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Edward F.

Edinger

SEMINÁRIOS AION
Explorando o Self no Aion
de C. G. Jung

EDITADO POR DEBORAH A. WESLEY


tradução de Augusto Reis
tratamento de imagens por Felippe Romanelli
2014

Esta tradução foi feita para uso pessoal e restrito


e não se destina a ser comercializada ou vendida de nenhuma maneira.
EDINGER, Aion lectures

PREFÁCIO DO EDITOR

V
ários leitores debruçam-se sobre o Aion de C. G. Jung e logo colocam-no de lado, intimida-
dos pela torrente de material de autores clássicos, cristãos, gnósticos e alquímicos. Não é
fácil unificar as várias fontes de material e seguir o fio do pensamento de Jung, e até hoje
quase nada surgiu que pudesse ajudar os leitores através deste terreno bruto. Apesar da importância
do assunto — as modificações na imagem de Deus durante os 2.000 anos da era cristã —, e de sua
relevância à medida que este milênio chega ao fim, o livro ainda não foi amplamente lido.

Finalmente, entre 1988 e 89, surgiu um guia para o Aion sob a forma de uma série de seminários
dados por Edward Edinger. A audiência encontrava-se apinhada numa sala de conferências no C. G.
Jung Institute de Los Angeles, e consistia basicamente de terapeutas em treinamento para se torna-
rem analistas, embora houvesse também alguns analistas experientes e outras pessoas interessadas.

A atmosfera era de concentração, embora uma corrente de excitação pairasse no ar. Muitas ques-
tões eram feitas e acontecia um intercâmbio entre os membros da audiência e o Dr. Edinger. De
modo geral, contudo, os presentes simplesmente escutavam, sedentos dos esclarecimentos trazidos
à difícil obra de Jung. Este livro está baseado numa transcrição editada daquelas palestras.1

A situação especial na qual as palestras foram apresentadas deram origem a um texto que, na ver-
dade, abarca dois níveis distintos. Inicialmente Dr. Edinger conduz o leitor através de Aion capítulo
por capítulo, esclarecendo referências difíceis, ampliando e discutindo citações das fontes de Jung,
preenchendo as lacunas de fundo e proporcionando exemplos.

Porém o leitor notará um segundo nível. Muitos dos exemplos do Dr. Edinger surgem a partir de
sua prática analítica, e às vezes sentimos que nos encontramos na presença de um mestre analista
treinando seus aprendizes, pois, no decorrer das palestras, são feitas diversas referências seminais a
respeito da prática da análise profunda.

O texto é suplementado por diagramas que foram usados para ilustrar as palestras originais. Todos
eles foram reconcebidos e redesenhados a partir dos esboços originais do autor por Thornton Ladd,
por cuja generosa ajuda e incansável entusiasmo sou bastante grato.

Deborah A. Wesley
Los Angeles.

1 Fitas de áudio encontram-se à disposição na loja C. G. Jung em Los Angeles.

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AUGUSTO REIS
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NOTA DO AUTOR

P
ode-se afirmar com certeza que o Aion de Jung lançou as bases de toda uma nova
disciplina do conhecimento humano, uma disciplina acadêmica à qual poderíamos
chamar de psico-história arquetípica. Esta ciência encontra-se baseada na aplicação
das descobertas da psicologia profunda aos dados da história cultural. Agora o processo
histórico pode ser entendido como a auto-manifestação dos arquétipos do inconsciente co-
letivo da maneira pela qual emergem e se desenvolvem no tempo e no espaço por meio de
ações e fantasias da humanidade.

Em Aion Jung tomou o arquétipo da imagem de Deus (o Self) como seu objeto de estudo, e
demonstrou de que maneira ele se revelou progressivamente no decorrer do éon cristão.
Trata-se de um trabalho impressionante que faz grandes demandas ao leitor. O presente
livro constitui uma tentativa de atenuar esta dificuldade e de tornar o Aion de alguma ma-
neira mais acessível.

Agradeço calorosamente a Deborah Wesley por sua competência e devoção ao editar este
difícil material.

Edward F. Edinger
Los Angeles.

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AUGUSTO REIS
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O deus mitraico Aion (Roma, séc. II-III)

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PREFÁCIO

A ion: estudos sobre o simbolismo do Si-Mesmo é o volume 9, parte 2, das Obras


Completas de Jung. O livro é um dos últimos projetos de Jung e foi publicado
quando ele tinha 76 anos.

De início deve-se dizer que todas as últimas obras de Jung são bastante difíceis. Após a sua
enfermidade de 1944, quando por assim dizer experimentou um novo nascimento, Jung
decidiu que a partir de então escreveria da maneira que julgasse adequada. A partir daquele
momento, seus leitores teriam então de se alçar ao seu nível de compreensão, em lugar de
ele, Jung, descer a grandes profundidades para equiparar-se ao entendimento de seu públi-
co, o que representa um fardo extra aos leitores das obras mais tardias.

Minha intenção é tornar o material de Jung mais acessível aos leitores modernos através da
ampliação de seu fundo histórico e também demonstrando de que maneira o Self se mani-
festa psicologicamente na experiência cotidiana.

Para a leitura do Aion, sugiro três princípios guias. O primeiro é reconhecer a magnitude de
Jung. Antes de começar o estudo do livro, devemos nos dar conta de que a consciência de
Jung supera enormemente a nossa. Se ele expressa alguma ideia de uma forma que parece
desnecessariamente difícil, a atitude adequada a ser assumida é a de que ele sabe o que está
fazendo, e a de que sabe alguma coisa que não conhecemos. A profundidade e fôlego de
Jung são absolutamente assustadores e, diante dele, tornamo-nos todos seres liliputianos,
de maneira que quando nos encontramos com Jung sentimo-nos inferiorizados, e obvia-
mente ninguém gosta disso. Assim, para ler Jung de maneira produtiva, devemos começar
aceitando a nossa própria pequenez; só então nos tornaremos capazes de aprender.

O segundo princípio é compreender o método de Jung. Especialmente em suas últimas


obras, Jung escreve a respeito da psique de uma forma que eu chamo de “maneira apresen-
tativa”. Por esta expressão quero dar a entender que Jung confronta-nos com os fatos psí-
quicos puros em vez de teorias a respeito dos fatos. Ora, estamos tão acostumados a viver
a partir de um contexto conceitual que acabamos por ser displicentes quando nos encon-
tramos com os fatos brutos. E por não estarmos familiarizados com os fatos psíquicos que
Jung nos apresenta, eles acabam por parecer estranhos e desconectados entre si. Nossa
tarefa, então, é a de tornarmo-nos habituados com os fatos que Jung nos apresenta, pois à
medida que conseguimos fazer isso, as conexões internas e todo o método apresentativo

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acaba por se tornar visível. Este processo acaba por nos conduzir a um modo de pensa-
mento diferente do usual; estamos acostumados a usar o pensamento linear, enquanto que
a apresentação dos fatos psicológicos pelo método da amplificação pode ser descrita como
“pensamento em agrupamento”,2 uma forma de associar ideias em que há uma imagem
central que acaba por formar um feixe de imagens correlatas conectadas a ela.3 É muito
importante que estejamos acostumados ao pensamento em agrupamento porque esta é a
maneira de amplificar e assimilar imagens oníricas. Se não estivermos inteiramente confor-
táveis com esse modo de trabalho, jamais seremos capazes de penetrar no significado dos
sonhos.

Uma vez ultrapassados os dois primeiros capítulos, Aion passa a tratar de temas e imagens
da psique objetiva. Sugiro que à medida que você leia o material apresentado em Aion você
se indague qual o tema que está sendo apresentado. O método de Jung é calculado para
nos ensinar a pensar de maneira temática, de forma que quando percebemos um tema ou
uma imagem, a sua subsequente amplificação acaba por conduzir a outras imagens correla-
tas, e assim por diante, de maneira formar um agrupamento progressivamente maior. As-
sim, o estudo do Aion pode ajudar o leitor a aprender de que maneira perceber e extrair o
tema e a imagem embutidos no corpo de um dado material. Inicialmente isto não é fácil de
se fazer, mas é importante aprender esta técnica porque quando nos defrontamos com um
sonho e não somos capazes de reconhecer o seu conteúdo temático, ficamos perdidos. É
bem verdade que o paciente sempre poderá ajudar com suas associações ao material, mas
permanece o fato de que sem que o tema seja reconhecido, em nada teremos o que contri-
buir. Já se localizarmos o tema do material, então poderemos oferecer paralelos.

O terceiro princípio é aquele que resolvi chamar de “princípio do bolo de frutas”. Por esta
expressão quero dar a entender que você deve ler Jung da maneira pela qual comeria um
pedaço de um bom bolo de frutas: muito devagar. A leitura do livro é excepcionalmente rica
e excepcionalmente prazerosa pelo fato de ser a própria riqueza da psique que está sendo
apresentada. Justamente por esta razão o texto é bastante denso, e isso se dá especialmen-
te no Aion. Nele Jung faz somente alusões a vastas áreas de referências simbólicas justa-
mente por não desejar escrever um livro longo demais, e também porque estas áreas já lhe
são tão familiares que se tornaria cansativo entrar em detalhes. Ele somente faz alusões, e
então existem estes núcleos, estes ricos pedaços de nozes e de densas frutas que devem ser
mastigados e digeridos lentamente para poderem ser bem apreciados.

Aion pode ser assimilado somente em pequenos pedaços. Isso significa que devemos ler
uma sentença por vez e tornarmo-nos familiarizados com cada termo e referência de uma
dada sentença. Sempre existirá uma grande tentação, quando encontrarmos coisas que
desconhecemos, de passar por cima delas imaginando que no próximo parágrafo elas serão
esclarecidas. Isso não acontece no Aion. Então, se na leitura do texto passarmos por cima
de questões desconhecidas para nós, em breve estaremos perdidos, de forma que recomen-

2 “Cluster thinking” no original [N. do T.]


3Ver abaixo, p. 9. Outros exemplos podem ser encontrados em meu Anatomia da psique: simbolismo alquí-
mico na psicoterapia, onde antes de cada capítulo existe um agrupamento de imagens associadas a uma de-
terminada operação alquímica.

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do com insistência que durante o estudo trabalhem sempre com um dicionário e uma enci-
clopédia à mão, e que sempre que encontrarem uma referência ainda não conhecida se
socorram nestas obras. Isso significa que vocês se verão consultando pelo menos um dicio-
nário de latim e que estarão pesquisando assuntos históricos em considerável medida, já
que Aion em parte é um livro sobre história. Também considero importante perceber que
Jung está discutindo a história cultural da raça humana como se ela fosse a história clínica
de um determinado paciente. Tudo se passa como se Jung tivesse às mãos toda a história
do paciente enquanto nós não a conhecêssemos, de maneira que nos cabe preencher as
lacunas à media que avançamos para apreender o sentido geral.

A decisão que tomei de apresentar este material começou com um sonho que tive em se-
tembro de 1987:

Jung está falando a respeito da criação de Aion. Ele diz que, enquanto escrevia, recebeu uma
grande quantidade de críticas devido a seu conteúdo. Mesmo assim ele se manteve firme para
“completar a sua conta de caução com a história”.

Toda pessoa que já comprou ou alugou uma casa sabe o que é uma conta de caução. Uma
caução é um acordo escrito tal como uma escritura ou título que é colocado sob a custódia
de um terceiro, e que somente é executada sob determinadas condições. Então meu sonho
nos diz que Jung colocou Aion em caução junto à história. Isso significa que os beneficiários
da caução, os receptores deste volume, terão que preencher determinadas condições antes
que a obra esteja disponível para eles. Ora, somos nós os beneficiários, os credores desta
caução com a história. Minha impressão é a de que precisamos nos esforçar na compreen-
são do livro para que possamos executar a caução. Aion será uma obra que permanecerá
esquecida nas estantes das bibliotecas a menos que os beneficiários dela preencham as con-
dições necessárias para compreender tudo o que ela significa. Todos nós gostaríamos que
Aion estivesse imediatamente disponível para nós, assim como gostaríamos de nos mudar
imediatamente para a nossa casa nova, mas ela ainda se encontra em caução, por assim
dizer.

Jung também teve um sonho referente a Aion. Numa carta a Victor White, de 19 de de-
zembro de 1947, ele escreveu:

Pouco depois eu lhe escrevi dizendo que precisava escrever um novo ensaio, mas não sabia so-
bre o quê. Ocorreu-me então que poderia discutir em pormenores alguns pontos como anima,
sombra e, por último, mas não em último lugar, o si-mesmo [tratava-se dos capítulos introdutó-
rios do Aion: O eu; A sombra; Sizígia: anima e animus; O si-mesmo. N. do T.]. Eu me opus a is-
to, porque queria descansar a minha cabeça. Ultimamente vinha sofrendo de grave insônia e
queria evitar qualquer tipo de esforço mental. Apesar de tudo, senti uma força cega me impelin-
do a escrever, sem saber para onde isto me levaria. Somente após ter preenchido umas 25 lau-
das começou a crepuscular em mim que Cristo — não o homem, mas o ser divino — era o meu
objetivo secreto. Isto me sobreveio como um choque, e me senti completamente incapaz de se-
melhante tarefa. Um sonho então me contou que meu pequeno barco de pesca havia naufraga-
do e que um gigante (que eu conhecia de um outro sonho de 30 anos atrás) me havia dado uma
embarcação nova e bonita, duas vezes maior que meu barco anterior. Então compreendi que na-
da poderia fazer. Tinha de continuar. Meu escrito levou-me ao arquétipo do homem-Deus e ao

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fenômeno da sincronicidade que está ligado ao arquétipo. Assim cheguei a discutir o Ιχθυς (ich-
tis) e o então novo éon de  00 (seguindo  300), a profecia do Anticristo e o desenvolvimento
deste a partir do ano 1.000 d.C., e misticismo e alquimia até os desenvolvimentos recentes que
ameaçam aniquilar o éon cristão.4

Outro comentário relativo ao Aion foi feito a Margaret Ostrowski-Sachs numa conversa
particular que foi por ela anotada. Jung disse a ela:

Antes de minha doença [em 1944] eu com frequência me indagava se me seria permitido publi-
car, ou até mesmo comentar meu conhecimento secreto. Mais tarde eu viria a registrá-lo todo no
Aion. Percebi que era meu dever comunicar todas essas ideias, embora tivesse dúvidas se seria
capaz de expressá-las. Entretanto, durante minha enfermidade, recebi a confirmação de tudo e
então soube que tudo fazia sentido e que tudo estava certo.5

4 C.G. Jung: cartas. Vol. II (1946-1955), p. 86.


5 Retirado de Conversations with C. G. Jung, p. 68

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Figura 1. Agrupamento Aion


Principais ideias e imagens relacionadas à palavra grega Aion (αιων)
da maneira pela qual tem sido usada através dos séculos.

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INTRODUÇÃO

O
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título Aion refere-se a uma imagem simbólica bastante complexa que evoluiu ao
longo dos séculos e que possui um rico conjunto de significados. Todas as palavras
são organismos psíquicos e cada uma delas tem em seu núcleo alguma experiência
humana fundamental, e sempre haverá uma imagem de tal experiência embutida na etimo-
logia da palavra. À medida que traçamos a forma pela qual o uso de uma palavra evolui,
todo o organismo se revela. A palavra Aion é exemplo bastante rico deste processo.

O idioma grego antigo tem três palavras para expressar o tempo: chronos, kairos e Aion.
Chronos refere-se ao tempo quantitativo e linear; pode-se dizer que este seria o termo cien-
tífico. Kairos, por sua vez, refere-se a um momento especial ou ao conteúdo especial de um
determinado tempo; pode-se dizer que expressa o momento certo, o tempo de realização,
por exemplo quando Cristo diz: “Meu tempo [kairos] ainda não chegou”. Já o terceiro ter-
mo, Aion, é mais difuso e ambíguo, mas passou a significar um período muito longo de
tempo, algo como uma era, ou mesmo a eternidade ou o para sempre. A palavra Aion
encontra-se associada a outras palavras gregas que também devem ser mencionadas: Aio-
nios, que significa sem começo ou fim, eterno ou para sempre; e também aidios, que signi-
fica eterno. Ambas as palavras têm como raiz o vocábulo Aion.

O uso da palavra Aion recua até Homero, em cuja obra aparece frequentemente como
sinônimo de psique, ou alma, ou vida. Em Hesíodo ela denota a duração de uma vida; e em
Ésquilo ela se refere a uma geração, de maneira a representar o tempo que uma pessoa já
viveu ou viverá. Assim, ela pode estar relacionada tanto ao passado quanto ao futuro, e da
maneira como os filósofos a utilizaram ela veio a se referir tanto ao futuro distante quanto à
eternidade.

Na Ilíada de Homero, ao comentar acerca da morte de um guerreiro, Hera diz a Zeus:


“Quando sua psique e seu Aion tiverem-no deixado, permita que a morte o leve embora”. 6
Aqui o termo significa a duração da vida, uma realidade separada, uma espécie de parceiro
interior que é praticamente idêntico à alma. Já em outra passagem Homero identifica Aion
com uma água interior que é eliminada em forma de lágrimas. Por exemplo, quando Odis-
seu está pranteando sua volta ao lar, Homero diz: “Seus olhos jamais enxugavam de lágri-
mas, e seu doce [Aion] esvaía-se enquanto se lamentava ansiando por seu retorno”.7 Aqui

6 Ilíada, canto 16, linha 453-4.


7 Odisséia, canto 5, linhas 151-3.
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surge a ideia de que Aion é uma espécie de água interior e de que sua quantidade é limita-
da: quando se esgota, a pessoa morre.

No Agamenon de Ésquilo, Aion significa bastante claramente um parceiro de vida: Aion é a


fonte da inspiração do poeta. Na obra, o coro dos anciãos exclama: “O Aion que cresceu
comigo, inspirou-me acerca dos deuses, soprou sobre mim a persuasão e o poder da can-
ção”.8 Aqui o autor está dizendo que “meu Aion interior inspirou-me a ser um poeta e a
cantar minha canção”. Em outra passagem de Ésquilo, a palavra significa uma geração:
“Antigo é o conto de pecado que conto / embora rápido em retribuição: / até o terceiro
Aion ele persiste”.9 Aqui a palavra refere-se a uma geração: a culpa é passada de uma ge-
ração para a outra, até a terceira. Em Timeu, Platão diz a respeito da criação do universo:

Ora, quando o Pai que o engendrou compreendeu que se movia e vivia, esse Mundo, imagem
nascida dos deuses eternos, rejubilou-se e, em sua alegria, refletiu sobre os meios de torná-lo a-
inda mais semelhante a seu modelo. E assim como esse modelo resulta ser uma alma imortal, es-
forçou-se, na medida de seu poder, a tornar imortal igualmente a esse todo. Ora, é a substância
da alma-modelo que era eterna, como vimos, e adaptar essa eternidade inteiramente a um Mun-
do engendrado era impossível. Por isso, seu autor preocupou-se em fabricar uma certa imitação
móvel da Eternidade [Aion] e, organizando todo o Céu, fez, da eternidade una e imóvel, esta i-
magem eterna que progride segundo a lei dos números, isso a que chamamos o Tempo [ chro-
nos].10

Em outras palavras, Deus resolveu criar uma imagem móvel da eternidade, e a essa imagem
chamamos Tempo.

Posteriormente Plotino veio refinar essa ideia de que o tempo é uma imagem móvel da
eternidade na seguinte passagem:

Se eternidade [Aion] é a vida em repouso, imutável, idêntica a si mesma e ilimitada, e se o tempo


deve existir como uma imagem da eternidade (...) então podemos afirmar que existe uma outra
vida inferior [correspondente à vida superior. A vida inferior possui, em vez de uma unidade] sem
distância ou separação, uma .. unidade (...) por continuidade; e em vez de um todo ilimitado,
uma contínua e ilimitada sucessão, e em vez de um todo todo-junto, um todo que está e sempre
estará se manifestando, parte após parte.11

Constitui uma profunda noção psicológica que a eternidade, ou Aion, é uma imagem da
totalidade fora do tempo, enquanto o tempo é uma imagem da mesma totalidade espalhada
numa sequência temporal. Isto corresponde exatamente à observação de Jung em Mysteri-
um Coniunctionis: “esse um-depois-do-outro aparente, na realidade é um-ao-lado-do-
outro”.12

Dissemos que Aion também era entendido como uma água interior, de maneira que após a
morte do indivíduo essa água interior era abandonada sob a forma de serpente; imaginava-

8 Agamenon, linha 105, modificada.


9 Sete contra Tebas, linhas 742-4.
10 Timeu, 37D.
11 Enéadas, III, 7, 11.
12 OC 14/1, par. 200 [OC refere-se sempre às Obras Completas de Jung].

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se a serpente como sendo a alma do falecido, que eventualmente seguia habitando seu tú-
mulo. Todas estas conexões estão incluídas na figura 1, um diagrama de agrupamento que
mostra as principais referências a Aion.

Porém este organismo psíquico chamado Aion também aparece em várias passagens bíbli-
cas. O Velho Testamento foi traduzido para o grego no terceiro século a.C., e a palavra
Aion aparece ali. Iahweh diz a Abraão em Canaã: “Toda a terra que vês, eu ta darei, a ti e
à tua posteridade, por um Aion” (Gen. 13:15, ASV).13 Aqui a tradução usual é “para sem-
pre”. Também Iahweh diz a Moisés a respeito da celebração da Páscoa: “Observareis esta
determinação como um decreto para vós e vossos filhos, por um Aion” (Ex. 12:24, BJ).
“Para sempre” é a tradução de Aion, mas aqui vocês podem ver que seu significado não é
exatamente “para sempre”, pois isso é o que ela representa agora para o homem ocidental,
embora não o que tenha significado antigamente.

Também há alguns interessantes usos da palavra no Novo Testamento. Por exemplo: “Se
alguém disser uma palavra contra o Filho do Homem, ser-lhe-á perdoado, mas se disser
contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado, nem neste Aion, nem no vindouro” (Mat.
12:32, ASV). Aqui a tradução usual é “nem neste mundo, nem no vindouro”. Também em
outra parte: “Da mesma forma que se junta o joio e se queima no fogo, assim será no fim
deste Aion” (Mat. 13:40 ASV).

Em Hebreus 11:3 (ASV): “Foi pela fé que compreendemos que os Aions foram organizados
por uma palavra de Deus” (traduzido por “mundos”). E a Prece do Senhor termina assim:
“Pois teu é o reino, o poder e a glória aos Aions” (Mat. 6:13, ASV).

Voltando-nos para outro texto, cito a inscrição em grego na Pedra Bollingen de Jung, da
maneira como é usualmente traduzida: “O Tempo é uma criança — brincando como uma
criança — jogando um jogo de tabuleiro — o reino da criança”.14 Como tradução para o
alemão, Jung sugeriu a palavra zeit, que em português é “tempo”, embora a palavra grega
que dê início à inscrição na pedra seja Aion. De forma que a frase pode ser lida assim: “Ai-
on é uma criança jogando um jogo de tabuleiro”. A palavra “tempo” não é precisamente
correta, e provavelmente seria melhor dizer “A era, o Aion, é uma criança jogando um jogo
de tabuleiro”.

No sincretismo tardio, Aion acabou por se tornar o nome de uma divindade, como é mos-
trado no frontispício do livro Aion de Jung (e na figura acima). Trata-se do assim chamado
deus mitraico Aion, a quem Franz Cumont descreve nas seguintes palavras:

No alto da hierarquia divina e na origem das coisas, a teologia mitraica (...) colocava o Tempo i-
limitado. Às vezes ele era chamado de Aion (...) Era representado como um monstro humano
com cabeça de leão e o corpo envolvido por uma serpente. A multiplicidade de características
destas estátuas visa reproduzir a natureza caleidoscópica do caráter do deus. A figura carrega o

13 As referências às edições bíblicas são identificadas por abreviações da maneira que se segue: BJ, Jerusalem
Bible; AV, Authorized (King James) Version; DV, Douay Version; NEB, New English Bible; ASV, American
Standard Version; RSV, Revised Standard Version.
14 Jung, Memórias, sonhos, reflexões, p. 199.

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cetro e os raios da soberania divina,15 e segura em cada mão uma chave enquanto monarca dos
céus cujos portais ele abre. As asas simbolizam a rapidez de seu voo. O réptil que envolve o cor-
po tipifica o curso tortuoso do Sol na eclíptica; e os símbolos do zodíaco gravados no corpo e os
emblemas das estações que os acompanham representam os fenômenos celestes e terrestres que
sinalizam a eterna passagem dos anos. Aion cria e destrói todas as coisas; é o Senhor e Mestre
dos quatro elementos (...) Às vezes é identificado com o Destino.16

A palavra “destino” acima pode ser entendida como a duração de uma vida, outro termo
que pertence ao mesmo agrupamento simbólico. Então Aion também representa o destino,
e ao incluir todos estes significados, Aion se transforma na divindade total.

Esta forma de representar o Aion tem sua origem na Gnose, na qual a ilimitada divindade
inicial emana de si própria uma série de trinta Aions. A emanação gnóstica dos Aions cons-
titui outra amplificação ou elaboração deste rico e complexo organismo psíquico a respeito
do qual Jung escreve. Hans Jonas descreve o papel do termo Aion no gnosticismo da se-
guinte maneira:

Em invisíveis e inefáveis alturas existe um perfeito Aion pré-existente. Seu nome é Proto-Início,
Proto-Pai e Abismo [esta é a divindade original e primordial chamada Aion]. Nada pode abarcá-
lo. Durante imensuráveis eternidades ele permaneceu em repouso, e junto com ele estava (...)
Pensamento, também chamado Graça e Silêncio. E deu-se que este Abismo resolveu projetar pa-
ra fora de si mesmo o começo de todas as coisas, e então lançou esta projeção, como se fora
uma semente, no ventre de Silêncio que com ele estava, e ela concebeu e deu à luz a Mente
(Nous, masculino), que é semelhante e igual a seu progenitor e sozinho compreende a grandeza
do Pai. Mente (ou Nous) também é chamado Primogênito, Pai e Começo de todas as coisas.
Juntamente com ele Verdade (Aletheia: feminino) também foi produzida, e esta constitui a pri-
meira tétrade: Abismo e Silêncio, e depois Mente e Verdade.17

Esta primeira tétrade é um par de duas sizígias (sizígia significa par) e outros Aions foram
gerados a partir deste segundo par. Dele nasceram Homem e Igreja (que, de novo, constitui
um par macho/fêmea), e também Verbo e Vida. Estes então representam mais quatro sizí-
gias, que unidas às outras são chamadas de ogdóada, o primeiro Oito.

Estes Aeons, produzidos para a glória do Pai, desejaram por sua vez glorificar o Pai por meio de
suas próprias criações, e produziram outras emanações. De Verbo e Vida surgiram dez Aeons
adicionais, e de Homem e Igreja outros doze, de forma que a partir do Oito, Dez e Doze foram
constituídos (...) trinta Aeons agrupados em quinze pares [e a totalidade deles é chamada de Ple-
roma].18

Esta imagem básica constitui algo fundamental para Jung, pois ele com frequência se utiliza
de parte desta terminologia, como a palavra Pleroma, por exemplo. Também o segundo
capítulo de Aion é chamado Sizígia. Ou seja, jamais será possível compreender o que isso

15 Na estátua reproduzida no frontispício de Aion os raios encontram-se quebrados, embora possam ser vistos
em outras representações.
16 The Mysteries of Mithra, p.107-8; na tradução brasileira, Mistérios de Mitra, p. 77-8.
17 The Gnostic Religion, p. 179s.
18 Ibid., p. 180.

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significa a menos que estejamos familiarizados com esta grande concepção gnóstica acerca
da origem das coisas.

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PRÓLOGO DE JUNG
AO AION
2
No seu prólogo ao Aion Jung afirma que o tema deste livro é a mudança da situação psí-
quica no éon cristão que coincide com a concepção astrológica do mês platônico de peixes
ou, em outras palavras, de Peixes.

A noção de Mês Platônico está baseada no fenômeno astrológico denominado precessão


dos equinócios. A figura 2 descreve a forma pela qual a terra, o sol e o círculo do zodíaco
se dispõem em diferentes épocas do ano. O círculo maior representa o círculo do zodíaco
nos céus, e pode-se imaginar isso como sendo o horizonte das estrelas fixas. No centro da
figura encontra-se o sol, tendo o planeta terra orbitando à sua volta pelo período de um
ano. Pode-se notar que, a cada dado período do ano, o sol, da maneira como é visto a par-
tir da terra, terá em seu horizonte um dos signos zodiacais.

Há muito tempo atrás, por ocasião do equinócio da primavera, o sol parecia estar no signo
de Áries, o carneiro. Contudo, devido à precessão dos equinócios, acaba por acontecer
uma minúscula variação ou mudança do mecanismo celestial. Este mecanismo não é abso-
lutamente rigoroso, de maneira que após um longo período de tempo o sol modifica sua
posição em relação ao horizonte dos signos zodiacais. No equinócio da primavera do ano 1
d.C., logo no início do éon cristão, o sol era visto como já tendo abandonado o signo de
Áries e ingressado no signo de Peixes. Hoje, 2.000 anos após, o sol se encontra prestes a
abandonar o signo de Peixes e ingressar no signo de Aquário.

Da mesma maneira, se retornarmos ao ano 2.000 a.C., veremos que o sol acabava de dei-
xar o signo de Touro. Este movimento do sol através de cada signo zodiacal é chamado de
Mês Platônico, e cada mês platônico leva aproximadamente 2.000 anos. Então, para que
um circuito completo se dê e forme um Ano Platônico, são necessários 26.000 anos terres-
tres. A este fenômeno astronômico os astrólogos associaram determinados significados, e
Jung atribui um significado sincronístico. O éon cristão, que corresponde sincronisticamente
ao período de 2.000 anos durante o qual o sol ocupa o signo de Peixes, representa o mês
platônico que agora caminha para o fim. É a isto que Jung se refere quando no Prólogo
comenta a mudança da situação psíquica no éon cristão (que coincide com a concepção
astrológica do mês platônico de Peixes).

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Figura 2. Precessão dos equinócios


A precessão astronômica dos equinócios, com o sol ao centro, a terra or-
bitando à sua volta, e, no círculo externo, o horizonte das estrelas fixas,
vistas da terra sob a forma de constelações. As linhas pontilhadas indicam
de que maneira o sol é visto a partir da terra em relação às várias conste-
lações em diferentes épocas do ano. As linhas cheias mostram de que
maneira a posição aparente do sol no equinócio da primavera deslocou-se
através dos milênios até hoje parecer que está deixando Peixes e entran-
do em Aquário.

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Há também outras duas importantes afirmações no Prólogo que merecem um comentário


de nossa parte. Em uma delas Jung diz: “Escrevo como médico, com o senso de responsa-
bilidade de um médico, e não como partidário de um credo religioso” (pág. ix). A palavra
no original alemão é bekenner, e talvez possa ser traduzida como “alguém que professa
uma fé”. De forma que Jung anuncia que ele escreve como médico e não como prosélito.
Entendo isso como se Jung estivesse afirmando que fala a partir de um ponto de vista em-
pírico e objetivo correspondente a uma atitude médica, e também de que afirma estar sujei-
to à ética médica que obriga a estarmos comprometidos, antes de mais nada, com a saúde
e bem estar do paciente, e jamais causar dano a ele. Jung está tentando aqui ajudar a curar
aquilo que ele chama de “psicoses utópicas de massa de nossa época”.

Esta observação a respeito do senso de responsabilidade de um médico toca numa impor-


tante questão a respeito da qual Jung estava agudamente consciente: o problema de escre-
ver para uma audiência heterogênea. Qualquer pessoa pode ler um livro de Jung, o que
significa que aquilo que ele tem a dizer está sendo dirigido simultaneamente a pessoas de
muito diferentes níveis de desenvolvimento psicológico. Jung estava particularmente atento
a isso porque aquilo que tinha a dizer poderia ser uma panacéia curativa — conhecimento
salvífico — para algumas pessoas, mas também absolutamente venenoso para outras, de-
pendendo da habilidade do leitor de compreender adequadamente aquilo que estava sendo
apresentado. Esta é uma questão bastante delicada e tomaria um grande espaço explicar o
modo de expressão todo particular de Jung em seus escritos mais tardios. Em “Resposta a
Jó”,19 por exemplo, ele fala abundantemente de maneira mitológica. Aqueles que percebem
isso são capazes de captar a mensagem; já aqueles incapazes de compreender esta sutileza
podem se sentir ofendidos. É assim, então, que entendo a afirmativa de Jung “escrevo en-
quanto médico, com o senso de responsabilidade de um médico”.

O outro comentário que merece uma elaboração é:

Também não escrevo como erudito, senão estaria me entrincheirando prudentemente por detrás
dos sólidos muros do campo de minha especialidade e não ofereceria os flancos abertos aos ata-
ques da crítica. (pág. ix-x)

Aqui é feita uma alusão ao fato de analistas jungianos, pela própria natureza de seu trabalho
com a psique, serem invasores dos territórios estabelecidos de outras disciplinas. Os jungia-
nos estão constantemente se aventurando nos campos científicos da história, antropologia,
mitologia e artes para perseguir sua presa, cujas pegadas podem ser encontradas em todos
estes diversos terrenos. O que eles estão perseguindo, obviamente, é a psique objetiva, cujo
rastro pode ser encontrado em todos estes antigos documentos, de maneira que se veem
obrigados a invadir terrenos alheios. Ora, isso torna os analistas jungianos vulneráveis à
crítica dos cientistas acadêmicos que se encontram “entrincheirados” por trás dos “sólidos
muros” de sua especialidade acadêmica.

19 Ver Psicologia e religião ocidental e oriental, OC 11.

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PARÁGRAFOS 1-12

A
3
ion começa com um capítulo sobre o eu. Como o livro é construído da mesma
maneira que a psique, é natural que ele comece com o Eu , que é o primeiro que
encontramos quando começamos a lidar com a psique em nós mesmos e nos ou-
tros. Jung inicia o primeiro parágrafo com uma boa definição:

Entendemos por “eu” aquele fator complexo com o qual todos os conteúdos conscientes se rela-
cionam. É este fator que constitui como que o centro do campo da consciência, e dado que este
campo inclui também a personalidade empírica, o Eu é o sujeito de todos os atos conscientes da
pessoa. Esta relação de qualquer conteúdo psíquico com o Eu funciona como critério para saber
se este último é consciente, pois não há conteúdo consciente que antes não tenha se apresenta-
do ao sujeito.

Jung então prossegue descrevendo de que maneira o Eu assenta em duas bases diferentes,
a somática e a psíquica. No parágrafo 6 ele afirma:

Parece [que o eu] resulta, inicialmente, do entrechoque do fator somático com o mundo exterior,
e uma vez estabelecido como sujeito real, desenvolve-se em decorrência de entrechoques poste-
riores, tanto com o mundo exterior como com o mundo interior.

Todos nós usamos a palavra “eu” de maneira muito livre, e até displicente, embora não
devêssemos, pois quando refletimos a respeito do eu, a respeito de o quê ele é e de sua
existência, vemos que ali há um profundo mistério. Só podemos defini-lo como sendo o
centro da consciência: todo fato consciente deve ser registrado por um Eu para que possa
existir.

Faz pouco tempo que nos demos conta da existência do eu. Em relação à história da cultu-
ra ocidental, o pleno conhecimento do Eu foi descoberto por René Descartes. Não há dúvi-
das de que algumas percepções da identidade consciente individual já tivessem se dado an-
tes dele, mas o pleno conhecimento do Eu só foi descoberto e descrito por Descartes em
seu Discurso do método publicado em 1637.

Descartes começa suas reflexões filosóficas duvidando da existência de todas as coisas. Ele
parte do pressuposto que, em relação a tudo o que conhecemos, alguma divindade malévo-
la teria nos colocado em um estado onírico, de maneira que tudo o que vemos não passa de
uma ilusão ou fantasia, e que portanto não poderíamos estar certos de que qualquer coisa
de fato exista, com exceção de uma coisa que é absolutamente certa: a de que não pode-

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mos duvidar da existência de nosso próprio eu. Sua maneira de expressar esta ideia foi Co-
gito ergo sum, normalmente traduzido por “Penso, logo existo”, o que não é uma tradução
acurada; melhor seria traduzir por “Estou consciente, logo existo”. Este é o fundamento de
toda existência individual: não podemos negar que o Eu existe, já que ele é a sede da cons-
ciência, embora todo o resto possa ser negado.

Uma pessoa culta que tinha algum conhecimento de latim teve um sonho relacionado a
essa questão. O sonho consistia numa sentença latina que começava com a afirmação car-
tesiana Cogito ergo sum e continuava com ergo scivio deo gratias, deus est, que significa
“Estou consciente, logo existo; portanto, conheço, pela graça de Deus, que Deus existe”.
Trata-se de uma interessante adição que o inconsciente moderno fez à descoberta do Eu de
Descartes.

A descoberta cartesiana do Eu torna a acontecer na infância de todos os indivíduos. De


início, a jovem criança refere-se a si mesma na terceira pessoa, mas então, por volta dos
três anos, começa a usar o pronome “eu”. Porém isso não significa que a criança tenha
consciência do eu, pois isto só se dará mais tarde, se é que se dará. Para Jung isso aconte-
ceu com a idade de onze anos. Eis seu relato:

Eu estava percorrendo o longo trajeto entre Klein-Hüningen, o lugar onde morávamos, e a esco-
la na Basiléia, quando então tive, súbita e imediatamente, a sensação arrebatadora de ter emer-
gido de uma névoa espessa. Naquela fração de segundo, tomei consciência de que agora eu era
eu. Era como se atrás de mim houvesse um muro de névoa antes do qual ainda não houvesse
um “eu”. Contudo, neste instante preciso eu encontrei a mim mesmo. Até então eu tinha existi-
do e as coisas somente aconteciam a mim, mas agora eu acontecia a mim. Naquele momento eu
soube: eu sou eu agora, eu agora existo. Até então eu tinha sido levado a fazer isso e aquilo,
mas agora eu tinha volição. Esta experiência pareceu-me extraordinariamente significativa e inu-
sitada: agora havia “autoridade” em mim.20

O que Jung aqui descreve com particular clareza acontece só vagamente a algumas pesso-
as, e jamais a algumas outras. A mim, pessoalmente, jamais aconteceu uma experiência
única e marcante que pudesse corresponder à que Jung descreve acima, mas posso lem-
brar-me que, por volta dos onze ou doze anos, fiquei fascinado pela palavra “eu” e por seu
significado. Eu repetia a palavra de novo e de novo até que obscuras e misteriosas imagens
surgissem. A plena noção de ser um indivíduo isolado e consciente, portador de uma cons-
ciência separada do restante do mundo, representou um profundo mistério para mim, mis-
tério que foi revelado somente pela repetição desta palavra “eu”.

A próxima elaboração filosófica acerca da questão do Eu foi feita por Schopenhauer (se-
guindo a Kant). Schopenhauer, que sempre foi um importante autor para Jung, inicia sua
obra máxima O mundo como vontade e como representação da seguinte forma:

“O mundo é minha representação”. Esta é uma verdade que vale em relação a cada ser
que vive e conhece, embora apenas o homem possa trazê-la à consciência refletida e
abstrata. E de fato o faz. Então nele aparece a clarividência filosófica. Torna-se-lhe claro

20 Memórias, sonhos, reflexões, p. 42.


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e certo que não conhece sol algum e terra alguma, mas sempre apenas um olho que vê
um sol, uma mão que toca uma terra. Torna-se-lhe claro e certo que o mundo a cercá-lo
existe apenas como representação, isto é, tão somente em relação a outrem, aquele que
representa, ou seja, ele mesmo. Se alguma verdade pode ser expressa a priori é essa,
pois é uma asserção da forma de toda experiência possível e imaginável, mais universal
que qualquer outra, mais ainda que tempo, espaço e causalidade, pois todas essas já a
pressupõem (...) . A divisão entre sujeito e objeto (...) é a forma comum de todas estas
classes (...) Tudo o que de qualquer maneira pertence e pode pertencer ao mundo está
inevitavelmente investido desse estar-condicionado pelo sujeito, existindo apenas para es-
te. O mundo é representação.21

Este tema que Schopenhauer elabora de maneira tão vívida representa a distinção entre
sujeito e objeto. Trata-se de um tema crítico para a psicologia jungiana e uma ideia que se
encontra no âmago da tipologia de Jung de extroversão e introversão. O extrovertido é
aquele indivíduo que natural e espontaneamente se relaciona com o objeto. O introvertido é
aquele que de maneira natural e inata se relaciona primariamente com o sujeito. Porém
minha experiência me mostrou que esta distinção é bem mais fácil de ser percebida pelo
introvertido do que pelo extrovertido; na verdade, com muita frequência tenho a impressão
de que os extrovertidos jamais são capazes de realmente perceber a diferença. Contudo, é
absolutamente necessário que uma pessoa saiba diferenciar entre sujeito e objeto caso ela
pretenda distinguir-se da grande sopa coletiva, distinguir-se do estado de participation mys-
tique com o mundo e com todos os objetos que nele existem. Esta apurada capacidade de
distinguir entre sujeito e objeto constitui uma das características do Eu bem desenvolvido.

Como Jung nos fala neste capítulo, o Eu enquanto sujeito da consciência tem dois aspectos.
O Eu é a sede da percepção (ou consciência) e é também o agente da vontade. Isto traz à
tona todo o problema do livre-arbítrio, ao qual Jung se refere no parágrafo 9:

Por definição, o Eu está subordinado ao Self e está para ele assim como qualquer parte está para
o todo. O Eu possui o livre-arbítrio — como se afirma —, mas dentro dos limites do campo da
consciência. Empregando este conceito não estou me referindo a algo de filosófico, mas sim ao
conhecidíssimo fato psicológico da assim chamada decisão livre, ou seja, ao sentimento subjetivo
de liberdade. Da mesma forma que nosso livre-arbítrio se choca com a presença inelutável do
mundo exterior, assim também os seus limites se situam no mundo subjetivo interior, muito além
do âmbito da consciência, ou lá onde entra em conflito com os fatos do Self. E assim como as
circunstâncias exteriores acontecem e nos limitam, assim também o Self se comporta em con-
fronto com o eu, como uma realidade objetiva na qual a liberdade de nossa vontade é incapaz de
mudar o que quer que seja.22

Outra forma de descrever o livre-arbítrio é defini-lo como sendo a libido disponível pelo eu.
Isto é de considerável importância tanto para o nosso autoconhecimento quanto para o
trabalho com pacientes. Convém ter-se uma estimativa, ou pelo menos uma aproximação,

21 The world as will and representation, p. 3.


22 Os leitores notarão que os tradutores de Aion não grafam a palavra “self” com maiúscula quando ela se
refere ao arquétipo. Neste livro, assim como nos mais correntes escritos de Jung, ela será grafada com maiús-
cula para evitar confusão com o eu mundano. (N. do E. americano)

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da extensão de nosso próprio livre-arbítrio e do livre-arbítrio de nosso paciente, pois nin-


guém deve ser responsabilizado por algo que se encontra claramente fora do âmbito de seu
livre-arbítrio.

No parágrafo 11 Jung fala-nos que a liberdade do Eu encontra-se limitada pela sua depen-
dência do inconsciente:

[A descoberta do Self] relativizou a posição até então absoluta do eu, quer dizer: este conserva a
sua condição de centro do campo da consciência; mas como sendo ponto central da personali-
dade isso é questionável. O Eu constitui parte desta personalidade, não há dúvida, mas não re-
presenta a sua totalidade. Como já mencionei, é simplesmente impossível saber até onde vai a
sua participação; em outras palavras, é impossível saber se é livre ou dependente das condições
da psique extra-consciente. Podemos apenas dizer que sua autonomia é limitada e que sua de-
pendência tem sido comprovada de maneira muitas vezes decisiva. Sei, por experiência, que é
melhor não subestimar a dependência do inconsciente. É óbvio que não se pode dizer tal coisa
àqueles que já superestimam a importância do inconsciente. Um critério para saber em que con-
siste a justa medida nos é dado pelas manifestações psíquicas subsequentes a uma apreciação er-
rônea. Sobre isso voltaremos a falar mais adiante.

Esta última sentença merece ser enfatizada, pois eu a considero muito importante para o
trabalho analítico: “Um critério para saber em que consiste a justa medida nos é dado pelas
manifestações psíquicas subsequentes a uma apreciação errônea”.

Ora, o que isso significa? Parece-me que aqui o autor está nos convidando a estabelecer
uma abordagem experimental. Se não conheço com certeza a extensão do livre-arbítrio do
paciente, talvez eu possa testá-lo. Posso experimentar uma determinada atitude e então
observar as consequências psíquicas. Se minha estimativa estiver equivocada, então poderei
corrigi-la. É de suma importância manter uma atitude empírica nestas questões, pois esta-
mos livres para experimentar. Na medida em que estamos conscientes, aquilo que fazemos
é sempre passível de ser corrigido.

De início devemos indagar-nos: “Quanto livre-arbítrio possui o eu com quem estamos falan-
do?”. A seguir, em determinado momento, devemos indagar-nos uma outra questão associ-
ada a esta: “A quem estamos falando?”. Isto porque o fato de a pessoa estar em frente a
nós, olhando para nós e eventualmente até sorrindo para nós não significa, necessariamen-
te, que estejamos falando com o eu. Podemos muito bem estar conversando com um com-
plexo; podemos muito bem estar conversando com a sombra, com a anima ou com o ani-
mus, ou até mesmo com o Self ou alguma combinação desses. E também durante o curso
de uma conversação, a energia para a qual estamos falando, aquele “quem” ao qual nos
dirigimos, pode flutuar bastante.

Isso é algo muito importante que deve ser mantido em mente, de forma a sermos capazes
de modificar nossa maneira de falar dependendo das circunstâncias do interlocutor.

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PARÁGRAFOS 13-42

A sombra
4
T
oda vez que discutirmos sobre a sombra será muito provável que ela se constele em
nós mesmos ou à nossa volta. “Falando no diabo, aparece o rabo”, mas se formos
capazes de lembrar disso, é possível que o diabo não nos ataque por trás. O materi-
al acerca do Eu no ultimo capítulo permaneceu num nível superficial, pois esta é a natureza
do eu: trata-se de um fenômeno superficial. Contudo, para se chegar mais abaixo do Eu
temos que quebrar a capa de gelo; é então que a próxima coisa a ser encontrada na psique
individual é a sombra.

Este breve capítulo do Aion é o mais extenso relato de Jung sobre a sombra, à qual ele se
refere em toda a sua obra, embora jamais de maneira profunda e sistemática. Em Dois en-
saios sobre psicologia analítica ele fala da sombra como estando associada ao inconsciente
pessoal, e também a define como sendo “o lado negativo da personalidade, a soma de to-
das aquelas qualidades desagradáveis que gostaríamos de esconder, somadas às funções
insuficientemente desenvolvidas”.23 Aquilo que Jung chama de “funções insuficientemente
desenvolvidas” eu considero ser uma referência à psique infantil: um aspecto não desenvol-
vido representa uma infantilidade residual.

No parágrafo 17 de Aion Jung trata da projeção da sombra e observa que o efeito de proje-
tar a sombra é isolar o sujeito do meio ambiente, transformando um relacionamento real
em um ilusório. Este é um tema que surge repetidamente no decorrer de toda análise práti-
ca. A todo instante e de novo os pacientes estarão trazendo à sua sessão analítica proble-
mas de relacionamento que, em sua origem, implicam em projeções da sombra. Quando
isso acontece, especialmente quando os sonhos trazem à tona figuras da sombra associadas
às pessoas do meio ambiente do sonhador, a figura da sombra deve ser relacionada à pró-
pria psique do paciente. Uma imagem deste procedimento é dada pelo frasco de refluxo
representado na figura 3. O conteúdo do frasco é aquecido até que o vapor suba; o vapor
então se condensa nas porções superiores e logo é devolvido ao corpo do frasco. É preci-
samente isso que fazemos quando analisamos as projeções da sombra: em vez de permitir
que a projeção vaze para o entorno, nós a devolvemos para a psique do paciente.

23 Dois ensaios, OC 7, par. 103, n. 5.


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Figura 3. O frasco de refluxo


O frasco de refluxo em duas versões: uma de um texto alquímico do sécu-
lo XVII e outra de um moderno laboratório químico. Em cada um dos ca-
sos, o material aquecido na parte baixa do frasco é transformado em va-
por e ascende ao alto do frasco, onde é novamente condensado e se pre-
cipita novamente ao fundo, de onde veio, o que constitui um paralelo ao
trabalho psicológico sobre a sombra projetada.

Um processo como esse só pode ser realizado sucessivamente no paciente que for um au-
têntico candidato para a análise, e não devemos ser excessivamente otimistas na avaliação
de quantos de nossos pacientes de fato o são. Se houver violenta resistência a este proce-
dimento de refluxo, isso significa que a análise não é apropriada para aquele indivíduo. Sig-
nifica que estamos lidando com um Eu fraco, um Eu jovem que ainda não possui a capaci-
dade de assimilar a sombra. É como se a pessoa estivesse navegando em um pequeno bar-
quinho e não fosse capaz de apanhar um peixe de tamanho razoável, pois então seu bar-
quinho naufragaria. Portanto, resistências importantes à análise da sombra devem ser res-
peitadas. O jovem eu, para poder se desenvolver, tem de começar separando-se da sombra
e estabelecendo claramente tudo o que é bom e meritório. Um Eu deste tipo encontra-se na
fase da Confissão Negativa da religião do antigo Egito. De acordo com o Livro Egípcio dos
Mortos, logo após morrer o defunto chega ao tribunal da alma para encontrar Maat, a Deu-
sa da Verdade, e então é obrigado a fazer uma confissão. Eis a confissão que é feita pelo
morto a Maat:

Em nome da verdade venho a ti, e trago diante de ti a Justiça e a Verdade. Em teu nome rejeitei
a maldade. Jamais feri nenhum homem, e nem causei mal aos animais. Jamais cometi um crime
em lugar da Justiça e da Verdade. Jamais tive conhecimento de nenhum mal, e nem agi de ma-
neira insincera. Todos os dias de minha vida trabalhei além do que me cabia. Meu nome jamais
apareceu no Barco do Príncipe. Jamais desdenhei de Deus. Jamais causei dor e miséria, e jamais
fiz aquilo que Deus abomina. Jamais induzi o senhor a ser injusto com seu criado. Jamais fiz al-
guém sofrer. Jamais fiz um homem chorar. Jamais cometi assassinatos ou enganei as pessoas.
Jamais me apropriei das oferendas dos templos e nem dos bolos oferecidos aos deuses. Jamais

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cometi fornicação. Jamais adulterei para mais ou menos as oferendas que eram devidas. Jamais
invadi os terrenos alheios e roubei as colheitas que não me pertenciam. Jamais adulterei os pe-
sos das balanças para enganar o comprador; jamais alterei a indicação do ponteiro da balança
para enganar o vendedor. Jamais desviei o leite da boca das crianças. Jamais privei o gado de
seus pastos. Jamais capturei peixes usando como isca seus próprios corpos. Jamais desviei a á-
gua de onde ela deveria fluir. Jamais apaguei a chama onde ela deveria queimar. Jamais impedi
a procissão dos deuses. Eu sou puro! Eu sou puro! Eu sou puro!

Num caso como este, o Eu precisa ser sustentado e fortalecido antes que qualquer análise
da sombra possa ser feita. Consequentemente, diante de tais pacientes o analista deve entu-
siasticamente concordar que determinadas pessoas são de fato canalhas com as quais o
paciente deve lidar. Além disso, sempre haverá naquelas pessoas ganchos significativos
para tais projeções. Em suma, o peso que pode ser dado à análise de cada pessoa depende
da avaliação do estágio de desenvolvimento do Eu do paciente.

A sizígia: anima e animus

O capítulo de Jung sobre a sizígia começa no parágrafo 20. Primeiro temos que examinar o
termo sizígia: ele significa par ou parelha. Os pares de Aions que a divindade gnóstica ema-
nou eram chamados de sizígias, embora o significado original da palavra seja “submeter a
canga”, ou “cangar, colocar jugo ou canga”. A palavra tem duas origens; o prefixo syn sig-
nifica “junto, juntamente”, e zygon significa canga, que é a barra cruzada de um arreio de
animais de carga ou tração. A barra longitudinal do arreio fica conectada à carroça como
ilustrado na figura 4, e a barra transversal é chamada de “canga”: é na canga que o pesco-
ço dos cavalos ou bois fica preso. O zygon ou a sizígia significa literalmente o par de cava-
los ou bois que se encontram amarrados juntos numa barra única.

Figura 4
Sizígia

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A maneira pela qual Jung usa este termo se refere aos princípios masculino e feminino que
se encontram unidos na psique humana. A figura 5 mostra um esquema teórico da psique
humana, além de ser também uma representação de todo o livro Aion de Jung. No alto
encontra-se representado o eu. A seguir surge a sombra, representada de forma a mostrar
que ela é inevitável e deve-se, por assim dizer, à luz do eu; a sombra pode ser considerada
como uma segunda camada da psique. Mais abaixo ainda encontram-se as sizígias, os prin-
cípios masculino e feminino representados pela anima no homem e pelo animus na mulher.
E finalmente, na parte mais baixa ou profunda da figura, aparece o Self, inicialmente nas
suas manifestações pessoais, e a seguir nas suas manifestações mais coletivas como a histó-
ria, o mundo e, finalmente, o continuum espaço-tempo. Todos estes níveis serão explora-
dos mais detalhadamente adiante.

A figura 5 também ilustra de que maneira os egos masculino e feminino entram em contato
com o Self por meio de seus componentes contra-sexuais. No meio do diagrama está re-
presentado uma espécie de Eu neutro que se situa exatamente entre os princípios masculi-
no e feminino, o que na verdade constitui uma situação teórica que não se encontra na prá-
tica. Do lado esquerdo está o Eu feminino que, para se conectar com o Self, precisa da
ação mediadora do animus. De maneira contrária, à direita, o Eu masculino entra em conta-
to com o Self através da anima.

Jung afirma que, na psique, a anima e o animus são compostos por três fatores: as qualida-
des contra-sexuais do indivíduo, a imagem arquetípica e as experiências pessoais da pessoa
com o sexo oposto (par. 41, nota 5). Os primeiros dois fatores são inatos. Já o terceiro, as
experiências pessoais com o sexo oposto, é adquirido, e, naturalmente, na experiência con-
creta da vida de cada pessoa, estes fatores inatos e adquiridos não se encontram claramente
discriminados, mas sim superpostos e misturados. Quanto ao terceiro fator, o da experiên-
cia pessoal com o sexo oposto, a experiência com a mãe e o pai são de enorme importân-
cia, embora os pais não sejam os únicos a contribuir com as características adquiridas. Para
o homem, além da mãe, os maiores contribuintes com a experiência da anima são a irmã, a
filha, a amante, a primeira esposa e a atual companheira. Todas estas pertencem ao fator
adquirido. Entretanto, para além destas experiências pessoais e específicas da história de
cada homem estão os fatores arquetípicos que eventualmente se expressarão sob a forma
de uma orientação divina e fonte de inspiração, ou então sob a forma de uma sedutora
maldosa, ou mesmo como a personificação do destino da própria vida, e finalmente como
o princípio de Eros.

Na maneira de uma mulher experimentar o animus também haverá fatores similares: antes
de tudo o pai biológico, e a seguir o irmão, o filho, o amante, o primeiro marido e o atual
companheiro, todos pertencentes ao nível adquirido. O nível arquetípico pode ser encontra-
do sob a forma do guia espiritual e fonte de inspiração, ou então como o estuprador malva-
do, ou então na personificação do significado espiritual, e finalmente no princípio de Logos.

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Figura 5. Diagrama da psique


Acima está o Eu unido à sua sombra. Os egos feminino e masculino são
indicados separadamente para mostrar de que maneira cada um deles de-
pende do seu aspecto contra-sexual (animus ou anima) para entrar em
contato com o Self. Mais abaixo, o Self aparece primeiro sob a forma de
manifestação pessoal, e, em níveis mais profundos, sob a forma de aspec-
tos coletivos como história, mundo e Espaço-Tempo.

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Muito importante nesse contexto também são os diferentes estados da relação do Eu com a
anima ou o animus, o que é de grande importância na avaliação de pacientes de análise.
Distingo quatro diferentes estados nesta relação: o estado infantil, o estado projetado, o
estado de possessão e o estado consciente.

O primeiro estado, ou estado infantil, é o estado original do incesto simbólico mãe-filho ou


pai-filha. Jung descreve esta condição para o homem numa longa passagem que é profun-
damente relevante para o nosso trabalho diário de psicoterapia. Esta é a relação infantil de
um homem com a sua anima:

[...] aquilo que encobre, que abraça e absorve aponta inelutavelmente para a mãe, isto é, para a
relação do filho com a mãe real e com a imagem desta, e para com a relação com a mulher que
deve tornar-se mãe de seu filho. Seu Eros é passivo como o de uma criança: ele espera ser cap-
tado, sugado, velado e tragado. Ele procura, de certo modo, a órbita protetora e nutridora da
mãe, a condição de criança de peito, distanciada de qualquer preocupação com a vida e na qual
o mundo exterior lhe vem ao encontro e até mesmo lhe impõe sua felicidade. Por isso não é de
se espantar que o mundo real se lhe retraia.

[...] Não poucas vezes se vê, ao lado do filho, uma mãe que parece não ter a mínima preocupa-
ção com que o filho se torne um homem adulto e viril, uma mãe que cuida de tudo com infatigá-
vel devotamento e que providencia tudo o que possa impedir que o filho torne-se homem e case-
se. Observa-se aqui o conluio secreto entre mãe e filho, e o modo pelo qual ela ajuda o filho a
mentir perante a vida. [...] Na verdade, todo filho gostaria de tocar o real com as mãos, de abra-
çar a terra, de fecundar o campo do mundo. Mas ele se torna capaz apenas de impulsos impaci-
entes, pois a secreta recordação de que pode receber de presente (por parte da mãe) o mundo e
a felicidade paralisa suas forças propulsoras e sua perseverança. O pedaço de mundo real com o
qual se encontra, como acontece com toda criatura, jamais é de todo sincero, pois não se entre-
ga a ele nem lhe é benevolente; esse pedaço de mundo real com o qual o homem se encontra
comporta-se de maneira áspera e rude e quer ser conquistado, pois só se submete a quem é for-
te. Esse pedaço reclama a virilidade do homem, seu entusiasmo e sobretudo sua coragem e po-
der de decisão que o torne capaz de um empenho total. Para isso torna-se necessário um Eros
desleal que o faça esquecer-se de sua mãe e submeter-se à pena de abandonar a primeira amada
de sua vida. Contudo, pressentindo esta aventura inquietante e perigosa, a mãe lhe ensina a pra-
ticar as doces virtudes da fidelidade, da dedicação e da lealdade, a fim de supostamente preservá-
lo do dilaceramento moral que sempre vem junto com a aventura da vida. Geralmente o homem
já aprendeu tão bem a lição tantas vezes ensinada que permanece fiel a ela de maneira muitas
vezes preocupante para a mãe (quando se revela, por exemplo, seu caráter homossexual em
homenagem a ela), mas, ao mesmo tempo, também para a satisfação inconsciente e mítica dela.
De fato, com esta última relação se concretiza o arquétipo ao mesmo tempo antiquíssimo e sa-
crossanto do conúbio entre mãe e filho. (Aion, par. 20-2)

A situação descrita acima em termos tão diretos é a que se verifica em praticamente todas
as análises de homens, especialmente os mais jovens. Obviamente os pacientes jamais se
expressam nestes termos diretos, mas se tivermos olhos para isso facilmente perceberemos
que esta atitude inconsciente básica está presente.

Infelizmente neste capítulo do Aion Jung não dá uma descrição similar do relacionamento
da mulher com o pai, mas em Mysterium coniunctionis ele faz algumas alusões, dizendo:

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O sol escuro da psicologia feminina está relacionado com a imagem do pai, pois de fato é ele o
primeiro a encarnar para a filha a imagem do animus. É ele quem dá conteúdo e forma a essa
imagem virtual, pois o pai, em virtude do seu Logos, se torna para a filha a fonte do “espírito”.
Lamentavelmente o jorro dessa fonte quase sempre se turva, quando aí se poderia supor água
cristalina. O espírito que serve à mulher não é realmente um puro intelecto, mas é mais do que
isso: é uma atitude, isto é, um espírito dentro do qual ela vive. Mas também acontece que um
espírito que seja por assim dizer “ideal” nem sempre é o melhor, caso ele simultaneamente não
entenda também como lidar de modo correto com a natureza, ou respectivamente com o ho-
mem animal; essa, aliás, seria de fato uma situação ideal. Assim, todo pai tem, sob todos os as-
pectos, ocasião suficiente para estragar não pouca coisa do ser mais íntimo de sua filha, o que
depois tem de ser tratado pelo educador, pelo marido e pelo médico em caso de neurose. A ra-
zão é que “o que foi estragado pelo pai somente por outro pai poderá ser restaurado”.24 (Myst.
coniunc., par. 226)

Vejam que estas passagens nos contam que, para o filho, o perigo do complexo materno é
o de envenenar seu impulso de comprometer-se com a vida tal como ela é; e para a filha, o
perigo do complexo paterno é o de corromper sua relação com o espírito e com o signifi-
cado essencial das coisas. Estes são os perigos da relação infantil com a anima ou com o
animus.

No segundo estado, ou estado projetado, a anima e o animus são experimentados sempre


sob a forma de projeção sobre um membro do sexo oposto. Essas projeções se dividem em
dois tipos: próximas e remotas. Por projeções remotas eu entendo situações como a admi-
ração de artistas famosos do cinema ou televisão e de cantores de rock, assim como outras
manifestações grupais. Normalmente uma projeção coletiva é realizada por todo um grupo,
e o portador da projeção nunca se encontra presente para proporcionar alguma resposta
corretiva, de maneira que a projeção acaba por tomar uma dimensão significativamente
infantil. Já as projeções imediatas situam-se sempre próximas do sujeito, e levam a pessoa a
encontros na vida concreta nos quais a imagem projetada acaba sendo contrastada com a
verdadeira personalidade do portador da projeção. Este encontro com a realidade sempre
leva a um aumento da consciência, embora de maneira dolorosa.

Ao terceiro estado da relação com a anima/animus eu chamo de estado de possessão: o


homem possuído por sua anima e a mulher possuída por seu animus. Quando um homem
está possuído por sua anima, uma condição que usualmente surge e desaparece com suas
disposições de humor, o homem se torna sensível e ressentido, e seus sentimentos são fa-
cilmente melindrados. Eu diria até que a palavra-chave para o homem tomado por sua ani-
ma é “ressentimento”, uma atitude amargurada e desapontada. Outra forma de expressar
esse estado seria a de que o homem tomado por sua anima é inadequadamente delicado e
melindroso. Já a mulher possuída por seu animus é exatamente o inverso: ela é toda cheia
de opiniões dogmáticas, por demais argumentativa e discordante e excessivamente rígida
nas suas posições. Quando o animus atinge o ápice numa mulher, ela se torna inadequa-
damente autoritária e violenta.

24 I Ching, hexagrama 18, Gu: “O trabalho no corrompido”.


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Finalmente, o quarto estado é representado pela relação consciente com a anima ou com o
animus. Neste estágio do processo, como Jung afirma no par. 40, anima e animus “repre-
sentam funções que filtram os conteúdos do inconsciente coletivo para a mente consciente”.
Quando o Eu estabelece uma relação consciente com a anima ou o animus, ele deixa de
estar sujeito à possessão, e o elemento contra-sexual se torna um canal através do qual os
conteúdos do inconsciente coletivo podem ser transmitidos do inconsciente em direção ao
eu. Esta relação consciente com a anima ou o animus leva a uma atitude que determina
uma contínua atenção ao inconsciente. Jung diz a respeito:

Embora as atuações da anima e do animus possam tornar-se conscientes, em si mesmas ambas


constituem fatores que transcendem o âmbito da consciência — pois a anima e o animus não
podem ser integrados jamais, já que constituem arquétipos. Anima e animus escapam à observa-
ção direta e ao arbítrio do indivíduo. Por isso sempre permanecem autônomos, mesmo que seus
conteúdos sejam integrados, razão pela qual jamais se deve perdê-los de vista. Tal fato é de ex-
trema importância do ponto de vista terapêutico, porque mediante a observação contínua deles
paga-se ao inconsciente um tributo que assegura em parte a sua cooperação. (Aion, par. 40)

Porém o objetivo máximo dos princípios masculino e feminino que compõem a sizígia é a
coniunctio, sua união em núpcias. Essa dinâmica e impulso se manifestam em nossa vida
externa de uma maneira completamente típica. Trata-se daquilo que eu chamo de sequência
concreta ou exteriorizada da coniunctio: um homem e uma mulher se apaixonam. Em ou-
tras palavras, eles caem em mútua projeção do animus e da anima. Este estágio é de fato
delicioso. Cada um dos membros do casal está absolutamente convencido de ter encontrado
no outro a sua alma-gêmea, e ocorre um bem-aventurado sentimento de totalidade sempre
que ficam juntos. Por outro lado, surge sempre uma dolorosa sensação de perda e incom-
pletude quando os dois se separam. Justamente pelo fato de ser quase que exclusivamente
inconsciente, este estágio inicial de coisas não pode perdurar por muito tempo. Geralmente
a sequência da coniunctio concreta pode evoluir de três maneiras.

Uma possibilidade é a de que a coniunctio concreta se dê no decorrer de toda uma vida sob
a forma do casamento, da família e da vida em comum, quando então a poderosa libido
que antes fluía entre as projeções de anima e animus passa a ser progressivamente condu-
zida para os esforços conjuntos de desenvolver uma existência concreta juntos.

A segunda possibilidade é a de que, em vez de uma coniunctio concreta, dê-se uma separa-
tio concreta. Em outras palavras, um dos membros do casal recolhe a projeção. Um deles
deixa de projetar e então o outro é abandonado. Quando isso acontece, o cônjuge rejeitado
passa por tristeza e desespero, e às vezes recorre à violência. Este é o fenômeno Dido, o
fenômeno Medeia, o fenômeno Don José na ópera Carmen. Esses extremos de desespero
e violência são ativados porque um dos membros sente como se tivesse perdido sua alma-
gêmea, e isso é experimentado como uma derrota absoluta, um fracasso na possibilidade da
coniunctio: o desespero leva à destruição. A alternativa é a percepção de que a outra pes-
soa não constitui algo de fato essencial; se essa percepção ocorrer, o cônjuge dá início à
conexão interna com seu próprio animus ou anima. Essa situação fica bem delineada na
expressão “quando meio-deuses se vão, os verdadeiros deuses chegam”, que foi a experi-
ência de Ariadne quando foi abandonada por Teseu, quando então Dioniso entra em cena.

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A terceira possibilidade é a de que, em meio à mútua projeção, ocorra um desenvolvimento


progressivo: os dois indivíduos acabam por descobrir gradualmente que a sua paixão estive-
ra baseada tão somente numa projeção da anima e do animus. Contudo, pelo fato de terem
sido por um período maior ou menor os portadores de tal projeção, eles também são leva-
dos, pela primeira vez, à descoberta e à capacidade do amor objetivo e consciente. É só
então que se torna possível começar a amar o parceiro sob a forma que ele realmente é, e
ao mesmo tempo desenvolver e manter uma conexão viva com a imagem interna do ani-
mus ou da anima.

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PARÁGRAFOS 43-67

O Self
5
N
este ponto já nos aprofundamos pela psique através do eu, sombra, anima e ani-
mus para poder chegar ao Self. Definir o termo Self é difícil. A palavra “Eu” é tam-
bém problemática, mas bem menos quando comparada com o termo Self da forma
que é usado na psicologia. O Self de fato se refere a uma realidade empírica, embora sua
natureza exata seja impossível de ser determinada pelo eu. Tudo o que se pode fazer é a-
bordá-lo sob diferentes ângulos e obter pequenos fragmentos de seu significado.

Uma definição possível do Self é a de que ele representa a totalidade da psique que se ma-
nifesta como uma entidade unitária. Também podemos dizer que o Self é a psique em sua
totalidade, o que inclui tanto o Eu quanto a totalidade do inconsciente. Uma terceira defini-
ção é a de que o Self é tanto o centro quanto a circunferência da psique, o que corresponde
à antiga definição de Deus como sendo um círculo cujo centro encontra-se em toda parte e
cuja circunferência encontra-se em parte alguma.

Entretanto, existe um problema lógico em tudo isso, porque quando o Self é definido como
sendo a totalidade da psique, essa totalidade inclui o eu. Então como poderia o eu, uma
mera parte do todo, permanecer separado e falar a respeito da totalidade, como se ela fos-
se algo separado dele? Este paradoxo encontra-se embutido na psique humana e no fenô-
meno da consciência. Tudo se passa como se o eu, enquanto filho, tomasse sobre si algu-
mas qualidades do Self enquanto pai, e presumisse ser uma entidade separada mesmo sen-
do uma parte do todo.

Do ponto de vista empírico, a psique possui dois centros: o eu, que é o centro subjetivo, e
o Self, que é o centro objetivo. Uma pessoa precisa conquistar um considerável desenvol-
vimento psicológico antes que possa perceber isso, embora seja relativamente fácil apreen-
der a ideia de que existam dois centros. Jung, um gênio psicológico, teve uma clara percep-
ção disso ainda na sua juventude, como demonstra uma passagem de sua autobiografia. Ali
Jung está falando acerca das personalidades número um e número dois:

O no 2 considerava o no 1 como aquele que encarnava um dever moral difícil e ingrato, uma es-
pécie de tarefa que deveria ser cumprida de qualquer forma, e que se tornara mais difícil devido a

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uma série de defeitos: preguiça esporádica, falta de coragem, depressão, entusiasmo inepto por
ideias e coisas que ninguém apreciava, amizades imaginárias, estreiteza de espírito, preconceitos,
estupidez (matemática!), falta de compreensão com os outros, confusão e desordem no que dizia
respeito à visão de mundo; além disso, não era nem cristão nem nada. O no 2 não era, afinal,
um caráter, mas uma vita peracta [vida vivida, vida realizada], nascido, vivo, morto; o tudo em
um, visão total da natureza humana, de uma clareza impiedosa consigo mesmo, mas incapaz e
pouco inclinado (se bem que o desejando) a exprimir-se por intermédio do espesso e obscuro no
1. Quando o no 2 predominava, o no 1 ficava como um reino interior obscuro. O no 2 se consi-
derava como uma pedra lançada no extremo do mundo, mergulhando em silêncio no infinito da
noite. No no 2 reinava, entretanto, a luz, como nos amplos recintos de um palácio real, cujas al-
tas janelas se abrissem para uma paisagem banhada de sol. Possuía sentido e continuidade histó-
rica, num contraste violento com os acasos desconexos da vida do no 1, que não encontrava
qualquer ponto de contato com o seu meio. O no 2, pelo contrário, sentia-se num secreto acor-
do com a Idade Média personificada por Fausto e o peso do passado que obviamente levou Goe-
the à grande profundidade. Para este último (e isto era um consolo para mim), o no 2 também
fora uma realidade.25

A experiência da juventude de Jung é espantosa, pois ele está falando de um episódio acon-
tecido na idade de 12 ou 13 anos. É claro que ele descreve esta ocorrência a partir da
consciência grandemente ampliada de um homem idoso, e provavelmente podemos afirmar
com segurança que ele jamais a teria formulado dessa forma na sua juventude, mas mesmo
assim a experiência ocorreu naquela época e ele então foi capaz de expressá-la de maneira
retrospectiva. Este fato é bastante relevante para este capítulo sobre o Self porque tudo o
que Jung tem a dizer a respeito do Self pressupõe um Eu muito bem desenvolvido na se-
gunda metade da vida. Este tipo de Eu não é encontrado muito frequentemente.26

Figura 6. Estágios da relação eu-Self


O diagrama mostra a relação entre o Eu e o Self, os dois centros da per-
sonalidade, à medida em que o Eu vai se diferenciando do Self no proces-
so de desenvolvimento psicológico.

25 Memórias, sonhos, reflexões, p. 85.


26Para uma discussão mais vasta acerca da relação do eu com o Self em diferentes estágios de desenvolvi-
mento, ver minha obra Ego e arquétipo, p. 21s e 65s.

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A figura 6 mostra de que maneira se desenvolve a relação entre o Eu e o Self no decorrer


da ampliação da consciência. Ela se refere a quatro diferentes estágios do desenvolvimento
do eu, ou seja, quatro maneiras pelas quais o Eu pode se relacionar com o Self.

No primeiro estágio, o Eu ainda encontra-se contido no Self inconsciente original. Aqui o


Eu como que ainda não nasceu. No segundo estágio, ele começa a despontar; no entanto,
apesar de ter alguma existência separada, o centro do Eu ainda permanece imerso no Self,
de forma que ainda existe um estado predominante de identidade eu-Self. Isso significa que,
nesse estágio, é impossível haver uma experiência como aquela que Jung descreve como as
personalidades no 1 e no 2. Aqui, Eu e Self são vivenciados como idênticos.

No terceiro estágio, o centro do Eu já emergiu de sua continência no Self, e o Eu agora


encontra-se em posição de experimentar-se como sendo um centro separado; a conexão
entre o Eu e o Self tornou-se consciente. Aquilo que chamo de eixo eu-Self se torna uma
ligação da qual encontramo-nos conscientes. É claro que não haverá consciência de tal liga-
ção até que exista consciência de uma dualidade em vez de uma unidade. Já o quarto está-
gio representa um ideal hipotético, no qual não existe mais identidade residual eu-Self.

Enquanto o Eu se identifica com o Self, que é o estado da vasta maioria da humanidade,


prevalecem as pretensões de que o Eu carregue todas as qualidades do Self, de que o Eu
seja imortal, de que ele seja o centro do mundo e de que seus desejos e necessidades sejam
os imperativos de uma divindade. É claro que isso nunca é pensado conscientemente; cons-
cientemente uma pessoa pode ser bastante civilizada e humilde, embora mesmo assim man-
tenha pretensões inconscientes ocultas que podem aparecer só em circunstâncias especiais.

A figura 7 apresenta um esquema do caminho que o desenvolvimento percorre do primeiro


ao quarto estágio. Essa figura representa uma sequência de eventos que ocorrem quando
uma pessoa atua a identidade eu-Self. Enquanto a identidade não é atuada, nada acontece,
mas quando ela é expressada em ação a pessoa encontra uma resistência por parte da rea-
lidade. Esta resistência sempre causa um ferimento e uma reflexão, e é seguida então por
uma metanóia ou mudança de postura, que acaba por curar a ferida e reconectar o Eu com
o Self, restabelecendo o estado de identidade eu-Self até que o processo se repita novamen-
te. Cada vez que este ciclo é completado, uma pequena parte da identidade eu-Self é como
que dissolvida, e nasce um pouco mais de consciência.27

27 Para uma discussão mais detalhada deste processo, ver ibid., p. 70s.

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Figura 7. O ciclo da vida psíquica


Demonstrando o ciclo típico do desenvolvimento psíquico inicial de uma
pessoa, começando no alto com o estado original de identidade eu-Self.
Os eventos subsequentes típicos acabam por levar a um retorno do esta-
do original, embora com certo acréscimo de consciência. O ciclo pode ser
interrompido em dois pontos, A e B.

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.
Figura 8a. Estágios da projeção religiosa
O diagrama representa uma comunidade de indivíduos cujo Self encontra-
se projetado em um dado sistema religioso.

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Figura 8b. Estágios da projeção religiosa


O diagrama representa as diversas possibilidades, para indivíduos diferen-
tes, daquilo que pode ocorrer quando a projeção religiosa do Self entra
em colapso.

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Um outro ponto preparatório para a discussão de Jung a respeito do Self diz respeito ao
colapso das projeções religiosas, ilustrado nas figuras 8a e 8b.28 Enquanto alguém perma-
nece contido na moldura específica de uma crença religiosa, o dogma sempre carrega a
projeção do Self. O Self equivale à imagem interna de Deus, e em tal situação o Self, ou a
imagem de Deus, é encontrado numa projeção metafísica. Isto proporciona uma certa pro-
teção: enquanto a projeção permanecer intacta, não haverá nenhum encontro direto entre
o Eu e o Self.

Entretanto, se a projeção entrar em colapso, várias coisas podem acontecer: uma pessoa
pode perder a sua conexão com o Self e cair em um estado de alienação e desespero por-
que a vida se tornou destituída de sentido. Ou então a pessoa pode cair em um estado de
inflação, o que muito frequentemente leva à alienação, seu oposto. Ou então pode aconte-
cer de o Self ser novamente projetado em outro portador — por exemplo, em um sistema
político —, o que é um fenômeno muito comum. Nos dias de hoje, todos os significados que
antes costumavam ser carregados por doutrinas religiosas são, com frequência, carregados
por movimentos políticos.

Já uma quarta possibilidade de o que pode acontecer após o colapso das projeções religio-
sas é que então a individuação passe a ocorrer, situação na qual o Eu experimenta um en-
contro vivo com o Self enquanto entidade psicológica. A discussão de Jung acerca da expe-
riência do Self neste capítulo diz respeito a indivíduos que perderam suas projeções religio-
sas, e ela não terá nenhum significado se estivermos nos referindo a pessoas cujas proje-
ções religiosas ainda permaneçam intactas.

Jung também trata da inflação, um dos problemas que pode surgir no encontro do Eu com
o Self. No parágrafo 44 ele afirma:

Quanto maior for o número de conteúdos assimilados pelo eu, e quanto mais significativos fo-
rem, tanto mais o Eu se aproximará do Si-mesmo, ainda que esta aproximação nunca possa
chegar ao fim. Isso gera inevitavelmente uma inflação do Eu caso não se faça uma separação
prática entre este último e as figuras inconscientes. Mas esta discriminação só produz algum re-
sultado prático se a crítica conseguir, de um lado, fixar alguns limites racionais do Eu a partir de
critérios universalmente humanos, e, de outro, conferir uma autonomia e uma realidade (de natu-
reza psíquica) a figuras do inconsciente, isto é, ao Si-mesmo, à anima e à sombra.

Fixar limites razoáveis para o Eu constitui um aspecto importante da análise prática. Por
exemplo, é muito comum escutar de nossos pacientes observações do tipo “cometi tal erro”
ou então “em tal situação tive uma determinada reação”, quando de fato tais eventos foram
produzidos pelo inconsciente. Jung cita um exemplo disso em suas entrevistas Houston. O
jovem entrevistador pergunta a ele por que razão um paciente neurótico escolhe um deter-
minado sintoma. Jung praticamente pula sobre o entrevistador e diz: “Ele não escolhe, o
sintoma simplesmente ocorre ao paciente! Seria o mesmo que você, ao ser devorado por

28 Estas também aparecem e são discutidas nas p. 102-3 do meu Ego e arquétipo.

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um crocodilo, perguntar-se por que razão escolheu aquele crocodilo; foi ele que escolheu
você!”.29

O Eu jamais escolhe seus sintomas: ele simplesmente é vítima dos sintomas específicos que
o inconsciente lança sobre ele. O sintoma é como um crocodilo que agarra e devora al-
guém. Isso é o mais importante de se perceber. É por esta razão que devemos fixar limites
razoáveis para o eu: não se pode atribuir ao Eu poderes e responsabilidades que não este-
jam ao seu alcance. Fazer isso seria incorrer na inflação.

A discussão de Jung acerca da inflação continua citando alguns de seus perigos:

Para se levar uma queda mortal basta uma escada ou um assoalho liso. (...) Que não se pense
aqui, evidentemente, numa arrogância consciente: nem sempre é disso que se trata. (par. 44)

A inflação é muito mais sutil do que isso. Trata-se de uma pressuposição completamente
inconsciente e irrefletida, realizada por quase todas as pessoas, de que não existe algo como
uma psique autônoma por detrás do eu. Qualquer um que se arrisque a falar em público a
respeito da psique autônoma imediatamente torna-se suspeito de ser um pouco louco. Con-
tudo, embora este estado de inflação inconsciente seja praticamente universal, raramente
temos grandes problemas com ele. É surpreendente constatar como a vasta maioria das
pessoas pode viver razoavelmente feliz em um estado de inflação. Trata-se de uma condição
natural até que o processo de individuação seja ativado: só então somos chamados a pres-
tar contas.

Outro importante ponto comentado no mesmo parágrafo é o de que um dos sintomas da


inflação é uma significativa tendência a estar desatento às reações do ambiente às nossas
ações e a não levá-las em conta. É sempre bom lembrar que o inconsciente chega até nós
tanto interiormente quanto exteriormente, de maneira que as reações que as pessoas têm
em relação a nós, e os eventos que acontecem à nossa volta, todos são expressões do in-
consciente tanto quanto os sonhos o são.

Jung então prossegue tratando de duas catástrofes psíquicas alternativas. Uma delas é aque-
la em que o Eu é assimilado pelo Self, e a outra é a em que o Self é assimilado pelo eu.
Ora, a palavra “assimilação” é um eufemismo para “ser devorado”. Por toda a natureza, a
questão básica é sempre a de quem é devorado por quem. Se o Self devora o eu, na pior
das hipóteses ocorre uma psicose manifesta. Já se o Eu devora o Self — o que parece uma
condição impossível, dado que o menor não pode ser capaz de engolir o maior —, Jung
considera-a possível, pois diz que então “o Self (...) é assimilado ao Eu (...) [e nesse caso] o
mundo da consciência deveria ser demolido, em benefício da realidade do inconsciente”.
(par. 47)

Se o Eu devora o Self, então temos a inflação racional que é tão predominante entre nós,
na qual o Eu considera que a totalidade seja ele mesmo. Em tais casos, o antídoto deve ser
o de rebaixar os poderes do Eu em favor da realidade do inconsciente. Já na situação pré-

29 Richard Evans, Jung on elementary psychology, p. 216.

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via, na qual o Self assimila o eu, a atitude deve ser a inversa: todas as atitudes conscientes
— atenção, consciência, paciência, adaptação — devem ser mobilizadas ao grau máximo.

Jung continua no parágrafo 48:

Os problemas morais se originam de conflitos de deveres. Quem for suficientemente humilde ou


acomodado sempre poderá tomar sua decisão com a ajuda de uma autoridade externa. Mas
quem não confia nos outros nem em si mesmo jamais chegaria a tomar uma decisão, a não ser
naquele modo que a Common Law chama de Act of God [caso de força maior, caso fortuito, ato
de Deus] (...) Existe, em todos estes casos, uma autoridade inconsciente que sempre dissipa a
dúvida, criando um fait accompli [fato consumado].

Jung vai adiante no parágrafo 49 dizendo que tal fait accompli, uma ação de forças naturais
incontroláveis, é, do ponto de vista psicológico, muito mais facilmente entendido como sen-
do a “vontade de Deus” do que o resultado de forças naturais ou instintivas, pois

Se (...) a autoridade interna é concebida como sendo a “vontade de Deus”, (...) nossa autoestima
é beneficiada, pois então a decisão parece ser um ato de obediência e o resultado de uma inten-
ção divina.

Jung admite, então, que este ponto de vista pode ser utilizado como uma forma bastante
conveniente de escapar da responsabilidade moral do eu, embora esta crítica seja justificada
somente quando uma pessoa está “deliberadamente escondendo a sua própria opinião ego-
ísta”.

Esta ideia de conflito de deveres é bastante importante na prática. Quando nos defrontamos
com um conflito de dever significativo, é então que surge a oportunidade de descobrir a
realidade do segundo centro da psique, a oportunidade de movermo-nos do estágio 2 para
o estágio 3, pois em meio a tal conflito somos sempre obrigados a optar por um entre dois
males. Qualquer um de nós adoraria ter que escolher simplesmente entre o que é bom e o
que é mal, mas quando há de fato um conflito de deveres, a escolha tem que ser feita entre
dois males, o que significa que não se pode escapar à experiência dos opostos. Seja qual
for a escolha que façamos, sempre fica claro que tanto o bem quanto o mal estão sendo
acionados simultaneamente. O aborto, por exemplo, constitui um crime contra a natureza e
paga-se um alto preço psicológico por ele. Por outro lado, trazer uma criança ao mundo em
circunstâncias gravemente inadequadas para o seu bem estar também representa um crime.
Em tais casos, a escolha se faz sempre entre dois males, e não há nenhuma maneira de
evitá-los.

Jung acentua o fato de que a autoridade do inconsciente coloca um fim em tal conflito de
dever criando um fato consumado. Todas as nossas ações inconscientes e indesejadas, nos-
sos assim chamados equívocos, todos eles são fatos consumados. Tais equívocos podem ter
duas interpretações diferentes: para o jovem, a interpretação mais apropriada é a de que o
deslize resultou de uma falha da vontade, pois o paciente jovem ainda precisa conquistar a
consolidação de seu eu, sendo que a ênfase deve ser sempre na sua responsabilidade pes-
soal. Se um equívoco é cometido por um jovem, convém que ele assuma a responsabilidade
sobre o erro. Já para alguém na segunda metade da vida, um equívoco é mais adequada-

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mente compreendido como sendo um “ato de Deus”, e é assim que eu acredito que devam
ser entendidos os assim chamados deslizes dos terapeutas no trabalho analítico com pacien-
tes. Tais deslizes são, a meu ver, “atos de Deus” plenos de significado, e sob este ponto de
vista praticamente deixam de ser equívocos; são, na verdade, intervenções do inconsciente
que trazem em si um propósito determinado que merece ser indagado e descoberto.

No parágrafo 59 Jung continua com uma importante afirmação:

Embora a totalidade, à primeira vista, não pareça mais do que uma noção abstrata (como a ani-
ma e o animus), contudo permanece sendo uma noção empírica, antecipada na psique por sím-
bolos espontâneos ou autônomos (...) A totalidade constitui, portanto, um fator objetivo que se
defronta com o sujeito, independentemente dele.

Como Jung aponta aqui, o fator de totalidade encontra-se no topo da hierarquia das enti-
dades psíquicas. Isso é uma coisa que devemos constantemente ter em mente quando traba-
lhamos com o material do paciente, porque as imagens de totalidade aparecem o tempo
todo nos sonhos. Se não formos capazes de reconhecê-las elas podem muito bem passar
despercebidas, de maneira que é muito importante estar totalmente familiarizado com as
imagens autônomas de totalidade tais como quaternidades, mandalas, o Axioma de Mari-
a,30 a interação de opostos e a união de opostos. Tais imagens são sempre expressões
daquele fator objetivo que confronta o sujeito independentemente dele.

No parágrafo 60, Jung afirma que “mostra-nos a experiência que os mandalas individuais
são símbolos ordenadores, razão pela qual se manifestam nos pacientes sobretudo em épo-
cas de desorientação ou de reorientação psíquica”. Imagens ordenadoras jamais emergem
do inconsciente a menos que a consciência se encontre em estado de desordem. A todo
instante ouvimos alguém dizer “Ah, eu adoraria ter um daqueles sonhos maravilhosos com
mandalas iguais aos deste ou daquele livro”. Ora, quem afirma isso não faz ideia do que
está pedindo, pois sonhos como esses custam sempre um preço muito alto!

Finalmente, devo mencionar o parágrafo 65, no qual Jung comenta aspectos metafísicos
que atualmente perderam a raiz que os conectava com a experiência natural. Tais conceitos
metafísicos foram, em alguma época, totalmente capazes de conter a projeção coletiva da
imagem do Self. Entretanto, quando a projeção é retirada daquelas ideias metafísicas, o
indivíduo perde completamente a compreensão de que um dia tenha existido algum signifi-
cado nelas. Jung sentia que uma de suas tarefas dos últimos anos da vida seria a redenção
da metafísica. Ele quis preservar todos os significados que anteriormente estiveram embuti-
dos em conceitos teológicos e metafísicos, revelando as realidades da psique que no passa-
do estiveram projetadas em tais conceitos.

30 “O um se torna dois, o dois se torna três, e a partir do três surge o um como o quarto”. Ver Psicologia e
alquimia, OC 12, par. 26, e também o meu Mysterium lectures: a journey through C. G. Jung Mysterium
coniunctionis, p. 276s.
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PARÁGRAFOS 68-80

Cristo, um símbolo do Self


6
O
capítulo 5 do Aion trata de como o Self se manifesta no mito cristão, o mito pre-
dominante da civilização ocidental. Todo o restante do livro tratará de vários ou-
tros aspectos do Self, cada vez mais profundos, e à medida que nos aprofundar-
mos nestes significados eles se ampliarão até atingir como que uma extensão infinita.

Logo no início deste capítulo, no parágrafo 70, Jung faz uma afirmação revolucionária que
equivale ao anúncio de toda uma nova visão de mundo. A afirmação é a de que Cristo e-
xemplifica o arquétipo do Self.

Trata-se de uma sentença bem simples, mas que se torna explosiva na medida em que é
entendida em sua plena realidade e não somente de forma intelectual. Esta foi a primeira
vez em que se anunciou de maneira direta e clara que a experiência do homem ocidental
deslocou-se da projeção religiosa para o interior da psique humana, e que o homem, ou
pelo menos um homem, Jung, tornou-se consciente desse fato. A consciência humana des-
cobriu o arquétipo criador da religião, do qual o Cristo é somente uma das expressões, em-
bora o mais relevante para a nossa cultura específica. Agora podemos saber o que se en-
contra antes, ou por trás da projeção metafísica que é personificada por Cristo. Aquilo que
se encontra por trás da metafísica atende pelo nome de Self.

Vamos considerar algumas das evidências de que Cristo exemplifica o arquétipo do Self. As
características que se constelaram em torno da imagem de Cristo correspondem em muitos
aspectos à fenomenologia do Self da maneira como é observada empiricamente. Por e-
xemplo, Cristo é identificado como a fonte central em frases tais quais “Eu sou a videira e
vós os ramos” (Jo 15:5, BJ). Trata-se de um aspecto simbólico do Self. Também Cristo é
descrito como a união dos opostos, por exemplo, quando ele afirma “Eu sou o alfa e o ô-
mega” (Ap 1:8, AV).

O simbolismo do quatro e do doze, que comumente ocorre em associação com o Self, tam-
bém está associado com o Cristo, que se encontra rodeado pelos discípulos que correspon-
dem aos doze signos do zodíaco; há o símbolo quádruplo da cruz, e também a imagem de
Cristo como sendo o centro dos mandalas cristãos rodeado pelos quatro evangelistas. Além
disso, várias imagens que simbolizam o reino dos céus são praticamente idênticas à imagem
de Cristo, tais como a pérola de grande valor, ou então o tesouro enterrado no campo, ou

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então o grão de mostarda que cresce até tornar-se uma grande árvore, ou mesmo a cidade
celestial.

Jung desenvolve as analogias entre a figura de Cristo e a fenomenologia do Self mais deta-
lhadamente em seu ensaio “A abordagem psicológica do dogma da trindade”:

A linguagem dos símbolos acerca de Cristo consiste sobretudo nos atributos que caracterizam a
vida do herói: origem improvável, pai divino, nascimento ameaçado de perigo, pronta salvação,
amadurecimento precoce (crescimento do herói), superação da própria mãe e da morte, mila-
gres, fim trágico e prematuro, efeitos póstumos (aparições), sinais miraculosos (...) Cristo é o
próprio Deus, uma totalidade universal (...) representação tradicional do Rex Gloriae no mandala
(...) Ele representa a integração dos reis e profetas da Antiga Aliança (...) Seu corpo é pão que se
come e seu sangue é vinho que se bebe.

Estes enunciados descrevem mitologicamente um arquétipo, que surge tanto dentro quanto fora
do âmbito cristão e que se exprime mais ou menos através deste simbolismo, aparecendo nos
sonhos individuais ou em projeções fantásticas (isto é, em formas especiais de transferência) so-
bre pessoas vivas (...) O conteúdo de tais produtos simbólicos é a figura de um ser superior uni-
versal, perfeito e completo, representado por um homem revestido de determinadas qualidades,
ou por um animal possuidor de certos atributos mágicos, ou ainda por um receptáculo mágico
(...) ou então geometricamente pelo mandala. Esta representação arquetípica corresponde a uma
totalidade do Self; este porém não é percebido diretamente pela consciência, por ser constituído
não só pela psique consciente, como também pelo inconsciente, o qual não pode ser percebido
de modo direto.

Foi este arquétipo do Self na alma de cada homem que respondeu à mensagem de Cristo [Jung,
aqui, está falando a respeito do início da era cristã], de modo que o Rabi Jesus concreto foi rapi-
damente assimilado pelo arquétipo constelado.31

É por esta razão que não sabemos praticamente nada sobre o Jesus histórico: ele se encon-
tra escondido por trás das projeções do Self.

O arquétipo do Self também pode ser visto como uma imagem de Deus presente na psique
humana, a imago dei. Quando tratamos de ideias como essa, é sempre útil seguir Jung e
usar a terminologia latina. Isso enfatiza o fato de estarmos lidando com um termo técnico
da psicologia Jungiana, e também fixa o conceito em nossa mente por ser em latim. Jung
escreve a respeito de Cristo enquanto equivalente da imago dei começando com o primeiro
capítulo do Gênesis: “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança” (Gen
1:26, BJ). Esta passagem logo no início da Bíblia estabelece que o homem contém uma
imago dei, e este fato mitológico básico foi submetido a uma intensa reflexão, escrutínio
teológico e elaboração. É precisamente essa imago dei que se considera ter sido danificada
após a queda do homem.

Jung refere-se a essa ideia no parágrafo 72:

A imagem divina do homem não foi destruída pelo pecado, mas apenas danificada e corrompida
(“deformada”), e será reconstruída pela graça divina [Jung está descrevendo a compreensão mi-

31 Psicologia e religião, OC 11, par. 229-31.


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tológica e falando em termos do mito cristão]. O âmbito da integração é indicado pela descensus
ad inferos, descida de Cristo aos infernos, descida cujos efeitos redentores abrangem inclusive os
mortos. O seu equivalente psicológico é a integração do inconsciente coletivo, parte constitutiva
e indispensável da individuação.

Nesta passagem Jung pressupõe que seus leitores estejam plenamente familiarizados com
essa referência, embora nem seja uma referência bíblica, mas sim legendária. De acordo
com as lendas que se tornaram bastante difundidas no material pictórico da Idade Média, no
período que vai da morte de Cristo na cruz até sua ressurreição, ele descendeu aos infernos,
ou mais especificamente, ao limbo. Cristo rompeu então os portões de ferro do inferno e
resgatou todos aqueles que eram merecedores, trazendo-os de volta ao reino de cima. Jung
refere-se a estas imagens como simbolizando a integração do inconsciente coletivo. Em
outras palavras, um dos aspectos da individuação é o que envolve a descida aos infernos e
o resgate dos merecedores que lá se encontram retidos, seguido de sua redenção e da res-
tauração de sua consciência.32

Jung continua sua discussão da imagem de Deus no parágrafo 73:

A imagem divina no homem, danificada pelo pecado, pode ser restaurada (“reformada”) com a
ajuda de Deus (...) As imagens da totalidade produzidas pelo inconsciente no decurso de um pro-
cesso de individuação representam tais “reformas” (transformações) de um arquétipo (do manda-
la) existente a priori (...) Isto está em perfeita consonância com as descobertas psíquicas empíri-
cas de um arquétipo da totalidade, existente em todas as épocas, que pode desaparecer facil-
mente do campo usual da consciência, ou jamais ser percebido, até que uma consciência ilumi-
nada pela conversão reconheça-a (...) Esta “anamnese” restabelece um estado original de união
com a imagem divina [imago dei].

Jung menciona quatro diferentes palavras para esta restauração relacionada ao retorno para
o estado de completude. Todas elas possuem ricas conexões associativas. As palavras são
“reformação”, “renovação”, “anamnese” e “apocatástase”. Apocastátase é um termo muito
querido para Jung, pois ele o utiliza diversas vezes em sua obra. É importante compreender
esta palavra, pois ela conduz à compreensão da natureza essencial da análise jungiana. A
palavra aparece somente uma vez no Novo Testamento, em Atos 3:19s. Pedro está falando
a uma multidão e diz:

Arrependei-vos, pois, e convertei-vos, a fim de que sejam apagados os vossos pecados, e deste
modo venham da face do Senhor os campos de refrigério. Então enviará ele o Cristo que vos foi
destinado, Jesus, a quem o céu deve acolher até os tempos da apocatástase de todas as coisas,
das quais Deus falou pela boca de seus santos profetas. (BJ)

Porém este não é o termo normalmente usado nas traduções em inglês. O termo usual é
restauração, “até que venha a restauração universal”, mas usaremos a palavra original apo-
catástase. Jung refere-se ao uso do termo pelos profetas em referência ao retorno dos ju-
deus à sua terra natal na volta do exílio da Babilônia; a restauração do templo de Jerusalém

32 Para maiores discussões acerca deste tema, veja-se meu O arquétipo cristão, um comentário junguiano
sobre a vida de Cristo, p. 110s.
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também era referida como sendo uma apocatástase. Em outra obra,33 Jung sugere que
Paulo pode ter assimilado a ideia de apocatástase de seu mestre hebreu rabi Gamaliel o
Velho. Jung descreve o rabi como sendo um judeu gnóstico, e suspeita que Gamaliel possa
ter ensinado a Paulo a antiga tradição do Paraíso: que após Adão e Eva terem sido expulsos
do Paraíso, o jardim já não possuía nada de bom, tendo sido danificado da mesma maneira
que a imago dei no homem o foi, e por esta razão Deus teria transferido o Paraíso para o
futuro. No futuro, então, haverá uma era messiânica e um retorno ao Paraíso. Isto equivale-
rá a uma apocatástase, um retorno para a ordem original das coisas.

O termo apocatástase corresponde à ideia platônica da anamnese, àquilo que é chamado


de recordação. Jung usa o termo anamnese no sentido platônico de que, à medida que
adquirimos consciência e conhecimento, todo nosso aprendizado é somente uma recorda-
ção do nosso conhecimento pré-natal. Toda a cognição não passa de recognição, uma lem-
brança daquilo que um dia já soubemos e que depois esquecemos. Encontramos essa mes-
ma ideia no poema “Little Gidding”:

Jamais cessemos de explorar,


Pois ao final de nossas explorações
Teremos chegado ao ponto de partida,
E conheceremos o lugar pela primeira vez.34

Este tema arquetípico é importante para analistas junguianos porque a análise é exatamente
isso: um deliberado e sistemático processo de anamnese que começa com a recordação da
vida pessoal e a seguir se torna cada vez mais profundo.

O termo apocatástase também foi usado na antiga doutrina cristã, nos primeiros dois ou
três séculos. A doutrina afirmava que todas as criaturas livres e morais — anjos, homens e
demônios — seriam salvos no final dos tempos. Orígenes, um dos patriarcas da igreja, subs-
crevia esta doutrina, que na sua forma completa afirmava que até o demônio seria salvo.
Contudo, a doutrina foi formalmente banida do cânone cristão e declarada herética no
Concílio de Constantinopla no ano 543.

Orígenes foi um autor muito apreciado por Jung, que o citou diversas vezes no Aion, a
começar por este capítulo. Os anos de seu nascimento e morte são, aproximadamente,
185-254. Nasceu em Alexandria, uma cidade greco-egípcia, filho de pais cristãos. Seu pai,
Leonides, foi professor de gramática e retórica gregas, e supervisionou toda a educação do
filho. Orígenes foi um precoce e brilhante pupilo tanto da cultura grega quanto das escritu-
ras hebraicas. Quando tinha dezessete anos, seu pai morreu martirizado numa perseguição;
este foi o ponto inicial de sua carreira como professor de gramática. Rapidamente Orígenes
adquiriu uma considerável reputação e foi então nomeado, pelo bispo de Alexandria, pro-
fessor na escola de catequese quando tinha somente dezoito anos. Orígenes alternava seu
trabalho de ensino com o estudo e interpretação das escrituras. Juntamente com Plotino,
foi aluno de Amônio Sacas, o grande filósofo neoplatônico. Dessa maneira, Orígenes pôde
conhecer e estudar a fundo toda a sabedoria filosófica grega, as escrituras hebraicas e o

33 Nietzsche Zaratustra, vol. 2, p. 1341.


34 “Little Gidding”, V, linhas 26-7, em Four quartets, p. 39.
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recente material cristão. Foi um escritor prolífico e seu mais importante trabalho foi chama-
do de Peri archon. A palavra archon é a mesma raiz que deu origem à palavra arquétipo,
mas o título é comumente traduzido como Os primeiros princípios. Orígenes é um autor
que merece ser admirado de maneira especial pelos junguianos pelo fato de ter sido o pri-
meiro a ventilar a ideia da salvação do demônio no final dos tempos. O significado desta
afirmação é o de que Orígenes foi capaz de antever o potencial curativo da cisão cristã já na
época em que ela começava a surgir. Somente agora, em nossa época, estamos em condi-
ções de avaliar a sua sabedoria profética.

Nos parágrafos 74-6 Jung nos fala que apesar de a figura de Cristo ter reunido à sua volta
símbolos de totalidade, ela ainda permanece unilateral em relação aos opostos bem e mal:

Se reconhecermos um paralelo da manifestação psicológica do Self na figura tradicional de Cris-


to, o Anticristo corresponde à sombra do Self, isto é, à metade obscura da totalidade do homem,
que não deve ser julgado com demasiado otimismo. Até onde nos leva a experiência, a luz e a
sombra parecem estar divididas, por igual, na natureza humana, de modo que a totalidade psico-
lógica aparece mais ou menos sob uma luz amortecida. A noção psicológica do Self, que deriva,
por um lado, do conhecimento do homem total, e por outro, que se apresenta espontaneamente
nos produtos do inconsciente sob a forma de uma quaternidade arquetípica ligada por antinomi-
as internas, não pode fechar os olhos para a sombra pertencente à figura luminosa e sem a qual
ela não terá corpo e nem conteúdo humano. A luz e a sombra formam uma unidade paradoxal
no Self empírico. Na concepção cristã, pelo contrário, o arquétipo em questão está irremedia-
velmente dividido em duas metades irreconciliáveis, porque o resultado final conduz a um dua-
lismo metafísico, isto é, a uma separação definitiva entre o Reino Celeste e o mundo de fogo da
condenação.

Exemplos desta cisão irrevogável da psique cristã podem ser vistos nas pinturas medievais
do Juízo Final.35 A estrutura delas é sempre essencialmente a mesma. A metade superior
da pintura representa sempre uma cena celeste na qual o coro dos abençoados circunda o
trono celeste; ali há sempre luz, felicidade e ordem. Então, cerca da metade da pintura,
aparece uma linha divisória, uma linha absolutamente esquizoide, e abaixo dela situa-se o
caos do inferno onde estão os condenados. Esta é uma excelente expressão gráfica da psi-
que cristã, e é por isso que a noção de Orígenes a respeito de uma possível salvação do
demônio é tão significativa: Orígenes sustentava a ideia de que a cisão não precisava ser
perpétua, e de que em alguma época poderia haver uma reconciliação dos opostos. En-
quanto existir a cisão, qualquer pessoa fará tudo o que estiver ao seu alcance para se identi-
ficar com o céu, embora saibamos que, do ponto de vista psicológico, toda vez que existe
uma identificação tão unilateral, ela imediatamente gera seu oposto no inconsciente. Além
disso, mais cedo ou mais tarde sempre se dá uma reversão da atitude consciente, e seu
oposto então se manifesta. Foi isso que levou Jung a afirmar: “A vinda do Anticristo não é
só uma predição de caráter profético, mas uma lei psicológica inexorável”. (par. 77)

Jung continua então com uma importante afirmação que sumariza a ideia:

35 Por exemplo, veja-se meu Anatomia da psique, p. 220.

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Estas constatações nos situam plenamente no campo da psicologia e da simbologia cristãs, em-
bora nunca se admitisse uma fatalidade inerente à disposição cristã, fatalidade que leva necessa-
riamente a uma mudança de mentalidade, e isto não por obscura causalidade, mas por uma lei
psicológica. O ideal de espiritualização que aspira às alturas deveria ser contrariado pela paixão
materialista, presa unicamente às coisas da terra e ocupada em dominar a matéria e conquistar o
mundo. Esta transformação se tornou plenamente manifesta da época do Renascimento. Este
termo significa “um novo nascimento” e foi usado para indicar o revivescimento da Antiguidade
clássica. Sabe-se hoje, no entanto, que este espírito era, no fundo, uma máscara, e que não foi a
concepção da Antiguidade clássica que renasceu; foi o pensamento cristão da Idade Média que
se transformou, adotando estranhas formas de comportamento pagão, trocando o destino celes-
te por um destino terreno e passando, deste modo, da linha vertical do estilo gótico para a linha
horizontal da descoberta do mundo e da natureza. A evolução posterior que desembocou na Re-
volução Francesa e no Iluminismo produziu um estado amplamente difundido em nossos dias,
estado que não podemos classificar senão de anticristão, que, consequentemente, realizou a an-
tecipação cristã primitiva da “era final”. É como se, com o advento de Cristo, se tivessem mani-
festado antinomias até então latentes, ou como se um pêndulo tivesse oscilado potentemente
mais para um dos lados, e a partir de então o movimento complementar o impelisse também pa-
ra o lado oposto. Árvore nenhuma, sabemos, cresce em direção ao céu se suas raízes também
não se estenderem até o inferno. O duplo movimento é inerente à natureza do pêndulo. Cristo é
imaculado, mas logo no início de sua vida pública dá-se o encontro com Satanás, o Adversário,
contraposição que constitui a vertente oposta da tremenda tensão existente no interior da alma
do mundo, expressa no aparecimento de Cristo (...) Tanto Cristo como Satanás aspiram à reale-
za: um à realeza do céu e o outro ao principatus huius mundi [governo deste mundo]. Fala-se
também de um “reino milenar” e de uma “vinda do Anticristo”, como se o mundo e os tempos
tivessem sido repartidos entre os dois irmãos régios. Por isso o encontro deve significar muito
mais do que um simples acaso: era uma conexão necessária. (par. 78)

Para ressaltar aquilo que Jung afirma aqui, o advento de Cristo representa psicologicamente
a cisão de opostos na imagem de Deus em duas metades irreconciliáveis, Cristo e Satanás.
Embora este tenha sido um passo indispensável para o desenvolvimento da consciência,
acabou por levar a uma profunda unilateralidade e a uma condição dissociada que agora
tem que ser corrigida.

O primeiro estágio de tal correção, no caso de uma pessoa ter estado identificada com a
imagem do Cristo, é um encontro com o oposto de Cristo, ou seja, o Anticristo. Jung afir-
ma que a mesma ideia já é aludida no símbolo do Salvador crucificado entre dois ladrões.
De acordo com o material legendário, um dos ladrões abençoou Cristo e foi para o céu, e o
outro ladrão, que amaldiçoou Cristo, foi para o inferno. O duplo movimento pode ser visto
tendo lugar na cena da crucificação, de maneira que dá-se um movimento simultâneo para
cima e para baixo, e uma contenção do conflito entre os dois movimentos opostos. Esta
condição prefigura aquilo que William Blake viria, bem mais tarde, a descrever como sendo
“o casamento entre o céu e o inferno”, no qual os movimentos ascendente e descendente
se tornam reconciliados, ou então unidos, numa terceira imagem.

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PARÁGRAFOS 81-104

Cristo, um símbolo do Self (cont.)


7
U
m dos principais temas do capítulo de Jung sobre Cristo como símbolo do Self,
bem como de seu pensamento em geral, é a questão da privatio boni. Esta doutri-
na é fundamental para o éon cristão, e representa um corolário da doutrina que
afirma que Deus é somente bom e que pode ser definido como sendo o summum bonum, o
mais elevado Deus.

A ideia básica do princípio da privatio boni é a de que o mal não tem existência por si pró-
prio; a doutrina afirma que o mal seria nada mais que uma mera privação ou ausência do
bem. Um corolário da doutrina é o de que todo o bem advém de Deus e todo o mal advém
do homem. Jung aponta de maneira bastante explícita que o princípio da privatio boni está
baseado numa petitio principii [categoria filosófica da Lógica, também chamada petição de
princípio ou falácia], que significa que a hipótese a ser provada é sorrateiramente introduzi-
da no argumento inicial do raciocínio, de maneira que a resposta já se encontra suposta
previamente. Neste caso, isso é feito ao se definir Deus como bom e definindo todas as
coisas existentes como necessariamente boas por terem sido criadas por um Deus bom.
Um Deus bom, por esta definição, não seria capaz de criar o mal. Logo, uma hipótese me-
tafísica é sorrateiramente contrabandeada logo no início da discussão.

Como observa Jung no parágrafo 83, Basílio o Grande estabeleceu a questão da seguinte
forma:

É uma impiedade dizer que o mal tem sua origem em Deus, porque nenhum dos contrários é ge-
rado pelo outro. Com efeito, nem a vida gera a morte, nem as trevas são a origem da luz, nem a
doença é causa da saúde (...) Por conseguinte (...) se o mal não é ingênito, nem foi gerado por
Deus, de onde tem sua natureza? Com efeito, quem quer que participe da vida não negará que o
mal existe. Que dizermos, então? Diremos que o mal não é uma substância viva ou animada,
mas um estado (diathesis) da alma, contrário à virtude, e isto por causa da apostasia do bem, que
provém dos negligentes (ou seja, é por eles causada) (...) cada um se reconhece o causador da
maldade que em si existe.

A palavra chave nesta passagem é “negligentes” (rathymia). A palavra significa pobre de


espírito, relaxado, descuidado. Jung enfatiza bastante este termo no parágrafo 85:

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Portanto, se Basílio afirma, de um lado, que o mal não tem substância própria, mas decorre “de
uma mutilação da alma”, e se, de outro lado, está convencido de que o mal é real, é porque a
realidade relativa do mal tem suas raízes em uma “mutilação” efetiva da alma, que deve igual-
mente ter causa real. Se a alma foi criada originalmente boa, então na realidade se corrompeu
em uma fase posterior, e isto devido a uma causa real, mesmo que esta causa não tenha sido
mais do que o descuido, a negligência ou a irresponsabilidade, que traduzem o sentido da palavra
grega rathymia. A circunstância de atribuirmos a origem de uma coisa a um fato psíquico — e
quero que isto fique bem claro — não significa que o reduzamos ad nihilum [a nada] e, conse-
quentemente o destruamos; pelo contrário, agindo assim, o transpomos para uma realidade psí-
quica que, do ponto de vista empírico, é muitíssimo mais fácil de constatar do que, por exemplo,
a realidade do demônio proposta pelo dogma.

O que torna a formulação de Basílio (a origem do mal como rathymia, falta de cuidado ou
indiferença) tão interessante é que ela é uma antiga expressão da psique como sendo a fon-
te de algo substancial. Mesmo que Basílio tente dizer que rathymia nada representa, se ela
produz ago substancial então deve de fato trazer em si uma considerável substância.

Jung atribui uma grande importância à questão da privatio boni, e nos conta por que:

A psicologia ignora o que é bom e o que é mau em si mesmos. Ela só conhece essas coisas co-
mo juízos de relação: bom é o que parece conveniente, aceitável ou valioso sob certo ponto de
vista; mau é o inverso disto. Se o que chamamos bom é “realmente” bom, então, consequente-
mente, existe algo de mau, um mal que é “real” para nós. Vemos, portanto, que a psicologia lida
com um julgamento mais ou menos subjetivo, isto é, com um contraste psíquico que não pode
ser negado para a definição de determinadas relações de valor: bom é o que não é ruim, e ruim
é o que não é bom. Existem coisas que são extremamente más, isto é, perigosas. Existem tam-
bém coisas desta espécie na natureza humana, que são muito perigosas e, por isso mesmo, pa-
recem más àquele que está situado na linha de tiro. Não tem nenhum sentido dissimular este mal
sob cores atraentes, pois isto só serviria para nos embalar numa segurança ilusória. A natureza
humana é capaz de uma maldade sem limites e as ações más são tão reais quanto as boas, tão
vasto é o campo da experiência humana, o que significa que é de forma espontânea que a alma
emite o julgamento decisivo. Só a inconsciência desconhece o bem e o mal. No âmbito da psico-
logia ignora-se sinceramente o que prepondera no mundo: se o bem e o mal. (par. 97)

Isso nos informa que a distinção clara e definida entre bem e mal é um atributo do eu. Jung
continua:

Hoje, como em todas as épocas, é necessário que o homem não feche os olhos para o perigo
do mal que está à espreita dentro dele mesmo. Infelizmente este perigo é demasiado real, e por
isto a psicologia deve insistir na realidade do mal e refutar qualquer definição que deseje conce-
ber o mal como algo sem importância ou mesmo como não existente. A psicologia é uma ciên-
cia experimental que lida com coisas reais. (par. 98)

Vocês já notaram que Jung se utiliza das palavras “experiência” e “empírica” a todo instan-
te, e isso em contraste com a doutrina da privatio boni que possui uma base metafísica. O
argumento básico de Jung é o de que a realidade do bem e do mal está baseada no julga-
mento do Eu consciente. Poderíamos dizer que a privatio boni é uma espécie de truque
inconsciente da psique cristã que lança areia sobre os olhos do Eu em relação à realidade
do mal. Aqui Jung está fazendo todo o possível para analisar este complexo coletivo da
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psique cristã. Seus esforços nesse sentido incluem não somente suas críticas à privatio boni,
mas também uma crítica à definição de Deus como sendo o summum bonum. Entretanto,
toda a sua abordagem encontrou uma enorme resistência, o que indica que um complexo
profundamente entrincheirado e enraizado de nossa cultura foi tocado.

Uma carta escrita por Jung para Victor White é instrutiva. O padre White havia lido algo
escrito por Jung sobre a privatio boni e o summum bonum, e publicou um trabalho criti-
cando Jung por suas “interpretações errôneas” a respeito da doutrina da privatio boni e por
seu “dualismo quase maniqueísta”, além de comentar sobre as “afirmações enganadas e
enganadoras [...] mais uma infeliz excursão de um grande cientista para fora de sua órbita
de ação”.36

Jung respondeu à crítica de uma forma que ilumina seu pensamento acerca de todo o tema
da privatio boni:

O senhor me deu o que pensar por um bom tempo com a sua correctio fatuorum [correção dos
tolos] nos Dominican Studies [...] Ela me obrigou a recorrer a Basílio o Grande [...] Este assunto
da privatio boni me é odioso devido às suas consequências perigosas: ele provoca uma inflação
negativa na pessoa que não pode deixar de imaginar-se, se não como fonte do bem,37 pelo me-
nos como grande destruidor, capaz de arruinar a bela criação de Deus. A doutrina leva a uma
vaidade diabólica e é em grande parte responsável pela decorrente depreciação da alma humana
como morada original do mal. Isto atribui uma importância monstruosa à alma, e nenhuma pala-
vra sobre quem é o responsável pela presença da serpente no paraíso.

Enquanto o mal for uma não-entidade [meon], ninguém levará a sério sua própria sombra. Hitler
e Stalin continuarão representando uma simples “falta acidental de perfeição”. O futuro da hu-
manidade vai depender muito do reconhecimento da sombra. Psicologicamente falando, o mal é
terrivelmente real. É um erro fatal diminuir seu poder e sua realidade, ainda que só metafisica-
mente. Lamento que isto vá até as próprias raízes do cristianismo. O mal de fato não diminui ao
ser abafado como não-realidade ou como simples negligência do ser humano.38

Estes pensamentos geraram, como eu disse, enormes resistências; livros inteiros chegaram
a ser escritos para refutá-los. Contudo, representa um princípio junguiano básico respeitar a
resistência e não tratá-la com rudeza; toda vez que encontramos resistência, especialmente
uma severa resistência a uma interpretação, devemos nos perguntar quais as razões dela. O
que representa essa resistência? Jung comenta a questão no parágrafo 98:

A crítica que faço contra a doutrina da privatio boni só é válida até onde a experiência alcança.
Do ponto de vista científico, a argumentação usada é, como todos poderão ver, uma petitio
principii da qual, como é sabido, sempre se extrai aquilo que nela se colocou. Tais argumentos
carecem de força de persuasão, mas a circunstância de que não somente se usam semelhantes
argumentos, mas também neles se acredita sem sombra de dúvida, constitui para mim um aspec-
to sobre o qual não posso simplesmente fechar os olhos. Ele é um indício de que existe uma

36 JUNG, Cartas, vol. II, p. 148, n. 2.


37 Aqui eu restaurei a palavra original escrita por Jung, que é “bem”, no lugar da correção editorial dos edito-
res de Cartas, que na nota 40 [da tradução americana] referem-se ao uso da palavra “bem” como um lapso
para a palavra “mal”. Não se trata de lapso.
38 JUNG, Cartas, vol. II, p. 146.

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tendência a priori no sentido de dar preferência ao “bem”, e isto através de todos os meios pró-
prios e impróprios de que se dispõe. Por isso, aferrando-se à doutrina da privatio boni, a metafí-
sica cristã expressa a tendência de aumentar cada vez mais o bem e de diminuir o mal. A privatio
boni pode ser, portanto, metafisicamente verdadeira e, de minha parte, não ouso formular ne-
nhum juízo a respeito. Contudo, devo apenas insistir que, no campo de nossas experiências, o
branco e o preto, a luz e as trevas, o bem e o mal são pares de contrários, sendo que um sem-
pre pressupõe o outro.

Aqui podemos ver todo o esforço que Jung faz para acomodar a intensa resistência. Tal
resistência indica que a realidade para a qual ele está apontando é tão terrível que ela deve
ser negada. Certamente esta questão não é algo que deva ser discutido com alguém que
seja um vigoroso sustentador da privatio boni. É por isso que Jung oferece uma saída hon-
rosa para o impasse dizendo: “a privatio boni pode ser, portanto, metafisicamente verdadei-
ra e, de minha parte, não ouso formular nenhum juízo a respeito”.

A palavra “metafísica”, em vez de “psicológica”, serve muito bem para a situação porque
Jung expressa um julgamento que diz respeito somente a questões psicológicas, pois em
questões metafísicas ele não se manifesta. De minha parte, entendo esta afirmação como
sendo uma oportunidade em que Jung cumpre a promessa que fez no Prólogo, quando diz
que escreve enquanto médico, com o sentido de responsabilidade de um médico. Qualquer
pessoa que não seja capaz de digerir a interpretação de Jung a respeito da realidade do mal
é livre para refutá-lo, já que os fundamentos de que dispomos para conhecer um fato meta-
físico encontram-se além da experiência empírica. Jung então não discute com essa pessoa,
e deixa deliberadamente uma porta aberta.

Também é minha forma de entender que, em vista das razões que ele dá, uma outra justifi-
cativa para Jung dar tamanha importância ao assunto da privatio boni é que ele é capaz de
perceber que está escrevendo para a posteridade, que está estabelecendo uma agenda para
o novo éon, e para bem realizar a sua tarefa tem que explicar detalhadamente a nova dou-
trina e de que maneira ela difere da antiga doutrina. A reação primária de uma pessoa à
doutrina da privatio boni é uma espécie de divisor de águas que estabelece em que medida
alguém ainda pertence ao éon cristão e em que media já pertence ao novo éon. Se junta-
mente com o padre Victor White acreditamos que Jung não deveria intrometer-se em meta-
física além da sua conta, então toda a ideia de uma nova era se torna ridícula, e o atual éon
se transforma na única coisa viva e real.

Não oferecerei nenhum argumento contra isso porque sou capaz de perceber uma reação
ambígua similar em meu próprio interior. O ponto de vista junguiano merece minha mais
completa concordância intelectual. Trata-se de um argumento impecável no sentido lógico,
embora no sentido emocional seja um horror e eu não consiga gostar dele. Na verdade, se
eu pudesse encontrar alguma forma de dizer que Jung é um pouco radical demais, e que o
universo de fato se encontra, em última instância, apoiado sobre o bem, eu sem dúvida o
faria; encontramo-nos na transição de dois éons, e cada um de nós deve se perguntar qual
das visões melhor se adapta às suas experiências pessoais.

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O próximo ponto nas considerações sobre o relacionamento entre o bem e o mal é o texto
pseudo-clementino que Jung cita. A assim chamada literatura pseudo-clementina é constitu-
ída por um material apócrifo que circulou sob a autoria de Clemente de Roma, provavel-
mente a partir do fim do segundo século.39 Jung cita as homílias de Pseudo-Clemente por-
que elas retratam uma divindade que ainda não se separou em dois opostos irreconciliáveis
de bem e mal. À medida que a doutrina cristã foi sofrendo seu desenvolvimento posterior,
essa divisão foi se tornando cada vez maior, embora isso ainda não tivesse acontecido na
época de Pseudo-Clemente. Jung escreve:

O autor desconhecido [Pseudo-Clemente] concebe o bem e o mal, respectivamente, como a mão


direita e a mão esquerda de Deus, e faz da criação um conjunto de sizígias, ou seja, de pares de
contrários. (...) É fora de dúvida que a teologia clementina conseguiu superar esta antinomia [que
se deu quando o Deus do cristianismo passou a ser definido como sendo exclusivamente bom] de
maneira consoante com os fatos psicológicos. (par. 99)

O texto provê uma ponte entre o simbolismo cristão e a psicologia junguiana, que é exata-
mente o que Jung está buscando. Jung cita a descrição que Pseudo-Clemente faz da nature-
za da criação, na qual o homem é composto por duas misturas, duas “massas”. Adiante, no
parágrafo 100, podemos ler de Clemente:

Estes dois princípios não têm sua essência fora de Deus, pois não existe outra origem [archon].
Também não foram projetados para fora de Deus, como os animais, pois estavam em harmonia
com Ele (...) Mas os quatro primeiros elementos — quente e frio, úmido e seco — foram projeta-
dos para fora de Deus. Em consequência disso, o Pai é a origem de todas as substâncias [ousias],
mas não do conhecimento que se origina da mistura [dos elementos], pois quando estes elemen-
tos foram combinados fora Dele, a liberdade de escolha [ proairesis] (...) nasceu como criança ne-
les.

Aqui Jung faz somente uma alusão rápida à ideia de Pseudo-Clemente que, no ato da cria-
ção, Deus projeta os quatro elementos, e que quando estes se combinam, conhecimento e
liberdade de ação nascem a partir deles como uma criança. Ora, a palavra grega traduzida
como “liberdade de ação” significa “propósito”, e o verbo derivado deste substantivo signifi-
ca “ter um propósito”, “decidir”. Assim, estamos tratando aqui do fenômeno da consciên-
cia. Para não distorcer o significado, poderíamos na verdade traduzir a passagem clementi-
na de maneira a dizer que “quando os quatro elementos foram combinados exteriormente,
a consciência nasceu deles como uma criança”. Existe aqui uma sutil referência à ideia de
que o Deus criador é inconsciente, e de que foi aquilo que ele criou que gerou a consciência
fora dele, após a criação de Deus já ter sido feita, por assim dizer, e de que juntamente com
a consciência vem a liberdade de escolha e vêm o bem e o mal. Jung diz: “tem-se, portan-
to, a impressão de que a mistura dos quatro elementos deu um resultado errado, à margem
do plano (e provavelmente sem o conhecimento) de Deus”. (par 102)

Bem, deu um resultado errado na medida em que o mal foi criado, mas deu um resultado
certo na medida em que criou a consciência. Ambos andam sempre lado a lado. A consci-
ência gera sempre o conhecimento do bem e do mal.

39 ROBERTS A. e DONALDSON J., ed., The Ante-Nicene Fathers, vol. 8.

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Outra amplificação da separação entre o bem e o mal na psique cristã é a visão descrita na
Ascensão de Isaías, outro escrito apócrifo cristão do século 2. O texto serve-se da figura de
Isaías, o profeta do Velho Testamento, mas introduz material cristão em suas experiências.
O texto tem duas partes: a primeira descreve a magnificente visão de Isaías na qual ele re-
cebe como graça uma visita guiada pelos sete céus; a segunda parte descreve seu martírio,
no qual ele é serrado em dois com uma serra igual àquelas usadas para derrubar árvores.
Há, portanto, uma chocante disparidade entre as duas partes, mas como se afirma no tex-
to, a razão de Isaías ter sido martirizado é justamente ter tido a visão. Isso nos dá uma indi-
cação do preço psicológico de determinadas experiências de revelação. Vários mártires
cristãos experimentaram a mesma imagem de ter sido serrados em dois. Tais imagens ex-
pressam, simbolicamente, aquilo que aconteceu com a psique cristã enquanto a Igreja esta-
va sendo organizada e o dogma estabelecido: a psique estava sendo rasgada em duas par-
tes.
Jung refere-se à Ascensão de Isaías no parágrafo 104.40 Em sua visão, Isaías, guiado por
um anjo, ascende através de uma série de céus. A característica de cada céu muda à medida
que ele ascende. No primeiro céu entoavam-se louvores; no segundo, mais louvores. Quan-
do Isaías chega ao terceiro céu, escutam-se cantos que jamais foram ouvidos no mundo,
embora os cantos dos céus inferiores fossem familiares aos ouvidos humanos. Nos céus
inferiores, há anjos divididos em dois grupos diferentes: anjos da mão direita e anjos da
mão esquerda. Mais acima, já não há mais anjos da mão direita e esquerda, somente anjos
da mão direita.
Quando Isaías chega ao sétimo céu, sente-se tão enlevado que não quer mais voltar. Foi
desta maneira que Jung reagiu à sua experiência de quase-morte.41 Contudo, o anjo diz a
Isaías o mesmo que foi dito a Jung: “Sinto muito, mas seus dias ainda não se completaram.
Você deve voltar”. E assim Isaías teve que retornar, mas, ao fazê-lo, testemunhou Cristo
descendo com ele. Quando Cristo chegou à terra, foi à tumba da Virgem Maria, quando
então todo o seu destino começou a se realizar. Ou seja, há uma série de implicações que
decorrem deste conto; uma delas é de que foi a viagem de Isaías que ajudou a trazer Cristo
para a terra.
O mesmo fenômeno se dá na paixão de Perpétua, que foi o tema de um ensaio paralelo
publicado junto com a versão alemã do Aion.42 Santa Perpétua foi martirizada, mas em
meio a esta experiência ela teve uma visão de estar subindo uma grande escadaria, o mes-
mo tema referido na história de Isaías. Até onde se leva em conta a visão de Isaías, Jung
enfatiza que o reino de cima e o reino de baixo não estavam, na época, tão completamente
separados como agora se encontram. Havia uma interpenetração entre os dois que corres-
pondia à mão direita e à mão esquerda de Deus, das quais Clemente também falou, e foi
somente mais tarde, durante o desenvolvimento da doutrina, que a separação se tornou
total e irrevogável, tal qual a vemos nas pinturas medievais do Juízo Final.

40 Uma versão ampliada do texto pode ser encontrada em Edgar Hennecke, New Testament Apocrypha, livro
2; em português, cf. Apócrifos, os proscritos da Bíblia, Ed. Mercuryo, vol. I, p. 65s.
41 Ver Memórias, sonhos e reflexões , p. 255.
42 Este ensaio, escrito por Marie-Louise Von Franz, foi traduzido para o português e publicado por Inácio da
Cunha como Paixão de Perpétua: uma interpretação psicológica de suas visões, s/ed., Belo Horizonte, 2009.

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PARÁGRAFOS 105-126

Cristo, um símbolo do Self (cont.)


8
N
o capítulo de Jung sobre Cristo como símbolo do Self existe a referência a Hipólito
e a seu livro Elenchos ou Refutação de todas as heresias. A obra também é referi-
da, às vezes, como Philosophumena. Hipólito foi um dos primeiros padres cristãos
e viveu aproximadamente entre 170 e 236. Foi presbítero em Roma e escreveu um abran-
gente tratado refutando as heresias gnósticas. Para poder refutar e atacar as heresias, Hipó-
lito viu-se obrigado a descrevê-las todas em consideráveis detalhes, razão pela qual seu tra-
balho é uma de nossas melhores fontes para a compreensão do gnosticismo, o que, obvia-
mente, não era sua intenção. É possível que exista uma lição psicológica a ser aprendida a
partir disso.

Os antigos Padres da Igreja odiavam visceralmente os gnósticos, e procuravam e destruíam


todos os escritos gnósticos. Até o descobrimento da biblioteca de Nag Hammadi em 1945,
praticamente não dispúnhamos de nenhum escrito original dos gnósticos. Tudo o que se
sabia a respeito deles tinha como origem aquilo que os cristãos caçadores de heresias havi-
am dito a respeito, e mesmo a Refutação de Hipólito chegou a estar perdida; ela só foi re-
descoberta em 1842, quando uma cópia manuscrita foi encontrada numa biblioteca do
monte Athos, uma ilha da Grécia. Acredito que seja bastante significativo que a descoberta
da biblioteca de Nag Hammadi tenha sido feita só no século XX, e que a redescoberta do
trabalho de Hipólito acerca das heresias só tenha se dado no século XIX.43 Existe uma sin-
cronicidade histórica em todos estes fenômenos. Voltando ao material de Jung da última
parte deste capítulo, primeiro vamos examinar a questão da imagem paradoxal javística de
Deus. Na sua discussão prévia, Jung citou as Homílias Pseudo-Clementinas, que descreviam
a imagem de Deus incorporando o bem e o mal sob a forma da “mão direita e esquerda de
Deus”. Jung afirmou que este texto estava associado aos judeus cristãos. A seguir, Jung
citou a imagem javística de Deus que vinha sendo elaborada no judaísmo na mesma época.
Alguns dos exemplos de Jung, uma compilação de várias fontes judaicas pertencentes aos
primeiros dois ou três séculos d.C., ilustram a ideia paradoxal da imagem javística de Deus.
A referência é ao episódio do Êxodo: “Nenhum de vós saia da porta de sua casa até pela
manhã (...) pois se o vingador tiver as mãos livres algum dia, não haverá mais distinção en-
tre o bem e o mal. E mais ainda, ele começará até mesmo pelos justos”. (par. 106)

43 Disponível em inglês em Roberts e Donaldson, The Ante-Nicene Fathers, vol. 5.

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Isto se refere ao anjo vingador que executou os primogênitos egípcios. O destruidor não
distingue entre justos e injustos, e de fato ele até começa pelos justos, de maneira que os
judeus deveriam permanecer escondidos naquela noite especial. Já outro texto diz que de-
vemos permanecer escondidos durante o momento da cólera de Javé, pois somos adverti-
dos por Ele que no momento de sua desenfreada irascibilidade, se uma maldição é pronun-
ciada, ela de fato será efetiva. Em outras palavras, convém que sejamos muito cuidadosos
com aquilo que dizemos e com aquilo que nos é dito, especialmente no momento em que é
desencadeada a cólera de Deus. Outro texto afirma: “A mão esquerda de Deus reduz tudo a
pedaços, e sua mão direita é gloriosa para salvar”. (par. 107)

Todas estas citações ilustram de maneira clara o que se deve entender pela imagem javística
paradoxal de Deus, e tais imagens possuem uma aplicação psicológica imediata. Por exem-
plo, a observação de que “uma maldição proferida durante o momento da cólera divina será
de fato efetiva” se refere ao fato psicológico de que se uma séria ofensa for cometida a al-
guém, de maneira tal que o nível Javé da psique seja ativado, tudo o que é dito naquele
preciso momento possui extraordinário poder e consequências.

Também a afirmação de que o anjo destruidor não distingue entre justos e injustos corres-
ponde ao fato psicológico de que a cólera do Self é um fenômeno totalmente inconsciente:
trata-se de uma força da natureza. Um furacão não distingue entre justos e injustos, e pode
inclusive atingir primeiro os justos. O mesmo se deve ao Self ativado.

Prosseguindo com a ideia da existência de opostos no interior da imagem de Deus ou do


Self, chegamos ao próximo tema de Jung que é o Self como um quatérnio de opostos (par.
115-7). A figura 9 mostra os diagramas feitos por Jung de dois diferentes pares cruzados de
opostos que se encontram especificamente relacionados com a imagem de Cristo. O pri-
meiro se refere à imagem de Cristo como sendo uma união de Deus com o homem, tendo
em si tanto o aspecto humano quanto divino, e os aspectos tanto histórico quanto eterno.

Figura 9. Opostos relacionados à figura de Cristo


A cruz à esquerda descreve o Cristo do dogma cristão. A cruz à direita
mostra os opostos bom e mau, representados por Cristo e Satanás.

De acordo com a doutrina, Cristo foi uma entidade pré-existente; por um lado ele já existia
antes da criação, e por outro lado nasceu no tempo e no espaço numa condição histórica,
tornando-se, portanto, um personagem histórico. Jung descreve esta situação: uma figura

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que tem uma existência histórica e individual, e que, no entanto, também é eterna, o que a
torna única e também universal. Sua universalidade é representada simbolicamente como
sendo ele uma figura interior que se encontra contida em toda a humanidade — “ele é a
videira e vós sois os galhos da videira”.

Jung então esclarece a segunda quaternidade. Esta quaternidade passa a ser válida se con-
siderarmos que Cristo e Satanás juntos formam um todo. Neste caso, bem e mal constituem
uma polaridade. Já espiritual e material constituem a outra polaridade, porque Cristo é um
espírito mas também se fez corpo na encarnação, de forma a unir este par de opostos. Em-
bora estes diagramas possam parecer somente abstrações interessantes, são na verdade
muito mais do que isso, pois correspondem a imagens ocasionais de sonhos. Devemos
sempre estar alertas para imagens oníricas que combinam opostos desta maneira, pois indi-
cam sempre uma imagem do Self.

Mais material acerca do tema da imagem contraditória de Deus aparece na discussão de


Jung a respeito da tríplice filiação de Basilides. Este assunto surge no parágrafo 118, um
parágrafo tão fortemente condensado que, como quase todo o Aion, requer uma elabora-
ção cuidadosa para ser de fato compreendido. Basilides é um dos gnósticos que Hipólito
discute em sua obra. Trata-se de um autor de particular importância para Jung, que chegou
até a atribuir a Basilides a autoria de seu livro Sete sermões aos mortos.44

Não sabemos nada acerca de Basilides pessoalmente, exceto que foi um brilhante professor
cristão gnóstico e um prolífico autor que floresceu e ensinou na primeira metade do segun-
do século. Basilides escreveu um grande número de comentários sobre os Evangelhos e
aplicou o material cristão às formulações gnósticas. Uma de suas ideias é a assim chamada
tríplice filiação. Jung sentia-se particularmente interessado por esta imagem, referindo-se a
ela em inúmeras passagens de sua obra.45

A figura 10 mostra a imagem de maneira gráfica. A ideia da tríplice filiação é a de que inici-
almente houve um Deus não-existente, uma divindade que existe somente de maneira laten-
te e que ainda não se manifestou. Este Deus emana de si uma espécie de “verbo criador”
que gera uma semente cósmica que emite ou dá nascimento a três filiações — e esta é razão
de seu nome “tríplice filiação”. A palavra “emanações” também poderia ser utilizada aqui,
mas “filiações” expressa melhor uma condição mais pessoal.

A primeira destas filiações é bastante refinada e pura, e imediatamente reverte a seu estado
original, o Deus não-existente. A segunda filiação é um pouco mais grosseira e densa que a
primeira, mas como é alada e pode voar, acaba por retroceder uma parte do caminho de
emanação que percorreu a partir da fonte, e se coloca numa posição intermediária entre a
semente cósmica e a fonte original, o Deus não-existente. Já a terceira filiação, que é a
mais interessante para o nosso ponto de vista, é descrita como impura e desprovida de
forma, uma mistura das sementes indiscriminadas de todas as coisas. É esta filiação que é

44 Ver Memórias, sonhos, reflexões, p. 332.


45 Ver, por exemplo, Misterium coniunctionis, OC 14/1, par 120-1.

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chamada de pan-spermia, uma mixórdia de sementes, o germe do mundo que ainda não
brotou, ou ainda não se manifestou. Trata-se de uma matriz de todas as possibilidades.

Jung trata brevemente dessa tríplice filiação no parágrafo 118, e obviamente a considera
muito sugestiva em relação à natureza de determinados aspectos da psique. A tríplice filia-
ção pode ser entendida como sendo uma imagem do desenvolvimento do Eu. Como já
vimos, o Eu é o filho do inconsciente. Este mito de criação de Basilides nos conta que a
emergência da psique individual a partir do inconsciente geral é um processo triplo: uma
parte dela (a primeira filiação) jamais se separa da totalidade original, mas permanece ligada
ao estado original não-manifestado das coisas, a não-totalidade na matéria. A parte dois
assume uma espécie de posição intermediária, e a parte três mergulha totalmente na maté-
ria. Assim, a parte dois seria a única parte realmente consciente, enquanto a parte um per-
maneceria completamente identificada com a totalidade original. A parte três, que é descrita
como mergulhando na matéria na condição amorfa, pode ser entendida de diversas formas:
ela pode ser vista, por exemplo, como o aspecto da psique que reside no corpo. No pará-
grafo 120 Jung usa de outras palavras para explicá-la:

Esta imagem da terceira filiação tem certa analogia com o filius philosophorum [filho dos filóso-
fos] e com o filius macrocosmi [filho do macrocosmo] da Idade Média, que representam a alma
do mundo adormecida no interior da matéria. Até para o próprio Basilides o corpo recebe um
significado especial e inesperado, por repousar nele e em sua materialidade um terço da divinda-
de revelada. Isso outra coisa não é do que atribuir considerável grau de numinosidade à matéria,
e neste fato eu vejo uma antecipação daquele significado “místico” da matéria que aparecerá
posteriormente na alquimia e — last but not least — também nas ciências naturais e físicas.

Aqui reside um importante aspecto do pensamento junguiano: a ideia de que um determi-


nado aspecto do Self mergulha na matéria e, desta forma, proporciona a numinosidade
dela, que se reflete nos fenômenos tanto da alquimia quanto das ciências naturais. Este pro-
cesso ficou bastante evidente na alquimia, pois os alquimistas foram fascinados pelo misté-
rio da transformação da matéria na retorta alquímica. Contudo, se pararmos para pensar
nisso, a mesma ideia vale para todo o desenvolvimento científico que sucedeu à alquimia: o
desenvolvimento da química, da física e das ciências biológicas. A fascinação que acomete
os pesquisadores científicos, que os leva a investir toda a sua energia na tarefa de descobrir
os segredos da matéria, também reflete a numinosidade da matéria. É desta maneira que se
pode entender toda a Revolução Científica. A tríplice filiação de Basilides ilumina o atual
fenômeno científico em particular, assim como vários outros.

Outra imagem aparece, já no final do parágrafo 118, de uma maneira que possivelmente
não pode ser compreendida sem que haja referência ao material original. O que Jung faz
aqui é trazer à luz outra ideia de Basilides, a imagem dos três Cristos. Esta imagem deriva
da concepção de Basilides do universo, que está ilustrada na figura 11.

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Figura 10. A tríplice filiação de Basilides


A ideia de Basilides sobre a criação do mundo pelo Deus não-manifestado
(“não-existente”) também proporciona uma imagem da criação da psique
individual a partir do inconsciente.

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Figura 11. A concepção do universo de Basilides


A Sabedoria filtra-se para baixo a partir do Deus “não-existente” em dire-
ção aos três Cristos. Como consequência, Jesus Cristo se transforma no
portador da consciência para o caos original da terceira filiação na terra.

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No alto encontra-se o reino do Deus não-existente, o reino do espaço supramundano, e a


abóboda celestial é seu teto. Logo abaixo se encontra a morada do Arconte da Ogdóada (o
governante dos oito). O arconte reside em meio ao éter, e o assoalho deste reino é a órbita
da lua. Mais abaixo se encontra o reino de outro arconte, o Arconte da Hebdômada (o go-
vernante dos sete), e ele reside em meio ao ar. Mais abaixo ainda encontra-se a terra.

No contexto deste modelo do universo, Basilides descreve a imagem de três Cristos, os


quais Jung ressalta no final do parágrafo 118. A ideia é a de que o Arconte da Ogdóada
teve um filho, Cristo, e a de que o Arconte da Hebdômada teve um filho também, um se-
gundo Cristo. Uma parte da Sabedoria do Deus não-existente filtrou-se para baixo e foi
assimilada pelo primeiro Cristo; esta Sabedoria informou-o de que havia um Deus superior
ao Arconte da Ogdóada, de forma que resolveu dizê-lo a seu pai, que ficou bastante aborre-
cido ao saber que havia um Deus superior, já que imaginava ser o Deus mais alto. A Sabe-
doria também filtrou-se mais abaixo em direção ao segundo Cristo (filho do Arconte da
Hebdômada), que então ficou sabendo que havia um Deus superior, e também contou a seu
pai. O filho sabia mais que seu pai porque havia recebido a informação antes do pai. O
Arconte da Hebdômada também ficou bastante irritado. Quando os arcontes se deram con-
ta da existência deste Deus superior a eles, caíram em terror, diz o texto. Contudo, a Sabe-
doria não parou ali, pois um terceiro Cristo havia sido criado na terra, e este Cristo era Je-
sus, filho de Maria. A Sabedoria acabou por filtrar-se mais abaixo ainda em direção a Jesus,
e este então informou o mundo a respeito da existência do Deus mais elevado.

Esta é a imagem de Basilides dos três Cristos. Jesus, filho de Maria, o terceiro Cristo, é um
exemplo do caminho que deve seguir esta impura tríplice filiação, perdida na matéria aqui
na terra, para que possa se recuperar de seu estado amorfo. A purificação desta terceira
filiação é descrita no parágrafo 118:

Já há muito se sabia e se dizia expressamente que o homem Jesus, o filho de Maria, era o prin-
cipium individuationis [a fonte da individuação]. Assim Basilides, por exemplo, afirmava, segundo
relata Hipólito: “Jesus tornou-se as primícias da divisão das espécies (phylokrinesis) e a Paixão,
ao se realizar, outro objetivo não teve senão a divisão das espécies das coisas que estavam mistu-
radas. Foi por este modo, afirma ele, que toda a filiação que ficara abandonada na amorfia (au-
sência de forma) precisou ser dividida em espécies (dein phylokrinethenai) (...) e foi deste modo
que Jesus também foi dividido em espécies”.

Sabemos que esta passagem é bastante importante para Jung porque ele a escolheu como
o moto para o livro Aion. Logo na página inicial Hipólito é citado: “Isto aconteceu, afirmam
eles, para que Jesus se tornasse a primeira vítima do processo de diferenciação das coisas
que foram misturadas”. Agora tudo o que nos cabe é imaginar o que de fato isso significa.

Temos aqui uma imagem profunda concernente à natureza da individuação e à maneira


pela qual a consciência emerge. O que significam estas “coisas que foram misturadas”? Esta
expressão se refere à prima materia, o caos, a condição indiferenciada da terceira filiação
que se encontra no mesmo estado que o germe cósmico — uma mistura confusa das se-
mentes de todas as coisas. A terceira filiação, que é amorfa, desprovida de qualquer forma e
estrutura, aprende a adquirir forma e a purificar-se; ela aprende a partir do exemplo do

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terceiro Cristo, Jesus, filho de Maria. Como diz Jung em inúmeras passagens, 46 isso é obti-
do através da imagem da crucificação, através da imposição da experiência da cruz à condi-
ção amorfa original.

A cruz tem o efeito de separar os opostos, trazendo consigo a discriminação, ao mesmo


tempo que os ordena e os unifica. Na nota de rodapé 87, Jung cita a doutrina valentiniana
do horos, na qual a cruz era equivalente ao horos, que significa limite, fronteira, marco de
divisão. Isto nos dá uma ideia de como esta terceira filiação é submetida à diferenciação: ela
se dá por meio de um encontro com a imagem ativada da totalidade, que tem o poder
consciente de discriminar os opostos ao mesmo tempo em que os contêm. É isto que a
imagem da cruz faz.

A imagem de Cristo contrastada com a ideia do Self leva Jung ao tema da completude co-
mo sendo oposta à perfeição. No parágrafo 123 ele fala a respeito da teleiosis. É bastante
natural esforçarmo-nos por obter a teleiosis no sentido de perfeição, embora exista outro
significado para a palavra, que é “completude”, “totalidade”. Jung refere-se à escritura que
ordena ao fiel “Portanto, deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mat 5,
48, DV). Esta é a injunção cristã à perfeição, à bondade unilateral, mas ela é baseada na
tradução da palavra teleiosis como sendo “perfeição”, que não é bem correta. Telos signifi-
ca objetivo, meta, final ou coroamento; telos é a raiz de nossa palavra “teleológico”. Teleios
significa que aquele que alcançou seu objetivo encontra-se maduro, completo, realizado ou
plenamente crescido. Teleiosis, então, seria um estado de completude ou totalidade. A es-
critura, então, seria mais bem traduzida por “Portanto, deveis ser inteiros e completos como
o vosso Pai celeste é inteiro e completo”. O terceiro Cristo faz esta observação à terceira
filiação, informando-a de que maneira deve escapar do estado amorfo e restabelecer a rela-
ção com sua fonte.

Uma última ideia afim que emerge neste capítulo do Aion é a da individuação involuntária
ou reprimida. Jung alude a isso no parágrafo 125, onde trata da tarefa de individuação que
nos é imposta pela natureza, afirmando que devemos tomá-la como um compromisso pes-
soal para conscientizarmo-nos de nossa completude ou totalidade:

Se o indivíduo realizar isso de maneira consciente e intencional, evitará todas as consequências


desagradáveis que decorrem de uma individuação reprimida; isto é, se assumir de livre e espon-
tânea vontade a inteireza, não será obrigado a sentir na carne que ela se realiza dentro dele con-
tra a sua vontade, ou seja, de forma negativa. Isto significa que se alguém está disposto a descer
a um poço fundo, o melhor é entregar-se a esta tarefa adotando todas as medidas de precaução
necessárias, do que arriscar-se a cair de costas pelo buraco abaixo.

Jung uma vez disse que todos aqueles que vieram até ele acabaram por tomar a vida em
suas próprias mãos. Compreendo isso como significando que desde que a individuação se
encontrava operando tão poderosamente em Jung, sempre que um paciente trabalhava
com ele a individuação era inevitavelmente constelada no paciente. Não se pode chegar
perto de um tal campo de força arquetípico sem ser afetado por ele. Se o paciente não
aceita conscientemente a tarefa constelada nele, ele acaba por se ver preso numa situação
46 Por exemplo, Aion, par. 79, e Psicologia e religião, OC 11, par. 433.

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de individuação reprimida e involuntária. Este ímpeto reprimido para individuar-se pode se


tornar perigosamente destrutivo. Acredito que é este mecanismo que se encontra por trás
de pessoas cronicamente “azaradas” que são perpetuamente propensas a acidentes. Em
casos extremos, a individuação reprimida pode matar uma pessoa. Uma variação de indivi-
duação involuntária é aquilo que pode ser chamado de “individuação exteriorizada”. Jung
comenta isso no parágrafo 126:

A regra psicológica diz que quando uma situação interna não se torna consciente, ela acontece
exteriormente, sob a forma de destino. Em outras palavras, quando o indivíduo se mantém não-
dividido e não percebe suas antinomias interiores, então é o mundo que deve configurar o confli-
to e cindir-se em duas partes opostas.

Jung aqui está se referindo à divisão política entre Leste e Oeste, mas versões menores
deste fenômeno também ocorrem. A ideia é a de que se os opostos foram ativados no pro-
cesso de individuação, e se alguém se mantém inconsciente deste fato e de um conflito pes-
soal, o oposto inconsciente se manifesta externamente no entorno desta pessoa. É então
que o conflito golpeia uma pessoa a partir de fora em vez de a partir de dentro. Eu procuro
sempre considerar tais eventos externos que surgem em minha vida como “sonhos exter-
nos”, admitindo que eles sempre tragam um significado psicológico da mesma maneira que
um sonho o faz, e procuro interpretá-los da mesma maneira que o faria com um sonho.

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PARÁGRAFOS 127-138

O signo de Peixes
9
C
risto simbolizado por um peixe é um tema essencial que vai permear o resto do
Aion. Como recordamos da discussão acerca da precessão dos equinócios, 47 há
aproximadamente 2.000 anos atrás o sol do equinócio de primavera moveu-se do
signo de Áries para o signo de Peixes. Esta transição corresponde ao começo do éon
tão. Em nossos dias o éon cristão encontra-se prestes a acabar e o sol prestes a se mover
do signo de Peixes para o de Aquário.

Uma das ideias básicas de Jung é a de que o simbolismo do peixe que se constelou em vol-
ta da figura de Cristo foi sincronisticamente paralelo à nova era astrológica de Peixes que
então se iniciava. Cristo acabou por se tornar uma espécie de personificação deste éon. Sua
representação como um peixe não foi causada por nenhum conhecimento genérico de que
o sol acabara de mover-se para o signo de Peixes, mas sim em função de um paralelo sin-
cronístico. Sabemos por meio de uma profusão de dados que os antigos cristãos identifica-
vam Cristo explicitamente com o peixe. Por exemplo, a marca de um peixe era usada co-
mo um sinal secreto para identificar um cristão para outro; este signo permanece até hoje,
pois podemos encontrá-lo em alguns para-choques de caminhão. Um dos nomes de Cristo
era Ichtys, palavra grega que significa peixe, e uma espécie de anagrama era atribuído a ela
para explicar essa relação com Cristo. As primeiras letras da frase “Jesus Cristo, filho de
Deus, Salvador” ditas em grego formam a palavra Ichtys. Agostinho refere-se a este ana-
grama em sua obra Cidade de Deus:

“Peixe” [é a palavra pela qual] Cristo é compreendido misticamente, pois Ele foi capaz
de viver, isto é, de existir isento de pecado em meio ao abismo de nossa mortalidade as-
sim como nas profundezas das águas.48

O Novo Testamento alude ao simbolismo do peixe em diversas passagens, o que também


ajuda a estabelecer a conexão de Cristo com o peixe. Cristo escolhe pescadores para serem
seus discípulos dizendo: “Segui-me e eu vos farei pescadores de homens” (Mt 4,19, BJ). O
milagre dos cinco pães e dois peixes que se multiplicaram miraculosamente e alimentaram
(Mt 14, 15-21) é outro exemplo, e provavelmente esta é a origem do uso do peixe na refei-

47 Ver acima, p. 15.


48 Livro 18, cap. 23.

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ção eucarística do início do cristianismo. A pesca milagrosa de peixes (Lc 5, 4-6) também é
outro exemplo. Esta imagem simbólica do peixe aparece inúmeras vezes no Aion.

Outro tema essencial que percorre todo o Aion é o duplo aspecto de Cristo; o presente
capítulo também introduz este segundo tema. O signo zodiacal de Peixes é um signo duplo:
ele representa dois peixes, um em posição vertical e outro em posição horizontal. Esta du-
plicidade corresponde ao fato de que muito cedo a imagem de Cristo adquiriu uma duplici-
dade em sua manifestação. Como Jung comenta no parágrafo 130, o duplo aspecto de
Cristo já está prefigurado na antiga imagem egípcia do par de irmãos hostis, Hórus e Seth,
o irmão bom e o irmão mau. Estes dois irmãos correspondem ao par Cristo e Satanás.

Avançando na elaboração do paralelo, Jung afirma no parágrafo 130: “Isto nos leva a pen-
sar no par dos irmãos egípcios Hórus e Seth, no sacrificante e no sacrificado”. Jung está se
referindo a uma imagem à qual ele já havia tratado antes, na qual Set aparece como o sacri-
ficado, atado a um cepo de escravos. Hórus se coloca diante dele com uma faca na mão.
Jung aponta que, no mito egípcio, Seth simboliza o mal que é sacrificado. Já no mito cris-
tão esta versão é invertida: o irmão bom é sacrificado. Na nota 42, seguindo a esta obser-
vação, Jung afirma:

A crucificação era, como se sabe, punição reservada aos escravos. A este respeito, convém lem-
brar que a cruz com a serpente (em vez do Crucificado) ocorre com frequência não só na Idade
Média, mas também nos sonhos modernos e imagens da fantasia de pessoas que desconhecem
inteiramente esta tradição. Um sonho típico deste gênero é o seguinte: O sonhador assiste a uma
representação da Paixão no teatro. A caminho do Gólgota, aquele que representa o Salvador
transmuta-se, repentinamente, em uma serpente ou em um crocodilo.

Esta imagem de serpente crucificada aparece ocasionalmente em sonhos. Trata-se da ima-


gem simbólica de um processo de transformação psicológica no qual a psique primordial de
sangue frio, representada pela serpente, peixe, lagarto ou algo semelhante, é sacrificada.
Este é um aspecto bastante distintivo do simbolismo cristão, embora se origine espontane-
amente no interior da psique, o mesmo local no qual se originou o simbolismo cristão. Ter-
tuliano afirmou “A alma é por natureza cristã”,49 e atualmente podemos entender esta a-
firmação de uma maneira psicológica, sugerindo que imagens deste tipo são espontanea-
mente produzidas a partir da psique.

Na mitologia clássica um tipo diferente de pareamento é expressado na imagem de dois


irmãos, Castor e Pólux (ou Polideuces): um é mortal e o outro imortal; aqui, a dicotomia
bem/mal não está presente. Considera-se que estes dois irmãos acabaram por se transfor-
mar na constelação astrológica de Gêmeos. Uma imagem similar de duplicidade ou gemela-
ridade também é aplicada ao Cristo na obra gnóstica Pistis Sophia, a partir da qual Jung
cita uma história passada na infância de Cristo. Maria diz a Jesus:

Quando eras pequeno, antes que o espírito viesse sobre ti, ele desceu do alto e veio ter comigo,
à minha casa, enquanto estavas com José trabalhando em uma vinha. Era parecido contigo, e
não o reconheci, pois pensei que fosse tu. E o espírito me disse: ‘Onde está Jesus, meu irmão,

49 Apologia, cap. 17.


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para que eu possa encontrar-me com ele?’ E ao dizer tais coisas perturbei-me; pensei que um
fantasma viera me tentar. Peguei-o e o amarrei ao pé da cama, em casa, e fui ter contigo e com
José, no campo, e vos encontrei na vinha, onde José fixava as estacas. E quando me ouviste di-
zer estas coisas a José, compreendeste as palavras que eu dizia; alegraste-te e me disseste: ‘On-
de está ele? Para que eu o veja, pois o espero neste lugar’. Eis que José, ao ouvir tuas palavras,
perturbou-se, e voltamos os três para casa e, ao entrar, encontramos o espírito amarrado à mi-
nha cama. E olhamos para ti e te achamos parecido com ele; e libertamos o que estava amarra-
do à cama, ele te abraçou e te beijou, e também o beijaste, e vós dois vos tornastes uma só coi-
sa.

Esta imagem particular é parte daquilo que se conhece como docetismo, uma antiga heresia
cristã. De acordo com esta doutrina, a natureza de Cristo, a natureza divina de Jesus, des-
cendeu sobre o ser humano comum num determinado momento, geralmente tido como o
momento de seu batismo. Esta natureza divina teria penetrado em Jesus e realizado suas
transformações nele, e quando seu trabalho já havia sido concluído e Jesus encontrava-se
pregado à cruz, o espírito o teria abandonado. Assim, o homem Jesus teve que suportar as
consequências do trabalho que o espírito havia realizado por seu intermédio. Pessoalmente
considero isso uma importantíssima imagem para se compreender a natureza da individua-
ção. Muitas vezes o Self se comporta desta maneira em relação ao Eu: ele se incorpora ao
Eu, impõe a realização de tarefas com as quais este dificilmente concordaria — elas quase
sempre são onerosas —, e depois se retira, sendo que quem paga a conta é o Eu.

Jung comenta sobre esta citação de Pistis Sophia:

Como se depreende do contexto desta perícope, Jesus corresponde aqui à “verdade que brota
da terra”, enquanto que o espírito igual a ele corresponde à “justiça (dikaiosyne) que nos olha do
céu”. (par. 132)

Jung refere-se aqui a uma passagem do fragmento anteriormente citado, na qual Maria re-
pete uma passagem do Salmo 85, 11 para comentar o evento do fantasma de Cristo des-
cendo do alto. O Salmo 85, 11 diz: “Da terra brotará a Verdade, e a Justiça se inclinará do
céu” (AV). Jung segue comentando que Jesus, portanto, é concebido como sendo uma
dupla personalidade, parte da qual ascende a partir do Caos ou hyle, brota da terra, en-
quanto a outra parte desce do céu como pneuma. Verdade brotando da terra e justiça o-
lhando para baixo do céu: uma imagem bastante fecunda.

Estes dois termos, justiça e verdade, têm interessantes usos no Velho Testamento. A ideia
básica é que verdade diz respeito a sinceridade, autenticidade e fidelidade à própria realida-
de. Psicologicamente, verdade significa ser genuíno, ser verdadeiramente aquele que se é. É
isto que brota de baixo para cima. Já justiça ou equidade, por outro lado, é definida como
submissão a princípios, a leis ou a uma conduta adequada, submissão a padrões espirituais
que já foram previamente estabelecidos. O que temos aqui é algo bastante próximo a um
par de opostos no qual uma “existência verdadeira” nasce a partir da realidade concreta
terrena do nosso Self, enquanto que a nossa retidão nos é dada a partir de cima. Assim, a
passagem que descreve a união de Cristo com seu irmão celeste corresponde à união da
verdade com a justiça.

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Esta mesma imagem — e ela provavelmente lhe ocorreu espontaneamente — foi usada por
Milton na linha final de sua obra teatral denominada Comus, na qual ele fala de uma perso-
nificação feminina da virtude, da fidelidade, da vida honesta e verdadeira. Milton termina
com esta bela linha, desejando que Virtude seja bem sucedida, pois se não for, diz ele, “O-
ra, se Virtude aqui fraquejar / o próprio céu se curvará sobre ela”. Trata-se da mesma ima-
gem: aquilo que nasce da terra manifestando sua autêntica existência gera uma resposta
vinda de cima, e ambas acabam por se unir.

Se dois planetas aparentam estar bem próximos um do outro quando vistos da terra, dize-
mos que eles se encontram em conjunção. Como se trata de um evento não usual, ele é
impressionante e geralmente evoca projeções coletivas. Jung refere-se a várias conjunções
planetárias e às projeções psíquicas coletivas que se seguem a elas.

Por exemplo, a conjunção de Saturno com Júpiter que ocorreu no século 13 a.C. é inter-
pretada como tendo pressagiado o nascimento de Moisés. No século 12 de nossa era foi
predito que o Messias viria a se manifestar por ocasião de uma conjunção de Júpiter com
Saturno em Peixes. A conjunção de Júpiter e Saturno em Peixes no ano 7 a.C. é conside-
rada como tendo anunciado o nascimento de Cristo. Jung comenta a respeito desta conjun-
ção de Júpiter com Saturno que, já que o último é considerado o planeta malévolo, e Júpi-
ter é considerado o planeta de justiça, o ser supremo, a conjunção de ambos corresponde à
conjunção de opostos — bem e mal, vida e morte. Sob este ponto de vista eles correspon-
dem ao simbolismo dos dois peixes no signo zodiacal de Peixes. Jung também menciona o
fato de que a conjunção de Júpiter e Peixes em Gêmeos ocorreu no ano 531 d.C., afir-
mando haver uma conexão sincronística disso com a fundação do primeiro monastério por
São Bento em 529 d.C. A ideia por trás disto é a de que sempre que opostos se aproxi-
mam dá-se a coniunctio e podemos esperar que algo importante aconteça.

Isto é ilustrado por uma tradição medieval de acordo com a qual as grandes religiões se
originaram de conjunções planetárias. Jung refere-se a isto assim:

A religião dos judeus teve origem durante a conjunção de Júpiter com Saturno, o Islã com [Júpi-
ter e Vênus], o cristianismo com [Júpiter e Mercúrio] e o Anticristo com [Júpiter e Lua].

Acredito que existam implicações psicológicas em todas estas quatro conjunções. As ideias
mais óbvias que emergem deste simbolismo é que o judaísmo contém em si e é o resultado
da maior condição possível de oposição, Júpiter com Saturno, e que a derivação do Islã da
conjunção de Júpiter com Vênus sugere que ele possui o maior conteúdo de Eros, e a mim
parece que este é mesmo o caso. O Islã árabe é uma religião de Eros, e isso nos ajuda a
compreender a presença do crescente lunar em tantas bandeiras de nações árabes. A deri-
vação do cristianismo da conjunção de Júpiter com Mercúrio sugere que ele enfatiza a espi-
ritualidade ao seu grau máximo, o que também me parece verdade. O cristianismo é, de
todas, a religião que mais nega o corpo. A vinda do Anticristo como resultado da conjunção

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de Júpiter com Lua sugere que o Anticristo incorporará tudo o que há de mais ambíguo
acerca do simbolismo lunar.50

Do começo ao fim do Aion, Jung nos proporciona um grande número de referências a


eventos significativos do éon cristão, de forma que um padrão do éon começa a emergir
gradualmente. A figura 12 expressa de maneira genérica este padrão, servindo como auxílio
para a avalanche de dados brutos aos quais Jung vai se referir nos próximos capítulos. O
diagrama representa aproximadamente uma extensão de 2.000 anos de história. Eventos
de maior significado psicológico tendem a se agrupar próximos a certos pontos nodais no
curso destes 2.000 anos. Eles se agrupam aproximadamente a um quarto do período, no
ano 500 d.C.; à metade do caminho, no ano 1.000; a três quartos do período, em 1.500;
e novamente ao final, no ano 2.000 d.C.

Trata-se de um fenômeno de constelação; não há nada muito preciso, mas a maior intensi-
dade de agrupamento de eventos tende a ocorrer próxima destes pontos nodais. O ano
1.000 d.C. é uma data particularmente importante porque é então que a idade do primeiro
peixe se encerra e a época do segundo peixe começa a raiar. Por volta do ano 500, a pri-
meira metade do éon atingiu seu ápice. Cerca de 1.500, o aspecto Anticristo do éon se
manifesta mais claramente. Jung considera bastante significativo o início do monasticismo
com a fundação, por São Bento, do primeiro monastério em 529, e também a influência de
Joaquim de Flora, que será discutida adiante, que se deu um pouco depois do ano 1.000.
Também por volta do ano 1.000 houve um grande florescimento de cultos e heresias. Já
por volta de 1.500 dão-se eventos com os quais estamos mais familiarizados: o Renasci-
mento, a Reforma e a emergência da ciência tal qual a conhecemos. Outro item significati-
vo é que o Doutor Fausto histórico supostamente viveu de 1.450 a 1.540: é então que a
lenda de Fausto começa a circular.

Em meio a este contexto, convém acrescentar uma discussão adicional referente a Bento de
Núrsia, que viveu de 480 a 547. Jung notou que houve uma conjunção de Júpiter com
Saturno em Gêmeos no ano 531, que ele relaciona à fundação do primeiro monastério por
Bento em 529. Bento de Núrsia foi o pai do monaquismo ocidental. Ele ficou chocado com
a licenciosidade de Roma na época, na qual viveu inicialmente, e acabou se retirando ainda
jovem para levar uma vida de eremita numa caverna. Acabou por adquirir uma reputação
de grande santidade, reuniu uma grande quantidade de discípulos à sua volta, e finalmente
fundou seu monastério em Monte Cassino, onde estabeleceu a famosa Regra beneditina. A
regra acabou por se tornar o código de referência para todo o monasticismo ocidental, e
assim tem sido até hoje. A regra define simplesmente tudo o que é necessário para se esta-
belecer e manter um monastério. Uma ideia daquilo que é estabelecido pela Regra pode ser
obtida pela simples leitura de seu índice de assuntos:

50 Ver o extenso material de Jung a respeito do simbolismo lunar em Mysterium coniunctionis, OC 14/1,
especialmente par. 149-227; ver também meu livro Mysterium lectures, p. 105-29.

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Figura 12. Padrão do éon de Peixes


A linha do tempo da era de Peixes, mostrando os pontos nodais de e-
ventos históricos do período.

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Os tipos de monges. Que tipo de homem o Abade deve ser (...) As ferramentas do bom trabalho.
Sobre a obediência. Sobre o silêncio. Sobre a humildade (...) Quantos Salmos devem ser ditos no
ofício da noite (...) Em que estações o Aleluia deve ser dito. Como o trabalho de Deus deve ser
realizado durante o dia (...) Sobre a reverência na prece (...) Como os monges devem dormir.
Sobre a excomunhão por faltas (...) Sobre aqueles que embora frequentemente admoestados não
se corrigem (...) As ferramentas e propriedades do monastério (...) Sobre os irmãos enfermos (...)
Sobre a leitura semanal. A quantidade de comida (...) A hora das refeições (...) Sobre os trabalhos
manuais diários (...) Se um monge deve receber cartas e outras coisas (...) As roupas e calçados
dos irmãos (...) Como devem ser recebidos monges peregrinos (...) Se um irmão recebe a ordem
de realizar algo impossível. Sejam os irmãos obedientes uns aos outros. 51

Esta é uma instrução sobre como desenvolver a humildade:

O segundo grau da humildade é aquele em que o homem não mais ama sua própria vontade,
nem se deleita em realizar seus próprios desejos, mas realiza em seus feitos os dizeres do Se-
nhor: Não vim para cumprir minha própria vontade, mas a vontade daquele que me enviou. O
terceiro degrau da humildade é aquele em que o homem, pelo amor a Deus, submete-se a seu
superior em plena obediência, imitando o Senhor, a respeito de quem o apóstolo diz: Ele se fez
obediente até a morte. O quarto degrau de humildade é aquele em que, quando em meio a esta
obediência, o homem se vê em dificuldades e contradições e até injustiças, mantém-se firme e
paciente com a mente quieta, a tudo suportando sem cansaço ou fuga; pois disse a Escritura:
Aquele que perseverar até o fim será salvo, e de novo: Que teu coração tome coragem e espere
pelo Senhor.52

Os princípios básicos do monaquismo eram pobreza, castidade e obediência. O monaquis-


mo acabou por se tornar um imenso processo coletivo que se estendeu por muitos séculos.
Milhões de pessoas participaram da vida monástica no decurso destes séculos. Da posição
que agora ocupamos, estamos particularmente cientes do lado sombrio do monasticismo
enquanto representando uma fuga da vida real, embora eu acredite que ele tenha tido um
significado diferente durante o tempo em que vicejava, pois gerou uma enorme operação
coletiva destinada a domesticar a psique instintiva, domesticar a concupiscência e a sujeitar
ambas à sua polaridade oposta.

A insistência do movimento monacal na pobreza, castidade e obediência representa a frus-


tração de tudo o que uma pessoa pode desejar. Ela abarca praticamente tudo — a ambição,
a lascívia e o desejo de poder. Como para ser obediente uma pessoa precisa subordinar seu
desejo de poder, acredito que o fenômeno monástico prestou um enorme serviço para a
transformação da psique coletiva através dos séculos, e é por isso que Jung atribui a ele
tamanha importância, a ponto de afirmar que ele foi prefigurado por uma conjunção magna
entre Júpiter e Saturno.

51 The rule of St. Benedict, p 1 e s.


52 Ibid., p. 43.

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PARÁGRAFOS 139-149

O signo de Peixes (cont.)


10
O
segundo ponto nodal no padrão do éon cristão surge em torno do ano 1.000,
época caracterizada pela emergência de inúmeras seitas e cultos heréticos e tam-
bém pelo surgimento do proeminente porta-voz do espírito santo chamado Joa-

0
quim de Flora, ou de Fiore, uma cidade situada no sul da Itália.

Joaquim de Flora viveu aproximadamente de 1.132 a 1.202. Fundou uma ordem monásti-
ca e obteve considerável renome durante sua vida. Suas ideias deixaram uma marca pro-
funda nos movimentos espirituais da época e também na História em geral. Conhece-se
pouco a respeito de sua pessoa. Nasceu e viveu a maior parte de sua vida no sul da Itália e
realizou uma peregrinação para a Terra Santa. Tornou-se monge cisterciense e depois, num
determinado momento, rompeu com seu monastério e retirou-se para as montanhas para
seguir uma vida contemplativa de solidão.

Joaquim de Flora teve uma rica vida interior, mas pouco se conhece dela em detalhes, ex-
ceto que, segundo as lendas, teve três iluminações bastante significativas. Uma delas ocor-
reu aparentemente durante a sua peregrinação à Terra Santa. A segunda se deu durante a
noite de Páscoa após um período frustrado estudando o Apocalipse. Neste período, após
um intervalo em que se sentia aprisionada, sua mente foi subitamente inundada por uma
claridade. A terceira ocasião, aquela pela qual ele é mais conhecido, foi uma experiência no
Pentecostes, quando após um período de terríveis dúvidas em relação à doutrina da Trinda-
de — um assunto pelo qual foi obcecado por toda a vida —, teve uma visão de um saltério,
uma espécie de harpa primitiva. Ora, os Salmos também são às vezes chamados de saltério
porque a sua recitação era com frequência acompanhada pela música daquele instrumento
de cordas. A visão de Joaquim foi a de um saltério que tinha dez cordas; o instrumento
tinha a forma triangular, significando a Trindade. O resultado da visão foi a resolução de
suas dúvidas a respeito da Trindade, o que acabou por constituir o tema de sua principal
doutrina.

Sua ideia original foi perceber que a Trindade, que até então era tida como uma entidade
estática que expressava a divindade cristã, poderia ser concebida como um processo histó-
rico. Ele afirmou que a Idade do Pai manifestou-se na história durante o período do Velho
Testamento, aproximadamente durante mil anos antes de Cristo. Joaquim caracterizou este

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período como sendo a época da lei e do medo. A Idade do Filho, considerada como sendo
a época do Novo Testamento, ocorreu durante os primeiros mil anos do éon cristão, e foi
descrita como sendo o período da graça e da fé. Já a Idade do Espírito Santo foi considera-
da por Joaquim como tendo começado no ano 1.000 de nossa era, e este período foi ca-
racterizado pelas qualidades do amor e do espírito, e pela manifestação e morada do Espíri-
to Santo em cada uma das pessoas.

Em toda a duração do cristianismo, já existiram inúmeros credos que definem a Trindade;


Jung cita uma descrição particular do Credo do Concílio de Latrão que foi estabelecido em
1.215 e que caracteriza a Trindade com as seguintes palavras:

Cremos firmemente e confessamos com simplicidade que só um é o Deus Verdadeiro, eterno e


imenso, todo-poderoso e imutável, incompreensível e inefável, Pai, Filho e Espírito Santo; três
pessoas, mas uma essência, substância ou natureza absolutamente simples. O Pai não procede
de ninguém, o Filho procede somente do pai, e o Espírito Santo procede ao mesmo tempo de
ambos, sempre sem começo e sem fim: o Pai gera, o Filho é gerado e o Espírito procede; todos
os três consubstanciais, iguais entre si, igualmente onipotentes e eternos. 53

Esta é a formulação dogmática da doutrina da Trindade em sua forma mais elementar. A


grande contribuição de Joaquim foi traduzir este simbolismo para uma sequência temporal.
Joaquim foi um precursor de Jung no sentido de que Jung também traduziu o simbolismo
da Trindade para um processo temporal — um processo de desenvolvimento psicológico.
Em seu ensaio sobre a Trindade, Jung discute o simbolismo do Pai, do Filho e do Espírito
Santo como representando três estágios de um processo de desenvolvimento: “O mundo
do Pai é caracterizado por uma época em que há uma unidade original com toda a Nature-
za”,54 uma idade bastante afastada do julgamento crítico e do conflito moral. No homem,
esta época é caracterizada pela sua condição infantil. Ela corresponde à condição psicológi-
ca da unidade original. Acerca do mundo do Filho, Jung escreve:

[O mundo do Filho é] um mundo ansioso pela salvação e por aquela perfeição mediante a qual
ainda se achava unido ao pai. Ansiava por retornar ao mundo do Pai, mas este reino se havia
perdido definitivamente, pois houvera um irreversível aumento de autonomia da consciência hu-
mana.
O estágio do Filho, portanto, é um estágio de conflito por excelência (...) A libertação da lei traz
consigo uma exacerbação dos contrastes, particularmente do contraste moral.55

Este estado de coisas corresponde ao significado do número dois, que simboliza o conflito
de opostos. O Espírito Santo, contudo, nos conduz ao simbolismo do número três, e a res-
peito do mundo do Espírito Santo Jung escreve:

O progresso trazido pela terceira fase significa, por conseguinte, como que o reconhecimento do
inconsciente, quando não uma subordinação a ele (...) Da mesma forma que a passagem da pri-

53 “Tentativa de uma interpretação psicológica do dogma da trindade”, em Psicologia da religião ocidental e


oriental, OC 11, par. 219.
54 Ibid. par. 201.
55 Ibid. par. 203 e 272.

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meira fase para a segunda exige o sacrifício da dependência infantil, assim também na passagem
para a terceira fase é preciso que se renuncie à autonomia absoluta.
Esta terceira fase (...) significa uma inserção da consciência do Eu na totalidade superior, à qual
não se pode chamar de Eu, mas que por isto mesmo se ilustra melhor através de uma categoria
mais ampla.56

Assim, há consideráveis analogias entre o tríplice processo histórico de Joaquim e a tríplice


sequência de desenvolvimento psíquico de Jung. Uma espantosa similaridade é a de que
Joaquim retrata a era final do Espírito Santo como sendo a que introduzirá aquilo que ele
chama de ecclesia spiritualis, a Igreja do Espírito. Jung utiliza-se deste termo e ele aparece
na alquimia. Ecclesia spiritualis refere-se a uma igreja em que cada indivíduo estabelece uma
relação única com o Espírito Santo. As ideias de Joaquim são um prelúdio à forma psicoló-
gica moderna de pensar. Jung comenta no Aion que na época de Joaquim

Todos sentem a agitação do vento do Pneuma [o Espírito Santo manifestando-se: foi uma época
em que novos cultos e heresias brotaram em toda parte] (...) Cátaros, Patarinos, Concorreçanos,
Valdenses Pobres de Lyon, Begardos, Irmãos do Livre Espírito, “Pão através de Deus” ou quan-
tos outros nomes tenham. (par. 139)

Típicos destes cultos heréticos foram os cátaros, que em alguns lugares também foram
chamados de albigenses. Eles se originaram no século 11, perto da virada do milênio, e se
espalharam por toda a Europa. A orientação de sua seita era a de um neo-maniqueísmo de
dualismo radical, e acreditavam que o mal em toda a matéria existia, sendo que alguns gru-
pos desta seita acreditavam que Satanás era uma divindade independente.

Os cátaros sustentavam uma doutrina docetista de Cristo, ou seja, acreditavam que Cristo
fosse um anjo que possuía um corpo fantasmático, de maneira que, na verdade, ele não
sofreu as torturas físicas. Seu dualismo radical os impedia de aceitar que o filho de Deus
tivesse encarnado completamente na condição malévola constituída pela matéria; Cristo
deveria ter somente uma semelhança material, deveria como que somente “parecer” mate-
rial. Os cátaros cultivavam uma doutrina moral extremamente rigorosa e proibiam o uso de
produtos animais. Chamavam-se a si mesmos de “os puros”, que é o significado da palavra
“cátaros”. Consideravam o homem como sendo um estrangeiro num mundo mal, somente
um hóspede aqui nesta terra, que não deveria se sujar com a matéria deste mundo.

Praticavam um ascetismo extremo e condenavam o casamento, embora aplicassem padrões


de comportamento diferentes a seus diferentes grupos. Os membros da seita eram divididos
em dois grupos, os perfeitos e os crentes. Os perfeitos eram colocados à parte dos outros
por meio de uma cerimônia de iniciação chamada de consolamentum, e a partir daí devota-
vam-se somente à contemplação e mantinham um padrão moral bastante estrito. Obvia-
mente, ao seguir estas práticas ascéticas, a raça humana acabaria após uma geração, mas
ao segundo grupo, o dos crentes, era proporcionada mais liberdade. O termo consolamen-
tum, que era parte da cerimônia de iniciação recebida pelos perfeitos, significa a ação con-
soladora, ou reconfortante do Espírito Santo, considerado como sendo o Paracleto prome-

56 Ibid. pars. 273, 276.

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tido por Cristo, aquele que viria após Cristo ter deixado a terra. A cerimônia de iniciação
era considerada como sendo um batismo no Espírito Santo, um batismo que trazia consigo
uma consolação.

A palavra consolamentum aparece em uma das cartas de Jung na qual ele trata da visão de
Joaquim de uma nova era e de um novo evangelho.57 Jung diz que Joaquim teve sua visão
“quando o grande cisma já havia começado”, e tal visão, diz Jung, parece ser considerada
como uma graça divina, uma espécie de “consolamentum” para que o homem não seja
deixado em estado de completa desesperança nos tempos de trevas. Não será muito difícil
perceber aqui alguma analogia com a própria experiência de consolamentum de Jung, que
serviu de conforto diante de talvez mais consciência do que um indivíduo pudesse portar.

Os cátaros e todas as outras seitas heréticas daquela época tiveram certas características em
comum. Jung as sumariza no parágrafo 139, servindo-se da citação de outro pesquisador:

[Estes vários grupos heréticos] acreditam também que são Deus por natureza, sem distinção (...)
e que são eternos, não precisam de Deus e nem da divindade (...) que são o próprio reino dos
Céus (...) que são imutáveis na rocha nova, que não se alegram com nada e nem se perturbam
com coisa alguma. E que o homem tem mais obrigação de seguir os impulsos interiores do que a
verdade do Evangelho que é pregado todos os dias. Dizem que muito do que há no Evangelho
são invenções que nada têm de verdadeiro.

Nesse ponto, Jung comenta:

Creio que bastam estas poucas frases para caracterizar a mentalidade reinante nestes movimen-
tos: trata-se de indivíduos que se identificavam (ou eram identificados) com Deus, que se conside-
ravam super-homens, que assumiam uma atitude crítica diante do Evangelho, seguiam os dita-
mes do homem interior e concebiam o reino dos céus como um estado interior. De certo modo,
trata-se de indivíduos quase modernos, os quais tinham uma inflação religiosa, ao contrário do
homem de nossos tempos, cuja psicose consiste em uma aflição racionalista e política.

Jung entendeu o fenômeno de Joaquim de Flora e as agitações causadas pelo Espírito San-
to, da maneira como foram expressas por estas seitas, como as primeiras influências do
segundo peixe, sendo que o primeiro foi o Cristo, o segundo a Anticristo. No parágrafo
143 Jung chama a atenção para a frase em que os heréticos são descritos como acreditan-
do serem “imutáveis na rocha nova”, e prossegue falando desta rocha nova como sendo
análoga à pedra filosofal, acrescentando que isso se refere à equivalência simbólica de Cris-
to com a rocha. Jung também alude à água que brota da rocha quando foi golpeada por
Moisés no deserto do Sinai (Ex 17, 5-6; Num 20, 7-13). Aquela rocha sagrada foi equipa-
rada a Cristo, a partir de quem a água viva fluiu quando seu flanco foi ferido durante a cru-
cificação. Jung também aponta para a equivalência da água que brota da rocha com a aqua
permanens alquímica. E então resume:

57 Cartas, vol. II, p. 304.


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A nova rupes [rocha nova] substitui Cristo, do mesmo modo que o Evangelium Aeternum deve
tomar o lugar da mensagem de Cristo. A inabitação do Espírito Santo, da Terceira Pessoa da
Trindade, transfere a hyiotes, isto é, a condição de filho a cada homem, e assim, todo aquele que
possui o Espírito Santo torna-se uma pedra, uma nova rupes, de acordo com o que se lê na 1ª
Carta de Pedro 2,5: “Também vós, como pedras vivas, constituí-vos em um edifício espiritual”.
Estamos aqui, portanto, em face de um desenvolvimento lógico e consequente da doutrina do
Paráclito e da filiatio [filiação], de conformidade com o que se lê em Lucas 6, 35: “Sereis filhos
do Altíssimo”. (par. 144)

Tudo isso representa o simbolismo da individuação, na qual o indivíduo descobre a rocha


interior, que então lhe concede uma certa imutabilidade. A rocha é descoberta em nosso
interior como consequência da conexão com o Espírito Santo, o oposto de sua existência
projetada ou coletivamente exteriorizada.

Jung alude a outra característica deste simbolismo da rocha nova, sugerindo uma compara-
ção com a “construção da torre sem junturas (a Igreja) com ‘pedras vivas’ no Pastor de
Hermas” (par 144, n. 73).

A visão do Pastor aconteceu no começo do éon cristão. Hermas viu diante de si uma gran-
de torre sendo construída sobre a água com brilhantes pedras talhadas. Ela estava sendo
construída de forma quadrada por seis jovens. Dezenas de milhares de outros homens trazi-
am as pedras, algumas retiradas do fundo do mar, outras retiradas da terra. As pedras que
foram retiradas do fundo do mar eram então colocadas na construção, sem nenhuma exce-
ção, pois haviam todas sido perfeitamente talhadas para encaixar-se nas outras pedras. En-
caixavam-se tão bem, aliás, que as junções nem podiam ser vistas, razão pela qual a torre
aparentava ter sido construída a partir de uma pedra única.

A imagem é a de pedras vindas de toda parte sendo reunidas para formar uma única cons-
trução que acaba por se tornar uma rocha única sem emendas. É então que Hermas per-
gunta à mulher que lhe mostra a visão: “O que é isto?”, e ela responde que a torre que ele
vê sendo construída é a Igreja. Desta maneira, a Igreja acaba por tomar o aspecto de pedra
que é atribuído a Cristo.

Um sonho moderno referente a estas mesmas imagens constitui um interessante contraste à


visão de Hermas que se originou no início do éon cristão. Este já é um sonho que ocorre no
final do éon cristão:

Vejo um largo amontoado de pedras, praticamente vertical, de forma aproximadamente circular.


As pedras encontravam-se vivas e furiosas, gritando como se fossem corvos. Elas se irritavam
mais ainda cada vez que alguém tentava remover uma delas, mas alguém explicou-me que cada
pessoa tem que remover sua própria pedra do amontoado se quiser de fato ser um indivíduo. É
então que decido remover minha própria pedra. A pessoa que até então esteve falando comigo
aponta então para um minúsculo ponto preto no centro de minha pedra e explica que cada pe-
dra tem aquele centro, e que de alguma maneira aquele centro preto é idêntico ao amontoado
geral de pedras.

Este é um belo exemplo daquilo que o novo éon exige de nós. A visão de Hermas foi apro-
priada para o começo de nosso éon porque a Igreja acabava de iniciar seu processo de

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construção há 2.000 anos. Cada uma das pessoas teve que contribuir com a sua pedra
interna, por assim dizer, para que pudesse se realizar coletivamente. Entretanto, agora o
amontoado de pedras precisa ser desfeito, de maneira que cada um abandone a sua conti-
nência naquela pedra coletiva e descubra a sua própria pedra individual, tornando-se assim
membro da ecclesia spiritualis.

Esta questão também é referida em termos do simbolismo cristão do peixe; Jung diz:

O símbolo do peixe surgiu por volta do ano 200, em Alexandria, e o recipiente batismal foi
chamado, muito cedo, de piscina (tanque dos peixes). Isto significava que os fiéis também eram
peixes, como aliás é sugerido pelo próprio Evangelho. (par. 145)

Esta imagem simbólica é bastante significativa, a de crentes religiosos sendo representados


como peixes nadando no tanque eclesiástico dos peixes. Tertuliano, em seu ensaio sobre o
batismo, diz especificamente: “Nós, peixinhos, seguindo o exemplo de nosso Ichtys, Jesus
Cristo, nascemos na água, e não podemos estar seguros de nenhuma outra forma senão
permanecendo na água”.58

A mesma ideia também é utilizada pelo judaísmo: “Os israelitas, especialmente aqueles fiéis
à Lei, são peixinhos nadando na Torá, onde podem viver sozinhos”. 59 Esta é exatamente a
mesma imagem em que Tertuliano descreve os cristãos nadando no tanque de peixes cris-
tão. Neste contexto, Jung diz no parágrafo 147:

São principalmente as relações com a era contemporânea de Peixes que se acham documenta-
das quer nos evangelhos (“pescadores de homens”, pescadores como primeiros apóstolos, refei-
ção milagrosa), quer logo depois, na época pós-apostólica, mediante o simbolismo do peixe
(Cristo e seus seguidores designados como peixes, o peixe dado como alimento nos ágapes, o
batismo na piscina, etc.). Mas, antes de qualquer coisa, tais representações significam que os
símbolos e mitologemas do peixe, que sempre existiram, assimilaram também a figura do Salva-
dor — manifestação parcial da recepção de Cristo no regaço espiritual dessa época. Sendo, po-
rém, Cristo concebido como um novo éon, qualquer conhecedor de astrologia sabia, por um la-
do, que Ele representava o primeiro peixe da iminente era de Peixes e, por outro lado, que Ele
devia ser o último carneiro a morrer do éon que findava (arnion, no Novo Testamento, o Cordei-
ro).

Podemos dizer algo análogo sobre Jung. Estamos prestes a entrar no éon de aquário, o
portador da água, e de deixar o éon de Peixes, de maneira que sob certo sentido Jung é o
último peixe e o primeiro portador da água. Existe um simbolismo bastante significativo
nestas duas imagens de transição. Peixes vivem em meio à água e são contidos por ela. Já
o aquário contém a água, indicando uma relação totalmente diferente com a psique. Aqui
temos uma reminiscência de uma interessante anedota que ao mesmo tempo é bastante
profunda. Trata-se de uma charada: “Quem descobriu a água?”. A resposta é: “Isso eu não
sei, mas sei quem não a descobriu: o peixe!”.

58 Roberts and Donaldson, The Ante-Nicene Fathers, vol. 3, p. 669.


59 E. R. Goodenough, Jewish Symbols in the Greco-Roman Period, vol. 5, p. 33

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Há também um outro ponto interessante, mostrando ecos da gemelaridade e duplicidade,


mais adiante no parágrafo 147: “Mateus 27, 15s transmite este mitologema sob a forma do
antigo costume da imolação do deus anual”. Esta passagem da escritura refere-se ao costu-
me de libertar um prisioneiro na páscoa judaica; Pilatos apresenta um criminoso, Barrabás,
e pergunta à multidão: “Quem vocês querem que seja libertado, Jesus ou Barrabás?”. Em
outras palavras, trata-se de um evento duplo, e esta duplicidade só é revelada pela tradução
literal da passagem. Ora, a única Bíblia que conheço que a traduz literalmente é a New En-
glish Bible, pois todas as outras tornam muito obscura esta passagem bastante significativa
do ponto de vista psicológico. A New English Bible traduz a pergunta de Pilatos da seguinte
maneira: “Quem vocês querem que eu liberte — Jesus Bar-Abbas ou Jesus chamado Messi-
as?” (Mat 27,17s). Em outras palavras, eles eram dois indivíduos que tinham o mesmo no-
me. O significado literal do primeiro nome é Jesus, filho do pai; o do segundo nome é Je-
sus o Messias: estas eram as duas alternativas.

Voltando agora para a imagética do éon cristão como sendo a era dos Peixes, a figura 13
traz uma representação esquemática da forma pela qual os dois peixes são esboçados em
representações astronômicas convencionais em relação à eclíptica, o caminho que o sol
percorre através dos céus. Estamos tratando aqui com a precessão dos equinócios, de ma-
neira que a eclíptica representa o movimento do ponto em que o sol nasce no equinócio
vernal através dos séculos. Jung fala da estrela Alpha, também chamada de estrela 113.
Quando o sol atingiu aquele ponto referente à estrela era o ano de 146 a.C. (par. 149, nota
88). Quando o sol atingiu o ponto intermediário do peixe horizontal estávamos aproxima-
damente no ano de 1.500 d.C.

Foi então que uma explosão absolutamente psicológica na psique coletiva aconteceu, como
se o Espírito Santo tivesse descido em vingança. Foi nessa época que tivemos a Reforma, o
Renascimento, a Era das Navegações, o nascimento da ciência e da arte, e o exame crítico
de todas as escrituras que até então jamais haviam sido tocadas, assim como até então nin-
guém tivesse ousado examinar o corpo humano. Em 1.543, Vesalius, que roubava cadáve-
res dos patíbulos para poder dissecá-los, trouxe à luz o primeiro grande trabalho científico a
respeito da anatomia humana. Assim, nesta época, tudo deixou de ser sagrado e intocável:
o Espírito Santo havia baixado e agora todas as coisas estavam ao Deus dará.

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Figura. 13. Movimento do sol através do signo de Peixes


O diagrama mostra de que maneira a posição do sol, por ocasião do e-
quinócio de primavera, modificou-se através dos séculos da era cristã em
relação ao horizonte de estrelas da constelação de Peixes. A eclíptica re-
presenta o movimento da posição do sol no equinócio da primavera atra-
vés dos séculos.

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PARÁGRAFOS 150-161

As profecias de Nostradamus
11
J
ung monta o palco para sua discussão a respeito de Nostradamus com o primeiro
parágrafo do capítulo sete, uma afirmação bastante resumida:

0
Foi possível predizer, de algum modo, o desenrolar da nossa história religiosa e, consequen-
temente, da etapa essencial da evolução psíquica, seja cronologicamente, seja quanto ao conteú-
do, à luz da precessão do ponto vernal através da constelação de Peixes. De fato, a predição foi
feita, como vimos, e coincide com o fato de a Igreja ter se cindido no século XVI; desde então,
instalou-se um processo enantiodrômico que poderíamos chamar, talvez, de movimento horizon-
tal (ou seja, de conquista da terra e de domínio da natureza), ao contrário do impulso “gótico”
em direção às alturas. A linha horizontal interferiu na linha vertical e a evolução espiritual e moral
passou a processar-se numa direção anticristã cada vez mais nítida, e em nossos dias estamos
em uma crise de civilização ocidental cujo desenlace é bastante incerto.

Neste ponto Jung volta-se para as profecias astrológicas de Nostradamus. Como fica evi-
dente para os leitores de Aion, Jung joga a sua rede para todos os lados. Afinal, quem de
nós imaginaria que Nostradamus aparecesse em cena? Contudo, aqui está ele.

Este homem que Jung considerou digno de um capítulo do Aion viveu de 1.503 a 1.566,
de maneira que nasceu bem no ponto nodal do ano 1.500. Seus pais eram judeus franceses
que foram obrigados a se converter para o cristianismo sob ameaça de exílio. Nostradamus
viveu uma vida bastante dramática. Seus dois avós foram médicos e astrólogos famosos,
uma combinação de atividades bastante comum naquela época, e estiveram a serviço de um
duque, o que equivale à realeza francesa.

Nostradamus foi uma criança precoce, e sua educação foi supervisionada por um de seus
avós, que providenciou que ele dispusesse do melhor. Entrou para a faculdade de medicina
em Montpelier e formou-se com brilhantismo. Passou diversos anos trabalhando como um
médico nômade, o que também era comum naquela época. Acabou por adquirir uma repu-
tação enorme por sua coragem de tratar as vítimas de epidemias. No início dos seus trinta
anos acabou por estabelecer-se com a esposa e duas crianças. Após alguns anos, a praga
acabou afetando o seu próprio lar e toda a sua família foi ceifada, com exceção dele mes-
mo. A partir de então voltou a levar uma vida de médico nômade por dez anos, e com qua-
renta e quatro anos voltou a casar-se, desta vez com uma rica viúva. Tornou-se um dos

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favoritos da corte e voltou-se cada vez mais para a escrita de profecias em versos — de iní-
cio a respeito do próximo ano, embora o alcance de suas predições fosse cada vez mais
aumentando. A publicação de suas profecias tornou-se uma obra bastante popular, embora
elas fossem muito obscuras e não muito específicas. Nostradamus conta que ele somente
começou a escrevê-las, ou pelo menos a publicá-las, com a idade de cinquenta e um anos.
Conta que encontrou “um indescritível e novo entusiasmo brotando de maneira incontrolá-
vel de sua mente, equivalente a uma febre enlouquecedora, até que se dispusesse a sentar e
escrever [as profecias]”.60

Nostradamus foi verdadeiramente tomado pela ativação do inconsciente. Em seu prefácio às


profecias, escrito sob a forma de uma carta a seu filho, ele diz que conteve seu impulso de
colocar as profecias por escrito por um longo período, já que as pessoas se sentiriam ofen-
didas por aquilo que ouvissem. Nostradamus então cita Cristo, dizendo: “Não dai o que é
sagrado para os cães, nem lançai vossas pérolas aos porcos”. Contudo, acabou por mudar
de ideia, e evidentemente a razão pela qual o fez foi a febre enlouquecedora que experimen-
tou internamente. A este respeito faz uma interessante observação: “Mais tarde, devido a
um advento vulgar, decidi desistir [de meu silêncio] e por meio de obscuras e crípticas sen-
tenças contar-lhes as causas da futura mutação do gênero humano”.61

Os estudiosos de Nostradamus geralmente afirmam que a expressão “evento vulgar” refere-


se à Revolução Francesa, mas para mim o uso do termo “advento” sugere que ela pode se
referir a uma visão que teve sobre a vinda do Anticristo. Em outra passagem, Nostradamus
confessa: “Várias vezes na semana eu era tomado por um êxtase”.62 Da mesma maneira
ele afirma que seus cálculos “foram determinados pelos movimentos celestiais combinados
com as emoções a mim proporcionadas por meus ancestrais, que comigo se comunicavam
em determinados momentos”.63 Em outras palavras Nostradamus estaria meditando a res-
peito de imagens e padrões astrológicos, e em meio a tais meditações era tomado por in-
tensas emoções, que identificou como sendo resíduos de seus ancestrais presentes em seu
próprio interior.

Em outra passagem, Nostradamus diz:

Profecias ocultas chegam a mim por meio do espírito do fogo, às vezes por meio do entendi-
mento sendo perturbado pela contemplação da mais remota das estrelas enquanto permanecia
alerta. Os pronunciamentos eram tomados anotando-os sem medo e sem receio de uma excessi-
va verborragia (...) pois todas estas coisas procediam do poder divino do grande e eterno
Deus”.64

Assim, vemos que Nostradamus encontrava-se absolutamente convencido de que suas pro-
fecias fossem divinamente inspiradas. Ora, de posse desse pano de fundo, vamos agora
contemplar uma profecia particular que Jung escolheu para citar:

60 Charles A. Ward, Oracles of Nostradamus, p. 8.


61 Edgar Leoni, Nostradamus and His Prophecies, p. 123.
62 Ibid., p. 127.
63 Ibid., p. 329.
64 Ibid., p. 123.

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Após a descrição de um ano que, entre outras coisas, se caracteriza por V ! S com U#
S, lê-se o seguinte: “Então o começo daquele ano verá a maior perseguição contra a Igreja Cris-
tã que jamais houve na África, e isso será no ano de 1.792, época na qual todos considerarão
uma renovação do século. E naquele tempo e naqueles países o poder infernal se levantará con-
tra a Igreja de Jesus Cristo. Este será o segundo Anticristo, que perseguirá a referida Igreja e seu
verdadeiro Vigário através do poder de reis temporais, que por meio de sua ignorância serão se-
duzidos por línguas mais afiadas do que qualquer espada nas mãos de um louco. A perseguição
do clero terá seu início no poder dos Reis do Norte unidos aos orientais. E tal perseguição durará
onze anos, ou pouco menos, quando então o principal Rei do Norte cairá. (par. 151)

Esta referência ao ano de 1.792 é geralmente entendida como uma alusão à Revolução
Francesa. A este respeito, Jung afirma, após rever alguns outros fatos que levaram ao ano
de 1.789:

As duas datas são sugestivas e, à luz dos acontecimentos subsequentes, não é difícil mostrar que
os fatos ocorridos nessa época foram precursores significativos de acontecimentos modernos. A
instalação da Déese Raison antecipou, na realidade, a orientação anticristã que desde então vem
sendo seguida. (par. 155)

Jung refere-se diversas vezes ao entronamento da Deusa Razão e atribui uma considerável
importância histórica ao evento simbólico. A coisa mais próxima que encontro a este even-
to encontra-se na obra A era de Napoleão de Will Durant, onde se pode ler:

Uma multidão de sans-cullote [rebeldes] invadiu a abadia de Saint Denis em 16 de outubro de


1793, esvaziou os túmulos da realeza francesa que ali fora enterrada, e fundiu o metal que lá ha-
via para ser usado na guerra (...) Em 10 de novembro, homens e mulheres originários dos bair-
ros da classe trabalhadora e dos bolsões ideológicos de Paris desfilaram pelas ruas em procissão
vestidos de roupas religiosas caricaturais, entraram no hall da Convenção e fizeram os deputados
comprometer-se a comparecer na festa que naquela noite seria realizada na catedral de Notre-
Dame — que agora fora renomeada para Templo da Razão. Ali um novo santuário havia sido
construído, no qual a Mademoiselle Candeille de l´Ópera, vestida numa bandeira tricolor e coro-
ada com uma touca vermelha, figurava como a Deusa da Liberdade [acredito que este seria o
equivalente à Deusa Razão], auxiliada por persuasivas senhoras que cantavam um “Hino à Li-
berdade” (...) os adoradores dançavam e cantavam nas naves da catedral, enquanto nas capelas
laterais — relataram as testemunhas da oposição — aproveitadores da liberdade celebravam ritos
de amor [em outras palavras, eles copulavam]. Em 17 de novembro o bispo de Paris, cedendo à
pressão popular, compareceu diante da Convenção, abjurou de seu ofício, transferiu para o pre-
sidente seu báculo e anel episcopais, e vestiu o gorro vermelho da liberdade. Em 23 de novem-
bro a Comuna de Paris ordenou que todas as igrejas cristãs da cidade fossem fechadas.65

Isso demonstra o que aconteceu na catedral de Notre-Dame, então renomeada para templo
da Deusa Razão. Jung estende-se nesta questão em seu ensaio “O problema espiritual do
homem moderno”:

Não resta dúvida que, desde o começo do século XIX, desde a época memorável da Revolução
Francesa, a psique foi aos poucos tomando o primeiro plano da consciência geral, exercendo
uma força atrativa cada vez maior. A entronização da Deusa Razão em Notre-Dame parece ter
65 The Age of Napoleon, p. 73.
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sido um gesto simbólico de grande significado para o mundo ocidental, análogo à derrubada do
carvalho de Wotan pelos missionários cristãos, pois, tanto naquela época como agora, nenhum
raio vingador veio fulminar os blasfemadores.

É claro que temos que ver nesse episódio muito mais do que uma simples brincadeira da História
Universal que, justamente na mesma época, e precisamente por meio de um francês, Anquetil
Duperron, que vivia na Índia, no começo do século XIX, conseguiu trazer consigo uma tradução
do Oupnek´hat, uma coleção de 50 Upanixades que, pela primeira vez, permitiu ao Ocidente
penetrar mais profundamente no misterioso espírito oriental. Para o historiador pode tratar-se de
mera coincidência, sem qualquer nexo causal histórico. Mas minha premonição médica me im-
pede de ver aí apenas um acaso, uma vez que tudo acontece de conformidade com as regras
psicológicas que atuam infalivelmente na vida pessoal: cada vez que algum aspecto importante é
desvalorizado na consciência, vindo a desaparecer, surge por sua vez uma compensação no in-
consciente. Isto acontece em analogia à lei fundamental da conservação da energia, pois também
nossos fenômenos psíquicos são processos energéticos. Nenhum valor psíquico pode desapare-
cer sem ser substituído por um equivalente. É esta a lei heurística fundamental da práxis psicote-
rapêutica de todos os dias que sempre se confirma. O médico em mim se nega a crer que a vida
psíquica de um povo esteja além das regras psicológicas fundamentais. A psique de um povo
tem uma configuração apenas um pouco mais complexa do que a psique do indivíduo. 66

Aqui temos um vislumbre da maneira pela qual Jung percebe a história da humanidade co-
mo sendo a história de mais um paciente. Ele diz que quando o valor espiritual que até en-
tão era contido no vaso do cristianismo entrou em curso de ser severamente desvalorizado,
a nova versão daquele valor psíquico foi imediatamente trazida do oriente. Também é bas-
tante significativo que tenha sido um francês a fazê-lo, já que foram os franceses que entro-
nizaram a Deusa Razão.

Este evento histórico arquetípico, o entronamento da Deusa Razão, é algo que a todo ins-
tante vemos sendo revivido na vida do indivíduo jovem. Só não é tão frequente nos dias de
hoje quanto antigamente porque já não há mais tantas pessoas que tenham sido expostas a
uma infância religiosa, embora ainda existam algumas. Mas mesmo assim, todos temos
amigos ou pacientes que passaram por uma infância religiosa e que, uma vez chegados à
adolescência, passam por sua “Revolução Francesa”, o que corresponde a entronizar a
Deusa Razão em Notre-Dame. Este é um evento arquetípico que acontece tanto individual-
mente quanto historicamente.

Jung continua suas considerações sobre a profecia de Nostradamus referente à emergência


do Anticristo e aos Reis do Norte, e as amplifica para ali incluir tanto a ideia do poder que
advém do norte quanto a ideia da tríade inferior ou ctônica:

Compreende-se sem dificuldade que um usurpador nórdico tome conta do poder, tendo-se em
vista que o Anticristo é de natureza infernal, isto é, ou o Diabo ou um filho do Diabo, e também
Tifão ou Set. O poder de Tifão é de natureza triádica, por possuir dois aliados: um no Oriente e
outro no Sul. Este poder corresponde à chamada Tríade Inferior, que tem sua região de fogo no
ponto boreal. (par. 156)

66 Civilização em transição, OC 10, par. 174-5.


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Adam Scotus imagina uma monstruosa cabeça de dragão no Norte, de onde provém tudo o que
é mau. Essa cabeça expele pela boca e pelas narinas uma névoa ou fumaça de tríplice natureza.
(par. 158)

E então surge a referência à nota de rodapé 24, na qual Jung diz: “alusão à tríade inferior”.

O que é esta tríade inferior? Em relação à imagem alquímica da tríade inferior, encontramos
em Estudos alquímicos um desenho de um hermafrodita de pé sobre uma serpente tricéfala
que é identificada com a tríade inferior.67 Esta imagem é particularmente importante na
interpretação dos sonhos. O éon cristão foi caracterizado pela criação de uma tríade superi-
or representada pela Trindade Cristã, a trindade que tanto fascinou Joaquim de Flora. Po-
rém, como nos diz Jung, a criação de uma tríade superior gera o seu oposto, a tríade infe-
rior. Temos uma impressionante imagem disso no Inferno de Dante. Bem no começo da
obra aparece uma imagem da tríade inferior, quando Dante é confrontado com três ani-
mais: uma onça, um leão e uma loba. O encontro é seguido por sua descida aos infernos.
Na parte mais profunda do inferno, Dante encontra Satanás incrustado numa rocha de ge-
lo:

Como fiquei então fraco e gelado,


não perguntes, leitor, e eu não direi,
que o fato restaria sempre apoucado.

Não morri, e vivo não me conservei,


julga tu, se de tino tens sobejo,
como sem um nem outro, então fiquei.

E agora o rei do triste reino eu vejo,


de meio peito do gelo montante;
e mais com um gigante eu me cotejo

que um braço seu co´um inteiro gigante;


imagina o que dele é então o todo
pra de tal parte não ser aberrante.

Se belo foi quão feio ora é o seu modo,


e contra o seu feitor ergueu a frente,
só dele proceder deve o mal todo.

Mas foi o meu assombro inda crescente


quando três caras vi na sua cabeça:
toda vermelha era a que tinha à frente,

e das duas outras, cada qual egressa


do meio do ombro, que em cima se ajeita
de cada lado e junta-se com essa,

branco-amarelo era a cor da direita


e, a da esquerda, a daquela gente estranha

67 OC 13, fig. I, após a p. 160.

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que chega de onde o Nilo ao vale deita.

Um par de grandes asas acompanha


cada uma, com tal ave consoantes:
— vela de mar vira eu jamais tamanha —

essas, sem penas, semelhavam antes


às dos morcegos, e ele as abanava,
assim que, co´os três ventos resultantes,

as águas do Cocito congelava.


Por seis olhos chorava, e dos três mentos
Sangrenta baba co´o pranto pingava.68

Uma terrível imagem de uma trindade infernal — de fato horrível. É precisamente isso que
Jung, numa terminologia psicológica neutra, chama de trindade inferior. Jung penetra nessa
imagem em seus menores detalhes em outro ensaio, “A fenomenologia do espírito nos con-
tos de fada”, onde ele interpreta um conto onde há um cavalo de três patas. 69 O cavalo foi
comprado por um mago da bruxa que havia sido sua proprietária, mas como o mago partiu
com o cavalo, que originalmente tinha quatro patas quando pertencia à bruxa, e cruzou a
fronteira do reino da bruxa, doze lobos atacaram-no e arrancaram uma das patas do ani-
mal, de maneira que o mago ficou com um cavalo de três patas. O conto é bem mais ex-
tenso, mas esta é a parte que diz respeito à tríade inferior. Jung nos conta que este cavalo
de três patas representa a tríade ctônica ou inferior. Ele então diz:

[Uma tríade] denota um estado de oposição ou polaridade, na medida em que uma tríade sempre
pressupõe uma outra, tal como o superior pressupõe um inferior, o claro um escuro, o bom um
mau. Energeticamente, a oposição significa um potencial, e onde há um potencial, há a possibi-
lidade de um fluxo e de um acontecimento, pois a tensão dos opostos busca um equilíbrio.
Quando imaginamos o quatérnio como um quadrado dividido em duas metades por uma diago-
nal, disso resultam dois triângulos cujos ápices apontam direções opostas. Poder-se-ia dizer me-
taforicamente: quando dividimos a totalidade simbolizada pelo quatérnio em metades iguais ob-
temos duas tríades em oposição. Esta simples reflexão mostra que a tríade pode derivar do qua-
térnio, do mesmo modo que o caçador explica à princesa como o seu cavalo branco, que possu-
ía quatro pernas, se transformou num cavalo de três pernas, uma vez que os doze lobos lhe ar-
rancaram um pé. A tripodidade do cavalo branco deve sua existência a um acidente, o qual ocor-
reu no momento em que o cavalo estava a ponto de abandonar o reino da mãe obscura. Em lin-
guagem psicológica, isto significaria que quando a totalidade inconsciente se torna manifesta, isto
é, abandona o inconsciente para entrar na esfera da consciência, um dos quatro fica para trás,
retido pelo horror vacui do inconsciente. Assim surge uma tríade à qual corresponde uma tríade
em oposição a ela, isto é, surge um conflito.70

Jung então continua, afirmando que a quarta pata que falta ao cavalo corresponde à função
inferior que permanece conectada com a matriz do inconsciente. Eis aqui uma formulação
bastante refinada disso:

68 Inferno, canto XXXIV, linhas 22-54, tradução de Ítalo Eugênio Mauro.


69 Os arquétipos e o inconsciente coletivo, OC IX/I, par. 423.
70 Ibid., par. 426.

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A parte que foi perdida, a qual se encontra em poder dos lobos da Grande Mãe, é apenas um
quarto, mas com as outras três forma aquela totalidade que suprime a separação e o conflito.

O que porém, segundo a simbólica, faz de um quarto uma tríade? Neste ponto o simbolismo da
história não nos esclarece e somos obrigados a recorrer aos fatos da psicologia. Como disse a-
cima, três funções podem ser diferenciadas, e apenas uma permanece no exílio do inconsciente.
Tal constatação carece de maior precisão. Empiricamente, a diferenciação é apenas bem sucedi-
da em uma função e por isso ela é designada função superior ou principal e juntamente com a
extroversão e a introversão constitui o tipo de atitude consciente. A esta função associam-se uma
ou duas funções auxiliares mais ou menos diferenciadas, as quais quase nunca alcançam o mes-
mo grau de diferenciação, isto é, de poderem ser usadas voluntariamente. Por esse motivo essas
funções auxiliares possuem uma espontaneidade maior do que a função principal, a qual é alta-
mente confiável e se adapta à nossa intenção. A quarta função, inferior, por outro lado, é inaces-
sível à nossa vontade. Ora ela aparece como um duende brincalhão que atrapalha, ora como um
deus ex machina. Sempre porém esta última função vai e vem sua sponte (segundo sua própria
vontade). Podemos deduzir desta exposição que até as funções diferenciadas se libertam só em
parte de seu enraizamento no inconsciente; por outro lado, estão atoladas nele, e assim operam
sob o seu domínio. Às três funções diferenciadas que estão à disposição do Eu correspondem
três partes inconscientes, que ainda não se despegaram do inconsciente. Assim como as três
funções diferenciadas conscientes se confrontam com uma quarta função indiferenciada, como
fator de perturbação mais ou menos desagradável, assim a função superior parece ser o pior dos
inimigos em relação ao inconsciente.71

O significado disso é o de que quando as funções auxiliares, a segunda e terceira função,


são submetidas à sua diferenciação, elas na verdade sofrem uma cisão, e parte delas vai em
direção à função superior e a outra parte delas fica retida com a função inferior. O resultado
é um par de tríades. Esta é a simples psicologia que se encontra por trás das incontáveis
imagens da trindade cristã e também da trindade luciferina situada nas profundezas do in-
ferno. Mas encontrando estas imagens simbólicas, começamos a sentir o impacto daquilo
que verdadeiramente significa para as duas tríades terem sido submetidas a uma tal separa-
ção. Faríamos bem em manter essas ideias em mente sempre que encontrarmos num so-
nho uma trindade de natureza inferior, especialmente se for de natureza animal: provavel-
mente se trata da tríade inferior.

Voltando à imagem simbólica do Norte, Jung toma a ideia da profecia de Nostradamus na


qual ele diz que o Anticristo terá sua origem no poder dos Reis do Norte. Começando com
a imagem do Reis do Norte, Jung discute o simbolismo do Norte. Uma série de passagens
bíblicas emerge quando Jung começa a circambulação pela ideia do Anticristo vindo do
Norte:

E a palavra de Iahweh foi-me dirigida, uma segunda vez, nestes termos: “O que estás vendo?”
Respondi: “Vejo uma panela fervendo, cuja boca está voltada a partir do Norte”.

E Iahweh me disse: “Do Norte derramar-se-á a desgraça sobre todos os habitantes da terra. Por-
que eis que vou convocar todas as tribos dos reinos do Norte [para descer e atacar Jerusalém].
(Jer 1, 13-5 BJ)

71 Ibid., par. 430-1.

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Este é o protótipo do Anticristo vindo do Norte. Há também outros exemplos bíblicos do


mal surgindo a partir do Norte:

Como caíste do céu,


ó estrela d´alva, filho da aurora? [Lúcifer]
Como foste atirado à terra,
vencedor das nações!
E, no entanto, dizias no teu coração:
”Hei de subir até o céu,
acima das estrelas de Deus colocarei o meu trono,
estabelecer-me-ei na montanha da Assembleia,
nos confins do Norte”. (Isa 14, 12-3, BJ)

Eis então Lúcifer vindo do Norte. Ezequiel é outra referência bem importante. O começo da
visão de Ezequiel diz assim: “Ali pousou sobre mim a mão de Iahweh. Eu olhei: havia um
vento tempestuoso que soprava do Norte, uma grande nuvem e um fogo chamejante; em
torno uma grande claridade e no centro algo que parecia electro, no meio do fogo”. (Eze 1,
3-4, BJ) Então, a grande visão de Ezequiel da natureza de Deus também veio do Norte.
Existe também outra referência em Jó 26, 7.

No parágrafo 158 Jung trata de um escritor cristão que cita Ezequiel e sua visão de Deus
vindo do Norte; o autor relaciona esse fato com a vinda do Anticristo. Jung comenta:

É de se estranhar que o piedoso autor não tenha se preocupado em perguntar como é que a vi-
são divina poderia vir justamente nas asas do vento Norte e nesta névoa demoníaca da tríplice
ignorância.

Este material que Jung exibe indica que o inconsciente destes piedosos autores está apon-
tando para o fato de que tanto os atributos demoníacos quanto os divinos provêm da mes-
ma fonte. Eles são a manifestação positiva e negativa do Self. Todas estas realizações aca-
bam sendo expressas por meio de um discurso religioso pelo inconsciente daqueles que não
percebem o que eles de fato estão revelando. Assim, o Norte é não só a residência de Set,
Tífão, Lúcifer, do mal, mas também a origem da mais magnificente revelação da divindade
que todo o Velho Testamento nos oferece.

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PARÁGRAFOS 162-176

O significado histórico do peixe


12
J
ung começa seu capítulo sobre a importância histórica do peixe com uma discussão
acerca do nascimento do Messias. Ele escreve:

0
Como os demais heróis, Cristo também teve uma infância ameaçada (massacre das crianças
de Belém, fuga para o Egito). A “interpretação” astrológica relativa a essa circunstância se acha
em Apocalipse 12: “Uma mulher revestida do sol, com a lua debaixo dos pés e na cabeça uma
coroa de doze estrelas”, aparece atormentada pelas ânsias de dar à luz, e perseguida por um
dragão. (par. 163)

Esta imagem da mulher vestida pelo sol é parte da grande visão apocalíptica experimentada
por São João o Divino na ilha de Patmos:

Um sinal grandioso apareceu no céu: uma Mulher vestida com o sol, tendo a lua sob os pés e
sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas; estava grávida e gritava, entre as dores do parto, a-
tormentada para dar à luz. Apareceu então outro sinal do céu: um grande Dragão, cor de fogo,
com sete cabeças e dez chifres e sobre as cabeças sete diademas; sua cauda arrastava um terço
das estrelas do céu, lançando-as para a terra. O Dragão colocou-se diante da Mulher que estava
para dar à luz, a fim de lhe devorar o filho, tão logo nascesse. Ela deu à luz um filho, um varão,
que irá reger todas as nações com um cetro de ferro. Seu filho, porém foi arrebatado para junto
de Deus e de seu trono, e a Mulher fugiu para o deserto, onde Deus lha havia preparado um lu-
gar em que fosse alimentada por mil duzentos e sessenta dias. (Ap 12, 1-6)

Jung refere-se a este relato do Apocalipse como sendo uma variação da natividade de Cris-
to. Ele atribui considerável importância à imagem, como indica a sua extensa discussão do
assunto em “Resposta a Jó”.72 Naquela obra ele observa que a imagem também corres-
ponde ao mito de Leto dando nascimento a Apolo. Leto encontrava-se grávida dos gêmeos
Artemis e Apolo, mas Hera, sob a forma de uma serpente Píton perseguiu-a incansavel-
mente de uma forma que não havia lugar na terra onde fosse possível dar à luz, o que aca-
bou finalmente dando-se em Delos, uma ilha flutuante. A passagem citada do Apocalipse
proporciona-nos uma imagem paralela de uma mulher grávida tendo uma serpente ou dra-
gão esperando para devorar seu filho tão logo ele venha a nascer. Em seu comentário em
“Resposta a Jó”, Jung nota que no texto do Apocalipse ela é “uma mulher vestida com o

72 Psicologia e religião, OC 11, par. 710-7.


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sol”, enfatizando que ela é simplesmente “uma mulher: uma mulher comum, nem uma deu-
sa e nem uma virgem eterna concebida de maneira imaculada”.73

Jung desenvolve a ideia de que a próxima encarnação do Self é simbolizada pelo nascimen-
to desta criança, e de que como o nascimento se dá durante o processo de individuação, a
criança nascerá a partir de um ser humano comum, e não de um ser humano especial e
puro representado pela Virgem Maria. Ele aponta que a criança nasce a partir da união de
opostos, e como a mulher encontra-se vestida de sol e tem a lua sob seus pés, ela então
personifica a coniunctio de Sol e Luna. Jung continua:

O recém-nascido é arrebatado para junto de Deus, que é manifestamente seu Pai, enquanto a
Mãe é escondida dentro do deserto, indicações talvez de que se trata de uma figura que fica pro-
visoriamente em estado de latência, para surgir num futuro posterior. A história de Agar deve ter
exercido um papel figurativo neste episódio. A relativa semelhança desta história com a lenda do
nascimento de Cristo demonstra certamente que o segundo nascimento constitui um aconteci-
mento análogo ao anterior (...) Esta estranha repetição e reduplicação dos acontecimentos carac-
terísticos da vida de Cristo permite-nos supor que se esperava um segundo Messias para os últi-
mos tempos. O que é referido aqui não pode ser o retorno do próprio Cristo, pois somos avisa-
dos que ele viria “sobre as nuvens do céu”, mas não que nasceria uma segunda vez, e muito me-
nos de uma conjunção do sol com a lua (...) O fato de que João, ao descrever o nascimento da
criança, tenha se utilizado do mito de Apolo e Leto parece-nos indicar que, ao contrário do que
indica a tradição cristã, a visão em apreço é um produto do inconsciente.74

Esta imagem é particularmente relevante para o processo de individuação, e ela só foi des-
coberta e tornada explícita nos dias de hoje. A criança divina que é arrebatada para junto de
Deus é uma imagem do Self que deve ser concretizada por meio dos esforços da pessoa
comum no final do éon cristão. Esta imagem do Apocalipse é uma prefiguração da desco-
berta do processo de individuação, e esta é a razão pela qual Jung atribuiu a ela tanta aten-
ção.

No Aion Jung nos informa a respeito de um outro relato do nascimento do Messias, desta
vez a partir de uma lenda judaica. Trata-se de um paralelo à visão descrita no Apocalipse.
Ei-la:

Elias encontrou uma jovem mulher, em Belém, sentada à porta de casa, e junto dela, no chão,
uma criança recém-nascida, coberta de sangue. A mulher explicou a ele que seu filho nascera em
má hora, isto é, no exato momento em que o Templo era destruído. Elias exortou-a a cuidar da
criança. Quando voltou, depois de cinco anos, perguntou-lhe pelo filho. A mulher respondeu: ele
não anda, não vê, não fala e não ouve, e jaz como uma pedra. Veio, então, de repente, um ven-
to dos quatro cantos da terra, que arrebatando o menino precipitou-o ao mar. Elias lamentou-se,
então, de que a salvação de Israel se desvanecera. Mas uma baktol (uma voz) lhe disse: “... não é
assim ...; ele permanecerá 400 anos no seio do grande mar e 80 anos na fumaça que sobe dos
filhos de Coré, e 80 anos entre os loucos, em Roma, e o restante do tempo vagueará pelas
grandes cidades, até que chegue o fim dos dias”.

73 Ibid., par. 711.


74 Ibid., par. 713.

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Esta narrativa descreve um Messias nascido em Belém, mas em seguida arrebatado para o além
(mar = inconsciente), por intervenção divina. (par. 167-8)

Esta lenda possui muitas similaridades com o texto da mulher solar do Apocalipse, mas não
há absolutamente nenhuma razão para se acreditar que uma tenha influenciado o outro. As
duas são histórias paralelas totalmente autóctones, mas em cada um dos casos o nascimen-
to ocorre em uma época de grave perigo externo e a criança é cercada de uma proteção
especial. Em um caso, ela é elevada para ficar com Deus nos céus; no outro caso, ela é
levada para o mar onde deverá ficar por um determinado período de tempo. Imagens equi-
valentes como estas, que surgem aproximadamente na mesma época, indicam que um ar-
quétipo subjacente encontra-se ativado; é como se fosse um mesmo bulbo ou raiz que lança
diferentes brotos para a luz. Quando os brotos surgem, eles nunca são exatamente os
mesmos, embora sejam similares: a similaridade indica que todos eles derivam da mesma
raiz. A história da natividade de Cristo é precisamente outro broto nascido da mesma raiz.
Mais uma vez o Messias nasce em um ambiente de grave perigo: Herodes está em campo
para matá-lo. O perigo rodeia o recém-nascido Self porque a dominante consciente já esta-
belecida, a autoridade consciente aceita pelo Eu, é gravemente ameaçada pelo nascimento
do Self, pois pressente que será deposta por ele.75.

O nascimento e destino do Messias conduz Jung a um outro tema correlato, o tema dos
dois Messias, que nos apresenta no parágrafo 168:

A tradição cabalística conhece dois Messias: o Messias ben José (ou ben Efraim) e o Messias ben
Davi. Eles são comparados com Moisés e Aarão, ou também com duas corças, à base de uma
passagem do Cântico dos Cânticos 4,5: “Teus seios são como dois filhotes gêmeos de uma ga-
zela”. O Messias ben Davi é, segundo a expressão do Deuteronômio 33, 17, “seu touro primo-
gênito”, e o Messias ben José monta em um asno. O Messias ben José é o primeiro e o Messias
ben Davi é o segundo. O Messias ben José deve morrer para “reconciliar o povo com Javé” por
meio de seu sangue. Cairá na luta contra Gog e Magog, e será Armilo quem o matará. Este Ar-
milo é o Antimessias, gerado por Satanás com uma pedra de mármore. Ele será morto, por sua
vez, pelo Messias ben Davi, que, depois disto, fará a Nova Jerusalém descer do céu e ressuscita-
rá o Messias ben José que fora assassinado. Este último aparece exercendo um papel estranho
na tradição posterior. Tabari, o comentador do Corão, lembra que o Anticristo será um rei dos
judeus, e [outros dizem que] o Messias ben José é, na verdade, o Anticristo. Ele é caracterizado,
portanto, não só como o Messias sofredor em contraposição ao Messias vitorioso, mas chega a
ser concebido até mesmo como seu oposto.

Neste parágrafo, Jung condensa uma grande quantidade de material lendário de forma bas-
tante compacta. Assim, vamos considerar mais detalhadamente o que está implicado nesta
ideia do “duplo Messias”.

O Messias ben José sugere alguém que tem um pai pessoal, enquanto que o Messias ben
Davi sugere alguém com um pai arquetípico; Davi como o grande rei histórico carrega um
fator arquetípico mais acentuado. Esta ideia de duas figuras distintas de Messias é desenvol-
vida bastante explicitamente no Velho Testamento, onde existem alguns textos em relação

75 Discuto este tema em maiores detalhes em meu livro O arquétipo cristão, cap. 3.

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aos quais todos os estudiosos judeus e cristãos concordam se referir ao Messias ben Davi,
enquanto outros referem-se ao Messias ben José. Trata-se da diferença entre o Messias real,
vitorioso e governante e o dócil e sofredor Messias. Um exemplo do Messias real pode ser
encontrado no Salmo 2, que é considerado um salmo messiânico:

Por que as nações se amotinam,


e os povos meditam em vão?
Os reis da terra se insurgem,
e, unidos, os príncipes conspiram
contra Iahweh e contra o seu Messias:
“Rebentemos seus grilhões,
sacudamos de nós suas algemas!”
O que habita nos céus ri,
o Senhor se diverte à custa deles.
E depois lhes fala com ira,
confundindo-os com seu furor:
“Fui eu que consagrei o meu rei
sobre Sião, minha montanha sagrada!”
Vou proclamar o decreto de Iahweh:
Ele me disse: “Tu és meu filho,
eu hoje te gerei.
Pede, e eu te darei as nações como herança,
os confins da terra como propriedade.
Tu as quebrarás com um cetro de ferro,
como um vaso de oleiro as despedaçarás”.
E agora, reis, sede prudentes;
deixai-vos corrigir, juízes da terra.
Servi a Iahweh com temor,
beijai seus pés com tremor,
para que não se irrite e pereçais no caminho,
pois sua ira se acende depressa.
Felizes aqueles que nele se abrigam! (Sl 2,1-12, BJ)

Isto descreve o Messias régio, governante e vitorioso. Contudo, existe uma imagem bastan-
te diferente em algumas das passagens do “servente sofredor” em Isaías, que também são
universalmente conhecidas como textos messiânicos:

Exatamente como multidões ficaram pasmadas à vista dele


— tão desfigurado estava o seu aspecto
e a sua forma não parecia a de um homem —
assim agora nações numerosas ficarão estupefatas a seu respeito,
reis permanecerão silenciosos,
ao verem coisas que não lhes haviam sido contadas
e ao tomarem consciência de coisas que não tinham ouvido.
Quem creu naquilo que ouvimos,
e a quem se revelou o braço de Iahweh?

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Ele cresceu diante dele como um renovo,


como raiz que brota de uma terra seca;
não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar,
nem formosura capaz de nos deleitar.
Era desprezado e abandonado pelos homens,
um homem sujeito à dor, familiarizado com a enfermidade,
como uma pessoa de quem todos escondem o rosto;
desprezado, não fazíamos caso nenhum dele.
E no entanto, eram as nossas enfermidades que ele levava sobre si,
as nossas dores que ele carregava.
Mas nós o tínhamos como vítima do castigo,
ferido por Deus e humilhado. (Isa 52,14; 53,15, BJ)

As duas passagens referem-se ao Messias, mas elas são totalmente diferentes. Elas repre-
sentam dois diferentes aspectos da forma pela qual o Eu experimenta o Self. Um aspecto é
o da autoridade imperativa, aquela que deve ser obedecida, e o outro é o do dispensador de
sofrimento que também partilha esse sofrimento. É como se Iahweh e Jó estivessem unidos
em uma única pessoa.

No decurso do processo de individuação estas duas figuras são encontradas pelo Eu e, até
certo ponto, dá-se uma identificação com cada uma delas, mas é importante que essa iden-
tificação seja a menor possível; as duas figuras simbolizam o tipo de experiência que o Eu
precisa aceitar sem ser tomada por elas. Há determinadas ocasiões em que o Eu deve se
submeter à autoridade imperiosa do Self, e há outras ocasiões em que ele deve ser uma
expressão viva do Self. De maneira similar, há ocasiões em que o Eu experimenta o efeito
por assim dizer redentor do Self sofredor, e há outras ocasiões em que o Eu é obrigado a
experimentar em si mesmo o sofrimento que, então, promove o aspecto redentor da cons-
ciência. Um fato notável é que Jung tenha escolhido como motto para a primeira parte do
Psicologia e alquimia uma passagem de um dos textos do servente sofredor de Isaías: “Ele
não quebrará o caniço rachado / e não apagará a mecha fumegante” (Is 42,3).76

Retornando à questão do simbolismo do peixe, Jung refere-se ao Livro de Tobias no pará-


grafo 174, onde ele condensa em algumas poucas sentenças aquela lenda do peixe que
cura. Contudo, essa história é tão relevante do ponto de vista do processo analítico que
merece ser expandida. O Livro de Tobias é um dos livros apócrifos da Bíblia. Ele não se
encontra nas Bíblias protestantes ou judaicas, mas somente nas Bíblias católicas que tomam
seu conteúdo da Septuaginta, o Velho Testamento grego. A história de Tobias é a história
do peixe analítico por excelência.

O velho Tobit vivia em Nínive. Era um homem cego, perseguido e marginalizado que em
suas orações pediu para morrer. Naquele mesmo dia, a jovem Sara, filha de Raquel, que
vivia na cidade de Média, também estava pensando em se suicidar pelo fato de ter se casa-
do sete vezes e, a cada noite de núpcias, o demônio Asmodeu ter matado seu novo marido.
Então os dois personagens — o velho homem cego e a jovem mulher cujos maridos eram
mortos pelo demônio — desejaram a morte.

76 OC 12, p. 15.

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Mas aconteceu que durante a prece de Tobit ele lembrou-se que uma vez havia dado dez
talentos de prata que lhe pertenciam — uma soma bastante significativa — para serem guar-
dados por um homem em Média. Chamou então seu filho Tobias e lhe disse: “Tenho uma
quantia de prata depositada em Média e quero que você vá até lá e a reclame”. Tobias en-
tão se pôs em viagem com um companheiro que, só mais tarde, revelou ser o arcanjo Ra-
fael. Na primeira noite acamparam às margens do rio Tigre e um grande peixe saltou da
água e ameaçou engolir o pé de Tobias. Rafael, então, disse-lhe para apanhar o peixe e
dele extrair o coração, a bile e o fígado. Houve então uma furiosa luta, mas Tobias final-
mente conseguiu capturar o peixe e fez como mandado por Rafael: guardou o coração, a
bile e o fígado e comeu o restante do peixe.

Quando chegaram em Média, Tobias resgatou o depósito de prata e também encontrou


Sara. Acabou por cortejá-la e logo casou-se com ela. Porém, quando chegou a noite de
núpcias, Rafael instruiu Tobias acerca do valor do material extraído do peixe anteriormente,
mandando-o tomar o fígado e o coração e queimá-los: a fumaça resultante afugentaria o
demônio que matava os maridos de Sara. E assim aconteceu. O casal então retornou a Ní-
nive, onde então a visão do velho Tobit foi restaurada pela aplicação da bile do peixe em
seus olhos. Foi nessa altura que o arcanjo Rafael revelou sua identidade aos personagens e
voou de volta para o céu.

Ora, esta história deve ser lembrada toda vez que nos deparamos com um sonho de peixe,
e acontecem inúmeros sonhos com peixe se estivermos alertas para eles. Na história, o
estado original é o de cegueira e desespero. Podemos considerar Tobit como sendo o Eu e
Sara como sendo a anima, ou então inverter o raciocínio e considerar Sara como o Eu e
Tobit e Tobias como figuras do animus. Tanto de uma forma quanto de outra, existe sem-
pre um duplo desespero: consciente e inconsciente. Porém a prece de Tobit coloca as coi-
sas em movimento, pois ele se recorda do depósito de dinheiro e envia Tobias para recupe-
rá-lo; é assim que começa a jornada, com o anjo auxiliador surgindo como guia.

É então que surge o evento central da história, no qual o peixe salta para fora da água e
ameaça Tobias. Trata-se de um peixe que possui potencial curativo, embora sempre surja
inicialmente como ameaçador. Poderíamos dizer que o peixe é uma versão menor do ar-
canjo Rafael. Dá-se então a luta de Tobias com o peixe e a questão então é a de quem vai
capturar quem. Tobias acaba sendo capaz de capturar o peixe e de extrair suas qualidades
curativas, e então tudo o mais segue-se como simples consequência. Tobias encontra a
anima e o casamento pode então ser realizado com sucesso por ação das partes curativas
do peixe; ou seja, uma grande quantidade de libido é então extraída do inconsciente e trazi-
da de volta à consciência, e simultaneamente a cegueira de Tobit é curada.

O evento central da história é o encontro com o peixe, o tema que é tratado na maior parte
do livro Aion. Como já se tornou evidente, e vai se tornar mais claro ainda à medida que o
material sobre o peixe se acumular, a imagem do peixe tem basicamente dois significados.
Por um lado trata-se de uma imagem da psique infantil, primordial, indiferenciada e de san-
gue frio, a concupiscência original. Por outro lado, em sua identificação com Cristo e com
todo o éon, o peixe é um símbolo do Self. Então, trata-se simultaneamente do mais inferior

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e do mais elevado, e isso corresponde ao fato de que, quando aparece pela primeira vez a
Tobias, o peixe representa uma ameaça até que se tenha conseguido lidar com ele, quando
então se transforma no mais valioso remédio curativo.

Ora, a tarefa de lidar com o peixe tem três etapas. Inicialmente é preciso capturar o peixe.
Depois, é preciso extrair suas virtudes curativas. E finalmente é necessário aplicar o remédio
na situação concreta em que se vive. Podemos denominar estas três etapas em captura,
extração e transformação, e é isso que considero ser a essência de todo o processo analíti-
co.

Um exemplo desta imagem pode vir de um sonho que tive. Bem no início de minha análise
pessoal tive aquilo que costumamos chamar de o sonho inicial. No meu sonho um peixe
dourado saltava pelo chão e eu tentava apanhá-lo. O processo de capturar o peixe foi bas-
tante difícil, mas eu finalmente consegui ser bem sucedido. Então minha próxima tarefa
seria extrair o sangue do peixe, que coloquei todo numa caneca. Passei então a ferver o
sangue, que eu deveria manter permanentemente fluido para que o processo fosse bem
sucedido. O perigo estava em que o sangue do peixe poderia eventualmente se coagular
antes que o processo tivesse chegado ao seu final. Um homem bastante idoso, a quem eu
identifiquei como sendo o porta-voz da tradição, disse-me que aquele método jamais iria dar
certo, e que certamente o sangue coagularia. Entretanto, eu não pensava assim: achei que
teria uma boa chance de ser bem sucedido e de manter o sangue fervendo sem que ele soli-
dificasse. Aqui, então, podemos ver que as três etapas encontram-se envolvidas no sonho:
captura, extração e transformação, e meu sonho foi uma variação individual do Livro de
Tobias. Muitos exemplos desta imagem que tive há muito tempo podem ser encontradas na
nossa prática de consultório.

Outro importante tema deste capítulo, e que também é fundamental para a prática analítica,
é o motivo da destruição da imagem de Deus. Jung escreve:

Como valor máximo ou como dominante suprema, a imagem de Deus se acha imediatamente li-
gada ou identificada ao Self, e tudo o que acontece com a primeira repercute inevitavelmente no
último. Uma incerteza com relação àquele significa um estado de profunda inquietação por parte
do segundo, e por isto a questão, em geral, é ignorada, por causa de seu caráter melindroso.
Mas isto não significa de modo algum que ela não se proponha no inconsciente. Pelo contrário:
é respondia, por exemplo, mediante concepções e crenças que se difundem como epidemias,
tais como o materialismo, o ateísmo e todos seus sucedâneos, que surgem quando se espera inu-
tilmente uma resposta legítima. Os substitutivos sufocam o problema real, e com isso rompem a
continuidade da tradição histórica que é o traço fundamental de qualquer cultura. As consequên-
cias disto são a desordem e a confusão. O cristianismo, por seu lado, insistiu muito na bondade
de Deus como pai amoroso e tentou, pelo menos, privar o mal de qualquer substancialidade. Po-
rém a profecia do Anticristo, feita na Igreja primitiva, e certas ideias da teologia judaica tardia,
poderiam estar indicando que ainda falta uma premissa menor na resposta cristã ao problema de
Jó, premissa cuja realidade sinistra a divisão do mundo em dois blocos coloca-nos ameaçadora-
mente diante dos olhos: a supressão da imagem divina é seguida de perto pela anulação da per-
sonalidade humana. (par. 170)

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Esta é a doença de nossos tempos — a destruição da imagem de Deus. Quanto mais refle-
timos a respeito disso, e quanto mais experiência acumulamos, mais percebemos que os
grandes sintomas sociais e individuais de nosso tempo — crime, alcoolismo, adição de dro-
gas, abuso infantil, um estado geral de desorientação — são todos sintomas do mesmo fato:
a destruição da imagem de Deus.

A afirmação de Jung aponta para a tarefa derradeira da análise junguiana, que é a recons-
trução da imagem de Deus no indivíduo. É também precisamente isso que a história do
peixe realiza. As duas referem-se à mesma coisa. À medida que percebemos isso, começa-
mos a compreender de que maneira este complexo material que Jung reúne no Aion é de
fato profundamente relevante para nosso trabalho analítico.

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PARÁGRAFOS 177-192

O significado histórico do peixe (cont.)


13
A
hóstia ou eucaristia, o alimento sagrado distribuído no ritual da missa, é considera-
da como sendo o corpo transubstanciado de Cristo. Ela é literalmente a carne de
Cristo que é comida na missa. Jung inaugura um novo tópico ao discutir o monstro

0
Leviatã, que também é descrito como sendo comida eucarística:

O pharmacon athanasias (o remédio da imortalidade) da tradição judaica é a carne do Leviatã, o


peixe messiânico (...) Lê-se no Talmud Sanhedrin que o Messias “só se manifestará quando o en-
fermo desejar ardentemente o peixe que não se pode encontrar em parte alguma”. Mas Beemot
é também comida eucarística, ao lado de Leviatã, segundo o Apocalipse de Baruch. (par. 178)

Beemot e Leviatã são mencionados juntos somente em uma única passagem da Bíblia. Al-
guns poucos versos nos lembrarão de o que eles representam. Iahweh acaba de aparecer
diante de Jó, e para convencê-lo de quão grande ele é em comparação ao pequeno e mise-
rável Jó, Iahweh produz dois enormes monstros como demonstração:

Vê o Beemot que eu criei igual a ti!


Alimenta-se de erva como o boi.
Vê a força de suas ancas,
o vigor de seu ventre musculoso,
quando ergue a sua cauda como um cedro (...)
É a obra-prima de Deus. (Jó 40,15-9, ASV)

Iahweh então volta-se para o Leviatã:

Poderás pescar o Leviatã com anzol


e atar-lhe a língua com uma corda? (...)
Fará um contrato contigo,
para que faças dele o teu criado perpétuo?
Brincarás com ele como um pássaro? (...)
A tua esperança seria ilusória
Pois somente o vê-lo atemoriza. (Jo 40,20; 41,1, ASV)

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Figura 14. O Beemot e Leviatã de William Blake


Iahweh revela a Jó seus aspectos monstruosos,
Behemot e Leviatã.

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Estes dois aspectos teriomórficos de Iahweh são mostrados na conhecida figura desenhada
por William Blake (fig. 14), que concebeu Behemot como um mamífero comedor de capim
e Leviatã como um monstro das profundezas dos mares.

A afirmação fita por Jung acerca do Leviatã enquanto comida eucarística conduz a uma
importante imagem das lendas judaicas, a imagem do banquete eucarístico. O livro de Ra-
phael Patai chamado The Messiah Texts agrupa este material de uma maneira notável, de
forma que não precisamos buscar em meio a uma literatura obscura. As lendas descrevem o
banquete messiânico que terá lugar quando o Messias tiver chegado; o devoto ou eleito será
convidado para o banquete junto dele:

[A lenda diz que] Deus criou o Leviatã macho e fêmea, que eles então copularam (...) [e sua des-
cendência] teria destruído todo o mundo. O que então o Santíssimo, abençoado seja Ele, fez?
Castrou o macho, matou a fêmea e preservou-a em sal para os piedosos do futuro. E também o
Beemot (...), o que fez Ele? Castrou o macho e preservou a fêmea para os piedosos do futuro
(...) Naquele momento, o Santíssimo, abençoado seja Ele, porá as mesas e abaterá Beemot e Le-
viatã (...) e preparará um grande banquete para os piedosos. E os fará sentar cada um deles de
acordo com sua honra, e dirá a eles: “Desejam beber vinho de maçãs, vinho de romãs ou vinho
de uvas?” E os piedosos dirão: “A escolha é Vossa”. E o Santíssimo, abençoado seja Ele, trará a
todos o vinho que foi preservado em suas videiras desde os seis dias de criação (...) E cada ho-
mem piedoso verá Sua Glória, e cada um deles apontará o dedo e dirá “Este é Deus, nosso Deus
para sempre e sempre!” E então comerão e beberão e regozijarão, até que o Santíssimo, aben-
çoado seja Ele, ordene que o cálice da bendição seja enchido.77

O cálice da bendição é uma espécie de grande brinde de graça divina que será feito; Jung
refere-se a ele ao dizer: “O ‘cálice da bendição’ judaico às vezes era ornamentado com figu-
ras de peixes, pois os peixes eram o alimento dos bem-aventurados no Paraíso.” (par. 178)

Leviatã então representa a psique primordial infantil que a lenda nos conta será assimilada
na época da vinda do Messias, ou seja, na época da realização consciente do Self. Também
podemos dizer que esta é uma versão maior daquela imagem de Tobias comendo o grande
peixe que saltou em direção a ele. Esta ideia lendária pode ser entendida de duas maneiras.
A lenda afirma que quando o Messias vier, o Leviatã será servido sob a forma de comida
eucarística. Ou seja, quando o Self surge, então a psique primordial infantil será assimilada.
A outra forma de compreender a lenda é a de que quando a psique primordial é assimilada,
então surge o Messias. Tenho para mim que esta última é psicologicamente mais acurada,
já que não envolve um pensamento mágico, como a primeira. O Messias representaria,
então, o Self realizado de maneira consciente.

O banquete messiânico é a imagem que está por trás de toda a missa católica, na qual seu
simbolismo é expresso em ações. Infelizmente o ritual não proporciona a transformação
psicológica permanente que só a consciência é capaz de proporcionar. Considero que o
banquete messiânico é uma grande imagem que representa toda a empreitada do desenvol-
vimento da consciência pela humanidade coletiva. Vejo-o como simbolizando o esforço
coletivo de nossa espécie de criar consciência confrontando-se com a psique primordial

77 The Messiah Texts, p. 236s.


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com a qual nasceu e assimilando-a. Durante o decurso desta operação, a primitiva imagem
de Deus é gradativamente assimilada.

Minha imagem pessoal é a de uma enorme mesa de banquete em volta da qual encontra-se
sentada toda a humanidade. Sobre a mesa está servida a vasta carcaça do Leviatã que a-
guarda ser comida. Aqui e ali, em pequenos pontos isolados, ele deverá ser cozido, embora
a maior parte dele ainda se encontre cru. Se os indivíduos que foram capazes de cozinhar
estes pequenos pontos comerem este alimento, serão capazes de integrá-lo. Entretanto, a
vasta maioria das pessoas ainda estará comendo as fatias cruas, e imediatamente se torna-
rão identificados com a psique primordial e acabarão por atuá-la: não haverá nenhuma
consciência. Mas graças aos poucos que continuarem a cozinhar seus pequenos pedaços e
a comê-los muito, muito lentamente, Leviatã acabará por fim a ser assimilado e transforma-
do por todos.

Ao considerar antigos exemplos de simbolismo do peixe, Jung refere-se a dois apocalipses


judaicos. Apocalipses constituem uma literatura típica do final do éon. No final do último
éon surgiram inúmeros apocalipses, todos agrupados precisamente no início de nossa era.
Um deles é o Livro de Enoch, escrito por volta do ano 100 a.C., e outros dois [Baruch e
Esdras] foram escritos no último quartel do primeiro século (75 a 100 d.C.), logo após a
queda de Jerusalém. A destruição da cidade provocou o surgimento de vários apocalipses e
eles representam a dimensão pessoal para a expressão da imagem arquetípica.

Edgar Hennecke proporciona um ótimo sumário da natureza do pensamento apocalíptico,


que ele considera ter quatro características básicas.78 A primeira é que ele expressa a dou-
trina de duas eras: a era atual que está acabando e a era que está por vir. As duas eras
também podem ser entendidas como o tempo por um lado, e a eternidade por outro. Obvi-
amente, a era em que se vive é a era decadente e má; a era vindoura é a boa. Isso leva à
segunda característica, que é o pessimismo em relação à presente era e a esperança em
relação à futura. Assim, o pensamento apocalíptico é uma combinação de pessimismo e
esperança: pessimismo a curto prazo e esperança a longo prazo.

Em terceiro lugar, o pensamento apocalíptico sempre enfatiza os conceitos de universalismo


e de individualismo. A história é vista por ele como constituindo um todo, e o mundo e o
gênero humano como perfazendo uma unidade, de maneira que os estreitos nacionalismos
são transcendidos. Ao mesmo tempo, a ênfase é sempre colocada naquilo que se passa
entre o indivíduo e Deus, e não entre um coletivo e Deus, e também não no indivíduo como
membro do coletivo, mas no indivíduo enquanto tal, face a face com o processo divino.

O quarto item mencionado por Hennecke é o determinismo, ao afirmar que o pensamento


apocalíptico considera que o curso dos eventos foi pré-determinado por Deus e que portan-
to pode, até certo ponto, ser previsto. Este determinismo é o equivalente à ativação e à
realização do nosso padrão arquetípico. Na medida em que um determinado arquétipo go-
verna o curso dos eventos tanto na vida individual quanto na vida do coletivo, os eventos

78 New Testament Apocrypha, II, p. 588s.


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serão sempre determinados de uma forma genérica; em outras palavras, o arquétipo do


evento faz com ele seja, de certa forma, pré-estabelecido.

É interessante considerar, já que nos encontramos no final do éon, que é possível que uma
literatura apocalíptica esteja surgindo novamente no mundo moderno. Os antigos apocalip-
ses já se encontram fora de moda; eles são um pouco primitivos demais em sua expressão,
mas definitivamente já dispomos de uma literatura de fim de éon. O Assim falava Zaratustra
de Nietzsche é um exemplo, e o Aion de Jung, obviamente, outro excelente exemplo de
tais escritos. Obras como estas não podem ser escritas a não ser no final de um éon; no
meio de um éon não se pode ver a era em sua totalidade.

A ambivalência do símbolo do peixe

Aqui Jung trata de dois diferentes apocalipses. O primeiro é o Apocalipse Siríaco de Baru-
ch:
A época que precede o advento do Messias se divide em doze partes. É no décimo-segundo pe-
ríodo que aparecerá o Messias. (...) Leviatã então emergirá do mar. (par. 181)

O Apocalipse Siríaco foi escrito por judeus fariseus, provavelmente por volta do ano 75
d.C., após a destruição do Templo no ano 70, e contém um canto fúnebre sobre a destrui-
ção de Jerusalém. Aqui, Jerusalém é entendida não somente como uma cidade de maneira
concreta, mas também como todo o mundo daqueles que creem em Deus. Aparece então
uma descrição do Julgamento Final, e Baruch fala a respeito de doze desgraças que recai-
rão sobre a terra, após as quais o Messias virá. É neste ponto que Beemot e Leviatã apare-
cerão, e serão então o alimento de todos aqueles que sobreviverem.

Neste apocalipse há a visão de uma grande névoa formada pelo mar e flutuando pelo céu,
uma nuvem formada por águas negras e águas brancas e águas de todas as cores. Desta
névoa sai uma série de doze rios que descendem todos para a terra. Alguns deles são cons-
tituídos por águas negras, e outros por águas brilhantes. Baruch então é informado que
aquilo que está sendo representado pela imagem é a totalidade da história do mundo, desde
Adão até o Messias, e que estes doze diferentes rios representam diferentes fases da histó-
ria. É após o décimo-segundo rio que surgirá o Messias. No Aion, Jung nos chama a aten-
ção percorrendo uma quantidade enorme de material tal qual o Apocalipse Siríaco, mas
para que sejamos capazes de perceber o que há por trás de todas estas referências é neces-
sário referirmo-nos aos textos originais: só então temos um vislumbre de todo o espectro
simbólico que jaz por trás daquilo que Jung diz.

O outro apocalipse ao qual Jung se refere é o Apócrifo segundo Esdras:

Da mesma forma que Cristo, em Agostinho, é o peixe levatus de profundo [trazido das profun-
dezas], também em 4Esdras 13, 2s o Homem sai do seio do mar como um vento. É precedido
pela águia e pelo leão, ou seja, por dois símbolos teriomórficos caracterizados como negativos,
tal como Beemot, que em Jó suscita principalmente o pavor. (par. 185)

Jung só cita esta referência e então segue em frente, embora o texto mereça um pouco
mais de atenção. Esdras é um outro apocalipse escrito por volta da mesma época que a
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obra de Baruch. É impossível resumir Esdras porque ele é composto de um grande número
de diferentes visões, mas a visão específica à qual Jung se refere é aquela em que o profeta
visionário vê uma águia com doze asas e três cabeças surgindo do mar. A águia governa
toda a terra. Algumas asas brotam enquanto outras se desprendem: desenvolve-se, então,
todo um processo que é interpretado como representando uma sequência histórica. É então
que um leão começa a rugir a partir da floresta e repreende severamente a águia por sua
maldade, e então a águia é queimada.

Esdras nos informa então que o leão representa o Messias que aparece para conquistar os
governantes do mal da terra, representados pela águia e suas numerosas asas. Então um
vento violento agita o mar, fazendo emergir um homem que voa em direção às nuvens do
céu. A voz que ecoa de sua boca faz com que todas as coisas que a ouvem derretam, e isto
é uma variação dos rios de águas do Apocalipse de Baruch. Uma multidão de homens tenta
fazer guerra contra o homem celestial, mas ele permanece de pé sobre uma montanha e
arremessa uma torrente ígnea de sopro flamejante a partir de sua boca, uma tempestade de
faíscas que queima toda a multidão que a ele se opõe. Tudo se passa como um fim de
mundo apocalíptico que é então seguido por um Juízo Final. Finalmente, como quase sem-
pre acontece nas obras apocalípticas, o vidente é instruído a colocar por escrito a sua visão
e publicá-la, o mesmo que é dito a São João o Divino no apocalipse bíblico, que é outro
exemplo clássico desta forma de literatura.

Associando o simbolismo do peixe desde o monstro marinho Leviatã até outros antigos
monstros, Jung, no parágrafo 185, refere-se a Marduk e Tiamat:

Javé abate Rahab com sua “inteligência” ( tebuna). Rahab, o monstro marinho, é primo-irmão de
Tiamat, a qual Marduk encheu com o imhullu, o vento norte, que a despedaçou.

Aqui, mais uma vez, Jung faz uma rápida referência e logo passa adiante, presumindo que
todos nós estejamos familiarizados com ela. O sumário da história de Marduk que cito adi-
ante foi retirado do texto de Alexander Heidel The Babylonian Genesis. Marduk era o jo-
vem herói dos deuses. Os antigos deuses tinham sido tiranizados pelo monstro feminino
Tiamat. Marduk então veio lutar contra ela, denunciando-a de maneira bastante incisiva por
seu mau comportamento e desafiando-a para um duelo. Tiamat ficou tão enfurecida quanto
alguém que tivesse perdido a razão. Aceitou o desafio e os dois engalfinharam-se num feroz
combate. Marduk lançou sua rede e imobilizou-a, e quando ela abriu sua bocarra para devo-
rá-lo, Marduk dirigiu o vento Norte (Imhullu) para o interior dela, de forma que ela não con-
seguia mais fechar seus lábios. Então ele atirou uma flecha para dentro de sua boca aberta,
transfixou seu coração e destruiu a sua vida. Marduk depôs a carcaça de Tiamat, separou
seus ossos com uma terrível clava, cortou suas artérias e fez com que o vento Norte carre-
gasse seu sangue em direção ao Sul. Finalmente ele dividiu o corpo colossal de Tiamat em
duas partes para criar o universo. Com uma metade do cadáver ele formou o céu, e com a
outra a terra.

A história de Marduk é uma variação do primitivo mito egípcio de criação que fala da sepa-
ração dos pais do mundo, uma história na qual Shu se introduz entre eles — ambos se en-
contravam em estado de contínua coabitação — e os separa, de maneira que um se torna o

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céu e o outro a terra. Esta é uma imagem do desenvolvimento da consciência: sempre que
a consciência toca um conteúdo inconsciente, o conteúdo se desdobra em seus dois opos-
tos. Trata-se de um tema básico dos mitos de criação.79

Um exemplo desta imagem arquetípica específica é o sonho mais antigo que tive, que tenho
certeza de ter ocorrido antes de um ano de idade. No sonho eu experimentava, alternada-
mente, uma sensação de suavidade e rudeza. A suavidade era o céu e a rudeza era o infer-
no. Não havia palavras no sonho, somente as sensações, mas elas se contrastavam entre si.
Este sonho é um exemplo de como, mesmo para alguém tão no início da vida, os opostos
estavam se separando. O jovem Eu que emergia começava a fazer distinção entre aquilo de
que gostava daquilo que não gostava.

Esta ideia de emergência dos opostos continua na discussão de Jung a respeito da dupla
natureza do peixe. A maior parte do capítulo nove do Aion diz respeito a esse assunto.
Jung nos conta que, de acordo com determinados textos antigos, o monstro marinho origi-
nal foi separado em duas partes. Alguns textos falam de dois Leviatãs; só mais tarde este
par passa a ser expressado sob a forma de Beemot e Leviatã. Jung torna a referir-se a essa
ideia no parágrafo 183 com a imagem de que a divindade original separou Leviatã de si
próprio, ou então separou um monstro de si mesmo, de maneira que a oposição se deu
entre Deus e o monstro. Contudo, a seguir o monstro é separado em dois e a oposição não
se dá mais entre Deus e o monstro, mas agora entre os dois monstros. É então que passa a
haver dois peixes, o peixe bom e o peixe mau. Esta é uma variação da mesma imagem
arquetípica da qual Jung tratará mais adiante, a imagem dos dois filhos de Deus, Cristo e
Satanás. A imagem dos dois peixes constitui o protótipo para os dois filhos: Cristo é o pei-
xe bom e Satanás o peixe mau. O símbolo é um exemplo da maneira pela qual o Self se
diferencia sob a influência da consciência. Isto também pode ser visto sob a forma da dupli-
cação da sombra, sobre a qual Jung fala no parágrafo 185:

Esta divisão corresponde à duplicação da sombra, bastante frequente nos sonhos, onde as duas
metades apresentam características distintas ou opostas entre si. Isto acontece quando a perso-
nalidade consciente do Ego não encerra todos os conteúdos ou componentes que seria capaz de
abranger.

Mais uma consideração digna de ser feita é a de que o surgimento deste tipo de imagem
nos sonhos indica que o conhecimento dos opostos está subindo à consciência. Nestas oca-
siões, um conteúdo inconsciente com frequência aparece sob forma duplicada em sonhos, e
trata-se de uma separação como a de Tiamat. Contudo, o que pode acontecer em tais oca-
siões é que só uma metade da forma é aceita e adicionada à consciência — a metade da
qual gostamos —, enquanto a metade da qual não gostamos é novamente reprimida.

Também relevante aqui é a dupla e paradoxal natureza do peixe. Após apresentar algumas
evidências disso, Jung prossegue dizendo:

A situação ambivalente em relação ao peixe se reflete na sua dupla natureza: de um lado é impu-
ro e sinal de ódio, e de outro é objeto do culto religioso. (par. 187)

79 Este tema é discutido mais detalhadamente em meu Anatomia da psique, p. 201s.

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Uma interessante referência ao aspecto desprezível do peixe aparece na nota de rodapé 54,
no final do parágrafo 178: “Conferir, neste sentido, o esthie pinaon da inscrição de Pectó-
rio”. No Aion Jung curiosamente não traduz estas palavras gregas. Porém, quando volta-
mos à página 82, lemos na nota 75 do parágrafo 145 a citação de Jung da inscrição de
Pectório: “Come [versão incerta] segurando o peixe com as mãos. Alimenta-te, pois, com o
peixe; anseio por ti, ó Senhor Salvador”, o que representa uma leitura duvidosa. Jung afir-
ma que a leitura mais provável é pinaon, em vez de peinaon, e se dá ao trabalho de referir-
se a isso nesta última nota do parágrafo 147. Tudo isso me chamou a atenção porque para
praticamente todas as expressões em grego Jung dá a tradução em português, mas deixou
de fazer isso só na nota 54 do parágrafo 178. A razão é que aqui Jung está disfarçando
alguma sabedoria secreta. Vejam, “comer pinaon” significa comer o alimento impuro, co-
mer uma coisa obscena. Ora, se levarmos em conta que ele está tratando do alimento euca-
rístico, isso representa uma ideia chocante, e é por esta razão que Jung não traduz a ex-
pressão grega.

Esta mesma sabedoria paradoxal é referida no parágrafo 185:

Da mesma forma que Cristo, em Agostinho, é o peixe levatus de profundo [trazido das profun-
dezas] (...), o peixe tirado do fundo tem uma ligação misteriosa com Leviatã: ele é a isca com que
se atrai e pesca Leviatã. Este peixe deriva provavelmente de uma duplicação do grande peixe, e
representa seu aspecto pneumático. Que Leviatã possua um aspecto deste gênero decorre do fa-
to de ser alimento eucarístico.

Aqui Jung está afirmando que, falando de modo simbólico, o Leviatã equivale ao Cristo.
Eles são simbolicamente equivalentes, de forma que quando comemos a carne de Cristo na
refeição eucarística, estamos comendo Leviatã. De maneira inversa, quando assimilamos
um pouco do Leviatã — a psique primitiva infantil —, também estamos partilhando da sa-
grada eucaristia.

O simbolismo do Norte já foi discutido previamente, mas Jung retorna a ele neste capítulo e
acrescenta mais material ainda a respeito da dupla e paradoxal qualidade do Norte. Assim
como o peixe é paradoxal, também o Norte combina os opostos. Ele é o lugar de onde vem
Deus, a origem da suprema visão de Ezequiel, e é também o lugar onde Set e o demônio
moram. Acredito que a razão básica disso é a de que o eixo cósmico está fixo na Estrela do
Norte, ou estrela polar, e ela é o centro do universo; o centro do grande mandala cósmico
está ali localizado. A figura 15 proporciona uma imagem visual disso: trata-se de uma foto-
grafia com lapso de tempo do céu boreal. Aquilo que ali vemos é o que Francis Thompson
chama de “sistema giratório”. Ele fala a respeito do local “onde o sistema giratório se faz
mais escuro”.80

A figura mostra o que pode ser visto se mantivermos nosso olhar focalizado diretamente no
polo. Este é o lugar onde mora Deus, no centro da figura. E mesmo que os antigos não
fossem capazes de contemplar esta fotografia com lapso de tempo moderna, o seu incons-

80 “In no strange land”, linha 9, em Louis Untermeyer, ed., Modern American Poetry and Modern British
Poetry.
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ciente teria sido perfeitamente capaz de perceber estas imagens de círculos concêntricos no
céu.

Figura 15. Fotografia com lapso de tempo do céu do Hemisfério Norte


A fotografia mostra o trajeto das estrelas em volta da estrela Polar,
imagem do centro cósmico.

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PARÁGRAFOS 193-212

O peixe na alquimia
14
U
m dos grandes temas do Aion é a imagem do peixe na alquimia. Jung rastreia o
simbolismo do peixe nos últimos 2.000 anos e localiza a primeira aparição dele

0
nos escritos alquímicos. A referência inicial é à água-viva ou medusa:

No mar existe um peixe redondo, sem ossos nem envoltório [uma tradução alternativa para en-
voltório seria escamas ou concha]; é cheio de gordura e possui uma força maravilhosa; quando
posto a cozinhar em fogo lento, até que sua gordura e seu humor desapareçam, se embebe da
água do mar, e então brilha. (par. 195)

Jung então continua, citando um outro tratado:

Quando aparece a citrinitas (xanthosis, amarelecimento), produz-se o colírio (collyrium) dos filó-
sofos. Se eles lavarem os olhos com este colírio, poderão compreender facilmente os mistérios
da filosofia.

Aqui temos uma reminiscência do Livro de Tobias, onde a bile extraída do peixe transfor-
ma-se no colírio curativo da cegueira do velho homem. A medusa cozinhada em fogo bran-
do que começa a luzir conduz então Jung a Plínio e à antiga ideia da stella marina, a estrela
do mar:

Afirma-se que este peixe é muito quente e queima (...) como se fosse fogo (...) Quando esfrega-
mos nela um bastão, ele pode ser usado como tocha (...) e gera tanto calor que não só queima
tudo o que toca, como o transforma imediatamente em alimento. Por isso ele significa veri amo-
ris vis inextinguibilis [a força inextinguível do verdadeiro amor]. (par. 197)

Jung prossegue falando a razão pela qual a forma arredondada da água-viva, com seu ar-
ranjo de raios que partem de um centro, são fatos especialmente importantes para seu sim-
bolismo. A figura 16 mostra o animal visto de cima, lateralmente e de baixo. Trata-se, de
fato, de um mandala vivo. Jung apresenta uma surpreendente imagem da terra como sendo
uma grande água-viva, e se refere à afirmação de um alquimista de que “No Polo se encon-
tra o coração de Mercúrio, que é o verdadeiro fogo, no qual o Senhor repousa”. (par. 206)

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Figura 16. A água-viva ou medusa, um mandala vivo

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Jung então explica de que maneira os meridianos leste-oeste e os meridianos norte-sul for-
mam uma cruz, uma quaternidade que caracteriza o polo terrestre: A partir do polo, as qua-
tro direções se irradiam. Portanto, trata-se de que o hemisfério norte se parece muito com
o corpo redondo da hydromedusa, a água-viva, cuja superfície esférica é dividida em quatro,
ou então em múltiplos de quatro, sempre de maneira radial, e que portanto parece o globo
visto a partir do polo. Esta descrição indica que Jung tem uma particular ligação com a i-
magem da água-viva. Logo no próximo parágrafo somos informados de que tal ligação pes-
soal decorre de um importante sonho que Jung teve quando ainda jovem, embora aqui ele
não diga que foi ele mesmo que teve o sonho. Mas em Memórias, sonhos, reflexões ele
afirma que o sonho foi dele.

Sonhou que estava passeando numa floresta. Pouco a pouco, porém, esta floresta se tornou ca-
da vez mais solitária e selvagem. Por fim, o sonhador verificou que estava numa floresta virgem.
As árvores eram tão altas e a ramagem tão espessa, que embaixo, no chão, quase reinava o cre-
púsculo. Os caminhos e atalhos haviam desaparecido há muito, mas impelido por uma expecta-
tiva e uma curiosidade indefinidas, ele prosseguiu, e não demorou a encontrar uma piscina circu-
lar, de cerca de 6 ou 7 metros de diâmetro. Era uma fonte de águas subterrâneas, cujas águas
cristalinas pareciam quase negras à sombra escura das árvores. Na água do centro da piscina flu-
tuava um corpo que luzia debilmente e tinha o brilho da madrepérola — era uma hidromedusa,
cuja umbrela tinha cerca de cinquenta centímetros de diâmetro. (par. 208)

É interessante notar que em Memórias, sonhos, reflexões Jung descreve a experiência de


maneira bem mais emocional:

[Encontrava-me] numa floresta. Havia córregos e no recanto mais sombrio vi, cercado por espes-
sas brenhas, um açude circular. Na água, emergindo em parte, distingui uma forma singular e
muito estranha: era um animal redondo, multicor e cintilante, composto de numerosas células
pequenas, ou de órgãos semelhantes a tentáculos, um radiolário gigantesco de cerca de um me-
tro de diâmetro. [Aqui o radiolário tem um metro, e no Aion tem cinquenta centímetros. Isto é
uma indicação de que esta imagem simbólica de peixe está tão viva que sequer é capaz de man-
ter um tamanho constante.] Pareceu-me extraordinário que essa criatura magnífica tivesse ficado
incólume naquele lugar oculto, sob a água clara e profunda. Isto despertou em mim um desejo
intenso de conhecimento, e então acordei com o coração batendo forte. [Após isso] fui impelido
irresistivelmente para o campo das ciências naturais.81

Como foi que este sonho levou Jung a sua orientação vocacional? Na época, o jovem Jung
encontrava-se bastante em dúvida a respeito de sua vocação. Contudo, uma ideia referida
no seu relato autobiográfico é a de que esta imagem de um organismo da natureza levou-o
a optar por estudar ciências naturais — Naturwissenschaft foi a palavra usada por Jung. Mas
uma outra ideia é a de que a água-viva, enquanto um mandala vivo, representa uma espécie
de estrela polar orgânica, e a de que quando uma pessoa encontra a sua própria estrela
polar viva, passa a ser orientada por essa estrela; é então que a pessoa descobre onde está,
para onde está indo e para onde deveria ir. Acredito que estas duas maneiras de entender o
sonho são relevantes.

81 Memórias, sonhos, reflexões, p. 83.


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A estrela do mar ígnea, o tal peixe que é tão quente a ponto de poder ser cozido em si
mesmo, leva-nos ao tema do simbolismo do fogo. Jung cita vários textos descrevendo o
fogo da estrela marinha e fala deles de maneira paradoxal ou antinômica. Por exemplo,
Picinelo é citado por Jung dizendo:

“Este peixe arde sempre no meio das águas, e tudo o que ele toca se aquece e pega fogo.” Este
calor é um fogo que significa o Espírito Santo (...) e as línguas de fogo do milagre de Pentecos-
tes. O prodígio, que consiste em o fogo da estrela do mar não se apagar dentro da água, lembra
a eficácia da graça divina, que torna a inflamar os corações mergulhados “no mar dos pecados”.
Pela mesma razão o peixe também significa a caridade e o amor divino. (par. 198)

Jung indica que esta estrela do mar ígnea está ligada não somente com a ideia do amor
divino, mas também com a do amor profano, e pode, na verdade, representar o fogo do
inferno:

Este peixe (...) arde mas não brilha. [Basílio diz:] “Considera, a este respeito, o mar profundo, as
trevas impenetráveis, o fogo sem brilho que tem o poder de queimar mas é privado de luz. Esta
ideia descreve o fogo do inferno”. É a concupiscência, a centelha da volúpia. (par. 199)

Aqui temos o mesmo peixe ígneo descrito por um lado representando o divino amor e gra-
ça, e por outro lado representando o fogo do inferno e a lascívia. Jung comenta como é
curioso que duas interpretações tão diametralmente opostas possam ser dadas ao mesmo
símbolo sem que com isto os intérpretes se sintam constrangidos. Este duplo aspecto do
peixe ígneo corresponde ao duplo caráter do peixe que já foi discutido antes. Outro texto
ainda ilustra esta duplicidade:

“Toma do fogo ou da cal virgem que, no dizer dos filósofos, cresce nas árvores [árvores mari-
nhas, que são os corais]. O próprio Deus arde de amor divino neste fogo (...) E sem este fogo a
obra nunca poderá consumar-se. É também o fogo dos filósofos (...) Também é o fogo mais no-
bre que Deus criou na terra, pois possui milhares de virtudes. O Mestre observa, a este respeito,
que Deus lhe conferiu [ao fogo] tamanha força e eficácia, que a própria divindade se misturou a
este fogo. E este fogo purifica como o purgatório no inferno.” (par. 200, n. 23)

Portanto, estamos tratando tanto de fogo divino quanto de fogo infernal. A razão pela qual
Jung dá tanta ênfase a estas imagens é a de que é desta forma que a psique se descreve a si
mesma. Esta natureza dupla é a mesma da libido: ela é simultaneamente fogo sagrado e
divino e fogo purgatório e infernal. Por um lado a energia da libido se manifesta como dese-
jo sexual primitivo que consome quando se manifesta em sua intensidade primeva e incons-
ciente. Por outro lado, em sua forma consciente e diferenciada, a libido se manifesta como
amor transpessoal, a mais elevada função da psique humana. O amor transpessoal é a ca-
pacidade que temos de estabelecer, perceber e viver a nossa vida a partir de valores objeti-
vos transpessoais. Trata-se da valoração em seu nível mais elevado e mais consciente. Os
animais partilham conosco o mais baixo nível de amor: eles podem valorizar o conforto
físico e uma boa refeição, assim como nós. Mas isso não constitui o amor objetivo, trata-se
somente da forma mais baixa de amor, a concupiscentia.

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É neste contexto (par. 200, n. 22) que Jung se refere à visão de Arisleu.82 A essência dessa
história é que Arisleu, um filósofo alquímico, desce ao fundo do mar com alguns compa-
nheiros para resgatar o rei do mar que se encontra em perigo lá em baixo. Arisleu acaba
colocando-se ele também em perigo devido a uma questão de incesto. O resultado é o de
que ele e seus companheiros acabam sendo aprisionados numa casa de vidro, o que, em
outras palavras, equivale a ser aprisionado em um frasco alquímico, e são então submetidos
a um intenso calor. É por esta razão que Jung afirma que “isso nos remete à visão de Aris-
leu”: fogo ou calor intensos dentro do mar corresponde ao quente e ígneo peixe marinho.
O intenso calor que Arisleu e seus companheiros experimentaram acabou por exercer ao
final um efeito transformador benéfico e favorável, embora eles tenham sido obrigados a
suportar o fogo purgatório representado por ele.

De acordo com um texto, o fogo tem uma natureza quaternária:

Segundo Blaise de Vigenère, o fogo tem quatro aspectos, e não somente dois, ou sejam: o inte-
ligível (da pura luz), o celeste (do calor e da luz), o dos elementos (que pertence ao mundo inferi-
or e se distingue pela luz, pelo calor e pelo ardor), e, por fim, o infernal, oposto ao inteligível (ca-
rente de luz e que apenas arde e queima). Neste autor reaparece a quaternidade, ligada desde
tempos antiquíssimos ao fogo, como nô-lo mostram a ideia egípcia de Tifão e dos quatro filhos
de Hórus e a visão de Ezequiel que indica a região do Norte como sendo a do fogo. É de todo
improvável que Vigenère tenha pensado, por exemplo, em Ezequiel, nesse contexto. (par. 203)

E Jung adiciona, numa importante nota de rodapé a este parágrafo:

Os símbolos quaternários que surgem espontaneamente nos sonhos indicam, a meu ver, a totali-
dade ou Self. O fogo significa paixão, afeto, concupiscência e as forças impulsivas e emocionais
da natureza humana em geral, ou seja, tudo o que se pode entender sob o termo “libido”. Quan-
do os alquimistas atribuem uma natureza quaternária ao fogo, isto equivale a dizer que o Self é a
fonte de energia. (par. 203, n. 37)

Vejam que esta poderosa afirmação é introduzida de maneira bem discreta, sem nenhum
estardalhaço. Vamos considerar o que ela significa, pois tem significativas implicações e é
muito importante no trabalho analítico prático. Por exemplo, no início de uma análise,
quando ainda estamos fazendo a anamnese, recolhendo a história da vida de um analisan-
do, nosso interesse principal deve ser o de descobrir quais aspectos possuem intensidade de
libido, tanto positiva quanto negativa, pois estes focos de intensidade serão indicações dos
locais em que o Self toca o processo de desenvolvimento do Eu. A mesma coisa vale quan-
do analisamos os eventos da vida cotidiana de uma pessoa. Desejos intensos ou reações de
todos os tipos são cruciais, sejam eles positivos, criativos e construtivos, sejam eles perver-
sos e perigosos. De uma forma ou de outra estes afetos sempre se originam do Self e cons-
tituem detalhes aos quais devemos prestar muita atenção. Esta é uma razão pela qual Jung
esbanja atenção para o simbolismo do fogo e do peixe ígneo: trata-se da imagem do mais
importante conteúdo da psique.

82 Ver também Psicologia e alquimia, OC 12, par. 435s e 449s.

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Mais um aspecto do simbolismo do fogo, retirado de outro texto, é mencionado no parágra-


fo 210:

Picinelo acha que sua estrela do mar, este peixe que arde no meio das águas mas não brilha, re-
presenta não só o Espírito Santo, o amor, a graça e a religião, mas também algo que existe no
homem, a saber, a sua língua, ou a sua fala e sua capacidade de expressão, pois é através destas
faculdades que toda a vida psíquica é manifestada. Evidentemente ele aqui está se referindo a
uma atividade psíquica instintiva e não reflexiva, pois neste ponto ele cita a Carta a Tiago 3, 6:
“Também a língua é um fogo, um mundo de iniquidade entre nossos membros, a contaminar to-
do o corpo, que incendeia a roda da criação e é incendiada pelo inferno”. (n. 46)

Jung menciona o fato de que este texto é semelhante a ideias budistas, o que nos faz lem-
brar um determinado simbolismo que pode ser considerado quando alguém está lidando
com a imagética do fogo. Trata-se do Sermão do Fogo de Buda. Nada pode representar
melhor a natureza do budismo do que este Sermão do Fogo. Aqui estão algumas passagens
dele:

Todas as coisas, ó irmãos, estão em chamas. E o que, ó irmãos, são estas coisas que estão em
chamas? O olho, ó irmãos, está em chamas, as formas estão em chamas, a consciência do olho
está em chamas, as impressões recebidas pelo olho estão em chamas; e qualquer sensação, pra-
zerosa ou não prazerosa, ou até indiferente, origina-se das impressões recebidas pelo olho que
também está em fogo (...) Com o fogo da paixão, vos digo, com o fogo do ódio, com o fogo da
paixão passageira; com o nascimento, com a velhice, a morte, a mágoa, lamentação, miséria, a-
flição e desespero estão em chamas. O ouvido está em chamas; os sons estão em chamas; (...) o
nariz está em chamas; os odores estão em chamas; (...) a língua está em chamas; os sabores es-
tão em chamas; as coisas tangíveis estão em chamas; (...) a mente está em chamas, a consciên-
cia da mente está em chamas; (...) e com que estas coisas estão em chamas? Com o fogo da
paixão, com o fogo do ódio, com o fogo da paixão transitória; com o nascimento, velhice, morte
e tristeza.

Percebendo isso, ó irmãos, o instruído e nobre discípulo concebe uma aversão pelo olho, conce-
be uma aversão pelas formas, concebe uma aversão pela consciência do olho, concebe uma a-
versão pelas impressões recebidas pelo olho; (...) aversão pelo ouvido, (...) aversão pela língua,
(...) aversão pela mente (...) E concebendo estas aversões [o discípulo] se torna despojado de pai-
xão, e pela ausência de paixão ele se torna livre.83

Isto coloca a questão de maneira bem literal. Trata-se de um exemplo radical da maneira
pela qual formular e constelar um contraponto espiritual ao aspecto infernal do fogo primal,
da libido primal.

O simbolismo do fogo e o simbolismo da roda encontram-se unidos no texto de Tiago 3,6


que Jung cita: “Como um mundo de iniquidade, a língua está entre nossos membros a con-
taminar todo nosso corpo. E inflama a roda do nascimento, sendo, por sua vez, inflamada
pelo inferno.” É interessante notar as diferenças que existem entre as diversas traduções da
Bíblia. Aquilo que aqui é traduzido como “roda do nascimento”, em outras versões é vertido
como “curso da natureza”, “ciclo da natureza”, “toda a roda da criação”, “roda de nossa
existência” e também o “curso da vida”.

83 E. A. Burtt, Ed., The Teachings of the Compassionate Buddha, p. 96s

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Podemos compreender esta imagem da roda do nascimento ou roda da criação como se


referindo ao Self original, o estado original de totalidade ao qual o Eu encontra-se inconsci-
entemente ligado. Quando o processo de individuação é constelado, é necessário que o Eu
se torne consciente e se desidentifique do Self. Para encorajar o Eu a fazê-lo, esta identida-
de inconsciente Eu-Self, que constitui uma forma de existência muito agradável da infância e
adolescência, acaba por se tornar uma tortura de fogo. O grande mito de Íxion é um exem-
plo disso. Íxion tentou seduzir Hera, mas sua parceira acabou por se transformar em uma
simples nuvem, e sua punição foi ficar amarrado a uma roda de fogo que girava ininterrup-
tamente. Diversos vasos gregos trazem a representação do mundo subterrâneo e Íxion fixa-
do à sua roda de fogo. Esta é uma imagem da tortura a que é submetido o indivíduo que se
encontra inconscientemente identificado com o Self depois que a individuação já foi ativada
e já é requerida por parte do Eu.

Há também outra interessante referência a esta roda negativa nas tabuletas órficas de ouro
descritas no livro Prolegomena to a Study of Greek Religion de Jane Harrison. Os antigos
órficos tinham a noção, similar à dos egípcios, que a pessoa falecida teria que responder
sucessivamente a determinadas questões no mundo subterrâneo para poder obter o estado
de beatitude. Por isso, os órficos enterravam na tumba do falecido tabuletas de ouro com
instruções inscritas sobre a maneira de responder às questões. Como o ouro não se deterio-
ra, os arqueólogos modernos puderam desenterrá-las e agora podemos lê-las. O morto era
avisado que se depararia com um guardião de portal que lhe faria determinadas questões, e
a imagem da roda é uma das coisas a respeito da qual ele seria arguido. O morto deveria
ser capaz de identificar cada um destes guardiões, explicar quem eram eles e conhecer sua
natureza. Então, de acordo com as tabuletas, o morto deveria dizer ao guardião do portal:
Eu pude escapar da infeliz e exaustiva roda de fogo.
Eu pude passar com pés ligeiros para o círculo desejado.
Eu pude penetrar no seio de Despoina, Rainha do Mundo Subterrâneo [ou seja, Perséfone] (...)
— Feliz e abençoado, seja tu um deus em vez de mortal!84
Esta instrução acaba com uma notável afirmação: “Como uma criança, mergulhei no leite”.
É como se uma vez tendo ultrapassado o guardião do portal, a beatitude celeste passasse a
ser representada por um oceano de leite. Antes, porém, o morto deveria anunciar: “Eu
escapei da infeliz e exaustiva roda”. Esta infeliz e exaustiva roda corresponde àquilo que era
chamado de heimarmene, a roda do nosso horóscopo individual, ao qual estamos ligados
desde o nascimento.
Na medida em que alguém está inconscientemente identificado com a totalidade original,
esta pessoa está identificada com o seu destino arquetípico, a infeliz e exaustiva roda. Esca-
par da escravidão desta roda significa psicologicamente tornar-se consciente da roda da
nossa totalidade pessoal [o círculo desejado]. Só assim alguém é capaz de escolher esponta-
neamente seu destino arquetípico: agora já não mais se trata de uma escravidão inconscien-
te e já não mais se trata da torturante roda de fogo de Íxion. A imagem da escravidão à
roda surge em todos estes diferentes contextos culturais somente porque ela corresponde a
uma realidade arquetípica básica.

84 Prolegomena, p. 585.
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PARÁGRAFOS 213-235

O peixe na alquimia (cont.)


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J
Ung continua sua discussão acerca do símbolo do peixe na alquimia com uma con-
sideração a respeito do peixe cnidário e da pedra cnidária. A palavra “cnidário”
vem do vocábulo grego kineo, que significa “colocar em movimento”. Uma defini-

0
ção alternativa do vocábulo seria “dar origem a” ou “ser o autor de”. A raiz kineo é
a origem da palavra cinético e da palavra cinema para expressar figuras em movi-
mento. Em relação ao peixe cnidário, Jung diz:

Nos Cirânidas se descreve um peixe redondo e transparente (ou seja, sem tegumentos), de natu-
reza estranha: o peixe cnidário vive no mar das costas da Síria, Palestina e Líbano; tem o tama-
nho de seis dedos e é um pisciculus rotundus [um peixinho redondo]. Possui duas estrelas na ca-
beça e outra na terceira vértebra caudal ou no nó do dorso, que é especialmente resistente e u-
sado como feitiço amoroso. (...) “Esta pedra é gêmea ou dupla. E uma é escura e negra, enquan-
to a outra é negra mas transparente e luminosa como um espelho”. É a ela que muitos procuram
sem conhecer: trata-se, com efeito, da pedra do dragão. (...)
Esta pedra já era conhecida de Plínio, como também da alquimia medieval, onde era chamada
de “draconites, dracontias ou drachates”. Era uma pedra preciosa, que se obtinha decapitando o
dragão adormecido. (par. 213-4)

Jung então se refere ao Lexicon of Alchemy de Ruland no verbete relacionado à draconita,


a pedra do dragão. Esta pedra no peixe cnidário é equivalente à pedra da cabeça do dragão
ou da serpente. Ruland afirma:

A draconita é uma pedra preciosa (...) que se encontra no interior da cabeça das serpentes, mas
a menos que seja removida enquanto o animal estiver vivo, jamais se tornará uma pedra precio-
sa, devido à malícia inata do animal que, quando se vê diante da morte, destrói a virtude da pe-
dra. Portanto a cabeça deve ser removida quando a serpente se encontra adormecida, e assim o
poder da pedra é assegurado (...) A cor da draconita é branca; ela afasta todos os animais vene-
nosos e cura mordidas peçonhentas (...) As nossas próprias Chelydrus e cobra-d´água às vezes
têm pedras em suas cabeças, como eu mesmo já vi.85

Este peixe cnidário que contém em seu cérebro e em sua coluna vertebral estas notáveis
pedras demonstra por seu próprio nome que possui uma função movimentadora que cor-

85 A Lexicon of Alchemy, p. 128.


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responde à função motora do polo celestial, o qual já foi discutido previamente. O peixe
cnidário é o movente, o originador do movimento, e essas imagens nos fazem lembrar a
afirmação bastante sugestiva de Jung de que o Self é a fonte da energia (parágrafo 203,
nota 37). O peixe cnidário é um peixe motor, um peixe que motiva, e este é um dos aspec-
tos do simbolismo do Self. Mas ele não é somente um peixe, mas também uma pedra, e
não somente uma pedra, mas uma pedra dupla. Jung discute essa questão nos parágrafos
215-6:

A pedra cnidária possui uma dupla natureza que, como se vê pelo texto, não é de todo clara.
Somos quase tentados a supor que a duplicidade da pedra se expressa originariamente em uma
variedade branca e uma variedade preta, e que um copista, ao se deparar com a contradição, a-
crescentou um niger quidem (embora negra). Mas Ruland realça, de maneira bem clara, que a
sua cor é branca.
Ponderadas todas as circunstâncias, a dupla natureza da pedra cnidária poderia significar uma
antinomia e ao mesmo tempo uma união dos contrários, o que evidentemente confere ao lapis
philosophorum [pedra filosofal] seu significado especial como símbolo de unificação e, concomi-
tantemente, também uma força mágica ou divina.

Jung então prossegue dando uma interpretação psicológica daquilo que a pedra-peixe ou
draconita pode significar psicologicamente:

Assim, nossa draconita possui forças mágicas extraordinárias que a tornam apta para as ligaturae
Afroditis [ligaduras de Afrodite], isto é, para o seu emprego como feitiço amoroso. A magia signi-
fica uma compulsão que se impõe contra a consciência e contra a vontade consciente da vítima,
isto é, surge na pessoa enfeitiçada uma determinação da vontade que lhe é estranha e se mostra
mais forte do que seu Eu. Semelhante efeito, psicologicamente verificável, só é produzido pelos
conteúdos inconscientes que manifestam, justamente por esse seu poder de compulsão, a sua
subordinação ou dependência em relação à totalidade do homem, ou seja, ao Self e suas deter-
minações “cármicas”.

Esta rápida e discreta afirmação de Jung tem consideráveis implicações psicológicas. Tradu-
zida em termos clínicos, Jung está dizendo que todo sintoma neurótico, toda compulsão,
toda adição, todo afeto primitivo que não pode ser controlado pelo Eu — todos estes aspec-
tos da sintomatologia psicológica derivam seu poder e efetividade do Self. Isto é muito im-
portante para a análise prática porque o sintoma, o afeto primitivo, o impulso compulsivo,
aquele conteúdo inconsciente que mantém o Eu preso em suas garras — isto é precisamen-
te o dragão, a serpente e o peixe cnidário que possuem o poder de colocar em movimento
algo. Entretanto, em seu âmago, escondido em seu interior, encontra-se a pedra preciosa
do Self. É precisamente isso que precisa ser extraído pelo processo analítico do sintoma, da
experiência primitiva e compulsiva. A pedra pode então ser extraída da cabeça do dragão
ou da cabeça do peixe, transformando-se, então, numa pedra preciosa.

Existe uma variação desta ideia no tema do sapo venenoso que porta uma pedra preciosa
em sua cabeça. Esta imagem encontra-se conservada como relíquia na peça de Shakespea-
re denominada As You Like It por meio destas linhas: “Doces são os usos da adversidade; /
Que, assim como o sapo, horrendo e venenoso, / Leva, contudo, uma joia preciosa em sua

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cabeça”.86 Esta passagem é bastante relevante quando se está lidando com uma dificuldade
psicológica; ela sugere a ideia de que a adversidade com que nos deparamos tem uma doce
utilidade se formos capazes de extrair a joia preciosa que se encontra engastada nela.

Já outro peixe digno de nota é o Echeneis remora. Como Jung nos conta, este é um peixe
real, embora esteja revestido de atributos legendários. De acordo com a lenda, se o peixe se
fixar a um barco com suas ventosas, ele tem o poder de deter o curso do barco, imobilizan-
do-o. Esta habilidade é revelada em sua etimologia: a palavra Echeneis deriva de duas raízes
gregas — do verbo eco, que significa segurar ou agarrar, e da partícula naus, que significa
barco. Assim, a palavra Echeneis significa “o segurador de barcos”. A palavra remora tem
em sua raiz a partícula mora, que significa demora, retardo. Essa raiz pode ser reconhecida
na palavra moratória, que significa um retardo de algum tipo em alguma obrigação, tal qual
o pagamento de uma dívida. Jung cita um texto do século 17 relativo a isso:

[O peixinho equeneido] que não tem sangue nem espinhas e permanece encerrado na região
central e profunda do grande mar do mundo. Este peixinho é muito pequeno, solitário e único
em sua forma, enquanto o mar é grande e vasto, e por isso aqueles que não sabem em que par-
te do mar ele habita não podem capturá-lo. (...) Se, entretanto, falarmos em segredo e sem re-
ceio de perigos a um amigo merecedor de confiança, ensinar-lhe-emos o segredo oculto dos sá-
bios, que consiste em saber como capturar de modo natural, rápido e fáci, o peixinho denomi-
nado rêmora, o qual é capaz de fazer parar as soberbas embarcações do grande mar Oceano
(que é o espírito do mundo). Mas os que não são filhos da sabedoria são completamente ignoran-
tes e não conhecem os preciosos tesouros (...) [Assim,] é necessário que eu te instrua, primeira-
mente, a respeito do magneto dos sábios. Este magneto tem o poder de atrair o peixinho eque-
neido, também chamado rêmora, do centro e das profundezas de nosso mar. (par.218)

Jung interpreta este material no parágrafo 219:

Ficamos sabendo (...) que o peixe se encontra no centro do Oceano. Mas o mar, como se lê aí, é
o spiritus mundi (...) Este é um termo pouco comum porque, ao que sabemos, a expressão usada
preferencialmente era anima mundi. A alma, ou, no presente caso, o espírito do mundo, consti-
tui uma projeção do inconsciente (...) Esta ideia nada mais é, portanto, do que uma analogia ao
princípio animador no homem que inspira seus pensamentos e seus atos de cognição. A alma e
o espírito, ou melhor, a psique em geral, é, em si e por si, totalmente inconsciente enquanto
substância. Quando ela é pressuposta exteriormente, ela não pode ser nada exceto uma proje-
ção inconsciente (...) Em qualquer dos casos, sabemos que o mare nostrum da alquimia represen-
ta um símbolo do inconsciente em geral (...) O diminuto peixinho que habita, significativamente,
no coração do vasto mar é capaz de reter grandes embarcações.

Assim este peixinho, tão difícil de ser apanhado, por ser tão pequeno e se situar no vasto
mar, pode ser capturado por meio do “magneto dos sábios”, a respeito do qual Jung então
diz:

Não haveria esperança alguma de um dia capturar este ser vivo se não existisse um magnes sa-
pientum [magneto dos sábios] no sujeito consciente. Este magneto constitui, é claro, aquilo que
um mestre pode transmitir a seu discípulo, ou seja, a theoria, que representa o único bem verda-
deiro que o adepto pode tomar como ponto de partida. A primeira coisa que ele deve encontrar

86 II, i, 12-4.

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é a prima materia, e para isso lhe serve o artificiosum secretum sapientum [o engenhoso segredo
dos sábios], ou seja, a teoria que pode ser comunicada. (par. 219)

Jung usa a palavra original theoria para chamar nossa atenção para o fato de que ele não
está se referindo ao uso moderno da palavra “teoria”, já que o significado da palavra origi-
nal é mais ou menos equivalente ao de uma imagem reveladora. Então, este magneto dos
sábios que Jung faz equivaler à theoria do adepto alquimista, e que pode ser transmitido e
uma para outra pessoa, corresponderia psicologicamente ao procedimento analítico e à
compreensão da psique na qual este procedimento está baseado. Aqui e nos capítulos sub-
sequentes Jung atribui um grande valor ao fato de este segredo, esta theoria, poder ser en-
sinada e transmitida de uma pessoa para outra. Entretanto, ela jamais poderá ser ensinada
em contextos coletivos. Ela tampouco pode ser ensinada em aulas e livros. Ela somente
pode ser ensinada em uma análise individual, contexto em que a realidade objetiva de uma
determinada pessoa pode ser entendida em sua individualidade única. Jung continua:

O que é, portanto, que um adepto sussurra ao ouvido de outro, olhando em torno a si com re-
ceio da presença de alguém que possa trair o segredo, ou até adivinhá-lo? É nada mais, nada
menos do que isto: que o Uno e o Todo, o infinitamente grande em suas manifestações, deve ser
apanhado, por meio da doutrina, sob sua forma de infinitamente pequeno; o próprio Deus em
seus fogos eternos deve ser apanhado como um peixe no fundo do mar. A seguir, este Deus, de
profundo levatus [tirado do fundo das águas], deve ser incorporado ao homem ou trazido para o
nível da manifestação humana, por meio de um ato de integração eucarística, que os astecas de-
nominavam de teoqualo = manducação [manducar significa comer, mastigar]; trata-se da teofagi-
a. (par. 222)

Este é o “segredo” que pode ser ensinado no processo analítico, o segredo de que no de-
curso de lidar com as nossas mais ínfimas, mais mesquinhas, mais aparentemente insignifi-
cantes questões psicológicas, chegamos a descobrir a grande imagem de Deus e fazer uma
conexão com ela.

Jung encontra mais material associado a essa ideia em um texto cátaro. Como já foi men-
cionado anteriormente, os cátaros constituíram uma seita neo-maniqueísta que surgiu por
volta do ano 1.000 d.C e que acreditava que o mundo material é essencialmente mau; que
o homem é um estrangeiro e somente um hóspede provisório neste mundo mau; e que o
propósito do homem era o de libertar seu espírito, que por natureza é bom, e restabelecer a
comunhão deste espírito humano com Deus. Para os cátaros que levavam o título de “per-
feitos”, o intercurso sexual era proibido e uma severa e ascética renúncia do mundo era
esperada. Jung cita um texto, uma suposta revelação, que foi descrita por um membro dos
cátaros. Este material é todo derivado das histórias obtidas pela Inquisição: os inquisidores
extraíram-no à força dos heréticos. Fica evidente, a partir da grande atenção que Jung dedi-
ca a este texto, que ele o considera bastante importante do ponto de vista psicológico:

Trata-se de uma pretensa revelação que João, o discípulo predileto, teria recebido “no momento
em que repousava sobre o peito do Senhor”. João queria saber do Senhor em que estado se a-
chava Satanás antes de sua queda, e recebe esta resposta: “Ele estava num tal estado de glória,
que governava as forças dos céus”. Pretendia ser igual a Deus e para isto desceu através dos e-
lementos do ar e da água e descobriu que a terra estava coberta de água. Penetrando sob a su-

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perfície da terra, encontrou dois peixes que jaziam na superfície das águas, e eram como bois li-
gados [por um jugo], obrigados a arar a terra inteira por ordem do Pai invisível, desde o pôr do
sol até a aurora. E ao descer, Satanás encontrou nuvens suspensas que cobriam toda a extensão
do mar. E descendo mais, encontrou, em lugar separado, seu Ossop, que é uma espécie de fo-
go. Não pode continuar a descer por causa das chamas, e então voltou para cima e anunciou
aos anjos que pretendia ocupar seu trono nas nuvens e ser semelhante ao Altíssimo. Tratou, en-
tão, os anjos da mesma forma que o intendente infiel trata os devedores de seu patrão, depois
do que foi expulso do céu, por Deus, em companhia deles. Mas Deus teve compaixão dele e
permitiu a ele e a seus anjos que mandassem e desmandassem à vontade durante sete dias: Sa-
tanás criou, então, neste período, o mundo e os homens, segundo o modelo de Gênesis 1. (par.
225)

Este texto traz uma importante imagem para o éon cristão, aquela da queda de Satanás dos
céus. Sabemos a partir do livro de Jó que, nos tempos do Velho Testamento, Satanás ainda
podia ir e voltar do céu; Satanás era como que um hóspede do céu. A primeira parte do
livro de Jó se dá precisamente nesta situação, já que Satanás encontra-se visitando o céu e
conversa amigavelmente com Iahweh. Contudo, em Lucas 10,18 Cristo anuncia que viu
Satanás precipitar-se do céu como um relâmpago. Aquilo que Cristo viu foi, evidentemente,
um evento futuro, pois de acordo com Apocalipse 12,7-9, Satanás será precipitado do céu
somente no final do éon. Apocalipse 12,12-3 diz:

Por isso, alegrai-vos, ó céu, e vós que o habitais! Ai da terra e do mar, porque o Diabo desceu
para junto de vós cheio de grande furor, sabendo que lhe resta pouco tempo. Ao ver que fora
expulso para a terra, o Dragão pôs-se a perseguir a Mulher que dera à luz o filho varão. (ASV)

Este evento do Apocalipse diz respeito ao final do éon cristão, mesmo que Cristo tenha
percebido uma imagem dele como descrito em Lucas, e mesmo que aquele texto cátaro o
projete num ponto anterior à criação. É como se a imagem fosse uma visão da criação, mas
é uma imagem que é particularmente aplicável ao final do éon cristão. É interessante que a
cena da queda de Satanás do céu apareça na mesma escritura que anuncia a encarnação de
Deus em Cristo, pois a encarnação também é uma queda do céu; ela é uma queda do lado
bom de Deus, do filho bom, desde o céu até a carne. Simultaneamente a este evento, so-
mos informados acerca da perspectiva reservada a Satanás, o filho mau de Deus, que tam-
bém cairá dos céus e começará a causar os conflitos pela terra toda.

Milton também usou essa imagem. Ele viveu no século 17, cerca de cem anos após a nossa
marca do ano 1.500, bem no último quartel do éon cristão, e assimilou esta ideia da rebeli-
ão de Lúcifer e de sua queda do céu. Eu discuto essa imagem em meu Anatomia da psique
como sendo um exemplo do simbolismo da coagulatio, na qual uma entidade que até então
existiu somente de maneira espiritual, desprovida da forma concreta, cai e descende à terra,
tornado-se, desta forma, encarnada.87

Este Lúcifer que se rebela contra Deus e acaba por ser expulso dos céus pode ser visto co-
mo uma descrição simbólica de um ato pré-consciente inicial que se encontra nas fundações
do Eu. Trata-se de uma imagem do desenvolvimento do Eu primordial. Lúcifer é o arquéti-

87 Anatomia da psique, p. 106.


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po do Eu, e Prometeu é uma outra versão deste mesmo arquétipo. Esta é a base fundamen-
tal do texto cátaro, embora Jung não dê aqui muita atenção ao aspecto queda-do-céu da
imagem; ele enfatiza somente alguns de seus outros aspectos, por exemplo, o importante
termo Ossop, uma antiga palavra búlgara que Jung afirma poder ser traduzida por “o que
lhe é específico” (par. 227). A palavra então significa algo que pertence exclusivamente à
personalidade individual. Isto equivale perfeitamente à ideia de que esta imagem tem a ver
com o desenvolvimento do Eu. Ao perpetrar aquele rebelde e dramático gesto que resulta
na queda, o Eu então se manifesta.

Jung então proporciona uma interpretação do texto cátaro como um todo:

Psicologicamente falando, os dois peixes que o diabo encontra na água primordial, caracterizari-
am, portanto, o mundo da consciência em seu estágio de surgimento.
A comparação dos dois peixes com uma junta de bois atrelados ao arado merece particular aten-
ção. Os bois representam as forças que movimentam o arado. [Isto nos lembra do peixe cnidá-
rio, o peixe que coloca em movimento] (...) Desde tempos imemoriais o arado é um sinal da do-
minação da terra: onde o homem ara, ali ele arranca um pedaço da terra do estado original,
pondo-a a seu serviço. Isto significa, portanto, que os peixes governarão o mundo e o submete-
rão a si, agindo (astrologicamente) através do homem, moldando seu estado de consciência. (par.
230-1)

Jung também nota que o movimento do arado começa no Oeste e se move em direção ao
Leste, indicando em termos alquímicos que “o trabalho alquímico começa com a descida
para as trevas (nigredo), isto é, para o inconsciente” (par. 231). Só quando ele se encontra
já no final é que se chega ao Leste e ao novo nascimento do sol.

Jung então leva adiante o tema do duplo peixe com a discussão do símbolo do peixe de
Lambsprinck:

Não é de se espantar que ideias cátaras tenham se introduzido na alquimia. Mas não chegou ao
meu conhecimento nenhum texto que provasse ter o simbolismo cátaro dos peixes se veiculado
através da alquimia e que, por conseguinte, deva ser considerado responsável pelo símbolo do
peixe de Lambspirinck, que representa a matéria arcana e sua antinomia interna. O símbolo de
Lambsprinck certamente não surgiu antes do final do século 17, e significa uma revitalização do
arquétipo. Representa dois peixes paralelamente opostos entre si e que nadam no mar — in ma-
re nostrum —, o que significa que nadam na aqua permanens, na matéria arcana. Eles foram
chamados de spiritus et anima e (...) indicam a dupla natureza do Mercurius. (par. 234)

A figura 17 foi retirada do Livro de Lambsprinck, um tratado alquímico composto por quin-
ze gravuras que vêm acompanhadas de breves comentários associados a cada uma das i-
magens. A gravura introdutória é a de dois peixes no mar, e ela sumariza todo o texto. O
comentário que a acompanha é o seguinte:

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Figura 17.
Dois peixes no mar

Os sábios te dirão
Que dois peixes encontram-se em nosso mar
Desprovidos de carne e ossos.
Permite que sejam cozinhados em sua própria água;
E então eles também se tornarão um vasto mar,
Uma vastidão tal que nenhum homem pode descrever.
Mais ainda, dizem os sábios
Que os dois peixes são somente um, e não dois;
Eles são dois, e apesar disso são um,
Corpo, espírito e alma.
Ora, digo-te da maneira mais verdadeira:
Cozinha estes três juntos,
De modo a se tornarem um vasto mar.
Cozinha o sulphur muito bem com sulphur,
E cala a tua boca a respeito disso:
Oculta teu conhecimento em teu próprio benefício,
E te encontrarás livre da pobreza.
Que tua descoberta permaneça sempre sendo um segredo oculto.88

88 A. E. Waite, Ed., The Hermetic Museum, p. 276.

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A advertência para ocultar este conhecimento — não revelá-lo para quem não o mereça —
é um tema que surge a todo instante nos textos alquímicos. De minha parte, acredito que
nós, psicólogos, devemos compreender o tema do segredo de maneira um pouco diferente.
O segredo psicológico sempre se encontra perfeitamente a salvo. Ele jamais poderá ser
revelado para o não merecedor porque não é fácil de comunicá-lo O verdadeiro segredo
somente pode crescer a partir de dentro, e portanto o segredo numinoso é comunicável
somente para alguém que antes já o tenha experimentado de maneira pessoal.

Isto corresponde à ideia alquímica de que não se pode fazer a Pedra Filosofal a menos que
já se tenha um pouco dela. Acredito que a referência ao “segredo” nesta primeira figura de
Lambsprinck implique que uma parte crucial do segredo seja a natureza dos opostos, já que
esta é uma figura dos opostos. Todo o Aion nada mais é do que uma espécie de circambu-
lação em torno do “segredo” que Lambsprinck pretendeu comunicar por meio de sua figura
dos dois peixes opostos.

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PARÁGRAFOS 236-246

O sonho do grande peixe


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O próximo grande exemplo do tema do peixe surge com o sonho do Grande Peixe, que
Jung relata no parágrafo 236:

0
Chego à margem de um largo rio. Inicialmente não enxergo nada a não ser água, terra e rochas.
Atiro na água as folhas em que estão minhas anotações e tenho a sensação de estar devolvendo
alguma coisa à torrente. Logo em seguida recebo uma vara com anzol e começo a pescar. Con-
tinuo a não ver nada, a não ser água, terra e rochas. De repente, um grande peixe morde a isca.
Seu ventre é de prata e o dorso de ouro. Ao puxá-lo para a terra, a paisagem se anima: a rocha
surge como a base mais antiga da terra; brotam ervas e flores e o bosque se amplia, até se con-
verter em floresta. Ergue-se uma ventania que põe tudo em movimento. Estou sentada, domina-
da por uma tensão indizível; mas, apesar disso, me sinto muito tranquila. De repente, por trás de
mim, como vinda de lado, ouço a voz do Sr. X [um senhor idoso que a sonhadora só conhece
por fotografia e por ouvir dizer, mas que lhe parece revestido de autoridade]. Ele me diz, em voz
suave mas decidida: “Aquele que perseverar na faixa mais interna receberá o peixe, o alimento
das profundezas”. Neste momento, traça-se em torno de mim um círculo que toca parcialmente
a água. Então ouço de novo a voz: “Quem for corajoso na segunda faixa poderá ser o vencedor,
pois é ali que se trava o combate”. Em seguida traça-se um círculo maior em torno de mim, des-
ta vez já tocando a margem oposta. Ao mesmo tempo a visão se alarga e descortino uma paisa-
gem de múltiplos aspectos. O sol se levanta no horizonte. Ouço a voz como que vinda de longe:
“A terceira e quarta faixas se originam das duas anteriores, tendo a mesma largura. Mas a quarta
faixa...” — e aqui a voz se detém, como que a refletir por alguns instantes — “A quarta faixa se
junta à primeira. Ela é, ao mesmo tempo, a que fica mais em cima e a que fica mais embaixo,
pois o mais alto e o mais baixo se encontram. No fundo, constituem uma só e a mesma coisa”.
Neste ponto a paciente desperta com um zumbido nos ouvidos.

Jung nos diz que este sonho abarca, de forma condensada, todo o simbolismo do processo
de individuação. Do ponto de vista da prática clínica, ele pode ser bastante útil para amplifi-
cação cada vez que encontrarmos um sonho de peixe. O rio pode ser entendido como sen-
do as águas do inconsciente, e também como o rio da vida.

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Figura 18. O sonho do Grande Peixe


A sonhadora (no centro) captura um peixe, simbolicamente um conteú-
do do inconsciente, após o que surge uma série de círculos represen-
tando níveis crescentes de integração.

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O sonho, que está representado graficamente na figura 18, pode ser dividido em quatro
partes. Na primeira parte, a sonhadora diz: “Atiro na água as folhas em que estão minhas
anotações”. Esta é uma imagem da ação sacrificial de prestar atenção ao inconsciente, fa-
zendo imaginação ativa e oferecendo todos aqueles esforços às águas a partir das quais se
originam todos os sonhos e complexos. Este tipo de trabalho constitui o ato de pescar psi-
cologicamente; e o sonho indica precisamente isso, pois tão logo lança suas notas nas á-
guas, imediatamente ela tem uma vara de pescar em sua mão. O primeiro estágio, o de
prestar atenção no inconsciente, coloca em ação todos os acontecimentos subsequentes do
sonho.

O segundo estágio é o de que, tendo a vara de pescar em sua mão, ela apanha um peixe
que tem o ventre de prata e o dorso de ouro. Isto corresponde a Tobias capturando o peixe
quando estava a caminho de ver Sara, o peixe que mais tarde curaria Sara de sua posses-
são demoníaca, e que também curaria o pai de Tobias de sua cegueira. Este peixe especial
tem a barriga prateada e o dorso dourado, de forma que representa uma coniunctio de Sol
e Luna; ele significa o mistério dos opostos e de sua reconciliação. Tudo se passa como se,
neste sonho, a sonhadora tivesse apanhado os dois peixes de Lambsprinck ao mesmo tem-
po. O peixe do sonho é a união dos dois.

Quando a sonhadora consegue fisgar o peixe da coniunctio, o terceiro estágio é então de-
sencadeado. O peixe agora revela sua natureza numinosa: ocorre uma teofania, e toda a
paisagem se torna viva. As rochas emergem como as primitivas fundações da terra; flores e
vegetação brotam e uma rajada de vento coloca tudo em movimento. Esta é a imagem de
uma criação original; a fundação da personalidade consciente representada pela rocha foi
estabelecida. O impulso da vida dá início ao florescimento das plantas, e o vento do espírito
coloca todas as coisas em movimento.

É então que ocorre o quarto estágio, o fenômeno da voz dotada de autoridade. Este evento
aparece ocasionalmente em sonhos, e deve sempre ser considerado com extremo respeito.
Trata-se da voz do Self falando; é como se neste momento tivesse se dado uma mudança
do nível natural de desenvolvimento para o nível humano. Não somente o vento, terra e
flores se manifestam, mas agora também comparece uma entidade humana que pode co-
municar-se no nível do Logos. Esta entidade humana faz então um pronunciamento de sa-
bedoria transpessoal. A primeira afirmação é a de que “Aquele que perseverar na faixa mais
interna receberá o peixe, o alimento das profundezas”. Aqueles que perseveram, os “mais
pacientes” seriam, a meu ver, aqueles que são capazes de estabelecer uma relação com o
inconsciente. E de fato, requer-se uma paciência significativa para se estabelecer tal relação.
Contudo, quando a conexão é estabelecida, o processo de alimentação passa a ocorrer: o
alimento das profundezas passa a estar disponível para o Eu.

A segunda afirmação é a de que “Quem for corajoso na segunda faixa poderá ser o vence-
dor, pois é ali que se trava o combate”, e então o segundo círculo é desenhado. Jung suge-
re que este círculo ocupado pelos “corajosos” deve se referir à capacidade de suportar um
conflito, talvez um conflito entre o Eu consciente e a sombra. Certamente é verdade que
precisamos de muita coragem psicológica para integrar a sombra e para recolher nossas

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projeções sombrosas. O que é preciso é que renunciemos de uma vez por todas a nossos
artifícios imaturos de sempre culpar os outros por tudo aquilo que nos acontece.

O terceiro círculo não é descrito especificamente no sonho. Entretanto ele pode correspon-
der ao encontro consciente com a anima ou com o animus, pois esta seria uma possibilida-
de consistente do ponto de vista lógico de qualquer maneira. Finalmente, o quarto estágio é
descrito como estando unido com o primeiro; o mais elevado e o mais inferior sempre ca-
minham juntos — no limite, os dois constituem somente um. Este quarto círculo correspon-
deria a um encontro com o Self, com a totalidade da psique. A maneira pela qual este en-
contro é descrito lembra o Axioma de Maria: um se torna dois, dois se tornam três, e a
partir do terceiro surge o um como o quarto.

A interpretação alquímica do peixe

Jung agora passa a dedicar-se à questão de como o peixe milagroso pode ser capturado, e
retorna ao texto do equeneido/rêmora. Depois de descrever o pequeno peixe e suas quali-
dades, o texto trata da questão de sua captura:

Mas para que eu possa transmitir-te a clara luz de nossa matéria singular ou nossa terra virgem,
e te ensinar a suprema arte dos filhos da sabedoria, isto é, de que modo poderás adquiri-la, é ne-
cessário que eu te instrua, primeiramente, a respeito do magneto dos sábios. Este magneto tem
o poder de atrair o peixinho equeneido, também chamado rêmora, do centro e das profundezas
de nosso mar. (par. 218)

Jung então discute este texto, que, na verdade, trata da maneira de como capturar o Self:

O equeneido exerce uma atração sobre as embarcações que poderia ser comparada, principal-
mente, com a força do magneto sobre o ferro. Essa atração provém do peixe, como nos mostra
a tradição, e faz parar a embarcação governada e dirigida a remo pelo homem. Menciono este
traço aparentemente insignificante porque, como veremos, na concepção alquímica a atração
não provém mais do peixe, mas agora de um magneto que se encontra em poder do homem e
exerce, por sua vez, aquela atração que até então foi a força misteriosa do peixe. (...) Por isso,
constitui uma novidade notável o fato de o alquimista se dispor a manejar um instrumento do
qual ele espera que se irradiem as mesmas forças do equeneido, mas em sentido inverso. Esta
inversão é importante para a psicologia da alquimia, porque constitui um caso paralelo da pre-
tensão que tinham os adeptos de serem capazes de produzir com sua arte o filius macrocosmi [o
filho do macrocosmo], correspondente a Cristo — Deo concedente [com a graça de Deus]. (par.
239)

O que Jung escreve aqui é algo que corresponde ao trabalho do analista, que presume, por
sua técnica ou procedimento, ser capaz de atrair para a tona o Self que está no inconscien-
te do paciente. Este é o objetivo do processo analítico junguiano — constelar o Self em um
paciente. O Self é aquilo que centraliza, consolida e cura, de maneira que todos nossos es-
forços devem ser devotados a este objetivo.

Esta capacidade de atrair o Self é simbolizada no texto pelo magnetismo. O próprio peixe é
um magneto, e os alquimistas, por meio de sua sabedoria, de seu conhecimento experimen-
tal e por meio daquilo que aprenderam a partir de seus mestres, adquirem para si o magne-

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tismo do próprio peixe, e transformam-no em um instrumento que então é usado para atra-
ir o peixe. Esta é uma imagem básica. Como diz Jung, trata-se de uma notável inovação o
fato de os alquimistas lançarem-se a manipular um instrumento que eventualmente pode
exercer os mesmos poderes do equeneido. Ora, o equivalente psicológico desta ideia tam-
bém é uma notável inovação.

Jung segue adiante dizendo que este “magneto dos sábios”, que pode ser ensinado, era o
conhecimento de como descobrir a prima materia (par. 240). Isto nos conduz à discussão
do termo alquímico magnesia, que é uma das muitas denominações da prima materia.
Magnesia está ligada ao termo magneto, primeiro foneticamente, e provavelmente etimolo-
gicamente também, embora exista alguma incerteza em relação a isso. O termo magnésia
deriva do nome de um distrito da antiga Grécia onde havia depósitos de magnésio. De a-
cordo com o Oxford English Dictionary, a pedra de magnésio é a designação de dois mine-
rais diferentes. Um deles é a magnetita, e este é o magneto propriamente dito, o primitivo e
original magneto. O outro mineral é uma pedra brilhante como prata, talvez o talco [silicato
de magnésio].

Não está bem claro qual destes dois minerais deu origem ao uso alquímico do termo mag-
nésia. Minha impressão é a de que assim como tantos outros elementos duplicados do sim-
bolismo, podemos entender ambos como sendo válidos: o aspecto magnético do magnésio
e também o aspecto brilhante e lustroso. Muitos de nós provavelmente conhecemos a mag-
nésia principalmente a partir do leite de magnésia de nossa infância, embora o metal mag-
nésio seja um metal prateado e brilhante similar ao alumínio. Mas desta maneira chegamos
à ideia psicológica da prima materia, da qual magnésia é um dos nomes, e que constitui
uma manifestação primitiva do Self, que possui um brilho inato e que possui qualidades
magnéticas inatas.

O simbolismo do magnetismo surge na história moderna da psicoterapia no trabalho de


Franz Anton Mesmer, que alguns consideram ser o descobridor do inconsciente, embora ele
jamais tenha usado este termo. Jung diz a respeito dele que as referências originais ao in-
consciente podem ser localizadas na época da Revolução Francesa, e que os primeiros si-
nais desta descoberta podem ser encontrados na obra de Mesmer.89

Mesmer viveu de 1.734 a 1.815; sua vida foi contemporânea à de Goethe, embora ele fos-
se quinze anos mais velho. Mesmer foi um médico austríaco que foi influenciado por Para-
celso e que desenvolveu uma ideia que ele denominou de “magnetismo animal”. Sem dúvi-
da ele foi um homem bastante carismático. Mesmer foi uma pessoa que foi tomada pelo
arquétipo do magneto, e o princípio básico de suas ideias a respeito do “magnetismo ani-
mal” foi, como ele a descreveu, de que haveria um fluido físico porém sutil que preencheria
todo o universo e que exerceria o papel de meio de conexão entre o homem, a terra e os
corpos celestes, e também entre um homem e outro. Ora, em nossos dias podemos chamar
este fluido de inconsciente coletivo.

89 Ver o artigo “Sobre o inconsciente” em Civilização em transição, OC 10, par. 21.

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Mesmer entendia a doença como sendo resultado da distribuição desigual deste fluido no
corpo humano, e dizia que a recuperação ocorreria quando o equilíbrio fosse restabelecido.
Por meio de várias técnicas magnéticas este fluido poderia ser conduzido, armazenado e
transmitido de um lugar para outro e de uma pessoa para outra pessoa. Em seus primeiros
experimentos ele fazia o paciente beber água misturada com pó de ferro, e então passava
um magneto ou ímã ao longo do corpo do paciente, de maneira que o pó de ferro se acu-
mulasse nos locais desejados.

Com o tempo ele refinou sua técnica, abandonando o uso do ímã e do pó de ferro magne-
tizado, e passou a considerar-se a si próprio como um magneto vivo, passando a realizar
sessões de terapia tanto individuais quanto em grupo. Sua terapia individual não era muito
diferente daquela que realizamos hoje. Ele se sentava diretamente de frente para a paciente,
bem perto, segurava as mãos da paciente apertando os polegares dela em suas mãos e
olhando fixamente para seus olhos. Digo “a” paciente porque imagino que o magnetismo
se tornava mais intenso desta maneira. Então Mesmer realizava passes sobre o corpo da
paciente nos locais que achasse necessário. Este era seu método de terapia individual. Já
sua técnica de terapia em grupo era colocar os pacientes todos sentados em volta de um
tanque redondo de água, cada um deles segurando uma varinha de ferro que tinha sua ou-
tra extremidade mergulhada no tanque. Cada paciente permanecia ligado aos outros por
meio de uma corda que unia a todos, enquanto cada um segurava a sua varinha de ferro
mergulhada no tanque. Mesmer então entrava em ação e realizava vários movimentos cor-
porais para fazer circular o fluido magnético e isto supostamente gerava os efeitos curativos.

Desta forma, o que Mesmer de fato estava fazendo era lidar com as poderosas transferên-
cias individuais e coletivas que ele chamava de “magnetismo animal”, o que transforma a
imagem do magneto em um elemento básico que se situa nas origens históricas da psicote-
rapia. Jung diz a respeito:

Nos Duodecim tractatus o magneto aparece como símbolo da aqua roris nostri [água do nosso
rocio], “cuja mãe é o centro do Sol, da Luna e das coisas celestes, assim como das coisas terres-
tres”. O autor anônimo apostrofa esta água como a afamada aqua permanens (...)

Vemos transparecer aqui a ideia da doutrina, da aqua doctrinae [água do ensinamento]. (par.
243-4)

Então este texto associa o magneto à água. Jung então diz que esta água especial, que cor-
responde ao magneto do sábio, é equivalente à ideia da aqua doctrinae. Esta é uma expres-
são que Jung toma da obra de Orígenes e da qual trata em vários outros locais.90 Para Orí-
genes, o simbolismo da água é o da aqua doctrinae, a água da doutrina. Por exemplo, após
a morte de Cristo na cruz, do seu flanco perfurado por uma lança (João 19) jorrou a água
que foi interpretada como sendo a aqua doctrinae. Novamente em Êxodo 17,6 Iahweh ins-
trui Moisés a bater na rocha com sua vara, de forma a obter água para que o povo de Israel
bebesse. Também aquela água foi interpretada como a aqua doctrinae.

90 Ver Mysterium coniunctionis, OC 14/2, par. 25, e “A psicologia da transferência” em A prática da psicote-
rapia, OC 16, par. 478.
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Jung descreve esta aqua doctrinae em sua “Psicologia da transferência”. Referindo-se à


sétima gravura da série Rosarium, na qual o corpo morto e unido a sua contraparte encon-
tra-se pronto para ser submetido ao orvalho que cai do céu, ou seja, lavado pela água, ele
diz:

Estas palavras encerram como que uma indicação da terapia necessária: diante da desorientação
do paciente, o médico deve reter, isto é, perseverar em sua orientação; ele deve saber o que sig-
nifica este estado, deve captar os valiosos conteúdos dos sonhos de acordo com a aqua doctrina-
e, adequada à natureza do inconsciente, ou melhor, compreendê-los por meio de ideias e concei-
tos que correspondam às exigências do simbolismo do inconsciente. As teorias intelectualizadas,
ditas científicas, não são adequadas à natureza do inconsciente. As aquae devem ser atraídas e
retidas por uma aqua, isto é, pela forma ignea verae aquae (forma ígnea da água verdadeira). Is-
so só é possível através de uma abordagem por sua vez plástica e simbólica, oriunda da vivência
de conteúdos inconscientes. Não deve, portanto, penetrar demais no campo da abstração inte-
lectual; por motivos práticos, convém que permaneça no âmbito do mitologema tradicional que
já provou sua natureza abrangente. Isso não exclui a possibilidade de satisfazer as exigências teó-
ricas, só que estas devem ficar restritas in usum medici (para o uso do médico).91

A meu ver, esta é uma passagem bastante importante, pois em minha experiência todos
nós tendemos a nos agarrar a formulações teóricas abstratas, pois elas correspondem ao
caminho mais fácil. Também acredito que esta atitude não requeira uma resposta que abar-
que a totalidade, o que é algo sempre bastante difícil. Também acredito que isto se aplica a
interpretações que se refiram a experiências passadas da infância. É bastante fácil apontar
que uma determinada experiência presente, uma determinada manifestação atual de um
complexo derive de sua versão antiga. Dispomos da teoria que nos habilita a compreender
estas coisas muito bem. Ora, mesmo que tais interpretações sejam parcialmente verdadei-
ras, o problema é que elas não curam. Elas jamais transformam a experiência original. Nos-
sa teoria aponta todos estes fatos, mas o paciente continua emperrado na experiência ori-
ginal. Nossa teoria satisfaz plenamente nosso intelecto, mas o coração continua perguntan-
do: “E daí?”.

Assim, o que precisamos nestes períodos é a aqua doctrinae, a relevante amplificação da


imagem que tem o poder de transformar o complexo ou a experiência traumática original,
ampliando a atitude consciente ao colocar a experiência original num contexto mais amplo
que liberte o Eu das amarras do trauma original. É assim que eu compreendo a aqua doctri-
nae.

O parágrafo 246, pequeno e difícil, também está relacionado à prática analítica:

Há que distinguir, evidentemente, duas categorias de símbolos. A primeira é constituída por a-


queles que se referem à substância química extrapsíquica ou seu equivalente metafísico, tais co-
mo a serpens mercurialis, o Sanctus Spiritus, a anima mundi, a veritas, a sapientia, etc [a serpen-
te mercurial, o Espírito Santo, a alma do mundo, a verdade, a sabedoria, etc.]; a segunda catego-
ria é a dos símbolos que designam os meios produzidos pelo adepto, tais como os solventia (sol-
ventes) (aqua, acetum, lac virginis) [a água, o vinagre, o leite de virgem] ou seu equivalente “filo-

91 A prática da psicoterapia,, OC 16, par. 478.


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sófico”, como seja a theoria ou scientia — a qual, quando certa, exerce efeitos miraculosos sobre
a matéria.

Só lendo e relendo este trecho diversas vezes é que seremos capazes de compreender quais
são as categorias básicas às quais ele se refere. A primeira delas são as substâncias naturais
e originais; a segunda delas são as preparações realizadas ou fabricadas pelos alquimistas. O
que está sendo enfatizado aqui é a importância crucial da intervenção da consciência huma-
na ao tratar com os produtos do inconsciente.

Isto nos leva à diferença, tão enfatizada por Jung, que há entre as atitudes religiosa e alquí-
mica. Jung trata deste assunto em Psicologia e alquimia, distinguindo entre a formulação
cristã e a formulação alquímica — a famosa e grande questão sobre quem está sendo redi-
mido por quem:

Todas estas imagens míticas descrevendo um drama da alma humana, que se passa além de
nossa consciência, indicam que o homem é simultaneamente o que deve ser redimido e o reden-
tor. A primeira formulação é cristã e a segunda alquímica. No primeiro caso, o homem atribui a
si mesmo a necessidade de redenção e delega à figura divina autônoma a obra de redenção, o
verdadeiro opus; no segundo caso, o homem arca com o dever de executar o opus da redenção,
atribuindo o estado de sofrimento e a consequente necessidade de redenção à anima mundi pre-
sa na matéria.92

Jung explicita esta questão de maneira mais clara numa passagem adiante:

Para o alquimista, não é o homem o primeiro a necessitar da redenção, e sim a divindade, per-
dida e adormecida na matéria (...) Ele não visa sua própria salvação pela graça de Deus, mas a
libertação de Deus das trevas da matéria. Ao realizar esta obra miraculosa, é apenas acidental-
mente que ele se beneficia de seu efeito salutar.93

Esta é uma elaboração da verdadeira importância de se distinguir entre as substâncias bási-


cas naturais por um lado, e as preparações fabricadas pelos alquimistas de outro, pois são
as preparações que realizam a tarefa. Elas correspondem ao magneto que o alquimista se-
gura em sua mão para atrair o peixe das profundezas — todas elas imagens bastante provo-
cativas e sugestivas concernentes à natureza da tarefa analítica.

92 Psicologia e alquimia, OC 12, par. 414.


93 Ibid., par. 420.

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PARÁGRAFOS 247-266

Os escritos de Gerhard Dorn


17
J
ung move-se agora para o material do alquimista Gerhard Dorn. Dorn foi uma figu-
ra muito importante para Jung, que o cita amplamente no Aion e dedica um capítu-
lo inteiro do Mysterium coniunctionis a um extenso comentário de seu trabalho.

0
Dorn também aparece nos Estudos alquímicos de Jung.94 Não sabemos muito a
respeito da vida de Dorn e de quando nasceu e morreu, mas datas razoáveis seriam
de 1.520 a 1.590. Num comentário publicado por Marie-Louise Von Franz sobre um texto
de Dorn, ela também faz algumas observações a respeito de sua vida:

[Sabemos que] ele foi um médico generalista, e que foi um seguidor, discípulo e defensor apaixo-
nado de seu mestre, Paracelso. Ele também fez descobertas de farmacologia de alguma relevân-
cia (...) Uma de suas contribuições à farmacologia foi a descoberta de que se determinados medi-
camentos químicos fossem destilados, teriam então um efeito mais acentuado.95

Dorn foi um dos poucos alquimistas do final do século 16 que percebeu que o simbolismo e
a tradição alquímica implicavam num problema religioso, e esta é uma das razões pelas
quais Jung o considera tão significativo. Ao contrário de tantos outros, Dorn tentou concili-
ar o conflito entre a abordagem alquímica e a abordagem religiosa. Dorn foi um ardoroso
admirador de Platão, e a todo instante entrava em polêmica contra Aristóteles, o que de-
monstrava a sua considerável introversão.

Continuando sua discussão acerca do contraste entre as substâncias naturais e compostos


preparados, Jung cita um texto alquímico e então comenta a respeito:

“O centro deste ímã contém um sal oculto, um líquido que se presta a calcinar o ouro filosofal.
Este sal preparado constitui seu mercúrio, com o qual eles exercem o magistério [a obra] dos sá-
bios, em branco e vermelho. Torna-se uma mina de fogo celeste, que serve como fermento de
sua pedra.” Segundo este ponto de vista, portanto, o magneto encerra um sal preparado pelo
adepto como segredo de seu trabalho (...) Trata-se do sal produzido pelo adepto, isto é, trata-se
de um produto de sua arte, mas, por outro lado, ele já se encontra presente e escondido na na-
tureza. (par. 247)

Sobre esta mesma questão, Jung continua e invoca Dorn:

94 Ver “A árvore filosófica”, OC 13, par. 375s.


95 A alquimia e a imaginação ativa, p. 40s.
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Encontramos uma situação parecida em Dorn, embora aqui não se trate do sal da sabedoria e
sim da veritas que, para ele, se acha oculta nas coisas naturais, mas ao mesmo tempo constitui
evidentemente um conceito “moral”. Para ele, a veritas significa “o medicamento que corrige e
transmuta aquilo que já não é mais, naquilo que foi antes de se corromper, e precisamente para
melhor; aquilo que não é naquilo que deveria ser”. Esta “verdade” é uma substância metafísica
que se acha oculta não só dentro das coisas materiais como no corpo humano (...) “Uma certa
substância metafísica conhecida por pouquíssimos. Ela não precisa de remédio, pois ela própria
é o remédio não corrompido.” Por isto é que “a preocupação dos adeptos da alquimia é libertar,
nas coisas sensíveis, aquela verdade das cadeias que a prendem”. (par. 248)

A respeito do mesmo tema, Dorn é citado quando afirma que:

Existe nas coisas naturais uma certa verdade que não pode ser vista com os olhos externos, só
podendo ser percebida pela mente. Os filósofos tiveram tal experiência e notaram que seu poder
era tão grande que operava milagres. (par. 246, n. 31)

A verdadeira doutrina é, como diz Collesson, o magneto por meio do qual é possível libertar o
centrum veri [o centro do verdadeiro] do interior dos corpos e, com isto, transformá-los. “Os filó-
sofos conheceram, por inspiração divina, que esta força e vigor celeste podem ser libertados de
suas cadeias não através de seu contrário, mas do que lhe é semelhante. (...) O semelhante deve
ser fortalecido pelo semelhante. (par. 248)

Isto significa que esta “coisa”, esta coisa mágica e oculta, chamada por Dorn de veritas, é
por um lado equivalente ao peixe equeneido/rêmora do texto precedente, e por outro lado
também equivalente ao magneto ou aqua doctrinae que atrai e captura a rêmora. Vejam
que estamos perseguindo o mesmo simbolismo, só que agora sob uma nova imagem. Mais
adiante neste mesmo capítulo há outras observações a respeito da veritas:

[Dorn] conseguiu explicar a atração magnética existente entre o símbolo proposto, theoria, e o
centrum pressuposto no interior da matéria, da terra ou mesmo do Polo Norte, por uma identi-
dade entre dois extremos É por isso que a theoria e o arcanum presente na matéria são ambos
chamados de “verdade”. Esta verdade “brilha” em nós, afirma ele, mas não provém de nós: “a
verdade não deve ser procurada em nós, mas na imagem de Deus que está em nós”. (par. 264)

No parágrafo 265 Jung afirma “E Dorn vai mais longe ainda, conferindo o predicado do ser
única e exclusivamente a esta verdade”. Em outras palavras, nada possui verdadeira exis-
tência a não ser esta coisa única (...) Para ele, portanto, o único ser verdadeiramente exis-
tente é o Self, que se identifica com a divindade.” Este pronunciamento, esta veritas que só
ela possui existência, significa nada menos de que o Self é a raiz ou a origem de tudo o que
existe. Em termos psicológicos, significa que o Self é a raiz e a origem de toda a nossa ex-
periência.

Ora, depois de termos estabelecido alguns destes textos, podemos agora considerar mais de
perto esta imagem arquetípica, veritas, que tomou Dorn de maneira tão poderosa. Veritas é
traduzida em português como “verdade”, mas o conceito tem uma longa tradição histórica e
exerceu um poderosíssimo impacto simbólico no passado. No antigo Egito, veritas era re-
presentada pela deusa Maat. Era ela que presidia a cerimônia da pesagem das almas no
após-vida. A pena que Maat levava na cabeça era colocada em um dos pratos da balança e

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o coração do defunto era colocado no outro, e no caso de os dois não se equivalerem em


peso o coração era lançado ao monstro que esperava ao lado para devorá-lo. Assim, a alma
do morto era avaliada, em última instância, em função de sua “verdade”.

Na antiga Grécia, o termo para verdade era aletheia, o que é algo muito interessante por
ser um termo negativo. O a do início da palavra é um prefixo que significa “ausência de”, e
aquilo que está ausente é lethe, a água do esquecimento, que é a água que alguém bebe
quando vem para a existência consciente. Quando a alma nasce [em um corpo] ela bebe do
lethe, de maneira que esquece toda a sua vida pré-natal. Para a antiga Grécia, a verdade
equivale a aletheia, o que significa a ausência de esquecimento ou a presença da memória.
Platão utiliza o termo aletheia para distinguir entre o mundo eterno das formas e o mundo
fenomênico das aparências; obviamente, aletheia refere-se ao mundo eterno das formas. O
mundo das aparências é somente uma cópia ou uma imitação daquele mundo eterno, e
aletheia é o mundo original. Desta forma, Platão pode dizer em Timeu: “Pois o que o ser é
no devir, a verdade [aletheia] o é na crença”.96 Ou seja, a crença é uma espécie de cópia da
verdade, mas não a coisa verdadeira.

Em hebraico, a palavra comparável a verdade é enath, e ela é utilizada com frequência no


Velho Testamento para indicar a natureza de Iahweh. Por exemplo, nos Salmos 19,9 po-
demos ler: “As decisões de Iahweh são verdadeiras (...) mais desejáveis do que o ouro” (BJ).
No Novo Testamento, Cristo usa este termo sempre que quer se referir a algo de suprema
importância. Por exemplo, em João 8,32 ele diz: “E conhecereis a verdade [ aletheia em
grego, veritas em latim] e a verdade vos libertará” (BJ). Em João 16,13 Cristo diz a seus
discípulos que deve morrer, mas que após a sua morte enviará o paracleto, o confortador.
Ele então diz que quando o confortador chega, este “Espírito da Verdade vos conduzirá à
verdade plena” (BJ).

Assim, o vindouro paracleto é descrito como sendo o espírito da verdade. Isto corresponde
à referência que Jung faz no parágrafo 249:

A doutrina — o magneto — é ao mesmo tempo a misteriosa “verdade” da qual a doutrina fala. A


doutrina penetra na consciência do adepto como um dom do Espírito Santo.

O Espírito Santo é um sinônimo do Paracleto. Assim, o espírito da verdade e o Espírito


Santo são equivalentes. Quando Cristo estava sendo julgado diante de Pilatos, ele disse:
“Para isso nasci e para isto vim ao mundo: para dar testemunho da verdade. Quem é da
verdade escuta a minha voz” (João, 18,37 BJ). Então Pilatos, numa típica réplica secular,
responde cinicamente: “Quid est veritas?” [o que é a verdade?]. Assim, como podemos ver,
a palavra veritas tem uma longa história, e, como nos ensina Dorn, possui tamanha virtude
que chega a operar milagres.

Esta veritas corresponde psicologicamente à consciência latente oculta no inconsciente. Se


aplicarmos este simbolismo ao processo analítico, podemos dizer que veritas corresponde à
consciência latente oculta no inconsciente do paciente. Trata-se da consciência que acom-
panha a imagética do Self, a consciência da totalidade, e ela pode ser extraída da mesma
96 Timeu, 29C.
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maneira que um ímã atrai o ferro, com a ajuda das interpretações e respostas do analista,
sendo que a consciência do analista induz a psicologia do paciente. Outra forma de expres-
sar esta ideia seria a de que a relação pessoal do analista com seu Self funciona como se
fosse um magneto que constela, ou estimula, ou ativa o Self do paciente, fazendo-o se ma-
nifestar. Desta forma, veritas, que tem a capacidade de realizar milagres, é tornada manifes-
ta.

Um outro conjunto de associações emerge no parágrafo 251, onde Jung afirma: “ O alqui-
mista (...) sabia que, sendo ele uma parte do todo, trazia também dentro de si uma imagem
do todo, isto é, o “firmamento” ou “Olimpo”, na expressão de Paracelso”. Jung então a-
crescenta na nota 42: “Esta ideia atingiu o pleno desenvolvimento dois séculos mais tarde,
na monadologia de Leibniz, para depois cair em pleno esquecimento”.

Vemos aqui de que maneira Jung se serve de toda a história cultural da humanidade para
ilustrar a psique. Jung é capaz de beber de todas as fontes, e Leibniz é somente mais um
exemplo. Vamos considerar este filósofo de maneira breve. Suas datas são de 1.646 a
1.716, e na sua teoria da monadologia o universo é composto por um vasto número de
unidades elementares chamadas mônadas. Will Durant diz a respeito desta ideia:

Entenderemos melhor o conceito das mônadas se pensarmos nelas como sendo “Uma imitação
da ideia de que temos alma”. Assim como cada alma é uma “identidade simples e única”, um
ego solitário [sozinho diante do mundo] abrindo seu caminho por meio de sua vontade própria
contra todas as coisas externas, assim também cada mônada é essencialmente um centro de for-
ça isolado, separado e independente (...) Cada mônada é única: em todo o cosmos não há duas
que sejam semelhantes (...) Cada mônada, contudo, muitas vezes pode acreditar, de maneira e-
quivocada e inconsciente, [que ela constitui] todo o universo; nesta condição, é como se ela fosse
um espelho mais ou menos imperfeito que reflete e representa o mundo todo [embora o espelho
não seja o mundo todo]. E assim como nenhuma mente individual pode de fato saber o que se
passa em outra mente individual, assim também nenhuma mônada isolada pode conhecer uma
outra mônada.97

Então a mônada não tem janelas. Mas embora elas não tenham aberturas para o universo
exterior, nem por isso elas se encontram totalmente isoladas do mundo, pois, como um
outro comentarista afirma, cada coisa viva é um perpétuo espelho vivo do universo. Parece
que vivemos em vários mundos diferentes, embora na verdade eles sejam somente aspectos
diversos de um universo único vistos sob o ponto de vista particular de cada mônada. Uni-
dos desta maneira, nenhum de nós é absolutamente independente, pois cada um de nós
experimenta os efeitos do todo que se dão no universo. Cada mônada criada representa
todo o universo em seu interior. Ora, aqui podemos ver uma antecipação filosófica da des-
coberta empírica do Self.

Mas voltando a Dorn, Jung examina a ideia do autoconhecimento objetivo. Isto está rela-
cionado à ideia de Leibniz de que cada mônada separada vê o universo como sendo uma
realidade objetiva situada fora dela. Da mesma maneira, cada Eu pode encarar a psique da
mesma maneira. Diz Jung:

97 The Age of Louis XIV, p. 670.


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É ao conhecimento objetivo do Self que se refere o nosso autor [Dorn], quando diz: “Ninguém
pode conhecer-se [a si próprio] se não souber que coisa ele é, e não quem ele é; se não souber
de quem [ou de que] é que ele depende, ou a quem [a que coisa] pertence ou para que fim foi
criado”. A distinção entre quid e quis [quem e o que] é altamente significativa: enquanto quis
[quem] possui um aspecto inegavelmente personalístico, referindo-se, portanto, ao Eu, quid [o
que] é um neutro que nada pressupõe como objeto e cujo caráter pessoal simplesmente se igno-
ra. O quid [o que] não se refere à consciência subjetiva do Eu da psique: a própria psique é o ob-
jeto desconhecido, não determinado por ideias preconcebidas, e ainda por ser explorado. (par.
252)

Esta é uma importante referência para Jung. Ele se aprofunda nesta ideia mais detalhada-
mente ainda em Mysterium coniunctionis.98 Uma observação acerca da experimentação é
também relevante a este respeito:

A produção da substância, isto é a generatio Mercurii [a geração do mercúrio] só é possível para


aquele que tem pleno conhecimento da doutrina, embora “não possamos estar seguros a respei-
to de qualquer dúvida, e não exista nada melhor do que experimentar em nós mesmos”. (par.
250)

Estas duas ideias encontram-se associadas porque a atitude experimental é parte da assim
chamada atitude objetiva; não podemos experimentar com uma determinada entidade a
menos que assumamos uma atitude objetiva em relação a ela. Mas neste ponto devemos
então nos perguntar o que de fato representa assumir uma atitude objetiva em relação a ela.
Na verdade, isto representa todo o esforço do processo analítico. Entretanto, para que haja
alguma esperança de sucesso, de uma certa forma é preciso que em algum momento co-
mecemos a fazê-lo; uma pessoa tem que ter uma atitude objetiva latente ou potencial em
relação a si mesmo, ou então jamais conseguirá progredir em direção à objetividade, con-
denado a permanecer para sempre sendo um daqueles peixes que nadam no aquário. É
impossível assumir uma atitude objetiva em relação à água enquanto continuamos a ser um
daqueles peixes que nadam dentro dela. A habilidade de assumir uma atitude objetiva em
relação à psique, a capacidade de contemplar a nossa própria psicologia como sendo um
processo objetivo e vivo, esta é a evidência de que possuímos alguma consciência. Jung
coloca a importância disto de maneira bastante enfática no parágrafo 255:

As determinações finais eficazes nada mais são do que aqueles talentos que o “homem de nobre
origem” (Lucas, 19,13) confiou a seus serventes para que negociassem com o dinheiro. Não é
preciso muita fantasia para ter uma ideia do que este envolvimento nas coisas do mundo significa
moralmente. Só um homem infantil é capaz de pensar que o mal não está presente sempre e em
toda parte, e quanto mais inconsciente estiver disto, tanto mais o diabo lhe subirá na garupa. Por
causa desta íntima relação com o aspecto tenebroso, o homem-massa tem uma incrível facilidade
de participar impensadamente nos mais terríveis crimes. Só o autoconhecimento mais severo e
impiedoso possível, que olhe o mal e o bem numa relação correta e seja capaz de ponderar to-
dos os aspectos, oferece uma certa garantia de que o resultado final não seja muito ruim.

A frase operativa aqui é “severo e impiedoso autoconhecimento”. Um impiedoso autoco-


nhecimento é totalmente impossível a menos que seja objetivo. Isto é assim em relação ao

98 Ver OC 14, par. 362s.

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conhecimento do mal, que é o assunto de que Jung está tratando neste parágrafo, pois se
uma pessoa percebe o mal na psique de maneira subjetiva, e não objetiva, a pessoa é ins-
tantaneamente desmoralizada. Se isso acontece, o Eu se identifica pessoalmente com o mal
que é percebido, e então imediatamente deixa de haver o caráter “severo e impiedoso” — o
Eu se torna tão sobrecarregado com a culpa que inevitavelmente já não é capaz de funcio-
nar como um observador objetivo.

Para que possa haver severo e impiedoso autoconhecimento, para que se possa perceber a
plena existência da escuridão na psique, temos que perceber a nossa psique individual como
sendo um objeto separado, em vez de a percebermos como fazendo parte de nosso próprio
sujeito. Em outras palavras, temos que perceber a psique como não sendo o Eu. Temos
que ver claramente que, embora seja o Eu aquele que realiza a percepção, a totalidade da
psique é uma entidade objetiva, e esta totalidade não é construída pelo Eu, mas tão somen-
te descoberta por ele. Ela é descoberta por meio da experimentação, da mesma forma que
os alquimistas, e mais tarde a ciência, descobriram a natureza do mundo exterior. Nós ja-
mais criamos a nós mesmos; nós somos criados. Isto significa que aquilo que descobrimos
na psique individual é aquilo que foi criado anteriormente, e não aquilo que nós criamos.
Aquilo que somos em nossa totalidade não é nossa responsabilidade objetiva. É bem verda-
de que aquilo que fazemos com essa descoberta sim, isto de fato é nossa responsabilidade,
mas não aquilo que encontramos em nós mesmos. Esta habilidade de assumir uma atitude
radicalmente objetiva em relação à natureza da psique individual é indispensável para obter
qualquer quantidade significativa de consciência.

Jung prolonga-se nesta questão em seus comentários sobre um texto que descreve a Pedra
Filosofal:

“Esta pedra está abaixo de ti, no que se refere à obediência; acima de ti, quanto ao domínio;
portanto, procede de ti, no que toca à ciência; em torno de ti, na medida em que se trata de in-
divíduos da mesma categoria.” Esta passagem é bastante obscura. Mas dela ressalta que a pedra
tem uma relação indubitavelmente psíquica com o homem: de um lado o adepto pode esperar
que ela lhe obedeça, enquanto de outro lado, é a pedra que o domina. Como esta pedra diz res-
peito ao “conhecimento”, ela provém do homem. Mas se encontra fora do homem, isto é, em
seu meio ambiente, entre os aequales [os iguais], expressão esta que traduzi como “os pertencen-
tes à mesma categoria”. Poderíamos também traduzir por “partidários das mesmas ideias”. Esta
descrição corresponde ao caráter paradoxal do Self, como vemos pela sua simbologia: ele é a
menor de todas as coisas que pode ser facilmente preterida e colocada de lado. De fato, o Self
precisa de ajuda e precisa ser percebido, protegido e como que formado pela consciência, e isto
de tal modo como se antes não tivesse existido e só tivesse sido chamado à existência pelo cui-
dado e dedicação do homem. Mas, muito pelo contrário, a experiência nos mostra que ele já e-
xiste há muito tempo e é mais antigo do que o Eu; e é nada mais nada menos do que o secreto
spiritus rector [espírito diretor] de nosso destino. (par. 257)
“Esta pedra é aquela coisa que se acha mais em ti [do que em outra parte], criada por Deus, e tu
és sua matéria-prima, e ela é extraída de ti (...) A pedra (...) permanece inseparavelmente em ti,
isto é, graças ao conhecimento (...) esta coisa está fixa em ti e é extraída de ti, porque tu a redu-
zes à sua essência e a dissolves, porque sem ti ela não pode ser completada, e tu não podes vi-
ver sem ela, e deste modo o fim olha para o começo, e vice-versa. (par. 258)

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Todas estas declarações podem ser resumidas assim: “Sem ti a Pedra não se realiza, e sem
ela tu não podes viver”. Esta é uma concisa descrição da natureza do relacionamento entre
o Eu e o Self. Sem o Eu o Self não pode ser trazido à realização consciente. E sem uma
conexão viva com o Self, sem uma realização consciente dele, o Eu não pode viver, pois o
Self é a fonte e a origem de sua existência.

Jung comenta no parágrafo 259:

Por [este texto ficamos sabendo] que a pedra foi implantada por Deus no homem; que o homem
é a prima materia da pedra no processo; que a extração corresponde à chamada divisio (divisão)
ou ratio (separação) do processo alquímico; e que o homem permanece inseparavelmente ligado
ao Self pelo conhecimento da pedra. O processo aqui descrito pode facilmente ser entendido
como a conscientização de um conteúdo inconsciente. Neste caso, a fixação em Mercúrio cor-
responderia ao conhecimento hermético tradicional, porque Mercúrio simboliza o Nous [a inteli-
gência], e, graças a este conhecimento, o Self se torna consciente como conteúdo do inconscien-
te e se fixa na consciência. Como se sabe, a apercepção é impossível sem conceitos conscientes
preexistentes (...) Por isto é muito importante contar histórias e lendas às crianças e ensinar con-
ceitos religiosos aos adultos, uma vez que eles constituem símbolos instrumentais mediante os
quais são introduzidos conteúdos inconscientes na consciência, para aí serem interpretados e in-
tegrados. Com efeito, se isto não acontece, a considerável energia desses conteúdos se transfere
para conteúdos conscientes, normalmente menos acentuados, que então crescem de intensidade
até os limites do patológico. Surgem daí fobias e obsessões, aparentemente sem motivo, bem
como ideias extravagantes, idiossincrasias, imagens hipocondríacas, perversões intelectuais que
se camuflam sob uma roupagem social, religiosa ou política, de acordo com as circunstâncias.

A ideia aqui é que os arquétipos do inconsciente, para terem seus efeitos transmitidos para
o Eu, necessitam de pontes por meio das quais atinjam a consciência. Estas pontes são
proporcionadas pelas imagens religiosas e mitológicas e ideias que já existem de antemão
como parte aceita pela consciência. É por isso que Jung considera o conhecimento de mi-
tos e dogmas religiosos tão importante. Estas imagens funcionam como pontes que permi-
tem que os efeitos dos arquétipos entrem, por assim dizer, na consciência. Se o Eu consci-
ente está privado de tais ideias, então estas energias arquetípicas fluem para continentes
pequenos demais para elas.

Jung dá um exemplo disso em suas Terry Lectures de 1.937 na Universidade de Yale. Jung
descreve um paciente que foi tomado pela ideia compulsiva de que tinha câncer do intesti-
no. Embora já tivesse passado por exaustivos exames médicos, e também tivesse sido asse-
gurado repetidas vezes de que não era portador de nenhum problema físico, isto não fez a
menor diferença. O homem estava convencido de que tinha câncer, ou, caso não tivesse,
que iria ter, o que dava no mesmo. Jung então cita este caso específico como um exemplo,
e diz:

Que resposta daremos, então, a nosso enfermo do carcinoma imaginário? Eu diria: “Sim, meu
amigo, sofres, na verdade, de um mal de natureza cancerosa. Abrigas, de fato, um mal mortal
que não matará teu corpo, porque é imaginário, mas acabará por matar a tua alma. Este mal já
arruinou e envenenou tuas relações humanas e tua felicidade pessoal, e continuará a estender-se

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cada vez mais, até engolir toda a tua existência psíquica; chegarás ao ponto de não ser mais uma
criatura humana, e sim um tumor maligno e destruidor”.

Nosso paciente é perfeitamente capaz de perceber que não é o causador de sua fantasia mórbi-
da, embora seu entendimento teórico lhe sugira que é seu dono e produtor. Quando uma pessoa
padece de um carcinoma verdadeiro, ela jamais acredita que seja, ela mesma, a criadora de se-
melhante mal, embora o carcinoma se encontre em seu próprio organismo. Mas quando se trata
da psique, logo sentimos uma espécie de responsabilidade, como se fôssemos os produtores de
nossos estados psíquicos.99

Jung então se estende nesta questão um pouco mais adiante:

Julgo um equívoco funesto considerar a psique humana como algo de puramente pessoal e ex-
plicá-la exclusivamente de um ponto de vista pessoal. Tal explicação só é válida para o indivíduo
que se acha integrado com ocupações e relações diárias habituais. Mas a partir do momento em
que surja uma ligeira variação como, por exemplo, um acontecimento imprevisto e um pouco
inusitado, manifestam-se forças instintivas que parecem inteiramente fortuitas, novas e até estra-
nhas; elas já não podem ser explicadas por motivos pessoais, e se assemelham a eventos primiti-
vos [ou seja, o arquetípico emerge e as forças coletivas forçam para fora].

(...) Na realidade, todos nós vivemos sempre como que na boca de um vulcão (...)

O nosso citado caso de câncer mostra-nos claramente como a razão e a compreensão humana
são impotentes diante do absurdo mais palpável. Aconselho sempre meus pacientes a considerar
este disparate evidente e, no entanto, invencível, como se fosse a exteriorização de um poder e
de um sentido ainda incompreensível para nós (...) Nosso paciente enfrenta uma força volitiva e
uma sugestão contra as quais sua consciência nada pode contrapor. Nesta situação precária, se-
ria má estratégia convencer o paciente de que ele próprio estaria, de um modo difícil de enten-
der, por detrás de seu sintoma, inventando-o e suportando-o. Uma interpretação como essa pa-
ralisaria, de imediato, seu ânimo combativo, e baixaria seu nível moral. Seria muito melhor para
ele entender que seu complexo é uma potência autônoma, dirigida contra sua personalidade
consciente.100

Seu complexo é, em outras palavras, Deus. A fobia do câncer do paciente é a manifestação


da imagem interna de Deus, um poder autônomo que transcende a capacidade do Eu. Isto
ilustra os comentários de Jung a respeito da maneira pela qual as energias arquetípicas, se
não encontrarem pontes adequadas para a consciência, acabarão fluindo para continentes
que são pequenos demais para elas.

99 “Psicologia e religião”, Psicologia da religião ocidental e oriental, OC 11, par. 19-20.


100 Ibid., par. 24-6.

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PARÁGRAFOS 267-286

A psicologia do simbolismo alquímico cristão


18
Neste ponto Jung move-se para um contexto histórico mais amplo:

[Estamos testemunhando agora] duas cosmovisões paralelas e contemporâneas que não queriam,

0
ou não podiam, ouvir falar uma da outra (...) No decurso do século XVIII chegamos à notória in-
compatibilidade entre fé e ciência. À fé faltava a experiência e à ciência, a alma. Em compensa-
ção, a ciência acreditava em uma objetividade absoluta e, intencionalmente, pela dificuldade de
princípio, não viu que a verdadeira portadora e projetora do saber é a psique, e foi justamente
este fator [a psique] o que [a ciência] mais ignorou durante muito tempo. (par. 267-8)

As duas cosmovisões são o mundo da fé — a fé das religiões concretas e paroquiais, nas


quais as pessoas acreditam que sua fé é a única verdadeira —, e a ciência secular, racional e
desprovida de alma. Quando estamos cientes disso, podemos encontrar este conflito por
toda parte no mundo exterior. Contudo, como Jung afirma no parágrafo 280, um conflito
entre opostos jamais pode ser resolvido em seu próprio nível; os opostos só podem ser
reconciliados encontrando-se uma terceira posição em um novo nível. Ora, a psicologia
junguiana proporciona uma terceira posição que é capaz de reconciliar estas duas visões de
mundo.

Mas esta cisão não é encontrada somente na psique coletiva: a mesma separação ocorre
em grande número de indivíduos. Certamente existe um grande número de pessoas que se
identifica com uma ou outra desta diferentes visões, mas também existe um grande número
que carrega consigo as duas visões simultaneamente, mantendo-as em compartimentos
separados. Em uma parte de suas vidas estas pessoas funcionam de acordo com uma das
cosmovisões, e na outra parte de acordo com a outra. E mesmo que as duas partes jamais
se conciliem entre si, estes indivíduos jamais experimentam algum conflito. Entretanto,
quando o analista tenta colocar juntos estes dois compartimentos hermeticamente selados,
imediatamente explode a mais violenta resistência.

Um assunto correlato que frequentemente surge na prática analítica é o de como lidar com
as pessoas que se encontram amplamente identificadas com um ou outro destes pontos de
vista. Aqueles identificados com a atitude secular e racionalista com frequência precisam ser
apresentados à imagética mitológica e religiosa; seus sonhos sempre sugerirão isso. Por
outro lado, aqueles que se encontram identificados com a fé tradicional e concreta frequen-

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temente devem ser apresentados a Voltaire (ou algum seu equivalente), que é um racionalis-
ta que tenta analisar de maneira lógica a fé religiosa. Resolvi aqui citar o nome de Voltaire
em especial porque na escada que leva ao consultório de Jung havia uma estátua de Voltai-
re. Jung certa vez disse a um entrevistador que aquela estátua de Voltaire estava lá para
lembrá-lo sempre de sua sombra.

Em relação ao conflito entre as duas cosmovisões e à sua resolução, Jung comenta:

Os problemas que a integração do inconsciente traz ao médico e psicólogo moderno só podem


ser resolvidos dentro da linha histórica que acabamos de traçar, e o resultado equivalerá a uma
nova assimilação do mito transmitido. Isto, porém, pressupõe a continuidade do desenvolvimen-
to histórico. Obviamente que a tendência moderna à destruição e perda da consciência de toda a
tradição poderá interromper o processo normal de evolução e constituir um intervalo de barbá-
rie. (par. 282)

De minha parte, considero esta observação uma profecia. A tendência a destruir toda a
tradição já se encontra tão avançada em nossas operações coletivas e em nosso sistema
educacional que parece que a história está certamente percorrendo seu caminho na direção
prevista por Jung.

Voltando-se para um dos aspectos da cisão entre fé religiosa e ciência racionalista, Jung
refere-se ao credo cristão:

Nossa doutrina cristã é um símbolo altamente diferenciado que expressa o elemento psíquico
transcendente, a imago Dei [imagem de Deus] e seus atributos, como diz Dorn. O credo é seu
symbolon [símbolo]. O credo abrange praticamente tudo o que se pode constatar a respeito das
manifestações do fator psíquico no plano da experiência interior, mas não se estende à natureza,
pelo menos de modo identificável. Por isso, em todos os séculos do cristianismo sempre existi-
ram correntes paralelas e subterrâneas do espírito que procuraram conhecer não apenas a natu-
reza exterior, mas também a natureza interior em seu aspecto empírico.
Embora o dogma, do mesmo modo que a mitologia em geral, expresse a essência da experiência
interior, e também formule os princípios da psique objetiva, isto é, do inconsciente coletivo, ele o
faz em linguagem e forma conceituais, formas que se tornaram estranhas à orientação espiritual
de nossos dias. A palavra “dogma” assumiu um tom nem sempre agradável, e é usada não pou-
cas vezes para dar ênfase à rigidez de um preconceito. Para a maioria dos homens ocidentais, a
palavra “dogma” perde seu sentido de símbolo de um fato real, isto é, um fato atuante, operati-
vo, embora incognoscível. (par. 270)

Vamos examinar de perto o que atualmente é de fato o dogma cristão, e o que tem sido o
mito operativo no éon que agora termina. Se prestarmos atenção na época inicial do éon,
encontraremos versões simples do credo que descrevem bem o dogma básico. Aqui eu cito
uma variação do Credo Niceno [ano 325] tirada do ensaio de Jung “A abordagem psicoló-
gica do dogma da trindade”:

Cremos em um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, e de todas as coisas visí-
veis e invisíveis. E creio em um só Senhor, Jesus Cristo, filho unigênito de Deus, nascido do Pai
antes de todos os séculos; Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado
mas não feito, consubstancial ao Pai, pelo qual todas as coisas forma feitas. Por nós, homens, e

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pela nossa salvação Ele desceu dos céus, e se encarnou por obra do Espírito Santo em Maria
Virgem, e se fez homem. Foi também crucificado por nós sob Pôncio Pilatos, padeceu e foi se-
pultado. E ressuscitou no terceiro dia, conforme as escrituras, e subiu aos céus; está sentado à
direita do Pai, de onde há de vir, pela segunda vez, com glória, para julgar os vivos e os mortos,
e seu reino não terá fim. E cremos no Espírito Santo, que é Senhor e dá vida, e procede do Pai,
e com o Pai juntamente com o Filho será adorado e glorificado, e que falou pelos profetas. E
cremos na igreja, una, santa, católica e apostólica. Professamos um só batismo para a remissão
dos pecados. E esperamos a ressurreição dos mortos e a vida do século futuro. Amén.101

Ou seja, tudo num simples pacote. Ora, se este corpo de imagens constituiu uma convicção
absoluta, então uma pessoa deveria viver a partir delas com toda convicção e a vida dela já
estaria toda estabelecida de antemão. Em outras palavras, esta pessoa já estaria contida em
uma fé. Porém este credo religioso pode hoje ser compreendido como sendo uma expres-
são simbólica da realidade psíquica: trata-se da expressão do processo de individuação. O
credo nos fala, antes de tudo, que existe uma imagem de Deus que é o criador e origem de
todas as coisas. E então ele nos fala que um aspecto desta imagem de Deus desceu à terra
e encarnou no homem, ou, em outras palavras, manifestou-se no Eu. O Self, por sua pró-
pria iniciativa, encarnou no Eu, com a intenção de redimi-lo, com a intenção de salvá-lo.
Esta redenção representa, psicologicamente, proporcionar ao Eu um sentido para sua vida.
Este aspecto do Self então voltou a ascender para o lugar de onde veio — o que indica que
a encarnação não constitui um evento perpétuo, mas somente temporário, e que haverá
uma segunda vinda, uma segunda manifestação do encontro do Eu com o Self. Esta segun-
da manifestação será então um tipo diferente de experiência: será uma experiência de Jul-
gamento Final. Isto então será seguido pelo estabelecimento do reino eterno, a resolução de
todos os complexos reprimidos e da dimensão eterna da psique, ou seja, uma transição da
experiência temporal da existência para algo transpessoal e atemporal.102

O texto de Jung segue e mais uma vez se volta para a cisão entre os dois sistemas de cren-
ças no homem moderno e para a necessidade de haver uma continuidade nos sistemas de
crenças, incluindo uma discussão sobre a anamnese. Vocês provavelmente se lembram que
este tema já foi discutido anteriormente. Contudo, vale a pena reiterá-lo devido à sua im-
portância na análise prática:

Quando um ser vivo é separado de suas raízes, falta-lhe a ligação com as bases da existência, e
neste caso ele secará inevitavelmente. É aí, então, que a anamnesis é de vital importância. (...)
Contos de fadas e mitos expressam processos inconscientes, e sua narração produz sempre um
revivescimento e uma recordação de seu conteúdo, operando, consequentemente, uma nova li-
gação entre a consciência e o inconsciente [de forma que os contos e mitos promovem o proces-
so de anamnese] (...)
A natureza medicinal e renovadora desta água simbólica, seja sob a forma de Tao, da água ba-
tismal ou da panacéia, revela o aspecto terapêutico das conexões mitológicas das quais estas i-
deias se originaram. (par. 267-81)

101 Psicologia da religião ocidental e oriental, OC 11, par. 217.


102 Estas ideias são elaboradas em mais detalhes em meu livro O arquétipo cristão.

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Vejam que aqui há uma afirmação muito importante: “O caráter terapêutico das conexões
mitológicas”. Esta é a parte que é realizada com a experiência da anamnese. Em sua anteri-
or afirmação referente à anamnese, Jung diz:

Isto está em perfeita consonância com as descobertas psíquicas empíricas de um arquétipo da to-
talidade existente em todas as épocas, algo que facilmente pode desaparecer do campo usual da
consciência ou jamais ser percebido, até que uma consciência iluminada pela conversão reapare-
ça sob a figura de Cristo. Esta anamnese restabelece um estado original de união com a imagem
divina. Ela significa uma integração, uma ponte lançada sobre a brecha da cisão da personalida-
de, (par. 73)

Em grande parte a análise é um processo de anamnese — um relembramento daquilo que


aconteceu anteriormente. Existem duas dimensões da anamnese analítica: a pessoal e a
coletiva ou arquetípica. Primeiro a pessoa deliberadamente recorda seu passado pessoal, o
que abre as portas para o inconsciente pessoal. A seguir, se o paciente se dispõe a progre-
dir a uma condição mais profunda, os sonhos acabam conduzindo para além do inconscien-
te pessoal e em direção à dimensão coletiva da anamnese, o que envolve uma relembrança
arquetípica e histórica: primeiro a família, depois o pano de fundo ancestral, a seguir a tri-
bo, a nação, e só então o nível arquetípico da humanidade como um todo. Finalmente,
pode-se acabar chegando às nossas origens do próprio universo.103

A anamnese coletiva corresponde à ideia platônica da anamnese, que às vezes é traduzida


como “recordação” ou “reminiscência”. Como Platão diz no Fédon:

Pois (...) se adquirimos nosso conhecimento antes de nosso nascimento e perdemo-lo no mo-
mento de nosso nascimento, mas posteriormente, pelo exercício de nossos sentidos sobre os ob-
jetos sensíveis, recuperamos o conhecimento que já havíamos possuído anteriormente, posso
supor então que aquilo que chamamos aprendizado pode constituir a recuperação de nosso pró-
prio conhecimento, e certamente estamos autorizados a chamar isso de recordação [anamne-
se].104

Platão está afirmando aqui que todo conhecimento é um re-conhecimento, e que conhecer
é um relembrar aquilo que já soubemos um dia. É bem verdade que isto não é verdade do
ponto de vista literal, mas é uma verdade psicológica em termos da exploração do inconsci-
ente tanto em sua camada pessoal quanto arquetípica. Em alguma condição passada já esti-
vemos em contato com ambas estas camadas. Já “conhecemos” tudo isso antes, mas então
nos esquecemos. No decurso do desenvolvimento da consciência, mesmo que não sejamos
neuróticos, dá-se uma cisão entre o Eu e o inconsciente, uma cisão de nossas próprias raí-
zes. Então, se formos capazes de lembrar de onde viemos, se formos capazes de mergulhar
no processo de anamnese, então seremos capazes de recuperar a nossa própria totalidade.

103 Quero aqui enfatizar o quão importante eu considero o fato de que toda análise comece sempre com um
cuidadoso e sistemático escrutínio da história individual. Acredito que seja obrigatório que, no início de cada
análise, peçamos sistematicamente ao analisando para escrever uma biografia pessoal que dê ênfase a todos
aqueles aspectos da vida carregados da maior carga de libido, tanto positiva quanto negativa, e que a seguir
examinemos esta biografia de maneira detalhada, submetendo-a ao diálogo analítico, de forma que esta reca-
pitulação se torne parte da experiência viva da análise.
104 Fédon, 75D-E.

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A seguir Jung considera a necessidade de haver uma continuidade no desenvolvimento cul-


tural, citando o apóstolo Paulo em Atenas:

Se Paulo estivesse vivo em nossos dias, e se tentasse tocar os ouvidos dos homens sensatos no
Hyde Park Corner, já não se contentaria mais com citações da literatura grega e algum conheci-
mento da história judaica, mas teria de adaptar sua maneira de exprimir-se às possibilidades de
compreensão de um público moderno. (par. 275)

Obviamente, Paulo teria que se estender muito além disso para conseguir atrair a atenção
da cindida mente moderna.

A visita de Paulo a Atenas teve lugar no início de nosso éon. Paulo encontrava-se em meio
à tarefa de apresentar uma cosmovisão nova para um mundo antigo. Ora, algo análogo
está se dando agora, no começo deste novo éon. A psicologia junguiana tem como tarefa a
apresentação de uma nova cosmovisão, de maneira que a experiência de Paulo em Atenas,
à qual Jung se refere em várias passagens de seu trabalho, é bastante relevante, pois repre-
senta um padrão tradicional desta relevante tarefa que hoje realizamos novamente. Quando
Paulo estava em Atenas, o seu discurso diante do conselho do Areópago começou assim:

Cidadãos atenienses! Vejo que, sob todos os aspectos, sois os mais religiosos dos homens. Pois,
percorrendo a vossa cidade e observando os vossos monumentos sagrados, encontrei até um al-
tar com a inscrição “Ao Deus desconhecido”. Ora bem, aquilo que adorais sem conhecer, isto
venho eu anunciar-vos. (At 17,23, BJ)

Vejam que Paulo foi direto ao ponto de vista vigente na época. Mais adiante, neste mesmo
discurso, Paulo cita um poeta grego dizendo: “Todos nós somos crianças [de Deus]”, e
também serviu-se deste argumento para passar sua ideia. Esta imagem de Paulo pregando
aos atenienses é uma forma tradicional que indica a maneira pela qual se deve apresentar
um novo nível de consciência a alguém detentor de antigos padrões. Isto tem que ser feito
relacionando todos os novos insights que são apresentados às ideias que já foram previa-
mente aceitas no passado. Jung aponta para isso de maneira muito clara no Mysterium
coniunctionis:
Qualquer renovação que não esteja profundamente enraizada na melhor tradição espiritual é
sempre efêmera; contudo, a dominante que cresce a partir de raízes históricas pré-existentes age
como se fosse um ser vivo dentro do homem que se encontra preso a seu Ego. O homem não a
possui, mas é possuído por ela.105

Refletindo a respeito desta observação, perceberemos que aqui Jung está descrevendo o
seu próprio modus operandi. Este é o princípio básico dos livros de Jung, e esta é a razão
pela qual eles são tão repletos de amplificações de imagens tradicionais, que primeiramente
são apresentadas e só então mostradas de uma forma nova, sob a luz da psicologia profun-
da. Jung usa o mesmo método de Paulo ao falar aos atenieneses, embora, obviamente, de
uma maneira bem mais sofisticada.

105 OC 14/2, par. 186.

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Em nossos dias, a psicologia encontra-se numa posição bastante análoga àquela do cristia-
nismo de milhares de anos atrás. O simbolismo alquímico é bastante útil em nosso caso,
pois proporciona uma ponte entre as imagens dogmáticas cristãs tradicionais e a mente
científica moderna — uma das razões pelas quais Jung considerou este simbolismo tão útil.

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PARÁGRAFOS 287-305

Símbolos gnósticos do Self


19
A
gora Jung deixa o simbolismo alquímico para voltar-se para a imagética gnóstica do
Self. Como referência dos gnósticos, Jung recorre intensamente ao trabalho de
Hipólito, A refutação de todas as heresias. Hipólito, que já discutimos no capítulo

0
oito, foi presbítero em Roma, e viveu aproximadamente de 170 a 236 d.C. Escreveu uma
abrangente crítica às heresias gnósticas, e no decurso desse ataque acabou por descrever
muito detalhadamente todas as doutrinas, o que indica que elas exerciam nele uma significa-
tiva fascinação. Felizmente temos disponível em inglês uma tradução do tratado de Hipólito
em sua totalidade.106

Jung continua aqui a examinar o simbolismo do magneto, movendo-se desde o antigo ma-
terial alquímico sobre o equeneido/rêmora, e o efeito magnético que ele exercia sobre os
barcos, até o efeito magnético exercido por um determinado tipo de doutrina para apanhar
o peixe. Jung identifica, nos escritos de Hipólito, três textos que falam a respeito do magne-
to. O primeiro deles é o texto do Quatérnio do Paraíso, resumido no parágrafo 288. Este
texto é bastante importante em relação a todo o restante do Aion; mais adiante Jung tam-
bém se servirá da imagem do Quatérnio do Paraíso para outros propósitos. O texto a seguir
foi retirado do livro The Ante-Nicene Fathers, uma versão mais completa daquela que Jung
nos dá:

[Os gnósticos afirmam que] Edem [Éden] é o cérebro (...), e supõem que o homem, na medida
em que é somente uma cabeça, é um Paraíso (...) [E os gnósticos afirmam que um] “rio, que se
origina no Éden”, isto é, se origina no cérebro, “é dividido em quatro partes, e que o nome do
primeiro rio é Phison; [este rio é] o olho, que por sua honra (entre o restante dos órgãos cor-
porais) fornece testemunho daquilo que é dito (...) O nome do segundo rio é Gihon (...) que e-
quivale à audição (...) E o nome do terceiro rio é Tigre (...) que equivale ao olfato (...) Mas o
quarto rio é Eufrates, que coresponde à boca, através da qual as preces alcançam o exterior, e
através da qual o alimento alcança o interior. (A boca) proporciona alegria, nutre e molda o
Homem Perfeito ou espiritual. Esta [água da boca, dizem os gnósticos] é a “água que está aci-
ma do firmamento”, em relação à qual (...) o Salvador declarou: “Se soubesses quem é que pe-
de, terias pedido a Ele, e Ele lhe teria dado de beber da água viva e borbulhante”. Nesta água
mergulha tudo o que é criado [ou seja, toda a natureza], pois dela a criatura escolhe suas pró-
prias essências, e é desta água que vem tudo o que a criatura tem de próprio, e as qualidades

106 Ver Roberts e Donaldson, The Ante-Nicene Fathers, vol. 5.

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peculiares que cada criatura possui são atraídas desta água mais poderosamente que o ferro é
atraído pelo magneto”.107

Assim, com este primeiro texto gnóstico, voltamos uma vez mais à questão do magneto.
Este material está representado graficamente na figura 19, mostrando o cérebro que tem
em seu centro a origem dos quatro rios, Eles se dividem e um deles sai pelo olho, outro
pelo ouvido, outro pelo nariz e o quarto pela boca. O que temos aqui é uma espécie de
figura de imaginação ativa feita com o crânio ou com o cérebro, a “coisa redonda” que exis-
te no homem. Como Jung nos diz no parágrafo 288, os primeiros três rios são similares,
mas o quarto, Eufrates, a boca, é de natureza especial porque as coisas se movem por ela
em ambos os sentidos: o alimento entra e a prece sai. Ora, o quarto rio é especial porque
corresponde ao fato psicológico de que a quarta função sempre traz consigo a totalidade, e
portanto também é de uma natureza especial. Como a imagem indica, Eufrates-boca pro-
move um diálogo em duas vias com o Self ou com a Deidade — para dentro vai o alimento
do Eu, e para fora vai o alimento de Deus sai, que são as preces.

Além disso, esta água do Eufrates é descrita como sendo a água acima do firmamento, a-
quelas mesmas águas que são referidas no primeiro capítulo do Gênese, onde se narra que
Deus criou o firmamento e dividiu as águas que estavam sob o firmamento das águas que
estavam acima do firmamento. O firmamento é a abóbada celeste, e a água do Eufrates
corresponde à água celestial que existe acima do limite do céu. Esta água também está rela-
cionada a Cristo como sendo a água viva, como é mencionado no evangelho de João, no
qual Jesus encontra a samaritana numa fonte e diz a ela: “Se conhecesses o dom de Deus /
e quem é que te diz: / ‘Dá-me de beber’ / tu é que lhe pedirias / e ele te daria água viva!”
(4,10 BJ). Aqui Cristo está se identificando às águas vivas que os gnósticos fazem equivaler
ao Eufrates e também com as águas de acima do firmamento. Jung observa acerca desta
água:

Como mostra a referência a João 4,10, a água do Eufrates tem o significado da aqua doctrinae
[água da doutrina], que completa a individualidade de toda a criação e, por conseguinte, totaliza
o homem, conferindo-lhe, de certo modo, uma força magnética capaz de atrair e integrar tudo
aquilo que lhe pertence. (par. 289)

Isto corresponde ao fato de que quando alguém está em contato com o Self, gera uma co-
nexão de libido que produz o efeito de localizar os fragmentos dispersos de nossa identidade
que residem no mundo. Em leituras, estudos e encontros diários com pessoas, e também
em eventos mundiais, passamos a identificar tudo aquilo que nos pertence ou de alguma
forma nos diz respeito só por prestar atenção à nossa reação. Quando nos deparamos com
algo “que nos pertence”, imediatamente valorizamos aquele fato, temos uma reação do tipo
“Ahá!!”, algo como “Ah, isto de fato é significante para mim!”. Ao ler e caminhar pelo
mundo com este estado de consciência, a todo instante poderemos extrair elementos que
de fato pertencem a nós, o que corresponde àquilo que Jung diz acerca desta água: ela nos
proporciona uma espécie de poder magnético por meio do qual podemos atrair e integrar
pedaços dispersos de nossa própria identidade.

107 Ibid., p. 57s.

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Figura 19. O texto do Quatérnio do Paraíso


O texto gnóstico equipara o Paraíso com a cabeça ou cérebro humano,
e os quatro rios que nascem no Paraíso aos quatro orifícios da cabeça:
olhos, ouvidos, nariz e boca. As águas têm o poder de transformar tudo
numa totalidade.

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Houve uma vez em que me deparei com um sonho em que apareceu esta água logo após
uma sessão com um paciente. Durante a sessão, eu me achei particularmente “brilhante”
ao fazer amplificações do material que ele havia me trazido. Claro que não mereço nenhum
crédito por esta atuação brilhante, pois ela foi tão somente projetada em mim e eu somente
a expressei; na verdade, a origem de tal “brilho” foi o inconsciente do paciente. Mas inde-
pendente disso, após a tal sessão de ricas amplificações feitas por mim, o paciente sonhou
que um jorro de água cristalina saía pela boca do analista. Na verdade, o paciente sonhou
com a água do rio Eufrates.

O segundo texto gnóstico, o texto dos Sinais do Pai, é sumarizado por Jung no parágrafo
290. Aqui está uma versão completa:

De acordo com os gnósticos, o universo é composto de Pai, Filho e Matéria (...) Entre a Matéria
e o Pai se situa o Filho, ou o Mundo, ou a Serpente (...) Às vezes esta Serpente [o Filho] se volta
em direção ao Pai (...) e às vezes ela se volta em direção à Matéria (...) o Filho, por meio de um
poder que pertence a ele próprio, transfere os sinais do Pai [ patrikoi charakteres] desde o Pai até
a Matéria (...) no caso de algum destes seres [que se situam abaixo, no escuro da Matéria] ter o
poder de perceber que possui a marca paterna [o sinal do Pai] (...) o poder de perceber que é fei-
to da mesma substância (...) do Pai que se encontra no céu, e então ele retorna para lá. [Isto so-
mente acontece se ele dispuser da doutrina] (...) Ninguém, então (...) pode ser salvo ou retornar
[para o céu] sem o Filho, e o Filho é a Serpente. Pois assim como ela [a Serpente] traz de cima
para baixo os sinais do Pai, assim também ela carrega daqui para cima os sinais despertados de
uma condição dormente que se tornaram substanciais. E ela [a Serpente] transfere (estas marcas
do Pai) àqueles que fecham as pálpebras, da mesma maneira que a nafta atrai o fogo de todas as
direções para si mesma, e da mesma maneira que o magneto atrai o ferro.108

Vejam que a ideia, representada aqui na figura 20, é a de que o Filho/Serpente carrega os
sinais do Pai para baixo, desde o céu até a matéria onde o homem reside. O homem que
possui a doutrina adequada reconhece então que possui os sinais do Pai. Outra maneira de
colocar esta questão é a de que aquilo que é trazido de cima pelo Filho é transferido ao
homem. Uma vez transferida, esta condição é tornada substancial, é materializada, é encar-
nada, e então é transferida de volta para a Serpente que, por sua vez, a leva para o céu de
forma corporificada. Esta é a ideia por trás do texto dos Sinais do Pai. Jung diz a respeito
disso:

A situação neste texto é inversa da anterior: a atração magnética não parte da doutrina, da água,
mas do Filho, simbolizado pela Serpente (de acordo com João 3,14) [“E tal como Moisés exaltou
a serpente no deserto, assim também é preciso que o Filho do Homem seja exaltado”]. Cristo é
o magneto que atrai a si aquelas partes ou substâncias de origem divina contidas no homem, re-
unindo-as e arrebatando-as consigo ao lugar celeste de origem. A serpente constitui um equiva-
lente do peixe. (par. 291)

108 Ibid. p. 63

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Figura 20. O texto dos Sinais do Pai


O texto gnóstico descreve de que maneira Cristo, sob a forma de ser-
pente (no centro), traz as qualidades divinas de Deus (os Sinais do Pai)
do céu para o mundo da matéria, e de que maneira extrai as partes do
homem que são de origem divina, para então levá-las de volta ao céu.

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Já que aqui estamos lidando com a imagem da serpente, devemos notar os comentários de
Jung a respeito do simbolismo da serpente. Aqui está um excelente sumário do simbolismo
da serpente que é uma imagem tão comum nos sonhos:

A serpente se manifesta espontaneamente ou é encontrada de surpresa; ela fascina. Seu olhar é


parado e não fixo em um alvo preciso. A serpente não reconhece o homem; arrasta-se por cima
de quem está deitado, em repouso. Podemos encontrá-la num sapato descalço ou no bolso da
veste. Por isso ela expressa simultaneamente o medo do homem em relação a tudo o que é i-
numano e um “temor reverencial” em face do sublime, do que se acha subtraído à esfera do hu-
mano. Ela representa o que há de mais ínfimo, o Diabo, e, ao mesmo tempo, o que há de mais
alto, o Filho de Deus, o Logos, o Nous, o Agathodaimon. A serpente está assustadoramente
presente em toda parte, e se encontra nos lugares e momentos em que menos se espera. Como
o peixe, ela também representa e personifica o mundo obscuro e abissal, as profundezas das á-
guas, a floresta, a noite e o inferno. Quando a consciência do homem primitivo pronuncia a pa-
lavra “serpente”, está exprimindo uma experiência do extra-humano. Não se trata, de modo al-
gum, de uma alegoria ou uma metáfora; pelo contrário: a forma que lhe é peculiar constitui, em
si, um símbolo, e o essencial aqui é que o Filho tenha a figura de uma serpente e não o inverso,
ou seja, não que a serpente signifique o Filho. (par. 293)

É muito importante lembrar destas observações sempre que encontrarmos um sonho de


serpente, pois a imagem do animal quase sempre gera uma atmosfera psíquica altamente
ambígua e fortemente carregada, o que indica que o inconsciente foi ativado a um nível
grandemente primordial, e isto significa a possibilidade de um importante passo na individu-
ação. De um lado a serpente ameaça morder e envenenar o sonhador; por outro lado, ela é
a portadora dos Sinais do Pai, ou seja, as marcas da totalidade. Desta forma, um sonho
com serpente sempre comunica a dupla ideia de perigo ou mau agouro e também de reve-
lação.

O terceiro texto gnóstico, o texto do Raio de Luz, é sumarizado por Jung no parágrafo
292. Aqui se encontra uma versão um pouco menos resumida:

Os setianos afirmam que a teoria concernente à composição e mistura é constituída de acordo


com o seguinte método: o raio luminoso que vem do alto é mesclado e (...) misturado com as
águas negras de baixo; e ambos se tornam unidos, e transformados numa massa composta (...)
[mas então é possível separar os diferentes ingredientes desta massa composta]. Cada uma das
coisas que foram misturadas é separada (...) [e então, com esta separação, cada uma das diferen-
tes substâncias] corre em direção às demais substâncias que lhes são peculiares, da mesma ma-
neira que o ferro corre em direção ao ímã (...) Da mesma maneira, o raio de luz que foi mesclado
com a água, uma vez obtido seu próprio lugar por meio da disciplina e instrução, apressa-se em
direção ao Logos que vem de cima.109

Em resumo, primeiro os raios de luz descendem da região superior de luz e ficam totalmen-
te misturados com as águas negras. Mas então o Logos descende como se fosse uma espa-
da separadora e exerce sua tarefa de separar a mistura indeterminada, e logo os raios de
luz, que até então estiveram miscigenados com as águas negras separam-se e são atraídos,
assim como limalha de ferro, ao Logos, que é seu lugar adequado. A referência escritural é

109 Ibid., p. 68.

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Mateus 10, 34-6, à qual os gnósticos dão uma interpretação totalmente diferente daquela
dos historiadores convencionais. Cristo está dizendo:

Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, mas a espada. Com efeito, vim con-
trapor o homem ao seu pai, a filha à sua mãe e a nora a sua sogra. Em suma, os inimigos do
homem serão os seus próprios familiares. (ASV)

Os gnósticos interpretavam o “aspecto espada” de Cristo ao Logos, que exerce o efeito de


separar os raios que foram misturados com as trevas. Esta imagem de raios que descem do
alto corresponde à ideia gnóstica da Sophia mergulhando no abraço das trevas, para depois
ter que ser resgatada. A respeito do raio de luz, Jung diz:

A atração magnética aqui parte do Logos. Este Logos significa o pensamento ou conceito ex-
presso e articulado, ou seja, um conteúdo e ao mesmo tempo um produto da consciência. Com
isso o Logos se aproxima da aqua doctrinae [água da doutrina], sendo que o primeiro [o Logos]
goza da preferência da personalidade autônoma, enquanto a segunda [a aqua] representa um ob-
jeto passivo do comportamento humano. (par. 293)

Para resumir estes três textos que descrevem diferentes imagens para o mesmo agente
magnético:

1) O texto do Quatérnio do Paraíso traz a imagem da água do Eufrates, a água que atrai de
toda a natureza aquilo que é próprio de si.
2) O texto dos Sinais do Pai refere-se à imagem da serpente que atrai todos aqueles que
carregam os sinais do pai.
3) O texto do Raio de Luz descreve o Logos como sendo uma espada que divide e que,
após fazê-lo, atrai a luz para fora da mistura trevosa.

A respeito destes três símbolos, Jung comenta:

[O primeiro agente] é uma substância em si inanimada, passiva: a água. Esta água é extraída, por
meio de um vaso, do fundo do poço, e a seguir manipulada e usada por mãos humanas de acor-
do com as necessidades do homem. Ela significa a doutrina intuitiva, a aqua doctrinae ou o Ver-
bo (Logos) (...) [No segundo caso], o agente é um ser animado e autônomo: a serpente (...) [No
terceiro caso], o agente é o Logos, que é por um lado uma ideia filosófica e uma abstração do fi-
lho de Deus pessoal e encarnado, e por outro o poder dinâmico dos pensamentos e palavras.
Fica evidente que estes três símbolos procuram descrever a natureza incognoscível do Deus en-
carnado. Mas é igualmente óbvio que eles encontram-se hipostasiados em sumo grau. (par. 293-
4)

Se nos lembrarmos desta tríplice sequência — água, serpente, espada — como sendo varia-
ções do símbolo do magneto, então toda ocorrência de qualquer um deles imediatamente
trará os outros à nossa mente. E se eles vierem à nossa mente, o resultado será o de que
talvez alguma água viva também possa eventualmente fluir de nossa boca.

A partir destes textos gnósticos, Jung traça alguns fios condutores que acabam por formar a
ideia de um Deus inconsciente. Ele cita diversas fontes para ilustrar esta ideia e a resume no

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parágrafo 303. Este resumo constitui um conceito muito importante para o Jung mais tar-
dio, e representa uma contribuição revolucionária:

Semelhantes afirmações a respeito da natureza de Deus constituem transformações da imagem


de Deus que se dão paralelamente com mudanças que se verificam no estado de consciência do
homem, sem que se possa definir sempre qual é a causa da outra. A imagem divina não é uma
coisa inventada, mas sim uma experiência que ocorre sua sponte [espontaneamente] ao indiví-
duo, fato que qualquer um pode saber à saciedade, desde que não prefira o obcecamento dos
conceitos ideológicos à clareza da verdade. Por isso, a imagem de Deus, que de início é incons-
ciente, tem condições de modificar o estado de consciência, do mesmo modo que este estado de
consciência pode introduzir suas correções na imagem consciente de Deus. Isto, obviamente, na-
da tem a ver com a veritas prima [verdade primeira], com o Deus Desconhecido, ou pelo menos
com algo que possa ser conhecido empiricamente. Psicologicamente, porém, a ideia de um Deus
ignorante [anennoetos theos] é da máxima importância, na medida em que assemelha a identi-
dade da divindade com a numinosidade do inconsciente.

De minha parte acredito que esta notável afirmação, encarada de forma prática, é a de que
a imagem do Deus inconsciente pode alterar o estado de consciência [do Eu], assim como o
estado de consciência do Eu pode modificar a imagem de Deus, uma vez que tenha se tor-
nado consciente dela. Isto exemplifica o simbolismo do rio Eufrates/boca, que flui em am-
bas a direções. A imagem do Deus inconsciente, quando é ativada, produz um intenso efei-
to sobre o Eu, e o perigo é que o Eu se torne possuído e identificado com ela e então passe
a funcionar como uma espécie de Iahweh primitivo. Esta é uma possibilidade. Mas a outra
possibilidade é que se o Eu for capaz o bastante de confrontar-se com o furioso assalto da
imagem do Deus inconsciente, servindo-se de uma discriminação consciente suficiente, a
própria imagem de Deus é transformada.

Em Resposta a Jó faz algumas observações adicionais a respeito do Deus inconsciente; nos


termos mais diretos possíveis ele afirma o seguinte:

A hipótese ingênua segundo a qual o creator mundi [Criador do mundo] é uma entidade consci-
ente deve ser vista como sendo um preconceito de graves consequências que mais tarde daria o-
rigem às mais incríveis distorções lógicas. Por exemplo, a absurda doutrina da privatio boni ja-
mais teria sido necessária se não fosse preciso sempre partir do pressuposto de que a natureza
consciente de um Deus bom nunca seria capaz de praticar ações más. Já a natureza inconsciente
e irreflexiva de Deus permite, ao contrário, adotar um ponto de vista que subtrai o agir de Deus
do julgamento moral, impedindo assim que surja um conflito entre sua bondade e sua bestialida-
de.110

Esta ideia do Deus inconsciente acabou por levar Jung ao pensamento de Meister Eckhart,
autor com quem Jung manteve uma ligação muito próxima. Eckhart viveu aproximadamen-
te de 1.260 a 1.328, na mesma época de Dante. Numa de suas cartas, Jung refere-se a
Eckhart como sendo um dos dez “pilares da ponte do espírito que travessa o pântano da
história mundial”.111 Um entre dez; os demais são Gilgamesh, I Ching, Upanishads, Lao-

110 Psicologia e religião, OC 11, par. 600, n. 13.


111 Cartas, vol. 1, p. 105. Ver também o ensaio de Jung sobre Eckhart em Tipos psicológicos, OC 6, par.
407-33.

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Tsé, Heráclito, o Evangelho de João, as Cartas de Paulo, Dante Alighieri e o Fausto de


Goethe.

A respeito de Eckhart, Jung diz:

A teologia de Meister Eckhart conhece uma “divindade” à qual não se pode atribuir nenhuma ou-
tra qualidade exceto a da unidade e a do ser. Ela “atua”, mas ainda não é dona de si própria e
representa uma coincidência absoluta dos opostos (...) Até onde a lógica humana alcança, a uni-
ficação dos opostos equivale a um estado de inconsciência, pois o estado de consciência pressu-
põe uma diferenciação e ao mesmo tempo uma relação entre sujeito e objeto. Onde não existe
um “outro”, ou onde ainda não chegou a existir um “outro”, toda possibilidade de se tornar
consciente cessa. Somente quando o Pai, que “flui” da divindade, isto é, de Deus, “percebe-se a
si mesmo”, “torna-se conhecido de si mesmo”, é que se torna consciente e “se contrapõe a si
próprio como pessoa” (...) Do mesmo modo que a divindade é essencialmente inconsciente, as-
sim também o é o homem que vive em Deus. (par. 301)

Esta é uma ideia espantosa. O texto, entretanto, requer uma pequena explanação. Eckhart
faz uma clara distinção entre Divindade e Deus. Aquilo que ele entende por Divindade é o
que chamamos de inconsciente, o Self original, o Todo inconsciente original, por assim
dizer. Quando o Eu se encontra imerso nele, identificado com ele, o Eu não existe como
uma entidade separada ainda, e também Deus não existe ainda. Deus, por outro lado, en-
quanto um termo usado por Eckhart, é uma consequência da consciência; ele nasce na al-
ma humana. Este é o tema básico do ensinamento de Eckhart — o de que Deus nasce na
consciência humana em um processo paralelo à natividade de Cristo. Na verdade, Deus não
existe enquanto não nascer na consciência humana. Esta é a ideia que Jung considera tão
atraente: a ideia de que Deus precisa do homem consciente para vir a existir. Eckhart foi o
primeiro a afirmar isso de maneira clara; Eckhart foi um psicólogo profundo fracassado.

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PARÁGRAFOS 306-327

Símbolos gnósticos do Self (cont.)


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Jung prossegue analisando o material gnóstico ressaltando alguns dos símbolos gnósticos
que tratam do fundamento universal da substância divina:

0
Nessa representação a psicologia vê uma imagem do substrato inconsciente e gerador da consci-
ência. A mais importante destas imagens é a do Demiurgo. Os gnósticos possuem um grande
número de símbolos que exprimem a origem, o centro da natureza, o Criador e a substância di-
vina presentes na criatura. Não se assuste o leitor com esta multidão de símbolos, lembrando-se
que qualquer nova imagem representa um aspecto diferente do mistério divino presente em to-
das as criaturas. O elenco de símbolos gnósticos que recolhi nada mais é do que a amplificação
de uma ideia transcendental única; esta é de tal modo abrangente, por não ser diretamente aces-
sível à consciência, que precisa de numerosas e diferentes expressões para poder expor a multi-
plicidade de seus aspectos. (par. 306)

A ideia básica do gnosticismo é a de que algo como uma espécie de substância celeste caiu,
ou descendeu, ou foi atraída do céu em direção à matéria e ao reino das trevas. Esta subs-
tância acabou por dar origem ao mundo e à luz tal como os conhecemos, e foi ela que rea-
lizou a criação, já que se tratava de substância vivente. Uma série de diferentes termos ou
imagens foram aplicados à substância divina. Frequentemente ela é chamada de Homem
Primordial, de Primeiro Homem ou de Anthropos (que é a palavra grega para “homem”).
Algumas vezes também é chamada de Nous, ou Luz. Outro termo comum para a substân-
cia divina é Sophia, a Sabedoria Divina. Jung a descreve dizendo:

Sophia ... que “mergulha nas regiões inferiores” ... foi mantida presa pelos poderes inferiores ...
Um análogo disto é a concepção alquímica, bem posterior, da “alma aprisionada em cadeias” ...
“Um dia a alma voltou-se para a matéria, enamorou-se dela e, ardendo de desejo de sentir os
prazeres corporais, não quis mais dela separar-se. Foi assim que nasceu o mundo.” ... No Pistis
Sophia ... ela é a filha de Barbelo. Enganada pela falsa luz do demônio Autades, ela cai prisionei-
ra do caos. (par. 307, nota 33)

Um trecho dessa passagem do Pistis Sophia proporciona o sentimento desta imagem sim-
bólica tão importante do ponto de vista psicológico:

Aconteceu então ... que ela [Sophia] olhou para baixo e ... pensou consigo mesma: tomarei a luz
[daquela região] para mim e com ela farei meus éons-luz ... Assim pensando, abandonou sua re-
gião [e dirigiu-se para baixo] ... [E ela] dirigiu-se para as regiões do caos e aproximou-se daquele

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poder luminoso com face de leão [que também é chamado de Autodeterminado, que é a tradu-
ção do termo “Autades”]. Foi então que todas as emanações [de Autades] envolveram-na, e o
grande poder com face de leão ... devorou Sophia, e privou-a de sua luz e devorou-a, e sua ma-
téria [de Sophia] foi lançada em direção ao caos ... este é Ialdabaoth, de quem já lhes falei a res-
peito várias vezes. Quando isso aconteceu, Sophia ficou enormemente exaurida, e aquele poder
com face de leão começou a extrair dela toda a sua energia luminosa, e ... rodeando-a, causou-
lhe aflição. E Pistis Sophia lançou um grito formidável, bradando por socorro em direção às Lu-
zes de acima ... expressando seu arrependimento dizendo assim: “Ó, Luz das luzes, em quem ti-
ve fé desde o início, escuta-me agora, ó Luz, e ouve meu arrependimento. Salva-me, ó Luz, pois
que pensamentos malignos tomaram conta de mim.112

Assim Sophia foi aprisionada, e sua luz roubada pelo poder autodeterminado com face de
leão. Esta é uma imagem bastante estimulante, uma imagem do desenvolvimento do Eu.
Qualquer tipo de queda do céu que transfira material celeste para o mundo inferior corres-
ponde a uma queda para a manifestação do Eu, que é precisamente para o que a expressão
“autodeterminado aponta. Um exemplo desta imagem ocorreu em um sonho:

Desço apressadamente para o porão de um prostíbulo fugindo de um homem violento. Lá en-


contro uma jovem mulher toda machucada e espancada que, apesar disso, exibia uma encanta-
dora beleza. Beijo-a e desperto-a, quando então sou tomado imediatamente por uma sensação
de compaixão por ela, por mim mesmo, e pelos sofrimentos de toda a condição humana. O
homem rude, proprietário do local, permanece no alto da escadaria.113

Esta imagem descreve, de forma resumida, a tarefa básica de todo o processo analítico:
descer ao inconsciente e resgatar, ou redimir, a imagem da alma que lá se encontra aprisio-
nada.

A seguir, Jung dedica-se ao tema dos gnósticos naassenos e da serpente Naas, que era a
imagem que eles faziam da substância divina presente em todas as criaturas, comparável à
imagem do Anthropos ou da Sophia:

Os próprios naassenos concebem sua instância divina central como Naas, a serpente, e conside-
raram-na uma “substância úmida” (hygra ousia), em concordância com Tales de Mileto, que con-
cebia a água como sendo a substância primordial. Do mesmo modo que tudo depende desta á-
gua, assim também tudo que tem vida depende de Naas (ophis [serpente]) e “ela contém em si a
beleza de todas as coisas, como no chifre do touro de um só chifre”. Ela “percorre todas as coi-
sas, tal como a água que corre do Éden e se divide em quatro origens [archas]”. (par. 311)

Numa versão completa desse texto, Hipólito comenta a respeito dos naassenos, que rece-
bem esse nome em razão de sua divindade denominada Naas, que significa serpente:

Não adoram a nada mais além de Naas ... [e portanto são chamados de naassenos]. Contudo,
Naas é a serpente a partir da qual, ou melhor, a palavra a partir da qual, dizem eles, todas as
coisas abaixo do céu são denominadas templo (naos) ... Os naassenos afirmam que somente a
ela — ou seja, a Naas — é dedicado cada um dos santuários e cada um dos ritos iniciáticos e mis-
térios; e afirmam também que, em geral, nenhuma cerimônia religiosa pode ser realizada sob os

112 G. R. S. Mead, trad., Pistis Sophia, p. 36s.


113 Ver meu livro The living psyche: a Jungian analysis in pictures, p. 91.

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céus em um templo (naos) que não possua Naas; e que no próprio templo está Naas, que foi do
que ele recebeu sua denominação [sua condição] de templo ( naos). [A palavra que designa ser-
pente é naas, e a palavra para templo é naos. Por meio de um truque etimológico típico dos au-
tores da Antiguidade, aqui está sendo afirmado que a palavra templo é derivada da palavra ser-
pente.] ... E eles [os gnósticos naassenos] afirmam que a serpente é a substância úmida, assim
como faz Tales de Mileto (que afirmou que a água é o princípio que deu origem a tudo o que e-
xiste), e que nenhuma das coisas existentes, mortais ou imortais, animadas ou inanimadas, pode-
ria existir se não existisse a serpente. E que todas as coisas estão a ela sujeitas, e que isso é bom,
e que ela contém em si todas as coisas, assim como o corno do touro de um só chifre ... [ou, de
acordo com a versão bíblica, como o corno do unicórnio], de maneira que ela concede beleza e
exuberância a todas as coisas que existem de acordo com sua própria natureza e peculiaridade,
como se ela perpassasse todas as coisas, assim como “o rio que se origina no Éden e se divide
em quatro correntes”.114

Na obra The Ante-Nicene Fathers, após esta citação, aparece o texto do Quatérnio do Pa-
raíso, referente ao Jardim do Éden e aos quatro rios que fluem a partir dele. Os gnósticos
associam a serpente Naas com a água dos rios do Jardim do Éden e com a água primeva
que, de acordo com o filósofo Tales, é a raiz de todas as coisas, e também com o templo,
Naos. Esta serpente é a mesma serpente discutida previamente como sendo aquela que
desce dos céus trazendo os sinais do pai. Esta serpente é a água viva que dá origem e per-
meia todas as coisas, e é sua presença numinosa que se encontra no interior de cada tem-
plo.

Aqui está uma ideia, notável para 2.000 anos atrás, a de que existe uma entidade prévia a
todas as diversas denominações religiosas e a todos os diversos templos construídos para
divindades diferentes. A ideia é a de que existe uma substância ou condição primordial, que
é a essência da divindade que se encontra no interior de todos os templos, independente da
divindade específica à qual eles tenham sido consagrados. Dito em ouras palavras, trata-se
de uma genuína generalização psicológica, uma afirmação simbólica a respeito do numinoso
que subjaz a todo e qualquer fenômeno religioso. Este conceito representa uma realização
muito significativa, e ajuda-nos a entender por que Jung considerava o gnosticismo tão inte-
ressante e relevante para a psicologia profunda.

No parágrafo 313, numa passagem longa embora bastante resumida, Jung condensa uma
descrição gnóstica mais extensa do homem original ou Anthropos, que o equipara com
Adão e com as imagens do homem original da maneira como é apresentado pelas diversas
tradições mitológicas, e ao final chega à imagem itifálica de Hermes. O parágrafo 313 é
interrompido para uma digressão e então Jung volta a retomar seu tema e concluí-lo nos
parágrafos 325 a 327. Estes parágrafos são de difícil entendimento pelo fato de estarem
muito condensados. Na verdade, Jung nos presta um valioso serviço separando a nata psi-
cológica de todo o material bruto original. No entanto, estes parágrafos, se forem lidos de-
vagar e repetidas vezes, acabarão por finalmente nos transmitir a sua mensagem. Partes do
parágrafo 313 ilustram de que maneira este material é perfeitamente claro se for lido com a
atenção necessária:

114 Roberts and Donaldson, The Ante-Nicene Fathers, vol. 5, p. 57.

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Para os naassenos, a essência do mundo é o Homem Primordial, Adão, e o conhecimento a


respeito dele é considerado como o começo da perfeição e a ponte para o conhecimento de
Deus.

Isto é bastante claro e corresponde totalmente àquilo que experimentamos quando os so-
nhos trazem à tona o Anthropos, o homem original. De fato, estes sonhos proporcionam
uma ponte para o conhecimento do transpessoal: eles verdadeiramente perfazem uma co-
nexão com a totalidade. Jung então segue adiante:

Ele [o Homem Primordial] é macho e fêmea [isto é, uma união de opostos]; dele provêm “pai e
mãe”; ele consiste de três partes: a racional [noeron], a psíquica e a terrena [choikon]. Estes “três
elementos desceram simultaneamente ao interior do homem único, Jesus.”

Parece-me que o que se encontra atrás disso — o simbolismo da descida da tríplice entidade
— é o fato de que quando o conteúdo do inconsciente passa a ser realizado pelo Eu, ele
entra no reino da trindade. O simbolismo da trindade pertence ao mundo espaço-temporal
da existência egóica; espaço e tempo são categorias do Eu. Embora seja verdade que as
tríades sejam quaternidades incompletas, também é verdade que quando manifestações da
totalidade original caem na existência egóica, caem no espaço e no tempo, elas adquirem
características triádicas, e vemos aqui este simbolismo do três. Jung continua:

Pois os naassenos, diz Hipólito, situam a “natureza procriadora do Todo na semente procriadora
[sêmen gerador de vida]”. ... “Isto, para eles, constitui o Logos secreto e místico” ... que é asso-
ciado ao falo de Osíris [trata-se daquela parte do Osíris desmembrado que jamais foi de novo en-
contrada] “e eles dizem que Osíris é água” ... Outro sinônimo disto é o Hermes Cileno itifálico,
“pois eles dizem que Hermes é o Logos”.

Hermes Cileno refere-se à estátua itifálica de Hermes — Hermes exibindo seu pênis ereto —
que existiu no Templo de Hermes no monte Cilene. Este monte é a mais alta montanha do
Peloponeso, e era consagrada ao deus. Os gnósticos equiparavam Hermes ao Logos. Todo
este simbolismo sexual acaba por conduzir Jung a uma digressão referente a outro texto, ao
qual voltaremos adiante. Contudo, se deixarmos de lado esta digressão, o relato é retomado
a partir do parágrafo 325, no qual Jung aborda novamente o simbolismo de Hermes e trata
de alguns de seus atributos: conjurador de espíritos, guia de almas e portador do bastão de
ouro. A imagética fálica da estátua de Hermes leva Jung a outro texto envolvendo imagens
sexuais, uma passagem que eu chamo de texto da conjunção de Cristo. A referência a este
texto se encontra no parágrafo 314, onde Jung escreve:

Diz-se que Cristo conduziu esta Maria [não a Virgem Maria, mas outra] a um monte onde Ele
produziu uma mulher, tirando-a de seu próprio flanco, e passando a unir-se sexualmente a ela,
ela recebeu o esperma dele dentro de si, e com isso ele deu a entender que fez tal coisa para que
vivêssemos. Diz-se, com efeito, que Maria sofreu um choque tão grande que caiu por terra. Cris-
to disse-lhe então: “Por que duvidas, mulher de pouca fé?” É a isto que se refere a passagem de
João 3, 12: “Se, falando-vos de coisas terrenas, não credes, como haveis de crer se vos falar de
coisas celestes?”

Jung então comenta este texto:

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Parece-me que neste simbolismo se trata de uma experiência visionária original, como a que ain-
da hoje ocorre, não poucas vezes e de maneira semelhante, no tratamento psicoterapêutico. O
médico psiquiatra não encontra aí nada de chocante. O próprio contexto já aponta por si mes-
mo para a correta interpretação. A imagem expressa um psicologema não muito fácil de expres-
sar racionalmente; por isso ela é forçada a usar um símbolo concreto para indicar como o sonho
deve se comportar quando uma ideia mais ou menos “abstrata” se manifesta durante o abaisse-
ment du niveau mental [rebaixamento do nível mental] que ocorre durante o sono. Estas surpre-
sas chocantes, que a todo instante aparecem nos sonhos, devem sempre ser tomadas por um
“faz de conta” expresso de maneira concreta e sugestiva que não recua diante de grosserias e
obscenidades. As imagens jamais se preocupam com inconveniências, pois não é isso que bus-
cam expressar; elas somente balbuciam sua mensagem no esforço de expressar a esquiva men-
sagem que prende o interesse do sonhador. (par. 315)

Isso traz à tona a grande questão de como devemos interpretar imagens declaradamente
sexuais que se apresentam nos sonhos. Minha opinião é a de que, na grande maioria dos
casos, tais imagens oníricas nada têm a ver com a sexualidade concreta. Em vez disso, elas
dizem respeito à coniunctio, ou seja, ao simbolismo da união de opostos. Tudo se passa
como se o inconsciente que gera os sonhos estivesse enraizado na natureza biológica e,
portanto, expressasse suas ideações sob a forma de imagens naturais. A título de exemplo,
eis um sonho de uma mulher de meia-idade que experimentava a emergência de energias
criativas como poeta e pesquisadora:

Acontece uma festa no apartamento de minha mãe. Um homem estranho e perturbador, o Sr.
X, que é poeta, é o convidado de honra. [Após várias peripécias a mãe acaba indo embora da
festa]. Quando isso acontece, dá-se um tipo de congraçamento espontâneo e universal do qual
eu também participo, embora sem compreender bem o que está acontecendo. Mas logo me dou
conta. Uma por uma, X reúne todas as mulheres da festa à sua volta em semicírculo, incluindo a
mim, e a seguir nos despe e ejacula em cada uma de nós um enorme jato de esperma que flui
como se fosse uma fonte. Durante o sonho tive a impressão de que a ideia era a de que cada
uma de nós deveria servi-lo desta maneira, recebendo sua ejaculação, mas em seguida fica claro
que receber o esperma dele era somente parte de nossa tarefa: à medida em que o banho de es-
perma nos atingia com grande violência, cada uma de nós experimentava seu próprio e particu-
lar orgasmo.115

Ora, se levarmos em conta estas imagens literalmente, não poderia haver sexualidade mais
explícita do que isso. Contudo, o que está se explicitando aqui é o batismo da sonhadora
nos seus próprios poderes criativos que emergem do inconsciente. Eis aqui outro exemplo
sonhado pela mesma paciente, naquela mesma época:

Vejo um jovem, nu, brilhando de suor, que de início chama minha atenção pela sua atitude física:
uma combinação do movimento descendente da figura de Pietá com a posição enérgica do fa-
moso Discóbolo Grego ... Ele se destaca ... pelo fato de possuir um enorme falo semelhante a
uma terceira perna esticada. O jovem se encontrava agoniado pela intensidade de sua ereção.116

Neste momento a sonhadora une-se sexualmente com ele e passa por uma inversão de
orientação psicológica, uma espécie de revolução interior. Este é um típico exemplo da
115 Ver meu Anatomia da psique, p. 83.
116 Ver meu Ego e arquétipo, p. 109-10.

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triplicidade de um conteúdo do inconsciente entrando na consciência: um homem de três


pernas, sendo que a terceira é também um enorme falo. A questão abordada pelo sonho
não é, de maneira alguma, a sexualidade concreta da sonhadora, mas sim uma imagética
sexual que foi usada para expressar algo totalmente diferente: a conexão com o inconscien-
te criativo.

Voltando à ideia do Deus que nasce na alma humana, comentada acima em relação a Meis-
ter Eckhart, Jung se refere a Angelus Silesius:

Mestre Eckhart diz, expressando a mesma ideia de um outro modo, que Deus nasce da alma, e
por fim Deus e o Self coincidem absolutamente nos versos do Peregrino Querubínico de Angelus
Silesius. Nesta época os tempos haviam mudado radicalmente: parece que a força geradora não
sai mais de Deus, mas é este que, pelo contrário, nasce da alma. (par. 321)

Jung se refere a Angelus Silesius em diversas passagens de sua obra. Angelus Silesius é, de
fato, um nome artístico: o nome real do autor foi Johannes Scheffler. Trata-se de um místi-
co polonês que viveu de 1824 a 1627, e ele reproduz as ideias de Eckhart da maneira mais
precisamente literal. Por exemplo:

Deus é meu centro se o fecho dentro de mim;


Mas então é meu contorno quando nele por amor eu me diluo.117

Sei que sem mim Deus não pode viver um instante,


Se eu perecer, ele não mais sobreviverá

Sem mim Deus não pode criar um verme sequer;


Se com ele eu não o compartilhar, destruição será seu fim.

Sou grande como Deus, pequeno ele é como eu:


Ele não pode estar acima de mim e nem eu abaixo dele!

Deus é fogo em mim e eu sou dele a claridade:


Não estamos nós totalmente unidos no âmago?

Deus me ama acima dele e eu acima de mim o amo,


Tanto lhe dou eu quanto ele de si me dá!

Deus é Deus e homem para mim, eu lhe sou homem e Deus.


Sacio-lhe a sede e ele me ajuda nas necessidades.

Deus se adapta a nós, e é para nós o que dele queremos;


Mas, ai de nós, se não nos tornamos para ele o que devemos.

Deus é o que é, eu sou o que sou:


Conhecendo bem um, conhecerás a ele e a mim.

Não existo fora de Deus, nem Deus fora de mim,


Sou dele brilho e luz e ele é meu ornamento.

Sou o ramo no Filho que Deus planta e nutre,


117 Mysterium coniunctionis, OC 14/1, par. 128, n. 70.
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O fruto que de mim brota é Deus, o Espírito Santo.

Sou criatura e filho de Deus e ele por sua vez é meu filho:
Como pode acontecer, porém, que ambos sejamos as duas coisas?

Sol devo ser, e devo com meus raios


Pintar o mar sem cor de toda a divindade.118

Jung acrescenta:

Seria ridículo supor que ideias tão brilhantes quanto as de Mestre Eckhart fossem apenas ficções
vazias de especulação consciente. Semelhantes ideias são fenômenos historicamente sempre im-
portantes que são levados por correntes inconscientes para a psique coletiva.119

Estes dois autores, Silesius e Eckhart, são verdadeiros precursores da psicologia profunda.

Jung também se refere no Aion a outra ideia que pressagiou desenvolvimentos psicológicos
que só surgiriam mais tarde. Trata-se da ideia de Johannes Kepler da imagem de Deus ca-
indo na natureza. Jung se refere a ela da seguinte forma:

Um modo ainda rude de observar a natureza que se prepara para receber o arquétipo do ho-
mem — tentativa esta que se estende até o século XVII, quando um Johannes Kepler reconhece
a Trindade como fundamento da estrutura cósmica —, ou, em outras palavras, assimila este ar-
quétipo na imagem que o astrônomo faz do mundo. (par. 323)

A mesma ideia também pode ser encontrada em um livro escrito por Jung em conjunto
com Wolfgang Pauli, no qual Pauli cita Kepler como tendo escrito que

A imagem do Deus Triuno na superfície esférica, ou seja, o Pai encontra-se situado no centro, o
Filho na superfície externa e o Espírito Santo na igualdade de relação entre ponto e circunferên-
cia ...

[Uma] linha reta [formada pelo] movimento de um ponto localizado no centro [da esfera] em di-
reção a um único ponto na superfície representa o início primordial da criação, reproduzindo a
eterna geração do Filho.120

Kepler aqui está pensando a respeito da órbita circular dos planetas em torno do sol. Sua
ideia é a de que a imagem astronômica é uma representação da Trindade; o sol central é o
Pai; o planeta é o Filho; e a energia centrípeta que os mantêm unidos é o Espírito Santo.
Esta concepção corresponde àquilo que Jung trata em outro local como sendo a projeção
do numinoso na matéria, que constitui a base da ciência moderna. Em nossos dias, a ima-
gem de Deus agora se encontra alojada na natureza, e as ideias de Kepler constituem as
antigas expressões deste fato. Ciências como a Física, Química e Biologia — e toda a ener-
gia investida na pesquisa delas — derivam todas da projeção da imagem de Deus na nature-
za, e esta é a fonte da fascinação que exercem em nós. Jung cita William James na passa-
gem: “Toda a nossa estima pelos fatos [concretos] jamais neutralizou nossa religiosidade. A

118 Tipos psicológicos, OC 6, par. 477.


119 Ibid., par. 478.
120 The interpretation of Nature and the Psyche, p. 159s.
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estima que temos por eles é, ela própria, religiosa. Nossas atitudes científicas são religiosa-
mente devotas.”121

Para os verdadeiros cientistas, aqueles que de fato fazem nosso conhecimento avançar, a
busca do conhecimento científico é igual a uma empreitada religiosa. É por esta razão que a
ciência é tão importante para a psique moderna. A imagem de Deus, em nossa época já
ausente da religião, mergulhou na natureza e na observação científica da natureza. Esta é
uma das razões pelas quais Jung insiste em ser absolutamente fiel à tradição científica: se a
imagem de Deus ainda funciona de uma maneira autêntica, isso se dá na atitude da ciência
moderna.

121 Pragmatism, p. 14s.


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PARÁGRAFOS 328-346

Símbolos gnósticos do Self (cont.)


21
Neste capítulo, apresentando uma caudalosa torrente de imagens gnósticas, Jung dá início à
sua discussão daquilo que ele chama de tríade cósmica e Quatérnio de Moisés. Esta última
imagem receberá uma atenção bastante detalhada numa parte mais adiante do livro. A refe-

0
rência inicial encontra-se no parágrafo 328, no qual Jung, em seu estilo condensado e si-
nóptico, cita Hipólito dizendo:

Os naassenos ... derivam todas as coisas de uma tríade que é constituída, em primeiro lugar, pe-
la “bem-aventurada natureza do bem-aventurado Homem do Alto, Adamas”; em segundo lugar
pela natureza mortal do homem inferior e, em terceiro lugar, pela “raça dos homens sem rei [in-
dependentes] que foi gerada do alto”, à qual pertencem Mariam ... Jótor ... Sephora ... e Moisés
...” Esses quatro personagens formam um assim chamado quatérnio matrimonial.

Aqui estamos diante de um texto bastante sintético. A tríade cósmica consiste de três níveis.
O Adão do alto é o primeiro. O quatérnio formado por Mariam, Jótor [ou Jetro], Sephora e
Moisés representam o segundo nível. O Adão inferior é o terceiro. Temos aqui o fenômeno
bastante comum do simbolismo triádico se mesclando com o simbolismo da quaternidade.
Existe uma sequência de três níveis que se desdobram, mas o resultado disso, pelo menos
no nível intermediário, é uma quaternidade. Aqui, assim como em outros textos de Hipólito,
os gnósticos assimilam as imagens das escrituras hebraico-cristãs e dos mitos gregos à sua
própria e elaborada fantasia cósmica. Neste caso em particular, os gnósticos tomam os per-
sonagens básicos do Livro do Êxodo e os transformam numa imagem gnóstica.

Os quatro personagens bíblicos são Miriam, Jetro, Sephora e Moisés. Moisés, obviamente,
foi o homem que conduziu os judeus para a liberdade da escravidão, e seu nome nos faz vir
à mente associações como libertação de amarras, cruzar o Mar Morto e atingir a Terra
Prometida. Os gnósticos serviram-se muito desta imagem. Jetro (Jothor) foi o sogro de Moi-
sés, e também um sacerdote madianita. Moisés foi obrigado a fugir após ter matado um
escravo egípcio. Escondeu-se então no deserto, onde se tornou pastor dos rebanhos de
Jetro e acabou por casar-se com a filha deste, Sephora. O personagem Jetro, então, sugere
uma sabedoria e conhecimento que pertencem a uma cultura estranha, não-israelita. Miriam
é a irmã de Moisés, e em um dos textos ela é citada como sendo uma profetiza. Sephora, a
esposa de Moisés, é chamada em um dos textos de “a mulher etíope”, e está associada à

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condição negra. Isto é o que constitui o Quatérnio de Moisés, que irá reaparecer mais tarde
no texto. Jung parte deste quatérnio para falar a respeito da tríade — os três níveis:

A tríade é caracterizada pelas três palavras, talvez onomatopaicas: Kaulakau, Saulasau e Zeesar,
das quais Kaulakau significa o Adão do Alto, e Saulasau o homem de baixo, mortal, ao passo
que Zeesar é chamado de o “Jordão que corre para cima”. O Jordão foi forçado por Jesus a
correr para cima;122 o Jordão é o rio que sobe e por isto, como indicamos anteriormente, é o
gerador dos deuses. “Este, dizem eles, é o homem andrógino sob todos os aspectos. A ele os ig-
norantes chamam de “Gerião, o homem de três corpos” [ou seja, aquele que brota da terra].”
(par. 330)

Existe aqui um jogo de palavras, um trocadilho formado por palavras gregas. Gerião foi um
monstro que tinha três corpos, e que foi conquistado por Hércules em seu décimo trabalho.
Hércules havia roubado o gado de Gerião e então teve que vencer o monstro de três cor-
pos. De acordo com o jogo de palavras, o termo Gerião deriva de “Ge-rian”, que significa
“terra que flui”. Há ainda um outro jogo de palavras que faz uma analogia entre a palavra
Gerião e a palavra Jordão. Mudando-se um pouco a palavra Jordão obtemos a palavra “Jo-
rian”, mais uma coisa que “flui”. Desta maneira, Gerião e Jorião constituem um jogo a res-
peito de dois tipos de rio. Os textos gnósticos estão repletos deste tipo de etimologias sono-
ras e fluidas; o que os torna tão interessantes para nós é que agora somos nós que teste-
munhamos o inconsciente agindo da mesma forma em sonhos atuais. O inconsciente gosta
muito de fazer estes jogos de palavras: ele é um desavergonhado fazedor de trocadilhos.

Ora, o Jordão que flui para cima também é associado ao Logos cosmogônico, e existe uma
menção a uma citação do primeiro capítulo de João na qual Cristo é descrito como sendo
“a vida que havia nele”. De maneira que o evangelho de João acaba sendo associado a esta
especial imagem gnóstica. Podemos ver aqui a rica rede de associações que formam estes
textos gnósticos. E já que os gnósticos agem da mesma maneira que vemos o inconsciente
fazer em nossos dias, Jung os considera como sendo, na verdade, os primeiros psicólogos.
Os gnósticos tomavam as imagens das escrituras e dos mitos de maneira empírica, e jamais
de maneira dogmática e literal, e usavam-nas para exemplificar seus próprios temas, que
são basicamente temas psicológicos.

O texto prossegue com diversas imagens diferentes, todas elas envolvendo a mesma ideia
primordial, a ideia do homem original, da matéria criativa original, da totalidade inicial. Jung
sumariza as observações de Hipólito a respeito deste tema no parágrafo 331, referindo-se a
uma destas imagens em especial, a imagem da Taça do Presságio: “Este Logos ou quater-
nidade é a taça da qual o rei, ao beber dela, observa os omina” [ou seja, faz seus pressá-
gios].

Isto constitui uma referência a Gênesis 44, uma passagem na qual os irmãos de José são
mandados de volta para casa após tê-lo visitado e, em obediência ás ordem de José, a taça
do rei foi colocada no saco de sementes de Benjamim, o irmão mais novo de José. Benja-
122 O nível intermediário, a quaternidade, recebe o nome de “raça de homens sem rei” e também o de “Jor-
dão que corre para cima”. A “raça de homens sem rei” pode ser entendida como se referindo a pessoas que
são sua própria autoridade, e que, portanto, não obedecem a nenhum rei. Se uma pessoa pertence a uma
raça sem rei, então ela é seu próprio rei.

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min foi então dispensado por José. Quando os irmãos já haviam partido mas ainda não se
encontravam longe, José diz a seus homens para segui-los e capturá-los. José então per-
gunta a seus irmãos por que eles haviam roubado sua taça. Os empregados de José obser-
vam que aquela era a taça usada pelo rei para fazer suas profecias. Ora, o que os gnósticos
estão tentando dizer aqui é que a quaternidade do Logos corresponde à taça encontrada no
saco de trigo de Benjamim. Mas acontece que a taça também é a caneca de Anacreonte.
Vejam que os gnósticos ficam totalmente à vontade para saltar de fontes bíblicas hebraicas
para fontes gregas. A caneca de Anacreonte refere-se a determinados versos de Anacreon-
te, que foi um poeta grego. Sua poesia diz o seguinte: “Minha caneca me diz / a sorte que
experimentarei”.123 Em outras palavras, o poeta sabe quem ele é e qual a sua identidade ou
natureza essencial por meio de sua caneca. Aqui a ideia subjacente é in vino veritas: a cane-
ca de Anacreonte diz-nos quem somos na verdade.

A imagem da taça dos presságios então conduz Hipólito em direção ao milagre do vinho
em Caná que, diz ele, “‘apontava para o reino dos céus’; pois o reino dos céus encontra-se
em nosso interior, assim como o vinho se encontra no interior do cálice” (par. 331). Assim,
o relato escritural do milagre do vinho em Caná, no qual Cristo transformou água em vinho
na festa de casamento (João 2), agora foi apropriado por este texto gnóstico.

Um texto gnóstico é como uma enorme boca que tudo engole, digerindo todas as imagens
que considera relevantes e criando uma rica rede de associações. Se examinarmos estes
textos com atenção suficiente, chegará um momento que eles começarão a falar conosco.
De início pode parecer que são pedaços desconexos e tolamente alinhavados. Contudo, se
dermos a devida atenção à sua rede de associações, ela acaba por se tornar viva, e então
perceberemos que estamos diante de um tecido da psique viva; é por esta razão que Jung
dá tanto valor a este material. Entretanto, é extremamente difícil ter uma tal experiência
simplesmente lendo o Aion, a menos que coloquemos toda nossa atenção nos detalhes.
Porém, se o fizermos, se nos dermos ao trabalho de seguir estas associações com cuidado e
se as contemplarmos uma por uma, chegará o momento em que teremos uma experiência
única: seremos capazes de ver a psique viva em sua deslumbrante realidade.

Jung ressalta que o texto gnóstico afirma que Cristo “estava consciente da natureza indivi-
dual de cada um de seus discípulos, e também da necessidade que cada um deles tinha ‘de
atingir a natureza que lhe é própria’” (par. 331). A ideia aqui é a de que todas as pessoas
bebem o sangue de Cristo, embora cada uma seja alimentada por este sangue de sua pró-
pria e única maneira; o sangue de Cristo alimenta a natureza individual da pessoa. Numa
passagem de Hipólito que Jung não cita, os gnósticos explicam que aquilo que querem dar
a entender é que de um único e mesmo rio que irriga uma determinada área, a oliveira reti-
ra o óleo, a parreira retira o vinho e outras plantas retiram precisamente aquilo que as ca-
racteriza — cada uma delas de acordo com a sua própria condição.124 O mesmo se dá com
as pessoas: todas elas partilham da mesma taça, embora dela retirem somente aquilo que
lhes é individualmente relevante.

123 Citado por Roberts e Donaldson, The Ante-Nicene Fathers, vol. 5, p. 53


124 Ibid., p. 57.

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Jung continua no parágrafo 322 com o tema do Deus que habita a grande corrente de á-
gua, o que constitui uma outra imagem, assim como a taça dos presságios, da totalidade
original. Ele fala de “Coribas, que desce do topo da cabeça, ... e impregna todas as coisas
... Ele é o Deus que habita a maré alta”. Nesta passagem Jung não precisa descrever este
símbolo, pois já o fez com relativa extensão em sua obra Paracelso, um fenômeno espiritu-
al, onde comenta:
Ninguém sabe o que é a forma que desce do alto para baixo, [que desce do] inexplicável]. Ela se
encontra no lodo terrestre, mas ninguém a reconhece. Mas ela é o deus que mora na grande ma-
ré. Segundo o Saltério, ele chama e grita a partir das grandes águas [Trata-se de uma referência
ao Salmo 29 que diz: “A voz de Iahweh sobre as águas ... Iahweh sobre as águas torrenciais”.
Assim, a imagem do Deus que habita a grande torrente de água foi extraída desta passagem es-
pecífica dos Salmos.] As grandes águas, diz ele, são a criatura múltipla dos homens mortais, a
partir da qual ele chama e grita em alta voz para o homem incaracterístico [homem informe, in-
visível]: “Salva dos leões minha filha única”.125

Esta última frase é uma referência ao Salmo 22, 22. Ali, a ideia de que Deus encontra-se
gritando a partir das águas — o texto afirma que as águas são a geração dos homens —
corresponderia à ideia da imagem coletiva do Anthropos que se encontra submergido na
coletividade do homem massificado e que se encontra clamando por ser salva. Em resposta
a ele, o texto bíblico declara: Tu és meu! Quando passares pela água, estarei contigo; quan-
do passares pelos rios, eles não te submergirão (Isa 43, 1-2) (devido a algumas variações
nos textos bíblicos, aquilo que Hipólito expressa por rios constitui a substância úmida da
geração). Tudo isso ilustra de que maneira as diversas passagens escriturais significativas
são pinçadas para fora de seu contexto original e colocadas em um novo contexto no es-
quema gnóstico global.

As imagens do Deus que habita na grande torrente e da voz que clama a partir das águas
têm um importante paralelo alquímico. Trata-se da imagem do rei se afogando no mar e
gritando por socorro. Uma das gravuras do Atalanta fugiens de Michael Meyer mostra o rei
submergindo no mar, e a passagem diz:

[O rei] vive, mas clama das profundezas do mar: quem me libertará das águas e me conduzirá à
terra seca? Mesmo que este clamor seja ouvido por muitos, ninguém assume, movido por pieda-
de, o encargo de procurar o rei. Quem, dizem eles, ousaria atirar-se à água? Quem, arriscando a
própria vida, iria salvar o outro do perigo? Poucos acreditam no seu lamento, e todos preferem
pensar que o que ouviram é o estrondo e bramido de Cila e Caribdes. Por isso ficam sentados
em casa preguiçosamente e nem se importam com o tesouro régio, nem com sua própria salva-
ção.126

Então aqui nos deparamos com uma imagem, a do Deus no mar, que surge primeiramente
em um determinado contexto das escrituras bíblicas, é pinçada deste contexto para ser usa-
da em outro contexto diferente pelos gnósticos, e então é novamente apropriada pelos al-
quimistas para ser usada num terceiro cenário. Mas agora a psicologia jungiana toma dessa
imagem e dela se serve num quarto contexto diferente para se referir ao Self transpessoal
125 Estudos alquímicos, OC 13, par. 182.
126 Citado por Jung em ibid., par. 181.

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que reside no inconsciente e que precisa ser resgatado pelo Eu, que deve então lançar-se à
grande torrente de água para redimi-lo. Esta imagem podemos entendê-la agora como sen-
do a inconsciente e abandonada imagem de Deus que clama por ser realizada consciente-
mente.

Outra rede de significados de material gnóstico se situa na imagem da porta ou portal, outra
expressão da totalidade original. Esta referência encontra-se no parágrafo 333:

Do centro do “homem completo” flui o Oceano (no qual Deus se encontra, como acima disse-
mos). O homem “completo” é, como diz Jesus, a “verdadeira porta” pela qual o homem “com-
pleto” deve passar, a fim de renascer.

Aqui foi pinçada uma passagem de Mateus 7, 14s: “Estreita, porém, é a porta e apertado o
caminho que conduz à Vida. E poucos são os que o encontram” (BJ). Também relacionada
a essa ideia é a afirmação de Cristo em João 10, 9: “Eu sou a porta. Se alguém entrar por
mim, será salvo; entrará e sairá e encontrará pastagem” (BJ).

Esta imagética de porta ou portal continua no parágrafo 336 do Aion, onde está a referên-
cia ao sonho de Jacó em Betel. Jacó sonhou com uma escada celestial que tinha anjos su-
bindo e descendo por ela. Quando despertou de seu sonho, disse: “Este lugar é terrível!
Não é nada menos que uma casa de Deus e a porta do céu!” (Gen. 28, 12-18, BJ). Os
gnósticos associam esta imagem especial, a Porta do Céu com a qual Jacó sonhou, com as
observações de Cristo a respeito de ser ele próprio a porta. Aqui os gnósticos estão fazendo
exatamente a mesma coisa que o psicólogo junguiano faz. A imagem é a entidade viva, e
tanto gnósticos quanto psicólogos não vêm o menor problema em retirá-la de seu contexto,
pois aquilo que lhes interessa é somente a imagem viva.

Em nossa prática diária encontramos inúmeros sonhos com portas e portais, especialmente
com aqueles que se abrem para estranhas e novas regiões. Se estivermos atentos para estas
imagens específicas como constituindo organismos psíquicos, poderemos reconhecê-las e
seremos capazes de usar este material para amplificá-las — se em nenhum outro lugar mais,
pelo menos em nossa mente. (Não é muito recomendável despejar demasiado material de
amplificação nos pacientes: eles podem até afundar nele.) Contudo é muito importante,
enquanto escutamos o relato de um sonho, que estas imagens ressoem em nossa mente.
Elas sem dúvida afetarão a nossa atitude em relação ao sonho, e esta atitude maior e mais
ampla acabará por comunicar-se a si própria para o inconsciente do paciente.

Jung continua esta série de imagens acerca da totalidade original com o texto de Hipólito
relacionado à Múmia de Paracelso:

Os frígios, prossegue Hipólito, chamam-no Papa (Átis). Ele é portador de paz e acalma “a luta
dos elementos” travada no corpo humano ... Este Papa chama-se também nekys (cadáver), pois
está sepultado no corpo assim como uma múmia num monumento funerário. Em Paracelso re-
torna uma concepção semelhante a esta ... “A vida, realmente, não é outra coisa senão uma es-
pécie de múmia embalsamada que o corpo mortal protege dos vermes mortais”. O corpo vive
unicamente a partir da Múmia, através da qual “o homem que peregrina como estrangeiro” do-
mina o corpo físico [Jung dá aqui diversos sinônimos para esta Múmia, que também é] “a verda-

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deira porta pela qual foram feitas todas as criaturas” ... A Múmia nasceu juntamente com o cor-
po e o mantém ...

A Múmia de Paracelso ... corresponde em tudo, portanto, ao homem primordial, que constitui o
microcosmo no interior do homem mortal. (par. 334s)

Temos aqui uma estranha e interessante ideia, a de que existe um segundo corpo alojado
no interior de nosso corpo visível, como se fosse um cadáver sepultado numa tumba. Este
segundo corpo é de uma natureza diferente da do corpo visível. Ele está constituído como
se fosse uma múmia preservada — ele é imortal, um precursor imortal de nossa existência
temporal e mortal. A imagem é semelhante à ideia da relação do esqueleto com a carne do
corpo. A carne se desintegra muito rapidamente após a morte, embora o esqueleto persista
indefinidamente. A ideia de Paracelso a respeito da Múmia, e a ideia gnóstica acerca do
cadáver sepultado no corpo, são ambas similares. Ambas se referem à entidade interior
imortal que existe antes e após nossa existência temporal. Ela é eterna, e encontra-se fora
do tempo.

Nesta altura Jung afasta-se da Bíblia para aproximar-se da mitologia grega, em uma refe-
rência, feita no parágrafo 338, a uma passagem da Odisséia, na qual Menelau, tentando
voltar de Troia, não sabe qual o caminho que deve tomar para casa. Ele descobre então que
deve capturar Proteus, o rei marinho, que emerge da água do mar à noite juntamente com
um bando de focas. Para capturá-lo, Menelau tem que se disfarçar sob uma malcheirosa
pele de foca (Homero, em sua obra, explora bastante o quão malcheirosa e desagradável é
esta pele de foca). Quando Proteus surge das profundezas com seu bando de focas, Mene-
lau rapidamente o agarra. Embora Proteus seja capaz de metamorfosear-se em todas as
formas que existem, Menelau o segura independente das formas que assume, até que final-
mente Proteus diz: “Muito bem, o que você quer de mim?”. Menelau diz: “Quero saber
como voltar ao meu lar na Grécia”, e Proteus finalmente lhe ensina.

Trata-se aqui de uma maravilhosa imagem para propósitos psicológicos, pois expressa de
maneira muito significativa a maneira pela qual nós devemos, algumas vezes, lidar com o
inconsciente. Quando precisamos de algo do inconsciente, devemos agarrá-lo e segurá-lo.
Uma certa espécie de imaginação ativa faz com que dirijamos uma atenção deliberada ao
inconsciente até que ele finalmente nos proporcione aquilo que precisamos saber.

A próxima imagem da totalidade original, no parágrafo 340, é a imagem do ponto indivisí-


vel.127 Esta citação de Monoimo, na qual a mônada é descrita como sendo o ponto, evoca
a imagem do Self como sendo o ponto, a origem e centro indivisível de todas as coisas. A
geometria grega começa com a descrição do ponto: ele nada mais é do que posição, e ele
não possui nenhuma magnitude. Quando o ponto se move, ele gera uma linha; quando a
linha se move, ela gera um plano; quando um plano se move, ele gera um sólido; e quando
o sólido se move, surgem então espaço e tempo.

Pois bem, da mesma maneira como se dá com nossa existência consciente, tudo o que po-
demos perceber na realidade espaço-temporal começa com o ponto. A geometria de Eucli-

127 Ver acima, p. 128, e também Mysterium coniunctionis, OC 14/1, par. 40.

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des bem pode ser entendida como uma vasta cosmogonia geométrica, e é esta qualidade
simbólica que fez com que ela se tornasse tão fascinante para os antigos, transformando-a
num estudo que revela a natureza do mundo. Todas estas imagens geométricas continuam
aparecendo nos sonhos de hoje.

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PARÁGRAFOS 347-365

A estrutura e dinâmica do Self


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Se nos lembrarmos do subtítulo do Aion, “estudos sobre a fenomenologia do Self”, vemos
que é uma obra bastante científica: o rigoroso método empírico de Jung fica bem claro nes-
te trabalho. Acontece que os últimos poucos capítulos do Aion são bastante difíceis de se-

0
rem entendidos, e sentimo-nos tentados a perguntar se não haveria uma maneira mais fácil
de Jung apresentar este material. Entretanto, existe uma boa razão para a sua abordagem.
Jung é rigorosamente empírico aqui, e ele nos apresenta um estudo objetivo de determina-
das imagens da psique — especificamente da psique arquetípica e do arquétipo do Self.

Para investigar a psique profunda, que é o que estamos fazendo aqui, Jung deve lidar com
suas manifestações da mesma maneira como um arqueólogo lida com os restos enterrados
de uma civilização perdida. Ele tem que escavar, e depois ordenar, classificar e apresentar
os achados, os dados reunidos em sua escavação. Isto pode ser realizado em dois lugares
quando se está estudando a psique. Podemos escavar a psique individual, em cujo caso
examinamos sonhos, fantasias e sintomas inconscientes, que são aqueles fenômenos que se
apresentam no decurso de uma análise profunda.

Mas o outro lugar no qual podemos escavar é a psique coletiva, e neste caso os dados ar-
queológicos são encontrados em religiões, mitos e contos de fadas, que correspondem aos
sonhos e fantasias coletivas. Quando Jung estuda a alquimia e o gnosticismo, ele está fa-
zendo precisamente esta segunda condição: escavando a psique coletiva, cavando abaixo de
seus fenômenos superficiais. Trata-se de um trabalho difícil, embora seja a única forma de
explorar a psique, caso queiramos manter nossa estrita objetividade e não somente impor
preconceitos teóricos sobre ela. Impor um significado apriorístico aos dados, de forma a
torná-los compreensíveis e fáceis de ser entendidos, não constitui um procedimento empíri-
co. Para sermos rigorosamente empíricos, devemos primeiro examinar os dados brutos e só
então deles extrair as conclusões, e não o contrário.

Os gnósticos e seus escritos são especialmente interessantes como fonte de produtos psico-
lógicos pelo fato de seu material ilustrar o processo de amplificação do inconsciente. Os
gnósticos bebem de duas grandes fontes da psique ocidental, mitologia grega e escrituras
judaico-cristãs, e foram capazes de assimilar estas fontes à sua própria doutrina. Jung faz
uma importante afirmação sobre esta questão em seu ensaio “A árvore filosófica”. Naquela

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obra, Jung está tratando da importância da pesquisa comparativa de símbolos, que é exa-
tamente o que o Aion é. Eis aqui sua declaração metodológica:

Em razão da natureza coletiva de uma imagem, devido à sua extensão muitas vezes é impossível
determinar seu significado a partir do material associativo de um único indivíduo. Mas como esta
determinação é de grande importância para os fins práticos da terapia, a necessidade de um es-
tudo comparativo dos símbolos se impõe à psicologia médica. Para tanto, o estudo deve remon-
tar a épocas da história humana em que a formação dos mitos se produzia sem dificuldade, isto
é, quando nenhuma crítica do conhecimento ainda se exercia sobre as representações engendra-
das e quando, por conseguinte, estados de fato desconhecidos em si mesmos se exprimiram em
formas de representação determinadas. A época desse gênero cronologicamente mais próxima
de nós é a da filosofia natural da Idade Média, que atingiu seu apogeu ... na alquimia e na filoso-
fia hermética. Tratava-se principalmente — e isto é característico — de uma filosofia de médi-
cos.128

Poderíamos também acrescentar que um exemplo mais remoto deste mesmo tipo de mate-
rial é encontrado nas fantasias dos sistemas gnósticos. O ponto crucial da afirmativa de
Jung é o de que “ainda não se exercia nenhuma crítica do conhecimento sobre a formação
das imagens”. Isto se refere a uma época na qual existia uma atitude ingênua que ainda não
distinguia claramente entre sujeito e objeto, ou entre fantasia e realidade externa. No mo-
mento em que surge alguma sofisticação epistemológica na maneira de pensar das pessoas,
ou seja, uma habilidade de criticar o próprio processo do “conhecimento”, então paramos
de projetar ingenuamente imagens da fantasia interior no mundo exterior, pois passa a ha-
ver um pressentimento de que, assim o fazendo, revelamos algo a respeito de nós mesmos.
Surge então uma espécie de pudor, de autocrítica de tal comportamento. É óbvio que ainda
existe à nossa volta uma quantidade enorme de pessoas que possuem muito pouco ou ne-
nhuma crítica epistemológica, mas Jung está tratando a respeito do desenvolvimento cultu-
ral de nossa raça. Ora, nossa raça só começou a aprender a crítica epistemológica por volta
do século 16. Os filósofos que pela primeira vez trataram deste assunto foram Locke, Ber-
keley e Hume.

Jung retorna então aos escritos de Monoimo, do qual ouvimos falar no capítulo anterior em
referência ao ponto enquanto imagem da totalidade original. Monoimo foi um gnóstico do
segundo século cuja vida nos é completamente desconhecida, exceto pelo fato de que ele
era conhecido pelo nome de “o Árabe”. A passagem de Monoimo que Jung cita, que é
transcrita de Hipólito, é bastante significativa do ponto de vista psicológico por ter se origi-
nado no século segundo:

Procura-o dentro de ti mesmo, e aprende quem é Aquele que se apropria de tudo o que há em
ti, e diz: meu Deus, meu Deus, meu entendimento, minha alma, meu corpo; aprende de onde
provém o afligir-se e o alegrar-se, o amar e o odiar, e estar acordado sem querer e o estar com
sono involuntariamente, e o aborrecer-se sem querer, e, quando tiveres investigado isto cuidado-
samente, encontrá-lo-ás dentro de ti mesmo como Uno e como múltiplo, à semelhança daquele
ponto [keraian], e descobrirás dentro de ti mesmo a passagem e a saída. (par. 347)

128 Estudos alquímicos, OC 13, par. 353.


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Um psicólogo moderno não saberia expressar-se de maneira mais sucinta. Esta passagem
nos ensina que devemos estabelecer uma discriminação entre nossa própria vontade e a
vontade do inconsciente. A habilidade de fazer uma tal distinção é a descoberta crucial no
processo de encontrarmo-nos com o Self. Antes de tudo devemos perceber que de forma
alguma somos um só, mas dois: existe um Outro dentro de nós. À medida que esta desco-
berta vai tomando corpo para nós, descobrimos ao mesmo tempo de que muito daquilo
que fazemos diariamente em nossas vidas não foi, afinal, escolha nossa. Passamos então a
descobrir a nós mesmos fazendo coisas que jamais pretendíamos, isso sem levar em conta
os pequenos deslizes e acidentes e demais grosseiros desafios que a todo momento suce-
dem ao nosso livre arbítrio. Na medida em que nos tornamos mais e mais conscientes desta
nossa duplicidade, percebemos a realidade do Self. É precisamente a isso que Monoimo se
refere.

Jung vê um paralelo deste texto com algumas ideias do Upanishads, as antigas escrituras
hindus. A palavra “upanishad” significa literalmente “sentar-se perto de maneira devota”, o
que sugere que, ao sentar-se perto, alguém recebe uma instrução secreta de um mestre e,
desta forma, uma espécie de conhecimento divino é comunicada. Os Upanishads foram
escritos em sânscrito e estiveram indisponíveis para quem não conhecia o idioma até apro-
ximadamente o ano de 1650 d.C., quando então foram traduzidos para o persa. Os textos
não chegaram à Europa ocidental senão em 1801, quando a tradução persa foi então re-
traduzida para o latim.

A influência dos Upanishads logo se tornou patente. A pessoa mais notável a ser influenci-
ada por eles foi Schopenhauer, pois toda a sua filosofia pode ser considerada como uma
forma ocidentalizada e elaboração unilateral dos Upanishads. Outro autor que sofreu uma
profunda influência dos textos hindus foi Ralph Waldo Emerson. Nietzsche também foi bas-
tante influenciado por eles, e o mesmo se deu com Jung, tanto de maneira direta quanto
através das obras de Schopenhauer e Nietzsche. Jung tomou o termo “Self” dos Upani-
shads, e cita a obra nos parágrafos 348 e 349. Um trecho ligeiramente expandido desta
mesma citação torna-a mais vívida e gera um maior impacto:

Sob o comando de quem a mente pensa? Quem mantém o corpo vivo? Quem leva a língua a fa-
lar? Quem é aquela refulgente Criatura que dirige o olho em direção à forma e à cor e o ouvido
ao som?

O Self é o ouvido do ouvido, a mente da mente, a fala da fala. Ele também é a respiração da
respiração e o olho do olho ... A ele o olho não vê, nem a língua expressa, nem a mente apre-
ende. Dele nada sabemos nem somos capazes de algo ensinar. Diferente é ele do conhecido, e
diferente é ele do desconhecido ... Aquilo que não é compreendido pela mente, mas através do
qual a mente compreende — conhece-o como sendo Brahman.129

Aquele que habita em todos os seres, mas deles se encontra separado, a quem nenhum ser co-
nhece, de cujo corpo todos os seres são feitos e que controla todos os seres a partir do interior
deles — ele, o Self, é o Governante Interior,130, o Imortal.

129 Kena Upanishad, trad. Swami Prabhavananda e F. Manchester.


130 Brihadakanyaka Upanishad, trad. Swami Prabhavananda e F. Manchester.
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Estas palavras foram escritas antes do ano 500 a.C, e elas demonstram o quanto o Oriente,
especialmente a Índia, está muito além do Ocidente em sofisticação psicológica.

Jung continua sua multiforme descrição do Self e seu relacionamento com a consciência
dizendo:

O Self é uma verdadeira complexio oppositorum, com o que, porém, não queremos dizer que
ele seja em si e por si, talvez, de natureza tão antitética. É igualmente possível, com efeito, que o
seu aparente caráter paradoxal nada mais seja do que um reflexo das mudanças enantiodrômicas
ocorridas na disposição da consciência, que ora é favorável, ora desfavorável à totalidade. O
mesmo se pode dizer do inconsciente em geral, uma vez que as formas apavorantes deste último
podem ser provocadas por medo do consciente em relação ao inconsciente. Não se deve subes-
timar o significado da consciência, e por isto se recomenda que se procure de algum modo um
nexo causal entre as manifestações contraditórias do inconsciente e as disposições da consciên-
cia. (par. 355)

Jung refere-se aqui a algo que eu gostaria de enfatizar e atribuir a ele o nome fantasia de
Princípio da Reciprocidade. A palavra “recíproco” é utilizada aqui da mesma maneira que é
usada na matemática. Na matemática, sabemos que todo número tem o seu recíproco. A
reciprocidade de 2/3 é 3/2; a reciprocidade de 5 é 1/5. Para encontrarmos o recíproco,
devemos transformar um número inteiro em uma fração ou pelo menos transcrevê-lo em
notação fracionada. Em outras palavras, transformá-lo em um termo duplo. Quando se
multiplicam dois números recíprocos quaisquer, o resultado é sempre 1. Acredito que isto
seja bastante significativo do ponto de vista psicológico.

O Princípio de Reciprocidade psicológico é aquele por meio do qual o inconsciente respon-


de sempre inversamente ao Eu. A relação do Eu a qualquer qualidade ou conteúdo psicoló-
gico particular pode ser expressa sob a forma de um termo fracionário, e então, de acordo
com o Princípio de Reciprocidade, a manifestação inconsciente daquela qualidade será a
recíproca da manifestação consciente. Por exemplo, digamos que estamos lidando com
uma escala de agressividade de zero a dez. No zero, uma pessoa seria uma completa vítima,
uma presa indefesa com joelhos trêmulos buscando fugir de uma dada situação. Já uma
pessoa situada no outro extremo da escala seria um brutal agressor — perseguindo e ata-
cando. Ora, digamos que nosso Eu em particular situe-se no reino das vítimas, com uma
fração de agressividade de somente 2/10. Pelo Princípio da Reciprocidade, então, nosso
inconsciente terá uma agressividade de 10/2.

Em outras palavras, quando o Eu se encontra muito identificado com o papel de vítima, o


inconsciente terá o agressor constelado em seu interior e começará a caçar o Eu. O Eu,
obviamente, estará sempre em fuga. Todos nós sabemos, a partir da observação dos ani-
mais, que se um gato foge, por exemplo, o cão irá persegui-lo. Entretanto, se o gato even-
tualmente para e enfrenta a situação, o cão imediatamente se detém e pode até fugir do
gato. Isso ilustra de que maneira a consciência funciona. O Princípio de Reciprocidade se
mostra verdadeiro não somente para o indivíduo em relação a si mesmo, mas também para
o relacionamento do indivíduo com seu meio ambiente. Se um orador se comporta como
um fraco na tribuna, em pouco tempo toda a audiência se porá contra ele.

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Esta é a maneira pela qual o inconsciente funciona, e esta é a maneira pela qual se dá a
transferência e contratransferência. Assim, diante de um paciente que esteja por demais
identificado com o papel de vítima, não importa quão gentil e delicado possa ser o analista,
em breve este se flagrará perseguindo o paciente, porque é justamente isto o que estará
constelado em seu inconsciente. Este princípio também é verdadeiro para todas as outras
possíveis qualidades de um paciente. Tipicamente, um paciente vem consultar um analista
porque está se sentindo doente, frágil ou ferido, e isso constela inevitavelmente no analista
as energias contrárias de saúde, poder e cura. Na medida em que aquelas qualidades nega-
tivas encontram-se expressadas na personalidade do analista, elas jamais serão capazes de
ajudar o paciente. A tarefa do analista constitui precisamente em reverter as frações recí-
procas, em devolver ao paciente tudo o que foi constelado no analista. Isto não é uma coisa
fácil de se fazer, mas é bastante útil estarmos pelo menos informados de o que é, afinal, que
deve acontecer, e acredito que o Princípio da Reciprocidade seja muito útil nestas situações.
Prefiro usar este termo em vez de simplesmente “reciprocidade”, que de maneira geral evo-
ca a ideia de “mutualidade”.*

Outro aspecto do relacionamento entre a consciência e o inconsciente é apontado por Jung


no parágrafo 355:

Entre a consciência e o inconsciente existe uma espécie de “relação de indeterminação” porque


o observador não pode separar-se do objeto observado e também porque este é perturbado por
aquele pelo simples ato de observar. Isto significa que uma observação exata do inconsciente só
é possível à custa da observação da consciência, e vice-versa.

A expressão usada por Jung, “relação de indeterminação”, refere-se ao Princípio de Incer-


teza da física nuclear que foi inicialmente formulado por Werner Heisenberg. Este princípio
afirma que a posição e a velocidade de uma partícula subatômica jamais podem ser deter-
minadas com precisão ao mesmo tempo, mesmo que de maneira teórica. Qualquer tentati-
va de medir com precisão a velocidade de uma partícula, um elétron por exemplo, imedia-
tamente compromete su4a velocidade de maneira impossível de ser prevista; da mesma
maneira, ao observar uma partícula alteramos inevitavelmente a sua posição; mas se a posi-
ção é que é medida, então é a velocidade que é alterada. O próprio ato de observação de
partículas subatômicas altera a sua condição, de maneira que leituras precisas e objetivas
tornam-se impossíveis. De maneira genérica, o Princípio de Incerteza estabelece que qual-
quer observador dos fenômenos subatômicos é inevitavelmente lançado em meio aos dados
que observa de maneira a alterá-los de forma indesejável.

É precisamente o mesmo fenômeno que ocorre na observação do inconsciente: ele sim-


plesmente é alterado pelo processo de observação. Isso significa que de forma alguma exis-
te algo como uma observação absolutamente objetiva de dados psicológicos advindos do
inconsciente, pois, para que fossem observados, o observador precisou vê-los, tocá-los e
devolvê-los e, para realizar tudo isso, o observador como que deixou suas impressões digi-
tais neles. Mas o inverso também é verdadeiro. Tanto o observador quanto o observado
* N. do T.: O autor faz aqui um jogo de palavras em inglês difícil de ser reproduzido em português. A expres-
são original para Princípio de Reciprocidade é “reciprocality principle”, enquanto que a palavra que ele evita
usar, por ser ambígua, é “reciprocity”.

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influenciam um ao outro. Não somente o Eu influencia o inconsciente quando o observa,


mas também o inconsciente, o Self, modifica o Eu que o está observando. Existe um aspec-
to “olho-de-Deus” do Self que observa o Eu, da mesma maneira que o Eu, quando atinge
um determinado nível de desenvolvimento, pode observar e afetar o Self. 131 É a isso que
Jung se refere em sua observação a respeito da “relação de indeterminação”.

Jung então retorna aos símbolos gnósticos do Self, especificamente ao Quatérnio de Moisés
(que já foi mencionado no capítulo precedente). Aqui ele chega à conclusão de que assim
como há um Adão superior e inferior na tríade que dá origem ao Quatérnio de Moisés, as-
sim também deve haver um quatérnio superior e inferior das quatro figuras da família de
Moisés. As figuras 21 e 22 reproduzem o diagrama de Jung desta situação. Jung irá desen-
volver mais ainda estas estruturas à medida que o Aion prosseguir. Para recapitular o Qua-
térnio de Moisés ou Anthropos: primeiro há o Adão superior, uma figura que se desdobra
em outras quatro. Estas quatro, então, sintetizam-se, ou unem-se, num Adão inferior. As
quatro figuras do quatérnio são Moisés, Jetro, Miriam e Sephora.

Moisés mata o escravo egípcio e foge para Madiã. Lá ele então encontra Jetro, seu futuro
sogro, e casa-se com sua filha Sephora. A quarta figura é Miriam, a irmã de Moisés. Miriam
havia salvado a vida de Moisés na sua infância, escondendo-o numa cesta em meio aos
juncos para que fosse encontrado pela filha do faraó. Em uma das versões, Miriam é tida
como profetiza e vidente, de maneira que este seu aspecto positivo caracteriza a Miriam
superior. Entretanto, em uma outra versão do mesmo texto, ela se enfurece com Moisés e o
amaldiçoa por haver se casado com Sephora. Ao fazê-lo, Miriam incorre na cólera de Iah-
weh, que a deixa toda coberta de lepra branca, até que ela reconsidere seu ato.

A Miriam vingativa e raivosa é a Miriam inferior, colocada no Quatérnio da Sombra mos-


trado na figura 22. Sephora, filha de Jetro, é chamada, em um dos textos, de “a etíope
negra”. Em tal qualidade sombrosa, ela é a Sephora negativa e relegada ao Quatérnio das
Sombras. Já em outras escrituras ela é a sábia Sephora e, então, ocupa o Quatérnio do
Anthropos. A mesma ambiguidade se aplica a Jetro, o sacerdote de Madiã que, portanto,
possui a Sabedoria que acompanha o conhecimento sacerdotal, embora por outro lado se
encontre fora do reino tradicional israelita, constituindo o “estrangeiro pagão”. Sob este
aspecto, ele então representa o Jetro inferior. E o mesmo se dá com os dois aspectos de
Moisés, o Moisés superior e o Moisés inferior ou carnal.

O que se pode depreender até aqui do Quatérnio de Moisés ou Quatérnio do Anthropos é


que aquilo que é chamado de Adão inferior na figura representa a nós, o nosso Eu, o nosso
Eu empírico e ordinário. O Eu ocupa uma posição intermediária em que, se fitar em uma
direção, depara-se com uma quaternidade luminosa, brilhante e espiritual. Já se fitar na
direção oposta, ele se defronta com uma quaternidade escura, sombrosa e duvidosa na
qual, mais adiante, pode-se ver a serpente em sua base. Entretanto ainda não estudamos
este quatérnio completamente, pois ele se tornará ainda mais complexo.

131 Ver meu Mysterium lectures, p. 65s.

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PARÁGRAFOS 366-380

A estrutura e dinâmica do Self (cont.)


23
Continuando com o material a respeito dos aspectos sombrios do Self, que anteriormente
havia introduzido por meio do Quatérnio das Sombras, Jung toma uma imagem gnóstica:

0
Ao Deus bom e perfeito se contrapunha um Demiurgo imperfeito, vaidoso, ignorante e incapaz.
Havia potências arcônticas que entregaram aos homens o chirographum (manuscrito) de perdi-
ção, do qual Cristo deveria libertá-los. (par. 366)

Na nota de rodapé 25, Jung cita um pequeno trecho de Colossenses. A referência torna-se
mais compreensível se lermos uma porção maior do trecho. Em Colossenses 2, 10-5 (BJ),
Paulo descreve aos membros da congregação a sua condição bem-aventurada, agora que
fazem parte da igreja:

... e nele [Cristo] fostes levados à plenitude. Ele é a Cabeça de todo Principado e de toda Autori-
dade. Nele fostes circuncidados, por uma circuncisão feita não por mão de homem ... Fostes se-
pultados com ele no batismo, e também ressuscitastes com ele, pela fé no poder de Deus, que o
ressuscitou dos mortos. Vós estáveis mortos pelas vossas faltas e pela incircuncisão de vossa
carne e ele vos vivificou juntamente com Cristo. Ele nos perdoou todas as nossas faltas: apagou,
em detrimento das ordens legais, o título de dívida [chirographum] que existia contra nós. E o
suprimiu, pregando-o na cruz, na qual ele despojou os Principados e as Autoridades, expondo-os
em espetáculo em face do mundo, levando-os em cortejo triunfal.

A ideia que está sendo expressa aqui é que os seres humanos foram corrompidos pelo ma-
nuscrito dos arcontes maléficos e de que Cristo os redime deste manuscrito compromete-
dor. Os seres humanos são então redimidos daquilo que é chamado de “principados e auto-
ridades”. A palavra grega que foi traduzida por “principados” é archos. Outra tradução pos-
sível desta palavra é “poderes cósmicos”. Este manuscrito do qual trata Paulo constitui mais
um exemplo dos “sinais do pai” que a serpente trouxe para baixo, que já foram discutidos
numa passagem acima. Neste caso, entretanto, o manuscrito é negativo. Quando a alma
nascitura descende em direção à encarnação, para a sua existência terrena, ela atravessa as
esferas planetárias. À medida que vai baixando, a alma acaba por tomar sobre si as diversas
qualidades de cada uma das divindades planetárias, de maneira que quando ela finalmente
chega à terra está sobrecarregada de todas elas, sobrecarregada por assim dizer com o ma-
nuscrito. Do ponto de vista psicológico, este manuscrito se refere ao nosso transfundo an-
cestral ou arquetípico, que nos marcou indelevelmente com todos os seus padrões.
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O manuscrito também representa o destino de uma pessoa. Um exemplo disto é o manus-


crito que surge na parede do palácio real durante a festa do rei Baltazar (Daniel 5, 5 e 24).
Baltazar profanou os vasos sagrados do santuário ao trazê-los para seu banquete e ao usá-
los para tomar vinho. Foi então que surgiu a inscrição manuscrita nas paredes do palácio.
Ninguém foi capaz de entendê-la até que Daniel foi trazido à presença do rei e determinou
o que a inscrição significava: “Fostes pesado na balança e considerado devedor”. Trata-se,
aqui, de uma manifestação do destino que é anunciada das profundezas do inconsciente.

Há algum tempo atrás fiquei sabendo de uma história que reproduzia este mesmo tema. A
imagem básica era a de um homem que descobria um manuscrito que aparecia nas paredes
de seu closet de roupas, cujo significado era incapaz de decifrar. A cada dia ele examinava
seu closet e lá haviam surgido novas palavras. A situação foi se tornando cada vez mais
agourenta. Mais tarde descobriu-se que era sua esposa, que estava ficando louca, quem
estava escrevendo nas paredes do armário, embora aqui estejamos diante da mesma ima-
gem arquetípica que já encontramos na história de Baltazar.

A discussão de Jung acerca dos aspectos sombrosos da psique acaba conduzindo à ideia do
mergulho que a mente moderna realiza em direção à escuridão da matéria:

A ciência moderna nos transmitiu um conhecimento de incomparável valor acerca da matéria te-
nebrosa ... e fez das raízes da existência vital o objeto de suas pesquisas. Deste modo, o espírito
humano mergulhou profundamente no mundo sublunar da matéria, repetindo, assim, o mito
gnóstico de Nous, o qual, contemplando sua imagem nas profundezas, desce às regiões inferio-
res, onde é enlaçado e tragado pela physis [natureza]. (par. 368)

A imagem gnóstica de Nous afundando na matéria corresponde à história dos anjos decaí-
dos da maneira como é descrita no Livro de Enoque, um texto apócrifo. Neste livro, há o
relato de um determinado momento um pouco antes de acontecer o dilúvio de Noé:

Deu-se então, após os filhos dos homens terem-se multiplicado naqueles dias, que filhas nasce-
ram deles [dos homens], elegantes e belas. E quando os anjos, os filhos dos céus, as contempla-
ram, ficaram enamorados delas, dizendo uns aos outros: Vamos, escolhamos para nós esposas
da progênie dos homens, e nelas geremos filhos. (7, 1s)

Os anjos decaíram dos céus e copularam com mulheres humanas (que, por esta razão, de-
ram à luz gigantes), ao mesmo tempo em que ensinaram aos homens as artes e as ciências.
Foram os anjos que revelaram aos homens os segredos celestes. A consequência disso foi
toda a ausência de religiosidade e corrupção que deu origem ao dilúvio. Estamos aqui diante
do mesmo tema ao qual Jung está se referindo, um tema que ocorre justamente em nossa
época. Já tive oportunidade de, algumas vezes, ver esta imagem de gigantes gerados por
anjos decaídos em sonhos modernos. Em um deles, uma pessoa que se encontrava andan-
do pela New Jersey Palisades observando Nova Iorque vê a cidade sendo invadida por gi-
gantes alienígenas extraterrestres: “Toda a terra havia sido arrasada ... bolas de fogo cruza-
vam os céus .. era o fim do mundo ... Uma grande raça de gigantes havia chegado à terra
vinda do espaço exterior”.132 À medida que o sonhador observava, via gigantes apanhar

132 Ver meu Criação da consciência, p. 27.

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pessoas com as mãos e comê-las. Trata-se do mesmo motivo descrito no Livro de Enoque e
comentado por Jung no parágrafo 368.

Já no parágrafo 370 Jung volta a discutir o Quatérnio de Sombras, dizendo:

Por “sombra” eu designo a personalidade inferior, cujo estágio mais baixo não se pode distinguir
da constituição impulsiva do animal. A própria ideia de prosphyes psique, da “alma acrescida” de
Isidoro, já encerra este ponto de vista.

A expressão grega traduzida como “alma acrescida” deriva da palavra prospio, que significa
“crescida junto” ou “adicionada”. A raiz etimológica básica phaeo, que significa “crescer”
origina-se da mesma raiz que deu origem à palavra physis, que geralmente é traduzida por
“natureza”. Assim, a implicação é a de que um determinado aspecto da psique cresceu a
partir dela, tal qual um apêndice. Jung refere-se à citação de Isidoro, que pode ser encon-
trada nos escritos de Clemente de Alexandria. Uma seção daquele texto pode esclarecer a
ideia de “alma acrescida”:

Os partidários de Basilides têm o hábito de chamar as paixões humanas de apêndices, afirmando


que elas são, em essência, determinados espíritos aderidos à alma racional em razão de alguma
perturbação ou confusão original; também afirmam que outros espíritos espúrios e heterogêneos
da natureza se desenvolvem aderidos à alma humana, como os de um lobo, um macaco, um le-
ão ou um bode ... [estes apêndices] acabam por tornar os apetites luxuriosos dos homens seme-
lhantes aos dos animais ... Os homens, de acordo com Basilides, adquirem a aparência de um
cavalo estúpido, de acordo com o mito poético, na medida em que abrigam em seu corpo único
tantos espíritos diferentes.133

Esta ideia também é bastante semelhante ao símbolo do manuscrito, pois uma vez mais a
alma nascitura adquiriu os apêndices ou excrescências por ocasião de sua descida através
das esferas planetárias, recebendo de cada um dos arcontes planetários um apêndice de sua
própria natureza. Macróbio diz a respeito desta imagem:

Pelo impulso do primeiro peso, a alma, tendo iniciado seu curso descendente a partir da inter-
secção entre o zodíaco e a Via Láctea, na direção das esferas sucessivas que se encontram abai-
xo, enquanto passa pelas esferas ... adquire cada atributo que mais tarde irá exercer. Na esfera
de Saturno adquire a razão e o entendimento, chamados logistikon e theoretikon; na esfera de
Júpiter, o poder de agir, chamado praktikon; na de Marte, um espírito forte ou thymicon; na es-
fera do Sol, senso-percepção e imaginação, aisthetikon e phantastikon; na de Vênus, o impulso
da paixão, epithymetikon; na de Mercúrio, a capacidade de falar e de interpretar, hermeneuti-
kon; e, na esfera lunar, a função de moldar e aumentar os corpos, phytikon.134

Um poema de Henry Vaughn, “The importunate fortune”, descreve o movimento inverso,


mostrando como a alma, com seus laços terrenos, vai gradativamente livrando-se deles. A
alma retorna para o alto através da escada cósmica, e à medida que progride devolve todos
aqueles apêndices que os arcontes lhe atribuíram por ocasião da sua descida. Ora, estas são
as imagens por meio das quais a psique descreve, com seus próprios termos por assim di-
zer, a encarnação do Eu, ou seja, a forma pela qual o Eu vem à existência pela sucessiva

133 Stromata, II, 20, 113, em Roberts e Donaldson, The Ante-Nicene Fathers, vol. 2, p. 371s.
134 Ver meu Anatomia da psique, p. 152,

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apropriação das várias entidades arquetípicas. Ao descender, o Eu toma fragmentos delas e


então os incorpora em seu próprio ser, gerando a assim chamada “alma acrescida”. Na
existência encarnada, vivemos a partir destes diversos fatores arquetípicos de maneira in-
consciente. Entretanto, mediante o processo de individuação, estas entidades arquetípicas
com as quais sempre estivemos identificados acabam por se submeter à realização conscien-
te. Este processo de conscientização separa o Eu de seus apêndices. Ele corresponde à
imagem descrita por Vaughan ascendendo a escada e devolvendo aos poderes arcônticos as
qualidades que nela foram impressas no processo de descida.135

Trata-se de uma belíssima imagem do desenvolvimento psicológico. A ideia não se baseia


numa mera teoria: na medida em que toda ela se originou por meio de um mitologema,
podemos considerar que é a própria psique que está nos contando de que maneira ela se
desenvolve.

Até aqui dois quatérnios descritos por Jung já foram examinados, os assim chamados Qua-
térnios de Moisés superior e inferior. O primeiro também é chamado de Quatérnio do Ant-
hropos, e o segundo de Quatérnio da Sombra, e este último tem, em sua extremidade infe-
rior, a serpente. Porém Jung agora constrói outro quatérnio abaixo da serpente, que ele
chama de Quatérnio do Paraíso. Esta ideia deriva de Hipólito, uma citação que já foi discu-
tida anteriormente.136 Aqui está a essência dela:

[Os gnósticos naassenos] afirmam que o Éden é o cérebro ... que se encontra firmemente envol-
vido por mantos envolventes, como no céu. Mas eles supõem que o homem, considerado so-
mente como sua cabeça, é o Paraíso, e que portanto “aquele rio que nasce no Éden”, ou seja no
cérebro, “é dividido em quatro torrentes, e que o nome do primeiro rio é Phison, [que se refere
ao olho] ... o do segundo rio é Gihon ... [que se refere à audição e ao ouvido]; o quarto rio é o
Tigre [que se refere ao olfato e ao nariz] ... E o quarto rio é o Eufrates. Este, afirmam eles, repre-
senta a boca, que é a passagem para fora das preces, e a passagem para dentro do alimento. [A
boca] torna feliz, nutre e molda o Homem Espiritual Perfeito.137

A água do Eufrates é “a água que se encontra acima do firmamento”, e ela é também a


água a respeito da qual Cristo se referia quando disse: “Se conhecesses o dom de Deus, e
se soubesses quem é que te diz: ‘Dá-me de beber’, tu é que lhe pedirias, e ele então te daria
a água viva!” (João, 4, 10).

Ora, Jung agora combina o Quatérnio de Moisés de origem gnóstica com aquilo que ele
chamou de Quatérnio do Paraíso, que está representado na figura 23. Neste quatérnio a
serpente se divide nos quatro rios do Éden, para depois se unir novamente no lapis. Jung
comenta:

135 Esta questão é mais amplamente discutida em meu Mysterium lectures, p. 154s.
136 Ver acima, capítulo 19, p. 139.
137 Roberts and Donaldson, The Ante-Nicene Fathers, vol. 5, p. 57.

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Entre os naassenos, o Paraíso é considerado uma quaternidade paralela ao Quatérnio de Moisés,


e de sentido análogo. Esta quaternidade é constituída pelos quatro rios do Paraíso ... A serpente
do Gênesis 3 exprime imagisticamente o numen personificado pelas árvores. Por isso ela é re-
presentada tradicionalmente junto a uma árvore, ou sobre ela. Trata-se da voz da árvore que
convenceu Eva de “que era bom comer da árvore”. (par. 372)

Já o próximo nível é o que Jung chama de Quatérnio do Lapis, representado na figura 24.
Eis como Jung nos transporta do Quatérnio do Paraíso para o Quatérnio do Lapis:

O símbolo da serpente nos conduz à imagem do Paraíso, da árvore e da terra. Em termos de his-
tória evolutiva, isto significa uma regressão, do reino animal à planta e à natureza inorgânica, cu-
jo representante máximo era, para os alquimistas, o segredo da matéria, isto é, do lapis [da pe-
dra filosofal]. (par. 374)

Como Jung diz, estamos aqui envolvidos em um movimento descendente que parte do An-
thropos celeste, o Quatérnio de Moisés superior, ao Quatérnio de Moisés inferior, à região
da sombra, através da serpente, e ainda mais abaixo ao nível da natureza, onde a árvore e
os rios do Jardim do Éden se manifestam — todo o trajeto descendente em direção à maté-
ria bruta simbolizada pela rocha, até a pedra ordinária. Aqui, Jung está falando do lapis não
como o produto final do opus alquímico, mas sim enquanto prima materia, o material ro-
choso elementar. Jung afirma que “o lapis era entendido como uma unidade e, portanto,
frequentemente figura como a prima materia em geral ... [representando] um pouco o caos
original”. (par 375)

O trabalho alquímico de lidar com a prima materia, aquele caos original, consistia na tarefa
de realizar um processo de separatio. Jung comenta:

... o lapis é composto de quatro elementos, ou deve ser formado por eles. No caos estes elemen-
tos não estão unidos ... Eles representam o estado primevo de conflito e de mútua repulsa. Esta
imagem serve para ilustrar a divisão e o desdobramento do uno original na multiplicidade das
coisas percebidas pelos sentidos. (par. 375)

Esta “divisão e desdobramento” corresponde à separação da prima materia nos quatro ele-
mentos: terra, ar, fogo e água. No parágrafo 376 Jung afirma que “a constituição do lapis
resulta de uma unificação dos quatro elementos, a qual, por seu turno, representa um des-
dobramento do estado original incognoscível, isto é, do caos”.

Assim, neste quatérnio inferior, o lapis enquanto prima materia do processo alquímico sofre
uma diferenciação para o Quatérnio do Lapis (nos quatro elementos). A seguir, aqueles
elementos separados são novamente unidos no rotundum. O diagrama do Quatérnio do
Lapis sumariza o processo alquímico e também o processo psicológico. Além disso, tam-
bém poderíamos dizer que no Quatérnio do Lapis existe uma sequência de três estados:
primeiro existe um círculo, depois um quadrado, e então um círculo novamente. A sequên-
cia da unidade original (o círculo), seguida pelo quadrado representado pelos quatro elemen-
tos, e então pela união dos quatro elementos em um círculo externo é uma imagem do du-
plo processo de análise e síntese, de separatio e coniunctio, que constitui o processo global

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do desenvolvimento psicológico. Eis aqui um sonho que se vale explicitamente desta ima-
gem:

Existem três quadrados, que são aparelhos de calefação feitos de espirais de metal ou de tubos
de neon. Eles representam meus problemas sexuais. Naquele momento eles tinham sido desco-
nectados e estavam sendo limpos. Havia um novo conceito mundial de Deus, uma ampliação de
consciência acerca da vastidão do universo. Colocada diante de um fundo como a eternidade,
uma coisa tão temporal como um problema sexual é irrelevante. A lavagem dos tubos dos aque-
cedores é, num certo sentido, uma lavagem ritual, uma limpeza dos três quadrados para permitir
que eles sejam colocados no seu devido lugar natural na vasta totalidade das coisas
Durante o sonho, minha mente brincou com a imagem visual dos três quadrados. Para mim, era
totalmente natural desenhar inicialmente um círculo dentro de cada um, e a seguir um outro cír-
culo no exterior de cada um.138

O sonho propõe uma imagem específica que descreve um estado de completude. Todos
nós começamos a vida numa condição de unidade inconsciente representada pelo primeiro
círculo. Entretanto, o decurso do desenvolvimento psicológico requer uma progressiva dife-
renciação daquela unidade, se tivermos sorte, em quatro funções que serão mais ou menos
conscientes. Porém as funções, enquanto permanecem separadas, encontram-se em anta-
gonismo umas com as outras. Para completar o processo, a unidade original tem que ser
readquirida no nível da consciência, que é representada pelo segundo círculo, o externo.

É então que a discussão acerca do lapis feita por Jung o conduz ao simbolismo do vas ou
vaso:

O simbolismo da pedra ou do lapis pode ser ilustrado também esquematicamente como uma du-
pla pirâmide [Como pode ser visto na figura 24, a conclusão deste lapis-pirâmide é o rotundum].
O elemento redondo ou rotundum é denominado por Zózimo de elemento ômega ( Ω), e como
tal representa certamente a cabeça. O vas [recipiente] é empregado frequentemente como sinô-
nimo do lapis [pedra], de modo que não há diferença entre o recipiente e seu conteúdo ... O au-
tor anônimo dos escólios no Tractatus aureus hermetis também se refere a esta quadratura e
propõe a representação de um quadrado cujos ângulos são descritos mediante os quatro elemen-
tos. No centro deste quadrado se acha um pequeno círculo [trata-se da mesma imagem do Qua-
térnio do Lapis] ... Em um capítulo posterior o autor reproduz a figura do recipiente, o “verda-
deiro pelicano filosófico”. (par. 377)

A figura 25 representa este pelicano. À primeira vista ela pode não ser tão impressionante,
mas existe um vasto material condensado neste pequeno e simples diagrama. Jung conside-
ra o “pelicano filosófico” tão importante porque acaba retornando a ele no Mysterium coni-
unctionis, onde trata a respeito dele de forma mais extensa.139 E segue adiante aqui, para
citar o “autor anônimo” referido no parágrafo 377 como dizendo, em relação à imagem do
pelicano:

138 Ver meu Ego e arquétipo, p. 280.


139 OC 14/1, par. 8-10.

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A representa o interior; em certo sentido é a origem e a fonte de onde provêm as demais letras,
sendo, ao mesmo tempo, a meta final e definitiva à qual retornam todas as outras coisas, tal co-
mo os rios que fluem de volta ao Oceano ou ao grande mar. (par. 378)

Figura 25. O verdadeiro pelicano filosófico

Esta imagem do pelicano é a mesma que a dos quatro rios do paraíso. 140 A cabeça dos
quatro rios pode ser vista, e eles fluem a partir do olho, ouvido, nariz e boca, de maneira a
formar um mandala — exatamente do mesmo modo que a imagem do “pelicano filosófico”
que simplesmente é mais abstrata. Tanto na imagem dos quatro rios quanto na imagem do
pelicano filosófico uma quádrupla entidade flui a partir da fonte central. E na verdade cria
um quadrado. Na imagem do pelicano o quadrado pode ser visto ao se conectar as letras B,
C, D e E por meio de linhas retas.

Estas imagens são tão significativas e tão merecedoras de nossa atenção e reflexão devido
ao fato de serem imagens elementares através das quais a psique manifesta os seus funda-

140 Ver acima, cap. 19, e fig. 19 na p. 141.

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mentos, a natureza de sua existência básica unificada. Em sonhos e em trabalho analítico,


encontramos infinitas variações deste plano fundamental subjacente. Esta entidade central é
descrita como sendo o vas continente, o vaso. Isto acaba por trazer à tona todo o complexo
simbolismo do vaso na psicologia.

Basicamente, o vaso representa o envoltório do Self na psique individual. Na vida humana


ordinária, este vaso continente é projetado em relacionamentos, em grupos, numa determi-
nada igreja, ou mesmo em nossas estruturas e organizações coletivas. O sentimento de es-
tar contido ou de realização que uma pessoa sente em determinado contexto depende da
conexão com o que quer que represente aquele vaso. A relação analítica também serve,
frequentemente, como uma manifestação daquele vaso. Isto não representa nenhum pro-
blema desde que seja só uma situação temporária, mas ela nunca é satisfatória caso se tor-
ne permanente: chega um determinado momento em que é necessário que o vaso encontre
o seu caminho de volta para o interior do próprio indivíduo.

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PARÁGRAFOS 381-401

A estrutura e dinâmica do Self (cont.)


24
O capítulo 14 do Aion continua com a série de imagens de quaternidade derivadas dos tex-
tos gnósticos. Anteriormente já pudemos considerar quatro quaternidades:

0
1. O Moisés superior ou Quatérnio do Anthropos
2. O Moisés inferior ou Quatérnio da Sombra
3. O Quatérnio do Paraíso com os quatro rios do Jardim do Éden
4. O Quatérnio do Lapis, representando o processo alquímico pelo qual a prima mate-
ria é dividida nos quatro elementos e então de novo sintetizada no rotundum.

Estes quatro quatérnios elaborados por Jung estão associados um ao outro por meio de
imagens comuns, e formam, juntos, uma sequência, como está indicado na parte inferior da
figura 26. Eles possuem como termo comum anthropos, homem, serpente, lapis e rotun-
dum. Entretanto, o pensamento de Jung segue mais adiante ainda e transforma a sequência
em círculo, colocando a cauda dela na boca da primeira figura. O resultado encontra-se
representado no diagrama superior da figura 26, no qual a sequência de quatérnios é trans-
formada numa estrutura circular ou quadrada. Ao ser assim representada, a imagem do
anthropos acaba por se sobrepor à imagem do rotundum, e ambas passam a ser considera-
das a mesma, de maneira que, agora, é o anthropos-rotundum que dá origem à sequência.

Mais adiante neste mesmo capítulo, Jung leva ainda mais além esta sequência e a transfor-
ma numa fórmula abstrata. Por enquanto, vamos examinar com mais detalhes este quádru-
plo quatérnio e ver o que os seus vários elementos representam psicologicamente.

As quatro entidades separadas no desenho inferior da figura 26 representam quatro diferen-


tes reinos ou aspectos da psique, e a totalidade pode se manifestar em qualquer um deles.
Quando isso acontece, surge uma quaternidade pertencente àquele determinado reino. De-
terminados simbolismos e imagens típicos estão associados a cada um destes quatro reinos.
A quaternidade do anthropos está associada ao simbolismo espiritual, e a quaternidade da
sombra ao simbolismo animal (incluindo os humanos, já que também somos animais). A
quaternidade do paraíso aparece sob a forma de imagens vegetais, e a quaternidade do
lapis está associada ao simbolismo mineral inorgânico.

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Além disso, cada um destes reinos possui uma tríade no interior de sua estrutura: eles não
somente constituem uma quaternidade, mas também contêm um processo triádico ou rela-
tivo ao desenvolvimento e crescimento. Desta maneira, temos então uma quaternidade re-
presentando o aspecto estático de um determinado reino da psique, e também uma tríade
representando o processo dinâmico de desenvolvimento por meio do qual aquele reino se
manifesta. Para resumir de maneira breve cada uma das quatro quaternidades:

O anthropos ou quaternidade espiritual

As imagens que representam este aspecto da psique pertencem às regiões superiores, aos
céus, ao celestial, e abarcam imagens de luz, de maneira que todos os fenômenos atmosfé-
ricos e cósmicos se situam aqui. O simbolismo da sublimatio aqui se encontra em casa.141
Um exemplo disso é o poema de Henry Vaughn:

Outra noite vi a Eternidade


Como um grande círculo de pura e celestial luz,
Tão calma quanto brilhante.
E à sua volta, o Tempo em horas, dias, anos
Movidos pelas esferas
Como uma vasta sombra sendo movimentada, na qual o mundo
E todo seu cortejo eram arremessados.142

Esta é uma vasta figura das imagens celestiais e cósmicas em que a ênfase se encontra na
luz. Trata-se de um clássico exemplo do anthropos ou quaternidade espiritual. Outro exem-
plo significativo pode ser a visão da rosa celeste com a qual termina a Divina Comédia de
Dante. A imagem de Dante é, em essência, uma grande rosa de luz, um outro exemplo do
simbolismo do Quatérnio do Anthropos.

A sombra ou quaternidade animal

Aqui está representado o reino inferior, escuro e carnal, simbolizado por figuras humanas
dúbias ou então por animais, incluindo os de sangue frio. Este reino refere-se ao mundo
ctônico.

Sonhos ou imagens envolvendo seres humanos dúbios ou animais em uma estrutura quá-
drupla ou circular são exemplos de quaternidade. Um exemplo clássico é os quatro filhos de
Hórus, que são guardiões divinos enterrados com o morto no antigo Egito. Um dos filhos
tem cabeça de chacal, outro cabeça de falcão, outro cabeça de cão e outro cabeça humana.
A visão de Ezequiel, que será discutida mais adiante, também inclui criaturas que são simbo-
licamente bastante similares aos quatro filhos de Hórus; cada uma destas criaturas tem qua-
tro faces. Uma das faces é a de um leão, outra é a de um boi, outra a de uma águia, e a
última a de um homem. Este mesmo simbolismo foi mantido intacto nos mandalas cristãos

141 Ver meu Anatomia da psique, cap. 5.


142 “The world”, linhas 1-7, em The complete poetry of Henry Vaughn.

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em que aparecem os quatro evangelistas, que são representados como leão, boi, águia e
homem.

Exemplos desta quaternidade também podem ser encontrados na série de sonhos de Psico-
logia e alquimia. Por exemplo, em um dos sonhos ali descritos um macaco deve ser recons-
truído dentro de um quadrado.143 Em outro sonho, animais estão sendo transformados em
homens, de novo num quadrado.144

A quaternidade do paraíso

Este reino diz respeito ao simbolismo de vegetais, plantas, árvores e jardins. Trata-se de
uma imagem da totalidade estabelecida no mundo vegetal. Árvores são elementos muito
importantes nesta categoria. Um exemplo disso é o “sonho de Liverpool” de Jung, que tem
como seu epicentro um pé de magnólia situado em meio a uma ilha iluminada por uma luz
solar perpétua.145 Na série de sonhos de Psicologia e alquimia encontramos sonhos de um
jardim que se situa sob o mar, de uma planta verdejante que cresce a partir de uma esfera,
e de uma árvore verde no interior de um círculo.146

A quaternidade do lapis

Esta quaternidade envolve estruturas quádruplas compostas por pedras, joias ou cristais, ou
então elementos que de algum modo pertençam ao mundo inorgânico. Um bom exemplo é
a imagem da Jerusalém celeste que aparece no final do Apocalipse de João. A cidade celes-
tial desce das alturas e, na medida em que deriva do céu, parece estar relacionada à quater-
nidade anthropos/espiritual. Entretanto, da maneira como é descrita, ela é toda feita de
pedras preciosas:

... [Vi uma] grande cidade, a sagrada Jerusalém, descendo ... e seu brilho era como o da pedra
mais preciosa ... As muralhas tinham doze portas. O [material com que era feita a] muralha era
jaspe, e a cidade era de puro ouro, rebrilhando como o mais puro cristal. As fundações da mura-
lha ... eram guarnecidas com todos os tipos de pedras preciosas [jaspe, safira, calcedônia, esme-
ralda, doze ao todo]. (Ap 21, 10-19, Versão Autorizada, Rei Jaime)

Temos aqui uma imagem grandiosa de uma estrutura quádrupla feita de material inorgâni-
co, de pedra — um exemplo da quaternidade do lapis.

Ora, estes quatro reinos são algo que devemos manter sempre em mente, pois a todo ins-
tante deparamo-nos com imagens oníricas relacionadas a eles. Com muita frequência as
quaternidades que encontramos não se apresentam de maneira totalmente pura, mas de
forma misturada ou sobreposta. De fato, todas as quaternidades mais diferenciadas, aquelas
que já foram submetidas ao processo da circulatio, apresentar-se-ão de maneira mais mistu-
rada. Cada um destes quatro reinos exercerá um efeito sobre o outro. Isso será discutido

143 OC 12, par. 164s.


144 Ibid., par 183.
145 Memórias, sonhos, reflexões, p. 175.
146 OC 12, par. 154, 198, 232.

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mais adiante, no último capítulo, por ocasião de uma abstração que Jung fará a respeito
dos quatérnios em uma fórmula.

Em uma de suas cartas Jung nos conta que esta fórmula está baseada na visão de Ezequi-
el.147 A visão de Ezequiel é a mais diferenciada expressão da imagem de Deus em todo o
Velho Testamento, e constitui um elemento central para toda a civilização ocidental. Sua
imagética foi reproduzida na arte cristã e nos mandalas. A mesma imagética aparece no
misticismo judaico. Gershom Sholem escreveu bastante acerca da mística merkabah, que
significa a “mística do trono ou da carruagem”.148 A visão de Ezequiel refere-se à imagem
de um grande trono-carruagem e, por fim, a psicologia profunda moderna apropriou-se da
mesma imagem e usou-a como fundamento para a mais diferenciada visualização do Self.
Isto serve para dar uma ideia da importância primordial que a visão de Ezequiel possui para
a psique ocidental. Uma descrição abreviada da visão é a que se segue. Diz Ezequiel:

Eu olhei: havia um vento tempestuoso que soprava do norte, uma grande nuvem e um fogo
chamejante ... e no centro, algo com forma semelhante a quatro animais ... Cada um deles tinha
quatro faces e quatro asas ... Sob suas asas havia mãos humanas voltadas para as quatro dire-
ções ... quanto às suas faces, tinham forma semelhante à de um homem, mas os quatro apresen-
tavam face de leão do lado direito e todos os quatro apresentavam face de touro do lado esquer-
do ... todos os quatro tinham face de águia ... no meio dos animais havia algo como brasas ar-
dentes, com a aparência de tochas, que se movia por entre os animais ...

Olhei para os animais e eis que junto aos animais de quatro faces havia, no chão, uma roda para
cada um deles ... O aspecto das rodas e a sua estrutura tinham o brilho do crisólito. ... [Elas po-
diam se mover] nas quatro direções. A sua circunferência era alta e formidável, e sua circunfe-
rência estava cheia de reflexos em torno ... a borda das rodas estava cheia de olhos, e quando os
animais se moviam, as rodas se moviam junto com eles ... ao pararem, elas paravam ...

Sobre as cabeças dos animais havia algo que parecia uma abóbada celeste, brilhante como o
cristal ... Eu ouvia o ruído de suas asas, semelhante ao ruído de grandes águas ...

Por cima da abóbada que ficava sobre suas cabeças havia algo que tinha aparência de uma pedra
de safira em forma de trono, e sobre esta forma de trono, bem no alto, havia um ser com apa-
rência humana ...

Vi um brilho como de electro, uma aparência como de fogo junto dele a partir do que pareciam
ser os seus quadris e daí para cima; a partir do que pareciam ser os seus quadris e daí para baixo
vi algo que tinha a aparência de fogo e um brilho ... [que] era como a aparência do arco que, em
dia de chuva, se vê nas nuvens. Era algo semelhante à Glória de Iahweh. (Ez 1, 4-30, Versão
Standard Revisada)

Esta é uma estupenda visão do numinosum, altamente diferenciada em uma quádrupla qua-
ternidade. Trata-se de uma quaternidade de criaturas e rodas, embora cada criatura seja
uma quaternidade subordinada, assim como aquelas da figura 25.

147 Cartas, vol. 2, p. 288-9.


148 Ver As grandes correntes da mística judaica, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1995, p. 41s.

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No parágrafo 392 do Aion Jung faz referência a uma figura alquímica,* e então cita em
latim os versos que a descrevem. Esta é a tradução:

Tu, que imitas a obra da Natureza, deves procurar os quatro círculos que um fogo leve movimen-
ta no interior das coisas. O mais ínfimo se refere a Vulcano, enquanto o segundo representa
Mercúrio; o terceiro significa a Luna (Lua); o quarto, Apolo é considerado também o fogo da Na-
tureza. Que esta cadeia guie tuas mãos na arte.

Jung vai adiante e discute esse simbolismo. Ele se refere, antes de tudo, aos quatro elemen-
tos. De cima para baixo, os quatro elementos são terra, água, ar e fogo, e correspondem
ao sol, lua, Mercúrio e ao fogo terrestre, Vulcano. Apolo ou sol refere-se à terra. A leitura
cuidadosa do texto indica que este agrupamento encontra-se justificado e que de forma al-
guma é arbitrário, embora seja surpreendente.

Todos estes quatro elementos são, por sua vez, relacionados por Jung aos quatro estados
de agregação da matéria: sólido, líquido, gasoso e chamejante. A partir da imagem da figura
podemos perceber que o denominador comum dos quatro elementos é o fogo, ou, em ou-
tras palavras, energia. Mas o que significaria isso do ponto de vista psicológico? Tenho para
mim que isso significa que os conteúdos psíquicos são agregações de energia psíquica ou
libido. Isto nada mais é do que afirmar exatamente aquilo que a física moderna descobriu:
que matéria e energia são duas expressões diferentes do mesmo fenômeno. Hoje sabemos
que a matéria pode ser transformada em energia (E = mc2). Esta imagem indica que o
mesmo princípio se aplica à psique: conteúdos psíquicos existem em virtude de seus conte-
údos energéticos.

Da mesma maneira, também podemos afirmar que seu modo de manifestação é determina-
do pelo nível de ativação da energia. Um conteúdo inconsciente ou complexo pode perma-
necer completamente silencioso até que seja ativado. Enquanto houver somente uma pe-
quena carga de energia, trata-se de terra, por assim dizer: ele se encontra no mais sólido
dos estados. Porém, quando é aquecido, ou seja, se ele for ativado, então ele pode se trans-
formar em água, ou ar, ou fogo. Esta é uma ideia a respeito da qual deveríamos refletir bas-
tante: considerar que os conteúdos psíquicos são todos manifestações energéticas que apa-
recem sob diferentes modos, dependendo de seus diferentes níveis de ativação.

Jung comenta então as quatro bolas de fogo — Apolo, Vulcano, Luna e Mercúrio — e afir-
ma que três delas são inequívocas e definidas, enquanto a quarta é ambivalente; esta última
é o Mercurio duplex. Aqui estamos diante de uma típica imagem daquelas em que três enti-
dades são complementadas por uma quarta invulgar ou notável. Jung afirma no parágrafo
397:

Se considerarmos esta quaternidade sob o ângulo da tridimensionalidade do espaço [ele aqui está
se referindo ao diagrama do parágrafo 396, no qual altura, profundidade, largura e tempo en-
contram-se mencionados, no lugar de Apolo, Vulcano, Luna e Mercúrio], o tempo pode ser con-
cebido como uma quarta dimensão. Se, pelo contrário, considerarmos a quaternidade sob o pon-

* Na tradução brasileira, esta figura, denominada Quadro I, foi omitida, embora conste do original em alemão
e da tradução americana. A figura se encontra reproduzida no final deste capítulo [N. do T.]

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to de vista dos três atributos inerentes ao tempo (passado, presente e futuro), então acrescenta-
se o espaço estático, no qual se produzem as mudanças de estado, como unidade e como quarto
fator. Em ambos os casos o quarto fator representa algo de incomensuravelmente diverso ... As-
sim é que medimos o espaço por meio do tempo e o tempo por meio do espaço.

E Jung continua:

O quatérnio espaço-tempo é a condição sine qua non e a possibilidade arquetípica do conheci-


mento físico em geral — de fato, a própria possibilidade de apreendê-lo. Ele é o esquema orde-
nador por excelência entre as quaternidades psíquicas. (par. 398) *

Aqui Jung está expressando uma intuição revolucionária que estabelece uma ponte entre a
psique e o mundo material. Esta ponte afirma, na verdade, que nossa habilidade de perce-
ber, de atuar e de nos relacionar com todo o mundo físico da matéria constitui uma expres-
são do Self, da quaternidade. É importante saber que esta intuição está baseada em uma
descoberta anterior do filósofo Immanuel Kant, que é vital para uma compreensão adequa-
da de Jung.

A ideia básica de Kant é a de que a percepção e a compreensão do mundo externo estão


estruturadas de acordo com formas ou categorias apriorísticas da mente. Quando percebe-
mos o mundo externo de objetos de uma determinada maneira, baseado em três dimensões
de espaço, e de maneira contínua na sequência à qual chamamos de tempo, estas estrutu-
ras de espaço e de tempo não existem de fato no mundo externo. Elas simplesmente são
estruturas que a nossa mente impõe ou projeta sob a forma de sensações físicas em estado
bruto para que possam obter sentido para nós. É a mente que cria o universo ordenado de
espaço e tempo. A descoberta de Kant foi revolucionária para a epistemologia, a ciência do
conhecimento.149

Nesta descrição da quaternidade do espaço-tempo, Jung assimila a ideia kantiana à sua


própria descoberta do Self. As implicações deste fato são imensas pela simples razão de
que elas revelam que a percepção da psique e a percepção do mundo físico se superpõem:
cada uma delas é percebida através do órgão chamado Self. Jung alude a algo neste sentido
em sua observação do parágrafo 381:

A quaternidade é o esquema ordenador por excelência, comparado à retícula do telescópio. Ela


constitui um sistema de coordenadas empregado, por assim dizer, instintivamente, sobretudo pa-
ra dividir e ordenar uma multidão caótica de coisas, como, por exemplo, a superfície visível da
terra, o círculo do ano ou um ajuntamento de indivíduos em um grupo humano.

Ora, o que Jung não afirma especificamente, mas que fica implícito, é que Kant estava fa-
zendo exatamente a mesma coisa quando fez a descoberta de que percebemos e ordena-
mos as sensações do mundo externo por meio da quaternidade da imagem espaço-tempo.
Essa imagem é uma outra versão do retículo no telescópio de nossa percepção.

* No parágrafo 399 do Aion, Jung faz referência a uma imagem, denominada Quadro II, que foi omitida da
tradução brasileira, mas que se encontra no original em alemão e na tradução americana. A figura se encontra
reproduzida no final deste capítulo [N. do T.]
149 Para uma introdução às ideias de Kant, ver Will Durant, The story of philosophy. Em português, ver, p.
ex., Col. Os Pensadores, Introdução, vol. II, pág. 490 [N. do T.].

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Jung ressalta paralelos imagísticos de tais agrupamentos em quaternidades em diversas fon-


tes, incluindo o mito clementino de criação:

Eu gostaria de mencionar ... a peculiaríssima doutrina da criação da Clementina I: Em Deus, o


pneuma e o soma (corpo) constituem uma só coisa. Os dois se separam, e o primeiro aparece
como Filho ... e o soma, pelo contrário, que é a verdadeira ousia (a essência, o ente, a substân-
cia) ou hyle (a matéria) divide-se em quatro partes, correspondentes aos quatro elementos. (par.
400)

É a partir disso que psique e outras sizígias ou pares de opostos aparecem. Mais uma vez
este material encontra-se tão condensado que acaba por se tornar difícil de entender. A
questão está elaborada aqui na figura 27.

Figura 27. A imagem clementina da Criação

O diagrama mostra o mito clementino da Criação, uma antiga imagem de


Deus que já continha em si os opostos. No alto da figura, Deus emana a partir
de si uma série de pares de opostos, a começar pelo Filho Bom ou espírito, e
pelo Filho Mau ou matéria. A matéria, a seguir, divide-se em quatro elementos,
e sua mistura dá origem ao demônio. Os pares de opostos seguintes também
emanam, posteriormente, de Deus.
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Esta imagem básica é de uma certa importância para Jung e já foi mencionada anterior-
mente, no parágrafo 99. Ali Jung falou a respeito da imagem clementina de Deus, na qual a
mão direita de Deus é boa e a mão esquerda má. Já aqui no parágrafo 400, que é uma
outra versão da mesma imagem, o Deus unitário se divide em um filho bom e um filho
mau. O filho bom constitui a mão direita, o braço direito, por assim dizer, o pneu-
ma/espírito. O filho mau é a matéria, e esta matéria depois se divide nos quatro elementos,
a partir dos quais surge o mal. Isto é somente o primeiro par de opostos. Outros opostos
que emergem do Deus unitário são céu e terra, dia e noite, macho e fêmea, luz e trevas, sol
e lua, vida e morte, Adão e Eva. Temos aqui um paralelo bastante próximo da árvore sefi-
rótica cabalística, que também constitui uma imagem do processo de emanação da divinda-
de em uma série de opostos. 150

A ideia clementina é importante para Jung pelo fato de constituir uma antiga imagem do
Deus que contém em si, de maneira explícita, os opostos, e que de maneira alguma os se-
para um do outro, mesmo sendo uma imagem explicitamente cristã expressada num con-
texto explicitamente cristão. Na verdade, foi esta imagem que veio prefigurar a concepção
jungiana do Self enquanto reconciliação de opostos.

150 Ver meu Mysterium lectures, p. 39s.

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Quadro I
Michael Maier, Atalanta fugiens, emblema 17
(conforme referido no par. 392 do Aion).

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Quadro II

Joaquim de Fiore, A árvore da história


(conforme referido no par. 399 do Aion).

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PARÁGRAFOS 402-429

A estrutura e dinâmica do Self (cont.)


25
No capítulo anterior consideramos de que maneira Jung falou do quatérnio espaço-tempo
de duas maneiras diferentes. Em uma delas, as três dimensões do espaço constituem três
dos termos do quatérnio e o tempo constitui o quarto. Na outra versão, o tempo constitui

0
três aspectos — passado, presente e futuro — e o quarto termo da quaternidade é o espaço.

Um exemplo da primeira versão apareceu no The Los Angeles Times em 8 de outubro de


1988. A experiência de quase-morte de um filósofo inglês. Sir Alfred J. Ayer, “um formidá-
vel ateu”, foi discutida ali com alguns detalhes. O filósofo relatou a experiência que teve
enquanto seu coração parou de bater durante quatro minutos. Disse ele:

Deparei-me com uma luz vermelha intensamente forte e também bastante dolorosa, mesmo de-
pois que me desviei dela. Eu estava consciente de que era aquela luz a responsável pelo governo
do universo. Entre os ministros daquela luz havia duas criaturas que estavam encarregadas de
cuidar do espaço. [Encarregados de supervisionar que o espaço fosse mantido em ordem e ope-
rante, os dois ministros haviam de alguma forma falhado, e o espaço acabou por tornar-se] um
confuso amontoado de peças de quebra-cabeça.

Ayer afirmou que se lembra de ter sentido necessidade de colocar em ordem as leis da natu-
reza que haviam subitamente se tornado caóticas, e que se o conseguisse, isso faria com
que fosse apagada a dolorosa luz vermelha que parecia “estar sinalizando que o espaço se
encontrava desordenado”. Lembrando de que a teoria da relatividade geral de Einstein trata
espaço e tempo como um todo, Ayer disse que, durante a sua experiência, percebeu que
poderia curar o desordenamento espacial operando sobre o tempo. Para restabelecer de
novo contato com os ministros,

Lancei mão do expediente de andar para cima e para baixo, acenando com meu relógio, na es-
perança de chamar a atenção deles não para mim mesmo, mas para o tempo que ele media. Isto
não deu nenhum resultado. Foi então que fiquei mais e mais desesperado, até que a experiência
subitamente terminou [e seu coração começou a bater novamente].

Aquilo com que Ayer se deparou nesta situação de “alerta vermelho” universal foi que o
espaço por alguma razão se desordenou, e ele percebeu que o que estava faltando era “o
quarto”. Foi precisamente isto que ele tentou trazer à natureza tríplice do espaço: “o quar-

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to!”, que é o tempo. A história de Ayer ilustra muito bem a ideia de Jung acerca da quater-
nidade espaço-tempo.

Jung continua então sua elaboração a respeito dos quatérnios do anthropos, sombra, paraí-
so e lapis. Nos parágrafos 403 a 407, ele comenta de que maneira esta sequência se mani-
festa no processo histórico e cultural do éon cristão. Jung vê a sequência das quatro qua-
ternidades como correspondendo ao desenvolvimento histórico da psique coletiva.

Os primeiros 500 anos do éon, até o ano 500 d.C., corresponderiam então ao quatérnio
do anthropos, o reino espiritual que reflete a atitude coletiva do período — pneumática,
espiritual e não pertencente a este mundo. O período que vai do ano 500 ao ano 1.000
d.C. corresponderia à quaternidade da sombra relacionada ao reino animal, incluindo o
homem carnal. Jung afirma que este período corresponde à época em que a Igreja se torna
mundana, perdendo sua abordagem estritamente espiritual. A Igreja desta época rebaixou-
se, por assim dizer, para relações com o homem carnal (de fato, alguns papas deste período
foram extremamente hábeis em relações carnais).

Já os anos compreendidos ente 1.000 e 1.500 corresponderiam ao quatérnio do paraíso,


que já sabemos estar conectado com o simbolismo vegetal. Jung associa historicamente
este período com a emergência e desenvolvimento da alquimia. Finalmente, o período de
1.500 a 2.000 Jung associa à quaternidade do lapis, referindo-se ao reino inorgânico da
matéria, e também à era do materialismo científico e da deificação da matéria. A ideia de
Jung é a de que todo o éon, na medida em que se refere à psique coletiva, foi um processo
de circulatio através destas quatro quaternidades.

No decurso da discussão acerca de que maneira o quádruplo quatérnio se manifesta de ma-


neira histórica, Jung faz uma interessante afirmação sintetizadora. Ele afirma que a mente
moderna não é mais capaz de conceber uma psique orientada exclusivamente para o alto,
como acontecia com a atitude pneumática original da igreja.

Foi somente Cristo que demonstrou antecipadamente ao homem esta consciência interposta en-
tre Deus e o mundo, pois ao fazer da pessoa de Cristo seu objeto de veneração, o homem foi,
gradativamente, ocupando a posição intermediária que antes pertencia somente a Cristo. Do
mesmo modo que Cristo foi crucificado entre dois malfeitores, assim também o homem foi pou-
co a pouco tomando conhecimento de sua própria sombra e de sua dualidade. Esta última, com
efeito, foi antecipada pelo duplo sentido do símbolo da serpente. Do mesmo modo que a serpen-
te representa, a um só tempo, a força curativa e a força corruptora, assim também um dos mal-
feitores se acha orientado para cima e o outro para baixo, e deste modo a sombra significa tam-
bém, por um lado, uma fragilidade deplorável e condenável e, por outro, uma instintividade sadia
e uma condição indispensável para um estado de consciência superior.

Assim, o quatérnio da sombra contrabalançando a posição intermediária do homem só se fez


necessário a partir do momento em que a primeira se tornou real; e isto ocorreu pelo fato de o
homem ter sentido sua autoconsciência ou sua existência no mundo mais fortemente do que sua
dependência no confronto com a divindade e sua condição de ser determinado por Deus. (par.
402-3)

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Estas afirmações têm uma grande importância. Jung está se referindo à ideia básica de que
o ser humano existe enquanto mediador entre Deus e o mundo. Jung afirma que esta posi-
ção simbólica foi apresentada pela primeira vez pela imagem do Cristo, que era o Filho de
Deus e desceu das alturas, enquanto ao mesmo tempo se encarnou na carne que constituía
o homem. Desta maneira, ele serviu de função mediadora entre Deus e o mundo.

É então que Jung expressa a extraordinária ideia de que uma pessoa acaba por se tornar
aquilo em que ela medita — a adoração do Cristo mediador por parte do homem funciona
como uma espécie de prelúdio à tarefa de assumir, o próprio homem, aquela tarefa. Um
aspecto adicional desta mesma ideia é a observação “do mesmo modo que Cristo foi cruci-
ficado entre dois malfeitores, assim também o homem foi pouco a pouco tomando conhe-
cimento de sua própria sombra e de sua dualidade”. A imagem canônica da crucificação
transmite a ideia de que ela foi, na realidade, uma tríplice crucifixão. Em cada lado de Cristo
um ladrão foi crucificado simultaneamente. Um destes ladrões, o que estava do lado es-
querdo, amaldiçoou Cristo, e o outro o abençoou. O resultado foi o de que aquele que o
amaldiçoou desceu aos infernos quando morreu, e aquele que o abençoou ascendeu aos
céus. A crucificação, então, se dá entre os opostos e une os dois reinos do céu e do inferno
pelo fato de que os dois ladrões seguiram em direções diferentes. Jung nos ensina que esta
imagem, sobre a qual se medita em incontáveis serviços religiosos e em inumeráveis repre-
sentações artísticas, exerce o efeito inconsciente de preparar-nos para o conhecimento
consciente da sombra e dos opostos.

A fórmula de Jung, abstraída dos quatro quatérnios unidos, encontra-se representada no


parágrafo 410, e é reproduzida aqui na figura 28. Trata-se de uma quádrupla quaternidade
abstrata que pode ser entendida tanto como uma entidade estática quanto como um pro-
cesso circular contínuo de movimento, no sentido horário, que leva de A a D e torna a re-
começar.

Como foi mencionado acima, esta fórmula é bastante semelhante à visão de Ezequiel; nela
pode-se notar que cada uma das quatro quaternidades tem, em cada um de seus ângulos,
representações dela mesma e das outras três quaternidades. Esta característica corresponde
à visão de Ezequiel na qual cada uma das quatro criaturas viventes tinha quatro faces — um
anjo, um boi, um leão e uma águia. Porém há aqui uma diferença entre esta fórmula e a
visão de Ezequiel, já que na visão original cada criatura tinha uma roda a seu lado, e na
nossa fórmula cada quaternidade tem uma letra a seu lado — embora na visão as rodas se-
jam todas iguais e na fórmula as letras sejam diferentes. Desta maneira, a fórmula acaba por
adquirir um nível mais alto de diferenciação do que o atingido na visão.

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Figura 28. Fórmula do Self

A abstração que Jung fez acerca do quádruplo quatérnio em uma fór-


mula geral é mostrada aqui. Um exemplo da aplicação desta fórmula na
diferenciação dos quatro elementos é indicado pelos termos colocados
entre parênteses. Por meio de um movimento em sentido horário, de A
até D, os aspectos de cada elemento são separados.

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A figura 28 também mostra um exemplo de como funciona esta fórmula e de como pode
ser adaptada e imaginada em ação. Digamos, por exemplo, que os quatro termos dela — A,
B, C e D — se refiram aos quatro elementos: A = fogo, B = ar, C = água e D = terra.

Começando pela parte superior da figura, o fogo é submetido a uma quádrupla diferencia-
ção, na qual o fogo original é dividido em quatro diferentes tipos de fogo, correspondendo à
imagem alquímica dos quatro tipos de fogo (par. 393). Ora, a partir deste ponto o processo
move-se para a próxima entidade, que é B (ar), que por sua vez também sofre uma diferen-
ciação em quatro tipos de ar. A seguir, dá-se a mesma coisa para água, C, e terra, D.

Também poderíamos percorrer a mesma sequência em relação às quatro funções psicológi-


cas representadas como A, B, C e D. Digamos que A seja intuição, B pensamento, C sen-
timento e D sensação. Cada uma destas funções sofre uma quádrupla diferenciação no de-
curso de todo este processo de circulatio. A implicação da fórmula de Jung é a de que algo
como esta progressiva diferenciação ocorre de fato no processo de individuação. Jung su-
mariza isso mais sucintamente no parágrafo 410, falando sobre a rotação do mandala:

Quando conteúdos psíquicos se dividem em quatro aspectos é sinal de que foram submetidos a
uma discriminação por parte das quatro funções de orientação. Só a determinação destes quatro
aspectos nos garante uma descrição global. O processo expresso por nossa fórmula transforma a
totalidade originalmente inconsciente em uma totalidade consciente. O Anthropos (A) desce, a-
través de sua sombra (B), ao interior da Physys (C = serpente) e de novo se eleva, por uma espé-
cie de processo de cristalização (D = lapis, pedra), o que indica que a ordem foi estabelecida no
seio do caos, voltando então ao estado original, mas que nesse entretempo passou de inconsci-
ente que era para consciente. A consciência ou o conhecimento surgiram por meio da diferenci-
ação.

Jung então nos apresenta alguns paralelos desta fórmula de 16 termos. Estamos aqui tra-
tando do simbolismo do número 16 — quatro quaternidades Por exemplo, vamos conside-
rar a tabela com quatro linhas e quatro colunas do parágrafo 414, reproduzido aqui na figu-
ra 29.

A primeira coluna refere-se aos aspectos do trabalho alquímico. A segunda coluna refere-se
aos quatro elementos. Cada um daqueles quatro tipos de trabalho alquímico está associado
a um dos elementos: água, terra, ar e fogo. A terceira coluna refere-se a ideias que se en-
contram implícitas nas quatro operações alquímicas. A quarta coluna refere-se às categorias
psicológicas que estão relacionadas aos quatro aspectos do trabalho alquímico. O quarto
termo desta coluna, o décimo sexto da sequência, é o misterioso um, o ambíguo um, como
se fosse o quarto termo de uma sequência de quatro. Trata-se do mistério, o objetivo final
de todos os termos anteriores. Ele é chamado de arcanum.

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Os Elementos Conceitos Aspectos


4 níveis do relacionados relacionados psicológicos
trabalho alquímico aos 4 níveis aos 4 níveis dos 4 níveis

Ideias sobre coisas


Trabalho nas coisas compostas Senso-percepção
Água
naturais ou naturais

Trabalho para dis-


criminar as partes Ideias sobre coisas Discriminação
Terra
das coisas naturais discriminadas Intelectual

Trabalho para dis- Conceitos sobre


criminar a alma da “coisas simples”
Ar Razão
natureza (tais como as ideias
platônicas)

Trabalho para dis- Conceitos sobre


criminar o intelecto Fogo coisas simples; Arcanum
na natureza éter, quintessência

Figura 29. Diagrama de 16 termos dos processos alquímicos


Este outro exemplo do esquema de 16 termos está baseado em um texto al-
químico. Ele mostra os paralelos entre os quatro níveis do trabalho alquímico
(primeira coluna), as imagens metafóricas dos quatro elementos (segunda co-
luna), os conceitos básicos do trabalho alquímico (terceira coluna), e os fato-
res psicológicos associados (quarta coluna).

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Jung apresenta este esquema de 16 termos com um pouco mais de detalhes em seu Psico-
logia e alquimia,151 mas mesmo naquela obra é bastante difícil apreender tudo o que está
sendo exposto. Aqui no Aion Jung apresenta estes 16 termos como constituindo um e-
xemplo de uma sequência de 16 estágios, uma analogia aos 16 itens das quatro séries de
quaternidades. No parágrafo 416 ele também faz um outro paralelo, que é o sistema de
quaternidades de Kircher. Jung explica a ideia de Kircher de que existem quatro diferentes
níveis que estão associados aos números 1, 10, 100 e 1.000, e de que eles são análogos às
quatro quaternidades. Kircher identifica o número um como correspondendo a Deus, a ori-
gem de todas as coisas; o número dois como 10, a dualidade, o mundo espiritual; o núme-
ro três, 100, o reino da alma e inteligência; e o número quatro, 1.000, o reino do corpo e
de todas as coisas concretas.

Neste modelo de Kircher, de novo encontramos o mesmo tipo de sequência ou movimento


descendente que Jung aplica à quádrupla quaternidade, um movimento que se origina no
reino espiritual da quaternidade do anthropos e desce em direção à matéria bruta na qua-
ternidade do lapis. Aqui Jung está tentando demonstrar, por meio de tais paralelos, que a
psique tem a tendência de gerar quaternidades quádruplas.

Finalmente, eu gostaria de considerar o tema do éon de Aquário. Ao fazê-lo, eu como que


me afasto do livro Aion, pois nele Jung não menciona o éon de Aquário. A razão de eu
mencionar esta questão aqui é que ela constitui uma consequência lógica de tudo o que foi
dito anteriormente. Vamos, então, retornar ao frontispício do Aion, de onde começamos
nosso estudo. Todos nos lembramos de que aquela é uma figura do deus mitraico Aion,
uma figura humana, alada, com cabeça de leão, que tem uma grande serpente enrolada em
seu corpo. Esta imagem também surgiu na experiência de confronto com o inconsciente de
Jung. Isto não está citado em Memórias, sonhos e reflexões, mas pode ser encontrado no
registro do seminário de 1925 que o Memórias reproduz só parcialmente. Neste seminário
Jung descreve seu encontro com Elias e Salomé e sua descida para o inconsciente. Lá ele
se depara com Elias e Salomé, e junto a eles há também uma serpente:

Foi então que algo muito desagradável aconteceu. Salomé demonstrou estar muito interessada
em mim, e supôs que eu pudesse curá-la de sua cegueira. Começou então a me venerar. Então
eu lhe disse: “Por que você me venera?”. Ela respondeu: “Você é Cristo”. Apesar de todas as
objeções que coloquei contra isso, ela se manteve firme. Eu disse então: “Isso é loucura”, e fui
tomado por uma resistência pessimista. Foi então que vi a serpente se aproximar de mim. Che-
gou bem perto e começou a enrolar-se em meu corpo e a pressioná-lo em seus anéis. Os anéis
chegaram até meu coração. À medida que eu buscava resistir a ela, dei-me conta que eu assumia
a atitude da Crucifixão. Em meio a minha agonia e luta contra aquela situação, comecei a suar
tão profusamente que o suor escorria abaixo por todos os lados de meu corpo. Foi então que
Salomé levantou-se, e agora ela podia enxergar. E enquanto a serpente estava me pressionando
em seus laços, senti que minha face havia se transformado na face de um animal de rapina, um
leão ou um tigre.152

151 OC 12, par. 366s.


152 Analytical psychology, notes of the seminar given in 1925 by C. G. Jung, p. 26.
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Esta cena reproduz a imagem do deus Aion. Ora, o que de fato significa esta visão? Tenho
para mim que um dos significados dela é que Jung é o primeiro representante do novo éon,
e que representa a sua experiência iniciática de ser identificado com o deus Aion. Jung é o
novo Aion, ele é o precursor no novo éon — algo que acredito que, no futuro, será chama-
do de éon junguiano. Jung jamais poderia ter percebido e resumido o conteúdo do éon de
Peixes se já não estivesse mais contido por ele. Ninguém é capaz de ver algo em sua totali-
dade, de maneira objetiva, a menos que já se encontre fora dele. Jung já estava, por assim
dizer, situado no novo éon. Assim como Cristo foi a primeira pessoa a entrar no éon de
Peixes, assim também Jung foi o primeiro a inaugurar o éon de Aquário.

Isto nos leva a indagar, mesmo que de maneira breve, quais seriam as qualidades do éon de
Aquário, pois até agora só estivemos falando do éon de Peixes.

O termo Aquário, até onde sei, admite três diferentes interpretações. Ele é chamado de
“aguadeiro”, “portador de água” e “vertedor de água”. Aquário é representado como sendo
uma figura humana que carrega um jarro ou cântaro de água. Em algumas representações
ele se encontra vertendo a água do cântaro, e em outras somente portando o cântaro. Isto
sugere três coisas diferentes. Primeiramente, Aquário é uma figura humana, e não um ani-
mal ou um peixe, sugerindo que o éon de Aquário terá uma natureza humana, e não algo
inferior ao humano. Em segundo lugar, a figura encontra-se carregando a água, e não imer-
sa nela como um peixe. Isto sugere que cada um dos dois éons representa uma relação
completamente diferente com a psique; trata-se da diferença entre sermos um peixe imerso
na água ou sermos os portadores dela. Em terceiro lugar, temos ainda a imagem de um
vaso, uma alusão ao simbolismo do vaso alquímico e de sua capacidade de conter a psique,
em vez de ser por ela contido. Em lugar de ser um peixe contido num tanque psíquico, o
indivíduo de Aquário se transforma num portador e dispensador consciente da psique.

Tanto Marcos como Lucas relatam que Cristo determinou a dois de seus discípulos tomar
providências para a última ceia. Ele disse: “Ide à cidade. Um homem levando uma bilha
d´água virá ao vosso encontro. Segui-o”. (Marcos 14, 13 e Lucas 22, 10, BJ)

Este homem conduz então os discípulos à casa em que deveriam ir ao andar superior para
realizar a Ceia de Páscoa ou Última Ceia.153 Esta é a imagem de um éon que só deveria
realizar-se 2.000 anos depois, mas que já se prefigurava no início do éon de Peixes. Contu-
do, ela também corresponde a determinados aspectos de Cristo. Cristo era representado
como um portador de água e dispensador de água. À mulher samaritana que se encontrava
junto ao poço ele disse que, caso tivesse pedido a ele de beber, ele lhe teria concedido a
eterna água viva. (João, 4, 10)

Também significativa é a imagem do fluxo de água que jorra do flanco de Cristo quando ele
é ferido durante a crucificação. Todas estas imagens indicam, de certa maneira, que Cristo
prefigurava Aquário como um dispensador de água. Entretanto, a água que ele dispensou
não gerou novos dispensadores; ela gerou, na verdade, peixes em vez de aguadeiros, pois
foi a igreja que tomou para si o papel de dispensadora de água, o tanque de peixes no inte-

153 Sou grato a Steve Galipeau por haver chamado minha atenção para esta passagem.

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rior do qual os fiéis podem nadar. Quem descobriu a água? Não sabemos, mas sabemos
quem não descobriu a água: o peixe. Ora, agora podemos afirmar que a pessoa que desco-
briu a água foi Aquário. Jung descobriu a água.

Assim, se minha leitura do simbolismo estiver correta, o éon de Aquário dará origem a indi-
víduos que serão, eles próprios, portadores e dispensadores de água. No éon de Aquário a
realidade numinosa da psique não mais será carregada por comunidades religiosas — a igre-
ja, a sinagoga ou a mesquita —, mas em vez disso será carregada por indivíduos conscien-
tes. Esta é a ideia que Jung coloca em evidência na sua noção de encarnação contínua, a
ideia de que cada indivíduo deve se tornar um vaso para a encarnação do Espírito Santo em
regime contínuo. Ora, Jung viria desenvolver esta ideia de maneira bem mais detalhada em
sua próxima obra, Resposta a Jó, mas isso já é outra história.

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ÍNDICE

PREFÁCIO DO EDITOR 2

NOTA DO AUTOR 3

PREFÁCIO 5

1. INTRODUÇÃO 10

2. PRÓLOGO DE JUNG AO AION 15

3. PARÁGRAFOS 1-12 18
O Eu

4. PARÁGRAFOS 13-42 22
A sombra
A sizígia: anima e animus

5. PARÁGRAFOS 43-67 31
O Self

6. PARÁGRAFOS 68-80 41
Cristo, um símbolo do Self

7. PARÁGRAFOS 81-104 47
Cristo, um símbolo do Self (cont.)

8. PARÁGRAFOS 105-126 53
Cristo, um símbolo do Self (cont.)

9. PARÁGRAFOS 127-138 62
O signo de Peixes

10. PARÁGRAFOS 139-149 69


O signo de Peixes (cont.)

11. PARÁGRAFOS 150-161 77

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As profecias de Nostradamus

12. PARÁGRAFOS 162-176 85


O significado histórico do Peixe

13. PARÁGRAFOS 177-192 93


O significado histórico do Peixe (cont.)
A ambivalência do símbolo do Peixe

14. PARÁGRAFOS 193-212 102


O Peixe na alquimia

15. PARÁGRAFOS 213-235 109


O Peixe na alquimia (cont.)

16. PARÁGRAFOS 236-246 117


O sonho do “grande peixe”
A interpretação alquímica do Peixe

17. PARÁGRAFOS 247-266 125


Os escritos de Gerhard Dorn

18. PARÁGRAFOS 267-286 133


A psicologia do simbolismo alquímico cristão

19. PARÁGRAFOS 287-305 139


Símbolos gnósticos do Self

20. PARÁGRAFOS 306-327 148


Símbolos gnósticos do Self (cont.)

21. PARÁGRAFOS 328-346 156


Símbolos gnósticos do Self (cont.)

22. PARÁGRAFOS 347-365 163


A estrutura e dinâmica do Self

23. PARÁGRAFOS 366-380 171


A estrutura e dinâmica do Self (cont.)

24. PARÁGRAFOS 381-401 181


A estrutura e dinâmica do Self (cont.)

25. PARÁGRAFOS 402-429 192


A estrutura e dinâmica do Self (cont.)

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