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CULTURA E SOCIABILIDADE
NA AMÉRICA PORTUGUESA
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Oficial & H u c ite c I — * ja p e s p
FESTA
CULTURA & SOCIABILIDADE
NA AMÉRICA PORTUGUESA
VOLUME I
Estante USP - Brasil 5 0 0 A nos n“ 3
CS? U N IV E R S ID A D E D E S A O P A U L O
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E D IT O R A DA U N IV E R S ID A D E D E S A O P A U L O
Imprensa
Oficial i IM P R E N S A O F IC IA L D O E S T A D O
FESTA
CULTURA & SOCIABILIDADE
NA AMÉRICA PORTUGUESA
VOLUME I
B ledZ Imprensa
Oficial í
Copyright O 2001 by István Jancsó e íris Kantor (orgs.)
Vários autores.
ISBN: 8 5 -3 14-0620-X (Edusp)
85-271-0555-1 (Hucitec)
85-271-0556-X (Hucitec)
01-1898 CDD-981
Direitos reservados à
Falando de festas 3
I stván Jancsó & I ris K antor
V o lu m e II
FESTAS NA C O R TE PORTUGUESA
L itu rg ia real: e n tre a p erm a n ê n c ia e o efêm ero 545
I a r a L is C a r v a l h o S o u z a
FESTAS SINGULARES
O festejo dos santos a bordo das embarcações portuguesas dos
séculos XVI e XVII: sociabilização ou controle social? 905
F ábio P estana R amos
A PR O PÓ SITO DA FESTA
Festa, trabalho e cotidiano 969
N or berto L uiz G uarinello
Em “A parasita azul”, in: Contos/urna antologia (introdução e notas de John Gledson), vol. 1.
São Paulo: Com panhia das Letras, 1998, p. 193.
1 D e autoria de Francisco Calmon, publicado em Lisboa na Oficina de Miguel Manescal da
Costa, no ano de 1762.
4 IST VÁN JANCSÓ & IRIS KANTO R
2 Para uma interpretação do pensam ento social brasileiro na passagem do século ver as se
guintes obras: Antonio Cândido de Mello e Souza. Silvio Romero: teoria, crítica e história
literária. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1978; Roberto Ventura. O estilo
tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1991; Carlos G uilherm e Mota. A ideologia na
cultura brasileira. São Paulo: Ática, 1978; Renato Ortiz. Cultura popular, românticos efolcloristas.
São Paulo: Olho d ’Água, 1992; Flora Sussekind. O Brasil não é longe daqui. São Paulo: Com
panhia das Letras, 1990; Lilia M. Schwarcz. O espetáculo das raças. São Paulo: Com panhia
das Letras, 1993; Claudia Neiva Matos. “Poesia popular c literatura nacional: os inícios da
pesquisa folclórica no Brasil e a contribuição de Silvio Romero”, in: Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, 28, Rio de Janeiro, 1999; M artha Abreu. “Mello Morais Filho:
festas, tradições populares e identidade nacional”, in: Sidncy Chaloub & Leonardo Perei
ra. A história contada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
3 Sílvio Romero. Folclore brasileiro (incluindo “Cantos populares do Brasil”, de 1883, e “Con
tos populares do Brasil” de 1885, com o prefácio e notas de Luís da Câmara Cascudo). Rio de
Janeiro: José Olvmpio, 1954, 3 v.; Mello Moraes Filho. Festas e tradições populares no Brasil.
Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Edusp, 1979; Tristão de Alencar Araripe Jr. Obra crítica.
Rio de Janeiro: MEC-Casa de Rui Barbosa, 1963, 5 v.; José Veríssimo. Estudos sobre a poesia
popidar no Brasil, 1888, ou a História da literatura brasileira. Brasília: UNB, 1991 (l.“ ed.
1901); Luís Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1938, além de O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis. Rio de Janeiro: Conquista, 1956; Nina
Rodrigues. O animismo fetichista dos negros baianos. Rio dc Janeiro: Civilização Brasileira, 1935.
4 José Vieira Fazenda. “Antiqualhas c memórias do Rio dc Janeiro”, in: Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, 86, Rio dc Janeiro, volume 140, 1919; Basílio de Magalhães.
O folclore no Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1939; Afonso d ’E. Taunay. “F esti
vidades setecentistas”, in: Revista do Arquivo M unicipal de São Paulo, XV, São Paulo, 1935;
M anuel Querino. Costumes africanos no Brasil. 2.” ed. Recife: Massangana, 1988; Wanderley
FALANDO l)E FESTAS 5
Pinho. Salões e damas do Segundo Reinado. 4.“ ed. São Paulo: Livraria Martins, 1970; Ernâni
da Silva Bruno. História e tradições da cidade de São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1984 ( l.a ed.
1954), 3 v.
5 Q uanto a isso vide, de Ricardo Benzaquen Araújo, tanto Guerra e paz. Casa grande & senzala
e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994, quanto Totalitarismo e
revolução. O integralismo de Plínio Salgado. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 1988. Sobre o diálo
go entre gerações vide, de Dain Borges, “T h e recognition of afro-brazilian symbols and
ideas, 1890-1940”, in: Luso-Brazilian Review, 32(2), 1991.
6 Antonio Cândido de Mello Souza. “Opiniões e classes em T ie tê”, in: Sociologia, São Paulo,
Escola de Sociologia e Política de São Paulo, IX (2), 1947 e Parceiros do rio Bonito. Rio de
Janeiro: Liv. José Olympio Ed., 1964; Maria Isaura Pereira Queiroz. Sociologia e folclore: a
dança de S. Gonçalo num município bahiano. Bahia: Livraria Progresso Editora, 1958, e “D an
ça de São Gonçalo, fator de homogeneização social numa comunidade do interior da Bahia”,
in: Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 6, junho 1958. D e Florestan Fernandes. “Mário
de Andrade e o folclore brasileiro”, in: Revista do Arquivo Municipal, D epartam ento dc
Cultura, São Paulo, CVI, 1946; “Folclore e mudança social na cidade de São Paulo, São
Paulo”, in: Anhembi, 1961 (1.* ed. 1942); “Congadas e batuques em Sorocaba”, in: Sociolo
gia, São Paulo, 5(3); “Sociologia e folclore”, in: Revista do Arquivo M unicipal, São Paulo,
1949, v. 122. De Lavínia Costa Raymond. Algumas danças populares no Estado de São Paulo.
São Paulo: FFLCH/USP, 1954. De Oneida Alvarenga. “Comentários a alguns cantos c
danças do Brasil”, in: Revista do Arquivo Público M unicipal, 1941, v. LXXI. D e Alceu M.
Araújo. Folclore nacional. São Paulo: Melhoramentos, 1968, 3 v.; de Mario Wagner Vieira da
Cunha. “Festas dc Bom Jesus dc Pirapora”, in: Revista do Arquivo Público, São Paulo, v.
XLI e Festivais and social rhythm in the ligth offuncionalist theories. Chicago, 1944; de Otávio
da Costa Eduardo. “Aspectos do folclore de uma com unidade rural”, in: Revista do Arquivo
M unicipal, São Paulo, v. CXLIV, 1951.
7 Antonio Cândido de Mello e Souza. “Informação sobre a Sociologia em São Paulo”, in:
Ensaios paulistas. São Paulo: Anhembi, 1958; Sérgio Miceli (org.). História das ciências so
ciais no Brasil. São Paulo: Vértice, 1989; Mariza Corrêa. “Traficantes do excêntrico: os antro
pólogos no Brasil dos anos 30 aos anos 60”, in: Revista Brasileira de Ciênáas Sociais, 6, 1988.
6 IST VÁN JANCSÓ & IRIS KANTOR
8 Sylvia Garcia. Sociologia como ciência: liberalismo e radicalismo no período deformação de Florestan
Fernandes (1941-1953). Doutoramento em Sociologia. São Paulo: USP, 1997; Fernanda Massi.
Diálogos brasileiros: uma análise da obra de Roger Bastide. Doutoram ento em Antropologia.
São Paulo: USP, 1998.
9 Mário de Andrade. A arte religiosa no Brasil. São Paulo: Experim ento, 1993; Danças dram á
ticas. Belo Horizonte: Itatiaia-IN L, 1982; Luiz da Câmara Cascudo. Dicionário do folclore
brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988; Arthur Ramos. Cultura negra no Brasil. São Paulo:
Nacional, 1942; Edison Carneiro. Negros bantus: notas de etnografta religiosa e defolclore. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937.
10 Mário de Andrade. “Folclore”, in: M anual bibiliográftco de estudos brasileiros-, Marcos Silva.
“Câmara Cascudo e a erudição popular”, in: Projeto História, São Paulo: PUC, 11, 1999;
Luís Rodolfo da Paixão Vilhena. Projeto e missão — 0 movimento folclórico brasileiro 1947-
1964. Rio de Janeiro: FGV-Funarte, 1997 e “Os intelectuais regionais: os estudos do fol
clore e o campo das ciências sociais nos anos 50”, in: Revista Brasileira de Ciências Sociais,
32, Rio de Janeiro, 1996.
11 Angela dc Castro Gomes. História ehistoriadores. Rio de Janeiro: Fundação G etúlio Vargas,
1996; Maria C lem entina Pereira da Cunha. “Folcloristas e historiadores no Brasil: pontos
para um debate”, in: Projeto História, São Paulo, PUC, 16, 1998. Para o período im ediata
m ente anterior à “era Vargas” e com especial atenção para o papel dc M onteiro Lobato,
vide, de Tania Regina de Luca. A Revista do Brasil — Um diagnóstico para a (N)ação. São
Paulo: Edunesp, 1999.
12 Sociedade de Etnografia/SP, Instituto Brasileiro de Folclore/RJ, Sociedade Brasileira dc
Folclore no Rio Grande do N orte e Piauí; Primeiro Congresso Afro-Brasileiro cm Salvador
em 1938.
FALANDO OK FESTAS 7
15 Roger Bastide. Ar Américas negras: as civilizações africanas no novo mundo. São Paulo: D ifu
são Européia do Livro, 1974; As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das
interpretações de civilização. 3.“ ed. São Paulo: Pioneira, 1989. Donald Pierson. Brancos e
pretos na Bahia. São Paulo: Nacional, 1945; Candomblé da Bahia. Curitiba: Guaíra, 1942;
Estudos de ecologia humana: leituras de sociologia e antropologia. São Paulo: M artins, 1970.
Gilberto Freyre. Sobrados e mocambos. 3.a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961. Vide,
também , Mário de Andrade. “Folclore”, in: M anual bibliográfico de estudos brasileiros (orga
nizado por Rubens Borba de Morais & William Berrien). Brasília: Senado Federal, 1998.
Arthur Ramos. Estudos de folk-lore — definição e limites: teorias e interpretação (prefácio de
Roger Bastide). Rio de Janeiro: Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil, s.d., e j4j
culturas negras no novo mundo. 2.a ed. São Paulo: Nacional, 1946.
14 Marc Bloch. Os reis taumaturgos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, em especial o
capítulo “A realeza maravilhosa e sagrada”. Bernard G uenée & F. Lehoux. Les entrées roya/es
françaises de 1328 à 1515. Paris, 1969, e a coletânea editada por Jean Jacquot (org.). Lesfêtes
de la Renaissance, 3 v. Paris: CNRS, 1975.
15 Michel Vovelle.Lesmétamorphosesdelafêteen Provence. Paris: Aubier-Flamarion, 1976;Mona
Ozouf. Lafêterevolutionnaire(1789-1799). Paris: Gallimard, 1976; Y.-M. Bercé. Fêteetrévolte.
Paris: H achette, 1976; Em anuel Le Roy Laduri e. Le Carnaval de Romans. Paris: Gallimard,
1979; M aurice Agulhon. “La révolte de 48, un carnaval éphém ère”, in: Autrement, 7. Paris:
Seuil, 1976; Jacques Le Goff & Jean-C. Schm itt (org.). Le charivari: actes de Ia table ronde.
Paris: EH ESS/CN RS, Mouton Éditeur, 1978.
8 ISTVÁN JANCSÓ & IRIS KANTOR
anos oitenta.21 É nesse âmbito que ganha importância a obra de Affonso Ávi
la, crítico de arte e historiador da cultura que já durante os anos sessenta
procurava tratar as festividades públicas mineiras como fatos sociais totais.22
A festa barroca, no entender de Ávila, representa um fato civilizacional, uma
form a mentis que se expressa através de uma cultura lúdica, sensorial e per-
suasória,23 com o que pôs em evidência a complexidade sociopolítica do fe
nômeno festivo, momento de reiteração da ordem política metropolitana, mas
também promotor de novas possibilidades de, por exemplo, integração dos
mulatos na sociedade mineradora. Identificando a festa barroca com o carna
val contemporâneo, ele apontou para a persistência de certas formas estéti
cas, chegando a anunciar, por meio da aproximação meta-histórica entre a
festa barroca e o carnaval contemporâneo, novas possibilidades para a com
preensão das conexões entre a identidade nacional e a festa.24
A edição crítica de fontes documentais então encetada permitiu a renova
ção das abordagens e ampliou as possibilidades de reconstituição histórica
dos múltiplos aspectos da vida festiva, com o que gerações de estudiosos
tornaram-se devedores de José Aderaldo Castello e sua equipe pela publica
ção, na década dos setenta, dos textos do movimento academicista no Bra
sil,25 como também o são de Curt Lange por seu extraordinário levantam en
to da vida musical em Minas Gerais, fundamental para o estabelecimento de
novo patamar de qualidade para as pesquisas de historiadores e musicólogos
nas últimas décadas.26 C om a construção destes novos instrumentos de pes
quisa, já se torna visível maior sofisticação das abordagens e a confrontação
crítica de diferentes tipos de documentação, envolvendo não só a literatura
de viagens, memórias, romances, panegíricos, fontes judiciárias e criminais,
21 Roberto da Matta. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1979; Carlos
Rodrigues Brandão. O divino, o santo e a senhora. Rio de Janeiro: Funarte, 1978; Marlyse
Meyer. Caminhos do imaginário no Brasil. São Paulo, 1993; Maria Lucia M ontes. “Entre o
Arcaico e o Pós-Moderno: heranças barrocas e a cultura da festa na construção da identida
de brasileira” in: Sexta Feira, Departam ento de Antropologia da USP, v. 2, 1998; Olga V.
Simpson. “Espaço urbano e folguedo carnavalesco no Brasil”, in -.Cadernos CERU, 1 5 ,1981;
Maria Isaura Pereira de Queiroz. Carnaval brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1992.
22 Laura de Mello e Souza. “Aspectos da Historiografia da Cultura sobre o Brasil Colonial”,
in: Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto-U niversidade São Francis
co, 1998, p. 30-1.
23 Affonso Ávila. Resíduos seiscentistas em Minas. 2 v. Belo Horizonte: Centro de Estudos M i
neiros, 1967, e O lúdico e as projeções do barroco. São Paulo: Perspectiva, 1971.
24 Maria Lucia Montes. Op. cit.
25 José Aderaldo Castello (comp.). O movimento academicista no B rasil (1641-1822). 14 v. São
Paulo: Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1969-78.
26 C urt Lange. História da música nas irmandades de Vila Rica. v. 1 e 5. Ouro Preto: Conselho
Estadual de Cultura dc Minas Gerais, s.d.; e “Danças coletivas públicas no período colo
nial brasileiro e as danças das corporações de ofícios em Minas Gerais”, in: Barroco, 1, Belo
Horizonte, 1969.
10 ISTVÁN JANCSÓ & IRIS KANTOR
se nacionais dele. Esse desenhar-se de uma ruptura está por toda parte, in
clusive no mundo dos cerimoniais, como se percebe na europeização das
solenidades justaposta à agora americanização da imagem do monarca e da
ordem política constitucional. A instituição oficial de novos calendários festi
vos após a independência tornou-se parte de uma estratégia de recriação da
unidade política vis-à-vis as tensões regionais e sociais. Ancoradas muitas vezes
nos padrões tradicionais do Antigo Regime, as novas sociabilidades tornam-
se indicadoras da emergência de novas identidades sim ultaneam ente políti
cas, religiosas, sociais e étnicas, configurando parte importante do processo
de construção e legitimação tanto do regime imperial brasileiro, quanto da
dinastia reinante.
Tudo isso está apontado no caleidoscópio que é esta Festa: Cultura e Socia
bilidade na América Portuguesa, balanço (incompleto) e, assim o desejamos,
útil plataforma para novas aventuras do espírito.
eSsfes -Vrjf’?
Esta apresentação não seria completa sem referência àqueles que torna
ram possíveis a feitura deste livro e do Seminário que esteve na sua origem.
D esde o início das ações de planejamento contamos com o decisivo apoio da
Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo, ao que somaram-se
as colaborações das Pró-Reitorias de Graduação e de Pós-Graduação, da D i
retoria da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Chefia do
D epartam ento de História, da Diretoria do Museu Paulista, e da “Comissão
das Comemorações USP — Brasil 500 Anos” que, além de abrigar o Seminá
rio, valorizou a publicação dos seus resultados. Ainda no plano dos apoios
institucionais, cabe registrar os da Fundação de Amparo à Pesquisa do Esta
do de São Paulo (Fapesp), e do Conselho Nacional de Desenvolvim ento
Científico e Tecnológico (CNPq) no tocante à alocação dos recursos necessá
rios, bem como a generosa contribuição da Comissão Nacional para as Com e
morações dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP), a quem devemos os
recursos que possibilitaram efetivar-se a interlocução com os colegas portu
gueses.
Mas os nossos melhores agradecimentos dirigem-se aos responsáveis pela
qualidade substantiva de Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa,
àqueles nossos colegas que aceitaram o convite para o debate, e fizeram-no
de modo que aliasse o talento posto a serviço deste livro com a generosidade
traduzida na destinação dos direitos autorais que porventura resultariam de
sua colaboração, para um Fundo destinado a promover, em 2001, um novo
Seminário destinado ao trato do enigma nacional brasileiro. E em meio a este
espírito de fraternidade acadêmica, ainda cabe destaque a Maurício M ontei
ro, Anna Maria Kieffer e aos artistas que responderam pela parte musical do
FALANDO DK FESTAS 13
Istvá n Jancsó
I ris K anto r
Préstito das Endoenças, c. 1722, nave da igreja da Santa Misericórdia, Salvador, Bahia.
Azulejos Portugal e Brasil. Revista Oceanos. Lisboa: Comissão Nacional para as Co
memorações dos Descobrimentos Portugueses, n." 36-7, outubro 1998-março 1999,
p. 63-4. Foto André Ryoki.
DESPEDIDAS TRIUNFAIS — CELEBRAÇÃO
DA MORTE E CULTOS DE MEMÓRIA
NO SÉCULO XVIII
A n a C r i s t i n a A r a ú jo
NO LIMIAR DA ETERNIDADE
tica historia espiritual sobre a doutrina Christãa... agora novamente acrescentado nesta decima
impressão com a historia do Purgatorio de São Patrício. Lisboa Occidental, 1719, p. 393-4.
4 Piero Camporesi. Lenferetlefantasm ede /'hostie. Unethéologiebaroque. Paris: H achettc, 1987.
5 Francisco Saraiva de Azevedo. Op. cit., p. 393-4.
h Jean Delum eau. Le catholicisme entre Luther et Voltaire. Paris: PUF, 1971.
7 José Boneta. Gritos das almas no purgatório e meios para os aplacar. Lisboa: Joam Antunes,
1711, p. 27-8.
I) K S P K n i D A S TRIUNFAI S 19
tala. Do último instante até ao juízo final tudo podia acontecer. O suspensee o
terror invadiam a aparente tranqüilidade do reino dos mortos. A única manei
ra de minimizar a incerteza do desfecho de cada trajetória individual consis
tia na imposição do mérito próprio, forjado na penitência, e no reforço das
garantias que abreviam as penas e encurtam a espera. Por isso, a ação inter-
cessória e o recurso a sufrágios e missas passam a funcionar como moeda de
troca nas transações correntes que se efetuam a pretexto dos que expiam as
suas culpas no além. A tendência para a acumulação sem limite destes meios
eficazes de mitigação do sofrimento físico e psicológico dos que enfrenta
vam, antes e depois da morte, um purgatório cada vez mais infernalizado
contribuía para acentuar a consciência da irredutibilidade da duração.
Porém, no plano simbólico, o purgatório permanece como lugar de frontei
ra, isto é, existe e justifica-se como quadro mental espacial adequado a uma
situação de passagem.8 Mas não era apenas nesta acepção que o purgatório
servia de marco de continuidade entre a terra e o céu. A crença na eficácia das
penas purgatórias, ao impor a dilatação no tem po das preces e sufrágios por
alma dos defuntos, gerava a necessidade de presentificação dos mortos na
com unidade dos vivos, a qual, reativada por mecanismos religiosos de solida
riedade, fazia alastrar o sentido de co-responsabilização dos fiéis em face do
destino dos seus mortos.
Assim, e num duplo movimento, evocativo e reparador, o tempo da salva
ção tendia a ser assimilado ao tempo do mundo. Dito de outro modo, a prévia
aquisição, por prazo indeterminado, ou como rezam os documentos, “enquanto
o mundo durar”, de missas e outro tipo de sufrágios era apresentada, simulta
neam ente, como garantia de vida eterna e como fonte de comemoração da
morte. E se é certo que a duração do processo intercessório criava a ilusão de
uma real interferência do tempo dos homens no tempo de Deus, já que os
intercessores terrenos tinham a consciência de que participavam efetivamente
do resgate, a prazo incerto, de almas com rosto, corpo e memória, os meios e
a finalidade de tal investimento não deixavam de ter como horizonte a elisão
do tempo, ou seja, a eternidade. Para além disso, o recurso à liturgia, como
meio de intercessão, ao associar o sacrifício de Cristo à comemoração do
defunto, erigia-se em memória da memória, conferindo à comemoração simul
taneam ente o sentido de recordação e de celebração do futuro.
Sólida em si mesma, esta arquitetura de símbolos, ritos e práticas esti
mulava a vulgarização de modelos de comportamento social ajustados às exi
gências de expansão dos serviços religiosos, cada vez mais procurados, e
refletia-se, também, numa contínua torrente de obras de caridade e de mise
ricórdia, conforme documentam os arquivos das instituições eclesiásticas e
de assistência.
9 José Mattoso. “O culto dos mortos no fim do século X I”, in: José Mattoso (dir.). O reino dos
mortos na idade Média. Lisboa: João Sá da Costa, 1996, p. 75-85.
I) K8 I ' K I) I D A S T R I U N !• A I S 21
só, mas esse domínio não está actuahnente cm parte nenhum a. Ficou, diga
mos assim, chum bado na campa dc um túmulo: o túm ulo retém -no até ao
fim das gerações. C) morto desm entiu o direito dos vivos [...]. O fundador
de um vínculo nSo fez mais <|ue em pilhar os corpos dos indivíduos tirados
das diversas gerações para sobre eles assentar o trono da sua vaidade. D e
cretou-se homem grande: teve pena que o futuro esquecesse personagem
tão im portante’’.10
Mas este é apenas um lado da questão, porque o aprisionamento litúrgi-
co do tem po que subjaz às estratégias memorialísticas e salvíficas destes
homens e m ulheres é igualm ente revelador de um elevado sentido prático
acerca da natureza distributiva e acumulativa das fundações que erigem.
Com elas distinguiam -se na morte, beneficiando, em simultâneo, capelães
e adm inistradores (pie ficavam com o encargo, respectivam ente, de as pro
ver e manter. E mesmo quando a ilusão da perpetuidade das obrigações
religiosas impostas se apoiava apenas em dádivas substanciais ou na aliena
ção de quotas de frutos ou rendim entos à fábrica da igreja, convento, hospi
tal ou confraria que procedia à aceitação, para todo o sempre, de missas e
ofícios de sufrágio, os ganhos simbólicos e espirituais que os benfeitores
julgavam alcançar continuavam a superar o valor quantitativo das ofertas e
transferências previstas. O procedim ento das gentes da cidade com poder
econômico e magro prestígio que mandam sim plesm ente celebrar missas
ou ofícios diários em determ inada igreja ou convento ilustra exem plarm en
te esta outra opção. Desprovidos de um lugar memória preciso, tam bém
eles confiam na força dos seus recursos econômicos para escaparem ao ano
nim ato e ao esquecim ento.
Idêntico propósito conformava ainda o averbamento, em sede testam entã-
ria, das chamadas fundações insignificantes, normalmente confundidas eram
os aniversários, por serem coleções de missas dispersas no calendário, confi
nadas em regra a datas precisas, de alcance evocativo, e impostas, fireqüemie-
mente, sem indicação de local para a sua realização. Tal como as anceriomes.
tam bém estas aparecem subordinadas à cláusula de validade sem teramo cor
to, sendo porém suportadas por menores quantitativos.
N a prática, as restrições e limitações inerentes aos modos de instituição de
fundações perpétuas, que sumariamente enunciei, permitiam que todos os
grupos sociais acedessem a este tipo de investimento memorialísrico, desde
que, é claro, reunissem meios econômicos para a manutenção e provimento
das obrigações contraídas. Assim, e ao contrário do que parece ter acontecido
em períodos mais recuados," a época pós-tridentina vem consagrar não a ba-
10 Alexandre I lereulano. Opúsculos II. Organização, introdução c notas de Jorge Custódio &
José M anuel Garcia. Lisboa: Presença, 1983, p. 34.
" M anuela Santos Silva. “Contribuição para o estudo das oligarquias urbanas medievais: a
22 ANA CRISTINA ARAÚJO
nalização das fundaçõespro animae, mas sim a sua abertura a todos os grupos
sociais.
Em Lisboa, sobretudo nos séculos XVII e XVIII, muitas capelas funerá
rias passam a albergar almas de prestígio sem equivalente estatuto social. É
isso que se observa nos testamentos registados oficialmente nos anos de 1700-
1701. Nestes encontramos 51 pedidos de missas perpétuas, quatorze dos quais
subscritos por gente de baixa condição: artífices, lojistas, lavradores e oficiais
menores.12 Os dados fornecidos para os anos seguintes confirmam que os
grupos sociais inferiores continuam a deter cerca de um quarto de todas as
fundações instituídas, em particular de aniversários.'1 Para além disso, entre
o núcleo de testadores que elegem a alma por universal herdeira e que, desse
modo, mais facilmente acedem à fundação de capelas, aniversários e memó
rias de missas, avultam ricos mercadores, contratadores e proprietários de
ofícios de segunda categoria na administração central e local.
O interclassismo instaurado a este nível é, portanto, indiscutível, como de
resto também deixam perceber os impedimentos e restrições impostos pela
lei pombalina de 9 de setembro de 1769 à conservação das chamadas “cape
las insignificantes”, indevidam ente “principiadas por famílias do terceiro es
tado”, segundo as palavras do legislador.14
Em face do que ficou exposto, deve portanto admitir-se que o polimorfis-
mo social suscitado por uma prática inicialmente reservada à elite demonstra
que as aspirações espirituais e morais das camadas mais baixas da população
não se dissociam radicalmente, pelo menos no plano da crença, das que os
grupos dominantes exprimem. Mas, se a riqueza e a abundância de meios
permitiram que certos indivíduos tivessem tirado o melhor partido possível
dos recursos disponibilizados pela Igreja em matéria de salvação, foi talvez a
força sugestiva 0 11 mesmo o poder dc atração exercido pela idéia do purgató
rio o fator que mais contribuiu para uniformizar a planificação a prazo da
imortalidade por parte de tão diferentes agentes sociais. Com isso queremos
significar que, na época de ouro da pastoral do purgatório, as memórias ima
instituição dc capelas funerárias cm Óbidos na Baixa Idade M edia”, in: A cidade. Jornadas
inter e p/uridisciplinares, vol. II. Coord. Maria José Ferro Tavares. Lisboa: Universidade
Aberta, 1993, p. 113-27; Angela Beirante. “As «heranças de almas» na diocese de Évora no
início do século XVI”. Congresso dc História no IV Centenário do Seminário dc Évora.
Évora, 1993, Actas, vol. I, IST-SME, 1994, p. 105-17 e Ivo Carneiro de Sousa. “Legados
pios do convento de S. Francisco do Porto. As fundações dc missas nos séculos XV e XVI” .
Sep. do Boletim de Arquivo D istrital do Porto, I I , 1982.
12 Ana Cristina Araújo. A morte em Lisboa. Atitudes e representações 1700-1830. Lisboa: Editorial
Notícias, 1997, p. 410.
13 Ibidem , p. 409.
14 Collecção das leys, decretos e alvarás que comprehende 0feliz reinado de E l Rei Fidelissimo D. José
I Nosso Senhor, desde 0 anno de 1766 a té 0 de 1770, t. 3. Lisboa: Miguel Rodrigues, 1770.
D E S l> K D I D A S T R I U N F A I S 23
A ETERNIDADE COMPROMETIDA
Mas vale a pena precisar que, apesar de ser considerável o número de testa-
dores interessados em aprisionar a mutabilidade do tempo à eternidade vir
tual dos seus investimentos de alma, o fluxo de tais solicitações vai decaindo
ao longo da primeira m etade do século XVIII. Inicialmente, 12,9% de testa-
dores de Lisboa instituem capelas e aniversários. Nos anos trinta essa por
centagem recua para os 10,4% e nas vésperas da legislação pombalina situa-
se já nos nove por cento.15 Parece portanto evidente que, na cidade e seu
termo, o im pedim ento de constituição de fundações perpétuas de caráter
piedoso surge no decurso de um período de progressiva retração. Em termos
globais, o descenso destas obras piedosas é compensado pela subida de mis
sas avulsas, o que poderá querer dizer que os testadores, conscientes da des
valorização econômica das aplicações a longo prazo, preferem concentrar os
seus encargos pios em um limite de tempo mais razoável. Por outro lado, ao
abdicarem de uma estratégia intercessora que deixa de desafiar o tempo es
vaziam a piedade pessoal de um suporte memorialístico preciso, talvez por
que o intimismo confessional que então parece despontar contraria a tendên
cia para a emulação das vaidades da alma, mas também porque outros meios,
tais como a genealogia familiar, o elogio público e a narrativa histórica passam
a cobrir, de forma mais ampla, o espaço reservado à imortalização dos pode
rosos.16
A juntar às razões expostas, há ainda um outro complexo conjunto de ques
tões que ajudam a explicar o malogro da enfática celebração de tantos mortos
memoráveis em Lisboa.
Em primeiro lugar, o abandono do modelo que associa a imortalidade ter
rena à eternização no além é acelerado pela degradação dos vínculos me-
morialísticos estabelecidos entre fundadores e administradores e/ou entre
instituidores e oficiantes. Ao cabo de duas ou três gerações, a intensidade da
recordação e, conseqüentem ente, a atenção prestada à trajetória dos ausen
tes têm tendência a diminuir. Logo, a visão que deles subsiste acaba integra
da na multidão de almas que continuam ente povoa o purgatório.
Associados a este aspecto, estão também os problemas suscitados pela de
terioração dos patrimônios. A fração de bens impartidos destinados a ser con
18 A N TT. Ministério dos Negócios Eclesiásticos e Justiça, Maço 288, Autos de Redução das obri
gações de capellas dc missas e dos mais encargos pios do Convento da Santíssima Trindade
de Lisboa, 1800, f. 2v.
19 A N TT. Ministério dos Negócios Eclesiásticos e Justiça, Maço 288, Autos de Redução das obri
gações de capellas de missas e dos mais encargos pios do Mosteiro do Santíssimo Sacra
m ento de Lisboa, 1806, f. 9.
20 Ana Cristina Araújo. A morte em Lisboa..., op. cit., p. 122-7.
21 A N TT. Ministério dos Negócios Eclesiásticos e Justiça, Maço 288, Autos de Redução das obri
gações de capellas de missas e dos mais encargos pios do Convento de Nossa Senhora do
Carmo de Lisboa, 1804, f. 2.
26 ANA CRISTINA ARAÚJO
22 A N TT. Ministério dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, Maço 288, Autos dc Redução das
obrigações de capellas de missas e dos mais encargos pios do Convento de Nossa Senhora
da Graça dc Lisboa, 1815, f. 2-14.
23 A N T T Ministério dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, Maço 288, Autos dc Redução das
obrigações de capellas de missas e dos mais encargos pios do Convento de Nossa Senhora
do Carmo de Lisboa, 1804, f. 1-29.
24 AHSCM L. Pautas dos capelães — 1780-1799.
25 AHSCM L. Livro da Sacristia — Missas de Testadores, ano dc 1759. Veja-sc especialm ente a
relação dos testadores com capelas suspensas, cujo número se eleva a mais dc uma ce n te
na, f. 152ss.
2,1 Joaquim dos Santos Abranches. Fontes do Direito Ecclesiastico Português I. Sum m a do Bulário
Portuguez. Coimbra: França Amado, 1895, p. 212.
DESPEDIDAS TRIUNFAIS 27
27 Rui M anuel de Figueiredo Marcos. “A legislação pombalina. Alguns aspectos fundam en
tais”. Sep. do vol. XXXIII do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra, Coimbra, 1990. No essencial, e apesar das anulações pontuais e dos avanços e
recuos observados na aplicação destas leis, pode dizer-se que a reforma dos institutos vin-
culares prossegue no reinado de D. Maria I.
28 A N TT. Chancelaria de D. José l (Próprios) — Extinção de Capelas, livros 148-156.
29 Laurinda Abreu. Memórias da alma e do corpo. A Misericórdia de Setúbal na Modernidade.
Viseu: Palimage Editores, 1999, p. 227-8.
28 ANA CRISTINA ARAÚJO
Ora, em face das incongruências geradas por este arrastado sistema ceri
monial e simbólico de celebração — confiscado pela Igreja, desbaratado pelo
clero e desacreditado pela sociedade civil — uma nova filosofia de com emo
ração dos mortos desponta na transição do século XVIII para o século XIX. E
porque a sociedade dos vivos não só se revê como se organiza em função do
destino que confere aos seus mortos, não surpreende que, neste período de
transição, a reinvenção das liturgias fúnebres e comemorativas aponte para
uma redistribuição global dos critérios da distinção social, para a criação de
novos espaços de encerramento dos mortos — os cemitérios públicos — e
para a utilização de diferentes dispositivos imaginários dc controle da recor
dação. A função evocativa dos mortos muda radicalmente de sentido. Dito de
outro modo, os vulgares discursos, elogios fúnebres e epicédios pronuncia
dos em academias, senados, assembléias de notáveis adquirem uma outra
carga social, ideológica e simbólica.
Para melhor documentar esta mudança recorremos a alguns elogios e rela
tos de vida respeitantes a figuras impressivamente ligadas ao Brasil colonial.
A primeira série de orações e biografias funcionam como unção de vidas exem
plares, condensam uma mensagem de cunho edificante e enquadram -se no
modelo tradicional que temos vindo a analisar.
Produzida no seio da Academia Real da História, a Oração Fúnebre do 2.°
Marquês das Minas, D. Antônio Luís de Meneses, recitada pelo 4.° Conde da Eri-
ceira, em 1726M é, na sua lapidar retórica linhagista e triunfalista, mais um
endereço a ter em conta no “Panteão Geral da Aristocracia Portuguesa”,31
que a Academia ajudou a firmar no plano discursivo e simbólico. O hom e
nageado, membro do Conselho da Guerra e do Conselho de Estado, havia
desem penhado de 1684 a 1687 o cargo de governador e capitão-general do
Brasil. Contudo, é na qualidade de áulico da corte e de herói militar da Guer
ra da Sucessão de Espanha que as suas virtudes e atributos de nascimento
são acreditados e submetidos à admiração dos vindouros. No “Templo da
M emória” e sob a metáfora da redenção de cativos, isto é, com o expresso
propósito de dar voz aos mausoléus da fama dos “heroes ecclesiasticos e se
culares que desde muitos annos, e muitos séculos estão em muda tyrannia
nas masmoras do esquecim ento” — como refere um dos mais influentes
membros da Academia32 — a exortação do Marquês de Minas funciona um
prolongamento necessário do túmulo e do epitáfio num tem po em que o
30 'Iranscrita por D. Antônio Caetano dc Sousa. Provas Ha História Genealógica Ha Casa Real
Portuguesa, t. VI. 2.a ed. dc M. Lopes de Almeida & César Pegado. Coimbra: Atlântida,
1954, p. 382ss.
31 Coimbra Martins. “Academias”, in: Dicionário He História He Portugal. Dir. por Joel Serrão.
Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1975.
32 BGUC, ms. 502, f. 192-193v.
D F. S P K D I D A S T R I U N F A I S 29
33 Ana Cristina Araújo. “Morte, memória e piedade barroca...”, op. cit., p. 133-42.
34 Fr. Domingos de Teixeira. Vida Gomes Freyre de Andrade, General de Artelharia do Reyno do
Algarve Governador, e Capitão General do Maranhão, Pará, e Rio das Amazonas no Estado do
Brasil, Offerecida às memórias de Jacinto Freyre de Andrada, Prymeira Parte. Lisboa Occidental:
N a Officina da Musica, 1724; Segunda Parte. Lisboa: Off. A. Pedrozo Galram, 1727.
35 Aqui notabiliza-se, segundo as palavras do seu biógrafo, pela guerra sem tréguas que move
aos índios tupias, pelos privilégios que concede aos padres jesuítas e pela repressão organi
zada que institui em toda a província. Cf. op. cit., 2.a parte, p. 283s.
36 Fr. Domingos de Teixeira. Op. cit., 2.a parte, p. 488.
37 Filipe José da Gama. Elogio do lllustrissimo Senhor D. Fr. Bartholomeu do Pilar, prymeiro
Bispo do Grão Pará, do Conselho de sua Magestade, e Religioso quefoy da Ordem de Nossa Senhora
do Carmo da Província de Portugal, que em 24 de Fevereyro de 1734 recitou na Academia
Portugueza, e L atina... Lisboa Occidental: Offic. de Miguel Rodrigues, 1734.
38 Ibidem , p. 2.
39 Sebastião da Rocha Pita. Summario da vida, & morte da Exce/lentissima Senhora, a Senhora
Dona Leonor Josepha de Villhena, e das Exéquias que na cidade da Bahia consagrou às suas
30 ANA CRISTINA ARAÚJO
memorias a Senhora D. Leonor Josepha de Menezes, esposa de Gonçalo Ravasco Cavalcanty &
Albuquerque, Fidalgo da Casa de S. Magestade, Commendador da Ordem de Christo, A/rayde m òr
da Cidade de Cabo Frio, Secretário do Estado, & Guena do Brasil, Offcrccido á Excellcntissima
Senhora, A Senhora D. Maria Francisca Bonifaeia de Vilhena, Filha d e..., Com posto por...,
Fidalgo da Casa de S. Magestade, Cavaleiro Professo da Ordem de Christo, Coronel de
Regim ento da Corte do Brasil. Lisboa Occidental: Off. A. Pedrozo Galram, 1721.
40 Ibidem , p. 14.
41 Ibidem , p. 6.
D K S P li D I D A S T R I U N F A I S 31
42 Jean-Claudc Bonnet. “Les morts illustres. Oraison funèbre, éloge académique, nécrologie”,
in: Pierre Nora (dir.). Les lieux de mémoire, II La Nation. Paris: Gallimard, 1986, p. 216ss.
43 Francisco dc Mello Franco. Medicina theologica, ou supplica humilde, feita a todos os senhores
confessores, e directores, sobre o modo de proceder com os seus penitentes. Lisboa: Offíc. dc Anto
nio R. Galhardo, 1794.
44 D. João dc N. Sr.a da Porta Siqueira. Escola de po/itica ou tractado pratico da civilidade
portugueza. Porto: Offic. dc Antonio Alvarez Ribeiro, 1791, p. 251.
45 Elementos da civilidade, e da decencia, para instrução da mocidade de ambos os sexos, traduzido
do franccz cm vulgar, 2.“ edição correcta c augmentada. Lisboa: Typ. Rollandiana, 1801, p.
280.
4f’ Jcan-Claude Bonnet. Op. cit., p. 222.
32 ANA CRISTINA ARAÚJO
□ □□
47 História e Memórias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, t. V, parte II. Lisboa: Typ. da
Academia, 1818, p. LVI-LXXX.
48 Ibidem , p. LVI.
49 Ibidem , p. LXXVI.
50 Ibidem , p. LXXVI.
51 Ibidem , p. LXXIX-LXXX.
52 Fernando Catroga. O céu da memória. Cemitério romântico e culto cívico dos mortos em Portugal
(1756-1911). Coimbra: Livraria Minerva Editora, 1999.
D li S P E D I D A S TRIUNFAI S 33
1 V. Rui Vieira N ery & Paulo Ferreira de Castro. História da música. Col. Sínteses da cultura
portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1991, p. 98-106; Manoel Carlos Brito. Opera in
Portugal in Eighteenth Century. Cambridge: Cambridge University Press, 1989; Mário Vieira
de Carvalho. Pensar émorrer, ou O teatro de São Carlos. Lisboa: Im prensa Nacional, 1993; cf.
os ensaios sobre teatro e censura teatral em PombalRevisitado, Comunicações ao Colóquio
Internacional do 2.° Centenário da morte do Marquês de Pombal. Lisboa: Estampa, 1983.
T KATRO EM MÚSICA NO BRASIL MONÁRQUICO 39
2 The Church Music ofD avide Perez and Niccolò Jommelli, with Special Emphasis on Their Funeral
Music. Tese de doutorado para o Departamento de Música da Universidade de Gales, Cardiff,
1997, inédita, p. 83.
3 Em 1771, Jommelli escreve ao superintendente do teatro de corte português, Pedro Josc
da Silva Botelho: “Todos esses benditos Coros, Duos, Trios, Quartetos e Fina/i: é verdade
que no palco deverão render um ótimo efeito; mas me custam penas e trabalhos incrívcis".
Cit. em Dottori. Op. cit., p. 85.
4 Esta, de fato, é a tese defendida por Mário de Andrade (“Evolução social da música no
Brasil”, (org.), em Música do Brasil. Curitiba: Guaíra, 1941; tam bém em Aspectos da Música
Brasileira. São Paulo: Martins, 1965) e nunca contradita, na substância, pelos pesquisado
res posteriores. O princípio que a norteia é a busca de elem entos objetivos autóctones: um
ritmo, um modo — em outras palavras, de um vocabulário nacional. O teatro de ópera no
Brasil age, por assim dizer, no plano da sintaxe sbcial, da disposição simbólica de universos
culturais diferentes dentro de um mesmo discurso, e por isso fica fora desse tipo de pes
quisa. ,
5 “Casa da ópera” era um termo genérico que indicava toda construção destinada a repre
sentações teatrais, c não apenas os teatros líricos.
40 I. O R I'. N /. O M AM M 1
12 Para uma análise do Recitativo eÁ ria, v. Régis Duprat. “Bahia musical”, in: Garimpo M usi
cal, São Paulo: Novas Metas, 1985, p. 21-52.
13 Em AAVV. A poesia dos inconfidentes. Rio dc Janeiro: Nova Aguilar, 1996, p. 296-304.
14 Cláudio Manuel da Costa foi também um dos promotores da construção da Casa da Ópera
de Vila Rica, tjuando secretário do governo do Conde dc Valadares. Alguns autores, citados
por Affonso Ávila em Sob o Signo de Calderón. O Teatro na Formação C ultural de M inas
T KAT R O KM MÚSICA NO BRASIL M ONÁRQUICO 43
18 P. A. Castagna. Fontes bibliográficos para a pesquisa da prática musical no B rasil nos séculos X V I
e XVII. Dissertação de mestrado. São Paulo: Escola dc Comunicações e Artes/USP, 1991,
inédito.
19 João Daniel, que foi deportado com os jesuítas c morreu na prisão, descreve cm detalhe as
cerimônias religiosas: “A praxe ordinária, é assim: pela manhã mandar tocar o sino a doutri
na a que sendo sendo domingo, ou dia santo acode todo o povo, acabada a doutrina lhes
fazem alguma prática doutrinai, depois da qual celebram missa, a que assistem os ncófitos
com boa ordem; os pequenos separados dos adultos no cruzeiro da igreja, os meninos todos
para uma banda, as meninas para outra; no corpo da igreja a gente feminina, cm último
lugar os adultos. Ao levantar a Deos principiam os meninos em alguma canção devota, que
cantam a dous coros e as continuam até o fim da missa, a qual acabada entoam o «Salve
Senhora», c outras canções té o missionário se expedir” (cit. cm Salles. Op. cit., p. 71). A
instrução musical dos índios não parece ser apenas prática jesuíta. Em Barcelos, por exemplo,
existia um Recolhimento Secular das índias raparigas, dirigido pelo capitão, pintor c m ú
T KATRO KM MÚSICA NO BRASIL MONÁRQUICO 45
escrever sua Aódia, portanto, Aragão e Lima transfere para uma cerimônia
civil o hábito religioso da adoração de imagens. O diferencial simbólico entre
as duas práticas era dado pelo tom do texto, de um humanismo rebuscado já
no título (.Aódia significa ode em grego arcaico), e possivelmente pela música.
sico Francisco Xavier dc Andrade, onde a índia Custódia, neta do cacique Camandri, toca
va um órgão dc tabocas (Alexandre Rodrigues Ferreira. Diário da viagem filosófica, p. II).
20 Notas sobre o Rio de Janeiro e panes meridionais do Brasil, cit. em Galante de Sousa. Op. cit.,
vol. I, p. 162.
21 Joana Castiga parece ter tido uma longa carreira: já é conhecida em Recife em 1824 e seu
nom e ainda consta num elenco cm São Luís, em 1854.
46 I.ORKNZO MA M Ml
24 Tentei uma descrição desta peça, bem como da ópera Niccolò de' Lapi, de quem falarei
adiante, no artigo “Musica per 1’Imperatore: due partiture di Giovanni Pacini nella Biblio
teca Nazionalc di Rio”, in: Quademi, Nuova Serie n.° 5. São Paulo: Istituto Italiano di
C ultura, 10/1993, p. 159-75.
48 I, O R K N Z O M A M M 1
25 Em 1879, Antônio Carlos Gomes estreou sua M aria Tudor, baseada no mesmo drama dc
Vítor Hugo que Pacini musicara cm 1843. Mas essa c provavelmente uma mera coincidên
cia, que não implica nenhum tipo de influência direta. Com trinta c cinco anos de distância
entre cias, as duas óperas não têm, nem poderiam ter, nenhum ponto de contato (da ópera
de Pacini existe uma gravação dc 1998, pelo selo Opera Rara).
TEATRO KM MÚSICA NO BRASIL MONÁRQUICO 49
cantores dc 1808, e que, de qualquer forma, os padres não deveriam ter mui
ta intimidade com o repertório de Cimarosa e Rossini. Na realidade, existia
uma companhia estável no Rio, desde a época do Vice-Rei Luís de Vasconce
los (1779-1790), incluindo cantores, dançarinos e cômicos. Por causa do baixo
prestígio social da profissão dos atores, sobretudo das mulheres, é muito im
provável que esses músicos fossem brancos. Aliás, nas últimas décadas da
época colonial, a música parece uma atividade desem penhada quase exclusi
vam ente por uma classe de mulatos livres. Até durante a estada de D. João
VI, a companhia lírica abrigava, junto com os virtuoses estrangeiros, artistas
nacionais que provavelmente eram mulatos (é muito difícil ter certeza abso
luta, se não houver ata de batismo): é o caso de João dos Reis, o melhor baixo
da época, amigo e copista de Pe. José Maurício, que desem penhou o papel
de Júpiter no Augurio di Felicita de Marcos Portugal. Kidder, que, por ser
padre protestante, não tinha muita familiaridade com as salas teatrais, regis
tra, ainda em fim de década de 1830, uma procissão de Pentecostes “anun
ciada por um grupo de negros maltrapilhos que, com seus rudes instrum en
tos, servem a igreja durante o dia e o teatro à noite”. Não necessariamente, é
certo, o teatro da ópera; talvez os teatros de bonifrates, nos quais se represen
tavam cenas da Sagrada Escritura. O próprio Carlos Gomes, cujo pai era mes-
tre-de-capela em Campinas, é classificado como pardo nos docum entos de
arquivo,29 embora o compositor, já famoso, preferisse considerar-se descen
dente de índios.
Nos períodos e nos lugares em que o governo imperial atribui grande im
portância ao teatro lírico, a presença negra e mulata é em geral limitada a
papéis secundários, ou pelo menos disfarçada, sem apresentar características
próprias. Nos momentos de crise, porém, quando os financiamentos oficiais
dim inuem e a importação de artistas estrangeiros é difícil, a produção local se
sobressai.
29 L. W. Nogueira. “Manoel José Gomes cm Campinas”, in: Arteunesp, V/l: 103-24, 1991.
'I' K A T R O KM MÚSICA NO B R A S I I, M O N Á R Q U I C O 51
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58 MARIA C L E M E N T I N A PEREIRA C U N 11 A
te sobre os sentidos da folia. Bem antes disso, por exemplo, o tema dera
ensejo a saborosas provocações, como a desenvolvida por um impagavelmen-
te irônico Machado de Assis contra o edmologista Castro Lopes. Este, ho
mem de saber e prestígio no período, defendia uma tese de indiscutível lon
gevidade: a desvinculação originária entre o carnaval e o calendário católico,
necessária à afirmação de sua imemorialidade 0 11 à remissão de suas origens à
Antiguidade clássica. Machado produziu um longo comentário em que o ab
surdo foi ressaltado sem piedade:
Ele não discute a segunda suposição, finalmente adotada pelo erudito eti-
mologista, mas cria habilmente em seu leitor a idéia de que isso era total
m ente desnecessário. Trata-se, entretanto, de Machado de Assis: de forma
geral, este tipo de associação bem ao agrado dos próprios foliões das socieda
des não era questionado, tornando-se um padrão explicativo de longo curso
quando se tratava de, nas redações de jornais, produzir anualm ente textos
sobre o carnaval. Mesmo para autores que, ao longo deste período, manifes
tavam desânimo quanto aos rumos da folia, a idéia de uma festa presa a uma
tradição imemorial permanecia intacta. Dir-se-ia que se transformou em uma
espécie de mágica capaz de assegurar a sua permanência apesar de eventuais
desvios. Valentim Magalhães era um destes pessimistas, na década que se
seguiu à proclamação da República.
A crônica, no entanto, term ina com o próprio autor saindo para a pândega
a envergar um dominó roxo, no rastro de uma sedutora espanhola — como
a reafirmar a tradição imorredoura e invencível da folia de que se julgavam
os exclusivos portadores na cidade. A par da auto-imagem destes letrados
foliões (nada menos que sucessores dos faunos “sensuais” perseguidores
de bacantes-espanholas), a crônica revela sua decepção com os rumos da
República — e, por suposto, de um carnaval que se em penhara tão profun
dam ente em construir um novo destino para o país, como os militantes cor
tejos da década de 1880 registrados por Agostini deixam perceber: só no
carnaval de 1881 ele registra dois carros de crítica intitulados “A Mancha de
Jú p iter” com críticas diretas ao imperador e sua atitude em face do regime
escravista, vários outros com alusões ao abolicionismo, a reforma eleitoral
em debate no parlamento e críticas a outras instituições e práticas do Se
gundo Reinado. D ez anos depois, o tom e o conteúdo desta crônica tornam-
se cada vez mais generalizados espelhando a quebra das expectativas polí
ticas, entre literatos nos anos difíceis de Floriano Peixoto — talvez porque,
quando o futuro parece incerto, a tradição tenda a tornar-se eficaz tábua de
salvação. Mas não é este o foco que mais nos interessa aqui. A questão
reside em outra parte: se não se trata efetivam ente de uma “tradição” ve
neziana ou de resquícios das lupercais — seja qual for a ordem em que
ponham os as sílabas — seriam meras “invenções” de literatos e etimolo-
gistas?6
Não exatamente, se entenderm os o termo como sinônimo de “importa
ção” ou imposição de novos valores — mais que como o esforço sistemático
de renomear e significar práticas costumeiras. E certo que os agentes desta
transformação pretendiam a mudança e jamais esconderam suas intenções.
O em penho em atualizar os costumes carnavalescos precisava recorrer à An
tiguidade para inscrever o país na “boa” cultura ocidental fazendo com que a
tradição, neste caso, pudesse aparecer como um complemento necessário à
modernidade — e os intelectuais brasileiros lançaram-se na empreitada bem
antes dos dilemas republicanos. Na construção desta mão dupla entre mo
dernidade e tradição, usaram um arsenal intelectual e artístico tão rico quan-
Figura 1. Ângelo Agostini. “Carnaval de 1881”, in: Revista Illustrada, <5(241):4-5 (1881).
“O carnaval era, sem dúvida, uma das liturgias mais antigas da tradição,
e tinha origem nobilíssima nas festas dionisíacas dos velhos gregos [...]. O
sentim ento desta liturgia prevaleceu na multidão e é hoje uma homena
gem religiosa à memória dos antigos deuses que fizeram a humanidade
feliz durante tantos séculos.”3
3 Fon-fon, 3 de março de 1917. O trecho faz parte do editorial da revista intitulado “O carna
val a sério”.
Angelo Agostini. “Carnaval de 1881”. Revista Ilustrada, ano 4, n." 241 (1881),
Foto André Ryoki.
VENEZA, ÁFRICA, BABEL: LEITURAS
REPUBLICANAS, TRADIÇÕES COLONIAIS
E IMAGENS DO CARNAVAL CARIOCA*
M a r i a C l e m e n t i n a P e r e i r a C u n h a
“Ao Povo.
Alas! Abri caminho à forte rapazia
que vai passar avante à luz das tradições!
Em alas! Dai caminho à sã democracia
que vem de novo erguer seus rútilos brasões!”1
* E ste texto, com ligeiras modificações, é parte do capítulo 4 do livro Ecos da Folia. Uma
História Social do Carnaval Carioca de 1880 a 1920 (título provisório), a ser publicado pela
Com panhia das Letras. Para sua elaboração contei, nos últimos anos, com bolsa de produ
tividade em pesquisa do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq).
1 Pttff dos Democráticos para o carnaval de 1881, publicado na Gazeta de Notícias de 1.° de
março de 1881.
2 Angelo Agostini. “Carnaval de 1881”, in: Revista IUustrada, <5(241 ):4-5 (1881).
60 M A R I A C I. E M E N T I N A P E R E I R A C U N H A
7 José de Alencar foi, juntam ente com outros importantes literatos do período (como M a
nuel Antônio dc Almeida, Laurindo Rabelo e outros) e membros da elite social carioca, um
fundador do Congresso das Sum idades Carnavalescas, a inauguradora dos “préstitos
venezianos” do carnaval carioca. O próprio Alcncar anunciava a primeira aparição da socie
dade antevendo que seus membros iriam “passar a tarde como se passa uma tarde de
carnaval na Itália” (Gazeta Mercantil, 14 de janeiro de 1855). No mesmo jornal, ele descreve
o préstito e a elegância de seus integrantes, em 25/2/1855.
R Cf. Valéria de Marco. \ perda das ilusões. Campinas: Edunicam p, 1993. Ver tam bém Renato
Ortiz. Românticos e folcloristas. São Paulo: Olho d ’Água, 1992.
9 Cf. Mello Moraes Filho. Festas e tradições populares no Brasil. São Paulo-Belo Horizonte:
Edusp-Itatiaia, 1979, p. 34. Muitas das práticas do dia-a-dia dessas sociedades — que fun
cionavam ativam ente durante todo o ano com bibliotecas, conferências, bailes, saraus e
outras atividades — como o hábito de esmolar pela manumissão de escravos ou outras
obras de “caridade” peregrinando pelas ruas com estandartes da agremiação, estavam an
corados nos hábitos de seus pais e avós organizados em irmandades festivo-religiosas. Vide
M artha Abreu. O Império do Divino. Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro (1830-
1900). 'le se de doutorado em História. Campinas: Unicamp, 1996.
VENEZA, ÁFRICA, BABEL 61
Deduzimos, com mais facilidade que o Dr. Castro Lopes, que tais présti
tos de tempos longínquos funcionavam segundo cânones ao menos seme
lhantes aos que presidiam os desfiles de folgazões rapazes das Sociedades:
tam bém lá os carros alegóricos eram expressão de “idéias” — para além da
coincidência nas intenções de “dar normas aos mais para o futuro” que, ao
que parece, jamais deixou de freqüentar as formas de auto-representação das
elites. Tais normas, certam ente revestidas de propósitos de reafirmação das
hierarquias sociais, vinham além disso ancoradas em simbologias buscadas na
mitologia clássica, executadas com esmero e desenho muito semelhantes aos
carros de Tenentes, Democráticos e Fenianos que vamos encontrar nos car
navais cariocas das últimas décadas do século XIX e início do XX. Alguns dos
magníficos carros dessa festa podem ser trazidos aqui para efeito de com
paração.
10 Relação dos Magníficos Cairos que sefizerão de arquitetura, perspetiva efogos: os quais se executa
ram p o r ordem do I/ust.mo, e Excel.mo Senhor L uiz de Vasconcelos, Capitão General de M ar e
Terra, e Vice-Rei dos Estados do R razil, nasfestividades dos desposórios dos Sereníssimos Senhores
Infantes de Portugal. Nesta cidade capital do Rio de Janeiro, em 2 defevereiro de 1786 (Biblioteca
Nacional, SOR).
11 Ibidem , p. 6.
66 M ARIA CLKM ENTINA PERKIRA CUNHA
15 Francisco Calmon. Relação das faustísim as festas ( 1762). Rio de Janeiro: Funarte/IN F, 1982.
Para análise inovadora destas festas públicas, vide Silvia Hunold Lara. “Significados cruza
dos: um reinado dc Congos na Bahia setecentista”, in: Maria C lem entina P. Cunha (org.).
Carnavais e outras f(r)estas. Ensaios de história social. Rio dc Janeiro: Nova Fronteira (no
prelo). Em outra perspectiva, ver ainda Mary dei Priore. Festas e utopias no B rasil colonial.
São Paulo: Brasiliense, 1994.
16 Francisco Calmon. Op. cit., especialm ente p. 23-4, sem elhante ao i|uc encontrarem os mais
tarde em uma infinidade de cordões que se multiplicarão pela Corte.
VENEZA, ÁFRICA, BABEI. 67
Figura 4. “Slaves at carnival, Quitanda Street, Rio de Janeiro, Brazil, 1868” , in:
Hoffenberg, H. L. Nineteenth-Century South America in Photogmphs. Nova York:
D over Publications, 1982, plate 153.
17 John Luccock. Notas sobre o Rio de Janeiro. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiraia-Edusp, 1975,
p. 168. A festa descrita é de 1810.
64 MARIA CLEMENTINA PER K IRA CUNHA
13 Aliás, processo muito sem elhante era experim entado cm Portugal na segunda m etade do
século XIX: “as duas prim eiras cidades do país têm este ano um carnaval [...] chic,
commencement de siècle, um carnaval à la Nice" — escrevia um correspondente em Lisboa
para a Gazeta de Notícias de 21 dc março dc 1905. Sobre o assunto ver Maria Isaura Pereira
de Queiroz. Carnaval brasileiro, o vivido e o mito. São Paulo: Brasiliensc, 1993, p. 34-42.
VENEZA, ÁFRICA, BABEL 65
com a aljava ao ombro, e arco na mão [...]; discorriam pelo monte vários
animais, e pássaros do país, que por entre as ervas, e flores, se apascenta
vam. Este belo carro servia para aguar a praça, e por essa razão esguichava
água por diferentes repuxos, que saíam por entre as flores, que eram todas
artificiais [...].” 14
14 Luiz Gonçalves dos Santos (Padre Perereca). Memória para servir à História do Reino do
B rasil (1825). Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Edusp, 1981, p. 265.
62 MARIA CLEMENTINA PEREIRA CUNHA
Um exemplo era o carro dedicado a Baco, que figurava com destaque nas
festividades:
Figura 2. Carro de Baco. Relação rios Magníficos Carros que sefizerão de arquitetura, perspetha efogos: os quais
se executaram por ordem do l/ust.mo, e Excel.mo Senhor Luiz de Vasconcelos, Capitão General de Mar e Terra, e
Vice-Rei dos Estados do fírazil, nas festividades dos desposúrios dos Sereníssimos Senhores Infantes de Portugal.
Nesta cidade capital do Rio deJanei/v, em 2 de fevereiro de I7S6 (Biblioteca Nacional, SOR).
1S Ciata, entre outras coisas, era líder de um rancho satírico intitulado “O Macaco c O utro”,
sediado cm sua casa na Cidade Nova. Para alem do sugestivo título, depoim entos corrobo
ram a intenção clara de zombar da expressão e do sentim ento racista. Um de seus com po
nentes, por exemplo, refere-se a uma das aparições públicas do grupo e seu hábito de
m urmurar “nós somos gente” antes de em itir o grito dc guerra: “o macaco é outro!”. Cf.
Jornal do B rasil de 16/1/1916, apud: Maria Paula Nascimento Araújo. Um mundo ao avesso.
Dissertação dc mestrado cm História, Niterói: Universidade Federal Flum inense, 1989.
Ver também Jota Efcgê. Figuras e coisas do carnaval carioca. Rio dc Janeiro: Funarte, 1982,
p. 212 e passim, e O Globo de 15/1/1974 onde o mesmo autor entrevista Lili, neta de Ciata
e ex-porta estandarte do grupo.
19 Mello Moraes Filho. Op. cit., p. 111-5.
2n Cf. Jacques Rcvel. “A beleza do morto”, in: A invenção da sociedade. Lisboa: Difcl, 1989.
VENEZA, ÁFRICA, BABEL 69
carioca do período. No carnaval de 1881 que Agostini nos descreveu com seu
magnífico desenho, por exemplo, os jornais publicavam dezenas de anúncios
nos quais “comissões de festejos” de ruas do Rio de Janeiro solicitavam às
famílias a colocação de flores, colchas e iluminação nas janelas dos sobrados,
enfeitando-as para a passagem das Sociedades,21 e este hábito ainda perdura
va no início do século XX na montagem do cenário por onde desfilavam as
Sociedades. Ora, as chamadas “luminárias” ou o hábito de enfeitar ruas e
sacadas com folhagens e tapetes — práticas repetidam ente mencionadas na
crônica carnavalesca dos séculos XIX e XX, para a qual se constituem comis
sões por bairros e ruas — eram elementos constantes e centrais das festas
públicas presentes em ocasiões festivas coloniais e em datas bem avançadas
do século XIX, como mostram as fotos do edifício da alfândega e da Praça do
Comércio em 1872, por ocasião dos festejos públicos celebrados na Corte
pela chegada de D. Pedro II e sua família ao Rio de Janeiro,22 voltando de
uma viagem à Europa. Estávamos então a dezessete anos do final da monar
quia, causa pela qual algumas das Grandes Sociedades batiam-se nas ruas
enfrentando a violência de policiais ou capoeiras a soldo de lideranças políti
cas do regime.
Festas públicas que agregam desfile de carros, préstitos mistos com dan
ças e música, idéias, alegorias e burla chistosa, versos alusivos ou explicati
vos, certam ente não podem deixar de lembrar-nos de carnavais feitos de carros
de idéias, música de bandas marciais,/>«$> e alusões em versos distribuídos
às vezes do alto dos carros e todos os elementos que compunham o carnaval
das Grandes Sociedades na segunda m etade do século passado. Por outro
lado, a presença simultânea de diferentes segmentos sociais nas festas ofi
ciais e religiosas, com múltiplas formas de expressão e participação, era traço
comum à tradição festiva local antes mesmo da Independência ou na primei
ra m etade do século XIX.23 Tudo isso sugere uma espécie de permanência,
bem ao agrado de folcloristas de velha cepa que tentaram, já no século XX,
identificar no carnaval dos préstitos os sinais de uma personalidade cultural
própria, capaz de reconciliar os brasileiros com suas origens. Fácil caminho:
nos pouparia de vãos esforços para buscar “mediadores” ou outras fórmulas
capazes de explicar a identidade nacional e harmonizar passado e presente,
fazendo da história do carnaval pouco mais que uma alegre evolução.
Cabe refletir, no entanto, sobre a passagem do tempo e aquilo que ela
imprime, se não às formas de brincar e festejar, ao menos aos seus significa
dos. Por trás da “festa de todos” dos carnavais das Sociedades ou no interior
24 Luís da Câmara Cascudo. Tradição: ciência do povo. São Paulo: Perspectiva, 1967.
25 Cf. Cario Ginzburg. Mitos, emblemas esinais. M orfologiaehistória. São Paulo: Com panhia das
Letras, 1989 — particularm ente “Raízes do paradigma indiciário”.
V K N K 7. A , ÁFRICA, BABEL 71
□ □□
72 MARI A C L F. M E N T I N A l> K R K I R A C U N H A
M a r i a C l e m e n t i n a P e r e i r a C u n h a é professora do Departamento de
História da Unicanip e diretora do Centro de Pesquisas em História Social da Cultura
(Cecult) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, na mesma Universidade. Como
resultado de sua pesquisa sobre o carnaval carioca, acaba de concluir um livro a ser
lançado brevemente. Publicou ainda diversos artigos e organizou a coletânea Carna
vais e outras f(r)estas, a ser publicado pela Editora Nova Fronteira.
& C atherine Brice, (cd.).Cérémonial etrituelà Rom e(XVl-XIXsiècle). Roma: École Française
de Rome, 1997, p. 135.
3 M artine Boiteaux. “Parcours rituels romains à 1’époque m odernc”, in: Maria A ntonietta
Visceglia & C atherine Brice (ed.). Cérémonial et rituel à Rome (X V I-X IX siècle). Roma: École
Française de Rome, 1997, p. 86.
4 Ver Diogo Ramada Curto. A cultura política em Portugal (1518-1642). Comportamentos, ritos
e negócios. T ese de doutoram ento em Sociologia histórica apresentada à Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Lisboa: [s.n.], 1994, p. 217-
8 e 302.
5 Cf. Luís Ramalhosa Guerreiro. La représentation du pouvoir royalà l'âge baroqueportuguaise
(1687-1753). T h èse pour lc doctorat en Histoire presentée à 1’École des H autes E tudes en
Sciences Sociales (Paris), [s.l.], [s.n.], 1995, vol. I, p. 6.
6 Para além das muitas relações de exéquias, de entradas, de festas, de sínodos, etc., cujo
inventário e estudo sistemático estão ainda por fazer, mas que proliferaram bastante na
primeira m etade do século XVIII, foram editadas por esta altura algumas obras fundam en
tais do ponto de vista da codificação de muitas cerimônias, umas oriundas de Roma, outras
da autoria de cerimonialistas portugueses. Entre estas m erecem destaque: Ceremoniale
episcoporum Clementispapae V III et InnocentixX. Romae: Michaelis Angeli e Petri Vincenti,
1713 (a primeira edição é de 1600, mas o texto foi posteriorm ente objeto de vários ajusta
mentos), Lucas de Andrade. Acçoens espiscopaes tiradas do Pontificai Romano e cerimonial dos
bispos com hum breve compêndio dos poderes e privilégios dos bispos. Lisboa: Joam da Costa,
1671; João Cam peio de Macedo. Thesouro de ceremonias, que contem as da missa so/emne e tudo
o mais que pelo discurso do anno se pode offerecer, com advertencias particulares, ordenadas para
melhor entendimento das rubricas. Trata também da sagração dos bispos e a matéria dos defuntos.
Lisboa: Officina de H enrique Valente de Oliveira, 1657; Raimundo Ferreira de Abreu.
Directorio de Cerimônias do Coro, e parochos, muy util, e necessário para todo o sacerdote, que
exercitar hum, e outro ministério. Lisboa: Antônio de Sousa da Silva, 1738. Este Raimundo
Abreu foi mestre-dc-cerimônia da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e Lucas de Andrade
ETIQUETA E CERIMÔNIAS PÚBLICAS 77
AS ENTRADAS
Entre o final da Idade Média e os inícios dos tempos modernos o ato sole
ne das entradas reais e principescas numa cidade tornou-se uma das cerimô
nias mais bem conseguidas de afirmação e publicitação do poder dos seus
protagonistas, bem como uma das festas máximas do tempo.
De acordo com Bernard Guenée, que as estudou com base na situação
observada em França, no século XIII as entradas seriam ainda cerimônias
modestas, tendo-se tornado um ato maior no contexto da vida política apenas
no transcurso da centúria seguinte, enriquecendo-se, a partir de então, com
novos signos do poder. Assim, em 1360, João, o Bom, regressado do seu cati
veiro em Inglaterra, usa pela primeira vez a entrada a cavalo sob pálio em
Paris, costum e que o neto Carlos VI reiterou várias vezes entre 1389-1390.s
Pelos meados do século XV, teria principiado o período glorioso das entradas,
que se tornaram mais numerosas e espetaculares, ao mesmo tempo que iam
assumindo feições cada vez mais militares, de que a cerimônia da entrega da
chave da cidade, como sucedia ancestralmente com as cidades vencidas em
relação aos seus conquistadores, é um exemplo. O seu declínio ter-se-ia co
meçado a manifestar desde os meados do século XVII, à medida que se afir
mava o poder absoluto do rei. Segundo R. E. Giesey, teriam sido abandona
dos no reinado de Luís XIV, e a última teria sido a efetuada em Paris, em
1660.9 A partir de então, a imagem do rei passou a ser elaborada no interior da
sociedade de corte m ediante um vasto programa de realizações artísticas:
bailados, torneios, carrocéis, fogos de artifício e as entradas tornaram-se um
e Cam peio de Macedo, respectivam ente capelão e tesoureiro da capela real, o que de certo
modo confirma a capela real como im portante centro codificador de regras de cerimonial e
etiqueta como já havia salientado Diogo Ramada Curto. “A capela real: um espaço de
conflitos (séculos XVI a X VIII)”, in: Revista da Faculdade de Letras — Línguas e Literaturas,
p. 143-53, 1993.
7 D e acordo com Richard Trexler este cargo de mestre-de-cerimônias (magistricaeremoniarium)
teria aparecido pela primeira vez na corte papal pelos finais do século XIV, o que de algum
modo confirma o papel pioneiro que esta teve na codificação de rituais e cerimônias públi
cas; cf. Richard Trexler. The Libro Cerimoniale o f the Florentine Republic by Francesco Fi/arete
andAngelo M anfidi. Genebra: Droz, 1978, p. 18.
8 Há notícias anteriores da entrada sob pálio. Em 1327, Afonso IX fê-lo em Sevilha sob pálio
de damasco; cf. Ana Maria Alves. As entradas régias portuguesas. Lisboa: Livros Horizonte,
[s.d.], p. 20.
9 Cf. R. E. Giesey. Cérémonial et puissance souveraine. France X V I-X V II siècles. Paris: Armand
Colin, 1987, p. 76.
78 JOSÉ PEDRO PAI VA
10 Ver François M oureau. “Les entrées royales ou lc plaisir üu prince”, in: Dix-HuitièmeSiècle,
17:195-208, 1985.
11 Esta breve síntese segue de perto as leituras propostas por Bernard G uenée. “En guise de
conclusion”, in: Christian D esplat & Paul Mironneau (dir.). Les entrées. G/oire et déclin d'un
cérémonial. (Actes du colloque tenu au châtcau de Pau les 10 et 11 Mai 1996.) Biarritz: JD
Éditions, 1997, p. 260-2; e Luís Ramalhosa Guerreiro. La représentation d u p o u vo ir..., op.
cit., vol. II, p. 66-9.
ETIQUETA E CERIMÔNIAS PÚBLICAS 79
12 Esta sinopse das entradas régias em Portugal baseia-se em Ana Maria Alves. As entradas
régias..., op. cit. e Luís Ramalhosa Guerreiro. La représentation du pouvoir..., op. cit., vol. II,
p. 68-118.
13 Ver sobre o assunto M artine Boiteaux. Parcours rítuels..., op. cit., p. 69-86.
14 Em texto publicado em 1993, ver José Pedro Paiva. “O cerimonial da entrada dos bispos
nas suas dioceses: uma encenação de poder (1741-1757)”, in: Revista de História das Ideias,
15:119-20, 1993, já assinalei como as entradas episcopais não têm sido objeto da atenção
que mereciam por parte dos historiadores, como se nota em algumas sínteses mais recen
tes, por exemplo, Edward Muir. R itual in Ear/y Modem Europe. Cambridge: Cambridge
University Press, 1997, sobretudo p. 239-46. Muito significativo a este respeito é o fato de,
no Congresso realizado em Pau, em 1997, dedicado ao estudo das entradas, apenas uma
em doze comunicações ter tido por objeto as entradas episcopais; ver Adrien Blazquez.
“L en tré e de l’évêque-seigneur dans sa ville-capitale de Siguenza”, in: Christian Desplat
& Paul M ironneau (dir.). Les entrées..., op. cit., p. 187-206.
15 Outras cerimônias que podem ser lidas como cerimônias públicas da Igreja são a recepção
do bispo pela vereação da cidade, a tomada de posse de um benefício eclesiástico, a visita
pastoral do prelado, a realização de um sínodo ou de um capítulo-geral de uma ordem
religiosa, uma procissão, as bênçãos praticadas pelo prelado na sua diocese, festas pela
canonização de um santo ou pelo nascimento ou casamento de um príncipe.
16 A exploração de atas dos acórdãos dos cabidos das dioceses bem como das sessões dos
80 JOSÉ PEDRO PAIVA
senados municipais, que não tivemos possibilidade de em preender, poderão trazer dados
novos a este respeito.
17 Ver Fortunato Almeida. História da Igreja em Portugal. Nova ed., Porto-Lisboa: Civilização,
1967-71, vol. 2, p. 708, 712-3 e 715-6, com a respectiva identificação da fonte.
18 Ver respectivam ente Luís Antonio Rosado Cunha. Relação da entrada quefez o Excelentíssimo
e Reverendissimo Senhor D. Fr. Antonio do Desterro Malheyro bispo do Rio de Janeiro, em o p ri
meiro dia deste presente anno de 1141 [...]. Rio de Janeiro: Antonio Isidoro da Fonseca, 1747
e Relação da viagem e entrada quefe z o Exce/entissimo e Reverendissimo Senhor D. F r Miguel de
Bulhoens e Sousa sagrado bispo de M a laca e terceiro bispo do Grão Pará para esta sua diocese.
Lisboa: Manuel Soares, 1749.
19 J. Baptista Lavanha. Viagem da Catholica Real Magestad dei Rey Filipe II Nosso Senhor ao
Reyno de Portugal e rellação do solene recebimento que nelle se lhe fez. Madri: T hom as Iunti,
1622.
20 É esta lógica que perm ite perceber com outros olhos, por exemplo, o fato de o anônimo
autor da relação da entrada do bispo do Pará, de que adiante falaremos, não se ter esqueci
ETIQUETA E CERIMÔNIAS PÚBLICAS 81
O prelado raramente neles tomava parte ativa, pois nesta altura recolhia-se
ao seu paço. Os festejos, que chegavam a durar vários dias (habitualm ente
três), podiam ser preenchidos com luminárias, foguetes, danças, touros, si
mulações de duelos ou pequenas batalhas, concursos de poesia, representa
ções teatrais e banquetes, que seguramente muito contribuíam para a grande
adesão popular a esses atos. No Pará, o bispo promoveu num dia um tríduo
que decorreu no colégio jesuíta de Santo Alexandre, deu noutro a comunhão
a todos os que estavam preparados para uma salutar recepção do sacramento
e num terceiro fez uma pregação pública durante a qual distribuiu relíquias
pela população.”
Como se procurou demonstrar tudo era previamente preparado e decorria
de acordo com regras de etiqueta bastante precisas que tinham fundam ento
na tradição, nos códigos fixados pelo Cerimonial dos Bispos e que os mestres-
de-cerimônias estipulavam, estando, por certo, particularmente atentos ao
seu cum primento, ainda que fossem passíveis de receber algumas inovações,
isto é, não eram cerimônias com pletam ente conservadoras e fechadas.34 Esta
atenção prestada à etiqueta é muito evidente na ordem assumida pelas comi
tivas que iam receber o bispo fora de portas, na hierarquização dos indivíduos
que, em procissão, desfilavam com o prelado pelas ruas da cidade até à cate
dral, na criteriosa escolha dos locais onde transcorriam as várias etapas do
programa e se faziam paragens (porta da cidade, catedral, paço episcopal e
percursos que ligavam estes pontos), nos gestos e palavras que cada um prota
gonizava (eram muito significativas as bênçãos e esmolas que o bispo prodi
galizava, o segurar as varas do pálio que cobria o prelado, ou o estribo do seu
cavalo), nas vestes que endossava (a sua cor, materiais, riqueza) e nos símbo
los com que se aparelhava (as mitras, o báculo e o anel do bispo, as varas dos
vereadores, as bandeiras dos ofícios, os estandartes das milícias, etc.).
Ora a etiqueta observada durante o cerimonial não deve ser vista como ato
de ostentação, ou como um aparato frívolo e desprovido de significação so-
Porto: Officina Prototypa Episcopal, 1742, p. 30. Esta original c invulgar relação de forma
poética é composta por um total de cem versos.
33 Ver Relação da viagem e entrada quefez o Excelentíssimo e Reverendissimo Senhor D. F r Miguel de
Bulhoens e Sousa, op. cit., p. 7-8.
34 A discussão sobre o significado fundador ou ilustrativo dos ritos e das cerimônias não está
acabada. Pesem as críticas de uma certa lógica circular ao tipo de idéias que perfilho, feita
pelas interpretações sem pre lúcidas de Alain Boureau, considero que um cerimonial tem
claram ente uma função fundadora (de instituição, como diria Bourdicu) c que nesse senti
do adm ite e é expressão de alguma inovação. Sim ultaneam ente é a figuração de uma reali
dade preexistente, que se expressa por meio de um conjunto de práticas conservadoras,
perpetuadas pela tradição e que, por isso, têm elevada tendência para a inércia. Sobre isso
ver Alain Boureau. “Les cérémonies royales françaises entre perform ance juridique et
com pétence liturgique”; \r\-.Annales ESC, 46{6):1254, 1991; Edward Muir. R itu a l..., op. cit,
p. 20 e Jeroen Duindam . Myths o f Power..., op. cit., p. 98-100.
ETIQUETA E CERIMÔNIAS PÚBLICAS 85
inglesa é de 1992). Esta avaliação de Burke constata uma das dificuldades com que se
debate habitualm ente o historiador, mesmo o que conhece as indagações e sentidos do
labor de antropólogos e sociólogos e reconhece a sua pertinência.
43 Cf. Luís Antonio Rosado Cunha. Relação da entrada..., p. 7-8.
88 JOSÉ PRDRO PAIVA
menos próximo, teria de qualquer modo de recompensar. Por outro lado, apro
veitou para apreciar, dentro dos seus padrões estéticos, os sons, os movimen
tos e os cenários em que tudo se desenrolou e para começar a conhecer algu
mas das figuras mais proem inentes da comunidade aonde pela primeira vez
chegava. Do ponto de vista do patrocinador do evento, ficava marcada a sua
posição de destaque em relação aos seus conterrâneos, que todos tacitamen-
te reconheciam ao participar no ato, para além de ficar colocado em posição
cômoda ante o prelado. Não sabemos o que se teria passado com o cabido,
mas admite-se que possa ter ficado em situação algo ingrata pois, como auto
ridade máxima religiosa até à chegada do prelado, devia ter eventualm ente
assumido papel de maior relevância na sua recepção. Mas é tam bém admissí
vel que os cônegos tenham aceitado o ato entendendo-o como um bom meio
de não mostrar logo à partida elevada dose de sujeição àquele com quem , a
partir de então, conviveriam em situação de obediência. A generalidade da
população, que tinha acorrido a dar vivas ao prelado quando ele desem bar
cou, na expectiva de uma esmola ou de uma bênção salvífica para um infortú
nio ou doença, por certo se quedou distante destes jogos e do deleite e mara-
vilhamento dos que presenciaram o ato. Aguardou pelos festejos dos dias
seguintes, alguns eventualm ente esperaram à porta do palácio pelas sobras
do banquete que foi servido após a opereta, e nos ouvidos e bocas de uns
quantos perpassaram rumores mal compreendidos, quiçá deturpados, do que
se teria passado intramuros.
Por fim deve sublinhar-se que a estrutura da cerimônia verificada no Brasil
era em tudo sem elhante ao que se passava no Reino e como estes rituais se
apropriavam de códigos e usavam tópicos que eram comuns tanto a entradas
régias,44 de seculares ilustres,45 de legados papais,46 fazendo assim todo o
sentido concluir com as palavras com que Martine Boiteaux assinalou sem e
lhante interpretação, no seu caso reportando-se à entrada papal: “Os elem en
tos simbólicos das culturas políticas herdeiras do império romano, cavalgada
sob dossel, pavimentação dos caminhos, ordem triunfal, presença das mino
rias, iluminações, sons e ruídos, vestuário específico e cores particulares, to
dos estes elem entos eram postos em cena”.47
44 Uma boa descrição para o caso português, no século XVIII, pode ver-se em Luís Ramalhosa
Guerreiro. La représentation du p ouvoir..., op. cit., vol. II, p. 78-80.
45 Veja-se a interessante e inédita descrição da entrada do governador e capitão-geral do Algarvc
em: Relação da entrada pública que deo o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor D. Affonso de
Noronha, governador e capitão geral do reino do Algarve, em 7 de Junho de 1750 na cidade de
Lagos, capital do dito reino. Lisboa: Officina de Miguel Manescal da Costa, 1751.
46 Veja-se o relato das entradas do Cardeal Alexandrino, nas cidades de Évora e de Lisboa, no
ano de 1571, em Diogo Barbosa Machado. Memórias para a história de Portugalque comprehendem
o governo dei Rey D. Sebastião. Lisboa: Regia Officina Sylviana, 1747, parte III, cap. I.
47 Cf. M artine Boiteaux. Parcours rituels..., op. cit., p. 50.
ETIQUETA E CERIMÔNIAS PÚBLICAS 89
48 Uso esta expressão para englobar todo o vasto corpo de rituais/cerimônias promovidas pela
Igreja ou pelos seus membros, seguindo a proposta de Alain Boureau, no seu caso aplicado
à pluralidade de rituais da esfera da ação política dos monarcas, em que propôs a noção de
“manifestações públicas e regulamentadas da pessoa real” (“manifestations publiques et
réglées de Ia personne royale”), cf. Alain Boureau. Lescérémonies royales..., op. cit., p. 1254.
49 Ver Clifford Geertz. Negara: o Estado teatro no século X IX . Lisboa: Difel, 1992.
50 Ver Marc Bloch. Les rois thaumaturges. Étude sur le caractère sum aturelattribuéà la puissance
royale particulièrement en France et en Ang/eterre. Estrasburgo: Librairie Istra, 1924.
51 Ver Ernst H. Kantorowicz. TheKing’s Two Bodies:astudy in medievalpoliticaltheo/ogy. Princeton:
Princeton University Press, 1957.
90 JOSÉ PKDRO PAI VA
52 Ver Richard A. Jackson. Viveleroi! A history of thefrench coronationfrom Charles Vto CharlesX.
Chapei Hill: University of Norrh Carolina Press, 1984 e Jacques Le Goff. “Reims ville du
sacre”, in: Pierre Nora (dir.). Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1986, vol. II, p. 89-114.
53 Ver Sarah Hanley. The L it o f the Justice o f the Kings o f France: constitutional ideo/ogy in legend,
ritual and discourse. Princeton: Princeton University Press, 1983.
54 Ver Bernard G uenée & F. Lehoux. Les entrées royales françaises, 1328-1515. Paris: 1968 e
Lawrence M. Bryant. The King and the City in the Parisian Royal E ntry Ceremony: politics,
ritual and a rt in the Renaissance. Genebra: Droz, 1986.
55 Ver Ralph E. Giesey. The Royal Funeral Ceremony in Renaissance France. Genebra: Droz,
1960.
36 Ver P eter Burke. A fabricação do rei..., op. cit., p. 96 para a referência concreta a Charles
L ebrun como “fabricante da imagem” do rei (a edição original da obra é de New Havcn:
Yale University Press, 1992).
57 Ver Robert A. Schneider. The Cérémonial City: Toulouse observed 1738-1780. Princeton:
Princeton University Press, 1995; Richard C. Trexler. Public Life in Renaissance Florence.
Nova York: Academic Press, 1990; E. Muir. Civic R itual in Renaissance Venice. Princeton:
Princeton University Press, 1981.
58 Ver Diogo Ramada Curto. A cultura política..., op. cit., p. 206ss.
ETIQUETA E CERIMÔNIAS PÚBLICAS 91
palavras e dos cenários para esse efeito construídos, a utilização destes atos e
da etiqueta como veículos de afirmação de poder e de representação social, a
profusão de conflitos que tudo isso gerava, encontram-se tanto no mundo
cortesão e régio, como no eclesiástico e episcopal e, provavelmente, por to
das as manifestações públicas do tempo, uma vez que elas não têm uma
dim ensão exclusivam ente política, mas tam bém de representação social
devendo também ser lidas como elem entos de um modelo de sociedade hie-
rarquizada onde a dignidade e a honra se representam por marcas prenhes de
significação.
O que determinava a precedência num cerimonial e que acabava por con
figurar as modalidades de etiqueta nele seguidas era a dignidade. Ora este
conceito de dignidade, que podia depender de uma vaga representação que
um grupo de pessoas atribuía aos seus múltiplos componentes, do exercício
de um poder ou jurisdição, da hereditariedade, das funções que se desem pe
nhavam ou de um privilégio que a própria lei estipulava, não se circunscrevia
à esfera da ação política. Era um conceito estruturante da própria ordem so
cial e que, por conseguinte, se inscrevia por toda a sociedade.
N esse sentido, parece forçoso começar a dedicar uma outra atenção ao
modo como no âmbito da esfera da Igreja esta ritualização do poder foi utili
zada, tanto mais quanto há muitos exemplos de que os bispos, para nos cen
trarmos apenas neste setor do clero, tal como os monarcas, também souberam
utilizar uma multiforme gama de programas de afirmação do seu estatuto.
Dê-se como exemplo a ação do primeiro patriarca de Lisboa, D. Tomás de
Almeida (1717-1754). Este prelado utilizou um rico e multifacetado progra
ma para maravilhar, persuadir e assim manifestar o seu prestígio e poder. Para
além da habitual entrada solene,64 promoveu uma série de outros festejos.65
Entre eles contam-se os ocorridos durante uma visita pastoral que efetuou à
vila de Alcobaça em 1721, na qual durante três dias houve serenatas notur
nas, cortejos com carros que faziam representações alegóricas, comédias e
touros; ou as festas que no ano de 1726 organizou em Lisboa celebrando a
canonização de São Luís Gonzaga e Estanislau Koska; ou as festas pela cons
trução de novos templos que o próprio mandou edificar — como sucedeu em
Óbidos, em 1747, por ocasião da sagração do altar da Igreja do Senhor Jesus
da Pedra, templo que desde 1739 se começara a edificar a mando do prelado.
N esta última cerimônia, houve magnífica procissão que contou com a pre
sença de membros da família real, todo o clero regular e secular, as várias
64 Ver Relação da form a e ordem que se observou na procissão de entrada do patriarca desta cidade
D. Tomás de Almeida em 13 de Fevereiro de 1717..., Biblioteca Geral da Universidade de
Coimbra, Manuscrito n° 50, fl 17-23.
65 Referências colhidas em Fernando Antônio da Costa Barbosa. Elogio histórico. Vida e obra
do eminentíssimo e Reverendissimo Cardeal D. Tomás de Almeida. Lisboa: Officina de Miguel
Rodrigues, 1754.
ETIQUETA E CERIMÔNIAS PÚBLICAS 93
□ □□
“ Ver, por exemplo, Gazeta de Lisboa Ocádental, n.° 3, mês de janeiro de 1728, dia 15 de
janeiro, p. 23-4.
67 Ver José Fernandes Pereira. /I acção artística do primeiro patriarca de Lisboa. Lisboa: Q uim e
ra, 1991, p. 47-65. Na mesma linha desta construção pode ser lido o conjunto de edificações
ordenadas pelo arcebispo de Braga, Rodrigo de Moura Teles, no Bom Jesus do Monte,
“êm ulo nortenho da grandiosidade de Mafra”; cf. José Fernandes Pereira. “O barroco do
século X V III”, in: Paulo Pereira (dir.). História da arte portuguesa. Lisboa: Círculo de Leito
res, 1995, vol. III, p. 52 e 68).
68 Ver José Fernandes Pereira. “O barroco do século XVIII..., op. cit., p. 32-4.
h'' Ver, por exemplo, a figuração do bispo de Lamego, D. João Camilo Madureira, numa Cir
cuncisão da autoria de Vasco Fernandes, atualm ente no M useu de Lamego, in: Dalila
Rodrigues. “A pintura no período manuelino”, in: Paulo Pereira (dir.). História da arte
portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 1995, vol. II, p. 201-02, 231 e 253.
70 Ver a excelente coleção destas viaturas pertencentes a prelados lamacenses atualm ente
existentes no M useu de Lamego.
94 JOSÈ PEDRO PAIVA
1 “Regim ento das entradas dos senhores reis nas cidades ou vilas”, in: E. Freire de Oliveira.
Elementos para a história do município de Lisboa, tomo II, 1.’ parte. Lisboa: T. Universal,
1887, p. 453. Acerca do lugar das entradas solenes no conjunto dos eventos cerimoniais
realizados no Portugal do século XVII, vide D. Ramada Curto. “Ritos e cerimônias da
monarquia em Portugal (séculos XVI a X VIII)”, in: AA.VV. A memória da Nação. Lisboa: Sá
da Costa, 1991, p. 201-65.
2 Cf. Pedro Cardim. Cortes e cultura política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Cosmos,
1999.
ENTRADAS SOLENES 99
o rio Tejo nestas ocasiões festivas, e o labor deste cerimonialista era de tal
modo minucioso que chegava ao ponto de definir o que o rei iria proferir em
certos momentos do cortejo. Vejamos um exemplo: quando os dignitários da
nobreza viessem beijar a mão ao rei, ele deveria recusar esse gesto de defe
rência, mas sempre de forma galante, declarando “Não! A Rainha”, ou seja,
mandando-os beijar, em primeiro lugar, a mão da rainha, um gesto cuja fina
lidade era “fazer cortesia à rainha sua Irmã”.11
Para além da sua minúcia, as instruções que acabamos de apresentar reve
lam que a realeza contava com a colaboração das corporações urbanas para a
organização das entradas. Com efeito, à câmara municipal cabia organizar —
e, em parte, financiar — uma parte do aparato festivo, o que levava a Casa
Real a avisar as autoridades locais, por vezes com alguns meses de antece
dência, da futura realização desse evento, a fim de que se preparassem devi
dam ente para o que iria suceder. Assim, parte das responsabilidades organi-
zativas encontravam-se nas mãos das autoridades urbanas, e este aspecto é
importante, pois permitia-lhes ditar algumas das mensagens que iriam ser
transmitidas no decorrer do evento. Por outras palavras, certos aspectos do
dispositivo festivo escapavam ao controle dos cerimonialistas régios.
Mais adiante analisaremos essa questão. Por agora importa recordar que
tais cerimônias se inscreviam num calendário comemorativo repetido com
uma certa regularidade desde tempos antigos, uma ancestralidade que cons
tituía, ela própria, uma das características mais salientes desses eventos. De
fato, todo o procedimento inerente à realização das entradas solenes estava
definido desde há muito, e trazia implícito um determinado entendim ento
do que sempre havia sido o relacionamento entre a realeza e as autoridades
urbanas. A entrada, organizada em parte pela cidade e em parte pela Casa
Real, transmitia uma certa noção de colaboração e de interdependência entre
as diversas entidades políticas presentes na festa, e a antiguidade dessa ceri
mônia, por sua vez, recordava que tal interdependência estava em vigor des
de há muito, e que não convinha alterá-la.
Por outro lado, a regular realização de tais cerimônias significava que os
reis de Portugal tinham o costume de demonstrar, por meio desses m om en
tos carregados de simbolismo, que continuavam a ter em conta as autorida
des urbanas, que continuavam a respeitar as suas liberdades e privilégios, e a
contar com elas para manterem em boa ordem aquela parcela do reino. E no
caso das entradas realizadas em Lisboa, essa era uma mensagem que se des
tinava não só à urbe que recebia solenem ente o monarca, mas tam bém ao
conjunto do reino, o qual era de alguma forma representado por essa cidade
dita “cabeça do reino”.
12 Cf. Fernando Bouza Álvarez. “Introdução: Portugal nas cartas de D. Filipe I às suas
filhas e o tem po de um príncipe m oderno”, in: Cartas para duas infantas Meninas. Portu
gal na correspondência de D. Filipe I para as suas filhas (1581-1583). Lisboa: D. Quixote,
1999, p. 21-2.
13 Acerca da problemática dos poderes urbanos e sua identidade jurisdicional, no mundo
ibérico dos séculos XVI e XVII, veja J. I. Fortea Pérez (org.). Imágenes de !a diversidad. E l
mundo urbano en la Corona de Castilla (s. XVl-XVI/f). Santander: Universidad de Cantabria,
1997.
104 PEDRO C A RD IM
20 O exemplo mais paradigmático é, sem dúvida, o famoso livro de João Baptista Lavanha.
Viagem da Catholica RealMagestade deiRey D. Filipe II. N.S. Ao Reyno de PortugalE rellação do
solene recebimento que netle se lhefez [...] (Madri: Thom as Iunti, 1622).
108 PEDRO CARDIM
No fundo, por meio das entradas solenes e das imagens eloqüentem ente
publicitadas durante e após tais eventos, a Casa Real apresentava a Monar
quia como entidade magnificente e sublime, na qual os vassalos podiam con
fiar plenam ente, remetendo-os para uma postura de obediência sem que para
tal tivesse de recorrer a qualquer espécie de coação, sem que tais imagens
fossem sequer sentidas como opressivas, pois eram difundidas mediante re
quintado dispositivo persuasivo que era tanto mais eficaz quanto mais dissi
mulasse a sua com ponente coerciva.22
21 M anuel Nogueira de Sousa. “Relação dos reais desposarios de D. Pedro 2." de Portugal
com a princesa eleitoral D. Maria Sophia Izabel; de sua chegada a Lisboa e da entrada dc
SS MM Magestades a Igreja da Sé e das Festas que se lhe fizeram. Lisboa, 25 dc outubro
de 1687”, BA, cód. 51-VI-l 1, f. 385v.
22 A propósito desta problemática, Louis Marin fala de uma “cultura política intrinsecam entc
marcada pela teatralidade”, na qual o cerimonial era algo de constitutivo da política barroca
— Louis Marin. “Pour une théorie baroque de Paction politique”, in: Gabriel N audé.
Considérationspolitiquessurles coups d'É tat. Paris: Éditions dc Paris, 1988, p. 20ss.; cf., tam
bém , Roger Chartier. “Pouvoirs et limites de la représentation. Sur Poeuvre de Louis
M arin”, in: Antia/es H SS (Paris), i?:407-18, mars-avril, 1994.
KNTRADAS SOLfiNF.S 109
23 Acerca da vitalidade política das instituições locais no Portugal do Antigo Regime, veja
N uno Gonçalo Monteiro. “Os poderes locais no Antigo Regime”, in: César de Oliveira
(org.). História dos municípios e do poder local (dos finais da Idade Média à União Européia).
Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, p. 29ss.
24 Fernando Bouza Álvarez. “Lisboa sozinha, quase viúva. A cidade e a mudança da Corte no
Portugal dos Filipes”, in: Penélope. Fazer e desfazer a história (Lisboa), /J:71-93, 1994; e
tam bém Richard Kagan. “Clio and the Crown: writing history in Habsburg Spain”, in:
Spain, Europe, a n d the A tlantic World. Essays in honour o f John H. EHiott. Cam bridge:
Cam bridge University Press, 1995, p. 73-99.
25 Acerca dos conflitos de jurisdição e do seu efeito estruturante na política ibérica do século
XVII, é fundam ental a consulta do livro de Jean-Frédéric Schaub. Portugal no tempo de
Olivares. O conflito de jurisdição como exercício da política. Lisboa, no prelo.
110 PEDRO CARDIM
com um” . E o cortejo que tinha lugar nas entradas solenes apenas sublinhava
que a comunidade era um todo formado por partes muito diferentes, organi
cam ente articuladas e respeitadoras dos direitos de cada uma delas. Eram
partes diferentes mas ordenadas de tal modo que constituíam uma totalidade,
uma verdadeira comunidade, sendo a manutenção desta ordem, profunda
m ente hierárquica e discriminatória, o aspecto que mais contribuía para man
ter a operacionalidade política do conjunto.26 Do rei, peça indispensável do
sistema corporativo, esperava-se a colaboração nesse programa de “conserva
ção”, de manutenção da ordem. Do rei esperava-se, no fundo, uma governa-
ção que interviesse o mínimo possível, e que tudo fizesse para evitar a m u
dança, pois era esse, afinal, o caminho que todos julgavam ser mais seguro
para a concretização do “bem comum”.
Assim, nas entradas solenes os vassalos aproveitavam a presença do rei
para exteriorizarem estas expectativas. Tais cerimônias eram freqüentem en
te retratadas como a materialização do laço que existia entre o senhor e seus
vassalos, laço esse regulado e mantido pelos princípios inerentes, antes de
mais, ao amor. O amor era, afinal, o que de mais essencial havia na ligação
entre o rei e os vassalos, era aquilo que, a um nível profundo, dava sentido à
vida em comunidade, já que fora pelo amor que os homens se tinham junta
do, e era por meio do amor recíproco que eles alcançariam o fim que a divin
dade para eles tinha reservado. A justiça, por sua vez, constituía a principal
ferramenta de um governo cujo principal objetivo era manter a ordem, evi
tando toda e qualquer “novidade”; e, no caso de ocorrer uma ruptura nessa
ordem, se fosse necessário reparar conflitos e reconciliar as partes desavin
das, ao rei cabia exercitar a justiça e dar a cada uma dessas partes aquilo a que
tinham direito.
A semelhança do que sucedia em outras cerimônias desse período, a ima-
gética ligada ao amor e à justiça era extrem am ente recorrente nas pinturas
que decoravam as ruas da cidade por onde passava o cortejo. As imagens
amorosas estavam presentes em quase todos os momentos desses eventos
em que o monarca se cruzava com a população que lhe dava as boas-vindas, e
tal insistência no amor possui uma grande relevância política. De fato, no
decurso das entradas solenes o rei e os seus vassalos entravam, de uma forma
ritual, como que em comunhão, comunicando entre si e lembrando, a cada
passo, que o laço que os unia era essencialmente amoroso e moral. Por outro
lado, a melhor prova de amor que o rei podia dar, a maneira ideal de o monar
ca manifestar o afeto que sentia era mediante a presença, a proximidade — e
não a distância — em relação aos seus vassalos, e a entrada constituía, sem
dúvida, uma ocasião muito especial, pois tornava possível avistar o rei, ver o
rei, bem próximo, ainda que inacessível ao contato direto. E a visão do ama
do, como se sabe, ainda mais contribuía para intensificar a paixão amorosa
que sempre devia pautar a relação entre os vassalos e o seu rei, pois só assim
se reavivava a confiança entre eles.
É precisamente esse o sentido de um comentário às festas com que Lisboa
recebeu D. Maria Sofia Isabel de Neuburg, a princesa alemã que veio casar
com D. Pedro II, em 1687: “Sempre as auzencias do que se ama produzirão
desejos de novas visitas, e com grande ancia desejava a Corte tornar a ver, e
com mays espaço, a sua Rainha, na entrada...”27 Aliás, os cerimonialistas ti
nham sempre o cuidado de anotar que o coche onde seguia o rei, durante a
entrada solene, devia ir “com o Tejadilho descuberto” , a fim de que todos
pudessem ver a pessoa régia; para além disso, recomendavam que “o coche
de Sua majestade vá com todo o vagar, para que, sem parar, possão ver bem,
e notar os arcos, para satisfazer o zello, e Amor dos que os fabricaram...”28
Porque envolvia a presença do rei, tal cerimônia era representada como um
evento que ainda mais intensificava a confiança afetuosa entre o monarca e
os seus vassalos, pois criava as condições para que pudesse acontecer a comuni
cação amorosa entre eles. Convém não esquecer que, para a “gente com um”
que assistia às entradas solenes, aquela seria uma das poucas ocasiões em que
teriam a oportunidade de avistar o rei, de estar fisicamente próximos do monar
ca, mom ento por isso mesmo especialm ente emotivo, tendo em conta toda a
aura de magnificência que cada vez mais tendia a envolver a pessoa régia.
Todavia, e a par das insistências no amor, no aparato decorativo concebido
para as entradas solenes proliferava igualmente o léxico da justiça. Na verda
de, nesses arcos abundavam as alusões à justiça, naquele contexto entendida
sobretudo como a virtude diretam ente ligada à igualdade que vigorara nos
primórdios da vida em comunidade. O “bom governante” era sempre retra
tado como o que procedia de acordo com os princípios da justiça, mantendo e
preservando as prerrogativas dos diversos corpos, atuando com prudência e
lembrando-se sempre dos estilos antigos de governo. A defesa de um gover
no centrado na justiça significava que o rei, durante seu reinado, nunca deve
ria perder de vista a ordem em que desde sempre assentara a comunidade,
dando às partes aquilo a que cada uma tinha direito, e usando a justiça para
resolver conflitos e para fazer com que as partes desavindas regressassem à
paz original. O rei justo era portanto o que tudo fazia para manter a ordem, e
27 M anuel Nogueira de Sousa. “Relação dos reais desposarios de D. Pedro 2.° de Portugal
com a princesa eleitoral D. Maria Sophia Izabel; de sua chegada a Lisboa c da entrada dc
SS MM M agestades a Igreja da Sé e das Festas que se lhe fizeram. Lisboa, 25 de outubro
dc 1687”, BA, cód. 51 -VI-11 n.° 190.
28 BNL, Pombalina, cód. 653, f. 359v.
112 P KD RO CARDIM
que, para além disso, nunca esquecia que tal ordem fora criada por uma enti
dade muito superior a ele: a divindade. Tratava-se, por conseguinte, de um
conceito de justiça que continha poderosas ressonâncias religiosas e morais.
As imagens do amor e da justiça remetiam, afinal, para os fundamentos
constitucionais em que assentava a ordem comunitária daquele tempo, lem
brando, também, que tais fundamentos se encontravam estabelecidos num
plano transcendental.29 No fundo, o programa decorativo especialm ente con
cebido para as entradas solenes punha em cena os que eram os mais funda
mentais mitos sociopolíticos daquele período.
Porém, não é menos sintomática a insistência na história, na tradição e no
caráter ancestral das entradas régias. De fato, no decurso da festa as autorida
des urbanas sempre recordavam as entradas anteriorm ente realizadas, lem
brando que esse rei deveria seguir o exemplo dos seus antepassados, o que
significava que também ele tinha de estar disposto a respeitar o statu quo
vigente. Entre a imagética normalmente exibida nessas ocasiões proliferavam
as representações com temática histórica, as quais reavivavam a memória dos
presentes, tanto do monarca como dos vassalos, recordando que cerimônias
análogas tinham sido celebradas ao longo de todo o passado português. Trata-
se de imagens que transmitiam, sobretudo, um sentido de continuidade, de
permanência e de manutenção da ordem. Mas, e ao mesmo tempo, eram
imagens que constrangiam o rei na condução do governo, levando-o a com
portar-se da mesma maneira que os seus antepassados. E esse constrangi
mento era muitas vezes enunciado de forma aberta e bem explícita, em dis
cursos proferidos no decorrer do cortejo, normalmente defronte do edifício
da câmara, junto das insígnias do poder urbano. Em alguns casos tratava-se
de peças oratórias encomendadas a clérigos ou a leigos pertencentes ou iden
tificados com os círculos da Coroa. Noutros casos, todavia, não estava ao al
cance da Casa Real controlar o conteúdo desses discursos, e como tal aca
bavam por conter diversas advertências e exortações para que o monarca
respeitasse os compromissos que, desde há séculos, pautavam a relação entre
a Monarquia e os corpos sociais.30
Era intenção dos promotores das entradas solenes que a evocação ritual
deste conjunto de imagens tivesse o efeito de relem brar a todos os partici
pantes — incluindo o rei — os aspectos a que acabamos de fazer referência,
e, ao mesmo tempo, amplificar as suas conseqüências. No fundo, a lingua
gem simbólica presente nessas cerimônias convocava os diversos elem en
2'J Cf. Pablo Fernández Albaladejo. “Católicos antes que ciudadanos: gestación de una «Po
lítica Espanola» a los comienzos dc la Edad M oderna”, in: J. 1. Fortea Pérez (org.). hnágenes
de la diversidad. E l mundo urbano en la Corona de Castilla (s. XVI-XVIII). Santander:
Universidad de Cantabria, 1997, p. 103ss.
30 Cf. Angela Barreto Xavier; Pedro Cardim & Fernando Bouza Álvarez. Festas que sefizeram
pelo casamento do rei D. Afonso VI. Lisboa: Quetzal, 1996, p. 63ss.
ENTRADAS SO L E N E S 113
ciação.16 Era uma dramatização de tal modo poderosa que se revelava capaz
de desviar a atenção de outras formas alternativas de ordenar e de governar a
com unidade, ao apresentar uma série de metáforas apologéticas da ordem
vigente, qualificando-a como a mais justa e a mais favorável ao “bem co
m um ” do reino. Por fim, mediante as imagens sublinhava-se que essa ordem
era a mais conforme aos desígnios da divindade — um argumento poderoso
que esvaziava a validade (teórica) de outras formas de conceber a comunida
de e a sua governação.
Em suma, m ediante as entradas solenes a realeza e os vassalos reconhe
ciam o statu quo vigente. Ao aceitarem participar na entrada solene, o rei e os
seus familiares mais próximos, de um lado, e os representantes das corpora
ções urbanas, por outro, ficavam como que comprometidos a observar as pro
messas aí efetuadas. A participação no evento comportava a aceitação de uma
determ inada ordem política, envolvia como que um compromisso moral e
pré-jurídico que constrangia as partes presentes. Por meio da festa, a corpo
ração urbana demonstrava reconhecer o rei como “cabeça do reino”, com-
prom etendo-se a obedecer fiel e lealmente ao seu comando. Da parte do
monarca, havia a promessa de guardar as liberdades e os privilégios da câma
ra municipal que, por meio da festa, o obsequiava. Ao monarca, para além
disso, pedia-se que tudo fizesse, durante seu reinado, para preservar essa
situação de compromisso moral com o reino, pois só assim poderia existir
confiança e coesão entre as diversas partes da comunidade. Enquanto o rei
cumprisse esses desígnios, as autoridades urbanas permaneceriam leais ao
rei, trabalhando no sentido de m anterem em boa ordem a cidade e o seu
termo. Porém, no dia em que o monarca violasse esse compromisso, a elite
urbana poderia deixar de estar obrigada à obediência ao rei.
No fundo, por meio da entrada solene as diversas partes da comunidade
afirmavam o seu acordo com o statu quo vigente, demonstrando satisfação
com o modo como o viver comunitário se processava desde tempos imemo
riais. E, a par deste sentim ento de júbilo, nas entradas solenes está presente,
também, o desejo de que a ordem corporativa da comunidade continuasse
viva e de boa saúde. Era uma ordem que, em vez de resultar de um contrato
fundador entre os homens, remontava ao arbítrio da divindade; além disso,
era uma ordem fundada no amor, e como tal nada melhor do que promessas
ritualizadas para a afirmação de que esse laço essencialmente amoroso entre
o rei e a comunidade continuava vigente. Nessa comunidade onde as partes
se encontravam ligadas por um compromisso moral, a promessa feita no de
curso do ritual festivo era sem dúvida a forma mais adequada de manifestar a
fidelidade a esses princípios fundadores, os quais não estavam registados em
nenhum ordenam ento escrito nem em nenhum contrato social, mas sim no
coração dos homens.37
38 Edward Muir. R itual in Early Modem Europe. Cambridge: Cambridge University Press,
1997, p. 5ss.
118 PKD RO CARD IM
39 N orbert Elias & John L. Scotson. The Established and the Outsiders. Londres: Sagc, 1994.
40 Cf. o im portante trabalho de N uno Gonçalo Monteiro acerca desta temática: “O «ethos»
da aristocracia portuguesa sob a dinastia de Bragança. Algumas notas sobre a Casa e o
Serviço ao Rei”, in: Revista de História das Ideias (Coimbra), 7^:383-402, 1997.
41 Representação do D uque de Aveiro a D. João IV (post. 1640), Biblioteca Geral da Univer
sidade de Coimbra (BGUC), cód. 584, f. 143.
ENTRADAS S O L E N ES 119
44 Antônio Serrão de Crasto. Os ratos da inquisição. Ed. por Camilo Castelo Branco. Porto: E.
Chardron, 1883, p. 57.
ENTRADAS SOLENES 121
mento, bem pelo contrário, pois no decurso das entradas solenes acabavam
quase sempre por surgir imagens e gestos verdadeiramente reivindicativos.
47 Cf. com Inga C lendinnen. “«Fierce and unnatural cruelty»: Cortés and the conquest of
Mexico”, in: Representations, 33:65-100, 1991; cf. tam bém James W. Fernandez. “Fang
representations under acculturation”, in: P. Curtin. (org.). Africa and the West: Intellectual
responses to European cu/ture. Madison, 1972, p. 43ss.
48 Stuart B. Schwartz. Sugar Plantations in the Formation o f Brazi/ian Society. Bahia, 1550-1835.
Cambridge: Cambridge University Press, 1985, p. 243ss.; vide, também, dc Ronaldo Vainfas.
Trópico dos pecados. Moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p.
32ss.
49 Este estatuto politicamente subalterno do Brasil tem um paralelo no que Laura de Mello
e Souza designou de “infernalização da colônia”, em Laura de Mello e Souza. O diabo e a
terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no B rasil colonial. São Paulo: Com pa
nhia das Letras, 1986.
F, N T R A D A S S O L F . N E S 123
50 João Adolfo Hansen. A sátira e o engenho. Gregário de Matos e a Bahia do século XVII. São
Paulo: Com panhia das Letras, 1984, p. 115ss.; vide também Rodrigo Bentes Monteiro. 0
rei no espelho. A monarquia portuguesa e a colonização da América, 1640-1720. T ese dc
doutoram ento. São Paulo: Universidade de São Paulo, “Entre Festas e M otins”, p. 248ss.
124 PEDRO C A R D IM
□ □□
51 “Carta que se mandou a um amigo acerca das festas de Filipe I I ...”, BNL, cód. 589 f. 60v.
52 Stuart B. Schwartz. “T h e formation of a colonial identity in Brazil”, in: N. Canny & A.
Pagden (orgs.). Colonial Identity in the Atlantic World, 1500-1800. Princeton: Princeton
University Press, 1989, p. 32ss.
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C o m e m o ra ç õ e s dos D e sc o b rim e n to s P o rtu g u e se s , 1999, p. 169. F o to A n d ré Ryoki.
ENTRE FESTAS E MOTINS:
AFIRMAÇÃO DO PODER RÉGIO BRAGANTINO
NA AMÉRICA PORTUGUESA (1690-1763)1
Ro d r i g o B e n t e s M o n t e i r o
GUERRA E REVOLTA
1 O texto e uma adaptação do último capítulo dc minha tese dc doutorado, O Rei no Espelho -
A Monarquia Portuguesa e a Colonização da América (1640-1720), apresentada ao D epartamen
to dc História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH /U SP), São
Paulo, 1998, p. 248-99, sob orientação da professora Laura de Mello e Souza. Algumas das
discussões aqui referidas são mais bem fundamentadas em capítulos precedentes da tese.
2 A promoção do Arquiduque Carlos Habsburgo à herdeiro do Sacro Império em 1711 desa
gradou às demais potências. Firmava-sc assim pelos tratados de Utrecht em 1713 e 1714
um novo equilíbrio. A dinastia Bourbon era reconhecida na Espanha, mas Filipe V renun
ciava a qualquer direito à França. E a Inglaterra, reconhecendo Filipe Bourbon no trono,
conseguia vantagens no império espanhol, sendo a grande vitoriosa do confronto. Fernando
128 R O D R I G O BRNTKS M O N T E I R O
Novais. Portugale B rasil na crise do Antigo Sistema Colonial. São Paulo: H ucitec, 1983, p. 17-
56. Cf. tam bém Damião Peres. História de Portugal. Barcelos: Portucalense, 1984, v. VI, p.
134-78.
3 Luís Ferrand de Almeida. “Motins populares no tem po dc D. João V”, in: Revista de Histó
ria das Ideias. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1984, v. 6, p.
321-43, c “Os motins de Abrantes e Viseu (1708 e 1710)”, in: Revista Portuguesa de História.
Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1985, t. XXII, p. 137-48.
4 Laura dc Mello e Souza. M otins, revoltas e revoluções na América portuguesa — séculos XVII-
XVIII. São Paulo, 1995 (texto cedido à Unesco, mimeo), p. 27-31.
E N T R E FESTAS E M O T I N S 129
T e m p o d e c o n f l i t o s
Vários teriam sido os fatores que haviam contribuído para a guerra, como o
antagonismo entre N unes Viana e Manuel Borba Gato, ou a arrematação do
contrato dos cortes de carne para as Minas em 1707. A partir de um duelo
entre membros das duas facções, a briga se generalizou, e N unes Viana foi
aclamado governador das Minas pelos forasteiros. O governador do Rio de
Janeiro, D. Fernando de Lencastre, dirigia-se para Congonhas a encontrar-se
com N unes Viana em busca de acordo, sem sucesso. N unes Viana já nomea
va autoridades controlando a administração local, enquanto o sucessor no
governo da capitania, Antônio de Albuquerque Coelho, dirigia-se para a re
gião em agosto de 1709, a fim de obter a submissão do potentado, que se
retirava para as suas fazendas do São Francisco. Os paulistas, no entanto,
estavam decididos à vingança, e o conflito ainda se prolongaria por oito dias,
sem ter a vitória definida.
Como na Guerra dos Mascates, este movimento apresentava um apego dos
potentados locais à escolha de autoridades administrativas afinadas com os
interesses regionais, em contraposição ao governo da Coroa. Podemos obser
var ainda a construção de uma tradição — a do bandeirismo paulista — como
justificativa para o pleito de determinadas condições de governo, como em
Pernambuco. A resposta da Coroa diante do movimento seria definida pela
anistia concedida aos participantes, excetuando-se os cabeças M anuel N u
nes Viana e Bento do Amaral Coutinho, exilados das Minas. Mas na carta de
D. João V a Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, em agosto de 1709,
o rei recomendava agir com prudência: “[...] que sempre será mais seguro o
recorrer aos meios brandos e suaves para se em endarem e moderarem estes
movimentos entre uns e outros vassalos do que dos rigorosos de que podem
nascer algumas perturbações, que não tenham depois fácil composição”.7
Segundo Evaldo Cabral de Mello, o Conselho Ultramarino teria sido mais
enérgico em Pernambuco do que nas Minas, não somente pela dificuldade de
acesso às Minas quando comparadas a Olinda ou a Recife, mas pelo fato de na
Guerra dos Etuboabas não ter ocorrido sedição contra a autoridade da Coroa.8
Com efeito, o ocorrido em Pernambuco teria sido mais grave no sentido do
desafio à autoridade régia. Mas as diferentes “respostas” da Coroa aos dois
movimentos devem levar em conta as variações regionais e suas relações com
o poder soberano. N a sedição da nobreza pernambucana, a moral da história
consistiu no perdão régio, acompanhado da bipartição do núcleo urbano entre
Olinda e Recife. Nas Minas também perdoou-se o conflito, e as instruções da
Coroa recomendavam a brandura, reconhecendo de modo insuficiente os
paulistas como os seus primeiros povoadores. Mas a criação da capitania de
São Paulo e Minas do Ouro, a elevação da vila de São Paulo a cidade, e nota-
dam cnte a intensa ação urbanizadora nas Minas iniciada por Albuquerque
Coelho após o conflito, comprovavam a importância dessa região em forma
ção para o domínio português, e de maneira alguma podem ser associadas a
falta de energia.9 Estas medidas já estavam previstas na carta que designava
o governador para a nova capitania. De acordo com Mello e Souza, este docu
mento reflete a relação entre o estabelecimento da justiça, da administração
e a fundação das cidades, retratando ainda o “sistema de prêmio e recompensa”
utilizado pelo Estado no seu trabalho de consolidação do poder.10 Pela criação
de um sistema de clientela entre colonos e autoridades, a Coroa cooptava os
de espírito aventureiro para a sua ordem, impondo o poder régio no seu topo,
à medida que Albuquerque Coelho contemporizava com os revoltosos.
TEMPO DE URBANIZAÇÃO
TEMPO DE REBELIÕES
13 Charles Boxer. A idade de ouro do Brasil. São Paulo: Nacional, 1969, p. 211-3.
14 Mello e Souza (org.). “Estudo crítico”, in: Discurso histórico epolítico sobre a sublevação que nas
M inas houve no ano de 1720. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994, p. 13-25. Cf.
também Feu de Carvalho. Ementário de história mineira — Filipe dos Santos Freire na sedição de
Vila Rica em 1720. Belo Horizonte: Edições Históricas, s.d., e Diogo de Vasconcelos, op. cit.
E N T R E FESTAS E M O T I N S 133
15 O esquartejam ento do corpo pela força de quatro cavalos foi aplicado nos casos dos assassi
nos dos reis dc França, H enrique III c H enrique IV, em 1589 e em 1610. Em Portugal, não
temos informações sobre penas tão brutais antes das reformas pombalinas e a conseqüente
ampliação da legislação referente ao crime de lesa-majestade — estendida então aos minis
tros do rei — , que culminaria no espetáculo dc execução dos Távoras em 1759, acusados
dc tramar contra a vida de D. José I. Cf. Robert M uchembled. Le temps dessupp/ices. Paris:
Armand Colin, 1992, e Pierrc Chevallicr. Les régtcides. Paris: Fayard, 1989. Cf. também
K cnneth Maxwell. Marquês de Pombal, paradoxo do iluminismo, op. cit., p. 69-117.
16 Discurso..., op. cit., p. 146.
134 RODRIGO BKNTKS M O N T E I R O
de sua fama o príncipe deveria podar o que fosse “supérfluo e indigno” nos
seus vassalos: os atrevimentos, as desobediências, as rebeldias. Enfatizava-se
desse modo, o recurso ao temor — mais do que ao amor — para a construção
da reputação principesca, pois:
“[...] não há de estranhar que ignorem os mineiros que há rei que domine
este país, onde nunca foi visto o seu raio [...] que com a espada na bainha
não é possível sujeitar ao mundo, que só se pode governar com a torrente
do sangue humano, concluindo que o príncipe que quiser reinar estabele
ça, autorize e faça que à custa do sangue dos vassalos se guardem as suas
leis [...] porque se não punir as maldades, não é príncipe em realidade, é
uma representação e sombra de príncipe. Pois é certo que o decoro real
nem se vincula ao cetro, nem se anexa à Coroa, avulta sim nos golpes do
m ontante, no estrondo das artilharias, no tropel dos cavalos, e na multidão
dos infantes, porque só onde se lhe tem em as forças é despótica a Sobe
rania.” '7
UM SOL DOURADO
17 Ibidem , p. 148.
18 Ibidem , p. 149 e 151.
19 Rui Bebiano. D. João V:poder e espetáculo. Aveiro: Livraria Estante, 1987.
E N T R E F E S T A S F. M O T I N S 135
20 Essa tendência foi tipificada por Oliveira Martins: “Foi com eles que D. João V, c todo o
Reino, puderam entregar-se ao entusiasmo desvairado dessa ópera ao divino, em que des
perdiçaram os tesouros americanos. [...] c D. João V, enfatuado, corrompeu, e gastou, per
vertendo-se tam bém a si e dilapidando toda a riqueza da Nação. Tal foi o rei” . Oliveira
Martins. História de Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1988, p. 150.
21 O reinado dc D. João V cra entendido como uma “necessidade instante, uma afirmação de
força, de poderio, sem o qual o Estado apareceria apagado, desprezível”. Angelo Ribeiro.
“D. João V” , Damião Peres. Op. cit., p. 181-2.
22 Oliveira M arques afirma que esse reinado “[...] ficou famoso pela tendência do monarca
em copiar Luís XIV e a corte francesa. O ouro do Brasil deu ao soberano e à maioria dos
nobres a possibilidade de ostentarem opulência como nunca anteriorm ente. [...]. Como
cm tantas cortes do século XVIII, a depravação moral ocupou lugar preponderante. O Rei
— c com ele muitos nobres — gerou diversos filhos em freiras de diversos conventos,
muitos dos quais se converteram em centro de prazer”. Oliveira Marques. História de Por
tugal. Lisboa: Palas, 1985, v. II, p. 351.
23 Bebiano. Op. cit., p. 43-55. C f também José Antônio Maravall. La cultura dei barroco. Bar
celona: Ariel, 1986.
24 D e acordo com as idéias de N orbert Elias. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar,
1993, v. 2.
136 RODR IGO BENTES MON TE IRO
25 Auto do levantamento, e juram ento, que os grandes, títulos seculares, eclesiásticos, e mais pessoas,
que se acharam presentes, fizeram ao muito alto e muito poderoso senhor E l-R ei D. João V Nosso
Senhor... 11111101. Lisboa: Oficina dc Valentim da Costa Deslandes, 1707; Barbosa M acha
do (org.). Autos de Cortes, e levantamentos ao trono dos sereníssimos príncipes, e reis de Portugal.
s.n.t., t. II, p. 293-308.
26 Ibidem , p. 19. A comparação de D. João V com o sol já tinha aparecido no seu próprio
“espelho”, escrito por Sebastião Pacheco Varela. Número vocal, exemplar, católico, epolítico,
proposto no maior entre os santos o glorioso S. João Batista;para imitação do maior entre os príncipes
o sereníssimo D. João V... Lisboa: Oficina dc Manoel Lopes Ferreira, 1702, p. 97-98. Esta
metáfora não seria desenvolvida cm Portugal como cm França. Cf. o artigo — exagerado, em
nosso ponto de vista — de Rui Bebiano. “D. João V, Rei-Sol”, in: Revista de História das
Ideias. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade dc Coimbra, 1986, v. 8, p. 111-21.
27 Evocava-se neste aspecto ainda o ocorrido em 1385, quando os três estados nas Cortes
preferiram a eleição do M estre dc Avis — D. João I — aos seus irmãos, não obstante sua
menor legitimidade.
E N T R E F E S T A S E M O TI NS 137
28 O relato mais antigo da entronização dos reis de Portugal é de Rui de Pina (1440-1522), na
aclamação de D. D uarte (1433-1438). A. Brásio concluía que D. D uarte se teria desinteres
sado por qualquer cerimônia faustosa após o fracasso dc sua armada cm Tânger, em 1437.
Uma cópia do cerimonial da sagração foi obtida em Londres na regência do infante D.
Pedro (1438-1446), mas o interesse por este ritual só ressurgiria com D. João V. José Mattoso
considerou A. Brásio dependente demais dos docum entos em sua versão de que a Coroa
portuguesa não se interessava pela sagração. Cf. Bula que a instância de Eduardo Rei de
Portugal lhe concedeu o Papa Eugênio 4 ° no ano de 1436 para ser ungido, e os mais reis de
Portugal. Biblioteca Nacional, Lisboa (BNL). Reservados, 10, 1, 27; Antônio Brásio. “O
problem a da sagração dos monarcas portugueses”, in: Anais da Academia Portuguesa de His
tória, 1989, n.° 83, p. 34-43; e José Mattoso. “A coroação dos primeiros reis de Portugal”, in:
A memória da Nação. Lisboa: Sá da Costa, p. 187-200. Ramalhosa Guerreiro observaria que
docum entos da época da ascensão de D. João V empregavam “coroação” como sinônimo
de “levantam ento” e de “aclamação”. O uso do termo seria abusivo, pois o ritual não in
cluía a imposição da coroa, consagrada a Nossa Senhora da Conceição por D. João IV em
1646. Luís M anuel Ramalhosa Guerreiro. La représentation du pouvoir royalà l'âge baroque
portugais (1687-1753). T h èse pour le doctorat en histoire sous la direction du Professeur
Bernard Vincent. Paris: École des H autes Etudes en Sciences Sociales, 1995, v. 2, p. 9-65.
29 Relação dos artifícios dofogo, que sefazem no Terreiro do Paço, em obséquio dosfelicíssimos desposórios
dos senhores D. João V e de D. M ariana de Áustria. Lisboa: Oficina de M anoel e José Lopes
Ferreira, 1708.
30 Nicolas Chevallier. Relation desfêtes queson excellence Monseigneur le Comte de Tarouca a données
au sujetdes naissances des deuxprinces de Portugal [...]. Utrecht: Chevallier, 1714; e Cópia de
uma carta, que se escreveu de Utrecht a Lisboa, na qual [... ] os excelentíssimos senhores Conde de
Tarouca & D. Luís da Cunha, plenipote/iciãrios del-Rei de Portugal no Congresso de Utrecht, cele
braram o Augusto nascimento do Sereníssimo Príncipe do B rasil... Lisboa: Oficina dc Joseph
Lopes Ferreira, 1713.
31 Inácio Barbosa Machado. Notícia da entrada pública quefe z na corte de Paris em 18 de agosto de
1715 o excelentíssimo senhor D. Luís M anuel da Câmara Conde da Ribeira Grande. Lisboa:
Oficina de Joseph Lopes Ferreira, 1716. Ainda constituiriam eventos significativos para a
demonstração do poder joanino no exterior, a embaixada enviada à China para o fortaleci
138 R O D R I G O BENTKS M O N T E I R O
A FESTA DA HISTÓRIA
Nas memórias que escreveu ao longo de sua vida como homem da Corte
entre os reinados de D. Pedro II e de D. João V, o Conde de Povolide deixa
transparecer uma mudança de mentalidade. Nos primeiros capítulos, ocupa-
se em contar as intrigas da Corte envolvendo os irmãos D. Afonso e D. Pedro,
que disputavam o trono com suas respectivas facções, como se estivesse a
contar a história do próprio Portugal, os acontecimentos da Corte misturados
a outros de dimensão internacional, mormente a guerra com a Espanha. A
corte como microcosmo político do país, o trono frágil como causa — ou refle
xo — da situação política internacional, sintoma da vulnerabilidade do Rei
no.38 Contudo, ao terminar a Guerra de Sucessão da Espati/ia, a estabilidade
política portuguesa era favorecida pelo afluxo de riquezas minerais oriundas
da região americana. Tais fatores compunham um quadro no qual o já idoso
conde adquiria um respeito pela figura do soberano, isentando-a dos conflitos
entre cortesãos, ao mesmo tempo que aumentavam as descrições do fausto da
monarquia m ediante os rituais.39 Parecia então que o rei Bragança tomava
consciência do seu poder, e dava conta dele para seus súditos. Essa tomada de
consciência vinculava a personalidade pública de D. João V à prática do Estado,
quando dizia: — “M eu avô deveu e temeu, meu pai deveu, eu não temo nem
devo” , em analogia com Luís XIV. Pois diferentem ente de D. João IV, D.
Afonso VI e D. Pedro II, D. João V não convocaria cortes em nenhum mo
mento de seu longo reinado (1707-1750), num expressivo sinal de supremacia
do poder régio. Mas não somente. A frase atribuída ao monarca português era
reveladora da sua consciência histórica de fortalecimento do poder régio dos
Braganças. E essa disciplina, tão incentivada nos espelhos de príncipes, iria
motivar a fundação da Academia Real de História em dezembro de 1720.
Nobres letrados da Corte encarregavam-se de enviar questionários aos ar-
cebispados e bispados, cartórios eclesiásticos, cabidos, câmaras municipais e
40 M anuel Teles da Silva, Marquês de Alegrete. História da Academia Real da História Portu
guesa. Lisboa: Oficina de José Antônio da Silva, 1727; e Maria José Mexia Bigotte Chorão
(org.). “Notícias da Conferência, que a Academia Real da História Portuguesa fez em 5 de
janeiro de 1721”, in: Revista de História Econômica e Social. Lisboa: Livraria Sá da Costa,
1987, n.° 21, p. 123.
41 Em 1721 foi publicado um volum e com docum entos e memórias da Academia. Em 1727
M anuel Teles da Silva, publicaria o primeiro volume da obra H istória da Academia Real
da H istória Portuguesa, op. cit., que não foi seguido de outros. Em 1736, surgia o tomo
16." da coleção de docum entos e memórias. A Academia teria entrado em decadência a
partir de 1755, sobrevivendo de maneira honorífica até 1794. “Subsídios para a história
da Academia Real da História Portuguesa”, in: Anais da Academia Portuguesa de H istória,
II série, p. 43-68.
42 Caetano de Sousa. Op. cit. Cf. também Isabel Maria H. F. da Mota. “A imagem do rei na
história genealógica da casa real portuguesa”, in: Revista de História das Ideias. Cultura Po
lítica e Alenta/idades. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1989, v.
11, p. 103-11.
4;! Caetano de Sousa. Op. cit., t. VI, cap. XX.
44 Ibidem , t. VII, p. 372-3.
142 R O D R I G O BKNTKS M O N T E I R O
45 Ibidem , t. VIII, p. 2.
46 Diogo Barbosa Machado (1682-1772), abade dc Sevcr, entre várias obras ligadas à Acade
mia, ficou conhecido por trabalhos monumentais como a Biblioteca L usitana..., op. cit., uma
compilação em quatro tomos de autores portugueses e suas obras dedicada a D. João V. Sua
coleção de opúsculos raros do império português organizados cm mais de sessenta volu
mes foi doada a D. José I após o terrem oto de 1755. Em 1807-1808, este acervo seria
transferido para o Brasil, disponível na Biblioteca Nacional — Rio dc Janeiro. Ramiz Galvão.
“Diogo Barbosa Machado”, in: Anais da Biblioteca Nacional , Rio de Janeiro (ABN-RJ),
1972, v. 92, t. 1, p. 11-44.
47 Rodrigues da Costa tam bém seria um dos membros fundadores d i Academia. M anoel Teles
da Silva. “Elogio de Antônio Rodrigues da Costa [...] na Academia Real dc História Portu
guesa”. Lisboa Ocidental: Oficina de José Antônio da Silva, 1732; Barbosa Machado (org.).
Elogios fúnebres de varões portugueses, s.n.t., t. I., p. 114-9. Q uanto a Assumar, “Panegírico
para se recitar no dia 22 de outubro de 1736, cm que se celebraram os anos de El-Rci
Nosso Senhor”; Barbosa Machado (org.). Aplausos oratórios epoéticos ao complemento dos anos
dos Sereníssimos Reis, Rainhas, e Príncipes de Portugal, s.n.t., t. II, p. 37-46.
4S D c simples portarias para se dar cera para as luminárias, ou cartas solicitando o envio dos
donativos para casamentos reais, passa-se no período joanino a festividades mais elabora
das nas cidades coloniais. Cf. a título de exemplo vários docum entos da série D IH C SP, op.
cit., especialm ente volumes 5, 9, 32, 33, 67 e 68 para os reinados de D. Afonso VI e D.
Pedro II, c volumes 34, 39, 42, 53, 54 c 65, para D. João V.
K N T R E FESTAS E M O T I N S 143
lho dos raios de seu soberano, não somente pelo temor, mas sobretudo pelo
amor. Afetos bem expressos nas comemorações da aclamação joanina, nos
casamentos, nascimentos de príncipes e até mesmo na morte do monarca
português, que teriam lugar sobretudo na Bahia, sede do governo-geral, a
partir da primeira m etade do século XVIII.49
Rodrigues da Costa redigira em 1707 um parecer solicitado pelo novo rei,
aprovando a descrição de Sebastião da Rocha Pita sobre as exéquias de D.
Pedro II na Bahia. Em suas palavras podemos perceber nitidam ente este
aspecto, agora enfatizado, de expressão do poder régio no Ultramar, pois: “[...]
nas verdadeiras manifestações de sentimento que aqueles vassalos deram
naquele fatal golpe, se veja com evidência que a fidelidade portuguesa, e o
amor com que esta fidelíssima nação ama aos seus príncipes, é tão constante,
e apartado que seja, é poderoso a diminuir-lhe o ardor do seu afeto, e a gran
deza da sua veneração; antes parece que quanto os portugueses mais se afas
tam da sua origem e do berço em que nasceram, tanto maior é o obséquio que
tributam à M ajestade, imitando nesta parte a natureza dos rios, que quanto
mais se apartam de suas fontes, tanto maior tributo, e veneração rendem ao
Oceano donde receberam o ser”.50
Pelo raciocínio empregado com relação ao castigo dos motins, desenvolvi
do por Assumar, a distância entre a conquista ultramarina e o Reino dificulta
va a manifestação do poder régio e a aplicação da pena, favorecendo as rebe
liões nos domínios longínquos. Mas, no que tocava às festividades, o sentido
da idéia exposta por Rodrigues da Costa era contrário. Elas possibilitariam
maior enaltecim ento do soberano inacessível, que por isso seria mais ideali
zado. As idéias de Antônio Rodrigues da Costa também eram contrárias ao
texto do Padre Antônio Vieira, trabalhado por Laura de Mello e Souza.3' O
49 Cf. Memória da aclamação Ho Sereníssimo Rei D. João V na CiHaHe Ha Bahia. Bahia, 4/6/1707;
João de Brito. Poema festivo, breve recompilação Has solenesfestas, que obsequiosa a Bahia tribu
tou em aplauso Has semprefaustas, régias boHas Hos sereníssimos Príncipes Ho B rasil, e Has Astúrias
com as ínclitas princesas He Portugal, e Castela, HirigiHas pelo Excelentíssimo Vice-Rei Heste Esta-
Ho... Lisboa: Oficina de Música, 1729, p. 193-215; Castro, Álvaro Pereira de. “Obsequiosa
dem onstração, com que as quatro partes do m undo festejaram o feliz nascim ento do
Sereníssimo Príncipe D. Pedro augusto filho dos [...] reis D. João V e D. M ariana...”.
Lisboa: O ficina de M iguel M anescal, 1713; Barbosa M achado (org.). Genetlíacos Hos
Sereníssimos Reis, Rainhas e Príncipes He Portugal, s.n.t, t. III, p. 30-5; c João Borges dc Barros.
“Relação panegírica das honras funerais que as memórias do [...] Senhor [...] D. João V
consagrou a cidade da Bahia corte da Amcrica Portuguesa...”. Lisboa: Régia Oficina Silviana,
1753; Barbosa Machado (org.). Notícias Has últimas ações e exéquias He Reis, Rainhas, e Prínci
pes He Portugal, s.n.t., t. III. p. 4-24.
50 Cf. o parcccr do conselheiro Antônio Rodrigues da Costa na página inicial em Sebastião da
Rocha Pita. Breve compêndio e narração Ho fúnebre espetáculo, que a insigne ciHaHe Ha Bahia
cabeça Ha América portuguesa, se viu na morte He E l-R ei D. PeHro II... Lisboa: Oficina de
Valcntim da Costa Deslandes, 1709.
51 “A sombra, quando o sol está no zenite, é muito pequenina, c toda sc vos m ete debaixo
144 RODRIGO BKNTKS M O N T K I R O
dos pés; mas quando o sol está no oriente ou no ocaso, essa mesma sombra se estende tão
im ensam ente, que mal cabe dentro dos horizontes. Assim, nem mais nem menos os que
pretendem e alcançam os governos ultramarinos. Lá onde o sol está no zênite, não só se
m etem estas sombras debaixo dos pés do príncipe, senão tam bém dos seus ministros. Mas
quando chegam àquelas índias, onde nasce o sol, ou a estas, onde sc põe, crescem tanto as
mesmas sombras, que excedem muito a medida dos mesmos reis de que são imagens.”
Padre Antônio Vieira, apud Mello e Souza. Desclassificados..., op. cit., p. 91.
52 Ana Maria Alves. Aí entradas régias portuguesas. Lisboa: Livros Horizonte, s.d. Tam bém
lembramos do “tour de France” na menoridade de Carlos IX trabalhado tanto por Emmanuel
L e Roy Ladurie quanto por Yves-Marie Bercé como significativo para a manifestação do
poder régio dos Valois perante a França de meados do século XVI. L e Roy Ladurie. 0
Estado monárquico. São Paulo: Com panhia das Letras, 1994, p. 109-202; e Yves Bercé. L eroi
caché. Paris: Fayard, 1990, p. 378-415.
53 A designação de “colônias”, percebida na correspondência ultramarina a partir de meados
do século XVIII, não estaria som ente relacionada à “tomada de consciência dos colonos de
sua condição”. Afirma-se aqui que também os colonizadores, capitaneados pelo rei, ti
nham tomado consciência de sua condição num tem po anterior recente, durante a primeira
m etade dos setecentos. Ilmar Rohloff de Mattos. “A moeda colonial”, in\0tem posaquarem a.
São Paulo: Hucitec, 1987, p. 18-33; e Carlos G uilherm e Mota. Idéia de revolução no Brasil
(1789-1801). Petrópolis: Vozes, 1979.
E N T R E FESTAS E M O T I N S 145
□ □□
58 “Epanáfora festiva ou relação sumária das festas com que na cidade do Rio de Janeiro,
capital do Brasil, se celebrou o feliz nascimento do sereníssimo Príncipe da Beira, nosso
senhor”. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues, 1763; e “Relação dos obsequiosos festejos
que se fizeram na cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, pela plausível notícia do nasci
m ento do sereníssimo senhor Príncipe da Beira, o senhor D. José, no ano de 1762...”.
Lisboa: O ficina Patriarcal de Francisco L uiz Ameno, 1763; Barbosa M achado (org.).
Genetlíacos dos Sereníssimos Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal, s.n.t., t. V (1761-1767). Cf.
tam bém Rodrigo Bentes Monteiro. 0 teatro da colonização - a cidade do Rio de Janeiro no
tempo do Conde de Bobadella (1733-1763). Dissertação de mestrado apresentada ao D eparta
m ento de História da FFLCH-USP, São Paulo, 1993, e o artigo que publicamos com o
mesmo título; Maria H elena Carvalho dos Santos (org.). A festa. Lisboa: Sociedade Portu
guesa de Estudos do Século XVIII, Universitária Editora, 1992, v. I, p. 297-327.
E N T R E F E S T A S E M O TI NS 147
1 Este texto contém resultados parciais de uma pesquisa mais longa, financiada pelo CN Pq.
152 SILVIA HUNOLD LARA
cristã assinada por Afonso I (o mani do Congo), levada por uma vistosa comi
tiva portuguesa.2
Com efeito, esta embaixada não pode ser caracterizada propriamente como
africana, especialmente por suas intenções iniciais. Talvez tenha sido, no en
tanto, a primeira vez que algum potentado africano tenha entrado em contato
com esta forma de exposição pública de poder. Apesar da ausência conguesa no
cortejo de 1514, sua importância simbólica no universo negro colonial foi enor
me, em especial para as danças e reinados de congos que ocorriam em festas
públicas dinásticas na América portuguesa3 ou para as coroações de reis e rai
nhas congos nas irmandades negras em diversos pontos do Império.4 Houve
porém embaixadas africanas, no sentido pleno da expressão, tal como a relata
da por Barléus em 1643, quando enviados do rei congo foram a Pernambuco
negociar com Maurício de Nassau, que os recebeu com todas as honras.5
Examino aqui uma destas embaixadas, enviada em 1750 pelo Daomé à
Bahia, discutindo tanto os acontecimentos ocorridos em Salvador quanto um
dos principais documentos que sobre ela se tem notícia, a Relaçavi da Etn-
bayxada que mandou o poderoso Rey do Angome Kiay Chiri Broncotn, Senhor dos
dilatadissimos Sertoens de Guiné, enviou ao IIlustríssimo e Excellentissi/no Senhor
D. Luiz Peregrino de Ataide, Conde de Atouguia, Senhor das vilas de Atouguia,
Peniche, Cernate, Monforte, Vilhaens, Lomba e Paço da Ilha Dezerta; Comendador
das Comendas de Santa M aria de Adaufe; e Vila Velha de Rodam, na Ordem de
Christo, Do Conselho de Suam Majestade, Governador e Capitão General quefoy do
Reyno do Algarve, e actualmente vice-rei do Estado do Brasil, pedindo a amizade e
a alliança do muito Alto e muito Poderoso Senhor Rey de Portugal Nosso Senhor,
escrita por José Freire Monterroyo Mascarenhas.6
2 Cf. Frei Antonio Brásio. “Embaixada do Congo a Roma em 1514?”, in: Stvdia, 5<?:51-87,
jun. 1971. Para visão mais abrangente do processo de catolização do Congo vide John
T hornton. “T h e developm ent of an African catholic church in the kingdom of Kongo,
1491-1750”, in: Journal o f African History, 25, 1984.
3 Vide o meu “Significados cruzados: um reinado de congos na Bahia setecentista”, in:
Maria C lem entina Pereira Cunha (org.). Carnavais e outras f(r)estas. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000, no prelo.
4 Vide especialm ente José Ramos Tinhorão. Os negros em Portugal Lisboa: Caminho, 1988;
A. C. de C. M. Saunders. História social dos escravos libertos negros em Portugal (1441-1555)
(trad.). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994; e Julita Scarano. Devoção eescra
vidão. São Paulo: Nacional, 1976.
5 Cf. Gaspar Barléus. História dos feitos recentemente praticados durante 8 anos no Brasi! (trad.).
São Paulo: Edusp, 1974, p. 254-5.
6 José Freire Monterroyo Mascarenhas. Relaçam da embaixada que o poderoso rei de Angome
Kiay Chiri Broncom... Lisboa: Off. de Francisco da Silva, 1751. O capítulo VII da obra de
Pierre Verger. Fluxo e ref/uxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benim e a Bahia de todos os
Santos dos séculos XVII a X I X (trad.). 2.J cd. São Paulo: Corrupio, 1987, intitulado “Em bai
xadas dos reis do Daomé e dos países vizinhos para a Bahia e Portugal” (p. 257-92), repro
duz parte substancial deste documento.
UMA KM B A I X A D A AFRICANA NA AMÉRICA PORTUGUESA 153
7 Isso significa dizer que, na Bahia, eram chamados “negros minas” os escravos vindos desta
região e não os que procediam da Costa do Ouro, onde se localizava efetivam ente o forte
da Mina. Cf. Verger. Op. cit., p. 19-20 e Maria Inês Cortes de Oliveira. “Q uem eram os
negros da Guiné? A origem dos africanos na Bahia”, in: Afro-Asia, 19/20:37-73, 1997.
s A obra de Verger (op. cit.) ainda é a publicação mais detalhada sobre os aspectos luso-
baianos do tráfico de escravos na África ocidental. Para uma visão geral do tráfico nessa
região, vide Robin Law. The S/ave Coast o f West Africa, 1550-1750. Oxford: Clarendon Press,
1991.
9 Verger. Op. cit., p. 126-7.
154 SILVIA HUNOLD LARA
1(1 Para economia da exposição, o relato que se segue está baseado inteiram ente na Relaçam,
deixando-se de mencionar as páginas específicas para cada citação. Há disparidades entre
as informações fornecidas pelo texto de M onterroyo Mascarenhas e a correspondência do
vice-rei — que serão abordadas mais adiante.
" Não haviam chegado à Bahia as notícias do falecimento do rei e, segundo a Relaçam, “toda
a Corte da Bahia preparava custosas galas para mostrar, nos excessos de sua despesa, o
em penho do seu obséquio”.
UMA EMBAIXADA AFRICANA NA AMÉRICA PORTUGUESA 155
“A recepção que lhes tinha feito não era mais que uma simples demons
tração de hospitalidade que Sua Majestade tem o hábito de oferecer aos
estrangeiros que algum acidente ou necessidade comercial fazem vir às
suas portas.” 13
Depois de tais desaforos, teria dado seu recado político. Se o Daomé que
ria o comércio com Portugal, continuava o vice-rei em sua missiva, devia
“mandar colocar a fortaleza de Ajudá no estado em que ela estava antes que
seu exército a invadisse, e restituir aos particulares os escravos e mercadorias
levadas, porque sem o cumprimento destas condições, é impossível consen
tir em qualquer comércio com ele”. Mesmo assim, informava ele, mandara
preparar uma roupa “de acordo com o costume de seu país” e a mandara
entregar aos mensageiros no momento do embarque para o Daomé.14 Meses
depois, uma carta do secretário de Estado confirmava a chegada a Lisboa dos
panos da Costa e das três meninas, que haviam sido enviadas para servir no
quarto da rainha. E aproveitava para transmitir ao vice-rei a recomendação
real de que o conde devia “manter a melhor harmonia possível com o Dao
mé, para a conservação da fortaleza de Ajudá e de lá fazer o comércio dos
escravos para a manutenção deste Estado do Brasil”.15
A correspondência para Lisboa mostra um vice-rei bem mais seguro e
cheio de autoridade, distante do entrevisto nas linhas da Relaçam. Em vez
de um potentado cujos presentes e ofertas haviam sido sistem aticam ente
recusados, temos aqui um intransigente funcionário real a defender os direi
tos da nação portuguesa sobre seus domínios. Uma prepotência exagerada,
a julgar pela reprim enda transm itida pelo secretário de Estado: nada de
bazófias e sim di-plomacia e ponderação diante da necessidade de manter
12 Carta do Conde de Atouguia a Sua Majestade de 29 de junho de 1751. Apud: Verger. Op.
cit., p. 258 e 263.
13 Ibidem , p. 263.
14 Ibidem .
15 Carta de 21 de outubro de 1751. Apud: Verger. Op. cit., p. 263.
158 SILVIA HUNOLD LARA
16 Não deixa de ser interessante observar que os trajes oferecidos pelo vice-rei ao em baixa
dor sejam descritos na Relaçam como sendo “à portuguesa” c não à moda do Daomé, como
mencionado na correspondência oficial.
17 A iniciativa não parece ser extraordinária no período, já que em 1796 o vice-rei esperou a
procissão do Corpo de Deus, quando a tropa desfilava defronte ao palácio, para reccbcr os
embaixadores enviados pelo rei de Ajudá em primeira audiência. Assim como em 1751, os
emissários africanos foram acolhidos no Convento dos Franciscanos c vestidos por conta da
Fazenda Real. Vide Ciado Ribeiro de Lcssa. Crônica de uma embaixada luso-brasileira a
Costa d'África em fin s do século XVIII, incluindo o texto da viagem de Á frica no Reino de Daomé
escrita pelo Pe. Vicente Ferreira Pires no ano de 1800 e até o presente inédita. São Paulo: Nacional,
1957.
UMA KMBAIXARA AFRICANA NA AMÉRICA PORTUGUESA 159
oportunista de inserir o cortejo dos embaixadores na festa real para “aum en
tar com ato tão notável a solenidades daquele dia”. Seu relato, porém, deixa
a festa dinástica em segundo plano, preferindo evidenciar o luxo e o orgulho
dos embaixadores africanos, invertendo o sentido das pretensões do vice-rei.
O cruzamento dos textos revela que as práticas festivas e os relatos sobre elas
podiam ter usos políticos diversos e indica também que os protagonistas po
diam variar conforme as intenções dos autores e promotores, ou dos olhares
que os presenciavam.
Para além de embaixadores e autoridades régias, há ainda outros persona
gens nesta arena: os negociantes da Bahia, por exemplo, interessados na con
tinuidade do tráfico com a Costa da Mina e dispostos a aproveitar todas as
oportunidades para defender seus interesses. E preciso não esquecer que a
Relaçam indica claramente que o navio que os transportou do Daomé a Salva
dor pertencia a um baiano. A volta foi feita no mesmo navio em que o novo
diretor da fortaleza de Ajudá, Luís Coelho de Brito, embarcava para a Costa
da M ina.18 O relato de Mascarenhas, centrado nos embaixadores, traz boas
pistas. Evidentem ente seu texto não foi escrito para deleite da Corte do Dao
mé, mas sim — é o mais provável — para ser lido por letrados lisboetas e luso-
baianos. Além de “curiosos da História e da Geografia”, alguns destes leitores
bem poderiam apreciar as ironias veladas contra Atouguia. Partilhando códi
gos que ordenavam narrativas como a Relaçam de Mascarenhas, estes leitores
podiam facilmente decifrar o conteúdo político que impregnava o relato dos
eventos extraordinários ocorridos na capital do Estado do Brasil.
José Freire M onterroyo M ascarenhas era bastante conhecido em Portu
gal.19 D epois de estudar H um anidades, Filosofia e Matemática, passara dez
anos viajando pela Europa para com pletar sua formação, pertencendo a to
das as academias de seu tempo. Capitão de cavalaria, participou da Guerra
da Sucessão espanhola entre 1704 e 1710. A longa lista de suas obras inicia-
se em 1696 e é constituída essencialm ente por narrativas de feitos m ilita
res, análises de tratados entre nações e proclamações relativas à política
européia, 24 volumes de genealogias de famílias portuguesas, relatos de
notícias extraordinárias e outros tantos escritos pios sobre traslados de os
sos, canonização de santos, milagres,20 bem como textos sobre a índia,21 o
1714-16 ou a Epanaphora indica, na qual se dá noticia da viagem do Illmo. e Exmo. Sr. Marquez
de Castel/o-Novo, publicada em Lisboa em 1746.
22 Como no caso de Os onzes conquistados ou noticia da conversão dos indomitos orizes procazes,
povos bárbaros do certão do Brasil. Lisboa, 1716.
23 Cf., entre outros, Guimarães festiva ou relação do festejo público com que na villa de Guimarães
se applaudiram os reaes desposórios do Príncipe do Brasil com a infanta D. M aria Bárbara,
Princeza das Astúrias em fevereiro de 1728. Lisboa, 1728; Relação da magnificência, pompa e
applauso com que fo i recebido pelos seus diocesanos o Exmo. e Revmo. Sr. D. Lourenço de Santa
M aria, bispo do Algarve. Lisboa, 1753.
24 Cf. Francisco Adolfo de Varnhagen. História geral do Brasil. 7.J cd. São Paulo: M elhoram en
tos, 1962, tomo V, p. 247 e Ignacio Accioli de Cerqueira Silva & Braz do Amaral. Memórias
históricas epolíticas da província da Bahia. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1925, vol. 2,
p. 178.
25 Varnhagen. Op. cit., vol. III, p. 200-01. Para mais informações sobre a casa dos Atouguias,
UMA KM B A I X A D A AFRICANA NA AMÉRICA POR TUGUESA 161
pouco pese sobre o passado, não é demais mencionar que seu filho, casado
com uma filha dos Távoras, seria queimado em 1759, juntam ente com outros
membros da nobreza portuguesa culpados pelo atentado contra o Dom José
I.26 N obre de estirpe, bem relacionado e diretam ente envolvido na política
imperial portuguesa, Atouguia não fez mais que expor sua auto-imagem nas
cartas que escreveu ao rei. Contrariamente, Monterroyo Mascarenhas, ao optar
por descrever todos os títulos do conde no próprio título de sua obra, talvez
possa ter pretendido inverter o sentido de tão nobre linhagem, ao contrastá-
la com os eventos da Bahia.
A insistência de Monterroyo Mascarenhas em salientar o orgulho africano
em contraste com os desacertos de Atouguia, diante da distinção social des
tes dois homens, reforça a idéia de que esta Relaçam constituiu peça impor
tante no jogo político entre as forças que regeram as relações entre a Bahia,
Lisboa e o Daomé ao longo do século XVIII. Certam ente o texto não foi
escrito com base em um testem unho pessoal e direto do autor. Embora apre
sente dados gerais sobre o reino do Daomé, o autor comete vários deslizes na
sua localização geográfica e notadamente ao nomear Kiay Chiri Broncom e
não Tegbesu como rei desses domínios africanos.27 É evidente, entretanto,
que as regras da escrita em relatos como este não estão pautadas por critérios
de verdade mas de verossimilhança: mais que testem unhos de fatos e even
tos, oferecem notícias sobre outras práticas, situadas além da matéria de que
tratam. Longe da intenção de satisfazer qualquer curiosidade genuína com
informações precisas, as descrições de acontecimentos extraordinários e cos
tum es diferentes servem a exercícios de habilidade retórica e jogos hierár
quicos entre fidalgos e gentis-homens. São peças políticas, no sentido forte (e
ancien régime) da palavra.
E preciso não esquecer, entretanto, que não apenas os grandes do reino
participam de festas e cerimônias com estas, feitas para homenagear o sobe
rano. O interesse popular, o burburinho e a corrida do povo para “ver a novi
dade” aparecem mencionados na Relaçam e certamente não foram exclusivos
desta ocasião. O luxo do embaixador é descrito em pormenores, com desta
vide Afonso Eduardo Martins Z uquete (coord.). Nobreza de Portugal e do Brasil. Lisboa:
Editora Enciclopédia, 1960, vol. II, p. 331-7 e Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira,
vol. 3, p. 616-77.
26 Foi, portanto, o último titular do condado, já que o brasão dos Atouguia foi picado e raspa
do e o título deixou de existir em virtude das penas infamantes então impostas aos réus.
27 Os deslizes vão todos bem assinalados por Vcrger. Op. cit., p. 258. O reinado de Tegbesu
iniciou-se com um período dc grande instabilidade política e militar e, ao longo dos anos
40, recorreu a administradores provinciais e “oficiais” para afirmar-se politicamente. Tal
vez Kiay Chiri Broncom possa ser um destes potentados locais, mas não há evidência algu
ma sobre isso. Sobre o tema, vide Law, Robin. “Ideologies of royal povver: the reconstruction
of political authority on the «Slave Coast», 1680-1750”, in: Africa, 57(3):322-3, 1987 e, do
mesmo autor, The Slave Coast o f West Africa, 1550-1750, p. 334-40.
162 SILVIA HU N O LD LARA
examinados até agora, talvez até mesmo opostos a eles. A passagem de ho
mens negros ricamente adornados e recebidos com pompa pelas autoridades
locais podia ser desestabilizadora. E o que indica uma carta do governador da
Bahia dirigida ao rei, em 1765, a respeito de uns “ilhéus” congregados numa
confraria do Espírito Santo. Andavam eles “vestidos de foliões com tambor e
pandeiros pelas ruas de Salvador, acompanhados de alguns mulatos que en
tre si admitiam para as cantigas e facécias de palavras e obras e um fazendo a
farsa de Imperador”. Ainda que a ocasião fosse de folia, como o cortejo era
seguido por “muitos mulatos e pretos” que reverenciavam outro soberano
que não o de Portugal, o governador mandou que eles se fizessem acompa
nhar “só dos brancos, irmãos da Confraria”. Ponderava ele que
“No meio tem po desta demora lhes dava o seu calendário uma festa
que eles e os seus celebraram, segundo o rito gentílico que professam.
Mataram muitas aves e untando-se com o sangue delas, fizeram banque
tes de iguarias ao seu modo e, porque não usam de vinho nem de outras
bebidas fortes, brindaram à saúde de seu monarca e da felicidade do seu
afirma que, na Bahia, “em princípios do século XIX, os cativos eram cerca de um terço dos
500.000 habitantes da capitania, atingindo até 70% nas regiões dos engenhos”. Segredos
internos. São Paulo: Com panhia das Letras, 1988, p. 280.
30 “Ofício do governo interino para o Conde de Oeiras, no qual informa dos excessos pratica
dos por um grupo de ilhéus que se haviam reunido sob a designação de Irmandade do
Espírito Santo [...]”. Eduardo de Castro c Almeida. “Inventário dos docum entos relativos
ao Brasil existentes no Archivo da Marinha e Ultramar de Lisboa”, in: Anais da Biblioteca
Nacional, 32:96-8, 1914.
31 Especialm ente nagôs, nome que o tráfico usou para denom inar os povos de língua ioruba,
e jejes. Cf. Oliveira. Op. cit., passim.
164 SI l.V I A H U N O L D LARA
governo com café e com chocolate que o conde vice-rei lhes mandava to
das as manhãs.”
32 U artde voyager utilem ent(Amsterdãin: J. Louis de Lorne, 1698) oferece interessante quadro
de recomendações ao viajante que pretende entrar em contato com m undos diferentes do
seu. A questão é tratada de modo analítico com muito cuidado por Mary Louise Pratt.
Im perial Eyes. Travei writing and transculturation. Londres: Routledge, 1992. Cf. também
Bcrnard Smith. “Art in the service of Science and travei”, in: The Pacific— In the wake o f the
Cook voyages. N ew Haven: Yale Univ. Press, 1992, p. 1-49. ^
33 C atherine Coquery-Vidrovitch. “La fete des coutumes au Dahomey: historique et essai
d ’interprétation”, in: Annales, I9{4-6), 1964; a citação vem da p. 703.
34 Law. “Ideologies of royal power”, p. 333-6.
UMA KM B A I X A D A AFRICANA NA AMÉRICA POR TUGUESA 165
□ □□
1 Caio César Boschi. Os leigos e o poder. São Paulo: Ática, 1986; José Ferreira Carrato. Igreja,
iluminismo e escolas mineiras coloniais. São Paulo: Nacional, Col. Brasiliana n.° 334, 1968.
170 I RI S K A N T O R
2 Rita Costa Gomes. A corte dos reis de Portugal no fin a l da Idade Média. Lisboa: Difcl, 1995;
Jacques Revcl. A invenção da sociedade. Lisboa: Difel, 1990, p. 102-12; Ana Maria Alves.
Entradas régias portuguesas. Lisboa: Horizonte, 1986, p. 20.
3 Affonso Avilla. Resíduos seiscentistas em M inas — textos do século do ouro e asprojeções do mundo
barroco. 2 v. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1967; Rui Bebiano. D. João V:
poder e espetáculo. Aveiro: Livraria E stante Editora, 1987; José L uiz D utra de Toledo.
Simbologia e luxo no Triunfo Eucarístico — Villa Rica — 1733. Tese de mestrado. Franca:
U nesp, 1990.
4 Jacob Burckhardt. A cultura do Renascimento na Itália. Brasília. Brasília: EdU nB, 1991,
E N T R A D A S EPI SC O P A IS NA CA P IT A N I A DE M I N A S G E R A I S 171
p. 254; Bernard G uenée & F. Lehoux. Les entrées royales françaises de 1328 à 1515. Paris,
1969; Jaime de Almeida escreveu; “no século XV, as Entradas Régias buscaram seu m ode
lo na procissão de Corpus Christi e nos triunfos romanos”; ver o artigo “Todas as festas, a
festa?”, in: Tania N. Swain. História plural. Brasília: EdUnB, 1993, p. 164.
5 Trata-se da formulação da teoria do corpus republicae mysticum, elaborada originalmente por
Vicente Beauvais no século XII. Ernest Kantorowicz. Los dos cueipos dei rei. Madri: Alianza
Universidad, 1985, p. 188 e 194.
Bloch cita a bula de Inocencio III que constitui o mais autorizado sumário da doutrina
ortodoxa da unção. As modalidades dos dois ritos, o episcopal e o régio, são aí energica
m ente diferenciadas. Marc Bloch. Os reis taumaturgos. São Paulo: Com panhia das Letras,
p. 156.
172 I RI S K A N T O R
M i g r a ç ã o de l i t u r g i a s n o s q u a d r o s
de sagração dos bispos estrem eceu por quase cinqüenta anos as relações en
tre a coroa portuguesa e a tiara papal. Em 1649, havia apenas três bispos
confirmados em todo o império português. D. João IV regulamentou o fun
cionamento dos tribunais eclesiásticos em seu reinado, procurando resolver o
problema da intervenção dos juizes apostólicos nos tribunais do reino, e evi
tar o excesso de conflitos entre o direito civil e o canônico. Mas foi somente
após os acordos de paz firmados entre Espanha e Portugal que os problemas
quanto ao provimento dos bispados foram sanados e o rei português nova
m ente reconhecido pela Santa Sé.16
As tensões diplomáticas com a Santa Sé só seriam definitivam ente equa
cionadas no governo de D. João V, nos anos de 1728 a 1732; a partir de então
a Coroa instituiu um período depax litúrgica. No que toca ao uso do pálio, D.
João V determinou que os reis usariam o pálio de seda, com brocados de ouro,
ao passo que os bispos obtiveram permissão de entrar sob um tradicional
pálio feito de lã.17 A política de aumento das competências episcopais tam
bém convinha aos reis, mas exigia uma materialização simbólica que diferen
ciasse as liturgias monárquicas e eclesiásticas.18
De toda forma, deve ter-se em linha de conta que a colonização ultramari
na criou novas situações de enfrentam ento entre as esferas de poder m etro
politano e eclesiástico; pois era exatamente nos territórios de conquista que a
manutenção dos dois gládios unidos se tornava imprescindível e exigia en
caminhamentos políticos estratégicos, mediações que ampliassem a força po
lítica das camadas dirigentes locais (clérigos e seculares) tendo em vista a
necessidade de controlar as populações escravas e forras, assim como as re-
beldias fiscais e o contrabando.
D. João da Cruz relata que o dito vigário tinha armado seus sequazes, indo
contra o vigário encomendado da matriz, Padre João Pereira Ribeiro, por ele
não ter consentido em promover as obras na capela-mor. Com o apoio dos
moradores, cobertura do ouvidor e do intendente, o vigário teria enviado uma
petição ao rei.
A devassa do bispo foi prontam ente contestada pelo Ouvidor Caetano
Furtado de Mendonça. Este último, alegava que o bispo tinha usurpado po
deres ao mandar prender os leigos, e que o dito episódio estava fora da alçada
eclesiástica. Em earta ao secretário de Estado, o ouvidor denunciava os maus
modos estam entais do prelado — este teria mandado “m eter em ferros e em
troncos os presos como se usava fazer aos escravos”.20
O bispo por sua vez denunciava outras picardias do ouvidor:
23 Affonso Av i11a. Resíduos seiscentistas em Minas — textos do século do ouro e asprojeções do mundo
barroco, 2 v. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1967.
24 Diogo Rarnuda Curto. “A memória da nação”, in: F Bethencourt & Diogo Curto (orgs.).
Lisboa: 3d da Costa Editora, 1991, p. 254; Angel Rama. j4 cidade das letras, trad. Em irSader.
.São Paulo: Brasiliensc, 1985, p. 44.
178 IRIS KANTOR
25 Para informações mais precisas vejam-se os trabalhos de José Pedro Paiva. Op. cit. Etapas
definidas pelos manuais episcopais: 1. relato da viagem de chegada e preparativos de re
cepção; 2. cerimônia de recepção dos bispos à porta da cidade; 3. paramentaçâo solene,
beijo da cruz, boas-vindas dos vereadores, procissão solene até a catedral; 4. ritual na igreja;
5. cerimonial de entrada no paço episcopal; 6. festejos públicos.
26 Diogo de Vasconcellos. Op. cit.; Geraldo Chizoti. 0 cabido de Mariana (1747-1820). T ese de
mestrado. Franca: Departam ento de História, Unesp, 1984; Luiz Carlos Villalta. A torpeza
diversificada dos vícios: celibato, concubinato e casamento no mundo dos letrados de Minas Gerais
(1748-1801). Dissertação de mestrado. São Paulo: D epartam ento de História: Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1944; Raimundo
Trindade. Arquidiocese de Mariana, 3 v. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1953; do mesmo
autor: Archidiocese de Mariana, 3 v. São Paulo: Officina do Liceu Sagrado Coração de Jesus,
1928; Lana Lage da Gama Lima. A confissão pelo avesso: o crime de solicitação no Brasil coloni
al. Tese de doutorado. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, 1990.
E N T R A D A S E P I S C O P A I S NA C A P I T A N I A D E M I N A S G E R A I S 179
tributos das irmandades leigas. Essa disputa também foi longe e o ouvidor
acabaria sendo removido do seu posto, por esse e por outros motivos.27
11 Marco Magalhães de Aguiar. Vila Rica dos confrades: soáabilidade confraria! entre negros e
mulatos no século XVIII. T ese de mestrado: São Paulo: D epartam ento de História da Facul
dade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1993; Luciano
R. Figueiredo (estudo critico). Códicedo Ouvidor Caetano da Costa Matoso. Coleção Mineiriana.
Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2000.
28 Alan Corbin. Les cloches de la terre. Albin Michel, 1994.
29 Fritz Teixeira de Salles. Associações religiosas no ciclo do ouro. Belo Horizonte: Universidade
de Minas Gerais, 1963.
30 Laura de Mello e Souza. Desclassificados do ouro. 2 “ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986 e o “Os
ricos, os pobres e a revolta nas Minas do século XVIII: 1707-1789”, in: Análise & Conjuntu
ra, 4(2/3), mai.-dez. Belo Horizonte, 1989; Marco Antonio Silveira. O universo do indistinto:
Estado e sociedade nas Minas setecentistas (1735-1808). Tese de mestrado. São Paulo: Facul
dade de Filosofia, Letras c Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1994.
31 Adalgisa Arantes Campos. “O Triunfo Eucarístico: hierarquias e universalidade”, in: Bar
roco, 75:461-70, Belo Horizonte, 1989; A terceira devoção do setecentos mineiro: o culto a São
Miguele Almas. Tese de doutorado. São Paulo: Departam ento de História da Faculdade de
Filosofia, Letras c Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1994.
180 I RIS K A N T O R
□ □ □
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Uma s o c i e d a d e a l u v i o n a l e s u a s f e s t a s
1 Cf. Laura de Mello e Souza & Maria Fernanda Baptista Bicalho. 1680-1720 — o império
deste mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
2 Caio Cesar Boschi. Os leigos e o poder. São Paulo: Ática, 1986, Anexo 3, p. 187.
3 Marco Antonio Silveira. O universo do indistinto. São Paulo: Hucitec, 1997. Do mesmo au
tor, Fama pública — poder e costume nas Minas setecentistas. Tese de doutorado. São Paulo:
D epartam ento de História, FFLCH-USP, 2000. Para uma discussão ainda insuperada da
sociedade mineira, Sérgio Buarque dc Holanda. “M etais e pedras preciosas”, in: História
geral da civilização brasileira, vol. 2, São Paulo, 1960, p. 259-310.
FESTAS BA RR OCA S E VIDA C O T I D I A N A EM M IN AS G E R A IS 185
4 As festas do Triunfo Eucarístico e do Áureo Trono Episcopal foram por mim estudadas em
Desclassificados do ouro — a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982. A
análise que esboço aqui no tocante a essas duas festas é ligeiramente distinta da realizada
anos atrás.
5 À guisa de exemplo: N atalie Z. Davis. Culturas do povo — sociedade e cultura no início da
França moderna. Trad. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990; Robert Isherwood. Farce and
Fantasy — popular entertainment in eighteenth-century Paris. Oxford University Press, 1986;
Roger Chartier. A história cultural, entre práticas e representações. Trad. Lisboa: Difel, 1990;
Roy Strong. I.es fêtes de Ia Renaissance (1450-1650). A rt etpouvoir. Paris: Solin, 1990; Mona
Ozouf. La fête révolutionnaire— 1789-1799. Paris: Gallimard, 1986; Mary dei Priore. Festas
e utopias no B rasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994; Ana Maria Alves. Ar entradas régias
portuguesas. Lisboa: Horizonte, s.d.; Yves-Marie Bercé. Fête et révolte. Des mentalités populaires
duXVIesiècleauXVlIIesiècle. Paris: H achette [1994]; Robert M uchem blcd. Culturepopulaire
etcu/ture des élites dans la France modeme (XVe-XVIIIesiècle). Paris: Flammarion, 1978; Robert
Mandrou. De la culturepopulaire aux 1 7e et 18e siècles — La Bibliothèque Bleue de Troyes. Paris:
186 LA U RA DK M E L L O E SOUZA
além dos textos literários aqui utilizados: fontes mais secas c “objetivas” —
se é que as há —, como, por exemplo, posturas municipais e documentação
referente a despesas das câmaras/’ Contudo, acredito ser possível, com base
no repertório documental que se escolheu, levantar algumas questões gerais
referentes ao papel que essas festas desempenharam na sociedade mineira
do século XVIII.
F e s t a s do a p o g e u m i n e r a d o r
Stock, 1964; P eter Burke. Popular Culturein Modem Europe. Londres: Tem ple Smith, 1968;
M ikhail Bakhtin. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento — o contexto de François
Rabelais. Trad. São Paulo: Hucitec, 1978.
6 Cf. íris Kantor. Pactofestivo em Minas colonial— a entrada triunfal do primeiro bispo na Sé de
Mariana. Dissertação de mestrado. São Paulo: D epartam ento de História, FFLCH -USP,
1996.
7 Afonso Ávila. “Triunfo Eucarístico: uma festa barroca”, in: O lúdico e as projeções do mundo
barroco. São Paulo: Perspectiva, 1971, p. 113. Para o texto do Triunfo, ver Afonso Ávila.
Resíduos seiscentistas em Minas — textos do século do ouro e asprojeções do mundo barroco. 2 vols.
Belo Horizonte, 1967, vol. 1.
F E S T A S B A R R O C A S F. V I D A C O T I D I A N A E M M I N A S G E R A I S 187
8 Para o texto do Aureo Trono, ver Afonso Ávila. Resíduos seiscentistas em Minas — textos do
século do ouro e as projeções do mundo barroco, 2 vols. Belo Horizonte, 1967, vol. 2.
9 Para uma excelente análise desse aspecto, ver íris Kantor, op. cit.
10 Simão Ferreira Machado. “Prévia alocutória”, in: Afonso Ávila. Resíduos seiscentistas em Mi
nas, vol. 1, p. 8.
11 Simão Ferreira Machado. “Triunfo Eucarístico”, in: Afonso Ávila. Resíduos seiscentistas em
Minas, vol. 1, p. 56.
188 LAURA DE M E L L O E SOUZA
Ouro Preto vestia roupas de ouro e trazia à cabeça um turbante “tão rico que
não se via nele mais que ouro e diamantes, rematado em um precioso cocar
de várias plumas” . No peito, trazia bordadas as armas reais, “encimadas por
umas letras que diziam: Viva o Ouro Preto”. Na mão direita, levava “uma
salva, dentro dela um morrozinho coberto de folhetas de ouro e diamantes,
que significava o Ouro Preto” .12
As irmandades, que na festa de 1733 saíram em desfile pelas ruas — tanto
as de brancos ricos, como a do Santíssimo Sacramento, quanto a de pardos e
negros, como a da capela de São José ou a do Rosário dos Pretos — celebra
vam a harmonia com que viviam os povos nos conglomerados urbanos e o
zelo com que cuidavam das coisas religiosas — harmonia e zelo que contras
tam com o que se lê em outros testem unhos da época, mais atentos às ten
sões e à conflitualidade.13 “Vivendo tão apartados da comunicação dos povos,
e no meio mais recôndito do sertão”, insiste o texto do Triunfo Eucarístico, os
moradores de Ouro Preto se empregavam “com tanto desvelo e com inimi
tável generosidade em festejar a Divina M ajestade Sacram entada, para
maior exaltação da Fé e veneração dos católicos”.14No relato sobre a traslada-
ção do Santíssimo, omite-se, dessa forma, a precariedade da instituição ecle
siástica nas Minas, onde os membros do clero descuidavam dos serviços reli
giosos e eram capazes de andar pelos matos com trabucos atravessados às
costas.15
A ênfase ritual dada à recepção do bispo em 1748 e o certame literário re
tratam, por sua vez, uma sociedade onde normas e limites já se encontravam
mais bem estabelecidos e que, talvez por isso mesmo, precisavam ser reafir
mados publicamente, sobretudo quando se anunciava uma crise econômica.
C e l e b r a ç õ e s d a m o n a r q u i a d i s t a n t e
12 Ibidem , p. 60.
13 Para a revolta de Vila Rica, ocorrida em 1720 e indício dessa situação de conflitualidade
perm anente, ver Discurso histórico político sobre a sublevação de 1720 em Vila Rica. Edição
crítica, estabelecim ento do texto e notas de Laura de Mello e Souza. Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro, 1994. Para uma releitura dos motins ocorridos no sertão do São
Francisco entre a festa do Áureo Trono e a do Triunfo Eucarístico — mais precisam ente,
em 1736— , ver Carla Maria Junho Anastasia. Vassalos rebeldes — violência coletiva nas Minas
na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998; ver ainda Luciano Raposo
de Almeida Figueiredo. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial na América portuguesa —
Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais, 1640-1761. Tese de doutorado. São Paulo: D eparta
mento de História, FFLCH-USP, 1996.
14 Ibidem , p. 125.
15 Ver, a respeito, o meu Desclassificados do ouro, cap. “Os protagonistas da miséria” .
FESTAS BA RR O C A S E VIDA C O T I D I A N A EM M IN AS G E R A IS 189
rei morreu, viva o rei”, dizia o refrão corrente em monarquias de Antigo Re
gime, como a da França, lembrando que o Estado transcendia a pessoa do
governante.16 Na situação colonial, tais momentos tinham caráter peculiar:
além da celebração e da homenagem, havia a invocação de uma figura dis
tante, no caso o soberano que, dessa forma, era trazido para perto dos seus
vassalos.17
a ) VAI-SE O REI, FICA O REINO
16 Sobre o significado das exéquias reais como simbolismo da política, ver Raplh Giesey. Le
roi ne rneurt jamais — les obsèques royales dans la France de la Renaissance. Trad. Paris:
Flammarion, 1987.
17 Cf. Rodrigo N unes Bentes Monteiro. O rei em crise. Tese de doutoramento. São Paulo:
FFLCH -USP, 1999.
190 L A U R A DK M E L L O E SOUZA
ca, muito bem executada, e das luminárias, com as quais se gastaram mais
de quinze arrobas de cera. E o sermão do vigário lembrava que o rei era
“defunto para a nossa saudade, vivo e imortal na nossa memória” , cabendo
pois que os vassalos oferecessem os extremos de sua dor diante da sombra
fúnebre de seu trono.18
Nas praças, nas ruas ou até mesmo na igreja matriz, penduravam-se dís
ticos em tarjas ou cartazes, lembrando a efem eridade da vida e a fatuidade
da glória terrena: “A vida humana? E vento, flor, fábula, feno, hálito, cinza,
sopro, poeira & sombra. N ada”. O destino do rei afetava o destino dos vas
salos: “Quem chora, Lísia? O rei. Que pranto é este? Amargo. Ai de nós! Ai
do reino! Ai de Minas Gerais!” O mausoléu, “fúnebre máquina”, encobria a
real grandeza e expressava a igualdade de todos ante a morte, “que não
distingue a humildade da nobreza, o rei ou o vassalo, o rico ou o pobre” .
Mas se a celebração da morte real irmanava súdito e soberano por um mo
m ento fugaz, cabia logo lembrar que a morte do rei não afetava a essência do
mando:
ls Afonso Ávila. “As barroquíssimas exéquias de D. João V”, in: O lúdico e as projeções do
mundo barroco, p. 187-96.
19 Todas as citações em “Nas Reaes Exéquias de D. João V”, in: Afonso Ávila, op. cit., p. 279-82.
!•'KS T A S B A R R O C A S E V I D A C O T I D I A N A KM M I N A S G E R A I S 191
20 “Breve descrição ou fúnebre narração do suntuoso funeral e triste espetáculo que em Vila
Rica do Ouro Preto, cabeça de todas as das Minas, celebrou o senado dela à gloriosa m e
mória do sereníssimo Rei D. João o quinto, sendo assistentes a ele o ouvidor-geral e o
Senado da mesma no dia 7 de janeiro de 1751”. Biblioteca Nacional de Lisboa, fls. 9.
21 Ibidem , fls. 26.
192 LAURA DE M E L L O E SOUZA
22 A primeira referência às exéquias de Paracatu foi feita por Antonio Cândido em Formação
da literatura brasileira — momentos decisivos. 4.‘ ed. São Paulo: Livraria M artins Editora, s.d.,
vol. 1, cap. II, “Literatura Congregada”, p. 84.
23 “Exposição fúnebre das exéquias que à memorável morte da Sereníssima Senhora Dona
Maria Francisca Dorotéia, infanta de Portugal, fez oficiar no arraial do Paracatu o limo. E
Exmo. Sr. Conde de Valadares Governador e Capitão-Gencral da Capitania de Minas G e
rais — Dedicada ao mesmo sr. por M anuel Lopes Saraiva, furriel de dragões e com andante
dos mesmos no dito arraial. Seu autor o Reverendo João de Sousa Tavares, graduado cm
Leis pela Universidade de Coimbra” — Coleção Lamego, Arquivo do Instituto de E stu
dos Brasileiros, USP, fls. 28.
F K S T A S li A R R O C A S K V I D A C O T I D I A N A E M M I N A S G E R A I S 193
cruzeiro até “as grades que servem de divisão ao corpo da igreja, e assinalam
o lugar até a porta para assento do congresso m ulheril”. Havia cadeiras de
espaldar para as pessoas mais nobres e distintas, “segundo as preferências
das suas graduações, com outros assentos separados para as dignidades ecle
siásticas, e mais clero”.24
Mais de trinta clérigos oficiaram a cerimônia, presidida pelo pároco Antô
nio M endes de Santiago. Houve música e cantoria, “tão lastimosa que enter
neciam os corações”. Os milicianos dos regimentos locais de cavalaria e in
fantaria assistiram à exéquia com seus oficiais, todos fardados e trazendo “os
distintivos do sentim ento em fumo negro”.25
Mas se o texto da exéquia de Paracatu tem um tom mais realista, atento à
organização social, é ainda a cultura do barroco que o enforma. O mundo, diz-
nos o padre-autor, é “um universal teatro adornado e revestido das tapeçarias
da lisonja, em que se representam diversificadas tragédias pelos mortais, re
presentando cada um deles o seu papel enquanto lhes dura a vida e não che
ga a m orte” .
C o n c l u s ã o
□ □□
1 Bartolomé Bennassar & Lulice Bennassar. Les chrétiens c/’A/lah: 1’histoire extraordinaire des
renégats, XVI-XVII siècles. Paris: Perrin, 1989.
1 Ver sobre a expansão otomana na Europa os trabalhos de Robert M antran. Uempireottoman
du X V I au X V III sièc/es. Londres: Variorum Reprints, 1948 e Histoire de /'empire ottoman.
Paris: Fayard, 1989.
200 ROGÉRIO DK OLIVEIRA RIBAS
8 Álvaro Galmcs de Fuentes. Los moriscos. Madri: Instituto Egípcio de Estúdios Islâmicos,
1993, p. 22-3.
9 M íkel de Epalza. Los moriscos antesy después de la expulsión. Madri: Mapfre, 1994, p. 16.
10 ANTT. Ver os processos inquisitoriais relativos aos mouriscos na base de dados informatizada
sobre a inquisição portuguesa.
11 A N TT. Ver os processos inquisitoriais relativos aos mouriscos na base de dados informatizada
sobre a inquisição portuguesa, especialm ente os processos 708, 12383 e 3191 da Inquisição
dc Lisboa. Ver tam bém Antônio de Moraes Silva, vol. I, op. cit., p. 131.
202 ROGÉRIO D li O I, I V li I R A RIU A S
12 ANTT. Veros processos inquisitoriais relativos aos mouriscos na base de dados informatizada
sobre a inquisição portuguesa, especialm ente os processos 12720, 7560, 6787, 2263, 9670,
6405 e 12690 da Inquisição de Lisboa.
13 A N TT , Inquisição de Lisboa, proc. 9520.
14 A N TT , Inquisição de Lisboa, proc. 2263.
15 ANTT. Ver os processos inquisitoriais relativos aos mouriscos na base de dados informatizada
sobre a inquisição portuguesa, especialm ente os processos 7560, 6787, 9670, 12690 e 6440b
da Inquisição de Lisboa.
16 Antônio de Moraes Silva, vol. I, op. cit., p. 132 e 578.
FESTA K INQUISIÇÃO 203
32 Antônio de Moraes Silva, vol. I, op. cit., p. 451 e vol. II, p. 45.
33 ANTT. Veros processos inquisitoriais relativos aos mouriscos na base de dados informatizada
sobre a Inquisição de Lisboa, especialm ente os processos 6728, 7692, 3184 e 2467.
34 A N T T , Inquisição de Lisboa, procs. 7692, 6728 e 3184.
35 Antônio de Moraes Silva, vol. II, op. cit., p. 218.
36 A N TT , Inquisição de Lisboa, procs. 5254, 10831, 264 e 5153.
206 ROGÉRIO D K OLIVEIRA RI BAS
“elles todos abaixavão a cabeça e beijavão o chão e dezyão delles seja por
amor de Cyde Belabez Citin”, que era um santo do Islão.37
N estes festejos, o “conjunto musical” contava com a participação de ou
tros mouriscos que andavam na “cõpanhya e cantavã e baylavã” pelas ruas da
cidade.38Antônio Coelho, “amulatado, homem de meia idade, cativo de Luís
de Faria”, Diogo da Silveira que levava “huã camdea acesa na mão, grande
de corpo, sardo e todo ruyvo” que fora de Antônio da Silveira e agora era forro
e “servidor de fidalgos e outros homens por soldada”, o alcatifeiro Álvaro de
Carvalho, Diogo Fernandes que andava na “ribeyra a palha”, Cosme Gonçal
ves, mourisco jalofo que vivia em São Roque com três mouriscas, “Dõ Pedro
que fogio pera terra de mouros” e Francisco de Almeida que o Rei D. João
III mandara para a África.39 Possivelmente, as “Janeyras” e os “Reys” acaba
vam por acobertar as comemorações do “Muharran” — folguedos populares
islâmicos pelo primeiro dia do ano — e se transformavam em verdadeiras
“festas mouriscas” pelas ruas da Lisboa quinhentista.40
O “casamento mourisco” era outra solenidade digna de ser festejada, como
no caso do matrimônio contraído pela filha de Antônio de Abreu, moço de
estribeira do rei, com um filho de Duarte Fernandes, o já referido “caciz” na
comunidade mourisca de Lisboa. Lê-se na documentação que, “na dita voda,
o dito Duarte Fernandes degolou huum carneiro, estamdo presem te Antônio
de Abreu e sua m olher... ao modo dos mouros, damdolhe prymeiro de comer
ao carneiro trigo e huum pouco de sal e lhe botarão um golpe de agoa pela
boca pera lhe hyr pera baixo ho trigo e o sal”. Na mesma ocasião, “Duarte
Fernandes disse a oraçam de Bismila/Ho Hala/Quibar e depois degolou o
carneiro... e tomou o sangue em huuã vasilha e o mãdou em terrar”. O infor
mante do inquisidor, mourisco que bem parecia conhecer os ritos islâmicos,
acrescentou que a carne preparada daquele modo era conhecida em “arabigo
por Halel”, quer dizer, carne sem pecado. E forneceu ainda detalhes precio
sos sobre a degola do animal, dizendo que o caciz Duarte Fernandes tomou
carneiro por um cabo e Antônio de Abreu, pai da noiva, tomou-o por outro
cabo, tudo para que o animal não bolisse, pois se o fizesse, bolindo de um
lado para outro, se cria que a carne era má, e não sagrada. Ato contínuo, antes
de degolá-lo, o caciz pôs o rosto do carneiro para Alquibela, “que he pera
omde nasçe o sol”, direção da cidade santa de Meca.41
Um outro processo informa, a propósito da cerimônia descrita, que os mou
ros costumavam fazê-la sempre em suas bodas e que nenhum mouro poderia
dormir com sua mulher enquanto não fizesse a dita cerimônia chamada “Ha-
lel” e ter os noivos comido daquela carne.42
N este caso que tenho narrado, o caciz Duarte Fernandes ainda fez uma
cerimônia ao costume dos mouros para a “fartança dos festejos” . Tomou uma
boleima, bolo grande e grosseiro, e lhe pôs em cima um pouco de sal, deposi-
tando-a em seguida num alguidar vazio e enchendo de cuscuz, e ali fez ora
ções de mouros, nomeando Mohamed — que no processo aparece grafado
como Mafamede. Terminada a cerimônia, os convidados serviram-se de “cus
cuz, alfitetes e boleymas”, sem esquecer do prato principal, o “Misilal”, com
posto por “meo carneiro cozido” disposto em alguidares.43
A seguir, relatou o denunciante aos inquisidores o seguinte: que “poserão
a noyva em huum estrado estamdo presem te Antonio dabreu seu pay e sua
mãy e todos os mouriscos despois de acabarem de comer fizerão festa com
tamgeres como costumão os mouros e baylarão e cada huum dava a noyva
huuã oferta como podia e que Nicolao da Costa mourisco este he o que tan
gia com huuã frauta e Pedro de Farya e Bernaldo mouriscos que estes dous
apregoavão e diziam viva a ley de M afamede quãodo os mouriscos e mouris-
cas andavão bailãdo diãte da noyva e oferecyão o dinheiro e que quãodo elles
nomeavão M afamede que então se alevãtavão os mouriscos e oferecyão o
dinheyro”.44
E significativo acrescentar que o pai da noiva, Antônio de Abreu, dissera
que folgava em fazer este “casamento ao costume dos mouros” porque assim
fizera seu pai lá em sua terra, em outra voda outrora celebrada.45 Percebe-se,
nisso, não apenas a sobrevivência de um costume religioso, mas a consciência
de se preservar tradições ancestrais, ainda que clandestinamente.
Entretanto, é de se ressaltar que nem sempre as festas de vodas mouriseas
no Portugal antigo, chegavam ao seu final da mesma forma harmoniosa como
haviam começado. Caso conhecido na comunidade mourisca portuguesa era
a festa de casamento que ocorrera na casa de Jerônimo Correia, índio mouris
co que residia na Rua do Espírito Santo em Évora. Nesta festa, “se armou
amtre os mouriscos que ahy foram huum arroido” tal, ou seja, uma briga es
trondosa com clamores e gritos, na qual a própria dona da casa, a mourisca
Isabel Correia, acabou levando “huã cotilada plõ rosto”.46
O batismo islâmico também era alvo de comemoração entre os mouriscos:
“huã festa de comer, tamger, camtar e baylar”.47 Maria Nunes, mourisca forra
da cidade de Elvas, confessava ao inquisidor o batismo “ao modo e maneira
dos mouros” de sua filha Joana, realizado de comum acordo com o seu mari
do, o mourisco João da Silva “dahy a tres ou quatro dias depois de a baptizar
e de ser xpã”.48 Reuniu em sua casa na Rua da Olivença os seus amigos mou
riscos e ofereceu um “cuzcuz feito ao costume dos mouros e comerão no chão
sobre huã manta e huuns mantes em cima, os homens a sua parte e as molhe-
res a outra... e ao primçipio do comer os homens diserão pomdo as palmas
das maãos pera çima abertas Bizmilaa e depois de comer diserão Alamduru-
laa”.49
Comido o cuscuz, os mouriscos ajuntaram-se para pôr o nome mouro à
filha de Maria Nunes. Lançaram então “soortes ao modo dos mouros” to
mando “tres palhas ou paaos e punhão a cada huum delles seu nome de mou
ra... e depois vinha huum que estivera escomdido e não sabia ho nome das
palhas tomava huã delas qual queria e o nome que aquela palha tinha ese
punhão a criança”.50 Iniciavam-se os tangeres e os mouriscos cantando e bai
lando saudavam não mais “Joana”, mas sim “Aziza” em nome de Alá e do seu
mensageiro Mafoma, isto é, Maomé.51
Alguns dos encontros cotidianos dos mouriscos pelas tavernas de Lisboa,
muitas das quais de propriedade mourisca, também acabavam por se trans
formar em verdadeiras festarolas de improviso.52 Antes de comerem e bebe-
rem o vinho os mouriscos diziam “Bismila Harramão Harraem” e ao term ina
rem “Handarula Belaharam”. O encontro dos mouriscos prosseguia, regado a
“canadas de vinho”, que continuavam a beber enquanto conversavam, ao
passo que outros, às vezes, encetavam um “jogo de cartas”. Costumes habi
tuais dos mouriscos lisboetas, quiçá assimilados da cultura portuguesa, mas
que contrariavam os princípios corânicos.5-'
Mas, logo um deles começava a cantar “cãtigas de mouro” e seguidam en
te, todos os mouriscos, as palmas ou batendo nas mesas, passavam a acompa
nhá-lo no seu canto em “aravia”. A cantoria mourisca espalhava-se pela ta-
verna em músicas de “velhacaryas, de guerras... de cavalaria, de vitoryas e de
bargamtaryas... e de outras chacorryces”, mas não faltavam as cantigas em
louvor a M afamede e aos demais santos do Islão.54
maior parte europeus, que também pelo século XIX desceram a linha abaixo
do Equador — encontramos traços mouriscos presentes no folclore brasilei
ro, supostam ente trazidos pelos portugueses, sobretudo nos livros Mouros,
Franceses e Judeus c Mouros e Judeus na Tradição Popular do B rasil65
Há documentos, no entanto, que insinuam ter sido a transmissão da cul
tura mourisca no Brasil mais complexa do que normalmente se supõe. D o
cum entos da inquisição aludem a mouriscos ou renegados que tiveram pas
sagem pela América portuguesa.66 E não deixa de surpreender uma carta
enviada pela Coroa, no tempo de D. João V, ao governador e capitão-geral da
capitania de São Paulo, mandando que fossem recambiados ao reino um gru
po de mouros que ali tinham chegado num grupo de negros cativos, sob a
alegação de que seus “maos costumes” se alastrassem pela capitania.67
Se as festas mouriscas chegaram ou não a se difundir nas capitanias do
Brasil pelos próprios seguidores secretos de Maomé é algo que não podemos
assegurar. Mas não resta duvida de que é uma possibilidade aberta à investi
gação.
□ □□
65 Luís da Câmara Cascudo. Mouros ejudeus na tradição popular do Brasil. Recife: Secretaria
dc Educação e C ultura/D epartam ento de Cultura, 1978 e Mouros, franceses e judeus. São
Paulo: Perspectiva, 1984. Ver tam bém os seguintes trabalhos: Antologia do folclore brasileiro:
séculos XVI-XVII-XV!II — os cronistas coloniais — os viajantes estrangeiros. 4.a ed. São Paulo:
Martins, 1971 e o Dicionário do folclore brasileiro. 5.“ ed. São Paulo: M elhoramentos, 1980.
“ A N T E Ver os processos inquisitoriais relativos aos mouriscos e renegados na base dc da
dos informatizada sobre a inquisição portuguesa, especialm ente os processos 7692, 8425 e
5840 da Inquisição de Lisboa.
67 A N TT, Papéis do Brasil, códice 6, ms. 698.
212 ROGÉRIO D K OLIVEIRA RIBAS
tas. E verdade que me deparei com as festas dos africanos da colônia, os ba
tuques de que se queixavam os jesuítas então empenhados em cristianizá-los
e fazê-los escravos mais comportados.1 Deparei-me com os mesmos batu
ques e outras folganças populares que irritavam os agentes da Contra-Re-
forma no Ultramar, por serem as ocasiões prediletas para as tentações de
moníacas, sobretudo as lascivas.2 Deparei-me ainda com as danças indígenas
ao estudar a Santidade rebelde na Bahia quinhentista, cheguei mesmo a com
pará-las com os bailes indígenas no Peru do mesmo século, o Taqui Ongoy, e
os chamei então de “bailes dos espíritos”, pois eram os ancestrais da comuni
dade que bailavam então nos corpos em transe.3
Mas a festa nunca foi meu cenário principal de investigação e não sei se
estou de acordo com vários historiadores da festa, a exemplo de Vovelle, para
quem a festa é um campo maravilhoso de observação para o historiador por
que filtra metaforicamente todas as tensões de uma dada sociedade.4 Exage
5 M. Isaura P. de Queiroz. O messianismo no B rasile no mundo (1966). 2.“ ed. São Paulo: Alfa-
Ômcga, 1977.
218 RONALDO VAINFAS
6 Alfred Métraux. A religião dos tupinambás (1928). 2.a ed. São Paulo: Nacional, 1979.
7 Pierre Clastres. A sociedade contra 0 Estado (1974). 4 “ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1988.
8 H élène Clastres. Terra sem mal. São Paulo: Brasiliense, 1978.
9 Alexander Marchant. Do escambo à escravidão (1940). 2.a ed. São Paulo: Nacional, 1980.
DA FESTA TUPINAMBÁ AO SABÁ TRO PICA L 219
10 Ronaldo Vainfas. A heresia dos índios: cato/icismo e rebeldia no B rasil colonial. São Paulo: Com
panhia das Letras, 1995.
220 RONALDO VA I N I - A S
lhes haviam dado por meio de ritos similares aos da Igreja, santos óleos, água
benta. Entre os nomes dados ao alto clero desta Santidade, pontificavam ver
dadeiros santos, São Luís, São Paulo, São Pedro, um tal Santíssimo, um outro
Santinho, sem falar de certa índia que ostentava o título de Santa Maria Mãe
de Deus, mulher que chegou a presidir o culto na fase derradeira do movi
mento.
A mescla católico-tupinambá desta Santidade parecia não ter conhecido,
de fato, nenhum limite. O caraíba-mor do movimento dizia ser Tamandaré,
ancestral dos tupinambás, ao mesmo tempo que apregoava ser o verdadeiro
papa da Igreja.
E o que dizer do ídolo chamado Tupanasu} Era ídolo de pedra, personifica
do com nariz, olhos, boca e cabelos, réplica ampliada e sólida das cabaças
mágicas da festa tradicional. Em torno de Tupanasu, na igreja da Santidade,
os índios bailavam, cantavam e fumavam a erva santa, de sorte que ele, o
ídolo, protagonizava o espetáculo, a cerimônia. Mas Tupã, além de ser (ou
por ser) o herói-trovão da mitologia tupinambá, era o nome usado pelos jesuí
tas para designar o D eus cristão, o deus da catequese que os índios haviam
conhecido nos aldeamentos inacianos. Tupã para o índios era um herói, um
homem-deus. Tupanasu, com este sufixo de grandeza na língua geral, era o
“deus grande”, o deus da cristandade. O ídolo indígena exprimia, assim, tan
to o lendário tradicional dos índios como a catequese inaciana, virada pelo
avesso na Santidade.
Esta face católica da Santidade de Jaguaripe — que de tanto exacerbada
me levou a falar em catolicismo tupinambá na morfologia do movimento —
foi tecida ao mesmo tempo por jesuítas e índios aldeados — e o alto clero da
seita era composto por trânsfugas das missões.
A festa católico-tupinambá foi tecida na tradução do catolicismo para a
língua dita geral; tecida no recurso às imagens e mitos indígenas para expri
mir a doutrina cristã e as hierarquias da Igreja. A festa tradicional índígena se
convertera, porém, em festa rebelde e, paradoxalmente, em festa católica à
moda tupinambá.
Para demonstrar esta parceria inaciano-tupinambá na metamorfose da fes
ta e das crenças indígenas, elegeria, entre inúmeros episódios, uma ocasião
em que os jesuítas adentraram uma aldeia e desafiaram o pajé-açu que lá
estava a pregar. Disseram então os padres, entre outras coisas, que os índios
não deviam acreditar naquele feiticeiro, que era um falso pajé-açu, pois o
verdadeiro pajé-açú era o bispo da Bahia. Pois bem, se os jesuítas se perm i
tiam dizer que o verdadeiro pajé-açu era o bispo, porque o pajé-açu, como o
caraíba da Santidade, não poderia alegar que era ele o verdadeiro papa? N es
ta luta pelo monopólio da santidade, o território de desacertos e incertezas
seria de todo incontrolável e imprevisível.
Destruída a Santidade de Jaguaripe em 1585, apareceu a visitação do San
DA FESTA TUPINAMBÁ AO SABÁ TROPICAL 221
□ □□
1 Publicado em livro som ente em 1995 pela Universidade Federal do Rio G rande do Norte.
2 Relação rias faustíssim as festas que celebrou a Câmera da Vila de Nossa Senhora da Purificação e
Santo Amaro, da Comarca da Bahia pelos augustíssimos desposórios da Sereníssima Senhora Dona
M aria, Princesa do Brasil, com o Sereníssimo Senhor Dom Pedro, Infante de Portugal, dedicada ao
Senhor Sebastião Borges de Barros, Cavaleiro professo da Ordem de Cristo, capitão-mor das orde
nanças da mesma vila, fa m ilia r do Santo Ofício, deputado atual da Mesa da Inspecção e acadêmi
co da Academia Brasílica dos Renascidos, por Francisco Calmon, fidalgo da casa de Sua Majesta
de e acadêmico da mesma Academia. Lisboa, na oficina de Miguel Manescal da Costa, impres-
sor do Santo Ofício. Ano 1762.
228 MAKLYSK MKYKR
cidade de Salvador. ■’ A essas relações, cruzo uma terceira, que narra as festas
em homenagem a São Gonçalo Garcia, organizada pela igreja dos Pardos da
Senhora do Livramento em Pernambuco no ano de 1745.4
Mas é preciso insistir na riqueza de informações que trazem esses textos e
as perguntas que suscitam. Entre tantos exemplos: oferecem subsídios para a
história dos instrumentos musicais em uso no Brasil, para uma história do
vestuário digamos cênico, graças às minuciosas descrições das vestimentas e
ornamentos de aparato. O que é “vestir-se à trágica?” Identificar e analisar
todas as comédias e óperas elencadas (se é que já não foi feito) seria alargar o
panorama do teatro no Brasil.
E se cada grupo dançante das corporações de ofício tem liberdade de esco
lher sua dança, para cuja execução segue o guia que encabeça cada grupo,
não teria existido a figura do grande ordenador do espetáculo total, um com
p etente encenador?
Qual a contribuição do negro? “Nacionais de G uiné” tiravam os carros.
Dois dias de festejos da Bahia eram consagrados aos pretos. Já em Santo Amaro,
no mesmo ano, o acadêmico renascido Francisco Calmon e, vinte anos antes,
o relator da festa para São Gonçalo Garcia falam em qutcumbi. Eram danças
negras? E a riqueza de seu trajar espanta até o autor da relação. Tanto luxo
“em sujeitos tão mal herdados”.5 Quem pagava essas roupas? Por quê?
Seguem-se, pois, a propósito da cavalhada, uma ou outra observação suge
rida pelas relações de festas em que esta se encontra obrigatoriamente inclu
ída, precedendo o enfoque dado à cavalhada dramática de que me ocuparei
mais detalhadamente.
“[...] Pedro Lara, da família dos Lara, que tem, ao que parece, no seu
tempo, os primados nesses exercícios da arte da picaria. D ele nos fala Ta-
ques, como sendo, pelas suas habilidades de cavaleiro, o mais gabado dos
mancebos entre as damas e o mais invejado entre os homens.”9
“[...] Casando uma moça honrada com um vianês, que são os principais
da terra, os parentes e amigos se vestiram uns de veludo carmesim, outros
de verde, e outros de damasco e outras sedas de várias cores, e os guiões e
selas dos cavalos eram das mesmas sedas que iam vestidos. Aquele dia
correram touros, jogaram canas, pato, argolinha...” 11
14 Ibidem , p. 220.
15 Assim como no curro, além dos toureadorcs, havia os capinhas e mascarados que divertiam
o povo; assim, tam bém na cavalhada, além dos dois bandos, havia os mesmos mascarados
que andavam a pé divertindo o povo. Ver, a propósito da popularização da tourada no
século XVIII, recente artigo de Evaldo Cabral de Mello publicado na Folha de S.Paulo, 25
julho, 1999; Francisco dc Paula Ferreira de Rezende. Minhas recordações. Rio de Janeiro,
José Olímpio, 1944, p. 134.
16 Affonso Ávila. O teatro em M inas Gerais: séculos X V III eX IX . Ouro Preto: Prefeitura M unici
pal, 1978, p. 3.
17 Cartas Chilenas, carta V.
18 “Narração panegírico-histórica”, in: José Aderaldo Castello. O Movimento Academicista no
Brasil, vol. III, tomo 3, p. 199.
232 MARLYSK MKYHR
19 Ibidem , p. 197-8.
20 “Sumula triunfal”, op. cit., p. 13.
A PROPÓSITO DK C A V A L H A D A S 233
21 Ibidem , p. 37.
22 Antônio J. Saraiva. A cultura em Portugal: teoria e história. Lisboa: Bertrand, 1983.
23 Teófilo Braga. 0 povo português nos seus costumes, crenças e tradições, vol. 1. Lisboa: Dom
Quixote, 1985, p. 291-2.
234 MARLYSK MKVKR
teres, com dansas e trabalhos, segundo entonces husavom, e el saia dos bate-
es e metiasse na dansa com eles, e assi hia atta o paço” . Danças nas ruas
também animaram casamentos reais ou a tomada de armas de cavaleiros. Tal
era a paixão do povo pela dança, diz ainda Teófilo Braga, que se baixou um
alvará a 28 de agosto de 1559 proibindo “que na cidade de Lisboa e uma
légua de redor d ’ella se não faça ajuntamento de escravos, nem bailos, nem
tangeres seus, de dia nem de noite, em dia de festa nem pela semana, sob
pena de serem presos, e dos que tangerem ou bailarem, pagarem cada um
mil reaes para quem os pren d er...”.24 “As festas religiosas tornaram-se o prin
cipal pretexto das danças... No culto era a dança peculiar da liturgia tradicio
nal popular” .25
Em Fernão Cardim26 encontram-se repetidas referências à associação dan
ças/procissão reproduzida pelos evangelizadores, cuja reconhecida habilida
de incentivou “danças e outras invenções”, “procissão solene pela aldeia com
danças dos índios a seu modo e à portuguesa”. As cerimônias term inando em
geral com a conversão e casamentos de centenas de homens e mulheres índi
os. E é em Fernão Cardim que encontraremos a primeira notícia da “dança
mui graciosa” de meninos índios “todos em penados”, a dança que vamos
encontrar em vários dos festejos oficiais do século XVIII.
Mas não eram só os índios que gostavam de dançar, tam bém “alguns man-
cebos honrados festejaram o dia [da Virgem], dançando na procissão”.27 E n
quanto “a cidade e os estudantes” homenageiam as onze mil virgens “em
procissão solene, com flautas, boa música de vozes e danças” e organizam a
procissão das onze mil virgens.28 E nesta que se encontra a nau processional
que vamos reencontrar cm muito festejos.
Outra festa importada de Portugal, muito apreciada pelo conjunto da po
pulação: a comemoração dançada, a 10 de janeiro, de São Gonçalo de Ama-
rante, o santo casamenteiro e violeiro.
O francês Le Gentil de la Barbinais assistiu em 1718, na Bahia, a essa
festa, “onde compareceu o vice-rei Marquês de Angreja, tomando parte na
dança furiosa dentro da igreja, com guitarras e gritarias de frades, mulheres,
fidalgos, escravos num saracoteio delirante. Num final, os bailarinos toma
ram a imagem do santo, retirando-o do altar e dançaram com ela, substituin
do-se os devotos na santa emulação coreográfica”.29
24 Ibidem , p. 293-4.
25 Ibidem .
26 Fernão Cardim. Tratados da teira e gente do Brasil. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Edusp,
1980, p. 148.
27 Ibidem , p. 166.
2S Ibidem , p. 143.
29 Luís da Câmara Cascudo. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: M E C /IN L 1954
p. 294.
A l> R O I> Ó S I T O DK C A V A L H A D A S 235
30 N uno M arques Pereira. Compêndio narrativo do peregrino da América, vol. II. Rio dc Janeiro:
Academia Brasileira, 1939, p. 114 l.a ed. 1728.
31 “Súm ula triunfal”, op. cit., p. 43.
236 MAKLYSK MKYKR
sem merecer do autor do panegírico a mesma ênfase descritiva com que brin
dou o conjunto do cortejo.
Assim quando aos ferreiros faltou o tempo “para a dança que idearam”:
“Esta falta supriram os discretos e divertidos máscaras, que com vários gêne
ros de figuras fizeram tão jocundas representações que geralm ente alegraram
a todos. Ao som de harmoniosos instrumentos dançaram algumas danças co
muns [grifo eu] com toalhas e modas da terra...” .32
Faltam também maiores detalhes para o que sucedeu nos dias seguintes e
que talvez tivesse que ver com as danças negras a que se refere a relação de
Francisco Calmon: “os dias treze e quatorze foram pelo Senado determ ina
dos aos pretos. Estes em ambas as tardes foram à praça com muitas diverti
díssimas danças”.33
A relação dos festejos de Santo Amaro da Purificação é considerada, diz
Oneida Alvarenga, o primeiro documento conhecido sobre alguns costumes
folclóricos e foi muito utilizado como tal por muitos renomados folcloristas.
Apresenta, diz ela, o que seria a mais antiga notícia sobre o Reinado dos Con-
gos, apresentado num conjunto suficientem ente estruturado que denota re
petida prática anterior.34
O texto de Francisco Calmon é muito mais sóbrio na linguagem e muito
mais econômico nas descrições do que a relação da Bahia, sem no entanto
deixar de transmitir com cinematográfica precisão o luxo, a magnificência, a
sonoridade das Festas de Santo Amaro. Não falta a descrição dos três dias em
que se produziu “magnifica cavalaria”. Diga-se aliás que eram famosas as
cavalhadas de Santo Amaro da Purificação, ocorridas no dia da padroeira, a 2
de fevereiro.
É de se notar o grande espaço dado na relação ao conjunto do Reinado dos
Congos, proporcional, aliás, ao número de vezes que apareceu no cortejo e à
importância dada pelas autoridades ao rei e à rainha do Congo. Sem dúvida
um aspecto controlador, mas que denota respeito pela organização dos ho
mens pretos, dentro de uma festa que permite a alegria da dança para o m e
lhor reforço da hierarquia. Digno de nota é também o prazer dos espectado
res nas três vezes em que se exibiram: “No dia vinte e um, saiu terceira vez a
público o Reinado dos Congos, excitando sempre nos que o viam a ânsia
insaciável de gozar muitas vezes da sua alegre vista”. “O dia quatorze [de
dezembro] foi singularmente plausível pela dança dos Congos, que apresen
12 N ote-se que essas intervenções mascaradas «jocundas» são comuns nas nossas m anifesta
ções folclóricas c se encontram desde cedo incorporadas às cavalhadas (ver Marlysc Meyer.
De Carlos Magno e outras histórias, p. 25-7).
33 “Narração panegírico-históriea”, op. cit, p. 202-03.
34 Ver nota de Oneida Alvarenga, à página 13, referente ao dia 22/12/1760, in: Francisco Calmon.
Relação das faustíssim as festas. Introdução e notas de Oneyda Alvarenga. Rio de Janeiro:
M E C /SE C /Funarte-Instituto Nacional do Folclore, 1982.
A PROPÓSITO DHCAVALHADAS 237
4n J.-B. Dcbrct. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, tomo II, vol. III. São Paulo: Martins-
Edusp, 1972, p. 66-9.
41 T h eo Brandão. Cavalhadas de Magoas. Rio dc Janeiro: M EC/Funarte, 1978 [Cadernos de
Folclore, 24], p. 4-12.
240 MARLYSK MEYER
42 Von Martius. “Viagens pelo Brasil”, in: Câmara Cascudo. Antologia do folclore brasileiro, vol.
I. São Paulo: Martins, 1965, p. 94-95, 98.
4-’ Johann Em anuel Pohl. Viagens no interior do B rasil nos anos de 1811 a 1821, vol. II. Tradução
da edição dc Viena, 1837. Rio dc Janeiro: IN L , 1951, p. 240-2.
A PROPÓSI TO DF . C A V A L H A D A S 241
44 A. de Saint-H illaire. Viagem às nascentes do Rio S. Francisco epela província de Goiás. Tra
dução de Ciado Ribeiro de Lessa. São Paulo: Nacional, 1937, p. 199. Coleção Brasiliana,
vol. 68.
45 A. dc Saint-Hillaire. Viagem às nascentes do rio S. Francisco e pela província de Goiás, op. cit.
242 MARLYSE MKYKR
4'’ Ver “Tem Mouro na Costa ou Carlos Magno «Reis» do Congo”, in: Marlyse Mcyer. Cami
nhos do imaginário no Brasil. São Paulo: Edusp, 1993, p. 147-59.
47 Mário de Andrade. Danças dramáticas no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1959, p. 70.
A PROPÓSI TO DK C A VA L H A DA S 243
E essa estrutura recorrente de luta que, nem que seja em filigrana, per
meia qualquer folguedo brasileiro tradicional (inspira até a fanfarronice cos
tum eira dos cantadores), não poderia ser lida como a comemoração ritual do
acontecimento primordial que marcou os primeiros tempos da Colônia? Aquele
que se pode chamar a Guerra Santa da Conversão. O rolo compressor e unifi-
cador do Cristianismo atinge o Novo M undo no momento em que, na Euro
pa, após séculos de luta, a Santa Madre Igreja leva a melhor sobre o islamis-
mo e tam bém sobre o paganismo que teimava, no campo sobretudo, em so
breviver. Novo inimigo à vista, no entanto, a Reforma e o nefando luteranis-
mo. A implantação cristã n o N o \ o Mundo, exacerbada pelo renovado espírito
de Cruzada que anima a Contra-Rcíurma e desencadeia a Inquisição, conti
nua a legitimar a violência da luta Anti-Fiel, que haverá de se fazer a ferro e a
fogo:
“As portas abertas nessa Capitania para a conversão dos gentios, se Deus
Nosso Senhor quiser nos dar matéria de pô-los sob o jugo, porque para essa
sorte de gente, não há melhor predicação do que a da espada e do harpão
de ferro.”48
48 José dc Anchicta “Carta a Laynez de 16 de abril de 1563”, in: Serafim Leite. Cartas dos
primeiros jesuítas, vol. III, p. 554.
244 MARLYSK MEYER
□ □□
49 Texto de congada recolhido por Alceu Maynard dc Araújo. Folclore nacional. Congada dc
Piracaia, fala de Oliveiros.
A PRO PÓ SITO l)K C A V A L H A D A S 245
DE R E I S DE N A Ç Ã O A R E I C O N G O
tes foi costume am plam ente disseminado na América portugesa. Existiu nas
organizações de trabalho, geralmente organizadas por grupos que se identifi
cavam como pertencentes a uma mesma etnia, e nas quais se elegiam e fes
tejavam reis e capitães. Estes mesmos títulos eram atribuídos aos cabeças
de levantes de escravos, muitas vezes tramados e raramente concretizados,
sendo reis, capitães e embaixadores identificados como idealizadores e ar-
ticuladores dessas rebeliões por testem unhas ouvidas nos processos. Nos
quilombos também havia reis que governavam as comunidades rebeldes, con
forme atestam os documentos produzidos pela administração colonial, em
penhada na repressão aos quilombolas. Mas onde os reis negros assumiram
maior visibilidade foi nas festas em homenagem a seus santos padroeiros,
promovidas pelas irmandades, nas quais saíam em cortejos pelas ruas das
cidades, presidindo uma série de atos rituais e danças.
Escolher reis ou capitães foi uma das formas encontradas pelos africanos
escravizados para recriarem uma organização comunitária. Traficados por vá
rias rotas que ligavam o interior do continente à costa, africanos de diferentes
etnias, separados de suas sociedades de origem, se misturavam nos entrepos
tos comerciais, até formarem o lote a ser embarcado num negreiro, rumo ao
desconhecido, talvez o pior pedaço de todo o processo de escravização —
terrível rito de passagem de um m undo a outro. Nesse processo, inserido no
250 M A RIN A DE M li 1.1. O K SO UZ A
1 Im portante trabalho sobre esse assunto é o tlc Robert Slenes. “«Malungu, ngoma vem!»
África coberta e descoberta no Brasil”, in: Revista USP, /2:dez.-jan.-fev., 1991-1992.
2 Para a correspondência do Conde de Assumar ver Waldemar de Almeida Barbosa. Negros e
quilombos em M inas Gerais. Belo Horizonte, 1972, p. 58; para os reis eleitos nos cantos de
trabalho de Recife ver René Ribeiro. Cultos afro-brasileiros do Recife. Recife: M E C -Institu-
to Joaquim N abuco de Pesquisas Sociais, Série Estudos e Pesquisas 7, 1978 (1.” edição de
1952), p. 32; para os reis nos quilombos ver, entre muitos outros, Carlos Magno Guimarães.
HISTÓRIA, Ml T O K I D K N 'I' I D A D E 251
“homens pretos” que os reis de nação tiveram uma história mais longa e
complexa.
O compromisso de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São
Paulo, confirmado em 1778,3 estabelecia que angolas e crioulos deviam divi
dir os cargos da mesa administrativa, e especifiava que o rei deveria ser ango
la. Mello Moraes Filho nos dá notícia do termo de coroação de um rei e uma
rainha de nação cabundá, na Irmandade do Santo Rei Baltasar, em 1811.4 O
costume dos negros de elegerem reis em suas irmandades, coroá-los em mis
sa na igreja, acompanhá-los em cortejos por determinados circuitos da comu
nidade, fazer com qúe presidissem danças apresentadas em lugares públicos,
tudo em homenagem ao santo padroreiro da irmandade, que ainda era feste
jado com música e banquetes, é reconstruído por Mello Moraes Filho, con
forme devia acontecer no Rio de Janeiro, em meados do século XVIII. Com
base em documentos da igreja de Nossa Senhora da Lampadosa que depois
se perderam, o autor fez minuciosa descrição da festa de coroação de um rei
negro, tendo sido escolhido no ano de 1748, “para rei da nação rebolo”, um
escravo pessoal do vice-rei. Para conseguir os meios materiais para realizar a
festa, o rei negro e sua corte, acompanhados de músicos e dançadores, tira
vam esmolas “por meio de danças e brinquedos”. No dia de reis, quando a
irmandade festejava o “santo rei Baltasar”, o capelão coroava os reis na missa
e lavrava no livro da irmandade o termo de eleição do rei, da rainha e dos
demais cargos. Sempre acompanhados de suas cortes, esses reis festejavam
pelas ruas da cidade, com músicas e danças de marcada origem africana.
Q uando as irmandades de “homens pretos” escolhiam reis, estes eram os
responsáveis pela realização das festas dos seus oragos, e, se há notícias de
que no século XVIII, no Rio de Janeiro, eles se identificavam com nações
diversas, em Minas Gerais, eram sempre reis do Congo os eleitos.'’ E foi pelo
nome de congada, que as danças realizadas por ocasião dos festejos em torno
dos reis e dos santos padroeiros ficou conhecida a partir do século XIX.
Olhando com vagar para o processo de constituição dessa festa, amplamente
A C R I S T I A N I Z A Ç Â O A S E R V I Ç O
DE U M A N O V A I D E N T I D A D E
6 Adoto aqui o term o “rei Congo”, sem a preposição “do” e inicial maiúscula, por enten d er
que o título rem ete a uma identidade mítica, estando associado a noções c sentim entos
que ultrapassam em muito as especificidades do reino do Congo como existiu historica
mente. Nos estudos de folclore e nas descrições de viajantes o rei da festa é quase sem pre
chamado de “rei do Congo”, forma que não adotei por entender que o título não rem etia
ao reino africano como existiu historicamente, mas a uma idéia de africanidade construída
no Novo Mundo. A supressão da preposição, no meu entender, torna o título menos espe
cífico c mais generalizante, como cra a identidade para cuja construção ele serviu.
HISTÓRIA, MITO E IDENTIDADE 253
7 John T hornton. África and Africans in theM akingofthe Atlantic World, 1400-1860. Canibridge:
Cam bridge University Press, 1992.
254 MARINA DE M ELLO E SOUZA
8 A respeito dos movimentos religiosos da África ccntro-ocidental ver Willy de Craemer, Jan
Vansina & R enée C. Fox. “Religious M ovements in Central África: a Theoretical Study”,
in: Comparative Studies in Society andH istory, /<¥(4):outubro, 1976.
9 A esse respeito ver Susan Hcrlin Broadhead. “Bcyond Decline: the Kingdom o f thc Kongo
in th e E ighteenth and N ineteenth C cnturies”, in: The International Journal o f African
Histórica! Studies, 12(4), 1979.
H IST Ó K IA, MITO E ID E N T ID A D K 255
10 Mário de Andrade. “Os congos”, in: Danças dramáticas do Brasil. Belo Horizonte-Brasília:
Itatiaia-Instituto Nacional do Livro, 1982, p. 26, chama de danças dramáticas a bailados
populares compostos de “peças fixas, de seriação predeterm inada e lógica”, isto é, com
enredos estabelecidos pela tradição e reproduzidos a cada apresentação.
256 MARINA DE M E I, L O E SOUZA
O M I T O R E V I V I D O P E L A F E S T A DE RE I C O N G O
" João José Reis .A morte é umafesta. Ritosfúnebres e revolta popular no Brasil do século X IX . São
Paulo: Com panhia das Letras, 1991, p. 66.
HISTÓRIA, Ml T O F. I D KNTIDAD K 257
12 Hcnry Kostcr. Viagens ao Nordeste do Brasil. São Paulo: Nacional, 1942; J. B. von Spix &
G. F. P. von Martius. Viagem pelo Brasil. Rio de Janeiro: Im prensa Nacional, 1938; Johann
Em anuel Pohl. Viagens no interior do Brasil. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Editora da
Universidade dc São Paulo, 1976; Francis de Castelneau. Expedições às regiões centrais da
América do Sul. São Paulo: Nacional, 1949; Hermann Burmeister. Viagem ao B rasil através
das províncias do Rio de Janeiro e M inas Gerais. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Editora
da Universidade de São Paulo, 1980; Richard Burton. Viagens aos planaltos do Brasil. São
Paulo: Nacional, 1949.
258 MARINA D K MELLO E SOUZA
F E S T A DE R E I S N E G R O S E I N T E G R A Ç Ã O S O C I A L
mesmo tendo adotado formas portuguesas para expressar valores africanos. Mas,
como aos olhos dos senhores e administradores coloniais, ao festejarem Nossa
Senhora do Rosário e outros santos, mesmo que com danças de origem africa
na, os negros estavam praticando o cristianismo, — o que justificava a sua es
cravização e confirmava a sua integração à sociedade colonial —, essas festas
foram aceitas, assim como muitas outras ligadas a uma religiosidade popular,
para as quais confluíam grande variedade de elementos culturais.
Se na época colonial a Igreja aceitou as danças marcadamente africanas e
deu seu aval à coroação de reis de nação e rei Congo, as restrições a essas festi
vidades aumentaram desde o começo do século XIX, quando a Igreja católica
se em penhou em controlar a religiosidade popular e o Estado imperial buscou
afastar-se do passado colonial.15 Por outro lado, a partir de meados do século
XIX, outras possibilidades foram abertas por novas formas de organização e
resistência das comunidades negras, ampliando um espaço antes ocupado pela
coroação de reis. Importantes na construção de novas identidades, quando o
enraizamento dos estrangeiros no Novo M undo se consolidou e outras formas
de integração foram estabelecidas, em muitos lugares as festas de reis negros
deixaram de ser espaços privilegiados de estruturação interna das comunidades
negras e de regulamentação das relações destas com a sociedade abrangente.
As coroações de reis de nação, ao se transformarem em coroações de rei
congo, acompanharam um processo de superação das diferenças étnicas e cons
trução de uma identidade mais uniforme no âmago da sociedade escravista.
Freqüentes no século XVIII, deixaram, no século XIX, de ser espaço de ex
pressão de etnias particulares, passando a expressar comunidades unificadas
sob a bandeira de uma africanidade associada ao Reino do Congo. No final do
século XIX e começo do XX, quando entraram em vigor novas relações sociais
de produção e dominação, muitas vezes as congadas passaram a expressar a
identidade de um grupo definido pela sua condição social, de pobres, havendo
crescente participação de pessoas mestiças e brancas nas festas, sendo os car
gos de rei e rainha sempre reservados aos negros. Dotadas de grande capacida
de adaptativa, as coroações de rei Congo, mesmo menos disseminadas que em
épocas passadas, acontecem ainda hoje em muitos lugares do Brasil e são prova
da complexidade que rege os processos culturais, nos quais novos significados
são constantemente incorporados a formas tradicionais.
□ □□
15 Em 1817 o intendente da Polícia do Rio de Janeiro, Paulo Fernandes Viana, proibiu que as
irmandades pedissem esmolas com tambores porque tal prática provocava “grande ajunta
m ento de negros, e dele resultavam desordens, e bebedeiras, apesar das rondas que ha
viam”. “Representação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São B enedito..
Biblioteca Nacional, Sessão de Manuscritos, II — 34, 28, 25.
260 MARINA DE M Kl , 1 . 0 E SOUZA
1.
1 A inspiração para o presente estudo se deve a Yves-Marie Bercé.Fête et revolte. Des mentalités
populaires duX V Ie. a uX V IIle. siècle. Paris: H achette, 1994.
264 L UC IAN O F IG U KI R KD O
- George Rudé. A multidão na história. Estudo dos movimentos populares na França e na Ingla
terra 1730-1848. Rio de Janeiro: Campus, 1991; E. R Thom pson. La economia “moral” de
la m ultitud en Ia Inglaterra dei siglo XVIII, in: Tradición, revuelta y conciencia de clase —
estúdios sobre la crisis de la sociedadpreindustrial Barcelona: Grijalbo, 1989, p. 62-134; Eric J.
Hobsbawm. Rebeldes prim itivos: estudo sobre asform as arcaicas dos movimentos sociais nos sécu
los X IX e X X . Rio de Janeiro: Zahar, 1970. Ver ainda D om inique Julia. A “violência” das
multidões: é possível elucidar o desumano?, in: Jean Boutier & D om inique Julia. Passados
recompostos. Campos e canteiros da história. Rio de Janeiro: Editora da U FR J/Editora FGV,
1998, p. 217-32 e excelente síntese em Marco A. Pamplona. A historiografia do protesto
popular e das revoltas urbanas. Vol. 3. Rio de Janeiro: PUC, 1991.
’ Rogério F. Silva. Colônia e nativismo: a história como “biografia da nação"'. São Paulo: Hucitcc,
1996.
* A fronda dos mazombos — nobre contra mascates: Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Com pa
nhia das Letras, 1995.
R. D. Benford & S. A. Hunt. “Dramaturgy and social movements: the social construction
and communication of power”, in: SociologicalInquiry, 62:36-55,1992 c Louis A. Zurcher &
A R K V O LT A K UM A F K S T' A 265
2.
David A. Snow. “Collcctivc bchavior: social m ovem ents”, in: M. Rosenberg & R. H. Tur-
ner (eds.). Social Psycho/ogy, Sociological Perspectives. Nova York: Basil Books, 1981, p. 447-
82.
h As passagens adiante referentes às rebeliões foram tomadas em prestadas de minha tese de
doutorado: Revoltas, fisca/idade e identidade colonial na América portuguesa (1640-1761). São
Paulo: Universidade de São Paulo. 1996.
266 I. U C I A N O 1- I G U K I R K D O
3.
ln Johan Huizinga. O declínio da Idade Média. Trad. Augusto Abclaira. São Paulo: Verbo-Edusp,
1978.
272 I-UCIANO KIGUKIRKDO
4.
Chega a ser chocante uma eventual comparação entre o Áureo Trono Epis
copal em Minas Gerais e outra procissão episcopal que percorre em Salvador
em 1711 tentando aplacar a fúria da revolta conhecida como o M otim do
Maneta. Antes que o protesto fizesse mais estragos, o arcebispo da Bahia, D.
Sebastião Monteiro da Vide, seria mobilizado e, com seu poder reforçado por
todos os cônegos e beneficiados da Sé e alguns membros das irmandades,
dirige uma procissão conduzindo os símbolos sagrados do corpo e sangue de
D eus no pão e no vinho da Eucaristia, convidando a todos à quietação. A
iniciativa dessa ação de graça tem sucesso: “prostraram-se todas aquelas cria
turas ao seu Criador, e embainhando as espadas o adoraram e acompanharam
à matriz”. Mas o lenitivo foi passageiro. Após o ritual religioso, retornam ao
ritual da revolta, partindo novamente para a praça e exigindo o fim do tributo
e a redução do preço do sal.
Na Bahia o juiz do povo negocia com o governador pressionado-o a sus
pender os impostos, manter o preço do sal e perdoar desde já os implicados
no levante. A pacificação conta ainda com outros negociadores: os provinciais
da Companhia de Jesus, os beneditinos, o prior do convento do Carmo, o
guardião de São Francisco e o bispo. Aconselhado por D. Lourenço de Alma
da (ex-governador, que ainda se encontrava na cidade) aceita todas as exi
gências assinando portaria e um perdão generalizado. Acuado e desguarneci
do das forças militares, concede o perdão geral no mesmo dia, condição para
encerrar o motim, “extorquido com a violência das armas e furor do povo
[...]” e em ite ordens ao provedor suspendendo os novos impostos. Só assim,
às seis horas da tarde, o sino finalmente silencia e a população se dispersa. Os
tributos e o contrato do sal ficariam suspensos por alguns anos.
Se M onteiro da Vide e Dom Frei M anuel da Cruz conheciam uma ex
pressão de poder equilibrada e, cada qual ao seu modo, eram artífices da
reforma tridentina na América, dividindo dificuldades, um com a lassidão e
vícios dos baianos, outro com a indisciplina e rebeldia dos mineiros, as se
A R KV O LT A K UM A F KST A 273
5.
Até onde as rebeliões podem ter tomado de empréstimos ritos das festas é
questão de difícil solução. Características tipicam ente barrocas como a hiper
trofia do cênico e a estruturação dos cerimoniais encontram-se divididas en
tre festas e rebeliões a ponto de os rituais e concepção cênica das últimas se
aproximarem das festas públicas, ainda que certa estética barroca — primado
do visual, do sensorial, do persuasório — apareça combinada com o sentido
jurisdicionalista e pragmatismo político.
Identicam ente, como demonstrou íris Kantor para as festas em Minas,"
tam bém as revoltas podem ser caracterizadas como processos que se benefi
ciaram da transferência e adaptação das tradições portuguesas. Ambos cons
tituem ainda rituais políticos de aproximação social também, ultrapassando o
11 íris Kantor. Pactofestivo ém M inas colonial: a entrada triunfal do primeiro bispo na Sé de Mariana.
Dissertação de mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1996.
274 L UC IAN O FIGUKIRKDO
6 .
As sensibilidades coletivas e suas formas ritualizadas desenham fronteiras
muito pouco definidas, entre a comédia e o teatro, entre a festa e as encena
ções, entre as procissões e a revolta. As distinções mais demarcadas entre elas
são construções modernas. Por meio das encenações festivas públicas con-
vertia-se o índio, disciplinava-se o vassalo, pacificavam-se os escravos, firma-
vam-se precedências. Múltiplos usos tomados sob a perspectiva utilitarista,
secularizada, moderna, iluminista, julgamento decerto próximo de certo ana
cronismo. Porém, de maneira indiscutível, tratava-se do mesmo e único re
curso da ritualização e linguagem com que se falavam com os sentimentos
coletivos. E, como tal, conhecem efeitos polissêmicos. O mesmo espetáculo
que serve às instituições serve aos insatisfeitos com elas. O mesmo altar que
catequiza é destruído por selvagens atormentados, o mesmo sino que comu
nica se cala ao ter seus badalos roubados e atirados na lama, a mesma roupa
que diverte serve de mortalha para os que ousam crer em alternativas ao
poder absoluto dos reis.
Nas revoltas se os mesmos ritos festivos são cumpridos, eles o são de ma
neira invertida: em vez de ruas limpas, o chão das vilas é arrasado por produ
tos esparramados, casas opulentas que deveriam ser caiadas são esvedradas e
desfiguradas, as luminárias em devoção são substituídas pelo ódio das labare
das que destroem papéis e produtos, as janelas e portas que deveriam estar
ornamentadas recebem a dureza das pedras atiradas pela multidão furiosa
que as transforma em gretas que vêem passar os requintados móveis atirados
na rua, quando os melhores fatos são saqueados pela fúria retributiva.B
Na América portuguesa, laboratório distante da política barroca, as revol
tas oferecem um campo privilegiado de observação em que no fundo muitas
das práticas de ação coletiva estavam referenciadas na dimensão cultural que
conhecia o exercício político de então. Amotinados e soberanos dispunham
das armas da política barroca, os primeiros sob a condição colonial esgrimindo
ameaças de rompimento com a soberania lusa e o recurso à vassalagem de
outro soberano, os segundos recomendando dissimulação, procedimento le
Minas Gerais na l.a m etade do século XVIII)”, in: Varia Historia (Códice Costa Matoso,
núm ero especial), n." 21, 1999, p. 119-41
13 Sobre a cultura da retribuição nos protestos, ver especialm ente W. Beik. Urban Protest in
Seventeenth-Century France. The Cu/ture o f Retribution. Cambridge: Cambridge University
Press, 1997.
276 I.UCI AN O [’ I G U li I R E D O
□ □□
L u c i a n o R a p o s o d e A l m e i d a F i g u e i r e d o é professor adjunto do
D epartam ento de História da Universidade Federal Flum inense; mestre e doutor
em História Social pela Universidade de São Paulo; ex-coordenador da Seção de
Pesquisas do Arquivo Nacional; autor dos livros 0 Avesso da Memória: Cotidiano e
Trabalho da Mulher no Século XVIII (Edunb-José Olympio, 1993) e Barrocas Famílias:
Vida Familiar em Minas Gerais no Século XVIII (Hucitec, 1997). Editor de documentos
históricos, entre eles a obra A Revolução da América, de Abade Raynal (Arquivo N a
cional, 1993); Marcas de Escravos — Listas de Escravos Emancipados Vindos a Bordo de
Navios Negreiros (1839-1841) (Arquivo Nacional, 1990) e o Códice Costa Matoso (F un
dação João Pinheiro, 1999). Atualm ente vem dedicando-se ao estudo das rebeliões
na América portuguesa e a comparações com a América inglesa.
14 Rosário Villari. Elogio delia dissim ulazione— Ia lotta polifica nel Seiceuto. 2.“ed. Roma: Editori
Laterza, 1993.
DEZENGANO
D O S
RAPAZES,
O U S U C C E S S O S D A SERRA-
çaõ da Velha deíle p rcze nte anno
de 1786.
L I S B O A ,
Na Officina üe D O M I N G O S G O N S A L V E S .
Anno de iy&S.
Com Licença da Real Meza Cenforia ,
Frontispício da obra Dezengano dos rapazes, ou sucessos da Serração da Velha, desdepre-
zente atino de 1786. Lisboa: Officina Domingos Gonsalves, 1786. Foto André Ryoki.
A SERRAÇÃO DA VELHA:
CHARIVARI, MORTE E FESTA
NO MUNDO LUSO-BRASILEIRO
M ary D el P r i o r e 1
1 Agradeço ao Conselho Nacional dc Pesquisa (CN Pq) a bolsa de apoio à pesquisa integrada
que vem possibilitando esta e outras pesquisas na área da cultura e mentalidades no m un
do ibero-americano. Ofereço esse artigo à Maria Lúcia M ontes, mestra e querida amiga.
2 Refiro-me à Nicole Pellegrin, de cuja introdução ao livro Les bacheteries — organisations et
fêtes de ta jeitnesse dans le Centre-OuestXVe-XVlllesièdes. Poitiers: Mémoires de la Société des
Antiquaires dc 1’O uest, 1982, em prestarei, a seguir, algumas idéias.
280 MARY D K I. l> R I O R K
3 Penso aqui em autores como J. Duvignaud. Fêtes et civilisations (1973), Yves-Maric Bercé.
Fêtes et revoltes: des mentalités populaires du XVIe au X V Ille siècle (1976), Michel Vovcllc. Les
métamorphoses de la fête en Provence 1750-1820 (1976), Jean D elum eau. La morte des pays de
Cocagne (1976) c mesmo o meu Festas e utopias no B rasil colonial (1994).
4 Josiane D uranteau. “Fctes subversives”, in: Éducation, 15/10/93, p. 18-20.
5 Jean Duvignaud. Op. cit., p. 8.
h As questões relativas ao “popular”, cm Portugal foram pioneiram ente tratadas por intelec
tuais como Consiglieri Pcdroso, Adolfo Coelho, Teófilo Braga, Carolina Michaêlis e José
L eite de Vasconcelos cujo projeto dc edição em torno da Revista Lusitana mostra os esfor
ços para o estudo do “povo” e das tradições populares e nacionais, hoje carinhosam ente
revistas por Diogo Ramada Curto.
7 Ver, por exemplo, o meu Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 1992.
8 O primeiro folheto foi achado na biblioteca da Fundação G ulbenkian de Paris c intitula-se
A SKRRAÇÃO D A V K I. H A 281
“Serre-se a velha
Força no serrote
Serre-se a velha
Dentro do pipote.”
“Testamento He uma vellia que se acha na cidade de Lisboa de idade de m il e setecentos e cinqüenta e
dois anos, cerrado porM onsieurdeLos Tiempos”. Sou muito grata às bibliotecárias dessa F u n
dação que me permitiram a cópia integral do documento. Os três outros encontram-se
publicados por Mário Cesariny em Horta da literatura de cordel. Lisboa: Assírio c Alvim,
1983. Para a compreensão do papel c circulação de folhetos de cordel em Portugal é obri
gatória a leitura de “Littérratures de large circulation au Portugal (XVIe-XVIIIe siecles)”,
artigo de Diogo Ramada Curto publicado cm outra obra de leitura basilar: Colportage
et lecturepopulaire — Imprimes de large circulation en Europe XVIe-XIXe siècles, sob a direção
de Rogcr Chartier & Hans-Jiirgen Lüsebrink. Paris: Maison des Sciences de 1’ Hommc
1996.
9 Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Edusp, 1988, Verbete
“Serração da Velha”, p. 709.
10 O autor tem um capítulo inteiro sobre o tem a em O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis,
edição do Instituto Histórico c Geográfico Brasileiro, 1932, p. 199-206.
282 MARY DHL PRIOR K
“ O P O R T U G A L DA V E L H A ”
16 Ibidem .
17 Pombal recusou, por exemplo, a proposta de Charles Crompton, enviado de Jorge II, para
negociar um novo tratado de comércio que daria à Inglaterra o privilégio de negociar escra
vos no Brasil.
284 MARY DHL PRIOKK
'* Em prestarei, aqui, considerações tecidas por Teresa Bernardino cm Sociedade e atitudes
mentais em Portugal (1777-1810). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1982, p. 31 c
passim.
19 Ver seus A estrutura da antiga sociedade portuguesa. 3.“ cd., Lisboa, 1977 c Prix et monnaies au
Portugal (1750-1850). Paris, 1955.
A SRRRAÇÃO DA V K I, H A 285
“ s e r r a ç ã o e t e s t a m e n t o d e u m a v e l h a ...”
tar uma paviola, pois não acho nesta terra nenhum patife, que me em preste
uma tum ba ou esquife”. Os pobres eram geralmente transportados para os
cemitérios em tabuleiros de madeira ou redes, sendo enterrados nos lugares
menos nobres como, por exemplo, os pátios externos das igrejas. Seu interior
e as proximidades dos altares cabiam aos poderosos. Com ironia, a Velha pede,
ainda, para ser enterrada por “quatro gatos pingados” ao som de “campainha,
cortiço e serra”, instrumentos responsáveis pela algazarra e barulho infernal
que acompanhavam o ritual da serração. Sua agonia devia ser retardada pelo
cortiço que lhe servia de corpo, “cortiço [esse] duro como aço, para se ter de
vida mais um pedaço” e pelo serrote feito de manteiga “pois serra de mantei
ga e cortiço de aço, não me chega tão depressa ao cachaço”.
A introdução relaciona-se com a obsessiva presença da morte na psicologia
social do século XVIII.24 A incerteza relativa ao futuro era acentuada nos ser
mões dominicais e festivos, nos livros de piedade e nos catecismos sempre
preocupados com o medo do demônio, a consciência do pecado e o terror do
inferno. As missas cantadas com responsos, visando assegurar o bem da alma
após a morte, eram substituídas, durante a serração, pela algazarra das sine-
tas. As preocupações com o destino do corpo, que, nos testam entos tradicio
nais, levavam o moribundo a precisar o local da sepultura eram trocadas pela
presença satírica da padiola. Os acertos financeiros, sempre mencionados nos
testamentos, perm item à Velha nomear seus colegas de infortúnio e pobreza.
Ao “sardinheiro”, por exemplo, deixa a campainha da festa “para atrair clien
tes” quando for vender seu peixe. Ao “M anuel Inácio, o barbeiro, cento e
cinqüenta em dinheiro”; ao sapateiro deixa uma esmola “para comprar uma
meia sola”. Ao “tendeiro”, “um bispote [um urinol] e um fogareiro”; Ao ser-
rador, “um enxergão e um cobertor”; Ao “vizinho tanoeiro, um lençol velho e
um travesseiro”; A Maria dos Passos que dê ao escrivão doze abraços”. Os
artesãos, gente certam ente envolvida com a organização dos festejos da ser
ração, desfilam no texto. São fragateiros, sapateiros, peixeiros, contratadores
de laranjas, engomadeiras, mendigos coxos e manetas, taberneiros, confeitei
ros, alfaiates, mestres-escolas, espadeiros, etc. que nos dão idéia do conjunto
mais vasto da população. Nele, os artífices eram o grupo com maior coesão,
nascendo daí, provavelmente, a organização da festa. Eles são nominalm ente
citados e muito provavelmente conhecidos na comunidade pela realização
do animado folguedo: João Duarte, Pedro Rodrigues, Maria Faleiga, M anuel
Antunes, Miguel da Costa Moreira, Domingos Dias, Sebastião Pereira, Fran
24 Sobre a morte no Antigo Regime ver Philippe Ariès. 0 homem diante da morte. Rio de Janei
ro: Francisco Alves, 1982, Michel Vovelle. La mort et 1’Occident de 1300 à nos jours. Paris:
Gallimard, 1983. Para o Brasil ver o m eu capítulo “Ritos da Vida Privada”, in: História da
vida privada no B rasil — cotidiano e vida privada na América portuguesa. Laura de Mello e
Souza (org). Direção Fernando A. Novais. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
288 MARY OKI, P RIO R K
Vemos repetir-se todo o rito que cercava o momento da morte. Para seu
testamenteiro, nomeia “o tempo, gastador do mundo inteiro”. A ele pede
que o seu enterro se faça com ostentação, mas “de graça” . Insiste, também,
para que não a enterrem “de nenhum modo” se não quando estiver morta de
todo, que não quero — admoesta — estar na cova, metida meia dentro, meia
fora”. Não deseja um enterro “à carreira” e quer ser “amortalhada” “na mes
ma nudez em que foi criada”.
D iferentem ente da Velha do folheto anterior, essa diz não ter o que m ate
rialmente testar, mas deixa ao público e aos leitores, uma série de conselhos.
Os conselhos, por sua vez, refletem o am biente de extrema religiosidade que
mencionamos acima e os deslizes com umente cometidos por falsos devotos.
27 Impresso em Lisboa, na oficina de Domingos Gonçalves, ano de 1786 com licença da Real
Mesa Censória.
28 O já mencionado artigo dc Diogo Curto ramada dem onstra as tensões c conflitos entre os
cegos vendedores, editores e livreiros na venda dos folhetos dc cordcl. Op. cit., p. 299-329.
A SERRAÇÃO DA VELHA 291
festa, (“vinte e dois de março”) uma quarta feira fixa no calendário festivo
(“sempre cai esse tal dia”). A festa é descrita como um “ajuntam ento de
galegos e rapazes” que lá “pelas sete horas, quando já anoitecia” agarravam a
Velha “cheios de imensa alegria, tomaram-na entre dentes, entraram a que
rer parti-la” . A “santa velhinha” reagia dando bons conselhos enquanto os
jovens gritavam, “serre-se a velha” e conduziam-na para a “Praça da Ale
gria”. O folguedo, incluía, como se vê nesse texto, a participação de “mo
ças... grandes e pequeninas” e de “basbaques” armados de paus a fim de
“virar tripas e ver da Velha o bucho” . A presença de campainhas e chocalhos
era uma constante. A serração terminava pontualmente: “Acabou de dividir-
se, quando as doze se cumpria, da meia noite da noite, de que enche a quarta
na quinta” .
No início do século XIX, mais exatamente em 1806, o folheto sobre a ser
ração já tinha autoria. O “Aviso a pastronos e pastranas, caloiras e caloiros pela
história da serração da Velha, Quaresma clemente, neta de Carnaval Leitão e
Bisavó da Páscoa Cordeira” foi escrito por Francisco Mariano do Advento —
um nome provavelmente fictício, pois o Advento segue-se à Páscoa, — e é
impresso na Impressão Régia. A ênfase na descrição é muito forte. Ficamos,
assim, sabendo que, ao cair do sol, “vadios correndo em vários magotes, à luz
d ’acesos archotes, davam gritos e assobios aos engodados pichotes” . Ao som
de chocalhos, essa “gente solta” invadia as ruas na “costumada revolta” . Al
guns carregavam escadas, outros bancos e outros ainda cadeiras para melhor
assistir ao folguedo. A presença de “galegos”, como animadores do evento é
marcante. Incentivados por patroas e amos, as empregadas domésticas e os
“aprendizes e caixeiros”, “aprendizes sapateiros”, “lacaios e cocheiros” jun-
tavam-se ao rebuliço da festa “onde se tornam meninos” . O ponto de encon
tro da serração era o “cais do Carvão”, possível lugar numa geografia imaginá
ria da cidade. A festa tinha regras: “As casadas com decência, o seu lugar
tomarão; as solteiras em mais guarda, por modéstia ficarão, as viúvas por mais
fracas, dá-se-lhes assento no chão; os galegos nos chouriços, as nádegas pou
sarão, ficando bem aprumados, com suas cangas na mão. Os sabujos dos rapa
zes, nas escadas treparão, para que todos desfrutem, todo o primor da fun
ção”. A instalação do povo, seguia-se a predicação da Velha. Um rapaz vestido
de Velha, “entre muita choradeira” e a voz trêmula cumpria o ritual de dar
bons conselhos. Os temas, como já foi dito, eram de ordem moral e referiam-
se às práticas religiosas. Vale a pena repeti-los:
29 Ver sobre a questão o livro de Ronaldo Vainfas, 0 trópico dos pecados. Rio de Janeiro: Campus,
1989, especialm ente a Parte 1, “Os dois mundos na encruzilhada do pecado” .
A SRRRAÇÃO DA VELHA 293
30 Ver de Laura de Mello e Souza. Inferno Atlântico — demonologia e colonização. São Paulo:
Com panhia das Letras, 1993.
31 Em presto aqui algumas idéias à Teresa Bernardino. Op. cit., p. 127.
294 MARY OKI, PRIORli
“ a VELHA li O G H A R I V A R I ”
3<1 Ver o artigo de C athcrine Robert & Michel Valière. “Lo martelet, un charivari occitan à
Lespignan”, in: J. Le Goff & J.-C. Schmitt. Op. cit., p. 56-63.
37 Ver o artigo de Júlio Caro Baroja. “L e charivari en Espagnc”, in: J. L e Goff & J.-C. Schmitt.
Op. cit., p. 75-96.
38 Ver seu artigo “Charivari, associations juvéniles, chasse sauvage”, in: J. L e Goff & J.-C.
Schm itt. Op. cit., p. 131-40.
30 Ver o seu já clássico Les cultures du peuple — rituels, savoirs et resistences nu 16e siècle. Paris:
Aubier, 1979, especialm ente o quarto capítulo dedicado às associações festivas c inversões
carnavalescas intitulado “La règlc a 1’envers”, p. 160 e passim.
411 Para maiores detalhes, ver José Vicente Serrão. “O quadro humano”, in: História de Portu
gal, volume “O Antigo Regime”, coordenação de Antônio M anuel Hespanha, p. 49 e Robert
Rowland. “Sistemas familiares e padrões demográficos em Portugal; questões para uma
investigação comparada”, in: Ler História, J: 13-32, 1984.
296 MARY DEL PR IO R E
□ □□
1 Sobre o assunto, ver Afonso Ávila. Resíduos seiscentistas em Minas: textos cio século de ouro e as
projeções do mundo barroco. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1967; e Laura de
Mello Souza. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século X V III. 2.J ed. Rio dc Janei
ro: Graal, 1986.
302 A n RI A N a R o m e i r o
motins das Minas nas primeiras décadas dos Setecentos não foi muito dife
rente do padrão geral do comportamento da multidão durante os food riots e
tax rebbelions europeus. Tam bém nas áreas mineradoras, homens encapuza-
dos, ao som de tambores, destruíam as propriedades de suas vítimas e os
documentos oficiais que simbolizavam sua sujeição; queimavam seus inimi
gos políticos em efígie, matando-os simbolicamente. Assim, explicitava-se
uma das importantes características do comportamento da multidão pré-in-
dustrial — a preservação, no mais das vezes, da vida humana, restringindo-se
os levantes à destruição da propriedade” .2
Todos estes elementos estão presentes, por exemplo, na Revolta de Vila
Rica, ocorrida em 1720, como reação à instalação das casas de fundição sob o
governo do Conde de Assumar. Mesclando elementos carnavalescos, como a
máscara e a paródia, os revoltosos transformam a revolta numa festa popular:
o toque de sinos, as correrias, a simulação da aplicação da justiça, a galhofa, a
violência, a exploração do espaço urbano como arena de confronto, perten
cem a um território comum tanto ao motim quanto à festa.’
Derivadas da festa, os funerais simbólicos, com o enterro, o testam ento e a
missa para a alma do defunto, constituem um gênero ainda inexplorado, a
despeito da extensa historiografia existente sobre o tema para a Europa mo
derna. Tal lacuna talvez justifique uma abordagem centrada em uma única
fonte — procedimento arriscado mas que pode fornecer subsídios para análi
se futura que, incorporando novos materiais, se pretenda mais sistemática.
O docum ento que sustenta a presente investigação é a carta escrita pelo
Capitão-Mor Nicolau Carvalho de Azevedo, em setembro de 1732, na qual
informa ao ex-Governador D. Lourenço de Almeida a circulação de papéis
jocosos e satíricos em Vila Rica, logo depois de sua partida.4 E um longo
papel, de mais de vinte folhas, em que o autor descreve, muito superficial
mente, o teor destas sátiras e a realização do enterro simbólico de D. L ouren
ço. É com base nestas parcas e fragmentárias linhas que tentarei em preender
uma reflexão sobre a natureza e o significado destes eventos, tentando arti
culá-los com o imaginário político das Minas setecentistas. E preciso obser
var que o docum ento não reproduz ipsis litteris o conteúdo dos papéis satíri
cos, limitando-se tão-somente a fazer uma referência genérica a eles.
2 Carla Anastasia. Vassalos rebeldes: violência nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo
Horizonte: C/Arte, 1998, p. 41.
3 A melhor fonte para o estudo da revolta de 1720 do ponto de vista da ritualística continua
a ser o Discurso histórico e político sobre a subtevação que nas Minas houve no ano de / 720.
Estudo crítico, estabelecim ento do texto e notas por Laura de Mello c Souza. Belo Hori
zonte: Fundação João Pinheiro, 1994.
4 Biblioteca Nacional de Lisboa. Coleção Pombalina, “Trcslado de uma carta que o capitão-
mor Nicolau Carvalho de Azevedo mandou do Rio de Janeiro a D. Lourenço de A lm eida..
códice 672, fs. 145ss.
O K N T K K RO S A 1' í R I C O D K UM G O VKR N AD O R 303
5 Yves-Marie Bercé. Fête et révolte: des menta/ités populaires dtt XVIe. (tu XVIHe. sièc/e. Paris:
H achette, 1994, p. 55.
304 A d r i a n a R o m e i r o
" Robert Darnton. O grande massacre (te gatos: e outros episódios da história culturalfrancesa. Rio
de Janeiro: Graal, 1986.
306 A D R I A N A R C) M K I R O
“André Gonçalves Xavier que algum dia foi de chave dourada ou chave
mestra por abrir a V.Ex.a todos os escaninhos de seu peito, revelando-lhe
os arcanos mais recônditos de seus negócios ilícitos, hoje se acha por portas
desvalido, pedindo esmolas de valimento. O Capitão-Mor Domingos da
Rosa Ferreira, que, algum tem po para V.Ex.3 era boa pedreira e na fé que
lhe guardava rocha firme, hoje se acha mui quebrada de seus brios [...].
Antônio da Silva Porto, escrivão da ouvidoria que nunca foi ouvido, se não
depois que entrou no ofício deixando o de sapateiro trocando a fivela pela
pena, quando apenas sabia dar dous pontos, hoje quer m eter tudo em um
chinelo, mas entendo que do couro lhe sairão as correias.”
9 Segundo Bakhtin, a festa popular “apontava para um futuro incom pleto”, op. cit., p. 9.
O KN T E R R O SATÍRICO DE UM GOVERN ADO R 307
sada por João Adolfo Hansen, “não é oposição aos poderes constituídos, ain
da que ataque violentam ente membros particulares desses poderes, muito
menos transgressão liberadora de interditos morais e sexuais”." Longe de
pôr em causa o controle político e a dominação metropolitana, os festejos que
comemoraram a partida de D. Lourenço tinham por objetivo restaurar o bom
governo e restabelecer a ordem provisoriamente rompida pelo comportamente
iníquo de um mau governador. Tratava-se de afirmar, de forma pública e
coletiva, o que então se entendia por bom governo e o que a população espe
rava de seus governadores. Dessa perspectiva, é legítimo abordar o episódio
como mais um mecanismo de controle político, destinado a apontar as falhas
e as faltas do poder, para que, uma vez corrigidas e sanadas, pudessem garan
tir a continuidade e a legitimidade deste. Como argumenta João Adolfo H an
sen, a sátira política nada mais propõe do que a correção dos vícios políticos,
em nome de um ideal comum. Ademais, ele se inscreve à perfeição na inter
pretação proposta por Antônio Manuel Hespanha a respeito das revoltas e
dos motins do Antigo Regime: “o seu projeto era a em enda do «mau gover
no», normalmente diagnosticado apenas ao nível mais imediato dos respon
sáveis políticos locais, pois o rei continua a ser a sede da justiça, embora,
eventualm ente, vítima da ignorância das situações locais ou dos enganos dos
maus conselheiros”.12 Carla Anastasia, em seu estudo sobre as revoltas mi
neiras da primeira metade do século XVIII, chega à mesma conclusão: “o
soberano, figura mítica e incorpórea, é preservado”, sendo uma das preocu
pações dos rebelados evidenciar a obediência ao rei, como no caso do motim
de São Romão, no qual os participantes gritavam “Viva D. João Quinto, e
morram os traidores e régulos à Coroa”.13
Enterrado o boneco de D. Lourenço, sua alma lançada ao inferno, rem e
morados os casos mais escabrosos de seu governo, tudo voltava à velha ordem
cotidiana. Como um fantasma que deve ser exorcizado, sua imagem fazia
então parte do passado, e todas as atenções se voltavam, esperançosas, para o
Conde das Galveias. Pouco vezes a sociedade mineira terá sido mais obe
diente e disciplinada...
□ □□
11 João Adolfo Hansen. A sátira e o engenho: Gregário de Matos e a Bahia do século X V II. São
Paulo: Com panhia das Letras, 1989, p. 29.
12 Antônio M anuel Hespanha. “A resistência aos poderes”, in: José Mattoso. História de Por
tugal: o Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa, 1993, p. 452.
13 Anastasia. Op. cit., p. 75.
O KN T ERRO SATÍRICO DE UM GOVERN ADO R 309
* Versões diferentes deste artigo foram apresentadas nos eventos “II Jornada Setecentista”
(Departam ento de História/Cedop/Universidade Federal do Paraná, julho de 1999) e “Festa,
C ultura e Sociabilidade Festiva na América Portuguesa” (Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas/USP, setem bro de 1999). O autor agradece os comentários e sugestões
dos presentes a ambos os eventos.
314 LUIZ G KRAL D O S I I,V A
1 Cf. “O Preto Domingos da Fonseca, Governador dos Pretos Camaroeiros dessa Vila c sen
term o”. Arquivo Público Estadual Jordão Emcrcnciano (doravante A PEJE). Série P aten
tes Provinciais. Cód. 07, f. 114v.-l 15, 5/12/1792.
DA FESTA À SKD1ÇÃO 315
2 .
Assim sendo, tanto os “homens sem senhor” como os cativos encontravam
no reduzido espaço urbano da cidade de Olinda e da vila do Recife formas de
trabalho e de identidades étnicas que lhes permitiam construir laços e esta
belecer redes que implicavam formas de sociabilidades internas ao universo
das camadas populares de então. Uma das mais flagrantes provas da presença
significativa dessa camada social no meio urbano é o grande número de cor
pos étnicos e profissionais existente na segunda metade do século XVIII.
D entre estes destacam-se as corporações profissionais dos “Pretos Ganhado
res da Praça do Recife”, dos “Pretos Carvoeiros do Recife e Olinda”, dos
“Pescadores da Vila do Recife”, dos “Pescadores do Alto da Cidade de Olin
da”, das “Pretas Boceteiras e Comerciantes do Recife”, das “Pombeiras da
Repartição de Fora das Portas” (do Recife), dos “Canoeiros da Repartição de
O linda”, dos “Canoeiros do Recife”, dos “Pretos Marcadores de Caixas de
Açúcar e Sacas de Algodão”, dos “Capineiros da Praça da Polé, Cinco Pontas,
Rua da Praia, Quatro Cantos, Boa Vista e Cidade de Olinda” e dos “Pretos
Camaroeiros desta Vila [do Recife] e seu term o” .2
2 Cf. “Feliciano Gomes dos Santos, Governador dos Pretos Ganhadores”. APEJE. Série
P atentes Provinciais. Cód. 3, f. 158, 14/11/1778; “O Preto Antônio Duarte, Governador dos
Carvoeiros do Recife e de O linda”. APEJE. Série Patentes Provinciais. Cód. 07, f. 51,
316 LUIZ GER ALDO S I LVA
1791 (mês c dia ilegíveis); “G erm ano Soares, G overnador dos Pescadores da Vila do R e
cife”. A PEJE. Série P atentes Provinciais. Cód. 3, f. 92, 20/2/1778; “Bcrnarda E ugênia dc
Sousa, G overnadora das Pretas Boceteiras c C om erciantes” . A PEJE. Série P atentes Pro
vinciais. Cód. 6, f. 75 v., 30/6/1788; “A Preta Josefa Lajes, Governadora das Pom beiras da
Repartição de Fora das Portas”. A PEJE. Série P atentes Provinciais. Cód. 11. f. 279-
279v., 12/11/1802; “O Preto João M anuel Salvador, Governador dos Canoeiros da Repar
tição de O linda” . APEJE. Série P atentes Provinciais. Cód. 6, f. 102v., 4/11/1788; “João
G om es da Silveira, G overnador dos Pescadores do Alto da C idade de O linda” . A PEJE.
Série P atentes Provinciais. Cód. 6, f. 74-74v., 16/6/1788; “O Preto M anuel N unes da
Costa, Governador dos Pretos Marcadores de Caixas de Açúcar”. A PEJE. Série P atentes
Provinciais. Cód. 2, f. 198, 13/9/1776; “José N unes dc Santo Antônio, G overnador dos
Canoeiros” [do Recife]. A PEJE. Série P atentes Provinciais. Cód. 9, f. 136-136v., 4/12/
1797; “O Preto Domingos da Fonseca, Governador dos Pretos Camaroeiros desta Vila e
seu term o” . A PEJE. Série P atentes Provinciais. Cód. 7, f. 114v.-l 15, 5/12/1792; Livro dc
Registro das Missas do Ofício dos Capineiros da Praça da Polé, Cinco Pontas, Rua da
Praia, Q uatro Cantos, Boa Vista c C idade de O linda (1757-1826). Apud: Mello, 1983-
1985, Vol. X: DX.
3 Cf. “O Preto Narciso Correia dc Castro, Governador da Nação dos Ardas do Botão da Costa
da M ina” . APEJE. Série Patentes Provinciais. Cód. 7, f. 10, 10/5/1795; “Simião da Rocha,
G overnador da Nação Dagom e”. APEJE. Série Patentes Provinciais. Cód. 2, f. 114v.-115,
23/2/1776; “O Preto Bernardo Pereira, Governador da Costa Suvaru” . APEJE. Série Pa
tentes Provinciais. Cód. 2, f. 129, 1779 (dia c mês ilegíveis); “Ventura de Sousa Garcês,
Governador dos Pretos Ardas da Costa da M ina”. APEJE. Série Patentes Provinciais. Cód.
2, f. 133v„ 14/7/1776.
DA FESTA À SEDIÇÃO 317
4 Cf. “Agostinho Ferreira Cardoso, Governador dos Pescadores da Ilha de Itamaracá”. APEJE.
Série Patentes Provinciais. Cód. 8, f. lv., 22/10/1794.
5 Cf. “O Preto João da Assunção, Governador dos Pescadores”. APEJE. Série Patentes Pro
vinciais. Cód. 5, f. 6-6v., 22/9/1784.
6 Cf. “O Preto Bernardo Pereira, Governador da Costa Suvaru”. APEJE. Série Patentes
Provinciais. Cód. 2, f. 129, 1779 (dia e mês ilegíveis).
7 Cf. “Germano Soares, Governador dos Pescadores da Vila do R ecife”. APEJE. Série Pa
ten tes Provinciais. Cód. 3, f. 92, 20/2/1778.
318 I- U I /. G E R A I . n o SI I.VA
dor” da corporação dos pescadores da vila dos Recife, Tomás Francisco, havia
sido substituído “pelas desordens praticadas [...]”.” Numa corporação próxi
ma à dos pescadores — a dos “pretos camaroeiros” — tam bém se verificou
caso semelhante: em dezembro de 1792, o “preto” Domingos da Fonseca
tornou-se seu governador por “não dever continuar no exercício dele o atual
José Pereira de Azevedo pelas desordens que tem praticado entre seus sú
ditos” .9
Cabe considerar agora, à luz de alguns exemplos, como funcionava esta
importante instituição. Em primeiro lugar, enquadrando cativos e, sobretu
do, a camada social constituída pelos homens de cor livres, observa-se que
praticamente todos os “governadores” dessas corporações eram descritos como
“pretos” ou “pardos” e, ocasionalmente, “forros” . Domingos Ferreira Ribei
ro, por exemplo, feito governador dos Pretos Ganhadores da Praça do Recife
em 26 de outubro de 1777, era um negro “forro”;10 este era igualmente o caso
de Josefa Lajes, governadora das pombeiras da Repartição de Fora das Portas
do Recife em novembro de 1802," e de Germano Soares, feito governador
dos pescadores da vila do Recife em fevereiro de 1778.12 Não se encontra na
docum entação nenhum a referência a governadores cativos; estes ou são
designados apenas como “forros”, em alguns casos, ou, quase sempre, co
mo “preto” ou “pardo” . O enquadram ento de caráter racial era tão rigoroso,
ademais, que corporações inteiras recebiam a denominação de “pretos” , su-
pondo-se que todos os seus membros fossem homens de cor, tais como nos
exemplos das corporações dos carvoeiros, dos ganhadores, das boceteiras e
comerciantes, dos marcadores de caixas de açúcar e sacas de algodão e dos
camaroeiros.
Em segundo lugar, tal como os reis de Benin antes de 1400, os reis mossis
e iorubas, da região da Guiné, e os reis do Congo, na África Central, após o
século XVII (Davidson, 1981 e Brásio, 1969), os governadores de com uni
dades étnicas e de corporações eram, normalmente, eleitos por seus pares.
Curiosamente, o mandato durava três anos e este era igualmente, em geral, o
tem po de governo dos governadores das capitanias da América portuguesa.
8 Cf. “Tomás Francisco, Governador dos Pescadores da Vila do R ecife” e “O Preto João da
Assunção, Governador dos Pescadores” . APEJE. Serie Patentes Provinciais. Cód. 3, f. 166,
19/12/1778 c Cód. 5, f. 6-6v., 22/9/1784, respectivam ente.
9 Cf. “O Preto D om ingos da Fonseca, Governador dos Pretos Camaroeiros desta Vila c seu
term o”. APEJE. Série Patentes Provinciais. Cód. 7, f. 114v.-l 15, 5/12/1792.
10 Cf. “D om ingos Ferreira Ribeiro, Governador dos Pretos Ganhadores desta Praça”. APEJE.
Série Patentes Provinciais. Cód. 3, f. 49, 26/10/1777.
11 Cf. “A Preta Josefa Lajes, Governadora das Pombeiras da Repartição de Fora das Portas”.
APEJE. Serie Patentes Provinciais. Cód. 11, f. 279-279v., 12/11/1802.
12 Cf. “Germano Soares, Governador dos Pescadores da Vila do R ecife”. APEJE. Série Pa
tentes Provinciais. Cód. 3, fl. 92, 20/2/1778.
DA 1'IÍSTA À SKDIÇÃO 319
cobras. Com efeito, o modo de vida dos capineiros consistia em cortar, bene
ficiar e vender capim de porta em porta. E nada mais comum que encontrar
cobras em capinzais. Em 1768, Ventura Barbosa fora eleito capitão da cor
poração dos capineiros; em 1770, este se torna mestre-de-cam po dela; fi
nalmente, em 1773, Ventura Barbosa ascende ao cargo máximo de sua cor
poração — o de “governador”. Em 1802, ele transcende a sua corporação,
ocupando o cargo mais destacado em meio a tais formas populares de sociabi
lidade: o de rei do Congo da Praça do Recife (Mello, 1983-1985, vol. X).
Por fim, constitui tarefa importante examinar a natureza de tais institui
ções, bem como as festas e rituais que se realizavam em função delas. Ade
mais, faz-se mister discutir os vínculos que tais instituições possuíam com o
universo da religião católica existente na América portuguesa, o qual era am
plam ente marcado pela presença de instituições leigas — irmandades, con
frarias e ordens terceiras (Boschi, 1986) — que apontavam para importantes
categorias de divisão social (Durkheim, 1996) — tais como as noções nativas
de “corporação” e “nação” e as categorias analíticas de gênero e raça (Nishi-
da, 1998).
Como foi observado, as relações entre as corporações profissionais e as
com unidades étnicas, ou nações, e a instituição do rei do Congo eram por
diversas vezes reiteradas nas cartas patentes. Cabia ao rei do Congo, como
tam bém já foi observado, respeitar, reconhecer, honrar, estimar e conferir a
“posse e juram ento de estilo” a cada governador de corporação ou nação;
cabia, igualmente, a ele nomear alguns governadores, como foi o caso do “pre
to” José N unes de Santo Antônio, feito governador dos canoeiros da vila do
Recife em dezembro de 1797 em decorrência do fato de “ser nomeado em
primeiro lugar pelo rei do Congo”.18 Inversamente, ser um rei entre os ne
gros do mundo urbano do Recife e de Olinda desse período era uma possibi
lidade que acenava a quaisquer governadores de corporações ou nações. O
caso de Ventura de Sousa Barbosa, eleito rei do Congo em 1802 após ter sido
governador da corporação dos capineiros, como se viu, é bastante ilustrativo
nesse sentido.
Ora, sabe-se que era no interior das irmandades de Nossa Senhora do Ro
sário que os reis e rainhas negros eram eleitos, aspecto que evidencia as rela
ções dessas instituições com o universo do sagrado. Exem plo dessa afirmação
é que em Olinda, em 10 de setembro de 1666, Urbain Souchou de Rennefort
observou que
ls Cf. “José N u n es de Santo Antônio, Governador dos Canoeiros” [do Recife], APEJE. Série
Patentes Provinciais. Cód. 9, f. 136-136v., 4/12/1797.
DA FESTA À SEDIÇÃO 321
19 Cf. “M anuscritos da Igreja dc N ossa Senhora do Rosário dos Hom ens Pretos do Recife",
in: Silva, Leonardo D . (org.). Alguns documentos para a história da escravidão. Recife:
Massangana, 1988, p. 126-9.
322 I.UIZ GKRALDO S I l, VA
211 Cf. APEJE. Série Câmaras Municipais. Cód. 31, f. 97-97v., 25/11/1850.
D A F KST A À SEDIÇÃO 323
3.
Até hoje atentou-se com mais ou menos rigor para os efeitos das idéias e
das práticas da ilustração portuguesa quanto à formação de alianças políticas
envolvendo grupos de aquém e além-mar (Lyra, 1994 e Maxwell, 1973 e
1977), no tocante à formulação de políticas econômicas (Novais, 1983 e 1984
e Falcon, 1982), 0 11 do ponto de vista da introdução de práticas educacionais
e da produção de conhecimentos (Maxwell, 1996 e Novais, 1984). Ademais,
estudaram-se aspectos referentes ao significado das concepções políticas e
filosóficas presentes à peculiar Ilustração ibérica (Boxer, 1981) e, recente
m ente, viu-se como o governo pombalino, particularmente, atuou como m e
cenas, financiando a produção de obras literárias (Teixeira, 1999). Pouco se
observou, por outro lado, 0 quanto esta forma de pensamento criou baliza
mentos importantes para redefinir as modalidades de controle social sobre os
cativos e sobre a cada vez mais numerosa camada social formada pelos ho
mens de cor livres na América portuguesa.23 Nesse sentido, é sabido que a
Ilustração portuguesa procurou harmonizar as inovações provenientes do pen
samento das Luzes com a tradição e o atraso cultural que caracterizavam Por
tugal ao longo do Antigo Regime (Novais, 1994 e Boxer, 1981). Ao mesmo
tempo, esta tentativa de harmonizar tradição com inovação visando a defesa
do absolutismo monárquico possuía acentuado caráter religioso, pois se, por
um lado, procurou-se editar livros até então considerados nocivos à religião
católica — como as obras de M ontesquieu, Locke e Voltaire — , reformar 0
ensino superior, laicizando-o, ou mesmo aprofundar o regalismo, isto é, a dou
trina que defendia a supremacia do Estado sobre a Igreja, os pensadores e
governantes ilustrados portugueses, desde Pombal, não queriam, por outro
lado, “ver o catolicismo derrubado”, como sublinhou K enneth Maxwell
(1996:102). Após meados do século XVIII, não obstante a expulsão dos je
suítas do império e a extinção paulatina dos autos-de-fé, tratava-se, antes, de
purificar a religião católica — sobretudo a levada a efeito nos trópicos —, e de
remover os obstáculos que impediam sua subordinação às razões de Estado,
e não de destituir sua importância.
Em Portugal, ações e pensamentos das autoridades ilustradas da segunda
m etade do século XVIII tendiam a considerar o excesso de exteriorismo ca
tólico aí praticado nocivo à “indústria do Povo” e um estímulo à “dissolu
ção”. Em carta de maio de 1777, o próprio Marquês do Pombal sugeriu que
“o grande número de dias Santos e Procissões em Portugal é uma manifesta
taxa sobre a indústria do Povo, e tende mais depressa a depravar, que a corri
23 É verdade que Maria Odila L eite da Silva Dias acenou para este campo de análise já há
duas décadas (Dias, 1984).
326 LUIZ G lí R A L H O SI LVA
24 Cf: “Carta de José César de M eneses ao Arcebispo de L accdem ônia” . C ódice dc registro
de cartas do governador de Pernambuco, José Ccsar dc M eneses (1779-1781). AIHGB,
Livro Terceiro, D L 864. 1-2, f. 101v.-102, 22/3/1780.
DA FESTA A SEDIÇÃO 327
25 Ibidem.
26 Cf. “Carta de Martinho d e M elo e Castro a José César de M en eses” . C ódice de registro de
cartas oficiais recebidas pelo governador de Pernambuco, José César de M eneses, e exp e
didos pelo M inistério da Marinha e N egócios Ultramarinos (1778-1785). AIHGB, D L 864.
3, f. 22, 4/7/1780.
27 Cf. “Sobre as muitas mortes dos seus escravos originadas pelos feiticeiros”. Arquivo H istó
rico Ultramarino (Lisboa). Cód. 276, f. 74, 6/11/1642 (microfilme da Divisão de Pesquisa
Histórica da Universidade Federal de Pernambuco); “Relação dos pretos que declarou o
que vossa mercê remeteu preso por feiticeiro”. APEJE. Série Ofícios do Governo. Cód. 01
(1769-1773), f. 225, 18/8/1772; “Carta ao D outor D esem bargador Ouvidor-G eral e
Corregedor desta Comarca sobre os que se acham fazendo artes mágicas como abaixo se
declara”. APEJE. Série Ofícios do Governo. Cód. 14 (1811-1814), f. 58-58v„ 27/11/1811.
328 I, U I /. G K H A I. D O S I I. V A
vassalo, às ordens então recebidas: “e daqui por diante”, escreveu ele, “darei
todas as providências que achar mais conducentes para ir desterrando pouco
a pouco este divertim ento tão contrário aos bons costum es”.28 Traduzida não
apenas em idéias, mas também em ações, tal determinação pode ser obser
vada em outros documentos contendo ordens internas à capitania de Per
nambuco. Em carta de 19 de janeiro de 1781, José César dc M eneses revela
nitidam ente que, em matéria de impor restrições às manifestações lúdicas e
religiosas dos negros da capitania, havia aprendido rigorosamente a lição en
viada do reino. Cerca de um ano após ter sido denunciado ao Tribunal do
Santo Ofício, escreveu ao capitão-mor de Goiana, Gregório José da Silva, “que
os batuques dos pretos não deixam de ser nocivos; ordeno a Vossa M ercê que
pouco a pouco os faça extinguir para cessarem [...] desordens que destes
resultam ”.29 Desse modo, em breve tempo, José César de M eneses passava
de perseguido a perseguidor, de reprimido a repressor.
4.
28 Cf. “Carta de José César de M eneses a Martinho dc M elo c Castro”. C ódice de registro dc
cartas do governador de Pernambuco, José César de M eneses (1779-1781). A IHG B, Livro
Terceiro, D L 864. 1-2, f. 144, 3/10/1780.
29 Cf. “Carta do governador da Capitania José César dc M eneses para o Capitão-Mor dc
Goiana, Gregório José da Silva” . APEJE. Série Ofícios do Governo. Cód. 03 (1780-1783), f.
47v.-48, 19/1/1781.
30 Cf. “Carta ao Doutor Desembargador Ouvidor-Gcral c Corregedor desta Comarca sobre os
que se acham fazendo artes mágicas com o abaixo se declara” . APEJE. Série Ofícios do
Governo. Cód. 14 (1811-1814), f. 58-58v„ 27/11/1811.
I)A FKSTA A SKDIÇÃO 329
mou-se um rumor geral por esta Vila [do Recife] de que os pretos se levanta
riam no dia 29, Domingo do Espírito Santo”. Nesta circunstância, o governa
dor da capitania, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, agiu com a rapidez
costumeira: “e tendo eu dado todas as providências necessárias para tranqüi
lizar os ânimos assustados, e para conter em respeito os pretos, tive o gosto de
ver desvanecidos os receios que haviam, observando-se naquele dia, e nos
dois seguintes, o maior sossego e tranqüilidade em todos os bairros desta
extensa povoação”.33 Aparentemente, tratou-se de um simples “levante” , no
dizer das fontes coevas, o qual foi rapidamente abafado; o seu significado,
porém, rem ete às linhas mais amplas com base nas quais se procurou levar a
efeito esta análise. Grosso modo, pode-se sugerir que a tentativa de levante
atribuída a dezessete homens e uma mulher em abril de 1814 era uma decor
rência direta das ações levadas a efeito pelo Governador José César de M ene
ses em fins do século XVIII e, sobretudo, por Caetano Pinto de Miranda
M ontenegro já nos primeiros anos do século seguinte. O sentido da tentativa
de levante era claro: procurava-se restaurar as hierarquias étnicas e profissio
nais antes existentes e de retomar os rituais, as festas e sociabilidades que
elas ensejavam. Em suma, tratava-se de um movimento voltado menos para
a construção de uma nova sociedade no futuro e mais para a restauração de
formas sociais do passado.
Em primeiro lugar, as lideranças do movimento e suas motivações são su
gestivas nesta direção. A mais destacada delas foi, sem dúvida, o “preto forro”
Domingos do Carmo, “denominado Rey dos Congos, e de todas as nações do
G entio da G uiné” — o qual representava, portanto, escravos, libertos e ne
gros livres oriundos de todos os pontos do tráfico para o Brasil. Como num
efeito retardado, Domingos do Carmo ainda pensava nos termos da hierar
quia que o governo da capitania tinha tentado extinguir anos antes, uma vez
que, com ele, foi encontrado um requerim ento “feito ao Governo, em que
representava algumas desordens de outros capatazes, e que no caso de não se
dar providência haveria um levante”.34 Contudo, foi o escravo de nação ben-
guela, João Maranhão, morador no bairro de Afogados, o principal suspeito de
ser “um dos cabeças do motim”. Este, por sua vez, era “Capitão-Mor dos
Capineiros, e por dizerem solicitava também a outros pretos para o mesmo
fim da referida Povoação dos Afogados”. Usando de sua patente de capitão-
mor dos capineiros, João Maranhão tentava, provavelmente, mobilizar outros
sos “foram achados duas facas, dois chuços e uma fouce, além de muitos
quiris”. O escravo Francisco, do Tenente-Coronel João de Oliveira Paim, pro
curou obter munição de uma forma ingênua: “Foi preso porque poucos dias
antes pretendeu muito encarecidamente, e em particular, comprar um barril
de pólvora ao Negociante Domingos Rodrigues Passos, o qual não lhe a ven
deu e lhe disse que a fosse buscar em outra parte” . Já o “preto forro” Joaquim
da Cunha tinha consigo, no ato de sua prisão, uma espingarda, dois feixos,
dois chuços, duas verrumas grandes, um formão e um “pouco de pólvora”.
Teoricamente, o “preto forro” Estanislau Dias era o tesoureiro do levante.
Em sua casa, na Rua do M undo Novo, a qual ele dividia com um outro forro
chamado Domingos, foi encontrada uma caixa de madeira com dois contos,
trezentos e setenta e dois mil-réis em dinheiro de ouro, cento e sessenta e
quatro e sessenta réis em dinheiro de prata e dez mil seiscentos e trinta réis
em dinheiro de cobre. Além disso, foram encontrados duas peças e meia de
paninho, um pedaço de cordão de ouro, um par de brincos, um par de botões
e um anel, todos de ouro, bem como três colheres de prata.-18
A despeito do fato de constituir um movimento sufocado desde o seu nas
cedouro, a tentativa de levante de 1814 revela aspectos extrem am ente im
portantes. Em primeiro lugar, ela sugere que as hierarquias étnicas e de ofí
cios que existiam entre os cativos e os negros livres da vila do Recife e cidade
de Olinda ainda estavam vivas, e que, apesar do projeto político de extinção
delas, os cantos, as casas de reunião e o sentim ento de pertença a um grupo
étnico ou profissional ainda constituíam fortes referências identitárias entre
as camadas populares. Acresce-se a isso o fato de que a composição social dos
acusados era rigorosamente bipartida: metade dela era escrava, e m etade li
vre. Isto sugere que formas verticais de divisão do mundo social — mediante
noções como as de etnia, raça 0 11 ofício — poderiam ser tão 0 11 mais im portan
tes como as divisões horizontais, baseadas na escravidão ou na liberdade —
ou, em uma palavra, na classe.
Em segundo lugar, as motivações para realizar um levante, com todos os
riscos que tal prática envolvia, bem como a mobilização de pessoas, de corpo
rações inteiras, e de recursos materiais, como armas, dinheiro e objetos de
valor de modo que levasse a efeito tal objetivo, parecem apontar para a im
portância extrema que tinham para esses indivíduos suas corporações e suas
comunidades étnicas, com suas hierarquias, suas distinções e honrarias. Na
verdade, as divisões sociais entre as camadas populares, suas formas de dis
tinção e classificação, eram parte de um mundo que, até fins do século XVIII,
era representado m entalm ente de uma forma mais 0 11 menos coerente, mais
0 11 menos articulada. Mesmo reiterando as relações vigentes de poder, reite
38 Ibidem.
DA FKSTA À SHDIÇÃO 333
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□ □□
D A F lí S T A À S K D 1 Ç Ã O 335
* E ste texto é parte de uma pesquisa mais ampla apoiada pelo C N Pq. Embora contenha
novidades, é tam bém resumo de trabalho mais longo intitulado “Tambores e temores: a
festa negra na Bahia na primeira m etade do século X IX ”, in Maria Clem entina Cunha
(org.), Carnavais e outras f(r)estas (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000). Para o texto aqui
publicado, me beneficiei dos comentários de ístvan Jancsó, a quem agradeço.
340 J O AO J O S K R K IS
N este trabalho, vou procurar sugerir o sentido que a festa negra, em parti
cular o batuque, podia ter para seus participantes, mas, sobretudo em virtude
das restrições das fontes, interpretar a atitude que tinham senhores, autori
dades e outros homens de mando e opinião diante dela ou do que eles pensa
vam ser ela. Por isso escolhi as manifestações festivas que eram mais densa
m ente africanas ou, sobretudo, vistas como tal pelos poderes constituídos da
época. Pretendo discutir em particular o que continuou e o que se manteve,
ao longo da primeira m etade dos Oitocentos, na atitude dos brancos — ou de
quem se supunha assim — diante do batuque, aqui tomado como uma ex
pressão contemporânea para significar, sem muita precisão, a música percus-
siva negra em geral, quase sempre acompanhada de dança.
Para esta discussão eu destaquei três fontes: um relatório policial a respei
to de uma festa africana em 1808, no recôncavo baiano; uma série de reporta
gens de um jornal sobre batuques em Salvador, entre 1838 e 1841; um debate
na Assembléia Provincial da Bahia sobre batuque, em 1855.
eS&fc
Na festa a divisão étnica era clara, embora não completa. Hauçás e nagôs,
por exemplo, associaram-se para formar o grupo “mais luzido”, segundo o
Capitão-de-Milícias José Gomes, autor do docum ento que informa sobre o
episódio. E dizia por que esse grupo brilhava:
5 Capitão José Roiz de Gomes para o Capitâo-mor Francisco Pires de Carvalho e Albuquerque,
20.01.1809
6 O sistema de ganho permitia ao encravo embolsar parte do que conseguia auferir com seu
trabalho. Não se deve excluir a possibilidade de que mesmo escravos de engenho conse
guissem dinheiro com a venda, nas feiras locais, de excedentes de suas roças. Sobre estas,
ver B. J. Barickman, ‘“A Bit of Land Which T h ey Call Roça': Slave Provision G rounds in
the Bahian Recôncavo, 1780-1860”, Hispanic American Histórica/Review, 74: 4 (1994).
BATUQUE NEGRO 343
D eus não parece ter percebido a gravidade da situação, pois não acudiu
seu missionário. Indecência, falta de decoro, nudez, dança, enfim cultura sub
versiva de baixo calão e baixo-ventre, mas também atitudes e palavras bem
definidas, aqueceram o episódio de luta de classes escrava em Santo Amaro.
O com portamento dos escravos evidenciava antagonismo diante dos senho
res. Vimos antes que o capitão representou a estes como permissivos, colabo
radores, quase aliados de seus escravos em festa. Agora que podemos entre -
ouvir a palavra destes, eis que emerge uma crítica cortante à exploração es
cravista e aos privilégios senhoriais. Em lugar de concessão senhorial, na fala
7 Capitão José Roiz dc Gomes para o Capitão-mor Francisco Pires de Carvalho c Albuquerque,
20.01.1809.
8 Ibdem .
344 JOÃO JOSÉ REIS
9 'U thm án Ibn Fíidi (Usuman dan Fodio), Bayán Al-H ijra 'Ala 'L -’Ibad (The Exposition ofthe
Obligation ofErnigra/ion upon the Servants ofG od), editcd and translatcd by F. H. El Masri,
Khartoum, Khartoum University Press; N ew York, Oxford University Press, 1978, p. 90.
10 Anais do Arquivo Público da Bahia, vol. 28 (1945). Agradeço a ístvan Jancsó a indicação desta
fonte.
BATUQUE N E G R O 345
“[...] não parece ser muito acerto em política, o tolerar que pelas ruas, e
terreiros da cidade façam multidões de negros de um, e outro sexo, os seus
batuques bárbaros a toque de muitos, e horrorosos atabaques, dançando
desonestam ente, e cantando canções gentílicas, falando línguas diversas, e
isso com alaridos tão horrendos, e dissonantes que causam medo, e estra
nheza, ainda aos mais afoitos, na ponderação de conseqüências que dali
podem provir, atendendo ao já referido número de escravos que há na
Bahia, corporação temível, e digna de bastante atenção, a não intervir a
rivalidade que há entre os crioulos, e os que não são; assim como entre as
diversas nações de que se compõe a escravatura vinda das costas da África.” 13
Tudo muito parecido com o que acontecia em Santo Amaro. Vilhena pros
seguia dizendo que caberia manter os escravos em estado de total subordina
ção, não apenas aos senhores, mas aos brancos em geral. Pois o que se via na
Bahia era escravos, sobretudo aqueles cujos senhores figuravam entre os bran
cos mais importantes da colônia, a tratarem os brancos ordinários como se
fossem seus inferiores.
Foi exatam ente a situação que o Conde da Ponte entendeu ter encontrado
quando chegou à Bahia no final de 1805. Há diversos ofícios dele nesse senti-
Fora os aspectos religiosos, também aqui tudo muito parecido com o que
apuramos sobre o Natal de Santo Amaro. Um Natal que o conde não queria
que se repetisse. Para alívio dos escravos da Bahia, ele morreria em 1809, aos
35 anos, talvez vítima de “remédios fingidos, bênçãos e orações fanáticas”
bem administrados por africanos. No entanto, vivera o suficiente para que os
senhores baianos se acostumassem com seu estilo repressor de lidar com os
escravos.
Foi o que percebeu seu sucessor, o Conde dos Arcos. Ao contrário do ou
tro, este conde era um governante mais sensível politicamente. Eu até diria
que era moralmente melhor que Ponte. Ele achava que os escravos eram mal
alimentados, excessivamente castigados, obrigados a longas e extenuantes
jornadas de trabalho. A um juiz de fora de Cachoeira, ele ensinou em carta de
1813 que “o meio mais seguro e eficaz de evitarem as desordens causadas
pelos pretos escravos é sem hesitação o permitir-se-lhes o entretenim ento de
suas danças, nos Domingos, e dias Santos”.15 Era, aliás, o que vinham fazen
do os senhores de Santo Amaro antes do endurecim ento imposto de cima
pelo governo anterior. Arcos pensava haver várias vantagens em flexibilizar a
escravidão baiana, tendo como seu argumento principal o assunto que nos
interessa: a festa africana. Segundo o conde, ela contribuiria para desoprimir
o espírito do escravo, fazê-lo esquecer por algumas horas sua vida miserável,
e além disso promover a divisão étnica, uma vez que, livre para festejar, cada
nação o faria separadamente, sem grandes frentes subversivas, como ocorrera
na Santo Amaro de 1808. Dividir para dominar — nada de novo, e há até
mesmo algo de Vilhena em Arcos, já que o professor de grego tam bém apos
tava na divisão étnica como fator de segurança. A diferença estava no m éto
do. Vilhena não parecia acreditar que a repressão aos batuques diminuísse a
divisão étnica, ao contrário de Arcos.
14 Conde da Ponte para o visconde dc Anadia, 7.4.1807, Anais fia Biblioteca Nacional Ho Rio He
Janeiro, 37 (1918), pp. 450-451.
15 Conde dos Arcos para o Juiz de Fora dc Cachoeira, 22.5.1813, APEBa, Cartas Ho Governo,
168, fl. 246.
BATUQUK NEGRO 347
Por suas posições muito claras sobre o assunto, os condes da Ponte e dos
Arcos representaram dois modelos bem definidos, verdadeiros paradigmas,
de governo dos escravos, o modelo duro e o flexível de controlá-los. A festa
esteve no âmago desses paradigmas, isto é, permiti-la e reprimi-la passaram a
significar métodos diferentes de administrar a paz nas senzalas.16 Dessa for
ma, a festa esteve também no centro da resistência escrava. Ela não só serviu
realm ente como ante-sala da rebelião, como acreditava o Conde da Ponte,
mas tam bém podia provocar a revolta se reprimida, como previa o Conde dos
Arcos. Ou seja, nem a repressão nem a tolerância ao batuque seriam garantia
de paz na senzala. Os mesmos escravos hauçás e nagôs que em 1808 agitaram
festivam ente Santo Amaro com suas danças e atabaques em 1808, agitariam
socialmente a Bahia ao longo dos próximos trinta anos. Começaram em 1807,
quando o Conde da Ponte descobriu uma elaborada conspiração, que entre
tanto conseguiu sufocar a tempo. Mas daí em diante, nagôs e hauçás, separa
dos ou combinados, agitariam Salvador e o recôncavo com mais de vinte cons
pirações e levantes, muitos dos quais acompanhados de atabaques.
■ssfa.
111 D iscuto estilos de controle escravo dos condes da Ponte e dos Arcos, no contexto das
revoltas escravas baianas, em João Reis, “Recôncavo rebelde: revoltas escravas nos enge
nhos baianos”, Afro-Asia, 15 (1992), pp. 102-107 e “Quilombos e revoltas escravas no Bra
sil” , Revista USP, nD 28 (1989), p. 24.0 papel do conde da Ponte na repressão a um quilombo
no sul da Bahia é detalhado em João Reis, “Escravos e coiteiros no quilombo do Oitizeiro:
Bahia, 1806”, in João Reis e Flávio Gomes (orgs.), Liberdade po r um fio : história dos quilombos
no B rasil (São Paulo, Companhia das Letras, 1996), pp. 332-362.
17 Ver diversos exemplos em Repertório defontes sobre a escravidão existentes no Arquivo Munici
p a l de Salvador: as posturas (1631-1889), Salvador, Fundação Gregório de M attos/Prefeitu
ra Municipal do Salvador, 1988, passim; Legislação da Bahia sobre o negro: 1835-1888, Salva
dor, Fundação Cultural do Estado da Bahia/Diretoria de Bibliotecas Públicas, 1996, pp.
125 e segs.
David Eltis, “T h e N ineteenth-C entury Transatlantic Slave Trade: An Annual Tim e Series
of Imports into the Américas Broken Down bv Region", HispanicAmerican Histórica!Review,
vol. 67, n0 1 (1987), p. 136.
348 JOÃO JOSÉ R K IS
19 João José Reis, Rebelião escrava no Brasil, São Paulo, Brasiliensc, 1986, pp. 15-20, passim.
Em “A greve negra de 1857 na Bahia”, Revista USP, 18 (1993), p. 28, calculo que 77% dos
escravos de ganho em Salvador em meados da década dc 1850 seriam de origem iorubá/
nagô.
20 João J. Reis, Slave rebellion in B razil, Baltimore, Johns H opkins University Press, pp. 189-
190. Cito a edição cm inglês de Rebelião escrava por haver a ela acrescentado estes e outros
dados ausentes da edição brasileira.
21 Juiz de Paz do 10 Distrito de Cachoeira para o Presidente da Província, 9.2.1835 APEBa,
Juizes. Cachoeira, 1834-1831, maço 2272. O temor de que os rebeldes malês inspirassem
revoltas fora da Bahia levou a um aum ento do controle escravo cm outras partes do país,
sobretudo no Rio. Ver Reis, Slave Rebellion, pp. 29-30; Flavio dos Santos Gomes, Histórias
de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro - século X IX , Rio dc
Janeiro, Arquivo Nacional, 1995, p. 259; Abreu, O Império do Divino, pp. 198-201 e passim;
Carlos Eugênio L. Soares, “A capoeira escrava no Rio dc Janeiro — 1808-1850”, T ese dc
Doutorado, UN1CAMP, 1998, pp. 89 e segs, 92, 102, 277, 295 e segs etc. O medo dc
revolta, o clima dc insegurança diante de possíveis sedições populares, tem or que ajuda a
alim entar rumores de levantes, tudo faz parte tam bém de outros cenários bem diversos da
BATUQUE NEGRO 349
Bahia escravocrata. \ ’cr Jean D elum eau, História do medo no Ocidente, São Paulo, Com pa
nhia das Letras, 1989, caps. 4 e 5. Tam bcm transcultural é o fenômeno da convergência
entre festa e revolta. Confiram-se dois clássicos: Yves-Marie Bercé, Fête et réuoIte: d es mentalités
populaires du XVe au X V IIIe siécles, Paris, H achette, 1976 e Em m anuel Le Roy Ladurie, Le
Carnaval de Romans: de la Chande/eur au mercredi des Cendres, 1579-1580, Paris, Gallimard,
1979.
22 Correio Mercantil, 4.7.1838 (da coleção da BNRJ).
23 Estes assuntos são tratados por Paulo César Souza, A Sabinada: a revolta separatista da
Bahia, 183 7, São Paulo, Brasiliense, 1987. O viajante George Gardner, Traveis in the Interior
o fB ra zil..., 1836-1841, Londres, Reeve Brothers, 1846, p. 78, escreveu que a Sabinada
estourou pouco depois de ele passar por Salvador e foi liderada por alguns brancos, “mas
apoiada pela maioria da população negra”.
350 JOÃO JOSÉ REIS
negros mais difícil, daí o júbilo pela evacuação. Segundo o jornal, “Nessa
noite, como para mostrar o peso de que ficaram aliviados os «malês», todos
cantaram, ou antes uivaram em ranchos”.24 Com a animalização dos africanos
— feras que uivam — , o jornal aumentava a experiência de medo do leitor. E
as feras eram malês.
Na semana seguinte, O Correio retornaria a batuques e malês.25 O assunto,
todavia, só seria reintroduzido com força total em 1841, por ocasião dos feste
jos pela coroação de D. Pedro II. Uma vez mais um incidente relativamente
banal teria “levado o susto aos pacíficos habitantes desta cidade” . Parece que
a prisão de um escravo africano com escritos árabes provocou uma onda de
boatos de que os malês estariam tentando uma segunda edição do levante de
1835.2<>O periódico guiou os olhos e ouvidos de seus leitores para sua inter
pretação dos batuques:
“[...] cenas terríveis que toda esta cidade contempla nos domingos e dias
santos, muito principalmente as que tiveram lugar durante os 8 dias de
festejos da coroação; falemos claro: à vista dos tumultuosos e numerosos
batuques de africanos que por aí encontra a cada dia o pacífico habitante, e
que, horrorizado, fazem-no apressar o passo a ganhar a casa; quem não
justificaria, até certo ponto, esse terror súbito que se apodera de uma po
pulação inteira [...] quando aliás ainda tem presente a audácia com que
em 1835 foram surpreendidos os quartéis... etc. etc. etc.?”27
24 Correio M ercantil, 2.8.1838. O Correio parccc ter sido o único jornal da época a se preocupar
tão detidam ente com batuques e malês.
25 Correio Mercantil, 7.8.1838.
lh Realm ente os malês deixaram uma impressão duradoura dc medo entre os baianos. Seu
principal símbolo, os papéis árabes, continuavam a assustá-los cm meados do século. Se
gundo o vice-consul inglês James Wcthcrell, os “Brasileiros, como todo outro povo igno
rante, ficam muito assustados com tudo que não podem en ten d er”. Já o inglês, que se
achava superior aos brasileiros, possuía escravos que ele sabia muçulmanos, um dos quais
o presenteara com um caderno de orações islâmicas. James Wetherell, Stray Notes frorn
Bahia, Liverpool, Webb & H unt, 1860, p. 138.
27 Correio Mercantil, 30.9.1841.
plicados batuques [...] cm todas as praças e lugares públicos, de dia, e às
vezes até alta noite, feriam as vistas e as pobres orelhas dos que se dispu
nham a gozar belas festas”. E imaginou o que pensaria um turista oitocentis-
ta diante dessas músicas e danças: “um estrangeiro que naquela ocasião che
gasse a esta cidade, julgar-se-ia, àquela vista, em uma povoação africana, tão
numerosos e atroadores eram os tais batuques!”. Se o autor dessas palavras
fosse leitor da literatura de viajantes saberia que, com ou sem batuques, eles
realm ente consideravam Salvador uma espécie de povoação africana. Vários
deles se surpreenderam com a maciça presença negra na população da cida
de, e escreveram que seus navios pareciam haver perdido o rumo e tocado a
Costa d ’Africa.28 Para mudar essa impressão, devia o Correio saber, Salvador
teria de esconder, expulsar ou exterminar seus negros, despovoando radical
m ente suas ruas, mas ao mesmo tempo tirando as mãos e os pés que faziam-
na funcionar. Com trinta e sete por cento de seus habitantes nascidos na
Africa, com quase outros quarenta por cento inteira ou parcialmente descen
dentes de africanos, a cidade era sobretudo africana. Mas a batalha do jornal
não era demográfica ou econômica, era cultural.
O fato — o fato jornalístico pelo menos — era que os africanos teriam
hegemonizado culturalm ente a celebração de 1841, e isso constituía um pés
simo precedente e um grave sintoma. Na ocasião, os baianos brancos que se
dirigiram à estrada do Noviciado, para assistirem a um dentre os vários espe
táculos pirotécnicos apresentados, se “encheram de terror” com o barulho
dos quase quinhentos negros que desfrutavam aquele pedaço da festa. Havia
o terror produzido pela perpectiva de nova revolta negra, e havia o medo da
africanização cultural da província. A apropriação negra do espaço daquelas
festas indicava vitória dos africanos numa batalha da guerra simbólica. Mas a
política de símbolos não distraía a atenção do jornal de conseqüências políti
cas mais graves, e ele concluiria sua cobertura do episódio voltando a advertir
sobre
28 Ver M oema Parente Augel, Visitantes estrangeiros na Bahia oitoce/itista, São Paulo, Cultrix/
IN L , 1980, pp. 201-207.
29 Correio Mercantil, 30.09.1841.
352 JOÃO JOSÉ R K IS
«*&.
Reis, Rebelião escrava, pp. 110-135. Toda religião tem centro e periferia. Q uando falo em
malês morigerados, estou falando dos malês pertencentes ao centro do Islã cm 1835.
BATUQUE N EGRO 353
“As festas nesta igreja eram antes cenas do mais selvagem deboche.
Mais de 20.000 negros se reuniam e se espalhavam pelo morro sobre o
qual está situada a igreja: centenas dançavam enquanto milhares olhavam,
e estas orgias continuavam incessantemente. Os dançarinos foram proibi
dos em público há alguns anos, mas multidões imensas, vestidas no máxi
mo da moda negra, vão lá durante os três domingos de janeiro em que a
festa tem lugar. As danças acontecem nas casas, e mesmo do lado de fora,
apesar da proibição, e todo tipo de divertimentos em barracas, que são
levantadas em volta ou perto da igreja.”32
Ainda bem que esse inglês estava por perto para registrar esse importante
mom ento da festa negra. Em meados do século, o cerco parecia estar aper
tando e ela resistindo bravamente. O cerco apertava talvez porque os batu
ques estivessem ganhando terreno, reprimidos aqui para ressurgirem acolá,
tam bém porta adentro, sob novas formas e modas, como revela Wetherell.
Além disso os brancos continuavam divididos sobre se, como, onde e até o
quê deviam reprimir ou permitir. A discussão sobre o tema chegou à Assem
bléia Provincial baiana em agosto de 1855.
O debate seria surpreendente porque girava em torno do direito ao batu
que, algo que parecia resolvido pela negativa há muito tempo, ao menos no
plano legal. A oportunidade seria dada por uma postura regulando a matéria,
enviada para exame pela câmara de Maragojipe, cidade do recôncavo. Era de
lei que as posturas de todas as cidades e vilas da província devessem ser
aprovadas pela assembléia, antes de entrarem em vigor definitivam ente.33
A postura proibia “batuques e vozerias” em “casas públicas”. Estamos aqui
diante de uma modalidade diferente de lazer: salões onde se dançavam batu
que em Maragojipe, e provavelmente outras cidades do recôncavo, além de
Salvador. No caso de Salvador, Wetherell acaba de informar sobre as casas
que abrigavam batuques durante os — e provavelmente além dos — festejos
do Bonfim.34
35 Sobre ser Affonso delegado, ver Camillo de Lelis Masson (org.), Alm anak adm inistrativo,
mercantil, e industrial da Bahia para o ano de 1855, Bahia, Typ. de Camillo lelis Masson,
1854, pp. 77, 331-332.
16 Ibdem , pp. 85, 239. Agradeço a Lizir Arcanjo Alves a gentileza dc por à minha disposição
suas anotações sobre a vida de João Barbosa. Médicos como Barbosa c advogados como
Affonso tinham profissões típicas do legislativo provincial. Ver Katia M. dc Queirós Mattoso,
Bahia, século X IX: uma província no Império, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992, p. 265.
17 Doze anos antes, Barbosa deixaria outro vestígio de sua antipatia pelas idéias socialistas
num discurso de elogio ao arcebispo D. Romualdo Seixas: O Musaico, 2: 12 (Junho, 1846),
pp. 181-184.
356 JOÃO JOSÉ R lí I S
Políticos como João José Barbosa faziam parte de uma linhagem ideológica
que na Bahia vinha de longe, mas se revestindo de estratégias c argumentos
diferentes, e se adaptando a novas situações. Nos documentos aqui analisados,
os adeptos dessa corrente, na época das revoltas escravas, sustentavam que os
batuques serviam para evitá-las; na época da calmaria escrava, eles chegariam
ao extremo de defender o batuque como um direito civil. Enquanto isso, os
adeptos da intolerância misturaram uma preocupação com a ordem, que acre
ditavam ameaçada pelo batuque, à repulsa moral e religiosa, mas mudando a
ênfase entre o início do século e os anos seguintes ao levante de 1835 — neste
último período o combate à festa africana seria caracterizado como luta entre a
civilização pacífica dos brancos contra a barbárie rebelde dos malês. No final do
período aqui analisado, meados do século, o ataque à barbárie moral continuaria
figurando no discurso da intolerância, mas desapareceria a atenção com a revol
ta negra, substituída pela preocupação com a resistência cotidiana — sobretu
do a fuga temporária e a vadiagem — favorecida e mesmo provocada pela festa.
A sombra das dúvidas dos que mandavam, a festa negra continuaria civili
zando africanamente a Bahia. Na segunda metade do século, ela ampliaria seu
raio de ação e sedução, se abrindo ainda mais para participações extra-africanas
em gente e símbolos. Mas para muitos, tanto do lado negro como do lado bran
co, ou para os que flutuavam no meio, nunca deixaria de ter a marca indelével
da africanidade. E essa marca certamente não era representada pela “voz sub
missa” e pelos instrumentos “brandam ente” tocados sugeridos pelo Deputado
Barbosa. Os africanos civilizaram a seu modo a Bahia, com barulho. A resistên
cia escrava, feita com freqüencia na surdina, neste caso não era muda.
A n ex os
Ainda que em outro officio asseverei a V.Exa. não haverem escravos disperços dos
Engenhos, o que assim hé, como chegou a minha notícia ter havido hum ajuntamen
to de pretos descidos dos Engenhos para dentro da Villa onde fizerão os seos Bailes,
passei a mandar informar-me, e me consta o que declara a parte junta do Capitão
comandante, e suposto que parece não teve outro fim mais, que os seos folguedos,
com tudo, em outras occasiões tem feito os escravos nestes ajuntamentos algumas
dezordens, e estes conventículos podem ser de má onsequência, e V. Exa. determi
nará a este respeito, o que for servido. Deus Guarde V. Exa. por séculos como he
mister. Engenho da Passagem, e Casa de V. Exa. 21 de janeiro de 1809.
Francisco Pires de Carvalho e Albuquerque
Capitão-mor
II A T U Q U E NEGR O 357
D espach o d o C o n d e da P onte ao O f íc io a c im a :
P onte.
lencias com o título de brinquedo, e athé he consentido pelos próprios senhores nos
seos Engenhos, e fazendas, a excepção de hú pequeno número, como V. Sa. não
ignora, no que preciza pronta providência a qual dará V. Sa. como lhe parecer acer
tado.
Deos guarde a V. Sa. muitos annos. Vila de Nossa Senhora da Purificação e Santo
Amaro, 20 de janeiro de 1809.
José Roiz de Gomes
Capitão
□ □□
1.
1 Agradeço à Fapesp a concessão de auxílio financeiro para realização desta pesquisa. Este
texto baseia-se cm minha tese de doutorado, Negras M inas Gerais: Uma História da Diáspora
Africana no B rasil Colonial. São Paulo: USP, 1999.
Gráfico 1. Concentração dc despesas no Rosário do Alto da Cruz
MA R C O S
□ n. id.
□ outros
MA GAL HÃ E S
■ missas
^ obras
□ capelão
□ culto
□ festas
DE
AGUI AR
1760-1769 1770-1780
Gráfico 2. Concentração dc despesas no Rosário dde Itatiaia
100 %
40%
20%
DE
0 capelão
□ culto
I NVERSÃO
ffl festas
HIERÁRQUICA
MAGAL HÃE S
EOmissas
□ obras
■ capelão
□ culto
□ festas
DE
AGUI AR
i
1786 1787
F ESTAS K RITUAIS DE INVERSÃO H I E R Á R Q U LC A 365
2 Fontes: os dados sobre o Santíssimo Sacramento de Vila Rica foram extraídos de Aguiar,
Marcos M. dc. Vila Rica dos confrades: a sociabilidade confraria!entre negros e mulatos no século
X V III. Dissertação dc mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1993, tabelas p.
328-330; Livro de Receita e D espesa da Irmandade de N. S. do Rosário do Alto da Cruz
(1726-1798), Arquivo da Paróquia de Antônio Dias (APAD); Livro de Receita e Despesa
da Irm andade de N. S. do Rosário de Itatiaia (1792-1833), M 30; Livro de Eleições, Recei
ta c D espesa da Irm andade de N. S. do Rosário de Itatiaia (1730-1791), M 23; Arquivo
Eclesiástico da Curia de Mariana (AECM).
3 Livro de Receita e Despesa, Eleições, Recibos e termos da Mesa da Irmandade de N. S.
do Rosário de Itatiaia (1773-1831), M 29; termo de construção da capela, f. 40-40v, e termo
sobre obras, f. 41. Em 1800, a capela é visitada pelo bispo (despesa, f. 25v); AECM.
366 MARCOS MAGALHÃKS D K A O U I AR
4 O provedor dc capelas e resíduos passou provisão provisória dc dois anos com obrigação de
os confrades solicitarem provisão dc ereção da capcia. A sua petição foi acolhida favoravel
m ente, no Conselho Ultramarino, por despacho de 24 de janeiro de 1787, o qual resultou
na provisão régia dc ereção da capcia de 26 dc fevereiro dc 1787. A petição encontra-se cm
caixa 137, AHU, e a provisão régia cm Chancelaria dc D. Maria I, L. 81, f. 65-65v, Arquivo
Nacional da Torre do lom bo (A N TT). Como sempre, as licenças para ereção eram passa
das com a condição de “ser [a capela] decente e o patrimônio seguro” .
5 Para o valor da porção dos capelães, ver Aguiar, Marcos M. de. “Capelães e vida associativa
na Capitania dc Minas Gerais”, in: Varia Historia, 77:80-105, 1997; Campos, Adalgisa A. A
terceira devoção: o culto a São Miguel e Almas. T ese de doutorado. São Paulo: USP, 1994, p.
304.
KESTAS E RITUAIS DE I NV ERSÃO H I E R Á R Q U I C A 367
6 Para os dados sobre as confrarias mencionadas, ver Aguiar, Marcos M. de. Op. cit., 1999, p.
286-324. Para uma avaliação da evolução dos rendim entos de algumas irmandades negras e
mulatas durante o século XVIII, ver gráficos anexos.
7 Compromisso da Irm andade de N. S. das Mercês dos Pretos Crioulos da Vila de São João
del-Rei (1805), cap. 11, Chancelaria da Ordem de Cristo, D. Maria I, L. 45, f. 60v-65;
Compromisso da Irm andade de N. S. do Rosário dos Pretos do Arraial de N. S. da C oncei
ção da Barra (1797), cap. 12, Chancelaria da Ordem de Cristo, D. Maria I, L. 45, f. 55-59;
Compromisso da Irmandade de N. S. da Conceição dos pardos e pardas de Itabira do Cam
po (1767); o cap. 20 excluía os irmãos eleitos insolventes do sufrágio e do acom panham en
to da confraria, Chancelaria da O rdem de Cristo, Antiga, L. 283, f. 23-29; Compromisso da
Irm andade de N. S. do Rosário do Inficionado (1767), cap. 13, Chancelaria da Ordem de
Cristo, Antiga, L. 283, f. 135-138v; Compromisso da Irmandade de N. S. da Boa M orte dos
H om ens Pardos de Antônio Dias, Vila Rica (final do século XVIII), cap. 2, M inistério do
Reino, L. 528 C; Compromisso da Irmandade do Senhor S. Benedito de Sumidouro (1735);
o cap. 2 previa ainda expulsão dos escravos insolventes por mais de dois anos e definia
sanções para os forros; o cap. 12 introduzia modificações, pois admitia abatim ento do valor
da dívida nos sufrágios e determinava uma missa, pelo menos, para todos; Chancelaria da
O rdem de Cristo, D. Maria I, L. 15, f. 48-55, A N TT. Compromisso da Irmandade de N. S.
do Rosário dos Hom ens Pretos da Vila de Campanha da Princesa (1800), cod. 1534; o cap.
12 excluía os insolventes tam bém do acompanhamento; Compromisso da Irmandade de
N. S. do Rosário dos Pretos do Arraial do Rio Manso (1794), cod. 1818, cap. 9; Compromis
so da Irm andade de N. S. da Boa M orte dos Pardos de São João del-Rci (1786), cod. 1675;
o cap. 14 excluía tam bém do acompanhamento e sepultura; Compromisso da Irmandade
de N. S. do Rosário da Lagoa Dourada (1793), cod. 1286; o cap. 14 excluía os que tivessem
culpa na sua “pobreza e ruína”, Arquivo Histórico Ultramarino (AHU).
368 MARCOS MAGAI.HÃKS DE AGUIAR
DE
J bacias, caixas e particulares
I NVERSÃO
□ anuais e entradas
□ legados
| aluguéis de casas
HIERÁRQUICA
1770 1771
373
374
MARCOS
□ outros
■ oficiais c mcsários
H juizes
□ acom panham ento de enterros
MAGAI . I I ÃKS
g bacias, caixas e particulares
□ anuais c entradas
□ legados
E] aluguéis de casas
l)K
AGUI AR
DK
EJ a c o m p a n h a m e n to dc c n le rro s
□ b acias, ca ix as c p a rtic u la re s
IN VE RSÃO
| a n u a i s c e n tra d a s
□ legados
□ alugueis dc ca sas
HIERÁRQUICA
375
376
MARCOS
@ outros
□ oficiais e mesários
MAGAI.HÃKS
□ iuízes
■ acom panham ento de enterros
□ bacias, caixas e particulares
□ anuais e entradas
□ legados
□ aluguéis de casas
DK
AGUIAR
1779
F KST AS K RITUAIS DE 1NVKRSÃO HIERÁRQUICA 377
lfi Para exem plos de exclusão de mulheres da administração das confrarias, ver Compromisso
da Irm andade de N. S. do Rosário do Arraial de Santa Luzia (1766); o cap. 1 excluía as
juízas de presenciar e votar nas reuniões da mesa; Chancelaria da Ordem de Cristo, Antiga,
L. 290, f. 226-229; A N TT. Compromisso da Irmandade de N. S. do Rosário dos Pretos do
Arraial do Rio Manso (1794); as irmãs de mesa não teriam direito a voto nas reuniões da
mesa, cap. 4; cod. 1818; AHU. As mulheres geralm ente não participavam das reuniões de
mesa, e são raras as ocasiões em que suas assinaturas ou cruzes aparecem nas atas. Para
378 M A RC O S M AGAI.HÃKS D !í AGUIAR
21 Aguiar, Marcos M. de. “Estado e Igreja na capitania de Minas Gerais: notas sobre mecanis
mos de controle da vida associativa”, cit., 1999.
22 Compromisso da Irm andade de Nossa Senhora das Mercês e Redenção dos Cativos do
Sumidouro (1783), cap. 13, Chancelaria da Ordem de Cristo, D. Maria I, L. 15, f. 195-199v,
ANTT.
23 Compromisso da Irm andade de N. Senhora do Rosário dos Pretos do Arraial de Santa Rita
(1763); se os mesários quisessem fa/.er a festa mais solene ou mais extensa, seria por conta
deles “sem que do fundo da Irmandade se haja de concorrer com coisa alguma”; cap. 14,
Chancelaria da O rdem de Cristo, D. Maria I, L. 14, f. 83v-90v, A N TT. Compromisso da
Irm andade de N. S. do Rosário dos Pretos do Arraial do Pinheiro (final do scculo XVIII);
querendo algum irmão fazer a festa “com maior asseio, será esta feita à custa do que assim
requerer e nunca da Irmandade, pois lhe será glosado todo o excesso”; cap. 2, cod. 1530,
AHU.
24 Compromisso da Irm andade de N. S. do Rosário dos Pretos do Arraial do Rio Manso (1794),
cap. 17, cod. 1818, AHU; Estatutos dos Confrades de N. S. das Mercês da Redenção dos
Cativos do Arraial de S. Gonçalo do Rio Abaixo (1783), cap. 15; Chancelaria da Ordem de
Cristo, D. Maria I, L. 14, f. 78-83v, ANTT.
380 MARCOS MAGALHÃES D K AGUIAR
2.
25 Para uma tipologia dos conflitos confrariais durante o período colonial, ver Salles, Fritz T.
Associações religiosas no ciclo do ouro. Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros, 1963,
cap. 4; Mulvey, Patricia. The Black Lay Brotherhoods o f Colonial B razil. T ese de doutorado.
City College of N ew York, 1976, p. 163-96 c p. 208-34; Russell-Wood, A. J. R. The Black
Man in Slavery and Freedon in Colonial B razil. Nova York: St. M artin’s Press, 1982, p. 154-
7; do mesmo autor, Fidalgos efilantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755.
Brasília: Edunb, 1981, p. 153-84; Aguiar, Marcos Magalhães de. Op. cit., 1993; p. 266-306;
do mesmo autor, “Tensões e conflitos entre párocos c irmandades na capitania de Minas
Gerais”, in: Textos de História, Revista da Pós-Graduação em História da UnB, 5(2):41-100,
1997; Chaon, Sérgio. Aos pés do altar e do trono: as irmandades e o poder régio no Brasil, 1808-
1822. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 1996, p. 190-247.
26 Para o que se segue c fontes não explicitadas, ver Aguiar, Marcos M. de. “Tensões c confli
tos entre párocos e irmandades na capitania de Minas Gerais”, cit.
FESTAS E RITUAIS DE INVERSÃO HIERÁRQUICA 381
31 Para um resumo com entado desta legislação, ver Monteiro, Con. Antonio Xavier de Souza,
Código das Confrarias: resumo do Direito Ecclesiastico, Civil, administrativo e crim inal relativo a
estas associações. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1870, p. 58-67. O autor conclui seu
com entário da legislação eclesiástica atinente ao ponto com a seguinte afirmação: “Se as
constituições synodaes o não prohibirem expressam ente ou se não derem este direito ao
Parocho exclusivamente, pode o capellão da Confraria sem dependencia do Parocho can
tar Missa solem ne nas sobredictas festividades”, p. 65.
32 N a doutrina jurídica, a prescrição imemorial como prova de título parece considerar a uni
dade século como critério de referência, apesar de certa margem de indeterminação; ver
Hespanha, A. M. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político, Portugal, séc. XVII.
Lisboa: Livraria Almedina, 1994, p. 390-4. Várias vezes, as confrarias recorriam ao argu
m ento da colonização recente como meio de invalidar a noção de direito consuetudinário
sustentada pela Igreja.
386 MARCOS MAGAI/HÃ KS D K AGUIA R
35 Em Portugal e seu império ultramarino, como vários historiadores têm observado, câmaras,
regim entos militares e confrarias constituíam as principais estruturas de sociabilidade das
elites locais. Em Minas, dada a pouca expressão das Misericórdias, as ordens terceiras de
sem penharam essa função. Ver, entre outros, Boxer, Charles. Portuguese Society in the Tropics:
The M unicipal Councils o f Goa, Macao, Bahia and Luanda. M adison: T h e University of
Wisconsin Press, 1965; 0 império colonialportuguês. Lisboa: Ed. 70,1977, p. 263-82; Russell-
Wood, A. J. R. Op. cit., p. 89-110; Um mundo em movimento. Os portugueses na Africa, Asia e
América (1415-1808). Lisboa: Difel, 1998, p. 13; Sá, Isabel dos Guimarães. Quando o rico se
fa z pobre: misericórdias, caridade e poder no império português, 1500-1800. Lisboa: Comissão
Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 1997, p. 15, p. 61, p. 71,
p. 95, p. 100-01 e p. 127-8.
388 MARCOS MAGAI.HÃKS l)E AGUIAR
final do século XVIII, entre três e cinco por cento da sua receita com paga
mentos ao vigário e ajudantes pelo desem penho da função. A irmandade de
São José de Vila Rica, no mesmo período, comprometia entre sete e nove por
cento e, em ano excepcional, despendeu 14,5%. A Mercês dc Cima, também
de Vila Rica, gastava aproximadamente cinco por cento da sua receita com o
item. Nas contendas com os párocos, os confrades citavam estimativas deta
lhadas dos rendim entos paroquiais de forma que legitimasse suas dem andas
de dispensa de pagamento de direitos paroquiais.
A dimensão econômica, contudo, não constituía o centro da polêmica. O
conflito, de natureza aparentem ente econômica, repunha em questão as rela
ções de autoridade e poder entre párocos e fregueses. Não basta assinalar a
presença e circulação de idéias a respeito da gestão do espaço sagrado e da
vida religiosa, mas é necessário analisar as “práticas de apropriação”, ou seja,
os “modos de uso”. É imperativo tomar as formas de “consumo” cultural
como procedimentos de “fabricação” que deslocam, distorcem e desviam o
sentido original das práticas em função de referência estranhas de onde sur
giram.36 As atitudes de contestação da jurisdição paroquial deslocavam-se de
■
,f’ C erteau, M ichel dc. A invenção do cotidiano: artes defazer. Petrópolis: Vozes, 1994; sobretu
do p. 38-42 e p. 78-106. Roger Chartier propõe uma história cultural centrada nos conceitos
— aqui adotados — de práticas, representações e apropriação. História cultural: entre prá ti
cas e representações. Lisboa-Rio dc Janeiro: Difcl-Bertrand, 1990, p. 19-31 e p. 136-7. Ao
chamar atenção para a historicidade das categorias dc pensam ento do historiador das idéias
ou das mentalidades, Chartier apóia-se em M. dc Certeau: “Restituir essa historicidade
exige em primeiro lugar que o “consumo” cultural ou intelectual seja ele próprio tomado
como uma produção, que evidentem ente não fabrica nenhum objeto, mas constitui repre
sentações que nunca são idênticas às que o produtor, o autor ou o artista investiram na sua
obra” , p. 59. Aproximações mais explícitas dc Chartier com Certeau, embora da perspecti
va mais restrita da história das práticas de leitura, encontram-se cm A ordem dos livros:
leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos X V I e XVIII. Brasília: Edunb, 1994, p.
11-33. M. Sahlins, ao tratar das práticas dc apropriação dc artefatos culturais em situações
de contato intercultural, aproxima-se desta atitude teórica ao desenvolver a noção dc
“reavaliação funcional dc categorias”; Ilhas de história. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. A. Biersack
assinala parentescos teóricos sem elhantes ao indicado; “Saber local, história local: G eertz e
além ”, in: H unt, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 97-130.
Para um estudo dc caso que recorre ao conceito de apropriação em análise dc situação
colonial, ver Cahil, David. “Popular religion and appropriation: the exam ple of Corpus
Christi in E ighteenth-C entury Cuzco”, in: Latin American Research Review, 3 I(2):67-l 10,
1996. Cahil critica a tendência, cm Chartier, de valorização dos vetores de dominação (a
“repressão vitoriosa” da religião popular) na análise dos processos de intercâm bio cultural.
O autor reforça a visão nas relações entre cultura popular c cultura das elites (definições a
priori discutíveis) como via dc mão dupla: “It will considcr «appropriation» as a double-
cdgcd phenom enon: while rulcrs and othcrs elites sought to control popular religion for
their own ends (to draw its venom, one might say), still othcrs rccognizcd that a throng
assem blcd ostensibly for religious ends provided an ideal setting for subverting, even
overturning the colonial order itself. Such subversive instincts existed among ali strata of
colonial society, a circumstance that at oncc calls into question the distinction bctw ccn
«elite» and «popular» in the study of colonial religious lifc”; para outra perspectiva con-
FESTAS K RITUAIS D K I N V KR SÃO HIERÁRQUICA 389
vergente, ver Platt, Tristan. “T h e Andean soldiers of Christ. Confraterniry organization, the
mass of the sun and regcneration warfare in Rural Potosi (18th-20th centuries)”, in -.Journal
de la Société des Américanistes, LXXIII: 139-91, 1987. Platt com preende as relações entre
cristianização e religião autóctone como “positive achievement in intercultural religiosity”.
390 MARCOS MAGALHÃES DE AGUIAR
ANEXO
" M c r c c s ü c C im a
"S ã o Jo s é
“ R osário d o A lto d a C ru z
’ M c rc c s d o s P e rd õ e s
’* R o sário d o C a q u c n d c
R o sário A lto d a C ru z
R o sário d o C a q u c n d c
R o sário d c C a c h o e ira
R osário d c Ita tia ia
R osário d c G lau ra
□ □□
E S P E L H O E R E F L E X O
1 Adalgisa Arantes Campos. “Irmandades mineiras e missas”, in: Varia Historia, 75:19-27,
mar. 1996. Belo Horizonte: UFM G, p. 19.
398 JÚNIA FERREIRA FURTADO
dobrava sobre si mesma, como espelho e reflexo, pois serviam para sua insti
tuição e a expressavam. Eis a razão por que, desde o nascimento até a morte,
todos os momentos da vida privada e pública de um indivíduo eram cercados
de um ritual que servia para rememorar e introjetar o lugar social e a função
de cada um. A hora da morte era o último momento para que esses aspectos
fossem exteriorizados. Cercada de ritos, permitia o perdão dos pecadores, a
salvação da alma e, ao mesmo tempo, preservava e reafirmava as hierarquias
sociais estabelecidas na vida.2
Os ritos fúnebres refletiam os mesmos paradoxos com que se defrontava a
sociedade da época: criados para retratar uma sociedade estratiflcada e estáti
ca, quase imóvel, revelavam também sua fluidez e sua heterogeneidade. Ou
seja, por mais que pretendesse ser rígida, a sociedade mudava e com ela suas
instituições, incorporando novos atores sociais. Porém, uma vez alçados a
posição hierarquicamente superior, agiam de forma conservadora, procura
vam identificar-se com o novo segmento no qual se inseriam e reproduziam
os valores dominantes. Tal foi, por exemplo, o caso das mulheres forras e
comerciantes que examinaremos a seguir. As primeiras procuravam esquecer
seu passado escravista, ao passo que os últimos buscavam apagar o estigma
de mecânicos e cristãos-novos que os identificava. Tanto em vida, quanto na
morte, reuniram os elem entos que conferissem nobreza e os inserissem no
mundo branco, português e livre.
Este estudo pretende analisar os ritos fúnebres de comerciantes e m ulhe
res forras nas Minas setecentistas, procurando aproximações e peculiarida
des. Foram estudados os testamentos de vinte e quatro mulheres forras que
viveram no Tejuco e quarenta e oito comerciantes de diversas localidades da
capitania.-’ O número restrito de testamentos de negras forras se deveu à exi-
güidade das fontes. Analisados extensivam ente todos os registros de óbitos
encontrados no Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diam antina e os
fundos da Biblioteca Antônio Torres e Fórum do Serro, foram levantados o
pequeno número de vinte e quatro testamentos. É preciso salientar que são
em número proporcional ao conjunto de testamentos encontrados para a po
pulação livre, que são também pouco numerosos. Os testam entos de comer
ciantes foram retirados do conjunto de duzentos e doze negociantes que se
estabeleceram nas Minas na primeira m etade do século XVIII que foram
fontes da pesquisa Homens de Negócio4 e se referem aos que deixaram infor
2 João José Reis. A morte é uma festa, ritosfúnebres e revolta popular no B rasil do século XIX. São
Paulo: Com panhia das Letras, 1991; Adalgisa Arantes Campos. Pompa, escatologia eartes na
cultura colonial mineira. Tese de doutoramento. São Paulo: D epartam ento de História/USP,
1994.
3 A lista com pleta encontra-se no final do texto.
4 Júnia F. Furtado. Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do comércio nas M inas
setecentistas. São Paulo: H ucitec, 1999, p. 24.
TRANSI TORIEDADE DA VIDA, ETERNIDADE DA M O R T F. 399
5 Júnia F. Furtado. Chica da Silva: o avesso do mito. Belo Horizonte: Fundação Carlos Chagas.
Dotação Ford, 1999 (Relatório final de pesquisa. Mimeo.).
h Crioulas: negras, fdhas de africanos nascidas no Brasil. A terminologia utilizada neste arti
go foi a da docum entação consultada onde parda aparece como sinônimo de mulata.
400 JÚNIA V E R R E IR A KURTADO
7 Sabará. M useu do Ouro. Casa Borba Gato. (MO.CBG). T estam ento L 6 5 (ll), f. 7 v -ll.
MO.CBG. Testam ento 17(13), f. 15v-18.
" Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese dc Diamantina. (AEAD). Livro dc Óbitos 1753-1770.
Caixa 350, f. 34-35.
TR ANS I T O R I KD A D E DA VIDA, ETERNIDADE DA MORTE 401
TRANSITORIEDADE DA VIDA
Nas Minas, a proibição da instalação das Ordens Primeiras fez que flores
cessem as Irmandades leigas, por meio das quais os homens expressavam sua
religiosidade. As Irmandades ou Ordens Terceiras foram responsáveis por
todas as questões religiosas, como a construção dos templos, organização das
missas e procissões, difusão do culto aos santos e organização dos ritos fúne
bres. Pertencer a uma delas era, pois, essencial para a organização e identifi
cação dos homens nos núcleos urbanos que se iam constituindo. Elas não
eram exclusivas dos brancos, mas reuniam tam bém negros e mulatos e, en
tão, eram reflexos das estratificações raciais e sociais locais.
As Irmandades serviam para o reconhecimento dos lugares sociais de cada
um no seio da comunidade, e eram locais para exercício de uma série de
direitos, como o de ser enterrado, uma vez que as tumbas, localizadas dentro
das igrejas, pertenciam e eram administradas por elas. Entre os direitos ofe
recidos aos irmãos, estava a garantia de uma série de sufrágios na hora da
morte, como a celebração de missas, os gastos com o enterro, o direito de ser
enterrado com o hábito da ordem, ritos de passagem que deviam assegurar a
salvação da alma do irmão. Indispensáveis, elas procuravam sobretaxar os
que se tornavam irmãos apenas na hora da morte. Por não pertencer a nenhu
ma irmandade no arraial do Tejuco, onde residia, a negra forra Josefa Dias
teve de determ inar que seus testamenteiros definissem as condições em que
seria enterrada.11 Foi, provavelmente, o que aconteceu tam bém com o co
merciante Rafael Monteiro Heires, que instruiu que fosse sepultado “com o
hábito mais pronto que houver” .12
Entre as vinte e quatro mulheres forras estudadas, apenas Josefa Dias não
pertencia a nenhuma irmandade (4,1%). Foi enterrada na igreja do Rosário do
arraial do Tejuco, com missa de corpo presente e esmola de um quarto de vela
para os sacerdotes que acompanharam os serviços.13 Ao contrário do que se
poderia pensar, entre os comerciantes foi muito mais freqüente a ausência nos
testamentos de qualquer referência à irmandade filiada. Doze deles, represen
tando vinte e cinco por cento, não pertenciam a nenhum a delas e, em geral,
eram homens, brancos, de origem portuguesa, o que não pode sercompreendido
como sintoma de desclassificação social, como se percebe pelos Quadros 2 e 3.
Tam bém se poderia pensar que o menor número de filiação às irmandades
entre os comerciantes seria sintoma da itinerância a que muitos estavam su
jeitos, porém, apenas M anuel Madureira Pinto era viandante do Caminho
Velho, comerciando para as Minas sobretudo cavalos.14 A maioria era como o
Capitão José Tavares Pereira, português, que tinha loja de secos em Roça
G rande;15 ou o Alferes José Teixeira de Macedo, morador do Papagaio, que
tinha uma sociedade para comerciar bois e pediu que fosse enterrado na igre
ja de Santo Antônio, “acompanhado das Confrarias que houver”.16
Quadro 2. G ênero e cor dos comerciantes sem registro de filiação à Irm andade
G ênero e cor Núm ero Porccntual
H om ens e brancos 11 91,7
M ulher e negra 1 8,3
Total 12 100
Fonte: T estam entos de comerciantes listados no final.
Quadro 3. Origem e tipo do negócio dos comerciantes sem registro de filiação à Irm andade
Origem N úm ero Porccntual T ipo do negócio N úm ero Porcentual
Portugal 10 83,4 Loja 6 50,0
Brasil 1 8,3 Estoques sem especificação 5 41,7
Africa 1 8,3 Volante 1 8,3
Total 12 100 Total 12 100
Fonte: T estam entos dc comerciantes listados no final.
estes elem entos era natural. Sua maior preocupação era filiar-se a uma ir
m andade im portante que imprimisse distinção social, pois precisavam apa
gar o fato de que o comércio era um ofício e, portanto, a maioria vivia dc seu
próprio trabalho.
20 Fritz Teixeira Salles. Associações religiosas no riclo do ouro. Belo Horizonte: UFMG, 1963, p. 43.
21 Ibidem , p. 38.
22 Anita Novinsky. Inquisição. Inventários de bens conquistados a cristãos-novos. Rio de Janeiro:
Im prensa Nacional, 1976, p. 188.
23 Ouro Preto. M useu da Inconfidência. Arquivo Histórico da Casa do Pilar. (M I.AHCP).
Cód. 43. Auto 507.
T R A N S I T O R I E D A D E DA VIDA, E T E R N I D A D E DA M O R T E 405
sua morte; das Mercês;31 de Nossa Senhora Rosário; de São Francisco de As
sis32 Almas e Nossa Senhora do Carmo da Vila do Príncipe.
Tanto entre os comerciantes quanto entre as forras, era comum a filiação a
várias confrarias, o que denotava importância e conferia distinção. Entre os
comerciantes, generalizaram-se as filiações às Almas (dezessete), Santíssimo
(dezesseis), Nossa Senhora do Carmo (oito), Rosário (cinco) e São Francisco
(quatro). Entre as forras foram dominantes Rosário (dezoito), Mercês (nove),
Alma (sete) e Terra Santa (cinco). Isabel Gomes Pereira, parda, filiara-se no
Tejuco às Irmandades das Almas, Amparo e Terra Santa.33 M anuel Gomes de
Carvalho, comerciante em Vila Rica, afirmou em seu testam ento que devia
perto de cem oitavas de ouro às Irmandades do Santíssimo, Almas, Passos e
São Sebastião, dessa vila.34
A sociedade da segunda metade dos Setecentos foi caracterizada pela maior
estratificação, resultante da generalização das relações consensuais entre bran
cos, mulatos e negros e do maior acesso às alforrias. Por isso mesmo, tendeu a
se organizar de forma mais hierárquica e menos fluida, demarcando melhor as
diferenciações de cor estatus entre a camada de libertos. Houve, conseqüente
mente, maior preocupação da elite branca e livre de se distinguir da camada de
mulatos e libertos que proliferava nos arraiais. Esta tensão resultou na criação
das Irmandades de São Francisco e Nossa Senhora do Carmo, que pretendiam
ser restritas aos estratos mais altos. Como exemplo, Francisco Roiz de Brito era
irmão terceiro de São Francisco e do Santíssimo Sacramento.35
Mesmo com os estatutos discricionários, tam bém as forras, apesar do es
tigma da cor, conseguiram entrar nessas duas irmandades. Em 1815, a negra
Ana da Encarnação Amorim era irmã do Rosário, Mercês e São Francisco de
Assis, revelando o trânsito social que a condição de forra lhe abria. Inês de
Santa Luzia, mulata, filha natural de uma branca chamada Maria da Concei
ção, pertencia à pretensa seleta Irmandade do Carmo do Tejuco. As autorida
des que registraram a abertura de seu inventário trataram-na por Dona, sinal
de que não era uma qualquer no arraial e, certamente, a cor de sua mãe faci
litara sua aceitação.
Por outro lado, com o aumento do número de mulatos proliferaram as irman
dades que os congregavam, como as da Mercês, associada à libertação dos ca
tivos, e de São Francisco do Cordão. No Tejuco, isso resultou na construção
da igreja do Amparo (1756) e Mercês (1772). Efetivam ente, enquanto entre
os comerciantes não houve filiações a irmandades de mulatos, a partir de
31 AEAD. Irm andade de Nossa Senhora das Mercês. Caixa 520, f. 20.
32 AEAD. Livros dc Óbitos. Ordem 3.J de São Francisco. Caixa 350, f. 55.
33 AEAD. Caixa 350, f. 84v-85v.
34 Anita Novinsky. Op. cit., p. 188.
35 MI.AHCP. Cód. 47. Auto 576.
T R A N S I T O R I E D A D F. DA VIDA, E T E R N I D A D E DA M O R T E 407
ETERNIDADE DA MORTE
Santana com resplendor de ouro, o quarto trazia Nossa Senhora com uma
coroa de ouro e o último tinha a imagem de Santo Antônio com resplendor de
prata.55
Significativa parte do espólio era gasta na celebração de missas, fossem
elas de corpo presente, fossem em memória de suas almas 0 11 de entes queri
dos, pois se creditava a elas grande poder de remissão de culpas. A crença no
purgatório criava um rito forçado de passagem para a elevação da alma. Era
costume tam bém celebrar missas pelas almas do purgatório e por escravos,
para as quais tam bém deixavam esmolas às igrejas onde seriam rezadas ou a
instituições como as Irmandades. Inácio Dias Cardoso, comerciante, orde
nou que se rezassem duzentas missas dc esmola em Ouro Branco; quinhen
tas no Rio de Janeiro, celebradas no convento de Santo Antônio e de N. S. do
Carmo, sendo cem nos meses subseqüentes e no mesmo dia de sua morte;
mais cem pela alma de sua mãe e cem pelos seus escravos. Pagou também
por uma “lâmpada de alumiar 0 Santíssimo Sacramento de sua freguesia” .56
João Gonçalves Batista pediu que se celebrassem duzentas missas pelas al
mas dos escravos que morreram em seu poder.57 Jacinto Colares^8 separou
um por cento de seus bens para que rezassem missas para as almas do fogo do
purgatório; cento e sessenta missas em favor de sua alma; quatrocentas mis
sas pela do pai; quatrocentas pela da mãe e cem pela alma dos avós. Em geral,
os comerciantes determinaram maior número de missas do que as forras, seu
pecúlio era também muito maior. Entre elas, Teresa Feliz dispôs que dez
missas fossem celebradas na matriz do Serro e vinte no arraial do Tejuco,
divididas entre as igrejas do Carmo, Mercês, São Francisco, Bonfim e Ampa
ro, nesta última em altar privilegiado.59
Os preços das missas em Minas eram relativamente altos, o que determ i
nou que João Monteiro Baião, que possuía loja de fazenda em Santa Luzia,
advertisse seus testamenteiros que “sendo meu falecimento nas Minas me
digam vinte missas pela minha alma, com a brevidade possível, e sendo em
povoado serão quarenta” .60
Outros sufrágios serviam para notabilizar a situação do morto, como o lugar
da sepultura na igreja, ou o direito de ser carregado pelos irmãos e pelo prove
dor, ou ainda o número de capelães para o ofício de corpo presente. O mesmo
João Monteiro Baião pediu que sua “sepultura podendo ser, será junto da
porta principal da igreja, da parte de dentro”,61 apesar de essa posição não ser
FONTES
T estam ento s de m u l h e r e s fo rr as
O u t r o s d o c u m e n t o s
T estam ento s de c o m e r c i a n t e s
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□ □□
SUMMA TRIUNFAL
DANOVA, E GRANDE CELEBRIDADE
do Glorioíò, e invi&o Martyr
S.GONCALO
G A R C I A :
Dedicada, e offerecida ao Senhor Capitaó
JOZERABELLO
DEVASCONCELLOS,
PO R SEU A U TO R
SOTERIO DA SYLVA RIBEIRO:
Com huma Colleçaó de rarios folgedos ,edanças,
Oraçaõ Panegírica, que recitou o Doutíífimo,e
Reverendifíirao Padre
Fr. ANTONIO DE SANTA MARJA
JABOATAM,
Rcligíofo C sp ucho da Província deSaoco A ntonío do Brtzil,
Na Igreja dos Pardos da
SENHORA DO LIVRAMENTO,
EmPernambuconoprtweirodeMayodoanno
de 174Ç.
L I S B O A.
Na Officia» de- PEDRO PERREIRA , lmpreflbt d* Auguftiffina
Rdintu oolta Senhori.
Anno de M .O C C .L III.
Com tc d jr «j littn fS l a c u jftr iú l,
221
Frontispício da Summa triunfal da nova, e grande celebridade do Glorioso, e invicto Mar-
tyrS. Gonçalo Garcia: Dedicada, e oferecida ao Senhor Capitaõ Jozé Rabello de Vas-
concellos, por seu autor Soterio da Silva Ribeiro: [. ..]. Lisboa: Na Officina de Pedro
Pereira, Impressor da Augustissima Rainha nossa Senhora. Foto André Ryoki.
A REDENÇÃO DOS PARDOS: A FESTA
DE SÃO GONÇALO GARCIA NO RECIFE, EM 1745
R i t a d e C á s s i a B a r b o s a d e A r a ú j o
1 André João Antonil. Cultura e opulência r!u H rasilpor.tuas drogas e minas. Recife: M useu do
Açúcar, 1967, p. 24.
2 Vilhena chamava a atenção dc S. Majestade para este que era, na sua opinião, um dos graves
problemas da colônia: “o virem os engenhos e as grandes fazendas a cair nas mios destes
pardos naturais, homens eom umente estragados Luís dos Santos Vilhena. A Ha/tia no
séculoXVIII. Bahia; Editora ItapuS, 1969, v. 1, especialmente o capítulo 3, p. 135-7.
420 RITA DE CÁSSIA BARBOSA DK ARAÚJO
3 Para uma análise sobre a visão do mulato no período colonial, ver Charles R. Boxer. A idade
de ouro do Brasil. São Paulo: Nacional, 1963, p. 32-5; Idem. Relações raciais no império colo
nial português, 1415-1825. Rio dc Janeiro: Tem po Brasileiro, 1967; Gilberto Freyre. Sobra
dos & mocambos. 7.“ ed. Rio de Janeiro-Brasília: Josc O lym pio-INL, 1985, cspecialm cntc o
2." tomo; José Antônio Gonsalvcs dc Mello. “O acidcntc da cor”, in: José Antônio Gonsalves
de Mello. Tempo dejornal. Recife: Fundaj, Ed. Massangana, 1998, p. 255-9.
4 Parte dos comentários desfavorável às cidadcs, cm Antonil, dcve-sc ao fato dc scr ele da
opinião que “as melhores minas do Brasil” eram o açúcar c o tabaco, discordando do e n tu
siasmo febril em torno das riquezas que provinham das minas de ouro, das quais decorre
ram o crescim ento das cidadcs mineiras, no século XVIII, c, com ele, a dissolução dos
costumes. Ver José Antônio Gonsalves de Mello. “Antonil e sua obra” , in: André João
Antonil. Op. cit., p. I-VIII.
A R li D K N Ç À O DOS PARI) O S 421
dos, ou quase todos, e sempre excedendo em brilho com que as cidades cos
tumavam saudar seus visitantes ilustres. Tradição antiga tão bem recuperada
quanto refinada pelas monarquias do Antigo Regime.5
Ingressaremos nas festas e cerimônias públicas, realizadas na América por
tuguesa, pela palavra, pelo que ficou registrado na memória escrita. Memória
que nos chega sobretudo através das narrativas dos homens de letras, leigos
ou eclesiásticos, invariavelmente em tom panegírico-histórico como convi
nha aos princípios da retórica, que exigiam dos autores obediência às regras
de arte e aos preceitos da poesia, agudeza em seus engenhos, sutileza nos
conceitos, elegância e clareza do discurso, propriedade dos vocábulos.6
Submetidas à censura de autoridades várias, exigia-se, para a publicação
das relações sobre as festas públicas comemorativas, que não contivessem
coisa alguma que fosse contrária à santa fé católica, aos bons costumes e às
leis e reais decretos. O conhecimento prévio da censura, a que seriam sub
metidos os textos, aliado às prerrogativas do gênero literário, em que se en
quadravam, certam ente explicam muito das preferências e acentuações que
os autores davam a determinados aspectos do cerimonial. O que contrastava
com o aparente desinteresse demonstrado para com outros acontecimentos
festivos — quanto não, por não serem perceptíveis ao seu olhar, decodifica-
ção sempre histórica e cultural.
Conflitos envolvendo as diversas instâncias do poder político e do religio
so muito raramente eram publicados nas relações sobre as festas. Uma das
exceções talvez seja a das cartas trocadas entre o governador de Pernambuco,
Luís José Correia de Sá, e a câmara do Recife, por haverem os oficiais mecâ
nicos da vila se negado, ou o terem feito muito a contragosto, os custeios
referentes às figuras alegóricas a serem exibidas nas festas pela aclamação de
Dom José I.7 N este caso, a publicação deveria servir para inibir, com o exem
5 Jacqucs Hecrs. Festas de loucos e carnavais. Lisboa: Publicações Dom Q uixote, 1987;
Jean-M arie Apostolidès. 0 rei-máquina: espetáculo e política no tempo de Luís XIV. Rio dc
Janeiro-Brasília: José Olym pio-Edunb, 1993; Klaus Bringmann. “El triunfo dei em perador
y las saturnales de los esclavos en Roma”, in: Uwe Schultz (dir.). La f/esta: una historia
cultural desde la Antigiiedad hasta nuestros dias. Madri: Alianza Editorial, 1993, p. 65-75; Elsbet
Orth. “La coronación imperial de Carlomagno en Roma”, in: Uwe Schultz (dir.). Op. cit.,
p. 77-92.
6 José Aderaldo Castello realizou trabalho de fôlego ao coligir documentação referente às
manifestações culturais do período barroco, no Brasil, e que se encontra reunido na “Cole
ção de Textos e D ocum entos”, nos volumes do livro 0 movimento academicista no Brasil:
1641-1820122. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1969-1978.
7 A legislação portuguesa ordenava a realização dc festas religiosas anuais em todas as exten
sões do reino, tais como a do Corpo de Deus e a do Anjo Custódio, assim como a procissão
de Nossa Senhora, de obrigação dos juizes e vereadores das vilas e cidades coloniais. O u
tras comemorações públicas, cívicas ou religiosas, eram decididas ou por ordens régias ou
pelos governos locais, câmaras e prelado. Ver Ordenaçõesfilipinas do Reino de Portugal. Nota
dc apresentação dc Mário Júlio da Costa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985
422 RITA DE CÁSSIA II A R 11 O S A DE ARAÚJO
(edição fac-similada da edição feita por Cândido M endes de Almeida, Rio de Janeiro, 1870),
Livro I, T ít. LXVI, parág. 48. As câmaras tiveram estas obrigações até 1.” de outubro de
1928. Ver também , Fernando M endes de Almeida. “O folclore nas O rdenações do Reino”,
in: Revista (to Arquivo M unicipal, São Paulo, /,F/:5-126, 1939; especialm ente p. 50 e 64.
s Felipe Néri Correia. “Relação das festas que se fizeram em Pernam buco pela feliz aclama
ção do muito alto, e poderoso rei dc Portugal Dom José I. [...], 1751 -1752”, in: José Adcraldo
Castello. Op. cit., v. III, t. 2, p. 257-69.
' “Aplausos natalícios com que a cidade da Bahia celebrou a notícia do felicc Primogênito do
Excelentíssimo Senhor Dom Antônio dc Noronha, Conde de Vila Verde, [...] Lisboa O ci
dental, na Oficina de Miguel Mcnescal, Impressor do Santo Oficio, c da Sereníssima Casa
de Bragança (S.l.A) 1718” , in: José Aderaldo Castello. Op. cit., v. III, t. 6, p. 29.
1(1 M anuel de Cerqueira Torres. “Narração pancgírico-histórica das festividades com que a
cidade da Bahia solenizou os felicíssimos desposórios da Princesa Nossa Senhora com o
Sereníssimo Senhor Infante Dom Pedro, [...], (1760)”, in: José Aderaldo Castello. Op. cit.,
v. III, t. 3, p. 193.
A REDENÇÃO DOS PARDOS 423
“Haverá pouco mais de trinta anos, que indo deste Pernambuco ao Rei
no de Portugal um homem pardo por nome de Antônio Ferreira no regres
so trouxe uma pequena Imagem do Beato Gonçalo Garcia com a notícia
que lá lhe deram de ser o santo da sua mesma cor, e acidente; 13
" O coro apresentou-se numa das funções oferecidas pelos artífices tanoeiros c carpinteiros,
por ocasião das festas citadas na nota anterior. Ibidem, p. 204.
12 Gonçalo Garcia era natural da cidade de Baçaim, na costa do Malabar, ao sul de Goa, e
nasccu em ano posterior ao de 1533, data em que os portugueses se apossaram dessas
terras. Filho dc português com uma mulher hindu, tornou-se mercador, ocupação que aban
donou para vestir o hábito de irmão terceiro franciscano. Foi crucificado em Nagasáqui, no
Japão, em 1597. Foi beatificado em 1627 e canonizado em 1862. Sobre a devoção ao santo
no Brasil, Sotério da Silva Ribeiro. “Súmula triunfal da nova e grande celebridade do glo
rioso e invicto mártir São Gonçalo Garcia [...], 1745”, in: José Aderaldo Castello. Op. cit., v.
III, t. 2, p. 7-105. Consultar, tam bém , o trabalho de pesquisa textual e iconográfico de
Raquel Caldas Lins & Gilberto Osório de Andrade. São Gonçalo Garcia: um culto frustrado.
Recife: Fundaj, Ed. Massangana, 1986. Idem. “Elogio do homem pardo”, in: Ciência &
Trópico, Recife, 7z’(l):79-105, jan.-jun. 1984. Os dados biográficos foram reunidos por Frei
Antônio de Santa Maria Jaboatão, autor do sermão proferido por ocasião das celebrações ao
beato, na vila do Recife, na igreja de N. S. do Livramento, em 12 de setem bro de 1745,
intitulado “Discurso histórico, geográfico, genealógico, político, e encomiástico [...]”, re
produzido por Raquel Caldas Lins & Gilberto Osório dc Andrade. “Elogio do homem
pardo”, in: Ciência & Trópico. Há indícios dc que existiam devotos do beato Gonçalo Garcia
já em 1682, na vila de Penedo. Ver Ernani Méro. Penedo: templos, ordenseconfrarias. Maceió:
Sergasa, 1991, p. 239.
13 Sotério da Silva Ribeiro. “Súmula triunfal...”, op. cit., p. 16.
424 RITA DK CÁSSIA BARBOSA D K ARAÚJO
O culto a este mártir do Japão iniciou, podemos assim dizer, com a aspira
ção demonstrada pelos homens pardos, que viviam em Pernambuco, de pos
suírem um santo da sua cor. Desejo que, encontrando nas formas de pensa
mento, nos ritos e símbolos do catolicismo um meio lícito e legítimo de se
expressar, denunciava as precárias condições sociais em que a maioria deles
vivia e a situação de inferioridade racial confrontada no dia-a-dia. Ao mesmo
tempo, assinalava a presença de uma expectativa, nutrida pelos pardos, de
alcançarem uma vida futura melhor. A existência de um santo pardo, aureola-
do pelo martírio, nascido em terras de colonização, da união de português
com uma mulher de cor — situação tão sem elhante à dos pardos do Recife —
dava a estes mais que um exemplo de uma possível santidade. Dignificava-
os em sua acidentalidade étnica e permitia-lhes — como ocorria com brancos
e pretos — o exercício de um culto publico, socialmente reconhecido e ex
pressão do valor e das qualidades da gente parda.
Antes, porém, de alcançarem tão gloriosos e prometidos dias, os homens
pardos passaram por duras provações, que, certamente, não conheceriam caso
a colônia fosse, em todos os sentidos, “o paraíso dos mulatos”. Os de sua cor
suportaram infortúnios, a que responderam com devoção; sofreram opressão
e angústia e resignaram-se na fé; ouviram calúnias e escárnios e mantiveram-
se pacientes. Talvez, estas tenham sido as superiores razões, segundo o autor
da Súmula Triunfal, do reconhecimento divino de que era prova “a feliz no
tícia do invicto Mártir São Gonçalo Garcia, Santo de sua mesma cor, e aci
d en te” .14
Acirrada polêmica instaloú-se desde que a referida notícia foi divulgada
localmente. Discutia-se ser verossímil ou não, a informação sobre a cor do
santo. Um eclesiástico, a quem fora encomendado um sermão e cuja opinião
chegou até nós, recusou-se prontam ente a fazê-lo. Protestou que “não faria
pelo mais crescido interesse por não haver aprendido a pregar impossíveis,
pois se não moldava com tal acidente a santidade”.15 Enquanto duraram as
diligências, a imagem do santo permaneceu reclusa, quase clandestina, no
interior da casa do pardo que a trouxera e que, ao morrer, deixou-a por heran
ça aos seus iguais, que deram continuidade ao projeto.
Situado o debate no interior dos cânones católicos, a resolução do caso
escapava inteiram ente à vontade e aos limitados conhecimentos intelectuais
dos principais interessados. Eram necessários saber e erudição para argumentar
ser parda a cor do beato Gonçalo Garcia, e só uns poucos doutos e religiosos
poderiam fazê-lo. Consultados, “nenhum concordava em que o Santo (sendo
natural da índia) pudesse ter aquela cor” . Resistências e negativas davam a
medida dos preconceitos alimentados pela maioria dos membros da elite bran
14 Ibidem , p. 15-6.
15 Ibidem , p. 18.
A REDKNÇÃO DOS PARDOS 425
ca local, entre clérigos e leigos, em relação aos mulatos. Mas o caso revelava,
tam bém , a existência de discordâncias de opiniões e posicionamentos, exis
tentes no corpo da Igreja, e de distintos e por vezes conflituosos interesses
entre as diversas ordens religiosas que a compunham. Procurado para profe
rir o sermão de entronização do santo, o que o fez no dia 12 de setembro de
1745, na igreja de N. S. do Livramento, o frei franciscano Antônio de Santa
Maria Jaboatão
“[...] sem impugnância alguma lhes respondeu, que pelo que entendia,
podia estar na certeza de que o Beato Gonçalo Garcia, como natural da
índia, tinha da cor parda tudo aquilo, que bastava para que eles pudessem
ter o por Santo de sua cor, e acidente.” 16
A festa, seja ela sacra ou profana, realiza-se envolta numa rede de signifi
cados que, expressando-se por meio de símbolos, ritos, alegorias, gestos e
imagens, são tanto ou mais diversificados, ambíguos ou ambivalentes quanto
múltiplas sejam a divisão social do trabalho e a procedência étnica e histórica
dos indivíduos e grupos que compõem o conjunto da sociedade. Significados
que muitas vezes escapam ao controle e sentido dos que se afirmam como
idealizadores ou patronos dos festejos.17
Exaltação da grandiosidade do reino, representação, em forma de espetá
culo, que a sociedade ordenada, cristã e obreira do Recife fazia de si e ofere
cia a seus próprios olhos e discernimento, os louvores a São Gonçalo Garcia
pretenderam ser mais que isto, singular. A festa, realizada entre os dias 30 de
agosto e 19 de setembro, autoproclamou-se redentora dos pardos, propósito
firmado pela conjuntura em que se deu e reforçado pelos registros escritos
sobre a memória dos acontecimentos, dentre os quais se destacaram a Súmu
la Triunfal e o Discurso Histórico, Geográfico, Genealógico, Político, e Encomiásti-
co, de Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, que, em certo trecho, dizia
16 Ibidem , p. 17.
17 Além dos estudos citados na N ota 5, consultar, Maria H elena de Carvalho Santos (coord.).
A festa. Lisboa: Sociedade Portuguesa de Estudos do século XVIII, Editora Universitária,
1992, 3 v.; Maria H elena da Cruz Coelho. Festa e sociabilidade na Idade Média. Coimbra:
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de Cássia Barbosa de Araújo. Festas: máscaras do tempo: entrudo, mascarada efrevo no carna
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ra da Universidade dc Brasília, 1994, p. 153-87; André Félibicn. Relaliondelafêtede Versailles.
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Alewyn. U universdu Baroque. Paris: Éditions Gonthier, 1959; Mona Ozouf. “A festa sob a
Revolução Francesa”, in: Jacques Lc Goff & Picrre Nora (dir.). História: novos objetos. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 216-32.
426 RITA DE CÁSSIA BARH O S A D K ARA Ú J O
“Crédito, lustre, honra, e glória, de todos, os que pela sua cor se cha
mam Pardos. Este é aquele nome, que proferido com outros termos, e
tomado em linguagem vulgar, se vos lançava até agora em rosto, quase por
desprezo, como com menos política o faziam alguns, sem mais razão, 0 11 só
com a sem razão, de não terem os Pardos, um Santo, que canonizado, já o
nome vos não pode servir de desdouro algum, antes sem [írV] de muita
glória, pois em o Beato Gonçalo Garcia Santo, Santo de vossa cor, vos de
parou Deus um Restaurador, ou Redentor das calúnias do vosso N om e.” 18
ls Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão. “Discurso histórico, geográfico...”, op. cit., p. 82.
19 Para uma análise sobre a política metropolitana em relação aos homens de cor na América
portuguesa, consultar José Antônio Gonsalves dc Mello. “O acidcnte da cor”, in: José
Mello. Tempo de jo rn a l..., op. cit., p. 255-9.
20 Frei Antônio dc Santa Maria Jaboatão. “Discurso histórico, geográfico...”, op. cit., p. 84.
21 Ibidem , p. 98.
A REDKNÇÃO DOS PARDOS 427
22 Ib id em , p. 96-7.
428 RITA D E CÁSSIA BARBOSA DE ARAÚJO
23 Raquel Caldas Lins & G. Osório Andrade. São Gonçalo Garcia: uni culto frustrado..., op. cit.,
p. 50.
24 Evaldo Cabral dc Mello. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco 1666-
1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
25 José Antônio Gonsalves de Mello. “N obres e mascates na câmara do Recifc, 1713-1738”,
in: Rev. Inst. Arq. Hist. Geo. Pern. Recife, A ///: 113-262, 1981. Sobre o período dc 1654 a
1710, da história pernambucana, consultar também Vera Lúcia Costa Acioli. Jurisdição e
conflitos: aspectos da administração colonial — Pernambuco século XVII. Recifc: Editora Uni
versitária da U FPE , 1997.
A RKDKNÇÃO DOS PARDO S 429
-1 Sobre o assunto, ver João Alfredo dos Anjos. “Luís Cardoso, um homem dc negócios no
Recife da segunda m etade do século XVII”, in: M anuel Correia dc Andrade; Eliane Moury
l'crnandes & Sandra Melo Cavalcanti (orgs.). Tempos dos flamengos e outros tempos: B rasil
século XVII. Brasília-Recife: CN Pq-Fundação Joaquim Nabuco-Ed. Massangana, 1999, p.
255-66.
A REDENÇÃO DOS PARDO S 431
28 Sobre o papel representado pelas câmaras municipais no império português, ver Maria
Fernanda Bicalho. “As câmaras municipais no império português: o exemplo do Rio de
Janeiro”, in: Revista Brasileira de História. São Paulo, A npuh-H um anitas Publicações,
/<?(36):251-80, 1998.
29 Os dados cncontram-se cm José Antônio Gonsalves dc Mello. “Nobres c mascates.. op.
cit., p. 129-30.
,n Ibidem , p. 249, nota 33.
11 Mário dc Andrade. A arte religiosa no Brasil. São Paulo: Experimento-Giordano, 1993; Roger
Bastide. Imagens do Nordeste mítico em branco e preto. Rio de Janeiro: Empresa Gráfica O
Cruzeiro, 1945; Robert C. Smith. Igrejas, casas e móveis: aspectos da arte colonial brasileira.
Brasília-Recife: M EC, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-Universida-
de Federal de Pernambuco, 1979.
432 KIT A DE CÁSSIA BARBOSA DE ARAÚJO
n José Antônio Gonsalves dc Mello. “M anuel Ferreira Jácome — arquiteto, juiz do ofício dc
pedreiro”, in: Revista da Escola de Belas Artes de Pernambuco, Recife, /(l):19-32, 1957.
33 José Antônio Gonsalves de Mello. “Rebelo, pintor setccentista do Recife”, in: José Antô
nio Gonsalves de Mello. Tempos de jo rn a l..., op. cit., p. 221-5.
34 Pc. Jaime C. Diniz. Músicos pernambucanos do passado. Recife: Universidade Federal de
Pernambuco, 1971, 3 v. Pela leitura desta obra, é possível identificar mais alguns nomes dc
A REDENÇÃO DOS PARDOS 433
36 Ao referircm-sc à luminosidade que das luminárias provinha, os autores das narrações fes
tivas buscavam realçar a ação do homem, cstabcleccndo uma relação de equivalência entre
esta c a grandiosidade da natureza: “por quanto as estrelas do céu pareciam luminárias da
terra, c as luminárias da terra afetaram scr estrelas do firm am ento”. Padre M anuel de
Cerqueira Torres. “Narração panegírico-histórica...”, in: J. A. Castello. Op. cit., v. III, t. 3,
p. 197.
17 F. A. Pereira da Costa. Anais pernambucanos 1666-1700. 2 “cd. Recife: Fundarpe, Diretoria
de Assuntos Culturais, 1983, v. 4, p. 412-6.
A REDKNÇÃO DOS PARDOS 435
39 Sobre a arte dos jardins, ver Jean-M arie Apostolidès. Op. cit.; para o simbolismo da água
para a monarquia portuguesa, João Ferreira da Rosa. A febre amarela no século XVII no Brasil.
Rio de Janeiro: Editora Edgard Blücher, 1971, p. 47.
40 A inauguração dos primeiros chafarizes do Recife data de 21 de maio de 1846. Sobre o
tema, ver Gisanfran N. Mota Jucá. A implantação He serviços urbanos no Recife: o caso Ha
Companhia Ho Beberibe 1838-1912. Dissertação de mestrado em História. Recife: Centro dc
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, 1979; Virgínia P. dc
Mello. Água va i! A história Ho saneamento He Pernambuco 1537-1837. Recife: Com panhia
Pernam bucana de Saneamento, 1991; José Luiz M. Menezes.; Hamilton F. de Araújo &
José Castelo Branco Chamixaes. Águas Ho Prata. A Companhia Ho Beberibe: história Ho sa
neamento He Pernambuco 1838 a 1912. Recife: Com panhia Pernam bucana de Saneam en
to, 1991.
A R E D E N Ç Ã O DOS PARDOS 437
tes, e mais flores do mesmo, que com variedade nas cores, o ornavam de
alto a baixo.”
Ladeada por dois Serafins, “em cujo meio se formava um círculo de cristal
que continha doze menores com várias relíquias Santas”, das mãos desta fi
gura
“[...] saía uma fita carmesim, que formava meio círculo, com este dourado
lema: «Tronus ejus sicut Sol». Posterior a toda esta maravilha, e artificiosa
importância se via uma jóia cravada de esmeraldas, e diamantes presa em
uma flor de fita de ouro com pontas perdidas; aí mesmo nascendo uma
trem ulante plumagem azul; e das orelhas dois pendentes de diamantes
cravados em ouro. Gingia-lhe o pescoço gargantilha de ouro e diamantes,
em meio um rosicler do mesmo.”41
42 Ibidem , p. 33.
43 “Bola de barro oca, que se arremessava cheia de flores e de outros mimos, nas cavalhadas
antigas.” Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1975, p. 63.
442 RITA DK CÁSSIA BARBOSA DE ARAÚJO
46 Josc Antônio Gonsalves dc Mello. “O quinto volume dos Anais”, in: F. A. Pereira da Costa.
Anais pernambucanos 1701-1739. 2.a ed. Recife: Fundarpe/D iretoria de Assuntos Culturais.
1984, v. 5, p. XVIII.
47 Evaldo Cabral dc Mello. A fronda dos m azom bos..., op. cit., p. 386.
444 RI TA DK CÁSSIA BARBOSA DK ARAÚJO
ram festejos públicos em louvor ao santo de sua mesma cor, São Gonçalo Garcia. A
questão da cor do beato e de sua compatibilidade, ou não, com a santidade, foi moti
vo de polêmica, envolvendo pessoas doutas e religiosas, e constituiu tema do sermão
de Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, verdadeiro elogio do homem pardo. Procu
ramos inserir a festa no contexto histórico e social do Recife setecentista, buscando
identificar os sujeitos políticos e sociais que dela tomaram parte e as relações que
teciam entre si. Pensamos, assim, tornar compreensível o que a festa expressava —
no plano da representação simbólica — do processo de mudança por que passava o
Recife, e, particularmente, da posição ocupada pelo homem pardo nessa sociedade.
A M Ú S I C A NA F E S T A
A
A M Ú S I C A N A FESTA
teria sido estranho se o apelo aos olhos não viesse acom panhado de apelo aos
iv id o s.. . se é possível pensar com o P e ter Burkc e ver a música na América
irtugucsa com as várias funcionalidades, seja como parte essencial no processo de
lonização e catequização, seja como entretenim ento dc uma vida em colônia.
jgo nos inícios do século XVI, os reis católicos enviaram aos trópicos dois padres
ntores de canto-chão: frei Pedro dc G ante c frei Juan de Haro, que logo manda-
n queim ar os instrum entos indígenas c, em seguida, substituíram -nos por instru
ím o s europeus. Em alguns m om entos, várias dessas m úsicas dc linguagem
ropéia foram traduzidas e escritas cm quéchua, náuatle, crioulo c tupi, em outros,
»uiram a tradição medieval do latim ou verteram -sc para o português. A música e
nusicalidade dos tem pos coloniais expressaram os vários m om entos da vida pú-
ca e privada, deram -lhes o ritmo das festas.
3
lidade c a com preensão do m undo. Talvez seja essa mistura, que aqui prefiro cha
mar dc articulação de culturas, que imprimiu características próprias às práticas cul
turais como um todo. N aturalm ente, negros, brancos, índios e mestiços procura
vam, cada um cm seu respectivo espaço, m anter sua forma tradicional com a qual se
identificara. E ntretanto, cm alguns m om entos da vida social da colônia, as ruas,
praças, tem plos religiosos c por algumas vezes os estabelecim entos de espetáculos,
tornaram-se espaços comuns.
Neles, os vários estam entos c grupos étnicos reuniram -se para comem orar alguma
data, ou reverenciar algum nobre ou príncipe, e, de forma estratégica, esses encon
tros serviram tanto para atenuar quanto para acentuar as diferenças sociais. Se se fez
a música do branco pelas relações dc poder e de juízo dc um sobre o outro, fez-se
tam bém a música de sua própria cultura, porque se acreditava nela. As modinhas, os
batuques, os lundus, as peças instrum entais e mais raram ente os vilancicos, foram
m anifestações que aconteceram fora dos círculos religiosos e, m uitas vezes, se
entrccru/.am com eles.
R E L I G I O S I D A D E S N A C O L Ô N I A (fa ix a s 2 0 e 2 3 )
P R Á T I C A S A F R O - A M E R I C A N A S (fa ix a s 2 4 a 2 6 )
Cada um via as práticas da forma como com preendia seu próprio mundo; na maioria
das vezes era preciso inverter o olhar. N o Brasil os negros passaram a fazer suas
festividades com uma música tão rica cm ritmos quanto em melodias.
Batuques, jongos, congadas e congos foram as práticas mais comuns entre os negros
escravizados e libertos. O jongo remonta aos tempos da escravidão quando eram dan
çados pelos banto-descendentes que trabalhavam nas fazendas de café. O batuque,
tam bu ou ainda caiumba é uma dança coletiva cuja coreografia culmina com a umbi-
gada, com um gesto associado aos antigos rituais dc fertilidade do Congo e Angola.
Com uma estreita relação com o tambor-de-crioula do Maranhão, o batuque é ainda
praticado nas cidades de T ietê, Capivari e Piracicaba, no estado de São Paulo.
7
U m a colônia de ouvintes
16. Vocêtrata amor em brinco. Música dc Marcos Portugal, letra dc Domingos Caldas
Barbosa.
Religiosidade na colônia
22. Stabat Mater. Andante moderato. Pe. João dc D eus dc Castro Lobo.
11
A gradecim entos
12
9. /I Ia vil/n voy. Anônimo, séc. XVI.
(Cancioneiro d ’Elvas)
C ompanhia P apagalia :
Anu Luiza Lima, João Lima, Eduardo Areias, Fernanda Sala Barrios, Eduardo
Klein.
T écnico d c som: João Rcgis lima
Fonogramas gentilm ente cedidos pelos intérpretes, do CD A m de Vera Cruz.
10. Cantos tupinambcís (recolhidos por Jean dc Lérv), pesquisa Anna Maria Kicffcr.
Salmo 130. M artinho Lutcro, pesquisa H cnriqucta Fernandes Braga.
11. Qnien te visitv Isabel? Pe. José de Anchieta, 1595. Música dc Francisco Salinas
1577, pesquisa Rogério Budasz.
13. ZeiJierasiti lenijtaot El. Isaac Aboab da Fonseca, 1646, pesquisa Anna Maria Kief-
fer c David Kullock.
9
RELAÇÃO DAS PEÇAS CONTIDAS NO CD
A Id a d e M édia
O cancioneiro ibérico
8
tinha tanto dc tradicional como dc inovador, perm itindo a liberdade dc acoplar le
tras diferentes sobre a mesma melodia. Uma obra como Venid a suspirar al verde
prado foi usada como dispositivo catequizador com outra letra por José dc Anchicta:
tornou-sc Venid a suspirar con Jesus Amado.
N este momento, já em terras tropicais, tem -se m uito de obscuro como de indagador
c dc recriação. O bviam ente as práticas musicais européias chegaram como mais
uma força em território indígena c impuseram , com suas possíveis articulações para
aqueles momentos iniciais, sua m aneira m onoteísta dc ver o mundo. Jcan de I ,cry
recolheu cantos dos índios tupinam bás, H ans Stadcn invocou a melodia e o texto do
De Profundis dc Lutcro, na iminência de sua m orte pelos índios. E nquanto isso a
colônia se fazia como um imenso e m ultifacctado Portugal.
N esta parte, apresentam os um pouco deste universo das festas, cujas articulações se
estendem das práticas autóctones e populares às atividades catequistas, representa
das pela festa de Santa Isabel, c judaicas. N este momento, o contraponto franco-
flamengo c o barroco de Van Eyck através dos em preendim entos dc Maurício de
Nassau, se misturam ao tem po circular dos índios. A recriação dos cantos judaicos
entoados no século XVII na Sinagoga do Recifc é representada aqui pelo primeiro
poema hebraico conhecido das Américas, o Zecher asili teniflaot El. Da mesma for
ma, as interferências e ocorrências da cultura popular nas tradições colonizadoras
aparecem cm dois cantos do Ciclo do Boi.
U M A C O L Ô N I A D E O U V I N T E S (faixas 15 a 19)
O período colonial brasileiro é um a das épocas mais instigantes da História do Bra
sil, sobretudo no que se refere às práticas culturais, resultantes dc uma miscigena
ção forte e diversificada e que representou, num dos matizes da sociedade, a menta-
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IDADE MÉDIA (faixas 1 a 3)
Na Idade M édia o m undo era basicamente modal. Até o século XIV, época da Missa
de Notre Dame de G uilherm e de Machaut, a m onodia não era som ente um estilo de
cantar a D eus, era tam bém a representação da própria unidade da Igreja.
O C A N C IO N E IR O IBÉRICO (faix as 4 a 9)
A polifonia foi um dos grandes sintomas dos séculos XV e XVI mas não superou a
monodia. A prática tem ária dos vários sons sim ultâneos, que antes encontrava restri
ções na Igreja e na m aioridade dc seus teólogos e teóricos, passou a ser uma repre-
sentatividade harmônica c, por isso, bela e construtiva. A Península Ibérica foi um
dos maiores centros desta prática c uma da maiores referências da cantiga polifônica
profana. Em Portugal as coletâneas destas músicas, conhecidas como Cancioneiros,
combinam traços ibéricos tradicionais c algumas delas remontam ao período trova-
doresco galaico-português, sobre um contraponto franco-flamengo. N a maioria das
vezes as formas poéticas e musicais predom inantes nos cancioneiros podem ser agru
padas cm vilancicos (ou vilancetcs), cantigas e romances. Boa parte destas obras
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