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Não existe razão alguma para que o analisando acredite que o analis-
ta é a mesma pessoa que no dia anterior. Tal crença é sintoma de rela-
cionamento conivente que pretende prevenir o aparecimento de um
vazio desconhecido, incoerente, informe, e de um sentido persecutório
associado pelos elementos de O evoluído.
1. Atualmente entendo essa ação como um pedido que me faz: que se abra para ele, mesmo que de
forma violenta, uma “porta” psíquica. Isso se dá pelo reconhecimento de que uma passagem se
faz, que uma cesura existe, e que pode organizar de uma forma melhor seu mundo interno.
Arnaldo Chuster
outras situações. Ele começa a falar algo assim: “parece que estou pensan-
do em...”, e despeja uma série de fatos a princípio desconexos. São vários
temas simultâneos, antecedidos sempre do refrão “parece que agora estou
pensando em...”; uma espécie de indicativo de que não é certo que esteja
pensando, mas, talvez, “vendo” ou “escutando”. Assim, fala, por exemplo,
do carro, do trabalho, da casa, do tempo e volta à seqüência, embora não
necessariamente na mesma ordem. Percebo que de algum modo tenta reto-
mar, com visível esforço, aos “raciocínios” (assim ele descreve os temas)
interrompidos pelo que parece ser uma dissociação. Quando não consegue,
fica visivelmente ansioso e faz um tipo de grunhido como se tivesse sugan-
do algo. Trata-se de uma espécie de automatismo. Certa vez lhe sugeri que
aquela situação toda, a sua forma interrompida de se comunicar e o ruído
gutural, poderia ser uma reminiscência do quanto tinha sido interrompido
pelos outros irmãos quando estava sendo amamentado pela mãe. A mãe
retornava, mas abalada com o tumulto à sua volta. Mas enquanto ela não
voltava, ele ficava sugando o vazio. Ele pareceu muito aliviado com tal
reconstrução, que registrava a percepção de uma falha da mãe (rêverie)
repercutindo dentro dele desde sempre. Era o tipo de falha que transporta-
va para outras relações, principalmente íntimas. Concordou comigo, fato
que não é freqüente, pois em geral ele não se manifesta sobre as interpreta-
ções, e quando surpreendentemente volta a falar nessa falha refere-se
“àquela coisa com minha mãe”.
Ainda quanto à sua forma de comunicação, observei a presença de um
certo ritmo nas “associações”. O ritmo se desfaz em determinados momen-
tos, de forma súbita, e é isso que o deixa muito ansioso. Ele se sente alivi-
ado quando consigo descrever a seqüência de problemas que estão implíci-
tos nas “associações”, isto é, se consigo estabelecer o ritmo em que elas
foram colocadas, pois quando isso acontece é como se abrisse o que vou
chamar de uma “janela psíquica”. Mas quando não consigo, o sofrimento
aparece na linguagem corporal, nas queixas de dores de cabeça, torcicolos,
gases, lacrimejamento, congestão nasal, lombalgias.
Também as interpretações descritivas do estado mental atual, relacio-
nando as “associações” a uma emoção comum, em geral angústia, parecem
ajudá-lo mais do que as de conteúdo.
Quando preciso esclarecer alguma coisa sobre o material, ele fica de-
solado. Parece acreditar que eu seja capaz de saber mais do que consigo.
Disse-lhe isso de diversas formas. Até hoje ainda continuo criando novas
formas de interpretar essa crença forte, que parece contrabalançar seu sen-
timento intenso de desamparo. No geral, diante de uma situação perma-
nentemente dissociada, nas quais o analisando reage às interpretações de
forma muito semelhante a uma criança autista, isto é, como se nada tivesse
sido dito, muitas vezes me ocorreu que não haveria nenhuma razão para
pensar que o processo pudesse chegar a algum lugar. Por outro lado, é de se
perguntar se eu deveria me ocupar disso, e que outra razão haveria para não
continuar.
Após muitos meses de trabalho, consegui reunir os fragmentos de sua
história numa espécie de mito operacional, mais ou menos assim: Ele nas-
ceu numa família tradicional de uma certa região do país, sempre envolvi-
da com disputas pelo poder, onde o pai tirânico, rico e politicamente pode-
roso, determinava a vida dos filhos. Um foi ser padre, o outro político,
outro médico, etc. A ele coube ser engenheiro, com objetivo futuro de ser
secretário de obras de seu Estado. Para tal, graças ao poder e prestígio pa-
terno, foi enviado contra sua vontade (que nunca ousara exprimir ao pai)
para fazer um doutorado num país da Europa, num importante centro de
pesquisas tecnológicas, sem falar direito o idioma local. O nível técnico
era difícil de acompanhar, e, além de sentir saudades do clima quente e da
namorada que ficara no Brasil, não conseguia se relacionar com os colegas.
Sentia-se muito isolado, excluído, perseguido, pois ninguém entendia di-
reito o que ele falava, e não se dava conta de que não se esforçava para
melhorar as dificuldades de comunicação. Por esse vértice, poder-se-ia di-
zer que ele se aproximava cada vez mais de uma situação psicótica. Nesse
ínterim, sua namorada se suicidou, com um tiro na cabeça, na frente do
escritório político de seu pai, fato que agravou terrivelmente seu estado
persecutório. Anos depois, o paciente soube que a moça tinha sido assedia-
Arnaldo Chuster
da sexualmente pelo pai dele. Mas antes desse conhecimento, que se não
fosse a análise resultaria em uma tragédia, passou a ter pensamentos fre-
qüentes de que seria obrigado, mais cedo ou mais tarde, a fazer o mesmo.
Visivelmente confuso, chamou a atenção de um dos professores, que
possuía compaixão para sugerir que procurasse ajuda psicoterápica urgen-
te ou então que voltasse para o Brasil. Ele preferiu a segunda hipótese. Ao
comunicá-la por telefone à mãe, recebeu poucas horas depois a resposta
curta e seca do pai: “Seu moleque, antes de completar o doutorado, só
morto voltas ao Brasil”. Nesse ponto, desesperado e perseguido por não
conseguir convencer o pai, segue a indicação do professor2 que lhe diz o
seguinte: “Conheço um analista muito bom e famoso que é também estran-
geiro, e por isso saberá pelas afinidades culturais entendê-lo melhor do que
um analista local”.
Esse analista atendia em casa, um belíssimo apartamento, com muitas
obras de arte na sala, a maioria de estilo oriental. Quem atendeu a porta foi
um mordomo, muito delicado, vestido com uma roupa típica do país de
origem. Enquanto aguardava, veio-lhe à mente que “homem que é macho
não mora num lugar desses, cheio de frescuras” – esta crença
preconceituosa é um dos pensamentos tipicamente dissociados desse ana-
lisando. Quando foi recebido pelo analista, esse também trajava uma roupa
típica de cor rosa, além de vários anéis. O paciente assustou-se, pois aquilo
parecia confirmar sua crença: “Este cara com essa roupinha, esse emprega-
do, só pode ser veado”. Após escutá-lo, o analista disse-lhe que o analisan-
do “falava muito mal o idioma local”. Como nada poderia fazer sobre isto,
caso se dispusesse a vir pelo período experimental de um mês, cinco vezes
por semana, tentaria entendê-lo, mas, se não conseguisse, o mandaria para
outro. O paciente, mesmo temeroso, aceitou a oferta, mas internamente
saiu perseguido, imaginando que “aquela ameaça de mandá-lo embora era
2. As razões para essa indicação são no mínimo tragicômicas. O paciente, ao falar de seu pai para
o professor, querendo atenuar com humor, referiu-se a ele com um título nobiliárquico usado no
Oriente, mas que no Brasil é sinônimo de poder obtido de forma ilícita. O professor, impressiona-
do, sem perceber a ironia, de imediato associou ao analista, que carregava de fato esse título.
típica de veado”. (Em um dado momento da análise comigo, pude esclare-
cer-lhe que se sentia perseguido, com medo de ser seduzido
homossexualmente pelo analista, e que isso era devido a duas coisas: a
preocupação dessa natureza incutida pelo meio cultural da sua infância e,
sobretudo, agravada pela dificuldade de lidar com o novo e com as diferen-
ças – que deviam incluir qualquer pessoa que não se enquadrasse no pa-
drão da elite de sua região.)
Ele contou com forte ressentimento (emoção que sempre o fazia ga-
guejar) que, nas sessões que se seguiram, o “analista oriental e veado”, nas
poucas vezes que falou, insistiu que o analisando tinha dois dentro dele
(um falso e um verdadeiro) e que deveria se esforçar em falar melhor pelo
verdadeiro. A depressão-perseguição piorou, e se sentia revoltado quando
“saía das sessões, pois o veado só falava a mesma coisa”. (Num desses
relatos, tentei fazer um tipo de interpretação que ele sempre considerou
uma tolice. Mencionei a possibilidade de uma analogia entre o que tinha
acontecido e o que estava acontecendo, pois por enquanto eu só falava a
mesma coisa, a linguagem da escuta. Retrucou dizendo que se sentia con-
fortável pelo fato de que eu pelo menos falava português. Disse-lhe que era
possível que estivéssemos falando um outro idioma, a linguagem do in-
consciente, por isso estava mais confortável. Mas isso não teve nenhuma
aparente repercussão na torre de Babel.)
O analisando relata que tentara fazer novo contato com seu pai, pois
estava muito deprimido, com pensamentos suicidas, e, apesar de ter procu-
rado tratamento, precisava mesmo voltar, era questão de vida ou morte. O
pai respondeu de novo, no mesmo tom: “Que ele só voltaria num caixão, e
que essa coisa de depressão era coisa de veado”. Acuado, descreveu a con-
versa ao analista, que lhe respondeu ironicamente: “Parabéns, agora sim tu
podes melhorar”. Ofendido com a resposta, tentou explicar que sua situa-
ção não era brincadeira, e que estava pensando seriamente em se matar. O
analista mostrou-se furioso e disse: “Eu não vou a enterro de paciente,
muito mais se for um católico hipócrita, mas como eu nunca vi ninguém se
matar gostaria de saber quando, como e onde, para apreciar”. Naquele
Arnaldo Chuster
momento, o analisando conta que teve a confirmação de que o analista era
“de fato, um veado, pois só um veado pode falar assim”, e lhe disse desafi-
adoramente: “vou pular da ponte X, às tantas horas”. E saiu da sessão brus-
camente, disposto a nunca mais voltar. O que de fato aconteceu. Na hora
combinada, esteve “disfarçadamente” no local do “suicídio” para verificar
se o “veado” estaria por lá. “Não se mataria para não lhe dar este gostinho.”
Mas ninguém compareceu na hora estipulada.
O fato é que essa “experiência”, e por mais “estranhas” que fossem as
intervenções relatadas, produziu um efeito, pois o analisando colocou em
ação idéias que tinha em mente e procurou um outro curso, em outro país,
cujo idioma julgava mais familiar. Todavia, a “depressão” persistiu, o medo
de aniquilamento iminente através dos pensamentos suicidas voltou a se
intensificar, e novamente por indicação de um professor procurou um ana-
lista local. Simultaneamente começou a fazer um tratamento
medicamentoso com um psiquiatra, que criticava a escolha do analista. O
analista, lacaniano, seguia o tempo lógico e interrompia as sessões de um
modo que o paciente ficava enfurecido e confuso. Seus sentimentos
persecutórios, derivados do ódio por se submeter a algo que não concorda-
va, voltaram a se intensificar, e identificou o novo analista como “merce-
nário broxa”, pois “cobrava caro por pouco tempo de sessão” e, “o que era
pior”, tinha uma secretária “gostosa” que não “comia”. Conta que esse ana-
lista, muitas vezes, ficava lendo um jornal durante as sessões. Quando su-
geri, por esse relato, que o fato de ter alguém só para escutá-lo, mesmo que
entediado, fazia algum efeito e o fez permanecer por seis meses por se
tratar de uma falha que lhe era familiar, o analisando achou que “eu estava
protegendo a classe dos analistas”. Eu assinalei que ele acreditava que os
analistas eram todos iguais, não eram nem sinceros e nem honestos, e que
formavam uma casta como os políticos. A reação do analisando foi de sus-
to, pois sentiu minha intervenção como ousada e desafiadora pela conexão
com seu reverenciado e temido pai.
O psiquiatra que o atendia continuou insistindo que devia mudar de
analista. Ficava assinalando que o consultório do analista tinha muita gente
na sala de espera (o que era fato), e que análise não era aquilo. Acabou
cedendo, aceitando uma outra indicação desse psiquiatra. O novo analista
trabalhava da forma comum, entendia um pouco de português, mas o ana-
lisando relata que não conseguia entender nada do que ele dizia e vice-
versa. Quando pedia algum esclarecimento não obtinha resposta, o analista
fazia um silêncio. O analisando passou a achar que o analista era surdo
(posteriormente, surgiu um material que permitiu conectar com uma avó
surda que ajudava a mãe a cuidar dos muitos filhos).
Nesse entretempo, o irmão mais velho, no meio de um escândalo fa-
miliar envolvendo altas somas de dinheiro no exterior, rompeu com o pai e
veio morar no Rio. Incentivado pelo ato, largou o curso e veio morar com o
irmão. Conseguiu logo um emprego numa firma, de quem se tornou sócio
em pouco tempo, graças ao uso que fez de influências familiares para con-
seguir grandes contratos de trabalho. Seu progresso material foi rápido e
acentuado, mas, além de manter o medo de aniquilamento iminente (tradu-
zido pelas fantasias de que alguém desejava sua morte por suicídio), quan-
do se aproximava de alguma mulher vivia uma situação sempre sofrida e
emocionalmente desastrosa, para a qual solicitava um remédio urgente.
Ficou claro que esse pedido atestava seu sofrimento pelos vínculos que só
permitiam duas alternativas: desprezo hostil com desejo sexual ou medo
persecutório de “broxar” quando sentia que era uma “garota para casar”.
Os protagonistas de um drama se alternavam dentro dele: o analisando;
qualquer eventual namorada com quem fazia sexo, mas desprezava; o fan-
tasma da namorada que se suicidou e que continuava presente de forma
cruel, hostil e invejosa, cobrando-lhe o impossível. Em outros momentos,
o triângulo era ele, a namorada “para casar” que o fazia “broxar” e nova-
mente o pai vingativo clamando por suicídio. Novamente se aproximou de
uma situação que se poderia chamar de surto psicótico. Foi quando me
procurou por indicação de um conhecido do seu sócio, que tinha sido meu
analisando.
Por muito tempo esse triângulo, que se pode chamar de parasitário,
persistiu. As interpretações que assinalaram diferenças entre ele e a namo-
Arnaldo Chuster
rada suicida, que representava sua parte feminina submissa ao pai cruel,
produziram uma “janela psíquica” e diminuíram sua confusão mental. Na
realidade, durante muito tempo, a análise fez para ele uma diferença entre
continuar vivendo ou morrer. Talvez ainda continue fazendo a diferença
entre ter uma vida longa ou abreviá-la por conta de alguma doença
disfuncionalizante. Não sei ir além disso.
Embora tenha tentado até esse ponto fazer um relato da história desse
analisando, não a considero satisfatória. Quando a escrevo, me dá a im-
pressão de que não tem nada a ver. Um texto como o de Ulysses, de James
Joyce, talvez possa traduzir melhor o que é escutar uma história sem ponto
e sem vírgula, mas que é também uma versão da história de como Eros se
relaciona com Psique, ou melhor, a história de como pré-concepção vai se
realizando em concepções (CHUSTER, 1999). Em outras palavras, minha
capacidade de recriar a experiência emocional vivida com o analisando
não é de modo algum confiável. Recomendo o poema de Fernando Pessoa,
Tabacaria, mencionado no início deste trabalho, pois talvez possa dar uma
idéia melhor e pagar um tributo à teimosia do analisando, em persistir com
um analista que muda muito e não lhe diz grandes coisas, e que na maior
parte do tempo parece estar apenas fornecendo um ritmo ao acompanhá-lo,
sem nenhuma expectativa. Por isso cito novamente o Tabacaria:
Sem pretender me alongar mais nos detalhes do caso, que são muitos,
vou retornar à minha reelaboração dos modelos psicanalíticos, ilustrando-
a com algumas hipóteses de trabalho que se modificaram ao longo do pro-
cesso:
3. A natureza não se importa, por exemplo, com a dor do antílope atacado pelo tigre. É simples-
mente parte do processo, parte menor da busca de sobrevivência dentro de um quadro maior que
é a evolução. Espécies aparecem e desaparecem, outras podem surgir, e isso vem ocorrendo por
milhões de anos. O ser humano nada mais é do que uma espécie no meio dessa evolução, e algu-
mas vezes tem consciência de que, independentemente de sua vontade, é arrastado para se repro-
duzir, e a natureza por trás não se importa se vai se tornar um escravo ou se vai ser destruído,
assim como não se importa se o bebê gerado pode morrer. Tampouco se importa se o ser humano
vier a desaparecer, fato que não é de todo improvável, diante do que vem fazendo contra a nature-
za.
impressões cinéticas e auditivas. Elas compõem um ritmo, e esse ritmo é
essencial para a organização da mente. Existem diversos ritmos: o ritmo do
coração do bebê, do coração da mãe, o ritmo dos intestinos, do esvazia-
mento da bexiga, o ritmo dos impactos e o balanço do líquido amniótico –
as possibilidades são infinitas. E quando o ritmo nesse mundo pré-subjeti-
vo – que pode ser definido tanto como um infinito vazio sem forma, como
uma massa escura, densa e compacta como um buraco negro – é conduzido
através da imaginação radical, surge uma “janela psíquica”, uma espécie
de moldura para futuras paisagens, moldura feita de um material específi-
co: o tempo. Tempo do ritmo que começa a organizar uma prévia do mun-
do nas molduras que serão preenchidas depois do nascimento com as pai-
sagens. De qualquer forma, é preciso não ignorar o meio originário, embri-
onário, onde ocorrem fatos que preparam o indivíduo para o outro “meio”,
que é o mundo dos objetos tais como o conhecemos. Nesse meio originário
não temos propriamente objetos, pois não podemos chamar uma moldura
temporal de objeto. Talvez possamos falar de pré-objetos.
(6) A pré-concepção mais importante para a psicanálise é a pré-con-
cepção edípica, não só por incluir as demais, mas porque, ao se realizar em
concepções edípicas, propõe e delimita um campo de trabalho que se reve-
la por sua complexidade, sempre mais além do que se acreditava existir no
âmbito da aplicação clássica da teoria do complexo de Édipo. Por exem-
plo, se o analista fizer associações com o mito de Édipo em diferentes
momentos de sua prática (como mencionado no item [3]), as associações
nunca serão as mesmas, e jamais se poderá prever aonde elas o conduzirão.
Uma característica importante da pré-concepção é sua constante
redutibilidade ao mental. Por exemplo, a pré-concepção do seio busca pri-
meiro a mente da mãe, para daí chegar ao seio concreto, e não o contrário.
É no espaço que a mente da mãe reserva para receber a pré-concepção do
bebê que se realiza a concepção com que o bebê será alimentado pelo ritmo
do leite, do carinho, e do amor. Não é difícil entender, por esse modelo, por
que certas crianças não conseguem pegar o seio, ou por que existe em mui-
tas pessoas uma dissociação entre o material e o psíquico (BION, 1962).
Arnaldo Chuster
Da mesma forma, a pré-concepção edípica procura a mente dos pais, para
daí chegar à realidade da família. Se isso não ocorre adequadamente, o
indivíduo pode passar a vida num estado em que ele sente as coisas mas as
não sofre, o que significa não resolver seus problemas pelo fato de não
poder atingi-los.
(7) A realização da pré-concepção edípica mostra, em primeiro lugar,
que a social-ização é a tendência constitutiva do ser humano, em oposição
à tendência narcísica. Tais tendências se situam num campo de trabalho
espectral, não-estrutural, e constituem uma das facetas do objeto psicanalí-
tico (BION, 1962). Um aspecto profundamente prático do espectro consta-
ta-se no fato de que a social-ização, para ocorrer, necessita que a psique
renuncie às possibilidades daquilo que pode ser englobado pelo termo oni-
potência. Por exemplo, qualquer indivíduo, para se socializar, depende que
renuncie à crença em uma explicação única dos fatos, pois, por hipótese,
ela reproduz a crença proveniente da experiência do bebê de ser o centro do
mundo. Há, evidentemente, um montante não-quantificável dessa crença
ao qual nunca se consegue renunciar, pois além do desamparo do indiví-
duo frente ao grupo, que o faz se voltar para métodos da onipotência (como
as religiões), dele partem eixos de orientação (coordenadas espaciais) que
o ligam aos outros indivíduos. Assim, desde suas primeiras experiências, o
ser humano é colocado diante da necessidade de parar de acreditar que o
seio está à sua disposição constante, e que por essa constância formaria um
par exclusivo com a mãe. Sem abrir mão dessa crença, que envolve tolerar
a frustração da incompletude de não ser o todo, o bebê não consegue pas-
sar para um outro nível de experiência psíquica que é o pensar: processo
que implica o reconhecimento de que existe uma relação entre duas outras
pessoas além dele. Se não aceita essa tridimensionalidade, jamais haverá
social-ização e não poderá usufruir a função desse terceiro, inicialmente o
pai, que possui também um continente que complementa a função da mãe
naquilo que ela não pode ou não é suficiente para tal. Por exemplo, as
ansiedades derivadas da ausência da figura parental complementar, capaz
de auxiliar a mãe a lidar com os aspectos que a mãe sozinha não consegue,
pode gerar um tipo de concepção que faz o indivíduo pensar que controlar
um problema é o mesmo que resolvê-lo. Assim, em determinados pacien-
tes observamos, em certos momentos de suas análises, sobretudo aqueles
que envolve decisão entre dois objetos, ou quando têm de atender a dois ou
mais objetos (que pode ser um grupo de pessoas, começando, por exemplo,
pela idéia de formar uma família), um aumento de ansiedade, para a qual
solicitam um remédio ou, em geral, uma realidade material substituindo a
mental (drogas, consumismo, violência) com que esperam o “controle”
(sempre onipotente) da situação.
(8) A afirmações contidas em (6) expressam as capacidades humanas
e, simultaneamente, os limites. Há uma interação constante entre capacida-
de e limite. Dentre as capacidades humanas que são constituídas pela pré-
concepção edípica encontra-se o que Bion chamou de função psicanalíti-
ca da personalidade. O encontro dessa função do analisando com a fun-
ção do analista, mais os meios (ou as mínimas condições necessárias) que
organizam esse encontro são o que constitui a atividade a que chamamos
de psicanálise.
(9) A formulação (7) pode também ser dita da seguinte forma: a psica-
nálise não é uma atividade que se fornece a um paciente tal como se fosse
um remédio ou um tratamento médico. Tampouco se pode ensinar psicaná-
lise como um ofício. Ela só pode ser desenvolvida se for trazida para fora
dos indivíduos. Em outras palavras, a psicanálise é uma habilidade huma-
na, uma habilidade da sensibilidade humana para com a vida em geral,
que o assim chamado processo analítico pode trazer à tona e fazer evoluir.
Algumas pessoas têm essa habilidade mais do que outras. Por isso vemos
indivíduos evoluírem bem com uma sessão por semana, e outros, apesar de
4-5 sessões por semana, não conseguirem evoluir ou evoluem muito pou-
co.
(10) As características até aqui descritas da pré-concepção edípica
permitem sugerir que, onde Freud via a dissolução do complexo de Édipo,
Bion percebe a evolução do complexo de Édipo. Ou seja, de certo modo
podemos dizer que Bion coloca em questão o futuro da humanidade depen-
Arnaldo Chuster
dente da evolução da capacidade humana para se constituir social-mente.
Portanto, o futuro da humanidade dependerá da capacidade crescente para
lidar com as diferenças entre os seres humanos. Chamei a isso de princí-
pio ético-estético de singularidade (CHUSTER, 2003), regendo nítidos
confrontos, nos quais não só se destaca uma indecidibilidade da origem
dos fenômenos, para evidenciar que a solução entre as pessoas não pode
mais ser a eliminação pura e simples do que é diferente. Por exemplo, cer-
tos pacientes trazem a crença de que um grupo só se constitui excluindo o
diferente, para depois desvalorizá-lo e, finalmente, destruí-lo. É como se o
grupo só pudesse ser constituído em oposição a uma diferença que deve ser
excluída. O processo transferencial, na realidade o tipo de grupo interno
dos indivíduos, pode em certos pacientes buscar envolver o analista numa
relação conivente, na qual não se discute a representação social do indiví-
duo, quer por sua responsabilidade nos acontecimentos, quer pela necessi-
dade fundamental de se ter mais de um vértice para elaborar os conflitos.
(11) O item (9) coloca profunda responsabilidade na psicanálise com
relação ao futuro da humanidade. Exige do psicanalista um posicionamento
público mais claro sobre os conflitos humanos.
(12) A evolução do complexo de Édipo é um constante atravessar de
cesuras. A humanidade só evolui quando consegue, ao atravessar uma des-
sas cesuras, extrair pensamento gerador de uma criação histórica que di-
minui o desrespeito às diferenças e melhora a qualidade de vida.
(13) A formulação (11) permite dizer que sempre há algo mais geral
que o indivíduo, que o supera e que o faz mudar. Esse algo é a
tridimensionalidade edípica do pensamento, expressa pela coletividade e
sua instituição. Assim, se o indivíduo se recusa a mudar, a vida vai mudá-
lo, e em geral para pior.
(14) Como nunca se pode colocar o indivíduo acima dessa
tridimensionalidade, mudanças ocorrem o tempo todo, tanto no analisando
como no analista, pelo simples contato (BION, 1979). O contato é sempre
um gerador de turbulência emocional, quer exista linguagem verbal ou
não.
(15) Em outras palavras, no centro da experiência analítica existe “O”
evoluindo por meio da pré-concepção, que busca se realizar como concep-
ção num espectro de desenvolvimento (negativo ou positivo)/
(narcisismoÛsocial–ismo) dentro de um princípio de complexidade ine-
rente a todo corpo biológico. Esse conjunto, o objeto psicanalítico, tem a
seguinte escrita: .
(16) O objeto psicanalítico desenvolve-se em quatro níveis do espec-
tro narcisismo social-ismo: crer, pensar, aprender da experiência, criar,
níveis nos quais a pré-concepção se realiza. Cada nível se projeta em três
domínios em que podem ser captados: sentidos (corpo), mitos (teorias) e
paixões (sentimentos). As mudanças se passam tanto de um nível para ou-
tro (intrapsiquicamente) ou se passam nas aplicações (ou domínios de cap-
tação). Cada nível é como uma espécie de cilindro (uma janela psíquica
aberta pela realização da pré-concepção) cujas paredes são feitas de tempo,
e contém argumentos circulares com diâmetros estabelecidos pelo movi-
mento PS D. Desse modo, temos oscilações: estreiteza de pensamen-
to multiplicidade de vértices; monossentimentalismo pluralidade afe-
tiva; unificação de hipóteses complexidade. Um exemplo prático dessa
teoria pode ser encontrado quando nos deparamos com crenças sistemati-
zadas. Verificar-se-á que não há real mudança se não houver evolução para
o nível do pensar. Nessa transição, tanto o analista quanto o analisando se
darão conta de uma “controvérsia” que se pode dar entre o analista de hoje
e o de ontem, que pode ser representada pelo relato de conflito entre quais-
quer pessoas. O estabelecimento da controvérsia permite decidir o cami-
nho a seguir. Essa precisa, no entanto, ser uma confrontação genuína e não
um impotente bate-boca entre oponentes, cujas diferenças de visão não são
enunciadas. Assim, torna-se necessário vincular a divergência ao vértice.
Caso contrário, corre-se o risco de entrar em discussões do tipo que Bion
(1970) menciona: de um engenheiro aeronáutico querendo discutir que a
sexualidade infantil não existe porque não “vê” evidências de tal coisa.
Podemos aceitar que ele não a “veja”, afinal suas teorias são sobre constru-
ção de aviões; o que não se pode negar é que ele afirma tal coisa por esse
Arnaldo Chuster
vértice, e isso é uma espécie de “cegueira” – como a de Édipo ou a de
Tirésias.
(17) O analista coloca-se na sessão de uma forma suscetível para rece-
ber as aplicações do objeto psicanalítico. Para isso, precisa contar com sua
função psicanalítica da personalidade. Ou seja, as habilidades entre os ana-
listas variam enormemente, assim como em cada analista de uma situação
para outra. A habilidade psicanalítica não é estável e nem estabelecida,
pois depende do que interage com a configuração edípica e de sua evolu-
ção. O que pode aprimorar essa habilidade, além de uma análise pessoal
tão completa quanto possível (que não se pode definir a priori o que seja),
é: 1) a capacidade para alcançar uma diferença máxima possível em rela-
ção ao analisando, graças a um estado mental o mais livre possível de me-
mória, desejo e necessidade de compreensão; 2) o exercício associativo
com o mito de Édipo (CHUSTER, 2002, 2003) para desenvolver a intui-
ção e a capacidade de decidir uma versão adequada (language of
achievemnent, Bion, 1970) a ser utilizada na história que se desenrola no
processo analítico.
(18) A disciplina descrita em (16) foi também transcrita pela expres-
são capacidade negativa (BION, 1970). Sugiro agora que também pode
ser traduzida pela frase do bilhete que Nietzsche escreveu ao seu amigo
George Brande: “Depois de teres me descoberto, não foi difícil me encon-
trar; a dificuldade agora é me perder...”. Nesse bilhete, como esclareceu
Carneiro Leão (1977), o filósofo não está falando de Zaratustra, mas do
pensamento e do seu modo extraordinário de operar, isto é, como o pensa-
mento se põe em obra, age e trabalha de acordo com os três verbos: “des-
cobrir”, “encontrar” e “perder”. No processo analítico, o mesmo procedi-
mento compõe as possibilidades de mudança.
(19) “Descobrir” o inconsciente no sonho e no sonhar; “encontrar” o
inconsciente no passado reatualizado, trazido pelo “sonhar” da interpreta-
ção; finalmente, remeter todos os achados para a aurora do esquecimento e
prosseguir descobrindo o novo. Três movimentos de Uma memória do fu-
turo (BION, 1975, 1977, 1978) que apontam para um pensamento crítico
que delimita ética e esteticamente nosso campo de mudanças, e que nos
deve acompanhar no processo analítico. Dir-se-á, diante da realidade do
inconsciente, que a interpretação em geral, qualquer que seja ela, sempre
chega muito tarde. Sobre isso cito Baudrillard (2001), que explica: o pen-
samento vem tarde demais por um dia, como o Messias de Kafka, ou chega
no final do dia, como a coruja de Hegel. Tudo não passa de uma profecia
retrospectiva, uma espécie de sombra platônica, uma assombração dançan-
do no muro dos acontecimentos, na caverna da História. E mais, a História
não oferece uma reprise, uma nova chance – somente a crítica faz isso,
permitindo melhorar o que foi feito, transcender a si mesmo.
(20) O instrumento crítico desenvolvido por Bion teve na Grade uma
expressão sistematizada, que depois foi desfeita em prol de uma
ressignificação por elementos estéticos. Todavia, ela mantém sua proposta
e pode ser usada como ponto de partida para continuar alimentando a críti-
ca. Em função disso, apresentei uma Grade edípica (CHUSTER, 2002,
2003), seguindo essa sugestão de Bion para sistematizar Û ressignificar
ética-esteticamente. No eixo horizontal, destinado à sistematização de uso
das formulações, retomei a categoria “indagação”, da forma apresentada
originariamente por Bion como categoria “Édipo” (BION, 1962, 1992).
Por essa razão, ressaltei que toda vez que o analista indaga, ou produz uma
interpretação, o faz através de sua configuração edípica, e que não há uma
outra forma de fazê-lo. Dessa forma, em toda interpretação o analista
exibe sua configuração edípica. Sabemos também que não há no incons-
ciente um desejo de ser analista. O real desejo inconsciente de um indiví-
duo que se tornou analista pode ser o de matar seu analisando, copular com
ele, retaliá-lo, escravizá-lo, alimentá-lo, devorá-lo, mas não o de analisá-
lo. Sabemos também que para cada indivíduo um desses desejos é mais
constante do que para outros, e que produzem a tendência para o
desequilíbrio da configuração edípica diante de situações de ansiedade.
Certos pacientes, peculiarmente aqueles que têm uma parte psicótica da
personalidade mais desenvolvida, desenvolvem uma habilidade para cap-
tar esse “desejo” do analista e podem assim “satisfazê-lo”. Desse modo, a
Arnaldo Chuster
análise toma um rumo no qual nada acontece. Se tal estado de coisas é
percebido pelo analista, uma mudança de vértice corresponderá a uma rea-
ção do paciente através de uma barreira de mentiras (transformações
projetivas). Se o analista as percebe e as interpreta, o paciente vai tentar
provar, num quadro de intensa rivalidade, que a mentira é moralmente su-
perior à verdade (transformações em alucinose). Nesse ponto, talvez pouco
se possa fazer em matéria de interpretações. Uma Grade Negativa
(CHUSTER e CONTE, 2003) pode ser útil para desenvolver hipóteses so-
bre essa situação, que a seguinte citação de Bion (1975) ilustra bem: “A
possibilidade de encontrar velhos amigos no Inferno torna o seu panora-
ma menos apavorante do que o panorama do céu, para o qual a vida na
Terra não nos preparou adequadamente. Mas isto também se aplica a de-
cisões que são tomadas repetidamente. A gente pode deplorar uma decisão
infeliz; quão terrível seria se nunca tivéssemos tomado decisões infelizes
ou feito interpretações infelizes! Em análise, temos que nos acostumar a
lidar com a recuperação de uma decisão infeliz e com o uso da decisão
errada. À luz dessas observações, nem se cogita de uma cura”.
(21) Então, o que fazer? O começo de qualquer resposta, o que não
significa que chegaremos a alguma, sugere que o analista deve mudar sem-
pre de vértice, que não deve interpretar sempre na mesma direção, nem
repetir interpretações, proferir indagações desnecessárias, ou responder
questões que o analisando deveria responder por si mesmo. A mudança
constante de vértice pode prevenir uma análise dominada pela tirania da
memória e do desejo. Mudar sempre, mais do que inevitável, é uma res-
ponsabilidade do analista durante o processo. Ou o analista muda, ou o
processo vai mudá-lo, e sempre para pior. Por outro lado, é inegável que o
analisando descrito nesse trabalho (bem como os outros exemplos) apre-
senta situações muito primitivas, cuja solução deve ser depositada na espe-
rança de que o processo analítico consiga realizações que gerem uma outra
concepção de indivíduo com a qual se identifique e, com isso, possa fun-
cionar de forma diferente. Tal assertiva, no entanto, deve ser tomada como
parte de um contexto traduzido pela seguinte frase de Bion em Taming wild
thoughts (1997): “imaginações especulativas, por mais ridículas, neuróti-
cas ou psicóticas, podem ser estágios no caminho do que no final será
visto como formulações psicanalíticas científicas”.
(22) As afirmações de (21) reforçam a necessidade de uma teoria das
transformações (BION, 1965), na qual encontramos a perspectiva de ob-
servar as mudanças ao longo do processo de uma forma distinta das teorias
clássicas.