Questionado sobre a denúncia estúpida oferecida pelo Ministério Público
Federal contra o editor do The Intercept, Gleen Greenwald, Jair Bolsonaro se dirige aos jornalistas que lhe entrevistavam e, em um momento inspirado, pergunta: “vocês não acreditam na Justiça?”. A matéria da Folha de S. Paulo, jornalão de direita que se faz de oposição ao governo (pero no tanto, pois na economia, que é o que, afinal, importa, o governo está na “direção correta”, conforme editorial publicado em 5 de novembro do ano passado) trata o comentário como “ironia”. A pergunta de Bolsonaro, porém, é pertinente. No auge da perseguição judicial contra Lula e o PT, “lawfare” que os seus advogados vêm denunciando há vários anos e que sempre esteve claro, claríssimo, exceto para aqueles a quem os resultados das urnas desagradavam e um golpe de estado (mediante impeachment, prisão ilegal ou fakada) convinha, os veículos de comunicação sempre “acreditaram na justiça”. A condução do processo judicial em desrespeito a regras básicas de contraditório e ampla defesa e a condenação sem provas, numa perseguição judicial inventada para tirar o Partido dos Trabalhadores do páreo, nunca importaram para a imprensa brasileira, salvo quando a Vaza Jato escancarou o que já era óbvio e sabido. Porque, agora, já não acreditariam na Justiça? É muito interessante ver a Folha de S. Paulo condenar a tentativa de perseguição judicial contra Gleen Greenwald e, no mesmo dia, ao repercutir o Roda Viva da véspera, não mencionar uma linha sobre a ausência de um representante do The Intercept na bancada, nem o papelão que Marcelo Tas fez no Twitter ao se meter na história (a denúncia de Gleen sobre as ligações entre Tas e o governo dos Estados Unidos são sérias e merecem atenção). O título da matéria da Folha destaca “Moro chama mensagens de bobageirada e pede para Gilmar assumir responsabilidades”. A Folha, ora essa, continua acreditando na justiça. Existe uma operação em curso para salvar Sérgio Moro. A TV Cultura de São Paulo, sob o comando do protegidíssimo João Dória, de quem pouco se fala, tratou de chamar a jornalista-morista Vera Magalhães para mediar o Roda Viva, programa que guarda alguma credibilidade não se sabe por que (os anos em que Augusto Nunes, aquele mesmo que agrediu Gleen Greendwald fisicamente, esteve à frente deveriam ter sido suficientes para enterrar a reputação do programa que um dia prestou um serviço ao debate público brasileiro). Na bancada de entrevistadores, só quem acredita na Justiça. Uns fazem semblante de oposição, outros nem isso, mas um representante do Intercept entre eles, claro que não, nem pensar. Nos veículos de imprensa brasileiros, não são bem-vindos aqueles que não creem na normalidade das nossas instituições. Para confirmar a regra, destaco e presto homenagem a Jânio de Freitas, que consegue manter-se na imprensa como exceção, sem calar-se sobre o acordão das elites que levou a milícia ao poder. Nunca é demais lembrar na insistência de Folha-Globo-Veja e congêneres no “quadrilhão do PT”, e no seu silêncio sobre a “milícia no poder”, que nunca virou vinheta, e sobre o alcance das políticas bárbaras que a metralhadora giratória do BolsoGuedismo vem implementando. Nas primeiras páginas da Veja dessa semana, um anúncio de página inteira do podcast da revista consiste em uma frase do ministro da justiça do governo-milícia: “Ninguém foi condenado com base na opinião política, mas sim por conta de crimes”. Assina Sérgio Moro, “o juiz mais falado de todos os tempos”. Na mesma edição, Veja presta um serviço importante à parcela mais reacionária da classe média, que ainda a lê, dando-lhe argumentos para desclassificar o filme Democracia em Vertigem em suas rodinhas de conversa. “Para construir sua tese sobre o impeachment, Petra minimiza estrategicamente a dimensão dos escândalos de corrupção do partido de Lula e da participação fundamental do ex-presidente nesse esquema, fartamente documentada nas investigações”, diz a Veja, que ainda trata o golpe como impeachment, pois não basta acreditar na Justiça, é preciso também acreditar no legislativo. A campanha difamatória contra Gleen Greewald está só começando, e a operação salva-moro vai longe. A chamada do Estadão para a matéria sequer menciona a inépcia da denúncia. Quem segue o jornal no Facebook saberá apenas que a “a denúncia da Procuradoria é por organização criminosa, lavagem de dinheiro e interceptações de procuradores da Lava Jato e Moro”. Quem assina a matéria é outro jornalista que acredita na justiça. Resta torcer para que, de fato, haja ainda muito mais a divulgar na Vaza Jato e que a operação salva-moro se afogue diante do seu próprio herói e do seu flagrante despreparo, que a imprensa por anos escondeu, e que agora tenta remendar numa roda de amigos. Quem sabe o ministro da justiça não se inspira nos seus colegas da cultura e da educação, e solta um tweet parafraseando Franz Schlegelberger, ministro da justiça no Terceiro Reich. Na Alemanha nazista, também havia jornalistas que acreditavam na justiça.
Pedro Fonseca, advogado, especialista em psicologia clínica (teoria
psicanalítica). Pesquisa e pratica psicanálise em São Paulo. Foi redator e repórter da Folha de S. Paulo entre 2010 e 2011.