente uma vocação; na verdade
é ela que nos escolhe. Nossa única escolha é o modo como
respondemos. Nossa vocação pode não estar nem um pouco
relacionada com o ganhar dinheiro. Podemos ser chama­
dos a proteger os outros. Podemos ser chamados a ser um
artista numa época em que a arte não é valorizada, mas
somos sustentados dizendo sim apesar da negligência e até
mesmo da rejeição. O romance de Kazantzakis, A última
tentação de Cristo, lida com esse dilema. Jesus de Nazaré
deseja apenas ser como seu pai, um carpinteiro que fabrica
cruzes para as autoridades romanas. Ele quer se casar
com Maria Madalena, viver no subúrbio, conduzir uma
versão esportiva do camelo, e ter 2,2 filhos. A voz interior,
o vocatus, o chama para um lugar diferente. Sua última
tentação, ao vivenciar a solidão e ser abandonado pelo pai,
é renunciar à sua vocação e tornar-se uma pessoa comum.
Quando ele imagina sua vida dessa maneira, compreende
que teria traído a si mesmo, traindo sua individuação. Ao
dizer sim ao seu vocatus, Jesus toma-se o Cristo. Jung
disse então que a adequada imitatio Christi não era viver
como o Nazareno da antiguidade, e sim viver a própria
individuação, a própria vocação, tão plenamente quanto
Jesus viveu o Cristo.58(Foi isso que são Paulo quis dizer
quando declarou: “Não sou eu que vivo, mas o Cristo que
vive em mim”.)59

58 “Commentary on ‘The Secret of the Golden Flower’”, Alchemical Stu-


dies, CW 13, § 81.

101
Nossa vocação raramente é uma estrada reta, e
sim uma série de desvios e curvas que vão pouco a pouco
se revelando. Um jornal recentemente noticiou que, todos
os anos, cerca de quarenta por cento de americanos mu­
dam de profissão; não estou falando de empregos, e sim
de profissão. Essa mobilidade e transição é em parte, sem
dúvida, resultado de uma variação nas oportunidades
econômicas, mas muitas pessoas estão mudando de vida.
Vivemos mais hoje em dia; nada impede que uma pessoa
tenha várias profissões, cada uma ativando outra faceta
do eu poliédrico.
E claro que a necessidade econômica não pode ser
desprezada, mas considere as opções. Podemos passar a
nossa vida numa servidão econômica, ou podemos dizer:
“É assim que ganho a vida, um equilíbrio necessário
com os credores, e é lá que a minha alma se alimenta”.
Conheci um homem, por exemplo, doutor em filosofia,
que trabalhava diariamente, de três às oito da manhã,
entregando jornais. Era um trabalho tolo, cuja remu­
neração se destinava ao pagamento das contas, mas
durante o resto do dia ele era um homem livre. Ele
encontrou um equilíbrio entre o trabalho e a vocação e
era servido por ambos.
Algumas pessoas conseguem unir o trabalho à vocação,
embora possam ter de pagar um enorme preço por isso.
Ironicamente, algumas vezes, uma forte vocação requer
até mesmo o sacrifício dos desejos do ego. Mas não pedimos
a vocação; ela nos é pedida. E uma parte considerável do
significado da nossa vida decorre de dizermos sim quando
isso nos é pedido. O ego não dirige a vida; ele sabe muito
pouco. E o mistério do Si-mesmo que reverentemente
nos pede para atingirmos a totalidade, e a maneira como
decidimos gastar a nossa energia desempenha um signi­
ficativo papel na nossa jornada.
Quando reconhecemos e recolhemos as projeções
que o dinheiro e o poder representam, somos obrigados a5 9

59 Gálatas 2,20.

102
indagar de forma radical: “O que estou sendo chamando a
fazer?” Essa pergunta deve ser formulada periodicamen­
te, e precisamos escutar a resposta com humildade. Em
nosso processo de individuação podemos ser chamados a
encarnar muitos tipos de energia. Exatamente quando
alcançamos certo grau de estabilidade podemos ter as
nossas bases abaladas e ser chamados numa nova direção.
Independentemente do nosso fardo social, seja qual for a
nossa restrição econômica, precisamos continuar a repetir:
“O que estou sendo chamado a fazer?” Então, através de
um planejamento, do pagamento de tributos e coragem
suficiente, precisamos encontrar uma maneira de fazê-
lo. O sacrifício do ego, com sua necessidade de conforto e
segurança material, é doloroso, mas infinitamente menor
do que olharmos para trás e nos arrependermos de ter
deixado de responder ao chamado. O vocatus envolve nos
tornarmos tão plenamente nós mesmos quanto formos
capazes; a tarefa é descobrir como fazê-lo. Somos julgados
não apenas pela bondade do nosso coração, mas também
pela opulência da nossa coragem. Renunciar à segurança
que nos esforçamos para conseguir pode ser assustador,
mas não tanto quanto rejeitar essa pessoa mais ampla que
somos chamados a ser. A alma tem suas necessidades, que
não são bem atendidas por contracheques e privilégios.

A em ergência da função inferior

A complexidade do mundo moderno gerou um mundo


de especialistas capazes de atender às suas necessidades.
Assim sendo, desde a escola primária somos agrupados de
acordo com funções e aptidões e conduzidos a uma crescente
especialização. Quanto mais avançamos profissionalmente,
mais nos arriscamos a danificar a personalidade e embotar
a alma. A importância das artes liberais foi totalmente
apagada diante do peso do treinamento comercial e das
profissões liberais. Somos então restringidos por defini­
ções cada vez mais limitadas de preparação acadêmica. A

103
definição mais simples de Jung de neurose era “desunião
consigo mesmo”, uma unilateralidade de personalida­
de.60 Essa definição nos inclui a todos, especialmente em
virtude do caráter reativo da personalidade adquirida
anteriormente discutida, mas também em decorrência da
natureza do processo educativo da sociedade ocidental.
Quanto mais treinados somos, mais limitada se toma
nossa personalidade.
Em 1921 Jung publicou um livro que descreve oito
tipologias da personalidade, representando as diferentes
maneiras pelas quais podemos processar a realidade.61
Seus termos introversão e extroversão penetram a nossa
linguagem do dia a dia. Todos possuímos, em proporções
diferentes, as quatro funções, pensamento, sentimento,
sensação e intuição. A função dominante é aquela para a
qual nos voltamos mais reflexivamente a fim de nos orien­
tarmos para a realidade. Nossa tipologia parece ter uma
base genética embora certamente sejamos influenciados
por aqueles que nos rodeiam. A atitude de introversão ou
extroversão descreve se temos a tendência de processar
a realidade como algo interior ou alguma coisa “lá fora”.
Consequentemente, um tipo sensação extrovertido se
sentirá provavelmente atraído pelo mundo exterior, vindo
a ser, por exemplo, engenheiro ou mestre-cuca. Um tipo
pensamento introvertido poderá seguir uma carreira
acadêmica, mas seria um desastre se tentasse vender
carros usados.
Nossas funções dominantes geralmente emergem
desde cedo, e todos tendemos a seguir, o mais que podemos,
essas orientações dominantes. Além disso, como mostrei
acima, somos rapidamente distribuídos em categorias de
acordo com as nossas habilidades e somos depois ainda
mais limitados dentro das nossas especialidades. Quanto
mais treinados somos e quanto maior o êxito que apre­
sentamos nesse treinamento, mais limitada será nossa
60“Psychological Factors in Human Behaviour”, The Structure and Dyna­
mics ofthe Psycqye, CW 8, § 255 (A Dinâmica do Incconsciente - OC VIII).
61Psychological Types, CW 6 (Tipos Psicológicos - OC VI).

104
visão e nossa personalidade. A sociedade nos recompensa
por isso e nós cedemos porque é mais fácil seguir a nossa
orientação dominante do que lutar com o que é incômodo
ou talvez menos compensador.62
A ideia da função dominante não implica algo melhor,
mas apenas mais desenvolvido e mais utilizado. A função
inferior se refere ao modo de processar a realidade para o
qual nos voltamos menos e com o qual nos sentimos menos
à vontade. Assim, um tipo pensamento não é destituído de
sentimentos, mas funciona mais reflexivamente, exami­
nando o que uma coisa significa, como compreendê-la, onde
colocá-la. A vida sentimental dessa pessoa se manifestará
de maneira primitiva e menos sofisticada.
Durante a passagem do meio, as partes menos de­
senvolvidas da psique exigem nossa atenção. Jung achava
que Freud era um tipo sentimento. Ele usava sua mente
brilhante para desenvolver várias racionalizações para
justificar e defender seus apaixonados sentimentos.
Quando seus colegas divergiram dele e o abandonaram,
ele os considerou traidores da causa. Em vez de articular
friamente suas teorias e submetê-las ao mercado de idéias,
ele as usou para defender uma orientação sentimental
diante da vida. Jung, por outro lado, era um tipo pensa­
mento extrovertido intuitivo cuja mente vagava sobre
tópicos como esquizofrenia, alquimia e discos voadores.
Ele tinha o “pensamento radiante” do intuitivo, mas care­
cia da lógica sequencial do tipo sensação. Para trabalhar
suas sensações, ele cozinhava, fazia esculturas e pintava,
tentando trazer a função inferior à consciência.
Na meia-idade sentimos muita aflição, grande parte
dela externa e grande parte interna. Parte da aflição inte­

62 Essa discussão sobre a tipologia é relativamente superficial e o leitor


interessado deverá examinar as obras indicadas na bibliografia específica. O
teste mais fácil para determinar o tipo da personalidade é perguntar a nós
mesmos quais as áreas da vida que são fáceis e quais as difíceis. A pessoa que
gosta de cuidar da parte mecânica do carro ou tomar conta do saldo bancário
não aprecia ler livros de ficção especulativa. Analogamente, a pessoa que se
relaciona facilmente com os outros estaria pouco interessada na solitária tarefa
de projetar Software de computador.

105
rior se origina do fato de que nós, e nossa sociedade, fomos
coniventes ao negligenciarmos a pessoa total. Navegamos
no sentido que era mais fácil para nós. Fomos recompen­
sados pela nossa produtividade e não pela totalidade.
Vivemos em nossos sonhos o outro lado da personalidade,
pois a função inferior é o alçapão do inconsciente. Se pre­
tendemos nos desenvolver como indivíduos, e se estamos
dispostos a aperfeiçoar os nossos relacionamentos, temos
de levar a sério a questão da tipologia.
A teoria da tipologia de Jung não é apenas outra
maneira de compartimentar as pessoas. O conhecimento
da tipologia nos ajuda de duas maneiras principais. Em
primeiro lugar, a maior causa individual de conflito entre
as pessoas é o fato de elas atuarem a partir de diferentes
orientações tipológicas. A peça The Odd Couple, de Neil
Simon, que ficou muito tempo em cartaz, apresentava
uma pilhéria com muitas variações, uma piada baseada
em jogar dois tipos diferentes um contra o outro. Oscar e
Felix processavam a realidade de maneiras opostas, em
que um via uma sala desarrumada como incômodo e outro
como lugar onde tudo está convenientemente à mão, cada
um convencido de que estava certo e de que o outro era
um cabeçudo. As relações interpessoais, especialmente no
casamento, são notoriamente perturbadas por tipologias
diferentes. Reconhecer que o parceiro pode pertencer a
outro tipo aumenta a boa-vontade e pode conseguir em
grande parte reduzir a tensão e os mal-entendidos.
Conhecer a nossa função dominante ou superior
também significa conhecer nossa orientação diante da
realidade inferior ou inadequada. Esse conhecimento nos
informa quais aspectos da nossa personalidade precisamos
desenvolver, tanto para melhor adaptação ao mundo ex­
terior quanto para o equilíbrio da psique. Sob um aspecto
concreto, precisamos ser capazes de executar as tarefas
que geralmente evitamos, frequentemente pedindo ao
nosso cônjuge, por exemplo, para fazê-las para nós.
Em qualquer relacionamento somos obrigados a
perguntar: “O que estou esperando que esta pessoa faça e

106
que eu mesmo deveria fazer?” Essa pergunta diz respeito
não apenas à grande programação emocional da criança
interior, como também à questão da tipologia. Reconhecer
a interdependência envolve mais do que definir quem vai
cortar a grama, quem vai controlar o talão de cheques e
assim por diante. Ela envolve tornarmo-nos uma pessoa
autossuficiente, livre para celebrar a diversidade do
Outro.
É útil observar durante a passagem do meio como
nossos êxitos pessoais também foram limitadores e res­
tritivos para a pessoa total. Jogar e praticar ativamente
algum esporte, por exemplo, pode ser mais do que apenas
maneira de controlar o estresse. Essas atividades podem
representar maneiras de entrar em contato com o mundo
sensato novamente, depois de passar uma semana numa
mesa de escritório. No caso da pessoa que trabalha ma­
nualmente, a vida da mente pode convocar a função infe­
rior. No início sentimo-nos esquisitos ao usar os processos
menos adaptados, mas depois a psique responde através
da sensação maior de um bem-estar mais estável. Não
podemos contar, em nossa cultura, com a cooperação de
nossos empregadores ou mesmo da família nesse processo
de equilibrar nossa psique. E exatamente por isso que
precisamos roubar um pouco de tempo aqui e ali. Quando
os passatempos forem encarados mais como alimento para
a alma do que como algo para encher o tempo, é bem pro­
vável que estejamos buscando mais seriamente alternativas
para a maneira como habitualmente funcionamos. Não
obstante, a apreensão oriunda de tentarmos algo diferente
do que o que nos trouxe até aqui poderá impedir o nosso
desejo de fornecer energia às partes negligenciadas da
psique, não importa o quão potencialmente gratificantes
elas possam ser.
Esse é um dos aspectos do encontro que temos com nós
mesmos durante a passagem do meio: recuperar as partes
de nós mesmos que foram deixadas para trás durante a
especialização, a ignorância ou a proibição. Considerar a
tipologia representa bem mais do que um conselho para

107
que nos dediquemos a um hobby. Para muitos essa é a
única maneira de devolver algum equilíbrio à personali­
dade que se tornou excessivamente unilateral.

Invasões da som bra

Mencionamos anteriormente a enorme energia des­


pendida pelo ego para adquirir uma persona, em resposta
à socialização. A persona representa uma face necessária a
ser apresentada ao mundo exterior e ela também protege
nossa vida interior. Mas, do mesmo modo como a confiança
da função superior representa uma parcialidade, também
a persona é um fragmento do Si-mesmo. Ela é necessária
para podermos lidar com a realidade exterior, mas a psique
maior e inexplorada permanece o tempo todo esperando
ser reconhecida.
O leitor certamente se lembrará de que a sombra se
refere a tudo aquilo que foi reprimido no indivíduo. Quanto
mais investimos numa autoimagem particular, mais desen­
volvemos uma adaptação unilateral à realidade, e quanto
mais nosso senso de segurança é investido naquilo que
nos tornamos na meia-idade, mais as invasões da sombra
são ao mesmo tempo necessárias e perturbadoras.
Quase todos nós temos vergonha de alguma coisa
que fizemos. Talvez tenhamos cedido a um caso amoroso,
usado drogas ou decepcionado aqueles que dependiam de
nós. Quem já não acordou às quatro da manhã e encontrou
demônios sorridentes aos pés da cama? Todos os nossos
atos aberrantes representam uma busca cega por mais
vida, por uma renovação, embora as consequências possam
prejudicar tanto a nós quanto aos outros. Se conseguirmos
ser sinceros, discerniremos nosso egoísmo, nossas depen­
dências, nossos temores, nossos ciúmes e talvez até nossa
capacidade de destruição. Não é uma figura agradável, mas
é mais harmoniosa do que nossa reluzente persona, e tam­
bém mais humana. Um dos pronunciamentos mais sábios
já feitos por um ser humano é o do poeta latino Terêncio,

108
que disse: “Não há nada humano que me seja estranho”.63
Tal máxima fere quando a aplicamos a nós mesmos.
A sombra não deve ser igualada ao mal, mas apenas
à vida que foi reprimida. Como tal, a sombra possui um
potencial muito rico. Tomarmos consciência dela nos torna
mais totalmente humanos e mais interessantes. Uma pes­
soa destituída de sombra é singularmente afável e desin­
teressante. A disposição de permitir que nossos impulsos
mais sombrios, bem como nossa criatividade reprimida,
venham à superfície e sejam reconhecidos representa um
passo em direção à sua integração. Os conteúdos negativos
da sombra, como a raiva, a luxúria etc., podem ser des­
trutivos quando representados inconscientemente, mas
quando conscientemente reconhecidos e canalizados eles
podem fornecer uma nova orientação e energia.
Sob uma perspectiva concreta, a sombra se manifes­
tará, seja através de atos inconscientes, projeções sobre
outras pessoas, depressão ou doenças somáticas.64
A sombra personifica toda a vida que foi impedida
de se expressar. Ela encarna nossa sensibilidade perdida
que, ao ser negada, irrompe sob a forma de sentimenta-
lismo. Representa nossa criatividade que, abandonada,
nos encerra no tédio e na depressão. Personifica nossa
espontaneidade que, reprimida, torna nossa vida rotineira
e ridícula. Ela representa uma força vital maior do que a
nossa personalidade consciente já utilizou, e seu bloqueio
conduz a uma redução da vitalidade.
O encontro consciente com a sombra na meia-idade
é fundamental, pois ela estará atuando sorrateiramente,
de qualquer modo. Precisamos examinar o que invejamos
ou não apreciamos nos outros e reconhecer essas coisas

63 “Heauton Timorumenos”, em Comedies, p. 77.


64 Um analista amigo meu, que é padre, baseou sua tese no fundador
de sua ordem. Na meia-idade, quando a visão inicial do fundador, que levou à
criação da ordem, transformou-se numa instituição que era uma armadilha,
ele tentou ser liberado de seus votos. Quando não o conseguiu, ficou preso ao
leito durante seus últimos vinte anos de vida. Talvez a sombra, sua vida não
vivida, tenha se vingado.

109
em nós. Isso ajuda a evitar que culpemos ou invejemos
as outras pessoas pelo que nós mesmos deixamos de fa­
zer. Encoraja-nos a reconhecer que apenas uma pequena
parte do nosso potencial para a vida foi aproveitada e que
somos com frequência excessivamente presunçosos e se­
guros nas nossas realizações do ego. Revela outras fontes
de energia, criatividade e desenvolvimento pessoal. Ao
dialogar com a sombra, arrancamos dos outros enormes
projeções de animosidade e inveja. Já é bastante difícil
viver a própria vida, e todos serão mais bem servidos se
nos concentrarmos em nossa individuação em vez de nos
envolvermos na programação dos outros.
Se o significado da vida estiver diretamente relacio­
nado com o alcance da consciência e do desenvolvimento
pessoal, as invasões da sombra na meia-idade serão
necessárias e potencialmente curativas. Quanto mais eu
souber a respeito de mim mesmo, maior parte do meu
potencial poderei personificar, mais diversificados serão
os tons e os matizes da minha personalidade e mais rica
será a minha experiência de vida.

1 10
4

EXEMPLOS NA LITERATURA

“A meio caminho na jornada da vida, dei comigo perdi­


do numa floresta escura, tendo perdido o caminho”.65Assim
começa a peregrinação espiritual de Dante, a revisão do
significado da sua vida.
Discutirei neste capítulo alguns casos literários em
vez de exemplos clínicos. Como declarou Aristóteles há
dois mil e quinhentos anos, a arte pode algumas vezes
ser mais clara do que a vida, por abraçar o universal.66A
capacidade do artista de descer ao submundo, como o fez
Dante, e de voltar portando a história da jornada expres­
sa nossa condição de forma particulamente articulada.
Somos chamados não apenas a nos identificar com uma
personagem específica mas também a vê-la como a dra­
matização de uma condição humana universal. Uma vez
que compartilhamos essa condição, podemos aprender
algo a respeito de nós a partir das limitações, insights e
ações da personagem.
T. S. Eliot observou que a nossa única superioridade
em relação ao passado é que podemos abrangê-lo e sermos
engrandecidos por ele.67 Em outras palavras, através da
literatura e da arte podemos abraçar uma parte maior

B5The Comedy o f Dante Alighieri, p. 8.


66Poetics, p. 68.
67“Tradition and the Individual Talent”, Criticai Theory Since Plato, p. 78.

111
da gama de possibilidades com que deparam os seres
humanos, e ainda ser capazes de crescer e nos desenvol­
ver. Hamlet, por exemplo, sempre terá que pronunciar as
linhas escritas para Hamlet. Todos sofremos o complexo
de Hamlet, especialmente nos momentos em que sabemos
que deveriamos fazer uma coisa, mas somos incapazes de
fazê-la. Mas, ao contrário de Hamlet, temos a oportunidade,
através da consciência, de mudar o roteiro.
Dois clássicos bem diferentes do século dezenove, o
Fausto de Goethe, no início, eMadame Bovary de Flaubert,
em sua parte central, dramatizam a difícil situação do
indivíduo que ingressa na primeira idade adulta cheio de
projeções e encontra na meia-idade confusão, depressão
e o esgotamento das estratégias que o levaram até esse
ponto.
O erudito Fausto encarna o ideal da Renascença, a
aquisição do conhecimento. Ele dominava as profissões
da época — o direito, a filosofia, a teologia e a medicina
— “e aqui estou eu, apesar de todo o meu conhecimento, o
desgraçado tolo que eu era antes”.68Ao seguir sua função
dominante, o pensamento, Fausto alcançou o ápice do
aprendizado humano e em vez de doçura experimenta
cinzas. Quantos superintendentes de grandes empresas
não sofreram esse mesmo desapontamento? Quanto mais
ele alcançou, mais sua função inferior, o sentimento, foi
reprimida. Seu sentimento, tão primitivo na sua expressão
quanto seu pensamento é sofisticado, irrompe trovejante
e o lança numa profunda depressão. Seu aprendizado é
esplêndido, mas sua anima está oprimida. Sua depressão
é tão grande que mais de uma vez ele pensa em suicídio.
Ele compreende que duas almas se enfrentam dentro do
seu peito, uma que anseia por criar uma música capaz
de derreter as estrelas, e a outra ligada à mediocridade
cotidiana. Nesse ponto de suprema tensão, no qual o
homem moderno sofreria um colapso nervoso, Fausto se
associa a Mefistófeles.

68Faust, p. 93.

112
Este último não é maligno na versão de Goethe,
embora encarne a sombra de Fausto. “Sou parte da parte
que já foi tudo, / Parte das trevas que geraram a luz”.69
Mefistófeles descreve a sombra como a parte do todo,
negligenciada e reprimida, porém necessária à dialética
que, por fim, promove a totalidade.
O Fausto de Goethe, magnífico como é, pode ser lido
de muitas maneiras, e uma delas é como o diálogo na
meia-idade entre o ego e suas partes separadas. Puxado
para trás quando estava prestes a se suicidar, Fausto faz
uma aposta, não um pacto, com Mefistófeles; eles partem
numa jornada mágica pelo mundo da experiência e, como
Fausto representa o anseio de todos os seres humanos por
um entendimento sempre maior, ele diz que Mefistófeles
poderá possuir sua alma se em algum momento ele se
sentir satisfeito ou saciado em sua jornada.
Como sabemos, o que é inconsciente é sofrido inte­
riormente ou projetado externamente. Inicialmente, num
estado de depressão suicida, o encontro de Fausto com o
sombrio Mefistófeles é uma oportunidade de renovação.
Mas ele precisa primeiro entrar dentro de si e vivenciar
tudo o que foi reprimido na sua primeira idade adulta
unilateral.
O encontro central sofrido por Fausto é o atrasado com
sua anima, o aspecto feminino interior, a localização do
sentimento, a verdade e a alegria instintivas, sob a forma
exterior de uma simples camponesa chamada Margarida.
Ela fica espantada com o interesse desse erudito de fama
mundial e ele também fica perturbado. Ele a descreve
através de termos geralmente reservados aos atos de
afeto religiosos. O entusiasmo do amor dele por ela pos­
sui um caráter adolescente, indicativo do ponto em que
o desenvolvimento da anima foi bloqueado na educação
do erudito. A complexidade do caso amoroso em pauta
conduz a uma mãe envenenada e a um irmão assassino,
e a mente de Margarida sucumbe sob tão pesado fardo.

mIbid„ 161.

113
Fausto, dominado pela culpa, deixa-se conduzir por Me-
fistófeles para explorar o mundo mais amplo.70
Este resumo superficial do enredo cheira a uma novela
em que Fausto é o vilão. Com efeito, ele está longe de ser
inocente na sedução e ruína de Margarida, mas o nível da
sua inconsciência, bem como as implicações da mudança
na meia-idade, são a nossa preocupação aqui. Sob esse
aspecto, a narrativa revela uma pessoa que desenvolveu
sua função dominante, seu intelecto, à custa da sua sombra
e da sua anima. A penumbra da sombra interceptando a
anima é desastrosa, como frequentemente o são as ques­
tões da meia-idade. Aquilo que não conhecemos fere a nós
e aos outros. Fausto não é pouco ético, mas é destrutivo
na sua inconsciência.
Não há motivo para acreditar que cada parte de uma
pessoa amadureça em uníssono. A sociedade ocidental
deu um salto à frente em sua capacidade de destruição
nuclear e prolongamento clínico da vida, mas o nosso
amadurecimento ético ficou para trás. Do mesmo modo,
Fausto desenvolve seu papel no mundo exterior com ex­
traordinário êxito, mas sua vida interior é negligenciada.
Sua anima é inconsciente e primitiva em comparação com
seu intelecto, de modo que se manifesta como simples jo ­
vem camponesa. O anseio de renovação, que inicialmente
assume forma quase religiosa, é na verdade a necessidade
de trazer à consciência o negligenciado aspecto feminino.
Como é difícil para qualquer um de nós reconhecer que o
que é exigido é a cura interior. E tão mais fácil procurar
consolo ou satisfação no mundo exterior.
O dilema de Fausto nos faz lembrar um conto da au­
toria de John Cheever, moderno escritor americano, “The
Country Husband”. Um homem de negócios sobrevive a um
desastre de avião e encontra sua desinteressante vida de
subúrbio de cabeça para baixo. O sopro da sua mortalidade
agita sua anima. Ele é agressivo com a esposa e os amigos

™Para um completo estudo psicológico, veja Edward F. Edinger, Goethe’s


Faust: Notes for a jungian Commentary.

114
desta, apaixona-se pela baby-sitter adolescente e começa
a fazer terapia, onde lhe dizem que está sofrendo de uma
crise da meia-idade. Concluído o diagnóstico, prescrevem-
lhe um hobby e no final da história ele está trabalhando
com madeira no porão. Dentro dele nada está resolvido,
nada foi aprendido ou integrado, e os planetas giram no
espaço inalterados em suas órbitas.
Tanto Fausto quanto o protagonista de Cheever estão
emboscados na meia-idade pela depressão e pelo medo da
morte; ambos buscam a cura da anima através de uma
jovem. Ambos sofrem e nenhum dos dois entende o que
está acontecendo. Como disse Jung, a neurose é o sofri­
mento que não descobriu seu significado. Manter o nosso
compromisso com a meia-idade envolve ao mesmo tempo
o sofrimento e a busca de seu significado. O crescimento
torna-se então possível.
No livro de Flaubert, Emma Bovary é essa camponesa.
Quando ela vê Charles Bovary, médico da cidade, esforça-se
para seduzi-lo e mudar-se da fazenda a cidadezinha dele.
Ela projeta no casamento e na posição sua salvação da
mediocridade. Mas logo depois do casamento fica grávida
e entediada com seu prosaico marido. Encurralada pelas
limitações da sua cultura, a França católica do século
dezenove, ela não pode nem abortar nem se divorciar, e
tampouco pode partir sozinha como o faria a Nora de Ibsen
décadas mais tarde. Ela passa o tempo lendo romances,
o equivalente das novelas de hoje, e tem fantasias sobre
amantes que a arrancarão da mediocridade e a levarão
para o mundo de pessoas inteligentes. Ela instiga Charles
a fazer uma complicada cirurgia que termina em desastre,
envolve-se numa série de casos amorosos e se endivida para
sustentar seu consumismo exagerado. O desenvolvimen­
to de seu animus, inicialmente projetado sobre Charles,
vaga de homem em homem numa romântica fantasia de
libertação. Como Fausto, ela busca a transcendência das
suas limitações sem compreender que precisa trabalhar
a partir de dentro.

115
Quanto mais inconscientes somos, mais projetamos.
A vida de Ema é uma série de projeções, que aumentam
progressivamente, cada uma incapaz de satisfazê-la.
Ela até mesmo encontra no adultério “todas as vul­
garidades do matrimônio”.71 Finalmente, abandonada
pelos amantes, à beira da ruína financeira e tendo a
esperança de encontrar o homem dos seus sonhos, Ema
planeja suicidar-se. Seus romances lhe mostraram como
as heroínas são levadas para o céu e recebidas por an­
jos e música celestial. Ela ingere veneno para alcançar
a transcendência final, a projeção final. Flaubert fala
através da névoai “As oito horas ela começou a vomitar.. ,.”72
Sua visão final não é beatífica; é o rosto de um cego. O
mendigo por quem passou quando a caminho de um
encontro amoroso reaparece, simbolizando a cegueira
do homem interior, seu animus.
Nem Fausto nem Ema são maus. A urgência da vida
que não viveram faz com que eles façam más escolhas.
Eles projetam seu contrassexual interior sobre uma pessoa
exterior, sem compreender que o que buscam está dentro
deles mesmos. Embora a história pessoal das personagens
seja incomparavelmente foijada por grandes artistas, as
características da sua passagem do meio são comuns a
todos nós.
Um encontro na meia-idade de tipo bastante diferente
acontece na obra de Dostoievsky,Notes from Underground.
Publicada em 1864, ela denuncia o culto do progresso, do
meliorismo, do otimismo ingênuo a respeito da capacidade
da razão de erradicar as desgraças do mundo. Porém mais
do que uma análise do moderno Zeitgeist, ela representa
um encontro profundamente exaustivo com a sombra.
Poucos escreveram a respeito da escuridão interior com a
honestidade ou profundidade de insight de Dostoievsky.
Notes from Underground começa com algumas linhas
líricas, não exatamente típicas da afetação literária vito-

71Madame Bovary, p. 211.


72Ibid., p. 230.

116
riana: “Sou um homem doente... um homem mesquinho...
Porém, na verdade, não compreendo nada a respeito da
minha doença; não tenho nem mesmo certeza do que
está me aflingindo”. O narrador anônimo mergulha num
monólogo narcisista: “Sobre o que, então, um homem de­
cente gosta mais de falar? Sobre si mesmo, é claro. Falarei
portanto sobre mim mesmo”. Desse modo, nas páginas
seguintes, ele descreve seus temores, suas projeções, sua
raiva, seus ciúmes, todas as características humanas que
temos a tendência de negar, observando ironicamente que
“as pessoas se orgulham de suas fraquezas e eu, prova­
velmente, mais do que ninguém.”73
O homem do submundo torna consciente aquilo que
todos nós fazemos na primeira idade adulta, ou seja,
reagir às feridas da vida. Construímos um conjunto de
comportamentos baseados em feridas e vivemos nossa vi­
são desvantajosa com racionalizações e autojustificativas.
Mas o homem do submundo não favorecerá a si mesmo
nem a nós com racionalizações. O leitor deseja vê-lo sob
uma luz melhor, pois sua autoacusação nos compromete
a todos. Porém, como ele diz: “Como pode um homem com
a minha lucidez de percepção respeitar a si mesmo?”74Ele
define a humanidade como “o bípede ingrato. Mas este
ainda não é seu principal defeito. Seu principal defeito é
sua perversidade crônica”.75
O homem do submundo se recusa a se tornar digno
de ser amado ou de ser perdoado. Ele se recusa a livrar a
si mesmo ou ao leitor de uma situação embaraçosa. Sua
autoanálise não contribui para uma leitura agradável,
mas ele previdentemente chama a si mesmo de o primei­
ro dos anti-heróis.76 Ele é heroico na sua perversidade
e sua honestidade obriga o leitor a fazer um inventário
semelhante. Ele então adverte:

73Notes from Underground, pp. 90-93.


74Ibid., p. 101.
75Ibid., p. 113.
76Ibid., p. 202.

117
Tudo o que fiz foi levar ao limite supremo
aquilo que vocês não ousaram empurrar nem mesmo até o
meio do caminho — tomando sua covardia por sensatez,
para se sentirem melhor. Assim, no final, ainda posso
acabar mais vivo do que vocês.77

Kafka escreveu certa vez que uma grande obra deveria


ser como um machado para partir o mar congelado dentro
de nós.78Apoies from Underground é uma obra desse tipo.
Alguns ainda questionam seu valor literário e a encaram
basicamente como a denúncia de uma era de otimismo
superficial. Mas também podemos encarar Notes from
Underground como o esforço de uma pessoa para manter
seu compromisso consigo mesma na meia-idade. Embora
os encontros com a sombra não sejam raros na literatura,
de Hawthorne a Melville, a Poe, a Twain, a Jeckyl e Hyde
de Stevenson, a Heart ofDarkness de Conrad, Dostoievsky
nos conduz ao ventre da besta. Ele descreve as regiões
inferiores que tentamos tão arduamente ocultar. Não
obstante, quanto maior o esforço de reprimir e partir a
fecunda e amargosa sombra, mais ela irrompe através de
projeções e de ações perigosas, como vemos em Fausto e
Ema Bovary.
Por mais doloroso que possa ser o encontro com a
nossa sombra, ele restabelece a nossa ligação com a nos­
sa qualidade humana. A sombra contém a energia bruta
da vida que, quando manuseada conscientemente, pode
produzir mudança e renovação. Sem dúvida é difícil trans­
formar o narcisismo em algo útil, mas ele pode, ao menos,
ser contido, o que evita que terceiros sejam prejudicados.
Nas palavras de seu contemporâneo, Charles Baudelaire,
o homem do submundo é “mon semblable, mon frère”.79
A pessoa cujo uocatus é a arte elabora e reelabora seu
mito, às vezes consciente, às vezes inconscientemente. O

77Ibid., p. 203.
78Selected Short Stories ofFranz Kafka, p. xx.
79Ara Anthology ofFrench Poetry from Nerval to Valery in English Trans-
lation, p. 295.

118
grande poeta W. B. Yeats passou por numerosas transfor­
mações. Tudo indica que, em certa ocasião, alguns amigos
se queixaram do novo poeta que emergia quando haviam
acabado de se acostumar ao antigo. Ele respondeu:
Os amigos que acham que eu erro
Sempre que refaço minha canção
Deveríam saber o que está em jogo.
E a mim mesmo que refaço.80

Os três poetas que se seguem representam esforços


autoconscientes de reelaborar o mito pessoal do indiví­
duo. A semelhança dos grandes mitos de cetro e mitra, o
poder sustentador do trono e da igreja, as pessoas foram
deixadas para encontrar seu próprio caminho através do
deserto. Grande parte da arte moderna é um testemunho
da nossa necessidade de remexer no cascalho do passado,
escolhendo aqui e ali um manto de símbolos que ainda seja
apropriado, mas cuja meta principal é extrair significado
da experiência pessoal. Como os mananciais espirituais do
passado em geral não estão disponíveis para o artista de
hoje, ele terá de traçar as longitudes e latitudes da alma
a partir dos fragmentos da biografia. Os mais importantes
desses fragmentos são em geral a mãe e o pai, o ambiente
da infância e a aculturação. No último capítulo vimos
Stephen Dunn trabalhando com os complexos materno e
paterno. Três outros poetas americanos modernos— The-
odore Roethke, Richard Hugo e Diane Wakoski— também
vasculham os tesouros da memória, buscando reunir um
coerente senso de si mesmos.
Como vimos, nossas duas necessidades mais pre­
mentes são de proteção e fortalecimento, o sentimento de
que a vida de algum modo luta por nós e nos ajuda, e que
podemos atingir nossas metas. Theodore Roethke passou
a infância em Saginaw no estado de Michigan, onde seu
pai possuía uma estufa. Esta serviu de cenário para mui­
tos de seus poemas, pois passou a simbolizar não apenas

80Ver Richard EUman, Yeats: The Man and the Maskes, p. 186.

119
seu lar literário mas também uma recordação edênica
do “mundo verde”. A figura dos pais é o veículo através
do qual as forças arquetípicas da proteção e do poder são
transmitidas. Quando os pais são capazes de carregar
essas grandes forças e passá-las adiante, elas se tornam
ativas dentro da criança. Quando não consegue encontrar
essas forças nos pais, a criança as procura em substitutos.
Neste poema, Roethke recorda depois de muitos anos três
empregados do pai que ajudaram a preencher as neces­
sidades arquetípicas do menino:
Partiram as três senhoras idosas
Que faziam ranger as escadas da estufa,
Levantando cordões brancos
Para enrolar, para enrolar
As gavinhas das ervilhas, as esmiláceas,
As capuchinhas, as rosas
Ascendentes, para desencurvar
Os cravos, os crisântemos
Vermelhos; as hastes
Rígidas, ligadas como milho,
Elas amarravam e embrulhavam, —
Essas enfermeiras de mais ninguém.
Mais rápidas que os pássaros, elas erguiam
E peneiravam as impurezas;
Borrifavam e sacudiam;
Montavam nos canos,
As saias ondulando ao vento formando tendas,
As mãos úmidas cintilando;
Como feiticeiras elas voavam pelos corredores
Mantendo a criação à vontade;
Usando uma gavinha como agulha
Elas costuravam o ar com uma haste;
Penteavam as sementes, que o frio mantinha adormecidas,—
Todos os cachos, voltas e torvelinhos.
Elas entrelaçavam o sol;
elas planejavam para além de si mesmas.
Lembro-me de como elas me levantavam,
um menino alto e esguio,
Beliscando e cutucando minhas delicadas costelas,
Até que eu caía no colo delas, rindo,
Fraco como uma boneca.
Agora, sozinho e com frio em minha cama,

120
Elas ainda flutuam sobre mim,
Essas rijas anciãs,
Com lenços engomados pelo suor,
E pulsos feridos por espinhos,
E suas fungadelas soprando suavemente sobre mim
em meu primeiro sono.81

As três mulheres, congeladas no tempo como uma


mosca no âmbar, ainda protegem e alimentam a criança
interior. Seu trabalho e seus cuidados com a criança pa­
recem fornecer agora um temenos, um lugar sagrado na
psique, enquanto o poeta atravessava tempos difíceis,
lutando contra a depressão e a perda. Mais do que em­
pregadas, elas eram enfermeiras de coisas que cresciam,
fossem elas as plantas ou a criança. A memória dele revive
a beleza dessas coisas simples — saias ondulando ao ven­
to, movimentos encantados, lenços engomados pelo suor,
pulsos feridos por espinhos, fungadelas— metonímias que
se abrem para o passado. Num presente difícil, sozinho
e apático, o escritor restabelece a ligação com uma época
protetora e verdejante. A memória serve para sustentar,
até mesmo alimentar, a alma faminta. E, do mesmo modo,
nosso próprio confronto na meia-idade com a grandeza da
vida, a solidão da jornada, pode ser parcialmente mediado
pela ligação com uma época em que a vida não nos apoiou
nem sustentou.
E mais difícil para Richard Hugo encontrar essa
recordação verde:
Você se lembra, o nome era Jensen. Ela parecia velha,
sempre sozinha do lado de dentro, o rosto cinzento grudado na
janela,
e a carta nunca chegava. A dois quarteirões dali,
a família Grubski
estava ficando louca. George tocava um trombone ordinário
na Páscoa, quando hasteavam a bandeira. Rosas silvestres
fazem com que você se lembre de que as estradas não eram
pavimentadas, terrenos vazios de cascalho

81 “Frau Bauman, Frau Schmidt, and Frau Schwartze”, em The Collected


Poems ofTheodore Roethke, p. 144.

121
a norma. A pobreza era real, de bolso e de espírito,
e cada dia lento como a igreja. Você se lembra de grupos
andrajosos da igreja na esquina, gritando sua fé
para as estrelas, e os violentos Holy Rollers
alugando o celeiro para seu violento canto anual
e o celeiro pegou fogo quando você voltou da guerra.
Sabendo que as pessoas que você conhecia então estão mortas,
você tenta acreditar que as estradas pavimentadas
estão melhores,
os vizinhos, que se mudaram enquanto você estava ausente,
bem apessoados,
seus cachorros bem alimentados. Você ainda sente necessidade
dos terrenos vazios e cheios de samambaias.
O gramado bem aparado faz com que você se lembre do trem
que sua esposa tomou um dia para sempre, uma cidade longín­
qua e vazia,
o nome esquisito que você nunca consegue lembrar. A hora: 6,23.
O dia: 9 de outubro. O ano permanece um borrão.
Você culpa a vizinhança pelo seu fracasso.
De alguma maneira vaga, a família Grubski o degradou
de modo irreparável. E você sabe que precisa tocar de novo
e de novo a pálida Sra. Jensen na janela, precisa ouvir
a música hedionda por cima da boa pista de tráfego.
Você os amava bastante e eles continuam, ainda sem nada
para fazer, sem dinheiro e sem vontade. Os amava, e o cinza
que era a doença deles você carrega como alimento extra
para o caso de se perder em alguma cidade vazia e esquisita
e precisar de amantes famintos como amigos, e precisar sentir
que é bem-vindo no clube secreto que eles fundaram.82

Hugo viveu sua infância em ruas miseráveis, onde


a pobreza do bolso se aliava à pobreza do espírito. Para
a criança o tempo se arrastava lentamente e ao mesmo
tempo com tanta rapidez que parece difícil explicar todas
as mudanças ocorridas a partir de então. O progresso
chegou. As ruas estão asfaltadas, a grama e os cachorros
bem alimentados. Mas outras imagens flutuam entrando
e saindo desse estranho romance que chamamos de nossa
vida. As pessoas, algumas delas aparentadas, algumas
aparentadas e desagradáveis, chegaram e partiram e

82 “What Thou Lovest Well, Remains American”, em Making Certain It


Groes On: The Collected Poems ofRochard Hugo, p. 48.

122
a única continuidade é a morte daquele que tenta com­
preender o que está acontecendo. De algum modo, sente
o poeta, o cenário da infância, a vizinhança em si, põe as
coisas em movimento.
Se o poeta pensa em sua vida como sendo um fracas­
so, então o ponto de origem, o lugar de avançar, também
está comprometido, degradando a prístina promessa da
infância. Ainda assim, Hugo, como Roethke, nos dias
mais sombrios ainda retorna ao seu lugar de partida para
obter alguma indicação de quem ele é e do que a vida re­
presenta. Mesmo agora, “o cinza/ que era a doença deles
você carrega como alimento extra”. Uma vez que sabemos
que os amigos e os animais têm sua própria jornada e só
podem percorrer conosco parte do caminho, o poeta se
vê obrigado a carregar os fragmentos de memória como
alimento para a alma.
Tanto Hugo quanto Roethke são membros daquele
“clube secreto” mencionado na última linha do poema aci­
ma. E a comunidade dos que estão no fim de seus recursos
e são obrigados a se reagrupar, a buscar sua orientação
mítica. James Hillman salientou que todos os casos clíni­
cos são ficção.83Os fatos da vida da pessoa são bem menos
importantes do que a maneira como nos lembramos deles,
o modo como os interiorizamos e somos impulsionados por
eles, ou como somos capazes de trabalhar com eles.
Todas as noites o processo de formação do mito
está em atividade enquanto nosso inconsciente agita os
detritos da vida cotidiana. Da mesma forma, a memória
serve para nos sustentar, nos prender à infantilidade,
ou para nos enganar, conforme o caso. Voltar ao cenário
da infância, seja literalmente, seja na imaginação, nos
ajuda a estabelecer um relacionamento adulto com essa
pretensa realidade. Visite a sala da terceira série primária
e as carteiras que esmagavam a criança, os corredores
proibidos, os intermináveis playgrounds — todos terão
sua proporção reduzida. Do mesmo modo, os traumas do

83 Healing Fiction.

123
passado podem ser assimilados pelo adulto que conduz
a criança interior pela mão e permite que as gigantescas
dores ou prazeres da memória sejam reelaborados através
da força e do conhecimento do adulto.
A única exigência para a entrada na passagem do
meio é termos descoberto que não sabemos quem somos,
que não existem salvadores, nem Mamãe e Papai, e que
nossos companheiros de viagem devem por sua vez tentar
sobreviver. Quando reconhecemos nossa chegada a essa
conjuntura crítica, podemos então ser capazes de atra­
vessar a urdidura e a trama da nossa vida para descobrir
quais os fios que partem de lá até aqui.
Diane Wakoski tenta descobrir quem ela é examinando
imagens emulsionadas do seu passado:
Minha irmã em sua blusa de seda bem trajada me estende
a fotografia do meu pai
num uniforme da marinha e de quepe branco.
Eu digo, “Oh, esta é a foto que mamãe tinha sobre o toucador.”
Minha irmã controla sua expressão e olha furtivamente para
minha mãe,
um triste farrapo de mulher, encaroçada e curva,
como um colchão do Exército da Salvação, embora sem buracos
ou lágrimas,
e diz, “Não.”
Olho novamente,
e percebo que meu pai está usando uma aliança,
coisa que ele nunca fez
enquanto viveu com minha mãe. E que ela contém uma dedi­
catória,
“Para minha querida esposa,
Amor
Comandante”.
E eu compreendo que a foto deve ter pertencido à sua segunda
esposa,
por causa de quem ele deixou nossa mãe.
Minha mãe diz, com o rosto tão imóvel quanto toda a parte não
povoada do
estado da Dakota do Norte:
“Posso olhar também?”
Ela olha a fotografia.

12 4
Contemplei minha irmã bem trajada
e minha pessoa de calça jeans. Será que queríamos magoar
nossa mãe,
compartilhando essas imagens, num dos poucos dias em que
visito minha família? Porque o rosto dela está curiosamente
assombrado,
não com a costumeira amargura viperina,
mas com algo tão profundo que não pode ser descrito.
Volto-me e digo que preciso ir-me, pois tenho um compromisso
para o jantar com amigos.
Mas percorro de carro todo o trajeto de Whittier a Passadena,
pensando no rosto da minha mãe; como nunca pude amá-la;
como meu pai
não pôde amá-la tampouco. Porém sabendo que herdei
o corpo esfarrapado,
o rosto impassível com maxilar de buldogue.
Dirijo, pensando naquele rosto.
Califórnia Medeia de Jeffer que me inspirou a escrever poesia.
Matei meus filhos,
mas enquanto mudo de pista na auto-estrada, necessariamente
olhando para o
retrovisor, vejo o rosto,
nem mesmo um fantasma, mas sempre comigo, como uma foto na
carteira de um ente querido.
Como odeio meu destino.84

As fotografias, ao contrário do confortante bálsamo do


esquecimento, arrancam as recordações do inconsciente.
As três mulheres — a mãe, a imã e a poetisa — são reuni­
das através da imagem do passado. Debaixo da superfície
ocultam-se antigas feridas e tensões. A poetisa patina
através do tempo como uma criança que pisa sobre o gelo
do lago, sem saber o que a sustentará e o que a trairá, mas
mesmo assim precisa tentar chegar ao outro lado. Num
outro poema, Wakoski conta como ela “adotou” George
Washington como seu pai, uma vez que seu pai biológico
era “há 30 anos primeiro sub-oficial, / sempre longe de
casa”.85 Ela adota o homem que viveu no passado em Mt.

84“The Photos”, em Emerald Ice: Selected Poems 1962-87, pp. 295-296.


85 “The Father of My Country”, ibid., p. 44.

125
Vernon e ainda vive nas notas de um dólar e na memória
da criança, porque “meu pai fez de mim o que eu sou, / uma
mulher solitária, / sem um propósito, / do mesmo modo
como eu fui uma criança solitária / sem nenhum pai”.86
A experiência de Wakoski com relação à sua mãe,
como a de Hugo com relação à sua antiga vizinhança,
é como um colchão do Exército da Salvação, vazio como
o estado de Dakota do Norte e viperino para expulsar.
Sua irmã, bem trajada, contrasta com a sua “pessoa de
calça jeans”. Enquanto dirige para casa seja lá onde isso
for, ela sabe que viaja sozinha. Todos eles — o primeiro
sub-oficial, a mãe, a irmã, a poetisa — são viajantes so­
litários. Ao contrário de Roethke, que ainda pode extrair
seu sustento das três velhas da estufa, ou de Hugo, que
pode até sorver do melancólico cinza, Wakoski sabe que
não pode extrair força, conforto ou proteção da época ou
das pessoas representadas nas fotos. Ela confessa que não
pôde amar sua mãe, como não o pôde o primeiro sub-oficial.
Ainda assim ela carrega a imagem da mãe, sobre o rosto
no espelho retrovisor, na sua imagem de si mesma. Ela
viajou de Passadena a Whittier e mais além para outras
paisagens da alma, mas a estampa da sua mãe devolve
seu olhar, sempre.
À semelhança de outra mulher trágica e amaldiçoada,
Medeia, ela assassinou seu potencial interior. Conduzida
pela visão ferida de si mesma, ela criou sua vida. Quanto
mais ela tentava se afastar do seu passado em Passadena,
mais a visão se insinuava dentro dela. “Como odeio meu
destino”, ela conclui.
É essencial estabelecermos aqui a distinção entre
sina e destino, como o fizeram os atenienses há dois mil
e quinhentos anos. Sem dúvida, a poetisa não escolheu
seus pais, como eles também não a escolheram. Porém,
ao sofrer a sina da sua intersecção no tempo e no espaço,
cada um fere os outros. Dessas feridas criamos o conjunto
de comportamentos e atitudes que servem para proteger

86Ibid., p. 48.

12 6
a frágil criança. Esse conjunto, reforçado com o passar
dos anos, torna-se a personalidade adquirida, o falso eu.
Wakoski retoma corretamente às suas raízes para verificar
como ela foi posta em movimento. O que ela vê, contudo,
a enche de repulsa, pois, olhando para ela no espelho,
aí está a mesma mulher que nem ela nem o primeiro
sub-oficial conseguiram amar. Enquanto ela for apenas
o reflexo do que ela não pode amar, ela não poderá amar
a si mesma. Destino, contudo, não é sinônimo de sina. O
destino representa o nosso potencial, as nossas possibi­
lidades inerentes, que podem ou não vir a se realizar. O
destino convida à escolha. Destino sem escolha é apenas
a duplicação da sina. Sua luta para ser mais do que ela
veio a odiar ainda a prende ao que ela desdenha e repudia.
Enquanto ela se definir como a filha de sua mãe, estará
amarrada à sua sina. Ao mesmo tempo que o poema não
oferece, dentro dos seus limites, muita esperança de que
ela transcenda sua sina, o autoexame inerente à criação
do poema representa, por outro lado, o necessário ato de
consciência e responsabilidade pessoal que torna possível
o destino.
Se não fizermos esforços dolorosos em direção à cons­
ciência, permaneceremos identificados com a ferida. No
conhecido poema confessional de Silvia Plath, “Daddy”, ela
recorda o pai e professor de pé diante do quadro-negro e
de repente o equipara a um demônio que “mordeu em dois
meu lindo coração”, acrescentando: “aos vinte anos tentei
morrer / e voltar, voltar, para você”.87 O crime do pai dela
foi ter morrido quando ela tinha dez anos, no momento
em que seu animus precisava dele para libertá-la da de­
pendência da mãe. Como Wakoski, ela foi abandonada por
Ele, deixada com Ela, presa no ponto da ferida. A raiva e o
ódio que Plath sentia por si mesma a puxou repetidamen­
te para trás e para baixo, até que finalmente ela acabou
com a vida. Enquanto permanecermos identificados com a
ferida, odiaremos o rosto no espelho pela sua semelhança

87 “Ariel,” The Collected Poems, p. 42.

127
com aqueles responsáveis pela ferida, e sentiremos ódio
por nós mesmos por causa da nossa incapacidade de nos
libertarmos do passado.
Os artistas frequentemente nos contam mais, atra­
vés da sua habilidade em articular o universal, do que os
fatos biográficos. “A memória”, escreveu Apollonaire, “é
uma trompa de caça cujo som desaparece aos poucos com
o vento”.88 Nossas biografias são armadilhas, seduções
enganadoras que nos congelam na aparente facticidade do
passado, identificados com a ferida e criaturas da sina.
No clube secreto da passagem do meio há um convite
para uma consciência mais ampla e maior capacidade
de escolha. Com a consciência mais ampla surge maior
oportunidade para perdoarmos os outros e a nós mesmos
e, com o perdão, chega a libertação do passado. Precisamos
nos voltar mais conscientemente para a elaboração dos
nossos mitos, caso contrário jamais seremos mais do que
a mera somatória do que nos aconteceu.

88An Anthology o f French Poetry from Nerval to Valery in English Trans-


lation, p. 252.

128
5

INDIVIDUAÇÃO:
O MITO JUNGUIANO
PARA A NOSSA ÉPOCA

A experiência da passagem do meio não é diferente


de acordar e descobrir que estamos sozinhos, balançando
num navio, sem nenhum porto à vista. Nossas únicas
opções são voltar a dormir, pular do navio ou agarrar o
leme e seguir viagem.
No momento da decisão, a grande aventura da alma
nunca está mais clara. Ao agarrarmos o leme, assumimos
a responsabilidade pela jornada, por mais assustadora
que ela possa ser, por mais solitária ou injusta que possa
parecer. Quando não agarramos o leme, permanecemos
presos na primeira idade adulta, presos nas aversões
neuróticas que constituem nossa personalidade atuante e,
por conseguinte, a separação de nós mesmos. Em nenhum
ponto vivemos mais honestamente, ou com mais integri­
dade, do que quando, rodeados pelos outros, mas sabendo
que estamos sozinhos, a jornada da alma acena e dizemos
“sim” a tudo. E aí que, como diz uma das personagens de
uma peça de Christopher Fry, “as questões se tornaram
do tamanho da alma, graças a Deus!”89
Jung escreve em sua autobiografia:

89A Sleep of Prisioners, p. 43.

129
Vi frequentemente as pessoas ficarem neuróticas
quando se contentam com respostas inadequadas ou
erradas às questões da vida. Elas buscam posição, casamento,
reputação, sucesso exterior ou dinheiro, e permanecem
infelizes e neuróticas mesmo quando conseguem
o que estavam procurando. Essas pessoas estão geralmente
confinadas dentro de um horizonte espiritual
excessivamente estreito. Sua vida não possui conteúdo
suficiente, significado suficiente. Quando lhes é permitido
se desenvolver e adquirir uma personalidade mais ampla,
a neurose geralmente desaparece.90

A ideia de Jung é fundamental, pois todos nós vive­


mos uma vida comprimida dentro dos estreitos limites da
nossa época, lugar e história pessoal. Para vivermos uma
vida mais abundante, somos obrigados a compreender os
limites dentro dos quais fomos criados. Apremissaimplícita
da nossa cultura, ou seja, que seríamos felizes através do
materialismo, do narcisismo ou do hedonismo, foi clara­
mente à falência. Aqueles que abraçaram esses valores
não estão nem felizes nem completos. Não precisamos
de “verdades” não examinadas e sim de um mito vivo, ou
seja, uma estrutura de valor que oriente as energias da
alma de forma condizente com a nossa natureza. Embora
frequentemente seja útil remexer nos fragmentos do pas­
sado em busca de imagens que nos falem como indivíduos,
raramente é possível abraçar as mitologias de outro tempo
e lugar. Somos obrigados a descobrir a nossa.
A necessidade de encontrarmos nosso caminho é
óbvia, mas importantes obstáculos se colocam no cami­
nho. Reexaminemos por um instante os sintomas que
caracterizam a transição da meia-idade. São eles o tédio,
a repetida mudança de emprego ou de parceiro, o uso de
drogas ou álcool, pensamentos ou atos autodestrutivos,
infidelidade, depressão, ansiedade e crescente compul-
sividade. Por trás desses sintomas existem duas verdades
fundamentais. A primeira é que há uma enorme força que
vem de baixo. Sua urgência é sentida como destruidora, e
90Memories, Dreams, Reflections, p. 140.

130
causa ansiedade quando reconhecida e depressão quan­
do reprimida. A segunda verdade fundamental é que os
antigos padrões que conservaram afastada essa urgência
interior se repetem com crescente ansiedade, porém com
cada vez menos eficácia. Mudar de emprego ou de parceiro
não muda a maneira como nos sentimos em relação a nós
mesmos com o decorrer do tempo. Quando a crescente pres­
são interior se torna cada vez mais difícil de ser contida
pelas antigas estratégias, uma crise de individualidade
explode. Não sabemos quem somos, realmente, além dos
papéis sociais e dos reflexos psíquicos. E não sabemos o
que fazer para reduzir a pressão.
Esses sintomas anunciam a necessidade de uma
mudança substantiva na vida da pessoa. O sofrimento
acelera a consciência e, a partir de uma nova consciência,
uma vida nova pode surgir. A tarefa é assustadora, pois
precisamos primeiro reconhecer que não existe salvação,
nem pais que fazem tudo melhor e nenhuma maneira de
voltar a uma época anterior. O Si-mesmo tentou crescer
exaurindo as desgastadas estratégias do ego. A estrutura
do ego que nos esforçamos tanto para criar se revela agora
insignificante, assustada e sem respostas. Na meia-idade,
o Si-mesmo conduz o conjunto do ego a uma crise a fim
de realizar uma correção no curso.
Debaixo dos sintomas que caracterizam a passagem do
meio está a suposição de que seremos salvos encontrando
e nos ligando a alguém ou a algo no mundo exterior. Para
o bem do marujo de meia-idade que está afundando, não
existem esses preservadores da vida. Estamos no vagalhão
da alma, certamente junto com muitas outras pessoas,
mas precisamos nadar com nossas próprias forças. A ver­
dade é simplesmente que aquilo que devemos saber virá
de dentro de nós. Se pudermos alinhar a nossa vida com
essa verdade, não importa quão difíceis os desgastes do
mundo, sentiremos um efeito benéfico, esperança e vida
nova. A experiência do início da infância, e posteriormente
da nossa cultura, nos alienou de nós mesmos. Só podemos

131
retomar nosso curso restabelecendo a ligação com a nossa
verdade interior.
Em dezembro de 1945, um camponês árabe encon­
trou vários manuscritos antigos enterrados em grandes
jarros dentro de cavernas. Esses manuscritos parecem
ter sido os textos dos gnósticos, os primeiros cristãos que
confiavam mais na experiência pessoal e revelada do
que nos pronunciamentos oficiais da igreja. Um desses
manuscritos era intitulado “O evangelho segundo Tomé”.
Segundo se diz, ele contém os ensinamentos secretos de
Jesus, e se isso for verdade, eles revelam uma pessoa
muito diferente da revelada pelos outros discípulos. Um
dos pronunciamentos de Jesus toca exatamente no ponto
que precisamos aceitar para que possamos passar por uma
transformação na meia-idade. Ele disse: “Se trouxeres
à tona o que está dentro de ti, o que está dentro de ti te
salvará. Se não trouxeres à tona o que está dentro de ti,
o que não trouxeres à tona te destruirá”.91
Como o que está dentro de nós foi reprimido, encontra­
mo-nos doentes e autoalienados. Como o que está dentro
de nós recebeu tão pouco apoio, temos grande dificuldade
em saber que o que temos buscado todo esse tempo, o
caminho certo para nós, já está presente. Embora seja
assustador contemplar a grandiosidade da nossa tarefa,
também é libertador, num sentido supremo, saber que
temos dentro de nós os recursos necessários e não depen­
demos de outra pessoa para viver mais plenamente a
nossa vida. Como escreveu há quase dois séculos o poeta
romântico Hõlderlin: “Os deuses estão perto, mas é difícil
agarrá-los; contudo onde o perigo é grande a libertação
fica mais forte.”92
Não é, portanto, uma questão de viver sem o mito, e
sim com qual mito, pois somos sempre guiados por ima­
gens, consciente ou inconscientemente. Conscientemente

91 Elaine Pageis, The Gnostic Gospels, p. 152.


92“Patmos”, em AnAnthology ofóerm an Poetry frorn Hõlderlin to Rilhe,
p. 34.

132
podemos aderir a um conjunto de crenças e práticas que
estão de acordo com os valores coletivos, como a busca
da riqueza ou a aceitação das normas do grupo, mas o
preço dessa acomodação é a neurose. Ou então podemos
estar vivendo um falso mito como: “preciso ser sempre a
criança boazinha, evitando a raiva e servindo aos outros”.
Essa imago orientadora pode estar tão profundamente
inconsciente a ponto de termos sempre reagido dessa
maneira e dificilmente podermos conceber outra. Nem o
conformismo exterior nem a aquiescência interior apoia
a totalidade. Com efeito, repetidamente nos é dito para
servirmos o Exterior, e quando acontecer a colisão, para
continuarmos servindo às expectativas programadas. Mais
uma vez a estabilidade da sociedade é satisfeita, mas à
custa do indivíduo. Em seu discurso à “Guild for Pastoral
Psychology”, em Londres, em 1939, Jung comentou que
somos forçados a escolher entre ideologias externas ou
neuroses particulares. Somente o caminho da individua-
ção poderia servir como alternativa viável.93 Isso ainda
é verdadeiro.
O conceito de individuação representa o mito de Jung
para a nossa época no sentido de conjunto de imagens que
guiam as energias da alma. Simplesmente descrita, a in­
dividuação é a imposição evolutiva de cada um de nós de
nos tornarmos a nós mesmos o mais completamente que
formos capazes, dentro dos limites que nos são impostos
pela nossa sina. Mais uma vez, a não ser que enfrente­
mos conscientemente nossa sina, ficaremos presos a ela.
Precisamos separar quem somos daquilo que adquirimos,
nosso senso do eu de facto porém falso. “Eu não sou o que
me aconteceu; eu sou o que escolhi tornar-me”. Precisamos
dizer conscientemente essa frase todos os dias para que
possamos nos tornar mais do que prisioneiros da nossa
sina. Esse dilema, e a necessidade de sermos conscientes,
foi expresso um tanto jocosamente na “Autobiography in
Five Short Chapters”, de autor anônimo:

93 “The Symbolic Life”, The Symbolic Life, CW. 18, § 632, 673-674.

133
I
Caminho pela ma.
Há um buraco fundo na calçada.
Eu caio dentro dele.
Estou perdido... Estou indefeso
Não é minha culpa.
É preciso a eternidade para conseguir sair.
II
Caminho pela mesma rua.
Há um buraco fundo na calçada.
Finjo que não o vejo.
Caio dentro dele de novo.
Não consigo acreditar que estou neste mesmo lugar.
Mas não é minha culpa.
Ainda é preciso um longo tempo para conseguir sair.
III
Caminho pela mesma ma.
Há um buraco fundo na calçada.
Eu vejo que ele está lá.
Ainda caio dentro dele... é um hábito... mas,
meus olhos estão abertos.
Eu sei onde estou.
E minha culpa.
Saio imediatamente.
IV
Caminho pela mesma ma.
Há um buraco fundo na calçada.
Dou a volta ao redor dele.
V
Caminho por outra ma.

Nunca saberemos com certeza o quão livres ou deter­


minados realmente somos, mas somos obrigados, como nos
fazem lembrar os existencialistas, a agir como se fôssemos
livres. Esse ato restaura a dignidade e o propósito para
a pessoa que de outro modo continuaria a sofrer apenas
como vítima. Partindo de New York, um piloto que corrija
o curso de um 747 apenas em poucos graus chegará ou
à Europa ou à África. Nós também, mesmo com peque­
nas correções, podemos realizar enormes mudanças em
nossa vida. Para empreendermos esse projeto não há

134
como escaparmos do compromisso diário de permanecer
em contato com o que vem de dentro de nós. Como Jung
explicou, o indivíduo
possui uma existência inconsciente a priori, mas existe
conscientemente apenas na medida em que uma consciência
da sua natureza peculiar esteja presente...
E necessário um processo consciente de diferenciação,
ou individuação, para trazer a individualidade à consciência,
ou seja, para elevá-la acima do estado de
identificação com o objeto.94

A identificação com o objeto a que Jung se refere é


inicialmente a nossa identificação com a realidade dos
pais, e mais tarde com a autoridade dos complexos paterno
e materno e com as instituições da sociedade. Enquanto
permanecermos basicamente identificados com o mundo
exterior, objetivo, estaremos separados da nossa realidade
subjetiva. É claro que somos sempre seres sociais, mas
somos também seres espirituais com um telos ou um mis­
terioso propósito individual. Embora permanecendo fiéis
aos relacionamentos externos, precisamos nos tornar mais
completamente a pessoa que fomos destinados a ser. Com
efeito, quando mais diferenciados nos tornarmos como
indivíduos, mais fecundos serão nossos relacionamentos.
Jung declara:
Como o indivíduo não é apenas um ser isolado
e separado, mas através da sua própria existência pressupõe
um relacionamento coletivo, segue-se que o processo
de individuação precisa conduzir a relacionamentos
coletivos mais intensos e mais amplos, e não ao
isolamento.95

O paradoxo da individuação é que favorecemos melhor


o relacionamento íntimo ao nos tomarmos suficientemente
desenvolvidos em nós mesmos para não precisarmos nos
alimentar dos outros. Analogamente, somos mais úteis à
94 “Definitions,” Psychological Types, CW 6, §. 755. (Tipos Psicológicos
- OC VI).
95Ibid., §. 758.

135
nossa sociedade sendo indivíduos, contribuindo à dialética
necessária para a saúde de qualquer grupo. Cada peça
do mosaico social contribui melhor para a riqueza da sua
coloração ímpar. Permanecemos socialmente mais úteis
quando temos algo especial, nosso eu mais pleno possível,
a oferecer. Mais uma vez Jung:
A individuação arranca a pessoa do conformismo
pessoal e consequentemente da coletividade. Esta é a
culpa que a pessoa que passa pelo processo de individuação
deixa atrás de si para o mundo, essa é a culpa
que ele precisa se esforçar para redimir. Ele precisa
oferecer um resgate em seu lugar, ou seja, ele precisa
trazer à tona valores que sejam um substituto equivalente
para sua ausência na esfera pessoal coletiva.96

Desse modo, a preocupação com a individuação não


é narcisista; é a melhor maneira de servir à sociedade e
apoiar a individuação de outras pessoas. O mundo não é
servido por aqueles que se alienam de si mesmos e dos
outros, nem por aqueles que com sua dor causam dor
nos outros. A individuação, como conjunto de imagens
orientadoras que constituem ao mesmo tempo a meta e o
processo, é útil à pessoa que, por sua vez, contribui para a
cultura. “A meta é importante apenas como ideia”, escreve
Jung, “o essencial é a opus que conduz à meta: essa é a
meta de toda uma vida”.97
Quando agarramos o leme no convés do capitão, mal
conhecendo nosso rumo, sabendo apenas que a coisa precisa
ser feita, vivemos a grande aventura da alma. No final
das contas, é a única jornada que vale a pena empreen­
der. A tarefa da primeira metade da vida é fortalecermos
suficientemente o ego para deixarmos nossos pais e in­
gressarmos no mundo. Essa força toma-se disponível na
segunda metade para a mais ampla jornada da alma. O
eixo então se desloca do sentido ego-mundo para o ego-
96 “Adaptation, Individuation, Collectivity”, The Symbolic Life, CW 18,
§ 1095.
97 “The Psychology of the Transference”, The Practic of Psychotherapy,
CW 16, § 400. (A Prática da Psicoterapia - OC XVI).

136
Si-mesmo e o mistério da vida desabrocha de maneiras
sempre renovadas. Não se trata de uma negação da nossa
realidade social e sim de um restabelecimento do caráter
essencialmente religioso da nossa vida. Por conseguinte,
Jung sugeriu que precisamos indagar de uma pessoa
se ela está ou não ligada a algo infinito.
Esta é a poderosa pergunta da sua vida... Se
compreendermos e sentirmos que nesta vida já temos um
vínculo com o infinito, nossos desejos e nossas atitudes
sofrem uma transformação. Numa análise final, só
valemos alguma coisa por causa do essencial que personificamos,
e se não personificarmos isso, a vida será
desperdiçada.98

A capacidade de enfrentar, num relacionamento, aqui­


lo que é maior do que o nosso ego significa ser enformado e
transformado por isso. Os sacerdotes inscreveram a seguin­
te advertência na entrada do templo de Apoio em Delfos:
“Conhece-te a ti mesmo”. De acordo com um antigo texto,
a entrada da câmara interior tinha a seguinte inscrição
colateral: “Tu és”. Essas exortações captam bem a dialética
individual. Precisamos nos conhecer mais plenamente e
nos conhecer no contexto do mistério maior.

98Memories, Dreams, Reflections, p. 325.

137
6

SOZINHO EM ALTO-MAR

Cada um de nós é chamado a individuar-se, embora


nem todos escutemos ou atendamos ao chamado. Se não
zelarmos pelo nosso processo individual, nossa jornada,
estaremos nos arriscando a rejeitar as forças vitais que
deram origem à nossa encarnação, e perder o nosso sen­
so de significado. Já que estamos, de qualquer modo, no
alto-mar da alma, por que não sermos o mais conscientes
e corajosos que nos for possível?
Este último capítulo apresenta uma série de atitu­
des e práticas que podem ser empregadas por qualquer
pessoa. Sem desprezar a utilidade de um relacionamento
terapêutico formal, o que segue se destina tanto àque­
les que escolham não fazer terapia quanto àqueles que
decidam fazê-la.

Da solidão à solitude

A poetisa americana Marianne Moore escreveu certa


vez que “a melhor cura para a solidão é a solitude”.99 O
que ela quer dizer com isso? Qual a diferença entre soli­
dão e solitude?

The Complete Prose of Marianne Moore, p. 96.

13 8
A solidão não é uma descoberta contemporânea,
nem a fuga dela. O filósofo do século dezessete, Blaise
Pascal, observou na sua obra Pensées que o bobo da corte
foi inventado para divertir o rei, afastando-o da solidão,
pois, embora rei, se pensasse em si mesmo ficaria per­
turbado e ansioso. Assim, argumentou Pascal, toda a
cultura moderna era um vasto divertissement destinado
a nos manter afastados da solidão e de pensarmos em
nós mesmos.100 Analogamente, Nietzsche escreveu há
cem anos: “Quando estamos sozinhos e quietos temos
medo de que algo vá ser sussurrado ao nosso ouvido, e
portanto odiamos o silêncio e nos entorpecemos com a
vida social”.101
Não podemos começar a curar ou desenvolver a nos­
sa alma sem uma vivida apreciação do relacionamento
com o Si-mesmo. Alcançar isso requer solitude, o estado
psíquico no qual nos encontramos totalmente presentes
a nós mesmos. A seguir estão relacionadas algumas das
questões que precisam ser confrontadas para que nos
desloquemos da solidão para a solitude.

Absorvendo o trauma da separação


É difícil apreciar totalmente tanto o trauma do nasci­
mento, que é separação primordial, quanto o efeito total do
relacionamento entre os pais e o filho. Quanto mais benéfico
esse relacionamento, mais a pessoa será autossuficiente
e se sentirá à vontade com a solitude. Paradoxalmente,
quanto mais problemático o relacionamento com os pais,
mais dependente será a pessoa nos seus relacionamentos
de modo geral. Quando mais volátil o ambiente familiar
inicial, mais a pessoa aprende a se autodefinir somente
em função do Outro. Jung colocou os pais numa situação
difícil quando escreveu que eles “devem sempre ter cons­
ciência do fato de que são a principal causa da neurose de

100Pensées, p. 39.
101 The Portable Nietzsche, p. 164.

139
seus filhos”.102Cito aqui esse comentário não para instilar
a culpa nos pais, e sim para nos lembrarmos de quanto
fomos definidos por eles e pelos seus substitutos, como as
instituições sociais.
Para que avancemos em direção à necessária solitude
na qual a individuação pode ter lugar, é preciso que inda­
guemos conscientemente todos os dias: “De que maneira
estou tão amedrontado a ponto de evitar a mim mesmo, a
minha própria jornada?” O adulto co-dependente aprendeu
a evitar seu próprio ser. O clichê “entrar em contato com
nossos próprios sentimentos” na verdade pede que nos
definamos a partir de uma realidade interior em vez de
um contexto exterior. Precisamos ainda fazer indagações
a repeito das nossas reações diante de outras pessoas:
“Onde está o meu pai oculto?” — podemos então atuar a
partir da integridade pessoal. Quanto mais traumática
a infância, mais infantil é o nosso senso de realidade. E
extremamente difícil conhecer a nossa realidade e operar
a partir da sua linha de base. Arriscar sentirmos solidão
para alcançar a sensação de união com nós mesmos que
chamamos de solitude é fundamental para que sobrevi­
vamos à passagem do meio.

A perda e a retirada das projeções


Grandes perdas frequentemente ocorrem na meia-
idade: as crianças vão embora, amigos morrem, o divórcio
causa devastação. A perda desse Outro necessário pode
ser tão existencialmente aterrorizante quanto a perda
da mãe ou do pai seria para a criança. Além de angústia,
o adulto também sente uma perda de identidade. (Uma
canção popular lamenta: “Não posso viver se viver for
sem você...”) Isso nos mostra o quanto da nossa vida foi
apanhado nas projeções de significado e identidade sobre
o Outro, seja o cônjuge, o filho ou a persona. Sim, algumas

102“Introduction to Wickes’s ‘Analyse der Kinderseele’”, TheDevelopment of


Personality, CW 17, § 84. (O Desenvolvimento da Personalidade - OC XVII).

140
pessoas se sentem liberadas com um divórcio ou a partida
de um filho, mas muitas não. O fundamental é honrar o
relacionamento sentindo sua perda, porém reconhecendo
ao mesmo tempo que tivemos o tempo todo um compromisso
maior do que qualquer relacionamento isolado.
Uma pessoa que tenha sofrido uma perda e a retirada
das projeções terá lutado contra as dependências que nos
perseguem a todos, mas também terá feito a pergunta
seguinte: “Que parte do meu eu desconhecido estava amar­
rada àquela pessoa ou àquele papel?” Quando podemos
reconhecer a perda e recuperar a energia que investimos
certa vez fora de nós mesmos, ela se torna disponível para
o estágio seguinte da jornada.

Ritualizando o medo
As pessoas têm tanto medo da solidão que se agarram
a terríveis relacionamentos e profissões tolhedoras em vez
de arriscar sofrer as consequências de renunciar ao Outro.
No final, não existe nenhum substituto para a coragem
necessária para enfrentarmos a solidão. Aquele algo que
Nietzsche sugeriu que temíamos escutar pode ser útil e
libertador. Mas jamais ouviremos essa voz interior se não
nos arriscarmos a enfrentar a solitude. Algumas pessoas
consideram útil delinear um ritual diário de significado
particular que as obrigue a se sentar calmamente, longe
do telefone, dos filhos, de tudo enfim, e ouvir o silêncio.
Esse ritual poderá parecer no início fatigante e artificial,
mas ater-se a ele permitirá que o silêncio fale. Quando não
nos sentimos solitários por estarmos sozinhos, é porque
alcançamos a solitude. O medo nos mantém afastados
desse encontro essencial com nós mesmos.
O objetivo de um ritual é ligar a pessoa aos ritmos
mais vastos da vida. Quando são passados de geração em
geração, os rituais se transformam numa rotina e perdem
seu poder original. Este é um motivo ainda maior para
que o indivíduo gere um ritual de importância pessoal,
investindo-o com a mesma energia anteriormente dedicada

141
às dependências. A meta é paralisar o tráfego da mente,
o agrupamento neurótico que alaga e distrai. Se tivermos
medo de ficar sozinhos, medo do silêncio, nunca poderemos
realmente estar presentes a nós mesmos. A autoalienação
é em grande parte a condição do mundo moderno e só pode
ser mudada pela ação individual.
Assim, numa parcela de cada dia, é bom arriscarmos
ficar radicalmente presentes a nós mesmos, seguir um
tranquilo ritual para nos libertarmos do tráfego lá fora e do
tráfego aqui dentro. Quando o silêncio fala, conquistamos
a nossa própria companhia, saímos da solidão e avança­
mos em direção à solitude, um pré-requisito necessário
à individuação.

Entrando em contato com a criança perdida


As influências do início da infância sobre a primeira
idade adulta há muito foram constatadas pelos psicólogos.
Mas pouca atenção tem sido dada à essa primeira expe­
riência como fonte potencial de cura durante a passagem
do meio.
Não temos apenas uma única criança interior, talvez
ferida, assustada, co-dependente ou com sua compensação
recolhida, mas sim um grande número de crianças, um ver­
dadeiro jardim-da-infância, inclusive o palhaço da turma,
o artista, o rebelde, a criança espontânea em harmonia
com o mundo. Praticamente todas foram negligenciadas
ou reprimidas. A terapia é portanto frequentemente esti­
mulada quando recobramos uma ideia da presença delas.
Sem dúvida é uma maneira de encarar a observação de
Jesus que precisamos tornarmo-nos crianças para entrar
no Reino dos Céus.
Sem dúvida, também, temos de lidar com nossa criança
narcisista, nossa criança ciumenta, nossa criança raivosa,
cujos rompantes são amiúde embaraçosos e destrutivos.
Mas é mais provável que tenhamos esquecido a liberdade,
a encantadora ingenuidade, até mesmo a alegria, da vida

142
vivida vigorosamente. Uma das experiências mais corro­
sivas da meia-idade é a sensação de futilidade e falta de
alegria que chega com a rotina. E, francamente, a criança
livre que todos temos dentro de nós raramente é bem-vinda
no escritório, e talvez nem mesmo no casamento.
Assim, acima de tudo, se quisermos curar a nós
mesmos, teremos de perguntar o que a nossa criança
espontânea e saudável deseja. Para alguns, o encontro
com a criança livre está fácil; para outros, o trabalho será
difícil, tão profundamente enterrada está essa essência
rejeitada. Quando Jung experimentou a passagem do
meio, ele se sentou nas praias do lago de Zurique e cons­
truiu castelos de areia, brincou com figuras de brinquedo,
esculpiu e moldou rochas, colocando seu rico intelecto e
intuição em contato com as regiões negligenciadas da
alma.103 Seus vizinhos podem ter achado que ele ficara
louco, mas Jung sabia que quando estamos imobilizados
somos salvos pelo que está dentro de nós. Se essa criança
livre não for abordada conscientemente, ela irromperá
inconscientemente e amiúde de forma destruidora. Essa
é a diferença entre nos tornarmos como as crianças, ou
seja, entrarmos em contato com nossa criança interior, e
sermos infantis.
Na meia-idade precisamos finalmente perguntar a
essa criança interior o que ela deseja. Uma orientação
natural diante do mundo e os muitos talentos, interes­
ses e entusiasmo que a acompanham foram deixados
para trás durante a construção do ego na primeira idade
adulta. Somos recompensados pela especialização, não
apenas no trabalho como também nos relacionamentos
íntimos. O talento deixado para trás tem poder curativo
quando trazido à tona e utilizado. Considerando o caráter
caleidoscópico do Si-mesmo, apenas algumas faces serão
vividas. Esse aspecto incompleto faz parte da tragédia
existencial: mas quando mais ela puder ser vivida, mais
fecunda será nossa vida.

i°3 Memories, Dreams, Reflections, pp. 170ss.

143
Já comentamos como o fluxo do sentimento é fre­
quentemente bloqueado pelo tédio ou pela depressão na
meia-idade. Na verdade, isto significa realmente dizer
que a nossa natureza está excessiva e estreitamente
canalizada e foi obstruída. Onde existe divertimento
existe a força vital. Por que tantas cenas amorosas nos
filmes mostram o casal se balançando nos balanços dos
parques ou brincando na praia, na espuma das ondas,
agindo novamente como crianças? Esse clichê também
tem sua verdade. A necessidade e a esperança de res­
tabelecer o vínculo com a nossa criança livre motiva o
relacionamento emergente.
A passagem do meio nos oferece uma oportunidade
incomparável de indagar: “O que a minha criança inte­
rior apreciaria?” Volte atrás e tenha aulas de música;
inscreva-se naquela aula de arte, que se dane o talento;
redescubra a brincadeira. Um amigo meu que entrevistava
aposentados me disse certa vez que nunca ouvira alguém
dizer que desejaria ter passado mais tempo no escritório.
Podemos ainda cumprir nossas obrigações externas, no
trabalho e nos relacionamentos, mas precisamos dedicar
algum tempo à criança perdida.

A vida apaixonada
Quando perguntavam a Joseph Campbell como
deveriamos viver, ele gostava de responder: “Siga a sua
felicidade”.104Ele compreendia como na maioria das vezes
vivemos de acordo com os ditames dos nossos pais e da
nossa cultura, perdendo a nossa melhor parte ao longo do
caminho. Algumas pessoas têm problemas em relação à
palavra “felicidade”, igualando-a ao narcisismo ou a uma
viagem espacial irrealista. Na minha opinião ele está se
referindo à jornada da alma, inclusive a todo o sofrimen-

104Ver, por exemplo, This Business o f the Gods, pp. 104-108.

144
to e sacrifício que ela envolve. Pessoalmente estou mais
inclinado a dizer: “Siga a sua paixão”.
A paixão é o que nos alimenta e, como a vocação,
é mais uma convocação do que uma escolha. Quando
ingressava na sua décima década de vida, perguntaram
ao escultor Henry Moore como era capaz de continuar
tão fecundo e ele respondeu que sua paixão era tão
grande que ele jam ais poderia destruí-la totalmente.105
Analogamente, Yeats escreveu poesia até mesmo em seu
leito de morte. No seu último ano de vida ele descreveu
a si mesmo como “o velho feroz e perverso”.106E o ro­
mancista grego Kazantzakis aconselhava: “Não deixe
nada, além de uns poucos ossos, para a morte levar”.107
Estou citando figuras literárias não apenas porque elas
deixam um rastro no papel, mas também porque o ar­
tista se encontra o tempo todo ao lado do fogo. Qualquer
pessoa que já tenha tentado ser genuinamente criativa
sabe como isso é difícil, como o sofrimento é inevitável
e, contudo, como pode ser satisfatória a sensação de
progresso e conclusão.
Somos convidados a descobrir a nossa paixão na pas­
sagem do meio. E imperativo descobrirmos o que nos atrai
tão profundamente em direção à vida e à nossa própria
natureza e chegamos a sentir dor, pois essa experiência
nos transforma.
Podemos, como acreditam os seguidores da reen-
carnação, retornar e ter outras oportunidades de des­
cobrir diferentes possibilidades, mas, mesmo então,
será outra vida, não esta. Somos chamados a viver o
mais plenamente possível esta vida atual. Não podemos
nos aproximar da morte e da enfermidade hesitantes
e envergonhados, lamentando nosso passado. Se esta­
mos aqui para sermos totalmente nós mesmos, este é
certamente o momento.

105 Roger Berthound, The Life o f Henry Moore, p. 420.


106The Collected Poems ofW. B. Yeats, p. 307.
107 The Saviors ofGod, p. 102.

145
Descobrir e seguir a nossa paixão não significa neces­
sariamente partir, como Gauguin o fez para o Taiti, pois
temos compromissos com a honra, com as pessoas cuja
vida é afetada pelas nossas decisões, e algo a ser dito em
prol de mantermos um curso diante do qual temos uma
responsabilidade moral.
Apesar disso, ainda somos obrigados a viver a nos­
sa paixão para que a nossa vida não continue sendo trivial
e provisória, como se algum dia tudo fosse se esclarecer
e as escolhas fossem se tom ar fáceis. A vida raramente é
clara e fácil; e contudo a escolha é o que define e confirma
a vida.
O inimigo é o medo das nossas profundezas. Não sen­
timos que temos permissão? Na meia-idade a permissão
deve ser agarrada e não solicitada. O medo, e não outras
coisas, é o inimigo. Mas se sentirmos medo da nossa pro­
fundidade, das nossas capacidades apaixonadas, devemos
ter ainda mais medo da via universal.
Eis alguns importantes axiomas:
1) Vida sem paixão é vida sem profundidade.
2) A paixão, embora perigosa para a ordem, a pre­
visibilidade e às vezes para a sanidade, é a expressão da
força vital.
3) Não podemos nos aproximar dos deuses das pro­
fundezas arquetípicas, sem nos arriscarmos a enfrentar
a grandeza da vida que eles exigem e a paixão fornece.
4) Descobrir e seguir a nossa paixão favorece a nossa
individuação.
Quando nos tomamos conscientes da grandeza da
nossa vida e nos estendemos além dos confins da infância
e do etnocentrismo, precisamos dizer sim à nossa jornada e
arriscar tudo. Rilke escreveu um poema intitulado “The Ar-
chaic Torso of Apollo”, no qual o orador examina um antiga
escultura, analisando cada rachadura e cada curva na pedra
finamente trabalhada. E então se dá conta de que, por sua
vez, está sendo “observado” pela escultura. O poema termina
com a repentina e chocante imposição: “Você precisa mudar

1 46
sua vida!”108A maneira como vejo isso é que uma vez que já
tenhamos estado na presença do verdadeiramente criativo,
do imaginativamente corajoso, não podemos aparentar in­
consciência. Somos analogamente convocados à grandeza da
alma, à intrepidez da ação. Descobrir e seguir a nossa paixão,
aquilo que nos toca tão profundamente, que fere ao mesmo
tempo que conforta, favorece a individuação, arrancando das
profundezas nosso potencial. Como acontece com a vocação,
o ego não está no comando; ele só pode fugir ou aquiescer.
“Não a minha vontade e sim a tua”. Viver apaixonadamen-
te nos renova quando a antiga vida se tomou trivial. Viver
apaixonadamente é a única maneira de amar a vida.

Os atoleiros da alma
A meta da individuação é a totalidade, a parte
dela que pudermos realizar, e não o triunfo do ego. Há vá­
rios anos deixei perplexa uma turma a quem eu lecionava
de manhã cedo ao comentar que se vivermos muito, todos
aqueles a quem amamos nos deixarão. O corolário é que
se não vivermos muito, somos nós que os deixaremos.
Embora a lógica dessa declaração seja indiscutível,
houve uma reação moderada por parte da turma, que con­
tinha um protesto velado. E claro que esse protesto não
é oriundo da mente cognitiva e sim da criança interior
que precisa que o Outro sempre esteja presente. A perda
do que desejamos é uma derrocada para o ego, do mesmo
modo como a destruição das suposições da primeira idade
adulta nos lança relutantemente em direção à passagem
do meio. Uma dessas ilusões maiores é que existe uma
Ultima Thule denominada Felicidade, um estado real que
pode ser descoberto e no qual podemos viver permanen­
temente. Lamentavelmente, nossa sorte frequentemente
envolve chafurdarmos nos atoleiros de lama, vitimados
por seus sinistros habitantes.

108Selected Poems ofRainer Maria Rilke, p. 147.

147
Os habitantes do pântano são a solidão, a perda, o des­
gosto, a dúvida, a depressão, o desespero, a ansiedade, a culpa
e a traição, para os iniciantes. Porém, felizmente, o ego não é
o comandante todo-poderoso que supõe ser. A psique tem um
propósito que está além dos poderes do controle consciente, e
nossa tarefa é transpor esses estados e descobrir o seu signi­
ficado. O desgosto, por exemplo, é a ocasião de reconhecermos
o valor do que foi vivenciado. Como houve a experiência, ela
não pode ser totalmente perdida. Ela fica retida nos ossos e
na memória, para servir e guiar a vida que está para vir. Ou
então analisemos a dúvida. A necessidade foi chamada de mãe
da invenção, mas a dúvida é que na verdade o é. Ela pode ser
ameaçadora na sua abertura, mas a dúvida se abre mesmo
assim. Todos os grandes avanços no entendimento humano
surgiram da dúvida. Até mesmo a depressão traz uma men­
sagem proveitosa, a de que algo vital foi “comprimido”.
Em vez de fugir do atoleiro, somos convidados a
avançar e ver a vida incipiente que nos aguarda. Cada
uma dessas regiões pantanosas representa uma corrente
da psique cujo significado pode ser encontrado se formos
suficientemente corajosos para segui-la. Quando o navio
da passagem do meio se agita no pântano, precisamos per­
guntar: “Qual o significado disto? O que minha psique está
tentando me dizer? O que devo fazer a esse respeito?”
É preciso coragem para enfrentar diretamente nos­
sos estados emocionais e dialogar com eles. Mas é aí que
repousa a chave da integridade pessoal. Nos atoleiros da
alma existe o significado e o chamado para a ampliação
da consciência. Assumir isso é a nossa maior responsabi­
lidade na vida. Somente nós podemos agarrar o leme do
navio. E, quando o fazemos, o terror é compensado pelo
significado, pela dignidade, pelo propósito.

A grande dialética
Jung empregou uma dessas palavras-chave alemãs,
Auseinandersetzung para descrever o diálogo necessário

148
com nós mesmos. Poderiamos traduzir o conceito como
“dispor uma coisa contra a outra”, descrevendo figurati-
vamente uma confrontação ou dialética. E o que ocorre,
por exemplo, entre analista e cliente, bem como dentro
do inconsciente de cada um deles.
Como deve esse diálogo ser promovido? Já foram
sugeridas as perguntas cotidianas: “Quem sou eu nesta
situação e que voz(es) eu escuto?”, bem como a meditação
diária e talvez uma forma mais ativa de reflexão, como
escrever um diário.
Sugeri no início deste livro que a nossa visão do mundo
se assemelha a olharmos através do prisma da infância e
da cultura, uma lente que refrata a luz e distorce a nossa
visão. Certas experiências da vida são interiorizadas e re­
forçadas, separadas, e depois afirmam seu controle sobre o
presente quando, como complexos, invadem e dominam a
consciência. Somos levados, então, em direção a uma per­
gunta óbvia: “Quem sou eu se não sou nem meu ego nem
meus complexos?” Para lidar com esse dilema precisamos nos
aventurar na grande dialética. Quando nos deslocamos do
eixo do ego-mundo, que anima e preocupa a primeira parte
da vida, é-nos exigido que estabeleçamos o diálogo entre o
ego e o Si-mesmo. Este último, como já vimos, manifesta seu
propósito maior através de muitas incitações. Quer estas
sejam somáticas, afetivas ou imaginais, todas são expressões
da nossa necessidade de retomar a nossa trajetória.
Talvez a técnica mais útil através da qual possamos
participar do diálogo interior é trabalhar os nossos
sonhos. Vivemos numa cultura que veio a desprezar a
vida interior e que portanto vê pouco valor nos sonhos.
Mas a psique fala através das imagens dos sonhos,
imagens que podem ser grotescas para o ego, mas que
encarnam as energias e a teleologia do Si-mesmo. Quan­
do conseguimos discernir o significado das imagens
passamos a ter acesso a uma sabedoria incrivelmente
rica, cujas inclinações não encontraremos em nenhum
livro ou instituição. Ela é nossa verdade e a de mais
ninguém. Se pudermos acompanhar e compreender

149
pelo menos alguns dos nossos sonhos, seremos mais
capazes de saber o que é certo para nós, para onde a
nossa verdadeira natureza está nos chamando. Em
nenhum outro lugar encontraremos uma informação
tão precisa a respeito de nós mesmos quanto nessa
fecunda mitologia pessoal que nos é apresentada a
partir das profundezas noturnas.
Jung também desenvolveu uma técnica denominada
imaginação ativa. Ela não se assemelha ao método da
livre associação de Freud nem é uma forma de meditação.
Trata-se de uma maneira de ativar uma imagem, seja
através da pintura, do trabalho com argila, da dança
ou de qualquer outra coisa, a fim de estabelecer um
relacionamento com a carga emocional que ela conduz.
Este tipo de Auseinandersetzung não apenas ajuda a
consciência a descobrir um significado nas imagens do
sonho, como também promove o diálogo entre o ego e
o Si-mesmo.
No exercício da minha profissão, escuto cerca de
quarenta sonhos por semana. Com o passar do tempo,
passamos a reconhecer motivos que se repetem. Não
obstante, exatamente quando o ego acha que tudo
está esclarecido, a psique faz uma curva e confunde o
entendimento. Esse trabalho é humilhante, mas não
existe nada mais enriquecedor, pois nos vemos num
relacionamento direto com a alma, com o misterioso
propósito do cosmos trabalhando em nós e através de
nós. Dentre as centenas de exemplos de sonhos que
qualquer terapeuta analítico podería oferecer, apresento
aqui dois deles, reconhecidamente mais narrativos e
coerentes do que muitos.
O primeiro sonho foi o de uma mulher de quarenta
e dois anos que havia voltado à faculdade depois de criar
os filhos. Ela estava compreensivelmente insegura, pois
já estava ausente da sala de aula há muitos anos. Logo
no início do curso ela se apaixonou fortemente pelo pro­
fessor X. Depois de já estar apaixonada há vários meses,
ela teve o seguinte sonho:

150
Estou caminhando pelo corredor e vejo a professora Y na sua
sala. Ela me convida a entrar. Estranhamente, ela tem um pênis
e temos relações no chão da sua sala com a porta ainda aberta.
Fico chocada, mas sinto que está tudo bem. Depois, caminho
novamente pelo corredor e vejo o professor X vindo na minha
direção.
Sorrio intencionalmente, o que o deixa perplexo, e passo por
ele.

A mulher ficou envergonhada com o sonho e hesitou


em trazê-lo à baila durante a sessão de terapia, por te­
mer sua fraqueza e sua sugestão do amor entre pessoas
do mesmo sexo. Com efeito, o sonho foi muito positivo,
demonstrando que uma página havia sido virada. Sua
paixão pelo professor X havia representado tudo que até
aquele ponto não estava desenvolvido na vida dela — seu
animus, sua necessidade de ter uma carreira e novas
perspectivas. A professora Y, que ela só conhecia de vista,
era para minha cliente o modelo de uma mulher que havia
desenvolvido seu animus, mas que também havia retido
grande parte da sua feminidade. Assim, no nível subjetivo,
ter relações sexuais com a professora Y dizia respeito, na
verdade, à ligação, à integração dos princípios masculino
e feminino dentro de si mesma. Tendo a ligação ocorrido
no seu inconsciente através do ato sexual, ela pôde então
conhecer alguma coisa especial a respeito de si mesma, o
que tornou desnecessária a projeção sobre o professor X.
Trabalhar simbolicamente com o sonho, e discutir a res­
peito de como seria ter esse equilíbrio de opostos dentro
de si, deu à minha cliente uma ideia melhor da sua tarefa
evolutiva pessoal.
Um homem de trinta e seis anos sonhou que havia
chegado a uma bela mansão onde a peça de Shakespeare
Sonho de uma noite de verão estava sendo representada
como uma espécie de balé erótico. Pediram-lhe que par­
ticipasse da dança, o que ele fez até um telefonema da
mãe insistindo com ele para que voltasse para livrá-la de
uma dificuldade. No final do sonho ele estava furioso com

151
sua mãe por ter interrompido o que ele queria fazer, mas
sentia-se compelido a ceder ao pedido dela.
Na vida real meu cliente havia colocado um continente
entre ele e a mãe, mas psicologicamente ainda vivia com
ela. Ele sofria repetidamente de depressão, soterrado como
estava por uma anima negativa, e temia se comprometer
nos relacionamentos. O Si-mesmo lhe apresentara o sonho
como um presente, um mapa que delineava seu terreno
interior. Por mais que tivesse viajado geograficamente,
ele ainda estava “se apresentando” à sua mãe, ainda era
vítima de uma infância oprimida. Nesse ínterim ele sen­
tia falta da “dança da vida”, que era sua associação com
o balé shakespeareano. O poder das imagens confirmava
a extensão da sua ferida bem como suas consequências.
Resumindo, o sonho realçou sua necessidade de se liber­
tar do complexo materno e liberar sua anima, que Jung
definia como “o arquétipo da própria vida”.109
Quanto mais vemos esses dramas diários, mas pas­
samos a acreditar nesse misterioso poder interior que
Jung chamava de Eu. Não estamos, neste vasto universo,
privados de ajuda, vazios de significado. Possuímos um
inconsciente rico e ressonante que nos fala através da
sintomatologia da vida cotidiana bem como através da
espuma dos sonhos e da imaginação ativa. Nossa tarefa
na passagem do meio é cooperar, fazer as seguintes per­
guntas a respeito das imagens dos sonhos: “De que parte
de mim elas vêm, quais são minhas associações e o que
elas dizem a respeito da minha conduta?”
A única maneira de verdadeiramente revermos o nosso
senso do eu é mantendo esse tipo de diálogo entre o ego e
o Si-mesmo. Não precisamos estar fazendo uma terapia
formal, só precisamos de coragem e da disciplina diária
para “escutar o interior”. Quando somos capazes de conter
e integrar o que aprendemos, não nos sentimos solitários

109 “Archetypes of the Collective Unconscious”, The Archetypes and the


Collective Unconscious, CW 91, § 66.

152
em nossa solidão. Quando conseguimos interiorizar nosso
diálogo, ao mesmo tempo que mantemos nossos contatos
com o mundo exterior, experimentamos então a ligação
com o mundo da alma anteriormente proporcionada pelos
mitos e religiões da antiguidade. Aprendemos novamen­
te o que nossos antepassados sabiam, que a escuridão é
luminosa, que o silêncio fala. Quando temos a coragem e
a disciplina de nos voltarmos para dentro, de vivenciar a
grande dialética com a alma, recuperamos o nosso apoio
no eterno.

Memento mori

Jeremy Bentham, o filósofo social e economista in­


glês do século dezenove, era, segundo todos os padrões,
homem brilhante. Até alguns anos atrás, se estivéssemos
entre os eleitos, poderiamos encontrá-lo, por assim dizer,
na London School of Economics. Bentham, ao que tudo
indica, deixou uma soma no seu testamento destinada à
realização anual de um jantar em sua homenagem. Foi
estipulado que Sua Mesmice Embalsamada deveria ser
conduzida numa cadeira de rodas e colocada na cabeceira
da mesa. Ficamos imaginando qual poderia ser a animada
conversa nesse jantar. Seria grosseiro comentar que o
anfitrião está um tanto ou quanto lívido?
A história de Jeremy Bentham reflete a cultura ociden­
tal. Com a erosão das bases míticas, com a transferência
do valor pessoal para a aquisição material e a posição
social, a cultura moderna passou a considerar a morte
como inimiga. Diz-se que a mortalidade é agora o único
tópico inadequado para ser discutido num coquetel. Como
observaram os analistas sociais Jessica Mitford (TheAme­
rican Way ofDeath), Ernest Becker (The Denial ofDeath)
e Elizabeth Kubler-Ross (OnDeath and Dying), os Estados
Unidos, em particular, têm um problema com o fato central
da vida, ou seja, que todos estamos morrendo.

153
Esse fato óbvio está carregado de implicações. Du­
rante a passagem do meio tanto o pensamento mágico da
infância quanto o pensamento heroico da primeira idade
adulta são substituídos pela percepção impiedosa do tem­
po e do finito. A mesma força, o eros, que nos traz à vida,
também nos consome. Como Dylan Thomas expressou
tão sucintamente, “a força que através da mecha verde
impulsiona a flor é a minha destruidora”.110 O eros verde
da juventude, como a mecha que consome a si mesma, é
confrontada na meia-idade com a atordoante noção da
sua mortalidade. Não devemos nos espantar, portanto,
com os homens mais velhos que fogem com “moças doces
e encantadoras”, com as mulheres que fazem tratamentos
de colágeno, com os enchimentos e fórmulas destinados
a esconder o avanço do tempo, com o suor e os gemidos
nos spas. E o medo de envelhecer e da morte que anima
esses comportamentos.
Por que queremos permanecer jovens? Entendo que
possa ser agradável trocar algumas partes do corpo por
outras mais flexíveis, mas por que iríamos querer voltar
a um passado imaturo? A resposta é clara e imediata,
ou seja, que não queremos assumir a vida como um de­
senvolvimento e sim como uma fixação, que não estamos
preparados para encará-la como uma série de mortes e
renascimentos, que não estamos realmente à altura da
plenitude da jornada e prefeririamos nos demorar um
pouco no que é conhecido e confortável. Assim, a cirurgia
plástica apaga as dragonas das campanhas da vida, e a
adolescência domina a cultura.
O mito grego de Titono gira em torno de um homem
que era imortal, mas que continuava a envelhecer fisica­
mente. Enquanto seu corpo murchava ele implorou aos
deuses que lhe concedessem a mortalidade, e seu pedido
foi atendido. É a história de Jeremy Bentham e de todos
nós. O tempo nos puxa para trás em direção à poeira.

110 “The Force That Through Green Fuse Drives the Flower”, Collected
Poems, p. 10.

15 4
É perfeitamente natural que nos sintamos angustia­
dos com a diminuição da energia e a ruína de tudo aquilo
que nos esforçamos para assegurar. Mas debaixo dessa
angústia existe um convite que envolve passarmos a mar­
cha para a parte seguinte da jornada, nos deslocarmos
da aquisição exterior para o desenvolvimento interior.
Vista a partir da perspectiva da primeira idade adulta, a
segunda metade da vida é um lento espetáculo de horror.
Perdemos amigos, cônjuges, filhos, posição social, e depois
a vida. Contudo, se for verdade, como o afirmam todas as
religiões, que os deuses intentam o que a natureza sabe,
precisamos aquiescer à sabedoria do processo. Em vez de
atuar a partir da perspectiva do jovem, que só consegue
imaginar a segurança em função do ego, certamente a
grande realização é adquirir uma força suficientemente
elástica para asseverar o ritmo maior de toda a duração
da nossa vida.
Tive o privilégio de tratar de algumas pessoas que
estavam morrendo de maneira mais consciente do que
quase todo mundo. Uma delas, Angela, sentou-se na
mesma sala em que estou sentado agora e disse: “Eu
gostaria que as coisas não estivessem acontecendo desta
maneira, mas isto é o melhor que já me aconteceu”. Ela
estava reconhecendo que o câncer que a consumia havia-a,
por fim, convocado para a vida. Ela levara uma vida boa,
responsável e honrada, mas nunca tinha conhecido a si
mesma. No decorrer da análise, ela ativou partes intocadas
de si mesma; aprendeu música, karatê e pintura. Fiquei
assombrado com a sua coragem e crescente benevolên­
cia, com sua sabedoria simples. Quando morreu, havia
alcançado algo maior do que ela mesma: a maravilhosa
humildade e grandeza da sua jornada. Esta pessoa que
me procurou em busca de ajuda tem-me ajudado muitas
vezes a partir de então.
O sofrimento da passagem do meio pode ser trans­
formado nessas vantagens. Ironicamente ganhamos uma
perspectiva sobre a perda, pois o abandono das antigas
certezas do ego nos abre para uma realidade muito maior.

155
Se fôssemos imortais, nada realmente teria importância,
nada realmente contaria. Mas não somos imortais, de
modo que cada escolha importa. E através das escolhas
que fazemos que nos tomamos humanos e descobrimos
o nosso senso pessoal de significado. O paradoxo, então, é
que o valor e a dignidade, o terror e a promessa da exis­
tência humana dependem da mortalidade. Foi isso que
Walace Stevens quis dizer quando observou que “a morte
é a mãe da beleza”.111A beleza surge do terror, bem como o
desejo de afirmar — certa quantidade de terror, a mesma
quantidade de beleza.
Sabemos que sobrevivemos à passagem do meio
quando não mais nos agarramos a quem éramos antes,
não mais buscamos a fama, a fortuna ou a aparência da
juventude. A ideia da vida como um lento arrebatar, a
inexorável experiência de uma perda insubstituível, se
transforma ao abandonarmos os antigos apegos do ego e
nos aprofundarmos cada vez mais dentro do mistério.
Como sempre, o poeta captou este paradoxo, observado
há dois mil anos por Jesus, que para ganhar a vida preci­
samos aprender a perdê-la. Na sua nona “Duino Elegy”,
Rilke assim se refere ao nosso ciclo mortal,
Você sempre esteve certo e sua sagrada
revelação é a íntima morte.
Veja, estou vivo. Em quê?
Nem a infância nem o futuro
diminuem... excesso de existência
está jorrando em meu coração.112

O paradoxo repousa no fato de que é somente renun­


ciando a tudo aquilo que buscamos que transcendemos
a ilusória garantia de segurança e identidade. Então,
muito estranhamente, o excesso da existência inunda o
nosso coração. Deslocamo-nos então do conhecimento da
mente, por mais importante que possa ser às vezes, para
a sabedoria do coração.

111 “Sunday Morming,” The Collected Poems ofWallace Stevens, p. 106.


112Duino Elegies, p. 73.

156
A pausa luminosa
Não conheço nenhuma definição da vida melhor do
que a de Jung, que diz que “a vida é uma pausa luminosa
entre dois grandes mistérios que contudo são um”.113 O
mistério que pode ser conhecido pela estreita faixa de
existência que chamamos de consciência não é certa­
mente todo o mistério. Nunca chegaremos ao dia em que
finalmente conseguiremos explicar, com certeza, toda a
jornada. Somos apenas chamados a vivê-la o mais cons­
cientemente possível.
O moderno poeta grego Cavafy captou o paradoxo,
que talvez a meta da jornada seja a própria jornada.
Seu poema se intitula “Itaca”, cidade que foi ao mesmo
tempo o local de partida e a meta de Ulisses, protótipo do
andarilho existente em todos nós. Depois de recomendar
a Ulisses que rezasse para que sua jornada fosse longa
e muitas as aventuras, o poeta o exorta a não apressar a
volta. E, se enfim chegasse ao porto da sua terra natal,
que se lembrasse de que
Itaca proporcionou-te a bela viagem.
Sem ela você jamais teria partido.
Mas ela nada mais tem para lhe dar.
E se você a encontrar pobre, Itaca não o enganou.
Com a grande sabedoria que você obteve, com tanta experiência
você certamente deve ter entendido então o que Itaca significa.114

Nossas ítacas não são locais de chegada ou lugares


de descanso, e sim energias que ativam e alimentam a
nossa jornada.
Durante a segunda metade da vida, quando quer que
ela chegue, o antigo mundo do ego ainda poderá exigir
fidelidade. Mas o nosso senso da realidade dependerá bem
menos dele. Apesar disso, a perda dos papéis coletivos é
uma espécie de morte, mas a renúncia consciente também
pode dar início a um processo de transformação que sere­

113Letters, vol 1, p. 483.


114 The Complete Poems of Cavafy, pp. 36-37.

157
mos sábios se favorecermos em vez de impedir. Depois de
virarmos essa página espiritual, grande parte das antigas
urgências do ego não mais parecerão importantes.
Um indício de que a pessoa não concluiu a passagem
do meio é o fato de ela ainda estar presa às atividades
construtoras do ego da primeira idade adulta. A pessoa
ainda não aprendeu que elas só representam projeções
sobre íncones finitos e falíveis. São ídolos ilusórios que,
embora necessários no início da vida, podem fazer mais
tarde com que percamos de vista a jornada. Esta últi­
ma, é claro, é simbólica, uma imagem do movimento,
do desenvolvimento, do eros sobre o thanatos, o esforço
de encarnar o significado. Nossa tarefa na meia-idade é
sermos suficientemente fortes para renunciar às urgên­
cias do ego na primeira metade e nos abrirmos a um
assombro maior.
A experiência da crise na meia-idade é o colapso,
não do nosso eu essencial, mas das nossas suposições.
Ao olharmos em volta para aqueles que já partiram,
naturalmente procuramos modelos, paradigmas de
comportamento e de atitude. A suposição é que se seguir­
mos o programa deles nos sentiremos um dia seguros
de quem somos e aprenderemos o significado da vida.
Quando constatamos que isso não é verdade, sentimo-nos
desiludidos, ansiosos e até mesmo traídos. Aprendemos
que ninguém sabe realmente o que a vida significa ou
o que são os mistérios. Aqueles que afirmam sabê-lo, ou
são mentirosos ou ainda estão presos à suas projeções,
na melhor das hipóteses estão demonstrando a verdade
deles e não a nossa. Sem gurus, portanto, pois o caminho
de cada pessoa é diferente.
Jung nos faz lembrar de que a dor que sentimos é o
sofrimento anímico daqueles que tentaram “se conten­
tar com respostas erradas ou inadequadas às questões
da vida”.115 Portanto, se reconhecermos que a nossa
vida está restringida, que os horizontes são limitados,

115Ver acima, nota 90.

158
nossos prismas primitivos, ou pularemos do navio ou
abraçaremos a jornada. Com relação àqueles que se pre­
ocupam com o impacto da sua jornada sobre os outros,
precisamos lembrar que a melhor maneira de ajudá-los
é vivermos a nossa própria vida tão claramente para que
eles fiquem livres para viver a deles. Jung sentiu que
isso era especialmente verdadeiro em relação a pais e
filhos. Rilke escreve:
Algumas vezes um homem se ergue durante o jantar
e caminha até o lado de fora, e continua a nadar,
por causa de uma igreja situada em algum lugar do leste.
E seus filhos rezam por ele como se estivesse morto.
E outro homem, que permanece dentro da casa dele,
fica ali, dentro dos pratos e dos copos,
para que seus filhos tenham de se pôr no mundo
em direção àquela mesma igreja, que ele esqueceu.116

Depois da passagem do meio ninguém pode dizer


aonde a jornada irá nos levar. Sabemos apenas que pre­
cisamos aceitar a responsabilidade por nós mesmos, que
o caminho tomado por outras pessoas não serve necessa­
riamente para nós, e que aquilo que em última análise
estamos buscando repousa dentro de nós e não lá fora.
Como sugeriu há séculos a lenda do Graal, “é vergonhoso
seguir o caminho que outros trilharam”.117 É somente a
partir do interior que percebemos as incitações da alma,
e é esta ênfase na verdade interior em vez de na exterior
que distingue a segunda idade adulta da primeira. Mais
uma vez, Jung nos lembra: “Apenas o homem que é capaz
de aceder conscientemente ao poder da voz interior torna-
se uma personalidade”.118
O ato da consciência é central; caso contrário, somos
devastados pelos complexos. E exigido do herói dentro de
cada um de nós que responda ao chamado da individuação.

116Selected Poems ofRainer Maria Rilke, p. 49.


117 Chrétien de Troyes, The Story ofthe Grail, p. 94.
lis arfhe Development of Personality”, The Development of Personality,
CW 17, par. 308. (O Desenvolvimento da Personalidade - OC XVII).

159
Precisamos nos afastar da cacofonia do mundo exterior e
escutar a voz interior. Quando pudermos ousar viver suas
incitações, alcançaremos a individualidade. Podemos nos
transformar em estranhos para aqueles que julgavam nos
conhecer, mas pelo menos não mais seremos estranhos
para nós mesmos.
A experiência consciente da passagem do meio re­
quer que separemos quem nós realmente somos da soma
das experiências que interiorizamos. Nosso pensamento
então se desloca do mágico para o heroico, e finalmente
para o humano. Nossas relações com as outras pessoas
tornam-se menos dependentes, exigindo menos delas e
mais de nós mesmos. Nosso ego sai perdendo e temos de
nos reposicionar em relação ao mundo exterior— carreira,
relacionamentos, fontes de fortalecimento e satisfação.
Ao exigir mais de nós mesmos, evitamos que os outros
fiquem desapontados por não fornecerem o que jamais
poderíam fornecer; reconhecemos que a responsabilidade
básica deles, assim como a nossa, é sua própria jornada.
Tornamo-nos cada vez mais conscientes do aspecto finito
do corpo e da fragilidade de todas as coisas humanas.
Se conseguirmos sustentar a nossa coragem, a pas­
sagem do meio nos trará de volta à vida depois de sermos
separados dela. É estranho que apesar de toda a ansiedade
também haja uma impressionante sensação de liberdade.
Podemos até vir a compreender que não importa o que
aconteça lá fora, desde que tenhamos uma ligação vital
com nós mesmos. O recém-descoberto relacionamento com
a vida interior mais do que equilibra as perdas exte-riores.
A riqueza da jornada da alma demonstra ser pelo menos
tão gratificante quanto a realização mundana.
Você se lembra da indagação central de Jung? “Es­
tamos ou não ligados a algo infinito?”119 Ou encarnamos
algo essencial ou nossa vida é desperdiçada. Uma grande
e misteriosa energia é encarnada na concepção, aguarda
um pouco e finalmente vai para outro lugar. Sejamos,

119Ver acima, nota 98.

160
portanto, afáveis anfitriões, aquiesçamos conscientemente
à pausa luminosa.
No final, mereçamos as palavras de Rilke como nosso
epitáfio:
Vivo minha vida em crescentes órbitas
que se deslocam sobre as coisas do mundo.
Talvez eu nunca alcance a última,
mas esta será a minha tentativa.
Circulo ao redor de Deus, ao redor da antiga torre,
e venho circulando há mil anos,
e ainda não sei se sou um falcão, ou uma tempestade,
ou uma grande canção.120

120Selected Poems ofRainer Maria Rilke, p. 13.

161
B IB L IO G R A F IA E S P E C IF IC A

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170
SUMÁRIO

9 Prefácio

11 1 A personalidade provisória

212 0 advento da passagem do meio


23 Pressões tectônicas e intimações sísmicas
28 Um novo tipo de pensamento
31 Mudanças na identidade
38 A retirada das projeções
44 Mudanças no corpo e na noção de tempo
46 A diminuição da esperança
48 A experiência da neurose

55 3 Voltando-se para o interior


58 O diálogo entre a persona e a sombra
62 Problemas de relacionamento
79 Casos amorosos na meia-idade
85 Do filho para os pais para o filho
100 A esfera profissional: emprego x vocação
103 A emergência da função inferior
108 Invasões da sombra

1114 Exemplos na literatura

129 5 Individuação:
o mito junguiano para a nossa época
138 6 Sozinho em alto-mar
138 Da solidão à solitude
139 Absorvendo o trauma da separação
140 A perda e a retirada das projeções
141 Ritualizando o medo
142 Entrando em contato com a criança perdida
144 A vida apaixonada
147 Os atoleiros da alma
149 A grande dialética
153 Momento mori
157 A pausa luminosa

163 Bibliografia específica


167 Bibliografia geral
P o r q u e gran d e n ú m ero de p esso a s p assa m p o r tan ta p er­
tu rb a çã o na m eia-id ad e? P o r que a c o n sid e ra m u m a crise ?
A p assa g e m d o m e io da vid a ap resen ta-n o s a o p o rtu n id a d e
de re e x a m in a r a n o ssa vid a e p ergu n tar: “Q u em sou eu,
p ara a lé m da m in h a h istó ria e dos p ap éis qu e rep resen tei?” .
Trata-se de o c a s iã o p ara re d e fin ir e re o rien ta r a p erso n a li­
dade, u m rito de p assa g em n e ce ssá rio entre a a d o lescên cia
p ro lo n g ad a n a p rim e ira id a d e a d u lta e o nosso in evitável
en co n tro co m a ve lh ice e a m o rta lid a d e. E ste livro m o stra
co m o p o d e m o s p e rc o rre r co n scie n te m e n te a m eia-id ad e,
to rn a n d o a vid a m a is sig n ifica tiv a e a se g u n d a m etad e da 0&
vid a im e n sa m e n te m ais rica.

JAMES HOLLIS é analista junguiano treinado em Zurique e


exerce a prática analítica em Filadélfia e Linwood, no estado
de Nova Jersey, onde reside. Escreveu e apresentou palestras
na América do Norte a respeito do mito, da religião e da psi­
cologia junguiana.

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