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57 - 74, 2011
RESUMO
O presente texto busca abordar problemáticas da questão agrária brasileira e moçambicana. Partindo
de uma análise da experiência colonial vivida pelos dois países sob o domínio da metrópole portuguesa
procura-se traçar um quadro sobre as aproximações e as diferenciações existentes tanto no que diz respeito
do desenrolar ao processo colonial pelo qual cada um deles passou quanto às heranças socioeconômicas
deixadas em seus respectivos territórios nacionais. Busca-se, sobretudo, apontar que as estruturas do
espaço agrário desses países, construídas durante o período de colonização portuguesa, ainda persistem
no presente e são responsáveis, em grande medida, pelas condições de subdesenvolvimento encontradas,
mesmo que entre eles ocorram algumas diferenciações.
Palavras-chave: colonização portuguesa, Brasil-Moçambique, questão agrária, modernização,
subdesenvolvimento.
ABSTRACT
The aim of this paper is to address some agrarian problems in Brazil and Mozambique. Based on an
analysis of the colonial experience lived by both countries under the dominion of Portugal, it seeks to
identify not only similarities and the differences regarding the colonial process they went through, but
socio-economic legacies left in both territories as well. It is claimed that the agrarian space structures
built during Portuguese colonization are still recognized in both countries. They are largely responsible for
the underdevelopment conditions even though it’s possible to recognize some differences between them.
Key words: Portuguese colonization, Brazil-Mozambique, agrarian question, modernization,
underdevelopment.
diferenciação importante entre esses países, qual configuram como etapas que estão subordinadas
seja, o tempo de duração da colonização durante à acumulação do capital.
o qual cada um deles ficou sob o controle da A adequação de seus territórios à lógica
metrópole portuguesa, resultando deste contexto da produção de mercadoria resultou em espaços
formas distintas de organização socioeconômica nacionais sob o controle do capitalismo mundial, o
e espacial. Deve-se se considerar, também, que impôs um movimento de reposição constante
como fator de diferenciação, as particularidades de modernização para a superação (quase nunca
históricas de cada um deles que independe conseguida) de não-simultaneidade externa e
do processo colonial, sendo mais diretamente interna (KURZ, 2002). Isto é, ao mesmo tempo em
associado à própria dinâmica sociocultural de que a expansão do capitalismo gerava acumulação
formação de cada nação. de riquezas e a formação do trabalho livre no
A colonização, entretanto, aproximou centro (na Europa), na periferia do sistema (nos
sobremaneira o destino dos povos, haja vista que países colonizados) produzia a miséria e o trabalho
a implantação desse sistema possuía como objetivo escravo. Apesar de constituírem-se movimentos
comum desenvolver uma eficiente estrutura opostos, são partes de uma mesma freqüência dos
de exploração que garantisse uma acumulação processos de organização econômica.
primitiva nos países centrais a partir da produção O fato de a tomada de decisões pertencer
e circulação de mercadorias seja de matéria-prima ao centro em cada uma dessas situações a
seja da comercialização de força de trabalho determinou o tipo de mercadoria que se deveria
escrava. Processo no qual a economia portuguesa produzir, obrigando os territórios em formação
se assentou em todo o período colonial e que lhe a freqüentes adaptações de suas estruturas
rendeu um importante afluxo de capital. aos desígnios do capital. Das ingerências do
O Brasil e os demais países que viveram um grande mercado consumidor resultaram as
processo de colonização organizam suas economias dinâmicas dos lugares, ora se colocando em
para produção de mercadorias destinada ao evidência por produzir as mercadorias demandadas
centro do sistema. Nesse sentido, mesmo sendo pelo mercado, ora “submergindo” quando as
incorporados em plena vigência do sistema mercadorias que produziam tornavam-se menos
capitalista, esses países já emergem modernos, rentáveis ao circuito do capital. Provêm dessa
na medida em que, desde os seus primeiros lógica as diferentes tentativas de aceleração de
passos, a mediação que se estabelece é pela forma modernização pelas quais os países colonizados
mercadoria. passaram.
Assim, os países que se constituíram desse Nesse sentido, pretende-se neste artigo
processo herdaram nas suas estruturas as marcas analisar dois países de colonização portuguesa,
de uma organização socioespacial definidas para quais sejam: Moçambique e Brasil. Pretende-se
a produção de mercadorias para a exportação, especialmente verificar alguns aspectos da questão
resultando disso fragilidades econômicas e grandes agrária destes países e o que se pode indicar de
desigualdades sociais as quais jamais conseguiram semelhanças e de diferenciações entre eles no que
superar. Há em comum o fato de que tanto as diz respeito as suas trajetórias históricas e as suas
formas de organização do período colonial quanto dinâmicas agrárias do presente.
as que apareceram depois quando já se definiam
como Estados nacionais independentes foram Breves Considerações Sobre o Processo
ajustadas pelos desígnios de outros, naquilo que Colonial Moçambicano e Brasileiro
PRADO Jr. (2008 [1965]) define para o Brasil, mas
que vale também para os outros países colonizados, O processo colonial pelo qual passaram
como “o sentido da colonização”. Ou seja, o de Brasil e Moçambique deixou marcas na organização
se voltarem, no passado e no presente, para a socioespacial, econômica e cultural desses países.
produção de mercadorias destinadas ao mercado A confluência de mercadores e de pessoas
externo. Esses dois momentos, entretanto, se com distintos interesses para estes territórios
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reservada à sua própria produção, e o cultivado por No Brasil, a expansão do povoamento para
rendeiros. Os rendeiros pagaram renda tanto em o interior, após o pouco sucesso do regime de
gêneros como em trabalho na terra do latifundiário. capitanias hereditárias, se deu com a implantação
Ao lado desta fonte de mão-de-obra, o latifundiário de posses menores a estas, mas também de
podia também contar com o sistema do chibalo grandes dimensões. Esse regime de sesmaria
ou trabalho forçado. Este sistema semifeudal era somente se efetivou porque a coroa portuguesa
muito parasitário na sua essência, na medida em obrigava a quem adquirisse a posse de terra
que – enquanto explorava o campesinato – na na colônia permanecesse e fizesse uso dela.
maioria dos casos não contribuía de maneira A impossibilidade, entretanto, de ocupá-la,
notável ao desenvolvimento das forças produtivas”. fez com que o sesmeiro concedesse em seus
domínios parcelas de terrenos aos camponeses
Di feren t emen t e d e Mo ç amb i q ue, a em regime de arrendamento, frequentemente
presença da metrópole portuguesa no Brasil foi adotando relações não capitalistas de produção
direta, no sentido de que é ela própria que cuidará (MARTINS, 2004), ou seja, pagamento em gêneros
de administrar os recursos e o povoamento, alimentícios ou trabalho pelo uso da terra. Isso em
especialmente no que diz respeito a garantir que um momento em que o Brasil já disponibilizava de
efetivamente ocorresse a posse da terra da colônia. um razoável contingente de população não escrava
Embora a elite portuguesa esboçasse resistência constituída predominantemente de pessoas
em se deslocar para o Brasil, a coroa logrou a nascidas neste território e com grande recorrência
transferência de alguns indivíduos, a maioria de de miscigenação.
pequena expressão social e econômica no reino, O sistema de arredamento das grandes
para tomar posse de grandes extensões de terras propriedades sesmariais que ajudou no povoamento
lineares que variavam de 30 a 100 léguas na costa do território brasileiro será complementado
brasileira naquilo em que se constituiria o regime por ações de ocupação de terras livres e/ou de
de capitanias hereditárias (PRADO Jr., 1976). A sesmeiros por levas de camponeses que não
implantação de tal regime possibilitou não somente possuíam outra alternativa de acesso à terra,
a efetivação do povoamento inicial do território, senão a de tomar posse dela porque já estava
mas permitiu desenvolver a primeira atividade concentrada em poder de alguns. Esta situação
verdadeiramente importante para Portugal, qual levou com grande frequência a conflitos agrários
seja, a cana-de-açúcar. Nas palavras de NOVAIS violentos que se espalharam pelo território que se
(1979, p.93), “Destarte, a colonização da América colonizava. Esse processo garantiu não somente
Portuguesa organizava-se desde o início em função o povoamento da hinterlândia brasileira, mas
da produção açucareira, para o mercado europeu, nasce daí pequenos posseiros de terras que
e assim desenvolveu-se ao longo do século XVI”. passaram a produzir para a sua subsistência, mas
Esta atividade econômica necessitava de grandes também para um nascente mercado local, que
extensões de terra para se tornar viável, além de surge do excedente desses camponeses. Parcela
muitos trabalhadores braçais. Em relação a estes de produtores agrícolas com grande importância
últimos, tratava-se de uma tarefa custosa para atualmente no Brasil agrário1.
a sua efetivação, haja vista a situação precária Os processos de colonização de Moçambique
de Portugal no que diz respeito a disponibilidade e do Brasil apresentam, desta forma, algumas
de força de trabalho. O fato é que em Portugal semelhanças, mas também diferenciações
não havia braços suficientes para mandar para importantes.
a colônia e a mão de obra indígena existente no
Brasil, transformada inicialmente em escrava, não A Questão Agrária Moçambicana e Brasileira:
conseguia oferecer resultados satisfatórios. Foi Pontos Divergentes e Convergentes
preciso, então, recorrer ao trabalho escravo vindo
da África para atender a falta de mão-de-obra na Se no caso de Moçambique a acumulação
colônia. primitiva realizado por Portugal se deu especialmente
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recursos advindos do consórcio viabilizado por agrava, por conseguinte, o quadro de desnutrição
bancos internacionais e agências multilaterais, no país (que afeta 41% das crianças com menos
especialmente de capital misto australiano, de cinco anos de idade) e de aumento de doenças
japonês, sul-africano e moçambicano. Esse projeto infecciosas. A desnutrição, aponta o documento,
teve início em 1998 e estima-se que, quando estiver foi responsável, em 2004, por uma taxa de 22,5%
em plena capacidade de produção, incluindo as das mortes computadas de crianças. (PNUD, 2006).
atividades indiretas, representará cerca de 10% do
PIB de Moçambique. O que se questiona, todavia, A Questão Agrária em Moçambique
acerca desse empreendimento, é se a isenção de
impostos concedida pelo Estado à empresa e a As condições de vida são ainda mais
moderna planta de fábrica instalada são capazes precárias no campo, onde predomina uma ampla
de gerar postos de trabalho que atendam às parcela de população que vive em condições de
expectativas da população nacional (PNUD, 2006). deficiência econômica em pequenas frações de
Além disso, duvida-se se esse tipo de investimento terra. A posse de terra da maioria das famílias
contribui para a formação de uma economia com moçambicanas que mora no campo é de, em
maior diversificação e que possa sustentar um média, menos de três hectares, frequentemente
projeto nacional de industrialização, especialmente áreas comunitárias2, cuja produção destina-se
que atenda à demanda das iniciativas locais. essencialmente às necessidades de sobrevivência
Os indicadores sociais, do mesmo modo, do grupo familiar, com pouco ou nenhum excedente
continuam sendo extremamente precários. Com que possa mandar ao mercado. Estima-se que a
uma população de 20.530.714 habitantes (censo área cultivada per capita situa-se entre 0.6 ha a
de 2007), sendo que mais de 10 milhões possuem 1.1 por agregado familiar, mas mesmo diminuta
idade inferior de 18 anos, o país que acaba de a família não a cultiva na sua totalidade, devido
sair de uma guerra civil (finalizada em 1992) e à falta de condições materiais e humanas para
que deixou conseqüências ainda não superadas, aproveitar de maneira satisfatória esse recurso.
apresenta poucos avanços. Moçambique continua No que diz respeito à educação da população
um dos países mais pobres do mundo, ocupando no campo, a taxa de analfabetismo no país é
a posição de 172 de 182 países no Índice de de 72%, enquanto que no meio urbano é de
Desenvolvimento Humano de 2007/8. (PNUD, 33% (2003), sendo que 67% para homens e
2009). 38% para mulheres. A maioria dos moçambicanos
A taxa de mortalidade infantil, por exemplo, moradores no campo não possui energia elétrica
é elevada. Em 2003, o Segundo Inquérito (somente uma pessoa a cada quarenta possui
Demográfico e de Saúde de Moçambique apontava esse benefício) e sobrevive com rendimentos per
uma taxa de mortalidade de 124 por 1000 capita de aproximadamente US$ 100 por ano,
crianças nascidas vivas no país (INE, 2003). Esse praticamente metade da renda nacional (PNUD,
dado indica uma situação de vulnerabilidade da 2006).
população devido às precárias condições de vida, A situação de precariedade econômica
especialmente no que diz respeito ao acesso ainda afeta especialmente a mulher, a qual possui um
muito restrito aos serviços sanitários. A cobertura papel de destaque na sociedade moçambicana,
do abastecimento de água em Moçambique visto que é ela a principal provedora da alimentação
atinge apenas cerca de 40% da população familiar, na medida em que se responsabiliza
urbana e 42% da rural. O restante da população mais diretamente pela produção rural (WYNTER,
consome água imprópria. Segundo relato do 1991). As mulheres constituem o maior número
documento “Moçambique: Relatório Nacional de de produtoras agrícolas em Moçambique e
Desenvolvimento Humano, 2005”, a falta das chefiam uma importante parcela dos agregados
condições básicas de higiene, especialmente o familiares. Após o fim do colonialismo, em 1975,
consumo de água imprópria é um dos fatores e a implantação do regime socialista que levou
responsáveis pelo elevado índice de diarreias que a nacionalização dos serviços, da propriedade
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e de outros setores econômicos fez com que o agrícola utiliza de poucos recursos financeiros,
Estado formasse fazendas destinadas à produção deficiente acesso a técnicas mais sofisticadas de
comunitária, conhecidas como “machambas do produção e parcos insumos químicos. No que diz
povo”. Nestas áreas a participação feminina teve respeito às relações de trabalho, à contratação
um papel relevante, especialmente na condução de trabalho assalariado na agricultura tem pouco
da produção e na gestão dessas áreas, muitas significado no país, as práticas mais difundidas
delas chefiadas por mulheres. Nas cercanias de no campo moçambicano são as que aproveitam
Maputo, por exemplo, ocorreram importantes o uso de força de trabalho familiar ou as que
experiências nesse sentido a partir da introdução adotam os sistemas de solidariedade camponesa
do cooperativismo nas Machambas do Povo cujas a partir da ajuda da comunidade. As machambas
mulheres estão à frente de muitas unidades de que representam 99.7% da produção familiar
produção através da União Geral de Cooperativas e exploram 97% da área total agricultável
(UGC) (CRUZ E SILVA, 2002). são um importante suporte para a agricultura
A agricultura ainda se sustenta à base de moçambicana. Embora ocorra produção comercial
culturas alimentares de consumo da população nas machambas, estas representam uma parcela
local, atingindo cerca de 90% da produção muito reduzida da produção com esse fim, apenas
total agrícola, produzindo com características 0.01% e explora 2% da área cultivada (Estratégia
essencialmente camponesas, na medida em que, e Prioridades para o Desenvolvimento, s/d, p.16).
além da pequena extensão de área, a produção
Tabela 01 - Produção e Áreas Semeadas das Culturas Agrícolas Básicas em Moçambique, 2005.
Estrutura (%) Prod/
Produto Área Semeada / (Ha) Produção/ (Ton.) Área
preocupações ambientais haja vista a exploração da Revolução Verde em Moçambique visa atingir
sem controle desse recurso. Essa preocupação se tanto as culturas essencialmente alimentares
estende também para a exploração da madeira quanto as que se destinam a produção de energia,
para fins domésticos, haja vista a ocorrência de com destaque para o biodiesel e para o etanol.
grande concentração de população no campo que Para a obtenção deste último, busca-se ampliar
não possui outra alternativa de fonte de energia a exploração da cana-de-açúcar, da mandioca e
a não ser a derivada do carvão e da lenha. Cerca da mapira doce. No caso do biodiesel, busca-se
de 80% da população de Moçambique depende investir em culturas como o girassol e a jatrofa
dessa fonte de energia para sobreviver. A flora curcus, que é uma planta resistente à seca, muito
moçambicana possui ainda grande valor como cultivada no sul do continente africano.
atividade extrativa não madeireira da população Segundo as políticas governamentais de
camponesa, especialmente relacionada ao Moçambique, o investimento na produção agrícola
aproveitamento de frutos, plantas medicinais ou moderna visa intensificar o comércio interno e
para outros tipos de uso. (Ibidem, p. 25). externo, colocando como estratégia integrar a
A caça constitui outra atividade econômica agricultura de subsistência à economia de mercado
de relevância para a população que habita as e incentivar a participação e crescimento da
áreas rurais de Moçambique, embora se tenha agricultura empresarial. (Ibidem, p.32). As políticas
uma fauna bastante numerosa, a exploração estatais voltadas para o campo orientam também
em condições pouco sustentáveis pode gerar para a inserção da população camponesa na lógica
riscos de desaparecimento aumentando, assim, a da produção para o mercado. Isso significa um
precariedade das condições de vida da população abandono das práticas agrícolas tradicionais por
camponesa. essa população e torná-la agricultores comerciais.
Diante desse quadro, percebe-se que o Este direcionamento de políticas para o campo
setor agrário moçambicano demonstra fragilidades moçambicano atualmente, também foi aplicado
no seu desenvolvimento, a principal delas refere- para o campo brasileiro a partir, especialmente,
se à dificuldade de acesso aos serviços financeiros da década de 1970, o que resultou uma ampla
tanto no setor familiar quanto no setor comercial. desestruturação do modo de vida da população
As dificuldades nesse setor correspondem camponesa brasileira e um intenso êxodo rural.
especialmente as altas taxas de juros e a escassez Resta saber, qual o impacto da Revolução Verde na
de créditos em condições favoráveis destinados a população moçambicana que ainda possui um forte
uma agricultura que apresenta baixa rentabilidade. vínculo com o campo e com formas tradicionais
Soma-se a isso, a existência de escassa rede de agrárias de produção e do modo de vida, diante de
infra-estrutura para escoamento da produção uma agricultura moderna que dentre outras coisas,
tanto de interligação interna no território nacional é poupadora de mão-de-obra, desestruturadora
quanto de ligação ao principal porto exportador, dos saberes locais, além de ocupar as melhores
em Maputo, e às regiões de fronteiras com países terras com monoculturas que visam especialmente
vizinhos. (Ibidem, p.31). o abastecimento do mercado externo.
Há iniciativas das políticas governamentais
para o setor agrícola que tentam alterar esse quadro, A Questão Agrária no Brasil
buscando inserir a agricultura na lógica de produção
moderna, a partir de investimentos no agronegócio. A agricultura brasileira é marcada também por
Para alcançar a modernização agrícola adotam-se, uma herança profunda do período colonial. Embora
especialmente, os preceitos da Revolução Verde, ocorra atualmente a expansão da produção de
experiência de intervenção na produção agrícola commodities em condições modernas de produção
que visa aumentar a produtividade com culturas para vastas regiões do território, fato que o
de elevado rendimento e que foi implantada em qualifica como um dos principais produtores e
alguns países principalmente do terceiro mundo na exportadores de gêneros agrícolas do mundo, o
década de 1970, inclusive no Brasil. A implantação país não se desvencilhou de seu passado colonial. A
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estrutura econômica confirma que o Brasil continua das técnicas e das relações de trabalho. É o caráter
sustentando o seu crescimento apoiado na produção mercantil que nos acompanha desde o período
de mercadorias, particularmente agrícolas, para colonial e que se torna a linha mestra da formação
atender o mercado externo. Apesar da crescente territorial brasileira. No passado, o território se
importância dos componentes industriais na pauta voltou para a produção de cana-de-açúcar, ouro,
de exportação brasileira de hoje, o país permanece, algodão e café, dependendo do momento histórico,
em grande medida, atrelado aos desígnios de um definindo em cada um deles o que se denominou
país exportador de gêneros agrícolas. Tal fato de ciclos econômicos, quando predominava
indica que não houve descolamento total desses um produto de interesse do mercado externo.
liames construídos a partir de sua inserção no Atualmente, continuamos produzindo cana-de-
sistema produtor de mercadorias, que nasce com açúcar, algodão, café e agora também soja,
o advento da colonização portuguesa. As estruturas produto que obteve um crescimento expressivo nas
agrário-exportadoras, as quais fundamentaram últimas décadas e representa a principal cultura
as formas organizadoras do território brasileiro, agrícola do país (conforme se observa no gráfico
persistem mesmo ocorrendo alterações das suas 01) e de volume de exportação do campo brasileiro.
configurações no que diz respeito à apropriação
Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Agropecuária, Produção Agrícola Municipal, 2007.
No que diz respeito à estrutura fundiária grupos econômicos. Esta herança do processo
brasileira também não se verificou significativas colonial continua, portanto, bastante presente no
alterações desde o período colonial. Ela continua campo brasileiro e tem se agravado nos últimos
extremamente concentrada em poder de alguns anos, quando acontece a expansão do agronegócio
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para a hintelândia brasileira. não possuíam esse bem. Com isso, o sesmeiro ao
O mais recente diagnóstico censitário do realizar o parcelamento da terra e a cessão para
campo brasileiro, censo agropecuário de 2006, os despossuídos fundiários, acumulava riqueza
revelou que a concentração da propriedade da sem a necessidade de disponibilizar de seu capital
terra continua sendo um dos entraves para o para colocá-la para produzir sem despender salário
desenvolvimento rural no país. O referido estudo aos trabalhadores. O fato de possuir a posse da
apontou, por exemplo, que os estabelecimentos terra lhe garantia auferir uma renda fundiária.
com mais de 1000 hectares (1% do número total dos Esse sistema de arrendamento sem recorrer ao
estabelecimentos) ocupavam 43% (146,6 milhões assalariamento vigorou mesmo após o fim das
de hectares) da área total dos estabelecimentos sesmarias, com a implantação da Lei de Terras
agropecuários do país. Em contrapartida, 47% de 1850, na qual regulamentava a posse de terra
dos estabelecimentos com menos de 10 hectares no Brasil. Esta Lei, entretanto, não modificou
ocupavam, apenas, 2,7% (7,8 milhões de hectares) substancialmente a estrutura fundiária brasileira,
da área total. Este fato indica que o latifúndio ao contrário, passa a garantir ainda mais privilégios
sempre foi uma constante na história brasileira e aqueles que já possuíam a terra, na medida em que
continua se reproduzindo com a mesma lógica do o direito de ser proprietário passa a ser permitido
passado. Desse processo de concentração desigual a quem podia pagar monetariamente por ela,
da terra no Brasil resultou a exclusão de ampla situação que limitava o acesso à terra a levas de
parcela de população camponesa e o fomento a trabalhadores ou de escravos que foram sendo
inúmeros conflitos agrários presenciados em vários libertos (OLIVEIRA, 1991).
momentos da formação territorial do país, além da No presente, além do tributo do
recorrência de movimentos sociais camponeses em arrendamento fundiário que continua existindo
incessante luta pela posse da terra e do intenso em vastas regiões do território brasileiro, o
êxodo rural que ajudou a intensificar o processo proprietário adquire a valorização de sua terra
de urbanização do país. quando o Estado dota de infraestrutura áreas
Outra característica fundamental do campo que há pouco tempo não estavam tão integradas
brasileiro decorrente da concentração fundiária é à modernização do território. Mesmo quando
o uso improdutivo de uma parcela significativa essa modernização não chega efetivamente aos
da propriedade da terra, muitas delas sendo rincões do país, a perspectiva de implantação de
aproveitadas apenas como reserva de valor, capital nesses lugares já é motivo de tornar a
especialmente quando se trata dos latifúndios. Neste terra valorizada. Esta situação foi constada com
sentido, é possível afirmar que no campo brasileiro a expansão da modernização capitalista para as
a terra serviu historicamente como um atributo que regiões da hinterlândia brasileira a partir dos anos
produz renda fundiária para aqueles que a detêm. de 1970, especialmente para a Amazônia quando
No passado, ainda no período colonial, ter a posse houve uma usurpação por grupos de latifundiários
da terra significava obter renda capitalista a partir de maneira irregular de amplas parcelas de
do seu arrendamento, comumente cedida para terras, frequentemente pertencentes ao Estado.
pequenos camponeses sem terra que a colocava Muitas delas já eram habitadas por população
para produzir com o trabalho seu e de sua família, camponesa, comunidades indígenas e quilombolas,
mediante pagamento de um tributo que podia ser antes mesmo da chegada dos primeiros grupos
em produto ou, às vezes, em trabalho. A terra econômicos que se instalaram para produzir
pertencia a uma diminuta parcela da população agricultura moderna. O resultado dessa ocupação
do território colonial, na medida em que se tratava por latifundiários foi o acirramento dos conflitos
de um direito concedido pela metrópole àqueles fundiários nessa região com expressivos números
portugueses que resolvessem se instalar no Brasil, de mortes de trabalhadores do campo (OLIVEIRA,
o sesmeiro. Este donatário fundiário, entretanto, 1988).
somente lograva manter a posse de suas grandes A ocupação da hinterlândia brasileira nas
extensões de terra com a participação dos que últimas décadas, no que passou a ser chamada
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para a fronteira agrícola vai se aproveitar não ou de óleos vegetais (algodão, amendoim, etc)
somente das vantagens de créditos oferecidas bastante utilizados no passado (OLIVEIRA, 1991).
pelo governo, mas de toda a rede de infraestrutura Apesar do uso de técnicas modernas
(sistemas viários, de armazenamento, eletrificação, do plantio à industrialização que se verificou na
comunicação, etc.) construída pelo poder público agricultura brasileira, as situações que envolvem
nestas áreas. Além disso, apropriou-se de vastas a produção das grandes lavouras modernas se
extensões desse território, em alguns casos para o assemelham às de outros períodos da história
uso efetivo dele. No entanto, na maioria das vezes, do país em que as monoculturas se tornaram
eram terras adquiridas para transformá-las em hegemônicas. É o caso, dentre outras, da cana-de-
reserva de valor, na medida em que se apropriavam açúcar, do café e do algodão. Isto é, tais produções
delas, em muitas situações, de maneira irregular, expandiram-se condicionadas pelas demandas
e em pouco tempo valorizavam-se pelas melhorias do mercado externo, pela imposição de formas
incrementadas pelo Estado. Isto gerava, em homogêneas de produção e pela associação com
contrapartida, um enorme processo especulativo. a grande propriedade fundiária rural, gerenciada
Embora tenha ocorrido um aumento por poucos agentes econômicos.
do mercado interno e da produção industrial Uma das consequências do processo
brasileira, especialmente a partir do crescimento de ocupação das terras da fronteira agrícola
da urbanização nacional, isso não subtraiu, brasileira foi o fato de que ao passo que essa
entretanto, nosso sentido agroexportador. A terra passa a se transformar em mercadoria,
agricultura continuou recebendo um grande volume passível de especulação, distancia da dimensão
de investimentos públicos, concentrando-se, a que as comunidades camponesas e indígenas
partir de então, de maneira mais incisiva, naquelas sempre tiveram dela, qual seja, como lugar da
culturas de maior inserção no mercado externo, sobrevivência da família porque dali tiravam o
ou naquelas voltadas para o mercado interno de seu sustento. A terra para a família camponesa
combustíveis, como é o caso da cana-de-açúcar é o lugar de produção e reprodução da vida,
para a produção de álcool. Esse privilégio dado diferentemente quando essa mesma terra é
à agricultura exportadora não foi concedido com ocupada para obtenção de lucro, conforme nos
o mesmo interesse à produção daquelas culturas esclarece MARTINS (1982, p. 60):
destinadas ao mercado consumidor interno.
Observa-se, neste sentido, que nas últimas décadas “Quando capital se apropria da terra, esta
houve negligência no que se refere à produção se transforma em terra de negócio, em terra
de certos gêneros agrícolas que constituem a de exploração do trabalho alheio; quando o
base da alimentação da população brasileira, trabalhador se apossa da terra, ela se transforma
como o feijão e a mandioca. Em contrapartida, em terra de trabalho. São regimes distintos de
verificou-se um crescimento substancial das propriedade, em aberto conflito um com o outro.
áreas para produção de soja, cana-de-açúcar, Quando o capitalista se apropria da terra, ele o
algodão. A pressão para a expansão de culturas faz com o intuito do lucro, direto ou indireto. Ou
de exportação produziu, inclusive, mudança no a terra para explorar o trabalho de quem não tem
hábito alimentar da população brasileira que se terra; ou a terra serve para ser vendida por alto
viu forçada a consumir determinados tipos de preço a quem dela precisa para trabalhar e não a
produtos industrializados derivados da cultura tem. Por isso, nem sempre a apropriação da terra
de exportação, mas que não possuíam a mesma pelo capital se deve à vontade do capitalista de se
inserção no mercado internacional. Cita-se aqui o dedicar à agricultura”.
caso da soja cujo derivado que mais interessa ao
mercado consumidor externo é o farelo. Sobra, A transformação da terra como instrumento
assim, o óleo que se tornou o produto básico de negócio e não mais como local de manutenção
na preparação da alimentação brasileira, em da vida das famílias camponesas, ocasionou,
detrimento de outros tipos de gorduras animal nas áreas de fronteira agrícola, uma forte
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desarticulação de pequenas comunidades que capital, conforme admite PRADO Jr. (2008). É
viviam da agricultura. O que se observou nestas importante esse passado porque dele resultaram
últimas décadas no Brasil foi um intenso êxodo os países e a maneira pela qual se estruturam hoje,
rural, sendo que muitas das famílias que perderam com sua ainda intensa dependência em relação
suas terras para o grande capital migraram para aos mercados do centro do sistema capitalista
as cidades, frequentemente para centros urbanos e seu caráter agroexportador que, todavia,
regionais importantes ou para as regiões urbanas domina o cenário econômico, ou tenta-se criar as
metropolitanas, agravando o problema da miséria condições para que este sentido prevaleça, como
de uma parcela da população brasileira. Por outro no caso de Moçambique que busca estabelecer
lado, as famílias que perderam suas terras, mas uma economia mais inserida no mercado externo,
permaneceram no campo, vivem precariamente mas com produtos primários como tentativa
de trabalhos temporários em grandes explorações de superar o descompasso econômico frente a
agrícolas, às vezes em condições similares ao outros países subdesenvolvidos. Desse modo,
período escravista, ou se inserem na luta pela os países ainda não se desvencilharam do seu
conquista de um pedaço de terra, organizando- passado marcado pela colonização, embora essa
se em movimentos sociais que se espalham colonização apresente nuances entre aqueles
pelo campo brasileiro e são responsáveis por que participaram do processo. É o caso de
reconquistar o direito a permanecer e produzir no Moçambique e Brasil, que participaram ativamente
campo brasileiro. da engrenagem para a acumulação primitiva no
Ve r i f i c a - s e , n e s t e s e n t i d o , q u e a centro do sistema, mas abastecendo, às vezes,
característica mais marcante da agricultura com mercadorias distintas esse circuito; o Brasil
brasileira é o seu caráter contraditório que se com gêneros agrícolas e minerais e Moçambique
arrasta desde as origens da constituição dessa predominantemente com força de trabalho
nação. Esse contexto não se altera com o processo escrava. Essa diferenciação pode ser um ponto
de modernização contemporâneo da agricultura. de partida para explicar a estrutura fundiária nos
A produção tecnicamente sofisticada, utilizando dois países, sendo que no caso brasileiro prevalece
desde agricultura de precisão e maquinários a grande propriedade monocultora enquanto em
extremamente modernos convive com formas que Moçambique predominam as pequenas unidades
ainda insistem em permanecer vivas na estrutura camponesas, embora neste último, não seja
agrária brasileira. Esses fatores indicam que o possível descartar totalmente a existência da
processo contraditório pelo qual a sociedade grande propriedade. Entretanto, ela não possui a
brasileira se formou ainda continua no presente. mesma importância como forma de exclusão social
como se verificou no Brasil.
Considerações Finais Se esse passado colonial nos aproxima,
com algumas diferenciações, o presente da mesma
A tentativa dos países lusofalantes de maneira apresenta semelhanças nos seus traços
criação de uma agenda em comum, associada ao fundamentais, fato que nos coloca numa mesma
comércio e a aproximação lingüística que apresenta ordem dentro do sistema capitalista moderno,
como política mais efetiva o acordo ortográfico como produtores e fornecedores essencialmente
ocorrido recentemente entre os países de língua de matérias-primas, embora possamos admitir que
portuguesa, coloca em debate o que realmente no caso brasileiro ocorra uma maior presença no
pode unificar esses povos. O passado é um ponto seu comércio externo de produtos manufaturados.
de partida importante dessa convergência, na O conjunto da obra, entretanto, está associado à
medida em que as nações constituintes desse produção de produtos primários para a qual se
grupo viveram todo o processo que caracterizou a destina uma parte importante do território e se cria
economia colonial cujo sentido era a de produção de uma rede de infraestrutura voltada especialmente
mercadorias para atender a metrópole portuguesa, para atender o escoamento de mercadorias para o
favorecendo nela a acumulação primitiva do mercado externo. Nesse caso, novamente o Brasil
72 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 29 - Especial, 2011 ALVES, V. E. L.
conseguiu modelar seu território mais rapidamente velocidade e em paralelo com a crise social e o
aos interesses do capital do que Moçambique, por acirramento dos conflitos de distinta natureza. A
conta, dentre outros fatores, do tempo de duração modernização pela qual o Brasil passou a partir
do processo colonial, mais duradouro para o caso especialmente dos anos 1970 teve como destaque
de Moçambique. a introdução do modelo de Revolução Verde
Do mesmo modo, os dois países não poupadora de mão de obra e destinada à produção
conseguiram superar as amarras das desigualdades de gêneros agrícolas para exportação em grandes
sociais evidentes na paisagem e na vida social extensões de terra. Moçambique tenta seguir por
da população tanto no urbano quanto no rural. A esse mesmo caminho com vistas a uma ampla
permanência desses traços tanto em um quanto no modernização do campo, apostando em produtos
outro país, com grandes semelhanças na maneira primários destinados à exportação ou à produção
como se evidencia a pobreza, indica que o fato de de biocombustíveis. Resta saber qual o impacto
um país se inserir na modernização capitalista mais dessas novas políticas para o território daquele
velozmente como ocorreu no Brasil, não significa país, na medida em que a maioria da população
um avanço nas condições de vida de sua população, ainda se encontra no campo e cuja produção de
mas ao contrário, no caso brasileiro a modernização gêneros agrícolas ocorre em pequenas dimensões
capitalista que deslocou expressivo contingente de de terra, com poucas técnicas agrícolas modernas
população para as cidades caminhou na mesma e com o uso intensivo de trabalho familiar.
Notas
1. O resultado do Censo Agropecuário brasileiro nacionais e de dois anos para estrangeiros um
de 2006 (IBGE) apontou que a pequena produção título provisório de uso, sendo necessário no
agrícola é a grande responsável pelo abastecimento final desse prazo solicitar prorrogação. Esse
do mercado de alimentos no Brasil. Além disso, é o sistema de organização de distribuição, uso e
setor mais produtivo e que gera mais emprego no posse da terra tem gerado vários problemas
campo. Os pequenos estabelecimentos agrícolas no país, especialmente no sentido de forçar os
(área inferior a 200 hectares) respondiam por cerca concessionários a cumprirem o compromisso de
de 84,36% das pessoas ocupadas na área rural. colocar a terra para produzir, além disso, o Estado
Estes empregam 12,6 vezes mais trabalhadores tem dificuldade de acompanhar o desempenho
por hectare que os médios (área entre 200 e dos agricultores, sendo que muitos deles deixam
inferior a 2000 hectare) e 45,6 vezes mais que os a terra improdutiva ou utilizam-na para outros
grandes estabelecimentos (área superior a 2.000 fins. A Falta de atualização dos cadastros dos
hectare). A agricultura familiar é responsável por concessionários e a sobreposição de concessões
garantir a segurança alimentar dos brasileiros, são fatores geradores de conflitos de terra no país.
contribuindo por aproximadamente 70% do Outro aspecto da Lei de Terras em Moçambique é o
feijão, 87% da mandioca, 56 do leite e 46% do fato de ela conceder à comunidade local um papel
milho, produtos que são a base da alimentação da importante na gestão da terra. Quando alguém
população brasileira (IBGE, Censo Agropecuário, solicita uma licença de uso é preciso um parecer
2006). da comunidade informando se a terra está ou não
ocupada. A preocupação é evitar sobreposição
2. Em Moçambique a propriedade da terra de uso e acirramentos dos conflitos agrários.
pertence ao Estado. Este concede licenças de uso Destaca-se ainda, a respeito desta lei, o fato de
e Aproveitamento da Terra (DUAT) a particulares, o Estado moçambicano reconhecer os direitos
comunidades territoriais ou a empresas, mediante consuetudinários (costumeiros) de ocupação das
o pagamento de taxa de uso. A lei estabelece terras pelas comunidades locais, especialmente
a necessidade do concessionário a elaborar um a possibilidade de respeito ao direito para que
plano de exploração no ato do pedido. O Estado cada comunidade possa desenvolver o seu próprio
cede, então, por um período de cinco anos para sistema consuetudinário. Esse direito é extensivo
A questão agrária Brasileira
e moçambicana: semelhanças e diferenciações. SP. pp.
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também à gestão de outros recursos naturais associação mais estreita com o tempo da
(NUVUNGA, 2006). natureza. O espaço da fronteira nasce e se
estrutura sob tensões, na medida em que se
3. Entende-se por fronteira agrícola, apoiando- colocam em lados opostos os novos empresários
nos no conceito desenvolvido por Martins (1997), personificadores do capital e as comunidades
aquele espaço do interior do Brasil que imprime camponesas, indígenas e negras. Forma-se,
uma outra aceleração na reprodução capitalista. então, um movimento cujas forças, comandadas
A sua constituição resulta da expansão de novas pelos processos de aceleração da modernização,
forças produtivas introduzidas por empresas e impõem-se às demais pelo uso de formas de
trabalhadores de posse de aparatos técnicos violência que levam à exclusão do território do
avançados, que se deparam com as populações outro e com ele ao desaparecimento dos modos
locais, frequentemente pequenos proprietários de organização da vida existentes anteriormente.
de terras, indígenas e antigos fazendeiros. Esse Institui-se, assim, na fronteira agrícola a tendência
território que se abre para o capital possibilita à permanência de apenas um tempo do fazer e do
o encontro de duas realidades distintas: a viver, o tempo do capital, marcado pela anulação
modernizadora, comandada pelos agentes do da diversidade e pela imposição de formas
agronegócio que detêm as inovações tecnológicas homogêneas de produzir ditadas pelo mercado.
e o uso do trabalho com base no assalariamento, Enfim, a fronteira é o lugar onde uma outra
e a população local que se organiza sob outras velocidade da modernização se instala produzindo,
estratégias de manutenção da vida, numa por conseguinte, distintas formas de violência entre
os grupos que se instalam e os que ali viviam.
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