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THE

MYSTERIUM LECTURES

Uma jornada pelo


Mysterium coniunctionis
de C. G. Jung

volume 1 - OC 14/1

EDWARD F. EDINGER

edição inglesa
transcrita e editada por
JOAN DEXTER BLACKMER

1
AUGUSTO REIS
(11)5549-1923 auseba@uol.com.br
THE
MYSTERIUM LECTURES

publicado originalmente
em inglês por
INNER CITY BOOKS
Toronto, Canadá, 1995

tradução de Augusto Reis


tratamento de imagens por Felippe Romanelli

Esta tradução foi feita para uso pessoal e restrito


e não se destina a ser comercializada ou vendida de nenhuma maneira.

Sempre que possível as referências bibliográficas e sua paginação foram adaptadas a obras
traduzidas e publicadas em português. A numeração dos parágrafos desta tradução foi adaptada à
edição brasileira, pois ela é diferente na edição americana à qual Edinger se refere. [n. do t.]

2018

2
PRÓLOGO DO EDITOR

Mysterium coniunctionis tem sido um objeto de fascínio para mim desde meu primeiro conta-
to com o trabalho de Jung, há quase vinte e cinco anos atrás. Por vários anos eu o li e me
debati sem sucesso para apreender o seu significado intensamente velado. Suas imagens e
frases insistiam em voltar a aparecer em minha prática pessoal, embora sempre revestidas
dos enigmas que os símbolos nos apresentam — símbolos que desafiam a solução.

Assim, foi com grande satisfação que fiquei sabendo do longo seminário sobre o Mysterium
coniunctionis que Edward Edinger apresentou entre 1986 e 1987 no Instituto Jung de Los
Angeles, e ansiosamente encomendei as gravações de áudio.

Com o texto de Mysterium em uma mão, a voz de Edinger em meus ouvidos e diversos di-
cionários ao meu lado, lancei-me uma vez mais ao estudo do volume que durante tanto tem-
po me fascinou e me manteve cativo diante de seus belos porém impenetráveis portais. Fi-
nalmente havia encontrado alguém que possuísse as chaves dos enigmas e que pudesse pro-
porcionar o fio de Ariadne que me guiaria através do labirinto. Guiado pela lanterna da aguda
inteligência e longa experiência de Edinger, os tesouros acumulados pelos prodigiosos esfor-
ços de Jung nas minas de ouro da alquimia aos poucos se tornaram mais visíveis.

Logo em seguida eu quis dispor de um texto das palestras, quando então lancei-me à tarefa
de transcrever as gravações. O material provou ser de grande valor prático, de forma que
sugeri a Edinger que o colocasse por escrito para ficar disponível a outros que se interessas-
sem por Jung e que também estivessem, como eu, desconcertados pelas complexidades de
Mysterium. Edinger encorajou-me a tentar.

À medida que o trabalho avançava, desde o outro lado do continente Edinger pacientemente
respondeu a centenas de questões que iam desde bagatelas até questões cósmicas. Mysterium
começou gradativamente a tomar forma, e foi de fato uma excelente notícia quando Inner
City Books concordou em tomar para si a tarefa de publicar o trabalho.

Ao editar as transcrições das palestras, procurei manter inalterado o tom informal e pessoal
dos originais.* Para ajudar aqueles que estiverem lendo estas palestras simultaneamente com

*Para os interessados em ouvir a apresentação de Edinger, as gravações das palestras encontram-se disponíveis
na Livraria C. G. Jung de Los Angeles.

3
o texto original do Mysterium coniunctionis, citei cada um dos parágrafos de Mysterium que
fossem relevantes aos comentários e reflexões de Edinger. Também incluí as ilustrações men-
cionadas no seminário e acrescentei outras.

Jung é o grande pioneiro do éon que se inicia. Por meio de seu hercúleo trabalho nas minas
alquímicas ele foi capaz de extrair um magnífico tesouro de material psicológico. Edinger
soube mediar as vastas descobertas de Jung conectando-as às nossas experiências individuais
e realidade diária. Edinger avança através de Mysterium parágrafo por parágrafo, dissecando
e amplificando os compactos agrupamentos de imagens de maneira a torná-los compreensí-
veis, e nos ensina a realizar o mesmo com outras imagens que ele não chega a citar.

Edinger partilha conosco as ferramentas práticas que desenvolveu durante os muitos anos de
experiência com a arte e ofício de psicoterapia. Do começo ao fim de seu vívido esclareci-
mento do Mysterium, ele tece o que realmente importa para um trabalho descritivo da ana-
tomia da psique, um manual de laboratório da psicologia do desenvolvimento e uma genero-
sa instrução acerca da prática clínica. Para mim, Edinger prestou-nos um serviço de inestimá-
vel importância.

Gostaria de agradecer a algumas pessoas, mulheres em particular, que também se esforçaram


para dar realidade concreta a Mysterium coniunctionis. Marie-Louise Von Franz trabalhou ao
lado de Jung por muitos anos garimpando o ouro alquímico. Barbara Hannah, que foi quem
me apresentou ao Mysterium, e que amou e viveu esta obra, foi a primeira a traduzir o livro
do alemão para o inglês. E também gostaria de agradecer a minha amiga Una Thomas, fiel
registradora de tantas palestras de Von Franz. Foi precisamente ela que me sugeriu transcre-
ver as palestras de Edinger.

Agora que The Mysterium lectures estão lançadas, desejo que elas possam ser um guia útil
para percorrer a grande cidade da psique representada pelo livro Mysterium coniunctionis de
Jung.

Joan Dexter Blackmer


Wilmot Flat, NH

4
NOTA DO AUTOR

Quero agradecer efusivamente à minha amiga e colega Joan Blackmer por seu opus amoris.
Seus talentos e devoção tornaram-na capaz de realizar uma tarefa que temi jamais encontra-
ria uma inteligência, disposição e coração para levá-la a termo. Também agradeço a Daril
Sharp, editor de Inner City Books, por sua energia e pela iniciativa de trazer a psicologia
jungiana ao mundo, e em particular à sua disposição de comprometer-se com um projeto
desta magnitude.

Possam nossos mútuos esforços levar o entendimento do trabalho de Jung à profundidade


que ele gostaria que fosse conhecida.

Edward Edinger
Los Angeles

5
C. G. Jung em 1947, aos 72 anos.

6
1
INTRODUÇAO
E PARÁGRAFOS 1-12

Quero dar-lhes as boas vindas a um empreendimento bastante ambicioso. Encontrar nosso


próprio caminho através de todo este livro é um projeto bastante difícil. Mysterium coniuncti-
onis é na verdade a summa de toda a psicologia jungiana, e acredito que posso afirmar que
se você conseguir estabelecer uma verdadeira relação vital e operativa com este livro, você
poderá conquistar, simultaneamente, uma relação viva e operativa com a psique autônoma.

Devo adverti-los que haverá muitas dificuldades. É bastante provável que por diversas vezes
vocês se vejam confusos aqui e ali no decorrer deste ano, e provavelmente diversas vezes.
Isto é algo absolutamente inevitável porque Mysterium é como a própria psique: ela é oceâ-
nica e levá-la a sério sempre traz o risco de naufragar.

Em minha opinião, este livro será um importante objeto de estudo por séculos, de maneira
que, obviamente, jamais seremos capazes de dominá-lo em um breve curso. Mas o que acre-
dito ser possível é que alguns de vocês consigam pelo menos se tornar capazes de estabele-
cer com ele uma conexão tal que possa florescer durante uma relação que dure a vida toda.
Minha esperança é a de que, na medida em que se esforcem, e na medida em que cada perí-
odo de confusão seja ultrapassado, a admiração por este magnífico trabalho cresça progressi-
vamente em vocês.

O que torna Mysterium tão exasperante é que cada parágrafo e cada sentença nos confronta
com material que não nos é familiar, e isso é muito desafiador para nossa própria vaidade.
Da mesma forma, vocês notarão imediatamente as frequentes citações em latim e grego.
Jung se vale destes termos de maneira livre e o faz de propósito — existe aqui um verdadeiro
e deliberado método. Mas isso se torna particularmente difícil para aqueles dentre nós que
tiveram uma típica educação americana porque, para nós, as línguas clássicas há muito se
tornaram algo distante. Na minha época o latim ainda era ensinado no ensino médio, mas
nós nos esquecíamos dele tão logo terminavam as provas, e acredito que ele nem seja mais
ensinado. E certamente, no que diz respeito ao grego, nem pensar! A língua grega não figura
na educação americana desde o começo do século 20.

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Entretanto, espero que tentem prestar atenção a todos estes termos estrangeiros porque eles
sempre constelam reverberações inconscientes. Mais da metade das palavras do inglês são
derivadas do latim e do grego. Assim, o latim e o grego constituem o inconsciente de nosso
idioma, e estar cônscio disso traz à tona dimensões inconscientes da psique. Então, mesmo
que a maioria dos termos latinos esteja traduzida no texto, sugiro que mantenham sempre
um dicionário de latim à mão.

Já o grego representa um problema mais difícil, mas para nossa empreitada eu sugiro que
vocês se tornem capazes de pelo menos transliterar as palavras gregas. Vocês serão capazes
de dominar o alfabeto grego em uma ou duas horas de estudo, e dispondo desse conheci-
mento vocês serão capazes de transliterar as palavras em grego, pois no texto há muito me-
nos grego do que latim. Se fizerem este esforço, uma série de novos significados emergirá,
significados que, de outra forma, permaneceriam invisíveis.

Por exemplo, na nota de rodapé 23 do parágrafo 5, encontramos a frase “Uma concepção


aparentada, proveniente da Antiguidade, parece constituir a ελιακε τραπεξα dos mistérios
de Orfeu”. Transliterada, esta expressão se torna h-e-l-i-a-k-e t-r-a-p-e-z-a. Uma vez transli-
terada, você pode começar a fazer as associações destas palavras gregas com as suas corres-
pondentes. Heliaké lembra-nos, por exemplo, a palavra hélio, o elemento gasoso descoberto
no sol, ou então a flor do heliotrópio, o girassol, ou então o deus solar Hélios; assim, desco-
brimos de imediato o que ela significa. Trapeza leva-nos a lembrar da figura geométrica do
trapézio, com seus quatro lados, e aprendemos que trapeza é a palavra grega para mesa.
Pequenos insights como esses criam faíscas, e quando obtemos várias destas faíscas elas se
transformam numa incandescência; a incandescência final transforma-se no efeito psicológico
de termos dominado uma parte do material.

O Mysterium não pode ser lido da maneira pela qual lemos um livro comum: ele deve ser
digerido da mesma maneira com a qual lidamos com um sonho. Inicialmente quase toda sen-
tença vai confrontar-nos com algo que é mais ou menos desconhecido, e isso resulta em uma
longa série de derrotas para o ego. Mas se formos capazes de nos desidentificar com o ego,
então conseguiremos ir em frente.

Notem que a linguagem do Mysterium não é exatamente a linguagem do inconsciente, da


maneira como aparece nos mitos, sonhos e contos de fada. Não se trata, de fato, de um mi-
to, sonho ou conto de fadas, mas sim de seu conteúdo, de sua essência; é o conteúdo do
inconsciente e, mais especificamente, o conteúdo do inconsciente coletivo ou objetivo. Ora,
estes conteúdos nos são comunicados e mediados através da consciência de Jung. Embora
ele esteja falando a respeito dos conteúdos factuais e objetivos da psique, ele sempre os esta-
rá transmitindo por meio de algo que só posso chamar de uma consciência magistral, de
mestre.

Desde o início é importante compreender que o método de abordagem de Jung é rigorosa-


mente empírico. Ele coloca diante de nós, com absoluta objetividade, os fatos da psique. Es-
tes fatos não constituem, no entanto, os fatos da psique pessoal: os fatos de nossa psique
pessoal são completamente diferentes porque cada indivíduo tem o seu próprio caminho e a

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sua própria história de vida. Então o que Jung nos, apresenta são os fatos da psique objetiva,
a psique transpessoal. E são especificamente estes fatos que se manifestam na alquimia. Ele
explica sua rationale (análise racional, base lógica de um fato, razão física) em uma passagem
de sua outra obra Estudos Alquímicos:

Devido à natureza coletiva [de uma] imagem [arquetípica], devido à extensão dela muitas vezes é
impossível determinar seu significado a partir do material associativo de um [único] indivíduo. [Daí
que] a necessidade de um estudo comparativo dos símbolos se impõe à psicologia médica ... Para
tanto, o estudo deve remontar a épocas da história humana em que a formação de mitos se pro-
duzia sem dificuldade, isto é, quando ainda não se exercia nenhuma crítica do conhecimento sobre
as representações engendradas, e quando, por conseguinte, estados de fato desconhecidos em si
mesmos se exprimiram em determinadas formas de representação visual. A época desse gênero
mais próxima cronologicamente de nós é a da filosofia natural da Idade Média ... É nesta última
que desembocaram, como num reservatório, os mitologemas mais duráveis, isto é, os mais impor-
tantes da Antiguidade.1

Ora, quando falamos em “filosofia natural medieval” estamos falando de alquimia. Jung afir-
ma que “o estudo deve remontar a épocas da história humana em que a formação de mitos
se produzia sem dificuldade, isto é, quando ainda não se exercia nenhuma crítica do conhe-
cimento sobre as imagens”. Isso significa que, naquela época, um indivíduo poderia fantasiar
com absoluta liberdade, e seria capaz de descrever, usando as categorias de sua própria fan-
tasia, todos os fenômenos do mundo exterior da maneira como eram observados no tubo de
ensaio ou retorta. Infelizmente não se pode mais fazer isso dentro da ciência moderna, por-
que agora se impõe, para usar uma expressão da moda, a “crítica epistemológica”. Quando
fazemos uma clara distinção entre uma fonte de dados subjetiva e uma fonte de dados objeti-
va, trata-se de “crítica epistemológica”.

Sucede que os alquimistas simplesmente ignoravam isto, e então sua fantasia podia fluir li-
vremente em suas descrições. Como resultado, temos o maravilhoso panorama da psique
objetiva revelado diante de nossos olhos. Foi precisamente esta vasta literatura alquímica, que
se estendeu por vários séculos, que Jung conseguiu dominar por meio de um extraordinário
esforço. Ele conseguiu condensar, extrair, sumarizar, e apresentá-la toda entre as duas capas
do Mysterium. Trata-se de uma tarefa notável.

Jung afirma que este método científico de pesquisa comparativa da história dos símbolos é
similar à relação que há “entre a anatomia comparativa e a anatomia humana”. 2 A anatomia
comparativa estuda a estrutura de várias espécies de seres vivos no decurso do processo evo-
lutivo. Quando realizamos pesquisa comparativa de símbolos, estamos fazendo algo similar à
anatomia da psique. A anatomia da psique consiste de imagens, e é sobre isso que este livro
trata. Aqui vemos outra passagem de autoria de Jung, agora retirada do ensaio de Jung “Es-
pírito e vida”:

A psique é constituída essencialmente de imagens. A psique é feita de uma série de imagens, no


sentido mais amplo do termo ... uma estrutura riquíssima de sentido e propósito, uma objetivação

1 “A árvore filosófica”, OC 13, par. 353. [OC se refere à coleção Obras Completas de C. G. Jung].
2 Idem, nota 36.

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das atividades vitais expressa através de imagens. Corpo e mente são ... a expressão de uma só
entidade ... Exteriormente este ser vivo se manifesta sob a forma de um corpo material, e interi-
ormente sob a forma das atividades vitais que se dão em seu interior.3

Ora, estas imagens não são de forma alguma aleatórias: elas são altamente organizadas e
interconectadas. Muito embora a variação das imagens nos indivíduos possa ser quase infini-
ta, mesmo assim todas as imagens psíquicas derivam de um número bem limitado de padrões
recorrentes uniformes. É isso que chamamos de arquétipos. E se pretendermos não nos per-
der nos detalhes particulares de nossa imagética inconsciente, ou nas imagens do inconscien-
te de outra pessoa, nós de fato precisamos ter um conhecimento abarcante destas uniformi-
dades psíquicas. É somente com este conhecimento que poderemos reconhecê-los quando
eles ocorrerem em suas manifestações particulares e pessoais.

Contudo a tarefa não é tão fácil, já que para aprender acerca destas uniformidades nós preci-
samos levar as imagens a sério, e isto acaba indo contra uma difundida e coletiva predisposi-
ção contrária. Todos nós aprendemos com nossa educação coletiva a depreciar imagens e a
nos concentrar só em ideias e formações conceituais, e também a supor que a psique e o ego
são instâncias equivalentes. Tudo isso tem o efeito de nos cegar para a realidade da psique
enquanto entidade autônoma e objetiva. E eu também gostaria de lembrar que a realidade da
psique acaba de ser descoberta! Ela foi descoberta ainda ontem, e ninguém ainda a conhece
bem. A descoberta da realidade da psique e o processo de levar imagens a sério pertencem
ambos ao mesmo fenômeno: eles andam lado a lado.

Vejam, nossa consciência racional encontra-se tão identificada com a psique que ela não é
capaz de perceber a realidade objetiva das imagens psíquicas. A partir deste ponto de vista,
as imagens nada mais são senão um derivativo da consciência. Todos nós participamos desta
consciência racionalística, então convém não projetá-la nos outros. Este é um problema para
cada um de nós, o que torna o estudo da anatomia das imagens psíquicas extremamente
difícil. É muito penoso para cada um de nós perceber meras imagens como sendo entidades
psíquicas substancias, mas é exatamente isso que elas são, e esta é a forma que Jung as trata
no Mysterium. As imagens que ele estuda têm para ele o mesmo grau de realidade que qual-
quer outro espécime biológico — seja uma girafa, um hipopótamo ou uma tartaruga.

Poder ser bastante útil, para a atitude necessária para aventurar-se neste livro, considerar três
diferentes tipos de pensamento. Em Símbolos da transformação, Jung discute dois tipos de
pensamento.4 Um deles é o pensamento direcionado ou dotado de propósito: trata-se de um
pensamento linear e conduzido pelo ego. O segundo tipo é o pensamento de fantasia — o
pensamento do inconsciente — no qual o ego repousa e vai por assim dizer dormir, enquanto
permite que o inconsciente siga qualquer processo associativo que deseje. Trata-se de sonhar
acordado, e o processo se dá sem nenhum esforço; ele não consome nenhuma libido consci-
ente, enquanto o pensamento dirigido é uma tarefa cansativa.

3 A dinâmica do inconsciente, OC 8, par. 618-9.


4 OC 5, par. 4s.

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Há, porém, um terceiro tipo de pensamento. Trata-se daquilo que chamo de pensamento em
rede ou de agrupamento,* e ele é na verdade uma união do pensamento fantasia com o pen-
samento dirigido. O pensamento em rede não é nem linear e nem sinuoso e associativo. Ele
é dotado de propósito, mas também comprometido com a elaboração de uma rede de signi-
ficados expandidos derivados de uma imagem central. Trata-se de um pensamento que se dá
à volta de um centro, que se move de maneira radial a partir de e em direção a um centro,
uma circambulação. Ele vai e volta retornando à imagem central de novo e de novo, e acaba
por construir um rico agrupamento de associações de imagens interconectadas — algo como
uma teia de aranha. O resultado deste tipo de pensamento é uma rica tapeçaria de elabora-
ções tecida à volta de uma imagem central.5 É precisamente isso que Mysterium é. E se to-
marmos estas estruturas como um todo, a rede resultante é uma imagem extremamente rica
da anatomia da individuação, com todas as demais imagens interconectadas dissecadas para
nós.

Mysterium é um livro estritamente descritivo. Ele descreve a anatomia da psique. É um livro


que traz fatos, e não teorias, e torna-se um livro de estudo difícil pela mesma razão que um
livro de anatomia humana é difícil. No meu primeiro ano de escola médica, foi com a anato-
mia que tive mais dificuldade. De repente me vi confrontado com aquele mar de fatos, cada
um deles com um nome estranho e desconhecido. Uma pessoa pode se sentir inundada por
não estar familiarizada com nenhum deles, e foi assim que me senti até conseguir me orien-
tar. Quando estudei Mysterium pela primeira vez, tive aquela mesma sensação.

Ora, para poder apreender os fatos da anatomia, uma pessoa precisa experimentá-los; é
preciso ir para a sala de anatomia e começar a dissecar cadáveres; só então os fatos do livro
de anatomia começam a tomar sentido, pois então podemos relacioná-los com algo que po-
de ser visto. Psicologicamente vivemos a mesma experiência com a análise — primeiramente
com nossa própria análise, nossa própria auto-dissecação por assim dizer. É só depois disso
que vamos viver esta experiência com o trabalho analítico com outras pessoas. Assim, é por
meio da análise que dissecamos a psique e sua estrutura subjacente.

Quero enfatizar que todos vocês tenham em mente que Mysterium é um livro que descreve
imagens. A palavra mágica, a palavra-chave para este livro é “imagens”. Para que não per-
cam a orientação, vocês devem prestar atenção às principais imagens de cada um de nossos
encontros. Perguntem sempre a si mesmos: “com quais imagens estou trabalhando aqui?”.
Em alguns casos pode ser bem útil desenhar um quadro da rede de imagens interconectadas
que Jung escolheu para elaboração. Também aconselho vocês a ler os parágrafos estudados
em Mysterium duas vezes: uma antes da palestra e outra depois.

Aqui está a minha lista das principais imagens de nosso primeiro encontro:

1. Os opostos: arranjados em pares e em quaternidades


2. A mesa solar
3. Ostanes preso na Heimarmene
*
“Network or cluster thinking” no original [n. do t.].
5Para um exemplo de tais agrupamentos de ideias correlatas, ver os diagramas que precedem cada capítulo de
EDINGER, Anatomia da psique: simbolismo alquímico na psicoterapia ; ver também abaixo, fig.11-1.

11
4. A coroa
5. O pelicano ou septenário mágico
6. A Ecclesia spiritualis
7. Mercurius como promotor da paz, e Mercurius como Homem Original dispersado
por todo o mundo

Sete imagens principais. Ora, se reduzirmos nossa tarefa a isto, ela se torna viável, e então as
imagens ou associações subsidiárias poderão ser agrupadas sob as principais categorias. É
isso que vou tentar fazer esta noite e daqui em diante: usar cada encontro para sintetizar uma
pequena lista de imagens principais, e então falar um pouco sobre cada uma delas. Minha
esperança é torná-las suficientemente vívidas de maneira que elas possam ficar gravadas na
memória. A maneira pela qual podemos memorizar alguma informação é atribuir a ela cone-
xões associativas dotadas de significado. Se não formos capazes de encontrar tais conexões,
o que quer que seja que estejamos tentando lembrar mergulha no inconsciente em pouquís-
simo tempo.

1. Os opostos

Jung começa o Mysterium com uma frase impactante:

Os fatores que se unem na conjunção são concebidos como opostos que se opõem como inimigos
ou se atraem amorosamente um ao outro.

Esta frase é um resumo perfeito de todo o livro, e mostra o que será o assunto básico de
toda a obra: a união dos opostos. A frase também nos mostra que os opostos podem ser de
duas diferentes naturezas: ou eles se unem em amor, ou então lutam em conflito. Eles são o
dínamo da conjunção. E também lhes recordo o título do livro: O mistério das conjunções.
Assim, toda vez que encontrarmos um sonho que envolva atração ou inimizade entre duas
figuras, já sabemos que ele trata de pelo menos um eco do simbolismo central da coniunctio.
E uma vez que tivermos nos tornado totalmente familiarizados com esta imagética, consegui-
remos perceber um material inconsciente que até então se encontrava completamente invisí-
vel.

A psique objetiva ou transpessoal está sempre brilhando através do material inconsciente,


mas se estivermos exclusivamente preocupados com a dimensão pessoal só seremos capazes
de ver os aspectos pessoais do material. É certo que quase todos os sonhos encontram-se
repletos de aspectos pessoais do sonhador, mas em grande parte deles a psique objetiva bri-
lha ao fundo. E se não formos capazes de vê-la, não seremos capazes de apontá-la ao anali-
sando. Esta é mais uma grande vantagem de estudar esse material: aprender a distinguir as
imagens da psique objetiva.

Nos próximos poucos parágrafos, Jung chama a atenção para o fato de estes opostos terem
a tendência de se arranjar sempre em pares ou quaternidades. Então aqui temos imagens
para ficar atentos em qualquer material onírico — coisas que se apresentam em grupos de
dois ou quatro. No parágrafo 2 ele dá mais exemplos particulares. Ele afirma, por exemplo,
que com alguma frequência os pares aparecem com um caráter de realeza: rei e rainha, im-

12
perador e imperatriz, e um exemplo disso pode ser encontrado nas figuras do Rosarium que
Jung analisa em “A psicologia da transferência”.6 Também encontramos os assim chamados
pares teriomórficos — as formas animais. Estas formas se expressam comumente como um
par de animais em conflito, e Jung cita diversos exemplos de tais imagens em várias figuras
alquímicas, embora não se dê ao trabalho de reproduzi-las em sua obra — você tem que fazer
isso por si mesmo. Eu fiz isso e vou mostrar algumas.

Por exemplo, dois peixes no mar, nadando em direções opostas (fig. 1-1); leão e leoa (fig. 1-
2); um lobo e um cão lutando (fig. 1-3); uma águia voando presa por uma corrente a um a-
nimal terrestre (fig. 1-4). Duas destas figuras foram tiradas do Livro de Lambspring ao qual
Jung se refere no parágrafo 3. Ele também menciona as imagens do veado e unicórnio se
encontrando na floresta, pássaros alados e pássaros sem asas, ou dragões, e pássaros com
plumas e sem plumas.

No parágrafo 4 ele explica o significado psicológico dos pares reais ou pares de animais:

A elevação da figura humana a rei ou divindade, bem como o rebaixamento na representação te-
riomórfica, indica que os pares de opostos representam um caráter que transcende a consciência.

Esta é uma questão bastante importante. O fato de que os pares de opostos serem represen-
tados de um lado como dotados de caráter real — algo maior do que a comum vida humana
—, e por outro lado por algo abaixo da vida humana, indica “um caráter que transcende a
consciência”.

Eles não pertencem à personalidade do ego, mas a ultrapassam ... Os pares de opostos formam
antes a fenomenologia paradoxal do Self, que é a totalidade humana.

Por exemplo: vocês têm um sonho com dois animais envolvidos em um combate mortal —
um sonho não raro, a propósito — e vocês imediatamente fazem uma associação àquela i-
magem: “Sim, é uma imagem de um conflito assim e assim que ando vivendo”. Com este
comentário de Jung em mente, vocês então poderão compreender que o sonho se refere ao
caráter transpessoal do par de opostos que estão se digladiando dentro de vocês.

Atenção: nunca se identifiquem com eles pessoalmente: isso não faz com que o conflito seja
resolvido ou banido. Entretanto, se de fato forem capazes de compreender o que isso signifi-
ca — algo que não é tão fácil quando o conflito está nos consumindo internamente —, se
forem capazes de lidar com essa situação, ela então se modifica drasticamente e muda a rela-
ção de vocês com o conflito.

6 Ver A prática da psicoterapia, OC 16, par. 402ss; ver também EDINGER , The mystery of the coniunctio:
alchemical image of individuation, parte 2.

13
Figura 1-1: Dois peixes no mar.

Figura 1-2: Leão macho e fêmea.

14
Figura 1-3: Lobo e cão lutando.

Figura 1-4: Águia presa a um animal terrestre.

15
É só ao se desidentificar com o conflito que a situação psicológica se coloca de forma que
uma terceira possibilidade, reconciliadora, possa emergir — e com frequência ela o faz. Entre-
tanto, essa terceira possibilidade jamais poderá emergir, ela não encontra nenhum espaço
para surgir, enquanto o ego não parar de se identificar com uma ou outra faceta do conflito.

2. A mesa solar

No parágrafo 5 Jung fala a respeito do fato de que os opostos não somente se arranjam em
pares, mas também em quaternidades. Como exemplo, ele menciona a interessante figura do
Viridarium chymicum de STOLCENBERG (fig. 1-5). Trata-se de uma figura de uma mesa
redonda com quatro figuras femininas sentadas à volta, cada uma delas com uma cabeça em
forma de sol.

Estas quatro figuras representam o sol na posição em que se situa no círculo do zodíaco du-
rante as quatro estações do ano. Uma representa a primavera, outra o verão, o outono e o
inverno. Colocado na mesa defronte a cada uma das quatro figuras está o signo astrológico
correspondente a cada figura: o carneiro para Áries, o caranguejo para Câncer, a balança
para Libra e o bode para Capricórnio. E Jung nos diz:

As deusas representam as quatro estações do ano ... e simultaneamente os quatro graus de aque-
cimento, como também os quatro elementos “reunidos” na mesa redonda.

Esta é uma imagem bastante interessante que cresce lentamente dentro de nós à medida que
nela refletimos. Se, por acaso, pensamos nela como se fosse uma fotografia do sol durante
suas quatro estações do ciclo anual, poderíamos nos perguntar quem teria feito tal fotografia.
Em outras palavras, esta foto teria de ser tirada de uma posição que estivesse fora do tempo.
Ora, tempo e espaço são categorias da consciência — elas não se aplicam ao inconsciente.
Esta imagem é, então, um lembrete da afirmação que Jung fez a respeito do “caráter trans-
pessoal do par de opostos”. A figura é uma representação gráfica do fato de que os opostos
são transpessoais; eles são representados de uma forma que é transtemporal, situados além
da categoria do tempo e espaço.

A todo instante nos deparamos com imagens do mesmo caráter nos sonhos; mas frequente-
mente a referência a elas é tão sutil que, se não estivermos alertas para isso, ela pode nos
escapar. No entanto, se você estiver familiarizado com este tipo de imagética, você imedia-
tamente a reconhecer, e posso lhe garantir que o inconsciente adora ser visto e reconhecido.
Quando você entende a mensagem e é capaz de dizer: “Ah, isso pertence à natureza trans-
pessoal dos opostos!”, este insight muito provavelmente será seguido por uma resposta do
inconsciente que diga: “Isso mesmo!”.

16
Figura 1-5: O sol como as quatro estações

3. Ostanes preso na Heimarmene

Continuando sua elaboração, Jung nos dá então outro exemplo do que em essência é a
mesma imagem, embutido em um texto um pouco obscuro. Como é um pouco trabalhoso
extrair o exemplo, vou ler o texto do parágrafo 5:

“Ostanes disse: ‘salva-me, ó meu Deus, pois encontro-me entre duas brilhâncias conhecidas por
sua perversidade, e também entre duas fracas luzes; cada uma delas atingiu-me e não sei como de-
las me livrar. E me foi dito: vá até Agatodaimon o Grande e peça ajuda a ele, e saiba que há em
você algo da natureza dele que jamais será corrompido ... E quando ascendi pelo ar ele me disse:
‘Tome o filho do pássaro que foi misturado à vermelhidão e estenda o leito para o ouro que surge
do frasco, e coloque-o em seu vaso para que dali ele não possa escapar, exceto quando desejares,
e deixe-o ali até que a umidade tenha desaparecido’”.

Bem, quando Jung lê esta passagem, ele consegue ver a seguinte imagem:

17
Provavelmente não seremos capazes de ver a imagem imediatamente, mas ele tenta esclare-
cê-la para nós. Ele nos diz que as “duas exaltadas brilhâncias” e as “duas fracas luzes” se
referem a Marte e Saturno por um lado, e à Lua e Vênus por outro.

Este diagrama também é uma figura de Ostanes preso na Heimarmene. Ostanes é o X no


centro, cativo entre Marte embaixo e Vênus acima, e entre a Lua à direita e Saturno à es-
querda. O domicílio de cada um desses planetas é o mesmo dos signos zodiacais que apare-
ceram na figura anterior da mesa solar. Assim, Ostanes, devido a determinados acontecimen-
tos, ficou preso no meio da mesa solar e encontra-se em apuros. Ele está dizendo: “Salve-
me! Estou em apuros porque cada um deles me alcançou”. Heimarmene é o termo antigo
para designar a compulsão à qual os astros nos submetem — o destino — e Jung diz que
Ostanes, em razão daquilo de que está se queixando, deve se submeter à Heimarmene.

O fato de Ostanes estar situado entre estes dois pares de opostos indica que ele ocupa o
centro da mesa solar. Ostanes encontra-se identificado com o centro do mandala, e isto cor-
responde a uma identificação com o Self — uma condição extremamente perigosa de se es-
tar. A identificação com o Self é sempre acompanhada de fragmentação e desmembramento,
razão pela qual não é de se surpreender que ele esteja pedindo por socorro. Nestas condi-
ções, o ego é posto totalmente de lado e é possuído primeiro por um e depois por outro dos
opostos — e é isto o que se chama Heimarmene.

Mas o texto mostra a Ostanes como livrar-se desta identificação com o Self: ele precisa dar-
se conta de suas faltas e consultar Agatodaimon. “Agatodaimon” representa o espírito bon-
doso, o bom daimon. Ao reconhecer sua deficiência, e ao consultar uma fonte de sabedoria
maior do que a do seu próprio ego, Ostanes renuncia à posição central. Ele a transfere para
Agatodaimon, por assim dizer. Em última análise, ele transfere a posição central para “o filho
do pássaro”, um termo simbólico para a Pedra Filosofal. Já que Ostanes é um alquimista, é a
Pedra Filosofal que supostamente se encontra sendo criada. No entanto, quando você está
tentando trabalhar num projeto desta monta, o risco é que você se acidente em sua própria
criação e se torne você mesmo identificado com a Pedra Filosofal. É então que você pode
recair na mesma dificuldade de Ostanes.

4. A coroa

Mas Ostanes consegue escapar deste problema e o texto continua no parágrafo 6. Esta é a
fala de Hermes:

A ti eu faço surgir os espíritos de minha irmandade [os planetas], Ó Sol, e os transformo em uma
coroa para ti, uma coroa que jamais foi vista; e faço com que tu e eles permaneçam em meu inte-
rior, e tornarei teu reino vigoroso.

Desta maneira, assim que Ostanes consegue se desidentificar do Self, a sétupla coroa pode
ser sintetizada. Jung escreve:

A coroa significa a totalidade régia que paira acima da Heimarmene (destino) e representa a uni-
dade. Isto nos lembra a coroa de 7 ou 12 raios de luz que a serpente Agatodaimon carrega sobre
as gemas gnósticas [fig. 1-6].

18
Isso então esclarece que a coroa, sintetizada ou criada quando Ostanes se desidentifica do
Self, corresponde a uma síntese do mandala ou totalidade enquanto entidade objetiva, e não
a uma totalidade com a qual ele se encontrava subjetivamente identificado.

Jung serve-se de outra imagem bastante interessante no parágrafo 7, outra quaternidade du-
pla, para ilustrar de que maneira os opostos se unem (fig. 1-7). Ele extrai a imagem do man-
dala desta citação:

Nele (isto é, no mar dos indianos) estão as figuras do céu e da terra, do verão, do outono, do in-
verno e da primavera, e também a masculinidade e a feminilidade. Se denominas isto como espiri-
tual, então o que fazes é provável; se o denominas como corporal, então dizes a verdade; se o de-
nominas como celeste, então não mentes; se o denominas como terrestre, então relataste corre-
tamente.

Figura 1-6: Gema e amuleto gnóstico.

19
Figura 1-7: A dupla quaternidade.

Isto serve para nos dar um vislumbre do enorme poder de visualização de Jung, sua capaci-
dade de construir imagens. Acredito que muito poucos de nós seríamos capazes de extrair
esta figura daquele texto, mas se vocês a examinarem, vão ver céu, terra, verão, outono,
inverno, primavera — sim, tudo bate, tudo está ali. Ele cita em latim porque está sendo fiel ao
texto latino original, e não adaptando e enfeitando o texto. Este é um bom exemplo do tipo
de capacidade que temos que desenvolver individualmente se desejarmos extrair imagens
vivas do difuso e incerto material que encontramos a todo momento.

5. O pelicano ou setenário mágico

Agora quero me referir à imagem do parágrafo 8, “o verdadeiro pelicano filosófico” (fig. 1-8).
Ele é composto pelo círculo central A, do qual partem quatro raios: B, C, D e E. A seguir há
detalhes acerca do semicírculo superior F e do inferior G.

Ora, aqui temos mais uma variação da mesa solar — ainda nos encontramos no âmbito da-
quela mesma imagem. Trata-se de um dos nós da rede formada por todas as imagens que
descrevem a uniformidade básica existente na quaternidade, da qual a mesa solar é só um
exemplo. Dissemos que A representa o centro unidade original do círculo; F e G suas partes
superior e inferior criadas pela linha BD; e finalmente os quatro pontos BCDE que são defi-
nidos quando a linha CE é adicionada à linha BD.

20
Figura 1-8: O verdadeiro pelicano filosófico.

Se vocês refletirem sobre isso, perceberão que a figura é construída por uma sequência de
três operações. Inicialmente há uma entidade, um círculo com um centro. A seguir é traçada
uma linha horizontal que corta o círculo em dois: acima e abaixo. Então uma segunda linha,
agora vertical, é traçada dividindo o conjunto em quatro partes. Isso nos dá uma sequência
de um, dois, quatro. Agora, se somarmos estes números, 1 + 2 + 4 obtemos 7, o assim
chamado Setenário Mágico. Este 7 corresponde aos sete planetas da antiga cosmologia e
também corresponde à coroa de sete raios sobre a qual estivemos falando.

Outra amplificação desta sequência de 1, 2 e 4 pode ser encontrada no sonho crucial de um


paciente que Gerhard ADLER discute em seu livro The living symbol.7 Um sonho absoluta-
mente central naquela longa série de sonhos é o de uma entidade simbólica, um labarum,8
que tem gravados sobre si os números 1, 2 e 4 (figura 1-9). A imagem do pelicano é um pa-
ralelo daquele sonho.

Aproveitando a oportunidade, recomendo o livro de ADLER: ele é uma maravilhosa e exten-


sa história de um caso clínico jungiano. Quase não dispomos de histórias abrangentes de
casos clínicos jungianos e esta é muito interessante.

7 Cap. 3, “The dream of the rod” [o sonho do bastão], p. 26ss.


8 “O lábaro é o bastão que foi concedido ao imperador romano Constantino durante uma visão ... com as pala-
vras “in hoc signo vinces” (com este signo vencerás). Ele era formado por uma longa lança dotada de uma pe-
quena barra transversa junto à sua extremidade (formando assim uma cruz) e levava em sua extremidade o
monograma de Cristo.” (ibidem p. 28)

21
Figura 1-9: O bastão ou lábaro.

6. Mercurius como promotor da paz

Voltando à nossa imagem do pelicano, Jung nos diz que aquele centro, A, que é a origem de
todas as outras letras, equivale a Mercurius. No parágrafo 9 ele diz: “Esse pequeno círculo
interior corresponde ao poço de Mercurius ou fonte mercurial do Rosarium”. Trata-se da
primeira imagem da sequência que Jung discute em “A psicologia da transferência”. 9 O pon-
to central A simboliza o espírito Mercurius que é um “promotor da paz, o mediador entre os
elementos conflitantes e produtor de unidade”. BCDE representam os opostos que se origi-
naram de A, e permanecerão em estado de inimizade a menos que se possa encontrar um
mediador que os reconcilie.

Esta imagem é tão decepcionantemente simples que talvez não a levemos muito a sério, mas
insisto que o façam. É desta maneira que o inconsciente se expressa, e ao examinar sonhos
certamente vocês se depararão com imagens análogas. Ora, se vocês tiverem em mente esta
imagem, ela lhes proporcionará elementos importantes para trabalhar com tais sonhos.

A ideia básica é que, inicialmente, há só um ponto (e o simbolismo do ponto será proeminen-


te em um material a ser discutido mais adiante). 10 Pares de opostos emanam então daquele
ponto: direita e esquerda, acima e abaixo, interior e exterior. Então, na medida em que estes
opostos emanados perdem a conexão com sua fonte de origem, eles entram em conflito en-
tre si, eles se colocam no estado de guerra entre os elementos. E somente na medida em que
os opostos puderem se reconectar com sua origem eles poderão ser mediados e reconcilia-
dos. O ponto central, que é tanto sua origem por um lado, quanto seu mediador reconcilia-
dor por outro, é Mercurius.

9 Ver A prática da psicoterapia, OC 16, p. 231; ver também EDINGER, O mistério da coniunctio, p. 48s.
10 Ver abaixo, cap. 3.

22
Jung segue adiante falando um pouco mais sobre Mercurius, mas aqui ele não se estende
muito. Embora o simbolismo do Mercurius seja imensamente importante na alquimia, Jung já
tratou dele extensivamente em seu ensaio “O espírito Mercurius”.11 Este ensaio é uma espé-
cie de apêndice ao Mysterium; ali ele faz justiça ao simbolismo do Mercurius, embora aqui ele
somente aluda à questão de maneira breve.

7. A Ecclesia spiritualis

Nos parágrafos 10 e 11 Jung apresenta alguns textos que indicam que o espírito Mercurius e
os indivíduos que foram capazes de estabelecer uma conexão vital com este espírito formam
uma Ecclesia spiritualis. Trata-se de uma igreja espiritual, não uma congregação concreta,
externa e coletiva. Na verdade, é uma igreja psicológica e espiritual, invisível, que une indiví-
duos que obtiveram a sua própria experiência profunda do espírito autônomo Mercurius. Esta
imagem da Ecclesia spiritualis é muito importante e profunda.

Jung também se refere a um texto que compara a função reconciliadora e mediadora de


Mercurius com o sangue de Cristo, da maneira como é descrito pelo apóstolo Paulo em Efé-
sios. A passagem encontra-se citada no parágrafo 10: o sangue de Cristo é descrito como o
agente por meio do qual “agora, em Cristo Jesus, vós, que outrora estáveis longe, fostes tra-
zidos para perto”;12 Assim, Cristo “pode criar em si um novo homem onde antes havia
dois”.

11 Ver Estudos alquímicos, OC 13, especialmente a sessão 4, par. 259s.


12 Efésios, 2:13, Bíblia de Jerusalém.

23
PARÁGRAFOS 13-30

2
Para esta noite, escolhi sete imagens importantes para tratar delas com mais detalhes:

1. O órfão
2. A viúva. Várias outras imagens subsidiárias aparecem sob esta denominação: a vir-
gem, a prostituta, a débil mulher idosa, a virago (mulher guerreira masculinizada) e as
imagens mitológicas de Ísis e Medéia. Todas elas pertencem ao grupo da imagem da
viúva
3. A imagem da coniunctio da morte
4. A imagem cabalística do casamento entre Malkut e Tifereth
5. Luna, a lua
6. O ferimento
7. Kenosis ou esvaziamento

1. O órfão

No parágrafo 13 Jung afirma que o termo “órfão” era usado como sinônimo para a Pedra
Filosofal. Em outras palavras, o órfão é uma imagem do Self. Isto me faz lembrar da inscrição
que Jung gravou na pedra de Bollingen (fig. 2-1). Uma das faces da pedra tem a imagem de
um olho; a outra face traz a seguinte inscrição, que Jung diz ser a combinação de várias cita-
ções alquímicas:

Sou um órfão solitário. No entanto, sou encontrado em qualquer lugar. Sou só um, mas me opo-
nho a mim mesmo. Sou um homem jovem e velho em um só e ao mesmo tempo. Não tive pai
nem mãe, pois tive que ser erguido a partir das profundezas como um peixe, ou então caí do céu
como uma pedra branca. Por entre florestas e montanhas eu vagueio, mas estou escondido no
mais profundo recôndito da alma do homem. Sou mortal para todos, embora o ciclo dos éons não
me afete.13

Isto nos esclarece que a experiência referida pela imagem do órfão constitui uma parte da
individuação. A experiência de ser abandonado, de perder o apoio de todas as figuras paren-
tais e de todas as fontes exteriores de segurança, tudo isso pertence à imagem do órfão. Tra-
ta-se de uma experiência necessária, pois você não pode encontrar a fonte interna de segu-
rança sobre a qual se assenta sua existência até que seja privado de todos os suportes exteri-
ores.

13 Memórias, sonhos e reflexões, p. 199.

24
Figura 2-1: A pedra de Bollingen

Uma vez ouvi um sonho notável que incluía esta imagem. 14 Ele foi sonhado por uma mulher
que teve que enfrentar uma série muito longa de frustrações das quais a maior parte das pes-
soas é poupada — satisfações biológicas que lhe foram negadas pela vida —, algo que, para
ela, foi extremamente difícil de lidar. Foi então que uma vez ela sonhou que sua campainha
da rua soou. Ela foi até a porta e abriu-a, e encontrou no chão uma criancinha abandonada.
A característica notável desta criança abandonada era a de que ela ainda trazia o cordão um-
bilical, e este cordão estava ligado ao céu. Este é um belo exemplo do arquétipo do órfão. Ele
“tem que ser erguido a partir das profundezas como um peixe, ou então cai do céu como
uma pedra branca”.
14 Ver EDINGER, Ego e arquétipo, p. 353.

25
2. A viúva

Etimologicamente, a palavra viúva deriva do latim vidua, que por sua vez decorre de um ver-
bo cognato perdido, videre, que significa “partir, separar, desunir”. Esta ideia é similar ao
simbolismo da imagem do órfão. Todos nós precisamos ser separados daquilo de que depen-
demos, ou daquilo com o que nos encontramos em estado de participation mystique, se qui-
sermos nos tornar conscientes de nossa natureza indivisível. A palavra “indivíduo” significa
indivisível. Um indivíduo é uma pessoa que não pode ser dividida em partes menores.

Como dizem os alquimistas, a Pedra Filosofal é o “filho da viúva”. Isso significa que a experi-
ência do Self — a individuação — é filha da experiência da viuvez, ou seja, viuvez psicológica
no sentido mais amplo. E a viúva também era considerada como a imagem da prima materia.
A viúva é a prima materia e o filho ao qual ela dá à luz é a Pedra Filosofal. Uma imagem
similar é a débil mulher idosa, a Mãe Alquimia, e também a velha mulher que sofre de hidro-
pisia [inchaço] nas pernas.

Na fase inicial de minha própria análise tive um sonho que se referiu a esta imagem. Naquele
sonho, eu me encontrava explorando um profundo cômodo subterrâneo com paredes de
pedra, e ali encontrei uma decrépita e senil senhora com pernas atrofiadas e paralisadas. Este
é um exemplo da débil mulher idosa, a mulher com hidropisia. Ora, por que pernas paralisa-
das ou inchadas? Bem, uma maneira de explicar isso é que a paralisia das pernas imobiliza a
pessoa num determinado lugar ou condição. Isso corresponderia à experiência de descobrir
que não somos capazes de nos sustentar com nossas próprias pernas. Por meio desta expe-
riência descobrimos qual é a fonte de nosso suporte quando já não mais somos capazes de
nos sustentar — quando o ego já não é mais capaz de proporcionar o suporte que necessita-
mos.

Outra forma de entender as pernas inchadas de líquido é a de que a velha mulher, através
das suas extremidades inferiores, se mescla com a água; é como se ela fosse uma espécie de
sereia. Na medida em que a sereia perde a forma humana na parte inferior de seu corpo e se
transforma em peixe, assim também a velha mulher hidrópica por assim dizer se mescla com
o elemento água. Nos seus membros inferiores ela se transforma no próprio inconsciente.

Na discussão que faz acerca dos vários aspectos da figura da viúva, Jung fala a respeito da
deusa egípcia Ísis, a Negra, a mestra que ensinou a alquimia, que, como vocês sabem, come-
çou no Egito. Ísis era considerada tanto uma curadora como uma envenenadora. Por um
lado ela foi capaz de reconstituir os pedaços do corpo desmembrado de Osíris, o que de-
monstra sua capacidade de curar. Mas há também o mito de Ísis e Ra, de acordo com o qual
Ísis colocou no caminho de Ra uma serpente venenosa que o mordeu, forçando-o a retirar-se
para a vaca celeste, o céu. Mais tarde Ísis voltaria a curá-lo. Pois bem, todas estas são outras
imagens do inconsciente — o inconsciente enquanto prima materia que, por um lado, pode
envenenar o ego ou a figura contrassexual, e, por outro, pode curá-los e transformá-los.

A imagem de Medéia é outro exemplo. De fato, Medéia tornou-se uma viúva pelo fato de seu
marido, Jasão, tê-la abandonado. Tomada por um ressentimento e ira furiosos pelo abando-
no, ela matou seu próprio filho.

26
Agora me veio à mente um caso no qual este arquétipo particular se manifestou. Trata-se de
uma mulher que era divorciada, mas ainda não havia elaborado sua separação, muito embora
fosse ela quem a tivesse proposto. Isso não faz a menor diferença, vocês sabem: afinal de
contas o inconsciente não opera de maneira racional. Assim, embora ela tenha tomado a
iniciativa do divórcio, continuava abrigando um tremendo ódio do marido por tê-la abando-
nado. Ela alimentava a fantasia de que eles um dia voltariam a viver juntos, independente de
seu marido já ter se casado novamente. Por alguma razão isso não importava: a nova esposa
não era adequada para ele, dizia a paciente.

Acontece que após um certo período de tempo seu filho começou a sofrer uma série de es-
tranhos e violentos acidentes de carro, e logo a paciente começou a sentir uma vaga impres-
são de que talvez ela própria tivesse algo a ver com estes acidentes. Um dia estávamos falan-
do sobre um sonho que teve, um sonho em que uma mulher matava seu próprio filho, quan-
do eu comentei: “Isso me lembra Medéia...”. Foi então que tive um súbito insight, e disse a
ela: “Mas é isso o que está acontecendo com você, seu filho e estes acidentes! Medéia esta
vivendo aqui e agora! Você está vivendo o mito de Medéia!”.

Esse comentário que fiz a ela teve o efeito de um raio. Quando uma interpretação não só
atinge o alvo mas também é dada no momento adequado, quando estas duas coisas aconte-
cem ao mesmo tempo, é como se holofotes se acendessem e sinos tocassem. Foi isso que
aconteceu neste caso: toda a questão emergiu de repente e se tornou claramente visível na-
quele momento. É só assim, obviamente, que as coisas podem mudar. Quando a consciência
penetra na imagem do mito, o mito não precisa mais viver inexoravelmente, porque agora
existe um ego consciente que tem algo a dizer a respeito do assunto. Então isso foi um e-
xemplo da prima materia se expressando como Medéia e se manifestando numa situação
analítica específica.

3. A coniunctio da morte

No parágrafo 14 Jung traz este assunto à baila, referindo-se ao casamento da Mãe Beya com
seu filho Gabritius. Ali ele cita um texto de Michael Maier:

“Mas estas núpcias, que começaram com a expressão de grande alegria, tiveram como prosse-
guimento a tristeza” diz Maier, acrescentando os versos:

É o que já aflige quando em flor:


Onde há mel, aí há fel;
Onde o seio com leite, aí o tumor.

Pois, “se o filho dorme com a mãe, então ela o mata num ataque como a cobra”.

No parágrafo 15 essa ideia é seguida por outro texto com o mesmo tema. Conforme eu for
lendo o texto, tentem visualizar uma imagem específica para ele. Como eu disse antes, essa é
a única maneira de conseguirmos compreender estas passagens difíceis: temos que visualizá-
las. Só depois que vocês visualizarem é que vou mostrar-lhes de que maneira os alquimistas
visualizaram a dita passagem.

27
Os filósofos, entretanto, entregaram à morte a mulher que mata seus maridos; pois o corpo da-
quela mulher está repleto de armas e de veneno. Para aquele dragão seja cavado um túmulo, e
aquela mulher seja sepultada com ele, o qual está fortemente acorrentado à mulher; quanto mais a
atar e se enrolar em torno dela, tanto mais será dividido em pedaços pelas armas femininas que
são criadas no corpo da mulher. Mas quando ele se vir misturado com os membros da mulher, es-
tará ele certo da morte e será transformado inteiramente em sangue. Quando porém os filósofos o
virem transformado em sangue, então o deixarão alguns dias exposto ao sol, até perder sua mole-
za, e o sangue secar, e eles acharem aquele veneno. O que então aparecer será o vento escondi-
do.

Em relação a este texto, Jung comenta: “Portanto, a coniunctio pode tomar formas bem
mais repulsivas do que as relativamente inocentes retratadas no Rosarium”. Bem, na verdade
essas formas não são assim tão inocentes, já que os dois cônjuges morrem! São somente as
duas ou três figuras iniciais do Rosarium que podem parecer inocentes. 15 De qualquer forma,
se há uma coisa que estas imagens não são é claras. Vejam, estes textos são como sonhos:
as imagens são todas fluidas e transformam-se umas nas outras.

Mas a questão que surge é: quem é o dragão ou serpente que deve ser acorrentado logo à
mulher? Aparentemente trata-se do marido que antes já estava aprisionado pela esposa. A
continuação do texto sugere, quando o marido deita-se com a mulher, que ele se transforma
em dragão ou serpente. Em outras palavras, à medida que um homem e uma mulher se dei-
tam juntos, o aspecto draconiano do relacionamento instintivo é constelado: em outras pala-
vras, lascívia. A conjunção resultante, então, resulta no desmembramento do dragão, um
desmembramento da luxúria primitiva.

Aqui está, então, uma imagem de uma mulher numa sepultura enrolada por uma enorme
serpente (fig. 2-2). Sob a figura está a citação:

Cave uma profunda sepultura para o venenoso dragão com o qual a mulher se encontra firme-
mente entrelaçada. Enquanto ele se regozija no leito marital, ela morre; sepulte então o dragão
juntamente com ela. Ao assim fazer, seu corpo será abandonado à morte e embebido em sangue.
Este é o verdadeiro caminho de tua arte.16

Não podemos perder de vista que todos estes textos estão falando a respeito do processo
químico que se realiza no interior da retorta. Acontece que eles nos são apresentados de ma-
neira tão vívida e dramática que acabamos por entendê-los de maneira concreta em vez de
maneira química.

15 Ver “A psicologia da transferência”, em A prática da psicoterapia, OC 16; ver tb. EDINGER, Mystery of
coniunctio, parte 2.
16 Michael Maier, Atalanta fugiens, emblema 50.

28
Figura 2-2: Mulher num túmulo enrolada por uma serpente.

Em Anatomia da psique eu considero esta imagem como representando uma conjunção me-
nor.17 Trata-se de uma descrição do que acontece quando o aspecto imaturo do ego abraça
o inconsciente: o ego acaba submetido à morte ou dissolução. Para o ego imaturo, estabele-
cer relações com o inconsciente é uma empreitada bastante perigosa (o que estamos tratando
aqui é a base psicológica do tabu do incesto). O “desmembramento” sobre o qual falam os
textos alquímicos pode corresponder a uma eventual psicose ou algum outro evento psíquico
nefasto.

Esta questão é ilustrada frequentemente na fenomenologia do amor erótico. Temos um bom


exemplo disso na primeira novela de Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther, que estabe-
leceu a reputação de Goethe como escritor quando ainda jovem. Publicada em 1774, trans-
formou-se num grande sucesso e sensação literária por toda a Europa. A trama básica da
novela é que Werther, um jovem passional e idealista, se apaixona perdidamente por Char-
lotte. Mas Charlotte casa-se com outro homem e Werther acaba se matando com um tiro.
Acontece que este livro, logo que foi publicado, desencadeou uma epidemia de suicídios por
toda a Europa. Werther, ao cair apaixonado (o termo “cair” é bastante apropriado psicologi-
camente: trata-se realmente de uma queda), imagina que está se unindo a uma bela e desejá-

17 Ver EDINGER, Anatomia da psique, p. 227-31.

29
vel mulher jovem. Na verdade ele está se ligando a uma serpente mortal, e esta serpente a-
caba por matá-lo. Werther, na verdade, está possuído pela imagem da coniunctio, mas trata-
se da coniunctio menor, a versão mortal da conjunção. Werther personifica um jovem em
quem o princípio masculino ainda não se encontra suficientemente cristalizado, coagulado,
ainda não se encontra amadurecido e forte o suficiente para resistir ao encontro com seu
oposto. É por isso que ele perece na tentativa da coniunctio. Tudo isso pertence ao simbo-
lismo do incesto, que é absolutamente básico para a imagética da conjunção.

Vimos um bom exemplo disso em nosso estudo acerca dos dez mandamentos do Velho Tes-
tamento. Vejam, o segundo mandamento proíbe as imagens. Aqui estamos diante de um
exemplo do tabu do incesto em operação, já que imagens e ídolos podem abrir a porta para
o inconsciente.18 Isso significa, certamente, que a abordagem sintética e arquetípica da inter-
pretação dos sonhos, que abre mais ainda a porta para o inconsciente, também se aproxima
muito do incesto, e de maneira alguma é apropriada para qualquer pessoa indiscriminada-
mente. Os modos personalísticos e redutivos de interpretação dos sonhos, que em grande
extensão também honram o tabu do incesto, são os mais apropriados para os egos ainda
imaturos.

Freud foi o descobridor do arquétipo do incesto. Ele o chamou de Complexo de Édipo e in-
terpretou-o de maneira pessoal e concreta. Mais tarde Jung tomou este motivo do Édipo e o
interpretou também de maneira subjetiva e transpessoal. Do ponto de vista subjetivo, o inces-
to se refere à capacidade que o ego tem de estabelecer conexões íntimas com sua própria
origem — com sua mãe psicológica, o inconsciente. O incesto só é uma questão tão violen-
tamente proibida porque no processo evolutivo psicológico da humanidade foi preciso que o
ego humano fizesse esforços colossais para separar-se do inconsciente — a mãe — de forma
a constituir uma entidade mais ou menos consciente, responsável e separada. O impulso para
regredir à sua própria origem, e a tendência a perder esta posição que custou tão caro e de-
mandou tantos esforços, deve ter sido tão poderoso no passado que teve que ser obrigatori-
amente contrarrestado pelo extremo rigor do tabu do incesto. Mas notem bem que agora
estou me referindo ao incesto psicológico

4. Malkut e Tifereth

Ao tratar do simbolismo da viúva no parágrafo 18, Jung afirma que Malkut, a décima figura
da árvore sefirótica, era chamada de viúva. Pois bem, o que é a arvora sefirótica? Mais adian-
te terei ocasião de falar um pouco mais a respeito do simbolismo cabalístico da árvore sefiró-
tica, mas para compreendermos ao quê Jung está se referindo aqui acredito que algumas
observações sejam úteis.

De acordo com o simbolismo cabalístico, a árvore sefirótica é uma imagem da décupla ema-
nação da divindade (fig. 2-3). Trata-se por assim dizer da imagem de Deus desdobrada em
dez aspectos; a imagem é então concebida como uma árvore invertida que tem suas raízes no
céu e seus galhos na terra.

18 Ver EDINGER, A bíblia e a psique, p. 106.

30
Figura 2-3: A árvore sefirótica.

Sem citar cada um dos dez aspectos da divindade, vamos examinar somente quatro, o assim
chamado pilar central, formado pelos números 1, 6, 9 e 10. No alto, a sefira de número 1 é
chamada de Kether ou Coroa — pois se situa no céu. A sefira de número 6, Tifereth, é uma
imagem do rei; a número 9, Yesod, é uma imagem de seu falo; e a número 10, Malkut, é
uma imagem da viúva ou da lua, a manifestação mais inferior da divindade, que tem uma
natureza feminina e se encontra na terra. Temos aqui não somente uma imagem de uma
árvore invertida, mas também a imagem de uma pessoa: uma pessoa do sexo masculino nas
sefiras superiores e uma pessoa feminina nas sefiras inferiores.

De acordo com a mitologia cabalística, Tifereth, a pessoa masculina superior, e Malkut, a


pessoa feminina inferior, foram um dia separadas, e Malkut tornou-se então uma viúva. Esta
é a razão pela qual nosso mundo sempre foi tão insatisfatório. A divindade, então, encontra-
se em estado de divisão ou fragmentada — ela não se encontra em unidade consigo mesma
— e sua natureza feminina encontra-se em estado de viuvez. A ideia é a de que quando o
Messias vier, Tifereth e Malkut serão então unidas de novo, e este encontro restaurará Deus

31
a sua antiga unidade. Então aqui estamos diante de um símbolo da coniunctio, e Jung o as-
socia à imagem alquímica da viúva, a prima materia. Mas as conexões continuam.

5. A lua

No parágrafo 19, a seguir, aprendemos que Malkut também é chamada de lua. Assim, a lua
também se associa ao simbolismo alquímico da viúva. Não pretendo me estender muito no
simbolismo da lua na noite de hoje, porque mais adiante teremos uma longa seção tratando
de Luna . Farei somente alguns comentários breves.

Para entender alguns dos aspectos simbólicos da lua é necessário ter em mente a antiga ima-
gem da estrutura do universo, as noções ptolomaicas da constituição do universo. De acordo
com estas antigas noções, a terra era o centro do universo e encontrava-se envolvida pelas
sete esferas planetárias, arranjadas de maneira concêntrica (fig. 2-4). Estas esferas abrigavam
o sol, a lua e os cinco planetas visíveis.

Mas devo frisar agora que não estou falando de astronomia. Estou falando de psicologia. Esta
antiga estrutura que descrevi é a estrutura da psique ingenuamente projetada pelos antigos
que “não dispunham de crítica epistemológica”, como Jung nos disse no encontro passado.
A origem destas imagens é a própria estrutura da psique. E a estrutura da psique que aqueles
antigos filósofos projetavam nos céus é precisamente esta série de círculos (ou esferas) con-
cêntricos que têm a terra como centro. Ora, isso nos deixa claro, antes de tudo, que o ho-
mem da antiguidade encontrava-se identificado com o Self, não é mesmo? Isto porque ele
entendia a terra como sendo igual ao ego — e não pretendo justificar isso agora, razão pela
qual peço que por enquanto admitam que a terra era considerada como sendo o ego, e o sol,
lua e demais planetas eram considerados como fatores arquetípicos do inconsciente coletivo.

A crença era a de que à medida que as almas caminhavam em direção à sua existência terre-
na, elas descendiam das elevadas regiões celestes atravessando os vários portais das esferas
planetárias, e o último portal era o da lua. Assim que atravessava este último portal, a alma
então se encontrava no reino da terra, e então ela estava encarnada. A lua, portanto, era
considerada como sendo uma espécie de funil entre o céu e a terra: todas as influências ce-
lestes que se dirigiam à terra eram como que canalizadas pela lua. Mas ela também funciona-
va de maneira inversa: todas as almas que partiam da terra e ascendiam aos céus o faziam
através do portal da lua na direção contrária.19

Mas já que a lua era o planeta celeste mais próximo da terra, ela também partilhava, por
assim dizer, a materialidade terrestre, e esta é a razão que faz a lua possuir uma característica
tão dúbia — ela não é uma entidade pura, limpa e celestial: ela se encontra contaminada pela
materialidade terrestre.

19 Esta escada de planetas ou de esferas é de certa maneira análoga à árvore sefirótica.

32
Figura 2-4: A lua como portal para os céus.

Frances WICKES, em seu livro The Inner world of choice, relata um exemplo muito interes-
sante do simbolismo da lua:20

Um homem acorda tomado por um terror indescritível. Em seu sonho ele esteve correndo e cor-
rendo através de um infindável e desolado terreno. Sua memória o leva de volta ao quarto onde
dormiu até os cinco anos de idade. Ele também se lembra de um sonho recorrente que teve duran-
te a infância que o levou a considerar a escuridão como sendo uma região de temor e terror.

O sonho recorrente da infância deste paciente é o seguinte:

Minha mãe é a lua; ela é um imenso funil. Ela me persegue através de um imenso espaço vazio
para sugar-me em direção a ele. Eu corro e corro, cada vez mais depressa, mas ela sempre está
bem atrás de mim. Finalmente chego à borda do mundo e salto. Agora me encontro caindo e ca-
indo, mergulhando na escuridão. Enquanto caio, acordo aterrorizado.

Este é um bom exemplo de como as imagens arquetípicas agem como rígidas e vívidas reali-
dades durante a infância. O perigo aqui é o de aquele pequeno ego ser sugado de volta e
retornar às suas origens celestiais. Esta é a imagem básica: a lua como um funil, uma espécie
de aspirador de pó que o persegue. E se o pequeno ego for capturado por este aspirador, ele
será levado de volta às regiões superiores. Em outras palavras, ele desencarnará e a criança
perderá seu ego coagulado.

20 Inner world of choice, p. 111s.

33
A lua, portanto, é o portal que dá passagem à terra, é um agente de coagulação. 21 Jacob
BOEHME descreve este aspecto da lua de maneira muito boa:

A sétima forma [a sétima esfera celestial] é chamada Luna . Todas as características das seis outras
formas também estão de alguma maneira presentes nela, e ela constitui o ser ou existência corpó-
rea de todas as demais. Isto porque todas as outras formas irradiam seus desígnios por meio de
Sol para Luna, pois em Sol eles são espirituais e em Luna se tornam corporais. Então, seja lá o
que Sol seja e faça em espírito, o mesmo Luna é e faz corporalmente em si.22

Em outras palavras, Luna transforma a alma em corpo, e é assim que os egos surgem.

Jung menciona, no final do parágrafo 20, a assim chamada equação Ecclesia-Luna — a lua e
a Igreja estão simbolicamente equiparadas. A este respeito também há um paralelo na simbo-
logia cabalística. Um dos sinônimos de Malkut era o knesset: a comunidade de crentes de
Israel. E Malkut, como vimos, também era chamada de lua. Então aqui de novo a comunida-
de eclesiástica, a comunidade de crentes, é identificada com a lua.

O mesmo significado surge nas alegorias patrísticas do cristianismo.23 Jung refere-se à ideia
patrística de que no final dos tempos a lua desaparecerá — já que a lua é uma entidade tão
dúbia — e quando ela desaparecer, a Igreja também desaparecerá.

Este simbolismo é bastante importante para compreendermos a psicologia coletiva. A Igreja,


ou a comunidade dos crentes, corresponde simbolicamente a qualquer grupo com o qual um
indivíduo possa se identificar para fortalecer seu estado psicológico. Estas identificações cole-
tivas correspondem ao portal por meio do qual a alma do indivíduo tem a oportunidade de
adentrar na encarnação e tornar-se sólida.

Ora, existem momentos da vida em que a identificação com um grupo é absolutamente cru-
cial para a encarnação e desenvolvimento de um ego individual. Porém existem outros mo-
mentos, em fases distintas do desenvolvimento psicológico, em que a identificação não é
desejável, e este é o momento em que a lua deve morrer. E quando ela morre, a Igreja morre
juntamente com ela. A Igreja situa este dia no final dos tempos — uma projeção num futuro
bastante distante. A morte da Igreja, ou a morte da lua, corresponde a uma situação em que
a identificação de um indivíduo com um determinado grupo já realizou o seu propósito, já
atingiu a sua meta, e então chega o tempo em que aquela particular participation mystique
deve morrer.

Jung dá exemplos de como Luna personifica a mutabilidade, o princípio da eterna mudança


e transformação. A lua jamais mantém o mesmo aspecto de um dia para outro — cada noite
ela é um pouco diferente. Desta maneira, a lua concerne ao nascimento, morte, transição e
mudança de todos os tipos. E esta mutabilidade e mudança nos leva à sexta imagem.

21 Ver EDINGER, Anatomia da psique, cap. 4.


22 The signature of all things, p. 96s (modificado e abreviado).
23 “Patrística” se refere aos escritos dos antigos Padres da Igreja (o latim pater equivale a pai).

34
6. O ferimento

Toda mudança ou transformação fere o princípio da constância. Transformação representa


uma traição a tudo aquilo que acreditamos poder perdurar. O processo de encarnação de um
determinado conteúdo psíquico também expõe esse conteúdo à corrupção e, no limite, à
morte. Isso então nos remete a uma figura à qual Jung se refere no parágrafo 23. Trata-se de
uma figura na qual Cristo está sendo ferido por uma sereia que segura uma lança (fig. 2-5).

Figura 2-5: Cristo sendo ferido por uma sereia.

Jung faz uma associação simbólica da sereia com a lua, e de Cristo com o sol. A lua é, então,
considerada como sendo uma entidade capaz de ferir o sol: o sol pode afogar-se na fonte
lunar, por exemplo. Dessa forma, o sol — ou princípio espiritual — sempre é ferido por um
encontro com o princípio material. Vejam que tudo isso está associado à condição do ego:
sempre que encarna numa condição mundana, um determinado ego está inevitavelmente
sujeito ao ferimento.

O simbolismo do ferimento constitui uma parte importante do processo de individuação. O


ego é sempre e inevitavelmente ferido por seu maior e inicial encontro com o inconsciente.
Na verdade, no primeiro encontro, o choque é sempre terrível, Entretanto este ferimento é
uma condição absolutamente necessária — não se trata um infeliz acidente que eventualmen-
te pudesse ter sido evitado por meio de cuidadosa consideração. Não, o ferimento encontra-
se embutido na estrutura arquetípica da própria psique. Ele é inevitável, e é expressado por
meio de diferentes imagens. Jung se refere a algumas delas em seu texto: Ra ferido pela ser-

35
pente que Ísis colocou em seu caminho; o sol escurecido por Luna; Eva tentada pela serpen-
te.

Jung também faz alusão a outras imagens alquímicas que examinaremos com mais detalhe
adiante. A mordida por um cachorro louco é outro exemplo de ferimento pelo inconsciente;
outro é Cupido com suas flechas ferindo o coração de suas vítimas. Todos estes são exem-
plos do tema do ferimento que está associado ao simbolismo da lua e todos pertencem ao
simbolismo da mortificatio.24

7. Kenosis

Kenosis é uma palavra grega que significa “esvaziamento”. Este tema tem sua origem na
ideia de que, no decorrer de um mês, a lua escurece à medida que se aproxima do sol. A
imagem é a de que ela voluntariamente se esvazia de sua luz e a verte para o sol. Jung apon-
ta, no parágrafo 29, que esta ideia é paralela à doutrina da kenosis da Igreja, que por sua vez
deriva de uma passagem da epístola de Paulo aos filipenses. Peço que me acompanhem nu-
ma citação longa porque esta é uma imagem importante que eu gostaria de comunicar a
vocês, se eu conseguir. No segundo capítulo de Filipenses, Paulo diz a seus discípulos:

Tende em vós o mesmo sentimento de Cristo Jesus:


Ele tinha a condição divina,
E não considerou o ser igual a Deus
Como algo a que se apegar ciosamente.
Mas esvaziou-se a si mesmo,
E assumiu a condição de servo,
tomando a semelhança humana.
E, achado em figura de homem,
Humilhou-se e foi obediente até a morte,
E morte de cruz!
Por isso Deus o sobreexaltou grandemente
e o agraciou com o Nome
que é [superior a todo] nome.25

Aqui a ideia básica é a de que a encarnação de Cristo se deu por meio de um processo vo-
luntário de esvaziamento: Cristo esvaziou-se de sua divindade para poder se tornar homem.
Esta é a denominada doutrina da kenosis. Ela descreve o processo da encarnação, incorpora-
ção, do ego, e tem paralelos em algumas outras tradições simbólicas. Por exemplo, existe a
doutrina do Bodisatva no budismo. Um futuro ou potencial Buda que já tenha obtido a ilumi-
nação — um Bodisatva — pode renunciar ao nirvana mesmo que ele esteja disponível. O Bo-
disatva renuncia ao nirvana, se esvazia de sua iluminação e retorna ao mundo por pura com-
paixão pela humanidade. Esta é uma outra versão da kenosis.

Jung gostava muito de outro belo exemplo chinês: a imagem de Kwannon, a deusa da bon-
dade (fig. 2-6). Jung discorre sobre isso no Seminário das Visões:

24 Ver EDINGER, Anatomia da psique, cap. 6.


25 Filipenses 2, 5-9.

36
Figura 2-6: Kwannon, Deusa da Bondade.

Em muitos casos ... [o amor] não está relacionado à bondade, mas é tão somente uma infernal
possessão [ele aqui está falando em “apaixonar-se loucamente”, como podem ver], embora o a-
mor devesse estar relacionado à bondade — eu estou defendendo o amor.
No oriente, onde se conhece tão pouco desta nossa espécie de amor passional, eles possuem um
belíssimo símbolo para isso em Kwannon, a Deusa da Bondade. Esta deusa proporciona o alimen-

37
to para todas as criaturas vivas, e até para os espíritos malignos do inferno, e para fazer isso ela
precisa descer até os infernos. Entretanto, ela assustaria todos os espíritos malignos caso apare-
cesse por lá com sua forma celestial e, por ser a Deusa da Bondade, ela não pode permitir que is-
so aconteça. Assim, tendo tamanha consideração pelo sentimento dos demônios, ela se transfor-
ma em um espírito maligno e leva o alimento disfarçada de demônio. Existe uma bela tradição de
pintura na qual ela é representada nos infernos como um demônio entre demônios, dando comida
a eles. Contudo, nestas representações, há sempre um discreto fio que sai de sua cabeça e que a
mantém ligada à sua existência celeste, que é ela mesma, apesar de sua terrível fúria [algo muito
parecido com o sonho daquela mulher em que surge uma criança abandonada ligada pelo cordão
umbilical ao céu!]. Esta é a atitude psicológica que representa o verdadeiro amor .26

Ora, aqui estamos diante de uma imagem sobre a qual vale a pena pensar. Trata-se de uma
forma de exprimir a assimilação da sombra — a disposição de tomar a forma de um espírito
infernal para poder alimentar os espíritos malévolos no inferno. Este é outro exemplo de
kenosis, de esvaziamento.

Mais um exemplo: aquilo que se chama a doutrina do Tsimtsum na cabala de Isaac Luria. O
autor Gershom SCHOLEM descreve a doutrina como segue:

Isso significa ... que a existência do universo só se fez possível graças a um processo de contração
ou diminuição ou encolhimento de Deus ... Se é verdade que Deus é “tudo em tudo”, como pode-
ria haver coisas que não fossem o próprio Deus? Como pode Deus criar o mundo a partir do na-
da, se não existe o nada? ... Deus foi compelido a criar um espaço para a existência do mundo
como que abandonando uma região em seu próprio interior, uma espécie de espaço primordial
místico do qual Deus se retirou para, mais tarde, poder a ele retornar no ato de criação e revela-
ção.27

Em outras palavras, Deus deve esvaziar uma parte de si mesmo para fazer espaço para a
criação da terra. Outro exemplo da imagem da kenosis.

A razão pela qual estou enfatizando tanto este simbolismo da kenosis é a de que ele se refere
ao estado original de identidade entre o ego e o Self. Em algum momento esta identidade
deve ser “esvaziada”, caso o ego queira ter um espaço exclusivo para si mesmo.

Como vocês sabem, todos nós começamos a vida vivendo um estado de identificação com
Deus, com suposições de onipotência e de unidade com o universo. Todos nós começamos a
vida sentindo-nos o centro do universo. No entanto, é necessário que seja realizado um ex-
tremamente árduo, penoso e trabalhoso processo de esvaziamento daquele estado original de
identificação caso desejemos desenvolver um ego consciente e responsável que de fato co-
nheça suas próprias limitações.

26 The visions seminars, vol. 1, p. 215.


27 Major trends in jewish mysticism, p. 260s. Em português, As grandes correntes da mística judaica , Ed. Pers-
pectiva, São Paulo, 1995, p. 291-6 [n. do t.].

38
PARÁGRAFOS 31-40

3
Hoje teremos um encontro relativamente breve — um repouso depois dos últimos dois — e
estudaremos só dez páginas em vez de vinte. Escolhi estas seis imagens como sendo as prin-
cipais:

1. Mani e o mito maniqueu


2. A transpiração e a inflamação do desejo
3. A roda de luz maniquéia
4. “O diabo e sua avó”
5. Os paradoxa
6. O simbolismo do ponto, e dentro desta categoria, o texto de Monoimos que trata do io-
ta

Antes de examinarmos estas imagens, gostaria de chamar a atenção para uma correção que
deve ser feita na tradução. Devo a Sigrid McPherson esta contribuição e outras que citarei
adiante. Ela cotejou a nossa tradução do Mysterium com a versão alemã e notou algumas
grandes aberrações. Esta em especial é bastante importante do ponto de vista psicológico.
Está nó parágrafo 31 [da versão em inglês], na sentença: “A partir destes livros, Mani inven-
tou sua perniciosa heresia que envenenou as nações”. No entanto, a tradução correta deve
ser: “De acordo com a tradição cristã, diz-se que foi a partir destes livros que Mani inventou
sua perniciosa heresia”. Trata-se de uma ressalva bastante importante, como podem ver. Se
a frase for lida como está na tradução, tem-se a impressão de que Jung está definindo a
“perniciosa heresia” como um fato, o que representa uma séria distorção de sua afirmação. *

1. Mani e o mito maniqueu

Mani, o fundador do maniqueísmo, viveu no século 3 d.C. De acordo com as informações


bastante fragmentárias que possuímos, ele foi um órfão (o que se liga ao simbolismo da ima-
gem do órfão da qual falamos na última vez). Foi adotado por uma viúva rica, e um de seus
cognomes era “o filho da viúva” (o que o associa também ao simbolismo da viúva). De acor-
do com a lenda, ele aprendeu a maior parte de sua doutrina com a mãe adotiva, que se su-
põe ter transmitido a ele os livros que ela recebeu de seu falecido marido.

* Na tradução brasileira este erro não ocorre [n. do t.].

39
Ora, Mani é uma figura muito importante para a psique ocidental porque acabou se tornando
uma grande figura de sombra coletiva para a consciência ocidental. Desde a época de Agos-
tinho, que viveu e escreveu cerca de um século depois dele, Mani tem carregado todas as
projeções diabólicas.

O próprio Agostinho foi maniqueu até que se convertesse ao cristianismo, e vocês sabem o
que acontece com todos os convertidos: eles sempre se tornam mais realistas que o rei e
radicalizam, tornando-se extremamente críticos às ideias que até então partilhavam. Este fato
é característico do simbolismo dos opostos, vocês sabem, e foi isso que aconteceu com Agos-
tinho e o maniqueísmo. Agostinho dedicou-se sistematicamente a associar Mani ao Mal. Que-
ro lembrar aqui que foi Agostinho que deu origem à doutrina cristã da privatio boni, a respei-
to da qual Jung tratou extensivamente.28 A ideia básica desta doutrina é a de que o Mal não
existe realmente como entidade concreta; o Mal seria somente a privação do Bem, seria so-
mente a ausência de uma coisa real — o Mal não teria nenhuma substância real em si mes-
mo.

A doutrina do maniqueísmo diz justamente o contrário: Mani afirmou que o mal tem o mes-
mo grau de realidade que o bem e que é um princípio que possui a mesma substância e exis-
tência que o bem. Assim podemos entender por que Agostinho era tão contrário a Mani.
Mas Agostinho é um dos criadores da psique cristã coletiva. Logo, para a psique cristã, Mani
se transformou em um arqui-herético e na própria personificação do Mal. A razão para isso é
que ele foi capaz de reconhecer a realidade do mal. Esse fato constitui uma antiga ilustração
do fato psicológico profundo de que sempre que alguém percebe a realidade do mal e aponta
para isso, fazendo alarde do fato — “Ei, veja, veja só isso!” — essa pessoa corre o grande
risco de ser identificado pela psique coletiva com o próprio mal que está sendo apontado.
Portanto, sejam muito cautelosos ao apontar ou denunciar o mal; identifiquem-no, pensem a
respeito dele, mas, como regra, procurem guardar para si mesmos suas constatações.

Então a imagem de Mani tem sido associada às trevas. E como Jung aponta no parágrafo
31, a combinação de Mani com sua mãe viúva corresponde à imagem alquímica da etíope
negra e da velha encoberta. Jung associa a etíope negra ao sulphur negro, o filho da prima
matéria, e afirma que este sulphur negro “é a escuridão da matéria ativada”. Em outras pala-
vras, se traduzirmos isto para um significado psicológico, ela simboliza a consciência sombro-
sa que ascende de baixo, em contraposição à consciência luminosa que descende do alto. A
imagem do Cristo foi associada ao simbolismo desta consciência luminosa que descende des-
de acima, e a figura de Mani é uma espécie de contraponto à figura do Cristo — ele é a tre-
vosa consciência que ascende de baixo.

Como profissionais que exercem a psicologia profunda, faz parte da natureza de nossa pro-
fissão lidar com o inconsciente — as regiões inferiores. Todos nós acabaremos por ficar bas-
tante familiarizados com a consciência sombrosa de nós próprios e de nossos pacientes, o
que se dá pelo contato diário com as profundezas. Isto é bastante diferente da luminosa
consciência espiritual com que se deparam aqueles que mergulham na sabedoria espiritual de
alguma religião ou filosofia altamente elaboradas, sabedoria esta que descende, por assim

28 Ver, por exemplo, Aion, OC 9, par. 74s.

40
dizer, das alturas do Olimpo. A primeira tem suas raízes nas escuras e empíricas realidades
da verdadeira existência humana; a última deriva do sublime estado do espírito elevado e
abstrato. Não desejo aqui, contudo, desvalorizar a consciência luminosa; quero somente colo-
cá-la numa perspectiva mais ampla de relação com a sua oposta.

O tema do pai ausente aparece aqui: Mani, enquanto filho da viúva, não tem pai. E o pai, no
sentido simbólico e psicológico, personifica a sabedoria espiritual coletiva. Se o pai estiver
presente de forma apreciável, ele manterá o filho afastado das escuras profundezas maternas,
e a maneira pela qual ele faz isso é instituindo o tabu psicológico do incesto. É este ato de
instituir o tabu, que é realizado pelo pai, que mantém o filho conectado com o espírito pater-
no superior e o mantém relativamente afastado das duvidosas e incestuosas conexões com a
mãe, que sempre está associada à matéria.

Eu gostaria de fazer agora um resumo do mito maniqueu. Esta condensação que fiz eu a reti-
rei do trabalho feito por Hans Jonas em seu livro The gnostic religion, que recomendo a to-
dos vocês. A obra traz um vasto capítulo sobre Mani e o maniqueísmo, e o livro como um
todo é o melhor trabalho em inglês acerca da vasta questão do simbolismo gnóstico.

De acordo com mito maniqueísta, havia no início duas naturezas, dois grandes mundos de
existência: o mundo da Luz e o mundo das Trevas. O bem habitava o mundo da Luz, e era
chamado de “Pai da Grandeza”; e o princípio do mal habitava a terra das Trevas e era cha-
mado de “Rei das Trevas”. Inicialmente estes dois reinos existiram lado a lado de maneira
independente — um jamais teria ouvido falar do outro.

Mas num determinado momento, o mundo das Trevas teve um vislumbre do mundo da Luz,
e ficou fascinado. O mundo da Luz era tão agradável, e o mundo das Trevas tão miserável,
que todos os que viviam nas Trevas passaram a sentir uma terrível agonia. Tão logo tiveram
o vislumbre do mundo da Luz, a inveja e ambição entraram em ação, e eles passaram a dese-
jar tudo aquilo que representava o belo mundo da Luz, e também desejaram unir-se a ele.
Para conseguir isso, as Trevas invadiram o mundo da Luz.

Isto causou um grande distúrbio e tirou o mundo da Luz de seu repouso. Até que tivesse sido
atacada, a Luz jamais ouvira falar da existência das Trevas. Mas depois do ataque, a Luz to-
mou conhecimento das trevas de forma abrupta e desagradável. O mundo da Luz tinha que
dar uma resposta ao ataque, e para isso era necessário criar alguma coisa fora de si mesmo.
Para enfrentar o agressor, a divindade foi obrigada a produzir uma “criação especial” que
expressasse um aspecto de si mesma. Esta criação especial foi chamada de Homem Primor-
dial, e a ele foi atribuída a tarefa de defender o mundo da Luz de seu agressor, o mundo das
Trevas.

Assim, o Homem Primordial foi à batalha contra o mundo das Trevas, mas foi derrotado.
Acontece que, segundo outros relatos, a derrota foi uma decisão voluntária: o Homem Pri-
mordial sacrificou-se a si mesmo de propósito, e deixou-se consumir “como um homem que
permitisse que um inimigo colocasse um veneno em seu alimento e o comesse deliberada-

41
mente”.29 Por meio desta manobra, o Homem Primordial, ou Alma do mundo da Luz, con-
seguiu refrear o ataque das Trevas, pois as Trevas ficaram saciadas com aquilo que consegui-
ram devorar, ou, segundo outros relatos, as Trevas ficaram envenenadas pela Luz que devo-
raram. Seja como for, o ataque das Trevas cessou. Mas o preço desta trégua foi a substância
da Luz ter sido capturada pela Matéria.

Acontece que esta solução dificilmente poderia ser considerada satisfatória do ponto de vista
da Luz, já que agora “a Alma encontrava-se misturada com a Matéria”; e a Alma também
encontrava-se “ligada à matéria como um animal selvagem ou ... adormecida como uma ví-
tima de feitiço”. Ao se mesclar com a Matéria, “a Alma tornou-se sujeita a todas as imperfei-
ções da matéria e, de forma contrária à sua natureza, foi degradada a ponto de partilhar o
mal”.30 Assim, para poder resgatar a substância perdida da Luz, a divindade agora se viu
obrigada a criar o grande cosmos como um mecanismo destinado a separar e redimir a Luz
aprisionada.

Esta é a essência do mito maniqueu, e acredito que já perceberam que se trata de uma pro-
funda e significativa imagem de um aspecto de nossa realidade psíquica.

Bem, vários procedimentos foram instituídos após a derrota do Homem Primordial e da fu-
são da substância da Luz com as Trevas, e um deles nos leva à nossa próxima imagem.

2. A transpiração e a inflamação do desejo

Um mensageiro divino foi enviado ao mundo inferior, aonde a substância da Luz havia sido
aprisionada, com a missão de extrair a substância da Luz e resgatá-la das Trevas. O método
usado pelo divino mensageiro foi o que se denominou a “sedução dos Arcontes”. Os Arcon-
tes eram os filhos das Trevas que estavam de posse da Luz roubada.

Para seduzir os Arcontes, o Mensageiro assumiu forma sedutora: se o Mensageiro estivesse


diante de um Arconte masculino, ele tomaria uma forma feminina; caso contrário, uma forma
masculina. Então, por meio de uma atitude de sedução e encantamento, os Arcontes seriam
excitados sexualmente e forçados a liberar a Luz que houvessem aprisionado, eliminando-a
para fora de si tanto por meio da transpiração quanto da ejaculação. Desta maneira, a subs-
tância luminosa seria eliminada pelo processo de sedução — pela inflamação do desejo. Per-
mitam-me ler uma passagem a respeito disso retirada do livro de Hans Jonas:

[O Mensageiro desceu dos céus e tornou-se] visível para todos os Arcontes, os filhos das Trevas,
machos e fêmeas. E ao verem o Mensageiro, que era extremamente belo em suas formas, todos
os Arcontes ficaram excitados por desejo dele, os machos por sua aparência feminina e as fêmeas
por sua aparência masculina. E em sua concupiscência eles começaram a expelir a Luz dos Cinco
Deuses Luminosos que haviam devorado ... Então a Luz que foi liberada foi recolhida pelos anjos
da Luz, purificada, e a seguir armazenada em “barcos” para ser devolvida a seu reino original.31

29 JONAS, The gnostic religion, p. 218.


30 Idem, p. 220.
31 Ibid., p 225s.

42
Bem, esta imagem da inflamação do desejo é bastante relevante psicologicamente. É interes-
sante saber que existe uma figura alquímica um pouco mais complexa que corresponde exa-
tamente a esta imagem. Ela foi retirada do tratado alquímico Splendor solis, e mostra uma
grande retorta alquímica no interior da qual estão um pequeno homúnculo e um dragão. (fig.
3-1). Em uma das mãos do homúnculo está um fole ou leque com o qual ele abana o fogo do
dragão ígneo; na outra mão ele leva um vaso com água com a qual ele extingue a chama.
Isso torna a questão um pouco mais complexa do que a imagem maniquéia original, mas
trata-se do mesmo tema em questão: a inflamação do desejo.

Figura 3-1: O fogo do dragão.

Mas há também um outro tema alquímico, a caixa de transpiração, que aponta para a mes-
ma ideia (fig. 3-2). Nesta imagem, o rei encontra-se sentado numa grande caixa de transpira-
ção que tem um fogo ardendo abaixo dela. O rei está sendo submetido a um intenso calor

43
que extrai pela transpiração a aqua permanens dele. Esta é outra versão da inflamação do
desejo.

Ora, como podemos aplicar estas imagens de maneira psicológica? Certamente um aspecto
do processo analítico, durante o qual o paciente abre o inconsciente e expõe o ego aos con-
teúdos do inconsciente, torna visível diversos desejos que por longo tempo estiveram ador-
mecidos. É como se os arcontes que vivem no inconsciente tivessem sido cortados ou cindi-
dos da vida consciente. É então que a consciência envia um mensageiro para os arcontes
subterrâneos do inconsciente e faz com que eles manifestem estes desejos proibidos que fo-
ram a causa de seu banimento. Desta maneira, cria-se uma espécie de caixa de transpiração
que pode levar à extração do material luminoso aprisionado pelos complexos inconscientes.
Esta, então, é uma maneira de aplicar na prática a ideia.

Mas há outra maneira de recuperar a Luz aprisionada nas Trevas, e isso nos leva à nossa
terceira imagem.

Figura 3-2: O rei no banho de transpiração

44
3. A roda de luz maniquéia

Esta roda de luz é de fato um belo conceito. O zodíaco é uma grande roda que o sol percorre
totalmente em seu circuito anual. De acordo com os maniqueus, esta vasta roda cósmica da
Via Láctea — o zodíaco — é um enorme mecanismo de salvação cósmica. Os maniqueus a
consideravam como se fosse uma roda d´água dotada de baldes ou caçambas que captura-
vam a água à medida que a roda girava. A ideia era a de que essa grande roda maniquéia de
luz mergulhava sua parte inferior no reino terrestre e dele retirava a luz aprisionada nas trevas
e a devolvia aos reinos superiores. Assim, era um processo de circulação. A luz era capturada
em baixo e levada para cima, e então depositada no barco lunar. A seguir, o barco lunar (o
funil) carregava a luz para mais alto ainda e descarregava-a no sol. Desta maneira, a lua se
transformava num grande navio-tanque no qual a luz era transportada de volta para cima.

Todo o credo e ética maniqueus estavam estruturados neste vasto simbolismo mitológico de
uma maneira bastante concreta e literal: os maniqueus se consideravam a si próprios uma
parte desta grande roda de luz, e cada indivíduo era tido como um dos baldes ou caçambas
envolvidos no processo de recuperar a luz perdida. Esta imagem de fato é verdadeiramente
bela, e é uma pena que eles a tenham reduzido tanto ao tomá-la de maneira literal porque,
sinto em dizer, eles acreditavam que pudessem acumular a luz perdida comendo os alimentos
adequados! Assim, eles afirmavam que determinados alimentos possuíam mais luz que ou-
tros. Se comessem somente os alimentos corretos, então incorporariam aquela luz em seus
corpos, e após a digestão a luz se tornaria parte deles. Um dos alimentos que era considera-
do particularmente rico em luz era o melão. Bem, minha fantasia pessoal — e ela é somente
uma fantasia, embora neste campo as fantasias tenham seu valor — é que a razão de terem
escolhido o melão é a de ele possuir em seu interior uma infinidade de sementes que seriam
análogas às sementes luminosas aprisionadas na matéria. Este é o meu palpite.

No parágrafo 34, Jung afirma que a roda de luz maniquéia é uma grande imagem do proces-
so alquímico da circulatio. Esta operação alquímica pode ser compreendida psicologicamente
como se referindo a uma circambulação em volta de todos os aspectos da existência de uma
pessoa. Se você percorrer todo o círculo, este processo terminará por acarretar uma separa-
ção ou manifestação da luz. A luz é extraída das trevas. Porém o mito maniqueu, do ponto
de vista psicológico, é limitado: os dois princípio de Luz e Trevas encontravam-se separados
no começo e permanecem separados ao final. No sistema maniqueu a coniunctio jamais o-
corre: ele infelizmente não proporciona uma síntese final.

Este mito de recolhimento das partículas de luz dispersas é similar a uma imagem alquímica
que apareceu em nosso primeiro encontro (parágrafo 12), mas que naquela ocasião não tive
tempo de discutir. Trata-se da imagem de Mercurius enquanto homem original que se encon-
trava disperso por todo o mundo físico. A tarefa do alquimista seria então a de reunir todos
os fragmentos disseminados de Mercurius e restaurá-lo à sua unidade primordial. Numa im-
portante nota de rodapé (parágrafo 6, nota 26), Jung trata da “ideia de unir o Múltiplo em

45
Um”.* Ali ele nos dá diversos exemplos de como alguns Padres da Igreja, especialmente Orí-
genes, elaboraram este tema.

4. O diabo e sua avó

No capítulo 31 Jung afirma que Mani e sua mãe viúva “formam um par que talvez se possa
comparar com o diabo e sua avó”. Isto é uma referência ao conto de fadas de mesmo nome
de Grimm.32 É um conto bastante relevante psicologicamente e darei aqui um resumo dele.

Três soldados desertaram do exército devido ao baixo salário, e se esconderam em um cam-


po de trigo. Eles esperavam que o exército fosse se deslocar daquele local, mas isso não a-
conteceu e eles corriam o sério risco de serem capturados, pois seriam enforcados. É nesse
momento que o diabo aparece e se oferece para salvá-los com a condição de que, após sete
anos, eles se tornassem sua propriedade. Os soldados concordam, e o diabo lhes dá então
um chicote que, quando usado, produzia ouro — de maneira que a partir de então eles pode-
riam viver com conforto. O diabo também lhes disse que teriam uma chance de escapar se
conseguissem resolver um enigma que lhes seria dado após os sete anos.

Durante sete anos as coisas andam bem, mas no final do período eles começam a se preocu-
par. Um dos homens vai até uma velha senhora que vive na floresta. Agora não importa co-
mo ele chegou até ela, digamos somente que a sorte o levou a ela. Acontece que aquela ve-
lha senhora era a avó do diabo — e ela era bastante amigável. Ela então mostra o caminho
ao porão de sua casa e diz a ele: “Esconda-se aí em baixo onde você poderá escutar tudo o
que é dito aqui em cima. Só fique sentado e não se mexa. Quando o dragão (o filho da se-
nhora) vier, eu perguntarei a ele qual é o enigma. Ele conta tudo para mim e então você vai
saber a resposta”.

O enigma era o seguinte: “Vou levá-lo para o inferno, e lá você fará uma refeição. Se for
capaz de descobrir que tipo de carne assada será servida nessa refeição, você estará livre”. A
resposta correta era que a carne seria de uma espécie de cação. A seguir viria a pergunta: “E
o que é que lhe servirá de colher?”, e a resposta é “a costela de uma baleia será a nossa co-
lher de prata”. “E você sabe o que servirá de taça para o seu vinho?” e a resposta é “o casco
de um velho cavalo será a taça de nosso vinho”.

Um conto de fadas muito interessante. O conhecimento das profundezas do inconsciente


proporcionados por alguns contos de fada — quando temos olhos para enxergá-los — é sim-
plesmente surpreendente. Este aqui começa com três homens desertando do exército. Acre-
dito que podemos afirmar que psicologicamente o exército pode simbolizar o funcionamento
paterno altamente estruturado, uniforme, coletivo e masculino. Os desertores abandonam o
seu estado de subordinação àquela condição psicológica, e ao fazê-lo expõem-se a um risco
mortal. Isso porque esta atitude implica numa rebelião pessoal que constela o diabo — o
masculino rebelde e renegado, e agora eles devem lidar com isso se desejarem sobreviver. Se
não aceitarem a oferta do diabo eles certamente serão descobertos, então convém que acei-
tem o trato, mesmo que ele seja arriscado. Podemos entender que o chicote que produz ouro

* “Reunir o disperso” [n. do t.].


32 The complete Grimm´s fairy tales, no 125, p. 563s.

46
quando usado é o poder do ego em ação, que já prenuncia ligeiramente o verdadeiro poder
do Self de fazer ouro. Esse é o chicote — uma imagem poderosa.

O contato com a avó do diabo sugere a possibilidade de estabelecer uma relação pessoal
com o inconsciente e, portanto, ficar como que abaixo do diabo. O soldado se encontra en-
tão abaixo do piso, no porão, escutando o que se diz em cima.

É então que surge a importante passagem do enigma, e com ele uma significativa imagem
simbólica que expressa um dos aspectos do encontro do ego com o inconsciente. O encontro
com o inconsciente sempre submete o ego a um enigma, e o exemplo clássico é o enigma da
esfinge que é uma questão de vida ou morte, porque se a pergunta feita não for respondida,
é a própria vida que será sacrificada, enquanto que, na história de Édipo pelo menos, se o
enigma for resolvido é a esfinge que será sacrificada. Assim, o tema do enigma é um teste
para a consciência que, na verdade estabelece se o ego tem ou não potencial para avançar
para o próximo estágio de desenvolvimento.

Eu entendo o enigma de nossa história como sendo uma referência ao banquete messiânico,
quando a carne de Beemot e Leviatã — simbolizando a psique primordial primitiva — será
comida pelos eleitos.33 O cação é uma espécie de tubarão primitivo. Na disciplina de anato-
mia comparada, somos obrigados a estudar a anatomia de toda uma série de animais da se-
quência evolutiva para compreender de que maneira as estruturas anatômicas se modificam
com a evolução dos animais. O cação é a primeira espécie daquele estudo — é o mais primi-
tivo. Então a carne de cação assada corresponde a servir a carne de Beemot e Leviatã duran-
te o banquete messiânico. Além disso, há também uma referência a Leviatã — a baleia — na
costela que será usada como colher. O casco de cavalo usado como taça de vinho sugere um
espécime mais desenvolvido na escala evolutiva, embora aqui ainda seja um símbolo terio-
mórfico.

Pois bem, tomando este conto como um todo, eu vejo nele a imagética correspondente à
assimilação da psique primordial. À medida em que esta assimilação é obtida, livramo-nos da
ameaça de sermos possuídos pelos conteúdos demoníacos autônomos, porque eles já terão
sido incluídos na consciência maior do todo.

Para traduzir esta história para nossa época, e relacioná-la aos temas desta palestra, pode-
mos afirmar que chegou a época de a mente moderna assimilar o mito maniqueu. Não po-
demos mais considerar Mani a encarnação do mal, e não podemos mais usar os termos
“maniqueísta” ou “neo-maniqueísta” de maneira negativa, como ainda fazem todos os pen-
sadores religiosos ortodoxos. Se formos capazes de assimilar e digerir a psique primordial,
seremos finalmente libertados da possessão pelo diabo.

Como devem saber, Jung frequentemente foi taxado de maniqueu, e isso não é um elogio.
Mas trata-se de um equívoco: ele não é maniqueu. Como já vimos, a característica principal
de todos os sistemas maniqueus é a de serem um eterno dualismo. E de forma alguma Jung
é maniqueu, já que propõe a união dos opostos, a coniunctio. A única ideia que pode apro-

33 Ver EDINGER, A criação da consciência: o mito de Jung para o homem moderno, p. 106.

47
ximar Jung do maniqueísmo é a de que ele leva bastante a sério a existência do mal enquan-
to entidade substancial.

5. Os Paradoxa

Todo o capítulo II do Mysterium é intitulado “Os paradoxa”, e, como já devem ter percebido
— ou breve perceberão —, a alquimia é completamente crivada de paradoxos. Um paradoxo
é uma afronta à consciência lógica, o que o transforma num derrota deliberada para o ego
racional. Quero exortá-los enfaticamente a buscar imagens paradoxais em todos os sonhos
que examinarem. Elas são bastante comuns e indicam que a questão da individuação está
sendo bastante relevante para o sonhador. Paradoxos sempre apontam para o Self.

Quero dar-lhes somente uma bela descrição da natureza paradoxal de Mercurius que Jung
cita em seu ensaio “O espírito Mercurius”. Mercurius descreve-se a si mesmo desta maneira:

Eu sou o dragão impregnado de veneno, que está por toda parte e pode ser comprado por pouco
dinheiro.34 Aquilo sobre o que repouso e que repousa sobre mim será encontrado em mim por
aquele que fizer sua investigação segundo as regras da arte. Minha água e fogo destroem e reú-
nem; do meu corpo extrairás o leão verde e o vermelho. Mas se não tiveres um conhecimento e-
xato de mim, teus cinco sentidos serão destruídos em meu fogo. Minhas narinas exalam um vene-
no que se expande cada vez mais e que já causou a morte de muitos. Por isso deves separar com
arte o grosseiro do fino, se não quiseres conhecer a mais extrema pobreza. Eu te faço o dom das
forças do masculino e do feminino e também as do céu e da terra. Os mistérios de minha arte de-
vem ser manejados com coragem e grandeza de espírito, se quiseres superar-me pela força do fo-
go, pois muitos já causarem dano a seus bens e trabalho por essa falta. Sou o ovo da natureza,
que só os sábios conhecem; eles criam a partir de mim, piedosa e humildemente, o microcosmo,
preparado por Deus para o homem, por Deus, o Altíssimo. A maioria aspira em vão, pois a pou-
quíssimos é dado: que os afortunados façam bem aos pobres com meu tesouro e não prendam
sua alma ao ouro perecível. Os filósofos me designam pelo nome de Mercurius; meu esposo é o
“ouro filosófico”; eu sou o velho dragão que pode ser encontrado no mundo inteiro: pai e mãe,
jovem e ancião, muito forte e fraco, morte e ressurreição, visível e invisível, duro e mole; desço à
terra e subo ao céu, sou o mais alto e o mais baixo, o mais leve e o mais pesado; frequentemente
a ordem da natureza se inverte em mim no que se refere à cor, medida, peso e número; contenho
a luz da natureza (naturale lumen); sou escuro e claro, provenho do céu e da terra; sou conhecido
e ao mesmo tempo não tenho existência alguma; graças aos raios do sol, todas as cores e metais
brilham em mim. Sou o carbúnculo do sol, a terra pura e mais nobre através da qual podes trans-
formar cobre, ferro, estanho e chumbo em ouro.35

Mais adiante no mesmo ensaio Jung resume os múltiplos aspectos de Mercurius. Quero lem-
brar-lhes de que ele está falando a respeito do inconsciente, de forma que estas coisas não
são só absurdas irrelevâncias para nós. Ele diz:

(1) Mecurius consiste de todos os opostos possíveis e imagináveis. Ele é uma dualidade manifes-
ta, porém sempre designada como unidade, se bem que suas oposições internas possam apartar-
se dramaticamente em figuras diversas e aparentemente autônomas.
(2) Ele é físico e espiritual.

34 Este é o dragão que já apareceu em “O diabo e sua avó”.


35 Estudos alquímicos, OC 13, par. 267.

48
(3) Ele é o processo de transformação do plano físico e inferior no plano superior e espiritual, e
vice-versa.
(4) Ele é o diabo, o salvador que indica o caminho, um “ trickster” evasivo, a divindade tal como
se configura na natureza materna.
(5) Ele é a imagem especular da vivência mística do artifex, a qual coincide com a opus alchymi-
cum (a obra alquímica).
(6) Enquanto a vivência acima referida, ele representa, por um lado, o Self e, por outro, o pro-
cesso de individuação e também o inconsciente coletivo, devido ao caráter ilimitado de suas de-
terminações.36

6. A imagem do ponto

Aprendemos a respeito do ponto como sendo uma entidade quando estudamos geometria. E
quero lembrá-los aqui que a origem da geometria é a própria psique — nenhuma das formas
ou proposições geométricas existem de fato no mundo exterior. Na natureza não existem
pontos ou retas ou planos ou figuras sólidas regulares. Todas estas coisas são projetadas pela
psique na natureza para que possamos lidar com ela de maneira mais efetiva. E assim acon-
tece com o ponto.

É um exercício bastante interessante nos voltarmos para os primeiros geômetras, os gregos,


e descobrir como eles encaravam o ponto. Os pitagóricos pré-euclidianos foram os primeiros
a realizar um trabalho sistemático de geometria, e eles definiam o ponto como sendo “uma
Mônada acrescida de uma determinada posição”. Sua noção de mônada — e isto é uma ou-
tra projeção — era a de que consistia de uma espécie de personificação semidivina da unida-
de ou singularidade; por esta razão chamavam-na de mônada. Ela pertence ao reino das for-
mas eternas e não possui uma existência real visível no mundo físico. O ponto era concebido
como a primeira encarnação da mônada — uma mônada que ganhava existência concreta
pelo fato de ter adquirido uma determinada localização ou posição espacial. Euclides começa
sua obra Elementos definindo o ponto. Para o mito de criação da geometria, é como se o
ponto fosse o Gênesis, capítulo um, versículo um. Trata-se da origem do universo. O ponto é
aquilo que não tem partes constitutivas (a definição de Euclides), o que pode ser traduzido
por “aquilo que é indivisível”. Em outras palavras, o ponto é um indivíduo: aquilo que não
pode ser dividido. O ponto tem posição, mas não extensão, e por não ter extensão não pode
ser dividido em partes.

Platão definiu o ponto como sendo a origem de uma linha, o arché de uma linha (e arché é a
mesma palavra grega usada para nomear a prima materia). Aqui está uma ilustração do teo-
rema geométrico que afirma que um ponto em movimento gera uma linha (fig. 3-3). O pró-
prio ponto não tem extensão, mas quando ele se move ele gera uma linha — um ponto es-
tendido E quando uma linha se move, ela da origem a um plano. E quando um plano se mo-
ve, ele gera um sólido. Estamos aqui diante de um mito de criação. Então vejam que, por
meio de um tríplice movimento de um ponto — o primeiro cria a linha, o segundo o plano, o
terceiro o sólido — o efeito prático disso é criar uma cruz tridimensional na physis, na maté-
ria. Na figura 3-3 indiquei uma representação tridimensional dos três vetores em movimento

36 Idem, par. 284.

49
com ângulos retos entre si. Em suma, uma cruz tridimensional é imposta à matéria e acaba
por trazê-la à manifestação.

Figura 3-3: Três vetores criando um corpo sólido.

O início deste processo então é o “ponto” — a mônada acrescida de posição. Ora, o que
torna esse simbolismo tão importante é que o ponto é uma grande imagem simbólica do Self.
E como tal ele aparece em sonhos, e se vocês estiverem familiarizados com este simbolismo
é bem provável que sejam capazes de identificá-lo e interpretá-lo; caso contrário, esse impor-
tante detalhe passará despercebido.

Jung refere-se ao fato de que o ponto era associado simbolicamente ao fogo e luz (parágrafo
40) e é esta associação simbólica que o conecta à imagem da qual trataremos no próximo
encontro chamada scintillae, ou seja, as fagulhas que brilham nas trevas.

Finalmente, no parágrafo 37 Jung cita um texto muito interessante de Hipólito relativo ao


ponto. Este é o texto que eu chamo de “o iota de Monoímos” que diz assim:

Monoímos é de opinião que deva existir tal homem, assim como o poeta fala de Okeanos, ao di-
zer: “Okeanos é a origem tanto dos deuses como dos homens”. Expressando isso em outras pala-
vras, ele diz que o homem é o todo, o começo do universo, não gerado, incorruptível, eterno, e
que o filho do mencionado homem é gerado, capaz de padecer, sem tempo, feito de modo não in-
tencionado, e não predeterminado ... Este homem é uma única mônada, não composta.

Então existe uma mônada que se encontra subjacente ao ponto.

Não composta, indivisível, amante de todos, pacífica com todos, belicosa com todos, em tudo lu-
tando consigo mesma, dessemelhante e semelhante, quase como uma harmonia musical que con-
tém tudo em si ... que faz tudo visível ao produzir tudo. Ela é sua própria mãe e seu próprio pai ...
É o símbolo do homem perfeito, diz Monoimos, ela é o iota, o pontinho do i.

Portanto o iota é o ponto.

Este pequeno ponto é a mônada não composta, simples e sem mistura, que tem sua composição
tirada do nada e, apesar disso, é composta e multiforme, dividida em muitas partes e formada de
muitas partes. Aquele ponto uno e indivisível tem muitas faces, mil olhos e mil braços: é o ponto

50
do i. Este é o emblema do Homem perfeito e invisível ... O Filho de Homem é o i, aquele risco
uno que corre de cima para baixo, pleno, preenchendo todas as coisas, contendo em si todas as
coisas que estão no Homem, ou seja, o Pai do Filho do Homem.

Como todos os textos deste tipo, ele é um pouco repetitivo porque a imagem descrita pelo
texto precisa ser enfatizada. O texto afirma basicamente que existe um grande iota, a Môna-
da, que é a origem de todas as coisas. Ele corresponde a Oceanus, a origem dos deuses e
dos homens, e é eterno, incorruptível e não-gerado. Nascido dele existe um iota inferior
chamado Filho do Homem, que foi gerado e é capaz de sofrer. Então existem dois pontos: o
ponto original invisível — a Mônada — e o ponto menor, uma entidade geométrica dotada de
posição no espaço que vem à manifestação. A relação entre eles pode ser entendida psicolo-
gicamente como a relação entre o Self e o ego, o grande iota e o pequeno iota.

51
4
PARÁGRAFOS 41 - 50

Esta noite vamos considerar quatro grandes imagens:

1. Múltiplas luminosidades: as scintillae (fagulhas luminosas brilhando na escuridão)


2. Múltiplos olhos: oculi piscium (olhos de peixes)
3. O Olho de Deus
4. O desvestimento

Antes de prosseguir, quero mencionar uma correção na tradução da nota 69 do parágrafo


43 (na décima quinta linha do parágrafo): “o corpo é o sinal” deveria ter sido traduzido por
“o corpo é o sepulcro”.*

1. Múltiplas luminosidades; scintillae (fagulhas luminosas brilhando na escuridão).

As primeiras três grandes imagens são na verdade variações da mesma ideia central: a ima-
gem de pequeninas luzes que brilham na escuridão. Esta imagem é bastante importante para
a psicologia profunda e Jung a discute extensivamente em seu importante ensaio teórico
“Considerações teóricas sobre a natureza do psíquico”. Quero ler algumas poucas passagens
de uma sessão daquele ensaio intitulada “O inconsciente como consciência múltipla”. Aqui
surge a imagem de centelhas luminosas em meio às trevas, as scintillae, que Jung aplica à
natureza da psique:

A hipótese da existência de múltiplas luminosidades se baseia em parte ... no estado semi-


consciente dos conteúdos inconscientes, e em parte na ocorrência destas imagens, que devem ser
consideradas simbólicas, que podemos descobrir nos sonhos e fantasias visuais dos indivíduos mo-
dernos ou nos documentos históricos.37

Dito em outras palavras, imagens arquetípicas. Ele então se refere à alquimia:

Assim se lê na Aurora consurgens, Parte II: Sabei que a terra malcheirosa logo recebe as centelhas
brancas. Khunratth esplica estas centelhas como radii atque scintillae (irradiações e centelhas) da
Alma Universal ou alma do mundo, que é idêntica ao Espírito de Deus ... A mente humana é tam-
bém uma scintilla desta espécie ... [Em outro texto é dito que] na “água da arte” ... encontra-se a
“centelha ígnea da alma do mundo como [formas essenciais das coisas]”. Estas [formas] corres-
pondem às ideias platônicas, o que nos permitiria comparar as scintillae aos arquétipos, admitindo-
se que as imagens eternas de Platão, guardadas “em um lugar supraceleste”, são uma versão filo-

* O erro mencionado está na tradução americana, e não ocorre na edição brasileira [n. do t.].
37 A dinâmica do inconsciente, OC 8, par. 388.

52
sófica dos arquétipos ... Seria então possível concluir que os arquétipos têm em si um certo brilho
ou uma certa semi-consciência, e que, por conseguinte, uma certa luminositas está associada à
numinositas. Parece que Paracelso também teve uma ideia deste fato ... [e diz]: “E do mesmo mo-
do como no homem não pode existir nada sem o númen divino, assim também nada pode existir
no homem sem o lúmen natural. São somente estas duas coisas, o númen e o lúmen que tornam
o homem perfeito. Tudo o que existe provém destas duas coisas ... [e] sem elas o homem não é
nada”.38

Isso realmente expressa, de maneira sintética, a essência do aspecto sintético da análise jun-
giana. Mas há também um aspecto redutivo da análise — análise de um lado e síntese de
outro. Quando estamos lidando com a síntese psicológica, estamos lidando com o processo
que traz ao conhecimento a presença do númen e do lúmen — a intensidade numinosa da
imagem arquetípica e a luz, consciência e percepção que brilha a partir da imagem.

A afirmação de que as centelhas são “as raízes e fagulhas da alma do mundo” equivale nota-
velmente a uma imagem que surgiu no último sonho registrado de Jung antes de ele morrer:
“Um quadrilátero de árvores, todas com raízes fibrosas, que se erguiam do solo e o rodea-
vam. Havia várias linhas douradas que cintilavam entre as raízes”. 39 Aqui estão as “raízes e
as centelhas da alma do mundo”, é exatamente a mesma imagem.

Esta imagem de múltiplas pequenas luminosidade brilhando na escuridão possui dois aspec-
tos: um deles é que a escuridão não é totalmente escura — existe alguma luz na escuridão. O
segundo aspecto é que esta luz, ali, se encontra em estado de multiplicidade. Isso indica que
os complexos inconscientes, que quase sempre trazem em seu núcleo uma imagem arquetí-
pica, possuem uma determinada consciência. E quando o complexo é assimilado, a consciên-
cia nele latente é como que extraída do complexo. O fato de as luzes se encontrarem em
estado de multiplicidade — esparsas de maneira aleatória — significa que elas se encontram
em desacordo umas com as outras e que necessitam ser unificadas.

Esta unificação acontece de fato só quando o ego se defronta com estas luzes. Assim que elas
penetram no campo de conhecimento da consciência, a unidade do ego que as percebe e-
xerce o efeito de unificar as múltiplas centelhas, e isso é sempre acompanhado por uma
constelação do Self como unidade. A maneira exata como isso se dá é um mistério, mas se
estiverem alertas para esse processo em si mesmos e em seus pacientes ficarão convencidos
que isso verdadeiramente acontece. Em suas manifestações iniciais, o inconsciente se mani-
festa a nós como uma multiplicidade; contudo, quanto mais profundamente o ego se com-
promete a se relacionar com ele e a compreendê-lo, mais e mais o inconsciente aproxima
sua manifestação de uma unidade.

Assim como se dá tão frequentemente com a imagética alquímica, esta imagem das centelhas
tem sua origem na antiga filosofia grega. A noção era a de que acima das sete esferas plane-
tárias, na região das estrelas fixas, a terra estava envolvida por uma esfera de éter flamejante
ou ígneo. As estrelas eram entendidas como sendo pequenos orifícios na abóbada celeste
através dos quais se podia perceber o brilho daquela grande esfera de éter flamejante, que

38 Idem.
39 Barbara HANNAH, Jung: his life and work: a biographical memoir, p. 347.

53
era tida por ser a região do Logos Divino, o Nous. Mais tarde, para a concepção cristã, essa
esfera de éter flamejante foi associada ao Espírito Santo.

Um historiador da filosofia descreve isso assim:

Em toda a volta do mundo existe um envoltório de éter chamejante, puro e não-misturado, que
também penetra toda a massa [da terra] constituindo sua alma. Todo o funcionamento ordenado
da natureza resulta de sua ação: seres vivos crescem de acordo com padrões regulares porque a
Razão Divina presente neles é um logos spermatikos, uma forma de vida que se desenvolve a par-
tir de uma semente. Mesmo após ter atingido a terra, uma parte dete fogo divino preserva sua es-
sência pura: são as almas racionais que habitam o coração de cada homem, cada uma delas cons-
tituindo uma partícula do éter flamejante.40

Todas estas pequenas centelhas do éter flamejante que se encontram espalhadas pela terra
eram entendidas como se fossem expressão da Anima Mundi, a alma do mundo, que penetra
não somente os seres vivos mas também a matéria inorgânica. Vejam que é esta alma que
seria responsável pelas leis imutáveis da natureza, fazendo com que todas as coisas se com-
portem de maneira ordenada e não caótica. Os alquimistas herdaram esta imagem e acredi-
tavam que estivessem trazendo à manifestação a alma do mundo em seus laboratórios e re-
tortas.

Esta mesma imagem originada na filosofia grega foi aplicada ao mito de Cristo no primeiro
capítulo do Evangelho de João que diz:

No princípio era o Verbo [o Logos; o mesmo Logos flamejante divino], e o Verbo estava com
Deus, e o Verbo era Deus ... Tudo foi feito por meio dele ... O que foi feito nele era a vida, e a vi-
da era a luz dos homens; e a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a apreenderam .41

Aqui está novamente a Anima Mundi brilhando na escuridão e nesta passagem ela se encon-
tra identificada com o Cristo.

Esta imagem de luzes brilhando no escuro aparece em sonhos e é importante reconhecê-la;


se não for reconhecida, ela não exercerá seu efeito. Um sonho que traga a imagem significa
que o sonhador está pronto para dar um passo adiante na individuação, pronto para estabe-
lecer contato com o inconsciente enquanto portador da luz. Um sonho assim indica que che-
garam os tempos de o ego reconhecer que ele, o ego, não é a única fonte de luz — uma hi-
pótese que todos adotamos de início e que não morre tão facilmente.

Tenho aqui alguns sonhos e outros materiais que servem de exemplo para esta imagem de
múltiplas luminosidades brilhando na escuridão. Aqui está um:

Havia uma escuridão, mas também havia nela uma luminosidade impossível de descrever. Era uma
escuridão que de alguma maneira brilhava. Situada nessa escuridão, havia uma bela mulher doura-
da que tinha uma expressão quase de Mona Lisa. É então que percebo que aquele misterioso bri-
lho emanava de um colar que a mulher vestia. Era de grande delicadeza: pequenas gemas arre-

40 Edwyn BEVAN, Stoics and sceptics, p. 43. Logos spermatikos significa “palavra-semente”, a palavra como
pequenas sementes que devem ser plantadas na terra escura para crescer como se fossem plantas.
41 João 1, 1-5, Bíblia de Jerusalém.

54
dondadas de turquesa, cada uma delas envolvidas por um círculo de ouro avermelhado. Isso tinha
um grande significado para mim, como se houvesse uma mensagem naquela imagem caso eu con-
seguisse decifrar o seu mistério.42

Esta é uma imagem de múltiplas luzes que se encontram unificadas por estarem unidas no
mesmo colar. Interpretei este sonho, esta imagem, como representando Sophia brilhando a
partir da escuridão de seu mergulho na Physis.

Há um outro exemplo importante desta imagem na história de um caso de Adler, em seu


livro The living symbol. Num certo ponto da terapia, a paciente fez uma imaginação ativa na
qual se encontrava lutando com uma grande figura angélica que tinha estranhos olhos huma-
nos. Aqui está a maneira pela qual Adler descreve uma parte desta experiência:

A paciente então concentrou-se no combate com o anjo. Sentiu uma forte necessidade de fitar o
anjo tão próximo quanto possível, e o que mais a deixou fascinada foram seus olhos, que desde o
começo ela já havia percebido serem especialmente poderosos. Quando ... ela olhou “com toda a
concentração possível” para os olhos do anjo ... [ela] “pôde ver, através dos olhos do anjo, um céu
noturno estrelado; mas não se tratava do céu como o vemos acima de nós, mas sim o céu como o
veríamos se estivéssemos em meio a ele” ... Foi ... uma extraordinária experiência de êxtase” ... A
paciente achou que esta experiência somente poderia ser expressa por meio de uma “pintura abs-
trata”, que ela realizou naquela mesma noite.43

A pintura foi denominada O Mandala do Céu Noturno (fig, 4-1) e a paciente a descreve desta
forma:

Ela viu a “moldura” do círculo dourado atravessada pelos dois eixos como representando uma es-
fera tridimensional ... “Esta esfera representa a moldura que mantém o esquema de todas as coi-
sas unificado”. O pequeno ponto no centro ela entende como sendo “o olho”.44

E no interior da grande circunferência estava o céu noturno e a múltipla luminosidade das


estrelas.

Então vejam que o céu noturno é a imagem original das múltiplas luminosidades de centelhas
de luz brilhando no escuro. E isso foi como se aquela experiência e aquela imagem tivessem
sido vistas como um reflexo na terra, na matéria e na psique. Algumas vezes nos deparamos
com sonhos que usam esta imagem de reflexo literalmente: geralmente o sonhador sente que
está olhando para uma superfície de água, uma fonte ou alguma superfície refletora, e então
o céu noturno é refletido nelas. Um sonho como esse constitui um paralelo exato do velho
ditado alquímico: “Céu acima / Céu abaixo / Estrelas acima / Estrelas abaixo / Tudo o que
está em cima está em baixo / Compreende isso / e regozija-te”.45

42 Ver EDINGER, Ego e arquétipo, p. 288s para uma discussão mais ampla deste sonho.
43 The living symbol, p. 219s.
44 Idem, p. 220.
45 Frequentemente citado por Jung; veja, por exemplo, “A psicologia da transferência” em A prática da psicote-
rapia, OC 16, par. 384.

55
Figura 4-1: O mandala da noite estrelada.

Para a paciente de Adler, esta experiência especial e decisiva significou uma reviravolta que a
levou ao insight de que há consciência no inconsciente. Tudo aquilo que começou como lu-
minosidades difusas se transformou, no decurso da imaginação ativa, em uma luminosidade
unificada, pois as duas foram combinadas. Temos aqui tanto a infinidade de estrelas quanto a
imagem unificadora do mandala que se impõe sobre elas — e o Olho de Deus no topo das
várias centelhas.

Mais um exemplo, bastante resumido, sonhado por uma mulher por volta dos cinquenta a-
nos:

Encontrei uma pequena vasilha, do tamanho de uma concha marinha, uma vasilha comum e rasa
com aparência grega que tinha uma borda preta. Quando a virei, percebi que sua parte externa
era bastante curiosa, pois havia várias manchas brancas parecidas com nuvens. Examinando as
manchas melhor, percebi que eram na verdade galáxias de estrelas. Ali havia um salpicado branco
como a Via Láctea. Cada vez que eu examinava aquela vasilha, maior e mais detalhada ela se tor-
nava.

Vejam que o aspecto externo da vasilha foi tomado da imagem do céu noturno.

Percebi que a parte de baixo da vasilha era muito maior do que a parte de cima. Senti que ela me
pertencia e que deveria guardá-la para mim [esta é uma impressão de mau presságio]. Numa cena
posterior, um homem negro bastante sombrio, um Núbio, vestido com um turbante e uma tanga,
como Gandhi, se aproxima de mim. A seu lado vinha também um cachorro castanho escuro —
pensei que poderia ser Cérbero. Bati palmas para que se afastassem, mas de nada adiantou e per-
cebi que agora eu era prisioneira deles. De início não os levei muito a sério, mas o homem come-
çou a fazer com que o cão ficasse mais e mais agressivo. Finalmente me dei conta da gravidade da
situação e disse: “Está bem então, o que é que você quer?”. Foi quando me ocorreu que ele queria
a vasilha de volta.

Um ou dois anos depois esta mulher descobriu ser portadora de um carcinoma do pulmão
que foi operado com sucesso e não recidivou. Não posso afirmar com certeza que tenha exis-

56
tido alguma ligação entre o sonho e este fato, mas sei de outras experiências que o tema
básico de ficar agarrado a algo que seja grande demais para o ego é um traço frequente que
surge na psicologia de casos de câncer. Seja como for, citei este caso porque é um exemplo
da imagem das múltiplas luminosidades do céu estrelado refletidas na vasilha terrestre. A vasi-
lha ou terrina é uma peça feita de terra que, se o ego tenta se relacionar com ela de maneira
inadequada, coloca-o em grande perigo.

Quero mencionar agora uma experiência visionária à qual Jung se refere na nota de rodapé
60 do parágrafo 41. Trata-se de uma imagem reportada por Frances Wickes:

Contemplei acima o espaço e só vi escuridão. Naquele espaço moviam-se forças misteriosas. Não
eram seres divinos ... mas estranhas criaturas primevas nascidas antes dos deuses de forma huma-
na. Elas se escondiam na escuridão. Por meio de seus dedos elas teciam os fios da escuridão e
mantinham-nos indo e voltando. Vi os raios por elas criados como se fossem raios que fluíam para
dentro de uma estrela com múltiplos centros, ou como a convergência de um cristal multifacetado,
mas estes raios não eram de luz, mas de trevas, e as trevas pareciam atrair todas as coisas para
seu interior. Foi então que percebi que estas criaturas estavam criando um grande vazio que não
tinha nem forma nem limites.
Foi então que do centro deste vazio emergiu uma haste isolada, que não sei se era de pedra ou
uma árvore cinzenta e moribunda. Assim que a haste surgiu as criaturas negras afastaram-se até
que nada restou além do grande vazio com a haste vertical em seu centro. Vi então que da haste
pendia uma figura humana que abrigava em seu interior toda a solidão do mundo e dos espaços.
Sozinha, sem nenhuma esperança, aquele Um encontrava-se pendurado fitando abaixo o vazio ...
acolhendo toda a solidão em si mesmo. Foi então que do fundo do insondável negrume surgiu
uma fagulha infinitesimal. Lentamente ela se elevou das regiões profundas e cresceu até tornar-se
uma estrela. E então a estrela ergueu-se no espaço até situar-se em posição oposta à figura, e en-
tão a luz brilhante jorrou sobre o Grande Solitário.46

Frances Wickes associou esta visão ao mito de Odin: para que a sabedoria viesse a existir,
Odin curvou-se nove dias sobre Yggdrasil, a árvore cósmica. Ora, uma imagem como essa
nos dá uma indicação sobre como o encontro do ego com as trevas de alguma forma ajuda
as sementes germinativas da luz a tornarem-se visíveis.

2. Múltiplos olhos; oculi piscium (olhos de peixe)

Neste ponto, as múltiplas luminosidades se transformam em múltiplos olhos, como olhos de


peixe, oculi piscium. Aqui estamos diante de uma grande transição ou transformação: da
descoberta de luzes que brilham na escuridão do inconsciente para a descoberta de olhos que
nos miram a partir daquela escuridão. A presença de olhos indica que a luz que reside no
inconsciente tem um sujeito. A respeito desta esta imagem, no parágrafo 44 Jung diz: “Os
olhos indicam que o lápis s encontra em processo de evolução e cresce a partir destes oni-
presentes olhos”.

46 The inner world of man, p. 245.

57
A história de Argus e Io é um paralelo mitológico com a multiplicidade dos olhos. Jung não
se refere a este mito no Mysterium, mas o faz em seu ensaio “Considerações teóricas sobre a
natureza do psíquico”.47 Permitam que lhes diga a essência do mito.

Io era uma mulher mortal que teve um caso amoroso com Zeus, o que desencadeou o ciúme
de Hera. Na tentativa de manter o caso oculto para Hera, Zeus transformou Io numa bezerra.
Mas Hera não se deixou enganar e ordenou a Argos, o Portador de Cem Olhos, que vigiasse
Io. Os olhos de Argos jamais dormiam: alguns deles estavam sempre abertos (aqui há uma
semelhança crucial com os olhos dos peixes que, por não terem pálpebras, estão sempre
abertos). Mas Hermes matou Argos por ordem de Zeus, quando então Hera enviou um mos-
cardo para atormentar Io. Io foi então obrigada a fugir de lugar para lugar, sem jamais deter-
se, até que finalmente foi restituída à sua forma humana por Zeus.48

Quero chamar a atenção de vocês para este mito básico devido àquilo que ele nos diz psico-
logicamente a respeito da fenomenologia dos olhos do inconsciente. É particularmente instru-
tivo notar que quando Argos, o Observador, foi morto, a experiência de Io de ser observada
foi substituída pela experiência de ser espicaçada e aguilhoada por um moscardo. Eu entendo
esta passagem como significando que, se alguém já se encontra sob o escrutínio do inconsci-
ente (no caso de o Self já ter sido constelado e estar observando essa pessoa), e se esse al-
guém se recusa a admitir o fato e se relaciona com ele de maneira inapropriada (virando as
costas ao Self ou reprimindo a experiência toda — como que matando Argos), então a expe-
riência de individuação é substituída por ser atormentado por um complexo obsessivo.

Entretanto, o que acontece com mais frequência é que o processo se dá de maneira inversa:
o que aparece primeiro é o complexo atormentador e espicaçante. É isso que traz o paciente
à consulta. Então, à medida que o processo é analisado, sempre encontramos em seu núcleo
o fato de que o inconsciente está a requerer atenção. O paciente descobre então que é objeto
de um sujeito que o observa, ou seja, no cerne do complexo há um sujeito conhecedor, dota-
do de sentido e propósito. Um olho, em outras palavras.

3. O Olho de Deus

Aqui estamos diante da mesma imagem, do mesmo fenômeno, exceto pelo fato de que o
olho agora foi unificado. Ele não é mais uma multiplicidade, mas ainda se refere à experiên-
cia de ser visto e conhecido por um outro que se situa no inconsciente.49 O Olho de Deus é
uma imagem especialmente importante da religião egípcia. Rundle Clark tem o seguinte a
dizer:

O Olho do Grande Deus é a Grande Deusa do universo em seu aspecto terrível. Originalmente es-
te Olho foi enviado por Deus para uma missão nas Águas Primordiais ... O Olho é a filha do Deus
Altíssimo. Quando ela (o Olho-filha) voltou da missão, descobriu que havia sido substituída na face
do Altíssimo por um outro, um olho substituto — que podemos interpretar como sendo a lua ou o
sol. Esta foi a causa principal da cólera do Olho e o grande ponto de virada no desenvolvimento

47 A dinâmica do inconsciente, OC 8, par. 394.


48 Funk and Wagnalls standard dictionary of folklore, mythology and legend , p. 527.
49 Ver EDINGER, A criação da consciência, p. 38-55.

58
do universo, pois o Olho jamais pôde ser total e permanentemente apaziguado. O Grande Deus ...
acabou transformando este Olho irado em uma cobra empinada, prestes a atacar, que ele colocou
diante de sua testa para afastar os inimigos.50

Figura 4-2: O olho egípcio de Deus.

Vocês devem se lembrar que na iconografia egípcia um dos atributos que denota realeza é a
cobra empinada ou ureus. (fig. 4-3). Trata-se, então, de um olho deslocado. Este mito nos dá
uma imagem da profunda ambiguidade que acompanha a aquisição de consciência pelo ego.
Mas o que é, afinal, isso que entra no lugar do Olho de Deus? É o ego humano. E quando o
ego ousa existir como um centro autônomo de consciência, o Olho do Self fica profunda-
mente ofendido e neste mito se transforma em uma cobra empinada pronta para dar o bote.

Existe uma ideia similar que foi expressa por uma extraordinária imagem da obra de Simão o
Mago. Jung a descreve em seu ensaio “Símbolos de transformação na missa”,51 ao qual ele
se refere no Mysterium, nota 61 do parágrafo 41. É difícil para nós acompanhar todas estas
referências — já temos material suficiente para examinar sem nos ater a elas — mas há uma
riqueza notável nas notas de rodapé e aqui está um exemplo disso:

Esta é ideia de Simão o Mago, um pouco simplificada. O fogo divino do Logos, ou pneuma,
que reside na alma do indivíduo (e isso corresponde ao fogo divino dos filósofos estóicos) é a
espada flamejante de Gênesis 3, 24. Ora, a espada flamejante foi estabelecida quando Adão
e Eva foram expulsos do Jardim do Éden: para evitar que para lá voltassem, um anjo foi co-
locado no portal do jardim portando uma espada flamejante que se voltava para todas as
direções. A ideia de Simão o Mago é que aquela espada flamejante voltada para todos os
lados é o fogo divino ou Logos que existe em cada indivíduo. Dito em outras palavras, aquela
espada exerce a mesma função que a cobra empinada exerce no mito egípcio. A luz do Self
foi transformada numa entidade hostil e ameaçadora porque a consciência do ego havia nas-

50 Myth and symbol in ancient Egypt, p. 220; (na edição em português, p. 219) [n. do t.].
51 Psicologia e religião, OC 11, par. 359.

59
cido. Ambas estas imagens referem-se ao fato de que o nascimento da consciência egóica
aliena o ego do Self.

Uma pessoa pode viver sua vida totalmente cega para esse estado de coisas. Lemos e rele-
mos os mitos mas não os registramos enquanto eles não estiverem ativados em nossa pró-
pria psique. Contudo, se um certo grau de desenvolvimento psicológico passa a ser necessá-
rio para uma determinada pessoa, então estes mitos tomam vida. Quando, na fase avançada
da vida, o ego maduro começa a restabelecer a conexão com o Self perdida há tanto tempo
atrás — a conexão com a luz interior, com o Olho — o contato inicial é sempre acompanha-
do por profunda ansiedade. Trata-se da ansiedade causada pelo encontro com a aquela cobra
empinada ou com a tal espada flamejante. É por isso que os sonhos com o Olho de Deus são
sempre sonhos muito ansiosos. Não é nem um pouco agradável ser observado pelo Olho de
Deus. Dou vários exemplos disso em meu livro A criação da consciência, razão pela qual não
preciso repeti-los aqui.

Gostaria de falar um pouco sobre a psicopatologia do Olho de Deus como sendo a base da
paranoia. A característica básica da paranoia é a de que o ego inflado, em função da ativação
deste arquétipo, projeta o Olho de Deus no ambiente, de maneira que o ego acaba experi-
mentando a sensação de estar sendo observado, escutado ou perseguido. Toda vez que en-
contrarem a imagem de olhos nos sonhos, desenhos ou pinturas de pacientes, ou outro tipo
desse material, tragam essa possibilidade à mente: alguma tendência paranóide pode estar
começando a se manifestar. Fiquem sempre de olho nisso.

O mito de Io e Argos também é relevante para a sintomatologia paranóide. A observação de


Io por Argos é substituída pela sua perseguição pelo moscardo; ser observado e ser persegui-
do são dois aspectos diferentes do mesmo fenômeno. Não é muito difícil ativar esse proces-
so. Por exemplo, escolho uma determinada pessoa e passo a dedicar uma parte de meu
tempo para observar suas ações e comportamentos...

Comentário: E pronto, você já ativou o processo!

Sim, a pessoa começa então a se sentir desconfortável! O arquétipo foi ativado, como veem.
Trata-se do moscardo Io-Argus. Então, ser observado e ser perseguido são coisas que estão
intimamente interligadas. Sei, por exemplo, que em Nova Yorque, quando você está viajando
de metrô ou em alguma situação coletiva, você deve evitar o contato visual porque ele pode
ser interpretado como persecutório. Quem você pensa que está olhando? Guarde seus olhos
para você mesmo! O paciente paranóide encontra-se na condição de Io: perseguida, obser-
vada e reduzida ao estado de ser incomodada e provocada.

60
Figura 4-3: O ureus ou cobra empinada.

4. O desvestimento

A imagem do desvestimento ocupa um lugar discreto neste material, e alguns de vocês po-
dem até nem ter notado. Retirei essa passagem do parágrafo 42, onde Jung cita um texto
alquímico que diz:

Se um menino de doze anos fosse colocado ao lado de uma menina da mesma idade e igualmente
vestida, não seria possível distingui-los. Mas se lhes tirassem a roupa, então tornar-se-ia manifesta
a diferença.

A seguir, na nota 63, Jung diz:

O motivo da denudatio ou desnudamento remonta ao Cântico dos Cânticos, 5, 3: “Já despi a tú-
nica, devo vesti-la de novo?”. O desvestimento representa a extração da alma.

No parágrafo 42, nota 69, ele menciona outro texto alquímico que se refere ao desvestimen-
to:

Era uma vez um homem que não prestava para nada, mas também não podia ser detido; arreben-
tava as portas dos cárceres e até desprezava os castigos. Entrementes apareceu um homem sim-
ples, humilde e sincero, que conhecia bem a natureza do outro e lhe deu o conselho de ele despir-
se de suas próprias vestes e permanecer nu.

61
Evidentemente que, se o fizesse, ele passaria a ser de mais fácil trato. Jung diz que, “de acor-
do com o texto ... o desvestimento significa putrefação”. Isso é tudo o que ele diz — e isso só
nas notas de rodapé — mas a razão de eu ter dado mais atenção a isso é que o tema é bas-
tante importante no processo analítico.

Um dos aspectos de uma análise é justamente o desvestimento. Frequentemente interpreta-


mos a questão do simbolismo da vestimenta nos sonhos como se referindo à persona. Se
estivermos interpretando os sonhos com um sentido externo, nudez inapropriada ou vesti-
mentas inadequadas muitas vezes podem corresponder a uma persona inadequada. Este nível
de interpretação pode ser perfeitamente adequado então.

Entretanto, do ponto de vista interno, a imagem do desvestimento tem um significado bastan-


te diferente. Aqui nos deparamos com a ideia da extração da alma, ou ao processo de putre-
factio.52 As roupas podem significar o corpo ou a encarnação específica que um dado indiví-
duo está vivendo. Assim, se alguém sonha que suas roupas são removidas e que ele fica nu,
isso pode significar que a psique nua e essencial está sendo trazida à visibilidade.

O conjunto de simbolismo de tirar e vestir as roupas constitui um tema comum associado aos
sonhos de morte. O ato de morrer é frequentemente descrito pelo inconsciente como uma
troca de roupas. Alguns dias antes de uma mulher morrer ela sonhou que iria assistir a um
desfile de moda. Alguns dias antes de meu pai morrer eu sonhei que o encontrei elegante-
mente vestido com um terno novo. Se portanto aplicarmos esse tema ao processo de trans-
formação psicológica, os sonhos de nudez ou de troca de roupas referem-se então a uma
grande transição psicológica, que pode estar relacionada à morte e renascimento.

52 Ver EDINGER, Anatomia da psique, passim.

62
5
PARÁGRAFOS 46–100

Para esta noite as principais imagens são:

1. O enigma
2. A tumba
3. O Enigma Bolognese e suas sete interpretações
4. A árvore e o númen da árvore
5. O númen do túmulo:
a) O sonho dos magos negro e branco
b) O texto de Senior
6. O mito de Cadmus

O encontro de hoje será particularmente difícil, mas não desanimem se tiverem alguma difi-
culdade com ele. Os textos com os quais lidaremos hoje constituem mais um exemplo da
maneira surpreendente pela qual Jung era capaz de extrair a psique de determinado tipo de
material, e espero tornar isso claro para vocês à medida que avançamos.

1. O enigma

Toda esta sessão se refere a uma suposta inscrição feita em uma tumba que, embora seja
considerada espúria, mesmo assim atraiu grande atenção durante vários séculos. A inscrição
tem a forma de uma charada — que é outra palavra para enigma. O tema do enigma é muito
frequente no folclore e outros materiais advindos do inconsciente. O exemplo clássico é o
enigma da esfinge com o qual Édipo foi confrontado. Há algumas semanas atrás nós o en-
contramos no conto de fadas “O diabo e sua avó”, quando o diabo desafiava suas vítimas
com um enigma que, se conseguissem resolvê-lo, escapariam de suas garras. Como vocês se
lembram, com a ajuda da avó dele elas conseguiram obter a resposta correta. 53

No Velho Testamento há dois grandes exemplos do arquétipo do enigma. Toda a história de


Sansão tem como base um enigma:

“Do que come saiu comida,


E do forte saiu doçura.”54

53 Ver acima, cap. 3.


54 Juízes, 14, 14, Bíblia de Jerusalém; discutido em EDINGER, Bíblia e psique, p. 125.

63
O outro grande exemplo no Velho Testamento é o dos enigmas da Rainha de Sabá apresen-
tados ao rei Salomão.55

Vejam que esta é a maneira pela qual o inconsciente quase sempre se apresenta ao ego: por
meio de um enigma. Quando o inconsciente se manifesta a nós, constantemente nos pergun-
tamos: “O que será que isso significa?”. Todo sonho é um enigma. Em última instância, a-
credito que por trás destas manifestações encontra-se o próprio enigma da existência huma-
na. Alexander Pope, em seu poema “Um ensaio sobre o homem”, expressa esse derradeiro
enigma:

Sabei, pois, não vos lanceis a perscrutar Deus:


O adequado estudo da natureza humana é o Homem.
Sonolento neste istmo intermediário,
Um ser obscuramente sábio e rudemente grandioso,
Sábio demais para ser cético,
Débil demais para ser estóico,
O Homem no meio se encontra
Sempre em dúvida se age ou se repousa,
Sempre em dúvida se é Deus ou Besta,
Ou se corpo ou mente privilegia.
Nascido só para a morte, e pensando só para o erro,
Irmão da ignorância, sua razão é tal
Que pensa sempre de mais ou de menos:
Um caos de pensamento e paixão, sempre confuso,
De si se orgulha e de si duvida.
Criado metade para ascender e metade para a queda,
Grande senhor de todas as coisas e ainda vítima de tudo,
Único juiz da Verdade que sempre é lançado em erro:
Eis o Homem, glória, zombaria e enigma do mundo!

Este poema também vem a calhar enquanto estamos falando a respeito do capítulo de Jung
intitulado “Os paradoxa”, já que o paradoxo do homem é a própria essência destes versos.

2. A tumba

A inscrição com a qual estamos lidando encontra-se numa tumba, e a tumba é um símbolo
do inconsciente. Gostaria de lembrá-los, por exemplo, da primeira ilustração de O homem e
seus símbolos: um túnel que leva para baixo em direção à tumba de um dos faraós egípcios
(fig. 5-1). Por um lado a tumba representa o mundo dos mortos. Mas ela também se encon-
tra muito associada ao útero ou ventre: não só é ela o depósito da pessoa morta mas simbo-
licamente conota o nascimento do indivíduo ressuscitado. Além disso, na alquimia a tumba é
uma das imagens usadas para descrever o vaso alquímico. Os alquimistas costumam chamá-
lo de tumba por ele ser o continente de todo o processo de transformação, cuja característica
básica é morte e ressurreição. Todos estes elementos pertencem à imagem da tumba com
sua inscrição.

55 Idem, p. 162s.

64
Outra maneira de abordar o tema da tumba é que ela simboliza o pano de fundo psíquico da
existência. O ego vivente está rodeado pela imagem da tumba: de um lado ela significa o
túmulo dos nossos ancestrais — o ventre a partir do qual nossa psique nasceu — nossa cone-
xão com o passado. Por outro lado, a tumba significa aquele buraco vazio para o qual um dia
iremos depois da morte, completando assim o ciclo que nos conecta com nossos antepassa-
dos. É assim, então, que a tumba simboliza o pano de fundo psíquico e o meio-ambiente da
existência.

Em relação à frase “pano de fundo psíquico”, gostaria de chamar a atenção para uma deter-
minada frase do parágrafo 50 que é muito significativa, onde Jung diz:

Talvez [o autor do epitáfio] nem de longe sonhasse que ... levaria seus contemporâneos e sucesso-
res a indagar acerca da natureza daquilo que constitui o pano de fundo da alma — uma questão
que, no futuro distante, deve substituir as certezas da verdade revelada pela fé.

Bem, é precisamente isso o que a psicologia profunda faz: ela escava o plano de fundo psí-
quico, e é justamente esta escavação que pode substituir as certezas metafísicas das épocas
passadas.

Figura 5-1: Entrada da tumba do faraó egípcio Ramsés III.

65
3. A inscrição e suas interpretações

Vamos começar lendo a inscrição (parágrafo 46). Existem ali dois personagens e, para simpli-
ficar, eu os chamarei Crispis e Priscius para facilitar as coisas.

Crispis: não é homem nem mulher, nem andrógina, nem menina, nem jovem, nem mulher velha,
nem casta, nem meretriz, nem pudica, mas tudo isso.
Não foi arrebatada nem pela fome, nem pela espada, nem por veneno, mas por tudo isso. Não jaz
nem no céu, nem nas águas, nem na terra, mas em toda parte.

Priscius: não é nem marido, nem amante, nem parente, não está triste nem se alegra. (Erigiu) isto
(que) não é nem monumento, nem pirâmide, nem sepulcro, mas tudo isso.
Ele sabe e não sabe a quem edificou (e o quê). (Isto é um sepulcro que dentro não tem o cadáver.
Isto é um cadáver que não tem o sepulcro por fora. Mas cadáver e sepulcro são a mesma coisa).

Jung faz uma observação bastante colorida no parágrafo 47, afirmando que esta inscrição
serviu de “papel mata-moscas* para todas as projeções imagináveis que já andavam muito
soltas no espírito daquele século”. Acredito que essa é uma imagem particularmente atraente
— o papel mata-moscas. Se prestarem atenção no fato, existem papeis mata-moscas pendu-
rados em todos os lugares. Não sei quantos de vocês estão familiarizados com ele. Provavel-
mente ele não é mais utilizado nos dias de hoje, mas antigamente havia um cilindro de papel
mata-moscas pendurado no teto — recoberto de um material pegajoso — e logo que as mos-
cas pousavam sobre ele já ficavam grudadas, e no final do dia o que se tinha era este cilindro
de papel completamente coberto de moscas. Era usado em antigas barbearias, bares, arma-
zéns rurais, açougues e lugares assim. Jung foi atraído para esta inscrição, o Enigma Bolog-
nese, porque ela constitui um exemplo especialmente vívido do papel mata-moscas psicológi-
co. Por sua própria natureza, uma entidade misteriosa e enigmática sempre atrai moscas
psicológicas para ela e as moscas grudam. Quando compreendemos esse mecanismo, vemos
que entidades como essa proporcionam valiosas oportunidades para explorar a fenomenolo-
gia da psique.

Mas então o que é que esse pedaço de papel mata-moscas atrai? Para conseguirmos simplifi-
car e sistematizar de alguma forma a quantidade considerável de material que Jung reúne,
estabeleci sete diferentes interpretações projetadas por vários comentadores para este texto.
Vou dizer uma ou duas palavras a respeito de cada uma delas.

1. A interpretação alquímica. Os alquimistas deram muita atenção ao Enigma. Embora


vários detalhes já tenham sido citados no extenso comentário de Jung, na essência a interpre-
tação alquímica é a de que a inscrição se refere ao processo de transformação da prima ma-
teria no lapis. Crispis, o falecido enterrado neste túmulo, representa a prima materia enterra-
da na tumba do vaso alquímico pelo alquimista, pelo filósofo Priscius, que foi quem construiu
o vaso, a tumba. A prima materia passou pelo processo alquímico de transformação e emer-
giu sob a forma de lapis, aquela coisa paradoxal e multifacetada que não é nem isso, nem
aquilo, “mas tudo”.

*No original em inglês, EDINGER refere-se a “flypaper”, cuja tradução é “papel mata-moscas”, embora a tra-
dução brasileira refira-se a “ratoeira”. A ideia é a mesma, mas optamos por manter a tradução americana para
maior clareza [n. do t.].

66
2. A interpretação personalística ou redutiva. De acordo com essa interpretação, Crispis,
que se encontra enterrada na tumba, era a esposa prometida de Priscius. Muitas vezes, na
antiguidade, uma filha era prometida a um futuro esposo quando ainda se encontrava no
ventre materno — antes ainda de nascer. Esse foi o caso de Crispis, mas infelizmente ela foi
abortada antes de nascer, de maneira que jamais se tornou uma esposa (parágrafo 65). Neste
caso, então, toda a inscrição foi reduzida a um percalço numa vida pessoal — uma interpre-
tação personalística.

3. A interpretação espiritual. Priscius foi um homem real. Mas Crispis foi um espírito
maligno por quem ele foi possuído, e este espírito maligno se transformou numa hamadríade
— um espírito que habita uma árvore (parágrafo 67s). Também poderíamos chamar essa
interpretação de mitológica, já que Jung a amplifica com a discussão do mito de Cadmus. A
interpretação espiritual ou mitológica, então, diz que aquela inscrição refere-se a uma criatu-
ra, Crispis, que é uma entidade espiritual ou mitológica associada ou que habita uma árvore.

4. A interpretação filosófica. De acordo com esta abordagem, Crispis é a personificação


da ideia filosófica da anima mundi. Ela representa a entidade que cria a forma eterna das
coisas e que é descrita por esta notável frase: “Ela traz dentro de si a essência do si-mesmo
[Selbstheit = autótes] de toda a humanidade”. Em outras palavras, a anima mundi é a perso-
nificação do reino platônico das ideias eternas, ou então daquilo que era chamado pelos filó-
sofos neoplatônicos de “universo inteligível”. Trata-se do reino das formas eternas ou poten-
cialidades eternas, a imagem em espelho que irá formatar todas as coisas que forem criadas
na terra. Esta interpretação provavelmente foi projetada por um filósofo.

5. A interpretação erótica. Crispis foi uma prostituta ou ninfomaníaca que se tornou ví-
tima do divino Eros. Jung aproveita a ocasião no parágrafo 95 para apontar que a interpre-
tação, em sua forma geral, ainda é uma das opções viáveis entre as escolas modernas de
psicoterapia.

6. A interpretação eclesiástica. De acordo com ela, o monumento se refere à Igreja. A-


cerca disso, Jung faz um comentário bastante mordaz no parágrafo 97. Ele diz, apesar dos
desgastados argumentos que são citados a seu favor, que a ideia ainda assim tem algum méri-
to do ponto de vista psicológico, pois

O símbolo da Igreja em parte exprime [e em parte substitui] os segredos da alma que os filósofos
projetaram na inscrição (par. 97).

Literalmente, esta expressão é bastante precisa: “o símbolo da Igreja em parte exprime e em


parte substitui os segredos da alma que os filósofos projetaram na inscrição”.

7. A interpretação psicológica. Nesta interpretação, Crispis representa o inconsciente


coletivo que sofre transformação quando é descoberto. Aqui está o que Jung diz no parágra-
fo 98:

67
As projeções interpretativas com que nos ocupamos até agora se identificam com os conteúdos
psíquicos que, na época da Renascença e do Grande Cisma [a Reforma], se desprenderam da
moldura do quadro dogmático e, desde então, permaneceram em estado de secularização, no qual
estavam à mercê do princípio de interpretação naturalístico e pessoal. Somente a descoberta do
inconsciente coletivo trouxe alguma mudança para esse estado das coisas, pois, dentro dos limites
da experiência psíquica, esse inconsciente coletivo vem substituir o reino platônico das ideias eter-
nas, que constituíam o modelo de acordo com o qual as coisas recebiam sua forma; o inconsciente
coletivo oferece para isso os arquétipos, que condicionam de modo apriorístico todas as condições
para dar sentido às coisas.

Esta é a totalidade do parágrafo 98, um parágrafo muito importante que eu espero que vocês
leiam, releiam e reflitam sobre ele. Toda a base da psicologia jungiana encontra-se aqui e,
uma vez que a tiverem entendido, vocês a apreenderam! Enquanto não tiverem chegado lá,
vocês permanecerão inseguros em relação a assuntos abstrusos como arquétipos, inconscien-
te coletivo e coisas assim. Os conteúdos psíquicos que abandonaram suas molduras dogmáti-
cas na época do Renascimento e da Reforma, o “Grande Cisma”, acabaram por voltar a
mergulhar no inconsciente do homem e, consequentemente, agora se encontram disponíveis
para observação e elaboração empírica por meios psicológicos.

Estas sete diferentes observações constituem de fato uma espécie de sumário das diferentes
abordagens da psique. Acredito que deve haver mais algumas outras — pode haver uma in-
terpretação literária, uma relativa às artes plásticas e talvez uma musical — mas as principais
se encontram ali.

4. A árvore e o númen da árvore

Vocês devem lembrar que uma das interpretações foi a de que Crispis era uma hamadríade,
o espírito de uma árvore. Aqui estão alguns exemplos das imagens alquímicas da árvore que
Jung cita em seu ensaio “A árvore filosófica”:56 a árvore em meio a uma fonte, a árvore em
meio a um banho nupcial; a árvore ou pilar no centro de uma piscina da qual uma serpente
desce em alguns casos, ou às vezes uma sereia; a imagem do pilar cósmico no centro do
banho (figura 5-2); a imagem da árvore do mundo; a Árvore Sefirótica da qual falei na segun-
da palestra.57

56 Ver Estudos alquímicos, OC 13, par. 304s.


57 Ver acima, fig. 2-3.

68
Figura 5-2: O pilar cósmico no centro do banho.

69
Nas antigas escrituras hindus, os Upanishads, encontramos esta observação a respeito da
árvore cósmica:

Existe aquela antiga árvore cujas raízes crescem para cima e cujos galhos crescem para baixo —
ela de fato é chamada de A Brilhante, ela é chamada de Brahman, só ela é chamada de A Imortal.
Todos os mundos estão nela contidos, e ninguém é capaz de ir além dela.58
A mesma imagem aparece no Bhagavadgita, onde lemos estes versos:
Há uma figueira
na história antiga,
a gigante Ashvattha,
A imortal,
Com raízes celestes,
E seus galhos na terra;
Cada uma de suas folhas
É uma canção dos Vedas,
E aquele que a conhece
Conhece todos os Vedas.59

Frequentemente encontramos um espírito da árvore associado a estas imagens arbóreas,


talvez em forma de serpente — às vezes enrolada em torno da árvore — ou talvez numa per-
sonificação feminina. Estes espíritos constituem uma imagem da psique enquanto processo
objetivo e orgânico. Trata-se de uma espécie de autorretrato da psique como um todo: uma
imagem da árvore cósmica acompanhada de uma espécie de espírito esvoaçante que nela
vive ou então que habita em sua proximidade. Encontramos a mesma imagem no Gênesis
onde a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal é o local onde habita a serpente que ten-
tou Adão e Eva (fig. 5-3). O númen da árvore corresponderia ao espírito autônomo — aquela
entidade viva e mutável que acompanha a realidade objetiva da psique.

5. O númen do túmulo

O númen do túmulo também é um espírito similar que esvoaça em volta do sepulcro, da


tumba. A ideia é a de que o túmulo é assombrado por um fantasma ou espírito — o númen
do túmulo. Também é frequentemente retratado como uma serpente. E assim como o nú-
men da árvore, também esta imagem se refere à presença viva autônoma, uma entidade psí-
quica objetiva que ronda como assombração o inconsciente. Jung se refere a diversos exem-
plos acerca dos quais quero comentar.

a. O sonho dos magos negro e branco (parágrafo 76)

Jung cita este sonho pelo menos cinco vezes nas Obras Completas, e o discute com alguma
profundidade nos “Arquétipos do inconsciente coletivo”.60 Insisto muito para que leiam o
sonho porque constitui um material bastante importante. O fato de ele citar isso tantas vezes

58 Katha upanishad, II, 6,1; citado em Mysterium, par. 153, nota 212.
59 Citado em “A árvore filosófica”, Estudos alquímicos, OC 13, par. 412.
60 Os arquétipos e o inconsciente coletivo, OC 9/I, par. 70s.

70
indica a importância que atribui a este sonho em especial. O sonho foi sonhado por um jo-
vem estudante de teologia que passava por um período de sérias dúvidas a respeito de sua fé:

Figura 5-3: A Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal.

[O sonhador] estava na presença de um velho bonito, todo vestido de preto. Sabia que era um
mago branco. Este acabara de falar longamente com ele, mas o sonhador não se lembrava do que
ouvira. Somente se lembrava das seguintes palavras: “E para isto precisamos da ajuda de um ma-
go negro”. Neste momento abriu-se uma porta e um velho semelhante ao primeiro entrou, mas
estava vestido de branco. O mago negro disse ao mago branco: “Preciso de teu conselho”, lan-
çando um olhar interrogativo e de soslaio ao sonhador. O mago branco então falou: “Podes falar

71
sem receio, ele é inocente”. O mago negro começou então a contar sua história. Ele viera de um
país distante, onde ocorrera algo estranho. O país era governado por um velho rei que estava
prestes a morrer. O rei escolhera para si um túmulo. Isto porque naquele país havia um grande
número de túmulos bem antigos, e o rei escolhera para si o mais belo. Segundo a lenda, uma vir-
gem nele estava sepultada. O rei ordenou que o túmulo fosse aberto a fim de prepará-lo para si.
Mas quando os ossos da virgem foram expostos ao ar, reanimaram-se subitamente, transforman-
do-se num cavalo negro, que fugiu imediatamente para o deserto e ali despareceu.

Aqui está o númen do túmulo — o cavalo negro que habitava na tumba e se tornou visível
logo que ela foi aberta.

O mago negro ouvira falar dessa história e logo se pôs a caminho para seguir o cavalo. Depois de
muitos dias seguindo seus rastros, chegou ao deserto e atravessou-o até encontrar campos verdes
novamente. Lá encontrou o cavalo pastando e descobriu alguma coisa, precisando por isso do
conselho do mago branco. Encontrara as chaves do paraíso e não sabia o que fazer com elas. Nes-
te momento emocionante o sonhador acordou.

Este sonho pode ser discutido em diferentes níveis e de diferentes pontos de vista, mas quero
considerá-lo sob o ponto de vista da imagem do Deus ocidental. O mago branco — a imagem
boa e benevolente de Deus — chegou ao fim de suas possibilidades e agora precisa recorrer a
seu irmão sombroso, que é o diabo. O fato notável é que o diabo simultaneamente sentiu
necessidade de seu irmão luminoso e veio encontrá-lo. Aqui um movimento recíproco está
acontecendo ao mesmo tempo. Isso sugere que quando os tempos adequados chegam, as
dominantes do consciente e do inconsciente vêm ao encontro umas das outras.

A morte da antiga dominante é indicada pelo fato de que o rei está prestes a morrer. Isso
corresponde ao fato de que a imagem de Deus, a dominante coletiva da psique ocidental,
está moribunda. Para se preparar para a morte, ela abre uma antiga tumba; em outras pala-
vras, ela abre o inconsciente. Isso acaba por ativar o princípio feminino que esteve morto e
sepultado naquela mesma velha tumba, no inconsciente. Como foi aberto, o inconsciente é
penetrado pelo consciente, e como o consciente se lança sobre ele, ocorre uma revitalização:
o númen do túmulo, representado pelo cavalo negro, ressuscita e se torna visível.

Foi Platão que estabeleceu para a psique ocidental o simbolismo básico da imagem do cavalo
negro. Na imagética simbólica platônica do homem enquanto um cocheiro que conduz um
cavalo branco e um negro, o cavalo negro representa as paixões maléficas.61 Diz ele que se
seguirmos as paixões malignas, seremos levados ao deserto. Mas é justamente para lá que o
cavalo do nosso sonho foi e para onde o mago teve que segui-lo — para o deserto, um lugar
de alienação e de experiências selvagens.62 Mas muito significativamente esta experiência
trevosa também conduz à descoberta das chaves do paraíso, à descoberta da completude
perdida — o Self.

Para esta imagem Jung fornece a profunda amplificação da passagem bíblica de Isaías que
fala sobre a era messiânica na qual os opostos serão reconciliados. “Então o lobo morará

61 Ver PLATÃO, “Phaedrus” em The collected dialogues, p. 499s.


62 Ver EDINGER, Ego e arquétipo, cap. 2.

72
com o cordeiro, e o leopardo se deitará com a criança”.63 Esta era messiânica, esta vinda ou
surgimento do Self, só é alcançada após a morte da antiga imagem de Deus, após termos
perseguido o cavalo negro das paixões no meio do deserto, e após termos aberto a tumba
que por muito tempo se encontrou selada. Dito em outras palavras, a era messiânica aconte-
ce como consequência da exploração do inconsciente. Durante este processo de exploração,
dá-se uma reconciliação entre os aspectos luminosos e escuros da deidade, e também entre
os dois aspectos da figura do mago.

Muitíssimo mais poderia ser dito a respeito deste sonho, mas isto basta para dar uma ideia do
porquê de Jung citá-lo tantas vezes e porque o considera tão importante. Ao falar sobre o
sonho em “Arquétipos do inconsciente coletivo”, Jung afirma que às vezes é muito difícil
entender a natureza. Por que a natureza daria a este inocente rapaz um sonho como este?
Mas então Jung diz que ele estava ouvindo o sonho e que ele entendeu o que significava.
Assim, outra forma de compreender isso é que o jovem estudante de teologia foi uma espé-
cie de agente por meio do qual a natureza se comunicou com Jung. Alguém estava ali ouvin-
do atentamente, e então o sonho não se perdeu.

b. O texto de Senior

Este é nosso segundo exemplo do númen do túmulo. Jung o divide em duas partes e é muito
fácil nos perdermos aqui. A primeira parte é citada no parágrafo 74, e ela continua no pará-
grafo 77. Não vou ler o texto original porque é possível que ele os confunda ainda mais. Em
vez disso, vou fazer um resumo do texto.

A imagem é a de uma criança que vai nascer (lembrem-se: quem fala é um alquimista, então
a criança é o filius que vai nascer no interior da retorta). Uma casa deve ser construída para
seu nascimento, e esta casa é o frasco alquímico. O texto diz que esta casa é, na verdade,
uma tumba ocupada ou por bruxas, ou por serpentes, ou ambas, que se alimentam do san-
gue de bodes pretos sacrificados. As bruxas e serpentes são as imagens simbólicas do númen
do túmulo.

Estas criaturas infernais lutam umas com as outras, copulam entre si, e dão à luz um compos-
to impuro e repulsivo. O texto afirma que elas permanecem nesse estado, na casa-túmulo,
por quarenta dias. Um período de quarenta dias pode ter inúmeras associações simbólicas, e
uma delas é a duração simbólica do opus. No final deste período, as serpentes macho lançam
seu sêmen sobre o mármore branco, ou então “no interior da imagem [ou espírito que habita
no mármore]”. Corvos reúnem este sêmen e carregam-no para o cume das montanhas. Os
corvos então se tornam brancos e se multiplicam.

Tudo isso descreve um processo que se realiza na retorta alquímica; é muito fácil esquecer
isso devido à rica e pitoresca imagética. A criança que deverá nascer desta tumba-retorta é o
lapis, o filho dos filósofos. Entretanto, o conteúdo do vaso é escuro, maligno, reptiliano: ser-
pentes, bruxas e sangue de bodes pretos. Uma verdadeira cozinha de bruxa. Mas são justa-
mente estas vívidas características que tornam este conteúdo tão valioso psicologicamente

63 Isaías 11, 6, Versão autorizada.

73
para nós, já que ele corresponde a determinados aspetos do material inconsciente quando
são encontrados pela primeira vez: coisas muito nocivas. E é de importância crucial que este
material nocivo seja contido pelo período de quarenta dias. Se ele vazar para o ambiente
externo, o resultado será toda sorte de atividade má, viciosa e paranóide. Este é o significado
do cavalo negro: as paixões maléficas que constituem o númen do túmulo, aquele material
nefasto que vive no transfundo da psique, nas vizinhanças da tumba. Trata-se de um aspecto
da psique primordial sombrosa. No entanto, se este material for submetido a uma contenção
de quarenta dias (o que corresponde aos quarenta dias de tentação de Cisto no deserto), en-
tão ele será transformado.

Tal transformação é descrita por meio da curiosa imagem do sêmen das serpentes sendo
recolhido do mármore branco. Vocês devem se lembrar que já encontramos a mesma ima-
gem do sêmen no mito maniqueu: a imagem da “sedução dos arcontes” na qual a Luz, que
anteriormente havia sido engolida pelos arcontes, era extraída deles por meios de sedução,
de forma a obrigá-los a ejacular ela novamente.64 O poder criativo é extraído dos conteúdos
escuros — do nível reptiliano da psique — e transferido para os reinos superiores, para os
corvos. Temos aqui uma imagem da sublimatio.65 A seguir, o efeito disso sobre os pássaros
que o recolheram é transformá-los de pássaros negros em pássaros brancos. É então que
acontece a multiplicatio.66

Esta imagem aparece de vez em quando numa análise profunda. Às vezes podemos encon-
trar pequenas porções precisamente deste tipo de material escuro e sujo de maneira súbita e
inesperada. Ora, se já estivermos familiarizados com ele e se já conhecermos algo dele, então
seremos capazes de simplesmente não descartá-lo. “Ah, sim, eu reconheço isso! Isso está
relacionado àquele texto de Senior!”. Ter estas imagens sempre disponíveis na mente pode
ser muito útil.

5. O mito de Cadmus

O mito de Cadmus nos traz outro exemplo do númen da árvore. Novamente temos uma
serpente associada a uma árvore. Vou dar aqui uma visão geral do mito, um pouco diferente
da versão que Jung usa, embora o conteúdo seja basicamente o mesmo.

Cadmus era filho do rei da Fenícia. Sua esposa, Europa, havia sido arrebatada por Zeus e
então Cadmus foi enviado por seu pai para trazê-la de volta. No decurso de suas andanças
ele acabou por chegar à Trácia. Ali sua mãe, que estava com ele, morreu. Cadmus então
resolveu se aconselhar com o Oráculo de Delfos e foi aconselhado a parar de buscar sua ir-
mã, a seguir uma vaca que ele encontraria, e a fundar uma nova cidade exatamente no ponto
onde a vaca se deitasse.

Cadmus fez conforme lhe foi dito. Decidiu sacrificar a vaca e enviar seus companheiros a
uma fonte para trazer a água necessária. Ali eles encontraram uma serpente que guardava a
fonte, e a serpente matou seus companheiros. Cadmus então lutou com aquela serpente ou

64 Ver acima, cap. 3.


65 Ver EDINGER, Anatomia da psique, cap. 5.
66 Idem, p. 242s.

74
dragão (em grego a palavra “dragão” significa serpente — são imagens equivalentes). Após
um grande esforço ele conseguiu matar o dragão e espetá-lo contra um tronco de carvalho
(fig. 5-4). Como diz Jung no parágrafo 82: “este ato parece ser o banimento do perigoso
demônio para dentro do carvalho”. É aqui que surge a conexão da árvore com o númen da
árvore.

Por ordem de Atená, após a morte do dragão, Cadmus semeou os dentes do dragão na ter-
ra. A partir destes dentes nasceu um exército de homens armados que começaram a lutar e
matar uns aos outros, exceto cinco. Foram estes últimos cinco sobreviventes que ajudaram
Cadmus a construir a cidade de Tebas, e quando a tarefa já estava cumprida Cadmus recebeu
como esposa Harmonia, a filha de Ares e Afrodite.67

Jung faz uma interpretação tão elegante deste mito que quero lê-la para vocês. Ela está no
parágrafo 83:

O sentido psicológico do mito é transparente [transparente para Jung!]: Cadmus perdeu sua irmã-
anima porque ela havia fugido junto com o Deus supremo para o reino do sobre-humano e do in-
fra-humano, isto é, o inconsciente.

Foi para o reino supra-humano porque ela foi arrebatada por Zeus, e para o reino sub-
humano porque Zeus assumiu a forma de um touro para arrebatá-la e porque mais tarde ela
seria transformada numa vaca.

Por ordem divina, Cadmus não deve cometer nenhuma regressão que crie situação de incesto; por
isso lhe foi oferecida uma mulher. Mas sua irmã-anima assumiu o papel de psicopompo sob a
forma de uma vaca (em correlação com Zeus-touro) e o leva a cumprir seu destino de matador de
dragão, já que a transição do relacionamento irmão-irmã para o relacionamento exogâmico não é
tão simples.

Em outras palavras, a luta com o dragão é o estágio intermediário entre o nível incestuoso da
organização da libido e o nível exogâmico.

Se conseguir isso, Cadmus é então recompensado com a “Harmonia”, que é irmã do dragão
[filha de Ares e Afrodite]. Evidentemente o dragão é “Disarmonia”, como provam os lutado-
res que surgiram dos dentes dele. Eles mesmos eliminaram-se uns aos outros, como afirma a
máxima de Pseudo-Demócrito “natura naturam vincit” [a natureza vence a natureza], que
nada mais é do que a formulação teórica da imagem do Ouroborus. Cadmus se atém à
“Harmonia”, enquanto os opostos do inconsciente, sob a forma de projeções, se devoram
uns aos outros. Esta imagem representa o desenrolar de um conflito que divide a pessoa: a
batalha ocorre no interior dela.

Este material é muito importante. Quando alguém se empenha em confrontar-se com um


complexo que ativa ou que contém o componente do dragão, imediatamente ativa o conflito
dos opostos — os homens armados que nascem dos dentes do dragão.

67 Funk and Wagnalls standard dictionary, p. 179.

75
Neste ponto, é de crucial importância agarrar-se a um estado de harmonia do ego enquanto
o complexo sofre um processo de autodestruição. Em outras palavras, é crucial não se identi-
ficar com o processo de transformação que se opera no interior do complexo. Identificar-se
com ele significa situar-se bem no meio dos homens armados que estão se destruindo uns
aos outros: nós nos unimos a eles só porque caímos em identificação com eles. “Cadmus se
atém à ‘Harmonia’, enquanto os opostos do inconsciente, sob a forma de projeções, se de-
voram uns aos outros. Esta imagem representa o desenrolar de um conflito que divide a pes-
soa: a batalha ocorre no interior dela mesma”.

Ora, esta é a mesma ideia explicitada na história anterior, quando a turbulência caótica das
bruxas/serpentes devia ser contida no interior do vaso/tumba durante quarenta dias. A con-
tenção é o que se torna crucial: a consciência experimenta o que está se passando no in-
consciente mas não se identifica com aquilo. Algo muito difícil de se fazer, mas absolutamen-
te crucial.

76
6
PARÁGRAFOS 101–129

Antes de examinar o material desta noite tenho duas adições à tradução às quais gostaria de
chamar sua atenção. A primeira se encontra perto do final do parágrafo 108 na sentença que
diz: “de que provém todo o princípio da vontade (motus voluntatis) ...”. Esta frase deve ser
“de que provém todo o princípio da vontade ( motus voluntatis) e o princípio de todo impulso
para a vida”.* O “impulso para a vida” é uma frase muito importante, pois Jung está definin-
do a natureza de Sol, e o impulso para a vida é uma de suas características.

A segunda adição deve ser feita ao final do parágrafo 124, onde uma sentença que propor-
ciona sentido e amplificação foi omitida na tradução. Em seguida à sentença que termina
com “acender-se de uma lâmpada elétrica”, acrescentem isso:

O significado de Sol e Luna se acha expresso de modo adequado nas palavras de Goethe:

“Se o dia sorri para nós claro e ajuizado,


A noite nos envolve na trama do sonhado.”68**

As imagens principais do material desta noite são:

1. A Visão de Arisleu: uma fábula de incesto


2. O simbolismo de Sol
a. O sol e sua sombra
b. Sol como pai e filho
c. A tríplice filiação de Basilides
d. O sol como ego e o sol como Self

Na sessão introdutória do encontro de hoje, Jung faz algumas férteis observações a respeito
da relação entre os sexos, sobre as quais eu gostaria de chamar sua atenção. Ali ele está fa-
lando do simbolismo da coniunctio e do fato de que as figuras do macho e da fêmea repre-
sentam as principais imagens que simbolizam os opostos que se unem na coniunctio. No
parágrafo 101 ele diz:

* Esta omissão não ocorre na tradução brasileira [n. do t.].


68 Fausto, parte 2, ato 5, “Noite profunda”’’’’’’’.
** Idem.

77
Ao estabelecer esta contraposição [do masculino e do feminino], pensa-se primeiro na força da
paixão e do amor, ao passo que se esquece o fato de que uma atração tão intensa somente é re-
querida onde existe uma força oposta a separar as partes. Ainda que a inimizade tenha sido esta-
belecida só entre a serpente e a mulher (Gen 3, 15),69 ainda assim a mesma maldição se estende
também ao relacionamento dos sexos entre si. Foi dito a Eva: “Sentirás desejo de teu marido, mas
ele deve ser teu senhor!” (Gen 3, 16). E a Adão foi dito que “a terra será amaldiçoada” por causa
dele, porque Adão “ouviu a voz de sua mulher” (Gn 3, 17). Entre ambos existe a culpa original, is-
to é, uma amizade rompida, que parece absurda só à nossa razão, mas não à nossa natureza psí-
quica.

Esta é a descrição de um estado que sempre existe entre os opostos em geral: a relação entre
os sexos é somente um exemplo particular de um fenômeno que é geral.

1. A Visão de Arisleu: uma fábula de incesto

Para ilustrar um dos aspectos da culpa primordial que existe entre os sexos, Jung segue em
frente explicando que o fato de haver uma união inicial entre eles toma um aspecto negativo
e culposo representado pelo simbolismo do incesto. Na imagética alquímica o exemplo clás-
sico disto é a Visão de Arisleu, e Jung trata disso como se todos nós estivéssemos completa-
mente familiarizados com ela, o que é uma hipótese bastante otimista! Por isso vou resumir a
Visão de Arisleu para vocês. Ela é discutida por Jung em seu livro Psicologia e alquimia em
duas passagens.70 Como esta história é uma imagem fundamental da alquimia, é importante
conhecê-la detalhadamente. Mais ainda, ela será muito relevante na amplificação de motivos
que surgem na análise de sonhos.

A história básica é a seguinte: O Rex marinus, o rei dos mares, tem um reino sob o mar e ali
vive bem no fundo. O problema que acontece com aquele reino é que nada prospera e nada
ali é gerado; ali não se dá nenhum nascimento porque só os semelhantes se unem a seme-
lhantes. Para que coisas nasçam, são os opostos que devem se unir — os dessemelhantes
devem se unir. Quando são os semelhantes que se unem, como é o caso do reino submarino,
não há procriação.

Neste estado de coisas, o rei pede auxílio para o filósofo Arisleu, fazendo com que ele venha
para baixo para fazer uma consulta — uma consulta médica domiciliar, por assim dizer. Aris-
leu atende ao seu chamado e mergulha até o fundo do mar. Ele avalia a situação e informa
ao rei que os dois jovens gestados em seu cérebro, seu filho Gabricus e sua filha Beya, devem
se unir em casamento.

Então o que aconteceu é que Arisleu, o filósofo (os alquimistas denominavam-se a si próprios
como ”filósofos”), realizou um corajoso mergulho no mundo inferior para levar este conselho
ao rei de forma a que seu reino pudesse prosperar. Entretanto, quando o rei acatou seu con-
selho e Beya e Gabricus se uniram, Beya “abraçou Gabricus com tão intenso amor que o

69 “Colocarei inimizade entre ti e a mulher, e entre tua linhagem e a linhagem dela; ela te esmagará a cabeça e
tu lhe ferirás o calcanhar.” (Bíblia, versão autorizada).
70 OC 12, par. 435-440 e 449-450.

78
absorveu completamente em sua própria natureza [feminina], e o pulverizou em partículas
indivisíveis”.71 Assim, por ter seguido o conselho do filósofo, o filho do rei morreu.

Isso fez com que Arisleu ficasse em perigo. Como castigo pelo seu aparentemente desastroso
conselho, Arisleu e seus companheiros foram aprisionados em uma tríplice casa de vidro
juntamente com o cadáver do filho do rei (a tripla casa de vidro é a retorta alquímica). Eles
são então encerrados neste frasco alquímico e submetidos a um intenso calor e a todo tipo de
terror por oitenta dias. Numa das versões da história o vaso no qual eles estão aprisionados é
o ventre de Beya. Em outra versão, Beya pede para ficar junto dos outros prisioneiros, então
há uma pequena variação. Contudo o ponto básico é o aprisionamento no frasco alquímico e
a condição de ser submetido a um intenso calor.

Após ter sofrido esse intenso calor, assim como as três figuras bíblicas na fornalha de Nabu-
codonosor (Daniel 3, 11-30),

Arisleu e seus companheiros veem seu mestre Pitágoras em sonho e lhe pedem ajuda. Pitágoras
envia então seu discípulo Harforetus, “o autor do alimento”.72

O discípulo acaba por trazer Gabricus de volta à vida com o milagroso alimento da vida —
Harforetus ressuscita Gabricus. Pitágoras então lhe diz:

Escreveis e já escrevestes para a posteridade como é plantada esta árvore preciosíssima, e como
aquele que come dos seus frutos nunca mais terá fome.73

Bem, esta é a Visão de Arisleu. Agora permitam-me fazer alguns comentários a respeito dela
para fixá-la em nossa mente e frisar a sua relevância psicológica. O reino submarino é, evi-
dentemente, o inconsciente, e ele é estéril porque os opostos ainda não vieram à existência
— luz e trevas, macho e fêmea, etc., ainda não foram separados. Outra forma de expressar
esta ideia é que os pais do mundo encontram-se num estado de eterna coabitação.

Isso significa que é indispensável haver a consciência do ego para fazer surgir a separação
dos opostos, e é precisamente isso que acontece quando Arisleu, o ego, descende para o
inconsciente. Vejam, até que Arisleu tenha lá descido, nem sequer sabíamos que Gabricus e
sua irmã Beya existiam — só depois do descenso é que sua existência é descoberta. E isso
significa que o mergulho do ego no inconsciente resulta na separação dos opostos.

Mas agora que eles de fato existem, é preciso que eles se unam em casamento. Sucede que,
quando se unem, dá-se um aparente acidente: Gabricus morre. Este é precisamente o tema
da conjunção menor,74 que se refere a uma união prematura de opostos que ainda estão
insuficientemente separados. Vocês devem se lembrar de que algumas semanas atrás falamos
disso, quando citei o exemplo da novela de Goethe Os sofrimentos do jovem Werther.75 A
Visão de Arisleu é uma outra coniunctio de morte. Em outras palavras, trata-se de um incesto

71 Idem, par. 439, nota 49.


72 Ibidem, par. 449.
73 Ibidem.
74 Ver EDINGER, Anatomia da psique, p. 227-31.
75 Ver acima, cap. 2, item 3: a coniunctio da morte.

79
inconsciente. O Werther de Goethe foi outro exemplo da mesma coisa: o profundo anseio de
Werther por sua amada Lotti é um desejo incestuoso por estar contido pela mãe. A expres-
são concreta de tendências incestuosas inconscientes é sempre seguida por uma catástrofe.
Contudo, quando o incesto ocorre conscientemente, ele se refere à união do ego com a sua
origem, psicológica e subjetivamente; quando esta união ocorre conscientemente — quando
sabemos o que estamos fazendo — então a partir dela nasce a Pedra Filosofal.

Em seguida à morte de Gabricus vem o aprisionamento de Arisleu e seus companheiros, e a


provação do calor intenso — a calcinatio — que dura oitenta dias; em outras palavras, duas
vezes quarenta: o simbolismo numérico aqui é importante. Como resultado de ter sido supor-
tado este período de intenso calor e terror, ter suportado uma condição carregada de afeto, o
Self se manifesta na figura de Pitágoras. É como se a energia perdida pelo ego durante seu
confinamento fluísse em direção ao Self, ativando-o e fazendo com que ele se torne visível.
Quando isso ocorre, o mensageiro traz o alimento imortal — o nutritivo contato com o Self —
que então tem o efeito de reviver Gabricus.76

Pitágoras instrui Arisleu a escrever acerca de “como é plantada esta árvore preciosíssima, e
como aquele que come de seus frutos nunca mais terá fome”. Esta árvore corresponde à
Árvore da Vida situada no Jardim do Éden. Os opostos, uma vez separados, devem ser no-
vamente unidos numa coniunctio consciente para que se possa recuperar o estado de totali-
dade original simbolizado pelo Jardim do Éden.

Entretanto, todo este processo é experimentado como um incesto, e desta maneira represen-
ta uma violação do mais profundo tabu do ego. Jung fala a respeito da grande ambiguidade
de todo o processo de incesto para o homem moderno, problema no qual Freud, por meio
de sua descoberta do complexo de Édipo, foi o primeiro a tropeçar. No parágrafo 103 ele
fala de três formas de lidar com este problema:

Também neste ponto se mostra novamente o contraste entre a alquimia e o ideal cristão dominan-
te, que procura restaurar o estado primitivo da inocência por meio da vida claustral e, mais tarde,
por meio do celibato sacerdotal. O conflito entre a vida do mundo e o modo de ser do espírito,
que originariamente se encontrava latente no mito de amor da mãe e do filho, foi elevado pelo
cristianismo ao estado de núpcias místicas do sponsus (Christus) e da sponsa (Ecclesia), ao passo
que a alquimia o situou na physis como a coniunctio solis et lunae.

Aqui Jung está falando a respeito do fato de que o inconsciente tem uma necessidade urgen-
te de promover o incesto. Toda pessoa que estabeleça qualquer relação com o inconsciente
se depara com este fato. O cristianismo tentou lidar com este problema transferindo a ques-
tão do incesto para o plano metafísico, elevando-o a um casamento místico de Cristo com
sua Igreja. Os alquimistas, por outro lado, transferiram o problema do incesto para o plano
físico — sob a forma de coniunctio de Sol com Luna — que eles imaginavam ser material e se
dar no interior do frasco alquímico. Jung continua:

76Aqui somos lembrados do sonho de Jung de junho de 1914, contado em Memórias, sonhos e reflexões, p.
156-7.

80
A solução cristã dada ao conflito é de natureza puramente pneumática [espiritual], enquanto que o
relacionamento físico dos sexos passou a ser uma alegoria e, quando ultrapassa certa medida legal,
se torna um pecado que perpetua ou aumenta o peccatum originale. A alquimia, porém, elevou
justamente a pior transgressão da lei, isto é, o incesto, para ele se tornar o símbolo da união dos
opostos, esperando deste modo trazer de volta a era de ouro. Ambas as orientações concebem a
solução do problema da transferência da união dos sexos para outro meio; a religião a projeta no
espírito, e a alquimia a projeta na matéria. Nenhuma das duas, porém, situa o problema no pró-
prio meio em que ele surgiu, que é a alma humana.

Isto de fato resume o problema: a questão do incesto é enfrentada seja projetando-a no espí-
rito, seja projetando-a na matéria, quanto tomado-a como realidade psicológica. Podemos
espiritualizá-la, materializá-la ou enfrentá-la como realidade psicológica. As duas primeiras,
espiritualizar ou materializar, embora já tenham sido muito úteis nos tempos antigos, agora
representam, para o homem moderno, uma fuga ou deserção.

2. O simbolismo de Sol

Os alquimistas consideravam Sol como sendo uma substância concreta, e podemos entender
que eles estavam falando de uma substância da psique. Sol era entendido como sendo o fogo
celestial central; trata-se da fonte fecundante de calor e luz e da origem do impulso da vida
(foi por esta razão que fiz questão de acrescentar “impulso da vida” na nossa tradução). Al-
gumas das inúmeras metáforas usadas para descrever Sol são luz, calor, sulphur, vermelhi-
dão, ouro, fogo e determinadas espécies de frutas — especialmente laranjas e limões!

Sol era entendido como a fonte central e, de maneira apropriada, seu simbolismo alquímico é
um círculo com um ponto no centro. O mesmo símbolo é usado para o ouro, pois ambos
eram entendidos como constituindo a mesma substância. O ouro era o material solar deposi-
tado nas vísceras da terra pelas incontáveis revoluções solares em volta da terra.

No homem, Sol representa a fonte central do fogo divino. No parágrafo 110, Jung afirma
que, de acordo com DORN, “da mesma maneira que o sol físico ilumina e aquece o universo,
assim também, no corpo humano, existe no coração um arcano solar a partir do qual a vida
e o calor se irradiam”. Eu acredito que foi esta imagem que deve ter estado no fundo das
mentes dos antigos anatomistas quando eles nomearam o importante complexo de nervos e
gânglios situado na região epigástrica de plexo solar. Quando somos expostos a afetos muito
intensos, o plexo solar se torna incandescente; podemos sentir o calor dele — e isto é o sol
interior.

a. O sol e sua sombra

Em meio ao simbolismo do sol, aprendemos que ele não somente é associado à Deidade e à
força criativa do fogo e da vida, mas também que ele possui diversos paralelos com o inferno
e com o diabo. Aprendemos que existe um Sol Niger, um sol escuro; que existem não so-
mente uma irradiação luminosa de Sol, mas também uma irradiação escura de Sol. Sendo
assim, um dos textos alquímicos afirma que devemos extrair o raio luminoso do sol de sua
sombra.

81
Tenho uma pintura feita por um paciente de que tratei há muitos anos quando eu estava
trabalhando no Rockland State Hospital. Aqui não terei tempo de entrar em detalhes a res-
peito do caso — o paciente havia sofrido um surto psicótico, embora na época em que eu o
acompanhei ele já se encontrasse compensado. Esta é a última figura de uma série delas (fi-
gura 6-1). Trata-se de fato de uma imagem de um mandala quaternário e o paciente afirmou
especificamente que se tratava do sol. Ele escreveu “raio solar” em quatro diferentes idiomas,
e é interessante notar que este sol emite tanta escuridão quanto luz — um exemplo do sol
com sua sombra que corresponde precisamente à imagem alquímica.

Figura 6-1: O sol negro (Sol Níger).

Como Jung diz no parágrafo 113, o significado básico do sol é consciência, e contudo parte
do simbolismo da consciência é a escuridão. Aqui está um exemplo deste fenômeno, sonha-
do por uma profissional negra do sexo feminino:

Uma mulher negra foi submetida a uma brilhante luz de um holofote e estava sendo acusada de
um crime. A evidência de sua culpa era o fato de ela projetar uma sombra negra sobre o solo
quando era iluminada por aquele holofote.

Como Jung menciona, não vemos literalmente raios negros irradiando do sol, mas vemos
sombras sempre que um objeto material se interpõe na trajetória da luz. A sombra não existe
a menos que um objeto concreto bloqueie a luz; portanto, a sombra é algo criado.

Jung considera este fato profundamente significativo do ponto de vista psicológico. Na medi-
da em que uma pessoa não vive sem possuir uma substância, na medida em que uma pessoa
não demonstra ter peso e consistência material, mas existe como se fosse uma difusa, diáfa-
na, transparente e indefinida entidade, não haverá sombra. E sombra é uma qualidade que se

82
encontra associada a tudo o que é mau e repreensível — ninguém quer ser associado com
uma sombra, já que isso acarreta culpa. Entretanto, a única forma de não projetarmos uma
sombra é não possuirmos nenhuma materialidade. Jung atribui grande importância a esta
imagem concreta, pois ela representa uma descrição real da natureza da existência psicológi-
ca. Se tivermos peso, matéria e substância definida, sempre projetaremos uma sombra ao
mesmo tempo. Isso é simbolizado pela ideia de Sol possuir tanto raios luminosos quanto es-
curos.

[Neste ponto houve um comentário da audiência a respeito de uma jovem anorética].

É verdade: se ela se tornar magra o suficiente, ela não projetará mais sombra.

Outro aspecto perigoso do princípio de Sol é o de que desde que ele é fogo, seu excesso
pode ser destrutivo. Uma quantidade adequada dele representa calor vivificante, enquanto
uma quantidade excessiva representa aniquilação. Um exemplo disto nos é dado pelo mito de
Eros e Psiquê. Como segunda tarefa de Psiquê, Vênus ordenou-lhe que obtivesse uma mecha
da lã de um determinado rebanho de carneiros que tinham pelagem dourada. Um junco bon-
doso que crescia na margem do rio deu a Psiquê o seguinte conselho:

[Não] se aproxime agora daqueles terríveis carneiros, porque eles tomam emprestado do sol
escaldante um calor feroz, e um frenesi selvagem então os enlouquece, de modo que, com chifres
afiados e testas duras como pedra, e às vezes até com mordidas venenosas, sua fúria causa
destruição aos homens. Espere, porém, até mais tarde, quando o calor do sol do meio-dia já tiver
aliviado seu ardor, pois então as feras serão postas a dormir pela suave brisa do rio ... E uma vez
que os carneiros tenham arrefecido sua loucura e acalmado sua agressividade, vá sacudir as folhas
para além do bosque, e lá você encontrará a lã dourada enroscada aqui e ali nos galhos retorcidos
das árvores.77

Ao tratar a respeito desta imagem, NEUMANN diz: “os carneiros dourados do sol simbolizam
um intenso poder arquetípico masculino e espiritual que o feminino não pode enfrentar”.78
Trata-se de um exemplo do aspecto destrutivo do sol.
O aspecto positivo do sol aparece na fenomenologia de determinadas experiências místicas e
religiosas. Wiliam JAMES reuniu uma série de exemplos destas experiências, a maioria das
quais relacionadas com iluminação e luz muito intensas. Aqui está uma delas:
Subitamente a glória de Deus brilhou à minha volta de maneira quase maravilhosa ... Uma luz
totalmente inefável brilhou em minha alma de tal forma que quase me prostrou no chão ... Aquela
luz se assemelhava ao brilho do sol irradiando em todas as direções. Ela era intensa demais para
os olhos ... Então entendi que, naquele momento, eu acabava de experimentar pessoalmente a
mesma luz que atingiu Paulo no seu caminho para Damasco. Era uma luz que seguramente eu não
seria capaz de suportar por muito tempo.79

Este é um exemplo de Sol.


Outro exemplo de Sol surge nos sonhos de explosões nucleares. Há alguns anos atrás eu me
vi diante de um notável sonho assim. Uma mulher de meia-idade que se encontrava em análi-
se há alguns anos sonhou:

77 Erich NEUMANN, Eros e psiquê: amor, alma e individuação no desenvolvimento do feminino, p. 39.
78 Idem, p. 79-82.
79 Ver JAMES, The varieties of religious experience: a study in human nature, p. 246s.

83
Estávamos em um local parecido com um abrigo de bombas e também com uma cidade fortificada
de uma antiga e sagrada localidade, como Acra ou Jerusalém. Eu me encontrava em meio a uma
companhia privilegiada. Nós estávamos sentados agachados, esperando ouvir a terrível explosão
da bomba que cairia lá fora, no mundo exterior ... Então a explosão aconteceu. O barulho e o
tremor aconteceram e então cessaram. Foi quando nos disseram que enquanto permanecêssemos
no interior do abrigo e não abríssemos as imensas portas de bronze, tudo ali dentro permaneceria
livre de radiação e não aconteceriam mortes por contaminação. Entretanto, um grupo de cinco de
nós, acreditando que nosso abrigo hermeticamente selado estivesse condenado, e tomados pela
curiosidade de ver o mundo externo destruído, correu para as portas e começou a abri-las. Ou me-
lhor, só quatro de nós correram, porque logo que viramos a última esquina do último corredor eu
perdi a coragem e fiquei para trás para observar à distância, enquanto os outros olhavam lá fora.
Com muita dificuldade eles enfim conseguiram abrir aquelas enormes portas de bronze, que fize-
ram um grande barulho ao serem movidas, deixando entrar uma luz branca abrasadora, cegante,
de gosto amargo, de cheiro ácido, ensurdecedora, sufocante, que era a radiação. Foi assim que a
luz se mostrou aos quatro que tinham aberto as portas. [A sonhadora ainda se encontra olhando
pela esquina do corredor, à distância]. Percebi tudo isso por meio da reação dos quatro, embora
para mim, que me encontrava a certa distância, aquela luz revelou-se um fluxo algo cálido, brilhan-
te, dourado e rejuvenescedor como o sol.
Não demorou muito para que os quatro decidissem que já tinham visto tudo o que era necessário,
e logo começaram a empurrar as portas com seus ombros para fechá-las novamente. Foi então
que eu me afastei de minha esquina, coloquei-me no meio do corredor esperando que retornas-
sem, e ali situada acolhi a primeira do grupo a chegar de volta, uma das mulheres, e abracei-a aco-
lhedoramente. Ela me olhou assustada mas comovida, e disse: “Você não percebe que agora, por
ter me abraçado, também ficou contaminada?”. Eu balancei afirmativamente a cabeça e disse:
“sim, eu sei”, mas essa era a questão: eu desejava partilhar com ela sua contaminação. Eu queria
demonstrar amor, simpatia, admiração e um desejo de empatia com todas as consequências da
nova condição humana.
Quando lhe perguntei: “O que você viu lá fora?”, ela respondeu: “Só um monte de cacos de vi-
dro”. A seguir fomos nos preparar para as mortes que tínhamos certeza resultariam da exposição
sofrida nas portas. Os primeiros a ir, vestidos com jalecos brancos como se fossem médicos ou ci-
entistas, formavam um grupo de homens idosos que já tinham atingido a idade de morrer uma
morte natural. Depois viriam outros, mas, surpreendentemente, não houve mortes em massa. A-
inda demoraria toda uma vida para que morrêssemos. Havíamos nos tornado mortais, livres dos
laços de estagnação e imortalidade. Agora, por meio do crescimento e da decadência, poderíamos
nos transformar. Finalmente o abrigo de bombas podia, agora, se transformar numa cidade sagra-
da.

Este sonho indica que a paciente, que até então vinha se escondendo da vida e que havia
permanecido numa condição essencialmente não-nascida, finalmente é exposta aos intensos
efeitos da existência consciente. Após esta exposição, ela como que nasceu para um estado
de ser consciente, ao mesmo tempo em que começa a morrer como qualquer mortal corrup-
tível. Essas duas condições andam juntas. A exposição ao princípio de Sol não somente esti-
lhaça o estado paradisíaco de identidade ego-Self, mas também proporciona a possibilidade
de adquirir, em um nível consciente, a natureza incorruptível do paraíso primordial — repre-
sentado pelo abrigo de bombas que agora se transformou numa cidade sagrada. A paciente,
então, nasceu naquele momento para uma existência psicológica e, ao mesmo tempo, ficou
exposta à realidade da morte: dois opostos que andam de mãos dadas.
Acredito que a imagética e mensagem básicas deste sonho de bomba nuclear é aplicável a
todos os sonhos correlatos, e que então é algo que devemos manter em mente.

b. Sol como pai e filho.

84
No parágrafo 118 aparece uma discussão do simbolismo de Sol na qual ele é descrito tanto
como pai quanto como filho de Mercurius. Um dos textos diz que Mercurius é a origem de
Sol; em outras palavras, Mercurius é o pai de Sol. Já outro texto afirma que Sol é o pai de
Mercurius sob a forma de lapis, assim como Luna, a lua, é a mãe de Mercurius sob a forma
de lapis. Jung esquematiza esta relação da seguinte forma:

Vocês devem sempre lembrar que Mercurius é a personificação do inconsciente autônomo. O


Mercurius original é Mercurius sob a forma de prima materia — trata-se do inconsciente em
seu estado original inconsciente. Já Mercurius sob a forma de lapis é o inconsciente modifi-
cado, quando o ego já se relacionou conscientemente com ele. É a partir do Mercurius origi-
nal que Sol e Luna emergem como par de opostos; mas quando estes opostos tornam a se
unir, eles dão nascimento ao Mercurius filho — o filius Mercurius — que é equivalente ao la-
pis.
Jung então, nos parágrafos 119 a 120, compara essa sequência alquímica, essa quaternida-
de, com a imagem Cristã:

Esta é a imagem cristã implícita — não é exatamente a imagem que encontramos anunciada
nas igrejas — mas ela exprime a mesma ideia que a imagem alquímica. Deus Pai — o Deus
original — se divide em dois filhos: o filho bom, Cristo, e o filho mau, o diabo. A quaternida-
de reconciliadora é o Espírito Santo ou Reino de Deus. Jung aponta aqui que nos dois es-
quemas o ritmo se dá em três fases; embora o produto seja uma quaternidade, o ritmo é
tríplice.80

80Para uma discussão desta questão, ver EDINGER, Ego e arquétipo, “O arquétipo da Trindade e a dialética do
desenvolvimento”, p. 242-59.

85
c. A tríplice filiação de Basilides
No parágrafo 121 Jung fala da “tríplice filiação” de Baislides e eu acredito que vocês deveri-
am compreender ao quê ele se refere ali. Ele discute essa imagem com bem mais detalhes no
Aion,81 mas mesmo ali ela não se torna totalmente clara. Mas como ela é uma imagem mui-
to interessante, acho que agora seria uma boa ocasião de fazer considerações sobre ela.
Basilides foi um gnóstico do século 2 e seu mito de criação está representado no diagrama
abaixo (figura 6-2). De acordo com este mito de criação, o Deus não-existente proferiu a
palavra criativa “Haja luz!”. Quando proferiu essa palavra, ele depositou uma semente cósmi-
ca. Esta semente cósmica então se dividiu em três partes, três filhos — e é esta a origem do
termo “tríplice filiação”. O primeiro filho recuou imediatamente e voltou a se fundir ao Deus
não-existente do qual teve origem. O segundo filho, por sua vez, é descrito como sendo mais
denso e pesado; embora ele fosse uma criatura alada, não era constituído por puro espírito e
era incapaz de ascender. Por isso ele permaneceu a meio-caminho. Já o terceiro filho era
incapaz de voar. Ele era destituído de forma, impuro e misturado com todas as sementes
indiscriminadas das coisas. Ele era uma panspermia — uma matriz de todas as possibilidades
e totalmente emaranhado na escuridão da materialidade. São estes então que constituem a
tríplice filiação de Basilides.

Figura 6-2: A tríplice filiação de Basilides.

81 OC 9/II, par. 118-120.

86
Aquilo que torna esse mito tão interessante do ponto de vista psicológico é que ele constitui
uma imagem do desenvolvimento do ego. O ego é o filho do inconsciente e o mito de cria-
ção de Basilides nos conta que existe uma estrutura tripla. No ponto inicial do nascimento do
ego, uma parte dele jamais se separa de sua origem — essa parte permanece não-nascida,
em um estado de completa identidade ego-Self. Este é o primeiro “filho”. A terceira filiação,
o terceiro “filho”, mergulha totalmente na matéria, na existência material e concreta. Somen-
te o segundo “filho” assume uma posição intermediária entre os opostos e, desta maneira,
torna-se capaz de perceber os opostos. Somente esta porção é totalmente consciente. Infe-
lizmente não tenho tempo agora de dizer mais a respeito disso, mas acredito que com um
pouco de reflexão vocês poderão compreender porque o mito é tão sugestivo psicologica-
mente.
d. O sol como ego e o sol como Self
Gostaria de dizer uma ou duas palavras a respeito da forma pela qual Jung termina esta ses-
são sobre Sol. No parágrafo 127 ele diz que Sol é o princípio da consciência: já que o ego é
o centro da consciência, isso transforma Sol no ego. No parágrafo 127 ele diz:
Mesmo que os alquimistas tivessem se aproximado muito do conhecimento de que o eu era a
substância misteriosa e fugidia do arcano, e que era o tão procurado lápis, contudo não chegaram
a ter consciência de que, por meio da alegoria de Sol, estavam colocando a divindade em íntimo
relacionamento com o eu. Como já assinalei diversas vezes, a projeção não é nenhum ato arbitrá-
rio, mas um fenômeno natural e característico da natureza da psique humana, um fenômeno que
está situado fora do alcance da consciência. Se é, pois, esta a natureza da psique que gera a ana-
logia com Sol, então com isso se declara naturalmente, ou seja, pela própria natureza, que existe
identidade entre Deus e o eu. Nesse caso, apenas a natureza inconsciente poderá ser recriminada
pela blasfêmia, mas não o homem, que é sua vítima.

Mas no parágrafo 129 Jung diz:


Devo advertir meu leitor que essas minhas exposições acerca da importância do eu poderiam fa-
cilmente servir-lhe de ocasião para me acusar de uma contradição grosseira. Talvez o leitor se re-
corde de ter encontrado essa mesma argumentação em outras passagens de meus escritos. A dife-
rença é que ali, em lugar do eu, se encontrava o Self ... Eu defini o Self como a totalidade da psi-
que consciente e inconsciente, enquanto que defini o ego como o ponto central de referência da
consciência. O ego é parte essencial do Self, e pode ser usado em seu lugar como pars pro toto [a
parte pela totalidade], desde que não se perca de vista o significado da consciência. Mas quando
desejamos destacar a totalidade psíquica, seria preferível usar a palavra Self. Não se trata, pois, de
definição contraditória, mas apenas de mudança do ponto de vista de considerar as coisas.

Assim, o sol como símbolo de consciência representa tanto o ego quanto o Self. A razão
desta dupla representação é a de que o Self não pode obter existência efetiva e consciente
exceto pela ação de um ego. É desnecessário dizer que o Self pode muitas vezes manifestar
efetiva existência sem a ação do ego. Mas ele não pode manifestar existência efetiva e cons-
ciente sem a ação do ego. É por esta razão que é inevitável que o simbolismo de Sol, en-
quanto princípio da consciência, represente tanto o ego quanto o Self.

87
Figura 6-3: A terra entre o sol e sua sombra (Sol níger).

88
PARÁGRAFOS 130–148

7
Hoje quero começar fazendo uma correção na tradução do texto que está mais ou menos na
metade do parágrafo 141. A frase deve sofrer uma adição de forma a ser lida assim:
A ideia oriental do Atman-Purusha, do ponto de vista psicológico, corresponde no Ocidente à figu-
ra de Cristo, que por um lado é a segunda pessoa da Trindade e o próprio Deus, e por outro lado,
quanto à sua existência humana, desde o nascimento no estábulo (entre animais, por assim dizer)
até a morte ignominiosa na cruz entre dois ladrões, corresponde à figura do servo de Deus sofre-
dor dada por Isaías [os itálicos mostram as adições à tradução]. *

Isto esclarece uma importante ideia que, de outra maneira, permaneceria confusa.
Esta noite examinaremos uma importante imagem — Sulphur — com as suas diversas impli-
cações simbólicas. Incluídas nesta imagem maior encontram-se quatro outras:
1. Sulphur duplex: os aspectos positivo e negativo de Sulphur
2. Os quatro maiores efeitos de Sulphur: ele consome; ele coagula; ele corrompe; ele
tinge e promove maturação
3. Uma imaginação alquímica concernente a Sulphur
4. Um sonho de alquimista com o Sulphur ferido
Na semana passada falamos a respeito de Sol, e, de fato, o material desta noite é uma conti-
nuação do simbolismo de Sol porque Sulphur era tido como sendo a encarnação terrestre de
Sol. A química do enxofre é bastante relevante para o seu simbolismo e confesso que fiquei
tentado a trazer aqui, nesta noite, um pouco do elemento enxofre e realizar alguns experi-
mentos químicos. Ma,s por fim, resolvi só chamar a atenção de vocês para algumas proprie-
dades físicas de sulphur que são relevantes.
Muitos de nós conhecemos sulphur sob o nome de “flores de enxofre” — enxofre em forma
de um fino pó —, ou simplesmente enxofre. Mas ele ocorre na natureza sob a forma cristali-
na de uma pedra amarela dura. Ocorre que, de maneira “milagrosa” em comparação com
outras pedras, esta pedra de enxofre pega fogo! É por esta razão que sulphur é chamado de
“a pedra que queima”. Supõe-se que a palavra sulphur derive de uma raiz latina que significa
“pedra que queima”. Então o enxofre é um sinônimo de sulphur.

* A tradução brasileira não traz estas omissões [n. do t.].

89
O fato de ser uma pedra com uma luminosa cor amarela já a conecta com o simbolismo de
Sol. E o fato de ela ser tão facilmente combustível fez com que se tornasse, na mente dos
alquimistas, praticamente equivalente ao próprio fogo.
Uma característica bem marcante na química do sulphur é que ele gera gases malcheirosos.
Um deles é sulfeto de hidrogênio — o odor de ovos podres, o odor de esgotos e um constitu-
inte importante dos gases intestinais. Outro derivado, o dióxido de enxofre, um produto do
sulphur queimado, é o principal constituinte dos gases da poluição atmosférica. Também é a
principal formador da chuva ácida, que se desenvolve quando as chaminés industriais emitem
o dióxido de enxofre.
Tanto o sulfeto de hidrogênio quanto o dióxido de enxofre mancham os metais ao entrar em
contato com eles — eles formam compostos sulfídicos, a maioria dos quais é negro. Se vocês,
por exemplo, mergulharem uma moeda numa solução que contenha um pouco de sulfeto de
hidrogênio, ela imediatamente fica preta. Dessa maneira, é fácil de entender a origem da
ideia de que sulphur tem o efeito de corromper os metais. Da mesma maneira, sulphur é o
principal componente da pólvora, e acho que isso basta para termos uma ideia de suas mani-
festações químicas.
No que diz respeito às qualidades psicológicas associadas ao sulphur, eu já disse que ele era
considerado a manifestação terrena de Sol. Jung o descreve como representando o desejo,
concupiscência, vontade, compulsão e o “elemento impulsionador da consciência”. Existem
várias passagens do livro (vocês já devem ter notado isso) em que, após uma vasta quantida-
de de amplificações simbólicas, Jung nos proporciona um curto parágrafo resumindo bastan-
te sinteticamente todo o simbolismo psicológico. Este é o caso do parágrafo 146:
Com isso pretendo encerrar o capítulo sobre o sulphur ... [e então ele nos dá o pulo do gato!] O
enxofre constitui a substância ativa do sol, o que transposto para a psicologia significa a força im-
pulsionadora ou motriz da consciência. Essa força é constituída, de uma parte, pela vontade, que
concebemos como um dinamismo subordinado à consciência, e de outra parte, pelo “estar-sendo-
impelido”, que é uma motivação involuntária ou compulsão que vai desde o simples interesse até à
possessão propriamente dita. O dinamismo inconsciente pode corresponder ao sulphur, pois o
“estar-sendo-impelido” ou compulsão é o grande mistério de nossa vida humana, Esse dinamismo
é o cruzamento de nossa vontade consciente e de nossa razão por uma entidade inflamável, que
ora se manifesta como incêndio destruidor, ora como calor que proporciona a vida.

Quando sulphur se manifesta de maneira explosiva, ele aparece como pólvora, Quando se
manifesta mais gradualmente, ele pode ser como os fósforos com os quais acendemos o fogo
de um forno ou uma vela. Aliás, antigamente os fósforos eram feitos principalmente com
enxofre, embora bem menos agora.
1. Sulphur duplex
Jung refere-se a numerosas imagens para demonstrar que sulphur era tido tanto como bom
quanto mau. Em seu aspecto negativo ele era associado ao diabo — o enxofre como compo-
nente do inferno. E o fato de que sulphur tende a corromper ou escurecer tudo o que toca o
faz ser associado ao diabo e a fatores negativos. Já o aspecto positivo de sulphur é sua asso-
ciação com Cristo e com o Espírito Santo (parágrafo 141). No parágrafo 136 ele é descrito
como “o pintor de todas as cores”.
Estes dois aspectos correspondem ao duplo simbolismo do fogo: existe um fogo elevado ou
celestial e um fogo inferior ou infernal. No apócrifo Evangelho de Tomé, Cristo se identifica a

90
si próprio com o fogo: “Aquele que está perto de mim está perto do fogo”.82 Já em Lucas
ele se identifica com um incendiário: “Vim para lançar fogo à terra, e como desejaria que já
estivesse aceso!”.83 Como veem, Cristo está se denominando aqui como um fósforo que
incendiará o mundo; ele está se identificando a si próprio com o fogo. Mas desde que para
nosso éon Cristo é a manifestação simbólica mais desenvolvida do Self, sua identificação com
o fogo ou sulphur também associa sulphur ao Self.
O diabo, por outra parte, representa os aspectos contrários do fogo: o fogo torturante do
inferno e do purgatório onde se supõe que o enxofre seja o ingrediente principal. É tudo isso
que a imagem do sulphur duplex expressa.
2. Os quatro efeitos básicos de sulphur
a. Sulphur consome
Em outras palavras, sulphur provoca a calcinatio.84 Como ele é o próprio princípio do fogo,
então ele é uma imagem da libido, da energia da vida.
Os alquimistas consideravam todas as coisas como sendo compostas de três substâncias bási-
cas: mercúrio, sulphur e sal. Mercúrio é o espírito, sulphur é a alma e sal é o corpo. A alma
— o sulphur — é o princípio animador, o princípio da vida que tem como característica prin-
cipal a energia, simbolizada pelo fogo.
Na forma pela qual foi elaborado pela imagética patrística, o simbolismo do fogo o associa ao
caráter pecaminoso humano. De acordo com esta imagética, se o desejo básico da vida é
pecaminoso, então é o próprio pecado que alimenta o fogo do inferno e acaba por queimar
a si mesmo. Um exemplo dessa imagem está em uma observação de Paulo em Coríntios.
Aliás, esta passagem é a fonte escritural para a doutrina do purgatório: a localização estabe-
lecida pela igreja do enxofre. Nesta passagem, Paulo fala da casa que construímos para nós
mesmos e da natureza de seus fundamentos:
Quanto ao fundamento, ninguém pode colocar outro diverso do que foi posto: Jesus Cristo. Se al-
guém sobre esse fundamento constrói com ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno ou palha,
a obra de cada um será posta em evidência. O Dia torná-la-á conhecida, pois ele se manifestará
pelo fogo e o fogo provará o que vale a obra de cada um. Se a obra construída sobre o fundamen-
to subsistir, o operário receberá uma recompensa. Aquele, porém, cuja obra for queimada perderá
a recompensa. Ele mesmo, entretanto, será salvo, mas como que através do fogo.85

Santo Agostinho comentou assim esta passagem:


[O homem que constrói com madeira, feno e restolho é o homem envolvido com a luxúria e dese-
jos carnais, mas] enquanto ele não eleger seu afeto ou prazer por Cristo, Cristo é sua fundação,
então nele ele constrói em madeira, feno e restolho; e portanto ele será salvo pelo fogo [mesmo
que sua luxúria seja consumida]. Pois o fogo da aflição queimará estes afetos luxuriosos e amores
terrenos ... e o combustível deste fogo será o luto, e todas aquelas calamidades que consomem es-
tas prazeres.86

82 Robert M. Grant, The secret sayings of Jesus, p. 180.


83 Lucas 12, 49.
84 Ver EDINGER, Anatomia da psique, cap. 2.
85 1 Cor 3, 11-15.
86 Agostinho, Cidade de Deus, 21, 26.

91
Isto é o que podemos chamar de a versão ocidental da calcinatio sulphurosa. Uma versão
oriental do mesmo simbolismo é encontrada no Sermão do Fogo de Buda, que eu gostaria de
ler para vocês. Aqui Buda está falando a seus discípulos:
Todas as coisas, ó irmãos, estão em chamas. E o que ... são estas coisas que estão em chamas? O
olho, ó irmãos, está em chamas, as formas estão em chamas, a consciência do olho está em cha-
mas, as impressões recebidas pelo olho estão em chamas; e qualquer sensação, prazerosa ou não
prazerosa, ou até indiferente, origina-se das impressões recebidas pelo olho que também está em
fogo ... Com o fogo da paixão, vos digo, com o fogo do ódio, com o fogo da paixão passageira;
com o nascimento, com a velhice, a morte, a mágoa, lamentação, miséria, aflição e desespero es-
tão em chamas. O ouvido está em chamas; os sons estão em chamas; ... o nariz está em chamas;
os odores estão em chamas; ... a língua está em chamas; os sabores estão em chamas; as coisas
tangíveis estão em chamas; ... a mente está em chamas, a consciência da mente está em chamas;
e qualquer sensação, agradável, desagradável ou indiferente se origina das impressões recebidas
pela mente, e isto também está em chamas. E com que estas coisas estão em chamas? Com o fo-
go da paixão ... com o fogo do ódio, da velhice, da morte, da tristeza, da lamentação, da miséria,
do luto, e desespero eles estão em chamas.

E aqui, um pouco mais adiante, ele dá sua receita para escapar do fogo:

O discípulo esclarecido e nobre acaba por conceber uma aversão ao olho, uma aversão pelas for-
mas, uma aversão pela consciência do olho, uma aversão pelas impressões recebidas pelo olho; e
qualquer sensação, agradável, desagradável ou indiferente se origina das impressões recebidas pelo
olho, e por isso também ele concebe uma aversão. Concebe uma aversão pelo ouvido, pelos sons
... concebe uma aversão pelo nariz e pelos odores ... concebe uma aversão pela língua e pelos sa-
bores ... concebe uma aversão pelo corpo e pelas coisas tangíveis ... etc.87

Isto equivale à mesma ideia da versão ocidental, exceto que a mudança não se faz por ação
do inferno. Ela se faz por uma operação racional ou mental.
Trata-se, então, de uma versão mais sutil ou sofisticada da mesma coisa. Estes são dois e-
xemplos de como dois grandes pontos de vista coletivos souberam lidar com a psicologia de
sulphur. Ambos exprimem o fato de que sulphur consome, e é disso que estou falando — a
tendência do aspecto ígneo da psique de consumir a si própria.
b. Sulphur coagula
Algumas receitas alquímicas especificam sulphur como um agente de coagulatio.88 Psicologi-
camente, a ideia básica é que o desejo coagula. Uma pessoa que é abstrata psicologicamente
e que se porta como se ainda não tivesse nascido, ainda não se encontra plenamente inserida
na vida. A terra e a existência terrena são produtos do desejo, da coagulatio proporcionada
por sulphur, Isso significa que uma pessoa que leve uma vida e ainda não totalmente encar-
nada como essa tem que descobrir onde está seu sulphur — onde está seu desejo — e então
ir atrás dele.
Com muita frequência acontece de pessoas abstratas demais, espiritualizadas e ainda não
totalmente encarnadas lerem o apóstolo Paulo ou o Sermão do Fogo de Buda e usem essa
sabedoria para evitar o processo de coagulação. Não há dúvida que há uma sabedoria verda-
deira sendo expressa nestas afirmações, mas trata-se de uma sabedoria para pessoas madu-
ras, sabedoria que se aplica somente àqueles que já se submeteram ao fogo pleno dos dese-

87 Henry Clarke WARREN, Buddhism in translation, p. 352s.


88 Ver EDINGER, Anatomia da psique, cap. 4.

92
jos. Ela jamais deverá ser usada como um recurso ou justificativa para evitar os processos
naturais da vida.
c. Sulphur corrompe
Esta associação corresponde ao fenômeno químico no qual, formando compostos sulfídicos,
sulphur tende a escurecer vários metais com os quais entra em cotato. É óbvio que os gases
malcheirosos que ele produz tragam consigo a ideia de corrupção e putrefação. Assim, devi-
do a todos esses ganchos químicos, o simbolismo da mortificatio acaba por ser projetado em
sulphur. O aspecto corrompedor de sulphur corresponderia então ao fato de que a mortifica-
tio é uma consequência inevitável da coagulatio. Tudo aquilo que nasce para a existência
encarnada e mortal está condenado a morrer e a sofrer corrupção. Esta é a natureza inevitá-
vel do desejo que, se inicialmente nos conduz à vida, depois é percebido como pecado, culpa
e miséria. Então tudo isso nos conduz ao aspecto corrompedor de sulphur e ao fato de que
ele promove a nigredo — o escurecimento.
d. Sulphur tinge e amadurece
Embora alguns dos sulfatos sejam escuros, outros produzem as mais brilhantes cores da pale-
ta dos pintores. O amarelo cádmio, por exemplo, é o sulfato de cádmio, um padrão para a
cor amarela. Sulfato de bismuto é marrom; sulfeto de arsênico é amarelo; sulfeto de estanho
é laranja; sulfeto de mercúrio é vermelho; sulfeto de zinco é branco; sulfato de cobre e de
prata são azuis ou negros. Podemos argumentar que as manchas escuras que se formam na
prataria não têm cores bonitas, mas manchas escuras sempre correspondem ao simbolismo
da corrupção. Mas o belo amarelo, laranja e vermelho dos sulfetos proporcionam o gancho
para a projeção de sulphur como sendo o grande pintor da natureza, o pintor que pinta todas
as cores que existem.
Isso nos conduz a outra característica do desejo: é o desejo que proporciona à vida toda sua
cor e atração. Se o desejo for cortado pela raiz, como aconselham Paulo e Buda, então tudo
se torna cinza — e eis aí a ambiguidade.
Associada à ideia de tingir temos também a ideia de que sulphur promove a maturação (pa-
rágrafos 138-139). A tintura é um sinônimo do elixir, e o elixir é a forma líquida da Pedra
Filosofal. O fato de sulphur tingir e amadurecer significa que ele é identificado com o Self,
com a totalidade. Isso estabelece uma relação com a observação que Jung faz no parágrafo
146 a respeito de sulphur como sendo “compulsão ... o grande mistério da vida humana”.
A seguir, no parágrafo 148, Jung escreve uma frase bastante fértil: “Compulsão ... tem duas
origens: a sombra e o Anthropos”. Ora, eu exprimiria isso de uma maneira um pouco dife-
rente. Eu diria que a compulsão tem uma fonte — o Self — mas que uma pessoa pouco de-
senvolvida vai experimentar a compulsão por meio da sombra, por meio dos complexos pes-
soais, Nestes casos, a fonte da compulsão é a sombra. Nestes casos, são nossos complexos
que nos incendeiam. São nossos complexos que primeiramente demonstram que não somos
mestres em nossa casa psíquica, já que normalmente ninguém quer ser incendiado. É sempre
assim: acontece alguma coisa e então descobrimos subitamente que estamos incendiados —
alguém diz alguma coisa e ficamos enfurecidos. Este é um exemplo de compulsão que nos
acomete por meio da sombra.
Nós experimentamos sulphur primeiramente por meio da sombra porque sulphur é o ele-
mento inflamável, embora após um longo período de análise de nossos complexos seja pos-
sível que cheguemos a um núcleo constituído por um arquétipo. A energia arquetípica — o

93
fogo —, o sulphur que se encontra na base dos complexos, deriva sempre do Self. É então
que começamos a experimentar uma compulsão que nos incendeia, agora não mais como
resultado de nossos complexos mas como uma expressão do Self.
Aqui a ideia importante é a de que o dinamismo compulsivo de todos os complexos deriva
sempre do Self. Quando vemos isso, então não temos mais um complexo, o que não signifi-
ca que não estaremos mais sujeitos a afetos inflamados. De forma alguma! O que isso signifi-
ca é que agora estaremos experimentando os afetos em um nível diferente, e que eles vão se
tornando parte de um diálogo progressivo com o Self. Mas antes de compreendermos que
todas estas coisas derivam do Self, sempre estaremos correndo o risco de ser possuídos por
um complexo; em outras palavras, de pegarmos fogo devido ao caráter inflamável do sulphur
no complexo. Bem, esta é minha elaboração da sucinta observação de Jung “compulsão ...
tem duas origens: a sombra e o Anthropos”.
3. Uma imaginação ativa alquímica
Jung menciona este diálogo a partir do parágrafo 136, mas o faz de maneira muito breve, e
acho que seria interessante e instrutivo conhecer uma versão mais completa. Jung não a de-
nomina imaginação ativa, mas é disso que eu a estou chamando. O texto vem de um tratado
a respeito de sulphur presente na obra O museu hermético.89 Vou lê-lo para vocês, interca-
lado com algumas observações interpretativas.
Nesse relato, havia um alquimista que estava obcecado com o sulphur, e ele acreditava que
sulphur fosse o ingrediente essencial para a Pedra dos Filósofos. Após uma série de desani-
madores fracassos nos seus experimentos, ele começou a fazer longas caminhadas.
[Um dia, em uma destas caminhadas] todos os seus pensamentos estavam absorvidos pela questão
do Sulphur, e quando se lembrou da palavra dos sábios, que diz que a substância é vil e comum, e
seu tratamento fácil, e quando se lembrou da vasta quantidade de tempo, trabalho e dinheiro que
em vão gastou [às vezes pensamos aqui num longo período de análise], ele elevou sua voz e, com
a amargura de seu coração, amaldiçoou Sulphur. Ora, Sulphur estava naquele bosque, embora o
alquimista não soubesse disso. Foi quando repentinamente ouviu uma voz que lhe disse: “Meu a-
migo, por que você amaldiçoa Sulphur?”. Desorientado, o alquimista olhou à volta, mas não viu
ninguém. “Meu amigo, por que você está tão triste?”, continuou a voz.

Alquimista: Mestre, eu busco a Pedra Filosofal tanto quanto o faminto busca pão.
Voz: E então por que você amaldiçoa Sulphur?
Alquimista: Meu Senhor, os sábios chamam Sulphur de a substância da Pedra; entretanto gastei
com ele todo meu tempo e trabalho em vão, e estou quase reduzido ao desespero.

Todos nós amaldiçoamos nossos complexos, não é mesmo? Mas nem por isso eles vão em-
bora. Trabalhamos e trabalhamos neles e... eles continuam ali — aquele elemento inflamável
continua nos incendiando de novo e de novo. Portanto, neste caso é o desespero que parece
ser o portal de acesso que nos leva a ouvir o elemento novo, a Voz. É interessante que o
alquimista tenha que ter atingido o estado de desespero, amaldiçoando Sulphur, para que
Sulphur finalmente falasse — ou seja, antes que a psique autônoma se manifestasse de uma
maneira perceptível ao ego.
Voz: É bem verdade que Sulphur é a verdadeira e principal substância da Pedra. Contudo você o
amaldiçoa injustamente. Isto porque Sulphur se encontra acorrentado a uma escura prisão e não

89 “The new chemical light”, in A. E. WAITE, The hermetic museum, vol. 2, p. 149s.

94
pode agir como deveria. Suas mãos e pés foram amarrados, e as portas da masmorra foram bem
cerradas por ordem se sua mãe, a Natureza, que estava brava com ele por obedecer tão prestati-
vamente aos apelos de qualquer alquimista.

É assim que Waite traduz isso “... sua mãe, a Natureza, que estava brava com ele por obede-
cer tão prestativamente aos apelos de qualquer alquimista”. Porém no parágrafo 140 Jung
diz que Sulphur “estava aprisionado porque na opinião dos alquimistas ele se mostrava muito
prestativo em relação à sua mãe”. E uma pessoa bastante competente no idioma alemão
traduziu assim: “... muito obstinado em relação à sua mãe”. Então existe aqui uma considerá-
vel ambiguidade. A palavra alemã willfährig tem um duplo significado e pode ser entendida
de diversas maneiras.
Voz: Ele agora se encontra confinado em um perfeito labirinto de uma prisão, de maneira que só
pode ser libertado por aqueles sábios a quem a própria Natureza confiar um segredo.

Alquimista: Ah, que miserável sou eu então, foi por isso que ele não foi capaz de vir até mim! Que
rudeza e indelicadeza da mãe! E quando ele será libertado novamente?

Voz: Isso só pode acontecer por meio de duro e persistente trabalho.

Este aprisionamento de Sulphur é um desenvolvimento bastante interessante; aqui estamos


diante do mesmo tema do conto de fadas “O espírito na garrafa”.90 A manifestação original
de Sulphur — o rude e vulgar sulphur — de fato deve ser engarrafada. Se quisermos que ele
saia do nível animal da existência, Sulphur deve ser submetido a uma transformação. É por
esta razão que todos os estágios iniciais do processo analítico são principalmente um proce-
dimento em que os afetos primitivos são analisados de maneira redutiva. Isso significa, de
fato, que o ego é chamado a assumir a responsabilidade por tais comportamentos tão “fogo-
sos” e inflamados. Sulphur deve ser engarrafado, confinado, porque pessoas civilizadas não
devem despejar livremente seu sulphur rude e vulgar à sua volta, Então a natureza e o instin-
to devem ser submetidos a um encontro com o princípio do espírito. Isso produz o efeito de
condenar o sulphur rude e classificá-lo como pecaminoso. É natural que alguém se sinta cul-
pado por exaltar-se livremente sob a ação deste rude sulphur, e foi precisamente por esta
razão que Sulphur foi aprisionado.
Mas a imaginação ativa continua:
Alquimista: Quem são os carcereiros dele?

Voz: Eles são seus próprios parentes, mas tiranos terríveis!

Isso nos mostra que o mesmo estágio inicial que faz sulphur queimar livremente também
acaba por extingui-lo. Em outras palavras, cada um dos instintos sempre se encontra em
conflito com outro. O nível instintivo e arquetípico da psique é sempre formado por pares de
opostos, e quando um dos lados sai de controle, o outro lado imediatamente o encerra numa
garrafa.
O alquimista faz então algumas outras questões a respeito da natureza de Sulphur e a seguir
pergunta o que Sulphur é capaz de fazer:
Voz: Ele pode fazer milhares de coisas, e é o coração de tudo. Ele pode aperfeiçoar metais e mi-
nerais, transmitir entendimento aos animais, produzir flores nas plantas e árvores, corromper e pu-
rificar o ar.

90 Ver “O espírito mercurius”, Estudos alquímicos, OC 13, par. 239s.

95
Não é surpreendente? Sulphur está poluindo o nosso ar, e seria interessante saber de que
maneira ele poderia purificá-lo!
Voz: Em suma, ele produz todos os odores e pinta todas as cores do mundo.

Alquimista: Mestre, ele é idoso?

Voz: Saiba, amigo, que Sulphur é a virtude do mundo, e apesar de ser o segundo filho da Nature-
za, ele é a mais antiga de todas as coisas. Entretanto, para aqueles que o conhecem, ele é tão o-
bediente quanto uma criancinha.

Aqui preciso pular algumas passagens — o alquimista aprende mais a respeito da natureza de
Sulphur, da natureza tingidora e amadurecedora de Sulphur. Mas esta é uma característica
importante que quero salientar:
Alquimista: Mestre, aqueles conflitos entre ele e seus carcereiros não podem ser conciliados?

Voz: Sim, mas só por meio de um sagaz e astuto artífice.

Alquimista: E por que Sulphur não entra em acordo com eles?

Voz: porque ele não é capaz de fazê-lo sozinho: quanto mais indignado fica, mais discreto se tor-
na.

Alquimista: E porque ele não o faz por meio de um intermediário?

Voz: Aquele que for capaz de dar fim a esta contenda será um homem sábio e merecedor de infi-
nita honra Pois se os pares dos conflitos fossem amigos, eles se auxiliariam mutuamente, em vez
de embaraçar uns aos outros, e dariam nascimento a coisas imortais.

Alquimista: De bom grado eu assumiria a tarefa de reconciliá-los...

Esta afirmação é nobre, mas o alquimista logo se complica, pois diz a seguir:
Alquimista: Pois eu sou um homem muito culto, e eles jamais resistiriam às minhas habilidades
práticas. Sou um grande sábio, e meu tratamento alquímico traria imediatamente o final desejado.

Notem que neste momento o alquimista sofreu uma inflação, embora de início tenha dito
exatamente a coisa certa. Quando o ego descobre o conflito de opostos em operação, ele
deve “assumir a tarefa de reconciliá-los”: reconciliar Sulphur e seus carcereiros. Mas a pers-
pectiva de se tornar o mediador de uma empreitada desta monta vai exigir todas as suas for-
ças. Aqui está como a história termina:
Alquimista: Se eu encontrar sua prisão, serei capaz de libertá-lo?

Voz: Sim, mas só se você for sábio o suficiente para fazê-lo. É bem mais fácil libertá-lo do que en-
contrar sua prisão.

Alquimista: E quando eu o encontrar, serei capaz de transformá-lo na Pedra Filosofal?

Voz: Não sou profeta. Mas se você seguir o conselho da mãe dele, e dissolver Sulphur, você obte-
rá a Pedra.

Eu entendo que a dissolução de Sulphur significa psicologicamente uma pessoa libertar os


afetos dos complexos nos quais ele se expressa inicialmente. Se formos capazes de triunfar
ao fazer isso, então Sulphur será por assim dizer libertado, e sob sua forma livre ele se torna
uma manifestação do Self. É então que a Pedra Filosofal terá sido pelo menos vislumbrada.

96
4. O sonho do alquimista com o Sulphur ferido
A imaginação ativa termina aqui, mas o texto continua. O alquimista então adormece e tem o
sonho sobre o qual Jung fala no parágrafo 140 e sobre o qual eu gostaria de comentar algu-
mas coisas.
Neste sonho o alquimista vê dois homens que são identificados com Sulphur e Sal. Estes dois
homens discutem entre si e Sal causa em Sulphur um ferimento incurável. Um pouco depois
o alquimista encontra o cadáver de Sulphur e toma dele um pedaço para trabalhar alquimi-
camente. Como Jung aponta, Sulphur é chamado tanto de “medicina” quanto de “medicus”
— medicamento e médico. Esta dupla referência leva Jung ao tema do curador ferido (pará-
grafo 140, nota 157).
Assim como Sulphur estava aprisionado na imaginação ativa, assim também agora neste
sonho ele se encontra ferido e é até morto pelo encontro com seu opositor.
Eu entendo que, neste contexto, Sulphur representaria o princípio ígneo e ardente, e Sal
representaria o princípio frio e aquoso — temos aqui uma variação do tema Sol e Luna. A
ideia é a de que um dos opostos é ferido e morto pelo encontro com seu contrário, assim
como Gabricus desapareceu no ventre de Beya. Num determinado estágio do desenvolvimen-
to psicológico, Sulphur, enquanto desejo ou luxúria, precisa ser ferido, morto, reprimido ou
engarrafado.
Jung descreve esse processo de maneira bem vívida em seus Seminários das Visões, onde
fala a respeito da transformação dos demônios anima e animus, que são sinônimos de Sul-
phur. Deixem-me ler esta passagem para vocês:
Nesta transformação é essencial afastarmos os objetos daqueles demônios anima e animus. Eles
somente se preocupam com objetos quando nos permitimos e somos autoindulgentes. Concupis-
centia é o termo para isso na Igreja ... Sobre este tema todas as grandes religiões concordam. O
fogo do desejo e da luxúria é o elemento contra o qual devemos lutar no bramanismo, no budis-
mo, no tantrismo, no maniqueísmo, no cristianismo. E também é uma questão importante na psi-
cologia.
Quando nos lançamos indulgentemente no desejo, nosso desejo se transforma em céu ou em in-
ferno ...

Aqui Jung quer dizer que se você deseja algo com um afeto positivo, isso se transforma em
um céu; mas se você odeia algo e o obtém mesmo com ódio, isso se transforma num infer-
no.
... você dá ao animus ou à anima um objeto e então eles se manifestam no mundo em vez de
permanecer dentro de nós, que é seu lugar adequado ... Mas você pode dizer: Sim, eu desejo isso
e vou tentar obtê-lo, mas não tenho que necessariamente tê-lo; se eu decidir renunciar, eu posso
renunciar; [se você fizer isso], não haverá mais chance para o animus ou a anima. Caso contrário,
você será governado por seus desejos, você estará possuído ...
Mas se você tiver posto seu animus ou anima numa garrafa, estará livre de possessões, mesmo
que você esteja tendo problemas interiormente, pois quando seu demônio tem problemas você
também tem problemas ... Certamente ele ficará roncando para todos os lados em suas entranhas,
mas após algum tempo você verá que ele se acalma [ele foi engarrafado]. Lentamente você se a-
calma e se modifica. É então que você vai descobrir que existe uma pedra crescendo dentro da
garrafa ... Na medida que o autocontrole, ou a não-indulgência se transformar em hábito, ela é

97
uma pedra ... E quando esta atitude se transformar em fato consumado, a pedra terá se transfor-
mado num diamante.91

E com estas palavras sábias, vou encerrar.

91 The visions seminars, vol. 1, p. 239s.

98
PARÁGRAFOS 149–168

8
O assunto desta noite é o simbolismo da lua, e tratarei de sete grandes características deste
simbolismo:
1. A lua como mediadora e intercessora entre os reinos
2. A lua está associada a plantas e promove fertilidade e cura
3. Ela promove coagulatio
4. A lua promove solutio porque está associada às imagens da água, seiva e orvalho
5. Ela está associada aos animais, especialmente os de sangue frio e ao cachorro
6. O aspecto noético da lua
7. A equação simbólica entre Luna e a Igreja, chamada de equação Luna-Ecclesia
Vocês devem se lembrar de que em nosso segundo encontro fizemos uma breve discussão
sobre Luna associada ao simbolismo da viúva.92 Agora Jung se lança a um tratamento mais
exaustivo deste simbolismo.
Durante os dois últimos encontros estivemos falando a respeito do simbolismo de Sol e do
simbolismo associado de Sulphur. Esta noite vamos trocar de Sol para Luna. Desta maneira,
estamos lidando com as duas maiores personificações dos participantes da coniunctio — sol e
lua — os quais, na alquimia, estão especificamente associados à oposição entre os sexos. O
sol é concebido como masculino e a lua como feminina. Podemos dizer que a lua, Luna, é a
personificação do princípio feminino.93
Atualmente é frequente ouvirmos falar a respeito do princípio feminino, e este material do
Mysterium nos proporciona a oportunidade de abordar a questão sobre o que representa o
princípio feminino de um ponto de vista estritamente empírico, em vez do ponto de vista de
uma teoria pré-concebida. O presente material nos dá chance de examinar aquilo que a pró-
pria psique diz em alquimia a respeito da natureza da lua, e de que maneira a própria psique
descreve o princípio feminino.
Talvez a melhor forma de abordar a questão seja notar quais efeitos particulares são atribuí-
dos a Luna. Já de início uma coisa salta à vista: Luna ou o princípio feminino é muito mais
difícil de definir do que o princípio masculino. Isto corresponde à sua própria natureza, que

92 Ver acima, cap. 2.


93 Para uma elaboração mais detalhada do simbolismo da lua, ver M. Esther HARDING, Os mistérios da mu-
lher.

99
não se presta a uma definição precisa. O que podemos fazer é examinar os efeitos causados
por Luna da maneira como são elaborados no simbolismo alquímico.
1. A lua como mediadora e portal entre os reinos
Inicialmente há a ideia fundamental de que a lua representa a mediadora, a intercessora e o
portal entre o reino das influências celestiais e o reino terrestre. Quero novamente lembrá-los
aqui da imagem geocêntrica do universo na qual, de acordo com a antiguidade, a lua era
situada.94
As esferas planetárias encontram-se arranjadas concentricamente em torno da terra, e a esfe-
ra da lua é aquela que se encontra mais próxima da terra. Portanto, todas as influências, toda
transmissão de material e efeitos entre o céu e a terra deve passar através da lua. A lua é o
único caminho das regiões superiores em direção à terra, e portanto tudo tem que passar por
ela. Em termos psicológicos podemos dizer que o princípio feminino é um funil ou portal
entre as psiques pessoal e transpessoal. E tudo o que é comunicado entre estes dois reinos
pode ser positivo ou negativo. A loucura, que é o caráter lunático, pode ser transmitida, por
exemplo. Ou então a graça pode ser transmitida, usualmente simbolizada pelo orvalho, que
se acreditava cair da lua em direção à terra.
Em um de seus seminários Jung nos dá um exemplo negativo daquilo que é transmitido pela
lua.95 Trata-se de uma história a respeito de um homem que estava deitado na sua cama no
meio da noite, e que viu a luz do luar entrando pela janela. Naquele momento ele teve a ideia
de que, caso quisesse, poderia ficar de quatro sob aquele luar e uivar como um cachorro, e
mesmo assim não estaria louco, porque saberia o que estava fazendo. Foi exatamente o que
ele fez, e então ficou louco. Essa história, como veem, é uma espécie de parábola sobre um
dos aspectos da ação da lua.
Outro tipo de imagem bastante diferente surgiu durante um sonho notável. Este sonho foi
sonhado por uma mulher logo após ela ter levado seu marido a um hospital para realizar
uma operação abdominal de urgência — ele teve um quadro abdominal agudo e teve que
extirpar sua vesícula biliar. Aqui está o sonho:
[A sonhadora] se encontrava de pé no interior de um cômodo circular no centro de um edifício. O
cômodo, na verdade, era uma plataforma em forma de disco que está equipada com aparelhos
hospitalares de reanimação ligados a uma central, de forma que todo o conjunto pudesse ser mo-
vimentado para cima e para baixo do prédio. Foi então que a plataforma foi mobilizada em dire-
ção ao andar mais alto. Para sua surpresa, a sonhadora percebeu que o teto tinha sido aberto, e
que “ela se encontrava em meio a uma imensa galáxia de estrelas, como a Via Láctea. E mais sur-
preendente ainda era que todas as pessoas e equipamentos situados sobre o disco estavam sendo
como que recarregados de energia pelas estrelas”. A mulher ficou bastante impressionada com es-
ta visão; olhou à volta e ninguém parecia perceber — estavam todos muito ocupados — ela foi a
única a perceber aquilo. A sonhadora então tentou falar alguma coisa, mas encontrava-se impres-
sionada demais com o calor vivo, pulsante e sanguíneo de sua visão.
À medida que andava, ela tentava desesperadamente encontrar uma imagem visual para registrar
indelevelmente aquilo que estava experimentando. E o que ela viu foi um imenso útero constituído
pela Via Láctea. “E eu considero que isso é um alimento para todos nós”.

Vejam que não há nenhuma menção concreta à lua neste sonho, mas que o grande útero
está presente. As influências celestiais correspondem às energias planetárias que transmitem
seus efeitos para baixo, para a terra, por meio da lua. Este sonho é a exata representação da

94 Ver acima, fig. 2-4.


95 Ver JUNG, Seminários sobre psicologia analítica (1925), p. 137

100
observação do texto alquímico que Jung cita no parágrafo 149: “A terra ‘recebe’ as energias
das estrelas, e nela o sol gera o ouro”.*
O que esta mulher experimentou, na verdade, foi uma visão das energias arquetípicas assis-
tindo a todo o trabalho hospitalar que se realizava para seu marido naquela situação de e-
mergência. Isso constitui um belo exemplo sobre como, em condições urgentes, a psique
arquetípica pode ser ativada de maneira benéfica, e também um belo exemplo daquelas pala-
vras de Holderlin que Jung tanto gostava de citar: “Onde estiver o perigo, dali também surge
a salvação”.96

Figura 8-1:”A terra ‘recebe’ os poderes das estrelas, e nela o sol gera o ouro.”

*
Na tradução brasileira lê-se “... o Sol gera nela o outro”, o que certamente é um engano [n. do t.].
96 De “Patmos”; ver, por exemplo, Símbolos da transformação, OC 5, par. 630s.

101
2. A lua promove fertilidade, cura e o crescimento das plantas
No folclore, os agricultores são sempre aconselhados a levar em consideração as fases da lua
— a lua cheia é a melhor para colheitas de plantas que crescem acima da terra e a lua nova é
a melhor para plantar as raízes. Também os medicamentos são tidos como exercendo seu
maior efeito quando tomados na lua cheia. Erich NEUMANN faz um interessante relato das
implicações psicológicas desta característica do simbolismo da lua no seu ensaio “Sobre a lua
e a consciência matriarcal”. Quero ler a vocês algumas passagens porque NEUMANN conse-
gue expressar muito bem esse espírito:
A comum identificação de nosso ego com a consciência patriarcal e racional, e sua corresponden-
te desidentificação com a consciência matriarcal, frequentemente resultam no desconhecimento do
que realmente está acontecendo conosco ... [É só] posteriormente aos fatos que somos capazes de
perceber o quanto estivemos profundamente impressionados por determinadas coisas, situações e
pessoas ... Os dizeres de Heráclito são verdadeiros: “A Natureza adora se esconder”.
O momento da concepção é sempre velado e misterioso, frequentemente ocultado pelo ego da
consciência matriarcal, sem que haja qualquer conhecimento dele por parte da consciência racio-
nal. Contudo uma introspecção mais profunda, e uma atenção a sonhos, imagens e fantasias,
sempre demonstrarão que, na consciência matriarcal, o momento e o evento da concepção foram
devidamente registrados ...
Existe um objetivo definido em velar e ocultar tais momentos de concepção, que sempre são de vi-
tal importância. O crescimento precisa de quietude e invisibilidade, não de barulho e luz ...
Não é debaixo dos raios queimantes do sol, mas sim na tênue luz refletida da lua, quando a escuri-
dão e inconsciência estão em seu máximo, que o processo criativo se realiza; a noite, e não o dia,
é o tempo da procriação. O processo criativo deseja escuridão e quietude, reserva, mudez e ocul-
tação. Portanto, a lua é a senhora da vida e do crescimento, em oposição ao sol letal e devorador.
O úmido período da noite é o tempo do sono, mas também o tempo da cura e da recuperação ...
O deus-lua, Sin, é médico ... Os reinos da cura e do curador, das plantas curativas e do crescimen-
to recuperador, todos eles se encontram mutuamente nesta configuração. É durante a escuridão
noturna, ou sob a luz da lua, que o poder regenerativo do inconsciente realiza sua tarefa, um mys-
terium ... a partir de si mesmo ... É por esta razão que as pílulas e as ervas são associadas à lua, e
seus segredos são guardados por mulheres, ou melhor, pelo feminino, que pertence à lua.97

3. A lua promove coagulatio


Como fica evidente a partir da posição intermediária da lua entre a terra e as regiões superio-
res, todas as entidades que estão descendo, por estarem destinadas a encarnar — destinadas
a tomar forma material, existência terrena — têm de passar pela lua para realizar a encarna-
ção. Esta é a razão simbólica pela qual a Virgem Maria é equiparada simbolicamente à lua,
pois foi Maria que realizou a função da lua para trazer à luz a encarnação de Cristo.
Para ampliar isto um pouco mais, esta ideia está expressando o fato psicológico de que qual-
quer forma específica, manifestação ou estrutura que solidifica nossas energias vitais em al-
guma expressão concreta e específica pertence à natureza do princípio feminino. Assim, uma
das características do feminino é que ele concretiza — e esta é outra palavra para designar o
ato de encarnar, coagular. Qualquer atitude pessoal — seja patriotismo por um país, seja o
serviço prestado a uma igreja, uma comunidade ou uma determinada instituição, a uma causa
particular, à família, à vocação ou a uma relação pessoal, em suma, qualquer forma determi-
nada que seja capaz de mobilizar nosso compromisso, capaz de concretizar nossa energia
vital, pertence ao princípio feminino. Mesmo algumas aparentes abstrações como ciência ou
sabedoria ou verdade ou beleza ou liberdade também são exemplos do poder de coagulação

97 Em Spring 1954, p. 83s.

102
de Luna, se elas de fato tiverem o poder de organizar a energia vital de uma pessoa de forma
efetiva e evocar um empenho por parte do indivíduo.
Para dizer o mesmo em outras palavras, o poder de evocar um empenho ou investimento de
libido é uma forma de energia relacional, e isto está associado ao fato que Jung definiu como
sendo o princípio feminino ou o princípio de relacionamento. Assim, podemos dizer que o
relacionamento, em seu sentido mais amplo — a capacidade de estabelecer relações com
alguém ou algo — é uma característica da coagulatio, que ele promove coagulação.
4. A lua promove solutio
No entanto, a lua também promove solutio por causa de sua associação com a água, o mar,
as marés, a seiva das plantas e com o orvalho. Assim, em certas circunstâncias ela pode coa-
gular, mas em outras ela pode dissolver; em certas circunstâncias ela pode concretizar e tra-
zer potenciais psíquicos à realidade, e em outros casos pode ter o efeito de dissolvê-los.98
Há dois aspectos da solutio: um deles acontece quando algo duro e rígido é derretido e tor-
nado macio e mole, e este é o aspecto em que a graça e renovação são trazidas pelo orvalho
da lua, ou pela água da lua. Mas em outros casos o aspecto da solutio se transforma em algo
negativo e perigoso, e isto é ilustrado pelo mito de Diana e Acteon.
5. A lua, animais de sangue frio e o cão
Acteon era um jovem caçador que estava no campo com sua matilha de cães de caça, quan-
do acidentalmente deparou-se com Diana, a lua, tomando banho nua. Para puni-lo por este
embaraço, Diana transformou Acteon num veado, que foi a seguir foi despedaçado por seus
próprios cães. Em outras palavras, Acteon foi submetido à dissolução.
Esse mito é um exemplo do complexo de símbolos lua-água-banho-dissolução. Acteon repre-
senta o jovem ego que se confronta prematuramente com a plena intensidade do princípio
arquetípico lunar e não consegue suportar seus efeitos. O ego passa então por uma dissolu-
ção devido ao impacto desse encontro — ele é fragmentado e desmembrado pelos cães. Po-
de-se dizer então que o ego mergulha em um estado de identificação com os fatores instintu-
ais representados pelos cães. Cão, água e lua são todos simbolicamente sinônimos (na pró-
xima semana falaremos mais extensamente sobre o simbolismo do cão — uma parte impor-
tante do simbolismo da lua).
Esta mesma imagem da lua, da água e de estar sendo atacado por animais é ilustrada numa
significativa figura reproduzida em Psicologia e alquimia (figura 8-2). Nesta figura a região
superior aparece com aquelas clássicas espirais encaracoladas, e através delas, irradiando
para baixo, está o sol. Abaixo do sol está a lua, e há um líquido que escorre a partir daquela
forma lunar. Trata-se do orvalho lunar, da água lunar, que flui a partir da lua e batiza um
casal de homem e mulher que está em baixo. Ao mesmo tempo em que estão sendo batiza-
dos pela água lunar, eles também estão sendo mordidos no calcanhar ou na panturrilha por
figuras animalescas de ambos os lados.
Então podemos dizer que o casal está sendo submetido a uma experiência similar à de Acte-
on: eles estão imergindo no banho lunar e estão sendo mordidos pelos instintos animalescos.
Simultaneamente também vemos um sapo, uma das criaturas de sangue frio associadas à lua,
que emerge na superfície do banho. Com muita frequência o sapo representa ou então apon-
ta para o processo de transformação.

98 Para mais detalhes a respeito da solutio, ver EDINGER, Anatomia da psique, cap. 3.

103
Figura 8-2: O par irmão e irmã atacado.

Outro exemplo do mesmo processo encontra-se na carta do tarô intitulada A Lua (figura 8-3).
Nesta carta a lua está deixando cair o orvalho em direção à terra, e dois cães ou lobos estão
olhando para cima e para ela. Criaturas parecidas com crustáceos encontram-se rastejando
para fora da água em direção à lua. É uma parte do mesmo simbolismo.

104
Figura 8-3: Carta do tarô “A lua”.

O mito de Endímion é outro mito lunar que ilustra um lado diferente do perigoso aspecto da
lua. Endímion era um pastor que uma noite adormeceu numa caverna, quando então Selene,
a lua, o viu, e desceu à terra para deitar-se a seu lado. Para que ele sempre lhe pertencesse,
a lua beijou seus olhos fechados, e ele então caiu num sono profundo do qual jamais desper-
taria. Adormecido assim para sempre, a lua poderia visitá-lo sempre que quisesse, você po-
dem ver. Esta é outra versão da história de uma mãe e de seu filho-amante perpetuamente

105
jovem. Certamente a forma para isso se realizar é o fato de que o filho-amante tem que ne-
cessariamente morrer jovem, e consequentemente nunca amadurece e nem envelhece.
Acredito que John Keats é um exemplo de uma pessoa que se identificou com este arquétipo
— ele viveu somente até a idade de vinte e seis anos. Keats escreveu um longo poema-
narrativa chamado “Endimion”, e para dar-lhes uma amostra do caráter da poesia lunar,
permitam-me ler-lhes os belos primeiros versos:
O que é belo há de ser eternamente
Uma alegria, e há de seguir presente.
Não morre; onde quer que a vida breve
Nos leve, há de nos dar um sono leve,
Cheio de sonhos e de calmo alento.
Assim, cabe tecer cada momento
Nessa grinalda que nos entretece
À terra, apesar da pouca messe
De nobres naturezas, das agruras,
Das nossas tristes aflições escuras,
Das duras dores. Sim, ainda que rara,
Alguma forma de beleza aclara
As névoas da alma. O sol e a lua estão
Luzindo e há sempre uma árvore onde vão
Sombrear-se as ovelhas; cravos, cachos
De uvas num mundo verde; riachos
Que refrescam, e o bálsamo da aragem
Que ameniza o calor; musgo, folhagem,
Campos, aromas, flores, grãos, sementes,
E a grandeza do fim que aos imponentes
Mortos pensamos recobrir de glória,
E os contos encantados na memória:
Fonte sem fim dessa imortal bebida
Que vem do céus e alenta a nossa vida.*

“Fonte sem fim dessa imortal bebida” — aqui está a lua regando a terra com seu orvalho. E já
que Keats era um homem lunar, ele era capaz de ver, sentir e comunicar esta condição.
6. O aspecto noético da lua
A partir do parágrafo 155 Jung traz à tona um material que é bastante complexo e difícil de
comunicar. Ali ele fala que a lua está associada a determinados termos como Ennoia, Epinoia
e Sapientia. Ele então segue em frente elaborando estas questões, mas como elas estão mui-
to longe de ser absolutamente claras, convém dizer algumas palavras a respeito delas. Ennoia
e Epinoia são nomes personalizados associados à lua. Estes nomes têm sua origem no gnos-
ticismo e são derivados da palavra Nous. E como Jung diz, eles se referem ao aspecto seme-
lhante ao Nous da lua.
Nous, um termo da antiga filosofia grega e gnosticismo, é muito difícil de traduzir com preci-
são. Nous tem qualidades similares a Logos, mas não é equivalente a ele. Nous é uma enti-
dade espiritual tida por possuir poder criativo e gerador que se irradia a partir dos reinos ce-

* Tradução de Augusto de Campos [n. do t.].

106
lestiais transpessoais do universo e que desce à terra. Quando ele se manifesta na terra ele
cria mente, razão, ordem, e tudo o mais que seja espiritual e humano em oposição à matéria
bruta.
É muito interessante que o simbolismo da lua inclua um aspecto noético ** — ordinariamente
concebemos o fenômeno do espírito criativo como sendo parte exclusiva do simbolismo mas-
culino — mas aqui está sua contraparte. E as evidências da etimologia apontam para o mes-
mo fato simbólico. Em grego, a palavra mene era a palavra usada para designar “lua”. A raiz
desta palavra foi transmitida para o latim e gerou a palavra latina mensis, que significa “mês”.
Aqui vocês podem ver a raiz de nossa palavra [em inglês] menses, o período menstrual. A
mesma raiz aparece na palavra latina mens, que significa “mente”, com a sua forma genitiva,
mentis; e mentis é a raiz de nossa palavra “mental”. A mesma raiz está na palavra mensura,
que em latim significa “medida”. Assim, lua, mês, mente e medida, todas elas pertencem ao
mesmo simbolismo.
Isso mostra que em determinado sentido psicológico, a lua e aquilo que é simbolizado por
ela, quer dizer, o princípio criativo, criam o tempo, a medida e a mente. Vocês podem en-
tender isso assim: os conteúdos que estão emergindo do inconsciente coletivo para o ego,
passando através do fator lua desde o reino eterno e atemporal até atingir o reino do ego,
adquirem as qualidades de tempo, espaço, quantidade e medida conforme chegam à consci-
ência. Estas qualidades (tempo, espaço, quantidade e medida) são todas categorias da consci-
ência. Elas são a base do fenômeno da atividade mental, da vida mental ou do funcionamen-
to mental. Elas são parte do processo de encarnação, que é promovido pela lua.
No parágrafo 154 Jung faz uma afirmação provocativa. Ele diz:
A lua é um símbolo muito apreciado para certos aspectos do inconsciente — isso, contudo, vale
apenas para o homem. Para a mulher a lua corresponde à consciência e o sol ao inconsciente. Is-
to está relacionado com o tipo sexual oposto no inconsciente: anima para o homem e animus pa-
ra a mulher!

Jung lança essa ideia e segue em frente. Entretanto, NEUMANN tem uma visão um pouco
diferente da questão. Ele sugere que o sol é o princípio de consciência tanto para o homem
quanto para a mulher. E quando tento recordar minha experiência pessoal nesta questão,
quanto mais reflito mais complicado ela se torna. Acredito que ambas as afirmações são ver-
dadeiras, mas aqui, assim como todas as demais questões ligadas ao princípio feminino, nin-
guém consegue ser muito preciso. Mas temos que nos permitir funcionar também sob a luz
da lua quando as coisas são indistintas.
Contudo eu colocaria a questão nos seguintes termos: a consciência do ego de uma mulher,
pelo menos sob circunstâncias normais, encontra-se mais confortável e mais relacionada com
a lua porque a lua é mais compatível com a consciência feminina, com a consciência da per-
sonalidade. Para o homem, a consciência do ego é, de maneira geral, mais compatível com o
sol. Entretanto, se olharmos por um ângulo diferente, também podemos dizer que NEU-
MANN está certo: falando de maneira absolutamente estrita, o princípio da consciência é o
mesmo para homens e mulheres. Isso deixa a questão bem longe de estar esclarecida, e acho
que para sermos honestos com as imagens das quais estamos tratando ela deve ser deixada
assim.

**
1. Que pertence ao intelecto, à mente; racional; 2. que se caracteriza pela atividade intelectual (Houaiss).
Derivado de Nous [n.do t.].

107
Relevante para toda esta discussão é o sonho de uma mulher que era uma cientista pesquisa-
dora de ciências biológicas — ela estava na casa dos trinta anos e solteira nessa época:
Um jovem amigo chamou-me para a janela para observar um estranho fenômeno no céu. Quando
olhamos, vimos a lua, e por trás dela emergia um outro corpo celeste, como se fosse uma segunda
lua. Subitamente esta segunda lua começou a explodir em cores espetaculares que pareciam a ex-
plosão de uma bomba H. Pensamos que estávamos presenciando o nascimento de um novo sol, e
esta ideia foi bastante assustadora, pois se um novo sol fosse criado, seu calor e radiação poderia
matar-nos. De repente, durante outra explosão, um pedaço daquele novo corpo celeste foi lança-
do ao espaço e caiu bem dentro de nosso apartamento. Corremos dali tão rápido quanto possível,
com medo de que ele fosse radioativo.

Bem, esse sonho fala a respeito da lua, a respeito do aparecimento de uma segunda lua, e a
respeito do nascimento de um novo sol. As sessões analíticas da paciente, realizadas anteri-
ormente a este sonho, consistiram na discussão do medo que ela tinha dos homens, que ha-
via começado na sua infância. Sua mãe havia lhe transmitido o medo de um homem que
havia se exibido para crianças em um túnel sob uma avenida. E recentemente a paciente
vinha tendo fantasias de ser atacada por um homem. Ora, o desenvolvimento do ego desta
paciente era defeituoso — podemos dizer que seu ego lunar ainda não havia nascido. E eu
entendo este sonho como sendo a expressão do nascimento do ego lunar. Na verdade, foi só
após um longo trabalho que o desenvolvimento do ego da paciente se deu — ela se tornou
capaz de se casar e ter filhos, e só então uma experiência feminina plena se tornou acessível
a ela.
Mas mesmo no meio deste sonho do nascimento do ego lunar — um pedaço da lua caindo
em direção à terra — nós também podemos ver a ideia de que um novo sol está nascendo.
Vejam então de que maneira curiosa as duas ideias estão interligadas; logo, não podemos ser
muito dogmáticos a respeito disso.
Pergunta: Você acha que a imagem das duas luas também sugere o nascimento ou algo vin-
do à consciência?
Bem, é verdade; sempre que alguma coisa surge em forma de par isso significa que está e-
mergindo para a consciência.99
7. A equação simbólica entre Luna e a Igreja
Quero dizer algumas palavras sobre a equação Luna-Ecclesia, a equação lua-Igreja. No sim-
bolismo cristão tanto Maria quanto a Igreja são equiparadas à lua. Um estudo muito valioso
do simbolismo patrístico de assuntos como este da lua pode ser encontrado no livro de Hugo
Rahner ao qual Jung se refere no parágrafo 168. No capítulo sobre o simbolismo da lua de
seu livro, RAHNER escreve:
A Igreja, como verdadeira mãe que recebe em si os raios do sol de Natal [o recém-nascido sol do
dia de Natal], sendo deste modo uma imitadora da Abençoada Virgem, dá nascimento ao Cristo,
pois no batismo ela concede a vida ao fiel. Ao assim fazer, ela transforma pessoas meramente
“psíquicas” na raça dos “pneumáticos”, pessoas preenchidas com o espírito.100

Bem, aqui estamos diante do jargão gnóstico. Dito em outras palavras, a Igreja transforma
criaturas terrestres em criaturas espirituais. De acordo com os gnósticos, havia três categorias
de pessoas: “sárkicos”, psíquicos e pneumáticos. Os sárkicos eram pessoas exclusivamente

99 Ver Marie-Louise VON FRANZ, Adivinhação e sincronicidade, p. 125s.


100 Ver RAHNER, Greek myths and Christian mystery, p. 161.

108
corporais e carnais — eles eram inteiramente sarkos.* Os psíquicos não tinham bem o mes-
mo significado que hoje damos à palavra “psíquico”; eles eram pessoas aquosas, somente um
pouquinho melhor do que os sárkicos mas não tão evoluídos quanto os pneumáticos, que
pertenciam à elite. A passagem de RAHNER continua:
Por meio desta ação a Igreja se torna comparável a Selene [a lua], que recebe a luz do sol, em se-
guida a transforma da mesma maneira que uma mãe, e então, como senhora de todas as águas
sobre a terra, traz a nova vida para o mundo.101

Este é um exemplo da equação lua-Igreja. Jung cita outros exemplos e há uma grande quan-
tidade deles na literatura patrística.
Esta questão é bastante importante psicologicamente porque a referência à Igreja aqui feita
refere-se a toda e qualquer comunidade religiosa, todo e qualquer coletivo, seja étnico ou de
praticantes religiosos, não somente os cristãos. Todas as comunidades como essas servem
como mãe-lua para aqueles que se reúnem em seu seio: a Igreja é comparável à lua que re-
cebe a luz do sol, transforma-a como se fosse uma mãe e então concede vida nova ao mun-
do.
Em outras palavras, a lua-Igreja funciona como um mediador. Para aqueles que se abrigam
na Igreja ou numa determinada comunidade sagrada, o contato imediato com o sol pode ser
mortal. Estas pessoas precisam de um mediador, e esta é a função que lua-Igreja realiza. Esta
função sempre é positiva enquanto serve às necessidades pessoais dos indivíduos. Até que
uma pessoa não tenha adquirido um desenvolvimento suficiente, ela precisa do anteparo ou
proteção proporcionado pela Igreja ou comunidade, e então o pertencimento à comunidade
é completamente positivo.
Se, contudo, o impulso para um grau maior de desenvolvimento surgir em um determinado
indivíduo, então a função “lunar” de pertencimento à comunidade religiosa se torna negativa.
Temos exemplos gritantes disto em inúmeros cultos religiosos. Estes cultos funcionam muito
bem como comunidades sagradas para almas perdidas, proporcionando a elas um sentido à
vida, contenção e orientação. Tudo anda muito bem enquanto a contenção é confortável.
Mas se uma determinada pessoa passa a sentir uma necessidade interior maior de desenvol-
vimento espiritual, e decide abandonar a comunidade, então ela encontra problemas — seus
irmãos não a deixam ir embora assim tão facilmente. E aqui se vê um exemplo da lua, que
antes era um funil que dispensava a graça do orvalho lunar, agora se transforma no funil de-
vorador do sonho que eu lhes relatei na palestra anterior. 102
Pergunta: este seria o lado negativo da coagulatio?
Eu não acho que o pertencimento a uma comunidade religiosa se refira em si à coagulatio;
mas como há tanta sobreposição — bem, talvez em parte sim. Mas eu acredito que aqui a
imagética é mais líquida. Trata-se mais de uma imagem de peixes nadando em volta do lago
eclesiástico. Enquanto eles se limitam a ser peixes, tudo corre bem, mas se um ou dois deles
se transformam em anfíbios, eles precisam começar a se lançar à terra firme. É então que o
lago se torna negativo.
Bem, mesmo que tudo isso corra o risco de se tornar confuso, quero adicionar mais um as-
pecto aqui. Enquanto planeta supostamente mais baixo, o mais próximo da terra, a lua é

* Sarkos em grego significa “carne” [n. do t.].


101 Idem.
102 Ver acima, cap. 2, item 5.

109
algumas vezes associada à própria terra. Então, neste caso, o que temos é a equação simbó-
lica de que a lua é igual à terra, já que a lua, deste ponto de vista, se torna o mais terreno de
todos os assim chamados planetas. Logo, deste ponto de vista, a lua é equiparada ao ego.
Deixem-me mostrar-lhes outra citação de RAHNER na qual ele fala de PLOTINO (um filóso-
fo neoplatônico grego circa 204-270 d.C.). Na cosmologia de PLOTINO existe uma tríade de
fatores principais: Um, Nous e Toda-Alma. O Um é a fonte de toda a existência — uma es-
pécie de essência invisível. Do Um emana um princípio dinâmico, que é o Nous. E a terceira
entidade, criada pelo Nous, é a Toda-Alma ou então Mente. Ao comentar isso, RAHNER faz
a seguinte observação sobre PLOTINO:
Vemos, portanto, que o Um é comparável à luz; o segundo [Nous] ... é comparável ao sol, e o ter-
ceiro [Alma ou Mente] ... é comparável à lua, que recebe sua luz do sol; Isto porque o espírito é
alguma coisa adicionada à alma, e lança uma luminosidade sobre a alma no caso de ela ser espiri-
tualizada.103

O que está dito aqui, traduzido para linguagem psicológica, é que, de um determinado ponto
de vista, o ego enquanto receptor da energia transpessoal do inconsciente coletivo é análogo
à lua.
Vejam que quando lidamos com todas estas imagens, precisamos assumir uma atitude fluida
e relativista. Uma dada imagem pode assumir um significado em um determinado contexto, e
um determinado conjunto de circunstâncias, e outro significado totalmente diferente quando
inserida em outro conjunto de circunstâncias. Algumas vezes a lua será a fonte transmissora
do ego. Em outras vezes, num contexto simbólico diverso, ela própria tomará as qualidades
do ego, já que recebe sua luz e energia de uma fonte externa a si mesma, assim como faz o
ego.

103 Greek Miths, p. 158; de PLOTINO, Enéadas, V, 6, 4.

110
PARÁGRAFOS 169–205

9
Havíamos combinado que nosso encontro desta noite cobriria os parágrafos que vão de 169
a 205, mas como pretendo examinar inteiramente o simbolismo do cão, então estudaremos
os parágrafos 170 a 205.
Mas antes de começar com o material desta noite, tenho algumas correções a fazer na nossa
tradução. Perto do final do parágrafo 182 o texto fala: “incesto, como já dissemos antes, é
nada mais do que uma forma preliminar da unio oppositorum”. Jung não escreve “nada mais
do que”. O texto original em alemão seria melhor traduzido por “incesto ... tem o significado
de uma forma preliminar ...”.* Então risquem “nada mais do que” e escrevam “tem o signifi-
cado de”.
Agora no parágrafo 186, sete linhas para baixo do topo [na edição em inglês], a tradução
diz: “como um homem cego guiando outro cego com uma certeza sonambulística para um
fosso”. O texto em alemão, em vez de “fosso”, diz “para o vazio, para onde todos os paralí-
ticos o seguem”.**
E por último, no parágrafo 199, em vez de “interpretações de cima para baixo”, risquem as
palavras “de cima para baixo”, de forma que se leia somente “interpretação para baixo”.***
O material desta noite refere-se ao simbolismo do cão. Como ainda estamos lidando com o
tema mais abrangente da lua, toda esta sessão sobre o cão está inclusa no simbolismo da lua.
São sete os tópicos dos quais vou tratar hoje — na verdade, sete mais um, o que é bastante
significativo, não é mesmo?
1. Hécate, o inferno e o mundo subterrâneo
2. O cão como perseguidor
3. O cão como desprezado e insignificante
4. O cão como guardião
5. O cão como companheiro e familiaris — o espírito familiar
6. O texto que começa com “destrói, pois, a casa...” (par. 174)
7. Outro texto que começa com “se souberes irrigar esta terra árida...” (par. 180)

* Este erro não ocorre na tradução brasileira [n. do t.].


** Idem [n. do t.].
*** Idem [n. do t.].

111
Antes, contudo, de examinar estas imagens, quero falar a respeito do mito de extração da
raiz da mandrágora. Este assunto surgiu no nosso último encontro associado ao simbolismo
da lua-planta, mas ele, na verdade, vem mais a calhar aqui na sessão do simbolismo do cão.
Jung se refere a ele no parágrafo 153 e na nota de rodapé 208. A mandrágora é uma das
plantas associadas à lua, e toda a história acerca da extração da raiz da mandrágora é tão
interessante simbolicamente que vou me referir a ela um pouco.
A mandrágora é tida como tendo a forma de um homem sem a cabeça. Um texto diz: “Ela
só precisa de uma alma que a anime para se tornar um pequeno ser humano”. 104 Em outras
palavras, a mandrágora é uma espécie de homunculus crescendo como planta no solo. Ela é
tida como sendo afrodisíaca, narcótica, anestésica, extremamente venenosa em certas ocasi-
ões — pode causar loucura — e quando é extraída de maneira correta por um mago, sua raiz
pode ser usada em feitiços e magia.
Alguns testos alquímicos que tratam da criação da Pedra Filosofal guardam um simbolismo
paralelo com a extração da raiz da mandrágora. O texto citado por RAHNER diz: “O peque-
no homem vermelho no interior do solo grita: ‘Ajude-me, e eu te ajudarei!’“. A Pedra Filoso-
fal faz exatamente a mesma observação para o alquimista.105
Diz-se que é muito difícil extrair a raiz da mandrágora, e para que alguém possa conseguir é
preciso seguir um rigoroso ritual. O trabalho deve ser realizado somente à noite, sob a luz da
lua — é aqui que surge o simbolismo da lua. A primeira tarefa, obviamente, é encontrar a
planta. Felizmente ela ajuda, pois brilha no escuro. Uma vez encontrada, o alquimista que vai
extraí-la precisa desenhar três círculos à volta dela, e então voltar-se para o oeste. Ele tam-
bém deve ter a seu lado um ajudante, que deverá ficar dançando em volta da planta enquanto
murmura atos eróticos.
Como a mandrágora é uma planta que pertence a Hécate, que é aquela que tem o cão preto
como seu atributo, um cachorro negro deve ser usado no processo de remover a raiz da
mandrágora. Deve-se fazer assim: primeiro a terra é escavada em volta da raiz, e a seguir a
raiz é amarrada à cauda do cão preto. O rizotomista, aquele que extrai a raiz, permanece um
pouco à distância. Ele não pode se aproximar muito dela nesse ponto. Então ele chama o
cão, e então o cão se aproxima dele arrancando a raiz com a cauda. È mais ou menos como
fazíamos, quando crianças, para arrancar um dente de leite — amarrava-se um fio ao dente e
a outra extremidade à maçaneta da porta, e a porta era fechada ou algo assim. Então ele
chamava o cachorro, o cachorro corria para ele e a raiz era arrancada.
Este era então um momento de grande perigo e risco: no momento da extração, a mandrá-
gora dava um grito que podia matar a pessoa que o escutasse. O rizotomista, então, precisa-
va se certificar de tampar os ouvidos quando chamasse o cão para não escutar o grito. É
então que o cão morria. Mas aqui há duas versões diferentes sobre como isso ocorria. De
acordo com uma delas, o cão morria no momento da extração — o grito da planta o matava.
Segundo a outra versão, o rizotomista sacrificava o cão negro após ter obtido a planta.106
Não é um relato fascinante? Se mantiverem essa história em mente acredito que haverá inú-
meras ocasiões em que ela será útil quando aparecerem sonhos que fazem referência a cada
uma destas operações.

104 Ver RAHNER, Greek miths, p. 233.


105 “Protege-me, e eu te protegerei; dá-me o que é meu, e eu te auxiliarei” (“The golden treatise of Hermes”,
em M. ATWOOD, Hermetic philosophy and alchemy, p. 128).
106 Ver RAHNER, Greek miths, p. 233; ver também Edward WHITHMONT, “The magical dimension in trans-
ference and countertransference”, p. 176s.

112
Eu creio que a própria raiz da mandrágora é uma imagem do Self original, o homem total,
enterrado num estado de participation mistique. Pode-se dizer que ela é o Self, enterrado no
núcleo ou centro de um complexo central de uma pessoa.
O trabalho de colheita deve ser realizado à noite porque é somente na escuridão que se pode
ver o tênue brilho da planta. Isso me sugere que a operação deve ser feita quando o ego está
eclipsado. Enquanto o ego estiver emitindo sua luz e atuando na luz diurna da consciência,
ele não será capaz de perceber a fraca luz brilhando no inconsciente. Desenhar os três círcu-
los em volta da planta sugere os círculos mágicos protetores — que criam uma espécie de
temenos que centraliza, foca e delimita a atenção e energia que são dirigidas para o procedi-
mento.
Voltar-se para o oeste — a direção do pôr do sol, a terra dos mortos — sugere que o ego
deve estar orientado em direção à fase decrescente da vida, em vez de orientado para a fase
crescente dela. Em outras palavras, estamos diante de uma operação a ser realizada só na
segunda metade da vida.
O assistente deve dançar à volta murmurando cenas eróticas — isso me sugere a deliberada
evocação de energias de coniunctio.
A terra deve ser removida da raiz: isto me sugere que antes da operação deve ter acontecido
uma análise dos contextos pessoais e concretos do complexo central da pessoa para que a
terra que se encontra à volta dele seja removida.
Chega então o evento crucial: a raiz é puxada para fora por estar atada ao rabo de um cão
preto. Tanto a mandrágora quanto o cão negro estão associados à lua, e então a ideia é a de
que a raiz deve ser extraída por algo que tenha a sua própria natureza. O cão negro sugere
um afeto sombroso que é canalizado para um proposto específico. Esta é a imagem mais
provocativa de todas — servir-se de um cão negro para extrair a raiz: nenhuma pessoa deli-
cada e sensível que se preze realizaria essa tarefa — é um serviço sujo.
O grito da mandrágora que não deve ser escutado é como o canto das sereias que não pode
ser ouvido. Isso indica que existe um momento certo para abrir o inconsciente, mas também
momentos em que devemos estar fechados para ele. Isso me faz lembrar da descida de Psi-
quê ao mundo subterrâneo quando, em um determinado ponto, ela é instruída a não de-
monstrar nenhuma compaixão por uma vítima do submundo quando ela viesse ao seu encon-
tro. Psiquê deveria dar as costas a ela e não dar nenhum ouvido às suas súplicas. 107
Por último, o cão é sacrificado no final. Isso sugere que nossos afetos sombrosos, que num
determinado contexto prévio permitimos que fossem expressados para determinado propósi-
to, agora devem ser sacrificados. Isto é de vital importância: se não acontecer, o extrator se
torna o cão preto em vez do ser humano. Isso equivale à mandrágora extraindo o operador,
em vez de ser o operador quem extrai a mandrágora. Um simbolismo bastante provocativo.
Agora, a imagética do Mysterium sobre o cão, que se inicia no parágrafo 169, é muitíssimo
rica e, de fato, vocês terão muitas oportunidades de usá-la em interpretação de sonhos. A
imagética do cão tem aplicação prática imediata e vale a pena conhecê-la bem.
Psicologicamente o cão pode ser chamado de a personificação teriomórfica do inconsciente.
Trata-se do aspecto teriomórfico da lua — a maneira pela qual ela se manifesta no nível ani-
mal e terreno — e há várias diferentes facetas deste simbolismo

107 Ver NEUMANN, Amor and Psyche, p. 48.

113
1. A associação do cão com Hécate, o inferno e o mundo subterrâneo
Cérbero, o cão infernal, é o cachorro guardião do mundo subterrâneo e a própria encarna-
ção do submundo. Todos os que se dirigem ao mundo subterrâneo, ou então que dele retor-
nam, precisam dar a Cérbero um pedaço de comida para não ser devorados por ele. Vejam,
é preciso dar a ele algo para que ele não os devore. Vocês jogam a ele um naco de carne
para distrair sua atenção e não serem comidos por ele.
Se você se situar neste simbolismo ele lhe proporcionará um pouco de verdadeira sabedoria
a respeito de como lidar com o inconsciente, como se posicionar diante dele. Vocês jamais
penetrarão no inconsciente mantendo cuidadosamente suas atitudes moralistas conscientes:
vocês sempre precisarão atirar um naco de carne aos poderes das trevas para que eles per-
mitam sua passagem.
Embora não seja possível ver esse processo com frequência em nossa assim chamada condi-
ção civilizada, na antiguidade os cães eram contumazes comedores de carniça. Vejam, esta é
uma das características do aspecto subterrâneo dos cães — eram eles que comiam os mortos.
Nos sonhos o surgimento de um cão furioso, ou então de um cão negro geralmente pode ser
interpretado como sendo uma referência a Cérbero, uma referência ao escuro e perigoso
aspecto do inconsciente que deve ser tratado com cuidado e respeito, concedendo-lhe o que
lhe é devido: um suborno.
2. O cão como perseguidor
Uma característica importante do cão é que ele fareja a vítima e a persegue até matá-la.
Vem-me à mente, por exemplo, o ato de caçar com uma matilha de cães — você não conse-
gue caçar uma raposa sem os cães. Psicologicamente, a presa final do cão enquanto perse-
guidor — o cão de caça — é o ego. Acteon experimentou isso quando seus cães se voltaram
contra ele. E este aspecto do simbolismo do cão traz à tona todo o tema do caçador e da
presa.
Podemos dizer que o cão representa o aspecto caçador da psique. Algumas vezes ela é uma
aliada do ego, e outras vezes é o próprio ego que está sendo caçado. Às vezes é o ego que
sai à caça com sua matilha de cães, e às vezes é o ego que corre da matilha como uma rapo-
sa perseguida. Podemos então dizer que o cão corresponde a um complexo que nos perse-
gue e que não nos deixa escapar.
Em última instância, essa caçada corresponde à urgência do Self, e o melhor exemplo de
poesia que conheço deste simbolismo é “O cão de caça do céu” de Francis Thompson.108
Neste poema, Deus é descrito como um grande caçador. Vou ler aqui algumas linhas só para
lhes dar uma ideia:
Dele fugi, noites e dias adentro;
Dele fugi, pelos arcos dos anos;
Dele fugi, pelos caminhos dos labirintos
De minha própria mente; e no meio de lágrimas
Dele me ocultei, e sob riso incessante.
Por sobre esperanças panorâmicas corri;
E lancei-me, precipitado,
Para baixo de titânicas trevas de temores abissais,

108 Francis THOMPSON viveu de 1859 a 1907. O poema foi escrito em 1900.

114
Para longe daqueles fortes pés que seguiam, seguiam após mim.
Mas com desapressada perseguição,
E com inabalável ritmo,
Deliberada velocidade, majestosa urgência,
Eles marcavam os passos – e uma Voz insistia
Mais urgente que os pés –
“Todas as coisas traem a Ti, que traíste a mim.”*

E o poeta continua fugindo através de várias e várias estrofes. Finalmente ele acaba encurra-
lado pelo grande caçador, já não pode mais escapar, e no final do poema ele se vira para
trás e se confronta com seu destino:
Interrompe para mim essa fuga:
É só minha a tristeza, afinal.
Sombra da mão Dele, estendida, me acariciando?
"Ah, o mais apaixonado, cego e fraco,
Sou eu quem Tu buscas!
Foste Tu que conduziste o Teu amor, Tu que me conduziste. "

3. O cão como desprezado e rejeitado


O cão está ligado à comunidade humana há já um longo tempo — desde o início do paleolíti-
co — de maneira que ele é membro da comunidade humana quase que desde o seu início.
Entretanto ele é o membro de hierarquia mais baixa, e na linguagem coloquial a palavra ca-
chorro sempre representou uma ofensa. “Seu cachorro sujo!”. Nunca chamamos alguém de
cachorro limpo, não é mesmo? Na antiguidade, homens prostitutos eram chamados de ca-
chorros, e “filho de uma cadela” é, obviamente, um termo depreciativo frequente que é peri-
goso de ser atribuído por aí a alguém de maneira muito livre.
Mas é ainda mais surpreendente descobrir que um dos sinônimos para a Pedra Filosofal é
filius canis. Isso soa bastante bem em latim, mas na verdade significa “filho de uma cadela”!
Aqui já podemos perceber que enorme paradoxo esta entidade é.
4. O cão como guardião
No parágrafo 171 Jung cita uma passagem de Hipólito:
O Logos é, pois, um cão, que em parte protege e defende o rebanho perseguido pelos lobos, em
parte espanta e aniquila os animais selvagens da criação, e em parte ainda produz todas as coisas,
e, como dizemos, é kyon, ou o Criador.

Este é um exemplo de enantiodromia que a imagética do Self provoca. Desde o cão como
algo desprezível, movemo-nos ao cão como Logos criativo e gerador de todas as coisas.
O mesmo simbolismo encontra-se associado à ideia do cão enquanto pastor que guarda as
ovelhas, de maneira que o cão exercendo esta função possui os mesmos atributos do Bom
Pastor. Este sagrado e profundo aspecto do cão também foi projetado nos céus. Sirius, a
estrela mais brilhante do céu, é a principal estrela da constelação Canis Major — o Cão Mai-
or. Essa estrela, a estrela do Cão, era adorada no Egito antigo e havia alguns rituais específi-
cos que eram realizados logo que ela surgia no horizonte.

* Tradução de Lissânder Dias.

115
5. O cão como companheiro e familiaris
Esta é outra expressão do cão como Self, e este aspecto particular tem seu exemplo clássico
no Fausto de Goethe. Todo o Fausto, mas especialmente a parte inicial, é tão eminentemen-
te psicológica que seria bom que estivéssemos completamente familiarizados com a obra.
Fausto será muito útil em nos proporcionar material de amplificação. 109
O drama Fausto começa com o personagem Fausto desesperado em seu estúdio porque
todos os estudos que havia realizado até então só o tinham conduzido a uma condição estéril
e vazia. Na segunda cena, Fausto está ao ar livre, caminhando pelos campos com seu assis-
tente, Wagner, quando então encontram um cão. Permitam-me ler-lhes um pequeno trecho
que descreve esse encontro:
FAUSTO
Vês o cão negro a errar pelo restolho e seara?

WAGNER
Há tempos já o vi, não o julguei de monta.

FAUSTO
Observa-o bem! Tens o bruto em que conta?

WAGNER
Na de um cão, mestre, o qual, à sua moda
Procura de seu amo a pista.

FAUSTO
Vês como em largas espirais nos roda
E nos galopa perto e mais perto ainda à vista?
E, caso não me iluda, brilha-
Lhe um borbulhão de fogo sobre a trilha.

WAGNER
Só vejo um perro negro, um cão;
Deve ser ótica a ilusão.

FAUSTO
Cismo que risca, de mansinho, laços
De mágica ao redor de nossos passos.

WAGNER
Vejo-o a rondar-nos, temeroso e incerto,
Porque, ao ver gente estranha, pasma.

FAUSTO
Restringe o círculo, está perto!

WAGNER
Pois vês! É um cão, não é nenhum fantasma.
Hesita, rosna, arrasta-se no chão,
Rabeia. Tudo isso hábito de cão.110*

109 Ver EDINGER, Goethe´s Faust: notes for a Jungian commentary.


110 Ver GOETHE, Fausto, p. 65-6.
* Tradução de Jenny Klabin Segall.

116
Fausto acaba por render-se ao senso comum de Wagner, mas na verdade o cão negro era a
primeira manifestação de Mefistófeles, que a seguir segue Fausto até sua casa, insinua-se pela
porta, e volta a aparecer mais tarde. Então, sempre que vocês encontrarem um cão negro
num sonho, especialmente um cão que está seguindo alguém ou algo, ou que indica que tem
algum interesse a respeito do sonhador, pensem em Fausto e na primeira manifestação de
Mefistófeles — pois é isso que vai acontecer com o sonhador.
É claro que temos inúmeros sonhos de cães positivos e bons companheiros, e estes sonhos
são da maior importância, porque significam a emergência de uma conexão positiva com o
Self.
Ocasionalmente já pude encontrar sonhos com cães azuis e isso corresponde à imagem de
um texto que Jung cita no parágrafo 169. Na citação de Mysterium, ele começa assim:
“Hermes disse ...”. Este texto é bastante importante e eu quero acrescentar uma sentença ao
começo dele — o texto fará mais sentido se vier com a sentença completa antes. A sentença
é: “E Hermes disse a seu pai: Pai, tenho medo do inimigo em minha casa E Ele respondeu:
Meu filho, toma o cão macho corasceno ...”.
Agora quero ler toda a passagem, incluindo a sentença inicial que acrescentamos agora:
E Hermes disse a seu pai: Pai, tenho medo do inimigo em minha casa. E Ele respondeu: meu fi-
lho, toma o cão macho corasceno e a cadela armênia e os acasala, e eles parirão um cão da cor
do céu [um cão azul]; e quando este cão [azul] tiver sede, dá-lhe de beber água do mar. Pois ele
protegerá teu amigo e te defenderá de teu inimigo e te ajudará onde quer que estejas, vivendo
contigo neste mundo e no outro

Vou me deter aqui, pois isto já é suficiente para meu propósito.


A importância psicológica aqui é que a receita é evocada em resposta a uma expressão de
medo “do inimigo em minha casa”. Esta é uma receita de alívio de ansiedade; “Pai, tenho
medo do inimigo em minha casa”. Tenho medo — algo está me deixando ansioso — pois há
algo rondando a casa da minha psique. E a resposta é: “Está bem filho, tome o cão corasce-
no e a cadela armênia, coloque-os juntos e eles gerarão o cão azul que o protegerá de seu
inimigo neste mundo e no outro”. Dito em outras palavras, a função do cão de guarda tam-
bém se fará para além da existência temporal no reino transpessoal.
Ninguém sabe a que se refere o termo “cão corasceno”; pode ser que ele indique um lugar
geográfico. Mas a ideia é a de que os opostos devem ser unidos, e de que o processo de unir
os opostos, essa coniunctio, fará nascer o cão de guarda azul que nos salvará de nossa ansie-
dade. Ora, isso ainda está colocado só de maneira simbólica, e ainda temos que aplicar essa
fórmula de maneira concreta, mas pelo menos o processo já começou a acontecer. Esse tex-
to, então, é um exemplo do cão enquanto companheiro — na verdade, um eterno compa-
nheiro.
Pergunta: E a respeito da água do mar?
Bem, isso indica que o processo ocorre alimentado pelo inconsciente — talvez alimentado
por algo como imaginação ativa.
6. “Destrói, pois, a casa ...”
Este é outro texto relacionado ao cão que Jung cita no parágrafo 174 (nota 300):

117
Destrói, pois, a casa, arranca as paredes, extrai daí o suco puríssimo junto com o sangue, cozinha
para que possas comer. Por isso diz ARNALDUS no Livro dos Mistérios: “”Purifica a pedra, mói a
porta, despedaça a cadelinha, escolhe a carne tenra, e terás uma coisa ótima. Numa única coisa
estão ocultos os membros, luzem todos os metais. Deles, dois são os artífices, dois os vasos, dois
os frutos, dois os fins, mas uma a salvação.”

Como Jung diz no parágrafo 175, “este texto é muito obscuro”, mas acredito que podemos
descobrir a essência psicológica dele. O texto está se referindo a um processo de extração.
As frases “destrói a casa” e “mói a porta”, despedaça a cadelinha” descrevem o processo de
demolir algo que previamente havia se tornado concreto, uma coagulatio prévia da libido, e
disso extrair a sua essência.
Esta é maneira pela qual podemos compreender melhor os sonhos nos quais há construções
que estão sendo destruídas — um processo de extração está em curso. É mais frequente en-
contrar esta imagética em pessoas jovens que sonham repetidamente que a casa de seus pais
está sendo destruída. Toda a libido que está investida na associação com seus pais, no lar
original da família, deve ser extraída. Então a receita é “destrói, pois, a casa” e “mói a porta,
despedaça a cadelinha”.
Acredito que a última frase “dois são os artífices, dois os vasos, dois os frutos, dois os fins,
mas uma a salvação” enfatiza o fato de que tudo o que está emergindo para a consciência
envolve, de uma maneira bastante profunda, o número dois. Embora a meta final da consci-
ência seja a unidade, a forma pela qual esta unidade emerge e se manifesta é a dualidade, ou
seja, pela confrontação do ego com um outro. Não se pode obter consciência senão pelo
outro, e certamente os dois aspectos são, de fato, o outro exterior e o outro interior. Estes
aspectos se constelam um ao outro e ambos são necessários.
Por exemplo, no parágrafo 175 Jung menciona o tema do adepto e de sua soror mystica —
sua irmã mística. Existe todo um livro alquímico chamado Mutus liber constituído por nada
mais do que figuras que mostram uma obra alquímica sendo levada a cabo por um homem e
sua parceira (figura 9-1). Com frequência somos questionados em palestras públicas se a in-
dividuação pode acontecer sem a intervenção de um analista. Acredito que a resposta deve
ser “sim, provavelmente pode, embora a individuação não possa ocorrer sem um ‘outro’”.
Diz-se que Jung afirmou a alguém que não pretende realizar uma análise, ou então que não
teve a oportunidade de fazê-lo: Você tem que conversar com alguém, e se você não conse-
guir isto, converse com seu fogão!”.
Quando fazemos isso, constelamos um “outro” em nós, como já puderam perceber: não
podemos conversar só conosco mesmos, sempre deverá haver um “outro”.

118
Figura 9-1: O alquimista e sua soror mystica.

7. “Se souberes irrigar esta terra árida ...”


Todo este texto e o comentário que se segue é verdadeiramente um ponto alto do Mysteri-
um. Em nenhum outro lugar de todos os escritos de Jung ele menciona um texto alquímico
desse tipo com uma interpretação psicológica tão plena e concreta. Na minha opinião, o
extenso comentário que faz ao texto equivale a uma hora de sessão analítica com Jung.
Tudo o que vocês têm a fazer é imaginar que tiveram um sonho equivalente ao texto — e
provavelmente já o tiveram, já que ele tem uma representatividade e validez tão genéricas
que qualquer um de nós já deve tê-lo sonhado; o texto tem essa aplicabilidade geral. E com
este sonho em mãos, imaginem que vocês vão para a hora analítica com Jung e que ele o
interpreta para vocês. O sonho vale para cada um de nós individualmente e vou lê-lo para
vocês.
Se souberes irrigar esta terra árida com a água apropriada, dilatarás os poros da terra, e este la-
drão exterior será lançado fora com os que operam iniquidade; pelo acréscimo do enxofre verda-
deiro a água será purificada da sujeira leprosa e da umidade hidrópica supérflua, e assim terás vir-
tualmente a fontezinha do conde de Trevis, cujas águas com toda razão são dedicadas à virgem
Diana. Este ladrão é um imprestável munido de maldade arsenical (certamente venenosa), de quem
o jovem alado tem horror e foge. E ainda que a aqua centralis seja sua esposa, contudo não ousa
ele mostrar seu amor ardentíssimo para com ela por causa das ciladas do ladrão, cujas maquina-
ções são deveras inevitáveis. Aqui Diana te seja propícia, aquela que sabe domar as feras, cujo par
de pombas suavizará a malignidade do ar por meio de suas asas, para que o ar penetre facilmente
pelos poros e o jovem abale os fundamentos da Terra e produza a tétrica nuvem, mas tu elevarás
as águas até o fulgor da Lua, e deste modo as trevas que pairavam sobre a face do abismo serão
afugentadas pelo espírito que se move sobre as águas. Assim, por ordem de Deus aparecerá a
luz.111

Agora vejam que à primeira leitura esse texto é confuso e difícil de compreender. Mas vou
tentar resumi-lo, e todo o esforço que fizermos para estudá-lo e compreendê-lo valerá a pena
111 Mysterium, par. 180-205, intercalado com os comentários de Jung.

119
por causa da maravilhosa interpretação que se segue. Vocês compreendem que se trata de
uma receita — precisamos sempre lembrar que todas estas histórias que aparecem nos textos
alquímicos são receitas. Todas elas estão dizendo ao alquimista o que fazer em sua retorta
alquímica, e devemos entendê-las como receitas psicológicas.
A receita começa nos dizendo que devemos “irrigar esta terra seca”. Isso significa que deve-
mos ativar o inconsciente. Ora, com frequência acontece que, mesmo se conseguirmos ser
bem sucedidos em ativar o inconsciente, mesmo assim continuamos a viver nossa condição
seca e estéril, em vez de ver surgir a condição úmida e fértil. Se este for o caso, não conse-
guiremos avançar na receita. De qualquer maneira, a primeira cosa a se fazer é ativar o in-
consciente.
É então que, uma vez que isso aconteça, a receita começa a falar a respeito de um determi-
nado ladrão que possui arsênico venenoso. Em outras palavras, a ativação do inconsciente
traz à tona consigo algo negativo, difícil e escuro. Como Jung informa no parágrafo 186-7,
esse ladrão com seu arsênico venenoso é a concupiscência grosseira e vulgar e o desejo de
poder — isto é o sulphur cru. É precisamente isso que surge logo que o inconsciente é ativa-
do. Mas a outra coisa importante que surge com a ativação do inconsciente é este fator bas-
tante desejável, a fonte de Diana, e esta é uma imagem do Self em seu aspecto feminino,
aspecto de Eros.
Então aqui temos duas entidades: a fonte de Diana e o ladrão com o arsênico venenoso. O
significado disso para nós é que não conseguimos chegar à fonte de Diana porque o ladrão
encontra-se no meio do caminho — o que significa que há uma espécie de qualidade ator-
mentadora que impede o progresso.
A receita então nos informa que a fonte de Diana só é certa de ser atingida se já tivermos
purgado nossas conexões com o ladrão. Somente quando o indivíduo estiver purgado de
motivos egóicos, purgado de concupiscência ambiciosa e de impulsos de poder é que se tor-
na seguro aproximar-se da fonte de Diana.
É então que ouvimos falar do jovem alado que está ansiando por se unir à fonte de Diana.
Esta é uma imagem de uma potencial realização do Self. Vocês também podem entender
este jovem alado como sendo uma imagem do próprio deus Eros. Então, é só depois que já
tivermos nos entendido com o ladrão que há em nós que o jovem alado poderá fazer sua
entrada no interior da fonte.
Mas acontece que a primeira e desejada entrada traz consequências negativas, pois resulta
em escuridão e terremotos “para que o ar penetre facilmente pelos poros”, embora o que
aconteça seja “abalar os fundamentos da terra e produzir a tétrica nuvem”. Assim, tão logo
aquela desejada conjunção é consumada — quando o jovem alado e a fonte de Diana se u-
nem — então surge um terremoto e uma nuvem negra. Estes eventos não são muito auspi-
ciosos. No entanto, gradualmente a escuridão é dispersa “pelo espírito que se move sobre as
águas” — que é o mesmo espírito que esteve presente no momento da Criação.
Então vejam que esta imagem significa o nascimento da personalidade expandida. Jung ex-
pressa esse resultado de maneira bastante bela no parágrafo 203:
O abalo [terremoto] provoca o escurecimento pela nuvem, isto é, a consciência entra na escuridão
por causa do abalo dos pontos de vista que vinha sustentando até então, como aconteceu com a
Terra por ocasião da morte de Cristo, que será seguida pela a ressurreição. Esta imagem quer sig-
nificar que o alargamento da consciência, de início, sempre representa abalo e escurecimento, e
[só] depois haverá expansão para além do humano para atingir o homem total.

120
Figura 9-2: A fonte da vida.

121
PARÁGRAFOS 206–238

As imagens mais importantes do encontro desta noite são:


10
1. Um texto de Paracelso: a lua como “grande espelho venenoso da natureza”
2. A imagem do basilisco
3. O começo do simbolismo do sal, que continuará no próximo encontro. A respeito do
simbolismo do sal, abordarei esta noite quatro itens:
a) A tríade sulphur-mercurius-sal e sua transformação em uma quaternidade
b) A trindade cristã transformada em quaternidade
c) A Assunção da Virgem Maria
d) A figura Pandora
Antes de começar, gostaria de adicionar a seguinte frase à nota 388 que aparece no meio do
parágrafo 233: “Os escritos de Orígenes deram origem à ideia de que ‘até o diabo será salvo
um dia’“.112 Esta ideia é tão importante que quero que vocês a compreendam.
1. A lua como “grande espelho venenoso da natureza”
Este muito surpreendente texto de Paracelso é citado no parágrafo 209. Vou ler algumas
linhas dele para relembrá-los de seu conteúdo e sabor:
Agora notai onde se acha uma pessoa medrosa e tímida, a quem a imaginação gerou e imprimiu
um grande medo, por meio da lua, que está no céu como corpus, e com o auxílio das estrelas.
Quando uma pessoa tão tímida assim olhar a lua com toda a sua imaginação ... o espírito sideral
... estará envenenado pelas estrelas e pela lua.

Paracelso então segue em frente e afirma que não somente o homem infecta a lua mas tam-
bém a lua infecta o homem: “A pessoa tímida ... infecciona o espelho da lua ...”. E a razão
pela qual ele infecciona a lua é a de que “uma mulher grávida, no tempo em que está mens-
truada, mancha o espelho e o corrompe com seu olhar”,
Pois nesse tempo ela é venenosa e tem olhar de basilisco por causa do mênstruo e do sangue ve-
nenoso que está oculto no corpo da mulher, porque o basilisco é produzido e nasce do mênstruo e
do sangue venenoso da mulher, do mesmo modo que a lua é o olho do basilisco celeste.

Esta é uma imagem muito surpreendente, uma vívida e impressionante expressão de experi-
ências psicológicas concretizadas a partir das quais o homem medieval vivia. É também a

112 Ver Aion, OC9/2, par. 171, n. 24.

122
imagem de um determinado relacionamento com a psique objetiva que eu quero ilustrar com
um diagrama (figura 10-1).

Figura 10-1

A mulher menstruada está à direita e abaixo da lua. A ideia é a de que ela olha a lua e, devi-
do à natureza venenosa de seu sangue menstrual (que, de qualquer forma, também é material
lunar — sabemos pela etimologia que menses significa “mês”, que significa “lua”); ela por
assim dizer infecciona a lua com seu próprio material. E quando olha para o espelho infecta-
do — a lua — então esse espelho funciona como o olho do basilisco (do qual falarei a respeito
daqui a pouco) e então o espelho infecciona o homem.
Ora, a imagem está incompleta aqui, porque esta seria a fantasia produzida pela psicologia
de um homem. E se vocês quisessem completar a imagem, vocês deveriam ter uma estrutura
quaternária: vocês deveriam ter o sol acima e atrás da figura masculina, e a lua acima e atrás
da figura feminina — sol e lua representando os princípios arquetípicos masculino e feminino
que se encontram por trás dos egos masculino e feminino da mulher e do homem respecti-
vamente (figura 10-2).

Figura 10-2

Então o que temos aqui é o que Jung chama, na sua “Psicologia da transferência”, de marri-
age quaternio, a estrutura quádrupla. Há diversas conexões possíveis que são ilustradas pelos
diagramas que Jung apresenta (figuras 10-3 e 10-4).113

113 A prática da psicoterapia, OC 16, par. 422 e 437.

123
Figura 10-3: O marriage quaternio.

Figura 10-4: Padrões de relacionamento.

Estes diagramas mostram o tipo de dinâmica que existe em qualquer relacionamento homem-
mulher no qual a coniunctio esteja constelada.
Certamente este texto de Paracelso enfatiza somente o aspecto negativo da lua. Entretanto
este aspecto negativo é uma realidade, pois para o ego imaturo o princípio arquetípico con-
trassexual é experimentado como sendo uma entidade bastante perigosa e ameaçadora con-
tra a qual devemos nos guardar.
Um exemplo clássico disto me veio à atenção há muitos anos atrás. Eu estava trabalhando
com um homem jovem e tínhamos atingido um estágio em que o inconsciente dele já havia
sido muito bem analisado. Foi então que ele teve um sonho representado por uma só sen-
tença. A sentença era: “A psicanálise é da lua”.
Pouco tempo depois ele decidiu que já havia feito análise suficiente até aquele momento, e
terminou seu tratamento. Como vocês podem ver, ele ainda não estava preparado para a
lua; sua psicologia correspondia a esse texto de Paracelso. Se ele lançasse um olhar para a
lua, ele seria envenenado pelo grande olho celeste do basilisco. A mesma coisa aparece na
psicologia feminina: se uma jovem mulher tem um encontro muito intenso com o princípio
solar, ele pode aterrorizá-la.
2. O basilisco
O basilisco é mencionado nesse texto e quero comentar um pouco mais sobre esta imagem.
Aqui estão algumas coisas que Funk and Wagnalls diz a respeito:
Um réptil fabuloso de ... lendas e folclore, cujo hálito e visão eram fatais. As descrições físicas da
criatura diferem [embora, de uma forma ou de outra, ele sempre tivesse um aspecto de serpente].
Imaginava-se que fosse chocado a partir de um ovo de galo sobre o qual um sapo ou serpente ti-

124
vessem se sentado, e que preferentemente tivesse amadurecido em meio ao esterco ou materiais
venenosos; o olhar do basilisco era sempre fatal ... e seu hálito era capaz de envenenar todas as
plantas e animais; ... Ele era capaz de andar ereto e às vezes era representado como tendo asas ...
[Em algumas versões] era descrito como tendo uma cabeça de galo, asas e patas de ave e uma
cauda farpada de serpente. O olhar do basilisco tinha tamanho poder que poderia matar a si pró-
prio se olhasse num espelho.114

Tudo isso é muito interessante — quantas vezes nós, enquanto analistas, agimos segurando o
espelho para o basilisco mirar a si próprio? Ao contemplar o próprio inconsciente, o pacien-
te o paciente vê a si próprio no processo analítico.
E há também o fato interessante que, embora os seres humanos sejam mortos se olharem
diretamente para o basilisco, eles contudo podem contemplá-lo por meio de um espelho — a
mesma maneira que Perseu podia olhar para Medusa sem morrer. E há também mais um
fato interessante — é fantástico perceber quantos fatos psicológicos encontram-se embutidos
nestas lendas — “se uma pessoa vir o basilisco antes que ele o visse, o basilisco morreria”.
Não acho que aqui seja necessário nenhum outro comentário.
Como nesta noite teremos pouco tempo, vou omitir um exemplo da psicologia do basilisco
que há na obra de Shakespeare Contos de inverno [The winter´s tale]. Quem estiver interes-
sado deve ler o Ato 1 — o material relevante encontra-se lá — e certamente se vocês forem
fisgados pela história, terão de ler a peça toda!
3. O simbolismo do sal
Quero tornar a lembrar-lhes que esta sessão sobre o simbolismo do sal ainda se encontra sob
o capítulo maior do simbolismo da lua: o simbolismo do sal pertence ao simbolismo da lua.
a. A tríade sulphur-mercurio-sal e sua transformação numa quaternidade
Uma característica do riquíssimo simbolismo do sal é que na alquimia ele era considerado
como sendo um dos itens de uma tríade, a assim chamada tria materia. A ideia era a de que
tudo que possuísse existência era formado por três matérias: sulphur, mercurius e sal. Sul-
phur evidentemente estava associado ao caráter inflamável; ele era bastante identificado com
o fogo. Mercúrio era tido como sendo a essência da flexibilidade e plasticidade — a única
característica dos metais que os diferenciam da rude matéria rochosa. O fato de que o metal
possa ser fundido, de ele derreter e poder ser moldado — tudo isso foi considerado como
sendo propriedades miraculosas logo que os metais foram descobertos. Assim, Mercurius era
encarado como representando a natureza essencial do metal.
Já o sal era muito mais associado às cinzas; uma certa espécie de sal — potassa, por exem-
plo — é encontrado nas cinzas. Ele não é inflamável, é fixo, e por isso era muito mais identi-
ficado com a matéria terrena.
Estas três entidades — sulphur, mercúrio e sal — acabaram por se identificar, especialmente
por alquimistas paracelsianos, com as três entidades da constituição humana: a alma, o espí-
rito e o corpo. Sulphur estava associado à alma, mercúrio ao espírito e sal ao corpo.
No parágrafo 229 Jung trata a respeito desta tríade e aponta que como mercúrio — Mercuri-
us — é bipolar ou duplo, a tríade se torna uma quaternidade. Isso está ilustrado na figura 10-
5, onde os dois aspectos de mercúrio se encontram separados: Mercurius como lapis e Mer-
curius como serpente. Sulphur e sal encontram-se em cada um dos lados. Vejam então que é

114 Standard dictionary, p. 117.

125
isso que acontece quando uma imagem operativa, que foi largamente inconsciente na mente
dos alquimistas, é escrutinada pela consciência do século 20 de Jung. O efeito deste escrutí-
nio é precisamente separar os opostos: aquilo que previamente foi percebido como uma trin-
dade acaba se tornando uma quaternidade.

Figura 10-5: A quaternidade mercurial.

b. A Trindade cristã transformada em quaternidade


Jung prossegue, no parágrafo 231, fazendo um paralelo entre a quaternidade alquímica, de-
rivada da trindade alquímica, e a Trindade cristã, que se torna uma quaternidade quando a
noção da Ascensão de Maria começa a se tornar efetiva. Esta Ascensão, que já era uma con-
vicção operativa da cristandade medieval, só foi finalmente promulgada como fato dogmático
em 1950. A transformação resultante disso está ilustrada na figura 10-6: a Trindade Cristã —
Deus pai, Deus filho e Espírito Santo —, com a adição da Virgem Maria, se transforma em
uma quaternidade.

Figura 10-6: A quaternidade cristã.

c. A Ascensão da Virgem Maria


Como vocês todos sabem, Jung deu uma enorme atenção a esta imagem, Ele discute a ques-
tão muito mais extensamente na sua “Resposta a Jó”, onde classifica a dogmatização da As-
censão como sendo “o mais importante evento na história da Igreja desde a Reforma”.115
Entretanto, no nosso material desta noite (parágrafo 231), ele diz o seguinte:

115 Psicologia e religião, OC 12, par. 752 e 755.

126
Já há muito [tempo] existia certa necessidade psíquica ... [de que a Trindade se transformasse nu-
ma quaternidade]; foi daí que provieram aquelas conhecidas representações medievais da assump-
tio (assunção) e da coroação de Maria, e não apenas isso, mas também a posição, por assim dizer,
necessária de Deípara [paridora de Deus] como Mediatrix [Mediadora], posição esta que corres-
ponde à do Cristo Mediator, com a diferença de que Maria apenas transmite a graça, mas não a
produz. A recente promulgação do dogma da assunção acentua não só a ascensão da alma, mas
também a do corpo na Trindade, tornando assim realidades dogmáticas todas aquelas inúmeras
representações medievais da quaternidade que eram representadas com o seguinte padrão [figura
106] ... Foi somente em 1950 .,, depois de o magistério eclesiástico ter hesitado por longo tempo
... que o papa, ao ver-se impelido por reivindicações populares, achou oportuno declarar a Ascen-
são de Maria como sendo uma verdade revelada. Tudo parece confirmar que essa declaração
dogmática foi motivada principalmente por uma necessidade religiosa das massas cristãs. Contudo,
por trás de tudo isso se encontra o númen arquetípico da divindade feminina.

Ora, quando comparamos as duas quaternidades, a Virgem Maria é equivalente ao sal; sal (a
“terra branca foliada” de tantas receitas alquímicas)116 representava o componente terreno,
da mesma maneira que no simbolismo eclesiástico Maria representava a carne que trouxe à
luz a encarnação da Deidade. Então, o que temos aqui, entendendo de maneira psicológica, é
a entrada do princípio de materialidade purificado na psique ocidental. Trata-se do próprio
princípio que havia sido deixado de lado no simbolismo cristão em seu desenvolvimento nos
últimos duzentos anos. O princípio de materialidade — o princípio do ego, o princípio da
carne, enfim, tudo o que pertence à concretude da existência encarnada egóica, individual e
carnal — tudo isso é simbolizado pelo princípio material. Contudo a materialidade precisa ser
purificada antes de ser submetida a esta Ascensão — ela tem que se tornar “terra branca foli-
ada”. E esta purificação deve corresponder a uma minuciosa e completa análise. Depois que
a materialidade é analisada, então ela estará pronta para ser incorporada ao conceito de tota-
lidade.
d. A figura Pandora
Tudo isso nos conduz, assim como Jung, a uma notável figura da obra Pandora de REUS-
NER (figura 10-7). Gostaria de dedicar um pouco de tempo a ela porque ela é muito impor-
tante. A figura contém, de maneira sintética, toda a essência da alquimia e suas relações com
o simbolismo cristão. Certamente a alquimia nasceu relacionada ao simbolismo cristão, como
Jung esclarece na introdução ao seu livro Psicologia e alquimia. A alquimia serviu como uma
espécie de contrapeso ou compensação para o ponto de vista cristão que prevaleceu no nível
consciente.

116 Mysterium, par. 149, nota 182. Ver também EDINGER, Mystery of coniunctio, p. 110-2.

127
Figura 10-7: A figura Pandora: “Uma imagem espelhada da Santíssima Trindade”.
,
A figura Pandora, que é como eu a chamo, é intitulada, em latim e alemão, “Uma imagem
espelhada da Santíssima Trindade”. Para começar, vamos examiná-la com cuidado e ver o
que ela nos mostra. Inicialmente há como que um quadrado — um quadrilátero ao menos —
e os quatro cantos estão ocupados pelos símbolos dos quatro evangelistas: a águia, símbolo

128
de João; o leão, símbolo de Marcos, o boi, símbolo de Lucas; e o anjo, símbolo de Mateus.
Os símbolos dos evangelistas nos quatro cantos é característico de todos os mandalas e qua-
ternidades cristãs. Na seção central temos uma segunda quaternidade: Deus Pai, Deus Filho,
Deus o Espírito Santo como uma pomba, e Maria, coroada como rainha do Céu. Vejam que
estas figuras correspondem exatamente à quaternidade da figura 10-6.
Pergunta: Qual é o Pai e qual é o Filho?
Bem, isso é um pouco duvidoso. Na verdade, é até mais complicado porque um deles está
assinalado como Sapientia, mas em vez de me estender nas complexidades da figura eu estou
simplificando um pouco.
Na seção inferior da figura está uma espécie de escudo, e desenhado nele aparece um bloco
ou torrão de matéria. De dentro desse torrão, uma criatura coroada e dotada de halo puxa
uma criatura monstruosa. O monstro também está dotado de uma cabeça humana com um
halo, e tem serpentes como braços, asas e o corpo de um peixe.
Aqui está o que Jung diz a respeito da figura no parágrafo 232:
A estampa desse processo [da assunção do corpo] na Pandora contém, abaixo da cena da coroa-
ção, entre os símbolos de Mateus e Lucas, uma espécie de brasão de armas no qual está represen-
tada a extração de Mercurius a partir da prima materia. O spiritus extraído aparece com uma for-
ma monstruosa: a cabeça está rodeada por um halo e lembra a cabeça tradicional de Cristo; os
braços são serpentes e a metade inferior do corpo se assemelha a um rabo de peixe estilizado.
Ora, isso é indubitavelmente a anima mundi sendo libertada das cadeias da matéria, ou então o fi-
lius macrocosmi, o Mercurius-Anthropos, que graças a sua natureza dupla não é somente espiritual
e físico, mas também une em sua natureza o que há de moralmente mais elevado e de mais baixo.
A figura de Pandora indica o grande arcano [segredo] que os alquimistas sentiam de maneira pou-
co clara estar implicado na Assumptio. Unido desde sempre com a obscuridade proverbial da ma-
téria está também o “príncipe deste mundo”, ou diabo.

Em meu entender, o que há de mais surpreendente nesta figura é a imagem do nascimento


de um monstro a partir de um torrão de matéria ou de terra. A figura está descrevendo a
essência do processo de transformação alquímica, e é desconcertante vê-la representada des-
sa maneira.
Tudo se passa como se o procedimento inferior na terra, no qual o monstro está sendo pu-
xado para fora do torrão de terra, fosse simultâneo, ou até desse origem à Ascensão e ao
coroamento de Maria no céu. É isso o que é tão desconcertante a respeito da justaposição
destas duas imagens. E o fato de que toda a figura esteja representada sob a forma de um
clássico mandala cristão, com o símbolo dos quatro evangelistas nos cantos, me sugere que
aqui estamos lidando com o Weltanschauung* cristão.
É interessante notar os pensamentos que surgem na nossa cabeça — a ideia que acabo de ter
é que este corpo estranho do processo de transformação alquímica que ocupa o centro do
mandala cristão é como se fosse um ovo de cuco que foi implantado num ninho diferente.
Ele foi implantado no ninho do mandala cristão e alguma coisa inesperada vai nascer dali!
Acredito que isso significa que o mito central, a imagem de Deus da psique ocidental, em
virtude deste processo alquímico que foi inseminado nele, está dando nascimento a uma nova
entidade. Isso significa, por um lado, a emergência da ciência e do materialismo na psique
moderna, e por outro lado, a descoberta do inconsciente e do processo de individuação. A

* “Visão de mundo” [n. do t.].

129
forma original do mandala cristão tinha a Trindade como constituindo seu centro, mas este
aqui, devido à ascensão de Maria, tem agora uma quaternidade. Terra e materialidade, o
princípio egóico e a coagulatio finalmente ganharam uma representação no céu, no reino
arquetípico.
Mas além de descrever este acontecimento abstrato, a figura também nos mostra uma repre-
sentação do processo terreno que ocasiona a Assunção da Virgem Maria. Este processo co-
meça com um torrão de matéria bruta — é o que temos aqui, um simples pelote de terra — e,
como Jung diz na passagem que li, trata-se da prima materia. Para tentar deixar isso mais
explícito, acredito que poderíamos dizer que este torrão significa todas as realidades proble-
máticas, vulgares e desgastantes da existência encarnada. Todo acontecimento difícil e desa-
gradável no qual tropeçamos, seja interior ou exteriormente, pode ser entendido como fazen-
do parte deste torrão de terra.
Não conheço nenhuma descrição sumária melhor do caráter terreno e bruto da existência do
que esta que Shakespeare nos dá em Hamlet. Hamlet, vocês sabem, protestou vigorosamen-
te contra a existência humana encarnada. Ele não queria estar coagulado. Foi ele que disse
“Ó, que esta muito, muito sólida carne derreta, se dissolva e se transforme em orvalho!”. 117
É assim que Shakespeare descreve o torrão:
Pois quem suportaria o açoite e os insultos do mundo,
A afronta do opressor, o desdém do orgulhoso,
As pontadas do amor humilhado, as delongas da lei,
A prepotência do mando, e o achincalhe
Que o mérito paciente recebe dos inúteis,
Podendo, ele próprio, encontrar seu repouso
Com um simples punhal? Quem aguentaria fardos,
Gemendo e suando numa vida servil?118

Agora, é precisamente de dentro deste torrão que uma bizarra criatura está sendo puxada
por outra figura, esta coroada e dotada de um halo. O que devemos entender que ela repre-
senta? Minha sugestão é que poderíamos chamá-la de “ego cristificado”. O quero dizer com
isso é que se trata de um ego operando sob a tutela do Self, a coroa e o halo sendo símbolos
do Self, da totalidade. E se esta minha hipótese estiver certa, então o ego estaria fazendo na
terra aquilo que Cristo faz no céu. Cristo no céu — ou seja, no reino arquetípico — está coro-
ando a Virgem Maria; ali, o princípio egóico e da materialidade estão sendo glorificados. Mas
na terra, a tarefa de realizar a glorificação está acontecendo por meio da redenção e trans-
formação de nossa existência concreta pessoal por meio da individuação. Em outras palavras,
a individuação está sendo realizada por um ego que procura viver conscientemente o proces-
so de contínua encarnação.119
Isso faz com que reste mais uma figura a ser explicada: a criatura monstruosa que está sendo
extraída do torrão de terra. Sabemos que os alquimistas entendiam esta figura como repre-
sentando a extração de Mercurius, e Jung diz que a criatura monstruosa representa a anima
mundi que está sendo libertada dos grilhões da matéria, o filius macrocosmi ou Mercurius-
Anthropos.
Os alquimistas da corrente mais química e literal entendiam esse procedimento de forma qua-
se completamente concreta, representando a extração do conhecido metal líquido mercúrio a

117 Ato 1, cena 2.


118 Ato 3, cena 1. Tradução de MIllôr Fernandes.
119 Ver EDINGER, A criação da consciência, p. 89s.

130
partir de seu minério. Aquecendo o minério de mercúrio, podemos sublimar e extrair o mer-
cúrio dele; esta é a imagem química que se encontra por trás da ideia.
Mas uma forma de entender esta imagem psicologicamente é que ela corresponde à extração
do espírito autônomo presente em cada um dos eventos concretos. Por exemplo, descobrin-
do o significado de nossas súbitas mudanças de humor, ou então de nossos obstáculos in-
conscientes, de um problema ou de uma angústia qualquer. Extrair significado de qualquer
manifestação do torrão liberta o espírito autônomo, Mercurius, de seu aprisionamento con-
creto na matéria.
Colocando em termos simples, esta monstruosa criatura na parte inferior da figura é uma
representação gráfica da emergência do Self. Por outro lado, a quaternidade, representada
pela figura inteira e pelo que está se passando no céu, é a representação da emergência do
Self na parte superior. Imagens simbólicas do Self, tais como essa quaternidade criativa da
Coroação da Virgem Maria e sua entrada no céu, são belíssimas, grandiosas e numinosas.
Mas a experiência vivencial é, ao contrário, bastante diferente. A experiência vivencial do Self
é, de fato, uma monstruosidade (figura 10-8). Trata-se de um trabalho de unir opostos que
aterroriza o ego e o expõe a angústia, desmoralização e violação de todas as considerações
razoáveis. É precisamente isto que constitui uma monstruosidade: uma violação de tudo aqui-
lo que consideramos natural, razoável e normal. E é desta forma que a Coroação da Virgem
Maria no céu aparenta ser do ponto de vista do ego limitado e terreno — ela se parece com a
emergência de uma monstruosidade a partir de um torrão de terra.
Mas há outra maneira de colocar essa questão. Também poderíamos dizer que a figura Pan-
dora ilustra, em dois níveis simultâneos, o processo de transformação de Deus. Vejam, este é
o significado essencial do processo de transformação alquímica. Em diversos textos, velado
de uma ou outra forma, a prima materia que deve sofrer transformação era identificada com
Deus (teremos mais um exemplo disso mais adiante, quando examinarmos a Cantilena de
Ripley).120
Então, no nível superior, Deus é transformado pela entrada do elemento feminino, que trans-
forma a Trindade numa quaternidade. No nível inferior, o ego, a serviço daquele processo de
transformação que se dá acima, encontra-se transformando a vida concreta em uma parte do
drama divino. Deste modo, o ego se torna um exemplo da encarnação contínua, e promove
a glorificação do princípio de materialidade e da Natureza da maneira como está representa-
do na parte superior da figura.
Pergunta: Você pode repetir essa última frase?
Bem, o que eu quis dizer é que a figura Pandora ilustra o processo de transformação de Deus
em dois níveis simultaneamente — o nível superior e o nível inferior. E ali onde o ego vive sua
vida — a vida concreta, pessoal, essencial, terrena — está tudo o que pode ser encontrado na
moldura deste escudo. É ali que vivemos de fato. Mas no decorrer desta nossa vida, se a
consciência estiver de fato sendo criada no processo de viver, nossa vida estará manifestando
concretamente o drama divino que está se passando acima, onde a quaternidade está sendo
criada a partir da Trindade.

120 Abaixo, capítulos 15 e 16.

131
Figura 10-8: A união dos opostos como uma monstruosidade.

132
PARÁGRAFOS 239–268

11
A tarefa desta noite é uma continuação do simbolismo do sal, e há seis itens principais a res-
peito dos quais trataremos:
1. Sal associado a amargor
2. Sal associado ao mar
3. Sal associado às cinzas e o sal-espírito
4. O Mar Vermelho e o Êxodo
5. O texto serpente-carruagem
6. A visão de Ezequiel
1. Sal e amargor
Na última semana falamos a respeito do sal enquanto terra branca; e pelo fato de a terra
branca ser precisamente aquilo que auxilia a matéria a coagular, e também por ser aquilo que
ajuda a transformar matéria em existência real encarnada, isso associa a imagem de Sal com
a Virgem Maria. Uma citação alquímica muito frequente na literatura é “Semeia teu ouro na
terra branca foliada”, e isso representa uma imagem de coniunctio.
No material desta noite, Jung fala do amargor associado ao simbolismo do sal. A conclusão
imediata é que se o sal, enquanto terra branca, tem algo a ver com o processo de coagulatio,
então este processo também deve ser algo que produza amargor — as duas coisas andam
juntas. E isso ajuda a explicar por que razão a coagulatio — o corpo e coisas pertencentes ao
corpo — sempre tiveram tão má reputação no éon atual. Para nos tornarmos algo real e de-
finido, para termos um corpo e vivermos uma existência real encarnada, devemos nos expor
ao amargor do sal que acompanha a existência material.
2. Sal e mar
Outra imagem que Jung discute é a associação do sal com o mar. Naturalmente esta é uma
associação natural, pois o mar é composto por água salgada. Jung faz a observação de que,
por toda a Idade Média, a palavra mare, que significa mar em latim, era tida como derivando
da palavra amaro, que significa amargo, de maneira que ambas estão ligadas etimologica-
mente.
No parágrafo 249 Jung cita uma compilação muito interessante do simbolismo do mar da
maneira pela qual ele aparece citado nos escritos patrísticos. Permitam-me ler-lhes um pouco
disso. À medida que leio, tenham em mente que estou lendo um texto referente ao simbolis-

133
mo do mar. Estas imagens sempre serão aplicáveis toda vez que se depararem com um so-
nho que envolva o mar — uma pessoa caindo no mar, ondas batendo na casa de alguém, ou
coisas assim.
[De acordo com] Santo Agostinho ... “O mar é o mundo”. [Ele é] “o mundo como o elemento que
está entregue ao diabo”. Diz Santo Hilário: “Por profundeza do mar entendemos a sede do infer-
no” O mar é o abismo sombrio, um resto do abismo primordial, isto é, do caos que cobria a terra.
Este abismo representa para Santo Agostinho “o domínio deixado para o diabo e os demônios
após a queda”. O abismo é, de uma parte, a profundeza impenetrável das águas”, e de outra par-
te, “a profundeza dos pecados”. Em Gregório Magno o mar é “as profundezas da morte eterna”.
Desde a Antiguidade ele é “a morada dos demônios aquáticos”. Lá mora o Leviatã (Jó 3, 8), que
na linguagem dos santos padres é sinônimo do diabo ... São Jerônimo diz: “O diabo rodeia os ma-
res e o oceano por todos os lados”. O amargor da água salgada também faz parte desse contexto,
pois é uma das propriedades do inferno e da condenação, que nos Exercícios de Santo Inácio de
Loyola deve ser degustada pelo praticante.

Psicologicamente, então, o mar é uma imagem do inconsciente. Portanto, o inconsciente,


que durante todo nosso éon esteve tentando vir à tona e estabelecer uma contraposição espi-
ritual à atitude vigente, tem sido associado aos inúmeros os aspectos negativos, demoníacos
e perigosos da existência.
3. Sal e cinzas, e o sal-espírito
É então que no parágrafo 241 vemos a associação do sal como sendo equivalente às cinzas.
Isso conecta o sal com o produto final do processo de calcinatio, ou calcinação. No final da
calcinatio tudo o que é inflamável é queimado até extinguir-se, e restam somente as cinzas. E
estas cinzas pertencem ao simbolismo do amargor: derrota, fracasso e o saco de cinzas da
lamentação e do pranto, todos eles pertencem à experiência do amargor.
Contudo, na alquimia o outro aspecto do simbolismo das cinzas é que elas também são asso-
ciadas ao “corpo vítreo” — o corpo vitrificado que resta no fundo da retorta quando termina
o processo de calcinatio. O “corpo vítreo” corresponde ao “corpo glorificado” que é imortal
— o resíduo indestrutível que resulta ao final da calcinatio. Então, o “corpo vítreo” é uma
imagem do Self imortal que foi refinado e ér capaz de suportar o fogo.
Há um texto bastante significativo no parágrafo 241 relativo a esta questão:
Sublima pelo fogo, até que dela [a matéria] saia o espírito que nela se encontrava [oculto], e ele se
chama avis [ave] ou cinis Hermetis [cinzas de Hermes]. Por isso também Morienus diz: “Não des-
prezes as cinzas, pois elas são o diadema de teu coração e a cinza de todas as coisas duradouras”.

E Jung acrescenta:
Em outras palavras, [as cinzas] equivalem ao espírito que habita um corpo glorificado.

São textos como este, e há vários outros dispersos além, que associam as cinzas da lamenta-
ção e da derrota a uma coroa ou diadema: “Não desprezes as cinzas, pois elas são o diadema de
teu coração”.

A observação acrescentada por Jung de que “[as cinzas] equivalem ao espírito que habita um
corpo glorificado” acaba por conduzi-lo para a discussão do sal-espírito que leva uma pessoa
ao caos. Em outras palavras, o sal-espírito, de início, conduz uma pessoa às próprias coisas
que o mar representava para os autores patrísticos: o caos.
Aqui está o que Jung diz no parágrafo 246 sobre o sal-espírito:

134
[O sal-espírito] é aquele espírito das águas primordiais caóticas anteriores ao segundo dia da cria-
ção, isto é, anteriores à separação dos opostos, e portanto anteriores à consciência. Por isso é que
ele não conduz a quem nele cair a nenhum lugar para cima e para fora, mas para trás, para o caos
do mundo primordial. Este espírito corresponde àquela parte da psique que ainda não foi assimila-
da ao homem consciente, e cuja transformação e integração constituíam para o alquimista a con-
clusão de um opus longo e penoso.

Jung então segue adiante dizendo que o retorno a este caos é uma parte necessária do opus
que corresponde ao amargor. Todas estas ideias têm, obviamente, relevância com aquilo que
acontece quando alguém abre o inconsciente durante o processo analítico: o ego é conduzi-
do, pelo sal-espírito do inconsciente, de volta ao caos que havia no início da criação, antes
que houvesse acontecido a separação dos opostos.
4. O Mar Vermelho
A associação entre o sal e o mar então nos conduz ao rico simbolismo do Mar Vermelho, e,
começando no parágrafo 250, Jung dedica um longo trecho a esse assunto. Aqui eu esque-
matizei algumas das associações simbólicas que existem no interior do simbolismo do Mar
Vermelho (figura 11-1). Esta figura pode ser um método útil de visualizar as imagens inter-
relacionadas de um complexo simbólico — é muito fácil ficarmos perdidos nestas redes de
conexões se não conseguirmos visualizá-las de alguma forma concreta. Vou deter-me em
algumas delas à medida que avançarmos, mas não me deterei em cada um dos itens da figu-
ra.
O Mar Vermelho tem três conjuntos básicos de significado simbólico: 1) Trata-se de um mar,
e então ele possui todo o simbolismo do mar a respeito do qual já falamos; 2) Ele é verme-
lho, o que o associa ao sangue e também a todo o simbolismo vermelho da alquimia, que o
transformou na sua “tintura vermelha”; 3) O Mar Vermelho é um componente importante na
história do Êxodo do Velho Testamento. Portanto, todo o simbolismo associado a esta histó-
ria bíblica é trazido para o simbolismo do Mar Vermelho.
Aqueles de vocês que estiveram presentes no seminário sobre o Velho Testamento que fize-
mos no ano passado devem se lembrar de tudo isso, mas não custa nada repetir. 121 A pri-
meira coisa que vem à mente quando nos deparamos com a imagem do Mar Vermelho é a
história do Êxodo. Como vocês sabem, o Êxodo se deu por ordem de Javé a Moisés que
então, após várias dificuldades, livrou os israelitas da escravidão no Egito e os conduziu para
o deserto. O povo israelita vagou durante quarenta anos e experimentou a teofania de Javé
no Monte Sinai; e num determinado momento os israelitas acabaram por se estabelecer na
terra prometida de Canaã;
O primeiro estágio desta jornada para fora do Egito foi a travessia do Mar Vermelho, e foi
esta travessia que protegeu os israelitas de seus perseguidores egípcios. Os israelitas conse-
guiram atravessar o mar que se abriu, mas assim que os egípcios, com suas carruagens de
guerra os perseguiram, o mar voltou a fechar-se, afogando-os todos. Assim, a imagem da
carruagem também está incluída no conjunto simbólico do Mar Vermelho e vai surgir mais
adiante em nosso material.
Toda essa história é uma representação profunda do processo de individuação, e portanto foi
inevitável que ela fosse bastante usada pelos alquimistas. Os alquimistas sempre tiveram uma
sensibilidade muito especial para perceber tudo o que fosse psiquicamente relevante. Como
estavam trabalhando diretamente a partir de suas próprias psiques, eles eram atraídos a todo

121 Ver EDINGER, Bíblia e psique: simbolismo da individuação no Antigo Testamento, p. 82s.

135
e qualquer material que proviesse da mesma fonte na qual trabalhavam. A todo instante mito-
logias de todos os tipos fluíam para a imaginação alquímica, e acabavam por se tornar parte
integrante da imagética que eles usavam para descrever seus procedimentos.

Figura 11-1: O simbolismo do Mar Vermelho

Ora, vejam que cruzar o Mar Vermelho não leva imediatamente à Terra Prometida. O cru-
zamento leva, isso sim, ao território selvagem do deserto, e então a um encontro com o nu-
minoso. É somente após este encontro que a jornada finalmente conduz à Terra Prometi-
da.122 Então a ideia aqui representada é a de uma descida ao inconsciente que inicialmente
causa um estado de desorientação e alienação — simbolizado pela região selvagem do deser-
to — que então proporciona um encontro com Deus, e só depois, eventualmente, conduz a
um novo lar — isto é, a um novo nível de consciência.
É muito interessante que, no relato bíblico, a primeira parada após a passagem pelo Mar
Vermelho seja uma localidade chamada Mara — “Mara” significa amargor. Não somente a
água era amarga nessa localidade, mas também foi o local em que sérias e amargas queixas e
reclamações, por parte do povo de Israel contra Moisés, começaram a surgir.123
A associação entre o amargor e a descida ao inconsciente fazem parte da jornada de indivi-
duação. É muito importante levar em conta esse fato, já que o amargor é um fato tão proe-
minente em nosso trabalho junto aos pacientes. Nós, terapeutas, somos constantemente con-
frontados com amargas lamentações e reclamações. Se formos, então, capazes de nos lem-
brar deste simbolismo e de aplicá-lo a nosso trabalho diário, então estaremos atuando num
contexto bem maior. Este contexto mais amplo, lenta mas seguramente, exerce um efeito

122 Ver EDINGER, Ego e arquétipo, p. 81s.


123 Êxodo, 15, 23-4.

136
curativo nas amargas lamentações que estarão, de início, sendo expressadas a partir de um
contexto pessoal bem mais estreito. Esse contexto maior gradualmente atenua e expande o
contexto menor, e acaba por acalmar e curar o amargor inicial.
Partindo desta questão no parágrafo 252, Jung cita uma passagem de Meister Eckhart:
Quem porventura será mais nobre do que aquele que pela metade foi gerado por aquilo que de
mais alto e melhor oferece o mundo, e cuja outra metade foi gerado pelo íntimo mais profundo da
natureza divina e da solidão divina?

Vejam que, nesta passagem, Eckhart está equiparando o deserto com a solidão de Deus. E
ele então continua:
É assim que fala o Senhor pelo profeta Oséias: “quero levar as almas nobres a um ermo e lá falar
ao coração delas!”.

Encontramos inúmeros outros exemplos de experiências em que uma amarga e solitária con-
dição psicológica é seguida por um encontro com o numinoso. Vocês se lembram de Elias,
quando se encontrava vivenciando uma depressão suicida, fugiu para o deserto do Monte
Mória (figura 11-2).

Figura 11-2: Elias sendo alimentado pelos corvos

Elias estava em fuga para escapar da ira de Jezebel. E foi naquele deserto que Javé veio até
ele e lhe concedeu sua próxima tarefa.124 Mas certamente o mais notável exemplo de uma

124 1 Reis 19-20.

137
experiência da amarga solidão desértica que precede um encontro com o numinoso é o Livro
de Jó.
Ouçam o que o alquimista Michael Maier diz a respeito do resultado do encontro com a di-
mensão transpessoal que se segue a uma experiência de amargor:
Na [nossa] química há uma certa substância nobre [o lapis]: em seu começo reina a aflição com o
vinagre, mas em seu fim reina a felicidade com alegria. Assim, supus que o mesmo aconteceria
comigo: que primeiro sofreria dificuldades, tristeza e desgosto, mas que finalmente todas as coisas
se tornariam mais alegres e mais fáceis.125

Jung faz referência a um outro conjunto de importantes associações gnósticas ao Mar Verme-
lho nos parágrafos 250 e 251. Estou enfatizando todas estas observações porque elas são
muito relevantes psicologicamente. Antes de tudo, Jung observa que Agostinho associou o
Mar Vermelho ao batismo, e acrescenta:
Honório de Autun diz: “O Mar Vermelho é o batismo, vermelho pelo sangue de Cristo, no qual
são mergulhados os inimigos, isto é, os pecados”.

Neste simbolismo, a passagem pelo Mar Vermelho representa uma espécie de tormento de
solutio, envolvendo uma morte seguida de um renascimento que, ao final, resultará em salva-
ção.
Mas o que quero frisar mais particularmente está no parágrafo 251, onde Jung fala da inter-
pretação perata do Mar Vermelho. Os peratas foram uma seita gnóstica e, de acordo com
sua interpretação, o Mar Vermelho afogou os egípcios porque os egípcios eram “não-
conhecedores”. Como diz Jung, “o outro lado do Mar Vermelho é o outro lado da Criação”
de acordo com aqueles gnósticos, e se você for um “conhecedor” então você consegue atra-
vessar o Mar Vermelho e chegar ao outro lado — você não se afoga. Quando então você
chega ao outro lado, ao deserto, então, ainda de acordo com os gnósticos peratas, você esta-
rá situado “fora da geração”. “Ali, os ‘deuses da destruição’ e o ‘Deus da salvação’ encon-
tram-se reunidos”.
Foi desta maneira que os gnósticos descreveram o deserto no extremo oposto do Mar Ver-
melho, e Jung comenta a respeito:
O Mar Vermelho significa a água da morte para os “inconscientes”, enquanto que para os “cons-
cientes” é a água batismal da regeneração e do “passar para o além”. Por “inconscientes” são en-
tendidos todos aqueles a quem falta a gnose, isto é, a iluminação a respeito da essência e do desti-
no do homem no quadro cósmico. Em linguagem moderna, inconscientes são todos aqueles para
quem são desconhecidos os conteúdos do inconsciente pessoal e coletivo. O inconsciente pessoal
corresponde à chamada “sombra” e às chamadas “funções inferiores”, que em linguagem gnósti-
co-cristã significa a pecaminosidade e a impuritas, das quais o catecúmeno deve ser lavado por
meio do batismo.

Tudo isso se refere à análise do inconsciente pessoal. Jung então continua:


As pessoas inconscientes que tentam atravessar o mar sem estarem purificados e sem a orientação
iluminadora morrem afogadas, isto é, ficam retidas no inconsciente e caem na morte espiritual por
não terem sido capazes de superar sua unilateralidade e de obter desenvolvimento ulterior em sua
orientação.

125 Citado em Psicologia e alquimia, OC 12, par. 387.

138
Tudo isso está diretamente relacionado à nossa prática profissional diária, assim como o se-
guinte:
Para poderem prosseguir e chegar ao outro lado, deviam eles estar conscientes também de tudo
aquilo que até agora tinha ficado inconsciente a eles e à época deles. ... Trata-se aqui da oposição
interna, isto é, de todos aqueles conteúdos que de alguma maneira são contrários à opinião domi-
nante [da consciência].

Agora prestem bem atenção nisto: se vocês um dia tiverem que cruzar o Mar Vermelho, o
conhecimento destas coisas pode ser de vida ou morte para vocês — Jung está revelando
aquilo que os torna capazes ou não de sobreviverem à prova. Para sobreviver, vocês terão
que se tornar mais conscientes de tudo aquilo a respeito do qual até então estiveram incons-
cientes, e também de tudo aquilo que sua época ainda está inconsciente:
Em primeiro lugar, trata-se aqui da oposição interna, isto é, de todos aqueles conteúdos que de al-
gum modo sejam contrários à opinião dominante [do ego]. Essa contínua tomada de posição pe-
rante a atitude de oposição assumida em cada caso pelo inconsciente, designei-a como “função
transcendente” ... Mas uma mudança somente é possível se a “outra coisa” tiver sido permitida ...
Poder-se-ia ir consideravelmente mais longe se as pessoas soubessem que àquilo que é maioridade
nos outros corresponde a minoridade em nós mesmos. Armados com tal iluminação psicológica —
que hoje em dia já nem possui o caráter de revelação, pois para isso basta o senso comum — po-
der-se-ia trilhar o caminho para a união dos opostos. Assim, chegar-se-ia, de acordo com a doutri-
na dos peratas, ao lugar onde “os deuses da perdição estão reunidos ao Deus da salvação”. Com
isso certamente estão indicadas todas as forças destrutivas e construtivas do inconsciente.

Jung então prossegue dizendo que “esta coincidentia oppositorum forma um paralelo com o
estado messiânico de plenitude descrito em Isaías 11, 6s e 35, 5s”. Mas este evento traz con-
sigo uma consequência:
Cada um, pois, que se apropriar ainda que apenas de uma parte do inconsciente pela conscienti-
zação, sai um tanto fora de sua época e de sua camada social, em direção ao ermo e à solidão.
Mas é somente ali que existe a possibilidade de encontrar o “Deus da salvação”.

Todas estas ideias estão ligadas ao simbolismo do Mar Vermelho, e a maior parte delas en-
contra-se sumarizada no meu esquema da figura 11-1.
5. O texto serpente-carruagem
Este texto é uma continuação do simbolismo do Mar Vermelho, que por sua vez é uma parte
do simbolismo do Sal. Vocês devem sempre ter em mente onde se encontram, pois de outra
forma vocês vão se perder! No parágrafo 254 encontramos um interessante texto ao qual
Jung dá uma interpretação notável:
Toma a serpente e coloca-a no carro das quatro rodas e deixa que ela se volte para a terra tantas
vezes até que mergulhe na profundeza do mar, e nada mais seja visível, exceto o Mar Morto mais
negro. E aí fique parado o carro de quatro rodas, até que da serpente se elevem tantos vapores
que a planície se torne areenta e negra pela dessecação, e isto é a terra que não é terra, mas pe-
dra que está desprovida de todo o peso. Mas quando os vapores se precipitarem em forma de
chuva, então podes retirar o carro da água e levá-lo para o seco, e depois de colocadas as quatro
rodas dentro do carro, atinges resultado ao tentar avançar em direção ao Mar Vermelho, correndo
sem correr e movimentando-se sem movimento.

Torno a dizer que precisamos ter em mente que todos estes textos alquímicos constituem
receitas químicas, e que todos eles estão se referindo a um processo no qual algumas subs-
tâncias são colocadas num vaso e que então todo o material é submetido a várias operações

139
de laboratório. Lembrar disso permitirá que se mantenham orientados em meio a todas estas
estranhas imagens.
Uma serpente é colocada numa carruagem e então alguns processos químicos são realizados.
Podemos entender aqui a carruagem como sendo o vaso alquímico, e a serpente como cons-
tituindo a prima materia — as substâncias — que são colocadas dentro dele. A serpente cor-
responde ao sal-espírito que conduz ao caos, corresponde à psique primordial, que precisa
sofrer a transformação no interior do vaso.
Inicialmente a carruagem é imersa no mar. Trata-se de uma operação de solutio. Dito em
outras palavras, o inconsciente a recobre totalmente. Após isso, ela é submetida a um pro-
cesso de dessecação, um processo de secagem. E finalmente, após uma segunda inundação
pela chuva, ela é trazida do mar em direção à terra seca. As rodas da carruagem são então
recolocadas, e então o texto diz que ela é conduzida para o Mar Vermelho, significando que
aqui se dá a transição, o movimento que leva de dentro do inconsciente do Egito para o en-
contro com o numinoso que está no ponto oposto do Mar Vermelho. “Avançar em direção
ao Mar Vermelho” corresponde ao processo de realizar essa travessia.
Jung discute este processo de maneira um pouco extensa, e o fato mais surpreendente que
ele afirma é que aquilo que está sendo transformado é nada menos do que a própria imagem
de Deus. Ora, como ele chega a essa ideia? Bem. ele chega a essa ideia por meio da visão de
Ezequiel, que é a principal amplificação da imagem da carruagem. A carruagem, vocês bem
se lembram, é uma das características do simbolismo do Mar Vermelho porque foram as car-
ruagens dos egípcios que os levaram para o mar onde seriam submergidos e afogados.
6. A visão de Ezequiel
A discussão que Jung faz da visão de Ezequiel começa no parágrafo 262. Isso será um assun-
to batido para aqueles de vocês que estiveram no meu seminário sobre o Velho Testamen-
to,126 mas não custa nada ouvir isto outra e outra vez, já que a história é absolutamente fun-
damental para a psique ocidental. Aqui está, de forma abreviada, a visão de Ezequiel da ma-
neira como é descrita no primeiro capítulo do Livro de Ezequiel:
Eu olhei: havia um vento tempestuoso que soprava do norte, uma grande nuvem e um fogo cha-
mejante ... No centro, algo com a forma semelhante a quatro animais ... Cada qual tinha quatro
faces e quatro asas ... [cada um deles tinha uma face humana, uma face de leão, uma face de tou-
ro e uma face de águia].
No meio dos animais havia algo como brasas ardentes, com a aparência de tochas, que se movia
por entre os animais. O fogo era brilhante ...
Olhei para os animais e eis que junto aos animais de quatro faces havia, no chão, uma roda. O
aspecto das rodas e a sua estrutura tinham o brilho do crisólito ... A sua circunferência era alta e
formidável, e sua circunferência estava cheia de reflexos [ou olhos] em torno ... Quando os animais
se moviam, as rodas se moviam junto com eles ... Sobre as cabeças do animal havia algo que pa-
recia uma abóboda, brilhante como o cristal, estendida sobre suas cabeças, por cima delas. Sob a
abóboda, as suas asas ficavam voltadas uma em direção à outra ... [e elas faziam um grande ruído,
como uma tempestade].
Por cima da abóboda que ficava sobre suas cabeças havia algo que tinha a aparência de uma pe-
dra de safira em forma de trono, e sobre esta forma de trono, bem no alto, havia um ser com apa-
rência humana. Vi um brilho ... uma aparência como de fogo junto dele e ao redor dele ... e era
algo semelhante à Glória de Javé.127

126 Ver EDINGER, Bíblia e psique: simbolismo da individuação no Antigo Testamento, p. 204s.
127 Ezequiel, 1, 4-28, Bíblia de Jerusalém.

140
Esta é a assim chamada visão da carruagem de Ezequiel. Esta visão constitui a base todo o
misticismo judaico chamada de mística Merkabah, e esta palavra significa “trono da carrua-
gem”. A imagética desta visão foi utilizada nos mandalas cristãos e nos símbolos dos quatro
evangelistas que passaram a constituir os pilares que suportam o trono de Cristo. Então esta
visão de Ezequiel tornou-se a base do misticismo judaico, desempenha um papel primordial
no simbolismo da Cabala, e constitui a imagem básica dos mandalas cristãos. E também aca-
bamos de ver, a partir do texto da serpente-carruagem, que ela também aparece de maneira
mais velada no simbolismo alquímico.
Enfim, Jung se vale desta imagem como sendo a base de sua mais complexa e diferenciada
formulação do Self, como ele descreve tão bem em seu Aion (figura 11-3).128 Numa carta
endereçada a James Kirsh, Jung afirma explicitamente que seu modelo do Self está baseado
na visão de Ezequiel.129 Correndo o risco de inundá-los com informações demais eu quero
dizer algumas palavras a respeito da visão de Ezequiel. Aliás, este é o risco constante que
corremos ao tentar nos relacionar com o Mysterium coniunctionis — o risco de nos afogar
em tantas imagens do inconsciente.
No Aion, Jung deduz esta fórmula do Self depois de uma longa e complexa discussão e in-
terpretação de material gnóstico. Devo dizer aqui, entretanto, que Jung não coloca a estrela
central em seu diagrama. Seu desenho consta só dos quatro quadrados, sem a estrela central.
Fui eu quem a coloquei ali para enfatizar o caráter central que é gerado por esta fórmula cir-
cular. Jung define a fórmula do Self como uma entidade dinâmica que circula não somente
em cada um de seus quatro cantos, mas também como um todo. O que eu gostaria de fazer
aqui é dar-lhes uma certa ideia de ao quê esta fórmula se refere, de maneira que ela possa
ficar gravada em sua mente e jamais esquecida. Para tanto, ela tem que ficar ancorada em
algo que vocês possam reter e que seja significativo; de outra maneira, a informação sim-
plesmente desaparecerá como se vocês jamais a tivessem conhecido antes.
Estão representadas na figura quatro entidades, A, B, C e D. Elas aparecem tanto no círculo
grande quanto na sequência a, b, c e d — em cada um dos cantos menores. A ideia é a de
que estes quatro mandalas menores originalmente formavam uma sequência linear, 1, 2, 3 e
4 (falarei a respeito destes mandalas menores daqui a pouco). Mas acontece que aquela se-
quência linear, à maneira de uma serpente urobórica, acabou por se voltar sobre si mesma —
colocou a cauda na boca e voltou ao ponto inicial — e se transformou então num processo
circular.
De maneira simplificada, estamos falando aqui de quatro diferentes tipos de quaternidades,
de imagens de mandalas, que aparecem no material trazido pelos pacientes. Vejam que de
forma alguma estamos tratando de abstrações remotas que não possuam relevância clínica.

128 Aion, OC 9/2, par. 408-15.


129 JUNG, Cartas, vol. II, p. 289.

141
Figura 11-3: A fórmula do Self

Uma forma de visualizar esta quádrupla sequência, que de início foi linear, é pensar nela co-
mo sendo um movimento descendente de energia que se inicia em cima. Vocês podem tam-
bém imaginar que se trata de um movimento ascendente que se inicia embaixo, mas vamos
fazer uma coisa por vez. Se imaginarem que se trata de uma energia descendente que se
transforma através de níveis descendentes de manifestação, então o que vocês têm são qua-
tro diferentes tipos de imagens de quaternidade. Estes quatro níveis podem ser descritos em
ordem descendente como sendo o nível espiritual, o nível animal, o nível vegetal e o nível
mineral. Espírito, animal, vegetal e mineral.130
Se vocês prestarem atenção ao seu material clínico e estiverem atentos para detectar a ima-
gética da quaternidade — imagética esta que eu acredito que todos nós buscamos, já que ela
indica que a totalidade está constelada e que representa uma imagem auspiciosa — vocês
descobrirão que todas as quaternidades podem ser colocadas em uma ou mais destas quatro
categorias. Se encontrarem uma quaternidade do nível espiritual, ela enfatiza a luz e o simbo-
lismo do espírito. Ela terá qualidades celestiais, etéreas e luminosas, de maneira que será bas-
tante inspiradora e espiritualizante. Jung chama isso de o Anthropos quaternio. Já o nível
animal, o nível que vem mais abaixo, é o que Jung chama de Quatérnio da Sombra. Este
quatérnio enfatiza o simbolismo da sombra e é de natureza mais escura. Ele até pode ter figu-
ras humanas representadas, mas ele como que se aproxima de uma qualidade animal. Ou
então ele pode apresentar figuras claramente animais, já que os humanos, certamente, são
animais — eles também pertencem ao reino animal.
O terceiro nível, que estou chamando de nível vegetal, é aquele que Jung chama de Quatér-
nio do Paraíso. Este nível sempre enfatiza o simbolismo de plantas e jardins: a Virgem Maria

130Ver Aion, OC 9/2, cap. 14, “A estrutura e dinâmica do Self”, especialmente os par. 369s; ver também
EDINGER, Aion lectures, palestras 21 e 22.

142
como sendo um jardim fechado, por exemplo, ou então um jardim com uma fonte no seu
centro. Tudo isso pertence ao nível da quaternidade vegetal.
O nível mais inferior é o nível mineral — Jung o chama de Quatérnio do Lapis — e neste
nível encontramos simbolismo inorgânico: cristais, formas abstratas que pertencem ao mundo
inorgânico e que não são claramente animadas.
Ora, o que Jung conseguiu fazer, baseado na visão de Ezequiel, foi elaborar nesta formulação
abstrata como seria ver estes quatro diferentes modos ou níveis de quaternidade acontecendo
no interior de um processo único. Isso então acaba por determinar um centro, em virtude de
um movimento circular que abarca todos os níveis — e foi por isso que coloquei ali uma es-
trelinha. Muito embora Jung não tenha colocado a estrela em sua formulação, isso fica implí-
cito no texto e na maneira pela qual ele trata do assunto. 131
A razão pela qual é importante tratar de assuntos como esse — embora eu não pretenda ter
entendido completamente este assunto — é a de que acredito que sempre que possível todos
nós deveríamos nos esforçar para sermos pequenos e originais investigadores da psique obje-
tiva. Trata-se de um mundo totalmente novo que só agora está se abrindo para investigações,
e isso não é feito a partir de grandes investimentos públicos em grandes instituições de pes-
quisa. Pelo contrário, isso é realizado na solidão do nosso trabalho individual em nossa pró-
pria psique, ou então no trabalho mútuo do processo analítico. Estas são as únicas maneiras
que podem ser utilizadas na pesquisa da psicologia profunda. Além do mais, estas formas
também redimem a nobre tarefa da pesquisa científica da mania coletiva que engole e devora
todos os esforços individuais, a mania coletiva que resulta do governo das massas e dos es-
forços acadêmicos.
Eu gostaria muito de conseguir transformar cada um de vocês em um pesquisador original da
psique objetiva. É por esta razão que acredito que vale a pena fazer tudo para entender estas
questões que Jung está fazendo os maiores esforços para comunicá-las a nós. Mas devemos
dedicar nossa melhor atenção para, antes de tudo, compreender bem estas questões, e só a
seguir sair em busca de registrar de que maneira o material que emerge de nós mesmos e de
nossos pacientes corresponde às imagens que estamos estudando aqui. Se vocês estiverem
atentos para quando estas imagens se manifestarem, certamente vocês perceberão estes qua-
tro diferentes tipos de quaternidades. Esta tem sido a minha experiência pessoal.
Finalmente quero relembrá-los para que não se esqueçam: tudo isso que obtivemos foi do
texto da serpente-carruagem. A carruagem que sofreu a transformação no texto alquímico
corresponde à carruagem divina da visão de Ezequiel. Acontece que aquela antiga visão de
Ezequiel veio sofrendo diversos estágios de transformação através dos séculos, e atualmente,
graças às pesquisas de Jung, foi transformada nesse mandala giratório.

131 Aion, OC 9/2, par. 410s.

143
PARÁGRAFOS 269–308

12
O material desta noite, embora seja ainda uma continuação do simbolismo do Sal, difere um
pouco do corpo principal daquele simbolismo. Vocês se lembram de que ao falar a respeito
do sal nós fomos conduzidos ao mar, e que um determinado texto sobre o mar levou-nos ao
Mar Vermelho. No material desta noite Jung lida com um texto de Michael Maier que tam-
bém tem o Mar Vermelho como sendo sua imagem principal. Este texto de hoje é aquele que
eu chamo de texto da Peregrinatio e ele vai tomar todo o nosso encontro desta noite.
Ao tratar deste texto eu vou me referir a quatro itens principais:
1. A jornada horizontal através dos quatro quadrantes, e o problema do três e do quatro
2. A descoberta do animal de quatro cores, o assim chamado Ortus
3. A jornada vertical através das sete esferas planetárias
4. O Pastor de Hermas
5. A Tábua de Esmeralda de Hermes (não confundam Hermas com Hermes — são dois
nomes diferentes)
Mas já que o estudo desta noite se refere à Peregrinatio de Maier, e já que o texto completo
vai ser encontrado esparso por toda a palestra, eu vou condensá-lo e resumi-lo para vocês.
A Peregrinatio é uma história a respeito de um adepto, o alquimista que escreveu o texto,
que se lança em uma série de viagens. Primeiro ele vai em direção ao norte, que é a Europa;
depois ele vai em direção ao oeste, que é a América; a seguir ele vai em direção ao leste, que
é a Ásia. E quando lhe resta somente um lugar para ir, que é o sul onde se encontra a África,
ele para lá se dirige. A ideia parece ser que ele deve tocar todas as bases. Quando está se
dirigindo para o sul, ele encontra uma estátua de Mercúrio apontando para o Paraíso. Ali, no
sul, ele consegue obter um rápido vislumbre do Paraíso, mas essa visão não dura muito.
O alquimista prossegue então em direção à África, que é uma região “ressecada, estéril e
vazia” — um lugar bastante desagradável. De fato, como Jung diz no parágrafo 272, ela pos-
sui todos os atributos do inferno. Neste local chamado África todas as espécies se reprodu-
zem umas com as outras — elas não se limitam a reproduzir só com sua própria espécie.
Como ali existem somente poucas fontes de água, todas as espécies coabitam umas com as
outras. Consequentemente, a todo instante criaturas novas e bizarras estão sendo criadas.
Então, quando o adepto chega ao Mar Vermelho, ele fica sabendo que um animal chamado
Ortus encontra-se por ali. Esta estranha criatura é composta de quatro diferentes cores: ver-

144
melho, preto, branco e faixas de amarelo. Ele também fica sabendo que o Ortus é tido como
sendo relacionado à fênix, ou talvez até idêntico a ela.
É neste ponto que surge na história o Mar Vermelho — esta é a razão pela qual este texto é
citado aqui — ele trata do Mar Vermelho. Perto do Mar Vermelho o adepto encontra a Sibila
Eritréia. O nome dela significa “sibila vermelha”, pois ela vive perto do Mar Vermelho. A
Sibila Eritréia, uma profetisa que vive em uma caverna, diz a ele que se dirija para as sete
bocas onde deságua o Nilo, ou seja, o delta do Nilo, para ali encontrar Mercurius. E é preci-
samente isso que o adepto esteve procurando o tempo todo: Mercurius.
Jung nos diz então, baseado na descrição de Maier, que estas sete bocas do Nilo correspon-
dem aos sete planetas. Portanto, visitar cada uma delas equivale a visitar cada uma das esfe-
ras planetárias.
O adepto então se dirige para elas, uma por uma, mas não consegue encontrar Mercurius.
Após passar por todas as sete, ele volta sobre seus passos, e quando retorna ao primeiro
domicílio — a casa do chumbo ou de Saturno — eis que enfim ele encontra Mercurius! Mer-
curius não se encontrava ali na primeira visita, mas após realizar o movimento ascendente e
então descender novamente, o adepto finalmente o encontrou. Nesta altura da história so-
mos informados que o adepto manteve diversas conversas com Mercurius, mas o conteúdo
destas conversas não é citado. Trata-se de uma história que Jung comenta extensivamente, a
qual eu discutirei de forma condensada e abreviada.
1. A jornada horizontal através dos quatro quadrantes
O primeiro aspecto da história se refere a uma jornada horizontal através dos quatro qua-
drantes. Isso corresponde a uma imagética que encontramos de vez em quando, na qual exis-
te um determinado campo circular que é dividido em quatro seções. Determinadas atividades
vitais são realizadas em três deles, mas o quarto quadrante ou seção é sempre inativo ou va-
zio, ou então negro e ameaçador (figura 12-1). Em determinados casos o quarto quadrante é
denominado terra damnata (terra amaldiçoada), ou então chaos, ou alguma coisa assim. En-
tão é assim que a jornada de Maier começa: ele vai para o norte, oeste e leste e não passa
por nenhum problema; mas quando ele se dirige ao sul. ele vai em direção ao ameaçador
quarto quadrante.
Isso corresponde ao tema alquímico fundamental do três e do quatro, que frequentemente
surge em toda análise profunda. No decorrer das tentativas de obter alguma consciência de
sua totalidade, uma pessoa deve percorrer um caminho através de todas as quatro funções da
psique. A primeira é a função superior da psique — esta não apresenta nenhum problema,
porque é ali que nos situamos já de início e foi onde a maior parte de nossa vida tem sido
vivida. Então, a função superior é mel na sopa.
Com muita frequência a função psíquica auxiliar, a função número dois, também é bastante
acessível, porque num indivíduo razoavelmente desenvolvido duas funções psíquicas encon-
tram-se em boa forma. Uma pessoa assim terá uma boa capacidade de julgamento, seja pen-
samento ou sentimento, e uma boa capacidade de percepção, seja sensação ou intuição.
Então, a segunda função também não é muito problemática. Mas as dificuldades começam
na terceira função, e conquistar algum grau de relação vital com ela normalmente requer um
bom período de análise.

145
Figura 12-1: O ameaçador quarto quadrante

É então que chegamos à quarta função, e é aí que surgem grandes problemas. A razão pela
qual ela é tão difícil é que a quarta função, a função inferior, jamais foi desenvolvida até então
— ela é mais ou menos contínua com todo o inconsciente coletivo. Assim, quando a quarta
função é atingida de uma maneira significativa, ela traz à tona consigo todo o inconsciente
coletivo.
Tocar a função inferior também significa que o ego é confrontado com os opostos de forma
mais extrema. Quando se lida com a segunda e terceira função o ego se confronta com os
opostos de uma maneira bem mais branda, mas a quarta função desafia totalmente a função
superior e todo o modo de operação vital em torno do qual o ego sempre esteve organizado.
A quarta função vira de cabeça para baixo todos os valores do ego. Isso então significa que
um encontro com a quarta função expõe o indivíduo ao caos da “África”, como é descrito no
texto.
Não é raro encontrarmos sonhos que envolvam o ato de viajar nas quatro direções, ou então
viajar em uma ou mais direções, e eu acredito que é bom estarmos sempre alertas para so-
nhos que façam referência especial a questões de direções. Permitam-me dar aqui alguns
exemplos.
Lembro-me de um paciente que tinha uma tipologia distorcida. Isso acontece com alguma
frequência — nunca podemos estar absolutamente certos disso, pois é difícil apontar com
absoluta certeza — mas parece que ocasionalmente algum trauma de infância pode distorcer
a tipologia natural de uma pessoa, e acredito que foi isso que aconteceu com esta mulher. Se
tivesse sido possível que ela seguisse seu caminho natural de desenvolvimento ela seria um
tipo sentimento, mas as condições de sua infância foram tais que ela foi transformada em um
tipo pensamento. O que me sugeriu esta ideia foi uma série de sonhos nos quais as direções
sempre estavam tentando ser invertidas. Por exemplo, algo que estava orientado para o nor-
te aparecia tentando se orientar para o sul.
Só para lhes dar uma ideia, eis um sonho dessa paciente: “Estou olhando pela minha janela
para o norte. Surge então um grande furacão que se move em direção ao sul”. Outro sonho

146
dela: “Estou dirigindo um carro em direção ao sul. Vejo então o cogumelo de uma explosão
atômica e paro o carro”. Então, lembrem-se de que sempre que alguém tem um sonho que
de alguma forma enfatiza direções geográficas, devemos estar alertas para algo que diga res-
peito à tipologia.
Eis outro sonho direcional particularmente impressionante que também guarda outras simila-
ridades com o texto da Peregrinatio de Maier:
Encontro-me numa viagem, e na volta do litoral norte numa estrada no sentido norte-sul [vejam, o
sonho atribui muita importância à direção — usualmente os sonhos não costumam explicitar em
que direção as estradas seguem] passamos por alguns postes de telefone muito altos, sobre os
quais estavam empoleirados pássaros tropicais de cor laranja, rosa, verde e azul, cada um de uma
espécie diferente. Eles haviam voado de todas as quatro diferentes direções e tinham se arranjado
sobre os postes de forma simétrica, de maneira a formar um padrão de cores. Todos os pássaros
estavam voltados para o sul, e eram de espécies diferentes. Eles fizeram isso em cinco ou seis pos-
tes, sendo que o poste central tinha cinco barras horizontais e cerca de vinte e cinco pássaros
pousados nele, todos de espécies diferentes.
Fui a única pessoa a notar isso. Senti que esta foi a mais impressionante visão que eu jamais hou-
vera visto. Fiz uma observação a respeito, e a pessoa que me hospedava comentou que aquele
trecho da estrada era famoso por seus pássaros. E de volta à escola eu resolvi tornar a visitar os
pássaros. Meu plano era fotografá-los. Eu tive fantasias com eles, eu me maravilhava com a sime-
tria deles, e percebi que esta foi a visão mais maravilhosa que havia tido. As suas cores eram tão
vibrantes, puras e raras, e os pássaros encontravam-se todos pousados num padrão que alternava
laranja, amarelo, azul e verde. Como poderiam os pássaros saber disso?

Este sonho foi seguido por um segundo sonho — guardem esta imagem na mente:
Após várias aventuras tentando ver os pássaros de novo [é como se o sonhador tivesse tido um
breve vislumbre do Paraíso, assim como Maier], eu me encontrava com meus pais tentando jogar
fora um velho rádio. Fomos até um depósito de lixo que examinamos a partir de uma espécie de
ponte direcionada para o norte. O lixo parecia estar situado uns três metros abaixo da ponte e era
visível através de fissuras, mas meu pai inclinou-se e olhou para o fundo do lixo e aquilo era uma
espécie de fossa séptica ou esgoto. Ali estavam depositados os resíduos mais imundos e nojentos.
Aquilo era como se fosse a porta do inferno do depósito de lixo, e meu pai encorajou-me a lançar
o rádio nesta ultima Thule,* neste buraco infernal de putrefação. Assim eu fiz, e vislumbrei a pega-
josa e turva água, bem em baixo, correndo em direção ao oeste [quem cita peculiaridades como
esta?], e senti que eu havia vislumbrado tudo o que de pior a vida pode oferecer.

Este homem era um tipo pensamento-intuitivo. O oeste frequentemente se refere a sensação


— e certamente é este o caso aqui. Então sentimento e sensação devem ser as suas funções
inferiores, e elas correspondem ao sul e ao oeste.
Mas o que é mais notável em relação a este sonho, e esta é a razão pela qual eu o trouxe
aqui, é que por um lado ele representa um vislumbre do animal de quatro cores (aqui repre-
sentado pelos pássaros), vislumbre esse que foi seguido então, por outro lado, pelo buraco do
inferno da função inferior. Os dois sempre andam juntos!
Quando uma pessoa encontra-se a caminho da totalidade e consegue obter um vislumbre
dela — da imagem da totalidade — a totalidade potencial traz consigo à tona o problema da
quarta função, que é o buraco do inferno. A quarta função é sempre o portal do inferno, e é
ali que nos precipitamos e despencamos. Geralmente gastamos uma vida inteira para conse-
guir escalar e sair desse buraco, mas se conseguirmos então saberemos o que significa a tota-
lidade, já que completamos o circuito inteiro.
* Expressão antiga que significa “a região mais remota, inóspita e afastada” [n. do t.].

147
2. A descoberta do animal de quatro cores, o Ortus
Vimos no texto do Mysterium que o Ortus é encontrado no Mar Vermelho. A palavra ortus
significa “origem”, então ele é o animal primal, o animal original. Assim como o bando de
pássaros do sonho, também ele possui quatro cores: preto, vermelho, branco e amarelo.
Jung diz no parágrafo 275 que isso “representa a quaternidade viva em sua primeira sínte-
se”.
Dito em outras palavras, podemos entender o animal Ortus como a versão primitiva ou ani-
mal do Self original. Trata-se, então, de uma totalidade que ainda não sofreu diferenciação
consciente por meio do encontro pleno com o ego. Isso corresponderia, de maneira genéri-
ca, à serpente-carruagem do encontro da semana passada, que também era uma espécie de
quaternidade primitiva — uma carruagem de quatro rodas, assim como o Ortus é um animal
de quatro cores.
E assim como a serpente-carruagem, também o Ortus requer transformação. O motivo da
transformação surge aqui porque somos informados de que o Ortus está relacionado, ou até
é igual à fênix. O simbolismo da fênix vai aparecer novamente em outro contexto, mas quero
aqui dizer algumas palavras a respeito dele porque é uma imagem muito importante na inter-
pretação dos sonhos.
Aqui está, de maneira resumida, o mito da fênix do antigo Egito. Acreditava-se que a fênix
fosse um pássaro da Índia ou Arábia, e que em determinado ponto de sua existência ele voa-
va para o Egito. Num dado momento, o pássaro sinalizaria para um dos sacerdotes de Heli-
ópolis que ele havia chegado, e o sacerdote então cobriria o altar com folhas e galhos secos.
O pássaro então entraria em Heliópolis, a cidade sagrada, pousaria sobre o altar, acenderia
um fogo sobre os galhos secos e queimaria a si próprio. No dia seguinte, o sacerdote exami-
nava as cinzas e encontrava um pequeno verme. No segundo dia, o verme já havia se trans-
formado num pequenino pássaro, e no terceiro dia ela já havia crescido até se transformar
numa imensa águia, que então alçava voo e retornava para sua morada.
A origem egípcia do mito nos conduz à ideia de que a história está relacionada ao simbolismo
egípcio do embalsamamento. A ideia de morte e renascimento constitui a base do processo
sagrado de embalsamamento dos antigos egípcios. E esta ideia de criar um corpo imortal
primeiro submetendo-o à morte por fogo, e a seguir reconstituindo-o, é a ideia básica da
alquimia. A alquimia é de fato a continuação do simbolismo de embalsamamento do antigo
Egito. A transformação da fênix simboliza o processo de transformação psicológica da indivi-
duação que, assim como a alquimia, cria um corpo glorificado e indestrutível por meio do
mesmo processo de transformação de morte e renascimento que a fênix submete a si mes-
ma. Estas são as imagens e ideias associadas ao Ortus, como podem ver.
Voltando agora ao texto de Maier, soubemos que junto ao Ortus encontra-se a Sibila Eritréia.
A sibila é uma médium ou profetisa, e esta imagem corresponde à anima mediúnica que faci-
lita a comunicação com o inconsciente coletivo. A Sibila aconselha o adepto a procurar Mer-
curius nas sete bocas do Nilo. Isso corresponde, como veremos, a ascender na escala plane-
tária, submetendo-se a uma sublimatio, passando pelo domínio de cada um dos sete arcontes
planetários.
3. A jornada vertical através das sete esferas planetárias
Isso nos conduz à jornada vertical através das sete casas planetárias. Primeiro acontece a
jornada horizontal, e só então, quando já tivermos ido em direção à quarta função — à Áfri-

148
ca, como Maier diz —, é que teremos que realizar a jornada vertical. A jornada horizontal
refere-se ao número quatro e a visitar cada uma das quatro funções. A jornada vertical refere-
se ao número sete e a estabelecer relações com os sete diferentes princípios planetários, os
fatores arquetípicos que proporcionarão a personalidade total. Estes fatores são simbolizados
por Lua, Sol, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno.132
Vocês devem se lembrar de que a ideia antiga era a de que, no processo de nascer nesta
terra, a alma descendia através daquelas sete esferas planetárias, e de cada uma delas colhia
e assimilava determinadas qualidades. Por ocasião da morte, ao retornar para o céu, o pro-
cesso se dava de maneira inversa, sendo que a alma desvencilhava-se de cada uma das sete
influências planetárias em sua jornada de volta.
Existe um interessante poema de Henry Vaughan que fala desta jornada de ascensão da al-
ma. Permitam-me que eu leia uma parte dele para vocês. O poema foi escrito entre 1650 e
1660. O poeta está realizando a viagem de volta pelos sete planetas:
O poder da minha alma é tal que eu posso
Expirar e analisar tudo o que é humano.
Primeiro minha maçante argila eu devolvo para a Terra,
Nossa mãe comum, que dá a todos nosso nascimento.
Minha capacidade de crescer eu logo envio
De onde primeiro a levei, para a lua úmida.
Todas as sutilezas e toda a arte astuta
Para o espirituoso Mercúrio eu concedo.
E essas afeições que me fizeram um escravo
De lindos rostos, Vênus, você as terá de volta.
E meu orgulho atrevido — se houvesse algo dele em mim,
Sol, eu o restituo para tua realeza.
Minha ousadia e pressuposições,
Para o próprio Marte concedo um legado igual.
Minha mal disfarçada avareza — claro, é pequena —
Jove, às tuas chamas eu deixo tudo doado.
E minha falsa magia, na qual de fato acreditei,
E as mentiras místicas, para Saturno eu devolvo.
Todas as minhas escuras imaginações fiquem por lá,
Pois esta é sua esfera grave e supersticiosa.

Saturno era considerado o planeta mais acima de todos, de forma que quando o poeta o
ultrapassa, ele finalmente está livre. Então, tendo atingido aquele ponto, ele podia dizer:

Levanta-te, minha alma desembaraçada, teu fogo


Agora é refinado e nada mais há para cansar
Ou impedir as tuas asas. Agora meu voo auspicioso
Trouxe-me para a luz do Empíreo.
Agora sou uma essência separada e posso ver
Todas as emanações da Deidade.133

Eram estas as imagens do homem medieval tardio, para quem a derradeira consecução era
se submeter a uma completa sublimatio, tranformar-se inteiramente em espírto e encerrar o
assunto.

132 Ver acima, cap. 2.


133 “The importunate fortune”, in The complete poetry of Henry Vaughan, p. 384s.

149
Mas certamente esta não é a opinião da alquimia, já que em nosso texto Maier não faz aquilo
que Vaughan fez. Quando Maier terminou a travesia das sete esferas, ele não encontrou o
que buscava, e teve que refazer todo o caminho descendente de novo. Após alçar-se através
das sete esferas e, em termos psicológicos, adquirir alguma conscientização destes variados
fatores arquetípicos que formam a psique, em vez de se livrar de todos eles, ele tem que
voltar a incorporá-los, embora de uma forma nova. À medida que desce de volta, ele agora
tem que carregá-los conscientemente e submeter-se a uma nova coagulatio. É somente após
voltar para a mais inferior esfera terrena, somente após voltar ao ponto de partida na terra,
que Maier encontra Mercurius e finalmente pode conversar com o deus.
4. O Pastor de Hermas

Jung traz mais duas grandes amplificações a esta sequência de imagens. A primeira é o
Pastor de Hermas e a segunda é a Tábua de esmeralda de Hermes. Primeiro vamos
examinar o Pastor de Hermas.
A obra foi escrita em Roma por volta do ano 140 dC. Ela estava bastante associada com a
primitiva Igreja Cristã, e durante um certo período ela inclusive fez parte do Novo
Testamento canônico. A parte principal do texto envolve uma série de visões de um homem
chamado Hermas, e estas visões são seguidas por todo um conjunto de instruções religiosas
recebidas por Hermas de figuras inconscientes.134 Vou dar-lhes somente uma amostra dos
principais itens da história da maneira pela qual Jung alude a eles no Mysterium.
A história começa com um encontro em um dos banhos de Roma. Hermas diz:
Meu senhor havia me levado a Roma para me vender a uma certa Rosa. Vários anos depois, eu a
revi e comecei a amá-la como irmã. Algum tempo depois, eu a vi tomando banho no Tibre, lhe
estendi a mão e a ajudei a sair do rio. Olhando sua beleza, pensava comigo mesmo: “Eu seria
muito feliz se tivesse uma esposa com essa beleza e caráter”. Era a única coisa que eu pensava,
sem ir além disso. Passado algum tempo, dirigindo-me para Cumas, refletia como são grandes,
marcantes e poderosas as obras de Deus. Durante a viagem dormi. Então o espírito me arrebatou
e me conduziu através de um caminho impraticável, por onde ninguém podia passar. O lugar era
escarpado, todo cortado por águas. Atravessei o rio que aí havia e, chegando à planície, me
ajoelhei e comecei a rezar a Deus, confessando-lhe meus pecados. Durante minha oração, o céu
se abriu e vi aquela mulher que havia desejado. Do céu, ela me saudou: “Bom dia, Hermas”. Olhei
para ela e falei: “Senhora, que fazes aí?”. Ela me respondeu: “Fui transportada para denunciar ao
Senhor os teus pecados”.135

Em outras palavras, o escravo Hermas era culpado por haver abrigado pensamentos lascivos
por Rosa, de maneira que ela apareceu a ele nessa visão. Os pensamentos lascivos aqui
correspondem ao Ortus, ao nível animal. Mais tarde esta mulher da visão iria se identificar a
ele como sendo a própria Igreja. Então, o que se deu foi que, por meio deste mecanismo, a
libido instintiva, inicialmente ativada no nível sexual, foi então transferida para outro nível. Ela
se tornou espiritualizada, socializada e coletiva, o que acabou por levar Hermas ao
comprometimento e lealdade à Igreja.
Umas das mais interessantes visões desta sequência é uma à qual Jung se refere no parágrafo
295, a visão de um grande animal de quatro cores. Aqui está o texto completo:

134Jung discute este texto com mais detalhes em seu livro Tipos psicológicos, OC 6, par. 430-42.
135 Patrística, Padres apostólicos (vol. 1), Ed. Paulus, São Paulo, 1995, p. 171, tradução de Ivo Storniolo e
Euclides M. Balancin [n. do t.].

150
... Vi uma nuvem de poeira que se levantava até o céu, e perguntei: “Será algum rebanho que se
aproxima e levanta a poeira?”. A nuvem estava mais ou menos a um estádio de mim. Mas ela
aumentava cada vez mais e eu suspeitei que fosse algo divino. Neste momento o sol brilhou um
pouco, e então pude ver uma fera enorme, parecida com a baleia. E da sua boca saíam
gafanhotos de fogo. A fera tinha cerca de cem pés de comprimento, e sua cabeça era do tamanho
de um barril. Comecei a chorar e pedir ao Senhor que me livrasse do monstro. Lembrei-me da
palavra que tinha ouvido: “Não duvides, Hermas”. Então, irmãos, revestido da fé em Deus,
lembrei-me de seu ensinamento sublime e, num arroubo de coragem, me expus diante da fera. Ela
avançava com grande estrépito, capaz de destruir uma cidade. Aproximei-me, e a enorme baleia
então se estendeu pelo chão, apenas pondo a língua para fora. Ela não fez nenhum outro
movimento, até que passei por ela. A fera tinha quatro cores na cabeça: preto, avermelhado de
fogo e sangue, dourado e branco.*

Preto, amarelo, vermelho e branco: as mesmas cores do Ortus! E Hermas conclui:


Eu ultrapassara a fera, e continuei uns trinta pés, quando veio ao meu encontro uma jovem
adornada, como se estivesse saindo do quarto nupcial, toda vestida de branco, com sandálias
brancas, coberta até a fronte, com uma mitra cobrindo a cabeça. Seus cabelos eram brancos.
Pelas visões anteriores, reconheci que era a Igreja, e fiquei muito contente. **

No texto de Maier, após o Ortus surge a Sibila, e no texto de Hermas, após a fera de quatro
cores surge a virgem religiosa, a Igreja. É exatamente o mesmo tema, e Jung ficou tão
impressionado com a similaridade que até se perguntou se Maier eventualmente poderia estar
familiarizado com o Pastor de Hermas. Entretanto, como não há nenhuma evidência disto,
ele descartou essa possibilidade.
Ora, temos as mesmas quatro cores em ambos os textos, mas na passagem de Hermas a
sequência termina com branco. Branco é a última cor porque a mulher está vestida de
branco. Partir do preto, a seguir passar pelo vermelho e amarelo, e enfim chegar ao branco
corresponde a atravessar o escuro fogo do purgatório para adquirir a pureza espiritual. Este é
o mesmo trajeto que Henry Vaughan percorreu, a via da sublimatio, que então atingiu o
mesmo destino desta sequência.
Entretanto a sequência alquímica é diferente. Jung dá um excelente resumo da sequência
alquímica de cores que eu cito no início do sexto capítulo, “Mortificatio”, de meu livro
Anatomia da psique. Quero repeti-la aqui porque ela sintetiza tudo o que as cores alquímicas
representam psicologicamente.
Logo no começo encontramos o “dragão”, o espírito ctônico, o “diabo” ou, como os alquimistas o
chamavam, o “negrume”, a nigredo, e esse encontro produz sofrimento ... Na linguagem dos
alquimistas, a matéria sofre até a nigredo desaparecer, quando então a aurora será anunciada pela
cauda do pavão (cauda pavonis) e um novo dia nascerá, a leukosis ou albedo. Mas nesse estado de
“brancura” não se vive, na verdadeira acepção da palavra; ele é uma espécie de estado ideal,
abstrato. Para insuflar-lhe vida, deve haver “sangue”, deve acontecer aquilo que os alquimistas
denominavam rubedo, a “vermelhidão” da vida. Só a experiência total da vida pode transformar
esse estado ideal de albedo num modo de existência plenamente humano. Só o sangue pode
reanimar a glorioso estado de consciência em que o derradeiro vestígio de negrume é dissolvido,
em que o diabo deixa de ter existência autônoma e se junta à profunda unidade da psique. É só
então que a opus magnum está concluída: a alma humana está completamente integrada.136

* Idem, p. 189-90. No original de EDINGER, em lugar de “baleia” lê-se “Leviatã” [n. do t.].
**
Idem, p. 190 [n. do t.].
136 Ver JUNG: Entrevistas e encontros, p. 209s.

151
Se “o diabo deixa de ter existência autônoma”, então este buraco negro terá sido integrado
ao restante da totalidade e não mais será uma entidade isolada e dissociada. Então a
sequência alquímica é preto, branco, vermelho, e o ouro representando o produto final,
enquanto que a sequência de Hermas é vermelho, preto e branco. Hermas começa com o
sangue vermelho de seus desejos lascivos que o lançam no negrume do pecado; ele escapa
dessa situação por meio da sublimatio do branqueamento, mas então é elevado ao céu e não
realiza a descida de volta. Isso corresponde ao fato de que o texto do Pastor de Hermas foi
escrito numa fase inicial do desenvolvimento da psique [coletiva], e eu acredito que esta
imagética foi perfeitamente adequada para a sua época.
Mais um paralelo entre o texto de Maier e o Pastor de Hermas: assim como Maier encontra
Mercurius após ter voltado novamente para baixo, assim também Hermas encontra o pastor
após ter tido algumas de suas visões. Vou ler-lhes aqui um pequeno trecho:
Eu estava rezando em casa, sentado na cama, quando vi entrar um homem de aparência gloriosa,
vestido com roupas de pastor, coberto de pele branca de cabra, com o bornal nas costas e o
cajado na mão. Saudou-me e respondi à saudação. Imediatamente ele sentou ao meu lado, e me
disse: “Fui enviado pelo anjo mais venerável para morar contido pelo resto da tua vida”. Pareceu-
me que ele estava ali para me tentar ... [mas] ele me disse: “Não me reconheces?” ... “Eu sou o
Pastor, a quem foste confiado”.137

Em outras palavras, Cristo aparece a Hermas com a imagem do Bom Pastor.


O Bom Pastor foi uma imagem simbólica que também se aplicava a Hermes Trimegisto,
então há aqui uma sobreposição de imagens. A época deste escrito foi um tempo em que, na
psique coletiva, o simbolismo emergente cristão passava pelo processo de assimilar o anterior
simbolismo pagão, e de tomar para si alguns dos atributos que antes pertenceram ao
patrimônio pagão. Após encontrar a fera e seguir as instruções dadas pela figura de Rosa,
Hermas encontra o pastor. Da mesma maneira, após encontrar a sua fera, o Ortus, e após
seguir as intruções da Sibila para ascender e descender pelas esferas planetárias, Maier
encontra o companheiro da alma, Mercurius.
Agora, em poucas palavras, vamos examinar a outra importante amplificação deste material:
a Tabula smaradigma, ou Tábua de esmeralda de Hermes.
5. A Tábua de esmeralda de Hermes
Esta receita bastante resumida para obter a Pedra Filosofal — que é sobre o que toda a
Tábua de Esmeralda trata — é provavelmente a escritura alquímica mais sagrada que existe.
Ela é, de fato, um sumário do processo de individuação, ao mesmo tempo em que possui
suas referências alquímicas, e eu sugiro que vocês a copiem e colem no seu exemplar do
Mysterium, pois ela pertence à obra.
Jung refere-se à Tábua à maneira de uma amplificação, pois sua imagem central é uma
ascensão seguida por um descenso, assim como acontece no texto Peregrinatio de Maier.
Vamos aproveitar esta oportunidade para ler todo o texto — são treze etapas — e considerar
brevemente o significado de cada uma delas.
1. É verdadeiro, sem enganos, certo e digníssimo de crédito.
Isso significa, em tradução psicológica bastante sintética, que a psique é real.

137 Patrística, Padres apostólicos (vol. 1), Ed. Paulus, São Paulo, 1995, p. 191-2.

152
2. Aquilo que está embaixo é igual àquilo que está em cima, e aquilo que está em cima é
igual àquilo que está embaixo, para realizar os milagres de uma só coisa.
Esta é a ideia das correspondências, a ideia de que o microcosmo e o macrocosmo
espelham-se um ao outro. Dito em outras palavras, a psique pessoal, que é o ego, espelha a
psique arquetípica, que é o Self.
3. E, assim como todas as coisas se originaram de uma só, pela meditação dessa coisa,
assim também todas as coisas vieram dessa coisa, por meio da adaptação.
Tudo o que existe origina-se do Um original, que é o Self.
4. Seu pai é o sol; sua mãe, a lua; o vento a carregou em seu ventre; sua ama é a terra .
[figura 12-2]
O Self realizado conscientemente nasce de quatro elementos. Ele é o produto dos quatro
processos aos quais se referem os quatro elementos: calcinatio, solutio, sublimatio e
coagulatio. O Self conscientemente realizado é o filho ou filha deste quádruplo processo.
5. Eis o pai de tudo, a complementação de todo o mundo.
Isso se refere à Pedra dos Filósofos. E isso também afirma que a Pedra dos Filósofos é tanto
o começo quanto o final desta receita. O pai sendo a origem ou começo, e sendo também o
objetivo final ou conclusão da obra.
6. Sua força é completa se for voltada para dentro (ou na direção) da terra.
A obra deve sofrer coagulatio para ser plenamente realizada.
7. Separa a terra do fogo, o sutil do denso, com delicadeza e com grande ingenuidade.
Um processo de separatio deve ser realizado. O significado essencial deve ser extraído de de
todos detalhes concretos.
E aqui, especialmente, está o ponto onde surge a referência ao texto de Maier:
8. Ela ascende da terra para o céu, e desce outra vez para a terra, e recebe o poder do
que está em cima e do que está embaixo. E, assim, terás a glória de todo o mundo.
Desse modo, toda a treva fugirá de ti.
Esta ascensão seguida por um descenso é a marca distintiva da sabedoria alquímica,
sabedoria que se opõe à sabedoria cristã e gnóstica que começam no céu, deescendem para
a terra e retornam ao céu no final. A sabedoria alquímica começa na terra, ascende ao céu e
retorna à terra. Essa diferença indica a importância crucial desempenhada pelo ego na
realização do processo alquímico.
9. Eis o forte poder da força absoluta; porque ela vence toda coisa sutil e penetra todo
sólido.
Isso se refere à aqua permanens que penetra todas as coisas. Dito em outras palavras, este
processo descreve a natureza da anima mundi, que tem o poder penetrante que pode ser
encontrado em todos os lugares.
10. E assim o mundo foi criado.

153
A criação de um indivíduo único, consciente e total é equivalente à criação do mundo. Vários
outros textos também estabelecem esta mesma equivalência.
11. Daqui virão as prodigiosas adaptações, à feição da qual ela é.
“Prodigiosas adaptações”, adaptationes mirabilis; isso significa milagres. A experiência
pessoal, após a individuação, acaba por tomar uma qualidade quase milagrosa, porque é
penetrada pela dimensão transcendente. E quando nos tornamos abertos e receptivos ao
inconsciente, passam a acontecer eventos sincronísticos que corresondem àqueles milagres,
as tais “prodigiosas adaptações”.
12. E assim sou chamado HERMES TRISMEGISTUS, tendo as três partes da filosofia de
todo o mundo.
Esta receita tem autoria, ou seja, é assinada por Hermes Trismegistus, a personificação da
sabedoria inconsciente. E também representa uma ilustração do fato de que o inconsciente
vem ao encontro do ego através de sua tendência de se personificar. Nesta passagem, aquela
sabedoria absoluta, a sabedoria do inconsciente, encontra-se personificada em Hermes, que é
quem assina esta receita.
13. Aquilo que eu disse acerca da operação do sol está terminado.
Sol aqui se refere ao ouro, pois então o ouro já foi feito.138
Assim, quero concluir com uma citação de Jung na qual ele descreve exatamente o que a
ascesão e descenso signifcam em termos concretos. A jornada começa no quadrante escuro
do qual falei há pouco, naquele buraco negro no qual os opostos foram ativados. Aqui está o
que Jung diz no parágrafo 290:

Ascensus e descensus, altura e profundidade, para cima e para baixo descrevem um realizar
emocional dos opostos, que lentamente leva ou deve levar a um equilíbrio entre eles. Por isso esse
motivo ocorre com muita frequência nos sonhos, como subir e descer um morro, subir e descer
uma escada, subir e descer um elevador, balão, avião, etc. Neste sentido, o motivo corresponde à
luta do dragão alado com o dragão não alado, isto é, o Uroborus ... A maneira como Dorneus
interpreta isso, ou seja, o hesitar entre os opostos, o ser jogado de um lado para o outro, significa
o estar contido dentro dos opostos. Os opostos se tornam um vaso, no qual a pessoa que antes
ora era uma, ora era outra, agora está suspensa a vibrar, e aquela penosa situação de estar
suspenso entre os opostos lentamente se transforma em uma atividade bilateral do centro. É isso
que significa a “libertação dos opostos”.

Esta “libertação dos opostos” corresponde ao encontro de Maier com Mercurius. Após ter
subido e descido por todos aqueles diferentes estágios, ele finalmente encontra Mercurius, o
guia interno que lhe orienta sobre o caminho a tomar.

138O texto latino completo da Tábua de Esmeralda encontra-se em EDINGER, Anatomia da psique, p. 247-8,
onde existe um erro de digitação na tradução do item n o 3: “E, assim como todas as coisas se originaram de
uma só, pela mediação ...”, onde se deve ler: “E, assim como todas as coisas, se originaram de uma só, pela
meditação ...” [e não mediação]. [n. do t: O erro também ocorre na tradução brasileira].

154
Figura 12-2: “O vento o carregou em seu ventre”.

155
PARÁGRAFOS 309–340

13
O material desta noite é o último de quatro encontros sobre o simbolismo do Sal, e as
imagens principais são:
1. Aqua permanens, hydor theon ou água divina, e água batismal
2. Os efeitos purificadores do sal
3. Os efeitos preservativos do sal
4. A equação simbólica: sal = cinzas = corpo vítreo = corpo glorificado
5. A equação simbólica: sal = alma, anima mundi e Sapientia Dei
6. Sal e Eros: sabedoria e amargor
1. Aqua permanens, Hydor theon ou Água Divina, e água batismal
Voltamos agora ao sal como sendo equivalente à água do mar. A primeira equação simbólica
leva do sal à água do mar e à água batismal da Igreja, e finalmente à aqua permanens.
Como Jung diz no parágrafo 310, os alquimistas não hesitavam em chamar o processo de
transformação da matéria de batismo, e essa é uma das imagens que fazem parte do
processo analítico — um processo de ser imerso na água do mar, a aqua pontica, que ao
mesmo tempo representa um batismo.
O batismo tem dois aspectos diferentes: um deles é a lavagem dos pecados, e o outro é o de
inciar alguém em alguma determinada fraternidade sagrada. Bem, estas duas coisas
acontecem simultaneamente com qualquer imersão maior no inconsciente. Ao mergulhar no
incosnciente, uma pessoa é purificada de seus pecados no sentido de que, ao se tornar
consciente, radicalmente consciente da extensão de sua própria sombra, de sua própria
sujeira, ela então é purificada. Isso não significa que a sujeira seja afastada; isso só significa
que a sujeira se torna “limpa” porque a pessoa se torna consciente dela. Sujeira consciente é
sujeira limpa, o oposto da sujeira suja, que é sujeira inconsciente. O segundo aspecto do
batismo é que ele proporciona um sentimento interior de então termos sido inciados numa
comunidade, e de encontrarmos uma conexão transpessoal com toda a comunidade humana
por meio de um processo interno, em lugar de um processo externo.
Uma expressão alquímica que é usada muito frequentemente — vocês podem notá-la
repetidas vezes no Mysterium — é o termo grego hydor theon (ΰδωρ θειον). Isso significa
“água divina” e, o que é muito interessante, também sinifica “água de enxofre” — é somente
o contexto em que a expressão é usada que vai lhes dizer qual é qual. Aqui vemos um

156
exemplo das profundas ambiguidades que perpassam o simbolismo alquiímico. Voêes devem
se lembrar de que por ocasião de nossa discussão sobre o simbolismo do sulphur que ele
estava bastante associado com o enxofre do inferno. Ora, agora aprendemos que a água
sulfúrica e a água divina são ambas referidas como hydor theon. Então vocês podem ver
quão ambíguo é o aspecto positivo e negativo da divindade no simbolismo alquímico de fato.
Esta água divina, hydor theon ou aqua permanens, é aquilo que podemos chamar de versão
líquida do Self. Uma das mais importantes origens desta imagem vem do quarto capítulo de
João, no qual Cristo encontra uma mulher samaritana em uma fonte e pede a ela que lhe dê
de beber. Ele então diz:
Se conhecesses o dom de Deus, e quem é que te diz: “Dá-me de beber”, tu é que lhe pedirias, e
ele te daria a água viva!
Aquele que bebe desta água terá sede novamente; mas quem beber da água que eu lhe der, nunca
mais terá sede, pois a água que eu lhe der tornar-se-á nele uma fonte de água jorrando para a vida
eterna.139

Esta água é aquela que possui em si a dimensão permanente e eterna.


Vários aspectos desta imagem da água divina aparecem nos sonhos. Fiquem atentos sempre
que uma água ou líquido que possua qualidades estranhas ou pouco usuais apareçam num
sonho. Eu pude testemunhar um interessante exemplo disso há algum tempo.
Fiz uma sessão analítica com uma paciente especial. Ela era especial porque as associações
do material que me apresentava sempre pareciam fluir de uma maneira especialmente fácil.
Tenho certeza de que vocês já notaram, se estiveram atentos, que a forma pela qual nós,
analistas, desempenhamos nossa tarefa varia muito de paciente para paciente. No meu caso,
sou capaz de notar de que, com determinados pacientes, posso ser bastante brilhante,
porque existe algo na psicologia daqueles pacientes que constela em mim um brilho interior.
Em compensação, com outros pacientes, eu me sinto um absoluto fracasso: não consigo
dizer a eles absolutamente nada que preste! Seja como for, nesta sessão de que estou lhes
falando as coisas estavam fluindo particularmente bem. Um rico material associativo não
parava de vir à tona, e todo ele estava sendo muito bem considerado e entendido. Aconteceu
então que, na noite seguinte à sessão, aquela paciente sonhou que estava com seu analista e
que uma fonte de água cristalina jorrava da boca dele.
Então, vejam, isso e um exemplo do hydor theon, da água divina, que a psique da paciente
foi capaz de constelar em mim. Essa água divina não pertencia a nenhum de nós dois, e eu
estaria cometendo um grave erro se tivesse me identificado com ela, embora quando as
coisas se constelem bem, ela possa ser ativada e jorrar a partir de nós. Foi exatamente isso
que aconteceu naquela sessão.
Acontece que temos que saber que essa água nem sempre é positiva. Neste caso que lhes
contei ela foi positiva, mas em outras ocasiões ela pode ter um caráter ambíguo ou até
mesmo francamente negativo. Como diz o texto, ela também pode se transformar num
veneno. No parágrafo 333 Jung diz que o sal “contém tanto mal quanto bem”. E mais
adiante ele cita um texto do Gloria Mundi. O trecho foi retirado do parágrafo 335:
A Gloria Mundi diz que a aqua permanens é uma “água clara e de tal maneira amarga que
ninguém pode tomá-la”. Nas invocações em forma de hino o tratado diz mais adiante: “Ó água de
espécie emarga, que conserva os elementos! Ó natureza da afinidade, que libertas a natureza! Ó

139 João 4, 13-14.

157
ótima natureza, que superas a própria natureza! ... Estás coroada da luz e dela nasceste ... e a
quintessência proveio de ti”. E na terra nenhuma outra água é semelhante a esta, com exceção de
uma única, que é “aquela fonte da Judéia, chamada também de fons salvatoris vel beatitudinis
(fonte do salvador e da felicidade). “Os filósofos encontraram aquela nobre fonte com muito
esforço e por uma graça especial de Deus”. Mas esta fonte estava em um lugar tão secreto que
somente poucos conheciam seu “borbulhar”, e não se sabia o caminho para a Judéia. Por isso
aquele filósofo podia exclamar: “Ó água de espécie amarga e acre! É duro e difícil para qualquer
um encontrar aquela fonte”.

Então Jung comenta a respeito dessa passagem:


Disto se conclui imediatamente que aqui se trata da aqua permanens ou aqua pontica, a água
primordial, na qual estão contidos os quatro elementos. Aquilo que na psicologia corresponde à
água primordail e caótica é o inconsciente.

E no parágrafo 336 ele faz esta observação altamente significativa, como que colocando-a lá
de maneira distraída:
O homem e seu íntimo constituem o lugar secreto onde se encontra aquela aqua solvens et
coagulans, aquela medicina catholica ou remédio universal, aquela centelha de luz natural.

Então é a nossa luz interior — nossa vida interior que também é luz — que constitui essa
hydor theon, essa água divina. É no nosso interior que se encontra este lugar desprezado e
amargo, mas que também é o local secreto onde o supremo valor pode ser encontrado.
Eu gostaria de enfatizar isso um pouco mais — as palavras fluem facilmente, mas os fatos são
bem mais difíceis de apreender. De minha parte eu sempre me esqueço de que a vida interna
é o local onde a água divina pode ser encontrada. A toda instante que me deparo com
alguma dificuldade, imediatamente mobilizo todos os recursos da minha mente racional para
resolvê-los. Mas é só quando esse recursos não funcionam que então me lembro: “Ah, é
mesmo! Existe aquela vida interna onde eu posso encontrar a solução!” Acho que eu jamais
aprenderia de outra forma.
Enquanto a cabeça e a mente conseguem resolver algo jamais nos voltamos para a vida
interna, porque a noção de que ali nada existe de importante está muito arraigada em nós. É
somente quando nos vemos diante de uma enorme muralha intransponível que então somos
forçados a recorrer àquele lugar negligenciado no nosso interior, lugar que, de outra maneira,
sempre ignoramos.
2. Os efeitos purificadores do Sal
Não tenho muito a dizer a respeito desse outro aspecto, a não ser que ele é uma das
características do simbolismo do sal. Ele corresponde ao efeito da água batismal que é tida
como sendo capaz de remover os pecados do pecador, e corresponde também à água
alquímica que remove a escuridão associada à prima materia. E ele corresponde também,
como já comentei, ao advento da consciência para as nossas próprias sujeiras.
3. Os efeitos preservativos do Sal
Na época anterior à invenção das geladeiras, a descoberta de que o salgamento preservava
os alimentos foi muito importante para nossos ancestrais. Relacionado com este simbolismo,
Jung se refere a uma lenda judaica na qual Behemot e Leviatã, aqueles monstros bíblicos
primordias, eram salgados e preservados para o mundo vindouro (parágrafo 332 e nota

158
666). Quando a era messiânica chegar e o banquete messiânico for servido, estes monstros,
que foram preservados pelo sal, serão então servidos.
Aqui estamos diante da ideia de que salgar algo que seja corruptível, como a carne, por
exemplo, tem o efeito de tornar esse algo eterno, ou então de torná-lo mais ou menos
imortal. A ideia sugere que se a existência psíquica coagulada, a matéria existencial que foi
vivida por um determinado ego, for submetida ao processo de salgamento, ela então é
eternizada, Este simbolismo está associado, portanto, à próxima imagem.
4. Sal = cinzas = corpo vítreo = corpo glorificado
O sal é sinônimo das cinzas que restam ao final do processo de calcinatio, e logo é
equivalente ao corpo vítreo que se encontra nas cinzas. Se a matéria for submetida a um
calor muito intenso, tudo o que nela é combustível se queima, e o que resta são as cinzas
e/ou os corpos vítreos. O corpo vítreo é uma pequena pérola de vidro — ele faz parte dos
conteúdos das cinzas. Esta pequena bolinha de vidro acabou por se tornar uma imagem do
corpo glorificado que toma as qualidades de eternidade após ter sido submetido ao fogo
refinador, e isso perence ao simbolismo do sal.
Eu gostaria de falar a respeito do vidro e de seu simbolismo um pouco mais do que Jung
falou, O vidro é uma imagem que surge com frequência no trabalho com sonhos, e se
tivermos alguma familiaridade com ele, então quando nos depararmos com esta imagem
disporemos de todo um corpo de idéias para aplicar a ela.
Corpo vítreo significa corpo de vidro — vitrum significa vidro. Ora, a principal característica
do vidro é a transparência. O próprio vidro é invisível e há algo milagroso neste fato. Se
vocês nunca tivessem tomado conhecimento do vidro e se, de repente, tivessem uma placa
dele nas mãos, então eu acho que poderiam apreciar que coisa surpreendente ele é. Ele é
como se fosse água sólida, por exemplo. Por si próprio, o vidro é invisível, e graças á sua
invisibilidade podemos ver as coisas mesmo através dele. É assim, então, que o vidro acaba
se tornando um símbolo de um determinado tipo de consciência.
Considerem alguns objetos associados ao vidro: garrafas, vasos, frascos, janelas, espelhos,
óculos, lentes de aumento, microscópios, telescópios. Estes são só alguns exemplos, mas
praticamente todos eles estão relacionados ao aumento de nossa capacidade de visão, ou
então constituem um recipiente que contém algo e que permite que o vejamos em seu
interior.
Outra característica do vidro é que quando ele se parte, sua borda cortante lacera a carne
viva, e que quando é ingerido se torna extremamente perigoso para os delicados órgãos
internos. No então, ele é um material indestrutível. Em linguagem corrente, podemos dizer
que ele não é uma substância biodegradável: se lançado na natureza, sobreviverá quase que
eternamente, da mesma maneira que cacos de cerâmica.
Para mim, o maior simbolismo do vidro é o de ele representar o corpo invisível e glorificado
da consciência pura e transformada. E o Sal está associado a este simbolismo. Originalmente,
o vidro era produzido pelo aquecimento de areia com potassa. É certo que os alquimistas
ainda não tinham conhecimento da verdadeira composição química do vidro, mas sabemos
que o vidro é um sal — a combinação de um ácido com uma base.
Hoje em dia, o vidro é uma mistura de silicatos de sódio e de cálcio. Bem, mesmo correndo
o risco de me afastar demais de nosso assunto, aqui estão duas equações químicas que
demonstram que o vidro é um sal:

159
1. HCl + NaOH  NaCl + H2O
Essa primeira equação química mostra como o cloreto de sódio é produzido a partir da
reação do ácido clorídrico com o hidróxido de sódio. Todos nós sabemos que um ácido e
uma base, os tradicionais opostos químicos, se unem para formar um composto neutro que é
o sal comum.

2. a. H4SiO4 + 2Ca(OH)2  Ca2SiO4 + 4H2O


b. H4SiO4 + 4NaOH  Na4SiO4 + 8H2O*
Então, de acordo com estas outras duas equações químicas, o vidro, que é uma combinação
de silicato de cálcio e silicato de sódio, é igualmente derivado da reação química entre o ácido
silícico e o hidróxido de cálcio (equação a), e entre o ácido silícico e o hidróxido de sódio
(equação b). Ambos são vidro, mas sais ao mesmo tempo.
Pergunta: os alquimistas sabiam que o vidro era feito a partir de um ácido e uma base?
Não, não sabiam. O ácido clorídrico, naquela época, ainda não havia sido refinado. Eles
conheciam somente o sal; eles o retiravam do solo — existem grandes depósitos de sal em
Salzburg, por exemplo. Então, o quee eles conheciam era o sal como uma entidade
específica, mas não sabiam como ele era produzido.
5. Sal associado a Alma, Anima Mundi e Sapientia Dei
Sal é sinônimo de anima mundi, alma e Sapientia Dei. E se é equivalente a Sapientia Dei,
então está associado ao próprio Deus. Esse fato também fica implícito pelas qualidades
presevativas do sal que já mencionei anteriormente.
Além disso, a principal imagética associada ao sal está implícita em seu símbolo alquímico:
um quadrado circundado por um círculo — um mandala. Então isto nos deixa claro a ideia de
que, na alquimia, o sal corresponde ao Self.
Essa associação corresponde à ideia, presente no Velho Testamento, do papel crucial que o
sal exerce no sacrifício divino. No segundo capítulo do Levítico lemos:
Salgarás toda a oblação que ofereceres, e não deixarás de por na tua oblação o sal da aliança de
teu Deus; a toda oferenda juntarás uma oferenda de sal a Javé teu Deus. 140

Aqui percebemos que o sal significa exatamente a atitude sacrificial com a qual o ritual deve
ser realizado. É a própria aplicação do sal que torna a oferenda sagrada. Podemos até
afirmar que, pelo salgamento da oferenda, nós a recobrimos com a própria substância de
Deus, o que a torna aceitável para ele.
Existe uma grande quantidade de material folclórico relacionado ao sal. O sal é considerado
como sendo uma proteção contra espíritos maléficos; o diabo e as bruxas jamais se
aproximam dele. Assim, se vocês jogarem um pouco de sal à sua volta, isso constitui uma
ação apotropaica. Se o sal é derramado, uma pitada dele deve ser lançada para trás no
ombro esquerdo. Eu entendo isso como significando que o inconsciente, o lado esquerdo,
deve sempre ser propiciado; se derramamos algo, se demos origem a um acidente qualquer,
temos que propiciar o inconsciente prestando mais atenção a ele. Assim, se eu derramo
alguma coisa — sal ou alguma coisa importante — devo me perguntar: “Hmmm, o que isso

* H4SiO4 é o ácido ortossilícico, ou, de maneira simplificada, ácido silícico [n. do t.].
140 Levítico 2, 13-4.

160
está tentando me dizer?”. Prestar atenção àquilo que o inconsciente quer expressar
corresponde, simbolicamente, a lançar um pouco de sal sobre meu ombro esquerdo.
6. Sal e Eros: sabedoria e amargor
Chegamos agora ao mais importante simbolismo de todos, o coroamento e culminação
destes quatro encontros que fizemos para estudar o simbolismo do sal: a equação de sal e
Eros. Jung resume a questão no parágrafo 324:
A par da umidade lunar e da qualidade terrestre do sal, destacam-se mais as propriedades de
amaritudo e sapientia. Como, no duplo quatérnio dos elementos e das propriedades elementares,
sal e água têm em comum o frio, assim também amaritudo e sapientia formam um oposto por
intermédio de um terceiro. Por mais incomensuráveis que esses dois conceitos possam ser, têm
eles algo em comum, que em psicologia é a função do sentimento. Lágrimas, sofrimento e
decepção são amargos, mas a sabedoria é aquela que consola qualquer dor da alma; na verdade,
amargor e sabedoria formam uma alternativa: onde houver amargor falta sabedoria, e onde houver
sabedoria não pode existir amargor. O sal, portanto, é associado à natureza feminina por ser ele o
portador dessa natureza marcada pelo destino. [Ênfase adicionada por Edinger].

Figura 13-1: Propriedades associadas ao sal.

Mais adiante, no parágrafo 327, Jung associa Sal com Eros explicitamente. Isso me levou a
lembrar suas observações acerca dos estágios de desenvolvimento de Eros em “A psicologia
da transferência”. Aqui está o que ele diz em seu ensaio:
A Antiguidade já conhecia a escala erótica das quatro mulheres: Chawwa (Eva), Helena (de Tróia),
Maria e Sofia; uma sequência que se repete de maneira alusiva no Fausto de GOETHE, ou seja,
na figura de Gretchen, enquanto personificação de uma relação puramente instintiva (Eva); de
Helena, enquanto figura da anima; de Maria, enquanto personificação de uma relação celestial,
isto é, religiosa e feminina; e, finalmente, de Sofia, o Eterno Feminino, enquanto expressão da
sapientia alquímica. Como motram estes nomes, deduz-se que se trata de quatro estágios do Eros
heterossexual, ou seja, da imagem da anima e, consequentemente, de quatro estágios culturais do
Eros. O primeiro grau de Chawwa, Eva, Terra, é apenas biológico, um estágio em que a mulher =
mãe não passa de algo que pode ser fecundado. O segundo grau ainda diz respeito a um Eros
predominatemente sexual, mas já nível estético e romântico, um estágio em que a mulher já possui
certos valores individuais. O terceiro grau eleva o Eros ao respeito máximo e à devoção religiosa,
espiritualizando-o. Contrariamente a Chawwa, trata-se da maternidade espiritual. O quarto grau
explicita algo que contraria todas as expectativas e ainda supera esse terceiro grau dificílimo de ser

161
ultrapassado: é a Sapientia. Mas como é que a sabedoria consegue sobrepujar o que há de mais
santo e puro? A resposta pode estar na verdade elementar de que, não raro, algo que é menos
significa mais. Este grau representa a espiritualização de Helena, e portanto, do próprio Eros. Daí
o paralelo, no Cântico dos Cânticos, entre a Sapientia e a Sulamita.141

Não espero de forma alguma que isso seja plenamente compreendido logo de imediato, mas
estes quatro estágios representam algo acerca do que vale a pena refletir, e vou dizer algo
mais a respeito para ajudar a fixar estas ideias em sua mente. Elas são muito relevantes no
trabalho analítico. Vejam, a maior parte de nossos pacientes encontra-se vivendo o primeiro
estágio, ou talvez o início do segundo, e eles não têm a menor ideia acerca do terceiro e
quarto estágios. Mas se estivermos informados a respeito desta sequência, seremos sempre
capazes de perceber quando os sonhos dos pacientes estivrem se referindo a estes estágios
evolucionários do desenvolvimento do Eros.
O estágios são Eva, Helena, Maria e Sapientia ou Sabedoria. Permitam-me falar somente
uma ou duas palavras a respeito de cada um deles. Eva representa Eros da maneira pela qual
ele vive fora no nível primordial e matriarcal da psique, da maneira como foi descrito por
Erich NEUMANN.142 Este nível da psique é basicamente uma combinação de nutrição e
devoração. Trata-se de Eros enquanto desejo elementar; trata-se de Deméter antes da perda
de Perséfone. Em termos de relação entre os sexos, o objetivo é somente a fertilidade
biológica, e o princípio masculino encontra-se subordinado ao princípio matriarcal — o
masculino não passa de um instrumento a serviço da Grande Mãe. Trata-se de Chawwa
(Eva).
O segundo nível é o de Helena de Tróia. Neste estágio o princípio masculino já adquiriu
autonomia e os opostos estão agora polarizados. Os fatores românticos e estéticos agora são
proeminentes, e o objetivo deste estagio de Eros é a união física e biológica dos opostos.
Assim, o objetivo já é coniunctio é, mas ainda só em termos concretos.
O terceiro estágio é Maria, e neste estágio o princípio masculino e espiritual adquiriu
predominância. Então Maria representa a maternidade espiritual e, assim como o objetivo do
primeiro estágio — Eva — era a fertilidade biológica, assim também neste estágio de Maria o
objetivo é fertilidade espiritual.
Já o quarto estágio, Sapientia ou Sabedoria, é uma espiritualização de Helena, assim como o
nível de Maria foi uma espiritualização de Eva. Além disso, como Jung afirma, isso significa
que Sapientia representa também a espiritualização de Eros enquanto tal. Aqui o objetivo é a
união psicológica dos opostos. A coniunctio, como experiência psicológica, é o objetivo deste
nível de Eros.
Existem três processos de transformação que se dão nestes quatro estágios. Mesmo correndo
o risco de simplificar demais a questão, deixem-me dar-lhes uma pincelada sobre o que
entendo estar simbolizado nestes três passos ou processos. A passagem entre Eva e Helena é
simbolizada pelo rapto de Perséfone por Hades. A passagem de Helena a Maria é
simbolizada pela Anunciação. E a passagem de Maria a Sapientia é simbolizada pela
Ascensão de Maria.

141 A prática da psicoterapia, OC 16, par. 361. Ver também os comentários de Marie-Louise VON FRANZ
sobre estes estágios em JUNG, O homem e seus símbolos, p. 185s.
142 Ver NEUMANN, História da origem da consciência, parte II, A.

162
Figura 13-2: Sapientia como mãe dos sábios.

Ora, não se esqueçam que ainda estamos falando a respeito de Sal, e acredito que pode ser
interessante reunir algo da proverbial sabedoria acumulada associada ao sal. Fui consultar a
obra Bartlett´s familiar quotations e encontrei muita coisa referente ao sal. Quero dar
somente alguns exemplos, de forma que vocês possam apreciar o sabor de como o sal salgou
nossa linguagem... Aqui está, por exemplo, KIPLING, em “Departmental Ditties”:
Comi teu pão e teu sal.
Bebi tua água e teu vinho.
Nas mortes que morreste estive a teu lado,
E as vidas que viveste foram todas minhas.

Então aqui o sal é equivalente à alma: “eu partilhei tua vida, a vida da tua alma, comi teu pão
e teu sal”.
E um antigo ditado espanhol afirma que “Um beijo sem um bigode é como um ovo sem sal”.
E Robert Frost, em “To earthward”, diz:
Agora não há mais alegria nem sal
Que não sejam destruídos pela dor,
Cansaço e culpa;
Eu anseio pela mácula

De lágrimas, a marca deixada


Por amor quase demais,
A doçura da casca amarga
Que arde no dente.

Este é um exemplo de sal como amargor, e também uma alusão à coagulatio.

163
Na antiga Roma o sal constituía uma parte do pagamento dado aos soldados. Petronius fala
de um certo homem que “não era digno de seu sal”. A nossa palavra “salário” originalmente
significou “sal-dinheiro”.
Henry van Dike:
A individualidade é o sal da vida comum. Você pode viver em meio a uma multidão, mas não
precisa gostar dela, e nem subsistir às custas dela.

Mateus 5, 13:
Vós sois o sal da terra; mas se o sal se tornar insosso, com que o salgaremos?

Neste caso o sal é igual à anima mundi. O Sal representa fragmentos da Divindade — “o sal
da terra”.
Gênesis 19, 26:
[A mulher de Ló] olhou para trás e converteu-se numa estátua de sal.

Isso diz respeito ao sal enquanto preservativo: alguém que é tranformado numa estátua
eterna.
Paulo, em Colossenses 4, 6:
A vossa palavra seja sempre agradável, temperada com sal.

Nesse contexto, o sal está equiparado com a sabedoria.


Aqui está um poema de Isaac Hill Bromley:
Quero mel do Himeto,* quero sal das salinas do Ático;
Estou farto do lugar-comum, essa estagnação precisa cessar!
Cansam-me estes discursos de jantar, tediosos, superficiais e medíocres:
De cem mil mesas de banquete levanta-se um lamento melancólico,
Assim como em cem mil banquetas sentam-se vestidos de gala
A saudar cada castanha mofada com uma expressão de angústia.

O poeta clama pelas “salinas do [mar] Ático. Aqui também o sal é equiparado à alma.
Em um soneto de John Masefield:
Vida, o que sou eu? Um objeto de sal aguado
Mantido coeso por células incansáveis,
Que trabalham não sabem por que e nunca param.
E eu mesmo sem saber onde o mestre delas mora.

Aqui o sal representa Eros enquanto força coesiva por meio da qual “o sal aguado” mantém
coesas as “células incansáveis”.
Acho muito interessantes as inúmeras facetas que podem surgir. Eis aqui outra, também de
Kipling em sua obra “A viúva de Windsor” (referindo-se à rainha):
Andar largo tem a viúva de Windsor,
pois que metade da criação já lhe pertence.

*Himeto: Monte situado perto de Atenas, na Grécia. Segundo a mitologia clássica, nele habitavam abelhas que
produziam o mel mais sublime de toda a Grécia. [n. do t.]

164
Bens que, com espada e fogo, para ela conquistamos,
e depois os salgamos com nossos próprios ossos.

Oliver Goldsmith, em “Retaliation”:


Nosso amigo Garrick parece uma salada, pois nele encontramos
Óleo, vinagre, açúcar e insípida [saltness, sem sal] concordância.

E finalmente, prestem atenção à fala de Hamlet no ato 1, cena 2, relativa ao amargor en-
quanto sal:
Fragilidade, teu nome é mulher!
Um pequeno mês, antes mesmo que gastasse
As sandálias com que acompanhou o corpo de meu pai,
Como Níobe, chorando pelos filhos, ela, ela própria —
Ó Deus! Até uma fera, a quem falta o sentido da razão,
Teria chorado um pouco mais — ela casou com meu tio,
O irmão de meu pai, mas tão parecido com ele
Como eu com Hércules! Antes de um mês!
Antes que o sal daquelas lágrimas hipócritas
Deixasse de abrasar seus olhos inflamados,
Ela casou. Que pressa infame,
Correr assim, com tal sofreguidão, ao leito incestuoso!
Isso não é bom, nem vai acabar bem.
Mas estoura, meu coração! Devo conter minha língua! *

Vejam que há vários sabores do simbolismo do sal espalhados por aí.

* Tradução de MIllôr Fernandes [n. do t.].

165
ÍNDICE

PRÓLOGO DO EDITOR 3

NOTA DO AUTOR 5

1. INTRODUÇÃO E PARÁGRAFOS 1-12 7

2. PARÁGRAFOS 13-30 24

3. PARÁGRAFOS 31-40 39

4. PARÁGRAFOS 41-45 52

5. PARÁGRAFOS 46-100 63

6. PARÁGRAFOS 101-129 77

7. PARÁGRAFOS 130-148 89

8. PARÁGRAFOS 149-168 99

9. PARÁGRAFOS 169-205 111

10. PARÁGRAFOS 206-238 122

11. PARÁGRAFOS 239-268 133

12. PARÁGRAFOS 269-308 144

13. PARÁGRAFOS 309-340 156

166

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