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São Paulo
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São Paulo
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Banca Examinadora:
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AGRADECIMENTOS
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Ao prof. Dr. Silas Guerriero pela calma e confiança, pelo incentivo, pela
disponibilidade, e por todas as aulas e produtivas discussões durante o mestrado. Sou grata
por ter sido sua orientanda, e espero que o possa ser novamente no doutorado mais à frente.
Agradeço às pessoas que conheci no Programa de Ciência da Religião. À Gigi, pela
amizade. À Claudinha, Alden, Ornella, Sabrina e Matheus, pelas ricas contribuições que
recebi de cada um em diferentes momentos. Aos professores Edin, Zeca, Ênio e Londoño,
cujas disciplinas e debates em sala, mesmo que nem sempre se relacionassem diretamente
com meu tema de pesquisa, foram muito importantes para mim pessoalmente.
À Gabriela Yanomani, por ter dividido o lar comigo em Florianópolis, por ser minha
parceira incondicional, minha terapeuta e por me fazer rir tanto! Parceira de todos os tipos de
eventos, inclusive de seminários em Ciência da Religião, agradeço pelo apoio, pela
preocupação, pelo interesse. Agradeço por ter me acolhido semanalmente nesse último ano
em sua casa, lugar onde eu sempre me sinto em casa também.
Agradeço ao CNPq, à CAPES e à FUNDASP pelo auxílio financeiro para o
desenvolvimento desta pesquisa.
E, certamente, agradeço à Naturologia por tantos ensinamentos que levarei sempre na
minha vida, pelos anos maravilhosos, pelas pessoas que conheci, e por ser um campo cujas
reivindicações eu verdadeiramente acredito, e por isso a escolhi como objeto dessa pesquisa.
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RESUMO
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ABSTRACT
LEITE, Ana Luisa P. Naturology, religion and science: the interwoven construction of a
field. 2017. 184 p. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião) –
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017.
Substantiated on counterculture claims and the amalgam between religious and scientific
knowledges which are the foundation of New Era Movement, Naturology is instituted as an
academic course on medical field by the end of the 1990’s in Brazil. A few years later
initiates a path of academical production attempting to reach academical legitimacy. Its New
Era foundations make Naturology to move in a pendular movement: although legitimation
sought by the field and the activity regulation demand of its practices and researches a strict
relation with official science, elements originated from religious traditions are inseparable of
the therapeutics proposal offered by Naturology. Starting from this premise, the present study
aims to reason how religious practices in Naturology communicate with scientific axiom on
academic productions of the field. For such, were investigated the religious and secular world
views on which the health concept used by Naturology were based on, differentiating what is
in fact religious on the health practices used by the field. The academic productions
considered as representative of the protagonists of the field were analyzed seeking to verify
how these religious knowledge are correlated to Naturology, and under which terms were
elaborated by its collocutor on the construction of an area own statement. It was observed that
the religious aspects of Naturology are not mentioned on the area speech, which denies its
practices as a continuation to esoteric knowledges. On the other way, as Naturology matures
academically speaking, it is noticed the narrowing of the field with statements and research
methodologies inherent to science and to official medicine, as well as the appropriation of
scientific premises used to explain concepts protected by religious cosmologies. In this way,
concludes that in its epistemological construction, Naturology is searching to be associated to
a scientific speech that may explain the area assumptions, especially those controversial for
been considered mystics or esoteric by common sense.
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PL – Projeto de lei
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SUMÁRIO
Introdução...............................................................................................................................11
Objetivos............................................................................................................................16
Procedimentos Metodológicos e Técnicos........................................................................18
2. Naturologia..........................................................................................................................53
2.1 Histórico da área..........................................................................................................53
2.2 Trajetória política.........................................................................................................66
2.3 A Naturologia fala de si...............................................................................................69
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4.1.2 Āyurveda............................................................................................................142
4.1.3 Xamanismo e Neoxamanismo............................................................................146
4.1.4 Ciência na Nova Era...........................................................................................149
4.1.5 Medicina Chinesa...............................................................................................155
4.2 O campo científico, o campo naturológico................................................................160
Considerações finais..............................................................................................................169
Referências.............................................................................................................................173
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INTRODUÇÃO
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quando temas que envolvem o metaempírico são levantados (STERN, 2015a). Todavia, como
observa Stern (2016), a fase biologicista deixou marcas na identidade da profissão, por isso
ainda que seja de cunho da Naturologia a prática de medicinas energéticas e o reconhecimento
de uma dimensão espiritual ao processo de cura (RODRIGUES, 2012), muitos postulam a
importância da legitimação cientifica para a consolidação da profissão, como citamos acima.
Na contramão desta corrente, pesquisas em metodologias qualitativas e quantitativas 4
realizadas por naturólogos em programas de pós-graduação tem evidenciado a Naturologia
como uma área herdeira do movimento Nova Era, reforçando a perspectiva de um caráter
religioso imanente à área. Teixeira (2013), quem em sua dissertação de mestrado em
Antropologia Cultural realizou uma etnografia da Naturologia da UNISUL, inferiu que “com
base nos dados etnográficos, concluo que a Naturologia é herdeira do movimento que
convencionou-se chamar de Nova Era” (TEIXEIRA, 2013, p. 107). Stern (2015b), por sua
vez, desenvolveu uma pesquisa na área de Ciência da Religião na qual investigou indícios dos
valores Nova Era entre os naturólogos formados no Brasil. Tal qual Teixeira, Stern concluiu
que
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simbólicos” (SILVA, 2012, p. 75), tendo em vista que estes não encontram familiaridades aos
enquadramentos sistemáticos da ciência. Com base na afirmação de Silva (2012), é notório
que em determinados casos a proposta de atuação terapêutica naturológica nem sempre é
respeitada e culmina preterida frente à metodologia das pesquisas em saúde, posto que estas
privilegiam a relação linear entre causa e efeito, separação e redução, as quais, teoricamente,
seriam objetadas pelo saber naturológico.
Essa mesma problemática é percebida a partir de uma leitura das produções oficiais do
campo, espaço onde textos, pesquisas e elucubrações sobre a Naturologia e as Práticas
Integrativas e Complementares (PIC) são selecionados não somente para a divulgação da
área, mas também com o objetivo de filiar a Naturologia à saberes específicos afim da
construção de enunciados que possam facilitar seu processo de legitimação social. Conforme
observa Bourdieu (1983) a busca por legitimação por via da submissão às leis instituídas é
uma postura comum no campo cientifico, pois quando uma verdade está estabelecida pelos
dominantes do campo – aqui, da área da saúde - o triunfo de uma área emergente só se torna
possível no momento em que há uma conformação às leis inerentes do campo. Assim, é
preciso que além do reconhecimento da “verdade”, haja igualmente o respeito pelos cânones
metodológicos daquilo que é certificado como ciência no momento em questão. Isto implica
em uma reflexão direcionada à Naturologia, pois ainda que este novo campo almeje se
instituir como um novo paradigma 8 em saúde, como sustenta seu discurso, e propor a
utilização de técnicas terapêuticas que são inovadoras justamente porque contestam
pressupostos estabelecidos pela medicina oficial – motivo da criação de um curso
especializado nestas técnicas – a Naturologia busca alcançar um sucesso que só se faz
possível quando em sintonia com o jogo do campo cientifico, seja em relação aos objetivos a
alcançar, seja no que diz respeito à instrumentalização instituída pelo meio. Nesse sentido, e
aqui já antecipamos um dos passos desse estudo, é interessante observarmos o viés das
pesquisas selecionadas para publicação nos livros do campo, no periódico da Naturologia, e
nos números especiais dedicados à mesma no periódico Cadernos Acadêmicos da UNISUL,
dado que representam a imagem a ser passada para o alcance do reconhecimento de seus
pares-concorrentes. Bourdieu (1983) diria que as revistas cientificas agem como instâncias de
consagração, justamente por legitimarem campos e circunscreverem os tipos de pesquisas que
podem ser aceitas pelo meio, sendo estas aquelas irão antecipar ao campo a chance de
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Entendemos paradigma nessa pesquisa a partir dos pressupostos de Thomas Kuhn, em A Estrutura das
Revoluções Científicas (2013). Segundo o físico, paradigmas são as conquistas cientificas próprias de um
determinado período que constituem a base para as pesquisas posteriores. Discorreremos sobre sua tese e a
importância da mesma para a Naturologia mais à frente.
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OBJETIVOS
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No âmbito terapêutico, a perspectiva holística implica na oposição à perspectiva médica hegemônica, que
concebe o tratamento dos sujeitos de forma fragmentada e estritamente reservada ao nível físico (TONIOL,
2015a). No 1o capítulo descreveremos em maiores detalhes as bases do pensamento holístico.
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fator que julgamos que poderia influir na leitura geral das publicações. Em contrapartida, nos
interessava especificamente observar o viés das pesquisas que estão sendo publicadas nas
revistas, instâncias de consagração como sustenta Bourdieu. Isto porque amparados em
Teixeira (2013) e Stern (2015a), já partimos do pressuposto que a concepção de saúde da
Naturologia segue em confluência aos saberes da Nova Era e portanto está repleta de
pressupostos religiosos, ainda que vestidos de uma roupagem cientifica. Assim, entendemos
que tensões ocorrem no dialogo com o campo cientifico e no empreendimento de inserção da
área no campo institucional; tensão que, consideramos, tem como fundo a antiga disputa pelo
saber verdadeiro entre as linguagens religiosa e cientifica.
Outro ponto a ser destacado é que não foi escopo dessa dissertação uma apresentação
sistemática do total das pesquisas publicadas para fins comparativos. Foram elencadas
passagens de artigos em consonância com o tema aqui proposto: o entremear entre ciência e
religião nos discursos da Naturologia. Assim, algumas perguntas agiram como norte para
nossa análise: considerando que as revistas científicas agem como meio para legitimação e
reconhecimento dos pares na área da saúde, e que a Naturologia se utiliza de práticas que em
certa medida não podem ser mensuráveis ou explicadas pelo método cientifico, 1) qual o viés
das pesquisas selecionadas para publicação no campo referido? 2) sob quais termos os
elementos religiosos de suas práticas são apresentados nas publicações? 3) a interface
religiosa da Naturologia é contemplada abertamente nos textos da área?
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Cf. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.!
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de símbolos estaria ou não encarnado em uma instituição social. Já uma religião (ou,
religiões, no plural) seria um sistema simbólico, encarnado em uma instituição social, que
influencie a ação humana por oferecer possibilidades de contato ritual entre o mundo
ordinário e um quadro metaempírico de significados mais amplo. Esse conceito entende que
religião pode se manifestar na forma de religiões, mas não precisa faze-lo obrigatoriamente.
As espiritualidades entram como uma subcategoria intrínseca à religião, sendo definidas
como qualquer prática humana que mantenha o contato entre o mundo cotidiano e um quadro
metaempírico de significados mais amplo por meio da manipulação individual dos sistemas
simbólicos (HANEGRAAFF, 1999a; 1999b).
A definição espiritualidades é especialmente importante para o teor desta pesquisa e para
a compreensão dos paralelos entre o campo da Ciência da Religião e o campo da saúde. Isto
porque Hanegraaff expõe que dentro de qualquer sistema simbólico, sendo religioso ou não,
as espiritualidades podem aparecer, e isto ocorre porque as pessoas podem vir a interpretar o
simbolismo coletivo de uma religião de maneira particularizada, e o podem fazer igualmente
com sistemas simbólicos não religiosos. Hanegraaff (1999a) ressalta, ainda, que a
manipulação individual própria às espiritualidades não precisa necessariamente estar
associada aos quadros simbólicos oferecidos por uma religião. A manipulação de sistemas
simbólicos científicos é igualmente percebida no meio novaerista, como por exemplo as
releituras do significado das lacunas deixadas pela física quântica, que no senso comum
ganham teor holístico e afirmam “provar” as consonâncias entre ciência e espiritualidade. A
Nova Era, para o autor, é um exemplo claro do fenômeno da espiritualidade, pois se
caracteriza como um complexo de espiritualidades que emergem das bases de uma sociedade
secular pluralística, como é, aparentemente, também o caso da Naturologia no que concerne à
dinâmica de seu trabalho na área da saúde, como vamos vir a explicitar mais à frente.
Julgamos ainda necessário distinguir o uso que faremos de duas palavras bastante
polissêmicas nos estudos em ciências Humanas e da Religião, a saber: os conceitos de
secularização e racionalidade. O termo secularização será abordado a partir de Hanegraaff
(1998), para quem este pode ser definido não como indicativo do fim da religião na era
moderna, mas como o resultado da perda da posição central da religião Cristã como fonte do
simbolismo coletivo da sociedade ocidental. Segundo o autor
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Deste modo, a Nova Era como um fenômeno contemporâneo religião não agiria como
uma refutação, mas sim como uma confirmação da tese da secularização. Isto porque, de
acordo com Hanegraaff (1999), assim como o declínio da influência das instituições e da
lógica religiosa na sociedade não culminou no desaparecimento destas instituições, ainda que
tenham passado a ocupar papéis mais modestos, também outras formas contemporâneas de
religião independentes das instituições e alinhadas à elementos e simbolismos retirados da
ciência começaram a emergir, como no caso da Nova Era.
O outro ponto que gostaríamos de ressaltar é a utilização do termo racionalidade.
Frisamos que sua compreensão se dá a partir de Fuller (2005), para quem qualquer explicação
é racional na medida em que seja logicamente embasada por premissas ou hipóteses oriundas
de uma determinada visão de mundo. Consideramos pertinente acentuar esta distinção pois
tem se tornado lugar-comum nos estudos em ciências humanas da saúde o emprego da
categoria “racionalidades médicas”, da socióloga Madel Theresinha Luz, para tratar dos
debates sobre terapias holísticas e medicinas tradicionais. Não obstante, a categoria em
questão se refere a uma perspectiva teórica, não devendo ser usada como uma categoria
englobante que pode levar, inclusive, à certos reducionismos.
O primeiro capitulo será dividido em três seções, sendo a primeira um recorte histórico
da ascensão da racionalidade cientifica, no qual contrapontos com o papel da medicina neste
contexto foram elaborados. A segunda seção trará um apanhado de alguns autores que
dissertam sobre a oficialidade da ciência na contemporaneidade, em seu sentido cientificista.
Na terceira iremos abordar o crescente campo das terapias holísticas e da racionalidade Nova
Era, findando com a explanação dos processos de instituição dessas práticas que recentemente
tem se passado no Brasil.
No segundo capitulo o objeto central será a Naturologia: a história da criação do curso,
seus motivos e os giros epistemológicos que vem ocorrendo no curto período de sua
existência. Também abordaremos as investidas politicas para a regulamentação da profissão, e
pontuaremos os conceitos êmicos do campo, a partir de falas retiradas de produções de seus
próprios agentes.
O terceiro capitulo será aquele em que as raízes cosmológicas da Naturologia serão
diferenciadas, isto é, em que procuramos investigar as origens religiosas e seculares de suas
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“The secularization thesis need not imply anything as radical as secularization spelling ‘the end of religion’,
but could mean merely that the social fabric of secular society is no longer inseparable from religious
institutions”, no original.
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O que hoje se entende por “holismo”, ou ainda qualquer prática medicinal que vê a
doença como uma crise necessária para o reequilíbrio terapêutico, encontra suas raízes na
Grécia Antiga com Hipócrates e a concepção da “vis medicatrix naturae”. Ainda que a frase
atribuída ao médico grego não conste no Corpus, seu significado é a máxima da medicina
hipocrática – “o poder de cura da natureza” reflete a concepção de que a medicina só pode
consistir em uma imitação da natureza, uma vez que ela mesma é medicinal. O Corpus
Hipocrático foi na realidade escrito por diversos indivíduos ao longo de um período estimado
em até 250 anos, e os vários tratados nele contidos abrangem a totalidade da medicina
conforme era praticada na época. Três princípios amplos norteavam a medicina hipocrática e
ainda encontram influência na medicina praticada atualmente: além da noção de vis
medicatrix naturae e da crença em causalidades “naturais” para o adoecimento, a teoria dos
humores inseriu na mentalidade da época a concepção de equilíbrio e moderação – Hipócrates
e seus seguidores deduziam que o movimento dos humores (suor, vômitos, muco) era uma
tentativa do corpo de se libertar dos excessos, cabendo ao médico simplesmente auxiliar o
individuo em seu processo natural de cura (BYNUM, 2013; LAPLANTINE, 1991).
Como uma medicina pré-Vesaliana 14 , as estruturas terapêuticas da Grécia Antiga
dependiam daquilo que conhecemos hoje por cuidados básicos em saúde: o médico
hipocrático precisava conhecer seu paciente a fundo, investigando suas circunstâncias sociais,
econômicas e familiares, seus hábitos alimentares, se havia ou não viajado, seu histórico de
adoecimento e etc. Além disso, os hipocráticos davam conselhos relacionados à dieta e
recomendavam uma vida saudável, sempre considerando o papel do ambiente na saúde e na
doença. Ou seja, a medicina hipocrática exprime uma abordagem centrada no indivíduo que
responde ao anseio moderno por uma medicina mais holística, tornando Hipócrates a
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Diz respeito à Andreas Vesalius (1514-1564), precursor da anatomia moderna.
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principal referência para os terapeutas naturais da atualidade. Todavia, como frisa Bynum
(2008) a “medicina hipocrática” como a reconhecemos hoje é, na realidade, um constructo
histórico formado pela seleção de determinados temas e teorias, montados a partir de um eixo
que era desconhecido na época da composição do Corpus.
A teoria humoral e os fundamentos de Hipócrates, Galeno (129-217 a.C) e outros
médicos da Antiguidade influenciaram e deram estrutura à medicina até o século XVIII. Já na
Europa da Antiguidade tardia, poucos médicos letrados teriam a possibilidade de acessar
alguns escritos do período clássico, resultando na dominância de remédios mágico-religiosos,
superstições e tradições locais nos tratamentos em saúde. Por outro lado, após a queda de
Roma por volta de 476 d.C. muitos manuscritos das obras de Aristóteles (384-322 a.C.),
Euclides (300 a.C.), Galeno e outros pensadores chegaram ao Oriente Médio. Uma “Casa da
Sabedoria” foi fundada em Bagdá para incentivar jovens à tradução e estudo desses
documentos, de modo que as traduções dos eruditos islâmicos funcionaram como um canal
que possibilitou a formação da base científica e da filosofia europeia, sem as quais não
teríamos tido acesso à grande parte do conhecimento cientifico clássico. No entanto, a
medicina e a ciência islâmica medieval foram muito mais que uma via, e durante mais de
trezentos anos as mais importantes obras cientificas e filosóficas tiveram origem no Oriente
Médio (BYNUM; 2008; 2013).
O período compreendido aproximadamente entre os séculos V e XV na Europa,
conhecido como a “idade das trevas”, é frequentemente associado à intolerância religiosa,
superstição e à obscuridade nos avanços científicos quando posto em perspectiva com a
subsequente Renascença. Não obstante, segundo Almeida (2009) muitas das instituições
modernas como a universidade, o parlamento e os Estados Nacionais tiveram seu inicio na
Idade Média. As universidades europeias começaram a ser instituídas pela monarquia e o
papado nos séculos XII e XIII, a partir da onde os avanços em medicina passaram a ser mais
notáveis e a adquirir o corpo teórico e profissional que vemos atualmente. Como observa
Almeida (2009), um fosso teórico foi sendo aberto entre a medicina “teórica” e a medicina
“prática” – exercida pelos leigos – desde onde constata-se o inicio da formalização da
hierarquia ocupacional e as pretensões de monopólio da prática médica (BYNUM, 2008).
Todavia, a educação universitária neste período não atuou propriamente na produção de
saberes, porquanto privilegiava a discussão teórica baseada nos clássicos. Essa situação
passou a mudar de forma mais incisiva no século XIV, quando as faculdades gradualmente
começaram a fazer exposições de corpos dissecados, e no século XV, com os estudos em
anatomia de Vesalius (1514-1564). A adição da prensa tipográfica neste contexto resultou em
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grandes impactos na vida humana, e como pontua Bynum (2008, p. 42), “durante os séculos
seguintes os livros de anatomia cristalizaram um profundo paradoxo no inicio da medicina
moderna”.
Com o advento da Renascença mudanças mais profundas passaram a ocorrer no campo
da medicina, da física, astronomia e outras ciências, coincidindo com o período que os
historiadores mais tarde vieram a chamar de Revolução Científica. A química e a física
influenciaram fortemente a medicina, e Paracelso (1493-1541) tem um papel notável neste
quadro quando introduz a noção de doença como algo externo ao corpo, refutando as
premissas de Hipócrates e Galeno. Bynum (2008; 2013) ressalta que a distinção operada por
Paracelso é muitas vezes descrita erroneamente como precursora da teoria microbiana, mas
em realidade era arraigada em noções místicas e alquímicas. O entendimento e abordagem de
saúde e doença alterou-se drasticamente neste período, todavia as manipulações da medicina
prática fossem menos surpreendentes em sua mudança, amparando-se ainda por um longo
período nas sangrias, eméticos e purgantes associados ao humoralismo15.
Os estudos astronômicos e físicos foram alterados definitivamente na Idade Moderna
com Copérnico (1473-1543), Kepler (1571-1630) e Galileu (1564-1642), em suas teorias
revolucionárias acerca das disposições no firmamento, que foram de encontro tanto com as
teses bíblicas, quanto com as propostas Aristotélicas. O pensamento de Galileu inovou e
tornou-se referência, pois foi o primeiro físico a combinar experimentação científica com o
uso da linguagem matemática na elaboração das leis da natureza por ele formuladas, fato que
o concedeu o titulo de “pai da ciência”. Assim, o entendimento mecânico de mundo como
projeto e filosofia da nova ciência passou a vigorar a partir do século XVII, instituindo como
objeto da ciência as qualidades consideradas primárias, como a massa e o movimento dos
objetos, em detrimento das secundárias, nossas percepções sensoriais (CRUZ, 2014). Com
essa premissa levantada por Galileu, Francis Bacon (1561-1626) deu mais um passo em
direção à nossa concepção de ciência e epistemologia ao ocupar-se em explorar o empirismo
científico. Bacon foi o primeiro a desenvolver uma teoria acerca do método indutivo – a
experimentação como fonte de conclusões gerais, a serem testadas em mais experimentos –,
que adquiriu mais força e reconhecimento com Newton (1643-1727): as leis newtonianas da
gravidade e do movimento, sua análise matemática de força, aceleração e inércia passaram a
ser os princípios norteadores da filosofia natural do século XVIII (BYNUM, 2013). Mas
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Teoria de Hipócrates sobre a constituição e funcionamento do corpo, apoiada na ideia da existência de quatro
fluidos (humores) principais do corpo – sangue, bile preta, amarela e fleuma – os quais promoveriam a saúde,
desde que em equilíbrio harmonioso, e a doença quando em desequilíbrio (MASSIMI, 2003).
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como pontua Cruz (2014), o método indutivo em si não era uma novidade; sua distinção neste
período foi o enquadramento como proposto por Newton. O princípio de economia (aglutinar
o maior número possível de leis, métodos e fenômenos sob o menor número de sistemas
explicativos), o positivismo e o rechaço às considerações metafísicas passaram a ditar o tom
da ciência. O projeto mecânico instaurou-se sob o principio de ser estendido a toda área da
ciência. Cogito, ergo sum: com o “Penso, logo existo”, Descartes (1596-1650) baseou sua
concepção de natureza na divisão fundamental entre dois domínios independentes: res
cogitans, a mente; e res extensa, a matéria (BYNUM, 2013).
No período que se seguiu a Descartes, a noção dualista e o quadro mecânico da natureza
tornaram-se o paradigma dominante da ciência. Segundo Cruz (2014) a emergência deste
paradigma constitui uma grande parcela histórica daquilo que reconhecemos por
“modernidade” – uma reestruturação no ocidente europeu que abrangeu os campos do
conhecimento, da política, economia, sociedade e religião. A secularização foi adquirindo
contornos mais precisos com o questionamento da velha ordem política associada ao campo
religioso e à subordinação da mesma às leis do Estado moderno. O autor reflete o processo de
secularização nos seguintes termos:
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porém, contrariou o senso comum dos químicos que até aquele momento supunham que os
elementos não podiam ser decompostos em partes menores, e possibilitou a compreensão de
diversas reações químicas a partir da sua teoria atômica. Posteriormente, com a descoberta do
eletromagnetismo por Oersted (1977-1851), Faraday (1791-1867) pôde converter energia
elétrica em energia mecânica, e propôs a ideia de um “campo” de ação para explicar através
de medições como atuavam a eletricidade e o magnetismo. Seu trabalho foi consolidado com
James Maxwell (1831-1879), quem forneceu as ferramentas e equações matemáticas para
descrever as teorias sobre o campo de Faraday e, a partir dessas, pôde demonstrar que a força
eletromagnética é uma onda – uma das descobertas mais importantes de toda a história da
física.
Na esfera da medicina, a invenção do microscópio foi determinante para o advento da
microbiologia, com aproximadamente um século de diferença entre as duas descobertas. Na
França, Xavier Bichat (1771-1802) utilizou o rudimentar microscópio para investigar as
diferentes substâncias (tecidos) que compõe o corpo humano, e seu trabalho inspirou outros a
buscar compreensões em termos de blocos de construção menores e mais básicos (BYNUM,
2013). Já no século XIX, os novos microscópios auxiliaram cientistas a argumentar que estes
blocos de construção fundamentais da vida eram as células, que compunham todos os vegetais
e animais. Rudolf Virchow (1821-1902), um desses cientistas, demonstrou que as doenças
sempre resultavam de eventos celulares, como o crescimento do câncer, por exemplo.
“Aprendam a enxergar de maneira microscópica” era a sua máxima nas aulas de patologia que
ministrava – sentença que figura também como uma das chaves de compreensão desse novo
tipo de medicina ancorado na ciência, tanto em nível biológico quanto social. A esse respeito,
Foucault em O Nascimento da Clínica (2008) expõe que, em fins do século XVIII, a medicina
moderna passa a fundamentar-se e ser regulada por uma racionalidade anátomo-clínica, na
qual o corpo doente é fundado em beneficio de um olhar positivo. Isto implica em perceber
que o sofrimento do individuo – alocado na subjetividade dos sintomas – é fixado num
discurso redutor e objetivante, pois o olhar empírico da ciência é apto a captar tão somente
aquilo que se mostra visivelmente. A consequência no campo social da saúde a que nos
referimos tem uma de suas relações marcantes com Bichat e o nascimento da microbiologia,
uma vez que a objetividade imbuída no olhar sobre a doença busca no corpo doente um a
priori material que acaba por supor a abstração do individuo, necessária para que a verdade
buscada sobre o fato patológico possa ser evidenciada positivamente (FOUCAULT, 2008).
Contudo, mesmo com as mais recentes instrumentalizações do microscópio citadas
acima, os contemporâneos de Bichat e Virchow ainda não haviam chegado ao âmago da
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compreensão das doenças infecciosas. Que o contágio existia não restavam dúvidas, o que
lhes faltava era o conhecimento das causas da disseminação das doenças. A convicção da
época era a de que o ar veiculava “miasmas”, provocando assim tais doenças. Os miasmas
seriam um odor ou vapor pútrido surtido de elementos que os indivíduos presumiam ser
nocivos à saúde, como o mau cheiro da vegetação em putrefação, o esgoto e os maus odores
das enfermarias (BYNUM, 2013). Por razão do surto do cólera na Grã-Bretanha em 1831, e
novamente em 1848, e da ineficiência das medidas de quarentena, um médico londrino
chamado John Snow (1813-1858) iniciou um mapeamento da disseminação da doença nos
bairros da capital, o que o levou à conclusão de que a doença estava se espalhando devido à
contaminação de uma bomba pública na região central da cidade. À época o médico não pôde
identificar quais seriam as causas especificas da contaminação, porém a premissa levantada
por Virchow – “todas as células vem de células” – foi o terreno fértil para o desenvolvimento
das teorias de Louis Pasteur (1822-1895) acerca da possibilidade de agentes externos
causarem doenças. A teoria dos microorganismos de Pasteur introduziu na sociedade a noção
de que o corpo possui “defesas” contra os germes e pode combater a infecção, comprovada
pelo cientista através do desenvolvimento da vacinação. A vacina já havia sido concebida
pelo médico rural Edward Jenner (1749-1823) – quando este observou que as ordenhadoras
de vacas aparentavam estar protegidas da varíola humana, Jenner injetou intencionalmente
varíola bovina em um garoto; sua experiência foi bem sucedida e programas de vacinação
foram iniciados em vários países. Inspirado em Jenner, Pasteur ampliou os experimentos de
vacinação ao antraz e à raiva e obteve resultados igualmente exitosos. Dando continuidade
aos estudos iniciados por Snow e Pasteur, Robert Koch (1843-1910) pôde identificar os bacilo
da tuberculose e a bactéria que causa o cólera. Em uma ida à Índia, Koch corroborou a
verificação de Snow de que a causa era a contaminação da água ao identificar os mesmos
bacilos nas fezes das vítimas e nos poços onde buscavam água (BYNUM, 2008; 2013). Estas
e outras descobertas sobre microorganismos evidenciaram a necessidade da melhoria das
condições de higiene, dando início ao movimento moderno de saúde pública, ou seja, às
relações entre o Estado e a saúde social.
Conforme Foucault (1982), o século XVIII fez emergir um encargo coletivo sobre pontos
múltiplos do corpo social, da saúde e da doença, em um processo que instituiu “o surgimento
da saúde e do bem-estar físico da população em geral como um dos objetivos essenciais do
poder politico” (FOUCAULT, 1982, p. 196). Para o filósofo
!
32!
O hospital como uma instituição dedicada à curar – e não somente como espaço de
refúgio ou destino de morimbundos – aparece também neste período. Com ele edificaram-se
os três pilares que, não obstante as inúmeras modificações em sua forma ao longo do tempo,
continuam sendo fundamentais para a medicina: o diagnóstico físico, a correlação clinico-
patológica e o acúmulo de casos para elucidar categorias de diagnóstico (BYNUM, 2008).
Neste período, e a partir da teoria microbiana, consolidou-se em primeiro lugar a separação
entre corpo do doente e causa patológica, com a distância entre corpo e causa instaurando-se
como premissa para o desenvolvimento de critérios objetivos de diagnóstico. A segunda
implicação foi a crescente noção de especificidade da doença, que ganhou força com a
associação entre germes e sujeira e deu inicio ao movimento sanitarista. O impacto da
epidemia europeia de cólera em 1832, a correspondência entre pobreza e sujeira, e as
conseguintes consequências sanitárias e econômicas que dali advinham fizeram emergir uma
nova Lei dos Pobres, coordenada pelo entusiasta da teoria miasmática Edwin Chadwick
(1800-1890). Segundo Foucault (1982), o cólera cristalizou em torno da população proletária
uma quantidade de medos políticos e sanitários, de maneira de foi a partir desta época que a
divisão do espaço urbano entre pobres e ricos passou a desenrolar-se. A Lei dos Pobres figura
para o autor o momento em que a medicina começa a tornar-se social, na medida em que o
conjunto da legislação comportava um controle médico do pobre; ou seja, surge a ideia de
uma assistência controlada, uma intervenção médica que visa tanto ajudar os mais pobres a
satisfazer suas necessidades de saúde, quanto garantir que os ricos não serão vitimas de
fenômenos epidêmicos originários da classe carente. Foucault pontua o caráter de controle em
jogo nesta dinâmica: a intervenção nos locais insalubres, a verificação da vacinação e os
registros de doenças objetivavam monitorar e conter as mazelas que originavam-se naquele
meio (FOUCAULT, 1982). Pelo fato de que a efetivação de uma fiscalização em saúde
publica implica necessariamente em dados numéricos, a pesquisa, inspeção e significância
!
33!
foram as três dimensões que quantificaram e burocratizaram a medicina a partir desta época.
Como pontua Bynum (2008), o movimento da saúde publica foi em grande medida um
produto pós-industrial e urbano, dependendo da mentalidade numérica que acompanhava os
lucros e prejuízos do sistema industrial, da utilização do poder do vapor, da contabilidade e do
censo demográfico nacional. Além disso, fez-se necessário, como Foucault observa, um
policiamento refletido nos chefes de serviços médicos, nos médicos de fábricas, nas
autoridades portuárias e em mais uma gama de indivíduos relacionados com a saúde publica.
O conceito de doença notificável fomentou o policiamento social e o crescimento das
pesquisas, e as ferramentas matemáticas e estatísticas ganharam importância cada vez maior
na investigação médica, tornando-se o núcleo de compreensão da natureza das correlações e
causas entre meio ambiente e patologias.
Com a revolução industrial as mais diversas esferas que compõe o corpo social galgaram
no sentido de um desenvolvimento cada vez mais laboratorial. Observou-se a crescente oferta
e demanda de medicamentos, produtos químicos industriais como fertilizantes, tintas,
corantes e, sobretudo a partir da década de 1850, derivados do petróleo. A química tornou-se
moderna no século XIX, e no início deste século os químicos haviam adotado a ideia de
átomo originada de Dalton, assim como criado uma linguagem universal para a compreensão
dos símbolos químicos. A esta altura, os pesquisadores já estavam aptos a manipular os
átomos no laboratório, todavia não tinham domínio sobre o que eram, de fato, essas unidades
de matéria. De acordo com Bynum (2013), o primeiro sinal de que os átomos não eram
apenas a menor unidade de matéria, consoante a teoria de Dalton, apareceu com a descoberta
de um de seus componentes, o elétron. Com a abertura proporcionada por essa assertiva,
novos experimentos, como o de Ernest Rutherford (1873-1937), foram realizados e
demonstraram a existência de um núcleo do átomo. Em 1913, durante o desenvolvimento do
“átomo de Bohr” e em vista a descobrir mais acerca do que se passava no interior do átomo,
Niels Bohr (1885-1962) aplicou em seus experimentos uma nova ferramenta chamada física
“quântica”. Esta teoria da física dispõe-se a investigar os eventos que transcorrem nas
camadas atômicas e subatômicas, como por exemplo os elétrons, prótons e nêutrons. O
“quântico” em seu nome faz menção à descoberta de Max Planck (1858-1947) de que a saída
de energia suscetível de transmissão através de um comprimento de onda sempre vem em
quantidades exatas, as quais foram chamadas por Planck de quantum (BYNUM, 2013).
A asserção de Planck foi tão importante quanto as descobertas posteriores de Albert
Einstein (1879-1955), que foram desenvolvidas a partir das premissas do primeiro. Einstein
!
34!
demonstrou que estes quanta16 de energia moviam-se de modo independente entre si, mas
juntos constituíam uma onda. Em 1905, o físico lançou o artigo em que introduziu a Teoria da
Relatividade Especial, no qual demonstrou que todo movimento é relativo, ou seja, só pode
ser medido em relação à outra posição. Essa teoria foi revolucionária pois dispôs o tempo
como uma dimensão essencial da realidade, de modo que os físicos tiveram de ampliar as
dimensões conhecidas do espaço – comprimento, largura, altura e, agora, tempo. Nos anos
seguintes com a famosa equação E = mc2, demonstrou que massa e energia eram dois
aspectos da matéria – teoria que foi o motor para a elaboração da bomba atômica. Ademais,
em 1916 Einstein ampliou seu raciocínio e elaborou a Teoria da Relatividade Geral, no qual
postulou que gravidade e aceleração eram, em realidade, equivalentes. Com isso afastou-se
definitivamente da física newtoniana, dado que a teoria demonstrava que o espaço-tempo é
curvo, e pôde explicar características da órbita de Marte ao redor do sol que as leis da
gravidade de Newton não conseguiram alcançar. O físico contribuiu muito com a teoria
quântica, todavia amparava-se na crença de que o universo está travado em uma estrutura de
causa e efeito: “Deus não joga dados”, com essa célebre frase afirmou que todas as coisas
ocorrem em padrões regulares e previsíveis (BYNUM, 2013).
Todavia, o pensamento de Einstein sobre causa e efeito foi refutado pelo físico teórico
alemão Werner Heisenber (1901-1976), quem em 1927 propôs o “princípio da incerteza”.
Bynum (2013) considera que este princípio era parte experimento, parte filosofia, pois
segundo Heisenberg o próprio ato de conduzir experimentos com elétrons seria o bastante
para alterá-los. Essa teoria revolucionou a mecânica quântica, impondo limites sobre o que se
pode saber – neste ponto compreende-se o caráter filosófico observado por Bynum. Einstein
objetou a ideia de Heisenberg e dedicou-se a falsear sua teoria, porém não obteve sucesso.
Até este momento, o principio permanece intacto: não estamos aptos a descrever os limites
daquilo que é pequeno ao extremo.
Como frisa Bynum (2013), as descobertas da física citadas acima alteraram drasticamente
o modo de compreensão do universo. As equivalências entre massa e energia, onda e energia,
tempo e espaço, e o princípio da incerteza levaram paulatinamente à construção de um
imaginário que vem sendo pontuado por estudiosos na atualidade, referido por W. Hanegraaff
(1996) como mitologias da ciência. Como sustenta o historiador, este imaginário está
diretamente atrelado à uma das mais notáveis características do pensamento novaerista e
esotérico: a alta consideração dos insiders pela ciência moderna e, em especial, pelas lacunas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
16
Quanta refere-se ao plural em língua portuguesa da palavra latina quantum.
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35!
deixadas em aberto com as novas descobertas da física quântica. Por contraditória que essa
afirmação pareça – dado que a Nova Era tende a, aparentemente, rejeitar a racionalidade
cientifica moderna –, os desenvolvimentos científicos modernos são interessantes ao
Movimento Nova Era por dois motivos: 1) são interpretados de maneira a servir ao propósito
novaerista de legitimar uma visão de mundo espiritual, e, simultaneamente; 2) são usados
para atacar o consenso cientifico vigente, quando se supõe ser a física quântica a
representante de um novo paradigma cientifico (HANEGRAAFF, 1996). Cruz (2014) enfatiza
que desde o século XIX os círculos religiosos esotéricos sentiram a necessidade de mostrar
que seus conhecimentos – que visavam a reunião do material e o espiritual – eram
compatíveis com os saberes científicos. Similarmente, com o advento da física quântica no
século XX, o movimento Nova Era apropriou-se de pontos chave da discussão – em especial
aqueles ainda sem respostas pelo método científico – para a síntese entre ciência e
espiritualidade, como pontua Cruz
O cenário que revela a relação da sociedade moderna com a ciência foi erigido em um
longo caminho de experimentações, questionamentos e de dissociação de explicações que
!
36!
buscam ser puramente racionais daquelas de caráter metafisico, como vimos na seção
anterior. O “desencantamento do mundo”, a ascensão da burguesia comercial e industrial e o
capitalismo foram forças que atuaram plenamente na construção desse cenário, quando o
impulso do conhecimento cientifico atrelou-se aos interesses de dominação de classe (KEMP,
2000). O fomento à substituição do pensamento religioso foi uma das estratégias do grupo
burguês para a obtenção da hegemonia social e mercadológica, posto que o escopo cientifico
debruçou-se sobre a prática medica instituindo um discurso oficial representado por agentes
oficiais – médicos e enfermeiros – em espaços oficiais – hospitais, clinicas, manicômios e
consultórios –, que engendram-se aos interesses de mercado. Com isso, o campo de
representações simbólicas dos processos saúde-doença foi praticamente excluído da
mentalidade que abarca a ideologia cientifica, e qualquer forma de medicina que não se
enquadrasse nos preceitos institucionalizados da ciência passou a ser referida como
“paralela”, em um jogo de palavras que reforça a centralidade de uma medicina reconhecida
como oficial. Como pontua Kemp (2000, p. 118) “[...] é dentro dessa historia de disputa entre
as concepções religiosa e cientifica que podemos compreender o quadro social das
terapêuticas médicas e misticismos aos quais os sujeitos recorrem atualmente”.
À oficialidade da ciência atribui-se não só um imenso reconhecimento social, mas
igualmente a crença profunda em seu absolutismo, chamada cientificismo. O senso comum
admite a ciência “como a explicação causal das leis da realidade tal como esta é em si
mesma” (CHAUÍ, 2005, p. 235), o que ocasiona na criação de ideologias e mitologias da
ciência, bastante comuns de serem observadas. Chauí (2005) diferencia que uma ideologia da
ciência seria a crença no progresso e nos conhecimentos científicos, a ponto que um dia estes
explicarão a realidade e permitirão ao homem manipulá-la completamente. Já uma mitologia
da ciência seria dar à ciência o lugar até há pouco ocupado pela religião, ou seja, é a crença
nesta como se fosse magia ou tivesse poderio ilimitado sobre as coisas e os homens,
constituindo um “conjunto doutrinário de verdades intemporais, absolutas e inquestionáveis”
(CHAUÍ, 2005, p. 235). Hanegraaff (1999b) elucida que a mitologia da ciência é a substância
do simbolismo coletivo da sociedade secular, o que implica na percepção de que esta se
baseia na “ciência e racionalidade” tanto quanto os cristãos pré-iluministas baseavam-se na
teologia cristã para a edificação de sua cosmovisão. Um outro aspecto da relação entre
sociedade e ciência é pontuado por Laplantine (1991), quem atenta para o fato de que a
medicina na modernidade passou da condição de segmento muito importante de nossa e
outras culturas para o segmento dominante, não estando longe de constituir toda a cultura em
si. Com isso o antropólogo quer dizer que em qualquer sociedade determinadas
!
37!
representações são elencadas para explicar o individuo e o social, mas enquanto estas
costumam ser religiosas, politicas ou econômicas, nestas ultimas décadas tais explicações
tendem a se tornar não somente sanitárias, mas precisamente biomédicas.
Para compreendermos o porquê dessa tendência, podemos nos valer do conceito de
episteme de Foucault. Assim como Thomas Kuhn, em seus estudos Foucault parte da
premissa de que os períodos históricos pensam a realidade a partir de determinados
pressupostos, e que a realidade torna-se aquilo que os pressupostos dizem. Mas enquanto
Kuhn preocupava-se em desvendar os paradigmas científicos, Foucault buscou trabalhar com
a arqueologia – seu interesse não é a ciência propriamente dita, mas sim o saber17 a partir do
qual a ciência se constrói como um dos discursos possíveis (GOMES, 1991). Portanto
Foucault objetivou captar o lugar onde se encontram as estruturas que dão sustentação à uma
leitura de realidade, e nesse sentido a episteme é entendida como um arcabouço de
conhecimentos determinado por certos conceitos que se tornam os instrumentos utilizados por
pensadores da época para investigar e pensar a realidade. Mas o importante é notar que,
dentro dessa conceituação filosófica, a verdade de determinada época está presa à sua
episteme, de modo que a realidade não é construída historicamente e tampouco funda-se no
arbítrio humano (CHAUÍ, 2005; GOMES, 1991; FOUCAULT, 1999). A episteme, diz
Foucault, expressa o saber de uma época, e nesse sentido encontramo-nos em uma época em
que a certificação de que algo é “cientificamente comprovado” basta para que este seja
tomado como inerentemente verdadeiro. A dogmatização da ciência implica, todavia, em
negligenciar o fato de que as produções de conhecimento são historicamente e culturalmente
localizadas, ou seja, ignora que existem relações de poder que regem a produção de todo
saber (ALBUQUERQUE, 1995).
Em O Nascimento da Clínica, Foucault (2008) realiza uma arqueologia do olhar ao
buscar compreender a racionalidade anatômica e clinica própria ao saber medico na
modernidade, em que o objetivo investigativo, ou o alvo do olhar médico, é a doença no
corpo do ser que adoece. O filósofo compreende o nascimento da Clínica no final do século
XVIII, quando uma mudança no nível dos objetos, conceitos e métodos da pratica e do
conhecimento colocam a medicina no lugar de ciência, posto que tal transformação esteve
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
17
Foucault (2012) explica que o saber é o campo de coisas postas como objetos que são nomeadas, definidas,
reunidas e ordenadas pela pratica discursiva. O discurso institui o objeto, e a prática para tal ato é o saber. É,
também, o espaço no qual um sujeito pratica um discurso, e assim como este ultimo institui o objeto, também
institui o sujeito. Dito de outra maneira, “o saber é um discurso que produz para si mesmo as regras de sua
enunciação e o modo de organização de seus enunciados” (CHAUÍ, 2005, p. 211), além de ser a possibilidade de
uso e apropriação de um discurso por quem adquire a legitimidade para elaborar teses em conformidade às
regras de discurso vigentes.
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38!
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39!
cerne das críticas mais comumente voltadas à medicina moderna – um conceito de clínica que
nasce de alguma forma da ciência estatística pressupõe um natural a priori de um individuo
que, na realidade, está localizado e se constitui sócio, histórico e culturalmente, e que por
essas vias é influenciado. A institucionalização do saber médico sobre o corpo e o uso de uma
metodologia científica implicam na dissolução das singularidades, constituindo uma medicina
que prevê a saúde a partir da padronização (FOUCAULT, 2008; TAVIRA, 2014).
Para Lefèvre (1991), todo esse processo culminou na desapropriação do auto controle
individual: o corpo do sujeito – em especial quando doente – passa a ser posse do “Sujeito
Institucional-Legal dos Corpos Doentes, ou seja, o médico” (LEFÈVRE, 1991, p. 104). Nesse
contexto, o professor em Saúde Pública coloca que em nossa sociedade a saúde aparece, na
prática, como uma mercadoria. Isto porque – e aqui ratifica a afirmação de Luz (2013) – as
propostas políticas de saúde do Estado irão sempre reportar-se aos interesses sociais que o
constituem, dos quais irão se sobrepor os interesses das industrias farmacêuticas e de
equipamentos médicos, de maneira que ela (a saúde) toma a forma necessária para enquadrar-
se no modo de produção capitalista, oferecendo a si mesma como mercadoria – e, portanto,
como ideal de consumo a ser alcançado. Todavia é importante refletirmos que a apropriação
da saúde como objeto de consumo não se restringe somente aos medicamentos alopáticos ou
ao público que o consome; essa lógica é igualmente refletida na produção dos medicamentos
“naturais”, na oferta de terapias holísticas, na variedade de serviços e produtos (livros,
consultas, artigos esotéricos) à venda, no qual uma verdadeira relação comercial é
estabelecida e o público que a procura – em sua maioria circunscrito às classes médias e
médias-alta urbanas escolarizadas – estão ali presentes como clientes (D’ANDREA, 2000;
HEELAS, 2008). Para Lefèvre (1991), o entremear da racionalidade capitalista à saúde
transforma essa última numa necessidade jamais satisfeita, de modo que o ideal de saúde
imposto redunda no fato de que a ninguém é permitido sentir-se verdadeiramente saudável
porque algo sempre estará em falta (seja na relação orgânica, mental, estética,
comportamental, etc.), e que assim deverá ser preenchido por um serviço ou mercadoria.
Embora o quadro descrito acima ainda mantenha-se bastante forte nos dias atuais, uma
série de insatisfações e críticas à este modelo passaram a emergir do núcleo das sociedades
norte-americanas e europeias a partir do final da década de 1950. O advento da contracultura
correspondeu ao questionamento das tradições religiosas, ao conservadorismo das décadas
anteriores, à lógica consumista imposta pelo mercado e à hegemonia das instituições. Nesse
caldo de transformações sociais, o papel quase invisível do indivíduo em relação à própria
saúde e o absolutismo da biomedicina também foram objetados, e a circulação de filosofias e
!
40!
medicinas indianas, tibetanas e chinesas adquiriram vigor nesse período. Esse contexto foi o
terreno fértil para o surgimento da Nova Era, onde o discurso de uma “nova consciência”
passou a ser erigido. Conforme Hanegraaff (1996), aos entusiastas da Nova Era a ciência
tradicional é eminentemente materialista e visa à alienação humana, considerando suas bases
institucionais e acadêmicas. Todavia, essa visão passou a ser relativizada com a disseminação
das ideias apresentadas por Thomas Kuhn (1922-1996) no livro A Estrutura das Revoluções
Científicas, lançado em 1962. A noção de mudança de paradigma, em especial, deu subsídios
para a construção da ideia de uma nova ciência, a qual substituiria o reducionismo cientifico e
seria baseada em uma nova perspectiva holística (HANEGRAAFF, 1996). A expressão
“mudança de paradigma” é hoje recorrente tantos nos meios científicos, quanto (e talvez
principalmente) nos alternativos, mesmo que no segundo grupo possa ser observado que
apenas um pequeno número de pessoas tenha conhecimento dos conceitos da tese criada por
Kuhn, de modo seu significado foi transposto para uma noção mitológica da ciência, como
observado por Hanegraaff. É interessante para o escopo desse trabalho que elucidemos a tese
de Kuhn, dado que figura como um ponto importante nos discursos dos naturólogos quanto ao
seu papel em relação à ciência.
Em A estrutura das revoluções cientificas, Kuhn (2013) expõe que um paradigma é a
designação dada às conquistas cientificas que tornam-se universalmente reconhecidas pela sua
comunidade. Tais paradigmas fornecem por certo período a base das pesquisas posteriores,
sendo modelos de problemas e soluções que formam a “ciência normal”. No interior dessa,
iremos notar, por exemplo, a especificação dos conceitos de fundo do paradigma, a
construção de instrumentos utilizados, a execução de medidas exatas, a aplicação da teoria em
campos diversos, dentre outros. O copernicanismo, a mecânica de Newton e a teoria evolutiva
de Darwin são exemplos de paradigmas. O cientista normal age de maneira cumulativa, ou
seja, soluciona impasses que surgem a partir do próprio paradigma e que por seus próprios
meios serão sanados, sem empreender uma busca que vá além da teoria estabelecida e aceita.
Por essa razão, quando uma pesquisa não é bem sucedida não se questiona o insucesso do
paradigma, e sim supõe-se que o pesquisador não soube encontrar a solução para um
problema que o paradigma pode resolver. Todavia, na medida em que aumentam os
conteúdos explorados pela teoria irrompem também problemas que resistem aos métodos de
solubilidade do paradigma; este processo conduz à chamada “crise do paradigma”. Kuhn
explicita que à crise segue-se o período chamado de “ciência extraordinária”, no qual o
paradigma é submetido a um regime de desfocamento em que seus dogmas são postos em
dúvidas e as normas que regem a ciência normal são suavizadas. Este curso que conduz à
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41!
Conforme expõe Laplantine (1991), a delimitação dos espaços que determina o que
configura uma medicina paralela perpassa os processos de institucionalização sociais, onde a
prática médica tida como oficial pelo Estado torna-se a medicina hegemônica, e relega às
medicinas outras o caráter de alternatividade ou, quando muito, complementariedade. Não
obstante, as terapias holísticas, paralelas à oficial, nunca pereceram, seja como medicina
popular ou como as medicinas tradicionais/complementares reconhecidas pelas Organização
Mundial de Saúde no final dos anos 1970. Stern (2015b), amparado em Gurgel (2010),
!
42!
diferencia os domínios próprios a cada uma e ainda onde se situa a Naturologia neste contexto
enquanto produtora de um campo próprio. Ele explica que, ao passo em que a medicina
popular brasileira figura como um híbrido entre a medicina xamânica indígena, a medicina
popular europeia e a religião africana – esta última pouco referida na literatura, mas, como
ressalta Stern, sua inclusão neste campo é de vital importância para a compreensão da
identidade e medicina brasileiras –, a Naturologia em seu campo de atuação utiliza de práticas
que aludem mais diretamente àquelas sistematizadas pela OMS18 e que são, em grande parte,
provenientes da difusão da Nova Era na Europa e nas Américas do Norte e Latina. Desta feita,
o que mais aproximaria a Naturologia brasileira das medicinas populares seria “o uso de
águas minerais, introduzido pela colonização portuguesa, e de plantas medicinais [...]. Isso
nos permite concluir que a medicina popular brasileira e as práticas utilizadas por
naturólogos, embora próximas, não são sinônimas.” (STERN, 2015a, p. 55).
Com o intuito de fomentar o desenvolvimento de políticas próprias às medicinas não
hegemônicas, no final da década de 70 a OMS deu início ao Programa de Medicina
Tradicional (BRASIL, 2006a), por ocasião da primeira conferência sobre atenção primária,
realizada na cidade de Alma Ata, na extinta União Soviética (TONIOL, 2015a). Como
destaca o antropólogo, embora o relatório final da Conferência contenha diretrizes diversas
para a recomendação da formulação de políticas referentes ao uso de remédios tradicionais, o
fio condutor da proposta está associado ao momento político relativo à época – a Guerra Fria
– e à percepção, ratificada por dados sistematizados, de que aproximadamente dois terços da
população mundial eram privados do acesso às tecnologias em saúde, aos profissionais e às
instituições hospitalares. Desta feita, desde o primeiro relatório a OMS vem reafirmando o
incentivo aos Estados Membros à elaborarem e implementarem políticas de acesso e fomento
à pesquisa das Medicinas Tradicionais/Medicinas Alternativas e Complementares (BRASIL,
2006a).
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18
Como pode ser verificado em Laplantine e Rabeyron (1989, p. 20-21), a lista disponibilizada pela OMS abarca
um grande número de técnicas diagnósticas e terapêuticas das quais a maioria são desconhecidas no contexto
brasileiro. Todavia, destas podemos selecionar algumas que compõe a gama de terapêuticas utilizadas na
Naturologia, a saber: medicina antroposófica, iridologia, diagnóstico por exame de língua, diagnóstico físico,
reflexologia, shiatsu, moxabustão, naturopatia, respiração, balneoterapia, fitoterapia, argila e lama, aromaterapia,
alimentos integrais/veganismo/vegetarianismo, ventosas, meditação, cromoterapia, tàijí quán. É importante
frisar, contudo, que algumas das práticas supracitadas são abordadas de maneira indireta ou compõe uma
disciplina especifica na grade curricular dos cursos de Naturologia no Brasil, como é o caso dos “alimentos
integrais/veganismo/vegetarianismo”, que podemos considerar uma linha dos estudos que fazem parte da
disciplina de Trofoterapia; “argila e lama” que se refere à Geoterapia; e “naturopatia”, que como referido por
Laplantine e Rabeyron (1982, p. 18) seria a “prescrição de produtos naturais (a ingerir ou de uso externo)
essencialmente à base de vegetais e também de outros elementos”, e que ainda que não configure uma disciplina
específica da área, está em acordo com algumas das terapêuticas inseridas na Naturologia.
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43!
Falar de medicina “alternativa” é... como falar sobre estrangeiros – ambos os termos
são vagamente pejorativos e se referem à categorias extensas e heterogêneas,
definidas antes pelo que não representam, do que efetivamente pelo que são
(PIETRONI, 1992 apud WHO, 2002, p. 8, tradução minha).
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19
Introduzida pelos ingleses no século XIX (ROCHA, 2010)
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44!
se populares, é crucial o equilíbrio entre a proteção dos direitos de propriedade intelectual dos
povos locais e de sua herança cultural em saúde, com o fomento à pesquisa, ao
desenvolvimento e à inovação tecnológica (WHO, 2013).
As colocações da OMS são problemáticas quando refletimos que o núcleo de
compreensão e efetividade das medicinas tradicionais está, em grande parte, ancorado em um
pensamento simbólico, como referido por Lévi-Strauss (1949). O antropólogo enfatiza em A
Eficácia Simbólica a importância relativa à afetividade no processo terapêutico – afetividade
entre o grupo social, o paciente, o xamã (no caso do exemplo dado por Lévi-Strauss) – que
pode se realizar por meio de rituais ou técnicas oriundas de uma racionalidade mitológica,
sem que a isso sejam atribuídos juízos valorativos. Para o antropólogo, a organização
simbólica, com sua evocação de símbolos compartilhados por paciente e curador, é
fundamental para o funcionamento da magia que concretiza a cura. É importante frisar que,
nessa dissertação, compreendemos magia não como uma forma de ocultismo, e sim a partir da
acepção atribuída por Bourdieu (1983): grosso modo, magia para o sociólogo é a crença
coletiva na ideologia proposta pelos produtores do campo, que possibilita o funcionamento do
sistema em questão. Conforme Bonet (2013), a eficácia simbólica acontece porque as
diferentes dimensões que compõe o individuo, como seu contexto social e material, se
relacionam de forma metafórica, o que implica dizer que uma dimensão se comporta como
“contexto” para a outra. Ou seja, em determinados casos parte da cura atribuída à uma
terapêutica realiza-se por meio da crença por parte da população na efetividade do ritual e no
indivíduo que o conduz. Também Unschuld (1985, p. 249) observa que
!
45!
Assim, o que diversos estudiosos da área vêm pontuando é que não só as fronteiras entre
onde começam uma (medicina) e terminam outra (religião) são difusas, mas que essa “terra de
ninguém” é nos dias atuais uma periferia densamente povoada em um campo rotulado como
ambiente holístico (CORNEJO; BLÁZQUEZ; FLORES, 2014; HANEGRAAFF, 1996;
HEELAS, 2008). Holismo foi um termo forjado por Jan Smuts em 1926 na obra “Holism and
Evolution”, escrita em formato de critica à causalidade cientifica dominante no pensamento
do século XIX. No livro o autor argumenta que somente a interlocução entre ciência e
filosofia proporcionaria o progresso a ambas, e afastaria a humanidade de uma perspectiva
meramente mecanicista. Assim, Smuts via o Holismo, em primeiro lugar, como uma via de
estudos dos aspectos universais, estruturais e subjetivos da realidade, e em segundo creditava
ao mesmo a tendência do universo em se organizar e evoluir, pensando cada organismo –
desde a matéria mais ínfima até à grandeza espiritual – como uma totalidade com capacidade
de se ordenar em uma mesma direção (LIMA, 2008). O termo acabou sendo incorporado pela
sociedade moderna como uma palavra-chave para se falar da integração do todo, ainda de
uma maneira um tanto ampla. Hanegraaff (1996) observa que sua utilização no meio Nova
Era não está relacionada à nenhuma escola ou cosmovisão previamente estabelecida, mas sim
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46!
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47!
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20
Para um debate mais acurado sobre o uso da nomenclatura “tradicional” pela Naturologia, cf. STERN (2014).
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48!
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21
Iniciativa psicológica e psicoterapêutica oriunda dos EUA nos anos 1960. De acordo com Hanegraaff (1996,
p. 48, tradução minha), o objetivo principal do Movimento era “[...] ajudar as pessoas a entrarem em contato
consigo mesmas, isto é, com aquelas partes que foram alienadas e suprimidas”.
22
Nome atribuído às abordagens alternativas de saúde que ganharam terreno durante os anos 1970. Embora
compartilhe de muitos interesses com o Movimento do Potencial Humano, Hanegraaff (1996) distingue que o
segundo apresenta uma preocupação mais direta com a cura física integral, enquanto o primeiro se direciona
principalmente ao tratamento de bases psicológicas. !
!
49!
Não obstante o caráter contracultural das críticas apresentadas na subseção acima, o que
se constata no quadro atual é um incentivo à mudança a partir do próprio sistema – e aqui
também relembramos a fala de Teixeira (2013), quando diz que a maior ruptura da
Naturologia para com a Nova Era está justamente na ânsia por legitimação. Com essa
afirmação estamos nos referindo aos processos de institucionalização e regulamentação das
terapias holísticas, primeiramente a partir do Programa de Medicina Tradicional da OMS, que
foi convertido em um departamento na década de 80, e mais recentemente com a instituição
da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Brasil. Toniol
(2016) narra que o processo de criação de tal Política teve seu inicio no ano de 2003 durante a
gestão de Humberto Costa, o primeiro ministro da saúde do governo Lula, com a elaboração
de um documento escrito por uma comissão médica e de especialistas em terapias
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50!
Evidentemente, a substituição dos termos foi o meio encontrado e aceito para a aprovação
da PNPIC sem que um confronto fosse travado com a classe médica. Isto porque a categoria
“medicina” é assegurada pelo Estado como domínio e monopólio dessa classe, e, portanto,
intocável no que tange à uma possível regulamentação do termo associado à terapias não
institucionalizadas e reconhecidamente científicas. Toniol (2015a; 2016) faz menção ainda à
outras dinâmicas que circundam o nome ‘Práticas Integrativas e Complementares’. Em
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51!
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2 NATUROLOGIA
Este capítulo tem a função de ampliar o conhecimento do leitor sobre a Naturologia. Para
uma correta compreensão dos pontos levantados nesta pesquisa, faz-se importante uma
descrição mais detalhada sobre o campo que estamos tratando. Assim sendo, nosso intuito foi
que este capitulo abarcasse os principais pontos da história da Naturologia e das categorias
êmicas que embasam o discurso e a prática da profissão. Será notado que um grande destaque
foi dado à instituição dos cursos de Naturologia em Santa Catarina e em São Paulo. Como
área emergente, grande parte do núcleo de compreensão do que é a Naturologia ainda orbita
ao redor da universidade, e por isso julgamos importante a descrição da trajetória do curso.
O capitulo foi dividido em três seções. A primeira se dedica a narrar o histórico da área –
como citamos acima, por ser uma profissão bastante nova a história da Naturologia está
atrelada à história dos porquês da criação do curso. Para entender essa questão, levantamos a
partir de Stern (2015a; 2017) e Ceratti (2015) os distanciamentos e aproximações da
Naturologia para com a Naturopatia, de modo a esclarecer os motivos da criação de uma
graduação com um nome díspare de outro que já desfruta de maior reconhecimento social, e
que para muitos indicam um mesmo campo de atuação. Em seguida, o desenvolvimento do
curso e da área é contado a partir de sua distinção em três fases. Esta divisão diz respeito às
tendências mais observadas em diferentes momentos, tendo sido proposta primeiramente por
Rodrigues e outros (2012), e posteriormente desenvolvida em maiores detalhes por Stern
(2015a). A seção seguinte tratará da trajetória política da área, o que inclui a criação das
associações regional e nacional de Naturologia, a luta pela regulamentação da profissão, e a
conquista da inclusão do profissional naturólogo na CBO (Classificação Brasileira de
Ocupações) do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego). A última seção tratará do modo
como a Naturologia descreve a si mesma. A partir de um levantamento das publicações da
área, elencamos passagens em que os naturólogos descrevem a profissão, distinguindo
principalmente quais são os elementos que os interlocutores consideram como centrais ao
campo, e quais reivindicações dão sentido à existência da Naturologia. O intuito dessa seção
foi dar voz ao próprio campo, demonstrando como os naturólogos apresentam a si mesmos.
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56!
da área e passar por exames de credenciamento, a partir dos quais obtém amparo legal para o
exercício da profissão, além da filiação a organizações de classe. No Brasil, em virtude do
inicio das politicas nacionais para implementação das PIC no sistema de saúde, os naturopatas
conquistaram em 2002 seu próprio CBO (Cadastro Brasileiro de Ocupações), na família 3221,
concernente aos tecnólogos e técnicos em terapias alternativas e estéticas (STERN, 2015a). Já
a Naturologia veio a conquistar seu CBO em fevereiro de 2015, na família 2263, cujo digito 2
indica ocupações de nível superior, diferentemente da Naturopatia que enquadra-se em
ocupações de nível técnico. Ainda que a conquista de um CBO próprio demonstre um avanço
no processo de regulamentação profissional da Naturologia, perduram os debates sobre a
aproximação das duas áreas, ou ainda outros que afirmam ser ambas a mesma coisa. Talvez,
como sugere Stern (2015a), isso ocorra em virtude da influência que a OMS exerce sobre o
Ministério da Saúde brasileiro, de modo que a publicação da Organização poderia vir ao
encontro dos interesses políticos dos naturólogos.
Contudo, Stern (2015a; 2015c) e Ceratti (2015) defendem que concluir que Naturopatia e
Naturologia são sinônimos seria um equívoco. Utilizando-se da teoria das racionalidades
médicas, Ceratti efetuou uma pesquisa em que compara as graduações de Naturopatia do
Canadá e Estados Unidos, e as formações de Naturologia do Brasil. A naturóloga conclui que
enquanto as graduações aproximam-se no quesito doutrina médica – ou seja, na maneira como
compreendem o processo saúde e doença, que neste caso indica um olhar integral em saúde –,
distanciam-se no modo como abordam a morfologia e dinâmica vital (na medicina alopática,
anatomia e fisiologia), a diagnose e a terapêutica. Segundo Ceratti (2015), isto ocorre pois
nestes países a Naturopatia dialoga legalmente com a medicina, de modo que se aproxima de
um olhar biomédico. Por outro lado, no Brasil a Naturologia apropria-se com maior
profundidade das PIC e de um estudo crítico acerca da multidimensionalidade da saúde, além
de portar concepções muito próximas das noções de cura da Nova Era. Deste modo, Stern
(2015a, p. 91) conclui que
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o valor dos valores que exclui, [o capitalismo] incentiva sua própria oposição”24 (HEELAS, p.
2008, tradução minha); e, ao mesmo tempo, absorve todos os movimentos contrários a si em
seu sistema consumista, criando um braço do sistema dominante que se prolonga para uma
faceta da vida social que se pretendia inalcançável. Nesse novo modelo de saúde e
espiritualidade, o crescimento dos buscadores espirituais25 fez nascer um nicho de mercado
em que os bens religiosos da Nova Era foram pouco a pouco transformados em bens de
consumo e amplamente difundidos na mídia, constituindo o novo modo pelo qual os sujeitos
passaram a ter acesso às espiritualidades, em oposição à intermediação anterior realizada por
agentes do interior da contracultura (HEELAS, 2008).
Ainda que Stern (2015a) e Teixeira (2013) atestem as alegações de Hellmann e Silva, os
pesquisadores consideram que o surgimento da área como curso superior não é
exclusivamente uma resposta à demanda de um profissional em terapias naturais com curso
superior; antes, eles indicam a chegada do Movimento Nova Era ao Brasil como o fator
principal para a ideia da criação do curso. Para Stern (2015a), ainda que o discurso oficial da
Naturologia associe a necessidade da formação deste profissional às politicas da OMS e ao
incentivo do Ministério da Saúde à utilização das PIC, o autor defende que sua eclosão se
deve ao florescimento dos valores novaeristas no território brasileiro. Isto porque, segundo
demonstra,
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60!
Naturologia está em sua terceira fase, bem mais madura que a das fases iniciais.
Stern (2017; 2016; 2015a) explica que, não obstante esse modelo não seja oficial, ele opta
por adota-lo em vista da inexistência de outro para descrever a história da Naturologia. Da
mesma maneira, considero este esquema suficiente até o momento para traçar um panorama
das mudanças ocorridas no viés da graduação. Todavia, penso ser importante mencionar que
essas fases citam eventos relacionados à uma sequência histórica da Naturologia da UNISUL;
até mesmo porque a fundação do curso na UAM só ocorreu durante o período que
identificamos como a segunda fase. Ainda assim, levando em consideração que nesta pesquisa
estamos analisando a Naturologia a partir das produções de seus agentes, esse modelo é
válido para ilustrar a progressão do campo. Isso pelo motivo que, embora algumas edições
contem com contribuições de naturólogos pesquisadores de São Paulo, todos os livros já
lançados da Naturologia, o primeiro periódico (RECNA), o periódico vigente (CNTC) e a
edição especial dedicada à área da revista Cadernos Acadêmicos, foram iniciativas da equipe
sulista e patrocinadas pela Editora Unisul. Igualmente, Daniel Maurício de Oliveira
Rodrigues, atual coordenador da Naturologia de Santa Catarina, é o editor-chefe e fundador
dos CNTC, presidente da Sociedade Brasileira de Naturologia (SBNAT) e ex-presidente da
Associação Brasileira de Naturologia (ABRANA). Deste modo, embora a linha traçada para
determinar tais fases aludam mais especificamente à história da Naturologia sulista, cremos
que refletem a construção do campo de uma forma mais ampla. De fato, a fala de Rodrigues e
outros (2012) na citação acima foi a primeira a elaborar o esquema de fases da Naturologia, e
foi publicada em um livro desenvolvido em parceria com pesquisadores de outras localidades
e da Naturologia da UAM, embora as colaborações sejam de agentes predominantemente da
UNISUL.
A primeira fase da Naturologia figura como centralizada por um discurso êmico, ou seja,
moldada de acordo com a visão interna de um determinado grupo. Como comentamos, as
idealizadoras da Naturologia eram pessoas bastante alinhavadas com os pressupostos da Nova
Era; da mesma maneira, o inicio da graduação foi marcado por fontes de literatura de autores
novaeristas como Fritjof Capra, Ken Wilber, Amit Goswami e Deepak Chopra, para
fundamentar o uso e a lógica de suas terapêuticas. Stern (2017) expõe que este foi um período
de grande resistência à perspectiva ética 26 e ao método cientifico, pontuado pela baixa
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26
Por “ético” estamos nos referindo aqui ao entendimento de Platvoet (1982 apud HANEGRAAFF, 1998), quem
distingue os termos êmico e ético para se referir respectivamente à uma abordagem insider acerca de
determinado objeto de pesquisa, contrária à abordagem acadêmica que analisa este objeto criticamente e de
modo distanciado da visão interna de seus atores.
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61!
produtividade acadêmica.
O autor também cita que grande parte do corpo docente não possuía qualificação
acadêmica especifica para trabalhar com as práticas naturais, portanto seus agentes eram
advindos de áreas distintas como direito, filosofia ou letras, mas lecionavam aulas sobre
técnicas corporais, cromoterapia e medicina chinesa, que haviam aprendido por meio de
cursos livres ou buscas pessoais. Por outro lado, mesmo nesse período havia a preocupação
por uma formação profissional que respondesse às exigências acadêmicas – ainda que os
valores implícitos à área clamassem por uma nova ciência –, e o objetivo final estava no
estabelecimento da profissão na área da saúde, com a devida legitimidade social conferida aos
naturólogos.
O marco de passagem para a segunda fase é referido por Stern (2017) e Teixeira (2013)
como sendo a entrada da bióloga Rosane Goulart na coordenação. À época, o curso de
Naturologia já havia se tornado um dos mais procurados na UNISUL, e a falta de crivo
acadêmico preocupou Goulart, quem considerava que o curso poderia manchar a imagem da
instituição (STERN, 2017, p. 145). Assim, com amparo da reitoria a nova coordenadora
decidiu imprimir mudanças na formação, primeiramente alinhando a titulação dos docentes às
disciplinas que lecionavam – fato que incutiu na substituição de diversos professores.
Ademais, Goulart solicitou ao corpo docente a discussão sobre o que de fato constituía a
Naturologia, visando à adequação de um projeto pedagógico curricular mais próximo a outras
disciplinas da área da saúde, e portanto com um caráter mais biologicista. Foi durante este
período que surgiu a conceituação da relação de interagência, desenvolvido pela pedagoga
Denise Régio Gomes. Todavia, Gomes foi desligada da instituição por apresentar um perfil
muito distante do esperado para esse novo contorno que estava sendo traçado para a
Naturologia: a profissional defendia que a reformulação do curso deveria manter a proposta
inicial imaginada por seus fundadores, ou seja, mais alinhada aos ideais da Nova Era; Goulart,
por outro lado, defendia um teor mais técnico para a Naturologia. Conforme Stern (2017),
nem todos os professores acataram as mudanças propostas pela nova coordenação; assim, um
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27
Stern (2017, p. 150) explica que esta unidade não ensinava mecânica quântica, mas sim sobre mitologias da
ciência (HANEGRAAFF, 1998). Ou seja, discorria sobre uma leitura espiritualizada do simbolismo da física
quântica e da teoria da relatividade. O pesquisador comenta que embora a disciplina tenha sido retirada
objetivamente da grade, seus conhecimentos continuaram a ser transmitidos transversalmente. A última turma
que formalmente recebeu ensinamentos sobre o tema foi a que iniciou a graduação no segundo semestre de 2011.
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63!
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29
Cf. RODRIGUES, Daniel Maurício de Oliveira (Org.); et al. Naturologia: diálogos e perspectivas. Palhoça:
Unisul, 2012.
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65!
docentes paulistas tendem a referir-se à Antroposofia como uma das bases teóricas da
Naturologia, afirmação que não é comum aos naturólogos formados na instituição
catarinense, posto que esta oferece somente uma disciplina de poucos créditos chamada
Fundamentos da Antroposofia. Ademais, figura o ensino de cadeiras referentes às práticas
integrativas e complementares, que serão manipuladas de acordo com o pensamento
terapêutico holístico desenvolvido a partir da confluência das disciplinas citadas acima.
Dentre essas cadeira, incluem-se: recursos artísticos, aromaterapia, hidroterapia,
cromoterapia, massoterapia, fitoterapia, reflexologia, iridologia, florais, trofoterapia, técnicas
corporais (como Qìgōng, Liàngōng, e yoga).
Durante os dezessete anos de existência do curso da UNISUL, seu projeto pedagógico já
passou por três reformulações, enquanto sete reformulações curriculares foram realizadas na
UAM em seus quinze anos de Naturologia. Teixeira (2013) relata que no primeiro projeto
pedagógico da Naturologia da UNISUL não havia nenhuma disciplina que fizesse menção
direta às terapêuticas de origem asiática ou ao Xamanismo.
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66!
Energética I, II, III e IV, sendo a primeira a já citada física quântica, e as seguintes Medicina
Tradicional Chinesa, Xamânica e Āyurvedica, respectivamente.
Com a inserção de naturólogos já pós-graduados na coordenação, novas questões
emergiram a partir das reflexões dos próprios naturólogos, fato que levou à terceira
reformulação. Distintamente dos projetos pedagógicos anteriores, este, que ainda vigora, foi
elaborado por uma equipe em que somente uma das participantes não era naturóloga. Como
pondera Teixeira (2013) de um modo geral as disciplinas ofertadas mantém um mesmo
padrão de abordagem dos conhecimento referentes à biologia, à psicologia e às práticas
integrativas e complementares. A diferença nessa grade, segundo o pesquisador, está no
formato, agora baseado em habilidades e competências30; além disso, Teixeira considera que
este terceiro projeto apresenta uma maior preocupação com a abordagem de teorias e
reflexões relacionadas às ciências sociais. Segundo ele, é o que indica a inserção de unidades
de aprendizagem como Estudos Socioculturais, Racionalidades Médicas e Terapias
Integrativas, Saúde e Sociedade, entre outras. Em relação ao ensino das medicinas não
alopáticas, o impacto dessas novas cadeiras estaria em uma abordagem mais voltada aos seus
aspectos históricos e culturais, além de técnicas diagnosticas e terapêuticas. Deste modo,
reflete, o estudo da Āyurveda pode ser abordado a partir da distinção entre suas diferentes
escolas, a medicina chinesa pode ser pensada como fruto de construções culturais milenares, e
a Medicina Xamânica pode ser vista a partir de uma multiplicidade de xamanismos. Assim,
uma abordagem mais atenta à contextualização dos saberes não dominantes poderia vir a ser
uma realidade mais próxima, desde onde espera-se a redução da homogeneização destes
saberes (TEIXEIRA, 2013, p. 111).
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30
“[...] ao invés dos conteúdos ministrados nas antigas disciplinas, habilidades e competências passaram a ser
oferecidas em unidades de aprendizagem. Estas unidades de aprendizagem, que correspondem, portanto, às
antigas disciplinas, são agrupadas em certificações, que podem ser estruturantes: quando visam dar identidade
ao curso escolhido pelo estudante, atendendo as diretrizes curriculares de cada curso especificamente;
complementares, quando complementam a formação do aluno; eletivas, se oferecem conhecimentos de áreas de
interesse do estudante; e específicas, quando relacionadas à pesquisa, extensão, estágios e TCC (KRAHE;
SILVA; SILVA; NESI, 2012 apud TEIXEIRA, 2013, p. 63).
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67!
também indicativos dessa situação: Stern (2015a) elenca o fortalecimento politico gerado das
interações entre a Associação Brasileira de Naturologia (ABRANA) e a Associação Paulista
de Naturologia (APANAT), o aumento das produções acadêmicas da área – reflexo da entrada
dos primeiros naturólogos em programas de mestrado e doutorado – e a criação dos Cadernos
de Naturologia e Terapias Complementares, também entrelaçado aos demais fatores. Todos
esses aspectos se manifestam nas produções por via de uma visão mais crítica acerca do
processo de elaboração do conhecimento e de divulgação do mesmo – pontos fundamentais
para a consolidação profissional desejada para a Naturologia.
Dentro do panorama geral da trajetória politica, as duas associações existentes de
Naturologia vem exercendo um papel ativo no sentido do reconhecimento e regulamentação
da Naturologia no Brasil. Ademais, fomentam outras iniciativas politicas, burocráticas e
legais, como por exemplo a busca por unir e estruturar uma maior coerência de ensino,
pesquisa e politica entre os cursos de Florianópolis e São Paulo. Teixeira (2013) indica que,
relacionado a isso, há uma tendência em fundir em uma única instituição a ABRANA e a
APANAT, que comportaria uma matriz e filiais estaduais em São Paulo e Santa Catarina.
Embora a ABRANA seja classificada como uma associação nacional, e a APANAT como
regional, Stern (2015a) sustenta que ambas são, na prática, associações de âmbito regional;
isto porque enquanto a APANAT foi fundada em São Paulo, em maio de 2007, a ABRANA,
fundada em abril de 2004, tem sua sede em Florianópolis, e de modo geral os alunos e
naturólogos formados da UNISUL tendem a se associar à ABRANA, e os alunos da UAM à
APANAT (STERN, 2015a; PASCHUINO, 2014)
Conforme dita o site da APANAT, a associação visa fomentar o movimento de
reconhecimento da profissão, em vista a garantir e aumentar o campo de trabalho do
naturólogo, pois, segundo expõe, a despeito das conquistas da área e das comprovações
cientificas referente às terapias integrativas e complementares, o Governo Federal Brasileiro
ainda não reconhece o profissional naturólogo. A ABRANA versa no mesmo sentido,
indicando que seu objetivo enquanto instituição é representar e auxiliar os profissionais e
alunos de Naturologia, afim de colaborar com o crescimento, reconhecimento e
regulamentação da profissão no país e no mundo. Ambas pretendem agregar o maior número
possível de naturólogos entre seus associados, pois quanto maior a participação e força
politica da classe, maior será a visibilidade do campo perante o Governo e aos pares da área
da saúde (APANAT, 2017). O escopo final seria a formação do Conselho Federal de
Naturologia, órgão próprio à fiscalização da atuação profissional em Naturologia e à
formação dos discentes. Ademais, as duas instituições trabalham juntas e separadamente no
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68!
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69!
metade do processo já foi avançado, com a conquista da aprovação por parte da CE e CSSF,
restam agora as avaliações da CTASP e CCJC (SABBAG et al., 2013; STERN, 2015a).
A inclusão da ocupação de naturólogo no CBO levou as associações a protocolarem, em
março de 2016, o pedido de cadastro da CBO de naturólogo na DAB/PNPIC (Departamento
de Atenção Básica / Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares). A ação foi
efetiva e o CBO foi incluso em 37 procedimentos do SUS em abril/2016, através das Notas
Técnicas no 04/2016 de 25/03/2016, no 05/2016 de 25/04/2016, e do Memorando no 002 de
13/04/2016 (REGULAMENTA NATUROLOGIA, 2017). Recentemente o escopo de práticas
inclusivas ao CBO do naturólogo aumentou, com a Portaria no 849/2017 publicada no Diário
Oficial da União, em março de 2017. A partir de então, o SUS passou a ofertar dezenove
práticas integrativas e complementares à população, das quais dezessete compreendem o
campo de atuação do naturólogo31.
Em 9 de janeiro de 2017, o PL 355/2016 solicitou ao Poder Executivo a criação do
Serviço de Naturologia nas Unidades de Saúde mantidas ou vinculadas ao poder público
estadual, através da Secretaria de Estado da Saúde. Contudo, o PL de autoria do Deputado
Estadual Antônio Salim Curiati, foi vetado pelo governador do Estado de São Paulo, Geraldo
Alckmin, conforme consta na publicação do Diário Oficial do Estado (DOE) I, no dia
01/02/2017, p. 3 (REGULAMENTA NATUROLOGIA, 2017).
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31
As práticas oferecidas são: homeopatia, medicina tradicional Chinesa/acupuntura, medicina antroposófica,
plantas medicinais e fitoterapia e termalismo social/crenoterapia, arteterapia, āyurveda, biodança, dança circular,
meditação, musicoterapia, naturopatia, osteopatia, quiropraxia, reflexoterapia, reiki, shantala, terapia comunitária
integrativa e yoga. Destas, somente osteopatia e quiropraxia não estão previstas no CBO do naturólogo
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2017).
!
70!
área e por entidades profissionais que, ao fim, não chegam à um consenso a respeito da
própria Naturologia (SILVA, 2008, p. 2).
Se o inicio das produções acadêmicas da Naturologia32, marcado pelo lançamento de O
livro das interagências – Estudos de Casos em Naturologia33, e Naturologia – Reflexões
sobre saúde integral34, assinalava uma maior proximidade da área com os pressupostos
novaeristas, à medida que os naturólogos passaram a ingressar em mestrados e doutorados, ou
ainda uma segunda formação que complementasse a primeira em Naturologia, muito do que
foi escrito no inicio começou a ser revisto ou relativizado. Fernando Hellmann, ex-
coordenador do curso de Naturologia da UNISUL e um dos primeiros naturólogos formados a
seguir carreira acadêmica, já notou essa necessidade de revisão e aprofundamento das teses
sobre Naturologia em 2008, quando ressalta na apresentação do O livro das Interagências que
embora os artigos escritos pelos naturólogos na época35 refletissem parte da teoria e prática
desse campo de saber, antes refletem as perspectivas e pontos de vista dos próprios autores, e
que portanto faz-se importante que o leitor não tome “[...] estes textos como verdades
máximas, mas sim [que], a partir deles, [possa] refletir sobre a construção teórica desta
profissão” (2008, p. 9).
Como comenta Stern (2015a; 2017), as explicações que vigoraram sobre a Naturologia
durante sua primeira fase eram repletas de termos vagos, característica também presente no
meio novaerista e, justamente por isso, basilar ao momento vivido pela área. O autor expõe
que “eram corriqueiras expressões como qualidade de vida, energia vital, bioenergia e
holismo; esta última, desenvolvida em dimensões como “física/material”,
“mental/psicológica” e “energética/espiritual” (STERN, 2015a, p. 74). O problema de tais
definições é que a maior parte desses termos é bastante polissêmico, ainda mais com o
agravante de que tais locuções eram apresentadas ao leitor sem maiores desenvolvimentos.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
32
Na realidade, o inicio formal das produções acadêmicas em Naturologia foi a partir do lançamento da Revista
Eletrônica do Curso de Naturologia Aplicada (RECNA), organizado por Fernanda Faraco D’Eça Neves e
Graciela Mendonça da Silva de Medeiros. Dois números foram lançados contendo aproximadamente quatro
artigos, produzidos por professores, em cada. Segundo Medeiros (informação disponibilizada via e-mail), a saída
de Neves da UNISUL, a licença maternidade de Medeiros e o acúmulo de atividades acadêmicas com as quais se
comprometera no curso acabaram levando ao cancelamento da revista, que foi posta off-line. Entramos em
contato com Medeiros para perguntar se ela ainda teria esse material em seus arquivos e se poderíamos utiliza-lo
nessa pesquisa, todavia, devido ao tempo transcorrido a professora já não está mais em posse deste material.
Assim, consideramos que o inicio efetivo das produções acadêmicas em Naturologia está fixado no lançamento
dos dois livros de 2008 citados acima, posto o maior alcance que estes atingiram, e o fato de conter não somente
artigos produzidos por professores – quem no RECNA ainda estavam discutindo sobre a necessidade de haver
produções acadêmicas da área e sobre a importância da participação docente no periódico –, mas também por
alunos e profissionais formados em Naturologia.
33
Cf. HELLMANN; WEDEKIN, 2008
34
!Cf. HELLMANN; DELLAGIUSTINA; WEDEKIN, 2008.
35
Isto porque alguns dos artigos publicados nesse livro foram escritos até três anos antes, conforme expõe
Hellmann na apresentação do livro.
!
71!
Stern (2015a; 2017) sublinha um exemplo de definição desse período, exposto na dissertação
de Christofoletti (2011a, p. 29), e também em um artigo do mesmo ano derivado da sua
pesquisa (CHRISTOFOLETTI, 2011b) no qual a naturóloga descreve que
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
36
Os autores destacam que se referem às Tradições Xamânica, Indiana e Chinesa como as principais tradições
milenares do mundo, pois permitem “um olhar profundo da relação homem-saúde-natureza, ou seja, uma
medicina voltada para o espírito” (SILVA; MARIMON, 2011, p. 75).
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72!
fato, esse é um estudo que não atrai o interesse do campo cientifico, ao contrário do que é
observado com a Medicina Chinesa e, em menor medida, com a Āyurveda, por exemplo. Suas
premissas em saúde – universalizadas e psicologizadas pela Nova Era, conteúdo que iremos
abordar no terceiro capítulo – são vistas pelo senso comum como divergentes a qualquer
espécie de associação cientifica, que a inclui no bojo do misticismo.
Conforme citamos anteriormente, foi durante a segunda fase da Naturologia que se erigiu
a concepção de que o curso é pautado nas Medicinas Chinesa, Āyurveda e Xamânica, além da
associação de tais abordagens terapêuticas às releituras da Física Quântica – característica
ainda presente em alguns textos do último livro lançado, em 201237 –, como pode ser visto na
apresentação do livro Naturologia Aplicada – reflexões sobre saúde integral
Também Hellmann e Martins (2008, p. 58) afirmaram que a Naturologia “[...] busca
promover, manter e recuperar a saúde desse [indivíduo], baseando-se em métodos milenares
de condutas terapêuticas como a Medicina Tradicional Chinesa, a Medicina Ayurveda e a
Xamânica”. Mesmo em 2011, Barros e Leite-Mor (2011, p. 8) afirmam que “[...] as raízes da
árvore Naturológica são de tradição chinesa, xamânica, aiurvédica e ocidental. Destas
vertentes, o Naturólogo constrói sua prática e intervenção politico-profissional no campo da
saúde”. Por outro lado, relembramos a fala de Silva (2008) ao afirmar que a Naturologia é
descrita diferentemente a depender do seu interlocutor, quando vemos a descrição de
Naturologia de Cidral Filho, um naturólogo com titulação de mestre e doutor em
Neurociências:
A Naturologia, por meio das práticas naturais, se propõe a intervir nos sistemas
cibernéticos de regulação orgânica no intuito de organizar toda a variedade de
funções corporais em busca da homeostase. Para tanto, o Naturólogo avalia o ser
humano física e energeticamente, considerando os padrões emocionais individuais e
sua inter-relação com os processos físicos; e de forma dinâmica, elege estratégias
terapêuticas adequadas à evolução do quadro funcional do interagente (CIDRAL
FILHO, 2008, p. 133)
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
37
Cf. RODRIGUES et al., 2012.
!
73!
Todavia, esse tipo de descrição nunca foi central no meio; a definição mais recorrente até
recentemente foi a dos pilares das três medicinas, e se enraizou com tal força dentre os
naturólogos que o CONBRANATU de 2014 teve como tema as medicinas tradicionais, e até
mesmo o editorial do último livro publicado pela UNISUL também descreve as bases do
curso como amparadas nestas abordagens em saúde (STERN, 2015a). Porém, como observa
Stern, essa relação da Naturologia com tais terapêuticas não é incontestável – isto porque é
possível que um naturólogo trabalhe sem utilizar nenhuma das três medicinas. Segundo o
autor, o que define a ocupação do naturólogo seria o bacharelado em Naturologia e a
utilização das PIC.
Em vista a essa variedade de modos de se explicar a Naturologia, os agentes do campo
passaram a se preocupar com as lutas pelos direitos da classe, que demandam, segundo Stern
(2015a; 2017), justamente o oposto da diversidade de perspectivas; era necessário um
movimento de padronização dos discursos para o fortalecimento do campo. Essa preocupação
levou a ABRANA, em 2009, a promover o Fórum Conceitual de Naturologia, um evento
público com o objetivo de definir oficialmente o que é Naturologia através da consulta aos
naturólogos. Stern (2015a) relata que esse primeiro FCN levou à problemas em sua ocorrência
por não haver um fio condutor: o microfone era passado entre os participantes e cada um dava
uma sugestão. Isso levou à divergências, pois um grupo defendia que a Naturologia era uma
ciência, e outro bradava que ela jamais seria cientifica. Posteriormente, Silva (2013) se referiu
à estes dois grupos como o “povo da alma” e o “povo da ciência”. Teixeira sugeriu então que
novos Fóruns deveriam ser realizados, sobretudo através de produções acadêmicas e não por
consultas públicas. Deste modo, os eventos passaram a ser anuais por meio de mesas redondas
e submissão de papers, que são analisados pela comissão organizadora do evento, de modo a
possibilitar um desenvolvimento epistemológico mais efetivo para o campo (STERN, 2015a).
Mas como a formulação de um discurso unificado tenderia à demora unicamente por meio dos
FCN, a ABRANA e a APANAT decidiram desenvolver um dossiê e um manual explicativo
sobre a Naturologia, conta Stern (2015a), que hoje consta como a definição oficial, elaborado
da seguinte maneira:
Pode-se definir Naturologia como conhecimento da área da saúde embasado na
pluralidade de sistemas terapêuticos complexos vitalistas, que parte de uma visão
multidimensional do processo de saúde-doença e utiliza da relação de interagência e
das práticas integrativas e complementares no cuidado e atenção à saúde (APANAT,
2017).
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74!
Quântico deriva do latim quantum, que quer dizer quantidade elementar de algo.
Nota-se que o próprio nome dá a noção de quantificação – quantidade; porém
fornece, também, o pensamento de algo elementar, por conseguinte fundamental, ou
ainda indivisível. O pensamento quântico no âmbito da terapia não é antagônico à
quantificação, nem aos modelos que prezam pela mensuração; ao contrário, este
estilo de pensamento se pauta nesta última abordagem, todavia não de forma
principal e nem exclusivamente. Tal forma de pensar amplia esta visão na busca do
sentido que a palavra “elementar” traz consigo: algo indivisível, ou mesmo algo
fundamental. É na indivisibilidade do ser e na subjetividade de cada um – o que
caracteriza o fundamental – que se inicia o processo de compreensão do homem no
pensamento quântico (DELLAGIUSTINA; HELLMANN, 2008, p. 15-16).
!
75!
concebida através da união de opostos, e que aquilo que se imaginava separado é, portanto,
um aspecto complementar de uma única realidade. Assim, a compreensão das leis da física
seria fundamental para a possibilidade de empoderamento do individuo, baseada em uma
perspectiva não fragmentária, ou holística. Terminam o artigo explicando como discorreram
sobre aquilo que chamam de Tradição Xamânica:
Também Barros e Leite-Mor (2012), já na referida terceira fase, afirmam que a existência
e importância da Naturologia no campo da saúde tem seu respaldo na existência de novas
epistemologias, oriundas das rupturas em virtude da física quântica e da fenomenologia. Eles
explicam que enquanto as experiências da Física Quântica tornam irrevogável a influência do
observador no experimento cientifico, a fenomenologia postula que todo entendimento da
realidade é relativo àquele que pensa. Portanto, a revolução quântica marcaria o fim das
certezas – tanto em relação ao comportamento da matéria, quanto à ilusão de que o homem
controla a natureza –, o que abriria campo para o surgimento de novas epistemologias e novas
formas de conhecimento, como a Naturologia.
Outro fundamento referido como essencial à prática terapêutica em Naturologia é a
relação de interagência. A partir de entrevistas com naturólogos formados e professores,
Teixeira (2013) foi o pesquisador que mais desenvolveu o conceito para a área. Segundo ele,
o termo foi pensado para uma ação mútua entre naturólogo e interagente, significando a
intenção de um trabalho terapêutico que não envolva a relação de hierarquia e passividade
geralmente associada ao atendimento biomédico, onde o médico é o detentor do saber, e o
paciente aquele que recebe e obedece indicações, sem uma participação efetiva em seu
tratamento. Em oposição à essa noção cunhou-se o termo interagente, e ao convidar o
interagente a ser responsável por sua melhora, a Naturologia diferencia-se de outras
profissões da saúde (TEIXEIRA, 2013, p. 42). Teixeira também frisa a importância da noção
de processo nesta relação:
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76!
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38
A interdisciplinaridade é entendida como a atuação de diversas disciplinas em torno de uma problemática
comum, onde há a presença de uma axiomática teórica e/ou politica básica, a partir da intenção de reciprocidade
e enriquecimento mútuo. Contém um nível hierárquico superior entre os campos, onde a disciplina com maior
proximidade à temática comum irá agir como integradora, mediadora e coordenadora do campo disciplinar
(ALMEIDA FILHO, 1997).
39
Segundo Almeida Filho (1997), trata-se de uma integração das disciplinas de um campo particular sobre a
base axiomática geral compartilhada, compondo um sistema de vários níveis e com objetivos diversos, cuja
coordenação é baseada na horizontalização de poder entre os campos e norteada por uma finalidade comum.
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77!
Como discorrer sobre o tema não é o escopo dessa dissertação, consideramos que a explicação que se seguirá
será suficiente para debater o assunto em sua relação com a Naturologia, amparada nos pesquisadores do campo
que estudam a complexidade. Para um maior aprofundamento, recomendamos de início o texto Da necessidade
de um pensamento complexo. Cf. MORIN, Edgar. Da necessidade de um pensamento complexo. In: MARTINS,
Francisco M.; SILVA, Juremir M. Para navegar no século XXI: tecnologias do imaginário e cibercultura. Porto
Alegre: Sulina, 1999.
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78!
Para Silva (2012, p. 125), a Naturologia compõe um saber mestiço, fruto de interações,
religações e diálogos, híbrido entre o moderno e o tradicional, o ocidental e oriental, e
alternativo e moderno, e que como todo ser mestiço busca sua identidade. Segundo a
socióloga, a ligação entre a Naturologia e a complexidade tem origem na afinidade de seus
pensamentos pouco afeitos à rigidez cientifica vigente, e portanto defende que a associação
entre suas linhas de pensamento poderia auxiliar na resolução de problemas de ordem prática
para a Naturologia que são insolúveis desde a perspectiva positivista, como por exemplo a
conciliação de filosofias, práticas e saberes de origens diversas que compõe a estrutura de
conhecimento naturológico. Assente nessa lógica, Portella (2016) e Silva (2016) argumentam
que a interagência é um dos processos que deixa entrever tais religações complexas, posto que
estas se mostram no plano prático, na clínica, e nas suas bases conceituais. Os autores também
assumem o principio da interagência como o diferencial da prática naturológica, a qual
promove, segundo afirmam, a filiação com ideais e paradigmas contrários à fragmentação do
conhecimento, além de ter como inerente em sua pratica terapêutica o componente ético.
O decorrer da terceira fase aproximou os discursos da Naturologia com outros campos de
atuação, assim como fez surgir criticas mais apuradas sobre a construção do conhecimento da
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41
Segundo Luz (2012) o termo racionalidade médica indica um “constructo lógico e empiricamente estruturado,
[...] tendendo a constituir-se, ou pretendendo constituir-se em sistema de proposições potencialmente
verdadeiras, isto é, verificáveis de acordo com os procedimentos da racionalidade cientifica” (LUZ, 2012, p.
27). A construção teórica de Luz é, de acordo com a socióloga, elaborada sob o conceito de tipo ideal de Max
Weber, “um modelo tendencial histórico, que nunca chega a se realizar de forma acabada, pois tem a capacidade
de ser continuamente modificado pela ação dos atores sociais” (LUZ, 2012, p. 27). Para um estudo da tese de
Weber Cf. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras,
2004.
42
Cf. HELLMANN, F.; VERDI, Maria Inês M. Aproximações entre Naturologia e referenciais de análise em
bioética. In: RODRIGUES, Daniel M. O., et al. Naturologia: diálogos e perspectivas. Palhoça: Editora Unisul,
2012.
43
Cf. LEITE-MOR, Ana Cláudia B.; WEDEKIN, Luana M. Diálogos entre Naturologia e Antropologia da
Saúde. In: RODRIGUES, Daniel M. O., et al. Naturologia: diálogos e perspectivas. Palhoça: Editora Unisul,
2012.; TEIXEIRA, Diogo V. Tradicionalmente “moderno”: da imposição dos saberes mesmos à apropriação dos
saberes outros. In: FÓRUM CONCEITUAL DE NATUROLOGIA, 5., 2014, Palhoça. Anais... Florianópolis:
SBNAT, 2014, p. 31-46.
44
!STERN, Fábio L. Aproximações entre Ciência da Religião e Naturologia: discussões sobre as raízes religiosas
!
80!
O autor frisa que se o naturólogo pretende ser um agente de transformações sociais, este
deve estar atento às lógicas sob os discursos monopolizantes e centrais da nossa sociedade,
onde estruturas de poder são naturalizadas e relativizadas. Igualmente, sustenta que o
naturólogo deve aprofundar-se na compreensão das diferenças culturais e subculturais do
mundo contemporâneo para que possa adentrar em outras cosmologias sem preconceitos ou
imposição de saberes. A fala de Teixeira demonstra uma preocupação que deve ser legitima à
área da saúde, mas além disso enfatiza como a construção acadêmica do campo tem colocado
em pauta questões que no âmbito da Nova Era, e portanto mais concernentes ao início do
curso, não integram as discussões habituais. Isto porque, conforme afirma Zúñiga (2012), a
Nova Era figura como uma matriz de descontextualização cultural/local/nacional, onde
práticas locais são costumeiramente absorvidas e reinterpretadas, tornando-se disponíveis para
qualquer buscador espiritual. Assim, a dimensão eclética e universalista da Nova Era tende a
invisibilizar as fronteiras entre as tradições e culturas; crítica levantada por Teixeira. Em outro
momento de fala, em um paper apresentado em 2016 no IX FCN, Teixeira expõe suas
recentes preocupações em relação à utilização dos termos dimensão e aspecto como categoria
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das medicinas tradicionais. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE NATUROLOGIA, 4., 2011, São Paulo. Anais
eletrônicos... Disponível em: <http://www.apanat.org.br/noticias/livros/anais-do-iv-conbranatu/>. Acesso em: 8
nov. 2014.; STERN, Fábio L. Reflexões epistemológicas sobre Naturologia por paralelos com a Ciência da
Religião. In: FÓRUM CONCEITUAL DE NATUROLOGIA, 4., 2013, São Paulo. Anais eletrônicos...
Disponível em: <http://www.apanat.org.br/noticias/eventos/anais-vi-conbranatu/>. Acesso em: 22 fev. 2014.
45
BARROS, Nelson F.; LEITE-MOR, Ana Cláudia B. Do sociólogo à naturóloga, da naturóloga ao sociólogo.
Cad. acad. Tubarão, v. 3, n. 1, p.140-148, 2011.
!
81!
de análise para a Naturologia – p. ex., ao dizer que a abordagem integral leva em conta os
aspectos físicos, aspectos ambientais, aspectos psíquicos, e dimensões física, psíquica e
ambiental do indivíduo. Sua inquietação se deve à percepção pessoal de que tais categorias
podem levar, novamente, à homogeneização de processos distintos ao “achatar as diferenças
relativas a uma variedade de processos que, apesar de imbrincados e interdependentes, são
substancialmente distintos” (TEIXEIRA, 2016, p. 80). Em seu lugar, propõe a categorização
dos termos constituição física, personalidade, experiência cultural, condições ambientais e
realidade social.
Também Hellmann (2009, p. 79) apontou em sua dissertação em Bioética que a
Naturologia se ocupa ao máximo em tratar as causas, e não os efeitos; contudo, segundo o
naturólogo, é necessário que o campo reconheça a impossibilidade em se tratar todas as
causas, afinal, “como tratar doenças genéticas através das práticas naturais?”, questiona.
Ademais, Hellmann ressalta que é preciso ao naturólogo atentar à questões imbrincadas aos
processos saúde-doença, que muitas vezes pautam-se em problemas estruturais da sociedade.
Já no editorial do segundo volume de 2013 do periódico CNTC, Hellmann e Lima criticam
promessas veladas de diagnóstico precoce de determinadas avaliações energéticas, como por
exemplo a bioeletrografia, a iridologia e a radiestesia. Conforme defende no texto, até o
presente momento não foram publicadas pesquisas que comprovem com clareza que tais
técnicas possam diagnosticar; e ainda que o fizessem, como seria possível creditar às
avaliações o diagnóstico precoce de distúrbios, quando igualmente existe a possibilidade de o
adoecimento ter sido resultado de fatores relacionados às condições de vida do sujeito, ao
modelo de organização social e à questões de cunho psicológico?, argumentam os autores
(HELLMANN; LIMA, 2013, p. 10).
No último CONBRANATU, Leite-Mor relembrou os participantes que os FCN tem sido
um espaço de discussões que expõe à Naturologia inúmeras problemáticas e desafios
epistemológicos, ontológicos e teórico-práticos, mas que, em virtude de necessidades práticas,
pragmáticas ou politicas, tendem a ser relegadas à segundo plano. Assim, a naturóloga e
mestra em Saúde Coletiva ressalta em seu paper algumas questões:
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84!
Este capitulo tem como propósito distinguir o que há, afinal, de religioso nas práticas
utilizadas pela Naturologia. Ou, mais especificamente, em que sentido tais práticas e a noção
de saúde propagada pela área estão concatenadas à cosmologias religiosas. O intuito com esse
capitulo não foi exemplificar cada uma das práticas, como por exemplo a hidroterapia ou a
aromaterapia, e sim explorar as cosmologias que contribuíram e integram a construção deste
entendimento de saúde. A Medicina chinesa/Daoísmo e Confucionismo, o Āyurveda, e o
Xamanismo/Neoxamanismo foram elencados pois, em primeiro lugar, na maior parte da
historia da Naturologia, essas três medicinas eram referidas pelo discurso oficial como sendo
os pilares da profissão, mas também porque foram expressivas fontes na constituição do
modelo de saúde holístico. Já a seção sobre Esoterismo foi incluída por sua importância
significativa para a emergência do Movimento Nova Era, o que consequentemente se estende
à Naturologia, além de ser também o meio que deu origem à Antroposofia; enquanto a
Ciência na Nova Era foi elencada por ser um elemento religioso secular observado
constantemente desde o inicio das produções dos interlocutores do campo, ao discorrerem
sobre a epistemologia da Naturologia. Embora a distinção das matrizes religiosas sejam de
suma importância para debatermos as perguntas levantadas na introdução, o objeto da
dissertação é a Naturologia e não as cosmologias que abordaremos nesse capitulo. Desta feita,
não foi possível o aprofundamento que faria jus à processos históricos tão complexos, e
controvérsias entre autores ou detalhes mais específicos foram evitados, por isso procuramos
elaborar um eixo que pudesse expressar o objetivo do capítulo. Ainda assim, foram utilizadas
fontes que consideramos fidedignas e que abordam os temas em sua complexidade, de modo
que o leitor pode busca-las nas referências caso tenha interesse.
A primeira seção do capitulo tratará sobre o Āyurveda. Adiantamos ao leitor que essa foi
a cosmologia em que tivemos mais dificuldades no levantamento de bibliografias não êmicas
da Nova Era. De modo geral, todos os autores que selecionei para comporem essa sessão da
pesquisa utilizaram o pesquisador Kenneth Zysk como uma de suas principais fontes. Zysk
apresenta a tese da influência do Budismo na construção do conhecimento āyurvedico, mas
infelizmente não obtive acesso aos seus livros e artigos, que não se encontravam disponíveis
!
85!
online e também não compõe o acervo das bibliotecas a que recorri. Deste modo, pude
acessar essa fonte somente por meio de terceiros47.
Na seção sobre Medicina Chinesa e suas interações com o Daoísmo e Confucionismo,
estaremos utilizando o sistema de transliteração pīnyīn, também conhecido como alfabeto
fonético chinês. É um sistema de escrita romanizado, baseado na pronúncia do dialeto
mandarim falado em Pequim. Em termos acadêmicos, a adoção deste sistema de transliteração
visa facilitar a identificação dos termos originais do chinês. Conforme Barsted (2003) e Costa
(2015) ditam, a tradução de termos chineses nem sempre segue um padrão na academia, de
modo que um único termo pode aparecer descrito de diversas formas, o que dificulta a
pesquisa, a assimilação de conceitos, e tentativas de traçar uma linha cronológica a depender a
espécie de investigação que esteja sendo feita. Ainda que este trabalho, especificamente, não
tenha como objeto o universo da medicina chinesa ou o Daoismo, entendemos a importância
de seu uso para pesquisas futuras, assim como para a disseminação deste sistema que figura
como o oficial da China continental. Em relação às fontes bibliográficas, essa seção está
amparada nos estudos de Paul Unschuld (1985; 2000), Livia Kohn (1993), Marcel Granet
(1950), José Bizerril (2010), Dennis Barsted (2003) e Maria Regina Cariello Moraes (2007).
A terceira seção abordará o Xamanismo. Procuramos informar ao leitor o debate sobre a
essencialização do xamanismo, assim como diferenciar algumas das categorias que se
assemelham e se distanciam nos xamanismos das sociedades de caçadores-coletores e nos
xamanismos ameríndios. Outro ponto importante dessa seção é a explanação sobre o
Neoxamanismo, que surge como um produto da Nova Era e é a manifestação adotada pela
Naturologia em sua terapêutica. Os autores utilizados foram Miranda e Stephen Aldhouse-
Green (2005), Langdon (1996), Lambert (2011), Rose (2010), Amaral (2000), Galinier (2013)
e Magnani (2013).
Em seguida iremos discorrer sobre a Ciência na Nova Era. Essa parte ampara-se na
noção, ainda muito propagada nas produções em Naturologia, de que o pensamento quântico
não se limita apenas à esfera subatômica, mas compreende novas formas de perceber o
mundo, de entender o individuo e de trabalha-lo terapeuticamente. O principal autor utilizado
será Hanegraaff (1998), mas também constam nas referências a socióloga Champion (2011),
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47
Os livros mais utilizados de Zysk por estes autores foram: ZYSK, G. K. Medicine in the Veda. Delhi: Motilal
Barnasidass, 1996.; ZYSK, G. K. Ascetism and Healing in Ancient India. Delhi: Motilal Barnarsidass, 1998.
Ademais, para uma leitura aprofundada recomenda-se também WUJASTYK, D. The roots of Ayurveda.
Kottakal: Arya Vaidya Sala, 2005.; RAO, R. S. K. Encyclopedia of Indian Medicine. Mumbai: Ramdas
Bhatkal, 1998.; FILLIOZAT, J. The classical doctrine of Indian Medicine. Delhi: Munshiram Manoharlal,
1964.
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86!
Moraes (2007), e o físico Pessoa Jr (2011a; 2011b), quem debate sobre aquilo que chama de
misticismo quântico.
Também amparados principalmente em Hanegraaff (1998), na ultima seção serão
abordadas algumas das peculiaridades do pensamento esotérico. Hanegraaff desenvolveu uma
longa tese em que sustenta que a Nova Era emergiu na sociedade como um espelho secular do
Esoterismo Europeu e Norte-americano, portanto nos detivemos a apresentar alguns
elementos deste campo que influíram diretamente na construção da Nova Era. Outros autores
utilizados foram Faivre (1994), Fulller (2005), Guerriero (2015) e Amaral (2000).
Por fim, ressaltamos não será contemplada como uma seção a Biomedicina, cuja
cosmovisão também se faz presente no campo de conhecimento naturológico. Isso por duas
razões: primeiro porque no primeiro capítulo pudemos traçar com certo detalhamento o
pensamento cientifico e suas implicações quando aplicado à área da saúde, o que teria tornado
redundante mais uma seção reservada ao tema; e em segundo, porque o que nos interessa para
os fins desse capitulo é captar o que há de religioso nas cosmologias que embasam as práticas
terapêuticas utilizadas na Naturologia, o que servirá como um gancho para as discussões
posteriores.
3.1 ĀYURVEDA
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48
Um exemplo aleatório que podemos utilizar é de um vídeo de 2016, disponível em um canal do youtube sobre
brasileiros que moram no Canadá, em que a naturóloga Cristina Avelino é entrevistada e explica a Naturologia a
partir desta tríade. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yystp0DmVss&t=155s. Acesso em: 04
abr. 2017.
49
Cf. PIMENTEL, Danielle S.; DARÉ, Patrícia K. Aproximações entre a classificação das constituintes na
ayurveda e na escola alemã da iridologia. Cad. Naturol. Terap. Complem. v. 3, n. 4, 2014.
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87!
Segundo Rocha (2010), nas últimas décadas a āyurveda tem se popularizado nos
domínios externos ao contexto do subcontinente indiano e vem se expandindo rapidamente.
Este fato é citado pelo autor como consequência de politicas internas da Índia que passaram a
incentivar o ensino e desenvolvimento da medicina após o processo de descolonização da
matriz britânica, na década de 1950. A Āyurveda pôde então se fortalecer no subcontinente e
assim se espalhou para a Europa e Estados Unidos. No Brasil, sua inserção se deu em meados
da década de 1980 em Goiânia, no Hospital de Medicina Alternativa, a partir de um convênio
do Instituto Nacional de Assistência e Previdência Social e do Ministério da Saúde com o
Instituto de Ciência e Tecnologia Maharishi. A parceria foi realizada com o objetivo de trazer
para o país cursos de Meditação Transcendental e de Āyurveda, voltados aos profissionais e
clientes da rede pública de saúde (ROCHA, 2010; CARNEIRO, 2010).
Como consequência natural do processo de popularização, novas associações, adaptações
e modificações da Āyurveda se tornaram constantes, em especial com o interesse da Nova Era
por conhecimentos terapêuticos e espirituais asiáticos, fator de impulso em sua disseminação.
Rocha (2010, p. 15) expõe algumas denominações modernas, encontradas principalmente na
divulgação de cursos para o publico novaerista, como exemplo as “pedras quentes
āyurvedicas”, “astrologia āyurvedica”, “aromaterapia āyurvedica”, “acupuntura āyurvedica”,
dentre outras designações afins; todavia, o autor distingue que tais abordagens constituem
fusões sincréticas que não possuem fundamento histórico no Āyurveda clássico. Segundo
Rocha (2010), existe uma grande dificuldade em se traçar a historia da medicina na Índia,
devido às complicações encontradas pelos especialistas em precisar datas e períodos
cronológicos anteriores à época de Buddha, no século VI a.C.. Parte desse material constitui
inscrições, lápides e relíquias de escavações; entretanto, os registros literários e religiosos se
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88!
encontram dispostos nos quatro Vedas, nos Bramanas50, Puranas51, e ainda nos Samhitas,
compêndios médicos em sânscrito, principalmente em Caraka, Susruta, Kayapa, Bhela, e nos
tratados de Vagbhata. A dificuldade em precisar uma cronologia é ainda maior em questão
das invasões de estrangeiros exploradores por centenas de anos, que vieram a destruir
pinturas, inscrições e grande parte da antiga literatura em sânscrito. Deveza (2013) cita que
uma parcela da cultura indiana de língua sânscrita foi preservada pela tradição oral; a escrita
só passou a ser considerada uma forma importante de transmissão de conhecimento no
período do rei Asoka, imperador indiano da dinastia Máuria que reinou entre 273 e 232 a.C.,
de modo que algumas lacunas acerca do conhecimento āyurvedico permanecem em aberto em
vista a estes fatores (ROCHA, 2010; DEVEZA, 2013).
De acordo com Lúzio (2016), desde a civilização de Harappa do vale do Indo, no
noroeste do subcontinente indiano, no período entre 2300 e 1800 a.C., até o encontro deste
povo com os arianos – grupo nômade da Ásia central – por volta de 1700 a.C., que podem ser
localizados os primeiros textos sagrados para a tradição da religião hindu, os Vedas.
Conforme o historiador, os Vedas contém registros da miscigenação destes povos com a
população autóctone chamada “dravídicos”, ou “drávidas”, compondo junto aos anteriores a
gênese da religião hindu. No panteão hindu são descritas inicialmente a presença de deuses
associados com o sol, a lua, a terra, o céu, o vento e a noite, assim como associações
especificas com o sacrifício, o fogo e a guerra. Mas além destes elementos, a arqueologia
demonstra também que estas civilizações cultuavam os deuses Shiva, Vishnu e Shakti, dos
quais emergiram as principais ramificações hindus: o shivaísmo e o vishnuísmo. A amálgama
entre divindades arianas e cultos pré-védicos deram origem à uma nova cultura religiosa,
manifesta por meio da escrita dos Vedas e da adoração aos deuses (LÚZIO, 2016). Os textos
sagrados escritos no sânscrito védico fazem parte inicialmente das escrituras do Rig Veda, a
primeira das quatro coletâneas que são o fundamento da pratica religiosa, ética e social do
hinduísmo. Conforme Lúzio (2017), os Vedas teriam sido escritos por meio de revelação
divina (smirti) pelos rishis – sábios videntes que estabeleceram o conhecimento védico a
partir dos elementos nativos e dos valores trazidos pelos arianos. Seu conteúdo é composto
por hinos dedicados aos deuses (Samhitas), mantras, evocações, ponderações filosóficas
(araniakas), tratados de astronomia, gramática, arquitetura, geometria, fórmulas magicas,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
50
Os Bramanas são “comentários subseqüentes que contêm um tipo de manual de instrução para a aplicação
prática do conteúdo dos “Vedas”, explicando os ritos e prestando-lhes uma legitimação mitológica” (PAINE,
2007, p. 79.
51
De acordo com Paine (2007), as Puranas são contos e lendas populares para os não letrados, de período
posterior aos Vedas.
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89!
As referências à medicina são encontradas nos primeiros textos dos Vedas. De acordo
com Narayanaswamy (1981), a versão lendária da origem do sistema Āyurvedico conta que
Brahma o recordou a Prajapati52, quem por sua vez o entregou a Atreya53. Também no Rig
Veda encontra-se menções ao primeiro médico divino, Rudra, e versos sobre como os Aswini
Kumaras, os médicos dos deuses, curaram Chyavana 54 da senilidade. Não obstante, ao
consultar diferentes pesquisadores que, por sua vez, dedicaram-se ao estudos dos textos
clássicos dos Vedas na tentativa de traçar uma historicidade referente ao Āyurveda, nos
deparamos com diferentes versões a respeito da revelação do conhecimento āyurvedico.
Rocha (2010) postula que dentro dos Samhitas são encontradas diferenças na evolução
histórica dessa medicina, mas de modo geral todos os textos concordam que a Āyurveda foi
concedido por Brahma para o bem da humanidade, conforme descrito no Susruta Samhita:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
52
Divindade criadora de todos os seres (LEITE, 2004)
53
Sábio hindu, um dos autores do Caraka Samhita (ROCHA, 2010)
54
Sábio hindu (NARAYANASWAMY, 1981)!
!
90!
Assim, Rocha (2010, p. 43) comenta que Brahma, o primeiro médico, ensinou a ciência
terapêutica para Daksa, um de seus filhos, que a transmitiu aos gêmeos Aswins, que então
ensinaram Indra, o rei dos deuses. Deste modo, no Rig Veda são encontrados 1028 hinos,
sendo 250 em homenagem a Indra – deidade responsável pela revelação da Āyurveda aos
sábios indianos, que por sua vez o transmitiram a seus discípulos e daí para toda a
humanidade, segundo consta nos Samhitas. Outra importante divindade é Agni, deus do fogo,
que recebe 200 hinos neste Veda. Na Āyurveda, Agni incorpora um importante papel de
responsável pelo fogo digestivo, ou seja, pelo funcionamento da função digestiva e do
metabolismo.
Narayanaswamy (1981) descreve que embora as referências ao conhecimento médico
sejam encontradas no Rig Veda, um esquema sistemático de tratamento é disposto somente no
Atharva Veda, o qual contém a descrição de inúmeras enfermidades e suas formas de cura.
Este compilado possui, segundo Rocha (2010), 5977 versos distribuídos em 731 hinos,
contendo procedimentos e tratamentos curativos que não são encontrados nos outros Vedas.
Rocha (2010) disserta que embora o Atharva Veda só tenha vindo a adquirir o “status védico”
posteriormente, seu conteúdo é tão antigo ou mais que os outros Vedas, o qual os
pesquisadores creem datar ao período da civilização do vale do Indo. O autor afirma que o
Atharvangiras, antigo nome do Atharva Veda, indica uma dupla abordagem: práticas
curativas e pacificatórias, e práticas de magia e bruxaria. Os procedimentos referentes às
práticas eram conduzidos pelos sacerdotes mágicos e medicine men, chamados atharvans. As
técnicas contidas no Atharva Veda são, de acordo com Rocha (2010), combinações de preces,
amuletos, drogas e mantras, voltados ao tratamentos de enfermidades como febres,
hanseníase, cardiopatia, cefaleia, parasitose, doenças dos olhos e dos ouvidos,
envenenamento, reumatismo, epilepsia, entre outras – doenças citadas em 114 hinos do
compendio médico.
Por compor um vasto corpo de conhecimento, Rocha (2010) afirma que o termo
Āyurveda é por vezes considerado um quinto Veda. Sua primeira expressão é encontrada no
Atharva Veda, mas uma longa e obscura linha de desenvolvimento se passou até os tratados
datados da Era Cristã, que contém princípios básicos para a terapêutica não citados nos textos
clássicos dos Vedas, como os dosas. Este desenvolvimento desde o período védico não é
!
91!
esclarecido pela literatura produzida no continente indiano, contudo Rocha (2010) defende a
influência de tradições não védicas na formatação dos conhecimentos dos textos clássicos55.
Também Deveza (2013) comenta que os cinco mil anos aproximados de existência do
Āyurveda fizeram com que os princípios que norteiam suas práticas passassem por processos
naturais de mudança ao longo do tempo, decorrente do seu próprio desenvolvimento e
também da influência de outros sistemas de medicina tanto autóctones (como o siddha e
unani), como estrangeiros (medicinas grega, persa e chinesa são os exemplos utilizados pelo
autor). A esse respeito, Varier (2016) sustenta que o conhecimento empírico da anatomia
humana e a observação do corpo humano – aspectos fundamentais ao Āyurveda – foram
influências recebidas provavelmente da tradição Budista. Isto porque, segundo afirma, a
prática tradicional de saúde āyurvedica foi sujeita à um escrutínio empírico que resultou em
uma virada hermenêutica durante a ascensão do Budismo, de modo que foi neste período que
os textos revelam o aprofundamento de uma base sistemática e empiricamente fundamentada
(VARIER, 2016, p. 44). Dos antigos textos clássicos, estão disponíveis o Caraka Samhita,
Susruta Samhita, Bhela Samhita e Kasyapa Samhita, sendo que estes dois últimos chegaram
incompletos aos dias atuais. Ademais, também compõe o corpo de textos os trabalhos de
Vagbhata, desenvolvidos no período da Índia medieval, mas fundamentados nos tratados
arcaicos (ROCHA, 2010).
Segundo os compêndios clássicos de medicina (Samhitas), cada preceptor, de sua
respectiva escola, recebeu o conhecimento do Āyurveda diretamente de Indra56. Assim, o
sábio Bharadwaja teria recebido a ciência da clinica médica e a ensinado aos seus discípulos
Atreya Purnavasu, Agnivesa, Bhela, Vaitarana, Harita e outros, os quais compilaram o
Caraka Samhita. Kasyapa e seus colegas Vasistha, Atri e Brgu receberam de Indra a ciência
médica da pediatria e da ginecologia, e as passaram a seus filhos e discípulos, que formularam
o Kasyapa Samhita. Divodasa Dhanvantari recebeu o conhecimento da cirurgia e o ensinou
aos discípulos Susruta, Aupadhenava, Agnivesa, Bhela e outros, os quais compilaram o
Susruta Samhita. Interessante observar que Caraka foi o primeiro especialista a editar e
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
55
Embora o debate sobre as influências não védicas na produção do conhecimento āyurvedico seja também
interessante ao desenvolvimento dessa pesquisa, posto que abarcam a problemática da distância desse corpo de
conhecimento da matriz religiosa a que estamos nos referindo, não é objetivo dessa pesquisa o aprofundamento
na epistemologia do Āyurveda. A esse respeito, Cf. ROCHA; Aderson M. A tradição do Ayurveda. Rio de
Janeiro: Águia Dourada, 2010.
56
!Rocha comenta que todos os clássicos concordam com a cronologia que traça a revelação do Āyurveda de
Brahma até Indra. Mas a partir de Indra, cada texto apresenta uma evolução histórica distinta, pois
aparentemente o compilador de cada um dos Samhitas colocou seu preceptor diretamente em contato com o rei
dos deuses Indra, de modo a conferir maior legitimidade a seu preceptor e ao seu compêndio em relação aos
outros.
!
92!
lapidar o tratado de Agnivesa, e sua contribuição para o original foi tão relevante que o novo
formato passou a ser conhecido com o seu nome no lugar do autor original, de modo que o
compilado Agnivesa Tantra tornou-se posteriormente Caraka Samhita (ROCHA, 2010, p. 48-
49).
Conforme Rocha (2010), a diferença entre a medicina prevalente nos Vedas e o sistema
hoje disposto no Āyurveda pode ser observada em algumas premissas: o corpo de
conhecimento védico é postulado na crença de que espíritos e deidades são responsáveis pelos
efeitos benéficos ou negativos no âmbito humano, assim, o sistema de medicina previa a
elaboração de rituais realizados pelos médicos (bhisaj, nos Vedas) para minimizar ou
direcionar os efeitos das divindades entre os indivíduos. Em contrapartida, no Āyurveda a
ênfase está na relação do sujeito com o meio ambiente, sendo este visto como um microcosmo
do universo que possui todos os elementos básicos deste universo. As doenças seriam
resultado dessa quebra de harmonia e o objetivo do tratamento está no resgate de um
equilíbrio perdido; no Āyurveda, o médico é chamado de Vaidya, do radical sânscrito vid, ou
conhecimento (ROCHA, 2010). Não obstante, Varier (2016) comenta que o aspecto mágico
da medicina Védica nunca desapareceu completamente na Índia, mantendo-se presente no
Āyurveda principalmente no tratamento de enfermidades infantis.
A partir da leitura do Samkhya, um dos textos contidos no Susruta Samhita, e referido
pelo artigo da Naturologia citado no inicio dessa seção como sendo a base cosmológica do
Āyurveda, Deveza (2013, p. 158), comenta o início e princípios básicos da medicina:
[...] o Susruta Samhita defende que o universo surgiu quando o Criador, saindo de
um estado de profundo silêncio e meditação decidiu manifestar-se em múltiplos
indivíduos. O processo que teria se originado com o rompimento do silêncio da
Consciência Absoluta do Criador manifestou- se primariamente como Consciência
Individual (vyakti, que significa “o que se manifesta”), no emanar do Seu desejo de
se manifestar. Da consciência individual ou desejo de criação surgiu a inteligência
pura, que reconhece o que deve ser criado, também chamado de Intelecto ou Mahat
que em sânscrito literalmente significa o “o grande”. Assim que a inteligência pura
determinou com precisão o plano da criação, surgem as mais variadas formas de
existência em diferentes indivíduos, ou Egos pessoais, ahamkara na língua original,
responsáveis pela memória e pelo instinto de sobrevivência de cada ser criado. A
criação dessas múltiplas formas de existência tornou necessários também um
aparelho de percepção (para que cada indivíduo criado pudesse perceber o restante
da existência, além de si próprio) e também de órgãos com capacidade de ação (para
que os indivíduos pudessem interagir mutuamente). Para a interação adequada entre
o sentir e o agir, se fez necessário um centro de processamento que, recebendo as
informações do aparelho de percepção, comandasse as ações adequadas para cada
momento. Assim, os cinco sentidos são nossos órgãos de percepção (visão,
audição, paladar, olfato e tato) e são chamados de Jñanendriya; os órgãos de ação,
Karmendriya, representam a capacidade de atuação no mundo: comunicação,
preensão, locomoção, reprodução e excreção; por fim, Manas ou mente pensante,
literalmente, “a função de pensar”, recebe as informações dos cinco sentidos e
decide a ação que melhor nos adapta ao meio a cada instante. O Ayurveda acredita
!
93!
Na medicina Chinesa, saúde é definida como a interação suave e perfeita das várias
partes do corpo, especialmente a rede das cinco fases57 em sua continuidade com as
estações, o clima, os planetas, a sociedade – com todo o mundo exterior que
funciona, basicamente, de acordo com o mesmo esquema contínuo de alteração e
mudança58 (KOHN, 1993, p. 162, tradução minha).
!
94!
considerações acerca deste objeto: a primeira seria que a medicina chinesa figura como um
conjunto eclético de sistemas terapêuticos, ancorados em diferentes perspectivas históricas,
religiosas e politicas, compondo uma cosmovisão integrativa. Tal cosmovisão, que direciona
as atitudes humanas para a ordenação e funcionamento do mundo, está assentada um sistema
simbólico que há séculos rege, igualmente, a medicina. A outra consideração, entrelaçada à
primeira, remete ao fato de que a medicina na China não pode ser necessariamente
compreendida se dissociada das circunstâncias históricas do país; as transformações de seu
sistema terapêutico acompanharam os desdobramentos políticos e epistemológicos do
entorno, porém seu desenvolvimento mais amplo remete à “época dos clássicos”,
contemporânea à estruturação do Daoísmo e Confucionismo (aproximadamente IV a.C.)
(UNSCHULD, 1985; MORAES, 2007).
Não obstante a pluralidade seja uma forte característica da cultura chinesa, onde
concepções surgidas em momentos diferentes coexistem sem que necessariamente uma
substitua a outra, é possível determinar uma matriz de sentido que permeia o pensamento
chinês desde aproximadamente 1500 a.C., período da Dinastia Shāng, que norteia amplos
aspectos deste meio – como a organização social das crenças, a ética, o comportamento
individual e a medicina – a qual, ainda que tenha passado por mudanças, resistiu séculos e
pode ser identificada em diversas escolas de pensamento, conforme explica Moraes (2007).
Como exemplo desse núcleo de sentido podemos destacar o principio de totalidade, expresso
na junção e alternância entre yīn-yáng: sua origem remete à pré-história da China, segundo
Moraes (2007), mas ainda assim forma um eixo permanente, o qual dentro de suas
reinterpretações históricas fixou-se como a base que dá sentido à saúde na cultura chinesa, e
que portanto contém um significado especifico em relação a essa visão particular de mundo.
Mesmo com a lente da medicina oficial que hoje confere novas interpretações acerca dos
pressupostos chineses sobre saúde-doença, o principio do dào, a bipolaridade e dinâmica de
yīn-yáng, a correspondência entre as cinco fases e a existência e circulação de qì podem ser
descritos como os alicerces da concepção chinesa de saúde; muito embora suas ideias venham
sendo rejeitadas, ainda que suas técnicas sejam utilizadas pela biomedicina europeia,
americana, e também pela chinesa – em geral atribuindo a ação da acupuntura à liberação de
substâncias neurotransmissoras do sistema nervoso central (UNSCHULD, 1985; MORAES,
2007; BARSTED, 2003; BIZERRIL, 2010). Todavia, conforme atesta Moraes (2007), tais
princípios que são intrínsecos à cosmologia chinesa pressupõe a existência de corpos sutis e
realidades não-ordinárias, sendo igualmente inerentes à matriz da terapêutica chinesa. Por
outro lado, a imagem da medicina chinesa associada estritamente às teorias da
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95!
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96!
com a natureza (terra) e com o cosmos (céu), além de frisar a importância da virtude e do
modo de agir correto; propostas advindas do daoismo e do confucionismo, respectivamente.
Granet (1950) observa que a expressão chinesa coloca à frente o símbolo, a metáfora e a
analogia como ferramentas de organização de seu pensamento. De tal maneira, as colocações
de causa e efeito são substituídas pela ordenação de arranjo dos símbolos. Neste sentido,
exemplifica Moraes (2007, p. 26)
pensamento chinês, embora as bases daoistas sejam muito sólidas, presentes nas explicações
cosmológicas. O confucionismo ampara-se em uma perspectiva voltada ao social, desde onde
se supõe que a harmonia só pode ser alcançada por meio da disciplina implícita no modo de
agir, na benevolência, no desapego e no reencontro do grupo social com a sua natureza, que,
sob a perspectiva de Confúcio, seria expressa na arte, nos ritos e nas celebrações (MORAES,
2007). O dào, nesse sentido, se manifestaria por via social, o que levou Granet (1950) a
considerar que sua matiz religiosa estaria no culto à civilização.
Conforme citamos acima, o processo histórico de desenvolvimento da politica e da
religião traça certa linearidade com as mudanças e estruturação da medicina chinesa.
Unschuld (1985) observa que esse desenrolar se manifestou em sete sistemas terapêuticos que
acompanharam as circunstâncias sociais chinesas em determinados períodos; no entanto, não
é possível distinguir uma linha cronológica exata entre tais sistemas, de modo que estes
continuam em interação até a atualidade, como cita Moraes (2007). Com base nas pesquisas
destes dois autores, iremos pontuar brevemente alguns dos elementos de cada sistema que
consideramos centrais para a compreensão dos rumos tomados pela medicina chinesa até a
contemporaneidade.
O primeiro sistema data aproximadamente de 1523 a.C. a 480 a.C., fixado durante a
dinastia Shāng, relacionado à terapia oracular e a medicina dos demônios. Como uma
sociedade agrária, seus cultos voltavam-se aos ancestrais e à entidade mítica Shāng Ti. As
enfermidades nessa cultura eram associadas à invasão de espíritos, como por exemplo o vento
perverso, resultado de um antepassado descontente ou da maneira de governar de um rei. De
tal modo, a cura e a prevenção eram ritos realizados socialmente, através de oferendas para
pacificar os ancestrais e os espíritos, que eram praticados somente pelo soberano real ou pelos
xamãs do grupo. Porém com o advento do período Zhōu antigo (1027-772 a.C.) e o
desenvolvimento do feudalismo, a influencia dos antepassados na medicina diminuiu, e os
demônios invasores passaram a ser responsabilizados pelo surgimento das doenças.
A medicina de correspondência sistemática alinhou-se ao período Zhōu tardio (480-221
a.C.), onde o confucionismo esteve à frente do daoismo como religião do Estado. Para
conciliar as diferentes vertentes de pensamento em vista à um ideal comum, mudanças
profundas foram efetuadas nos campos religioso, político e médico, o que levou à
sistematização de noções básicas como o dào, yīn-yáng, as cinco fases de transformação e a
ideia de qì, que foram associadas aos princípios confucionistas de desenvolvimento e virtude
correta. Amparada em Jacques (2005), Moraes (2007) infere que por volta dos séculos II e I
a.C. o conceito de circulação de qì no organismo já estava sendo consolidado na medicina e
!
98!
que seus trajetos no corpo humano já eram descritos em importantes textos da época, como o
Huáng dì nèi (Tratado de Medicina Interna do Imperador Amarelo), e o Nán jīng (Clássico
das Questões Difíceis).
No final da dinastia Hàn (206-221 a.C.) teve origem o daoismo religioso, que ao
contrario do clássico, organizou-se em um sistema clérigo hierárquico. Aproximadamente em
65 a.C., o budismo introduziu-se na China, instaurando-se como religião do Estado durante a
dinastia Táng (618-906 d.C.). Entretanto, entre os anos de 841 e 845 d.C. uma insurgência
neo-daoista e neo-confucionista restringiu as tradições budistas e fez retomar o culto aos
antepassados, a consulta aos oráculos, a medicina dos demônios e as praticas xamânicas.
Unschuld (1985) comenta que diferentemente da medicina dos demônios, a cura religiosa
daoista concentra seus ritos para um enfoque individual, enquanto a primeira desenrola-se por
meio de ritos coletivos. Já no período Sòng (960-1270 d.C.) o neo-confucionismo influenciou
a medicina ao questionar pressupostos budistas, como por exemplo, a realidade ser ilusória.
Em seu lugar, instituiu-se a noção de que qì, enquanto matéria sutil, havia existido desde o
inicio dos tempos, e que tudo era real porque tinha sua origem em qì, e, da mesma maneira, ao
final retornaria à esta forma sutil (MORAES, 2007).
A partir do intercambio cultural realizado com a Índia entre os séculos IV e VII d.C., o
daoismo assim como a medicina chinesa passaram a incorporar elementos provenientes da
āyurveda e da alquimia indiana, constituindo o daoismo alquímico. Segundo Moraes (2007),
este sistema aproximou-se mais do xamanismo, da feitiçaria e da terapia oracular; não
obstante, um amplo desenvolvimento foi observado na medicina chinesa como um todo, tendo
em vista que extensas pesquisas empíricas foram realizadas, de modo que o campo da
fitoterapia e da dietoterapia foram acrescidos de tratamentos farmacêuticos utilizados ainda
hoje. Posteriormente, o daoismo alquímico deu origem a conhecidas práticas corporais, como
o tàijí quán e o qìgōng, que vinculam técnicas de circulação de qì à contemplação e à
meditação.
De acordo com Unschuld (1985), durante a dinastia Ming (1368-1644 d.C.) o contato
entre europeus e chineses aumentou, o que culminou em um movimento de progressiva
substituição da medicina chinesa pela medicina europeia. Barsted (2003) comenta que ao final
do século XIX, observou-se uma tendência de absorção dos preceitos médicos europeus e
americanos entre os acadêmicos chineses, dado o prestigio social que esta vinha alcançando
neste meio. Como resultado de sua desvalorização e do crescente cientificismo, a medicina
chinesa foi proibida em meados de 1920, no período inicial da Republica (BARSTED, 2003;
MORAES, 2007). Interessante, a esse respeito, a fala do então futuro primeiro secretário geral
!
99!
“Nossos estudiosos não compreendem a ciência; assim fazem uso dos símbolos
“yīn-yáng” e crenças nos cinco elementos para confundir o mundo [...]. Nossos
médicos não compreendem a ciência; nada sabem sobre anatomia humana, mas
também nada sabem da análise médica; quanto ao envenenamento bacterial e
infecções, nunca ouviram falar disso [...]. O ápice de suas ilusões delirantes é a
teoria do qì que, na verdade, aplica-se mais aos acrobatas e aos sacerdotes taoístas.
Nós nunca compreenderemos esse tal de qì, mesmo que o procurássemos por toda
parte no universo. Todas essas noções imaginárias e crenças irracionais devem ser
corrigidas na sua raiz pela ciência, porque para explicar a verdade pela ciência temos
que provar tudo pelos fatos.”
fortes traços positivistas e funcionalistas, marcado, entre outras coisas, por: a) uma
agregação ahistórica de diferentes conceitos e práticas de medicina chinesa; b) uma
implícita preocupação com a lógica e com os critérios de cientificidade ocidentais;
c) uma exclusão das categorias e formas de pensamento dos clássicos filosóficos que
fundamentam a medicina clássica chinesa; d) a negação de vários conceitos básicos
da medicina chinesa que a escola Medicina Tradicional Chinesa atribui ao
misticismo e; e) uma tendência à materialização, à coisificação da acupuntura, por
!
100!
Moraes (2007) e Unschuld (1985) frisam que a medicina chinesa de Máo ocupou-se em
buscar explicações cientificas para a eficácia da acupuntura e em desvendar os princípios
ativos dos ingredientes de antigas fórmulas da farmacopeia chinesa. De acordo com Moraes
(2007) a ciência atualmente reconhece a eficácia da acupuntura na analgesia ósseo-muscular e
em tratar problemas psicossomáticos, além de contribuir com a regulação do sistema
imunológico. Entretanto, aponta, os critérios científicos de comprovação são dificultados em
vista que, nas teorias da medicina chinesa, uma doença pode ter origem em diversas
circunstâncias da circulação de qì, pautada na singularidade de cada sujeito, o que inviabiliza
medições estatísticas e estudos duplo-cego. Ademais, Moraes sustenta que mesmo em suas
reformulações, o método tradicional ainda está mais alinhados com a cosmovisão chinesa
antiga do que com os moldes estritamente biológicos da medicina cientifica, “[...] dizemos
isso porque, para além da tentativa de secularização, mantém a valorização de aspectos
simbólicos, emocionais e psíquicos da cura, transpondo-os para o imaginário de saúde da
modernidade tardia” (MORAES, 2007, p. 131). Também Barsted (2003) apresenta ressalvas
em relação ao método, quando comenta que a prática da medicina chinesa dissociada dos
preceitos instituídos em seu próprio campo pode dar origem a tratamentos inócuos, o que
poderia explicar a falta de uma resposta esperada em sua mensuração.
3.3 XAMANISMO
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101!
incorporada de modo universal para se referir aos indivíduos e atividades que apresentassem
esses mesmos traços, independentemente de sua localização geográfica. Posteriormente com
novas pesquisas que ampliaram a conceituação do que pode ser encarado como “xamanismo”,
a categoria perdeu sua especificidade, tornando-se um conceito mais amplo e pouco preciso.
Deste modo, o correto é a referência à “xamanismos” – um plural pouco enquadrável em
propostas comparativas (LANGDON, 1996; SANTOS, 2007).
Para Langdon (1996) o xamanismo deve ser entendido como um complexo sociocultural,
posto que se apresenta simultaneamente como um sistema simbólico, cosmológico e social. A
antropóloga esclarece que compreende um sistema cosmológico como semelhante a um
sistema religioso – a escolha de um termo no lugar do outro intenta somente evitar antigas
confusões sobre religião/magia –, e se utiliza de Geertz (1978, p. 105) para conceituar um
sistema cosmológico como
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tratando da questão da cura, duas causas principais são atribuídas à doença: a captura de uma
das almas do doente, e a intrusão de um espirito ou de um corpo estranho – ambas podendo
ser em razão do ataque de um xamã inimigo, da alma de um morto descontente, ou de um
espirito maléfico. Quando o diagnóstico da doença é estabelecido, o xamã irá buscar seus
espíritos auxiliares para tentar reencontrar a alma capturada, ou irá tentar extirpar o corpo
intruso. No segundo caso, ele demonstra a expulsão do intruso aspirando o agente estranho
com a boca, que é materializado vomitando ou exibindo um objeto. Também podem ser feitas
defumações, massagens e medicações para a cura, ao mesmo tempo em que o xamã narra o
que faz em forma de cânticos (LAMBERT, 2011, p. 87).
Langdon (1996) distingue, em uma nova perspectiva na definição do xamanismo, que
este enquanto instituição expressa as preocupações essenciais da cultura e da sociedade.
Cosmologicamente, procura compreender os eventos cotidianos e influenciá-los. Em seu
sentido mais amplo, se preocupa com o bem-estar do grupo e de seus indivíduos. Para atingir
seus objetivos, trabalha com os níveis sobrenatural, social e ecológico, caracterizando-se
como uma instituição que, por meio do rito, unifica o passado mítico com a visão de mundo, e
os projeta nas atividades rotineiras. Segundo expõe, o conceito de poder é central nesta visão
cosmológica – o próprio significado de pajé, nos idiomas tupi, está coadunado ao conceito de
“possuidor de poder” –, as fontes de poder do xamã são a própria cultura, e o conhecimento o
que ele adquire é o conteúdo da cultura (LANGDON, 1996, p. 27-28).
Conforme Rose (2010), a produção acadêmica internacional sobre xamanismo tem
indicado um afastamento do enfoque em características essenciais deste fenômeno, ao passo
em que crescem as analises do xamanismo em situações interétnicas. Paralelamente à
constatação de que as culturas nativas e os xamanismos são processos dinâmicos em
permanente estado de mudança, práticas e grupos neoxamânicos passaram a emergir em nível
global. Isso leva as autoras a expressarem a opinião de que o xamanismo hoje é, em verdade,
um produto da modernidade.
Muitos foram os fatores para esse deslocamento de sentido. A partir de 1960
refloresceram os estudos sobre xamanismo, em geral motivados pelo interesse nos estados
alterados de consciência e pelas formas “alternativas” de espiritualidade, resultado da
emergência da contracultura. Já na década de 1930, Weston La Barre escreveu a primeira
etnografia sobre o uso indígena do peiote, e também neste período o estudo dos
“alucinógenos” ganhou terreno no campo da farmacoquímica na Alemanha. Em 1940 o
químico suíço Albert Hoffmann descobriu o ácido lisérgico ao trabalhar com fungos, e em
1945 Aldous Huxley contou suas experiências com mescalina no famoso livro As portas da
!
105!
Neste período, autores como Terence McKenna retomam a tese de La Barre (1971) e
Gordon Wasson (1961) sobre a existência de uma proto-religião enteogênica,
ressaltando o papel das substancias psicoativas na historia das religiões e afirmando
que estaríamos vivendo um período de retorno à cultura arcaica (ROSE, 2010, p. 45)
Em 1979 é criada a Foundation For Shamanic Studies pelo antropólogo Michael Harner,
organização sem fins lucrativos que oferecia programas de treinamento em xamanismo e cura
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
60
Cf. BURROUGHS; William; GINSBERG, Allen. Cartas do yage. Porto Alegre: L&PM, 2008.
61
!Cf. CASTAÑEDA, Carlos. A erva do diabo. Rio de Janeiro: Nova Era, 2008.
!
106!
xamânica. Em 1982, o mesmo autor lança o livro The way of the shamam: a guide to power
and healing62, um manual de práticas mentais e corporais para que o leitor torne-se um xamã.
Nas duas décadas seguintes houve o inicio da expansão das religiões ayahuasqueiras
brasileiras para o exterior, fazendo com que a ayahuasca se popularizasse em uma crescente
rede de buscadores espirituais, e o campo de pesquisas sobre enteógenos recobrasse sua força.
Outras regiões da América Latina também tornam-se rotas transcontinentais do xamanismo
ayahuasqueiro, e neste processo o chá e seus especialistas saem das florestas amazônicas e se
dirigem às capitais de diversos países, onde seus emblemas de indianidade ganham status e
valorização. Rose (2010) destaca que ao mesmo tempo em que os conhecimentos xamânicos
passam a ser classificados como um “saber”, os roteiros xamânicos diluem fronteiras
nacionais e continentais e dão destaque a centros simbólicos de territórios antes considerados
atrasados e periféricos. Como consequência deste percurso, o final do século XX foi marcado
pela retomada da psicodelia dos anos 1960 e pelo interesse nos estados alterados de
consciência, manifestados na cultura das raves e na disseminação do consumo de ecstasy,
LSD ou MDMA. Ao mesmo tempo, observou-se a expansão ainda em curso das técnicas
xamânicas, que afastaram-se de suas origens e assumiram formas crescentemente híbridas
(ROSE, 2010).
Hoje ao redor de todo o mundo são oferecidos cursos e workshops que ensinam as
pessoas a se tornarem xamãs. Todavia, o discurso da Nova Era incutiu uma ênfase na figura
individual do xamã, e novas características foram atribuídas ao xamanismo e seu papel. Essa
transmigração de símbolos e contextos levou à denominação do neoxamanismo, para Lambert
(2011), uma síntese essencializada de tradições xamânicas de muitos povos, adaptadas à um
publico majoritariamente urbano e ocidental. Todavia, as influências e alcances do
neoxamanismo estão ainda além do apontado por Lambert. Como campo nascido do interior
da Nova Era, as matrizes subjacentes à sua formulação e invocadas por seus agentes remetem
a basicamente cinco fontes, de acordo com Magnani (2013). A saber: filosofias e religiões
classificadas de “orientais”, como budismo, daoísmo e hinduísmo; sociedades esotéricas;
cosmologias indígenas (do xamanismo siberiano de Eliade até a dos índios norte-americanos
e, mais recentemente, também dos indígenas andinos); ritos pré-cristãos da Europa, como
aqueles de tradição celta; e também investigações do campo da ciência, como a física
quântica e a neurolinguística. Como área herdeira do pensamento esotérico, é comum no meio
neoxamânico que suas vertentes se apresentem não como pertencentes à uma cultura
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
62
Cf. HARNER, Michael. The way of the shaman: a guide do power and healing. San Francisco: HarperOne,
1990.
!
107!
especifica, mas sim como depositarias de uma antiga tradição, pertencente à uma
ancestralidade que remonta aos tempos míticos de contato harmônico do ser humano com a
natureza.
A busca por ancestralidade no neoxamanismo é em geral entendida como uma
capacidade a disposição de todos, possível de despertar e desenvolver. Lambert (2011) aponta
que no xamanismo ameríndio ou das sociedades caçadoras e coletoras tradicionais, um
individuo se torna xamã por busca pessoal, por eleição, herança, ou por uma associação
dessas três vias. Além de curar, o xamã pode também intervir para fazer com que alguém
adoeça, para enfraquecer um inimigo, achar um objeto ou uma pessoa. Contrariamente, no
neoxamanismo
[...] qualquer um pode cultivar esta capacidade, descobrir seu animal guardião,
possuir objetos de poder e realizar a viagem xamânica: basta aprender e colocar em
pratica determinadas técnicas disponíveis nos inumeráveis cursos, workshops e
assessoramentos oferecidos na rede das instituições neoesotéricas. E, em contraste
com os prolongados períodos de iniciação previstos nas formas clássicas, aqui se
oferece o produto de maneira mais rápida, adaptada ao ritmo e às necessidades da
vida moderna (MAGNANI, 2013, p. 41).
!
108!
Mais além do exemplo da visualização criativa como técnica terapêutica, Amaral (2000)
aponta que ainda que no neoxamanismo o aparato cultural dos indígenas e sua medicina
correspondente não apareçam tão claramente, dois símbolos xamânicos essenciais
permanecem ativos: o uso dos tambores para promover estados alterados de consciência; e a
busca por conhecimento como objetivo da viagem mística.
Galinier (2013) considera que o neoxamanismo indica um processo de
descontextualização. Segundo o sociólogo, o neoxamanismo eliminou a dimensão de
regulação de conflitos comunitários, da gestão da violência e política no interior da
comunidade, reduzindo-se à uma terapia individual que contempla somente o corpo e o
cosmos, à custa da dimensão societal das antigas tradições xamânicas. Anteriormente, quando
se descrevia um rezo xamânico, estavam contempladas sua dimensão coletiva, funcional e
simbólica, e não sua relação com a psique de um individuo em particular. Assim, a grande
diferenciação entre um xamanismo de comunidades indígenas tradicionais, e o neoxamanismo
!
109!
que circula hoje na sociedade e se espelha no interior da Naturologia, é que o primeiro está
permeado de pressupostos cosmológicos que norteiam a vida social, enquanto o segundo está
próximo à uma noção pós-moderna de espiritualidade, associada antes à um estilo de vida do
que à recriação de uma postura religiosa compartilhada entre os membros de uma comunidade
indígena.
!
110!
resultado do aumento do interesse das pessoas acerca do tema. Os elementos citados foram
motores para a edificação da imagem de uma super ciência, em geral vista como a única fonte
apta a explicar e solucionar qualquer espécie de problema ou incógnita com que possamos nos
deparar. Aliado a este ponto, Moraes (2007, p. 128) também chama a atenção para o fato de
que os avanços científicos acontecem tão rapidamente que não podem ser acompanhados pelo
senso comum, o que dá margem para interpretações fora de contexto, ou ainda à idealização
de realizações impraticáveis. Como exemplo, a socióloga menciona fenômenos passados no
final do século XVIII, um momento histórico de descobertas cientificas e tecnológicas tão
extraordinárias que ela o equipara ao momento vivido na contemporaneidade com o advento
da física quântica e a quebra na primazia do pensamento cientifico clássico. Segundo conta,
novidades como a gravidade, eletricidade, balões dirigíveis etc. levavam à especulações de
que a humanidade estava cercada de poderes ocultos, tornando difícil a separação entre ficção
e realidade. Certa vez, um jornal francês conseguiu arrecadar enorme quantia de dinheiro ao
publicar a descoberta de um principio que possibilitaria a fabricação de sapatos para andar
sobre as águas, desde que os leitores contribuíssem financeiramente para a realização do
projeto. Não obstante a matéria fosse em verdade uma brincadeira, Moraes sustenta que o
montante arrecadado à época comprova “[...] o clima de otimismo por causa das novas
descobertas e a grande expectativa quanto à capacidade da razão humana para dominar
‘poderes invisíveis’” (DARNTON, 1988 apud MORAES, 2007, p. 128).
Também hoje uma grande parcela da sociedade mantém um grau de expectativa quanto
ao controle da razão humana sob os citados ‘poderes invisíveis’, segundo Albuquerque
(2008), quando admite que a teoria quântica desvela habilidades da consciência humana que
nos permitiriam criar e alterar a realidade. Do mesmo modo, as ideias de plano sutil,
transmissão energética entre indivíduos e o ambiente, e a fé no poder concreto do pensamento
seriam indicações da crença otimista na capacidade humana infinita, pondera Moraes (2007).
A abordagem holística opera com certa influência nesse sentido quando propõe a
flexibilização das fronteiras e a aproximação dos saberes, desde onde a aliança entre ciência e
religião explicaria uma mesma essência, entendida como a realidade última. Para a socióloga
francesa Champion (2001), isto se dá em razão da tendência holística em “espiritualizar a
ciência” e “cientifizar a religião”, presente em especial nos tratamentos de saúde não
convencionais; segundo Champion, a tendência do meio holístico em afirmar a existência de
realidades não-ordinárias revelaria a pretensão em ultrapassar os limites não só da ciência,
mas também da mente humana. O entremear entre ciência e princípios religiosos praticado na
Nova Era fundamenta as relações criadas entre os referenciais científicos e a ideia de
!
111!
circulação de energia ou sopro vital, princípios estes negados pela racionalidade cientifica.
Conforme expõe Hanegraaff (1998), as divergências entre a ciência convencional e a
ciência de acordo com a Nova Era são reconhecidas por críticos e simpatizantes. Mas
enquanto os críticos dessa relação afirmam se tratar de uma “ciência de margem” 63 –
expressão que deixa clara a convicção destes de que essa abordagem se encontra no limiar da
pesquisa cientifica “genuína”, dando a entender que se trataria de uma pseudo-ciência –, seus
defensores a consideram uma “ciência de ponta”, e percebem a si mesmos como pioneiros de
uma nova visão de mundo (HANEGRAAFF, 1998, p. 63). Uma particularidade da
argumentação destes seria a apropriação da imagem do cientista como portador do
conhecimento certificado, de acordo com Albuquerque (2008) e Hanegraaff (1998), que
observam que os principais proponentes da ciência da Nova Era são, ou foram, cientistas;
alguns autores como Fritjof Capra e Amit Goswami começaram suas carreiras nesse campo,
mas com o crescente sucesso de seus livros passaram a se dedicar à escrita e palestras,
afastando-se da pesquisa. Hanegraaff (1998) considera que esse seria um exemplo de como as
credenciais cientificas servem ao propósito de conferir legitimação aos pontos de vista dos
autores, pois embora tanto Capra quando Goswami tenham se tornado escritores, aos olhos do
público leigo o status de cientistas prevalece e incide na leitura de suas obras.
O físico Pessoa Jr (2011a) nomeia de “misticismo quântico” essa atitude de atribuir uma
conexão intima entre a consciência humana (ou espiritualidade) e os fenômenos quânticos.
Conforme explica, a mecânica quântica é uma teoria que trabalha com experimentos com
objetos microscópicos, como os átomos, moléculas, e suas respectivas interações com a
radiação. As previsões realizadas por esse campo se efetivam sobre aquilo que se observa ou
se mede no laboratório científico, em geral atendendo à um formalismo relacionado a regras e
leis que fornecem previsões da teoria sobre as probabilidades de diferentes resultados das
medições. Todavia, a física quântica ainda não prevê o que acontece por trás das observações,
ou seja, quais seriam as causas ocultas dos fenômenos, assim como também não explica
detalhes do processo de medição, como por exemplo quais as relações entre o sujeito
observador e o objeto quântico analisado. Essas lacunas fazem com que cientistas e filósofos
busquem interpretações da física quântica, “[...] de maneira a construir uma visão de mundo
coerente a respeito da realidade que se encontra por trás das aparências, e a respeito do papel
do observador” (PESSOA JR, 2011, p. 1). No leque de interpretações existentes (em um vídeo
disponível no site youtube, o físico relata já ter contado em torno de cem)64, algumas podem
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
63
“Fringe science”, no original (HANEGRAAFF, 1998, p. 62, tradução minha).
64
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wiJ6oXfVjtQ.
!
112!
ser classificadas como idealistas: o termo “idealismo” é usado por Pessoa Jr nesse contexto
para exprimir qualquer corrente filosófica que aloca a mente como essencial na constituição
do mundo e da realidade. Na física quântica, uma interpretação idealista supõe que a
consciência humana tem um papel no desdobramento dos fenômenos quânticos, como propõe
teorias da década de 1930 sobre a consciência humana ser responsável pelo colapso da onda
quântica. Em geral, as interpretações idealistas são aquelas que são apropriadas pelas
perspectivas espiritualistas.
Para Pessoa Jr (2011a; 2011b), a conversa entre física quântica e misticismo ocorre
dentro do campo do que denomina por naturalismo: segundo o autor, o naturalismo seria uma
atitude de valorização da experiência humana junto à natureza, onde se crê que a experiência
terrena é regida por uma unidade primordial sob determinadas leis, sem a ingerência de seres
antropomórficos. Conforme expõe, é uma posição que valoriza o conhecimento científico
contemporâneo, sendo comum neste meio que questões filosóficas sejam adequadas aos
resultados da psicologia e da neurociência, por exemplo (PESSOA JR, 2011a).
Destarte, o objetivo da ciência da Nova Era não está necessariamente na disseminação de
novos conhecimentos científicos, mas sim no desenvolvimento de uma visão de mundo
unificada. Por isso o campo sugere asserções como que “a ciência moderna poderia aproximar
ou explicar os trabalhos do divino no cosmos”, que asseguram uma base cientifica para a
religião. A dimensão religiosa nesse contexto pode ser explicita, como no caso do exemplo
acima, ou implícita, mas está invariavelmente presente na construção dessa visão de mundo.
Trata-se portanto de um campo limítrofe, pois quando seus agentes afirmam que as
descobertas cientificas provam o misticismo ou um ponto de vista holístico, as barreiras entre
ciência e interpretações filosóficas ou religiosas esvanecem (HANEGRAAFF, 1998, p. 63).
Todavia, enquanto mesmo para os cientistas ortodoxos as interpretações idealistas que
estejam em conformidade com um formalismo mínimo da teoria quântica são irrefutáveis
como uma possível explicação do mundo (PESSOA JR, 2011a, p. 2), Hanegraaff (1998)
postula que para a Nova Era as pesquisas da física moderna indicam, necessariamente,
!
113!
resultados contrários às premissas cientificas vigentes. De tal maneira, seus atores frisam a
inevitabilidade de uma nova visão de mundo que compreenda os resultados apresentados
como são interpretados pelo campo, i.e., a partir da fusão entre ciência e espiritualidade.
Se de fato a motivação principal dos cientistas e sujeitos da Nova Era é a busca por uma
nova visão de mundo, isso leva Hanegraaff (1998, p. 64) a considerar que o termo “ciência da
Nova Era” seria na realidade inapropriado, posto que o domínio que estamos tratando não
seria necessariamente o campo da ciência, mas antes constituiria uma filosofia da natureza. A
partir de Faivre (1987) 65 , Hanegraaff descreve o termo “filosofia da natureza” em
consonância com a palavra alemã Naturphilosophie, “uma abordagem intuitiva e rigorosa
centrada na realidade subjacente à realidade dos fenômenos”66 (HANEGRAAFF, 1998, p. 65,
tradução e grifo nossos). Para Hanegraaff, essa definição abarca a preocupação central da
ciência da Nova Era, que, não obstante, permanece incólume à percepção dos novaeristas.
Como aponta Faivre (apud HANEGRAAFF, 1998), a razão provável para isso possa ser que o
“esoterismo ocidental” ainda constitui uma das tradições menos conhecidas pelos agentes que
dão continuidade aos seus pressupostos, assim como é um tema pouco explorado no âmbito
da academia. Isto, segundo expõe Faivre, ocorre porque os períodos da Renascença e do
Idealismo Alemão – que mantém uma relação entremeada à tradição que estamos nos
referindo – figuram áreas em geral negligenciadas nas pesquisas em Ciência da Religião
(HANEGRAAFF, 1998).
Conforme explica Hanegraaff (1998), a tradição da Naturphilosophie sempre esteve
proximamente associada a um modo de pensar religioso e místico. Pessoa Jr (2011a)
corrobora a consideração de Hanegraaff ao descrever sua concepção de naturalismo animista
e a relação com o misticismo quântico:
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114!
Basicamente, a questão é que as teorias usadas para justificar a naturologia não são
consideradas científicas pela ciência estabelecida, e as evidências experimentais em
favor da eficácia das terapias alternativas não são muito melhores, aos olhos da
ciência ortodoxa, do que a eficácia do chamado “efeito placebo”. [...] Boa parte das
explicações dadas às terapias alternativas envolve analogias criativas. [...]
argumenta-se que a cromoterapia teria base científica, pois “a cor violeta contribui
para a recuperação das pessoas que têm câncer porque ela é rica em potássio, e a cor
vermelha ajuda pessoas que estão com anemia”. Esse tipo de raciocínio por
semelhança sempre foi forte na tradição científica do “naturalismo animista”, na
qual a naturologia se insere, mas só devemos acreditar em tais analogias se elas
forem submetidas a testes experimentais bem controlados (PESSOA JR, 2011a, p.
!
115!
38-39).
Embora o raciocínio por semelhança seja observado em algumas práticas e possa ser
usado na Naturologia, como compara Pessoa Jr, o uso da cromoterapia é mais utilizado no
campo dentro da leitura das ondas eletromagnéticas, inspirada nos estudos do biofísico Fritz
Albert Popp. Segundo Hellmann (2008a),
A cromopuntura, ou colorpuntura, é referida por Moraes (2007, p. 129) como uma das
reinvenções holísticas de antigas tradições – neste caso, da medicina chinesa –, ou como uma
reinterpretação cientifica que encontra seu sentido dentro do referencial energético. A
cromopuntura citada por Hellmann seria uma mistura de ambas: sua técnica consiste em
aplicação de cores nos meridianos previstos pela medicina chinesa, mas diferentemente da
versão clássica desta, compreende o corpo como um sistema bioelétrico. É entendido que a
cromopuntura age na memória interna das células, que as pesquisas de Popp dizem, grosso
modo, se comunicar por feixes de luz. Assim, infere-se que se o qì é energia elétrica,
igualmente pode se manifestar como corrente elétrica, e portanto responderia ao estímulo
neurotransmissor enviado pelas luzes nos pontos de acupuntura. Assim como Goswani, Capra
e outros, Fritz Popp é um dos cientistas aclamados pela Nova Era: diversas páginas sobre
holismo, práticas naturais e física quântica (no sentido compreendido pela Nova Era) na
internet divulgam a comprovação dos canais energéticos – como os cakrás e meridianos, ou
ainda a ação dos reiki e os florais, cujos mecanismos permanecem desconhecidos ou refutados
pela ciência – através dos biofótons67 descobertos por Popp. A grande maioria dos sites
consultados também apresentavam Popp como um dos indicados ao Prêmio Nobel de Física
(sem nunca incluírem o ano da premiação), no entanto não encontramos outras fontes que
comprovassem a informação. Já Popp mantém uma atitude mais reservada para afirmar tais
correlações; ao ser questionado em uma entrevista encontrada no site espiritualidade e
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
67
De acordo com Santos, Paterniani e Gallep (2011) o termo “biofóton” descreve a origem e o caráter quântico
da fraca emissão de luz. http://unicamp.sibi.usp.br/bitstream/handle/SBURI/26533/S1413-
41522011000100009.pdf?sequence=1
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sugerindo que estes paralelos demonstram, por si sós, a necessidade de uma nova visão de
mundo.
Entre as cosmovisões que compõe o corpo desse capítulo, podemos apontar o Esoterismo
Europeu e Norte-Americano como a vertente mais significativa para a construção terapêutica
que vêm sendo propagada pela Naturologia. Essa assertiva está amparada em Hanegraaff
(1998), quem desenvolveu uma longa tese demonstrando que a Nova Era pode ser tida como a
manifestação – ou espelho secular, conforme descreve – do Esoterismo Europeu e Norte-
Americano.
De acordo com Hanegraaff (1998, p. 517), a Nova Era tem como uma de suas principais
características a elaboração de críticas em relação à cultura moderna, e tende a oferecer
alternativas que estão intimamente associadas à uma manifestação secularizada do
esoterismo. Tais alternativas abrangem desde a religiosidade, a perspectiva de saúde e a
escolha da alimentação, até, por exemplo, escolhas pontuais de vestuário e habitação. Dos
elementos esotéricos tradicionais o movimento adotou especialmente a ênfase na
individualidade da experiência religiosa e o holismo como opção contrária às perspectivas que
consideram amparadas no dualismo e no reducionismo. Todavia, os princípios herdados da
tradição esotérica são de modo geral reinterpretados à luz de uma perspectiva secular69:
elementos como a noção de “causalidade”, o evolucionismo e o estudo das religiões e da
psicologia, altamente importantes para a cosmovisão novaerista, impedem que seja reportado
ao movimento um caráter de retorno à cosmovisão pré-Iluminista. Antes, indicam o
sincretismo entre elementos seculares e esotéricos.
De fato, D’andrea (2000) descreve que a Nova Era pode ser entendida como um debate
entre Iluminismo e Romantismo, onde aquele sobreleva os tempos modernos, e este imputa
críticas ao seu enquadramento70. Também a máxima do movimento, a noção de self perfeito
(o “eu interior”, a essência de cada individuo), foi uma construção herdeira tanto do neo-
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
69
Cabe relembrar o exposto na introdução, que Hanegraaff (1998) compreende o termo “secularização” não
como uma ideologia antirreligiosa, mas como uma indicação do processo histórico que culminou no declínio da
autoridade cristã desde o século XVIII; desta feita, é possível pensarmos em uma “religião secular”, como no
caso da Nova Era, onde símbolos são compartilhados por um mesmo grupo e se expressam pela junção de
princípios tanto seculares, quanto religiosos (HANEGRAAFF, 1998; 1999a).
70
D’andrea (2000, p. 44) considera que: “deve-se ressaltar que na existência concreta do sujeito, grupo, ou
mesmo movimento, tais diferenças não se dão de forma clara, e até se mesclam em variadas combinações, entre
celebração e ceticismo, expressando ambigüidades e tensões”.
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humano, por exemplo. O segundo elemento seria a natureza vivente. No esoterismo, o cosmos
é percebido como um meio complexo, plural, hierárquico e permeado por forças espirituais. A
natureza é parte viva e fundamental deste cosmos, e atua como uma rede dinâmica de
“simpatias” e “antipatias”, nos níveis empírico e subjetivo. A característica imaginação e
mediação diz que a ideia de correspondência pressupõe uma mediação entre os mundos
superiores e inferiores por meio de rituais, símbolos, espíritos intermediários, anjos, e etc. A
imaginação seria o instrumento necessário para o alcance do conhecimento pleno, e que
permite o uso destes canais de mediação. O quarto elemento obrigatório seria a experiência
da transmutação, que diz respeito à metamorfose do indivíduo no sentido de uma profunda
modificação interna que irá iniciá-lo aos mistérios do cosmos e do seu próprio self. Das
características não intrínsecas, Faivre distingue a prática da concordância como a busca por
pontos comuns entre duas ou mais diferentes tradições, no intuito do alcance por um
conhecimento de qualidade superior, ou ainda de uma tradição primordial. O componente
final refere à transmissão do conhecimento esotérico, que é realizado por via de um canal de
iniciação pré-estabelecido, ou seja, de mestre para discípulo. Essa característica corresponde à
noção de um conhecimento e tradição autênticos (FAIVRE, 1994; HANEGRAAFF, 1998).
Como salientou Guerriero (2015), embora Faivre considere os dois últimos elementos
como relativos para uma devida caracterização do esoterismo, na Nova Era estes assumem
importância crucial, o que corrobora a ressalva apresentada acima acerca das diferenciações
entre as correntes esotéricas, a época em que se apresentam, e o que figura como uma
característica fundamental para a identificação de uma tradição esotérica. De todo modo,
Hanegraaff (1998, p. 400) observa que o esoterismo sensu Faivre pode ser caracterizado como
“holístico”, além de evidenciar grandes similaridades para com preceitos básicos da Nova
Era. O autor enumera alguns exemplos: o paradigma holográfico, o qual supõe que o cosmos
está refletido em todas as porções que o compõe, seria uma formulação moderna das
correspondências entre macrocosmos e microcosmos. A natureza vivente está expressa na
comum noção de que o cosmos é permeado por uma “energia”. A crença nas mediações se
evidencia no discurso sobre a hierarquia dos níveis espirituais, formado por entidades
espirituais. Também a imaginação está manifesta na busca por realidades transpessoais. A
transmutação se associa à importância dada na Nova Era à “individuação”, ao caminho de
evolução da alma humana e de auto-conhecimento. É também bastante comum na Nova Era a
crença em uma “sabedoria primordial” que seria a fonte de todas as tradições religiosas, o que
justifica comparações e aproximações entre diferentes tradições. Por fim, embora a Nova Era
seja simpática com gurus ou mestres que ajudarão os indivíduos a compreender e atingir
!
121!
insights, a ideia de dependência para com alguém que não o próprio individuo não é seguida
tão à risca no movimento, o que torna a última característica, a transmissão, menos evidente.
É em vista a tais aproximações que Magnani (1999) classifica a Nova Era como um
movimento neo-esotérico. O uso do prefixo “neo” tem justamente a intenção de indicar que a
Nova Era não pode ser estritamente encerrada como uma corrente esotérica. Isto porque “As
correntes esotéricas tradicionais são claramente demarcadas e possuem histórias próprias.
Assim, não são dependentes do Movimento Nova Era”71 (GUERRIERO, 2015, p. 2, tradução
nossa). Ainda assim, embora estas histórias sejam de períodos muito anteriores ao da difusão
da Nova Era, é muito comum a aproximação de determinados movimentos antigos da tradição
esotérica com a Nova Era, como é o caso, por exemplo, da Antroposofia.
Historicamente, as raízes do pensamento esotérico podem ser traçadas pelo menos desde
a Antiguidade, e reportam à síntese entre correntes filosóficas e religiosas, onde se destacam o
Hermetismo, a Kaballah hebraica, o Cristianismo, o gnosticismo, o neopitagorismo, o
estoicismo e o neoplatonismo. Em um momento posterior, a partir do final do século XV,
foram incorporados discursos norteados pela ideia de Philosophia Perennis, ou “Tradição
Primordial”, assim como o destaque da natureza foi uma influência vinda da
Naturphilosophie alemã (FAIVRE, 1994; HANEGRAAFF, 1998). Conforme Hanegraaff
(1998, p. 386, tradução nossa),
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espiritual, e o espírito é percebido como uma forma material refinada. Nos dois casos, os
discursos de seus interlocutores eram reportados à ciência, dado que tanto Mesmer quando
Swedenborg eram, primeiramente, cientistas. No caso de Mesmer, como o fluido magnético
de sua teoria era considerado tanto material quanto espiritual, o mesmerismo foi adotado por
vários indivíduos e movimentos, desde iluministas até ocultistas, e sua teoria destacou-se
como a unificação entre esoterismo e ciência moderna.
Outro grande destaque do ocultismo e influência fundamental para a Nova Era foi Helena
Blavatsky (1831-1891). Precursora da Teosofia moderna, Blavatsky sintetizou noções que,
em maior ou menor escala, ainda se fazem muito presentes: a crença em uma irmandade
universal da humanidade, sem distinção de raça, sexo, casta ou crença; a síntese entre ciência,
religião e filosofia; a popularização da ideia de carma, assimilada como “progresso
espiritual”; a investigação das leis da natureza e das forças ocultas do homem; a perspectiva
da espiritualidade oriental como sabedoria primordial (HANEGRAAFF, 1998; GUERRIERO,
2015). A abordagem teosófica de Blavatsky é bastante eclética, combinando elementos
selecionados das tradições Hindu e Budistas que são geralmente assimilados como
semelhantes, ou ganham novos significados. A teoria da evolução é uma das chaves de
compreensão do pensamento de Blavatsky: vista como uma lei da natureza, a evolução abarca
ambos os domínios físico e espiritual, compreendendo o desenvolvimento do universo e do
planeta, da história da humanidade e da consciência religiosa, assim como da alma humana
antes e pós morte. Após uma expedição à Índia em 1878, Blavatsky incorporou a noção de
carma à sua teoria da evolução, ressignificando elementos originais que não se encaixavam
nesse modo de explicação de origem tradicionalmente ocidental (HANEGRAAFF, 1998). A
Sociedade Teosófica desdobrou-se em várias formas e ramificações, sendo uma das mais
importantes a Sociedade Antroposófica, desenvolvida por Rudolf Steiner (1861-1925).
A psicologização da religião, ou a sacralização da psicologia – movimento que data dos
anos 1880 até o recente Movimento do Potencial Humano – é tida por Hanegraaff (1998)
como um dos elementos refletores da relação entre Esoterismo e Nova Era, e representa uma
das adaptações da cosmovisão religiosa esotérica à sociedade contemporânea. De tradição
predominantemente norte-americana, essa linha de psicologia é descrita por Fuller (1986 apud
HANEGRAAFF, 1998) como determinada antes por fatores culturais e filosóficos do que por
fatos estritamente empíricos. Para o autor, as teorias americanas sobre o inconsciente
representam reproduções estruturais de religiões indígenas e de determinadas tradições
culturais, dado que tendem a inculcar ao inconsciente a função de restaurador da harmonia
entre o individuo e um poder espiritual imanente. Baseado no trabalho de Phineas P. Quimby
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Neste capítulo, pudemos distinguir as origens religiosas das práticas terapêuticas usadas
pela Nova Era e a Naturologia. Assim, vimos que o Āyurveda tem suas origens nos Vedas,
com suas primeiras referências à medicina em tratados muito arcaicos, que receberam novos
!
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ramos e atualizações até épocas mais recentes. A Medicina Chinesa foi traçada a partir de sua
origem entremeada a pressupostos básicos do Daoísmo, como o dào, yīn-yáng, e a utilização
da simbologia da natureza para estabelecer correlações com a dinâmica humana. Suas
influências foram muitas, como xamanismos, o budismo, o confucionismo, a terapia oracular
e a alquimia indiana. Somente a partir do século XX que estes saberes essencialmente
religiosos começaram a ser despojados de seus elementos essenciais e traduzidos para uma
linguagem cientifica. O Xamanismo foi descrito em paralelo com a sua manifestação mais
expressiva nos meios urbanos da atualidade, o Neoxamanismo. Debatemos sobre a
essencialização do termo xamanismo e sobre o papel social do xamã em sociedades de
caçadores-coletores e povos ameríndios, a partir de onde buscamos traçar os distanciamentos
entre a “cura xamânica” do Neoxamanismo e dos grupos xamânicos arcaicos. A seção Ciência
da Nova Era buscou mostrar os hibridismos realizados entre os saberes tradicionais e a
racionalidade cientifica, que objetiva – ainda que muitas vezes inconscientemente por parte de
seus interlocutores – legitimar por meio da ciência saberes essencialmente energéticos e
religiosos. Por fim, buscamos demonstrar como a Nova Era segue em confluência com os
saberes esotéricos que, desde muito antigamente, também buscaram alcançar uma ciência que
contemplasse os aspectos espirituais e energéticos, transpondo a esfera física. Além disso, o
Esoterismo é, em realidade, a prática que permite o hibridismo entre os saberes anteriores,
posto que uma de suas premissas é a crença em uma sabedoria ou tradição primordial, o que
permite por parte de seus agentes as mais diversas comparações e amálgamas.
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vias de contato: a primeira seria pelo conflito, onde se visualiza a disputa pelo saber legitimo
quando a Naturologia nega ao seu campo de saber a associação à saberes místicos ou
esotéricos (TEIXEIRA, 2013). A segunda se apoia principalmente naquilo que citamos como
Ciência na Nova Era, onde no lugar de uma independência por meio do distanciamento, um
diálogo é estabelecido nas questões que se encontram no limiar daquilo que a ciência não
consegue explicar, e analogias entre os dois campos são elaboradas para justificar um
determinado ponto de vista. Não obstante, é importante ressaltar que a Naturologia não
percebe como pertencente ao campo da religião as discussões que envolvem releituras da
física quântica, sendo esta uma perspectiva ética em relação à Naturologia enquanto objeto.
Conforme iremos discorrer um pouco mais à frente, as lideranças da Naturologia não
assumem a proximidade de seu próprio discurso àquele transmitido pelo Movimento Nova
Era, como pontua Stern (2016). Julgamos que isso se deve ao fato de que além da Nova Era
ser de pronto associada ao campo neoesotérico, há ainda uma distinção de dois modos de ser
do movimento que não é conhecida pelo senso comum. Hanegraaff (1998, p. 97) divide estas
manifestações em sentido estrito e sentido amplo. A Nova Era em sentido estrito é aquela que
dá sentido ao seu nome: faz referência à espera milenarista de uma nova época, diferente e
melhor que a que vivemos. Todo o movimento hippie da década de 1960, as premissas
levantadas pela contracultura e as comunidades alternativas que aguardavam a chegada da Era
de Aquário se enquadram no modelo de sentido estrito, no qual a ênfase em suas raízes
Teosóficas e Antroposóficas também transpareciam muito mais claramente. Conquanto, toda
manifestação social sofre mudanças que acompanham o percurso histórico, não sendo
diferente com o Movimento Nova Era. Segundo Hanegraaff (1998), o que vemos hoje pode
ser chamado de Nova Era em sentido amplo: após a década de 1970, os ideais do movimento
foram perdendo a intensidade à medida que entraram em contato com outras organizações
sociais e novas demandas, e a espera milenarista permaneceu quase que somente no nome. A
Nova Era em sentido amplo está mais preocupada com a transformação interna dos
indivíduos, e a difusão das terapias holísticas é um indicativo de como estes valores se
espalharam na sociedade, ainda que muitos não tenham consciência da origem destas ideias.
Por este motivo, princípios novaeristas podem ser encontrados no interior dos mais diversos
grupos e nichos mercadológicos da área da saúde, mesmo que seus sujeitos não aludam
objetivamente ao termo “Nova Era”. Guerriero e colaboradores (2016) chamam esta difusão
de valores de “ethos Nova Era” – por sua ampla distribuição na sociedade, sustentada e
absorvida pela própria cultura capitalista, este ethos se reflete mesmo no interior de espaços
institucionalizados, em que seus atores buscam a legitimação de suas práticas por vias
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contornos, sobretudo a partir dos anos 2000 (TONIOL, 2015c). Isto porque foi a partir dessa
década que se intensificaram os processos de apropriação das práticas da Nova Era pela
medicina oficial, por corporações empresariais e pela publicidade. Também o desejo de
oficialidade por parte de seus sujeitos fez com que a busca por legitimidade dentro do campo
já normatizado das ciências médicas adquirisse força, o que, consequentemente, implicou na
recusa de seu alinhamento ao universo esotérico. A criação da PNPIC intensificou ainda mais
este processo, ao mesmo tempo em que se tornou a principal via de alcance dessa
legitimidade.
O panorama exposto acima é citado por Toniol (2015a; 2015b; 2015c) em relação à
criação de associações de terapeutas holísticos e ao crescimento dos grupos ligados às terapias
holísticas que aludem à ciência, e não à religião, como balizadora de suas práticas. Mas essa
preocupação com os referenciais científicos, acompanhada pela objeção ao vínculo de suas
terapias com conhecimentos religiosos é também uma tendência da Naturologia desde a
entrada do curso em sua segunda fase. Uma análise das pesquisas selecionadas para
publicação nos seis números do CNTC, nos dois números especiais sobre Naturologia no
periódico Cadernos Acadêmicos, e nos três livros organizados pelas lideranças da Naturologia
sulista, dos anos 2008, 2008 e 2012, respectivamente, permite a visualização da construção do
discurso do campo. Isto é, permite entrever por meio de quais pressupostos, e associada a
quais tipos de saberes e sujeitos, a Naturologia deseja ser reconhecida.
Muito embora, como objetivamos demonstrar no terceiro capitulo, todo o campo da
Naturologia esteja entremeado à visões de mundo religiosas – desde as lógicas que embasam
as terapias utilizadas até a amálgama entre diferentes noções energéticas suas
correspondências com a ciência – há um percurso que demonstra como ao longo do tempo a
Naturologia vem cientifizando o seu saber. Essa “cientifização” se reflete na diminuição das
publicações que visam investigar as terapias energéticas ou que falem sobre “energia”, e no
aumento daquelas que versam sobre os elementos energéticos utilizando-se de uma linguagem
cientifica.
Segundo Teixeira (2013) as práticas de atenção à saúde vitalista, como a Naturologia, são
baseadas no pressuposto da existência de uma força vital intrínseca a todos os seres vivos,
também chamada de energia. Ainda que amplamente utilizada pelos naturólogos, posto que
perpassa todas as práticas utilizadas, a noção de energia é uma das mais controversas por ser
extremamente polissêmica. A dificuldade de mensuração da energia pelos métodos científicos
oficiais faz com que certos naturólogos sintam-se inseguros em desenvolver pesquisas sobre o
tema. Assim, geralmente o que se nota quando da existência de pesquisas sobre energia é a
!
134!
divisão destas pesquisas em dois grupos: aquelas que procuram comprovar a eficácia e
elucidar os mecanismos de ação das terapias por meio de ensaios clínicos e revisões
sistemáticas e de meta-análise, e aquelas que se dispõe a explorar os aspectos energéticos e
simbólicos das práticas utilizadas na Naturologia, geralmente por meio de estudos de caso. Do
primeiro grupo, vemos a predominância de suas publicações no periódico de Naturologia, em
pesquisas desenvolvidas por naturólogos e por pesquisadores de fora que trabalham com ou
investigam as PIC. Já do segundo grupo elencamos pesquisas em sua grande maioria
publicadas nos livros de 2008.
No O livro das interagências, no livro Naturologia Aplicada: reflexões sobre saúde
integral, ambos de 2008, e em alguns artigos lançados nos números sobre Naturologia no
periódico Cadernos Acadêmicos, de 2011, é onde se encontra a maior profusão de pesquisas
que contemplam a “energia” como tema; não obstante, são pesquisas realizadas em um
período anterior à organização das publicações, em que os valores novaeristas eram muito
mais fortes entre a população acadêmica. O terceiro livro, Naturologia: diálogos e
perspectivas (2012), apresenta reflexões oriundas das ciências humanas e debate o papel do
naturólogo na sociedade, visando um diálogo interdisciplinar com a saúde coletiva, a
antropologia, sociologia, bioética e tanatologia. Conforme ressaltam os organizadores, a
construção do livro tem como objetivo o fortalecimento e a consolidação da profissão; decerto
por este motivo, o viés das publicações tem um direcionamento bastante preciso no sentido do
estreitamento do campo com a PNPIC. Dos doze artigos que compõe o livro, seis dissertam
especificamente sobre a Política.
Também foi observado que ao tratar das terapêuticas utilizadas pela Naturologia, ao
longo do tempo houve uma variação em relação à terminologia usada. Se nas publicações
mais antigas era comum o uso da palavra “holismo” ou também “práticas/medicina
alternativas”, à medida que o campo foi objetivamente se afastando de um discurso novaerista
e se pretendendo mais institucional estes vocábulos também foram sendo superados,
especialmente quando o texto foi desenvolvido por sujeitos da liderança da Naturologia. Em
determinados casos, este giro é intencional e mencionado por seus interlocutores, conforme
deixa clara esta passagem de um artigo escrito por três professores do curso. Destes, um é ex-
coordenador da Naturologia sulista, e o outro é o atual coordenador.
!
135!
têm como objetivo substituir nenhum outro sistema ou racionalidade médica. Por
outro lado, entende-se que a denominação “complementar” é a mais adequada, uma
vez que os modelos de atenção em questão podem ser praticados em conjunto com
outros modelos, inclusive com o modelo médico dominante vigente em nossa
sociedade. (RODRIGUES; HELLMANN; SANCHES, 2011, p. 27).
!
136!
outra cultura, que tendem a despojar suas características originais e diminuir o compromisso
com a tradição. Em se tratando das interações entre ciência e religião, essa problemática se
agrava pois há não somente a disputa pelo saber verdadeiro, mas no caso da Naturologia
também há o rechaço por seus elementos religiosos, ainda que estes sejam indissociáveis de
todo o contexto do campo. Como exceção à observação de que os textos publicados não
contemplam esta temática, podemos citar Leite-Mor e Wedekin (2012), ao colocarem que
A Naturologia, ao conjugar todos estes saberes tão distantes e distintos uns dos
outros, tem que ter em conta esta dupla consideração: sendo a ciência e a
Naturologia, enquanto disciplina acadêmica, modernas e configuradas dentro de
uma estrutura de pensamento própria, não podemos correr o risco de julgar e
entender a “outra” medicina, oriental, holística, a partir de nossa estruturas. [...] Não
estaríamos, ao comprovar cientificamente medicinas orientais, passando por cima
delas próprias e de suas cosmologias? Como a Naturologia deve lidar com tais
questões? É importante ressaltar que, antropologicamente falando, ao tentarmos
tornar “cientifico” um conhecimento tradicional, minamos nossa possibilidade de
experienciar o conhecer o “outro”, uma vez que não nos desfazemos de nossas
concepções e adequamos o “outro” conhecimento a nossas estruturas (LEITE-MOR;
WEDEKIN, 2012, p. 56-58).
Neves (2012) também levanta brevemente a discussão sobre a hierarquização dos saberes
no contexto das PIC. Conforme expõe, ainda existe resistência e argumentação das lideranças
do Ministério da Saúde para a não inclusão de algumas práticas holísticas na Política, como a
Terapia Floral, em razão da falta de comprovação de seus mecanismos de funcionamento pelo
método cientifico. De acordo com a autora, isto ocorre pois “ainda nos dias de hoje, ela [a
ciência] consegue comprovar apenas o visível. O invisível, o sutil, o energético está distante
dos meios e dos instrumentos utilizados por uma ciência predominantemente materialista”
(NEVES, 2012, p. 158). A autora ainda defende que a autenticidade dos remédios sutis não
deve ser determinada por estudos científicos típicos, dado que estes estão baseados em um
paradigma mecanicista que ignora os campos de força além da dimensão física (NEVES,
2012, p. 159). Conforme podemos perceber da fala de Neves, a autora crê que no futuro um
outro paradigma poderá desvendar a atuação das terapêuticas holísticas quando afirma que a
ciência ainda não é capaz de trabalhar com tais métodos.
Em outros momentos deste mesmo livro observamos menções ao âmbito religioso, como
em Hellmann e Verdi (2012, p. 100), que discorrem em uma passagem que a religião é
“experiência transcendente que encontra espaço em todas as culturas humanas, como também
está presente nas filosofias dos Florais de Bach, da Aiurveda e na vida de muitos daqueles que
optam por se tornarem naturólogos”. Ischkanian e Pelicioni (2012, p. 187), indo na contramão
da resistência da Naturologia em ser associada à saberes místicos, defendem em um
!
137!
fragmento do seu texto que para a construção de novas formas integrativas de saúde, faz-se
necessário o conhecimento de modelos místicos de saúde e de diversas culturas tradicionais.
O artigo de Arruda e Turrini (2012) trata sobre o tema da espiritualidade e religiosidade em
interface com a saúde e com as PIC. Todavia, não se discute o que há de religioso ou
espiritual nas práticas integrativas e complementares, em acordo com o propomos observar
nessa pesquisa, mas sim qual a importância destes elementos no contexto total na saúde do
individuo, e a preparação necessária ao profissional da saúde para lidar com essa temática.
Assim, ainda que notemos a preocupação de alguns autores em mencionar, ainda que
brevemente, a religiosidade e a espiritualidade em conexão com a área da saúde e a
Naturologia, com exceção dos dois primeiros exemplos dispostos tal aproximação é realizada
sem que sejam abordadas as problemáticas sobre a hierarquização do saber cientifico sobre o
religioso no âmbito das terapias holísticas, ou ainda sem que se delibere em profundidade
sobre a dimensão religiosa das práticas utilizadas pelo campo.
Em paralelo com o tema dessa dissertação, o que a leitura das publicações pelos veículos
oficiais da Naturologia deixa entrever é que os temas religiosos estão ali, mas como observa
Moraes (2007), encobertos por uma roupagem secularizada e linguagem científica que
camufla seus aspectos religiosos, tornando-os aceitáveis intelectualmente. De modo a elucidar
esta observação, o passo seguinte dessa seção será a apresentação de algumas publicações que
em alguns casos se aproximam, e em outros se distanciam da premissa levantada. A
disposição das passagens textuais serão elaboradas em diálogo com os conteúdos expostos no
capitulo anterior, isto é, traçando correspondências com o que os autores utilizados expuseram
sobre as respectivas visões de mundo religiosas e seculares.
!
138!
segundo as autoras, em “uma pastilha de óxido de silício que tem a função de estimular
pontos, zonas ou áreas do corpo a partir da reordenação da frequência energética local”
(AVELINO; MEDEIROS, 2013, p. 13, grifo nosso); deste modo, as pastilhas são utilizadas
para equilibrar a frequência energética dos pontos onde são aderidas, neste caso, visando
reduzir a lombalgia. Outro estudo de caso quantitativo sobre reflexologia, publicado na
mesma edição do periódico por Machado, Rodrigues e Silva (2013), investiga a influência da
terapia na qualidade do sono. As autoras explicam que a reflexologia podal é uma técnica que
compreende pressões em diferentes regiões dos pés, que atingem reflexamente os órgãos
correspondentes, revitalizando-os e reequilibrando o organismo (MACHADO; RODRIGUES;
SILVA, 2013, p. 67)
A reflexologia aproxima-se a uma das leis fundamentais do pensamento esotérico: a lei
da correspondência. Como vimos, este principio sugere a existência de correspondências reais
ou simbólicas entre o microcosmos e o macrocosmos, desde onde se infere que conhecendo a
natureza de um deles se possa concluir a natureza do outro, e que se estes são regidos pelas
mesmas leis básicas: o que acontece em um será refletido no outro. Este foi um principio
estabelecido por Hermes Trimegisto, quando afirmou que “o que está em cima é como o que
está embaixo” (PEREIRA, 1993, p. 170), tornando-se uma das bases das terapias holísticas.
De acordo com Pereira (1993) a teoria esotérica postula que as partes agem umas sobre as
outras pelas afinidades, e assim funcionam a reflexologia e a auriculoterapia quando para
curar um ponto, por exemplo o fígado, ativam um ponto nos pés ou na orelha em
correspondência com aquele órgão. Hanegraaff (1998) por sua vez observa que o paradigma
holográfico é uma formulação moderna das correspondências entre macrocosmos e
microcosmos, ponderação que faz sentido em confluência com os comentários de Pereira,
quando notamos uma explicação de Hellmann (2008a, p. 17) sobre a reflexologia, em que
discorre que esta é “uma ciência que leva em conta a teoria dos microcosmos, ou seja, do
modelo holográfico, baseado na ideia de que uma parte contém o todo; assim, os pés e as
mãos, bem como as íris e as orelhas apresentam todos os órgãos nelas refletidos”. Outros
artigos quantitativos de práticas amparadas na lei da correspondência observados foram
Salles, Silva e Batello (2012), que realizaram um estudo piloto sobre a prevalência de sinais
iridológicos que sugerem diabetes em idosos; um estudo selecionado para apresentação no I
CONBRANATU do naturólogo Hellmann (2008b) que trata sobre relações entre a iridologia
e disfunções cardíacas, em que foram analisadas fotos da íris de pessoas com disfunções
cardíacas em comparação com as de pessoas sem essas disfunções; e um estudo experimental
com grupo controle interno, teste duplo cego randomizado com cruzamento e com grupos
!
139!
independentes e concorrentes que objetivou avaliar os efeitos das essências florais de Bach
Impatiens, Red Chesnut e White Chesnut para resolução da queixa de insônia, desenvolvido
pelas naturólogas Guapo e Hijo (2008).
Em uma edição de 2014 do periódico da Naturologia consta um estudo piloto sobre os
efeitos do toque terapêutico na Síndrome Pré-Menstrual, de Ramalho, Salles e Silva (2014).
Conforme Fuller (2005), o sistema Toque Terapêutico foi desenvolvido pela enfermeira norte-
americana Dolores Krieger em parceria com Dora Kurz, ex-presidente da Sociedade
Teosófica da América, e consiste em uma técnica inspirada na ciência de Mesmer a respeito
do magnetismo animal, ou seja, baseia-se na crença em uma energia universal que permeia
todos os processos vitais. Fuller (2005) pontua que Krieger se refere a esta energia usando o
termo hindu prana, segundo a qual tem a capacidade de instilar uma dimensão espiritual
superior em todos os organismos viventes. Certamente pela proximidade com a Teosofia, um
dos pressupostos para a realização do Toque Terapêutico, segundo Fuller, compreende a
iniciação a que novos terapeutas devem ser submetidos para que possam realizar a técnica, de
modo que sejam eles mesmos receptivos ao fluxo de energia espiritual (FULLER, 2005, p.
3851). A trajetória iniciática para o desenvolvimento das faculdades superiores é uma herança
esotérica deixada pela história de Blavatsky, a partir da qual a simbólica da busca passou a
adquirir grande veemência. Posteriormente, foi incorporada também pela Psicanálise com o
trabalho de C. G. Jung, a jornada arquetípica do herói e suas noções de individuação e
crescimento – estas, por sua vez, também referidas por Hanegraaff (1998) como
manifestações novaeristas do elemento transmutação, inerente ao pensamento esotérico,
como descrito no capitulo anterior.
Embora as pesquisas supracitadas tenham sido elaboradas a partir de metodologias
quantitativas, a maior parte dos textos em que se percebe as influências do pensamento
esotérico72 são formuladas a partir das ciências humanas, em confluência com saberes vindos
da área da psicologia, ou em diálogo com o campo da saúde coletiva. Relembrando as
características essenciais do Esoterismo pormenorizadas por Faivre (1994), a categoria
natureza vivente se reflete na fala de Rodrigues, Hellmann e Sanches (2011, p. 33, grifo
nosso) ao descrevem a base das práticas utilizadas pela Naturologia:
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
72!Cabe!pontuar,!porém,!que!embora!estejamos!sistematizando!uma!separação!para!a!
ordenação!destas!categorias,!deve!ficar!claro!ao!leitor!que!elementos!do!esoterismo!
perpassam!todas!as!pesquisas!e!composições!da!Naturologia,!por!ser!esse!pensamento!a!
base!da!Nova!Era!e,!por!conseguinte,!das!terapias!holísticas.!!!
!
140!
Conforme Hanegraaff (1998), na Nova Era a crença em uma natureza vivente se expressa
na noção de que o “cosmos” é permeado por uma única energia, premissa levantada pelos
autores quando estabelecem os princípios norteadores do campo, destacados acima.
Teixeira (2013) e Stern (2016) evidenciam a proximidade que a relação de interagência,
categoria êmica da Naturologia, tem para com os pressupostos da psicologia humanista,
desenvolvida por Carl Rogers e parte componente da psicologia transpessoal. Inclusive, uma
publicação de 2012 realizada por Carmo, Cobo e Hellmann discorre efetivamente sobre a
relação de interagência a partir da perspectiva da Abordagem Centrada na Pessoa73. Em uma
passagem deste artigo ressaltada anteriormente por Stern (2016), em que os autores afirmam
que cabe ao interagente “relevante parcela na busca do potencial humano” (CARMO; COBO;
HELLMANN, 2012, p. 14), Stern pontua a referência – talvez ignorada pelos pesquisadores –
ao Movimento do Potencial Humano, principal vertente novaerista de cura norte-americana.
Como observa Stern (2016), muitas vezes na Naturologia ocorre a tentativa de distanciamento
de autores novaeristas para a fundamentação dos estudos no campo, mas constantemente
acabam por usar como referência áreas que também são muito próximas e caras à Nova Era,
como é o caso da psicologia transpessoal – representada aqui por Carl Rogers –, ou da
psicologia analítica – que tem como principal representante Jung. Um outro elemento
referente à uma etapa mais recente da história do esoterismo, a psicologização da religião, se
reflete na tendência à psicologização da saúde na Naturologia, e pode ser notada no artigo de
título Corpo simbólico em arteterapia: reflexões sobre a saúde integral (WEDEKIN, 2008).
Amparada nos estudos do teólogo Jean-Yves Leloup, Wedekin informa que a arteterapia atua
como meio de “escuta” do corpo:
!
141!
A autora também observa que, segundo Leloup, a enfermidade tem um caráter iniciático,
possibilitando ao sujeito mudanças em seu modo de viver e o reencontro deste individuo com
seu verdadeiro eixo. Aqui também cabem as ponderações levantadas acima sobre a trajetória
iniciática e as influências teosóficas em sua elaboração.
Já nos textos de Portella (2013), Sabbag e colaboradores (2013), e no resumo da tese de
Silva (2013), notam-se aproximações à característica esotérica prática da concordância.
Conforme Faivre (1994), esse elemento traduz a busca por pontos comuns em diferentes
tradições, objetivando o alcance de uma tradição primordial. Na Nova Era, uma expressão
muito comum é a crença em um saber essencial ou primordial, o qual seria a fonte de todos os
outros saberes. Por isso é tão usual no meio comparações e aproximações entre diferentes
doutrinas (HANEGRAAFF, 1998). Nos artigos, esse componente se destaca com as seguintes
passagens: “Por não ser compatível com o paradigma dominante na saúde, a naturologia opera
de maneira diferenciada. Suas bases são fruto de religações que trazem um olhar alinhado
com uma nova maneira de dialogar com o conhecimento” (PORTELLA, 2013, p. 59); “Ela [a
Naturologia] é produto de interações, religações e diálogos entre práticas e sistemas
terapêuticos como as medicinas tradicionais e os conhecimentos biológicos e biomédicos da
ciência moderna” (SABBAG et al, 2013, p. 16); “A Naturologia favorece a religação de
saberes e de racionalidades que comporta” (SILVA, 2013, p. 93). Amparada no principio da
complexidade de Edgar Morin, Silva (2012) passou a utilizar a expressão “religação” para se
referir ao diálogo entre saberes realizado pela Naturologia, expressão essa que foi adotada
também por outros pesquisadores do campo. A contiguidade com a prática da concordância
se exprime na própria palavra “religar”, que significa “tornar a ligar, ligar novamente”74. Ou
seja, independentemente de os diferentes saberes estudados e utilizados pela Naturologia
pertencerem a contextos culturais, históricos e sociais díspares, a utilização da expressão
religar indica a crença dos autores de que estes saberes podem não só serem dialogados na
pratica terapêutica, mas tem como base um saber essencial que lhes dá um mesmo sentido
expresso de diferentes formas. Quando se parte deste pressuposto, as barreiras socioculturais
entre as diferentes visões de saúde são dissipadas e uma essência comum a todas é procurada
– ainda que, no caso da Naturologia, essa essência comum seja a noção de “energia”,
homogeneizada a partir da Nova Era.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
74
Disponível em <https://dicionariodoaurelio.com/religar>. Acesso em: 09 jul. 2017.
!
142!
4.1.2 Āyurveda
Das cinco cosmologias apresentadas nessa dissertação, a Āyurveda é uma das que
tivemos maior dificuldade em encontrar pesquisas publicadas e em traçar correlações com os
resultados da nossa investigação sobre as origens dessa prática terapêutica. Ainda que na
seção destinada ao tema no capitulo anterior tenhamos comentado que a Āyurveda talvez seja
a disciplina que os naturólogos possuam maior conhecimento a respeito de suas raízes
religiosas, somente a passagem que destacamos a seguir deste comentário pode expressar essa
constatação diretamente da Naturologia. Nosso comentário foi feito em virtude de a Āyurveda
ser, de fato, um sistema em que as noções espirituais inerentes à sua prática não são
regularmente traduzidas à linguagem científica, como costuma acontecer com a medicina
chinesa, por exemplo. O mais próximo a esse processo de cientificização se aplica no caso
dos paralelos traçados por representantes do misticismo quântico, como Amit Goswami ou
Fritjof Capra, ou ainda nos processos de psicologização de determinadas categorias
āyurvedicas.
Em nossa análise constatamos somente um artigo publicado sobre Āyurveda na revista
cientifica da Naturologia, enquanto nos dois livros de 2008 não foram observados artigos que
tratassem especificamente do sistema; mas, principalmente no Livro das Interagências
(2008), alguns estudos de caso trazem a correlação de elementos da Āyurveda juntamente à
outras práticas holísticas. Como observa Rocha (2010), existe um forte processo de
sincretismo entre o Āyurveda clássico e outras terapêuticas inexistentes na tradição
primordial, produzido por autores modernos. Sabe-se também que esse tipo de fusão é um
recurso muito comum às terapêuticas holísticas e à Nova Era.
A observação de Rocha se aplica na leitura nos estudos de caso desenvolvidos por
Sanches (2008), Bell (2008) e Oliver (2008). Em seu trabalho, Sanches (2008, p. 29) discorre
sobre a utilização do conto como instrumento de avaliação terapêutica, em que correlaciona a
temática do arquétipo do órfão, a partir de Jung, com o conto de Hans Christian Andersen “O
patinho feio”, e com os cákras do Āyurveda. Conforme explica “[...] essa relação pode ser
reforçada pelo fato de o próprio Jung compreender os chakras como um processo simbólico e
reconhecer nos contos uma forma de expressão dos arquétipos” (SANCHES, 2008, p. 30).
Para confrontar os temas, a cada encontro a naturóloga comparava o momento da interagente
com o conto, e a partir dos relatos acerca de suas emoções, sentimentos, pensamentos e
condição física, determinava-se qual cákra poderia estar bloqueado e necessitava ser
trabalhado. Conforme acentuado por Teixeira (2013), é muito comum nos textos da
!
143!
Naturologia que os cákras sejam abordados sob uma perspectiva ocidental fragmentadora,
que tabela estes centros energéticos com aspectos fisiológicos e psicológicos do individuo. A
tendência psicologizante mencionada pode ser observada quando Sanches (2008, p. 29, grifo
nosso) ressalta que “este trabalho apresenta uma visão dos arquétipos relacionados com os
chakras, indicando que, além das manifestações psicológicas, manifestações fisiológicas
estão presentes, destacando-se aqui, uma abordagem multidimensional do individuo [...]”.
Sanches (2008) também descreve o que são os cákras a partir do autor novaerista Richard
Gerber, quem determina estes como órgãos de percepção psíquica, relacionados a
determinadas regiões do corpo. Assim, sob essa visão os cákras portariam características
biopsicoemocionais, atuando no comportamento do individuo e na fisiologia dos órgãos
internos (SANCHES, 2008, p. 30).
Para trabalhar um caso sobre autoconhecimento com a cromoterapia e a arteterapia, Bell
(2008) relata ter feito uso da avaliação do fluxo de energia dos cákras por meio da medição
radiestésica pendular. Já Oliver (2008) investiga a influência da aplicação de cores sobre
pontos de acupuntura, com o intuito de observar alterações nos cákras da interagente, e, assim
como Bell (2008), Oliver (2008) aferiu os cákras de seu interagente com o auxílio de um
pêndulo de cristal. De acordo com a autora, os cákras são centros de energia alinhados com a
trajetória da coluna vertebral. A energia vital destes centros, o prāna, move-se em espiral e
entra em cada cákra, e quando retorna ao corpo físico esta energia ativa o cérebro, o sistema
nervoso central e as glândulas endócrinas; por fim, através da circulação sanguínea os
hormônios, que são produtos do corpo sutil, tornam-se ações (OLIVER, 2008, p. 68). Oliver
(2008) também argumenta que o movimento do prāna no organismo se assemelha ao qì da
medicina chinesa, posto que ambos circulam dentro de canais e podem ser alterados, o que
justificaria tal aproximação. Stern (2015a) destaca que no discurso êmico da Naturologia é
muito comum que diferentes formas de energia sejam associadas como uma mesma coisa,
mas, conforme diferencia
!
144!
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145!
A publicação dos resultados da pesquisa foi um marco nas investigações do campo sobre
Āyurveda, pois embora muitos alunos ainda investiguem o tema em seus trabalhos de
conclusão de curso, após a conclusão de Hellmann e Souza (2011), somente um artigo sobre o
sistema indiano foi publicado no periódico de Naturologia. Conseguinte à observação final do
artigo dos autores supracitados em que foi ressaltada a necessidade de mais pesquisas
sistemáticas sobre as práticas utilizadas pela Naturologia, em especial aquelas de caráter
avaliativo, em 2014 Pimentel e Daré publicaram um artigo de metodologia quantitativa que
visava comparar as classificações da constituição psicofísica da Āyurveda à teoria da
biotipologia75 da escola alemã de iridologia. Evidenciando uma característica referente à
terceira fase da Naturologia, isto é, com uma abordagem mais crítica em relação aos métodos
e pressupostos do campo, as autoras concluíram que paralelos entre as biotipologias
āyurvedica e iridológica requer cautela por parte dos pesquisadores. Pimentel e Daré (2014)
observam também a necessidade de que a Naturologia reflita sobre comparações entre
diferentes racionalidades; como neste caso, em que a Iridologia fundamenta-se na fisiologia
sob a ótica da biomedicina, enquanto a Āyurveda se ampara em um sistema filosófico e
religioso com premissas muito destoantes da primeira. Deste modo, as autoras ressaltam as
dificuldades que o campo encontra em tentar comparar, associar ou enquadrar um estilo de
pensamento em outro, de maneira simplificada.
Assim, o que se pode perceber a partir da leitura das pesquisas sobre Āyurveda em
consonância com os conteúdos expostos no capitulo anterior é que no inicio das publicações
acadêmicas em Naturologia os estudos sobre o tema apresentavam um caráter em maior
confluência com o discurso novaerista, ou seja, voltado à leituras psicologizantes dos
atributos religiosos da prática em saúde do sistema indiano, e em uma abordagem acrítica no
que concerne à homogeneização entre diferentes saberes. Com o resultado do estudo de
Hellmann e Souza (2011), um decréscimo significativo foi notado nas publicações sobre o
tema, talvez em virtude da insegurança que os pesquisadores da área possam ter sentido em
abordar uma temática com grandes distâncias do método científico oficial. Consoante a esta
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
75
De acordo com Pimentel e Daré (2014, p. 13), a classificação de biotipologias na Iridologia alemã indica que
“através da coloração da íris e por sinais estruturais e de pigmentação na mesma pode-se caracterizar a
constituição física e psíquica e cada individuo. Os biótipos possuem características genotípicas e revelam as
tendências mentais e as susceptibilidades patológicas do indivíduo”.
!
146!
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147!
maneira, outras citações indicam – talvez sem o devido conhecimento de seus autores – uma
imensa proximidade com os pressupostos da psicologia humanista, ramo que antecedeu a
linha transpessoal, ambos de influência da tradição esotérica.
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148!
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149!
introdução, Silva e Marimon informam que “a Tradição Xamânica tem em suas convicções
um legado de sabedoria ancestral que, com cerca de 40 mil anos, baseia-se na observação da
simplicidade humana” (2011, p. 74). Não obstante, essa é uma característica extremamente
comum nos discursos neoxamânicos, em geral em virtude da apropriação da noção de
xamanismo propagada pelos estudos de Eliade (MAGNANI, 1999).
!
150!
A Física Moderna afirma que a realidade só pode ser concebida através da união de
opostos, e aquilo que se imaginava separado e irreconciliável exibe-se como
“aspectos complementares da mesma e única realidade”. Ao se constatar que “a
realidade essencial é uma unidade de opostos”, verifica-se que “na realidade
essencial não há limites”; assim, faz-se necessário entender que a existência de uma
linha limítrofe, seja mental, natural ou lógica, não apenas divide, mas também une
os opostos.
!
151!
afirma que a complementaridade aplicada à área da saúde não separa o momento da aplicação
terapêutica à origem do desequilíbrio, ou quando sustenta que mente e corpo exercem funções
indissociáveis – no caso do segundo exemplo, é uma afirmação que deixa subentendida
influências como a interpretação base do misticismo quântico, o idealismo, que aloca a mente
como essencial na constituição do indivíduo e do mundo; ou ainda a teoria de Phineas
Quimby, psicólogo da tradição esotérica de Mesmer que convencionou que os pensamentos
das pessoas poderiam barrar ou conectar a força vital a ser recebida em terapia. Certamente,
tais influências não são claras ao meio holístico, mas ainda assim fazem parte de uma mesma
construção.
No artigo Cientificidade na Relação Terapêutica: uma ampliação na perspectiva
quântica, Dellagiustina e Hellmann (2008) também aproximam a Naturologia do pensamento
quântico ao afirmar que
Logo, não se trata aqui de utilizar as teorias quânticas para explicar a relação que se
estabelece em terapia, mas sim, de aproveitar a ampliação das teorias e modelos
explicativos clássicos pelos quais a física passou, até chegar à concepção quântica
para explicar o mundo subatômico. Assim, o pensamento quântico serve para
mostrar que, da mesma forma, é necessário se ampliar a visão para melhor se
compreender o fenômeno humano, especialmente no que tange ao cuidado com o
outro (DELLAGIUSTINA; HELLMANN, 2008, p. 15).
!
152!
[...] a compreensão das leis da física que regem o antagonismo de energia são de
vital importância para que se inicie o processo de empoderamento do indivíduo,
pois, é a partir da interação e do entendimento dessa intensa rede de movimentos
que se faz possível respeitar o espectro inteiro da consciência, não apenas na esfera
do eu, mas também nas esferas cultural, comportamental e social, unificando todas
as manifestações do homem, enfatizadas por uma visão íntegra, verdadeira e
ampliada das suas experiências de vida.
!
153!
!
154!
Também neste caso a preocupação central dos sujeitos não aparenta ser a comprovação
cientifica da gemoterapia de fato, caracterizando uma vez mais a proximidade do campo com
a Naturphilosophie. Os autores parecem já partir do pressuposto de sua validade ao
estabelecer uma correlação entre a teoria de Popp e premissas levantadas por autores
utilizados no meio dos estudos novaeristas e esotéricos, como Richard Gerber, Fritjof Capra e
Pedro Crea. Todavia, diferentemente de Cidral-Filho e Souza (2011), as pesquisas sobre
gemoterapia não gozam de grande prestigio no meio acadêmico da Naturologia, justamente
pela pouca sustentação cientifica que possibilite embasar sua prática. Um indicativo dessa
situação seria que a pesquisa aqui demonstrada sobre o tema foi publicada na primeira edição
especial sobre Naturologia na revista Cadernos Acadêmicos da Unisul, anteriormente ao
lançamento da revista própria da Naturologia. Deste modo, poucas publicações estavam
disponíveis à época para integrar o número, diferentemente da época atual em que o
desenvolvimento de pesquisas cientificas em diferentes metodologias é amplamente
incentivado na universidade. Outro ponto a ser observado é que a pesquisa de Gemelli e
Marimon (2011) alude à princípios bastante característicos à Nova Era, como a leitura integral
do texto permite visualizar. Assim, muito provavelmente uma pesquisa com este viés não
seria publicada nos números subsequentes à essa primeira experiência da Naturologia no
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
76
Gemoterapia consiste no uso terapêutico dos cristais.
!
155!
A subseção final desta parte refere à terapêutica em que mais se notaram as correlações
entre a lógica ocidental e cientifica sobre os pressupostos outrora religiosos da medicina
chinesa. Nos livros publicados pela Unisul, não foram encontrados artigos que versassem
especificamente sobre medicina chinesa, com exceção de Oliver (2008), em seu estudo de
caso comparativo sobre a influencia da acupuntura na vibração dos cákras, e Assis (2008),
quem discorreu sobre os processos femininos da menopausa sob a ótica da medicina chinesa.
Para se referir à logicidade da medicina chinesa, as autoras aludem à medicina de
correspondência sistemática, na qual as ideias fundamentais da cosmovisão chinesa – como
dào, yīn-yāng, wŭ xíng (as cinco fases) e a circulação de qì no organismo – estão
sistematizadas para sua aplicação na saúde. Consoante ao exposto no capitulo anterior, a
síntese destes conceitos tem como fundamento o sistema de classificação em fases,
reconhecido por daoistas, confucionistas e pela população chinesa de modo geral.
Outros pesquisadores, como Hellmann (2008a) e Rohde (2008), relatam ter utilizado o
Ryodoraku, um aparelho inventado no Japão por Yoshio Nakatami que mede o fluxo de
corrente elétrica em pontos eletropermeáveis da pele; todavia, como o objeto de suas
pesquisas não tratavam especificamente da medicina chinesa, pouca ou nenhuma associação
foi feita acerca da terapêutica. Por outro lado, Cidral-Filho (2008) e Rodrigues (2008) foram
os primeiros naturólogos a descrevem os canais dos meridianos sob a ótica da biomedicina.
Segundo Cidral-Filho (2008), os meridianos podem ser equiparados às vias nervosas, sendo
coordenados pelo cérebro. Segundo explica
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156!
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157!
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158!
doenças que tem como origem causas naturais. O autor traça correlações entre a terapêutica e
o daoísmo e suas simbologias religiosas, e observa que na atualidade a medicina chinesa e
outros movimentos não se considerem religiosos “inclusive tentando por vez se afastar dessa
definição em busca de uma “legitimidade científica” –, eles se encaixam na definição de
religião de Geertz (2004) por dependerem de uma razão religiosa específica para se tornarem
coerentes” (STERN, 2011, p. 36).
Já no CNTC, seis pesquisas foram publicadas por pesquisadores externos à área sobre a
temática. Todas aludem à Medicina Tradicional Chinesa, o que nos leva a considerar que seus
pressupostos de base estão amparados na escola moderna de medicina chinesa. Todavia,
somente 4 artigos deixam claras as correlações com as explicações neuroquímicas. Nos outros
dois estudos, um trata de uma pesquisa bibliográfica sobre o conceito de síndrome da
obstrução na medicina tradicional chinesa (PASQUINI, 2013), desde onde o autor mantem-se
restrito a debater somente sobre a síndrome estudada. Já Guimarães e colaboradores (2013)
investigam as atitudes e crenças acerca da acupuntura em um grupo de estudantes de medicina
alopática. Os autores se referem à medicina tradicional chinesa como “um sistema médico
completo que tem sido usado há cerca de 2.000 anos no diagnóstico, tratamento e prevenção
de enfermidades”80 (GUIMARÃES et al., 2013, p. 42, tradução nossa)
No artigo Neurobiologia da analgesia induzida por acupuntura manual e
eletroacupuntura: uma revisão de literatura (2012), Luiz, Babinski e Sá revisam pesquisas
experimentais e clinicas sobre os mecanismos neurobiológicos por acupuntura manual e
eletroacupuntura – esta, uma invenção recente em que dispositivos que geram impulsos
elétricos são fixados por pequenos clipes nas agulhas. No artigo discutem as ações dos
opióides endógenos como o principal mecanismo responsável pela analgesia induzida pela
acupuntura. Segundo expõe,
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80
“Traditional Chinese Medicine (TCM) is a complete medical system that has been used to diagnose, treat, and
prevent illnesses for more than 2,000 years”, no original.
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159!
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160!
se refere especificamente aos acupontos, sem citar os canais dos meridianos. Isto porque
acupontos são associados às terminações nervosas, feixes musculares, tendões, ligamentos e
articulações, enquanto meridianos significam canais por onde ocorre a circulação de energia
qì. Deste modo, mesmo quando há a menção ao qì, este já se encontra desvinculado de seus
aspectos religiosos, e explicado sob teorias cientificas.
Assim, nota-se que parte considerável dos estudos sobre medicina chinesa e acupuntura
selecionadas para publicação no periódico de Naturologia empregam explicações que já não
contemplam as noções primordiais sobre a prática difundidas pelo daoísmo e o
confucionismo. Antes, refletem traduções que alocam a prática da acupuntura à técnica de
inserção de agulhas, onde prevalecem as características da biomedicina, como por exemplo a
separação entre sujeito e objeto, onde a subjetividade do quadro individual é substituída por
tratamentos genéricos, necessários para a devida sistematização dos grupos controle nas
pesquisas, e onde também se observa a fragmentação das especializações próprias ao saber
ocidental, refletida em acupuntura para dores musculares, acupuntura estética, acupuntura
para enfermidades cardíacas, e etc. Com exceção do artigo de Stern (2011), publicado na
primeira edição do Cadernos Acadêmicos sobre Naturologia, nenhum outro artigo traçou
aproximações entre a medicina chinesa e suas bases religiosas, enquanto mesmo naqueles que
não abordaram especificamente a moderna relação com os neurotransmissores, o discurso
próximo ao cientifico prevaleceu no tratamento sobre o tema.
!
161!
Foucault (2014) nos coloca que por volta do século XVI e do século XVII começou a
despontar uma vontade de saber que desenhava planos de objetos concretos, observáveis,
mensuráveis, e que impunha àquele que deseja conhecer, determinada posição, certo olhar e
certa função. Também essa vontade de saber prescreveu o nível técnico a ser adotado pelos
conhecimentos para que estes pudessem ser verificáveis e, assim, úteis. A vontade de saber
nada mais é que a vontade da verdade, a qual ampara-se sobre um suporte institucional, e
assim, tende a exercer sobre os outros discursos uma espécie de pressão e um poder de
coerção (FOUCAULT, 2014, p. 17). Correlata à verdade instituída, a medicina tornou-se um
saber, a partir do qual formam-se os discursos em saúde e se instituem sujeitos autorizados a
enunciar sobre o corpo. Mas saberes não dependem de verdades, e sim de práticas discursivas
definidas. Nesse sentido, como observa Mendes (2017), a partir do momento em que um
campo define para si um discurso, este passa por um limiar de positividade. A Naturologia
iniciou este processo antes do espaço universitário, quando se organizou em práticas e
dizeres, ainda que depois tenha retomado este processo para sua institucionalização.
Certamente, este processo vem sendo atualizado à medida que novos limiares necessitam ser
ultrapassados, o que depende, em certa maneira, dos enunciados que foram escolhidos para
serem dominantes ao campo. De acordo com Mendes (2017), ao romper o limiar de
epistemologização a Naturologia criou hierarquias de importância dentro de seu saber, de
modo a ser orientada por discursos que indicam direções especificas, e que possam prescrever
sujeitos desses discursos, isto é, formar sujeitos aptos a manter e propagar os enunciados
escolhidos pelo campo.
O movimento pendular da Naturologia a deixa em uma posição difícil, mas
paradoxalmente também fácil em relação à que posições tomar, a qual enunciado se filiar. O
saber religioso foi há muito destronado de seu lugar hegemônico. À religião, grosso modo,
cabe cuidar do espirito, da alma, das elucubrações próprias ao seu saber e destinada àqueles
que a desejarem. Ao menos é isso que se supõe em uma sociedade secularizada. Já a ciência
ocupou a verdade que um dia surgiu como vontade, como observou Foucault; a ela cabe
tratar, avaliar, prescrever e orientar os indivíduos em suas vidas diárias, nas diversas facetas
da sociedade. Desse modo, constituindo-se tanto de uma, quanto da outra verdade, deve ser
fácil à Naturologia decidir, por suposto, orientar-se e tomar como verdade os pressupostos
científicos. Cremos que a construção que vem sendo desenvolvida de seu enunciado, filiada à
linguagem e inferências oriundas das ciências humanas, biológicas e médicas, à custa do
reconhecimento de sua outra verdade, determina e transparece a qual saber a Naturologia
deseja ser associada.
!
162!
Todavia, optar por uma verdade quando se é oriunda de um campo mestiço não barra as
problemáticas que podem despontar desta escolha. Como observa Silva (2012), por ser um
campo próprio à área da saúde a Naturologia incorpora os procedimentos padrões de um
conhecimento reconhecido como válido, e atestado pelos padrões cientifico-acadêmico. Por
outro lado, dificilmente a Naturologia poderá ser reconhecida como uma ciência pelo modelo
clássico e pela concepção positivista (SILVA, 2008). Como submeter as terapias energéticas,
por exemplo, aos meios de experimentação e de observação próprios à metodologia cientifica
oficial? Em realidade, como conjugar a necessidade de comprovação de suas práticas,
exigidas para uma efetiva inserção e êxito da área no campo político e institucional, às
premissas de base de sua terapêutica? Como constituir-se como campo legitimo na área da
saúde, sem renunciar ou silenciar os pressupostos que deram origem ao seu saber?
Quando nos referimos à noção de “campo”, como pensado por Bourdieu, estamos falando
de um espaço social que se estrutura sobre os interesses relativos aos agentes desse mesmo
espaço. A construção de um campo sempre irá depender do capital simbólico acumulado
dentro deste e, em ultima instância, para onde se direciona o investimento de capital. Ou seja,
em que espaço e por meio de quais medidas será possível aos agentes de um campo
adquirirem o prestígio necessário para o alcance de um reconhecimento tal que o leve ao
encontro de seus interesses. A noção de campo aplicado à área das terapias holísticas já foi
discutida brevemente em outro momento por Hellmann (2009). Em relação ao campo das
medicinas paralelas, do qual a Naturologia faz parte, investe-se no acúmulo de capital dentro
do campo cientifico. Como área tipicamente novaerista – marcada pela confluência entre
religião e ciência – esse investimento pode parecer paradoxal à primeira vista. Todavia, como
viemos discutindo durante esse estudo, a Naturologia figura hoje como um exemplo de
institucionalização da Nova Era; a ela já não cabe mais ser alternativa ou associada a saberes
místicos que irão relega-la sempre à periferia do campo da medicina convencional; este sim,
altamente estruturado em nossa sociedade. O enunciado da área construídos em torno do
rechaço ao misticismo vem tanto das lideranças, em discursos oficiais, como de interlocutores
defendendo determinadas terapêuticas que, como observou Silva (2012), dificilmente serão
reconhecidas como cientificas. Este seria o caso quando Gemelli e Marimon (2011) discorrem
sobre a terapêutica com cristais81, afirmando que
“[...]com esta pesquisa resgata-se a terapia com gemas, afastando-a dos efeitos
místicos e simbólicos aos quais se mantinha atrelada e reconhecendo-a como um
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
81
Estudo abordado na seção 4.1.4 deste capítulo.
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163!
É, também, próprio da Nova Era buscar a legitimação de seu saber dentro da ciência, isso
porque umas das bandeiras levantadas pelo movimento é a noção de mudança de paradigma,
como proposta por Thomas Kuhn (2013). Conforme observamos em distintos momentos
dessa dissertação, esse é um pressuposto amplamente utilizado pela Naturologia para validar a
sua inserção do campo da saúde. Bourdieu (1983) discorre que a busca por legitimação por
via da submissão às leis instituídas é uma postura comum no campo cientifico, dado que só é
possível triunfar, segundo o sociólogo, no momento em que há uma conformação às leis
inerentes do campo. Faz-se necessário que além do reconhecimento da “verdade”, haja
igualmente o respeito pelos cânones metodológicos daquilo que é certificado como ciência no
momento considerado. Ou seja, ainda que a Naturologia reconheça a si como a representação
de um novo paradigma em saúde, ela busca alcançar um sucesso que só se faz possível
quando se está em sintonia com o jogo do campo cientifico, seja em relação aos objetivos a
alcançar, seja no que diz respeito à instrumentalização instituída pelo meio. A especificidade
de um campo cientifico é de certo modo correlata à busca da verdade exposta por Foucault
(2014), posto que é aquilo sobre o que os concorrentes e os pares de um campo concordam
acerca dos princípios de verificação do “real”, e dos métodos de validação de teses e
hipóteses, ou seja, sobre o acordo que estabelece o trabalho a ser exercido por seus sujeitos
(BOURDIEU, 2004).
Como todo campo social, o campo cientifico é palco de lutas em que o que está em jogo é
o monopólio da autoridade cientifica já definida, ou ainda o monopólio da competência
cientifica, compreendida como a habilitação de falar e agir legitimamente sob a outorga da
sociedade (BOURDIEU, 1983). A luta na área da saúde e ciência tem então a capacidade de
consagrar vieses epistemológicos, e pode ser travada pelos agentes de uma mesma profissão,
ou por agentes de profissões complementares (BOURDIEU, 2004). Em virtude desse quadro
de disputas, Bourdieu aponta que não há escolha cientifica – do campo da pesquisa, dos
métodos empregados, do lugar de publicação etc. – que não seja uma estratégia politica de
investimento direcionada à maximização do lucro cientifico, ou seja, o alcance de
reconhecimento por seus pares. As revistas cientificas atuam nessa dinâmica como instância
encarregada da consagração dos agentes, e, mais importante, dos princípios da ciência oficial.
Essa premissa dá clareza ao apontamento citado neste capítulo sobre o investimento da
Naturologia no campo das pesquisas. Como cita Teixeira (2014) e Stern (2015a; 2017), e
como pontuamos neste estudo, a Naturologia enfrenta um problema para a legitimação das
!
164!
práticas energéticas com as quais trabalham, pelo fato de que a energia não pode ser medida
ou mensurada nos termos científicos hegemônicos. Isso resulta em um deslocamento dos
objetos de pesquisa.
Como vimos na seção anterior, o avanço da Naturologia nos veículos de publicação tem
acompanhado uma mudança no viés com o qual o campo apresenta suas premissas em saúde.
Os primeiros livros, lançados em 2008, portam um discurso altamente ligado à Nova Era.
Nestes, a categoria “energia” é utilizada indiscriminadamente e de forma essencializada, sem
que haja uma preocupação efetiva com o reconhecimento externo em relação à suas práticas.
Pode-se dizer que estes foram livros feitos por naturólogos da época, para naturólogos da
época. Foi somente três anos depois que professores mais engajados com a área acadêmica,
dentre os quais figura um professor que foi o primeiro naturólogo a se especializar em
pesquisas quantitativas, estabeleceram um contato com a universidade e conquistaram o
direito à um número especial no periódico sobre a Naturologia. Como a produção acadêmica
à época ainda era escassa, alguns (poucos) artigos publicados ainda mantinham as
características mais novaeristas. Todavia, nesta estreia do campo no âmbito dos periódicos já
se viu a publicação de um artigo que problematizava um dos pressupostos avaliativos mais
controversos do campo sob o olhar da ciência: a avaliação dos cákras por meio do pêndulo de
cristal. Não surpreendentemente, a pesquisa foi desenvolvida por um professor que estava em
vias de terminar o mestrado, portanto muito mais familiarizado com as regras do campo
cientifico. O que pudemos perceber é que a maior parte das pesquisas selecionadas para
publicação nos últimos números do periódico de Naturologia são, justamente, as pesquisas
que evitam tratar dos aspectos energéticos, dando maior ênfase às pesquisas em práticas
holísticas que podem ser enquadradas em ensaios clínicos ou revisões sistemáticas, ou que
podem ser debatidas sob a perspectiva das ciências humanas – campos já consagrados que
podem conferir legitimidade à Naturologia. E nos casos de pesquisas sobre práticas cuja
interface holística ou religiosa se faz mais evidente, esta interface não é explicitada, e seus
elementos são encobertos por um discurso secularizado. Bourdieu (1983) explica que por seu
caráter de instância de consagração, as revistas cientificas agem em função dos critérios
dominantes e que, na seleção das obras a serem publicadas, exercem uma censura sobre as
produções heréticas, seja rejeitando-as, seja desencorajando a intenção de publicar em razão
da perspectiva ali proposta.
O editor-chefe do periódico em Naturologia, também atual coordenador do curso sulista,
atesta nos editoriais da revista o propósito do campo em relação às publicações expostas e os
objetivos a serem alcançados.
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165!
Segundo assevera, a revista tem como compromisso primal desde sua criação um
compromisso com o fortalecimento cientifico da Naturologia e das Terapias Complementares
no Brasil e no mundo (RODRIGUES, 2014), por isso afirma que
!
166!
que, ainda que relacionadas à área da saúde, não fazem parte daquelas consideradas
hegemônicas. Esse corporativismo exercido por lideranças bem articuladas
politicamente vem orquestrando a ascendência sobre o poder de decisão de
parlamentares e desses departamentos, alterando, muitas vezes, o destino das
expectativas de novas profissões.
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167!
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168!
Bourdieu, por sua vez, colocou em xeque a própria noção de revolução científica como
proposta por Kuhn, quando sugere que as revoluções cientificas aparecem após o esgotamento
dos paradigmas. Para o sociólogo, a ideia de uma mudança de paradigma confere à ciência o
poder de se desenvolver a partir de uma logica imanente, ou seja, a crença no esgotamento
dos paradigmas exclui de visualização os interesses inerentes ao jogo cientifico. Segundo
expõe, é preciso supor que os investimentos do campo se organizam a partir de uma
antecipação das chances de lucro sobre o capital acumulado. Bourdieu distingue que enquanto
o método cientifico não esteja objetivado em mecanismos e disposições, as rupturas
científicas efetivam-se como revoluções contra a instituição e à ordem estabelecida. Todavia,
quando a revolução originária exclui o recurso a armas ou poderes, ainda que simbólicos, o
funcionamento do campo passa a reger não só a ordem da “ciência normal”, mas também suas
rupturas. Em outras palavras, quando o método de revolução se inscreve pelos mecanismos do
próprio campo, este torna-se palco de revoluções permanentes, porém cada vez mais
desprovidas de efeitos políticos (BOURDIEU, 1983). Pensando na relação estabelecida entre
a Naturologia e a legitimidade oferecida pela OMS, os equipamentos necessários à revolução
cientifica almejada só serão alcançados se adquiridos na e pela instituição cientifica, ou seja,
o próprio princípio de revolução torna-se normatizado, sem nenhum efeito real no que
concerne à uma alternância de poder.
!
169!
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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170!
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171!
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172!
de que o encontro acrítico com os saberes médicos podem custar a própria identidade da
Naturologia, levando-a não para uma nova ciência, mas uma diluição de seus pressupostos e
reivindicações. Neste sentido, consideramos que as problematizações referentes à construção
epistemológica da Naturologia não devem se ater às preocupações com os conflitos políticos
de regulamentação. Outros campos passaram pelos mesmos processos de resistência e ainda
assim conseguiram afirmar sua importância para o corpo social. Igualmente, o empenho em
traduzir para a linguagem cientifica conhecimentos que, não obstante os agentes do campo
tentem dissociar de saberes esotéricos e religiosos, possuem abordagens e premissas próprias,
podem influir no esforço epistemológico até então elaborado para o fortalecimento de uma
área cheia de consistentes reivindicações. Será que mudanças firmadas em métodos e
discursos já hegemônicos, ou já apropriados no meio da saúde, podem gerar mudanças na
ordem do saber? Cabe a Naturologia examinar os caminhos tomados, como tem feito desde a
primeira fase até o momento atual, e avaliar o que o campo tem a perder e a ganhar com os
saberes e sujeitos com os quais deseja ser reconhecida.
Como foi dito na introdução, com esse estudo visamos aprofundar um pouco mais as
pesquisas sobre a interface religiosa e simbólica da Naturologia. Acreditamos que uma das
riquezas da Naturologia é a sua pluralidade, a amplitude de domínios pela qual pode ser
contemplada. Aqui, a estudamos da perspectiva da Ciência da Religião; certamente, uma
pesquisa semelhante mas exercida em outro campo de conhecimento poderia apresentar
conclusões diferentes. E, de fato, cremos que isso deve ser feito. Problematizações e
discussões no campo acadêmico, por mais controversas que possam ser, tem como efeito
aquilo que toda área deseja para si, aqui incluída a Naturologia: que passo por passo, suas
bases epistemológicas se fortaleçam, e que assim a área possa servir ao propósito a que veio.
!
173!
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