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com

ISBN 978-85-60124-10-7

Obs. A numeração das páginas do presente arquivo não corresponde à da obra


impressa.
PREFÁCIO

Manoel de Campos Almeida nos brinda com uma segunda edição de seu livro
Origens da Matemática, publicado em 1.988. Fui honrado pelo seu convite para
escrever um Prefácio para esta nova edição. Conheço-o há muito tempo, mas somente
há cerca de 20 anos, ao ler seu livro, soube de seu interesse específico pela história dos
primeiros desenvolvimentos da Matemática. A História da Matemática costuma partir
da análise das fontes tradicionais, principalmente escritas. Enfoques mais ousados
analisam monumentos e práticas religiosas. Mas são poucos aqueles que enveredam
pela pré-história. O autor enfrentou o desafio de entender como a matemática vai
tomando forma desde os primórdios da evolução da espécie. Tal pesquisa, de natureza
holística, depende do apoio de disciplinas tradicionais, entre outras a filosofia, a
genética, a arqueologia, a antropologia, a lingüística, a paleologia, o que levou o autor a
adotar um enfoque transdisciplinar e transcultural.

A edição original já havia se revelado um tratamento não convencional da


História da Matemática, abordando assuntos geralmente não incluídos nos textos
tradicionais. Na verdade, esse livro era um estudo sobre a pré-história da matemática.
Esta nova edição mantém o foco, mas é, substancialmente, um novo livro. O texto foi
inteiramente revisto, ampliado e atualizado. A amplitude do tema levou o autor a
limitar-se ao paleolítico, com breves referências ao neolítico e a tempos históricos.
Ficamos na expectativa de outro volume, inteiramente dedicado ao neolítico e ao início
dos tempos históricos, prometido pelo autor.

Escrever este Prefácio foi para mim muito prazeroso. Não só por atender ao
honroso convite do amigo, mas pela oportunidade de refletir sobre um tema ao qual
venho me dedicando há muito tempo, que é a emergência de uma forma de fazer/saber
que identificamos como matemática. O que sabemos da espécie humana? Nossa espécie
é, de acordo com fontes científicas conceituadas, uma evolução de mamíferos primatas,
e nossos primeiros ancestrais, os australopitecos, cujos fósseis foram encontrados na
África Central, desenvolveram bipedismo, um cérebro evoluído, um sistema sofisticado
de comunicação, que é a linguagem, e a capacidade de fabricação e utilização de
instrumentos, como o fogo, utensílios de pedra lascada e a lança.

No curso dessa evolução, que se iniciou há cerca de 6 milhões de anos, chega-se


a duas espécies diferenciadas, o homo sapiens e o homo neanderthalensis, que
conviveram há cerca de 100.000 anos. Foi uma convivência fascinante, da qual resultou
a extinção do homo neanderthalensis e o surgimento de uma outra espécie, o homo
sapiens sapiens, que somos nós. Essa espécie foi acumulando experiências
diversificadas em contextos naturais distintos, e adquirindo conhecimentos e modos de
comportamento, também diferenciados. A invenção da agricultura, que se situa entre 10
a 20 milênios, é a grande transição para a fase moderna da espécie. Onde se deram
todas essas etapas? Em todo o planeta. Com diferença de alguns milhares de anos,
identificamos modalidades diferentes de comportamento e de conhecimento, em
regiões com enormes diferenças de clima, de solo, de recursos. É evidente por que a
agricultura é tardia no Círculo Polar Ártico e na Amazônia. Contextos naturais distintos
exigem respostas distintas. O comportamento e o conhecimento respondem ao pulsão
de sobrevivência e à busca de explicações, que transcendem o aqui e agora em que se
dá a sobrevivência.

A aventura da espécie humana pode ser caracterizada pela busca permanente de


sobrevivência e de transcendência. A busca de sobrevivência, que consiste
essencialmente na utilização de recursos naturais para satisfazer necessidades
fisiológicas e na aquisição de modos de lidar com o ambiente, é comum a todas as
espécies. Mas, a espécie humana, como nenhuma outra espécie, vai além da busca de
sobrevivência. Procura explicações, tentando entender o como e o porquê de fatos e
fenômenos. Essas explicações são organizadas como sistemas, que transcendem as
necessidades fisiológicas imediatas. Isto é, a espécie humana alia ao pulsão de
sobrevivência o pulsão de transcendência. As respostas a esses pulsões dependem de
condições naturais e ambientais. Certos povos, ao longo de muitas gerações,
compartilham elementos comuns das respostas aos pulsões de sobrevivência e de
transcendência. Isso caracteriza as culturas.
O que chamamos Matemática é uma resposta à busca de sobrevivência e de
transcendência, acumulada e transmitida ao longo de gerações, desde a pré-história.
Isso é o que Manoel de Campos Almeida aborda neste primoroso livro.

A natureza da Matemática e sua origem é uma questão filosófica preliminar a


qualquer discussão. É o que constitui o Capítulo 1 deste livro, denominado Origem da
Matemática. O autor sintetiza as grandes teorias, desde a antiguidade até os dias de
hoje. É um estudo de História. No Capítulo 2, denominado História e Pré-História, o
autor discute como tem sido conceituada história, o que lhe permite situar o objeto
deste livro na chamada pré—história. A figura central em todas essas reflexões é o
homem. O autor dedica o Capítulo 3, denominado Homo sapiens, a uma síntese, ampla
e bem atualizada, das principais teorias que explicam o surgimento de hominídeos até a
espécie homo sapiens sapiens. O Capítulo 4, aborda As Línguas. Embora se
identifiquem modos de comunicação entre todas as espécies, a linguagem talvez seja o
maior diferencial das espécies homo. Os estudos sobre o surgimento da linguagem são
muito desafiadores. Não há, na linguagem, os elementos que alimentam as hipóteses
dos pesquisadores, que são principalmente fósseis e artefatos. Som é a mais efêmera
manifestação das espécies. Não há memória de sons. Particularmente instigante é
entender como um som se articula como um fonema e posteriormente como morfemas,
adquirindo significado e constituindo palavras, com idéias intrínsecas a elas, e que se
encadeiam produzindo frases. Como traçar essas etapas na evolução da espécie?
Manoel de Campos Almeida nos mostra, neste capítulo, algumas importantes
teorizações sobre linguagem. Embora seu surgimento seja difícil de explicar, a
linguagem é um dos mais importantes instrumentos de análise dos grandes movimentos
migratórios das espécies homo. O autor dá considerável atenção a esses movimentos.

Os quatro primeiros capítulos constituem as bases teóricas sobre as quais o


autor fará seus estudos sobre as origens e desenvolvimento da matemática desde a pré-
história.

No Capítulo 5, Matemática Pré-Histórica, o autor reconhece idéias hoje


familiares, tais como os processos de contagem, nas estratégias de sobrevivência e
transcendência. Faz uma rica revisão de grandes linhas de pesquisa focalizando o
surgimento do senso numérico na espécie. Os processos de contagem de algumas
culturas indígenas do Brasil são apresentados, com uma interessante mas breve
discussão de aspectos sociais, econômicos e místicos associados a esses processos. O
autor dedica muita atenção às representações da contagem, relacionando-as com a
linguagem. Há apenas uma breve menção à geometria, que será focalizada no capítulo
8. O Capítulo 6, responde ao seu título, Técnicas de Contagem da Matemática
Paleolítica. Começa com um estudo de várias formas de entalhe, principalmente em
ossos, uma das primeiras manifestações de contagem e registro numérico. Passa em
seguida a um estudo de talhas numéricas, como resposta à complexidade da sociedade e
dos meios de produção e comércio, dedicando grande parte do capítulo a uma discussão
da ocorrência de registros numéricos no Antigo Testamento. O computo do tempo, com
uma especial referência aos indígenas do Brasil, completa o capítulo. O Capítulo 7,
sobre Origens do Misticismo Numérico complementa, de certo modo, o capítulo 6.
Praticamente a metade do capítulo é dedicada à análise da mística dos números no
Antigo Testamento. O Capítulo 8, sobre Geometria Paleolítica, destaca os mitos,
rituais e símbolos. O simbolismo recebe muita atenção e o autor recorre a estudos
recentes da mente e da consciência, muito bem encaixados no texto, que ajudam a
justificar porque ele identifica, no surgimento do pensamento geométrico, o limiar do
comportamento humano moderno, particularmente do pensamento abstrato.

Uma ampla bibliografia, incluindo sítios da internet, possibilita examinar


inúmeros detalhes. Alguns capítulos contém notas esclarecedoras. Um índice remissivo
completa este excelente livro.

Manoel de Campos Almeida enriquece, com este livro, a literatura científica


brasileira, oferecendo-nos uma obra original, muitíssimo bem organizada e que instiga
para pesquisa numa área fascinante dos primórdios do pensamento.

Ubiratan D’Ambrosio

São Paulo, janeiro de 2009


APRESENTAÇÃO

Em 1.988 publicamos a edição original do livro Origens da Matemática, fruto


de anos de ponderações sobre o assunto. Devido ao seu caráter decididamente não
convencional, fugindo do tratamento tradicional dos textos sobre História da
Matemática, não nutríamos maiores expectativas sobre sua aceitação. Seus temas
abordavam assuntos geralmente não incluídos nos textos então existentes sobre a
matéria; hoje diríamos, empregando uma expressão adequadamente cunhada para os
assuntos nele desenvolvidos por Ubiratan D’Ambrosio, que seu tema recorrente era a
Pré-História da Matemática.

Aparentemente, muitos de seus temas nem deveriam merecer a atenção dos


matemáticos, porque não consistiam no que então era considerado como Matemática
pela comunidade acadêmica da época. Porém, tínhamos e mantemos a estrita convicção
de que se quisermos entender o que é a Matemática, suas origens, seu desenvolvimento,
sua estupenda capacidade descritiva, explanatória, heurística e criadora, somente um
tratamento holístico, sistêmico, histórico, que abrangesse não somente a disciplina em
si, mas também seus artífices, os matemáticos, nos proporcionaria os meios para tal.
Isso exige apoio de outras disciplinas, como a filosofia, a genética, a arqueologia, a
antropologia, a lingüística, a paleoantropologia e inúmeras mais. Esse conhecimento
pandisciplinar é estranho ao cotidiano do matemático, não estando ele habituado a tal.

A Matemática é produto da atividade humana, portanto social e histórica. A


Matemática é estruturante dos processos mentais que qualificamos como puramente
humanos, o que nos distingue dos demais primatas. Ela se desenvolveu acompanhando
pari passu a evolução da raça humana, portanto sua história se entretece com a da
humanidade. Os humanos, contando com importantes componentes inatos, quando do
surgimento do pensamento simbólico que, como veremos, parece ter ocorrido muito
antes do que se acreditava, adquiriram a capacidade de pensar matematicamente.

O objetivo desta obra é procurar entender e acompanhar a gênese da


Matemática, obra-prima do gênero humano. É-nos impossível ser exaustivos neste
percurso, pois muito ignoramus et ignorabimus (não sabemos e não saberemos). Nossas
certezas sobre o assunto empalidecem perante a complexidade da realidade.
Muitas vezes nos solicitaram atualizar a edição original. Contudo, inúmeras
novidades permearam o tema, bem como nossa opinião evoluiu em alguns pontos, o que
não nos permitiu simplesmente revisar a obra. Esta nova edição é praticamente uma
nova composição, nela retomamos alguns temas da original, porém ampliados e
atualizados, bem como agregamos muitos materiais recentes e assuntos inéditos. A
extensão exigida pela obra nos forçou a dividi-la em tomos. O presente volume se
restringirá ao real alvorecer da Matemática, principiando com breve introdução à sua
filosofia, cuja compreensão se nos afigura indispensável a quem se dispuser a entender
sua evolução. Ateremos-nos ao Paleolítico, com breves incursões no Neolítico e nos
primórdios da História, quando o tema o exigir. O Paleolítico é o período onde surgiu o
pensamento simbólico, fundamental à nossa disciplina. É nossa intenção, em um futuro
próximo, dedicarmos outro volume à Matemática no Neolítico e nos Princípios da
História.

Parte do material aqui incluído foi elaborada para apresentações em vários


Seminários Nacionais de História da Matemática, promovidos pela Sociedade Brasileira
de História da Matemática, eventos essenciais ao desenvolvimento desta disciplina em
nosso país. Outra parte está dispersa em publicações diversas, listadas nas referências.

Em particular queremos agradecer ao incentivo, atenção e exemplo dos Doutores


Ubiratan D’Ambrosio e Peter Damerow, inestimáveis, que nos permitiram a não
esmorecer neste empreendimento.

Agradecemos a todos os proprietários de direitos autorais que deram permissão


para reprodução do material de sua posse. Embora todos os esforços fossem envidados
para contatá-los nem sempre foram bem sucedidos, seremos gratos em saber de quem
porventura não foi possível contatar para corrigir eventuais omissões nas próximas
edições. Devido à ampla abrangência do material coligido, das leituras realizadas,
desculpamo-nos antecipadamente por qualquer eventual omissão, certamente não
intencional.

Curitiba, janeiro de 2009.


CAPÍTULO I

A MATEMÁTICA

“As perspectivas do meu livro não são decerto muito belas. Com
efeito, é claro que ele não agradará àqueles matemáticos que,
logo que encontram qualquer expressão lógica como “conceito”,
“relação”, “juízo”, pensam de imediato: “Methaphisica sunt, non
leguntur!”, nem àqueles filósofos que, vendo uma fórmula,
exclamam: “Mathematica sunt, non leguntur!”. E são muito
poucos aqueles que não pensam assim”.

Gottlob Frege

Questões arquetípicas

O homem se distingue de seus companheiros do reino animal por se preocupar


com questões relativas às origens das coisas. Denominaremos essas questões de ur-
questões, emprestando o prefixo ur- do alemão, onde significa primeiras, remotas,
antiqüíssimas. Essas questões visam analisar a realidade de uma perspectiva
notadamente antropocêntrica. Sua curiosidade acerca de questões arquetípicas,
cosmogônicas, parece caracterizar seu grau de “humanidade” entre o demais
componentes desse reino. Procura respondê-las como pode, dentro de seu estágio de
evolução e conhecimento. Como forma de resposta urdiu, por exemplo, os mitos de
criação, presentes em praticamente todas as culturas no globo.

Como amostra dessas ur-questões selecionaremos algumas, que dizem respeito à


Matemática, a ciência que nos cativa. Os seguintes questionamentos nos intrigam:

• O que é a Matemática?
• Qual a sua natureza?
• Quando surgiu a Matemática?
• Onde surgiu a Matemática?
• Por que a Matemática surgiu?
• Como surgiu?
• Quais suas primeiras manifestações?
• Quem foi responsável por elas?

São questões que, de um modo ou de outro, afloram repetidamente à mente dos


interessados nesta ciência. Para tentar respondê-las, necessitamos primeiro saber o que é
Matemática, e de que forma esta se manifesta. Não é nossa intenção perquirir profunda
e exaustivamente aqui sobre o problema ontológico de sua natureza ou a de seus entes,
ou de sua existência real ou ideal, árduas questões filosóficas, relevantes, entretanto,
para seus praticantes.

Concentrar-nos-emos em procurar estabelecer uma conceituação operacional que


nos permita distinguir o que é matematizar das outras atividades cotidianas do ser
humano, tais como comer, dormir, caçar, plantar, construir, fabricar, acender, etc.

Resistiremos à tentação de apresentar uma definição formal do que é Matemática.


Inúmeras já foram propostas, nenhuma cabalmente satisfatória. Vejamos algumas. As
mais antigas diziam algo como: a Matemática é: a) a linguagem da natureza, das
grandezas; b) a ciência dos números e das grandezas; c) a ciência das quantidades e das
formas.

Outras, algo mais recentes e elaboradas, propõem que a Matemática é: a) a


expressão da mente humana (Courant & Robins, p.3); b) uma série de grandes intuições
cuidadosamente joeiradas, refinadas e organizadas pela lógica (Kline, p.312); c) uma
atividade do pensamento, não um corpo de conhecimento exato (Weyl, apud Kline,
1.980, p.320); d) ciência que investiga relações entre entidades definidas abstrata e
logicamente (dicionário Aurélio).

Categoria especial é a das definições sofisticadas, embora similarmente


insatisfatórias: a Matemática é: a) a classe de todas as proposições da forma “p implica
q” (Russel); b) a ciência das deduções formais, dos axiomas e dos teoremas
(Formalismo); c) uma grande tautologia (Logicismo: Matemática = Lógica).
Outras há, ainda, ingênuas, tais como: é aquilo que os matemáticos fazem, ou: não
sei o que é, mas quando a vejo, reconheço-a imediatamente e, também: matemática é
simplesmente o que a comunidade de matemáticos decide chamar de “matemática”.

Quanto à sua natureza, nos debruçaremos por um instante sobre seus


fundamentos, objeto da Filosofia da Matemática, pois seus ensinamentos são basilares
para quem almeja melhor compreensão dessas ur-questões.

Qual a natureza da Matemática?

Denominam-se de objetos matemáticos a todos os entes que são assuntos de


estudo da Matemática, tais como números (naturais, racionais, transcendentais,
imaginários, etc.), grandezas (comprimento, distância, área, volume, etc.), formas
geométricas (retas, polígonos, retângulos, círculos, etc.), entre elas as superfícies
(planas, esféricas, hiperbólicas, etc.), as formas estereométricas (pirâmides, cilindros,
etc.), bem como vetores, integrais, séries, etc. Os gregos denominavam esses objetos de
os mathematiká (µαθηµατικά).

No âmbito da Filosofia da Matemática, questionamentos sobre sua natureza se


distribuem naturalmente em três categorias. A primeira diz respeito às questões
ontológicas, populares desde os princípios do século XX, tais como: o que são os
objetos matemáticos, onde residem, e se são independentes do cérebro humano. A
segunda trata dos fundamentos da matemática, em moda nos fins do século XIX e
princípios do XX. Preocupa-se com os axiomas que necessitamos como base de um
sistema matemático, e se é possível construir tal sistema que seja ao mesmo tempo
completo e consistente. A terceira trata da epistemologia da Matemática, que analisa de
que forma o conhecimento matemático é possível e como podemos estendê-lo para as
outras ciências.

O problema da natureza dos objetos matemáticos, se existem de modo


independente do cérebro do homem, que então os descobre, ou se são apenas o produto
da atividade cerebral que os constrói, é o fio condutor que perpassará a nossa narrativa.
Para a matemática, no que tange aos objetos matemáticos, principalmente aos
números, reapresentam-se na atualidade questões análogas às que se propunham na
Idade Média no tocante às idéias, formas ou universais. Os universais são vocábulos
genéricos que servem para designar os entes empíricos existentes fora do pensamento,
como retângulos, esferas, etc.; quando muito são uma síntese mental desses objetos,
mas só estes são reais. A Idade Média responde à pergunta de qual era a natureza dos
universais de quatro maneiras:

1. - O nominalismo defende que os universais são palavras às quais não


corresponde qualquer realidade.

2.- O conceitualismo defende os universais como “conceitos” formulados pela


mente por abstração das diferenças individuais, designando as qualidades mais ou
menos semelhantes dos indivíduos de uma dada classe.

O realismo divide-se em duas correntes, uma radical e outra moderada:

3. - O realismo radical sustenta que os universais existem in se per se, isto é,


que os universais e têm existência real e autônoma.

4. - O realismo moderado sustenta que os universais existem formaliter na


mente, fundamentaliter in res. Com isto quer dizer que os conceitos, enquanto
universais, existem na mente; na realidade existem os indivíduos, os quais, embora
constituindo ordens ou espécies, são unidos por qualidades comuns. A realidade
autoriza a recolher a essência comum ou a natureza num só conceito, que diz respeito à
multiplicidade dos indivíduos da mesma espécie ou ordem.

Nas teorias matemáticas atuais retornam os velhos nomes, porém o


desenvolvimento e a agudeza dos conceitos matemáticos as distanciam das teorias
medievais. Por isso, essa terminologia tradicional constitui apenas um esquema
aproximativo.

Chamaremos de nominalistas àqueles que sustentam que os objetos matemáticos


(números, por exemplo) não são entidades abstratas e que, se existe possibilidade de
interpretar a teoria destes de modo a fazê-la resultar verdadeira, deve-se fazê-lo com
referência a objetos concretos (Manno, 1985, p.232).
Conceitualistas são os que defendem que os objetos matemáticos existem e são
entidades abstratas, porém produzidas pela mente.

Finalmente, chamaremos de realistas ou platônicos àqueles que sustentam que


os objetos matemáticos existem como entidades abstratas, mas independentemente do
nosso pensamento.

Apresentaremos essas correntes seguindo, aproximadamente, sua evolução


cronológica, a saber: realismo, nominalismo e conceitualismo.

A filosofia atual conservou a importante distinção estabelecida por Platão entre


opinião ou crença (doxa) e conhecimento certo ou ciência (episteme). Para Platão,
opinião, sobre qualquer tema, é característica do vulgo, do povo, e é o único que se pode
obter com respeito às “coisas fugazes” (objetos físicos), que não “são” em sentido
completo, pois nascem, mudam e morrem. Apenas os objetos eternos (as idéias) podem
ser temas do conhecimento certo.

Para ele um importante empreendimento intelectual humano consistia em


distinguir aparência de realidade. O mundo das aparências, dos objetos fugazes, está em
constante mutação. As entidades pertencentes a este mundo seriam “relativamente
reais”. As entidades “absolutamente reais”, pertencentes à “realidade” (que nunca
muda) - as idéias ou formas, no dizer de Platão, são concebidas como independentes da
percepção, como capazes de definição absolutamente precisa e como absolutamente
permanentes, ou seja, atemporais e eternas. Correspondem, pelo menos em parte, àquilo
que os filósofos posteriores chamam de “universais”.

Por exemplo, consideremos o objeto “retângulo”. Existem fisicamente vários


tipos de retângulos: folhas de papel, tampos de mesa, azulejos, livros, etc., porém, todos
têm em comum quatro lados, iguais dois a dois, e quatro ângulos retos. Se pudéssemos,
contudo, dispor de instrumentos ideais de medida de comprimento (régua) e de ângulo
(goniômetro), capazes de medir com precisão absoluta, verificaríamos que inexistem na
realidade dois “retângulos” físicos exatamente iguais. Se tomarmos esse objeto
“retângulo” mais ou menos transitório e indefinido, eliminarmos essas “imperfeições”,
trocando seu caráter indefinido por um definido, sua transitoriedade pela permanência,
essas “imperfeições” pelas “perfeições” correspondentes, o resultado seria então a
forma do retângulo, da qual todos os retângulos são apenas cópias imperfeitas. Forma,
para Platão, é, portanto, uma característica ou conjunto de características comuns a
certo número de coisas.

Perfeitas e imutáveis, as idéias ou formas seriam os modelos ou paradigmas dos


quais as coisas reais seriam meras cópias imperfeitas e transitórias. Constituiriam, pois,
tipos ideais, que transcenderiam o plano mutável dos objetos físicos. É essa Idéia -
atemporal - que representa a verdadeira e permanente realidade, o mundo real nada mais
é que sua sombra. De fato Platão, usou a comparação de uma raça de homens,
acorrentados em uma caverna subterrânea de tal modo que só pudessem ver a parede:
eles viam o mundo passar como sombras nessa parede. É o que nos acontece quando
observamos a natureza: a verdadeira realidade escapa-nos aos sentidos, é algo que
jamais observamos, só pode ser contemplada pelo pensamento. É a famosa alegoria da
caverna de Platão.

Portanto, existe um mundo das idéias / formas, objetos atemporais, logo eternos,
independentes do pensamento e definidos, diferente do mundo da percepção temporal.
Porém, a afirmativa de que o mundo material se torna compreensível através da hipótese
das idéias/formas deixa em suspenso um problema fundamental: como podemos
conhecer essas realidades, invisíveis e incorpóreas? Os sentidos só podem conhecer o
que é corpóreo, e a simples admissão de que existe um mundo das idéias não é
suficiente. É preciso que se admita um conhecimento das idéias incorpóreas que
antecede o conhecimento fornecido pelos sentidos.

No Mênon Platão expõe a doutrina de que o intelecto pode aprender as idéias


porque ele também é, como as idéias, incorpóreo. A alma humana antes do nascimento,
antes de se ligar ao corpo, teria contemplado as idéias, enquanto seguia o cortejo dos
deuses. Uma vez encarnada, perde a possibilidade do contacto direto com os arquétipos
incorpóreos, mas diante de suas cópias, os objetos sensíveis, pode ir progressivamente
recuperando o conhecimento das idéias. Conhecer, para Platão, seria recordar, lembrar,
reconhecer. A anamnese (anamnesis) seria a recordação das idéias eternas conhecida na
existência pré-terrena. Platão apresentou exemplos de idéias em dois campos: na esfera
das relações estéticas e morais e nas relações matemáticas.

A missão da filosofia, para Platão, consistia em “descobrir o conhecimento


verdadeiro por trás do véu da opinião e da aparência, das mudanças e ilusões do mundo
temporal. Nesta missão a matemática tinha um papel central, pois o conhecimento
matemático era um exemplo notável de conhecimentos independentes da experiência
dos sentidos, conhecimentos de verdades eternas e necessárias” (Davis & Hersch, D&H,
1.985, p.366/7).

Em seu livro Mênon, Platão faz Sócrates interrogar um menino escravo,


conduzindo-o a descobrir que a área do quadrado grande é duas vezes a do quadrado
ABCD, cuja diagonal é o lado do quadrado maior.

Fig.1.1

De que forma o menino escravo tem conhecimento disso? Sócrates argumenta que
o menino não aprendeu tal coisa durante sua vida mortal, de modo que o seu
conhecimento deve ser uma recordação da vida antes de seu nascimento.

Isso mostra que existe um conhecimento verdadeiro, eterno, independente da


nossa vida mortal. Platão argumenta que:

1. Conhecemos verdades da geometria que ainda não aprendemos pela educação


ou experiência.

2. Este conhecimento é um exemplo das verdades universais, imutáveis que, com


efeito, podemos perceber ou reconhecer (recordação-anamnese).

3. Deste modo, deve existir um reino de verdade absoluta, imutável, a fonte e base
do nosso conhecimento do bem (no caso o mundo das idéias matemáticas).

Segundo o platonismo, os objetos matemáticos são reais. Por isso, essa corrente
também é conhecida como realismo. Sua existência é um fato concreto, independente do
nosso conhecimento sobre eles. Conjuntos infinitos, curvas que preenchem o espaço,
hiperesferas, variedades de dimensão infinita, fractais - todos os membros do zoológico
matemático, para empregar uma expressão de David & Hersch, são objetos definidos,
com propriedades definidas, que existem fora do espaço e do tempo da experiência
física.

“São imutáveis - não foram criados, nem mudarão ou desaparecerão. Qualquer resposta
significativa sobre um objeto matemático tem resposta definida, quer sejamos capaz ou não de determiná-
la. Segundo o platonismo, um matemático é um cientista empírico, como um geólogo; não pode inventar
nada, pois tudo já existe, o que pode fazer é descobrir coisas” (Davis & Hersch, 1.985, p. 359).

“Platão não considerava a matemática como uma idealização, feita pelos matemáticos, de certos
aspectos do mundo empírico, mas a descrição de uma parte da realidade” (Körner, 1.985, p. 20).

Para o platonismo, a proposição matemática 1 + 1 = 2 e todas as demais


proposições verdadeiras da aritmética e da geometria são necessariamente verdadeiras
porque descrevem relações imutáveis entre objetos imutáveis.

Platão frisou que o raciocínio usado na geometria não se refere às figuras, esboços
ou desenhos visíveis, mas às idéias absolutas que elas representam.

As principais críticas ao platonismo residem em sua extrapolação do campo


lógico para o ôntico, do ideal para o real, na absolutização das leis matemáticas e na
redução a estas do variado comportamento da realidade natural e das várias formas do
conhecimento. Considerando a matemática como descoberta e não criação do
matemático, um ser humano, acredita-a imune às influências do contexto cultural e
cronológico em que vive.

Cerca de 65 % dos matemáticos da atualidade são platonistas (D & H, 1.985,


p.363), entre eles expoentes como Russel, Hardy, Göedel, Thom, Connes e muitos
outros. Isso mostra que dois entre cada três matemáticos da atualidade pendem para esta
corrente.

A filosofia da matemática de Aristóteles é, em parte, oposta à de Platão e,


parcialmente, independente dela. Aristóteles rejeita a distinção platônica entre o mundo
das formas, considerado a verdadeira realidade, e o da experiência sensorial, que
somente deve ser entendido como uma aproximação do mundo das formas. De acordo
com Aristóteles, a forma ou essência de qualquer objeto empírico, como uma caneta ou
um computador, constitui parte dele, do mesmo modo que sua matéria.
Aristóteles distingue nitidamente entre a possibilidade de se abstrair (ou seja,
etimologicamente, extrair) características matemáticas (como “unidade”, ou
“retilinearidade”) de objetos e a existência independente dessas características, isto é,
unidades ou retas, enfatizando que a possibilidade de abstração de modo algum acarreta
a existência independente do que é, ou pode ser, abstraído. É o cérebro humano que,
para Aristóteles, tem essa capacidade de abstração. Portanto, para o estagirita, só
existem objetos matemáticos, ou seja, Matemática, se existirem matemáticos.

Podemos atribuir a Aristóteles dois resultados incontroversos sobre eles: a) cada


um desses objetos, em certo sentido, está nas coisas das quais é abstraído, e b) há uma
multiplicidade deles, por exemplo, existem tantas unidades aritméticas, casos de dois,
três, etc. bem como tantos círculos, linhas retas, etc., quantos são necessários no cálculo
ou nos argumentos geométricos (Körner, 1.985, p.20).

Com Santo Agostinho, as formas / idéias platônicas são interpretadas como o


pensamento divino exemplar, presentes no mundo pela criação, e, todavia,
transcendentes; análoga interpretação sofre também a matemática, que passa à categoria
de verdade eterna.

O nominalismo rejeita as concepções abstratas, ideais, e admite apenas as


realidades empíricas. Para John Stuart Mill, seu defensor no campo matemático, os
números são fruto da abstração operada sobre as realidades empíricas. Portanto, os
números não passam de meras representações mentais de realidades empíricas.

Outra tentativa do nominalismo para fazer corresponder ao número algo de


concreto, consiste na identificação do número com o numeral. Por numeral entende-se o
sinal, gráfico usualmente, associado ao conceito de um determinado número. Por
exemplo, 3 é o numeral associado ao número três. Com a identificação do número com
o numeral existiria uma correspondência entre os dois planos e o número encontraria
sua justificação.

O nominalismo sucumbe sob o peso de numerosas críticas. Frege dirigiu-lhe


acerbas críticas em seu “Fundamentos da Aritmética”.

Vamos analisar algumas das críticas. Identificar números com numerais é uma
idéia ingênua, pois existem números infinitamente grandes, infinitamente maiores que o
número total de todas as partículas do universo. Mesmo associando a menor partícula
elementar a um número, mesmo assim existem infinitamente mais números que
partículas. É impossível encontrar objetos que correspondam a toda a série de números
possíveis.

A teoria nominalista torna inadmissíveis importantes conceitos matemáticos, tais


como “conjunto”, “par ordenado”, “número complexo”, "hiperesfera”, etc. Um
“conjunto” não é a mesma coisa que um “agregado” de objetos, o que uma “soma” de
dois entes reais. Tampouco se podem fazer corresponder sempre a realidades concretas
os diversos modos de combinar, operar e ordenar os números. Isto sem falarmos de
importantes áreas da matemática que tratam de objetos sem correspondentes no espaço
comum (tri-dimensional euclidiano real), como as geometrias não-euclidianas, números
complexos, etc.

Por conseguinte, o nominalismo, entendido como teoria que nega o valor ideal e
autônomo da matemática, reduzindo-a a interpretação ou tradução mental de realidades
e relações concretamente existentes, é incapaz de justificar a natureza e a extensão desta
disciplina.

Seguindo a referência histórica indicada, “classificamos como “conceitualismo”


as teorias que não consideram os números entidades concretas, nem entidades ideais
existentes in se e per se, mas, à semelhança dos antigos conceitualistas, os consideram
“construções mentais”, “invenções da mente”, existentes só em pensamento, dotados,
no entanto de um valor, de uma estrutura, de um conteúdo inteligível ”(Manno, p.234)

Para os adeptos desta corrente, a matemática está em condições de “descobrir” ou


“construir” mundos ideais objetivamente, isto é, ao menos significativamente válidos,
com um conteúdo coerente, não meras fantasias. Portanto, a matemática, embora
lidando com um mundo ideal, não pode renunciar ao critério da coerência.

O melhor exemplo desta corrente, entre as escolas modernas da matemática, é a


conhecida como intuicionista ou construtivista, que estudaremos adiante.

Tanto Platão como os filósofos racionalistas, Spinoza, Descartes e Leibniz,


consideravam a geometria um elemento chave em sua concepção de mundo. Para os
racionalistas a faculdade da Razão era um traço inato da mente humana, pelo qual as
verdades podiam ser percebidas a priori, independentemente da observação; era o que
permitia ao homem conhecer o Divino. Sua existência era percebida de melhor maneira
na matemática, pois ela partia de verdades evidentes, por si próprias e prosseguia por
raciocínios refinados para descobrir verdades ocultas. As verdades da geometria eram
formas ideais cuja existência era evidente à mente, portanto, duvidar de sua existência
constituía sinal de ignorância ou de insanidade.

Os racionalistas espertamente transmutaram o conhecimento do Bem, imbuído na


filosofia platônica, no conhecimento de Deus, escapando assim às intempéries da
Inquisição, abrindo assim espaço para que a ciência florescesse, sem ser garroteada pela
Religião. Isso permitiu à ciência contornar a supremacia da autoridade religiosa,
enquanto mantinha a verdade da religião. A razão era, portanto, independente da
autoridade da Igreja, mas, sabiamente, mantinham que a ciência nada mais era que o
estudo de Deus. A existência de objetos matemáticos em um reino de idéias
independentes das mentes humanas não apresentava dificuldades para os racionalistas, o
problema era, ao invés, justificar a existência de objetos não ideais, materiais.

A concepção de Leibniz a respeito do objeto da matemática pura é inteiramente


diferente da de Platão ou de Aristóteles. Para ele, as proposições matemáticas
assemelham-se às proposições lógicas na medida em que não são verdadeiras com
relação a objetos eternos particulares ou objetos idealizados, resultantes de abstração ou,
na verdade, de qualquer outro tipo de objeto. São verdadeiras porque sua negação seria
logicamente impossível.

Após o racionalismo substituir o escolaticismo medieval, foi desafiado por sua


vez por Locke e Hobbes na Inglaterra e pelos Enciclopedistas na França, que defendiam
uma corrente conhecida como empirismo. Os empiristas defendiam que todo o
conhecimento, exceto o conhecimento matemático, provinha da observação.

Na contenda entre o racionalismo e o empirismo, o progresso da ciência natural


baseada no método experimental deu ao empirismo sua vitória decisiva.

Esses filósofos geralmente não tentavam explicar como é obtido o conhecimento


matemático. Uma exceção foi John Stuart Mill, que propôs uma teoria empírica do
conhecimento matemático, afirmando que a matemática é uma ciência natural em nada
diferente das outras.

Nessas controvérsias filosóficas a posição privilegiada da geometria nunca era


questionada. Discutia-se se partíamos da Razão, que os seres humanos possuem como
uma dádiva do Divino, para descobrir as propriedades do mundo real, ou se temos
somente nossos sentidos com os quais nos empenhamos em descobrir as propriedades
dos objetos físicos e de seu Criador. Ambos os contendores aceitavam que o
conhecimento geométrico não era problemático, mesmo se todo o resto do
conhecimento o fosse. A matemática era o melhor exemplo para confirmar a visão de
mundo dos racionalistas, enquanto que para os empiristas era um contra-exemplo
embaraçoso, o qual tinha que ser ignorado ou explicado de alguma maneira.

Se a matemática contém conhecimento independente da percepção dos sentidos,


então o empirismo é inadequado como explicação de todo o conhecimento humano.
Porém, a ciência moderna, que endossa o “método científico”, de caráter
fundamentalmente experimental, aplaude o empirismo.

Este embaraço ainda nos acompanha, pois temos a tendência de esquecer que o
ponto de vista científico moderno ganhou supremacia somente no século XIX, para o
que positivismo de Augusto Comte contribuiu de maneira significativa.

No fim do século dezoito, Immanuel Kant tentou unificar as tradições conflitantes


do racionalismo e do empirismo. A metafísica de Kant é uma herança platônica, da
procura da certeza e da imutabilidade do conhecimento humano.

Distinguiu nitidamente entre os noumenas, as coisas nelas próprias, que não


podemos jamais conhecer, e os fenômenos, que são tudo sobre o que nossos sentidos
nos podem dizer alguma coisa.

Sua principal preocupação era com o conhecimento “a priori”, o qual independia


do tempo e da experiência. Diferenciou dois tipos desse conhecimento. O “a priori
analítico” é o que sabemos ser verdadeiro pela análise lógica, pelo exato significado dos
termos usados. Acompanhando os racionalistas, acreditava que possuímos também um
outro tipo de conhecimento a priori, que não é simplesmente truísmo lógico: o “a priori
sintético”, representado pelas nossas intuições do tempo e do espaço. Explica sua
natureza a priori afirmando que estas intuições são propriedades inerentes ao espírito
humano. A aritmética, que se baseia na intuição de sucessão, sistematiza nosso
conhecimento do tempo. Já o nosso conhecimento do espaço é sistematizado na
geometria.
Para Kant, como para Platão, existe somente uma geometria, a que hoje
conhecemos como euclidiana, para distingui-la de muitos outros modelos conceituais
que também denominamos de geometrias, como as de Bolyai, Lobachevski e Riemann.
As verdades da aritmética e da geometria se impõem pelo modo como a nossa mente
funciona. Isso esclareceria por que são supostamente válidas para todos,
independentemente da experiência. As intuições de tempo e do espaço, sobre as quais
estão baseadas a aritmética e a geometria, são objetivas no sentido de que são
universalmente válidas para todas as mentes humanas.

O dogma kantiano do a priori influenciou profundamente a filosofia da


matemática, adentrando o século vinte, de tal modo que as três escolas modernas de
fundamentos: o logicismo, o intuicionismo e o formalismo, se esforçaram manter a
matemática na posição especial em que Kant a alçara.

O ponto importante é a tese kantiana de que “sem a intuição sensível não nos
seria dado nenhum conceito”, isto é, a intuição dos sentidos pressupõe a intuição pura:
nossos sentidos não podem fazer o seu trabalho sem ordenar as suas percepções na
estrutura de espaço e tempo. Desse modo o espaço e o tempo são anteriores a todas as
intuições dos sentidos, e as teorias do espaço e tempo, ou seja, a geometria e a
aritmética, são válidas a priori. A fonte de sua validade a priori é a faculdade humana
de intuição pura, que se limita estritamente a este campo e que é estritamente distinta
do modo intelectual ou discursivo de pensar.

Kant pregava a doutrina que os axiomas da matemática eram baseados na


intuição pura: podiam ser “vistos” ou “percebidos”, num modo não sensitivo de “ver”ou
“perceber”. Além disso, a intuição pura estava envolvida em cada passo de cada prova
em geometria, e na matemática em geral. A aritmética, para Kant, é baseada na
contagem, processo que por sua vez é baseado essencialmente na intuição pura do
tempo.

Kant excluía da matemática os argumentos discursivos, colocados apenas em


palavras, o que, porém, não é inteiramente verdadeiro. Mas a grande crítica à tese
kantiana sobre a matemática, como Frege observou, reside no fato que existem objetos
matemáticos que de modo algum são intuitivos, por exemplo, números extremamente
pequenos ou grandes, como 10 1000 ou 10-1000, os números complexos, o hipercubo, a
curva de Möebius, etc. Estes objetos não têm uma intuição sensível correspondente e,
no entanto, são válidos. A pretensão kantiana de não admitir conceitos aos quais não
corresponda a percepção sensível tornaria impossível grande parte da matemática.

A tese central do logicismo pode ser sintetizada assim: a matemática reduz-se à


lógica. Isto pode ser percebido na definição do que é Matemática, dada por Russel,
citada anteriormente.

A tese logicista, resumidamente, compõe-se de duas partes:

1. - toda a idéia matemática pode ser definida por intermédio de conceitos


lógicos (por exemplo, conjunto, relação, implicação, etc.);

2. - todo o enunciado matemático verdadeiro pode ser demonstrado a partir de


princípios lógicos, mediante raciocínios puramente lógicos.

Citemos, como exemplo, dois princípios lógicos:

a) o princípio da contradição: dada duas proposições contraditórias, isto


é, tais que uma é a negação da outra, uma delas é falsa;

b) o princípio do terceiro excluído: de duas proposições contraditórias,


uma é verdadeira.

O programa logicista foi apresentado na célebre obra Principia Mathematica, de


autoria de Russel e Whitehead, em três alentados volumes, publicados em 1910, 1912 e
1913. Russel já havia exposto suas teses em 1901, em um livro The Principles of
Mathematics, porém somente com os Principia o logicismo adquiriu sua maturidade
completa.

Desde a antigüidade era conhecida a existência de paradoxos. O mais célebre é o


paradoxo de Epimênides, o cretense, o qual afirma que “os cretenses mentem sempre”.
Aceitando a tese de que os cretenses mentem sempre, neste caso também ele mentiria, e
seria falsa a proposição “os cretenses mentem sempre”, já que ele estaria dizendo a
verdade. Se diz a verdade, seria igualmente falsa a proposição de que “os cretenses
mentem sempre”. Não há forma de sairmos desta enrascada, temos duas teses
contraditórias, ambas aparentemente defensáveis.

Por volta de 1900 o céu logicista começou a apresentar nuvens negras, com a
descoberta de numerosos paradoxos (ou antinomias) na teoria dos conjuntos.
Há conjuntos que podem pertencer a si mesmo; por exemplo, o conjunto de todos
os conjuntos, que, por ser um conjunto, pertence a si mesmo. Mas existem conjuntos
que não pertencem a si mesmos; é o caso do conjunto de todos os homens, que, por não
ser um homem, não pertence a si mesmo. Consideremos, agora, o conjunto A formado
por todos os conjuntos que não pertencem a si mesmos. Pelo princípio do terceiro
excluído, A pertence ou não pertence a A. Suponhamos que A pertence a A; então, como
A é o conjunto de todos os conjuntos que não pertencem a si mesmos, A não pode
pertencer a A. Admitamos, então, que A não pertença a A; logo, de acordo com a
definição de A, este conjunto deve pertencer a si mesmo. Há, por conseguinte, uma
contradição.

Este paradoxo é conhecido como paradoxo de Russel, embora Zermelo também o


tenha descoberto independentemente. Russel, logo após a descoberta deste paradoxo,
enviou-o a Gottlob Frege, que estava prestes a publicar um monumental trabalho, o seu
Die Grundlagen der Arithmetik, em que a aritmética era reconstruída baseada nos
fundamentos da teoria dos conjuntos em sua forma intuitiva. Frege, sem outro recurso,
adicionou um pós-escrito à sua obra: “Um cientista dificilmente pode deparar-se com
algo tão indesejável do que ver os fundamentos ruírem justamente quando o seu
trabalho está terminado. Fui colocado nesta posição por uma carta do Sr. Bertrand
Russel, quando o trabalho já estava quase todo impresso” (apud D&H, op. cit., p.374).

Este paradoxo e outros mostraram que a lógica intuitiva estava longe de ser mais
segura que a matemática clássica, pois podia conduzir a contradições que não ocorriam
na aritmética ou geometria.

Isto detonou a célebre “crise dos fundamentos da matemática”, problema central


das controvérsias famosas nas primeiras décadas do século XX. Três remédios para isto
foram propostos na ocasião, um pelos logicistas, que exporemos em seqüência, outro
pela escola construtivista, a próxima a ser apresentada, e o último pelos denominados
formalistas, que também será analisado.

Os paradoxos, afirma Russel, têm origem em uma espécie de círculo vicioso, que
surge quando se supõe que uma coleção de objetos pode conter membros definíveis
somente por meio da coleção como um todo. As totalidades ilegítimas seriam
eliminadas, segundo Russel, pela aplicação do princípio do círculo vicioso: “tudo o que
envolve uma coleção não pode ser membro dessa coleção”. Quando se define um ente
matemático qualquer violando o princípio do círculo vicioso, diz-se que a definição
correspondente é impredicativa.

Para aplicar efetivamente este princípio, Russel edificou a teoria dos tipos
lógicos, introduzindo uma hierarquia na teoria dos conjuntos. As diversas entidades de
que trata a lógica, a saber: elementos, conjuntos, proposições, propriedades, etc., são
dispostas numa hierarquia de tipos distintos. Para os conjuntos, por exemplo, têm-se,
primeiro, os elementos: (tipo zero); depois, conjuntos de (elementos = conjunto do tipo
zero): (tipo 1); em seguida conjuntos de (conjuntos de elementos = conjunto do tipo 1):
(tipo 2); e assim por diante. Por essa hierarquia verifica-se que nenhum conjunto pode
conter a si próprio como elemento, mas apenas conjuntos do tipo inferior, eliminando
assim os paradoxos.

Porém, a teoria dos tipos, ao eliminar os paradoxos criou outros tipos de


dificuldades. Como só tem sentido falar de conjuntos de tipo “n”, é claro que para este
tipo teremos que associar um conjunto vazio e um conjunto unitário deste mesmo tipo.
Para um tipo “n+1” teríamos que associar outro conjunto vazio e outro unitário do tipo
“n+1”, e assim por diante. Estaríamos diante de uma espiral de conjuntos vazios e
unitários.

A cada conjunto corresponde, como afirma a teoria dos conjuntos, um conjunto


complementar, contendo tudo o que não faz parte do conjunto dado. A alteração
introduzida por Russel na teoria dos conjuntos, pela qual nenhum conjunto pode conter
a si próprio como membro, mas apenas conjuntos de tipo inferior, torna insustentável a
noção de conjunto complementar.

Além disso, a teoria dos tipos não permite as definições impredicativas em geral,
o que sacrifica capítulos importantes da matemática clássica (como a teoria dos números
reais de Dedekind). Para evitar esse sacrifício, Russel foi forçado a formular o axioma
da redutibilidade, para contornar os obstáculos surgidos.

Esse axioma afirma que, dada qualquer propriedade (ou conjunto) de ordem maior
do que zero, existe uma propriedade (ou conjunto) da ordem zero que lhe é equivalente.
Além do axioma da redutibilidade, Russel teve que assumir mais dois axiomas1, o do

1
Como são muito técnicos, não vamos apresentá-los aqui, sugerimos a leitura de, por exemplo, Costa (1980, p.14-
17).
infinito e o da escolha, também conhecido como axioma de Zermelo, sem os quais teria
que renunciar a importantes segmentos da matemática.

Estes axiomas são apresentados como hipóteses plausíveis sobre o mundo real,
não têm, portanto, caráter lógico estrito, dado que as leis da lógica deveriam ser
independentes deste ou daquele fato relativo ao mundo real. Do ponto de vista da lógica,
nada impede que se possa dar justamente o oposto ao enunciado nestes axiomas. A
lógica, por si só, mostra-se impotente para fundamentar esses axiomas.

Como vemos, o logicismo está sujeito a críticas fortes. A redução da matemática à


lógica só teria sentido se fosse completa e apresentasse vantagens. Isto, porém, não
ocorreu, porque os logicistas tiveram necessidade de apelar para princípios extra-lógicos
em sua tentativa de redução. Tornou-se insustentável afirmar que a matemática nada
mais é do que lógica - que a matemática é uma grande tautologia.

É interessante, do ponto de vista humano, a declaração de impotência de Russel:

“Eu queria certeza da mesma maneira que as pessoas querem fé religiosa. Eu pensava que a
certeza é mais provável de ser encontrada na matemática do que em qualquer outra coisa. Mas descobri
que muitas demonstrações matemáticas, que os meus professores esperavam que eu aceitasse, estavam
cheias de falácias, e que, se a certeza pudesse ser realmente descoberta na matemática, seria em um novo
campo da matemática, com fundamentos mais sólidos do que os que tinham até então sido considerados
seguros. Mas enquanto o trabalho prosseguia, eu me lembrava constantemente da fábula sobre o elefante
e a tartaruga. Tendo construído um elefante sobre o qual poderia repousar o mundo matemático, vi que o
elefante cambaleava, e passei a construir uma tartaruga [sobre a qual se apoiava], para evitar que ele
caísse. Mas a tartaruga não estava mais segura que o elefante, e após uns vinte anos de trabalho muito
árduo, cheguei à conclusão de que não havia mais nada que eu pudesse fazer a fim de tornar o
conhecimento matemático indubitável” (Russel, apud D&H, 1.985, p. 375).

Hoje em dia sabe-se que não existe uma única lógica, mas sim várias. Pode-se
afirmar que para cada categoria de pensamento racional existe uma lógica subjacente.
Reconhece-se que as categorias racionais de pensamento e as suas lógicas subjacentes
evoluem, se modificam no transcorrer da história, o que nos autoriza a falar em
historicidade da razão2; isso, porém, não invalida que alguns princípios lógicos
manifestam-se como invariantes do decurso do tempo. Há, portanto, um núcleo de
racionalidade invariável, que vai se formando ao longo da história.

2
Costa, 1.980, p.41.
Costa (1.980) distingue três princípios, que denomina de princípios pragmáticos
da razão: a) o princípio da sistematização: a razão sempre se expressa por meio de uma
lógica; b) o princípio da unicidade: em um dado contexto, a lógica subjacente é única; c)
princípio da adequação: a lógica subjacente a um dado contexto deve ser a que melhor
se adapte a ele.

A lógica tradicional passou a ser denominada de lógica clássica ou ortodoxa,


enquanto que as outras lógicas passaram a ser conhecidas como lógicas heterodoxas.
Como exemplos das lógicas heterodoxas, podemos citar as lógicas paraconsistentes, as
lógicas polivalentes, a lógica intuicionista, a lógica da mecânica quântica, a lógica
indutiva ou mesmo a lógica do direito (deôntica).

Ainda hoje as implicações dessas constatações não foram integralmente


absorvidas, nem suas conseqüências compreendidas.

Após o logicismo, a grande escola seguinte foi a intuicionista (construtivista).

Kronecker admitia que, em tese, a aritmetização da análise, reduzindo-se tudo a


números reais, era correta. Não aceitava, porém, as teorias de Dedekind e de
Weierstrass a respeito dos números reais, frisando que estas teorias implicavam a
existência de conjunto infinitos como entidades realizadas, ou seja, do infinito atual,
dado. Kronecker raciocinava que o conjunto dos números naturais 1,2,3,..., que é
infinito, não deve ser considerado como algo realizado, completamente dado.

Ao contrário, existe um primeiro elemento e uma lei de formação, que consiste


em se somar uma unidade a cada número para se obter o seguinte, de modo que podem
ser obtidos tantos elementos quanto se quiser deste conjunto, embora jamais possam ser
construídos todos esses números. Uma coleção infinita, como algo acabado, parecia
uma concepção ilícita aos olhos de Kronecker. Por isso os números reais não existiam
para Kronecker, que tentou edificar uma teoria própria dos diversos tipos de número.
“Deus nos deu os números naturais, e o resto é obra do homem”, afirmava
Kronecker. A tese de Kronecker denomina-se finitismo.

No início do século vinte, alguns matemáticos, como Poincaré, defendiam teses


similares às de Kronecker, embora menos radicais.
Quem levou as teses de Kronecker ao extremo, elaborando uma nova filosofia da
matemática, foi o topólogo holandês L.E.J. Brouwer, em torno de 1.908. Para ele os
números naturais nos são dados por uma intuição fundamental, que é o ponto de partida
de toda a matemática. Os intuicionistas remetem-se à Kant para a “intuição pura”
espaço-temporal, mas desenvolvem suas teses no efetivo labor matemático.

Para Brouwer os juízos matemáticos são sintéticos a priori: a intuição matemática


estrutura o material empírico, elabora-o, de modo a não precisarmos recorrer à
experiência externa para fundamentar as verdades matemáticas, o que lembra a Kant, ao
procurar justificar as concepções matemáticas apelando para o espaço e o tempo como
forma de intuição pura.

Brouwer insiste que a matemática não se compõe de verdades eternas, atemporais,


semelhantes às idéias platônicas. Para ele o matemático não descobre as entidades
matemáticas, é ele quem cria as entidades que estuda. A expressão “A existe” só pode
significar, em matemática, “A foi construído pela inteligência humana”. A atividade do
matemático cria e dá forma aos entes matemáticos. Para ele a matemática enquadra-se
na categoria das atividades sócio-biológicas, destinando-se a satisfazer certas exigências
vitais do homem.

Na base da matemática está o poder intuitivo fundamental da mente humana. Os


termos primitivos e os conceitos fundamentais fazem parte destas intuições primordiais.
Partindo destas evidências elementares, a matemática deve seguir um processo
construtivo, isto é, apoiar-se em afirmações das quais possa fazer demonstração.

Como os números são construções do intelecto, e o intelecto deve poder justificar


tudo o que construa, não se deve fazer afirmações sem demonstrações. Se se afirma a
existência de uma dada espécie de números, é preciso saber como construí-los, e, se
afirmações gerais sobre os números são feitas é necessário saber como demonstrá-las,
com apenas um número finito de passos. Os intuicionistas não aceitam o infinito atual.
Onde não chega o processo construtivo, não se pode fazer afirmações, e portanto é
preciso deixar o problema indeciso.

Sabemos que existe na matemática uma classe de afirmações, denominadas de


conjecturas, que se sabe serem verdadeiras, no sentido de que são válidas para todos os
números que se experimentaram, mas que não puderam ser nem demonstradas nem
refutadas. Um exemplo é a chamada conjectura de Goldbach: “todo o número par pode
ser expresso como a soma de dois números primos”.

Para os intuicionistas, que só admitem a verdade de uma proposição se puderem


demonstrá-la, a problemas deste gênero não se pode dar uma resposta definitiva; tais
proposições continuam indecisas. Consequentemente existem para os mesmos
proposições que têm um significado, mas que não são nem verdadeiras nem falsas. Por
este motivo refutam o “princípio do terceiro excluído”, no sentido de que além da
verdade ou falsidade de uma proposição existe a indecidibilidade. Recusam, portanto, o
célebre método usual da redução ao absurdo, de enorme aplicação no campo da
matemática clássica.

A principal crítica ao programa intuicionista é que, se levado ao extremo, de


forma radical, tornaria a matemática impossível. Amplos ramos desta ciência teriam que
ser abandonados. Uma filosofia correta e autêntica da matemática precisa estar de
acordo com o desenvolvimento real desta ciência, o que não ocorre com o
intuicionismo.

O formalismo originou-se das conquistas alcançadas pelo chamado método


axiomático. O método axiomático consiste em se escolher certo número de conceitos
básicos não definidos, conhecidos como conceito primitivos, suficientes para se edificar
sobre eles uma teoria axiomática, e algumas afirmações sobre estes conceitos, os
axiomas ou proposições primitivas, que também são aceitos sem demonstração. Em
seguida, passa-se a procurar as conseqüências do sistema assim obtido, sem se
preocupar com a natureza ou o significado inicial desses termos ou das relações entre
eles existentes. Resultados deduzidos deste sistema de conceitos primitivos e axiomas
são denominados de teoremas.

Para o formalista a matemática é a ciência das deduções formais, dos axiomas e


dos teoremas. Seus conceitos primitivos não são definidos. Suas sentenças (teoremas)
não têm conteúdo, até que lhes seja fornecida uma interpretação. Para ele a matemática
é um jogo de deduções lógicas, jogado com símbolos vazios de conteúdo. Os
formalistas afirmam que o matemático investiga as propriedades estruturais dos
símbolos (e, portanto, de todos os objetos) independentemente de suas significações.
Este método é uma invenção grega, sendo primeiro aplicado por Euclides em sua
obra “Os Elementos”. Porém, o método axiomático de Euclides não é inteiramente
satisfatório, porque o geômetra grego lança mão, em diversas oportunidades, de
suposições que não enunciou de modo explícito.

O método alcançou seu estado quase definitivo com a obra do analista alemão
David Hilbert, “Grundlagen der Geometrie” (Fundamentos da Geometria), publicada
em 1.899.

Para Hilbert qualquer sentença matemática (teorema), ou a sua negativa, poderia


ser demostrada, isto é, era decidível. O matemático poderia estudar qualquer sistema
simbólico, desde que o sistema não encerrasse contradições. Teria então inteira
liberdade: bastaria provar a consistência (isto é, a ausência de contradições) de uma
teoria matemática para torná-la inteiramente lícita. Criou, então, uma nova ciência: a
metamatemática, ou teoria da demonstração, cujo objetivo seria mostrar a consistência
das diversas teorias matemáticas.

Costa (1.980, p. 35) explica o procedimento indicado por Hilbert para se


demonstrar a consistência de uma teoria matemática:

1. Axiomatização: axiomatiza-se a teoria em pauta.


2. Formalização: formaliza-se a axiomática obtida, isto significa que seus
conceitos primitivos, os axiomas, relações e princípios lógicos são substituídos
por símbolos e arranjos simbólicos sujeitos a regras bem definidas, como as de
um jogo, o xadrez, por exemplo. Uma axiomática formalizada converte-se, em
resumo, numa espécie de jogo grafo-mecânico, efetuado com símbolos
destituídos de significação e regulado por meio de regras determinadas.
3. Demonstração da consistência desta axiomática: para esta axiomática procura-
se mostrar, mediante investigação de sua estrutura grafo-mecânica, a sua
consistência, evidenciando-se que não se poderá chegar jamais a arranjos
simbólicos contraditórios, se se operar de acordo com as regras estabelecidas.

Hilbert admitiu, para evitar as críticas dos intuicionistas, que na metamatemática


só se pudessem empregar métodos evidentes e construtivos, tendo por base a intuição
dos símbolos. Denominou a tais métodos de finitistas, os quais, no seu entender,
deveriam ser tão ou mais restritos que os empregados na aritmética intuicionista.
Diversos matemáticos importantes, como Curry, Ackermann, Bernays, Herbrand,
etc. seguem esta escola. Na França, há um grupo de matemáticos que escreve sob o
nome de Nicholas Bourbaki, cujas concepções se aproximam muito das de Hilbert.

Em 1.931, um jovem lógico-matemático, Kurt Göedel, publicou resultados


revolucionários, que abalaram profundamente o formalismo. Mostrou que qualquer
sistema formal consistente, suficientemente forte para conter a aritmética elementar,
seria incapaz de demonstrar a própria consistência. Além disso, mostrou que existem
proposições aritméticas, denominadas indecidíveis, tais que nem elas nem a sua negação
podem ser demonstradas na axiomatização da aritmética que se adotar. Portanto, em
qualquer axiomática consistente da aritmética existem sentenças indecidíveis, o que
dinamita a crença de Hilbert de que todas as sentenças matemáticas ou as suas negativas
podem ser demonstradas, ou seja, a Matemática não é completa.

Os trabalhos de Goëdel provaram que as demonstrações metamatemáticas de


consistência, como queria Hilbert, são geralmente impossíveis. Embora isto quase que
destruiu o corpo de doutrina hilbertiano, a estratégia formalista inegavelmente
contribuiu para o desenvolvimento da matemática.

Hoje se reconhece que não existe um único sistema racional denominado de


Matemática, as sim vários deles, que surgem conforme o conjunto de axiomas que se
adote para seus fundamentos. Do mesmo modo que não existe uma única Lógica, não
existe uma única Matemática, mas sim várias delas. Poderíamos adaptar os três
princípios propostos por Costa para a razão à Matemática: a) o princípio da
sistematização: cada sistema racional se expressa por meio de uma Matemática própria;
b) o princípio da unicidade: em um dado contexto, a Matemática subjacente é única; c)
princípio da adequação: a Matemática subjacente a um dado contexto deve ser a que
melhor se adapte a ele.

Com a falência dessas correntes, outras idéias sobre a natureza da Matemática


foram levantadas no transcorrer do século XX. Apresentaremos algumas delas.

Wittgenstein considerava a matemática como um jogo verbal, regido por regras.


Carnap, em sua obra “Logische Sintax der Sprache”(Sintaxe Lógica da Linguagem),
publicada em 1.932, recorre às idéias do positivismo lógico, do Círculo de Viena.
Influenciado pelas idéias de Wittgenstein, o Círculo rejeitou tanto a tese da realidade de
mundo externo como a da sua irrealidade como pseudo-problemas. Por isso, o problema
de saber se as fórmulas lingüísticas correspondem a entidades reais está fora de questão.
A formalização, para os positivistas lógicos, era defendida como o objetivo de
todas as ciências. A própria matemática era encarada não como uma ciência, mas como
uma linguagem para as demais ciências.

As idéias racionais são expressas por meio de palavras, logo, sem uma linguagem
processos racionais não podem ser transmitidos. O estudo da origem das línguas está,
portanto, intimamente ligado ao estudo da origem do pensamento racional,
conseqüentemente da Matemática. Inicialmente processos racionais eram comunicados
discursivamente. Somente em um estágio posterior, com a descoberta do pensamento
simbólico, é que essa comunicação passou a se efetuar de uma forma não verbal. Isso
implica igualmente em que a análise das origens do pensamento simbólico é
fundamental para quem deseja compreender as origens da Matemática.

Carnap afirma que as “entidades matemáticas” têm um valor lingüístico, falar de


uma sua existência autônoma para ele não faz sentido. Insiste no valor puramente
lingüístico das fórmulas matemáticas. Além disso, se se aceitam na linguagem formal as
“entidades matemáticas” também é preciso aceitar as proposições que as designam.

Em sua teoria lingüística da verdade lógica, Carnap apresentou a linguagem como


um análogo do sistema dedutivo formal: a linguagem tem regras de formação e de
transformação. As regras de formação englobam a gramática e o léxico: são os análogos
das regras do sistema dedutivo formal que especificam as notações do sistema (as
fórmulas bem-formadas, de Church). As regras de transformação englobam as verdades
lógicas e as matemáticas: são os análogos dos axiomas e das regras de inferência de um
sistema dedutivo formal. Portanto, para Carnap, a gramática e a lógica se encontram no
mesmo plano: cada linguagem tem sua gramática e sua lógica.

Embora as principais contribuições de Popper e Lakatos sejam no âmbito da


filosofia da ciência, iremos tentar apresentar a suas contribuições no que dizem respeito
à matemática. Popper procurou desenvolver uma filosofia de ciência alternativa ao
positivismo lógico.

Karl R. Popper distinguia três mundos ou universos: o primeiro, o mundo dos


estados físicos ou de estados materiais; o segundo, o mundo dos estados de consciência
ou de estados mentais; e, o terceiro, o mundo dos conteúdos objetivos do pensamento,
especialmente de pensamentos científicos, matemáticos, poéticos e de obras de arte. O
mundo das idéias, o terceiro mundo de Platão era divino, atemporal e imutável. O
terceiro mundo de Popper é feito pelo homem e mutável.

Contém não só teorias verdadeiras, mas também falsas e, especialmente,


problemas abertos, conjecturas e refutações. Pode-se encontrar neste terceiro mundo
problemas novos que lá figuravam antes de serem descobertos e antes mesmo de se
tornarem conscientes, isto é, antes de que qualquer coisa correspondente a eles
aparecesse no mundo dois.

“Popper afirmou que as teorias científicas não são deduzidas indutivamente dos
fatos; ao contrário, são inventadas como hipóteses, até mesmo adivinhações, e são então
submetidas a testes experimentais com os quais os críticos tentam refutá-las. Uma
teoria tem o direito de ser considerada científica, disse Popper, somente se é, em
princípio, capaz de ser observada e arriscar-se a ser refutada. Uma vez que uma teoria
tenha sobrevivido a tais testes, adquire certo grau de credibilidade, e pode ser
considerada experimentalmente estabelecida; mas nunca é demonstrada. Uma teoria
científica pode ser objetivamente verdadeira, mas nunca poderemos saber isto com
certeza.”(D&H, op.cit., p.387).

Imre Lakatos tenta mostrar que um programa semelhante ao estabelecido por


Popper, de quem é discípulo, é possível para a matemática. Em sua obra “Proofs and
Refutations”, publicada em 1.976, apresenta a matemática informal como uma ciência
no sentido de Popper, que cresce por um processo de críticas sucessivas, de refinamento
de teorias e do progresso de teorias novas e conflitantes. Procura mostrar que ela evolui,
mas não pelo modelo dedutivo da matemática formalizada. Não se preocupa com “os
objetos matemáticos” ou sua natureza.

Lakatos observa que o formalismo desconecta a filosofia da matemática da


história da matemática, pois para os formalistas a matemática não tem propriamente um
história, seria para estes apenas um conjunto crescente de verdades eternas e imutáveis,
no qual não podem entrar os contra-exemplos, as refutações ou as críticas. Lakatos,
portanto, insiste na historicidade da Matemática,
O objetivo da obra “Proofs and Refutations”, afirma Lakatos, seria: “Seu modesto
objetivo consiste em elaborar a idéia de que as matemáticas informais e quase-empíricas
não se desenvolvem mediante um monótono aumento do número de teoremas
indubitavelmente estabelecidos, senão que o fazem mediante a incessante melhora das
conjecturas, graças à especulação e às críticas, seguindo a lógica das provas e
refutações” (Lakatos, 1.978, p.21).

Carl G. Hempel em seu artigo “On the Nature of Mathematical Truth” (in
Newman, 1.956, p. 1.619 ss.), discorda da corrente que afirma que as verdades
matemáticas são “auto-evidentes”.

“Eu argumentei que a validade da matemática repousa não em seu alegado caráter
auto-evidente, nem em qualquer base empírica, mas sim deriva de estipulações as quais
determinam o significado dos conceitos matemáticos, e que as proposições da
matemática são assim essencialmente “verdadeiras por definição”(Hempel, in Newman,
1.956, p.1.622). Estipulações, para Hempel, são os axiomas e as definições de uma
teoria axiomática.

Hempel afirma que o desenvolvimento de uma teoria matemática principia com


um conjunto de axiomas, formulados em termos de certos conceitos básicos ou
primitivos, para os quais nenhuma definição é incluída na teoria. Uma vez que esses
conceitos estão estabelecidos, a teoria está completamente determinada, é deduzível de
sua base axiomática no seguinte sentido: todo o termo da teoria é definível em função
dos conceitos primitivos, e toda a proposição da teoria é logicamente dedutível dos
axiomas. Além disso, especifica os princípios de lógica que podem ser empregados nas
demonstrações de proposições, isto é, na suas deduções a partir dos axiomas.

Assevera Hempel: “... o inteiro sistema da matemática pode ser dito ser
verdadeiro em virtude de meras definições (dos termos matemáticos não primitivos)
desde que os cinco postulados de Peano sejam verdadeiros” (op.cit., p. 1.626).

Portanto, segundo Hempel, a matemática não se funda nem sobre a auto-evidência


nem sobre a experiência empírica, mas deriva das definições de seus conceitos: ela é de
caráter definitório (“true by definition”).

Não pode passar despercebida a sua ambigüidade acerca da natureza da


matemática. Se claramente exclui uma fundamentação empirista, oscila entre a
fundamentação intuitiva (os axiomas) e a convencional (que denomina de
“definicional”).

As filosofias acerca da mente podem ser divididas em duas categorias


abrangentes: as teorias dualistas e as teorias materialistas. Dualismo é uma filosofia
acerca da mente que considera a mente como uma substância não-física. Divide tudo o
que há no mundo em duas categorias diferentes: a mental e a física. O principal
problema com o dualismo é que não consegue explicar a interação causal entre o mental
e o físico. A interação física é fácil de aceitar, mas uma interação não-física é algo
obscuro e pouco palatável. Não é evidente como uma mente não-física poderia originar
quaisquer efeitos físicos (ou comportamentais) sem violar as leis de conservação de
massa, energia ou momento, isto é, as leis físicas.

Nas teorias materialistas o mental não é distinto do físico, ou seja, todos os


estados mentais (incluindo aqui os objetos matemáticos), propriedades, processos e
operações são, em princípio, idênticas com estados físicos, propriedades processos e
operações. Reduzem o nível mental ao físico, daí serem muitas vezes denominadas de
teorias reducionistas.

Leslie A. White, em seu interessante artigo “The Locus of Mathematical Reality:


An Antropological Footnote” (White, in Newman, 1.956, p. 2.363-4), publicado em
1.947, defende a idéia de que matemática é uma espécie de comportamento, é a resposta
que o homem faz a estímulos provenientes das idéias matemáticas presentes em sua
cultura. Afirma que o locus da realidade matemática é a tradição cultural, isto é, o
contínuo do comportamento simbólico. Conceitos matemáticos são independentes da
mente do indivíduo, mas jazem inteiramente dentro da mente das espécies, isto é, da
cultura. A invenção e a descoberta matemática são meramente dois aspectos de um
evento que toma lugar simultaneamente na tradição cultural e em um ou mais sistemas
nervosos. Destes dois fatores, a cultura é o mais significante; os determinantes da
evolução matemática residem aí. O sistema nervoso é meramente o catalisador que
torna o processo cultural possível.

Surgem aqui idéias inovadoras, que procuram acentuar o aspecto social da


Matemática, bem como suas características antropocêntricas. Durante as décadas de
1.970 e 1.980 principiou-se a mencionar “outras Matemáticas”, em oposição à
Matemática Acadêmica tradicional. Surgem as “Matemáticas” de determinadas culturas
ou grupos sociais. Citaremos algumas3, sem entrar em detalhes: a Matemática Indígena,
de Gay e Cole; a Sociomatemática da África, de Zalavsky; as Matemáticas Informais,
de Posner; as Matemáticas no Ambiente Sócio-Cultural [da África], de Touré e
Doumbia; as Matemáticas Espontâneas, de D´Ambrosio; as Matemáticas Orais, de
Carraher, seguido por Kane; as Matemáticas Oprimidas, de Gerdes; as Matemáticas
Não-Convencionais (non-standards), de Carraher, Gerdes, Harris; as Matemáticas
Ocultas ou Congeladas, de Gerdes; as Matemáticas Folclóricas, de Mellin-Olsen;

Essas idéias receberam um denominador comum através do programa


Etnomatemática, criado por Ubiratan D´Ambrosio, em 1.985.

D’Ambrosio, denomina de “etnomatemática à matemática a qual é praticada por


grupos culturais identificáveis” (1.997, o artigo original é de 1.985, p.16). Propõe um
amplo entendimento do conceito de ethnos, de modo a incluir os jargões, códigos,
símbolos, mitos e mesmo modos específicos de raciocínios e inferências desses grupos
no estudo de sua etnomatemática. Abrange, portanto, um conceito ampliado da
matemática, de modo a incluir processos como contagem, localização geográfica
(mapas), medições, jogos, explicações etno-racionais, ou mesmo processos divinatórios.

Etnomatemáticos chamam a atenção para que a Matemática, com suas técnicas


e verdades, é um produto cultural, desse modo todo povo, toda cultura ou sub-cultura,
desenvolve sua própria Matemática.

WEYL, já em 1.944, notava que matematizar pode bem ser uma atividade
criativa do homem, como linguagem ou música; uma atividade do seu pensamento,
melhor apreciada historicamente (KLINE, 1.980, p. 318).

D’AMBROSIO, apontando que o conhecimento, que é gerado pela necessidade


de uma resposta a problemas e situações distintas, está subordinado a um contexto
natural, social e cultural, resume magistralmente:
“… em todas as culturas encontramos manifestações relacionadas, e mesmo identificadas, com o
que hoje se chama matemática (isto é, processos de organização, de classificação, de contagem,
de medição, de inferência), geralmente mescladas ou dificilmente distinguíveis de outras formas
[de conhecimento], que hoje são identificadas como Arte, Religião, Música, Técnica, Ciências.
Em todos os tempos e em todas as culturas, Matemática, Artes, Religião, Música, Técnicas,
Ciências foram desenvolvidas com a finalidade de explicar, de conhecer, de aprender, de

3
Cf. Gerdes, in POWELL & FRANKENSTEIN, 1.997, p. 337.
saber/fazer e de predizer (artes divinatórias) o futuro. Todas aparecem mescladas e
indistinguíveis como formas de conhecimento, num primeiro estágio da história da humanidade e
na vida pessoal de cada um de nós” (D’AMBROSIO, 2.002, p. 60 e s.).

Todas essas formas de conhecimento são produtos do pensamento racional do


ser humano, e são consideradas como expressão do comportamento do homem
moderno.

Feyerabend, em seus últimos escritos (1.996), afirma:

“... a ciência é uma história, não um problema lógico (p.111). (...) “Não há um [único] senso
comum, mas vários (...). Tampouco há somente uma [única] forma de conhecimento – ciência -,
mas muitas e (antes de serem destruídas pela Civilização Ocidental) elas eram eficazes no
sentido de que mantinham as pessoas vivas e tornavam compreensíveis suas existências “
(p.151).

A razão, ensina COSTA (1.980), é a faculdade pela qual concebemos, julgamos


e raciocinamos, isto é, refletimos, pensamos. Caracteriza-se por duas funções:

a) função ou razão constitutiva: é a faculdade que forma conceitos e constitui as


categorias; ou seja, os conceitos-chave do pensamento cognitivo em geral; coordena os
dados da experiência, fornecendo os moldes subjacentes a todo o pensamento objetivo;

b) função ou razão operativa: é a faculdade de combinar conceitos, julgando ou


inferindo.
O conhecimento positivo se efetua mediante conceitos basilares e gerais, como
os de objeto, de relação, de causa, de espaço e de tempo, que a razão elabora com apoio
na experiência, mas extrapolando-a. As duas fontes desse conhecimento, em particular
do conhecimento científico, são a razão e a experiência, sendo que a razão constitutiva
nos permite ordenar os dados empíricos, e a operativa nos permite estender os marcos
da experiência, possibilitando-nos, por exemplo, edificar as ciências lógico-
matemáticas.
O homem, em busca do conhecimento, emprega em seu cotidiano grupos de
processos racionais, ou seja, grupos de processos regidos pela razão. Esses processos
são contingentes, baseados no empírico, no real. Podemos listar, entre outras, as
seguintes categorias desses processos: organização: comparação, ordenação,
classificação; quantificação: contagem, medição, pesagem; descrição (desenho, pintura,
escultura); formalização (simbolismo); combinação (operações); relação; causação;
lógicos: indução, dedução.
Essa lista não pretende ser exaustiva, nem esses processos são exclusivos da
Matemática. Esta os compartilha com os demais ramos do conhecimento humano, como
as Ciências, Técnicas, Artes, e mesmo a Música ou a Religião.

Buscaremos agora uma conceituação operacional de atividade matemática, que


nos permita, de um modo pragmático, distingui-la das demais atividades racionais
cotidianas do ser humano.

Para os propósitos do presente trabalho, é útil conceituarmos Matemática como


a ciência que emprega entes ou objetos tais como retas, curvas, figuras, sólidos
geométricos (por exemplo, quadrados, losangos, círculos, espirais, cubos, esferas,...),
números, vetores, operadores, etc.; conceitos, que exprimem relações entre estes
objetos, tais como distância, paralelismo, simetria, periodicidade, frações, raízes, etc.; e
processos racionais, tais como contagem, cálculo, construção, indução, dedução. A
esses entes, conceitos e processos denominaremos de matemáticos.

Chamamos a atenção particularmente para os processos matemáticos construtivos,


particularmente as construções geométricas, de especial interesse para nossa pauta. A
moderna corrente construtivista ou intuicionista sobre os fundamentos da matemática,
capitaneada por BROUWER, prescreve que somente objetos matemáticos que possam
ser construídos devam ser aceitos como realmente integrantes da Matemática. Para os
adeptos dessa corrente, uma entidade matemática só existe se puder ser construída; e a
própria Matemática é produto de atividades de construções intuitivas4. Para essa
corrente, portanto, não existe Matemática sem matemáticos.

Foi o emprego da razão constitutiva que permitiu ao homem identificar no mundo


empírico os entes de interesse para a Matemática, bem como propiciou a ordenação
deles e a formulação dos conceitos-chave desta; já o emprego da razão operativa lhe
permitiu erigir o arcabouço desta ciência.

Qualquer ser humano que utilize, de modo consciente e racional, entes, conceitos
e processos matemáticos estará, portanto, matematizando, ou seja, praticando uma
atividade matemática. Passemos agora a analisar as correntes filosóficas mais modernas
sobre a natureza a matemática.

Lembramos que nas teorias materialistas o mental não é distinto do físico, ou seja,
todos os estados mentais (incluindo aqui os objetos matemáticos) são idênticos a

4
Para detalhes consultar KÖRNER (1.985) e também COSTA (1.980).
estados físicos. Como elas procuram reduzir o nível mental ao físico, são também
cognominadas de teorias reducionistas. Entre essas destacamos a neuronalista,
impulsionada a partir de 1.980 principalmente por Jean Pierre Changeux e Stanilas
Dehaene.

Changeux pode ser considerado um precursor neste ramo de pesquisas. Publicou


as suas idéias em 1.983, no seu livro “O Homem Neuronal”. Ninguém melhor que o
próprio Changeux para explicar a sua concepção:

“O objeto mental é identificado com o estado físico criado pela entrada em ação (elétrica e
química), correlacionada e transitória, de uma grande população ou “reunião” de neurônios
distribuídos por diversas áreas corticais bem definidas. Este conjunto, que matematicamente se
descreve por um grafo (mapa), é “descontínuo”, fechado e autônomo, mas não homogêneo. É
constituído por neurônios que apresentam diferentes peculiaridades adquiridas durante o
desenvolvimento embrionário e pós-natal. O bilhete de identidade da representação é inicialmente
determinado pelo “mosaico” (grafo) de peculiaridades e pelo estado de atividade (número,
freqüência dos impulsos que o atravessam)” (Changeux, 1.985, p; 144).

Como os objetos matemáticos corresponderiam assim a estados físicos do cérebro,


seria possível visualizá-los externamente mediante técnicas de neuroimagem, como
tomografia computadorizada (CT), ressonância magnética (MR), tomografia por
emissão de pósitrons (PET) ou ressonância magnética funcional (fMRI). Com o
crescente incremento na resolução dessas técnicas, elas hodiernamente vêm se tornando
os principais instrumentos na pesquisa de como os objetos matemáticos são produzidos
no cérebro.

Nessa teoria pela primeira vez na História da Matemática o cérebro do


matemático não é considerado como uma caixa preta, mas se propõe levar em
consideração o seu modo de funcionamento, sua fisiologia, na busca da explicação para
a origem dos objetos matemáticos. É nessa direção em que as pesquisas mais recentes
sobre a natureza desses objetos parecem se orientar.

As opiniões mais recentes5, com as quais compartilhamos, afirmam que mesmo se


a matemática tivesse uma existência fora dos nossos cérebros, como preconizada pelos
realistas, a única matemática que nos será permitido conhecer é a criada por seres
humanos, equipados com cérebros humanos.

5
Cf. De Cruz, Lakoff, Nunez.
Isso parece ser uma limitação inerente ao gênero homo, tal como sua
impossibilidade de visualizar integralmente objetos pertencentes a espaços com
dimensões superiores a três.

Nos fins do século XX várias correntes foram propostas para substituir as já


clássicas, a saber, o platonismo, o logicismo, o formalismo e intuicionismo. Entre elas
podemos citar o funcionalismo, o estruturalismo, o behaviorismo, a “o “quanticismo”, o
“informacionismo” e outras. Embora contribuam com algumas idéias originais,
nenhuma parece ter se firmado ainda. Não nos aprofundaremos em seu estudo, pois isto
foge ao escopo desta obra.

Recentemente surgiu uma corrente que vem sendo denominada de construtivismo


social, entre cujos defensores podemos citar Paul Ernest e Reuben Hersch. Afirma que
os objetos matemáticos são construídos pela comunidade dos matemáticos, não são nem
mentais nem físicos, são entidades sociais. Hersch defende que a nossa intuição dos
objetos matemáticos provém de nossa educação. Esta corrente na realidade se alinha
com as idéias de D’Ambrosio e Lakatos.

Uma crítica a essa corrente é que não distingue entre fatos ou objetos matemáticos
e o nosso conhecimento desses fatos. Um fato matemático seria, por exemplo, que a
função x2 é uma função par. A comunidade matemática não pode alterar esse fato, não é,
portanto, uma realidade histórico-social-cultural. É o conhecimento desse fato que é um
construto histórico-social-cultural. De certa forma, esta crítica retoma as idéias do
platonismo acerca de objetos matemáticos enquanto ideais, contrapondo-os ao seu
conhecimento.

Para encerrarmos nosso resumo panorâmico acerca da filosofia da matemática,


discorreremos um pouco sobre a atitude pragmática adotada por muitos matemáticos
modernos.

Deixamos propositalmente esta corrente para o final. Porém, isto não significa que
a atitude pragmática só recentemente começou a se desenvolver. Pelo contrário, está
presente há muito tempo no comportamento dos matemáticos.

Se tomarmos qualquer disciplina da matemática, como por exemplo, a aritmética


axiomatizada pelos postulados de Peano, para apreciarmos seus fundamentos devemos
distinguir três planos:
1) a estrutura simbólica da aritmética: plano sintático;
2) as categorias de objetos aos quais as leis aritméticas se aplicam ou podem se
aplicar: plano semântico;
3) determinados princípios e noções que implicam a consideração do matemático
como o “criador”, o manipulador em última análise da aritmética: plano
pragmático.
Sendo a matemática uma criação humana, é sujeita a todas as limitações
inerentes às realizações essencialmente humanas.

O matemático, enquanto ser humano, está interessado em sua obra, na aceitação


da mesma pelos seus colegas e pela sua comunidade acadêmica. Tem noção de que
existiu uma “crise nos fundamentos” da matemática, de que os “objetos matemáticos”
devem ter alguma origem, mas como isso não interfere na sua labuta matemática
cotidiana, prossegue em frente, deixando essas preocupações “para os especialistas”. Na
sua visão, “matemática” é o que faz diariamente.

Para ele, dado um problema o que importa é sua solução. Qual a escola que deve
adotar? O logicismo, o intuicionismo ou o formalismo? “Qualquer coisa serve”, nas
palavras da conhecida sentença de Feyerabend:

“Não existe regra única, por mais plausível que seja e por mais alicerçada que esteja na
epistemologia, que não possa ser violada de um momento para outro. Tais violações não são eventos
acidentais ... Pelo contrário, são necessárias ao progresso... Só existe um princípio que pode ser defendido
em todas as circunstâncias, e em todos os estágios do desenvolvimento humano. É o princípio: Qualquer
coisa serve [desde que produza resultados]” (Feyerabend, apud Kneller, 1.980, p.79).

A principal obra de Feyerabend é seu livro “Contra o Método”. A tese central


desta obra é que se a ciência dispõe de um “método científico”, então bastaria
somente a sua diligente aplicação para que infalivelmente se obtivesse notáveis
progressos, o que obviamente não é verdade. Daí, portanto, defende o princípio do
pragmatismo, de que, em ciência, qualquer coisa serve, desde que produza resultados.

Para o matemático pragmático pouco importa que existam problemas com os


fundamentos, com a natureza dos objetos matemáticos ou da própria matemática, desde
que não interfiram com a sua prática. Estes problemas seriam como o “esqueleto no
armário” da matemática. Todos conhecem sua existência, demonstram certo temor pelos
mesmos, porém continuam em frente, fingindo que não existem.

Para ele, o problema das ciências matemáticas puras resume-se assim: dado um
conjunto de axiomas e convenções metalingüísticas (sintáticas, semânticas e
pragmáticas), que definam uma linguagem objeto ideal, procurar as conseqüências de
tais suposições.

O matemático típico, assegura a maior parte dos estudiosos do assunto, é ao


mesmo tempo um platonista e um formalista, qual Jano, o deus romano de rostos
opostos. É a sua atividade cotidiana que lhe sugere qual face adotar. É, portanto, antes
de tudo, um pragmático.

Metodologia dos argumentos

Para se compreender as diversas facetas das origens da Matemática precisamos,


como constataremos na seqüência, arar em diversos campos do conhecimento.
Necessitamos dos esforços conjuntos de diversas ciências, como a arqueologia, a
antropologia e a paleoantropologia, a sociologia, a psicologia e a paleopsicologia, a
etnografia e a etnologia, a paleografia, a neurologia e a neurofisiologia, a lingüística, a
genética e muitas outras. Igualmente não podemos prescindir dos ensinamentos de
diversas técnicas, como a cestaria, a têxtil, a técnica da tatuagem, a da feitura de
artefatos líticos, etc.

No estudo de suas origens imergiremos profundamente na pré-história. Cabe,


aqui, emitir um caveat quanto aos argumentos que, forçosamente, necessitaremos
empregar. O cientista moderno está acostumado com o método dedutivo, onde os
argumentos são encadeados em seqüência para que se atinja uma conclusão. Se um
desses argumentos falha, toda a seqüência é invalidada e, por conseguinte, também a
conclusão. Pode-se pensar nesses argumentos como elos de uma corrente: se um se
romper, a corrente cede. Ela também é tão fraca quanto for o mais débil de seus elos.
Presentemente filósofos da ciência entendem que o entrelaçamento de diversos
fios de evidência constitui um método de construir explicações mais próximo da
atividade científica moderna do que o da seqüência linear de argumentos mencionado.
Podemos imaginar esses fios de evidência se entrelaçando, formando como que um
cabo, uma corda, Se um desses fios se romper a corda ainda mantém sua capacidade de
resistir, ao contrário da corrente. Nesse modo de raciocinar, se um fio de evidência
ceder, ou seja, se um argumento não se mostrar verdadeiro, ainda assim a conclusão se
sustenta.

Alison Wylie advoga a aplicação desse método de “encordoamento”


argumentativo na arqueologia que, por sua natureza, é o protótipo da ciência de
evidências exíguas.

É esse o método de proceder que advogamos empregar no estudo das origens da


matemática, garimpando fios de evidência em diversos ramos do conhecimento e
entretecendo-os, de modo a procurar reconstituir seu arcabouço original.

De um ponto de vista atual, faz-se imprescindível a História da Ciência encarar


seu objeto, a ciência, como um empreendimento humano, portanto indissociável de suas
condições sociais, econômicas e culturais. É necessário adotar uma conceituação mais
ampla, mais frutífera, de ciência em seu contexto, como ferramenta analítica para
investigações históricas (RENN, 1.995). Essa nova ótica transcende a tradicional, de
meramente proceder a uma descrição narrativa da história das idéias.

RENN encara a Epistemologia Histórica como espaço para a exploração de todas as


dimensões relevantes do conhecimento científico. Entre suas atribuições, relaciona a
reconstrução das estruturas cognitivas centrais do pensamento científico, o estudo da
dependência destas estruturas de sua base experimental e de suas condições culturais, e o
estudo da interação do conhecimento individual com os sistemas institucionalizados de
conhecimento.
RENN (op. cit) analisa igualmente outro importante conceito para o estudo da
História da Ciência, o de sistema cultural de conhecimento. Por um sistema cultural de
conhecimento entende “o conhecimento disponível em dada cultura ou sociedade,
compreendendo as estruturas cognitivas de pensamento, as formas materiais de sua
representação externa, tão bem como as formas de sua transmissão social”.
Para o desenvolvimento da ciência, principalmente em seus primeiros estágios, não
apenas contribuíram os trabalhos individuais de gênios como Arquimedes, Euclides,
Galileu, Newton, Einstein, para citar apenas alguns poucos, mas também fatores
contextuais diversos, tais como o pano de fundo religioso, a aplicação da matemática em
atividades práticas, o emprego da matemática para a descrição de leis naturais, a
emergência de novas instituições, o jogo entre ciência e poder, e muito outros. A ótica
tradicional raramente considera o avanço da ciência como um processo dentro de um
sistema cultural de conhecimento, no qual esses autores são protagonistas participantes,
sujeitos às condições impostas pelo seu meio.

RENN (id.) levanta diversos pontos que podem ser aplicados a uma avaliação de
determinado episódio da história da ciência sob a ótica da epistemologia histórica, entre os
quais:

1.) A história da ciência requer a elaboração de projetos que envolvem estudos


longitudinais do desenvolvimento científico. Reconhece que estudos longitudinais sobre a
história das estruturas fundamentais de conhecimento, que concebem estas estruturas não
somente como propriedades de alguns poucos grandes indivíduos, mas como parte de um
conhecimento socialmente transmitido e partilhado, ainda são a minoria. Estes estudos
devem acompanhar o desenvolvimento de um determinado conceito científico, não apenas
como uma idéia desincorporada, mas como idéia inserta em seu contexto cultural e social.
Os cientistas cognitivos reconstruíram estruturas inferenciais do pensamento cotidiano, por
exemplo, no caso de raciocínios qualitativos sobre processos físicos, surpreendentemente
poderosas e profícuas. Tais estruturas são organizadas em “modelos mentais” que provêem
o substrato para o pensamento sobre processos, físicos, por exemplo, mesmo em presença
de uma teoria desenvolvida, porque eles são necessários para relacionar os construtos
teóricos da teoria com os objetos materiais com que a teoria deve lidar.

2.) Um único modelo mental pode servir para diferentes teorias científicas. Às vezes a
História da Ciência tradicional tende a negligenciar a importância dessas profundas
estruturas de conhecimento que, por se enraizarem em modelos mentais do dia-a-dia,
tendem a ser menosprezadas, o que pode acarretar limitações em explicações históricas.
3.) Embora o conhecimento prático dos cientistas (ou engenheiros) da antigüidade não
fosse cabalmente embasado em teorias cientificas (a mecânica, p.ex.), ele não era
completamente vazio de estruturas cognitivas, tais como as que governam o pensamento
cotidiano. Se essas estruturas puderem ser descritas e analisadas como modelos mentais,
elas podem ser sistematicamente comparadas com aquelas que compõem o substrato dos
trabalhos científicos contemporâneos. Os processos de pensamento dos construtos teóricos
das ciências são saturados de conhecimentos empíricos, que não podem, na maioria das
vezes, ser constatados ou deduzidos de fontes históricas.
4.) Existe uma interação dos desenvolvimentos científicos localizados, concentrados,
ou no tempo ou no espaço, ou socialmente ou culturalmente, e o desenvolvimento global
da ciência. É uma interação estrutural sutil, que somente estudos de amplo escopo talvez
possam revelar.
A Epistemologia Histórica de RENN, a nosso ver, propugna para as ciências o
mesmo que o movimento Etnomatemática de D`AMBROSIO propõe para a matemática,
ou seja, o estudo da disciplina dentro do seu contexto histórico sócio-cultural, e este é o
direcionamento que adotaremos para nossos estudos.
CAPÍTULO II

HISTÓRIA E PRÉ-HISTÓRIA

"I wish I knew as much as I tought I


knew 10 years ago".

O. Neugebauer

Conceituação de História e Pré-História

É costume estabelecer a distinção entre história e pré-história, encarando-se a


história como a descrição dos fatos ocorridos após a invenção da escrita e mediante esta.
Fatos históricos seriam, portanto, fatos registrados por escrito. Este modo de se
estabelecer a dicotomia história-pré-história, embora tradicional, encerra deficiências,
que geram mal-entendidos. Um dos problemas é que não estabelece linha divisória
temporal.

Por exemplo, se definirmos como 3.000 a.C. essa fronteira no tempo, válida em
todo o globo, fatos ocorridos antes desta data seriam pré-históricos; depois históricos.
Essa data mais ou menos coincide com a invenção da escrita pela humanidade. Como
essa divisória não existe na realidade, embora vivamos hoje em plena era da
informatização, das missões espaciais, dos engenhos nucleares, portanto na era
histórica, coexistimos com povos pré-históricos, como os silvícolas da floresta
amazônica, os aborígines da Austrália e Nova-Zelândia, entre outros. Logo, história e
pré-história, nesta acepção, podem ser contemporâneas.

A descoberta da escrita, segundo opinião amplamente aceita pela comunidade


erudita, foi obra dos sumérios, pouco antes de 3.000 a.C.. Logo depois, os elamitas e os
egípcios passaram a fazer uso dela; portanto, no alvorecer do terceiro milênio antes da
nossa era, somente esses eram povos históricos, na acepção indicada da palavra; a
Europa e o resto do mundo se encontravam imersos na pré-história.
O pensamento ocidental, antes do século XIX, não tinha consciência de que
pudesse ter existido uma pré-história; a visão imperante era de que o mundo tinha sido
criado por Deus, em um evento até datável. De acordo com o Arcebispo James Ussher
(1.581-1.656), esse evento miraculoso ocorreu em 4.004 a.C. Posteriormente, o Bispo
John Lightfoot refinou os cálculos de Ussher, anunciando que mundo tinha sido criado
às nove horas do dia 23 de outubro de 4.004 a.C.. De qualquer maneira, todos
acreditavam que a história humana principiava miraculosamente em um momento não
tão distante.

Essa visão somente começou a se alterar quando Sir Charles Lyell (1.797-
1.875), professor de geologia do King´s College, em Londres, publicou seu
imensamente importante “Principles of Geology” em 1.830, onde afirmava que as
camadas das rochas sedimentares e os fósseis que elas continham indicavam uma
antiguidade da terra até então insuspeitada. Essas opiniões incomodaram cristãos
fundamentalistas e alguns geólogos, que insistiam que os fósseis eram os remanescentes
de um período antediluviano, desse modo constituíam-se em testemunhos confirmativos
da história bíblica do dilúvio e da arca de Noé.

Em 1.836 arqueólogos dinamarqueses propuseram a divisão da antiguidade da


espécie humana nas Idades da Pedra, do Bronze e do Ferro, até hoje adotadas. Boucher
de Perthes, em 1.837, afirmou que os objetos feitos com pedra lascada que encontrara
no solo da França eram antigos e feitos pelo homem. Durante mais de vinte anos
permaneceu desacreditado, até que, em 1.859, John Evans e Joseph Prestwich, geólogos
da Royal Society, foram visitá-lo na França e reconheceram a veracidade de suas
afirmações. Com isso nascia oficialmente o estudo da pré-história do homem, e o seu
conceito como fabricante de ferramentas.

Em 1.844 Robert Chambers, em seu “Vestiges of the Human History


Creation”,delineou a história do mundo desde seu princípio, em uma nuvem gasosa,
continuando através do seu registro fóssil até a transmutação de macacos em seres
humanos. O que faltava no esquema de Chambers era um mecanismo que explicasse as
transformações que descrevia.

Esse mecanismo, a evolução, foi proposto por Charles Robert Darwin (1.809-
1.882), em seu livro “On the Origin of Species by Means of Natural Selection”,
publicado em 1.859. A frase “a sobrevivência dos mais aptos”, que resume essa teoria,
foi cunhada pelo filósofo inglês Herbert Spencer, em 1.865, o que foi reconhecido por
Darwin em sua edição de 1.869 da Origin of Species.

Em 1.865, Sir John Lubbock, Lord Avebury, publicou o seu imensamente popular
livro “Prehistoric Times”, onde subdividiu a Idade da Pedra em duas, cunhando assim
os termos Paleolítico e Neolítico.

Entre 1.856-1.857 foram encontrados perto do rio Neander, entre Dusseldorf e


Elberfeld na Alemanha, os primeiros exemplares fósseis do homem de Neandertal. O
zoólogo e anatomista prussiano Herman Schaffhausen reconheceu neles um homem
primitivo, o que não foi aceito pelo saber acadêmico dominante, pois esta criatura não
poderia ser um homem normal, mas sim um idiota, um doente, um quase-macaco, um
celta pré-cristão ou uma forma primitiva de homem, que então se acreditava existir em
tribos primitivas da África ou Austrália. Darwin não estava bem certo de como este
achado se encaixava em seu esquema da evolução do homem a partir do macaco, e a
procura pelos elos perdidos da cadeia da evolução humana continuou.

Um desses elos foi encontrado onze anos após a morte de Darwin, por Eugène
Dubois. Escavando em um velho leito do Rio Solo, em Java, onde nativos tinham
achado “restos de gigantes”, encontrou ossos de uma criatura semelhante a um macaco,
mas que caminhava ereto, à qual denominou de Pithecanthropus erectus, o homem
macaco ereto. Cognominado de Homem de Java, presentemente foi renomeado como
Homo erectus e incluído na escala evolutiva humana, longe do macaco. Esse achado
provocou tal onda de furor, alimentada principalmente pela Igreja, que Dubois trancou
os ossos em um cofre na Holanda, onde permaneceram ocultos e não estudados até o
século vinte.

Para os nossos propósitos, podemos dividir em três períodos a parte da pré-


história conhecida como Idade da Pedra, a etapa em que o homem empregou
ferramentas de pedra:

1. O Paleolítico, que se divide em inferior, médio e superior. O superior é


período das magníficas pinturas nas cavernas da Espanha e do sul da França.

2. O Mesolítico, que é período intermediário, frio, quando a civilização


estava em um baixo nível, se comparada com o período antecedente e o
subseqüente.
3. O Neolítico, caracterizado por ferramentas de pedra extremamente
bem elaboradas, por cerâmica de bom acabamento, e pelo desenvolvimento da
agricultura, da navegação e da arquitetura megalítica.

A duração desses períodos varia em cada parte do mundo. Na Europa, o


Paleolítico Inferior se estendeu dos primórdios da raça humana lá localizada, algo entre
três e um milhão de anos, até cerca de 220.000 anos atrás, quando começou o
Paleolítico Médio, que durou até 45.000 anos antes do presente. O Paleolítico Superior
abrange o período de 45.000 a 10.000 anos atrás, quando principia o Neolítico. Na
África, o Paleolítico Médio é denominado de Idade da Pedra Média, e o Paleolítico
Superior de Idade da Pedra Tardia. Na Europa (ocidental e central), o último período do
Neolítico, o Calcolítico, começa em torno de 2.500 a.C. e é caracterizado pelo
aparecimento do cobre. Depois desta data, por volta de 2.000 a.C. começa a Idade do
Bronze. É importante observar que essas datações são apenas aproximadas, e podem
variar de autor para autor.

A propósito, os autores modernos empregam principalmente duas formas de


indicação de datações: a primeira, conta as datas a partir do início da era cristã,
considerada a nossa era; as datas anteriores são denotadas a.C. (antes de Cristo) e
posteriores d.C. (depois de Cristo). A segunda, introduzida a partir das datações com o
C-14, tem como referência básica o ano de 1.950, as datas anteriores são denominadas
de antes do presente (a.p.; ou B.P.-Before Present, em inglês).

O estudo das jazidas líticas do Paleolítico Superior da Bélgica, França e Espanha


permitiu estabelecer uma seqüência cronológica que se estende até 8.000 anos antes da
nossa era. As divisões dessa seqüência e suas denominações foram objeto de várias
controvérsias, sendo que até hoje encontramos denominações diferentes conforme a
região geográfica a que se refiram, e mesmo conforme o autor adotado. Indicamos, a
seguir, as divisões adotadas por Leroi-Gourhan (1.971), seguidas por boa parcela dos
pesquisadores modernos. As datas indicadas são antes da nossa era, portanto a.C.. Para
datações antes do presente (B.P.), acrescentar aproximadamente 2.000 anos. Convém
relembrar que as datas são aproximadas e podem variar conforme o autor adotado.
Divisões do Paleolítico Superior

8.000

Epimagdaleniano ou Epipaleolítico; Magadaleniano recente

11.000

Magdaleniano Médio (ou Antigo, conforme o autor)

13.000

Inter-Solutreo-Magdaleniano (Magdaleniano Antigo ou

Protomagdaleniano ou Badeguliano)

15.000

Solutreano

18.000

Proto-Solutreano

20.000

Gravetiano

27.000

Aurignaciano

30.000

Chatelperroniano

35.000

Formas finais do Levallois-Mousteriano

45.000

É útil conhecermos também as divisões do Terciário, que são as seguintes:


Pleistoceno (0-2 milhões de anos atrás – Ma); Plioceno (2-5 Ma); Mioceno (5-23 Ma);
Oligoceno (23-34 Ma); Eoceno (34-56 Ma); Paleoceno (56-65 Ma).
As primeiras peças pré-históricas descobertas foram pequenos objetos decorados
que as pessoas podiam carregar. Esta arte portátil (art mobilier) é representada por
contas, pendentes, propulsores decorados, estatuetas, peças chatas de pedra decoradas
(plaquetas), bastões, etc., feitas com os materiais então disponíveis, como pedras, ossos,
dentes, chifres, conchas, marfim e mesmo âmbar.

Em 1.879, Don Marcelino Sanz de Santuola, com sua filha Maria, começou a
explorar uma caverna na sua propriedade em Altamira, na costa norte da Espanha,
procurando peças de art mobílier, com os olhos fixos no chão. Maria, olhando para
cima, descobriu os hoje famosos bisões pintados no teto da caverna, que se constituem
nos primeiros exemplos reconhecidos da arte parietal,ou seja, de pinturas, desenhos ou
esculturas executadas nas paredes, tetos ou recônditos de cavernas ou abrigos.
Inicialmente essas pinturas foram consideradas uma fraude, somente foram aceitas
como verdadeiras quando o Abade Henri Breuil, então conhecido como o “papa da pré-
história”, as certificou como legítimas obras de arte pré-históricas.

Gordon Childe (1.892-1.957) foi um influente arqueólogo australiano, que


adotava perspectivas marxistas. Seguindo a teoria marxista-socialista, propôs que a
sociedade era conduzida por sua visão materialista e que, na qual, através de processos
evolucionários, “contradições” se desenvolviam, as quais eram resolvidas por períodos
relativamente repentinos de mudança: Revoluções. Assim, descreveu a mudança do
Paleolítico para o Neolítico como a Revolução Neolítica, iniciando deste modo uma
corrente de pensamento arqueológico acerca do processo dos seres se tornarem
humanos. Do mesmo modo, propôs uma Revolução Urbana.

Seguindo as pegadas de Childe, pesquisadores modernos denominaram a


transição do Paleolítico Médio para o Paleolítico Superior de Revolução do Paleolítico
Superior, ou, mais dramaticamente, de Revolução Criativa ou Revolução Simbólica.

Técnicas de Datações

É interessante conhecermos um pouco como são feitas as datações pré-


históricas. O método da datação radiocarbônica foi desenvolvido por Willard F. Libby,
americano, em 1.946, pelo qual foi agraciado com o Prêmio Nobel de Química de
1.960. Baseia-se no fato de que toda a planta, durante a sua vida, assimila átomos de
carbono da atmosfera. Além disso, a razão entre o isótopo radioativo C-14 e o carbono
normal C-12 da planta é a mesma que a encontrada na atmosfera. Quando a planta
morre, a quantidade de C-14 decresce segundo a lei da desintegração radioativa, bem
conhecida dos físicos.

Conhecendo estes fatos, Libby divisou duas hipóteses: primeiro, admitiu que a
meia-vida do C-14 é de 5.568 anos; segundo, que a razão entre o C-14 e o C-12
existente na atmosfera se tem mantido constante, desde os remotos tempos pré-
históricos até a explosão da primeira bomba atômica. Admitindo-se essas hipóteses
como verdadeiras, pode-se, medindo-se a sua radioatividade, estimar a idade de
qualquer material orgânico encontrado em escavação.

Infelizmente as hipóteses de Libby mostraram-se apenas aproximadas. Na


realidade, a meia-vida do C-14 é cerca de 3 % maior que a estimada, e a concentração
de C-14 na atmosfera é variável. Isso acarretou que as datas verdadeiras eram, em
muitos casos, mais antigas que as estimadas por Libby. No terceiro milênio antes da
nossa era, período de fundamental importância para o nosso estudo, esta diferença pode
importar em vários séculos.

Tornou-se necessário corrigir essas datações. O método que se emprega é o dos


anéis de crescimento das árvores. A cada ano de idade, as árvores agregam um anel no
caule. Comparando-se seqüências de anéis de crescimento da árvores de longa vida,
como as sequóias, estabeleceu-se uma cronologia que pode ser empregada para corrigir
as datações radiocarbônicas. Tábuas de correção foram
elaboradas.

Como as sequóias (Sequoiadendron giganteum)


habitam em regiões semi-úmidas, o dendrocronologista
Edmund Schulman começou a se interessar pela
coníferas (Pinus longaeva & aristata), que florescem no
topo das áridas montanhas da Grande Bacia, que se

Fig.2.1 Conífera de White-Inyo


estende do Colorado até a Califórnia, cuja grande idade
com mais de três mil anos de não era conhecida até 1.953. Em 1.953, Schulman e seu
idade
colega Frits W. Went do Cal Tech encontrou um pinus (Pinus flexilis) em Sun Valley,
Idaho, com 1.700 anéis de crescimento. Durante os dois anos seguintes, 1.954 e 1.955,
uma extensa procura da California até o Colorado foi efetuada por Schulman e seu
assistente C.W. Ferguson. As árvores mais antigas foram encontradas em elevações de
3.048 até 3.354 m, muitas vezes crescendo em locações aparentemente impossíveis. As
árvores que cresciam nas condições mais extremas, com pouquíssimo solo e umidade,
pareciam serem as mais antigas. Diversas árvores com idades entre 3.000 e 4.000 anos
foram descobertas nas proximidades de White-Inyo, assim Schulman devotou sua
atenção à esta área. A primeira árvore com idade acima de 4.000 anos descoberta foi
denominada de Pinheiro Alfa. Posteriormente, em 1.957 foi encontrado o pinheiro
sugestivamente denominado de Matusalém, com 4,723 anos de idade, que é considerado
a mais antiga árvore viva.

Mesmo as datas radiocarbônicas corrigidas pelos anéis de crescimento não são


inteiramente confiáveis. Existe a possibilidade de ocorrerem erros aleatórios devidos à
contagem radioativa e, além disso, uma comparação com datas históricas bem
estabelecidas do Egito parece indicar que as datas radiocarbônicas corrigidas pelo
método dos anéis podem sofrer erros sistemáticos importando em 100 ou 200 anos para
datações neolíticas. De qualquer modo, esse método de correção já revolucionou
algumas concepções que se supunham bem estabelecidas. Verificou-se, por exemplo,
que algumas construções megalíticas, que se admitiam posteriores à construção das
pirâmides do Egito, são, na realidade, mais velhas que elas.

A ciência das datações é denominada de arqueometria. Para que se possa


empregar a datação radiocarbônica é necessário se ter amostras contendo carbono, ou
seja, provenientes de materiais orgânicos. Como isso nem sempre é possível, deve-se
utilizar outros processos. Além da datação radiocarbônica, várias outras técnicas são
disponíveis atualmente. Vejamos algumas delas.

O campo de estudo que trata de fenômenos geo-magnéticos antigos e do uso de


materiais arqueológicos na determinação de variações do campo magnético da terra é
denominado de arqueomagnetismo. As variações em intensidade e direção do campo
magnético da terra de tempos em tempos são a base da datação arqueomagnética. Este
magnetismo ocorre naturalmente e é denominado de magnetismo fóssil. Comparando o
magnetismo de achados arqueológicos com o magnetismo de amostras previamente
datadas, da mesma localidade, pode-se obter datações precisas por este método.

Informação magnética é armazenada nos elementos ferromagnéticos da argila


queimada (cerâmica), mantidos desde sua última queima. Isto significa que argila
queimada, empregada por milhares de anos em cerâmicas, construções, fornos, ou
mesmo em vestígios de fogueiras, contém uma fraca, mas permanente, magnetização, a
qual pode ser medida para se determinar a intensidade e a declinação magnética
arquivada na amostra desde seu último esfriamento. O arqueomagnetismo é, deste
modo, capaz de fornecer resultados bastante precisos em amostras de até 10.000 anos de
idade.

A datação por termoluminescência é empregada para rochas, minerais e


cerâmica. É capaz de datações entre 300-10.000 anos antes do presente. Fundamenta-se
no fato de que quase todos os minerais são termoluminescentes. A energia absorvida de
radiações ionizantes libera elétrons na amostra, os quais se movem através da estrutura
cristalina destes minerais e alguns deles são capturados em imperfeições desta estrutura.
O aquecimento posterior da amostra libera os elétrons capturados, produzindo luz. A
medida da intensidade da luz produzida pode ser empregada para se determinar quanto
tempo se passou desde que o objeto foi aquecido pela última vez e elétrons foram
liberados. Os minerais que podem ser empregados em termoluminescência são o
quartzo, feldspato, diamante e calcita. Ela funciona melhor em cerâmicas, fogueiras
para aquecimento de alimentos, ou rochas acidental ou deliberadamente fraturadas por
fogo.

O método do potássio-argônio (K-Ar) baseia-se na medição da acumulação de


argônio proveniente da decomposição do potássio em uma substância. Isto é
relativamente fácil porque o argônio, sendo um gás inerte, usualmente não é liberado de
um mineral e é fácil se ser medido, mesmo em amostras minúsculas. A sua data é
inferida calculando-se o tempo decorrido desde que os minerais da amostra foram
aquecidos ou fundidos, o que mudou sua estrutura química, desse modo
“reinicializando” (reseting), por assim dizer, a amostra. Muitas espécies de alterações,
tais como aquecimento ou intemperismo, podem reinicializar a amostra. Isso permite
aos arqueólogos determinar há quanto tempo atrás um projétil tratado pelo calor foi
feito, ou quando uma peça de cerâmica foi empregada pela última vez.
O método do urânio-tório é uma técnica de datação absoluta que usa as
propriedades da meia-vida radioativa do urânio-238 e do tório-230. A meia-vida do
urânio-238 é de 4.470.000.000 anos, isto é, em quantos anos a metade da quantidade
original é ainda urânio; a outra metade perdeu prótons para formar um outro elemento
que é ainda mais estável que o urânio (p.ex. chumbo). Quando as quantidades de urânio
e tório são comparadas, uma estimativa da idade do objeto pode ser obtida. Essa técnica
foi empregada pela primeira vez em ossos fósseis em 1956, todavia foi usada para datar
madeira antes disso. Tem sido empregada efetivamente em sedimentos marinhos, ossos,
madeira, coral, pedra e solo.

A datação por traços de fissão é outra técnica da datação radioativa que pode ser
empregada para determinar a idade de artefatos com minerais contendo urânio. O urânio
neles contido pode eventualmente se fissionar e as partículas resultantes gravam
pequenos traços nesses minerais. Esses traços de fissão são criados a uma razão
constante através do tempo, de modo que se se determinar a quantidade de traços
presentes é possível conhecer o tempo decorrido desde que a acumulação começou.
Assim, essa técnica particular é útil na determinação de idades entre vinte e um milhão
de anos. È adequada para vidros naturais e manufaturados, pedras empregadas em
fogueiras usadas para aquecimento ou cocção de alimentos, bem como qualquer
cerâmica queimada, como potes ou tijolos.

Outras técnicas existem ou estão sendo desenvolvidas, tais como a racemização


(funciona para materiais orgânicos, pode datar entre 5.000 a 200.000 anos); a
luminescência estimulada óticamente (útil para sedimentos com idade inferior a 500.000
anos); a técnica da razão de carbono oxidável (útil para solos); ou mesmo a comparação
com eventos astronômicos datáveis.

Como essas técnicas possuem suas limitações intrínsecas, normalmente suas


datações devem ser confirmadas pelo emprego, quando possível, de mais de uma
técnica.

A antigüidade do saber

Deve-se tomar muito cuidado em se atribuir conhecimentos fantásticos aos


antigos. Sob uma perspectiva de séculos de distância, muitos são atraídos pela
fascinante e tentadora noção de que tudo o que é antigo deve estar imbuído de valor
"cerimonial" ou de profunda finalidade "científica". Esquecem-se, porém, de que as
preocupações primordiais das sociedades primitivas eram questões domésticas, como
alimentação, habitação e, principalmente, sobrevivência. A elas seguiam-se questões
sócio-políticas, religiosas e de economia mundana. Certos autores, às vezes, levam a
induzir que tudo o que é antigo é sábio, que os primeiros “filósofos” viviam mais
próximos dos deuses que os racionalistas, seus sucessores. Dão a impressão de que,
quanto mais remotos os ensinamentos, mais sagrados ou verdadeiros são.

É necessário encará-los com senso crítico, dentro do verdadeiro espírito


científico, dentro na perspectiva histórica das reais potencialidades da sua época; porém
a manutenção de mentalidade aberta é condição fundamental para a integridade da
pesquisa. Rejeitar o inexplicado apenas porque não se enquadra nos esquemas
convencionais, tradicionalistas, é atitude anticientífica.

Como já foi dito, o matemático deve se congratular quando se depara com um


paradoxo, pois aí existe real oportunidade de a sua ciência progredir. A sua remoção
pode, eventualmente, ocasionar mudança de paradigma, na terminologia de Kuhn,
proporcionando assim momento propício para a evolução dessa ciência. A atitude
correta que cumpre adotar diante de fatos inexplicados pela teoria tradicional é
arquitetar nova hipótese de trabalho (Arbeithypothese), que, se verificada, conduza a
novo modelo (paradigma). É desse modo que a ciência evolui.

Um dos melhores exemplos da pseudo-sapiência dos textos "antigos" é o da


tradição hermética. A Idade Média e, principalmente, a Renascença, foram
profundamente influenciados pelos tratados herméticos contidos na coleção "Corpus
Hermeticum", escritos atribuídos ao suposto sacerdote egípcio Hermes Trimegisto, da
mais venerável “antigüidade”. Acirradas discussões eram acesas sobre se Hermes era
contemporâneo, sucessor ou antecessor de Moisés, ou mesmo de Noé. Mas todos
concordavam que era anterior aos sábios filósofos gregos, especialmente Platão.

A antiga e misteriosa religião egípcia permeia esses textos. Os supostamente


profundos conhecimentos dos seus sacerdotes, o seu ascético modo de vida e a magia
religiosa que se imaginava praticassem nas câmaras secretas dos seus longínquos
templos, tudo isto proporcionava excepcional atrativo para o hermetismo.
Os gregos identificavam Hermes, que era às vezes denominado de "Três Vezes
Grande", com o deus egípcio Tot, escriba dos deuses e divindade da sabedoria.
Avalizado por eruditos de porte, Hermes Trimegisto foi aceito pela Renascença como
pessoa real, da mais alta antigüidade, autor dos escritos herméticos, bem como
reverenciada autoridade em verdades divinas, portanto fonte de prístino saber.

A tradição hermética influenciou eruditos como Pico della Mirandola, Giordano


Bruno, Campanella, Fludd, Atanásio Kircher, Kepler e muitos outros. Imagine-se,
portanto, o alvoroço que Isaac Casaubon provocou em 1.614, quando provou, com
argumentos estilísticos, entre outros, que esses textos eram de autoria de escritores dos
séculos II ou III d.C., talvez cristãos ou semicristãos, que misturaram escritos de Platão
e dos platônicos com livros sagrados cristãos. Casaubon admite que esses textos foram
forjados nos tempos dos primeiros cristãos, talvez com o propósito de tornar a nova
doutrina agradável aos gentios, falsificações portanto com boas intenções, mas antes de
tudo abomináveis, porque inverídicas.

Outro exemplo memorável é a atração exercida pela "fabulosa e vetusta" ciência


dos magos caldeus. Através de um formidável aparato pseudo-erudito, Alfred Jeremias
no seu Handbuch der Altorientalischen Geisteskultur desenvolveu a doutrina
"pãbabilônica", que vicejou na Alemanha entre 1.900 e 1.914, exercendo ainda hoje
considerável atração.

A tese principal desta doutrina era edificada sobre teorias mirabolantes acerca da
"antiquíssima idade" da astronomia caldaica, combinada com pretensa "visão do
mundo" (Weltanschauung) babilônica baseada em paralelismo entre o "microcosmo e o
macrocosmo". Todos os fenômenos na cosmogonia, na religião e na literatura clássicas
eram rastreados até as suas "origens" nesta filosofia cósmica hipotética dos babilônios.

A combinação de vasto desrespeito pelas evidências textuais, com o uso


indiscriminado de fontes secundárias e de traduções inadequadas, bem como pelo
emprego de uma cronologia pré-concebida, tudo culminou com a criação de quadro
fabuloso sobre o "saber" babilônico, que exerceu e ainda exerce ponderável influência
sobre a literatura concernente à Mesopotâmia.
A ciência babilônica efetivamente merece o nosso respeito pelas suas conquistas,
bem como a influência que exerceu, mormente sobre os gregos, mas daí a afirmar que é
a fonte universal de todo o conhecimento, representaria exorbitante exagero.

Franz Xavier Kugler (1.862-1.929), grande erudito jesuíta, foi um dos poucos
sábios na Alemanha que não sucumbiu aos apelos dessa visão pãbabilonística. Ele e
outros defendiam que as similaridades entre astro-mitologias, que os pãbabilonistas
citavam como exemplos de difusão da ciência babilônica, podiam ser explicadas
facilmente pelo fato de que todas as raças testemunhavam os mesmos eventos sob os
mesmos céus. Além disso, em pequeno livro intitulado "Im Bannkreis Babels", mostrou
dramaticamente os absurdos que os métodos pãbabilonísticos originavam. Kugler
começou sua carreira como professor de química e, quando o Padre Joseph Epping
morreu, em 1.894, continuou a sua obra na decifração da matemática e astronomia
cuneiforme.

Tudo começou quando o Padre J.N. Strassmayer reconheceu a importância dos


tabletes, então recém-descobertos, e começou a copiá-los, no British Museum, em
Londres. Enviou as suas anotações ao Padre Epping, que na época estava em Quito, no
Equador, convencendo-o a estudá-las.

Em 1.881 apareceu em periódico teológico católico, "Stimmen aus Maria


Laach", um artigo "Zur Entzifferung der Astronomischen Tafeln der Chaldaer",
assinado por J. Epping, de Quito, Equador, com introdução por J.N.Strassmaier, de
Londres. Este artigo estabelecia as bases da decifração e interpretava os primeiros
tabletes astronômicos, que então estavam sendo escavados em número cada vez maior.

Oito anos após, Epping publicou, nos suplementos do mesmo periódico, um


pequeno livro intitulado "Astronomisches aus Babylon", em que esclarecia as teorias
babilônicas sobre a Lua e fornecia detalhada discussão dos almanaques planetários e
lunares.

Após a morte de Epping, como já mencionamos, Kugler continuou a sua obra,


publicando diversos trabalhos de suma importância entre 1.900 e 1.924. As cópias de
Strassmaier, feitas nos últimos vinte anos do século XIX, nunca foram publicadas.
Depois do falecimento de Kugler, o seu herdeiro e sucessor, Padre Schaumberger,
dividiu o conhecimento dos volumosos cadernos de Strassmaier com o Professor Otto
Neugebauer, que é o maior conhecedor da matemática e da astronomia babilônica do
século XX. Graças ao esforço notável desses sacerdotes católicos, hoje conhecemos o
conteúdo dos tabletes cuneiformes matemáticos e astronômicos, que colocam a ciência
babilônica ao alcance de todos, e inauguram assim, nova época na história da ciência.

Correntes acerca das origens do pensamento racional

Os matemáticos medievais acreditavam que a Matemática tinha suas origens na


Grécia Clássica e que foi algumas vezes perdida, outras redescoberta, mas que sempre
existiu um corpus invariável desta disciplina que, na melhor das hipóteses, devia ser
preservado e, na pior, deteriorado pelos matemáticos contemporâneos. Os matemáticos
renascentistas mantiveram esse ponto de vista, mas, gradualmente, reconheceram que
poderiam contribuir positivamente para esse corpo de conhecimento.

Essa visão ignora a existência da matemática desenvolvida em regiões não-


européias, como na Mesopotâmia, Egito, China, América pré-columbiana, Índia, África
em geral, bem como no mundo Árabe.

Hegel (1.770-1.831) postulou a superioridade do gênio grego ou, mais


geralmente, indo-germânico, atribuindo-lhe a paternidade do pensamento racional e a
genialidade pela criação do método dedutivo. Isso determinou uma importantíssima
linha de pensamento acerca das origens das ciências, particularmente da Matemática.
Essa corrente é, às vezes, denominada de modelo ariano. A Matemática, nessa corrente,
é percebida exclusivamente como um produto de homens brancos e de civilizações
européias. Isso principiou o paradigma Eurocêntrico acerca das origens da Matemática,
ainda hoje muito em voga.

O segundo modelo, que esteve no ápice no início do século XX, atribuía à


Babilônia a origem das ciências e das concepções religiosas (o que se acreditava
patrimônio exclusivo do povo hebreu). Isso motivou as teorias pãbabilonísticas, que já
mencionamos.

O terceiro modelo, defendido por Martin Bernal, inverte o modelo ariano,


atribuindo a origem das ciências, particularmente da Matemática, ao mundo afro-
asiático, no qual os gregos garimparam seu conhecimento. É conhecido como Atena
Negra (Black Athena), título do seu imensamente popular livro publicado em 1.986.
Essa tese, porém, já tinha sido propugnada por outros autores anteriormente, somente
devido à notoriedade alcançada pelo seu título é que manteremos essa denominação.

O ponto em comum entre esses três modelos, como bem observa Pettinato6 é a
intolerância recíproca. Não admitem que possa ter havido intercomunicação ou
colaboração mútua entre os diversos povos ou culturas.

Que os gregos deviam grande parte de seu conhecimento aos “bárbaros” é fato
reconhecido desde a antiguidade, porém convenientemente esquecido durante bastante
tempo, mormente devido à Filosofia Escolástica imperante na idade média a qual, com
o ditatorial suporte da Igreja, propugnava o predomínio da filosofia grega. Isso ocorria
porque sua doutrina se apoderou de considerável parcela do conhecimento grego,
adequadamente transmutada pelos pais da Igreja, notadamente Agostinho e Tomás de
Aquino, em doutrina cristã.

Clemente de Alexandria (c.150-c.215 d.C.) em sua obra “Miscelâneas”


(Stromata), já afirmava que grande parte da filosofia e das artes gregas provinha de
“raças de filósofos bárbaros”, entre as quais citava os egípcios, os caldeus entre os
assírios (babilônicos), os druidas entre os celtas, os magi entre os persas, os brâmanes
entre os hindus e muitas outras. Heródoto (c.485 - c.320 a.C.) afirmava que a Geometria
tinha sua origem no Egito. Aristóteles (384-322 a.C.) também considerava o Egito como
o berço da Matemática. Mesmo antes, Tales (c.624 –c.548 a.C), um dos mais antigos
matemáticos gregos, acredita-se que viajou extensamente pelo Egito e Mesopotâmia,
onde aprendeu muito de sua matemática. Pitágoras (c.580 - c.500 a.C.), dizem seus
biógrafos, viajou igualmente por essas paragens, e inclusive asseveram que chegou até a
Índia, onde absorveu boa parte de sua filosofia religiosa.

Alexandre, o Grande (356-323 a.C.), conquistou um imenso império, que ia dos


Balcãs à Índia, incluindo o Egito, iniciando assim a era helenística. Nessa era, o koiné, o
grego então falado, era a língua comum desses territórios. As viagens dos helenos por
esse imenso território eram habituais, portanto, o compartilhamento do conhecimento
desses povos com os gregos não constitui algo excepcional, que deva surpreender. O
que é surpreendente é a veemente ignorância da importância dos outros povos e culturas
no desenvolvimento das ciências e da Matemática.

6
1.998, p.335.
Monogênese ou Poligênese

Retornemos agora às nossas ur-questões. Uma das mais intrigantes é: a


Matemática teve uma origem única (monogênese) e se espalhou de um centro para todo
o mundo, ou foi desenvolvida diversas vezes independentemente umas das outras, em
vários núcleos (poligênese) ?

Talvez estejamos fadados a nunca termos uma resposta cabal a esta questão, o
que, contudo, não nos impede de analisá-la, ao contrário, atiça ainda mais nossa
curiosidade sobre ela.

A aventura da ciência, seu romantismo apaixonante, está na jornada, nos desafios


intelectuais que somos obrigados a enfrentar. Se, porventura, algum dia obtivermos
resposta cabal a algum problema, o desafio desaparecerá e a ciência se tornará
enfadonha, pois o porto seguro estará atingido. Prossigamos, pois, na jornada, e
procuremos nos divertir o máximo possível no caminho.

O saber tradicional, expresso nos compêndios acadêmicos sobre História da


Matemática, se inclina para sua poligênese: estuda-se a Matemática dos Mesopotâmios,
dos Egípcios, dos Gregos, dos Hindus, dos Árabes, dos Chineses. Essas Matemáticas
são consideradas compartimentalizadas, isoladas umas das outras, com intersecções
nulas. Supõe que a Matemática nestas civilizações tenha sido criação própria, nativa, e
tenha germinado independentemente uma das outras. É neste contexto que a História da
Matemática é ensinada nos livros e que aprendemos com nossos mestres, ainda hoje.

Devemos, neste ponto, dividir o estudo das origens da matemática na pré-


história em duas secções distintas: o da matemática paleolítica e o da matemática
neolítica. A fronteira, além da divisão temporal, que distingue entre elas parece ser o
uso muito mais intensivo do pensamento simbólico no neolítico.

O nosso conhecimento da matemática pré-histórica está longe de ser satisfatório,


pelo contrário, está impregnado de forte componente especulativo. Existem raríssimas
evidências diretas, arqueológicas: a imensa maioria são evidências indiretas,
conjecturas, analogias com dados antropológicos, etnológicos, da psicologia infantil ou
mesmo lingüísticos ou genéticos. Expressões como "parece", "pode ser que", "talvez" e
outras igualmente nebulosas ou vagas permeiam o texto sobre o assunto. Resumindo, o
nosso corpo de conhecimentos desses primórdios é composto basicamente de
conjecturas e analogias.

Uma monogênese paleolítica para a Matemática pode ser postulada,


principalmente se traçarmos um paralelo com a hipótese da monogênese das línguas,
recém lançada, que estudaremos posteriormente. Neste caso, a Matemática teria uma
fonte única, imersa no paleolítico, porém melhor identificada e caracerizada no
neolítico, tese coerente com uma então contemporânea origem única das línguas. Deste
modo, tanto as línguas como a Matemática teriam uma origem paleolítica única, pois
não se pode exprimir e comunicar conceitos matemáticos sem palavras. Lembramos que
o estágio simbólico da Matemática é posterior a estes primórdios.

Uma monogênese neolítica para a Matemática das diversas civilizações antigas é a


hipótese proposta por Van de Waerden-Seidenberg. Exporemos agora detalhes desta
hipótese de trabalho.

A Hipótese de Van der Waerden-Seidenberg

Van der Waerden (1.983) afirma que três descobertas recentes alteraram
substancialmente o saber acadêmico tradicional sobre as origens da Matemática.

A primeira delas, devida a A. Seidenberg foi publicada em 1.962, sob o título A


Origem Ritual da Geometria, no Archiv of History of Exact Sciences. Estudando as
construções de altar prescritas nos Sulvasutras, manuais hindus antigos relativos à
construção de altares com forma e dimensões dadas, descobriu que nestes textos o
teorema de Pitágoras era empregado para construir um quadrado de área igual a um
retângulo, e que esta construção era a mesma empregada por Euclides nos seus
Elementos Conjugando este fato com outros, deduziu que a geometria hindu, a álgebra
geométrica grega, e a álgebra e a geometria babilônicas eram todas originárias de uma
mesma fonte comum, na qual o teorema de Pitágoras e a construção de altares
desempenhavam papéis primordiais.

A segunda descoberta foi feita por Bartel Leenert van der Waerden e publicada
em 1.983, no seu livro Geometria e Álgebra nas Antigas Civilizações. Comparou a
antiga coleção chinesa de problemas Nove capítulos da Arte Aritmética com coleções de
problemas matemáticos babilônios, encontrando tantos pontos em comum que a
conclusão de que provinham de uma mesma fonte pré-babilônica lhe pareceu inevitável.
Do mesmo modo, nesta fonte o teorema de Pitágoras também desempenha papel
central.

A terceira descoberta foi efetuada pelos escoceses Alexander Thom e Archibald


S. Thom, pai e filho, que identificaram na construção de monumentos megalíticos o
emprego de Triângulos Pitagóricos, isto é, de triângulos retângulos cujos lados são
múltiplos inteiros de uma unidade de comprimento básico. É fato bem conhecido que os
babilônios possuíam uma lista de Triplas Pitagóricas7, ou seja, de três números inteiros
que satisfazem o teorema de Pitágoras, como (3,4,5), e que os gregos, os hindus e os
chineses conheciam como encontrar estas triplas.

Combinando essas três descobertas, Van der Waerden arquitetou uma


reconstrução da matemática que teria existido no Neolítico entre, digamos, 3.500 e
2.500 A.C., e se teria difundido da Europa Central para a Grã-Bretanha, para o Oriente
Médio, para a Índia e para a China. Descobertas recentes parecem indicar novos
sentidos das rotas de difusão e maior antigüidade nessas datas. Van der Waerden
considera que os melhores exemplos desta corrente matemática pré-histórica são
encontrados nos textos chineses, embora diversos traços de geometria e álgebra pré-
babilônica possam ser discernidos nos trabalhos de Euclides e de Diofante, bem como
na matemática popular grega. Os gregos, embora tivessem conhecimento dessa ciência
antiga, transformaram-na completamente, estabelecendo as origens da matemática
formal atual, ciência dedutiva baseada em definições, postulados e axiomas.

A hipótese de Van der Waerden-Seidenberg, aqui delineada é, sublinhamos, uma


Arbeithypothese e, como tal, deve ser considerada cum grano salis8. Enquanto fecunda,
merece ser explorada.

Além das evidências puramente matemáticas, que procuramos delinear aqui,


existem outras, talvez não menos importantes, de origem lingüística, antropológica,
mitológica e arqueológica.

7
Para maiores explicações sobre estas triplas, consultar as notas ao final do capítulo.
8
Com uma pitada de cautela.
Similaridades entre civilizações neolíticas antigas

Se compararmos as culturas e, em particular, as habilidades matemáticas e


astronômicas, dos construtores megalíticos da Europa Ocidental, dos egípcios, dos
gregos, dos babilônios, dos hindus e dos chineses encontramos muitas similaridades.
Van der Waerden resumiu-as no seguinte quadro:

1. Em todos as civilizações mencionadas encontramos:

• agricultura bem estabelecida, com excedente econômico que permitiu a

manutenção de classe dominante, que usufruía deste.

2. No Ocidente, na Grécia, na Fenícia e no Egito encontramos:

• construção de navios e navegação de mar aberto.

3. No Ocidente, na Grécia, na Ásia Menor, no Irã, na Índia e na China:

• línguas indo-européias (hitita na Ásia Menor, tocariano na China).

4. Na Grécia, no Egito, na Índia e na China:

• o sistema de contagem decimal completamente desenvolvido, bem

como regras para operações com frações m/n (no Egito somente 2/3, 3/4
e 1/n ).

5. Na Grécia e na China:

• o algoritmo euclidiano e o ábaco.

6. No Ocidente, no Egito e na Babilônia:

• astronomia de horizonte.

7. Na Grécia, na Babilônia, na Índia e na China:

• o teorema de Pitágoras.
8. No Ocidente, na Grécia, na Babilônia, na Índia e na China:

• triplas pitagóricas.

9. No Ocidente, na Grécia e no Egito:

• arquitetura megalítica.

10. No Ocidente e no Egito;

• orientação de templos segundo os solstícios de verão e de inverno.

11. Na Grécia e na Índia:

• construção de altares que satisfazem condições geométricas; castigo

dos deuses se as construções não fossem exatas; construção de quadrado


de área igual a retângulo dado.

12. No Ocidente, no Egito e na Índia:

• "estiradores de corda" que realizam construções geométricas com

finalidade ritual.

13.- No Egito, na Grécia e na China:

• uma única e incorreta regra para a área de um segmento de círculo.

14.- No Egito, na Babilônia e na China:

• coleções de problemas matemáticos com soluções.

15.- Na China e no Egito:

• a mesma e incorreta regra para o volume de pirâmide truncada.

Para Van der Waerden somente uma origem comum neolítica para a matemática
e para a astronomia dessas civilizações antigas pode explicar as suas interconexões e
similaridades.

A transmissão da tradição
Pode-se identificar, acredita Van der Waerden, duas linhas principais de
transmissão dos conhecimentos dessa fonte neolítica única. Nos textos chineses e
babilônios, bem como nos papiros egípcios encontramos conjuntos de problemas com
soluções. De outro lado identificam-se traços de uma tradição oral de construções
geométricas, tradição que já existia na Europa Ocidental, no neolítico, entre os
construtores megalíticos, a qual teve seqüência entre os estiradores de corda egípcios e
os ritualistas hindus. Nas duas tradições o teorema de Pitágoras desempenha papel
primordial. Do mesmo modo, o cálculo de triplas pitagóricas era parte integrante de
ambas.

Como já tivemos oportunidade de ver, existem boas razões para Van der
Waerden afirmar que essas triplas não eram encontradas empiricamente, mas calculadas
mediante regras sistemáticas9 baseadas no teorema de Pitágoras.

O desenvolvimento das duas tradições deve ter sido, para este autor, o seguinte,
de maneira esquemática:

Descoberta do Teorema de Pitágoras

Problemas com Soluções Aplicações Rituais

Textos-Problemas ¨Nove Capítulos¨ Geometria na Geometria dos Construções


Babilônicos e Chinês Arquitetura Estiradores de Geométricas
Egípcios Megalítica Corda Egípcios de Altares

Tradições Tradições
Hindus Gregas

É óbvio que este esquema é muito simplificado. Muitos outros pontos


importantes, como o algoritmo de Euclides, o cálculo de raízes quadradas, a solução
sistemática de equações quadráticas e de sistemas de equações lineares, as regras para o
cálculo de áreas e de volumes não estão incluídas, porque a sua história é muito menos
conhecida que a do teorema de Pitágoras.

Analisando o esquema, podemos identificar a partir do terceiro nível duas linhas


de desenvolvimento:

9
Ver Notas I, II.
1. do lado direito temos a tradição oral dos estiradores de corda, que eram
especialistas em construções geométricas com aplicações rituais. Foram ativos no Egito,
nas construções megalíticas, em particular nas das Ilhas Britânicas e na Índia. De sua
atividade no Egito pouco se sabe, o mais importante testemunho é o de Demócrito, que
diz que os estiradores de corda eram especialistas em "construir linhas com provas"
(demonstrações).

Na Índia nós temos os Sulvasutras e os Brahmanas, cujas construções de altares


por meio de cordas estiradas são descritas com detalhes e, principalmente, com provas.
Da íntima conexão entre as tradições gregas e hindus entre a construção de altares,
podemos inferir que o desenvolvimento dessas construções se manifestava no âmbito
dos povos indo-europeus.

2. O lado esquerdo do esquema identifica o desenvolvimento de tradição


escolar: método de ensino da matemática mediante problemas com solução. Este
método faz parte dos textos egípcios e babilônios, porém o mais extenso e significativo
conjunto de problemas é o dos "Nove capítulos" chinês.

As origens da matemática para Van der Waerden

Como mostrou, existe muita similaridade entre as idéias matemáticas e


religiosas, além de outras, dos construtores megalíticos das Ilhas Britânicas, dos
babilônios, dos gregos, dos hindus e dos chineses, que induzem a postular a existência
de doutrina matemática comum, emergente do neolítico, da qual essas idéias se
originaram. Estabelecido esse ponto, estaríamos em condições de emitir uma conjectura
razoável sobre que povo seria capaz de forjar tal doutrina.

Ponto primordial para observar é a vastíssima extensão geográfica que tal povo
deveria ter atingido (ou influenciado), o que, por si só, reduz significativamente nosso
universo de hipóteses. Em segundo lugar, devemos ter consciência de que esse povo,
além de estar no lugar certo, também necessitaria existir no tempo correto para que essa
cadeia de conexões se pudesse produzir; portanto a seqüência temporal desses eventos é
sumamente importante, e a eleição dos candidatos deve levar isso em consideração.

Vasculhando na pré-história as alternativas possíveis, que atendam a esses


pontos e também à rede de interconexões gerada pelas similaridades entre as
civilizações citadas, principalmente no tocante às idéias matemáticas, constatamos que
estamos reduzidos a praticamente uma opção, a adotada por Van der Waerden:
identificar esse povo com os indo-europeus.

As línguas indo-européias dispõem de sistema decimal perfeito de contagem,


além de método para designar frações. Esse sistema numérico é importante acervo
cultural, que constitui excelente base para o desenvolvimento e ensino da aritmética e da
álgebra. Além disso, as religiões das antigas populações indo-européias têm tanto em
comum que dificilmente se pode duvidar da existência de uma proto-religião indo-
européia. O povo Beaker, que construiu monumentos megalíticos nas Ilhas Britânicas
como Stonehenge II, Woodhenge e outros, provavelmente falava língua indo-européia.
De qualquer modo, habitava uma região, onde línguas indo-européias eram faladas
havia bastante tempo.

Como encontramos idéias muito similares acerca da importância ritual de


construções geométricas exatas na Índia e na Grécia, o mesmo conjunto de triplas
pitagóricas nas Ilhas Britânicas e na Índia, as mesmas construções geométricas na
Grécia e na Índia, a conclusão de que essas idéias religiosas e matemáticas têm uma
origem comum indo-européia parece altamente provável, afirma Van der Waerden.

Essas são as idéias basilares da hipótese de Van der Waerden-Seidenberg: a


existência de fonte neolítica única, que influenciou as idéias das correntes matemáticas
da antigüidade citadas e que foi arquitetada pelos indo-europeus. É, ainda, recordamos
novamente, uma hipótese de trabalho.

Críticas à Hipótese de Van der Waerden-Seidenberg

Para alguns críticos dessa hipótese, o fato do teorema de Pitágoras e das triplas
pitagóricas aparecerem em várias civilizações não implica em que necessariamente
tiveram uma origem única. Podem ter se originado de observações da vida cotidiana,
perfeitamente explicáveis, em culturas diferentes, pois as necessidades práticas que lhe
dão origem são as mesmas em qualquer parte do mundo.
Quanto à hipótese de que os indo-europeus são os responsáveis pela disseminação
dessa corrente neolítica, outros críticos argúem que tanto os chineses como os egípcios
não são indo-europeus. Observam, igualmente, que a língua dos construtores
megalíticos da Europa ocidental ainda é desconhecida, e não se pode afirmar com
certeza que pertença a este ramo lingüístico.

Algumas dessas críticas, a nosso ver, merecem consideração. O teorema de


Pitágoras pode realmente não ter sido descoberto uma única vez na história da
humanidade, como certos críticos levantam. Porém, a hipótese de Van der Waerden-
Seidenberg tem um grande e inegável mérito: levanta, ineditamente dentro do estudo
acadêmico da história da matemática, a possibilidade de comunicação e de difusão de
conhecimentos matemáticos entre diversas civilizações antigas, e que alguma parcela
desse conhecimento poderia provir de fontes neolíticas, portanto pré-históricas. O saber
acadêmico tradicional, ao contrário, enfatiza a compartimentalização desse
conhecimento, bem como sua estanqueidade, além de se limitar ao período histórico.

O teorema de Pitágoras ou as triplas pitagóricas podem não ter sido


univocamente descobertos na pré-história, nem os indo-europeus o vetor da transmissão
dessa corrente de sapiência, porém certamente algum conhecimento matemático provém
do neolítico, ou mesmo talvez do paleolítico, e influenciou civilizações históricas
posteriores.
Notas ao Capítulo II

I
Triplas Pitagóricas:

Triângulo retângulo é o triângulo no qual um dos seus ângulos é reto (= 90o). Triângulo pitagórico é o
triângulo retângulo cujos três lados são proporcionais a números inteiros x, y e z.

De acordo com o teorema de Pitágoras, talvez o único teorema de que todos se recordam dos bancos
escolares, os números inteiros devem satisfazer a equação:

1.1 x 2 + y 2 = z2

Tripla pitagórica é a tripla de números inteiros (x,y,z) que satisfazem a equação 1.1, por exemplo
(3,4,5), pois

32 + 4 2 = 52

Uma tripla pitagórica é chamada primitiva se os três números inteiros x, y e z não têm fator comum. A
tripla (3,4,5) é primitiva, já as triplas (6,8,10) e (15,20,25) não o são, pois são obtidas a partir da multiplicação de
(3,4,5) por 2 e 5, que são os fatores comuns.

Na tripla pitagórica primitiva, um dos números x ou y deve ser par e o outro ímpar. Se ambos os
números x e y forem pares, a tripla não é primitiva; se ambos forem ímpares, a soma x 2 + y 2 não pode ser um
quadrado (ver Nota III).

II
Construção de triplas pitagóricas:

A construção de triplas pitagóricas primitivas requer apenas procedimentos matemáticos simples.


Podemos reescrever o teorema de Pitágoras (1.1) como

1.2 z 2 − y 2 = (x − y )(x + y )

A partir daí podemos começar com qualquer inteiro x e resolver a equação 1.2 para obtermos y e z .
Este é problema indeterminado, pois temos duas incógnitas e uma única equação, que se pode resolver por
tentativas. Vamos admitir que começamos com um número ímpar x = s.t (que, portanto, não é quadrado
perfeito). Temos então :

( z − y)( z + y) = s 2 t 2
Façamos:

1 2
(z − y) = s 2 z= (s + t 2 )
2

1.3 obtendo assim:

(z + y ) = t 2 1 2 2
y=
2
(
s −t )

Tomemos, por exemplo, x = s.t = 15 = 5.3

1 2
z=
2
(5 + 32 ) = 12 ( 25 + 9) = 12 ( 34) = 17
1 1 1
y = (52 − 3 2 ) = ( 25 − 9) = (16) = 8
2 2 2

com o que se obtém, finalmente, a tripla primitiva (15,8,17). Este é essencialmente o método empregado pelos
chineses, figurando em texto do período Han (200 A.C. - 220 D.C.).

Se começarmos com inteiro par da forma x = 2.p.q (que, portanto, também não é quadrado perfeito),
teremos :

( z − y)( z + y) = 4p 2 q 2 = ( 2p) 2 (2q) 2

Fazendo:

z − y = 2 p2 z = q2 + p2
1.4
obtemos
2
z + y = 2q y = q2 − p2

Fazendo, por exemplo, x = 2.p.q = 2.1.4 = 8, temos:

y = q 2 − p 2 = 4 2 − 12 = 16 − 1 = 15
z = q 2 + p 2 = 4 2 + 12 = 16 + 1 = 17

que é a mesma tripla anterior, desde que intercambiemos x por y. Este é o método grego de construção de triplas,
empregado por Diofante. É possível mostrar que todas as triplas pitagóricas podem ser obtidas a partir de 1.3. Do
mesmo modo, podemos mostrar que todas as triplas pitagóricas podem ser obtidas a partir de 1.4 .

De fato, 1.3 e 1.4 são equivalentes (ver Nota IV), pois 1.4 pode ser obtida a partir de 1.3 mediante
mudança de variável:

s=q+p
t=q-p e trocando x e y .

Isso significa que ambos os métodos, o chinês e o grego, na realidade são o mesmo método.

III
Se x e y forem pares, seus quadrados x2 e y2 também o serão, bem como sua soma x2 + y2. Logo z2 deve ser
par, o que implica que z é par e então a tripla não é primitiva .

2 2
Se x e y forem ímpares, seus quadrados também o serão. Logo, se x e y são da forma 2n + 1, então a
2 2
sua soma x + y é da forma 4n + 2 , ou seja 2(2n +1), um produto de um número par por um ímpar, que não pode
ser quadrado perfeito .

IV
De fato, se fizermos s = q + p e t = q - p teremos

2
z + y = s2 z + y = (q + p ) = q 2 + 2pq + p 2
2 2
z−y= t donde vem z - y = (q - p ) = q 2 − 2pq + p 2
x = st x = (q + p )(q − p ) = q 2 − p 2

Das primeiras equações obtemos z = q 2 + p 2 e y = 2 pq. Da terceira obtemos x = q 2 − p 2 .


duas
Trocando x por y verificamos a equivalência dos métodos. Desta maneira provamos que, embora o método
chinês principie com número ímpar e o grego com par, na realidade eles fornecem os mesmos resultados,
pois são equivalentes .
CAPÍTULO III

HOMO SAPIENS

"Um homem com uma nova idéia é considerado um


excêntrico até que sua idéia seja bem sucedida."

Mark Twain

A Evolução do Homem

O Homem é um mamífero e pertence à ordem dos primatas. Setenta milhões de anos


atrás, a idade dos répteis chegou ao fim de maneira bastante repentina. Isso propiciou
condições para que os mamíferos tivessem oportunidade de evoluir com maior rapidez.
No final do Cretáceo surgiram os primatas. Seus mais antigos representantes eram
pequenas criaturas com uma massa corporal menor que 100 g, do gênero Purgatorius,
que viviam no Paleoceno.

O que distinguiu os primatas dos outros mamíferos? As suas principais


características evolucionárias diferenciais foram: a) adaptação à vida arborícola (dedos
preênseis; unhas - os dedos não apresentam garras; articulações com grande mobilidade;
visão estereoscópica); b) adaptação à vida em sociedade; c) desenvolvimento das
faculdades mentais, com um incremento gradual da capacidade craniana; d) adaptação a
uma alimentação omnívora.

Existem três teorias principais sobre a origem dos primatas. A primeira, a mais
antiga, é a teoria arbórea, a segunda a teoria da predação visual e a última, a mais
recente, a teoria da irradiação das angiospermas. A teoria arbórea foi a teoria
predominante no século XX, até que questionamentos sobre alguns de seus elementos
foram levantados, o que determinou o surgimento das teorias alternativas.

A teoria arbórea afirma simplesmente que os primeiros primatas evoluíram para


atender às necessidades de uma vida em árvores. Por exemplo, como essas criaturas
viviam em um mundo tri-dimensional, elas desenvolveram uma visão estereoscópica
avançada para serem capazes de se moverem melhor através de seu habitat. Contudo, no
presente, questionamentos sobre esta teoria têm sido argüidos. Notou-se que outras
espécies que também têm um habitat arbóreo não apresentam nenhuma das adaptações
encontradas nos primatas.

Outra teoria que procura explicar as origens dos primatas é a da predação visual.
Esta teoria propõe a noção que a convergência orbital, a preensão das mãos e pés, e
garras (unhas) reduzidas são uma adaptação para o forrageio noturno de frutas e insetos
em galhos terminais de arbustos nas florestas. É a teoria mais aceita na atualidade.

A última teoria, a da irradiação das angiospemas, as plantas que produzem frutos,


afirma que as adaptações evolutivas dos primatas ocorreram com a difusão das
angiospermas, as quais propiciavam um nicho alimentar inexplorado. Há cerca de 300
milhões de anos atrás o clima da Terra era quente e úmido e predominavam as
pteridófitas (samambaias, p.ex.). Cerca de 50 milhões de anos depois o clima esfriou um
pouco e as gimnospermas, as plantas sem frutos (pinheiro, cipreste, sequóia, etc.), que já
existiam, passaram a se dispersar e constituir a vegetação dominante em diversos
ambientes terrestres. Até hoje encontramos as gimnospermas em algumas regiões frias
do planeta. O clima voltou a esquentar há aproximadamente 130 milhões de anos,
quando principiou uma grande irradiação das angiospermas. Elas contavam com uma
grande vantagem: o fruto. Os primeiros primatas eram omnívoros, capazes de devorar
néctares, frutas e flores, bem como de insetos que se alimentavam destas. A sua visão
estereoscópica se desenvolveu para distinguir esses itens alimentares em baixos níveis
de luz, e sua manipulação requeria uma melhor coordenação entre a mão e a visão.

Os primatas dividem-se em duas subordens: prossímios (ou primatas inferiores, os


quais incluem os lêmures e lóris) e símios (primatas superiores que incluem társios,
macacos e homem). No primeiro grupo se situam os mais primitivos, regra geral
animais de pequeno tamanho com focinhos alongados e os olhos colocados numa
posição não tão frontal como os dos símios. Situados mais abaixo na escala evolutiva,
mostram-se mais especializados que os seus parentes antropomorfos.

Os símios, ou primatas superiores, também são conhecidos pela designação de


antropóides (Anthropoidea). Constituem o grupo mais numeroso. Sua face é achatada
com os olhos voltados para frente, por isso sua visão estereoscópica é a mais
desenvolvida entre os mamíferos. Os antropóides possuem mandíbulas protuberantes e
não apresentam caudas. Entre eles encontramos o gibão, o chimpanzé, o orangotango,
que é o segundo maior primata, chegando a 90 kg, e o gorila, que é o maior primata,
atingindo 275 kg.

Os símios subdividem-se em duas infraordens: platirrinos (macacos do novo


mundo) e catarrinos (macacos do velho mundo). As espécies agrupadas sob a
designação geral de platirrinos apresentam o septo nasal largo e as narinas voltadas para
os lados; localizam-se todas no continente sul-americano. As três famílias que integram
os catarrinos (Cercopithecidae, Pongidae, Hominidae) têm o septo nasal mais estreito e
as narinas voltadas para frente ou para baixo; são, todas elas hoje habitantes das
florestas africanas e asiáticas.

A família Cercopithecidae inclui os macacos, mandris, mangabeis e outros, que


são encontrados presentemente na África, Ásia e Indonésia, em uma variedade de
habitat muito maior que os macacos da América do Sul. Caminham nas quatro patas e
possuem nariz estreito com narinas voltadas para frente; nenhum deles tem cauda
preênsil. Algumas espécies, como os babuínos, são encontradas em áreas abertas,
pedregosas e áridas e passam a maior parte do tempo no solo. Os Pongidae incluem os
orangotangos. Algumas classificações abrangem os chimpanzés e os gorilas entre os
Hominidae.

Um expressivo número de primatas fósseis é conhecido. Mencionaremos apenas


alguns, que consideramos mais importantes no estudo da linha evolutiva do homem.
Entre os mais antigos, oriundos do Oligoceno, encontramos o Propliopithecus, que
tinha um esqueleto pequeno, muito menor que o gibão atual e o Aegyptopithecus, que
era maior, mais ou menos do tamanho do gibão. Considera-se geralmente o
Aegyptopithecus como o mais vetusto predecessor do gênero humano. Era
provavelmente frugívoro, com uma capacidade craniana pequena, em torno de 30 cc, e
uma massa corporal de aproximadamente 6,7 kg. No Mioceno encontramos o
Limnopithecus, quadrúpede arbóreo, com uma massa corporal de 5 kg, oriundo da
África; e o Pliopithecus, também um quadrúpede arbóreo, com uma massa corporal de 7
kg, proveniente da Europa.

Nas proximidades do Lago Vitória, na África, Louis Leakey e sua esposa Mary
descobriram os restos de um primata fóssil que foi denominado de Proconsul, em
homenagem ao chimpanzé Cônsul do Zoológico de Londres. Entre as espécies do
gênero Proconsul, todas provenientes do Mioceno, aproximadamente há 15 Ma, a maior
era pouco superior a um chimpanzé moderno. Provavelmente movia-se apoiado nas
quatro patas, somente podia assumir a posição ereta com grande dificuldade. Também
do Mioceno, algo entre 9 a 12 Ma, um tanto posteriores aos Proconsul, encontramos a
família dos Dryopithecus, que chegavam a atingir uma massa corporal de 35 kg e
moviam-se sobre as quatro patas, também assumindo a posição semi-ereta com
dificuldade. Há cerca de 15 Ma surgiu a família dos Ramapithecus, algo menores que
um humano moderno, com cerca de 1,1 m. A análise das proteínas dos fósseis do
Ramapithecus levou à conclusão que este gênero era mais aparentado com os atuais
orangotangos que com o homem, chimpanzé ou qualquer outro primata moderno.
Inicialmente pensava-se serem antepassados do homem, porém hoje se acredita estarem
mais próximos do orangotango.

Não poucas vezes a evolução envereda por becos sem saída. Von Koenigswald,
nos fins da década de 1930, descobriu nas boticas chinesas que comercializavam
“dentes de dragão”10 remanescentes de um antigo primata gigantesco, que denominou
de Gigantopithecus. Muito maior que um gorila atual, podia atingir 3,5 m, talvez o
maior primata conhecido, porém se extinguiu durante o Pleistoceno.

Recentemente encontrou-se a 170 km de Adis Abeba, na Etiópia, dentes de um


primata com cerca de 10 milhões de anos, batizado de Chororaphitecus abyssinicus.
Parece ser o primata mais antigo conhecido com parentesco direto com os modernos
gorilas, chimpanzés e bonobos.

Como parece que a linha evolutiva do homem se separou da dos orangotangos


(Pongidae) há cerca de 15 Ma, resta a questão de quando a do homem se separou da dos
chimpanzés e gorilas. Vejamos algumas distinções e pistas conhecidas pela ciência atual
sobre essa divisão. O homem tem 23 pares de cromossomos, enquanto os grandes
símios apresentam 24 pares. Desses, 13 pares de cromossomos humanos são
virtualmente idênticos aos dos chimpanzés, diferindo os restantes apenas parcialmente.
O cromossomo 5 humano e do chimpanzé apresenta as mesmas bandas de coloração,
mas por ordem diferente. O cromossomo 2 humano resulta de fusão entre dois
cromossomos de chimpanzé, o que explica o fato de o homem apresentar menos um par

10
Ossos, dentes e restos fósseis que eram pulverizados para a confecção de remédios populares tradicionais na China.
que os restantes grandes símios. Estas análises revelam um grau de semelhança muito
grande entre os patrimônios genéticos desses gêneros.

Estudos das proteínas humanas e do chimpanzé revelam um grau de semelhança


de 99%. Este grau de semelhança só existe entre espécies gêmeas (iguais
morfologicamente). Estudos realizados com DNA mitocondrial confirmam a evolução
próxima de homem e chimpanzés, mas revelam uma separação do ramo humano
anterior a diferenciação entre chimpanzés e gorilas.

Em um estudo recente Gilad (et alii, 2006) tabulam o número de genes que
expressam as diferenças evolutivas entre humanos, chimpanzés, orangotangos e
macacos rhesus. A menor diferença ocorre entre os humanos e os chimpanzés,
indicando assim a proximidade entre estas espécies.

Chimpanzés Orangotangos Macacos


Rhesus
Humanos 110 128 176
Chimpanzés - 150 141
Orangotangos - - 129

Fig. 3.1 Genes que expressam as diferenças inter-espécies

A trifurcação do ramo restante, após a separação dos orangotangos, parece ser


confirmada por dados geológicos. A formação, no leste de África, do Rift, separou a
população ancestral dos grandes símios em duas, a do lado oeste do Rift, situada numa
floresta úmida, teria originado os gorilas e os chimpanzés atuais, enquanto a do leste,
situada numa zona mais estéril e plana, teria originado o Homem.

O Sahelanthropus tchadensis, apelidado de "Toumi,", é um hominídeo descoberto


em 2.001 por Ahounta Djimdoumalbaye no Chad, no sul do deserto do Sahara. Tinha
um crânio com uma capacidade entre 320/360 cc, comparável ao dos chimpanzés, e
uma idade de mais ou menos 6/7 milhões de anos. Não se sabe se andava ereto ou não.

O Orrorin tugenensis é a única espécie extinta de hominídeo classificada no


gênero Orrorin. O nome foi dado pelos descobridores, liderados por Martin Pickford,
que encontraram os fósseis de Orrorin próximo à cidade de Tugen, Quênia. Datam de,
aproximadamente, 6 milhões de anos (Mioceno). Os fósseis encontrados até agora são
de, no mínimo, 5 indivíduos. Incluem um fêmur, o qual sugere que o Orrorin andava de
forma ereta, um úmero direito, que aponta habilidades de escalador, mas não de
braquiação; e dentes que indicam uma dieta parecida com a dos humanos modernos. Os
molares maiores e os pequenos caninos sugerem que o Orrorin comia principalmente
frutas, vegetais e, ocasionalmente, carne. Essa espécie tinha, aproximadamente, o
tamanho de um chimpanzé. Pickford afirma que o Orrorin é obviamente um hominídeo;
com base nisso data a separação entre hominídeos e outros grandes macacos africanos
em aproximadamente 7 milhões de anos atrás. Outros fósseis encontrados essas rochas
mostram que o Orrorin viveu em um ambiente arbóreo, mas não na savana.

O Ardipithecus ramidus foi descoberto por Tim White, Berhane Asfaw e Gen
Suwa (1.994) em 1.992 e 1.993, em Aramis, na Etiopia. Sua idade estimada é de 4,4
milhões de anos. O Kenyanthropus platyops foi descoberto por
Justus Erus em 1.999, em Lomekwi, no Kenya, e tem sua idade estimada em 3,5
milhões de anos. A sua capacidade craniana é similar à dos australopitecos.

Os mais antigos hominídeos do gênero Australopithecus, surgiram na África, há


uns quatro ou cinco milhões de anos. As suas espécies mais conhecidas são o
Australopithecus anamensis, o Australopithecus afarensis e o Australopithecus
africanus. A capacidade craniana dos Australopithecus se situa em torno dos 500 cc.

O Australopithecus anamensis, encontrado em 1.994 por Leakey em Kanapoi,


Kenya, com uma idade entre 4,2 e 3,9 milhões de anos, mostra as mais antigas
evidências de bipedalismo e uma mistura de características humanas primitivas no
crânio e avançadas no corpo, e há uma forte evidência de bipedalismo.

O Australopithecus afarensis, popularizado pela descoberta do esqueleto


denominado de “Lucy”, descoberto por Johanson em Hadar, na Etiópia, com 3,9 a 3,0
milhões de anos; sua capacidade craniana variava ente 375 e 550 cc. O seu crânio é
similar ao do chimpanzé, exceto por seus dentes com características humanas, mas seus
ossos da pélvis e pernas são muito parecidos com os dos homens modernos e adaptados
mais para a caminhada do que para a corrida, mas sem dúvida eram bípedes, ou seja,
andavam eretos. As fêmeas eram muito menores que os machos, uma condição
conhecida como dimorfismo sexual. Os ossos da mão e do pé eram curvados e
proporcionalmente mais longos que os dos humanos, mas as mãos são similares às dos
homens na maioria dos outros detalhes.

O Australopithecus africanus, conhecido como a criança de Taung, descoberta


por Raymond Dart em 1.924, em Taung na África do Sul, com idade entre 2 e 3 milhões
de anos. Era similar ao afarensis, também bípede, mas de tamanho corporal levemente
menor, com uma capacidade craniana ente 420 e 500 cc, embora ainda pouco avançada
nas áreas necessárias à fala. Seus dentes e mandíbulas, embora maiores que os dos
humanos, eram mais parecidos com eles que os dos demais símios.

Várias teorias têm sido propostas para explicar o andar bípede. Algumas
propõem que o corpo passou a adotar uma postura ereta para melhor se adaptar a uma
mudança de habitat, o que ocorreu quando os hominídeos desceram das árvores para
viverem em áreas mais planas, as savanas. Isso também lhes permitiria um melhor uso
de armas e ferramentas. Mais recentemente, Michael Sockol, da Universidade da
Califórnia, propôs que os ancestrais dos humanos começaram a andar eretos para
economizar oxigênio, conseqüentemente energia. Defende que caminhar em postura
bípede consome apenas um quarto do oxigênio, portanto da energia, do que o andar
sobre quatro patas. Gastando menos energia, precisavam comer menos, bem como
dedicar um tempo menor na procura de alimentos.

O Homo habilis foi assim denominado por causa da evidência de ferramentas


encontradas junto com seus restos. Existiu entre 2,4 e 1,5 milhões de anos atrás e era
muito parecido com os australopitecos. Sua face ainda é primitiva, mas se projeta menos
que no A. africanus. Seus dentes posteriores são menores, porém ainda
consideravelmente maiores que os humanos modernos. A capacidade craniana média é
de 650 cc, consideravelmente maior que a dos australopitecos. O tamanho dos seus
cérebros varia entre 500 e 800 cc, sobrepondo-se ao dos australopitecos na sua faixa
inferior e ao do Homo erectus em sua faixa superior, além de caracteristicamente mais
humano.

Tinha cerca de 1,27 m de altura, e algo como 45 kg de massa corporal, embora


as fêmeas pudessem ter sido menores.

O Homo georgicus foi assim denominado em 2.002 devido a certos fósseis


encontrados em Dmanisi, Georgia, que parecem intermediários entre H. habilis e H.
erectus. Têm cerca de 1,8 milhões de anos, e sua capacidade craniana varia entre 600 e
680 cc. Sua altura foi estimada em 1,5 m.

O Homo erectus existiu entre 1,8 milhões e 100.000 anos atrás. Como o habilis,
sua face tinha mandíbulas protuberantes com grandes molares, espessas arcadas
superciliares, um crânio longo e baixo, com uma capacidade que variava entre 750 e
1.225 cc. Os espécimens mais antigos tinham uma média de 900 cc, enquanto que os
posteriores cerca de 1.100 cc. Seu esqueleto é mais robusto que o dos humanos
modernos, implicando em maior força. Suas proporções corporais variavam, o menino
de Turkana, exemplar fóssil da espécie, era alto e magro, porém ainda muito forte,
enquanto o homem de Pequim era mais compacto, possante. O estudo do esqueleto do
menino de Turkana indica que o H. erectus pode ter sido mais eficiente no caminhar que
os humanos modernos, cujos esqueletos tiveram que se adaptar para o parto de crianças
com cérebros maiores. O Homo habilis e todos os australopitecos são encontrados
apenas na África, porém o H. erectus foi encontrado também na Ásia e na Europa. Há
evidências que o erectus provavelmente empregou o fogo, e suas ferramentas de pedra
eram mais sofisticadas que as do H. habilis. O uso do fogo permitiu que os alimentos
ficassem mais macios, o que conduziu a uma diminuição dos músculos mastigatórios.
Os cientistas classificam algumas espécies africanas do H. erectus como uma espécie
diversa, o Homo ergaster, que difere dos fósseis asiáticos em alguns detalhes do crânio.
O sob a denominação de Homo erectus hoje se classificam vários outros homens
fósseis, como o Homem de Pequim, o Homem de Java e mesmo o Pithecantropus
robustus. Há evidências que o Homo habilis e o Homo erectus podem ter coexistido por
certo tempo.

O Homo antecessor foi assim denominado em 1.977 devido a fósseis


encontrados em uma caverna espanhola, em Atapuerca, e são datados de ao menos
780.000 anos atrás, sendo assim os mais antigos hominídeos europeus já encontrados.
Há muita discussão sobre a independência dessa espécie, ela pode ser parte de outra.

O Homo sapiens arcaico, também conhecido como Homo heidelbergensis, é


uma forma arcaica do Homo sapiens que surgiu por primeiro há cerca de 500.000 anos
atrás. A classificação abrange um grande grupo de fósseis que têm características tanto
do H. erectus como dos humanos modernos. Sua capacidade craniana é maior que a dos
erectus, mas menor que de muitos humanos modernos, com uma média de 1.200 cc.
Seus dentes, tal como seu esqueleto, são menos robustos que os dos erectus, porém mais
fortes que dos modernos humanos. Não há uma linha divisória clara entre exemplares de
erectus posteriores e sapiens arcaicos; muitos fósseis entre 500.000 e 200.000 anos atrás
são difíceis de classificar em uma ou outra categoria.

O Homo neanderthalensis existiu entre 230.000 e 30.000 anos atrás, e evoluiu


provavelmente do Homo sapiens arcaico. Sua capacidade craniana era levemente
superior à dos humanos modernos, cerca de 1.450 cc em média, porém isso pode ser
devido ao seu porte superior. Tinham mandíbulas protuberantes e testas recuadas.
Viviam em climas frios; suas proporções são similares às dos humanos modernos
adaptados ao frio: compactos e sólidos, com membros curtos. Provavelmente os
neandertais eram extraordinariamente fortes, seus ossos são pesados e mostram sinais
de músculos poderosos. Os homens tinham 1,68 m de altura em média. Eram caçadores
formidáveis, podem ter sido os primeiros hominídeos a sepultar seus mortos; o mais
antigo sítio de enterro conhecido a eles atribuído conta com uma idade de 100.000 anos.
Tinham armas e ferramentas mais avançadas que as do erectus.
A nossa própria espécie, Homo sapiens, se originou do Homo erectus, há cerca
de 195.000 anos. Os humanos modernos, o Homo sapiens sapiens, têm uma capacidade
craniana média de 1,350 cc. Há cerca de 40.000 anos atrás, com o surgimento da cultura
Cro-Magnon, paradigma desta espécie, as ferramentas se tornaram mais sofisticadas,
empregando uma ampla variedade de novos materiais, como chifre, ossos e marfim,
inclusive com novos implementos para costura, gravação e escultura. Um decrescimento
da sua robusteza pode ser discernido, os sapiens sapiens do Paleolítico Superior eram
20 a 30 % mais robustos que os atuais, e os do Mesolítico cerca de 10 %.
A evolução, por vezes, segue caminhos desconcertantes. Em 2003, na ilha de
Flores, na Indonésia, foram descobertos fósseis de indivíduos com cerca de 1 m de
altura, os quais receberam a denominação de Homo floresiensis, apresentando uma
idade entre 38.000 e 18.000 anos e com uma capacidade craniana de 380-417 cc Não
parecem ser anões, mas pessoas de estatura normal. Eram bípedes, empregavam
ferramentas de pedra e usavam o fogo. Graças ao seu isolamento, a evolução parece ter
propiciado o surgimento nela tanto de formas anãs de pessoas e mamíferos (elefantes
anões ali existiam), como gigantes, semelhantes aos enormes ratos extintos igualmente
encontrados na ilha.

Quando e onde o H.sapiens derivou do H.erectus é ainda hoje questão de intenso


debate. Alguns mantêm que este processo se realizou exclusivamente na África,
enquanto outros afirmam que a transição do H.erectus para o H.sapiens se realizou em
área mais ampla, na Ásia e talvez na Europa. Seguindo os primeiros, podemos imaginar
a emergência do H.sapiens sapiens há mais de 100.000 anos na África, e a sua gradual
dispersão pelo velho mundo.

Há cerca de 40.000 anos, a raça humana moderna já tinha colonizado o Levante


(isto é, os países do Mediterrâneo oriental), o sul da Ásia, a Europa, a Ásia central e
oriental, a Nova Guiné e a Austrália. Acredita-se que no máximo há 37.000 anos, mas
certamente não depois de 16.000 anos, emigrantes asiáticos cruzaram o Estreito de
Bering, iniciando o povoamento do novo mundo.

A antiga população do novo mundo, tradicionalmente aceita pela arqueologia


acadêmica conservadora, é a cultura Clóvis, assim batizada com o mesmo nome do sítio
arqueológico em que foram encontrados artefatos produzidos por pessoas que habitaram
a região entre dez e doze mil anos atrás. Logo em seguida surge a denominada cultura
Folson, também caracterizada por suas pontas líticas. Essas culturas eram compostas
por caçadores de grandes animais, tais como mamutes e mastodontes, que eram abatidos
por pontas de pedra lascada bastante afiadas, cuja técnica de produção permitia que
fossem colocadas na ponta de um cabo.

No sítio de Monte Verde, explorado pelo arqueólogo Tom Dillehay, no sul do


Chile, foram encontrados vestígios arqueológicos que sugerem uma presença humana
há 12.300 anos. A professora de antropologia da Universidade de Illinois, nos Estados
Unidos, Anna Roosevelt, bisneta do presidente norte-americano Theodore Roosevelt,
coordenou, em 1.996, uma equipe que pesquisou a caverna de Pedra Pintada, em Monte
Alegre, Pará, na margem esquerda do Rio Amazonas, a poucos quilômetros do que é
hoje Santarém, no Pará. Os vestígios encontrados indicam a ocupação do homem na
floresta amazônica por volta de 11.300 anos atrás. Em Taima-Taima, na Venezuela, há
indícios de presença humana que remontam há 15 mil anos.Na Argentina, nos sítios de
Piedra Museo e Los Toldos, apresentam vestígios humanos de aproximadamente 13 mil
anos. Os sítios de Tibitó, Colômbia, e os de Quebrada Jaguay e Pachamachay, no Peru,
possuem datações antigas de até 11.800 anos. No Brasil, foram encontradas evidências
remotas, anteriores a 10 mil anos, em Lapa do Boquête (c.12.000 A.C.), Lapa do Bicho
(c.10.450 a.C.), no Vale do Peruaçu, e em Lapa Vermelha e Santana do Riacho (c.
11.960 a.C.), Lagoa Santa, todos estes em Minas Gerais.

No início dos anos 70 foi encontrado um crânio feminino pela missão


arqueológica franco-brasileira, chefiada pela arqueóloga francesa Annette Laming-
Emperaire (1.917-1.977), com cerca de onze mil e quinhentos anos, o mais antigo da
América. O biólogo Walter Alves Neves denominou-o de Luzia, e esse fóssil iniciou o
questionamento sobre as teorias da origem do homem americano. O crânio foi
encontrado em escavações na Lapa Vermelha, uma gruta na região de Lagoa Santa, na
Região Metropolitana de Belo Horizonte. Essa gruta era famosa pelos trabalhos do
naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880), que lá descobriu, entre 1835
e 1845, milhares de fósseis de animais extintos do período Pleistoceno, além de 31
crânios humanos em estado fóssil, que passara a serem conhecidos como o Homem da
Lagoa Santa.

No estudo da morfologia desse crânio, encontrou-se traços que lembram os atuais


aborígenes da Austrália e os negros da África. Conjuntamente com Héctor Pucciarelli,
do Museo de Ciencias Naturales de la Universidad de La Plata, Neves formulou a teoria
de que o povoamento das Américas teria sido feito por duas correntes migratórias de
caçadores-coletores. Ambas teriam vindo da Ásia, provavelmente pelo estreito de
Bering, através de uma língua de terra chamada Beríngia, a qual se formou com a queda
do nível dos mares durante a última idade do gelo. Porém, cada corrente migratória era
composta por grupos humanos distintos. Os primeiros povoadores das Américas vieram
da Ásia, mas não eram mongolóides (asiáticos típicos), e sim "australo-melanésios",
embora não seja possível dizer se tinham pele negra, como os australianos modernos, e
seus membros teriam aparência semelhante à de Luzia. Essa população, que os
estudiosos denominam de "paleoíndia", teria cruzado o estreito de Bering, entre Sibéria
e Alasca, há cerca de 15 mil anos, tendo sido extinta devido a algum tipo de competição
com os mongolóides, antepassados dos índios atuais que imigraram depois. O segundo
grupo teria sido o dos povos mongolóides, há uns 11 mil anos, dos quais descendem
atualmente todas as tribos indígenas das Américas.

Nesse ponto vale a pena notar que escavações realizadas no Brasil, no município
piauiense de São Raimundo Nonato, pela arqueóloga Niède Guidon, vêm revelando
restos de assentamentos humanos com pelo menos 40.000 anos, o que vem forçando
uma revisão das datas admitidas para a colonização do novo mundo. Muita controvérsia
há sobre as descobertas em Pedra Furada, pois, dada sua antiguidade, não são
integralmente aceitas pela arqueologia acadêmica, a qual contrapõe que muitos dos
vestígios encontrados podem provir de causas naturais.

Todas as cinco linhagens de DNA mitocondrial: A,B,C,D e X, que


correspondem aos clãs primitivos dos nativos americanos, foram encontradas na Ásia
Central, e estas linhagens moveram-se para a América segundo as mesmas trajetórias
das linhagens masculinas.

Genética

A Genética tem se mostrado uma das mais eficazes ferramentas no estudo da


evolução e da dispersão da espécie humana. A molécula do DNA - ácido
desoxirribonucléico (DNA: Deoxyribonucleic Acid, em inglês) - é a responsável pela
transmissão da herança genética do homem. É uma molécula de ácido nucléico que
contém as instruções genéticas empregadas no desenvolvimento e funcionamento de
todos os organismos vivos. Compõe-se de um longo polímero de unidades simples
denominadas de nucleotídios, com uma estrutura em hélice dupla composta de unidades
de açúcares e fosfatos unidas por ligações ester. Os nucleotídios são conhecidos como:
Adenina (A), Citosina (C), Guanina (G) e Timina.(T). É a seqüência em que se dispõem
que codifica a informação genética transmitida.
Por exemplo, se um segmento do DNA é GCATGAACC, pode acontecer que uma
cópia dele passada de pai para filho sofre uma alteração no seu quinto nucleotídio, G
sendo substituído por T. O segmento correspondente do DNA da criança gerada fica
assim: GCATTAACC. Essa pequena alteração é denominada de mutação; como o DNA
é herdado, os descendentes dessa criança receberão o DNA alterado, que irá ocasionar
uma mudança visível em uma certa proteína. Os segmentos de DNA que carregam essa
informação genética são denominados genes. A leitura do código genético é justamente
a interpretação das informações armazenadas nessas seqüências, especificadas pela
seqüência linear dos nucleotídios. As outras seqüências do DNA têm ou finalidade
estrutural ou estão envolvidas na regularização do uso dessa informação genética.

Dentro das células, o DNA é armazenado em estruturas denominadas


cromossomos e o conjunto dos cromossomos constitui o genoma. Os cromossomos são
duplicados em um processo denominado de replicação antes das células se dividirem.
Organismos eucarióticos, tais como animais, plantas e fungos, armazenam o seu DNA
dentro dos núcleos das células, enquanto nos procarióticos, como as bactérias, ele é
encontrado no citoplasma. Os cromossomos variam em comprimento de 50 a 250
milhões de nucleotídios. Todos os cromossomos vêm em pares. Todo mundo herda um
cromossomo de cada par do pai e outro da mãe.

Os homens possuem 46 cromossomos. Há 23 pares de cromossomos ou um total


de 46 cromossomos. Todos os genes do corpo estão contidos nestes 46 cromossomos.
Dois destes cromossomos, os cromossomos X e Y, determinam o sexo, e são os
chamados cromossomos sexuais. As mulheres possuem dois cromossomos X e os
homens um cromossomo X e um cromossomo Y. O cromossomo Y serve basicamente
para determinar o sexo masculino. Os 44 cromossomos restantes são chamados de
cromossomos autossômicos. Por uma questão de conveniência, os cientistas numeraram
os pares de cromossomos autossômicos de 1 a 22. Os cromossomos X e Y são o 23º par.
Cada um dos pais contribui com a metade de cada par dos 23 cromossomos de seus
filhos, 22 autossômicos e um sexual. As mulheres sempre contribuem com o
cromossomo X, enquanto os homens podem contribuir com um X ou um Y. Portanto, é
o homem quem determina o sexo da criança.

O genoma humano é o código genético da nossa espécie. Os genes contidos no


genoma humano têm entre 5.000 e 50.000 nucleotídios de comprimento. No total, o
genoma humano contém ao redor de 25.000-30.000 genes, o que representa algo como
seis bilhões de nucleotídios, que podem se combinar das mais diversas maneiras.
Alguns desses, se desconfia, não desempenham uma função específica, são conhecidos
como DNA lixo (junk DNA), embora seja provável que a função de significativa parte
deste seja desconhecida apenas no estágio atual da ciência. Estimativas atuais apontam
que apenas cerca de 2% do material genético humano é composto de genes. Os seres
humanos são 99,9 % idênticos em nível de DNA.

Durante o processo conhecido como replicação a molécula do DNA serve como


modelo para criar uma outra versão de si própria. Milhões de enzimas copiadoras
realizam esse trabalho, juntando as peças no final. As enzimas são proteínas
especializadas na catálise de reações biológicas. Às vezes cometem erros, originando as
mutações. As enzimas que dividem o DNA são denominadas de enzimas de restrição.
Estas enzimas propiciam um meio simples de detectar diferenças entre o DNA de dois
indivíduos. São produzidas por bactérias e quebram o DNA em seqüências de 4, 6 ou 8
nucleotídios.

Um método para duplicar o DNA em um tubo de ensaio, empregando a enzima


DNA polimerase, que a natureza usa para duplicar o DNA quando as células se
dividem, foi descoberto e aperfeiçoado nos fins década de 80 do século passado, sendo
denominado de PCR, reação em cadeia da polimerase (PCR - Polymerase Chain
Reaction). Kary Mullis inventou esta técnica em de 1.983, tendo-lhe sido
posteriormente, em 1.993, atribuído o Prémio Nobel da Química pelo seu trabalho. Esta
técnica revolucionou o estudo da genética humana.

Para se proceder ao seqüenciamento de um gene, é preciso que ele seja antes


amplificado numa reação em cadeia da polimerase, e então clonado em bactérias. Após
a obtenção de quantidade suficiente de DNA, executa-se uma nova reação em cadeia,
desta vez utilizando didesoxirribonucleotídios marcados com fluoróforos para a
determinação da seqüência.

A genética já alcançou diversos resultados importantes no estudo da evolução


humana. Por exemplo, demoliu a noção da existência de raças, ou sub-espécies
humanas. Richard Lewontin mostrou que 85 % da variação na nossa espécie é
encontrada dentro de uma mesma população, ou seja, é distribuída igualmente entre de
todos os povos e raças, independentemete de qual sejam. Uma parcela de 8 % serve para
distinguir povos dentro de uma mesma raça, por exemplo, os dinamarqueses dos
espanhóis. Somente 2 % servem para distinguir entre diferentes raças, por exemplo, os
amarelos dos negros.

Nos últimos 60 anos vários geneticistas, entre os quais se destaca Cavalli-Sforza,


vêm mapeando a distribuição de centenas de genes nas diferentes populações do mundo.
Na reconstrução da distribuição das populações humanas pelo mundo, o conceito de
árvore de família é crucial, pois permite identificar as populações de antepassados e as
suas descendentes, colocando esta seqüência de eventos em ordem cronológica. Se
outros fatores são iguais, quanto mais distante no tempo ocorreu a separação de duas
populações, maior deve ser a diferença genética entre elas, ou seja, a distância genética.

Esse estudo é muito complicado nas sociedades metropolitanas, pela grande


miscigenação entre os genes dos habitantes; porém o estudo das populações aborígines
pode fornecer pistas valiosas. Distância entre grupos aborígines não pode ser deduzida a
partir da presença ou ausência de um único traço herdado, ou do gene que o expressa,
porque cada grupo carrega praticamente todos os genes existentes. O que varia é a
freqüência com a qual os genes aparecem.

Bom exemplo de distância genética é fornecido pelo fator Rh, antígeno


sangüíneo humano que se apresenta em duas formas, positivo e negativo. É transmitido
geneticamente; tem sido amplamente estudado, por razões de saúde pública. Os médicos
devem identificar as mulheres grávidas com fator Rh negativo e cujo feto é Rh positivo,
para lhe administrar tratamento imunológico logo após o parto, pois corre risco de vida.
Os genes Rh negativos são freqüentes na Europa, infreqüentes na África e Ásia
Ocidental, virtualmente ausentes na Ásia Oriental e entre as populações aborígines da
América e da Austrália.

Cerca de 16 % dos ingleses são Rh negativos, contra 25 % dos Bascos. Esta


diferença percentual de 9 % expressa, de certo modo, a distância genética entre eles. Já
a distância entre os ingleses e os asiáticos orientais é de 16 pontos: distância maior
implica separação mais antiga. Os Bascos, a propósito, acusam maior freqüência para o
gene do Rh negativo que qualquer outra população no mundo, o que ajuda a corroborar
a hipótese de que eles sejam um dos mais antigos povos da Europa, hipótese que parece
ser igualmente confirmada por considerações lingüísticas. Devem ter conservado parte
significativa da sua herança genética original, apesar do contato freqüente com
imigrantes tardios.

Os geneticistas empregam para o cálculo da distância genética fórmulas mais


complicadas que a simples subtração indicada. Um exemplo do cálculo de distância
genética pode ser encontrado no fim do capítulo, na Nota I, cuja leitura recomendamos
para o leitor interessado, e que tenha formação matemática um pouco mais avançada.

Cavalli-Sforza e os seus colegas Paolo Menozzi e Alberto Parma, em um


projeto de 12 anos, estudaram mais de 100 traços hereditários diferentes, em cerca de
3.000 amostras tomadas de 1.800 populações. Muitas amostras incluíram centenas ou
mesmo milhares de indivíduos. Tal conjunto de informações, que foi denominada
conjunto clássico, foi deduzido indiretamente a partir das proteínas que os genes
expressam. Posteriormente outro conjunto de informações pode ser obtido, a partir de
dados moleculares estudados diretamente na seqüência codificada do DNA nos núcleos
das células. Os dois conjuntos de dados, o molecular e o clássico, concordam de
maneira admirável.

Nos últimos anos, novo processo do estudo das distâncias genéticas foi
desenvolvido, principalmente pelo falecido Allan C. Wilson e colegas da Universidade
da Califórnia, em Berkeley. É baseado no relativamente pequeno número de genes
codificado no DNA das mitocôndrias, organelas celulares que metabolizam energia. Os
genes mitocondriais diferem dos do núcleo de maneira fundamental. Os genes nucleares
originam-se de iguais contribuições dos genes do pai e da mãe, mas os genes do
mitocôndria são passados para a prole quase exclusivamente pela mãe. Têm também
taxa de mutação mais alta que a dos genes nucleares e, nesse processo, a distância
genética é calculada não a partir da freqüência desses genes, mais sim a partir da
freqüência das suas mutações. Desta forma, o relógio mitocondrial é baseado no número
de mutações que se acumularam, ao invés de ser fundamentado nas mudanças das
freqüências dos genes.

O DNA mitocondrial é uma parcela de DNA que se localiza fora do núcleo,


onde o genoma humano é encontrado. É encontrado em uma estrutura denominada de
mitocôndria, que se localiza no citoplasma da célula. A mitocôndria tem sua própria
membrana celular e seu próprio DNA, o qual é circular, ao invés do DNA do núcleo que
é linear. Isso fornece uma pista sobre a origem das mitocôndrias, pois, na natureza,
somente nas bactérias o DNA é circular. Provavelmente a mitocôndria era uma bactéria
independente, que foi absorvida na célula há, talvez, um bilhão de anos atrás.

O Projeto Genoma Humano (PGH) objetivou o mapeamento do genoma


humano, bem como a identificação de todos os nucleotídios que o compõem. Após a
iniciativa do National Institutes of Health (NIH) dos Estados Unidos, centenas de
laboratórios de todo o mundo se uniram à tarefa de seqüenciar, um a um, os genes que
codificam as proteínas do corpo humano e também aquelas seqüencias de DNA que não
são genes. Laboratórios de todo mundo,inclusive de países em desenvolvimento,
participaram do empreendimento. Iniciou-se em 1990, com um financiamento de 3
milhões de dólares do Departamento de Energia dos Estados Unidos e dos Institutos
Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, e seu prazo era previsto em 15 anos. Graças à
cooperação da comunidade científica internacional, conjugada aos avanços no campo da
bioinformática e das tecnologias de informação, um primeiro esboço do genoma foi
anunciado em 26 de Junho de 2.000. Em 14 de Abril de 2.003 anunciou-se a conclusão
final do projeto, dois anos antes do previsto, sendo sequenciado 99% do genoma
humano, com uma precisão de 99,99%.

Convém recordar que nem todo o DNA humano foi seqüenciado, pois sua maior
parte parece não conter instruções para a formação de proteínas, e existe provavelmente
por razões estruturais. Muito pouco dessa maior parcela do material genético tem sua
seqüência conhecida.

A dedicação de Cavalli-Sforza e de seus companheiros em mapear a variedade


(Nota 2)
do genoma humano motivou a criação do Projeto Genográfico , que recebeu o
apoio do prestigioso magazine National Geographic, cujo objetivo é reunir o mais
abrangente possível arquivo da variação genética humana, necessário para explicar os
padrões globais de diversidade do gênero homo.

Os geneticistas se concentram em regiões do genoma onde é sabido que ocorrem


variações entre pessoas. Essas variações genéticas, denominadas de marcadores ou
polimorfismos, permitem o estudo das relações humanas. Como ocorrem muito
raramente, e quase sempre se originam de somente um indivíduo no passado, elas
definem uma linha de descendência, como um clã. Se vasculharmos os lugares do
genoma de alguém, onde marcadores são conhecidos, podemos identificar a que clã esta
pessoa pertence. A genética denomina esses clãs de haplogrupos, ou seja, um grupo de
pessoas que compartilha de um conjunto de marcadores genéticos e, portanto, têm um
ancestral em comum. O estudo dos haplogrupos levantados tanto pelo Projeto
Genográfico como pelos geneticistas seus antecessores, vem cambiando nossas visões
sobre as origens e a difusão global do Homo sapiens.

Para o cromossomo Y, cujo estudo se revelou de extraordinária importância, os


seus marcadores, que indicam sítios do genoma onde ocorrem variações genéticas, são
identificados com a letra M, tais como M9 ou M173. Sete haplogrupos do cromossomo
Y são os mais notáveis no estudo da distribuição da espécie humana, notadamente na
Europa: R1a1, R1b, I1a, I1b, J2, N, e E3b.

Os ancestrais dos europeus ocidentais modernos, membros do haplogrupo R1a1,


começaram a circular pela Europa há cerca de 35-40.000 anos atrás e encontraram
outros hominídeos que lá viviam, os neandertais. Em 1.997, Svante Paabo e Matias
Krings conseguiram extrair DNA intacto do primeiro exemplar descoberto dos
neandertais, o encontrado em 1.856 no vale do rio Neander, que emprestou o nome à
espécie. Krings conseguiu reunir DNA mitocondrial suficiente para descobrir que a
seqüência neandertal cai bem fora da variação vista nos humanos modernos. Seus
cálculos indicaram uma data ao redor de 500.000 para a divergência entre as duas
espécies. Isso permitiu esclarecer que os humanos modernos não são descendentes dos
neandertais, uma questão acalorada muito debatida quando de sua descoberta e mesmo
até recentemente.

O que realmente impressiona é que a distribuição dos genes concorda


surpreendentemente bem com a das linguagens. Em certos casos, uma língua ou família
de línguas podem servir para identificar uma população genética. Exemplo notável é o
das línguas Bantu, família que compreende cerca de 400 línguas no centro e sul da
África, afins entre si e correspondem fielmente às fronteiras e filiações genéticas tribais.

O motivo disso foi descoberto por Joseph Greenberg, na década de 1.950, com
base em argumentos lingüísticos. Concluiu que as línguas Bantu são descendentes de
língua ou de família de dialetos intimamente relacionados, falados por um grupo de
agricultores da Nigéria oriental e de Camarões, há pelo menos 3.000 anos, quando
começaram a se dispersar pela África central e do sul.
Essas línguas divergiram ao longo do tempo, mas não tanto que sua origem fosse
obscurecida. Como esta explicação se aplica também aos genes dessas populações, o
cognome Bantu - originalmente uma categoria lingüística - hoje designa grupo de
populações com as mesmas raízes genéticas e lingüísticas. O estudo dos dados genéticos
dessas populações confirmou as suspeitas de Greenberg.

A análise efetuada por Cavalli-Sforza de como os genes variam de um local da


Europa para o seu local vizinho, sugeriu um modelo de como a Europa foi colonizada.
O modelo se superpõe ao de Renfrew, ratificando a hipótese de que agricultores
neolíticos trouxeram os seus genes, cultura e línguas indo-européias do Oriente Médio
para a Europa, em um processo de lenta expansão. O mapa da distribuição geográfica
das freqüências dos genes na Europa mostra que esta se dá ao longo de um gradiente a
partir do sudeste para o noroeste.

Robert R. Sokal, da Universidade de Nova Iorque, encontrou recentemente


significativa evidência estatística de que boa parte desse gradiente está correlacionada
com a dispersão da agricultura a partir da Anatólia. O estatístico Guido Barbujani, da
Universidade de Pádua, que efetuou, há pouco tempo, análise análoga para as outras
famílias lingüísticas, cuja distribuição pode ser explicada pela dispersão da agricultura a
partir do Levante (tais como a afro-asiática, a elamo-dravídica e a altaica antiga),
encontrou correspondência similar. Muito trabalho resta a ser feito segundo estas linhas
de pesquisa.

Adão e Eva

Uma das suas conclusões mais surpreendentes é que podemos rastrear os genes
mitocondriais do todos os homens hoje existentes até os de uma única mulher, que deve
ter vivido na África, há cerca de 170-200.000 anos. Rebecca Cann e seus colegas da
Universidade da Califórnia, em 1.987, foram os responsáveis por esta hipótese, que
recebeu memorável divulgação pela imprensa, sendo a mulher cognominada de "Eva", a
antepassada bíblica de toda a humanidade.

A linhagem da Eva ancestral é conhecida como haplogrupo L0, o qual,


eventualmente, há cerca de 100.000 anos, formou outro grupo, o L1, que coexistiu com
a linhagem original por certo tempo. Hoje em dia as maiores freqüências de L0 são
encontradas entre os pigmeus da África Central bem como entre os povos San (os
Bushmen do deserto do Kalahari), como os Khoisan do sul da África. Populações sul-
americanas também apresentam uma freqüência relativamente alta de L0, que podem
provir dessas linhagens do centro e sudoeste da África, talvez devido ao tráfico de
escravos.

O haplogrupo L2 se originou há cerca de 70.000 anos e é considerado a assinatura


da linhagem Bantu. Concentra-se hoje no oeste da África, porém suas origens ainda são
matéria de debate. O L3 se formou há aproximadamente 80.000 anos, e se concentra
hoje no norte da África. Muitas populações sul-americanas também descendem dessa
linhagem. Essas linhagens ainda são objeto de estudo mais aprofundado.

E quanto a Adão, o antepassado masculino de toda a espécie humana? O


problema é que o DNA mitocondrial, que passa para a prole pela mãe, é relativamente
fácil de trabalhar, enquanto que o contido no cromossomo Y, que não varia muito de
pessoa a pessoa, não tinha, na época, técnicas expeditas de sequenciamento. Estas
técnicas somente ficaram disponíveis no meio da década de 1.990, quando Peter Oefner
e Peter Underhill, que então trabalhavam no laboratório de Luca Cavalli-Sforza na
Universidade de Stanford, inventaram um novo método para acessar variações na
seqüência genômica, não baseado em sequenciamento direto. Publicaram em 2.000,
portanto mais de 13 anos após a descoberta de Eva, um trabalho que apontava a
evidência de um ancestral comum masculino, Adão, o qual viveu na África há cerca de
60.000 anos atrás.

O haplogrupo A do cromossomo Y data de aproximadamente 60.000 anos atrás e


foi originado pelo Adão africano. Hoje se encontra associado à tribos de caçadores-
coletores, tais como os San do Kalahari e os Hadzabe da Tanzânia (que pertencem ao
clã B). Os San apresentam também uma alta freqüência do L0/L1, mas não os Hadzabe,
que são primariamente L2. Isso significa que esses povos não são apenas os
remanescentes de uma única população, que se dividiu recentemente, mas que vivem
em suas presentes locações separados por dezenas de milhares de anos. Isso sugere que
suas línguas irmãs datam de um tempo anterior à recente expansão Bantu, e que podem
ter dezenas milhares de anos de idade, talvez vestígios das mais antigas línguas da
humanidade.

Fig. 3.3 Principais linhagens africanas do cromossomo Y: A; B; E3a.

O haplogrupo B é comum entre pigmeus da floresta central africana e entre os


Hadzabe, e se originou há 50-60.000 anos atrás. A linhagem E3a está associada aos
povos de fala Bantu.

Por que essa diferença entre 60.000 e 170.000 anos atrás, será que Adão e Eva
nunca se encontraram? Esse intervalo temporal entre linhagens é atribuído ao
comportamento sexual primitivo. Em sociedades primitivas existiam, acredita-se, os
machos dominantes, os líderes, os senhores da guerra, que eram responsáveis pela
maioria da prole. Este fenômeno é conhecido como variância no sucesso reprodutivo.
Enquanto as mulheres têm uma melhor chance de passarem o seu DNA mitocondrial
para a próxima geração, isso não acontece com os homens, desde que nem todos os
homens transmitirão seu Y. Isso significa que, com o tempo, as linhagens Y são mais
susceptíveis de serem perdidas que as do DNA mitocondrial, e as únicas que hoje
restaram datam ao redor de 60.000 anos. Isso significa que humanos modernos ainda
habitavam a áfrica há cerca de 60.000 anos atrás, somente após esta data é que começou
a dispersão global do Homo sapiens sapiens, bem como a geração de todas as raças e
povos hoje existentes.
A dispersão do Homo sapiens

A ciência que estuda o lugar de origem e a dispersão das linhagens genéticas


originais é denominada de filogeografia.

Como estudamos, o Homo erectus desapareceu há cerca de 100.000 anos atrás, e


mesmo os antigos Homo sapiens, que habitaram o Oriente Médio ao redor de 110.000
atrás se extinguiram há 30.000 anos atrás. Os próximos hominídeos que encontramos
vivendo fora da África habitavam a Austrália, e sua presença é a mais antiga no mundo,
predatando a presença de humanos modernos na Europa em cerca de 10.000 anos.
Esqueletos foram datados entre 45.000 e 50.000 anos atrás foram encontrados no Lago
Mungo, Nova Gales do Sul. Esse fato não é explicado pelos nossos conhecimentos
arqueológicos atuais, talvez haja uma lacuna ainda não preenchida no registro fóssil. De
qualquer forma, a discussão acerca de como os humanos chegaram à Austrália sem
aparentemente passarem pela Ásia é um dos mais calorosos debates recentes da
arqueologia.

Os primeiros humanos modernos a imigrarem da África podem ter passado pela


Índia para habitarem o sul da Ásia e a Austrália, conforme aponta a evidência genética.
Isso é confirmado pelo marcador M130, o centésimo trigésimo marcador a ser
descoberto no cromossomo Y. Aparece com uma freqüência de cerca de 20% no sudeste
da Ásia e é a linhagem predominante entre os aborígines da Austrália, com uma
freqüência de mais de 50 %.

Porém, cabe lembrar, esses não eram os primeiros humanos na região, foram
encontrados esqueletos e crânios do Homo sapiens primitivo nas cavernas de Qafzeh e
Skhul, em Israel, datando de 100.000 anos atrás, mas este parece ter desaparecido há
cerca de 30.000 anos.
Fig. 3. 4 Dispersão dos humanos modernos pelo
sudeste da Ásia e Austrália

Parece que a imigração dos humanos modernos da África ocorreu não em uma
única, mas em várias ondas. Em uma dessas ondas um grupo de hominídeos deixou a
África há cerca de 45.000-50.000 anos atrás e entrou no Oriente Médio. Sua rota exata é
desconhecida. Esse grupo é caracterizado pelo marcador M89 do cromossomo Y e pelo
haplogrupo N do DNA mitocondrial. Esse grupo se espalhou rapidamente pelo
continente asiático, e parece ter levado menos de 10.000 anos para colonizar a terra
abaixo do Ártico. Inclusive penetraram as regiões ao sul e sudestes, colonizadas
anteriormente pelo haplogrupo M130.
Fig. 3.5 Dispersão das linhagens masculina (cromossomoY) e
feminina (DNA mitocondrial) para a colonização do globo
(adaptado de Wells, 2006).

È altamente provável que a pele dos nossos mais antigos ancestrais tenha sido
escura. A melanina, o pigmento que torna a pele escura, é um protetor solar natural, que
diminui as queimaduras por exposição solar. O gene responsável pela coloração mais
escura da pele é caracterizado pelo marcador MC1R (melanocortin recaptor). Quando
os humanos emigraram dos trópicos, encontraram regiões com muito menor exposição à
luz ultravioleta (UV). Alguma luz UV tem de penetrar a pele para que haja a produção
da vitamina D, caso contrário ocorre uma deficiência vitamínica denominada de
raquitismo. Se crianças de pele escura mantivessem sua cor longe dos trópicos, cairiam
doentes. Isso ocasionou uma pressão evolutiva sobre o gene MC1R, que produziu
mutações, dando origem a uma pele mais clara. Logo, a pele mais clara dos europeus é
devida a uma forte seleção natural ocorrida nos últimos 50-60.000 anos, quando o homo
se distanciou de sua África natal.

Colonização da Europa

Cerca de 80 % da diversidade genética dos europeus parece ter-se originado dos


caçadores-coletores Paleolíticos, cujos descendentes foram capazes de sobreviver à
última glaciação. Isso significa que, apesar do sucesso da agricultura e da domesticação
de animais, apenas uma minoria das linhagens genéticas hoje existentes na Europa
descende destes agricultores neolíticos.

Sete grandes grupos são responsáveis pela maioria da diversidade genética hoje
encontrada na Europa, ou seja, os haplogrupos do cromossomo Y: R1a1, R1b, I1a, I1b,
J2, N e E3b. Juntos respondem por mais de 95 % dos haplogrupos encontrados em
populações européias. Cada um se originou de um único homem no passado, e juntos
foram realmente os pais fundadores da Europa.

Fig. 3.6 Haplogrupo R1b

O haplogrupo R1b apresenta uma freqüência alta na Europa Ocidental; entre


alguns povos, por exemplo, entre os irlandeses, quase todo indivíduo desta população
carrega os seus genes. Sua freqüência decresce quando nos movemos para o leste, entre
os poloneses e os húngaros a freqüência com que aparecem os genes do haplogrupo R1b
cai para um terço dos indivíduos destas populações.

A imagem simétrica do
haplogrupo R1b é a apresentada pelo
R1a1. É muito comum na Europa
Oriental, onde inclui mais da metade
dos russos e dos tchecos, mas é muito
raro na Europa Ocidental.
Curiosamente, também o encontramos
Fig. 3. 7 Haplogrupo R1a1.
com uma freqüência alta na Índia e na
Ásia Central, o que caracteriza uma ampla imigração dos descendentes do homem que
primeiro possuiu o marcador que caracteriza este haplogrupo (SRY1083.2).

As próximas linhagens importantes são o I1a e o I1b. Eles são formados por
descendentes de povos paleolíticos que se refugiaram na Península Ibérica (I1a) e nos
Bálcãs (I1b) durante a era glacial. Quando o máximo glacial passou e a Europa
começou a se aquecer, deixaram seus abrigos e principiaram a repopular a Europa.

O I1a tem uma alta freqüência na


Escandinávia, enquanto o I1b no Balcãs. De
certa forma, completa a distribuição
genética nos pontos cardeais da Europa:
leste-oeste dos R1a1 e R1b, norte - sul dos
I1a e I1b.
Fig. 3.8 Haplogrupo I1a

Fig. 3. 9 Haplogrupo I1b


CAPÍTULO IV

AS LÍNGUAS

O conhecimento não se apóia só na


verdade, mas também no erro.

Carl Jung

Introdução

A própria estrutura de uma língua modela sutilmente o modo como um povo


concebe a natureza do mundo que se encontra. Edward Shapir (1.884-1.939) foi um dos
primeiros a afirmar que “a linguagem e nosso modo de pensar estão estreitamente
imbricados, são, em certo sentido, uma mesma coisa” (Hoebel, 1973, p.44). Essa
afirmação é conhecida em Antropologia como a hipótese de Shapir-Whorf. Benjamin
Lee Whorf, um engenheiro químico, mostrou como a língua hopi, entre outras, cria um
sentido de tempo radicalmente diferente do ocidental, o que mostrava a dependência de
uma Weltanschauung11 de um povo com a sua língua.

Qual foi a língua original e de que forma esta se difundiu, originando as línguas
faladas no presente pelos vários povos, são questões que sempre intrigaram a
humanidade.

O historiador grego Heródoto narra que o faraó Psamético, do século sétimo


antes da nossa era, desejava saber qual foi a raça primordial e, consequentemente, a
língua original da humanidade. Para isto ordenou que dois bebês recém-nascidos fossem
mantidos isolados, em estrito silêncio, sem que nunca tivessem ouvido pronunciar
qualquer palavra. O seu primeiro balbucio registrado foi bekos, palavra esta que os
escribas reais descobriram ser palavra para pão em frígio, língua da Anatólia. Assim
concluíram que o frígio fora a primeira língua da humanidade.

As especulações sobre a origem das línguas acabaram tornando-se tão absurdas


e vazias que, em 1866, a Sociedade Lingüística de Paris baniu tais questões de suas

11
Visão de mundo.
discussões. Qual a língua original da humanidade nos parece, no momento, uma questão
cuja resposta está além do nosso alcance, se é que algum dia possa ser respondida.
Mergulhando no passado, podemos tentar reconstruir, a partir das línguas atuais, as suas
matrizes e o seu processo de difusão.

É óbvio que a difusão das línguas está ligada à expansão da raça humana, desde
o seu habitat original. Outro ponto importante que cumpre salientar são as diferenças
anatômicas entre o homem moderno e os seus antepassados fósseis. Essas diferenças
importantes no aparelho fonador não permitiriam aos nossos antepassados enunciar
todas as vogais e consoantes das línguas modernas; portanto, se falavam alguma língua
primitiva, esta certamente não soaria aos nossos ouvidos como moderna. É o trato vocal
supra-laringeal que permite ao homem a sua capacidade de emitir sons, ou seja, de falar.
É a forma não usual do trato vocal que torna os homens os únicos mamíferos incapazes
de beber e respirar ao mesmo tempo.

Quem primeiro associou a evolução das línguas com a biologia foi Charles
Darwin. No seu livro "A Descendência do Homem", escrito em 1871, afirmou: ”A
formação das diferentes línguas e das diferentes espécies, e as provas de que ambas
devem ter-se desenvolvido mediante processo gradual, são curiosamente paralelas".

Os australopithecus, notadamente os australopithecus africanus, tinham o


mesmo trato vocal supra-laringeal que os nossos macacos modernos; todavia os
especialistas admitem que os australopithecus poderiam estabelecer comunicação vocal,
se outros pré-requisitos estivessem presentes. Deveriam ter as habilidades motoras e a
automatização necessária para produzir as manobras articulatórias coordenadas, que são
exigidas para a produção dos fonemas, além de terem tido as habilidades neurais
necessárias para perceberem as diferenças de qualidade de som que os caracterizam.

É interessante observar que pássaros, como o papagaio ou o mainá, imitam sons


produzidos pelo homem, sem possuírem o trato vocal supra-laringeal, a habilidade
cognitiva e a sintaxe, que também são fatores necessários na linguagem.

O trato vocal supra-laringeal do homem de Neandertal diferia muito daquele do


homem moderno. Toda a vocalização desses homens possivelmente teria tido uma
qualidade continuamente nasal, e provavelmente não conseguiriam produzir sons não
nasais. Quando o homem teria desenvolvido as características modernas do seu aparelho
fonador é questão que ainda permanece aberta. Outro ponto importante que cumpre
salientar são as diferenças anatômicas entre o homem moderno e os seus antepassados
fósseis. Essas diferenças importantes no aparelho fonador não permitiriam aos nossos
antepassados enunciar todas as vogais e consoantes das línguas modernas; portanto, se
falavam alguma língua primitiva, esta certamente não soaria aos nossos ouvidos como
moderna. É o trato vocal supra-laringeal que permite ao homem a sua capacidade de
emitir sons, ou seja, de falar. É a forma não usual do trato vocal que torna os homens os
únicos mamíferos incapazes de beber e respirar ao mesmo tempo.

Os australopithecus, notadamente os australopithecus africanus, tinham o


mesmo trato vocal supra-laringeal que os nossos macacos modernos; todavia os
especialistas admitem que os australopithecus poderiam estabelecer comunicação vocal,
se outros pré-requisitos estivessem presentes. Deveriam ter as habilidades motoras e a
automatização necessária para produzir as manobras articulatórias coordenadas, que são
exigidas para a produção dos fonemas, além de terem tido as habilidades neurais
necessárias para perceberem as diferenças de qualidade de som que os caracterizam.

É interessante observar que pássaros, como o papagaio ou o mainá, imitam sons


produzidos pelo homem, sem possuírem o trato vocal supra-laringeal, a habilidade
cognitiva e a sintaxe, que também são fatores necessários na linguagem.

O trato vocal supra-laringeal do homem de Neandertal diferia muito daquele do


homem moderno. Toda a vocalização desses homens possivelmente teria tido uma
qualidade continuamente nasal, e provavelmente não conseguiriam produzir sons não
nasais. Quando o homem teria desenvolvido as características modernas do seu aparelho
fonador é questão que ainda permanece aberta. Um dos antepassados próximos na
linhagem do Homo sapiens sapiens é o identificado com o crânio Es-Skhul V. Foi
encontrado próximo do Monte Carmelo em Israel, e data de aproximadamente 40-
50.000 anos atrás. O seu trato vocal é virtualmente idêntico ao do adulto moderno, o
que mostra que nessa data o homem já tinha características fonadoras modernas, e a
atual motricidade bucofonatória.

O problema do trato vocal do Homo erectus ainda está sendo estudado, pois a
parte inferior dos crânios remanescentes destes encontra-se, em geral, muito danificada,
dificultando o seu estudo. Além disso, os vários espécimens diferem consideravelmente,
alguns apresentando determinadas características, outros não.
A linguagem articulada é a maior invenção humana, se realmente for invenção.
Noam Chomsky, do Massachusetts Institut of Technology pensa que não é. Acredita
que a linguagem é tão inata para um bebê como voar é para um filhote de passarinho, e
que crianças não somente aprendem a linguagem, como a desenvolvem em resposta a
um estímulo.

o Como teria sido a primeira língua? E as primeiras palavras? Várias


teorias foram aventadas, entre elas as que se arrolam aqui:

• A teoria "au-au": as primeiras palavras podem ter sido formadas por


onomatopéias, como em au-au para o cachorro, piu-piu para o passarinho, ma-
ma e pa-pa, para mãe e pai, e assim por diante. Essas palavras seriam
“simbólico-sonoras”, para os lingüistas.
• A teoria "pô-pô": interjeições emocionais como "pô", "bah", "ai" podem ter
sido as primeiras palavras.
• A teoria "ô-e-ô": quando muitas pessoas coordenaram os seus esforços para
puxar corda, para rolar pedra, podem ter recorrido a cantos rituais que
eventualmente adquiriram significado.
• A teoria ¨lá-lá-lá": alguns sons podem ter se originado como brincadeiras,
como no canto de crianças.
• Gestos orais: os primeiros falantes pode ter usado seus lábios para apontar,
criando mudanças nas vogais que distinguiriam perto de longe. Isto explicaria as
mudanças ouvidas em palavras como aqui, ali, this, that; voici, voilà.
• Gritos de alerta: como "cuidado", "corra", "aqui" ou "socorro".

Acredita-se que o desenvolvimento do cérebro permitiu aos hominóides


primitivos o surgimento da fala. Estruturas neurais capacitaram-nos a relacionar
significados a gestos e sons, produzindo linguagem primitiva que não tinha sintaxe, isto
é, a ordenação de palavras, que define a linguagem humana. A linguagem primitiva
estaria repleta de palavras substantivas, mas carente de elementos gramaticais.

Como teria evoluído muito antes do aparecimento da sintaxe, traços dela talvez
possam ser encontrados na gesticulação dos macacos, aos quais se ensinou os elementos
da linguagem dos gestos. As crianças-feras, que foram mantidas isoladas nos anos
cruciais antes que a sintaxe normalmente se desenvolva, também podem fornecer pistas
de como seria essa linguagem primitiva. As "crianças-lobos", encontradas na Índia nos
princípios do século, podiam aprender muitas coisas, mas nunca superaram a habilidade
verbal da criança normal de dois anos.

O salto da linguagem primitiva para a linguagem com sintaxe permanece a


questão mais intrincada. Argumentou-se que um único evento genético bastaria para
tornar a linguagem primitiva em linguagem de sintaxe. Note-se que todos os pré-
requisitos para transformar a linguagem (cérebro maior, trato vocal aperfeiçoado, novas
ligações neurais) envolvem mudanças na anatomia do cérebro. Chomsky acredita que
este evento deve ter ocorrido abruptamente, em termos evolucionários, porque a sintaxe
exige padrão inato extremamente intrincado. Ele pensa que esse padrão inato explicaria
por que a criança pode aprender qualquer língua, sem cometer os erros gramaticais que
seriam esperados, se nenhuma estrutura pré-programada existisse.

Esse “Grande Passo Adiante” em termos evolucionários, como Jared Diamond


denomina, parece ter ocorrido há 50-60.000 anos atrás, coincidente com as origens
genéticas das populações modernas, segundo estudamos.

Outra adaptação importante foi a aquisição da habilidade para decodificar


vocalizações. O nosso cérebro, ao que parece, está adaptado para processar modulações
vocais.

Neste ponto, cabe notar que a genética moderna nos propiciou uma pista
importantíssima sobre as origens das línguas. Já mencionamos que povos caçadores-
coletores africanos, como os San do deserto do Kalahari, entre os quais os !Kung e
G/wi, e dos Hadzabe, da Tanzânia, figuram entre as mais antigas linhagens genéticas
desse continente. Esses povos compartilham algo em comum: todos são falantes da
denominada língua dos cliques (click language). Os símbolos ! e / representam
determinados cliques, estalidos ou sons percussivos emitidos pelos seus falantes.
Algumas das linguagens dessa família, denominada de Khoisan, têm mais de 100 sons
diferentes, enquanto que a maioria das línguas européias tem em torno de 30. Acredita-
se que os falantes dessas línguas habitavam a África oriental, sendo forçados a se
deslocarem para seus locais atuais pela expansão das outras famílias lingüísticas
africanas, especialmente a Bantu.
Línguas não fossilizam, mas se línguas dos cliques eram faladas pelos ancestrais
dos San e dos Hadzabe, estas línguas podem estar entre as mais antigas línguas faladas,
senão as mais antigas de todas, verdadeiros fósseis lingüísticos. Empregando técnicas de
estimação da separação temporal das linhagens do cromossomo Y e do DNA
mitocondrial chega-se à conclusão que esses povos, bem como suas línguas, podem ter
mais de 50.000 anos de idade. Isso pode nos fornecer pistas sobre como nossos
ancestrais se pareciam, bem como sobre seu modo de vida.

Há, modernamente, um preconceito errôneo sobre o modo de vida dos


caçadores-coletores. Thomas Hobbes, já no século XVII, acreditava que a vida desses
povos era “sórdida, violenta e curta”, visão esta que prepondera até nossos dias. Na
verdade, seu modo de vida pode ser mais feliz e menos cansativo ou desgastante que o
pretenso “cômodo modo de vida da sociedade moderna”. Nas palavras da antropóloga
americano Lorna Mashall Sahlins, o modo de vida por meio da caça-coleta constitui a
“sociedade afluente original”.

A caça, entre os !Kung, não é uma atividade de tempo integral. Em média,


dispendem nela dois dias e meio por semana, ou seja, cerca de 19 h, pois um “dia de
trabalho” para eles tem a duração de 6 h. Isso está longe de ser considerado de “trabalho
cansativo”. As mulheres, responsáveis pela coleta, também não são muito pressionadas.
Em uma única viagem de coleta, quase sempre conseguem o suficiente para alimentar
sua família por três dias, dedicando o resto do seu tempo ao lazer, para visitar ou
receber visitas, ou para executar trabalhos com agulha. . Um passo importante na
evolução do Homo sapiens foi a invenção do saco de carga.

A reserva de alimentos no acampamento poucas vezes dura mais que três dias, o
que implica em que durante o ano todo é mantido um ritmo constante de trabalho e
lazer. Um aspecto importante do lazer são as chamadas danças-extase, produzidas por
estados alterados de consciência, que estudaremos adiante. Com um suprimento de
alimentos à mão, os !Kung mantém-se com boa saúde, apesar de habitarem em um dos
lugares mais inóspitos e escaldantes do globo. Cerca de 10 % dos !Kung têm mais de 60
anos de vida, índice próximo de muitas sociedades civilizadas. Os velhos são
respeitados por sua sabedoria acumulado, bem como por seu conhecimento sobre
rituais. Os jovens não contribuem para a alimentação coletiva até que se casem, o que
ocorre por volta dos 23 anos para os homens e 18 anos para as mulheres. São, portanto,
os indivíduos entre 20 e 60 anos que caçam e colhem, e representam cerca de 60 % do
grupo. Têm, desse modo, uma infância feliz, uma idade adulta tranqüila e uma velhice
bastante segura.

A definição de sociedade afluente, proposta por Sahlins, aquela “na qual todos
os desejos das pessoas são facilmente satisfeitos”, parece mais talhada para os !Kung do
que para a sociedade moderna. O way of life atual multiplicou exponencialmente os
objetos de desejo das pessoas, implantando um padrão consumista cada vez mais voraz,
mais por imitação ou modismo do que por real necessidade.

As fontes de suprimento e o tipo de alimentação dos caçadores-coletores podem


variar conforme a região do globo em que habitam, mas, seja nas regiões tropicais,
como entre os indígenas brasileiros, ou nas remotas regiões árticas, seu modo de vida é
bastante similar.

O primeiro grande grupo de línguas a ser estudado de modo científico foi o das
línguas indo-européias. Abriremos, agora, um parênteses para apresentar sua história,
que se entretece com o estudo comparativo das línguas.

O Problema indo-europeu - Sinopse histórica

As relações íntimas entre as línguas européias já tinham sido percebidas desde o


início do século XVII. Joseph Scaliger (1540-1609), por exemplo, procurou reunir as
línguas européias em quatro grandes grupos, cada qual denominado pela sua palavra
para "Deus".

Um era o grupo hoje conhecido como o das línguas românicas, reconhecido


como o grupo deus (latim deus, italiano dio, português deus), que contrastava com o das
línguas germânicas gott (inglês god, holandês god, sueco gud) . Havia ainda o grupo do
grego theos e o do eslavo bog (russo bog, tcheco buh). Não progrediu para além deste
agrupamento, negando terminantemente qualquer relação entre os grupos.

Em 1786, um juiz inglês, com posto na Corte Suprema em Calcutá, efetuou


descoberta notável. Sir William Jones, antes de se dedicar ao estudo do Direito, recebeu
formação de caráter orientalista. Desde a sua chegada a Calcutá, uns três anos antes
desta data, se devotava ao estudo do sânscrito, língua na qual estão redigidos os textos
sagrados e a literatura da Índia. Nessa época já era uma língua morta, mas servia de
língua erudita e literária, mais ou menos como o latim no ocidente, durante a
Renascença, ou o sumério na Babilônia antiga.

Em um discurso pronunciado perante a Sociedade Asiática de Bengala, Sir Jones


fez uma observação que se constituiu no ponto de partida para os estudos indo-
europeus:

"O sânscrito, sem levar em conta a sua antigüidade, possui uma estrutura maravilhosa: é mais
perfeito que o grego, mais rico que o latim e mais extraordinariamente refinado que ambos. Mantém,
todavia, com estas duas línguas tão grande afinidade, tanto nas raízes verbais como nas formas
gramaticais, que não é possível tratar-se de produto do acaso. É tão forte esta afinidade que qualquer
filólogo que examine o sânscrito, o grego e o latim não pode deixar de acreditar que os três provieram de
uma fonte comum, que talvez não mais exista. Razão idêntica, embora menos evidente, há para supor que
o gótico e o celta tiveram a mesma origem que o sânscrito; poderíamos ajuntar a esta família o velho
persa, se tivéssemos lugar aqui para debater as antigüidades persas". (Robins, Pequena História da
Lingüística, p. 107)

Esse acontecimento assinala o início da Lingüística Comparativa e Histórica.


Alguns estudos anteriores ao de Jones já registravam a semelhança entre o sânscrito, o
persa e algumas línguas antigas e modernas da Europa, mas sempre de modo isolado e
fragmentário, nenhum com a acuidade do lingüista-magistrado.

Friedrich von Schlegel, em 1808, publicou uma obra intitulada Über die
Sprache und Weisheit der Indier (Sobre a língua e sabedoria das Índias), na qual
despertou a atenção do mundo erudito para o fato de que o estudo das "estruturas
internas" (isto é, da morfologia) das línguas poderia prestar valiosos esclarecimentos
sobre o relacionamento lingüístico genético. Procurou, reconstruindo a história
lingüística de cada uma, recuperar as mais antigas formas das palavras indo-européias.
Difundiu a idéia, hoje superada, de que as línguas européias descendiam do sânscrito.

Franz Bopp (1791-1867) publicou em 1816 um trabalho que comparava as


conjugações do sânscrito com as do grego, do latim, do persa e da língua alemã e, entre
1833 e 1852, uma gramática comparada das línguas sânscrita, avéstica, armênia, grega,
latina, lituana, eslava antiga (eclesiástica), gótica e alemã. É considerado o fundador da
gramática comparada.
Em 1818 o dinamarquês Ramus Rask (1787-1832) publicou um estudo sobre a
origem da língua islandesa, comparando o antigo nórdico com várias línguas, entre elas
o gótico e o galês.

O alemão J. Grimm (1785-1863), mais conhecido por seus contos infantis,


estabeleceu correspondências entre os sons de uma língua com os de outra, instituindo
assim regras de mudanças de letras, que explicam a passagem de uma língua para outra,
hoje conhecidas como Leis de Grimm, publicadas pela primeira vez na sua Deutsche
Grammatik, em 1822.

Bopp, Rask e Grimm são considerados os fundadores da lingüística histórica


científica.

Uma vez reconhecidas as afinidades existentes entre as línguas, adotou-se o


termo "família de línguas" para representar um conjunto de línguas aparentadas. Dois
filólogos, o alemão Julius Klaproth e o inglês Thomas Young cunharam, mais ou menos
na mesma época, no início do século XIX, dois termos: "Línguas Jaféticas" (Klaproth) e
"Línguas Indo-Européias" (Young).

Algumas explicações antigas sobre as origens das línguas baseavam-se em


interpretação literal da tradição bíblica contida no Gênesis, sobre a dispersão dos três
filhos de Noé, Cam, Sem e Jafé, após o desembarque da Arca no monte Ararat.

As línguas africanas, então, foram denominadas de camíticas (egípcio, cushita,


etíope, etc.), as do Levante (árabe, hebreu, acadiano, etc.) semíticas, enquanto aquelas
situadas nas terras mais ao norte se tornaram as línguas jaféticas; portanto coube ao
terceiro filho de Noé, Jafet, nominar todas as línguas européias. Destas três
denominações, a única que ainda sobrevive é a das línguas semíticas.

Ao contrário dessas, a denominação criada por Young de línguas indo-européias


hoje está amplamente difundida e aceita, embora não seja inteiramente correta, já que na
Europa se falam línguas de outras famílias: o húngaro e o finlandês, da família fino-
úgrica; e na Índia, são falados idiomas não indo-europeus, como as línguas dravídicas,
por exemplo.
Os lingüistas alemães, encabeçados pelo próprio Klaproth, preferem o termo
indo-germânico em lugar de indo-europeu, o que é ainda menos conveniente e mais
provinciano.

A figura que exerceu maior importância no campo da lingüística, na metade do


século passado, foi talvez August Schleicher (1821-1868). Publicou numerosos
trabalhos, em sua vida relativamente curta, dos quais o mais conhecido é o Compêndio
de Gramática Comparada das Línguas Indo-Germânicas (1861).

Schleicher procurou resgatar as formas mais primitivas das palavras indo-


européias, com a reconstrução histórica, por meio do estudo dos traços comuns de
palavras cognatas (isto é, parentes) de cada língua. Por exemplo, podemos comparar a
palavra inglesa birch (bétula), com a alemã birke, a lituana berzas, o eslavo antigo breza
e o sânscrito bhurja. As semelhanças constatadas parecem indicar a existência de uma
palavra na língua original dos indo-europeus primitivos, a partir da qual estas
derivaram. Segundo as regras que governam as mudanças fonéticas, estabelecidas pelos
lingüistas, podemos reconstruir a palavra *bergh, sendo que o asterisco indica que a
palavra não é atestada em qualquer fonte escrita, mas produto de reconstrução
lingüística.

A língua arcaica ou original dos indo-europeus é denominada de Proto-Indo-


Europeu, ou de Ursprache, termo inventado pelos sábios alemães. Schleicher se
arriscou até a escrever uma fábula, A Ovelha e os Cavalos, no proto-indo-europeu que
reconstruiu. Lembremo-nos, porém, de que esta é língua inferida, isto é, não atestada,
por isto Schleicher foi duramente criticado por esta aventura.

Outro legado importante de Schleicher foi seu modelo de desenvolvimento das


línguas indo-européias. Empregou o modelo da árvore genealógica (ou genética) para
descrever a diferenciação destas línguas.

A Stammbaumtheorie, como é conhecida esta teoria, foi muito influente e ainda


hoje é considerada, com certos aperfeiçoamentos, como a que melhor explica tal
desenvolvimento. Está, porém, sujeita a objeções. Em dado ponto do tempo, as línguas
não se separam com tanta nitidez como os ramos de árvore.

O processo de separação começa pelo estabelecimento de diferenças sub-


dialetais, prosseguindo com a ampliação das divergências entre os dialetos, até que a
presunção da existência de duas ou mais línguas distintas é comprovada. Este é
processo moroso e gradativo; além disso, o ponto em que se atinge determinado estágio
só pode ser definido arbitrariamente. Ademais, como a contigüidade geográfica permite
os contatos lingüísticos, pode existir influência mútua e permanente entre vários
dialetos e mesmo entre diferentes línguas.

Johannes Schmidt (1843-1901), discípulo de Schleicher, levando em conta esse


fato, reconheceu que certos conjuntos de traços eram compartilhados apenas por
diferentes grupos de línguas dentro da família indo-européia, o que contradizia as
divisões da Stammbaumtheorie. Elaborou então a chamada Wellentheorie (teoria das
vagas, ondas), procurando mais aperfeiçoar a teoria de Schleicher do que substituí-la.
Segundo essa teoria, em dada área geográfica se sucedem ondas de inovações ou
mudanças lingüísticas, que vão de um dialeto a outro, ou mesmo de uma língua para
outra, desde que mantenham contatos entre si.

O modelo de Schleicher é o mais adequado para representar a história lingüística


nos casos em que a expansão territorial de uma língua implica em uma quase completa
separação dos grupos que a falam, como por exemplo no caso dos colonizadores
holandeses na África do Sul, ou em certas comunidades de fala espanhola da América
Latina. Já o de Schmidt é mais adequado para explicar casos de línguas em contato
entre si, contíguas geograficamente.

É interessante observar que a teoria de Schleicher, conforme ele próprio


reconhecia, está em consonância com as idéias darwinianas, predominantes na segunda
metade do século passado, sobre a evolução e a resistência dos mais aptos. Na batalha
das línguas pela sobrevivência, na sua difusão pelo mundo, saíram vitoriosas as indo-
européias, por sua aptidão intrínseca.

Uma das mais intrigantes questões acerca dos indo-europeus é onde se situava o
seu habitat original, o Urheimat dos sábios alemães. Na segunda metade do século
passado, notadamente com Adolphe Pictet, o estudo de palavras aparentadas de nomes
de árvores, de animais (como o boi, a vaca, o cavalo, a cabra) entre as línguas indo-
européias dá origem à tese de que o seu habitat original era mais fundado no
pastoralismo do que na agricultura.
Esses argumentos originam a proposição de uma série de pátrias possíveis para
os indo-europeus, com predileção para o norte da Europa e a Ásia Central. O povo indo-
europeu primitivo é conhecido como o Urvolk, designação dada pelos adeptos da escola
alemã.

Em 1890, Otto Schrader propôs a hipótese, ainda hoje amplamente aceita, de


que o berço original dos indo-europeus eram as estepes da Rússia meridional, dos
Cárpatos à Ásia Central. Estas regiões eram consideradas as mais apropriadas para o
pastoralismo nômade, praticado ao menos depois da época cita.

No final do século XIX também nasceram noções sobre a pretensa superioridade


racial dos Indo-Europeus, geralmente associadas com a visão de Arianos de pele branca,
de estatura elevada e olhos azuis. O seu local de origem era invariavelmente associado
com a Alemanha, Escandinávia ou a Lituânia. Com popularidade crescente, esta teoria
influenciou certos meios até o final da Segunda Guerra Mundial.

Gustav Kossina, no seu artigo de 1902 "Resposta Arqueológica à Questão Indo-


Européia", associou pela primeira vez estilos de potes cerâmicos com populações pré-
históricas; propôs para o Urheimat dos indo-europeus a região ao norte da Alemanha, e
ao sul da Escandinávia, entre os rios Elba e Oder. Estabeleceu correspondência entre os
indo-europeus e um tipo de potes cerâmicos, conhecido como cerâmica cordada. Esse
tipo de cerâmica é assim denominado por receber impressões, com o auxílio de corda de
fibra, no barro ainda mole. Um povo, denominado "Ária", daí se teria expandido para o
sul e para o leste, chegando ao norte da Índia há cerca de 4500 anos, conquistando a
civilização de Mohenjo Daro, conforme citado no mais antigo texto sagrado hindu, o
Rig Veda.

Talvez o mais conhecido estudioso do assunto no presente século seja Vere


Gordon Childe (1892-1956), australiano, filólogo de formação, mas arqueólogo de
profissão. Foi professor de Arqueologia Pré-Histórica na Universidade de Edimburgo,
posteriormente assumiu a cátedra de Arqueologia Européia e a direção do Instituto de
Arqueologia da Universidade de Londres. Faleceu em 1957, vítima de um acidente de
automóvel, na sua Austrália natal. Publicou vários trabalhos, no primeiro dos quais -
"Sobre a Origem da Cerâmica Minoana" (1915), procurava mostrar que esta cerâmica
característica da Grécia da segunda idade do bronze (c. 1900 a.C.) poderia indicar a
chegada a este país dos primeiros locutores do grego.
Em 1925 publica uma grande síntese sobre a pré-história européia, "A Aurora
da Civilização Européia". Logo em seguida estuda as quatro localizações, então em
pauta, propostas para o habitat original dos primitivos indo-europeus (o Urvolk da
escola alemã), em um trabalho intitulado "Os Arianos" (1926).

Childe, posteriormente, se arrependeu amargamente de haver escrito as idéias


expostas no último parágrafo deste livro:

"Além disso, que os primeiros arianos foram os nórdicos tem a sua própria importância. São as
qualidades físicas desta raça que lhe permitiam, graças a sua força física superior, conquistar e anexar
os mais evoluídos povos e impor assim a sua língua, mesmo em regiões onde este tipo físico havia quase
desaparecido. O panegírico dos germanistas repousa sobre esta verdade: a superioridade física dos
nórdicos os tornava aptos a serem os veículos de uma língua superior".

Esta pretensa primazia racial foi avidamente abraçada pelos nazistas, servindo
para dar fundamentação pseudocientífica à superioridade dos povos nórdicos sobre as
outras raças. Originou a antropologia racial alemã, a Rassenkunde, de triste memória. É
melancólico exemplo de como teorias científicas podem ser distorcidas para atender às
pretensões megalômanas de certos indivíduos, propiciando pseudo-argumentos para a
perseguição e extermínio de minorias étnicas. Além disso, a simples lembrança desses
argumentos, após a Segunda Guerra, tornava tabu a discussão do problema indo-
europeu, o qual só recentemente vem recebendo a importância devida.

Em trabalho publicado em 1950, "As Migrações Pré-históricas na Europa", opta


pela localização da pátria original nas estepes da Rússia meridional, de onde a cultura
da cerâmica cordada e das achas de combate se expandiu, indo-europeizando as antigas
culturas aí porventura existentes. Nos anos seguintes diversas sínteses se seguiram,
baseadas em provas arqueológicas, entre as quais a de Pedro Bosch-Gimpera, Giacopo
Devoto e Hugh Hencken.

Childe morreu em 1956, em circunstâncias misteriosas. Aparentemente, pôs fim


à própria vida, talvez desgostoso com os rumos que algumas de suas opiniões tomaram.

A solução arqueológica mais recente, e sem dúvida uma das mais influentes, é
devida a Marija Gimbutas, da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Desde 1970
vem publicando uma série de artigos procurando provar que as estepes da Rússia
meridional, as terras ao norte do Mar Negro, são o habitat original dos indo-europeus
primitivos. É a mesma opção de Childe, mas Gimbutas dispõe de abundante material
arqueológico recente para fundamentar as suas argumentações.

Denomina esta cultura de cultura Kurgan. Kurgan é a palavra russa que


denomina túmulo de terra baixo, comum naquela região, empregado para sepultamentos
em câmaras de pedra ou terra, com presença freqüente do ocre. Por esta razão também é
conhecida como cultura do Tumulus. Os arqueólogos denominam de cultura a um
conjunto de artefatos, com determinadas características, que poderia ser atribuído a
certo povo ou tribo.

Ao povo Kurgan é atribuída a disseminação do cavalo doméstico, bem como


introdução dos veículos com rodas, nos Balcãs e na Europa Central. São acreditados
como sociedade guerreira, altamente móvel, devido aos seus carros de rodas,
responsáveis por uma série de "invasões Kurgan", que, supõe-se, foram a origem da
enorme expansão geográfica dos indo-europeus.

Daí, talvez, surgiu a associação dos indo-europeus com a imagem de hordas


invasoras de ferozes guerreiros, "bárbaros" montados em cavalos, com os seus carros
de guerra, furiosamente devastando, arrasando e conquistando territórios ocupados por
pacíficos habitantes. É uma imagem tremendamente dramática, mas foi útil durante
muito tempo como explicação da vasta latitude territorial lograda pelos indo-europeus.
A genética moderna associa os indos-europeus ao haplogrupo R1a1.

A atribuição da cerâmica cordada, já identificada como indo-européia desde


Kossina, à cultura Kurgan parece indiscutível para Gimbutas. Até bem pouco tempo, a
posição de Gimbutas era a de maior aceitação nos meios eruditos, bem como em obras
tão conceituadas como a Enciclopédia Britânica ou o Grande Dicionário Enciclopédico
Larousse.

Recentemente, esse empolgante assunto foi retomado e objeto de apaixonadas


discussões, com novas e importantes hipóteses sendo argüidas. A mais importante, para
os nossos propósitos, é a emitida por Colin Renfrew. Renfrew estudou ciências naturais
e arqueologia em Cambridge; posteriormente realizou escavações na Grécia,
notadamente nas Cícladas, bem como na Grã-Bretanha. É Professor de Arqueologia na
Universidade de Cambridge e também dirige o Instituto MacDonald para Pesquisas
Arqueológicas. Em 1991 recebeu o título de Lord Renfrew of Kaimsthorn.
Processos de difusão lingüística

Devemos admitir que os nossos antepassados falavam uma ou várias línguas,


mesmo que não tenhamos idéia clara de como elas poderiam ser. Nos últimos dois
séculos, os eruditos vêm agrupando línguas em famílias, cujo número chegou a cerca de
duzentos.

Algumas famílias, conhecidas como isoladas, contêm um único membro. O


exemplo mais conhecido é o do Basco, língua ainda falada nos Pirineus espanhóis e
franceses. É bem possível que a língua basca, graças ao seu isolamento, apresente
remanescentes das línguas faladas nos tempos das cavernas. A palavra, em basco, para
"faca" é um composto que se traduz como "a-pedra-que-corta", e "teto" significa
literalmente "teto-da-caverna".

Várias outras famílias já obtiveram aceitação entre os especialistas, entre as


quais os indo-europeus; a família afro-asiática (também conhecida como hamito-
semítica), que compreende as línguas semíticas e muitas línguas do norte da África; e a
família urálica (ou fino-úgrica), que compreende o finlandês e húngaro.

Até recentemente, na análise da evolução das línguas, o costume era associar


uma cultura, como, por exemplo, a da cerâmica cordada, com determinado povo ou
grupo lingüístico. Renfrew introduz, nesse ponto, importante e inédito passo
metodológico. Argumenta que a análise deve privilegiar os processos de mudança
cultural. Dentro desse novo enfoque, devemos perguntar que processos sociais,
econômicos e demográficos podem ser correlacionados com as mudanças na
linguagem? Após obtermos a resposta para esta pergunta, devemos questionar como tais
mudanças se refletiriam nos registros arqueológicos.

É importante registrar que o novo enfoque constitui mudança de paradigma nas


disciplinas em estudo. É maneira nova de se encarar o assunto, que abre proveitosos
rumos nas investigações sobre a evolução das línguas, mas as contribuições que esta
nova visão conceptual pode trazer não se limitam apenas a esta matéria. Pode, como
veremos, colaborar para o esclarecimento de pontos obscuros na história da matemática.
Além disso, se adapta surpreendentemente bem à hipótese de Van der Waerden-
Seidenberg .
Antes de prosseguirmos, é conveniente mostrar alguns modelos de como as
mudanças nas linguagens podem ocorrer.

O primeiro é o processo de colonização inicial, pelo qual se processa o


povoamento de território inicialmente desabitado. A língua dos colonizadores se torna a
língua do território. É o que deve ter acontecido, por exemplo, com a chegada dos
primeiros homens à Europa setentrional após a retração da calota polar.

O segundo é o processo de divergência, que ocorre quando grupos que


inicialmente falavam a mesma língua se separam e perdem o contato. Progressivamente
diferenças marcantes se manifestam no vocabulário e nas formas de expressão. É o
modelo da árvore genealógica, a Stammbaumtheorie de Schleicher. Um exemplo disto é
o que ocorreu na Polinésia, onde a ocupação inicial começou aproximadamente em
1.300 a.C.. Em razão das distâncias entre as ilhas e da raridade dos contatos, as
conseqüências do processo de divergência lingüística na Polinésia são particularmente
puras, como se pode constatar nas línguas polinésicas modernas. Pesquisas
arqueológicas constatam que o Hawai não era habitado antes do ano 500 da nossa era, e
a Nova-Zelândia, não antes do ano 1.000.

O terceiro processo, da convergência, é fruto da interação. As línguas de


territórios vizinhos cada vez mais adotam os seus traços comuns. É o modelo das ondas,
a Wellentheorie de Schmidt. Quando um indivíduo fala duas (ou mais) línguas, ou
quando seus pais falam línguas diferentes, o processo de convergência se acelera. Até o
ponto em que as línguas se amalgamam, produzindo língua híbrida.

O quarto processo é o da substituição lingüística. Em muitas partes do mundo a


língua inicialmente falada pela população indígena foi substituída, total ou
parcialmente, por línguas faladas por pessoas vindas de fora. Se não fosse por esse fator
fortemente complicador, a história lingüística mundial poderia ser descrita pela
distribuição inicial do Homo sapiens sapiens, seguida por lento, progressivo e
reciprocante trabalho de divergência e convergência.

É esse último modelo que Renfrew acredita desempenhar papel crucial na


explicação das origens das línguas indo-européias, em especial as faladas na Europa.
Como a Europa parece ter sido ocupada continuamente, desde os longes da Idade da
Pedra, o modelo da colonização inicial não parece adequado para fornecer a resposta.
Do mesmo modo, a simples divergência não consegue explicar o complexo inter-
relacionamento constatado entre as línguas européias. O processo de convergência,
defendido por Trubetskoy, tem sido amplamente rejeitado. Quase por eliminação, resta
apenas o processo de substituição lingüística.

Há diversas maneiras segundo as quais uma língua pode substituir outra em


determinada região.

Quando o grupo invasor é bem organizado e possui tecnologia militar superior, é


capaz de subjugar pela força das armas o sistema vigente e o dominar. Nesse caso a
nova elite dominante pode impor a sua própria linguagem. Daí a denominação deste
modelo: da elite-dominante. As ondas de invasões-Kurgan, preconizadas por Childe-
Gimbutas, constituem exemplo do modelo em pauta, desde que as condições iniciais
realmente estivessem preenchidas, isto é, ter tecnologia militar superior e alto grau de
organização. Ocorre que não se tem certeza de que isto realmente aconteceu. Não
podemos precisar, com convicção, se esses imigrantes eram os terríveis cavaleiros bem
organizados que espalhavam terror sobre os territórios conquistados, como é a imagem
que se tem deles. Na verdade, isto não passa de hipótese.

Outra maneira é o colapso do sistema existente. Muitas sociedades primitivas


eram instáveis. Quando ocorria forte crescimento demográfico, acompanhado por uma
série de condições adversas, como mau tempo, catástrofes naturais, degradação da elite
dirigente, perda de colheitas, baixa da fertilidade dos solos, etc., o sistema era incapaz
de suportar a pressão, tornando-se vulnerável. Isto criava condições propícias para que
povos além das fronteiras invadissem o seu território, inculcando nova linguagem. Foi o
que ocorreu, por exemplo, com a queda do Império Romano. Quando uma sociedade
altamente centralizada sofre colapso, povos antes mantidos sob controle para além das
suas fronteiras se aproveitam do vácuo de poder para invadir as suas terras. Nesse caso,
linguagens "bárbaras" podem suplantar as do centro imperial.

Outro modo: quando ponderável comércio de longa distância se desenvolve em


sociedade igualitária, uma língua comercial, ou língua franca, muitas vezes manifesta-
se. É o caso das linguagens "pidgin", versões simplificadas de língua falada fora do seu
território original. Quando uma língua pidgin começa a ser falada como língua-mãe por
alguns dos seus habitantes, ela passa a ser denominada de "crioula", o que é um tipo
de substituição hoje considerado importante no desenvolvimento lingüístico.
Por último, devemos considerar os processos demográficos e econômicos. Em
dada região, a população existente deve ter, geralmente, economia de subsistência bem
estabelecida, normalmente baseada na coleta e na caça. Se um grupo de recém-chegados
deseja estabelecer-se por meios pacíficos, deve ser portador de tecnologia que lhe
permita explorar um nicho ecológico diferente, ou então ser capaz de competir com
sucesso nele. Só nesses casos se poderá expandir suficientemente para que a sua língua
sobrepuje a anterior.

Analisando o caso da pré-história da Europa, à luz desses modelos de


substituição lingüística, verificamos que apenas um se enquadra nas condições então
existentes. Os modelos da elite-dominante e colapso do sistema requerem grau de
organização social e tecnológica que não existia na Europa antes da Idade do Bronze.
Do mesmo modo não é provável que qualquer sistema comercial fosse suficientemente
intenso para o desenvolvimento de uma língua franca antes da emergência da Idade do
Bronze. Resta apenas o modelo demográfico e de subsistência.

Este é o ponto crucial do nosso raciocínio. Se passarmos em revista a pré-


história da Europa, apenas um evento de magnitude, radical o bastante e de amplo
alcance, se apresenta como candidato, além de se enquadrar manifestamente na
categoria de subsistência: a introdução da agricultura.

O modelo de Renfrew

Podemos classificar este evento como um dos mais importantes, senão o mais
importante, da história da humanidade. Pela primeira vez o homem passa de predador a
produtor. De passivo, se contentando com coleta e caça, passa a ativo, produzindo a sua
própria alimentação (frutas, grãos, carne). Ocasiona reviravolta na economia e nos
destinos do homem que até hoje não foi devidamente aquilatada.

A partir de 10.000 a.C. a temperatura na Europa começa a esquentar e as


geleiras a recuar lentamente. Entre 8.300 e 6.800, a temperatura no verão já atingia de 8
a 12 °C. De 6.800 a 5.000, a temperatura se elevou rapidamente, atingindo 17°C em
5.000 a.C.. As condições climáticas propícias para a agricultura principiavam a surgir.
No sétimo milênio a.C., nova economia agrícola começa a se espalhar pela
Europa, baseada no cultivo do trigo e da cevada e no pastoreio da cabras e ovelhas.
Essas espécies não são nativas da Europa, foram importadas. Se rastrearmos de volta
tais espécies através da Europa, o local mais próximo, onde protótipos das mesmas
podiam ser encontrados em estado selvagem, é a Anatólia central, parte da atual
Turquia, nas montanhas Karadag. A domesticação dessas espécies parece ter ocorrido
ao mesmo tempo, em diversas regiões adjacentes do Oriente Médio, mas, para os nossos
propósitos, nos concentraremos na Anatólia, de onde provavelmente elas alcançaram a
Europa.

Como pode ter sido esta propagação geográfica em termos demográficos? O


geneticista italiano Luca L. Cavalli-Sforza e seu colaborador, o arqueólogo americano
Albert Ammerman, ofereceram resposta elegante em forma de modelo, a que
denominaram "onda de avanço".

Cavalli-Sforza é professor da Universidade de Stanford desde 1971. Nasceu em


Genova em 1922, recebeu seu diploma em medicina pela Universidade de Pavia, em
1944. Estudou genética bacteriana na Itália, tendo se voltado para a genética das
populações humanas em 1952. Estudou, desde então, a consangüinidade humana, o
acervo genético e os meios de predizê-lo mediante observações demográficas; as
relações recíprocas entre as evoluções biológica e cultural; os significados culturais
entre nomes e sobrenomes; a reconstrução da evolução humana. Realizou trabalhos de
campo entre os pigmeus da África; aplicou técnicas moleculares visando preservar o
acervo genético de populações aborígines.

O seu modelo pressupõe que a concepção de economia agrícola era conduzida


por movimentos locais dos agricultores e da sua prole. Uma vez que a agricultura
atingisse determinada região, a sua densidade populacional cresceria rapidamente.
Notaram que a exploração agrícola poderia aumentar cerca de 50 vezes a densidade
populacional média, inicialmente de uma pessoa por 10 quilômetros quadrados, que era
provavelmente típica para as primitivas economias caçadoras-coletoras.

Imaginaram que haveria intervalo de 25 anos entre uma geração e a seguinte;


que cada novo agricultor se movimentaria 18 quilômetros, em qualquer direção, da casa
de seus pais para estabelecer a sua própria lavoura. Segundo um modelo de crescimento
logístico, uma população inicialmente com 0,1 habitante por quilômetro quadrado, que
se multiplicasse à taxa inicial de 3,9% ao ano, duplicaria em cada 18 anos. A taxa de
crescimento então decresceria lentamente, até se anular, quando a população atingisse a
saturação, ou seja, 5 habitantes por quilômetro quadrado, densidade média dos povos
cultivadores.

Com base nessas hipóteses, arquitetaram um modelo, o qual mostra que a


agricultura se propagaria como onda através da Europa, progredindo na velocidade
média de um quilômetro por ano. Nesta razão, a agricultura levaria cerca de 1.500 anos
para atingir o norte da Europa, a partir da Anatólia, o que concorda bastante bem com os
dados arqueológicos disponíveis. A genética moderna descobriu que o avanço
geográfico do clã mitocondrial J é a peça de evidência que suporta essa tese de Cavalli-
Sforza. Esse haplogrupo pode ter se originado com as primeiras mulheres a colherem
sementes nessa região, e se espalhado por dezenas de gerações para longe de seu lugar
de origem. Dois haplogrupos do cromossomo Y, o J2 e o E3b, que parecem ter se
difundido na Europa há cerca de 10.000 anos atrás, como mostramos, sendo que os
homens destes haplogrupos possivelmente acompanharam as mulheres do J na
formação das primeiras comunidades agrícolas.

É óbvio que um único modelo não seria capaz de descrever integralmente um


processo tão complexo como o da introdução da agricultura na Europa. Variações na
topografia e no clima, entre outras condições, implicariam que as previsões do modelo
difeririam significativamente da realidade.

Podemos imaginar outro modelo: se os moradores locais caçadores-coletores


adotassem a agricultura dos seus vizinhos, ela se teria difundido mais lentamente, sem
substituição lingüística, porque os agricultores seriam os nativos com a sua nova
economia, ao invés dos recém-chegados, falando nova língua.

O que realmente deve ter acontecido foi uma mistura desses dois modelos. Os
recém-chegados podem ter introduzido a agricultura na Grécia, daí para os Balcãs,
Europa central e sul da Itália. Em outras regiões, a agricultura pode ter sido adotada
pelas populações locais, o que explicaria a persistência anômala de diversas línguas não
indo-européias, como o basco. Outras línguas desse caráter seriam o etrusco, falado
ainda nos tempos romanos; o ibérico, língua primitiva da Espanha; o picto, língua pré-
céltica da Escócia.
A hipótese tradicional, defendida por Childe-Gimbutas, afirma que a primeira
onda de invasões dos guerreiros-Kurgan, em torno de 3.500 a.C., trouxe a estes das
estepes da Rússia para a Grécia, de onde se espalharam para o norte e para o sul. Esta
nova visão, que tem Renfrew por paladino, mostra os primeiros indo-europeus não
como guerreiros invasores oriundos das estepes, mas como camponeses agricultores
provindos da Anatólia, que no curso da sua vida inteira se moveram talvez apenas
alguns quilômetros. Tal teoria implica, igualmente, recuar em vários milênios a data da
chegada destes à Europa. Teria ocorrido por volta de 6.500 a.C., e não em torno de
3.500 a.C., como assumido no modelo tradicional.

Isto comporta maior continuidade na pré-história européia do que se tinha


previamente acreditado. Não ocorreu, portanto, descontinuidade repentina, algo como
"a chegada dos indo-europeus", como previamente se acreditava. Nem houve
descontinuidade na Idade do Ferro, como muitas vezes se pensou ter acontecido com a
chegada dos Celtas no norte da Europa. A língua celta teria evoluído na Europa
ocidental a partir de raízes indo-européias. O povo que construiu Stonehenge e outros
monumentos megalíticos da Europa seria formado de indo-europeus, que falavam
alguma forma de indo-europeu, antepassado do celta posterior, até o residual de hoje.

Isto concorda com a hipótese de Van der Waerden-Seidenberg, a qual necessita


que uma data mais recuada seja atribuída à sociedade neolítica, criadora do fluxo
original de idéias matemáticas, tendo em vista, entre outras considerações, as datações
megalíticas. Além disso, tende a confirmar a hipótese da correlação dessa sociedade
com os indo-europeus.

Segundo tal ponto de vista, a pré-história da Europa seria moldada por uma série
de transformações e adaptações evolucionárias sobre substrato proto-indo-europeu
comum, acrescido de poucas sobrevivências não indo-européias. Não teriam ocorrido
coisas como uma série de imigrações de fora, mas um conjunto de interações complexas
dentro de uma Europa que já era economicamente agrícola e indo-européia na
linguagem. Embora esse raciocínio, até agora, se tenha concentrado sobre o continente
europeu, a hipótese de que a disseminação das línguas esteja correlacionada com a
difusão da agricultura acarreta implicações fora dele.

A Anatólia não foi a única região, onde a domesticação das espécies selvagens
ocorreu, como mostra o registro arqueológico. A região onde se originou a agricultura
tem três lóbulos, um dos quais é a Anatólia; outro é o Levante, faixa de mais ou menos
50 a 100 quilômetros de largura na costa do mediterrâneo, região do que se chama hoje
Israel, Jordânia, Síria e Líbano; o terceiro, o Zagros, região do Iraque e do Irã. Cada um
desses três lóbulos pode ter dado origem a uma grande família de línguas, por difusão.
O lóbulo anatólico, que contém Çatal Hüyük, pode ter sido o berço das línguas indo-
européias, o Urheimat dos indo-europeus.

Fig. 4.1 Datações dos vestígios arqueológicos da expansão


neolítica da agricultura.

No que concerne ao Levante, uma onda de avanço que aí se originasse, devido


às características topográficas do terreno, se movimentaria para o sul na península
arábica e para o oeste, tendo como destino o norte da África. As evidências de que a
agricultura atingiu o Saara, no norte da África, não muito depois de sua chegada na
Europa, se vêm acumulando. A sua chegada pode ter sido acompanhada por processo de
difusão demográfica similar ao que ocorreu na Europa.

Quanto ao aspecto lingüístico, que pode ter sucedido? Em vastas regiões do


norte da África, o grupo lingüístico dominante é o afro-asiático, que inclui o egípcio
antigo, as línguas berberes e o grupo semítico, os quais tradicionalmente são
considerados como originários da Arábia. É possível, porém, que essas línguas possam
ser rastreadas até uma raiz proto-afro-asiática, proveniente do lóbulo levantino da
agricultura, que contém a cidade de Jericó.

Quanto ao terceiro lóbulo, que contém o sítio de Ali Kosh, a agricultura poderia
ter partido deste para o sul do Irã e para o Paquistão. Em tais condições, pode ter sido a
fonte do grupo de línguas da Índia e do Paquistão que depois foi substituído por línguas
do grupo indo-europeu.
O lingüista David MacAlpin, da Universidade de Londres, mostrou que o
elamita, língua falada no antigo reino da Elam (agora parte do Khuzistão, no sudoeste
do Irã), é aparentado das linguagens dravídicas da Índia. O elamita foi, logo depois do
sumeriano, uma das primeiras línguas registradas por escrito, porém, até hoje,
permanece na sua maior parte incompreendido e indecifrado. É possível que a onda de
avanço do sudeste tenha carregado os antecedentes do dravídico e do elamita através da
Índia e do Paquistão.

Há pouco tempo estabeleceu-se relação entre o dravídico e a língua falada pela


civilização de Mohenjo-Daro, que foi conquistada por invasores indo-europeus, os
arianos do Rig-Veda. O proto-dravídico pode ter sido deslocado, portanto, pelas línguas
indo-européias agora faladas na Índia.

Ao nosso ver, o modelo da Renfrew apresenta vantagens sobre o tradicional. A


substituição e evolução das línguas, nesse modelo, se efetuaram principalmente por
processos pacíficos, não violentos, o que implica não ocorrerem descontinuidades
significativas ao longo da pré-história dos povos envolvidos. As versões violentas, de
hostes guerreiras invasoras, que conquistam e devastam imensos territórios, dificilmente
explicam a estabilidade com que as línguas indo-européias se desenvolveram e a
enorme expansão geográfica que atingiram.

É óbvio que as mudanças introduzidas por meios pacíficos tendem a ser mais
facilmente aceitas que as dos processos violentos, e também mais duradouras. Além
disso, tornam o processo histórico mais contínuo, eliminando a necessidade de
explicações do tipo "invasões de hordas bárbaras". É evidente que tais eventos
ocorreram ao longo da história, que tiveram as suas conseqüências, mas elas
normalmente ou não foram duradouras ou não foram tão abrangentes. Esse modelo de
onda de avanço ampliado tem como conseqüência que as antecedentes das línguas dos
grupos indo-europeu, afro-asiático e dravídico estavam agrupadas no Oriente Médio, em
torno de 10.000 anos atrás.

O presente quadro, pintado por Renfrew, embora ainda altamente hipotético e


encarado com reservas por algumas autoridades no meio erudito, vem recebendo
confirmações adicionais nos últimos anos, principalmente em face de recentes trabalhos
nos campos da lingüística e da genética das populações humanas.
Confirmações do modelo de Renfrew

Contribuições lingüísticas

Dois eminentes lingüistas russos, Thomas V. Gamkrelidze e V.V. Ivanov,


apresentaram uma nova hipótese, que acarreta modificações substanciais na
reconstrução até então aceita do protótipo das línguas indo-européias.

Gamkrelidze dirige o Instituto de Estudos Orientais, em Tbsili, e é professor de


lingüística na Universidade Estatal de Tbsili. Ivanov é professor de lingüística e chefe
do departamento de línguas eslavas no Instituto de Estudos Eslávicos e Balcânicos, em
Moscou.

O estudo de línguas mortas, que nunca foram escritas, somente pode ser feito
comparando-se as suas descendentes e procurando reconstruir a sua antecedente mais
próxima, em penoso trabalho de trás para frente, seguindo as leis que governam as
mudanças fonéticas. Fonética, estudo dos sons das palavras, é de importância
primordial, pois os sons das palavras, ao longo do tempo, são mais estáveis que seus
significados. A articulação das consoantes não se faz do mesmo modo que a das vogais,
com a passagem livre da corrente do ar através da cavidade bucal. Na sua pronúncia, a
corrente espiratória encontra sempre algum obstáculo, em alguma parte da boca: ou
obstáculo total, que a interrompe momentaneamente (oclusivas), ou obstáculo parcial,
que a comprime sem, contudo, interceptá-la (constritivas).

Os lingüistas clássicos fundamentaram a sua reconstrução do proto-indo-


europeu na chamada "Lei de Grimm" (Lautverschiebung, mudança de som). Esta lei
postula que, em um dado conjunto de consoantes, umas tendem a deslocar as outras, ao
longo do tempo, de forma regular e previsível. Foi enunciada por Jacob Grimm, em
1822, o qual é mundialmente conhecido por sua coleção de contos de fada, escritos em
parceria com seu irmão Wilhelm.

Essa lei explica por que certas consoantes duras, como, por exemplo, em
alemão, persistiram, apesar da tendência universal de serem substituídas por outras mais
macias. O conjunto de consoantes macias, sonoras (acompanhadas pela vibração
momentânea das cordas vocais): "b","d","g" , propostas pelos lingüistas clássicos como
características na sua reconstrução do proto-indo-europeu, originaram aparentemente o
conjunto de consoantes duras: "p","t","k".

Segundo a Lei de Grimm, isto ocorreu pela "des-sonorização" dessas consoantes


(a consoante "p", por exemplo, não é acompanhada por vibração das cordas vocais).
Por isto a palavra sânscrita "dhar" era vista como forma arcaica do inglês "draw", que
por sua vez era mais arcaica que o alemão "tragen" (todas estas palavras significam
"puxar"). Isto implicava que línguas como o sânscrito e o grego eram muito mais
próximas do proto-indo-europeu original do que línguas como as germânicas, ou
mesmo o armênio ou o hitita.

De acordo com a teoria clássica, as “consoantes oclusivas”, as que são


pronunciadas pela interrupção do fluxo sonoro que excita a glote, ou as cordas vocais,
são divididas em três categorias (ver quadro). A consoante labial "b" aparece na
primeira coluna como consoante sonora, sendo que o parêntese indica a sua suposta
supressão. Esta consoante é relacionada com duas outras consoantes oclusivas: "d"
(ocluída pela parte dianteira da língua contra o palato) e a "g" ocluída pela parte traseira
da língua contra o palato).

No modelo de Gamkrelidze e Ivanov, essas consoantes são substituídas por


outras, que são pronunciadas com oclusão glotalizada: fechamento da garganta na
região das cordas vocais, que não permite a saída do fluxo respiratório. Nele é a
oclusiva labial não-sonora "p" que aparece suprimida, seguida pelo "t" e "k". Do
mesmo modo que o "p" é não-sonoro e o "b" é sonoro, assim, respectivamente, o "t" é
para o "d" e o "k" é para o "g".

MODELO CLÁSSICO

SONORA SONORA-ASPIRADA NÃO-SONORA

(b) Bh p

d Dh t

g Gh k
MODELO DE GAMKRELIDZE-IVANOV

GLOTALIZADA SONORA-ASPIRADA NÃO-SONORA

(p’) b/bh p/ph

t’ d/dh t/th

k’ g/gh k/kh

A oclusão glotalizada ocorre em muitas famílias lingüísticas, notadamente as de


origens norte caucasianas e sul caucasianas (kartvelianas). Essa oclusão, que endurece
as consoantes, tende a desaparecer em muitas línguas do mundo.

Essa revisão no sistema de consoantes do proto-indo-europeu ocasiona


reviravolta na trajetória da evolução das línguas indo-européias. Nesta reconstrução
línguas como as germânicas, o armênio e o hitita são muito mais próximas do proto-
indo-europeu primitivo que o sânscrito, o que revoluciona a concepção clássica, onde se
acreditava que o sânscrito era que mais fielmente tinha preservado o sistema de sons
original. O vocabulário reconstruído do proto-indo-europeu, reestudado segundo essas
novas regras, sugere que o seu berço natal deve se situar algures na região da Anatólia
oriental e do sul do Cáucaso (na Geórgia).

Além disso, a reconstrução de numerosas palavras como as que designam


animais domésticos, tais como cães, vacas e ovelhas, tão bem como as da lavoura, tais
como trigo e cevada, indicam que a cultura deste povo era fundamentalmente agrícola.
Também são importantes as palavras para roda e cavalo, pois os registros arqueológicos
parecem indicar que o veículo com rodas e a domesticação do cavalo tiveram a sua
origem naquela região.

Essas conclusões confirmam, de um modo surpreendente, o modelo de Renfrew,


especialmente por provirem de fonte inopinada. Renfrew reconhece duas escolas
opostas entre os estudiosos da evolução das línguas, classificando-as, jocosamente,
como a dos "divisores" ("splitters") e dos "amontoadores" ("lumpers").
Os "divisores" tendem a enfatizar as diferenças que parecem fazer as línguas não
se relacionarem e a dividir a classificação em unidades independentes menores. Os
divisores, no seu esforço para evitar correlações espúrias, afirmam que nenhum grupo
de línguas pode ser classificado como família até que uma série de similaridades e
afinidades possa ser mostrada. Insistem em que essas similaridades podem ser
empregadas na reconstrução de protolínguas, das quais as línguas da família se
originaram.

Já os "amontoadores" aceitam critérios outros, além dos lingüísticos


tradicionais, que lhes permitiriam "amontoar" muitas línguas juntas em umas poucas
famílias. Alguns desses também reconstruem protolínguas, embora outros considerem
tal passo supérfluo.

Os "amontoadores" iniciaram a sua visão unificadora em 1963, quando o


lingüista americano H. Greenberg, da Universidade de Stanford, propôs classificar as
línguas da África em apenas quatro macrofamílias: a afro-asiática, a niger-kordofaniana,
a khoisan e a nilo-sahariana.

Greenberg preferiu o método de análise multilateral, que consiste em examinar


um número de palavras em muitas línguas simultaneamente, em vez de comparar
palavras em apenas duas, como nos métodos tradicionais. Recentemente empregou esse
método para classificar as línguas das Américas em apenas três grupos: o esquimó-
aleuta, o na-dene e o ameríndio.

Os dois primeiros, o esquimó-aleuta no Ártico e o na-dene no sudoeste dos


Estados Unidos e no Canadá, vêm sendo aceitos já há algum tempo, a novidade consiste
em agrupar todas as outras línguas da América sobre o título de ameríndio. Esse grupo
contém cerca de onze subfamílias, distribuídas através da Américas do Norte, Central e
do Sul. Para fundamentar o ameríndio, Greenberg identificou cerca de 300 etimologias,
ou grupos de palavras, as quais acredita que evoluíram da mesma palavra antecedente
comum. Cada membro desses grupos é denominado cognato. O lingüista Merritt Ruhlen
elevou este número para cerca de 500 etimologias. A Universidade de Santa Fé, nos
Estados Unidos, suporta um projeto denominado de Evolução das Línguas Humanas,
onde um grupo de eminentes lingüistas vem reunindo arquivos de similaridades léxicas
e fonéticas, bem como compilando dicionários de etimologias, com o propósito de
traçar as origens das palavras tão remotamente quanto possível.
No estudo dos cognatos globais, Dogopolsky estabeleceu uma classificação das
palavras que considerava mais estáveis ao longo do tempo. Essa lista, em ordem
decrescente de estabilidade, é a seguinte: eu/meu; dois; tu/ele (você); quem/o que;
língua; nome; olho; coração; dente; não; unha (da mão, do pé); piolho; lágrima (gota);
morto/morte; mão; noite; sangue; chifre (de animal); cheio; sol; orelha (ouvir); sal. O
que é notável é que a palavra para o número dois aparece como a segunda mais estável
palavra de todas as línguas ao longo do tempo. Identificou a raiz pal, para dois, como
um dos mais antigos e estáveis cognatos globais, que parece estar presente em quase
todas as famílias lingüísticas espalhadas pelo mundo, associado à instâncias do número
dois. Desse modo, é admirável que a palavra para um número seja possivelmente uma
das mais antigas palavras da humanidade.

No início da década de 70, os lingüistas russos Vladislav M. Illich-Svitych e


Aharon B. Dogopolsky argumentaram que o indo-europeu, o afro-asiático, o dravídico,
o altaico e o urálico poderiam ser classificados em conjunto em uma única macrofamília
(ou superfamília), que denominaram de nostrático, do latim "nostras", "nosso
compatriota". O nostrático seria proveniente do Proto-Nostrático, falado no Oriente
Médio há uns 15.000 anos.

Isto também vem reforçar o modelo de Renfrew, que coloca as origens do indo-
europeu na mesma região geográfica, embora o objeto da hipótese do Nostrático trate de
segmento temporal anterior àquele por ele estudado. O nostrático tem muitas palavras
para plantas, mas nenhuma para variedades cultivadas ou para técnicas de cultivo. Do
mesmo modo, tem palavras para animais, mas não diferencia entre animais selvagens e
domésticos. Isto leva a pensar que era falado antes da emergência da agricultura e da
domesticação dos animais. O povo que o falava seria, portanto, caçador-coletor.
Greenberg também definiu uma macrofamília semelhante ao nostrático, a eurasiática,
que difere dele pela exclusão do dravídico e do afro-asiático e pela inclusão do
esquimó-aleuta e do chukchi-kamchatkana .

Illych-Svitych faleceu em um acidente de tráfego, aos 31 anos, mas


Dolgopolsky, que emigrou para Israel na década de 70, continua trabalhando na
Universidade de Haifa em dicionário de raízes nostráticas. Já reuniu cerca de 1600
delas. Deve-se registrar que testemunhos arqueológicos e genéticos harmonizam-se
significativamente bem com algumas das conclusões dessas escolas "amontoadoras", o
que mostra que é campo fértil que importa seja desenvolvido.

Pode parecer estranho ao leitor de formação matemática a extensão invulgar


com que temas tais como lingüística, megalitos, genética e arqueologia vêm sendo
tratados em livro sobre as origens da matemática; porém somos de opinião que o estudo
de questões da pré-história somente pode ser feito com proveito dentro de um enfoque
holístico, multidisciplinar. Essa complementaridade de informações é que vai gerar
uma visão de conjunto que nos permita entender a cultura dos povos pré-históricos.

As línguas indo-européias

Cumpre registrar a notável estabilidade das palavras para designar números, os


nomes dos números. Raríssimas mudanças ou adaptações sofrem no uso comum, sendo,
portanto, ideais para o estudo comparativo entre várias línguas. Hoje praticamente
ninguém duvida que número é uma das categorias nominais mais antigas, e que seu
surgimento ocorreu bem antes do aparecimento dos gêneros e casos. A primeira parte da
linguagem que sofreu mudanças em número foi a dos substantivos. Lembramos também
que a conjugação dos verbos também inclui a noção de número: singular (eu, tu, ele) e
plural (nós, vós, eles).

Além do singular e do plural, algumas línguas conservaram nas suas gramáticas


uma distinção tripartite entre um e dois e mais de dois, ao passo que a maioria das
línguas atuais só faz a distinção de número entre singular e plural. O proto-indo-europeu
tinha forma de dual que, gradualmente, desapareceu das línguas da família indo-
européia, sobrevivendo apenas umas poucas formas vestigiais, como no grego clássico
(he cheir - "a mão"; tò cheîre - "ambas as mãos"; hai cheîres - "as mãos). Formas para
a tripla (a trial) e para a quádrupla (a quaternal, sobrevivente em algumas línguas do
Pacífico Sul), são ainda mais raras.

Notemos que as línguas indo-européias estão agrupadas em duas famílias: a


Kentum e a Satem. Um dos mais importantes critérios para a classificação das línguas
indo-européias se baseia no fato de que algumas delas amaciaram a consoante dura k ,
transformando-a em uma sibilante s ou sh. Esta divisão se manifesta nas palavras para
cem: latim: centum (k) e sânscrito satam (sh). Podemos subdividir as línguas indo-
européias nos seguintes subgrupos: anatólio, helênico, itálico, ilírico, eslavo, báltico,
germânico, céltico, armênio, indo-iraniano e tocariano.

Apresentaremos, a seguir, a série lingüística dos nomes dos números, a qual


mostra a notável afinidade existente entre as várias línguas indo-européias.

Línguas Kentum

Grego Itálico Céltico Germânico Tocariano

Latim Irlandês Gótico

1 heis, mia, hén unus, -a, -um oin ains sas, sam

2 dýo duo, -ae, -a da twa wu, we

3 treis, tria três, tria tri preis, pria tre, tri

4 téttares, -a quattuor cethir fidwor stwar

5 pénte quinque coic fimf pan

6 héx sex se saíhs sak

7 heptá septem secht sibun spät

8 okto octo ocht ahtaú okät

9 ennea novem noi niun nu

10 déka decem deich taíhun sak


Línguas Satem

Indo Eslavo Báltico

Sânscrito Eslavo Eclesiástico Lituano Indo-Europeu Básico


Antigo

1 ekab, eka jedinu, -a, -o vienas *oi-nos, oi-qos


*sems,*sem,*semi

2 dvi, dve dva, dve du, dvi *duuo, *duo

3 trayah, tisrah trije trys *trejes, *trie

4 catvarah, catasrah cetyre keturi *quetuor (es)

5 panca petj penki *penque

6 sas sestj sesi *sueks, *seks

7 sapta sedmj septyni *septem

8 asta, astau osmj astuoni *oktou

9 nava devetj devyni *neun, *eneuen

10 dasa desejt desimt *dekm, *dekmt

No quadro a seguir podemos apreciar a mesma série numérica em algumas


línguas não indo-européias. Comparando-o com os anteriores, podemos verificar a
inexistência de semelhanças entre estas línguas, sendo as palavras destas últimas
bastante diferentes das antecedentes.
Basco Etrusco Sumeriano Chinês

1 bat thu as (ges) i

2 bi zal min erh

3 hiru ci es san

4 lau huth limmu szu

5 bost mach la wu

6 sei sa as liu

7 cazpi cezp imin ch'i

8 zortzi semph ussu pa

9 bederatzi nurph ilimmu chiu

10 amar sar u shih

A semelhança entre o basco sei, o latim sex e o céltico se é acidental, mas o


basco milla (mil) é empréstimo verdadeiro do latim mille. No Anexo II, podemos
apreciar verdadeiro museu lingüístico, que nos permite comparar os nomes dos números
não somente nas principais línguas indo-européias, mas também em outras línguas não
pertencentes a essa família.

Alertamos o leitor para se preocupar apenas com os sons das palavras para
número, não com sua transliteração, pois esta varia de autor para autor, conforme o
alfabeto fonético que empregue, ou os sinais diacríticos que utilize. Por motivos
gráficos, fomos obrigados a omitir a maioria dos sinais diacríticos, o que não irá
ocasionar maiores transtornos para o leitor, pois não é nosso objetivo nos
aprofundarmos em estudos lingüísticos.

E quanto aos nomes de número em português? Qual seria sua origem? E a sua
evolução? Encontramos as etimologias desses nomes no Dicionário de Etimologias da
Língua Portuguesa, do saudoso R.F. Mansur Guérios, as quais foram agrupadas no
quadro a seguir. Ressalvamos, novamente, que transcrições do indo-europeu podem
divergir de autor para autor, em parte pelas razões já assinaladas, mas mormente porque
os entendidos ainda discordam em alguns pontos.

Um Do latim, ûnu latim arcaico oinos < proto indo-europeu *oino,


literalmente "aqui este", (conforme sânscrito ena-, "ele").
Português arcaico uu, u, hu.

Dois Do latim dúos > *doos, e com diferenciação dous; mais tarde
dois por dissimilação da labial u na palatal i. Do proto-indo-
europeu *du(w)-ó, provavelmente "esse" (Trombetti).

Três Do latim três, do proto-indo-europeu *teru, provavelmente


"aquele lá" (Trombetti).

Quatro Forma semiculta, do latim *quattro, em vez de *quatt(u)or. A


forma popular seria *catro (comparar com cal, cando, etc., do
latim quale, quando,etc.). O latim quattuor do indo-europeu
*kwé-toru, *kwé-twer, isto é, "um (mais) três" (Trombetti).
Para o primeiro elemento comparar com o sânscrito é-ka-s,
"um", e para o segundo comparar com o latim tre-s, "três".
Cinco Do português arcaico cinque [tsínke, sínke], do latim vulgar
cinque [tsínqwe], com a terminação -o por influência do -o de
quatro. A forma cinque, latim, anteriormente pronunciada
[kinkwe], é o resultado da dissimilação de quinque (u...u).
Segundo Gaston Paris , o latim cinque é deduzido de
cinquaginta, "cinqüenta", pois a dissimilação partiu de
quinquaginta, cuja primeira sílaba é átona, ao passo de que em
quinque a sílaba inicial é tônica, não possibilitando, portanto, a
dissimilação .Do proto-indo-europeu *penkwe, "mão", isto é,
"os cinco dedos da mão"(Trombetti), é aparentado ao
germânico *fing-ra, "dedo" (Friedmann), e cognato do latim
pug-nus, "punho", do grego pug-mé, "punho".

Seis Do latim sex [seks], com vocalização da velar. Do proto indo-


europeu *sweks, por sua vez abreviatura da reduplicação
*(ek)s-w-eks, "três e três" (Trombetti). Não se acha
independente no indo-europeu *ekes, "três".

Sete Do latim septe[m], com assimilação do p ao t, *sette,


documentado no sobrenome Sette. Do proto indo-europeu
*septom, por sua vez (talvez) derivado de *se-p-tom, "cinco e
dois" (Trombetti).

Oito Do latim octo, com vocalização da velar. No português arcaico


também outo. Do proto-indo-europeu *okto(u), talvez
derivado de *okito(u), isto é, "(dez menos) estes (dois)".

Nove Do latim noue[m], por sua vez do proto-indo-europeu *én-


wen, *én-wen, isto é "este (um) faltante (para dez)"
(Trombetti). Para o primeiro elemento, conforme o latim en,
"eis, eis aqui", e para o segundo, o grego eûnis, "privado,
órfão".

Dez Do português arcaico *deze e este do latim dece[m]. Do


proto-indo-europeu *de-k[i]om, "duas mãos" (Trombetti).
Observemos que as mais antigas palavras indo-européias para número
originaram-se, presumivelmente, de mão, dedos da mão, duas mãos. Isso fá-las
remontar ao mais primitivo estágio de contagem com os dedos da mão, talvez quando os
indo-europeus primevos superaram o estágio de contarem apenas mediante
correspondências um a um entre dois conjuntos, sentindo a necessidade de criarem
palavras para os números que as correspondências representavam, para possibilitar a sua
comunicação verbal.

O quadro a seguir resume as presumíveis origens dos nomes dos números no


proto-indo-europeu, conforme Guérios-Trombetti:

Um "aqui este"

Dois "esse"

Três "aquele lá"

Quatro "um (mais) três"

Cinco "mão", "cinco dedos da mão"

Seis "três e três"

Sete " cinco e dois"

Oito "(dez menos) estes (dois)"

Nove "este (um) faltante para dez"

Dez "duas mãos'

Os nomes para um, dois e três indicam noção de posição, a saber : este, esse,
aquele, e provavelmente são algumas das mais antigas palavras indo-européias, no
mínimo remontando aos tempos em que esses povos começavam a contar. As palavras
para quatro, seis e sete são compostas, indicando operações (somas) com os números
anteriores. Cinco e dez indicam possivelmente uma e duas mãos, mostrando o emprego
das mãos e dedos para a contagem, se a reconstrução for correta. Nas palavras para oito
e nove podemos identificar um princípio subtrativo: "(dez menos) estes (dois)", "este
(um) faltante para dez" (dez menos um; falta um para dez).

As línguas indo-européias constituem o mais importante agrupamento


lingüístico hoje falado no globo. Cerca de 3/4 da humanidade (4.225 milhões) se
comunica em apenas 20 línguas, das quais 11 são indo-européias, cujos falantes
representam 60 % desse total. Aproximadamente metade da população do globo (cerca
de 2.728 milhões) se comunica nas vinte línguas indo-européias mais faladas.

Das línguas indo-européias duas merecem especial atenção: o hitita e o


tocariano. Na revisão feita por Gamkrelidze, como vimos, estas línguas, as línguas
germânicas e as anatólicas estão mais próximas do proto-indo-europeu original do que
anteriormente se suspeitava. Além disso, o hitita é a língua indo-européia mais antiga
atestada, e o tocariano é a mais oriental de todas elas.

Os lingüistas reconhecem certas similaridades compartilhadas entre tocariano,


céltico, hitita, itálico (e as línguas germânicas, de acordo com Gamkrelidze) como
herdadas do proto-indo-europeu, em período muito arcaico. O hitita, o tocariano, o
céltico, o latim , o grego e as línguas germânicas são línguas do grupo centum.

Alguns emigrantes, vindos provavelmente do leste, da região proposta para


berço dos indo-europeus por Renfrew-Gamkrelidze, invadiram a Anatólia ao redor de
2000 a.C. e estabeleceram o reino Hitita, que dominou toda a Anatólia por volta de
1400 a.C. A sua língua oficial foi a primeira língua indo-européia a ser registrada por
escrito.

Bedrich Hrozny (1879-1952), lingüista tcheco da Universidade de Viena e mais


tarde da Universidade Charles de Praga, decifrou em 1915 as inscrições hititas escritas
em cuneiforme, dos tabletes encontrados nos arquivos de Hattusas, capital do reino
hitita, moderna Bogazköy, situada a cerca de 200 quilômetros a leste de Ankara. Cerca
de 25000 tabletes foram ali escavados entre 1906 e 1912, pelo explorador Hugo
Winckler. Esses arquivos continham textos em oito línguas, a saber, o babilônio e o
assírio (às vezes chamadas de acádico), o hitita cuneiforme, decifrado por Hrozny, o
sumeriano, a língua erudita da mesopotâmia, que continuava a ser estudada na época
(cerca de 1200 a.C.).
Além dessas havia o hurrita ou hurriano, que não era língua indo-européia nem
semítica, falada no reino de Mittani, no norte da Siria e do Iraque atuais. A série
numérica em hurriano é: 2-sin, 3-kik, 4-tumni, 6-sinta, 9-nis, 10-eman,
caracteristicamente não-indo-européia.

O hitita hieroglífico, gravado em monumentos de pedra e em selos, foi


posteriormente identificado como o indo-europeu luvita (ou luviano), estreitamente
ligado ao hitita e provavelmente falado na Anatólia oriental. É, talvez, antepassado do
lício, língua falada nesta região na antigüidade clássica.

Outra língua indo-européia encontrada é o palaíta ou palaico, que com o hitita e


o luvita constituem o grupo anatólico das línguas indo-européias (a que se agregam o
lício e o lídio, próximo do hitita).

A última língua, o hático ou hattili, não indo-européia, é a que mais surpresa


causou. Os seus falantes a intitulavam "língua de Hatti" e provavelmente é aparentada
ao grupo das línguas caucasianas. Dos Hatti os hititas tomaram de emprestadas não
somente muitas palavras, mas também muito da sua religião e cultura. Até o nome
Hitita deriva de Hatti, pois os que conhecemos como hititas chamavam a si mesmo de
nes e sua língua de nesili. É, com certeza, verdadeira confusão moderna, que mostra
quão pouco clara é a nossa perspectiva da antigüidade. Esses Hatti são considerados por
alguns especialistas como autóctones da região, e os hititas como invasores..

Essa é questão que provoca ardentes debates e, conforme já comentamos


anteriormente, como o conhecimento da arqueologia da Anatólia é qualitativamente
inferior ao de outras regiões, deve permanecer aberta até que novas informações
permitam esclarecê-la. O que sabemos é que a Anatólia, nessa época era cadinho de
povos indo e não-indo-europeus. Os lingüistas concordam, porém, que o ramo anatólico
fornece alguns dos mais extremados exemplos de arcaísmo entre as línguas indo-
européias. Retém formas gramaticais e construções que desapareceram muito cedo em
outras línguas. É pena que praticamente nada se conheça sobre a matemática hitita, pois
o seu estudo se poderia mostrar revelador.

A descoberta do tocariano pode ser considerada como épica entre as aventuras


da ciência moderna. Somente nos fins do século XIX é que os aventureiros e
exploradores começaram a descobrir o que ainda é uma da mais ignotas regiões da terra,
a que se estende do leste do Irã e do Turcomênistão, passando por Samarcanda, pelos
montes do Altai e do Pamir, chegando à moderna província de Sinkiang, na China.

Nessa região, ao norte do Tibet e ao sul da Mongólia, encontramos um cordão


de oásis que foram suficientemente férteis para manterem uma civilização urbana,
ilhada por estepes áridas povoadas unicamente por nômades. Nesses oásis, ou em sua
proximidade, jazem cidades esquecidas, semi-enterradas pelas areias, onde papel,
madeira, tecidos velhos de séculos, se conservam extraordinariamente bem, graças à
secura do deserto, como no Egito. Eles orlavam o deserto de Taclamakan, no antigo
Turquestão Oriental, hoje a moderna província de Sinkiang. Faziam parte da antiga rota
da seda para a China.

No princípio deste século, pequeno grupo de sábios se aventurou nessas


paragens, entre eles Aurel Stein foi um dos mais eminentes. De origem húngara,
realizou parte de seus estudos em Budapest, trabalhando em seguida para o Museu
Britânico. Em 1886 foi nomeado responsável pelo Colégio Oriental de Lahore, onde
estabeleceu sua base para uma série de expedições que o tornaram célebre e que foram
responsáveis por lhe dar o título de cavalheiro mais tarde.

O seu maior feito ocorreu nas chamadas Grutas dos Mil Budas (Ch'ien-fo-tung),
na vila-oásis de Tonghua. Essas grutas serviam de abrigo para uma colônia de
religiosos, fundada aparentemente pelos budistas em c. 366. Na época de sua primeira
visita, em 1907, era uma vila próspera em que havia pequena comunidade budista, com
um punhado de sacerdotes e monges que mantinham as Grutas. Em 1900, um sacerdote
taoísta de nome Wang-Tao-Shih, ao retocar uma fissura de afresco pintado em uma das
paredes de uma gruta, descobriu uma câmara secreta, que em tempos tinha sido murada,
que continha uma biblioteca inteira. Intimidado com a amplitude da sua descoberta,
tratou logo de emparedá-la novamente. Stein o convenceu a reabri-la, adquirindo certo
número de documentos, entre os quais textos budistas do século V, parcialmente
redigidos em chinês, manuscritos tibetanos e trabalhos diversos em várias línguas e
escritas, a maioria dos séculos VII e VIII da nossa era.

Entre os documentos recuperados de especial importância é o Sutra de


Diamante, versão chinesa do texto budista Vajracchedika. É o mais antigo livro
impresso conhecido no mundo, sendo que a sua data está contida no colofão: 11 de
maio de 868. Foi impresso com blocos de madeira, formando um rolo de papel com
aproximadamente cinco metros por 30 centímetros de largura e hoje é um dos tesouros
do Museu Britânico.

Outra parte dos textos foi adquirida por P.Pelliot para a Biblioteca Nacional, em
Paris, e quase todo o restante foi transferido para Pequim. Documentos escritos que
empregam quase sempre um alfabeto do norte da Índia, do tipo Brahmi, chamaram a
atenção, pois eram redigidos em duas línguas aparentadas até então desconhecidas.

Do mesmo modo que ocorreu com o hitita, a comunidade científica escolheu


designar estas línguas com o nome provavelmente impróprio de "tocarianas", visto que,
segundo o autor clássico Estrabão, os tocarianos eram um povo que havia vencido um
soberano grego da Bactriana (Irã oriental) no segundo século da nossa era. Datando dos
séculos VII e VIII da era cristã, os textos, muitas vezes bilingües, o que facilitou sua
decifração, foram escritos sobre folhas de palmeira e papel da China e retratavam uma
correspondência monástica e registros contábeis. Passes de caravanas, escritos a tinta
sobre tabletes de madeira, também foram encontrados.

A sua decifração gerou surpresa: eram línguas indo-européias do grupo centum,


as mais orientais até hoje localizadas. A primeira das duas, conhecida como tocariano
A, aparecia em manuscritos descobertos em Karashahr e Tourfan: é comumente
conhecida como tourfaniano. A segunda, o tocariano B, é conhecida principalmente por
textos encontrados em Koucha, daí o nome da koutcheano. Os números, em tourfaniano
e koutcheano são os seguintes: 1: sas, se ; 2: wu, wi ; 3: tre, trai ; 4: stwar,stwer ; 5:
pan, pis ; 6: sak,skas; 7: spat, sukt ; 8: okat,okt; 9: nu,nu; 10: sak, sak; 100: kant,kante.

Quem eram os tocarianos é motivo de acirrada controvérsia, principalmente nos


dias de hoje. Os locutores dessas línguas tinham contatos com os chineses e a escrita
dos documentos data da dinastia T'ang. Do século IV da nossa era em diante os Anais
chineses mencionam raids de nômades, os Xiongnu, sobre as fronteiras ocidentais.
Estes povos mais tarde vieram a ser conhecidos com o nome de hunos.

Aparentemente, os tocarianos tiveram importância na disseminação do budismo


na China, sendo também importantes intermediários comerciais entre o ocidente e
oriente. Nesse ponto de vista, não há razão para que desenvolvessem atividades
belicosas com a China, portanto essa associação com os hunos é pouco crível.
Posteriormente, foram associados com os Yü-chi (sec. II/III D.C.), embora não haja
razão para que se acredite que eles eram falantes do tocariano.

Como vimos, os mais antigos documentos dos tocarianos datam do século


VI/VII da nossa era; porém o tocariano, o céltico, o hitita e o itálico têm em comum
fatores arcaicos herdados do proto-indo-europeu, em período muito antigo.
Necessitamos, portanto, de procurar os antecessores dos tocarianos em período entre,
talvez, 2.500 a.C. e 200 d.C.

Bosch-Gimpera, seguindo Menghin, vê nos tocarianos os introdutores na China


da cerâmica pintada da cultura de Yang-Shao, nos princípios do II milênio a.C., cuja
origem, afirma, dever-se-ia procurar nos países ucranianos e danubianos, isto é, nos
indo-europeus. Recentemente foram encontrados na província de Sinkiang 115 corpos
mumificados, datados pelo carbono-14 de c. 2.000 a.C. São pessoas de tipo físico
ocidental: pele branca, e não amarela, cabelos loiros em vez de pretos, olhos
arredondados em vez de puxados. São, fisicamente, parecidos com gente que viveu bem
longe da China, nas estepes da Rússia ou da Ucrânia. Têm características indo-européias
bem nítidas. É a época da cultura Yang-Shao, uma das mais remotas de que se tem
conhecimento. Não é possível afirmar com certeza que falavam tocariano, mas
constituem evidência das ligações dos indo-europeus com a China, em tão remota
época. Estão sendo estudados, em conjunto com os chineses, pelo Instituto de Estudos
Orientais da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. De qualquer modo, é
possível que os tocarianos tenham desempenhado importante papel, ainda não
aquilatado, na transmissão de conhecimentos do ocidente para o oriente e vice-versa,
como veremos.

A última língua a que nos reportaremos é a falada pelos antigos gregos. A mais
remota evidência dela é encontrada nos mais de 3.000 tabletes de argila descobertos em
Knossos, em Creta e em Micenas e Pilos, na Grécia continental. A maioria desses
tabletes, que geralmente contêm registros contábeis de economias palacianas das
civilizações micênica e minóica antiga, são redigidas em escrita silábica conhecida
como linear B. Datam de cerca do século XII antes da nossa era, sendo escritos em
forma primitiva de grego, freqüentemente denominada de micênico.

Essa civilização foi descoberta por Heinrich Schlieman, ao escavar Micenas em


1874, conhecida como sendo a lendária pátria de Agamenon. Nas suas escavações na
Porta dos Leões encontrou o célebre Círculo de Sepulturas, datado de c.1600 a.C., que
continha vários artefatos e os restos de 19 indivíduos, entre os quais a bela "Máscara de
Agamenon", hoje depositados no Museu Nacional de Atenas. O passo seguinte foi dado
pelo arqueólogo inglês Sir Artur Evans, que escavou o conhecido palácio de Knossos na
ilha de Creta, encontrando nos seus arquivos nada menos que três escritas.

Rapidamente se reconheceu que uma das escritas, conhecida como hieroglífica


cretense, composta de signos ou pictogramas, tinha aparecido logo após 2000 a.C., e
que a partir de 1600 a.C. em diante foi substituída por outra, a linear A. Depois de 1450
a.C., foram ao que parece deslocadas pela terceira escrita, a linear B. Esta escrita,
silábica, foi decifrada pelo arquiteto inglês Michael Ventris, com a colaboração de John
Chadwick, revelando, para surpresa geral, o mais antigo dialeto grego que se conhece.
A linear A continua resistindo aos esforços dos decifradores.

Renfrew supõe que a agricultura tenha sido introduzida na Europa através da


Grécia, oriunda da Anatólia, pelos indo-europeus, que coexistiram com um ou mais
povos não indo-europeus naquela região. Esta é questão nebulosa, onde ainda não existe
um consenso.

A civilização micênica desenvolveu vigorosa atividade comercial, cuja extensão


foi possivelmente além do Mediterrâneo. Em julho de 1953, quando tentava fotografar
para um turista visitante de Stonehenge alguns grafites do século XVII, R.J.C.
Atkinsons viu no visor da câmara os contornos de uma adaga e de um machado
gravados no monumento. Passada a surpresa inicial, investigação mais detalhada
descobriu vários grupos de adagas e de machados inscritos em outras pedras do
monumento. O machado é de desenho familiar na região, mas a adaga só encontra
similar entre as escavadas nas ruínas de Micenas ! Isto mostra a existência de conexões
entre os micênios e o povo construtor dos megalitos, ainda não suficientemente
avaliadas. Os micênios usavam o estanho procedente das Ilhas Britânicas para a sua
indústria do bronze.

Com o colapso da civilização micênica em torno do século XII a.C., por razões
não inteiramente esclarecidas, o grego escrito desaparece até a introdução do alfabeto
entre 825 e 750 a.C. Dessa data em diante surgem inscrições e compilações de grandes
poemas épicos gregos transmitidos oralmente, como a Ilíada e a Odisséia, de Homero, a
Teogonia, de Hesíodo, de permeio com outras obras. Entre os séculos XII e IX-VIII
a.C. a história grega passa por um período de trevas, pouco conhecido.

Para encerrar, lembramos que a Tróia de Homero se localizava na extremidade


noroeste da Anatólia, entre dois rios costeiros, o Escamandro e o Simois, sobre uma
elevação natural, a uma distância razoável do mar. Foi fundada por volta de 3500-3200
a.C., embora o nível estratigráfico associado com a Tróia da Ilíada (Tróia VII A), tem a
sua destruição datada de c. 1250 a.C..
CAPÍTULO V

MATEMÁTICA PRÉ-HISTÓRICA

Humble thyself, impotent reason! 12

Blaise Pascal

A Matemática Paleolítica

Os povos paleolíticos eram caçador-coletores, enquanto que os do neolítico eram


agricultores. As características de suas matemáticas eram, portanto, fundamentalmente
diferentes, pois tanto o modo de pensar como o modo de vida de seus povos contrastava
sensivelmente. Cabe, assim, dividir a Matemática pré-histórica em duas grandes
categorias: a Matemática Paleolítica e a Matemática Neolítica. Cada uma dessas
categorias apresenta características próprias, diferenciadas entre si, que devemos
analisar se quisermos compreender a evolução do corpus de conhecimento que hoje
denominamos de Matemática.

Não devemos esperar encontrar na Matemática Paleolítica conceitos sofisticados


como vetores, integrais, ou mesmo elementares como multiplicações e divisões, porém
é neste período que começam a surgir os processos cognitivos que irão constituir o que
hoje conhecemos como Matemática.

O caçador-coletor não altera o seu habitat, somente influi nele em um grau


mínimo, enquanto que o agricultor-criador tem necessidade de alterá-lo para adequá-lo
às suas necessidades. Para isso, o agricultor-criador tem necessidade de tecnologias
específicas, que requerem especializações de ocupações. Enquanto que qualquer pessoa
está apta a colher frutos ou caçar pequenos animais, já para os agricultores-criadores as
habilidades específicas requeridas se multiplicam, o que requer que tarefas sejam
distribuídas entre especialistas. A agricultura requer, por exemplo, seleção de sementes,
limpeza e preparo do terreno, semeadura, cuidados com o cultivo, colheita, seleção e

12
Humilha-te, razão impotente!
armazenamento, preparo de novas sementes. A criação envolve captura de espécies,
seleção, domesticação, construção de cercados, controle de doenças, alimentação,
seleção de matrizes, partos. Enquanto que o modo de vida do caçador-coletor requer
somente um mínimo de conhecimento de matemática, o oposto, o modo de vida do
agricultor-criador, com seu alto grau de alteração do meio-ambiente e divisão de
trabalho entre especialistas, acarreta uma necessária sofisticação de seu conhecimento
de matemática.

Duas são as características principais do modo de vida dos povos caçador-


coletores; a primeira é a sua adaptação a um ambiente natural pouco alterado, a segunda
é a necessidade de cada um de seus integrantes ser capaz de, se necessário, realizar
todas as tarefas requeridas para sua sobrevivência, independentemente das outras
pessoas de seu clã.

Não há diferenças biológicas entre os caçador-coletores e os agricultores-


criadores, ambos são homo sapiens sapiens que evoluíram há uns 80.000 anos e
emigraram da África. Portanto, possuem a mesma capacidade cerebral e
desenvolvimento de linguagem, não existe algo como pensamento ou linguagem
primitiva. Ambos têm a mesma capacidade de pensamento abstrato e sua linguagem é
igualmente complexa e flexível. Já mencionamos o preconceito de que o modo de vida
dos caçador-coletores é “árduo e desgastante”. Enquanto que eles despendem, para a
satisfação de suas necessidades, cerca de 20 h de esforço por semana, nós, da sociedade
industrial, esfalfamo-nos aproximadamente 60 h semanais para ganhar nossos
estipêndios e cuidar das nossas habitações. Têm, desse modo, uma ampla
disponibilidade de tempo para recreação, incluindo aí atividades intelectuais tais como a
elaboração de um sofisticado corpus de mitos, o que envolve alto grau de abstração e
simbolismo, radicalmente diferente, porém, do modo de pensar ocidental moderno.

Como Peter Denny (1.997) corretamente observa, é preconceituoso considerar


que o pensamento matemático é subdesenvolvido em sociedades de caçador-coletores
por falta de capacidade para pensamento abstrato ou falta de tempo ou de interesse em
atividades intelectuais. A única razão para isso é que matemática tem pouco emprego na
labuta diária dos caçador-coletores.
A natureza do pensamento abstrato desses povos é primordialmente diferente da
natureza do pensamento semelhante das sociedades desenvolvidas, neste abstrações de
caráter matemático fazem parte do cotidiano das sociedades agrícolas e industriais.

Nas sociedades modernas, industrializadas, científicas, o isolamento e controle


das variáveis básicas é absolutamente imprescindível para a compreensão e
manipulação de um fenômeno. O desenvolvimento da matemática pura implica em que
na compreensão das estruturas fundamentais envolvidas cada variável básica seja
isolada de seu contexto para que seja inteiramente compreendida. Já nas sociedades
caçador-coletoras, um estilo de pensamento completamente diverso se faz necessário.
Este indivíduo deve ser inclusivo no seu conhecimento do que acontece na natureza: o
conhecimento das variáveis básicas não o auxilia, pois ele não controla a natureza, não
as manipula, está incluído nela.

Vejamos o exemplo de um viajante. Nas sociedades modernas ele se orienta por


meio de uma bússola, ou por um sistema GPS. Quando um esquimó caça com um trenó
puxado por cães, ele se orienta observando as condições cambiantes da neve, do gelo,
do vento, da temperatura, da umidade, que formam grandes padrões complexos, os
quais, tomados como um todo, especificarão corretamente sua localização. Para isso
desenvolveram todo um vocabulário altamente especializado, com diversos termos para
designar diferentes condições do gelo e da neve. O mesmo ocorre com os navegantes de
mar aberto das Ilhas Marshall. Eles se orientam em pleno oceano, sem nenhum apoio
visual de localizações terrestres, observando apenas o comportamento das ondas, as
correntes oceânicas, o modo como se interferem, se refletem, se difratam, sua
velocidade, sua dinâmica. Estes padrões complexos, no seu todo, indicam ao navegante
sua posição, permitindo-lhe orientar-se por milhares de quilômetros em pleno oceano.

Este alto grau de contextualização somente pode ser atingido se estas culturas
mantiverem o hábito generalizado de tratar a informação em seu contexto do que em
isolamento. Este estilo inclusivo de pensamento é característica da matemática das
sociedades caçador-coletoras, enquanto o estilo de isolar a variável de seu contexto é
predominante na matemática das sociedades industriais.

Os números nascem quando há necessidade de contar, enumerar coisas. Essa


necessidade só surge quando precisamos apreender um número relativamente grande de
coisas cuja identidade individual não seja evidente. Isso não é comum para um caçador-
coletor, pois todos seus artefatos são de sua lavra, conhece-os um a um. Se ele dispõe de
uma coleção de facas, conhece-as individualmente, pela sua forma, tamanho e uso
especializado, não necessita de contá-las. Fabricou cada uma de suas pontas de lança,
cada um de seus cestos, cada uma de suas flechas. Números pequenos são suficientes
para as necessidades de tais sociedades, seja para contar o número de peixes da mesma
espécie capturados, ou o número de pássaros da mesma espécie flechados, ou mesmo o
número de canoas de visitantes. Apenas em sociedades industrializadas há a necessidade
de se contar milhares ou milhões de itens iguais.

A suficiência de apenas um conjunto pequeno de números pode explicar a maior


complexidade e variabilidade dos nomes dos números utilizados na contagem de objetos
diferentes nas diversas línguas de povos caçador-coletores, como veremos
posteriormente.

É importante notar que nas sociedades caçador-coletoras quase não há ocasiões


em que é necessário manipular o valor numérico de conjuntos de objetos na ausência
dos próprios objetos. Essas situações geralmente envolvem contextos onde ocorre ou
distribuição de objetos, ou intercâmbio, normalmente em redes de escambo mais ou
menos complexas, ou na remessa de um conjunto de objetos.

Para o caçador-coletor os objetos envolvidos no seu dia a dia normalmente são


manipulados pessoalmente, de modo que a contagem pode ser útil e mesmo comum,
mas situações onde haja a necessidade de fazer operações aritméticas com seus valores
numéricos poucas vezes ocorrerão. Já nas sociedades agrícolas ou industrializadas, o
conhecimento das operações aritméticas é fundamental para seus componentes.

Entre os povos caçador-coletores, com ampla disponibilidade de tempo para a


recreação, as danças extáticas desempenham um importante papel em suas culturas, e
geralmente são conduzidas pelos xamãs, personalidades dominantes neste contexto
sócio-cultural. Nessas sociedades o papel do xamã é importantíssimo, não se pode
relegá-lo a um plano secundário sem que percamos a visão holística das mesmas.

É impossível examinar a história de qualquer ciência sem nos depararmos com a


magia. Esta era complexo amálgama de espiritismo, de mistério e observações de
fenômenos naturais. Pode parecer estranha a menção da magia em livro de espírito
científico, porém, em seu contexto, a magia foi um modo legítimo de expressar uma
síntese do mundo natural e o seu relacionamento com o homem.

Se, em sociedade primitiva, o mago ou xamã, impostor ou curandeiro, se propõe


provocar chuva por meios artificiais, ele expressa a compreensão da existência de
ligação entre a chuva e o crescimento das plantações, admitindo que a sobrevivência do
homem depende do comportamento do mundo natural. Sente que há conexão entre o
homem e o meio que o cerca, o seu entendimento primitivo estima que, uma vez
conhecido o procedimento correto, o homem pode controlar as forças da natureza,
colocando-as ao seu serviço. Quando o mago atua sob o pressuposto racionalista que
uma fórmula mágica é uma causa que deve produzir um dado efeito, seu raciocínio
segue caminhos paralelos ao do pensamento científico. O mago crê que regula o poder
sobrenatural sob determinadas condições.

A magia exprimia uma visão anímica da natureza. O mundo era habitado e


manipulado por espíritos e forças etéreas ocultas, que habitavam os animais, as árvores,
o mar e o vento; a função da magia era submeter essas forças aos desígnios dos magos,
persuadindo os espíritos a cooperar. Para isso preparava poções, fazia invocações,
tramava feitiços. Os ingredientes das poções, por exemplo, inicialmente eram
escolhidos arbitrariamente, mas o seu sucesso ou fracasso paulatinamente mostraria
quais eram os genuinamente eficazes.

Esse conjunto de conhecimentos práticos, desenvolvido à luz da experiência,


tornou o mago o primeiro de uma linhagem de investigadores experimentais e o
antepassado remoto do cientista moderno. Hoje, a farmacologia moderna procura, nos
conhecimentos desses xamãs, novos fármacos, em busca do potencial genético
preservado pela biodiversidade das nossas florestas. As doenças eram encaradas como
manifestações dos espíritos do mal. Os fenômenos naturais eram relacionados com o
mundo dos espíritos, e desenvolviam-se procedimentos para lidar com ambos os
mundos.

Esses princípios hoje não seriam considerados científicos, mas, nos tempos
primitivos, a pressuposição de tais intervenções era tentativa de racionalização, era
busca de teoria aceitável para explicar os diversos fenômenos experimentados pelo
homem. Nas sociedades pré-históricas a ciência era uma fusão de explicações naturais e
espirituais. O mago-sacerdote tinha aspecto científico para o seu conhecimento: por um
lado, ele tinha o conhecimento da natureza; por outro, contava com o acesso aos deuses
e às forças elementares.

Lentamente, quando o homem passou a adotar processos mais realistas para a


obtenção do seu bem estar, como, por exemplo, a construção de sistemas de irrigação, o
homem principiou, consciente ou inconscientemente, a relegar as intervenções do
mundo dos espíritos a papel mais de cooperação que de intervenção. Com isso a magia
foi progressivamente rebaixada, as suas qualidades místicas foram mal empregadas para
fins particulares, o que deu origem à feitiçaria; ou para interesse público, criando
poderosa casta sacerdotal capaz de dominar os incultos e os incrédulos. Isso conduziu
os filósofos gregos a uma atitude radicalmente contra a magia, criando uma orientação
que permaneceu central na cultura científica do Ocidente.

A feitiçaria é a magia empregada com fins anti-sociais. A magia, propriamente


dita, é amoral, nem boa nem má. É o seu emprego que determina suas qualidades
morais.

Sir James George Frazer (1.856-1.941) enfatizou que o que distingue a religião
da magia não é nem a bondade de uma nem a maldade da outra, mas sim o estado
mental do crente e seus conseqüentes modos de comportamento. Em uma atitude mental
religiosa o homem reconhece a superioridade dos poderes sobrenaturais, dos quais
depende o seu bem-estar; suas atitudes são, principalmente, de submissão e reverência.
Sua conduta se manifesta através de súplicas, petições e apaziguamento, mediante
orações, oferendas e sacrifícios.

O mago crê que administra o poder sobrenatural sob determinadas condições,


tendo poder sobre o poder. Está convencido que uma fórmula mágica “comprovada”, se
executada perfeitamente, obterá os resultados desejados. A magia parece funcionar
basicamente por dois motivos: 1) coincidência: se transcorrer um tempo suficiente o
acontecimento desejado poderá se realizar; 2) sugestão psicológica. Também
proporciona uma ajuda psíquica: um guerreiro que crê possuir uma invulnerabilidade
mágica pode superar o temor e realizar atos heróicos com maior facilidade que um
homem normal, que não conta com essa ajuda.

Idéias centrais na Matemática são as noções de quantidade e de forma. Elas dão


origem às duas correntes principais da matemática primitiva: a aritmética, que trata dos
números, denominadores de quantidades, e suas propriedades operacionais, e a
geometria, que se preocupa com as formas.

Essas idéias correspondem aos dois tipos de conhecimento sintético a priori


consignados por Kant e representados por nossas noções de tempo e espaço. Explicava
sua natureza a priori afirmando que estas intuições são propriedades inerentes ao
espírito humano. A aritmética, que se baseia na intuição de sucessão, dada pela
contagem, sistematiza nosso conhecimento do tempo. Já o nosso conhecimento do
espaço é sistematizado na geometria, segundo Kant.

Dividiremos nosso estudo da Matemática Paleolítica em duas secções: na


primeira trataremos dos números e suas operações, dedicada, portanto, à aritmética; na
segunda nos consagraremos às formas, logo à geometria.

Aritmética Paleolítica

Um dos conceitos basilares da matemática é o conceito de número. Quando a


humanidade começou a se preocupar com números? A resposta óbvia é: quando ela
necessitou do processo de contagem; porém isso não esclarece a questão da datação.
Uma questão que imediatamente nos ocorre é se o conceito de número e o processo de
contagem são inatos no homem, isto é, se nasce com ele ou se é adquirido mediante
aprendizagem. Se é inato, então a humanidade sempre teve conhecimento dele, desde os
primeiros hominídeos.

Humanos possuem uma aptidão inata para lidar com numerosidades: o senso
numérico, que compartilham com outras espécies. Possivelmente também têm outra
competência inata capaz de lidar com relações espaciais, o senso geométrico. Nos
deteremos um pouco nas pesquisas recentes sobre a neurofisiologia destes sensos.

O homem primitivo, ao se defrontar com noções primordiais como número,


grandeza e forma, constatou que elas podiam estar relacionadas mais com contrastes do
que com semelhanças: a diferença entre uma ovelha e muitas, a desigualdade de
tamanho entre um elefante e um rato e a dessemelhança entre a forma redonda da lua e a
retilínea de um bambu. Os próprios contrastes pareciam indicar semelhanças: a
diferença entre uma hiena e muitas, entre uma ovelha e um rebanho, entre uma árvore e
uma floresta, sugerem que uma hiena, uma ovelha e uma árvore têm algo em comum:
sua unicidade. O reconhecimento da distinção entre um e muitos originou a
diferenciação entre singular e plural nas línguas. O passo seguinte foi a percepção de
uma propriedade abstrata que certos grupos têm em comum e que nós denominamos de
número. Paulatinamente, o homem reconheceu a existência de analogias; dessa
percepção crescente de semelhanças em número e forma brotou a ciência e a
matemática.

Números e formas (tais como linhas retas, curvas, superfícies, volumes, esferas,
cubos, etc.) são denominados de entes ou objetos matemáticos: o problema de sua
natureza, se existem de modo independente do cérebro do homem, que então os
descobre, ou se são apenas produto de sua atividade neuronal, que conseqüentemente os
constrói, é tema central de investigação, desde a antiguidade grega, tanto da matemática
como da ciência em geral.

Senso Numérico

Brouwer, fundador do intuicionismo, asseverava que a matemática é uma


atividade humana, que se origina e se desenvolve na mente humana, inexistindo fora
dela, sendo independente do mundo real. A mente reconheceria certas intuições básicas,
claras, distintas de intuições sensíveis ou empíricas, mas certezas imediatas acerca de
alguns conceitos de matemática. Concebia o pensamento matemático como um processo
de construção mental que edifica seu próprio universo. De certa forma, pode-se
considerar o intuicionismo como precursor de teorias materialistas como o
neuronalismo, desde que associemos a atividade mental humana com a atividade
neuronal. Caberia, então, indagar sobre as características dessas intuições matemáticas
básicas: quais seriam inatas, logo transmitidas filogeneticamente, através do processo
evolucionário, quais seriam adquiridas e quais seriam desenvolvidas ou construídas pela
mente.

Entre essas intuições inatas o senso numérico ou numerosidade vem


presentemente recebendo especial atenção por parte dos pesquisadores.

. Tobias DANTZIG, em seu livro “Número, a linguagem da ciência”, credita aos


homens algo como uma intuição direta do que número significa.
“O Homem, mesmo nas mais baixas etapas do desenvolvimento, possui uma
faculdade que, por falta de um nome melhor, chamarei de Senso Numérico. Essa
faculdade permite-lhe reconhecer que alguma coisa mudou em uma pequena coleção
quando, sem seu conhecimento direto, um objeto foi retirado ou adicionado à coleção. O
Senso numérico não deve ser confundido com contagem, que provavelmente é muito
posterior, e que envolve um processo mental bastante intrincado”. (1970, p.15).

É, portanto, uma propriedade de um estímulo que é definida pelo número de


elementos discrimináveis que contém. Faz parte do que nos permitiremos denominar de
matemática animal, ou seja, de conceitos matemáticos comuns à algumas espécies do
reino animal. Entre essas, que compartilham o senso numérico com o homem, citamos
os insetos (vespas); aves (pombos, corvos, papagaios, periquitos, gralhas); primatas,
como os prossímios (lêmures) e antropóides (rhesus, chipanzé); ratos; golfinhos e
mesmo salamandras. O senso numérico é, conseqüentemente, independente da
linguagem e possui uma longa história evolucionária.

Dantzig narra no seu livro uma história interessante, que ilustra um senso de
número mais consciente. Certo castelão desejava apanhar um corvo (não é o corvo
brasileiro, mas a espécie do hemisfério norte), o qual tinha feito um ninho em uma torre
da sua propriedade. Como o corvo abandonava o ninho sempre que alguém se
aproximava da torre e não retornava até que ele a deixasse, o castelão tentou um ardil:
dois homens entraram na torre, um permaneceu enquanto o outro se afastou.

O pássaro não caiu na armadilha: manteve-se afastado até que o outro homem
saísse da torre. Repetiu a experiência nos dias seguintes, com dois, três e quatro
homens, sem sucesso. Somente quando cinco homens entraram na torre, quatro saíram e
um permaneceu, foi que o corvo caiu na armadilha. Incapaz de distinguir entre quatro e
cinco, retornou ao ninho e foi apanhado.

O corvo, além de não dispor de palavras para números e não ter idéia do
processo de contagem, não podia, por exemplo, fazer incisões em um pedaço de
madeira nem separar um seixo para cada homem, ou utilizar qualquer outro recurso
material de contagem. Por algum meio, dependendo apenas da sua visão direta, era
capaz de distinguir entre dois e três homens, e entre três e quatro homens. Qualquer
senso numérico possuído por animais e pássaros deve depender apenas da visão direta e
ser independente de palavras e símbolos. Os membros do conjunto devem ser
semelhantes, não necessitando serem exatamente iguais, porém um membro não deve
ter características tão marcantes que permitam distingui-lo imediatamente dos outros,
por exemplo, um lobo em conjunto de carneiros.

Outro ponto importante é que, para determinação do senso numérico, não se


podem agrupar os elementos do conjunto dado em subconjuntos, por exemplo dois a
dois, ou três a três, como fazemos, às vezes inconscientemente, pois isso envolve o
processo de contagem, o que não é permitido em face do conceito estabelecido para ele.

O professor O. Koehler, de Freiburg, durante a Segunda Guerra Mundial,


realizou uma série de experiências, procurando determinar o senso numérico em uma
variedade de pássaros; as experiências eram cientificamente controladas, filmadas, sem
a presença de espectadores humanos. Foram feitos mais de três quilômetros de filmes,
na sua maioria destruídos durante a guerra. A pesquisa mostrou que os pássaros
aprendem os números aos quais são apresentados de duas maneiras: por apresentação
simultânea ou por apresentação sucessiva. Como aos pássaros faltam palavras para os
números, o professor Koehler resumiu as suas conclusões afirmando que eles
"aprendem a pensar números sem nome", expressando dessa maneira a sua idéia de
senso de número visual direto.

Os pássaros de uma dada espécie mostram a mesma habilidade de compreensão


de números sem nome, sejam eles apresentados simultânea ou sucessivamente, mas a
habilidade difere com as espécies. Assim com os pombos pode ser cinco ou seis,
dependendo das condições experimentais, com as gralhas é seis e com os papagaios,
sete. A idéia da apresentação sucessiva corresponde aproximadamente ao processo de
contagem. Os pássaros não contam, pois não têm palavras. Não são capazes de nomear
os números que podem perceber e atuar sobre eles, mas o fato é que pensam números
sem nome.

A capacidade da linguagem parece ser inata ao homem. A criança aprende


palavras como papagaio, mas após as suas primeiras poucas palavras ela pode formar
sentenças que expressam relações verdadeiras, desejos, e que formulam questões. Esta
capacidade distingue o homem dos demais animais
Poucas outras espécies de animais possuem senso numérico, além dos pássaros.
Alguns insetos também possuem senso numérico. A vespa solitária é um exemplo. A
vespa fêmea põe seus ovos em células individuais, fornecendo a cada ovo um número
constante de larvas, das quais as crias se alimentam, quando saem dos ovos. O número
de vítimas é notavelmente constante para cada espécie de vespa. Algumas espécies
colocam cinco, outras 12 ou 24. Ainda mais notável é o caso do Genus Eumenus, uma
variedade em que a fêmea é muito maior que o macho. De algum modo, a mãe sabe se o
ovo produzirá uma larva macho ou fêmea, fornecendo a quantidade de comida
proporcionalmente: não muda a espécie ou o tamanho da presa, mas se o ovo é macho
dedica-lhe cinco vítimas, se é fêmea dez.

Um ponto importante é que nenhum animal doméstico, como cachorro, gato,


cavalo, vaca,
etc. possui
senso
numérico.
Um cachorro
que late
certo número
de vezes
para indicar
o número de
elementos de
Fig. 5.0 O Sábio Hans e Wilhem von Osten
determinado
conjunto, na realidade foi adestrado para latir continuamente, parando quando o seu
dono der certo sinal. Na maioria dos casos, esses animais não acertam os resultados
longe dos donos pelos quais foram condicionados.

No começo do século XX, na Alemanha, tornou-se célebre o caso de um cavalo


apelidado de o “sábio” Hans. Além de contar, conseguia resolver problemas aritméticos.
Batia com a pata no chão o número de vezes que correspondia à resposta certa do
problema. Seu dono, Wilhelm von Osten não era um simples treinador, mas sim um
homem que, sob a influência de Darwin, procurava demonstrar a extensão da
inteligência animal. Até um comitê de sábios alemães, liderados pelo psicólogo Carl
Stumpf, em setembro de 1904, concluiu que os feitos de Hans eram reais, não resultado
de batota. Porém, um aluno de Stumpf, Oskar Pfungst, não ficou convencido e,
modificando os experimentos, concluiu que Hans tinha a notável habilidade de detectar
minúsculos movimentos da cabeça ou sobrancelhas de Osten que indicavam quando a
resposta certa era atingida, parando assim de bater com a pata no chão. Mais
surpreendentemente, Hans também indicava a resposta correta mesmo quando seu
mestre não estava presente. Aparentemente, era capaz de detectar a tensão do público
quando a resposta correta era atingida.

Em raríssimos casos, alguns animais parecem acertar o resultado, mesmo sem a


presença do dono. Acontece que esses animais conseguem perceber sinais mínimos das
pessoas presentes, que conhecem o resultado da questão e, mesmo inconscientemente,
os emitem; por isso as experiências com senso numérico devem ser realizadas sem
qualquer presença humana, de preferência filmados ou gravados em vídeotape sem a
presença de operadores.

O senso numérico visual do homem dificilmente vai além de quatro, isto


independente da raça a que pertença. Os selvagens que não alcançaram a etapa de
contagem pelos dedos são quase que completamente desprovidos de percepção
numérica. Curr, no seu estudo sobre a Austrália primitiva, afirma que poucos nativos
são capazes de discernir quatro, e que nenhum australiano em seu estado selvagem
consegue perceber sete.

É interessante observar que Piaget faz uma distinção entre números e números
perceptuais. Números perceptuais, para Piaget, são números pequenos, até quatro ou
cinco, que podem ser distinguidos pela percepção, sem requererem estruturação lógico-
matemática. Esses números podem ser compreendidos intuitivamente pelas crianças em
termos da sua relação parte-todo, embora ainda sem disporem de uma compreensão
operacional de número. Aos números maiores que quatro ou cinco denomina de
números elementares.

Somente nos últimos trinta anos a competência numérica dos bebês recém-
nascidos humanos tem sido examinada empiricamente. Até recentemente a visão
construtivista de Piaget, elaborada há uns sessenta anos, dominava esse campo. Ela
afirmava que as habilidades matemáticas e lógicas são progressivamente construídas nas
mentes dos bebês, pela observação, internação e abstração de regularidades do mundo
exterior. Ao nascer o seu cérebro é uma página em branco, vazia de qualquer
conhecimento conceitual. O conceito de número, para Piaget, deveria ser construído no
curso de suas interações sensoriomotoras com o ambiente. Crianças nasceriam, então,
sem qualquer idéia preconcebida sobre a aritmética.

As primeiras experiências que mostraram que bebês com seis meses de idade já
mostravam competência para empregar certos aspectos do conceito de número, muito
antes que tivessem qualquer oportunidade de abstraí-lo do ambiente, contrariando assim
Piaget, foram realizadas em 1980 na Universidade da Pensilvânia, por Starkey e
Cooper. Mostraram que bebês entre 16 e 30 semanas de vida são capazes de discriminar
numerosidades 2 e 3. Posteriormente, Antell e Keating, da Universidade de Maryland,
evidenciaram que mesmo recém-nascidos podem discriminar números 2 e 3 poucos dias
após o seu parto. Em 1992 Karen Wynn publicou na revista Nature um artigo sobre
adições e subtrações simples realizadas por bebês com quatro e cinco meses de idade.
Demonstrou que bebês sabem que 1+1 perfaz não 1 ou 3, mas exatamente 2.

Cabe ressalvar, contudo, que embora as habilidades numéricas de crianças de


tenra idade sejam reais, elas estão limitadas à aritmética mais elementar. Sua habilidade
para cálculo não parece se estender para além dos números 1,2,3 e talvez 4. Sempre que
experimentos envolvem 2 ou 3 objetos, elas podem discriminá-los, porém, somente
ocasionalmente revelaram-se capazes de diferenciar 3 do 4. Nunca um grupo de bebês
com menos de um ano de idade distinguiu 4 pontos de 5 ou mesmo de 6. Sua
competência, nesse domínio, pode talvez ser inferior a do chipanzé adulto, cuja
capacidade se mostrou acima do acaso mesmo quando tem de escolher entre seis contra
sete chocolates.

Chipanzés possuem igualmente senso numérico, semelhante ao do homem (cf.


Dehaene, 1997). Além disso, Woodruff e Premack, da Universidade da Pensilvânia,
mostraram, em 1981, que eles conhecem frações simples e também são capazes de
efetuar operações aritméticas com elas, demonstrando assim uma noção intuitiva de
como essas frações podem se combinar. Esses animais sabem que um quarto de uma
torta está para a torta inteira assim como um quarto de litro de leite está para um litro
inteiro.

Outra linha de pesquisa questiona se crianças e primatas não-humanos têm uma


compreensão inata da ordenação, ou seja, que 2>1, 3>2, 4>3 e assim por diante. É uma
questão relevante, pois junto da habilidade de representar relações operacionais entre
pequenas numerosidades (1+1=2, 2-1=1, etc.), animais deveriam ter também uma
competência para compreender a “ordem” segundo a qual elas estão organizadas.

Em etologia, teorias de otimização de forrageação ou coleta predizem que animais


“procuram por mais”, isto é, desenvolvem estratégias para forragear ou coletar que
maximizem seu ganho líquido de energia quando nessa atividade (i.e., o ganho de
energia excede a sua perda nessa atividade).

Feigenson em 2002 organizou um experimento com dois grupos de crianças com


10 e 12 meses de idade, onde eram-lhes mostrados dois recipientes que continham
números diferentes de guloseimas, a saber 1x2, 2x3, 3x4 e 3x6. Os bebês eram
colocados a um metro de distância dos recipientes e então liberados pela mãe para
escolherem um recipiente. O resultado foi de que ambos os grupos de idade escolhiam
o recipiente de maior numerosidade quando 1x2 e 2x3 eram confrontados, mas não
quando 3x4. Desse modo determinaram que crianças de tenra idade já estabelecem uma
relação ordinal entre duas numerosidades, procurando pelo recipiente que continha
“mais”.

Hauser em 2000 realizou o mesmo experimento com macacos rhesus. Manipulou


também condições onde dois recipientes contendo números diferentes de guloseimas
eram confrontados, nos quais 1x2;2x3;3x4;3x5;4x5;4x6;4x8;3x8 unidades foram
cotejadas. Os macacos escolheram o recipiente com maior número nos testes onde
1x2;2x3;3x4;3x5 unidades foram apresentadas, mas não nos casos 4x5;4x6;4x8;3x8. Os
resultados mostraram que os macacos apresentam uma habilidade espontânea de
ordenação de pequenas numerosidades muito similar à das crianças recém-nascidas.
Isso patenteia uma limitada capacidade de ordenação, de “procurar por mais”, que
poderia eventualmente ser apenas uma característica dos primatas, talvez não
compartilhada por outras espécies.

Porém, em 2003 Uller e outros mostraram que salamandras, anfíbios distantes na


linha evolucionária dos primatas, também compartilham dessa aptidão. Apresentaram a
esses anfíbios dois tubos contendo números diferentes de drosófilas, moscas de frutas,
guloseimas apetitosas para essa espécie. Elas foram capazes de escolher a maior entre
duas numerosidades quando se confrontaram 1x2 e 2x3 drosófilas, mas não nos testes
onde se comparou 3x4 e 4x6. Como no caso dos macacos e dos bebês, a salamandras
também têm uma limitada capacidade de ordenação, de “procurar por mais”. Isso indica
que essa capacidade pode ser mais disseminada no reino animal do que se supunha
anteriormente.

Recentemente (02/2008) uma pesquisa coordenada por Ângelo Bisazza, da


Universidade de Pádua, divulgou os resultados de uma pesquisa efetuada com com uma
espécie de peixe, o Gambusia holbrooki, originário da América do Norte, que se
alimenta de larvas de mosquito e que chegou à Europa no começo do século XX para
combater a malária. Estes peixes tendem a formar grupos numerosos para se protegerem
dos predadores. Foi constatado que ao se colocar um peixe dessa espécie num aquário,
frente a dois grupos de peixes de número diverso, o peixe solitário reconhece o de maior
número e tende a se juntar a ele. O peixe solitário faz sua escolha sempre que fica diante
de grupos com dois e três membros, ou grupos com três ou quatro integrantes. Porém,
quando tem que escolher entre pequenos cardumes com cinco ou seis peixes, o animal
solitário não consegue distinguir qual dos grupos é o maior. Isso mostra que esta espécie
possui um senso numérico que vai até quatro, embora também consiga diferenciar entre
grupos maiores. Quando tem que decidir ente cardumes de oito e dezesseis unidades, o
peixe solitário é capaz de se unir ao mais numeroso. Porém, essa “procura por mais”
não necessariamente envolve um senso numérico strictu sensu, pois outras
considerações podem ser aventadas, como a percepção do volume apresentado pelo
cardume maior.

A matemática animal, como denominamos, parece estar correlacionada à


necessidade de sobrevivência das espécies. O Homem também necessita sobreviver, o
objetivo fundamental da espécie é transmitir seus genes às futuras gerações. O que
distinguiria, portanto, a matemática animal da matemática humana?

A diferença primordial parece estar em que o homo, satisfeitas suas necessidades


de sobrevivência, busca explicações, o conhecimento, tem sede de transcender.

Como bem observa D’Ambrosio, “A Matemática, como o conhecimento em geral, é


resposta às pulsões de sobrevivência e de transcendência, que sintetizam a questão
existencial da espécie humana” (2002, p.27).

Marc Hauser, da Faculdade de Artes e Ciências de Harvard, procurou determinar


quais elementos da cognição humana são puramente humanos, não compartilhados com
outras espécies animais. Alguns animais, menciona, têm uma memória episódica, ou
uma habilidade matemática não lingüística, ou uma habilidade de se orientar
empregando referenciais. Apesar dessas similaridades aparentes, uma profunda fenda
cognitiva divide os animais dos humanos. O desafio é identificar quais sistemas animais
e humanos compartilham, quais são únicos, e como esses sistemas interagem entre si.

Hauser considera quatro ingredientes da cognição humana que a tornam única: 1)


a habilidade de combinar e recombinar diferentes tipos de informação e conhecimento
para obter novos insights; 2) a capacidade de aplicar a mesma “regra” ou solução de um
problema a uma situação inteiramente nova em um contexto diferente; 3) a capacidade
de criar e facilmente compreender representações simbólicas a partir de inputs
sensoriais e computacionais; 4) a habilidade de elaborar raciocínios abstratos a partir de
inputs sensoriais e perceptuais brutos.

Essas habilidades podem ser classificadas como matemáticas, pois são basilares
ao raciocínio matemático. Desse modo, pode-se afirmar que talvez a principal
competência cognitiva que distingue o homem dos demais animais que não a possuem
seja sua capacidade de pensar matematicamente. A Matemática, portanto, é básica às
estruturas cognitivas de pensamento que classificamos como pensamento puramente
humano. A Matemática é, portanto, estruturante do pensamento humano.

Resta, porém, buscar a explicação da natureza, do mecanismo dessas intuições ou


sensos. O primeiro a estudar o impacto da atividade aritmética sobre o cérebro humano
foi William G. Lennox que, em 1931, estudou o efeito da circulação cerebral no
trabalho mental. No rastro dos trabalhos de Lennox, vários estudos mostraram que o
cérebro é consumidor voraz de energia, absorvendo sozinho quase um quarto da energia
total gasta pelo corpo inteiro. Sokoloff foi o pioneiro em mostrar a relação entre a
circulação cerebral, o metabolismo local e a atividade das áreas cerebrais. Os
mecanismos de regulação do fluxo sangüíneo têm sido explorados pela ciência nos
último vinte anos com o intuito de mostrar quais regiões do cérebro estão ativas durante
as várias atividades mentais.

Embora as primeiras neuroimagens do cérebro humano ativo datem de 1970,


somente em 1985 Roland e Friberg publicaram as primeiras imagens da atividade
cerebral durante cálculos mentais. Seus estudos evidenciaram que sujeitos efetuando
subtrações repetidas demonstraram ativações bilaterais no córtex parietal inferior do
cérebro, bem como em múltiplas regiões do córtex prefrontal. Na seqüência, Dehaene
(1997) estudou como a atividade cerebral varia durante experimentos de comparação e
multiplicação de números. Igualmente evidenciou-se que várias regiões do cérebro
estavam ativas durante a comparação e multiplicação de números. Apontou-se o córtex
parietal inferior como crucial para o senso quantitativo de número. Durante a
multiplicação, a atividade cerebral era mais intensa no hemisfério esquerdo, que
governa a linguagem, mas durante a comparação, estava igualmente distribuída nos dois
hemisférios ou mesmo se verificava no direito. Isso está em concordância com a
observação de que a multiplicação, mas não a comparação, em parte depende das
habilidades lingüísticas do hemisfério esquerdo. Uma outra área subcortical, o núcleo
lenticular esquerdo, também estava mais ativa durante a multiplicação do que durante a
comparação.

Estudos mais recentes, melhorando a resolução, procuram delimitar essas áreas do


cérebro, buscando identificar com mais precisão as áreas envolvidas nas capacidades
numéricas. Nieder e Miller (2004) realizaram estudos com macacos rhesus, que
parecem indicar que a informação sobre numerosidade flui do córtex posterior parietal
para o córtex lateral parietal posterior. Também determinaram que o fundo do sulco
intra-parietal contém expressivo número de neurônios cuja atividade está envolvida com
o processamento de numerosidade.

Essa é, hoje, a melhor indicação que a ciência possui para o locus da numerosidade.
Os estudos neurofisiológicos mais recentes confirmam, portanto, que humanos e
macacos possuem mecanismos similares no processamento de números.

Senso Geométrico

O senso numérico seria a intuição básica para o conceito de número, para a


aritmética, porém cabe indagar se existiria um senso ou faculdade inato, responsável
pelas intuições básicas da geometria, um senso geométrico?

Nosso conhecimento sobre o mundo externo depende principalmente das


informações obtidas pela visão. Existem diferentes trajetórias neurais para o
processamento de informações visuais sobre os objetos, tais como: forma, movimento,
cor e profundidade.

Vários autores, como Gombrich, Bednarik, Halverson, Latto e Hudson,


enfatizaram que os motivos primitivos, especialmente as formas geométricas, são
esteticamente interessantes não apenas porque refletem características do mundo, mas
sim porque estimulam propriedades do sistema visual humano.
Em 1980 HUBEL e WIESEL descobriram que células do córtex visual primário
são organizadas para responder a orientações específicas de uma linha, e que a
percepção de formas pode ser fabricada pela agregação de características selecionadas.
Descreveram como o córtex pode funcionar como um estágio primário na análise da
orientação de linhas, e como é um aspecto importante do processamento da informação
visual, que se efetua por meio de uma hierarquia de células simples, complexas e
hipercomplexas, através das quais a natureza da informação acerca da linha pode se
tornar cada vez mais abstrata.

BARLOW propôs a teoria da detecção de características, a qual estipula que as


células corticais, que formam o nível inferior de uma hierarquia de células, respondem
progressivamente às características geométricas cada vez mais abstratas das formas.
Dessa maneira, células dos mais baixos níveis responderiam às linhas mais primitivas,
enquanto que as dos níveis mais altos responderiam às características geométricas
simples dessas linhas, como ângulos, paralelismo e perpendicularismo e, na seqüência,
pelas combinações de atividades de células complexas e hipercomplexas particulares,
surgiria a percepção de formas geométricas mais elaboradas, como retângulos, losangos
e círculos, e assim por diante, até a percepção de figuras representacionais, que
envolveriam centros de alta ordem do córtex cerebral e do cérebro.

Presentemente essa teoria está superada, pois várias pesquisas mais recentes
demonstraram que o processamento visual é muito mais complicado do que se supunha.
O processo todo é ainda desconhecido, embora se conheçam algumas pistas sobre o
mesmo. A realidade é muito mais complexa que nossas certezas.

O olho humano capta a forma dos objetos e imprime na retina uma imagem
bidimensional (2D) dos mesmos, registrando basicamente seus contornos. O mecanismo
neural de como o cérebro reconstrói uma realidade tridimensional (3D) a partir dessa
imagem 2D tem fascinado os cientistas. Muita pesquisa tem se focado na estereopse,
onde se procura inferir a sensação de profundidade com base em pequenas disparidades
de imagem entre os olhos direito e esquerdo.

Todavia, mesmo sem estereopse pode-se obter uma vívida sensação de


profundidade, que depende de outras pistas como sombras, perspectivas, texturas,
gradiente e paralaxe de movimento.
Kourtzi e outros (2003), empregando fMRI, mostraram que a sub-região posterior
do complexo lateral occipital (CLO), uma área envolvida na análise da forma visual,
pode processar características 2D de objetos independentemente de transformações de
imagem (pequenas rotações ou curvaturas), enquanto que a região anterior do mesmo
complexo pode representar a forma 3D de objetos e sua posição em profundidade em
cenas visuais. É possível, assim, que populações de neurônios no CLO posterior
mediem a análise de formas baseadas em propriedades de imagens 2D, enquanto que
populações de neurônios no CLO anterior mediem o reconhecimento de objetos
baseados em representações 3D um tanto abstratas. Essas representações 3D algo
abstratas, uma espécie de senso geométrico inato rudimentar, podem desempenhar um
papel importante quando necessitamos interpretar rapidamente cenas complexas ou
reconhecer objetos independentemente de mudanças nas suas imagens.

Porém, ressaltamos novamente, o processo inteiro ainda é desconhecido, muito do


qual resta ser determinado. É possível, todavia, dentro do atual estágio de conhecimento
sobre a questão, que o homem possua um senso geométrico rudimentar, inato,
responsável pelas suas intuições geométricas elementares.

Origens do conceito de número

No seu artigo "The Ritual Origin of Counting", publicado em 1962, A.


Seidenberg sustenta que a contagem foi inventada para uso em antigas cerimônias
religiosas, onde se representava o ritual da criação. Supõe que os participantes dos
rituais religiosos eram chamados em determinada ordem, aos pares, e a contagem se
desenvolveu com a especificação desta ordem. Isso explicaria a razão e a antigüidade de
sistemas de contagem em base 2, bem como a sua ampla distribuição geográfica. Os
nomes dos participantes no ritual, ou seja, as palavras que os anunciavam, eram de
caráter numérico. Assim, a "seriação" seria o ritual e a "conta" o mito.

Um mito, conforme o ponto de vista de Lord Raglan, nada mais é que o conjunto
de palavras associado a um ritual. Mito e ritual são complementares; ritual é o drama
mágico para qual o mito é o seu livro de palavras, que não raro sobrevivem muito
depois de ter cessado o desempenho do drama propriamente dito. Elevadas "contas"
poderiam assim ser produzidas, a partir de grandes procissões de participantes. A base
utilizada corresponderia ao número de pessoas no ritual fundamental; a necessidade de
números elevados proviria da contínua repetição desse ritual fundamental.

Essa conjectura se apóia em certo número de fatos demonstrados em estudos de


tribos primitivas, bem como nos antigos escritos religiosos babilônicos, a saber: a
procissão ritual, a procissão ritual por pares, a presença em cena dos participantes do
ritual, a chamada que toma forma de número. Nesse caso, o aspecto ordinal teria
precedido o conceito quantitativo ou cardinal.

Resta a questão de se saber se no paleolítico superior existiriam realmente tais


rituais religiosos e se existem provas arqueológicas deles. André Leroi-Gourhan,
estudando a distribuição das pinturas e outros elementos decorativos encontrados nas
cavernas pré-históricas do paleolítico superior, chegou à surpreendente conclusão de
que ela não se dava ao acaso, mas era fruto de planificação ordenada, provavelmente
obedecendo a motivos rituais bem definidos. Esses bisões, mamutes, cavalos, etc., não
são, portanto, apenas magníficas obras de arte, frutos de geniais artistas paleolíticos,
mas signos representativos de elementos rituais, cujo significado nos escapa.
Provavelmente estavam correlacionados com rituais de criação, porquanto, como o
próprio Leroi-Gorhan afirma, o homem só pode compreender e dominar mediante
símbolos de criação.

Certo é que essas representações mostram aparato simbólico muito mais


complexo e rico do que se tinha imaginado, existindo extraordinária unidade no seu
conteúdo figurativo, pois o sentido aparente das representações não parece ter variado
de 30.000 a.C. a 9.000 a.C., permanecendo o mesmo, seja nas Astúrias, seja nas
margens do Don. Essa extraordinária constância do dispositivo simbólico é a prova,
assegura Leroi-Gourhan, de que existia uma mitologia, elaborada desde muito cedo,
uma vez que já no Aurignaciense se atesta o emparelhamento dos animais e dos signos.
Provavelmente o conteúdo oral e operatório da religião paleolítica era muito
mais variado do que transparece nas figuras. A distribuição topográfica dos signos ao
longo das cavernas parece indicar que os rituais se processavam em etapas, sendo então
razoável a conjectura de Seidenberg de que os assistentes eram chamados a participar de
cada cena.

A suposição de que eram chamados aos pares repousa na hipótese de que a


contagem por 2 (base dois) é a mais antiga, porém isso não está comprovado, não há
qualquer evidência arqueológica que assegure o emprego de uma base de um sistema de
contagem no paleolítico, seja base 2, 5, 10 ou qualquer outra.De qualquer modo, mesmo
que a procissão ritual se realizasse pela chamada à cena de um indivíduo de cada vez,
isso não altera o conjunto da argumentação de Seidenberg, que permanece válido.

Essa conjectura enfatiza que o aspecto ordinal teve precedência histórica na


origem da contagem. Isso parece ser verdadeiro, mesmo se a contagem não teve
realmente origem ritual. No conceito de cardinação, o número de objetos em um
conjunto é determinado pela colocação deles em correspondência com os de outro
conjunto, por exemplo, os dedos da mão. Se achamos, digamos, cinco dedos, dizemos
que o número cardinal do conjunto é cinco. A ordenação determina o número de
objetos em um conjunto contando-os: um, dois, três, quatro, cinco. O último número
ordinal, cinco, é o número cardinal do conjunto.

Esses dois conceitos correspondem a duas importantíssimas correntes da


educação matemática moderna. A primeira dessas correntes busca a introdução do
conceito de número mediante as idéias de conjunto e de correspondência um a um entre
conjuntos, com base nos trabalhos de Georg Cantor (1845-1914), desenvolvidos no final
do século passado. Esse tratamento é muitas vezes conhecido como a abordagem
cardinal do conceito de número.

Enquanto Cantor estava lançando as bases da teoria moderna dos conjuntos,


Giuseppe Peano (1858-1932) procurava axiomatizar os números naturais e a sua
aritmética. Para isso desenvolveu um conjunto de cinco axiomas. Um desses axiomas é
que todo número natural tem um sucessor. Esse tratamento é denominado de abordagem
ordinal ao conceito de número. Enfatiza a idéia de contagem como sucessão: um, dois,
três, etc., ao invés da idéia de associação acentuada na abordagem cardinal de número.
Modernamente sabe-se que os conceitos são equivalentes, mas resta o problema de
identificar qual realmente tem precedência histórica.

Charles J. Brainerd, da Universidade de Alberta, estudando como o conceito de


número se origina nas crianças, chegou à conclusão de que o conceito de número
natural surge da primeira compreensão da ordenação e não da primeira compreensão da
cardinação. Determinou que a ordem da emergência dos vários conceitos na mente de
uma criança é a seguinte: primeiro a ordenação, depois o conceito de número e, em
terceiro lugar, a cardinação; portanto, uma ontogênese numérica natural parece estar
baseada no conceito de ordem, a saber, primeiro a criança aprende os números ordinais,
depois os naturais e por último os cardinais. Isso parece indicar que a assim chamada
"Nova Matemática", com a sua ênfase no conceito de cardinação como introdutório ao
de número, não segue a ordem natural das coisas. Também é mais natural ao pastor
estabelecer a sucessão: uma ovelha, duas ovelhas, três ovelhas, etc.

O problema de contagem para uma criança surge quando a série dos numerais é
aplicada a um conjunto qualquer de objetos, pois a criança deve ter em conta que a
ordenação desses objetos é imposta pela série de palavras para números: um, dois, três,
quatro, ... e não por qualquer propriedade intrínseca dos próprios objetos, como por
exemplo tamanho; portanto o processo de contar requer ponderável grau de abstração
para a criança, mesmo para perceber que a ordem dos objetos não influi no resultado do
processo. Segundo Piaget, a criança domina os números em etapas independentes,
começando com os números de 1 a 7, continuando, em etapas posteriores, com o
domínio dos que vão de 8 a 15, do 16 a 30, até que finalmente adquire controle efetivo
sobre todo o sistema.

Quando se abstrai a identidade individual de cada elemento do conjunto, quando


a ordem no processo de contagem já não desempenha papel significativo, principia a
transformação dos números ordinais em cardinais. Um número ordinal, como bem
observa Crump, é adjetivo que só tem sentido se qualifica algo; um número cardinal é
substantivo que se pode encontrar sozinho. O número cardinal é uma abstração, é a
única propriedade em comum de todos os conjuntos que têm esse número de elementos.
Devemos observar que o número "5" é classe lógica, cujos membros têm a propriedade
de ter 5 elementos, e que todo membro desta classe "5" é o resultado da adição de 2+3,
3+2, 2+2+1, 3+1+1, etc.

Contar objetos é habilidade cognitiva elementar, a qual não implica


compreensão operatória de número. A compreensão cabal das relações lógicas entre
adição, subtração, multiplicação e divisão é somente obtida, segundo Piaget, quando a
criança atinge o nível operatório. Pela manipulação física de contas, pedrinhas, etc., a
criança pode eventualmente efetuar multiplicações e divisões antes do estágio
operatório, mas ela faz isso mecanicamente e sem compreensão integral do que
realmente está fazendo.
Isso é o que ocorre nas tribos primitivas. Mesmo em sociedades com sistemas
verbais de número, contas parecem ser usualmente limitadas ao cálculo de totais,
enquanto multiplicação e divisão se baseiam no uso de objetos como contadores
(calculi). Gay e Cole, no seu estudo da matemática dos Kpelle, notaram que mesmo
quando aquelas pessoas colocam objetos juntos, retiram objetos, ou dividem objetos
entre conjuntos de pessoas, nunca têm a oportunidade de trabalhar com numerais puros,
nem falam deles.

Toda a sua atividade matemática está ligada a situações concretas; desse modo,
os números cardinais são ou precedidos pelo substantivo que eles enumeram (conchas-
cinco) ou conectados a um pronome (cinco-dessas, p.ex.). Podem efetuar adições e
subtrações simples com o uso de pedras, nas quais são acurados somente até um
horizonte de trinta ou quarenta. Parecem não ter uma operação como a multiplicação.
Divisão é obtida pelo uso de pedras, divididas em pilhas, tantas quantas o divisor.

De modo geral, parece que as sociedades primitivas não necessitam do uso de


frações. O problema de dividir 20 conchas por 5 pessoas, ou seja, encontrar 1/5 de 20,
pode ser resolvido, construindo-se 5 montes (iguais) com as 20 conchas, obtendo-se 4
conchas para cada um. Para as suas necessidades quantitativas, o homem prático pode
escolher unidades suficientemente pequenas, dispensando o trabalho com frações;
portanto as sociedades primitivas podem efetuar contas (adição, subtração,
multiplicação e divisão) com o auxílio de contadores, dentro de certo limite, sem terem
noção dos fundamentos lógicos desses procedimentos.

Palavras para números

Vamos considerar como numeral qualquer signo capaz de representar um número.


Se este signo é sinal gráfico, temos então os numerais no sentido habitual, como
normalmente os estudantes aprendem: 1,2,3,4,[...]; I,II,III,IV,[...].Se este signo é
palavra, temos então o que é conhecido como “nome” dos números, ou palavras para
números: um, dois, três, quatro,[...].

O conceito de número em sociedades iletradas foi questão investigada pelos


antropólogos no final do século passado e no princípio do presente, principalmente por
Tylor (1.871), Conant (1.896) e Lévy-Bruhl (1.912). Esses estudos mostraram que não
existem sociedades que não mostrem alguma familiaridade com o conceito de número,
mesmo que esse conhecimento seja extremamente limitado, não se estendendo para
além dos números 1, 1 e 2, ou 1, 2 e 3.

À primeira vista, parece inconcebível que possa existir ser humano incapaz de
contar para além de 2, mas esse parece ser o caso, pois existem algumas poucas línguas
destituídas de palavras numerais puras. Os Chiquitos da Bolívia não têm quaisquer
numerais, mas expressam a idéia para "um" pela palavra etama, que significa só,
sozinho. Os Tacanas, também da Bolívia, não têm palavras para números, exceto
aquelas emprestadas do espanhol, ou do Aymara e Peno, línguas com as quais estiveram
longo tempo em contato. Os falantes da língua canela, do grupo lingüístico jê, do
Brasil, não têm termos numéricos específicos, limitam-se a expressões gerais como
“só”, “um par”, ”alguns” e “muitos”. Umas poucas outras línguas sul-americanas são
igualmente quase destituídas de palavras para números.

Mesmo nessas línguas, o senso de número não falta de todo, alguma expressão,
ou alguma forma de circunlocução indicam o conceito da diferença entre um e dois, ou,
pelo menos, entre um e muitos. Essa distinção entre singular e plural parece ocorrer em
estágio muito primitivo de qualquer língua.

Como o desenvolvimento do conceito de número foi processo longo e gradual,


algumas línguas conservaram nas suas gramáticas uma distinção tripartite entre um e
dois e mais de dois, ao passo que a maioria das línguas atuais só faz a distinção de
número entre singular e plural. O proto-indo-europeu tinha forma de dual que,
gradualmente, desapareceu das línguas da família indo-européia, sobrevivendo apenas
umas poucas formas vestigiais, como no grego clássico (he cheir - "a mão"; tò cheîre -
"ambas as mãos"; hai cheîres - "as mãos). Formas para a tripla (a trial) e para a
quádrupla (a quaternal, sobrevivente em algumas línguas do Pacífico Sul), são ainda
mais raras. Hoje em dia cerca de 40 línguas têm alguma forma de dual, das quais mais
da metade fazem um uso limitado do mesmo.

A origem da forma dual pode ser facilmente explicada: muitas coisas só


acontecem aos pares: dois olhos, duas orelhas, dois joelhos, duas pernas, etc. Muitos
objetos sacros ou deuses, como os gêmeos Asvin da religião védica., também vêm aos
pares.
O passo do dois para o três, "para além do dois", parece ter sido decisivo na
gênese do processo de contagem. Quando certa tribo de habitantes de uma ilha do Mar
do Sul conta por dois, urapun, okasa, okasa urapun, okasa okasa, okasa okasa urapun
(isto é, 1, 2, 2+1, 2+2, 2+2+1) sentimos que não deram o passo decisivo do dois para o
três. Mesmo assim constatamos, para o nosso espanto, que são capazes de contar para
além do dois sem serem capazes de contar até três! Do mesmo modo, alguns pigmeus
Africanos contam a, oa, ua, oa-oa, oa-oa-a, e oa-oa-oa para 1, 2, 3, 4, 5 e 6. Este é um
dos fundamentos do argumento de Seidenberg de que a contagem por pares (base dois)
é a mais primitiva de todas.

Os membros da tribo australiana Aranda, segundo A.Sommerfeld, não possuem


mais que dois nomes para número, propriamente ditos: ninta para a unidade e tara para
o par, para três e quatro dizem, respectivamente: tara-mi-ninta (dois-e-um ) e tara-ma-
tara (dois-e-dois ). Para além do quatro empregam uma palavra que significa "bastante".
Certos indígenas da ilhas Murray, no Estreito de Torres, que separa a Nova Guiné da
península australiana do cabo York, só conhecem os seguintes nomes para número:
netat para "um", neis para "dois", neis-netat para "três" e neis-neis para "quatro". Acima
disso empregam algo parecido como " multidão".

Como vimos, esses indígenas só possuem nomes para os números um e dois, o


três e o quatro são formados pela justaposição das palavras para um e dois, algo como
dois-um e dois-dois; para além do quatro, empregam expressões como muitos,
multidão, inumeráveis. Outras tribos, como os Botucudos do Brasil, os Abipones do
Chaco do Paraguai, determinados índios da Terra do Fogo, para citar algumas, também
procedem assim. Os Botocudos, ao dizerem "muitos", apontam para os cabelos, como se
quisessem dizer: "depois de quatro, são tão inumeráveis como os cabelos da cabeça".

Os Yanomami, do Brasil, não conseguem contar para além de três. Recentemente


ocorreu um episódio, que vale a pena ser mencionado, como ilustração do modo de
pensar primitivo. Garimpeiros atacaram uma aldeia desses índios, dizimando vários
deles. As manchetes citavam cifras para o número de mortos variando entre um
punhado e várias dezenas, pois os relatos dos sobreviventes não conseguiam quantificar
os abatidos, por não saberem contar. Além disso, esses silvícolas têm por costume
incinerar os falecidos e ingerir as cinzas, como forma de respeito e homenagem. Desse
modo, não restavam provas materiais que permitissem quantificá-los.
A questão do número de mortos, após ampla celeuma, só foi resolvida por um
antropólogo, o qual pediu que os sobreviventes lhe dissessem os nomes dos
desaparecidos. Após ter elaborado uma lista desses, contou-os, fornecendo assim o total
dos mortos. Esses indígenas, muito primitivos, conseguem perceber a falta de um
membro do seu grupo não pelo processo de contagem, mas por outros meios, como
laços de parentesco, de amizade, etc. Isso também não é exemplo de senso numérico,
pois os elementos faltantes do conjunto são identificados pelos seus traços
característicos.

Quanto ao uso de outras bases, certa tribo da Terra do Fogo tem os seus primeiros
nomes para números baseados em 3, e algumas tribos sul-americanas usam 4. A base 5,
como seria de se esperar, parece ter sido a primeira base amplamente disseminada. Por
exemplo, entre os Galibi do Brasil: atoneigne oietonai - uma mão : 5; oia batoue - a
outra mão : 10; poupou patoret oupoume - pés e mãos : 20. Embora ao longo da
história o uso de contar pelos dedos, isto é, empregando bases 5 e 10, pareça ter surgido
mais tarde do que contar por dois ou três, os sistemas quinário e decimal quase
invariavelmente ganharam do binário e do ternário.

Como já Aristóteles tinha observado, o uso hodiernamente difundido do sistema


decimal parece ser apenas o resultado do acidente anatômico de que nós normalmente
nascemos com dez dedos nas mãos e dez dedos nos pés. Struik cita uma investigação
levada a cabo pela Universidade de Stanford sobre 307 sistemas de numeração
empregados por tribos primitivas americanas. Destes, 146 empregavam a base decimal,
106 usavam base quinária-decimal, 81 eram binários, 35 eram vigesimais e quinário-
vigesimais, 3 eram ternários e somente um utilizava a base 8.

Traços de sistema de base 12 também podem ser encontrados, principalmente


relacionados com medições. Essa base pode ter sido sugerida talvez porque 12 tem
muitos divisores inteiros, ou talvez porque é o número aproximado de lunações em um
ano.

A base 20, pelo fato de corresponder ao número de dedos das mãos e pés, foi
muito usada. O mais conhecido sistema vigesimal é o maia, embora traços de sistema
céltico de base 20 possam ser encontrados no francês quatre-vingts ao invés de huitante
e quatre-vingt-dix ao invés de nonante.
Os sumérios introduziram a base 60, posteriormente adotada pelos demais povos
da Mesopotâmia. Ainda hoje a empregamos para medidas de tempo e de ângulo.

Bases mistas são raras, como por exemplo entre os Yukaghirs da Sibéria, que
contam: um, dois, três, três e um, cinco, dois três, um mais, dois quatros, dez faltando
um, dez. É importante observar que, se uma sociedade possui extenso sistema verbal de
números, somente este fato não nos capacita para afirmar que possui conceito
operacional de número.

Hipóteses sobre a importância da língua na construção do conceito de número

As pesquisas mais recentes comprovam que seres humanos, tendo ou não uma
lista de nomes de números à sua disposição, compartilham com animais não
verbalmente articulados uma representação de número limitada, o que já era conhecido.
Retomou-se novamente a discussão sobre o papel da linguagem na origem dos
conceitos numéricos. Analisaremos brevemente as hipóteses que vêm sido apresentadas.

A hipótese mais antiga, denominada de Whorfiana forte, é a do determinismo


lingüístico, onde a língua determina o pensamento, o que exclui a possibilidade de
pensamento racional em animais e humanos desprovidos de linguagem. Hoje está
praticamente abandonada, pois existe uma literatura abundante comprovando a
existência de inferência quantitativa acerca de números, espaço e tempo em humanos
pré-verbais, em indivíduos com deficiências lingüísticas e em ratos, pombos, e outros
animais. Outra crítica importante a essa hipótese é que não explica como a exposição à
linguagem poderia gerar o aparato representacional e simbólico com que somos
dotados, isto é, como palavras poderiam fazer conceitos surgirem do nada.

A antítese da hipótese Whorfiana forte é que o pensamento é mediado por


sistemas simbólicos independentes da linguagem, às vezes denominados de linguagens
de pensamento. Nessa corrente, quando humanos aprendem uma linguagem, eles
aprendem como expressar nela conceitos já pré-existentes nos seus sistemas pré-
lingüisticos. Conceitos mais complexos seriam obtidos pela combinação de conceitos
elementares.
Recentemente surgiram adeptos de uma hipótese Whorfiana fraca, onde a
linguagem influencia de algum modo o como pensamos.

Um fenômeno interessante objeto de estudo recente é o do efeito distância.


Pessoas com domínio dos números são capazes de ordenar números com facilidade, mas
não sabem por que o fazem. Foi determinado que as pessoas levam mais tempo para
decidir que 3 > 2 do que levam para resolver se 5 > 2, se as questões são postas
simbolicamente. O tempo de reação para julgamentos de ordem numérica é uma função
da razão entre os números sendo julgados e, mais surpreendente, esta função é a mesma
tantos entre seres humanos como entre os macacos. O efeito simbólico e de distância
são geralmente considerados como indicativo de que a determinação da ordem numérica
pelo cérebro depende de magnitudes mentais imprecisas, denominadas de magnitudes
mentais.

Nas hipóteses não Whorfianas as magnitudes mentais que representam números


são um exemplo de representações elementares não lingüísticas para as quais sujeitos
dotados do conceito de número aprenderam palavras.

O interessante é que pesquisas recentes realizadas nas tribos amazônicas


parecem comprovar essas asserções, de resto, isto já era suspeitado. Esses índios ou não
possuem palavras verdadeiras para números, ou eles têm apenas palavras consistentes e
inambígüas apenas para “um” e “dois” e palavras menos precisas para “três” e “quatro”.
Porém conseguem contar, empregando essas palavras, contadores ou entalhes, mesmo
até 80 ou mais, realizar operações mentais de adição e subtração ou julgar qual conjunto
entre dois é mais numeroso, ou seja, são capazes de ordenação.

Essas constatações são contrárias à hipótese Whorfiana forte de que o conceito


de número depende da linguagem para o seu desenvolvimento. Isso sugere que pessoas
com extremamente limitada ou não verbal representação de número podem ter
aproximadamente a mesma capacidade numérica de que sujeitos com um bem
desenvolvido, fluente sistema verbal de contagem.

Uma variação corrente da hipótese Whorfiana fraca é a hipótese de dois sistemas


de representações, a qual admite que, além da representação aproximada de magnitude
numérica, há uma segunda representação pré-lingüística, limitada aos números de um a
quatro, o que era conhecido como senso numérico ou números perceptuais.
Porém ao menos duas críticas são levantadas contra essa alternativa. A primeira
levanta que se as palavras para números de um a quatro se originam de símbolos ou
perceptos pré-lingüísticos, por que o efeito distância também ocorre neste domínio
(2>1, 3>2,...). A segunda argüi que se o cérebro representa três e sete de duas maneiras
fundamentalmente diferentes, como ele pode compô-los aritmeticamente (3+7, 7>3,...)?

A verdade é que o mecanismo de como o cérebro humano atua na construção de


um conceito inteiramente formado de número ainda é desconhecido, o desafio da
ciência atual é compreendê-lo.

Contagem entre os povos indígenas brasileiros

Diana Green (2002) realizou interessante estudo sobre os processos de contagem


e palavras para números empregados por povos indígenas brasileiros, os quais são
povos caçador-coletores, alguns ainda na pré-história. Tratam-se, portanto, de exemplos
etnográficos de valia para o estudo de semelhantes sociedades, típicas do Paleolítico.

Inicialmente, convém lembrar a distinção entre base de um sistema de


numeração posicional e processos ou técnicas cognitivas de contagem. Em um sistema
de numeração posicional de base b um número N pode ser escrito como:

N = a n b n + a n −1b n −1 + ... + a 2 b 2 +a 1b 1 + a 0 b 0 = (a n , a n −1 ,..., a 2 , a 1 , a 0 ) b onde

a n , a n −1 ,..., a 2 , a 1 , a 0 são os dígitos de N neste sistema. Por exemplo, o número 12.345,

escrito no nosso sistema decimal habitual, é representado por:


(12345)10 = 1.10 4 + 2.10 3 + 3.10 2 + 4.101 + 5.10 0 . Os sistemas posicionais foram

inventados pelos sumérios, que também foram os inventores da escrita. Eles são
adequados a povos com escrita, o que não é o caso dos coletor-caçadores. Essas
sociedades fazem uso de processos cognitivos de contagem que não necessariamente
são idênticos aos dos povos letrados. Nesses povos o importante é a construção
lingüística dos termos numéricos que empregam, os quais estão vinculados aos
processos cognitivos de contagem de cada sociedade. Vejamos alguns exemplos.
No povo kampa (aruak) o processo cognitivo mental de contagem emprega a
correspondência um-a-um. Uma mãe kampa de quatro filhos não pensa, por exemplo,
“vou cozinhar quatro ovos para meus quatro filhos”, mas sim“ vou cozinhar um ovo
para um dos meus filhos”. Com este tipo de cômputo cognitivo mental biunívoco não
são necessários muitos termos numéricos, realmente a língua kampa possui apenas três:
aparo, apite e mava (um, dois, três). Embora estas três palavras para números pareçam
indicar o emprego de um sistema de base três isso não é verdade, os processos
cognitivos de contagem devem ser levados em consideração, pois seu sistema de
contagem não é posicional. Várias outras línguas, como a kulina (aruá), tenharim (tupi-
guarani), nadeh (maku), sanuma (yanomani), pirahã, entre outras, também fazem uso
dessas construções lingüísticas de termos numéricos baseadas neste processo cognitivo
de contagem.

Outras sociedades empregam processos cognitivos de contagem baseados no


conceito de números pares e ímpares. Os numerais (palavras para número) são
considerados em termos de pares. Geralmente os indivíduos desses povos contam
levantando dois dedos ao mesmo tempo. O conceito mental subjacente é de que como
todo o objeto tem dois lados, seria lógico efetuar cômputos tendo-se como referência as
duas metades que completam uma unidade inteira. Um homem necessitando calcular o
número de estacas para fazer uma casa irá raciocinar nos seguintes termos: “vou cortar
um par para a parte da frente e outro par para a parte de trás, mais outro par para o meio
deles e um par para sustentar o cume”. Não pensa em termos de estacas individuais,
pois lhe parece óbvio que a casa precisa de estacas nos dois lados, uma oposta à outra.

É interessante notar que essa forma de pensar é, de algum modo, figural,


associa-se sempre duas patas, dois olhos, dois seixos, etc., unidos por uma
correspondência um-a-um intríseca, indissociável, o que de certa maneira endossa a
opinião de Seidenberg sobre a base dois, a contagem por dois, de ser a mais antiga
forma de contagem da humanidade. Os Bushmen da África do Sul, bem como alguns
pigmeus empregam a contagem aos pares, ou seja, na base dois. É também
correlacionada ao dual do indoeuropeu.

Na língua xerente, do grupo jê, o nome do número dois é ponkwane, que


significa “rastro de veado”, pelo fato do casco do veado ser fendido e das duas partes
andarem sempre juntas. Na língua xavante, do mesmo grupo lingüístico, a palavra para
dois é maparane, que significa “como as patas da ema”, porque a ema tem um par de
patas.

Tanto os falantes de línguas que empregam processos cognitivos de contagem


baseados na correspondência um-a–um (“base” um), como os que empregam conceitos
de números pares e ímpares (“base” dois), compartilham uma forma de pensar holística,
um raciocínio relacional e global, uma estrutura mental baseada no contexto global ou
na noção de totalidade. É um outro processo cognitivo, diferente de um processo
cognitivo de contagem seqüencial.

O nome do número quatro em xavante é maparane´tsi uiwana, que significa


“como as patas de um par de emas”, já o número cinco se denomina imro tö, “sem o
companheiro”, e o seis imro pó, “com o companheiro”. O um é mi-tsi, “ [um pedaço] de
lenha”; o três, tsi´ubdatō, cujo significado não se conhece, aparentemente denota
apenas três; o dez, danhiptmo bö, “os dedos da mão, todos”; e o vinte, daparahi bö, “os
dedos do pé, todos”. Este povo começa a contar com o dedo mínimo (um) e terminam
com o polegar (cinco), que fica “só”, sem o companheiro.

Esse processo cognitivo de contagem se manifesta linguisticamente ao menos de


três maneiras, conforme Green nota: a) pelo sentido literal dos termos numéricos; b)
pela reduplicação dos numerais; c) pelo uso de apenas duas palavras em várias
combinações, uma palavra par e outra ímpar.

Todos os nomes para números da língua arara, do grupo karib, são combinações
do numeral um, anane e do numeral dois, adak, respectivamente termos denotativos de
par de ímpar. Três é adak anane; quatro, adak adak; cinco, adak adak anane; seis, adak
adak adak; sete, adak adak adak anane; oito, adak adak adak adak; dez, omiat omiat,
“mão mão”; quinze, omiat omiat pugu ¿o jedun-ne, “mão mão pé lado-só”; vinte, omiat
omiat pugu ¿o pugu ¿o, “mão mão pé pé”. Observe-se o número quinze, que sublinha
lado só, não a totalidade dos dois pés, pois o termo ímpar indica uma unidade
incompleta, parcial.

Outras línguas que compartilham a idéia de uma outra metade ou companheiro


em seus termos numéricos são: guarani (tupi-guarani); guajajara (tupi-guarani); tembé
(tupi-guarani); asurini do Trocará e do Xingu (tupi-guarani; parakanã (tupi-guarani);
kayabi (tupi); bororo (macro-jê); kayapó (jê).
O dialeto waimiri da língua atroari emprega um processo de contagem baseado
em agrupamentos de três. Nesse dialeto, todos os nomes de números acima de dois
começam com o numeral três. O um é awenin; dois, typytyna; três, takynyna, ou
takynynapa; quatro, typytyna typytyna (2+2) ou takynynapa awenin (3+1); cinco,
takynynapa typytyna (3+2); seis, takynynapa takynynapa (3+3); sete, takynynapa
takynynapa awenin (3+3+1); oito, takynynapa takynynapa typytyna (3=3+2); nove,
takynynapa takynynapa takynynapa 3+3+3).

Os falantes da língua munduruku (tupi) empregam um sistema onde o numeral


cinco é a base com que são formados seus números para dez, quinze e vinte. Cinco
corresponde a “uma munheca”, dez a “duas munhecas”; quinze a “três munhecas” e
vinte a “quatro munhecas”, ou seja, a 2, 3 ou 4 conjuntos de 5.

Os falantes da língua palikur (aruak) empregam termos numéricos baseados em


unidades de dez. Geralmente, os indivíduos falantes das línguas que tem como base dez
contam levantando um dedo após o outro.

Muitas línguas indígenas do Brasil empregam um sistema vigesimal. Entre elas,


podemos citar; karajá ( macro-jê); rikbaktsá (macro-jê); urubu-kaapor (tupi-guarani);
kadiwéu (guaikuru); karitiana (arikém); tikuna (isolada); makuxi (karib); parecis (aruak)
e o dialeto Hohôdene da língua baniwa. Todas essas línguas têm termos numéricos
distintos para um a cinco. Cinco, em todas elas, significa “nossa mão”, “todos os dedos
da mão” ou o “fim da mão”. De cinco a dez usa-se a outra mão: “cinco mais um dedo”,
“ cinco mais dois dedos”, etc. O numeral dez é considerado “mão mais mão” (5+5).
Onze é “mão mais um [dedo do pé]”, doze, mão mais dois [dedos do pé]”, e assim por
diante até quinze. Quinze significa “[mãos] mais um pé”, dezesseis “[mãos] mais um pé
mais um [dedo]”; e assim por diante até vinte. O termo para vinte designa “os pés”, “o
fim dos pés”, “mãos e pés” ou “uma pessoa”.

Na língua kadiwéu o termo numérico para 37 significa “uma pessoa, mais as


mãos, mais dois dedos e mão” (20+10+2+5). Essa língua tem termos numéricos para
numerais de 1 a 99 e nela existem dez formas do numeral um, todas concordando em
gênero com os substantivos a que se referem, bem como indicando a posição referencial
ou direcional (vertical, horizontal, sentado, saindo ou chegando).
A estrutura gramatical envolvendo os termos numéricos de uma língua de um
povo caçador-coletor pode ser extraordinariamente complexa. Segundo Green, na língua
palikur muitos dos termos numéricos de 1 a 199 apresentam afixos que caracterizam o
substantivo ou verbo a que o numeral se refere. Fixado na raiz de todo o termo
numérico, encontramos um dos seus vinte classificadores, referentes, em sua maior
parte, ao formato ou agrupamento dos objetos que estão sendo contados. Acrescenta que
existem ainda outras flexões que qualificam o substantivo e, além disso, é possível
adicionar nove sufixos distintos que dizem respeito a conceitos numéricos.

Origens dos Numerais

Pode-se dizer, de um modo simplista, que contar é recitar nomes de números em


uma dada ordem, ou computar quantos itens há em um grupo

Ultrapassada a fase em que a humanidade somente se utilizava do senso


numérico, resta indagar como surgiram os primeiros processos de contagem e quais
foram. Como distinguir entre rabiscos ao acaso, ou com motivos decorativos,
meramente estéticos, executados pelos hominídeos primevos, dos verdadeiros
numerais? Quando despontaram sinais gráficos realmente capazes de representarem
números?

Vejamos o que alguns autores modernos expõem sobre essas questões.

Evolução dos Processos de Contagem e do Conceito de Número

Talvez uma das primeiras noções matemáticas a ser empregada pela humanidade
relaciona-se à noção de ordem, de ordenação, fundamental para o estabelecimento de
classificações. Implica no reconhecimento de classes de objetos: objetos curtos ou
compridos, leves ou pesados, de pedra ou de madeira, de pele ou de chifre, redondos ou
lineares, e assim por diante. Perante uma diversidade de objetos, a noção de ordem
permite ao homem primitivo dividi-los em classes, estabelecendo assim uma taxonomia:
objetos de pedra, de madeira, armas, ferramentas. etc. A noção de classificação é
anterior, portanto, à contagem. Contamos geralmente objetos de uma mesma classe.

Denise SCHMANDT-BESSERAT (1992, 1999), Professora da Universidade do


Texas, em Austin, acredita que a evolução dos processos de contagem ocorreu em três
estágios: 1. contagem sem números; 2. contagem concreta; 3. contagem abstrata.

Por contagem sem números entende o estabelecimento de uma correspondência


um-a-um entre o grupo de objetos a ser contado e um conjunto de contadores. Cita o
exemplo dos Veddas, do Sri-Lanka, coletores, que têm somente palavras gerais para
lidar com números, como: um único, um par, um outro, muitos. Desejando contar cocos,
por exemplo, reúnem seixos. Para cada coco empilham um seixo: um coco = um seixo.
Para cada coco adicional, contam: um outro, agregando mais um seixo. Quando
terminam, apontam para a pilha de seixos e dizem: aqueles muitos. Sempre que
desejarem, podem verificar a integridade de sua pilha de cocos, comparando-a com a de
seixos. Outros, como os Paiela, da Nova Guiné, empregam um processo de contagem
conhecido como contagem corporal, onde estabelecem uma correspondência um-a-um
entre partes do corpo e os objetos a serem contados. Este processo de contagem só é
possível de ser empregado para números pequenos, em torno de vinte, trinta.

A contagem corporal, difundida entre caçadores-coletores, é um processo que


emprega os dedos das mãos, dos pés, e mesmo outras partes do corpo. Seus usuários
sabem que tocando em uma determinada ordem seu dedo mínimo, o anular, o médio, o
indicador e o polegar da mão direita, então seu pulso, cotovelo, ombro, orelha e olho, e
repetindo a seqüência em sentido contrário do seu lado esquerdo, seguindo por outras
partes do corpo, eles podem fazer corresponder tantos objetos, homens ou animais,
quantos pontos corporais há na seqüência. Existem várias formas de seqüências
corporais, a mais difundida e primitiva consiste em primeiro se empregar os dedos das
mãos, seguidos pelos dedos dos pés. Ainda não há nomes para números, é uma
correspondência um-a-um entre um conjunto de objetos e um conjunto de pontos
corporais.

Os mais antigos dispositivos materiais conhecidos, empregados no Paleolítico


para contagem, são ossos com uma ou várias séries de entalhes, regularmente
espaçados. Cada vez que se desejasse registrar um dia, pele, peixe ou animal adicional,
acrescentava-se um entalhe a mais. A técnica dos entalhes é, portanto, outra forma de
contagem sem números, empregando correspondências um-a-um. Dada a importância
desta técnica para a matemática pré-histórica dedicaremos um capítulo específico ao seu
estudo.

Outros povos, todavia, contam concretamente. Empregam para isso diferentes


conjuntos de números para contar diferentes categorias de coisas. Este tipo de contagem
é comum entre os povos caçadores-coletores. Os Gilyaks, da Rússia, possuem vinte e
quatro conjuntos distintos de números. Para contarem coisas compridas, como árvores,
varas e lápis, usam a palavra mex para o número dois. Quando contarem folhas, panos e
outros itens chatos, empregarão met para dois. Para bolas, frutas e outras coisas
redondas, utilizarão mik para dois. Suas seqüências para números dificilmente
ultrapassam vinte. Números concretos não permitem, portanto, a contagem de grandes
quantidades. São similares aos nossos termos duo, trio, quarteto, empregados para
denotar o número de participantes em grupos de músicos, e gêmeos, trigêmeos,
quadrigêmeos, utilizados para designar o número de crianças de um mesmo nascimento.

Várias línguas indígenas do Brasil recorrem a classificadores numéricos, que


indicam a natureza do que é contado, os quais modificam a forma do termo numérico a
ser empregado, gerando, desse modo, um novo nome para o número. A língua kadiwéu
emprega termos numéricos correlacionados posicionalmente ou direcionalmente, como
vimos. Em kadiwéu, a raiz do numeral um é o...teci, o-ni-da-teci goneleegiwa
significaria um (o) – masculino (ni) – vertical (da) – um (teci) – homem (goneleegiwa),
ou seja, algo como um homem de pé. Já o-na-na-teci iwaalo seria entendido como um
(o) – feminino (na) – chegando (na) – um (teci) – mulher (iwaalo), uma mulher vindo.
A expressão o-na-di-teci wetiadi é entendida como um (o) – feminino (na) – horizontal
(di) – um (teci) – pedra (wetiadi), uma pedra deitada no chão.

Segundo Green alguns classificadores apontam se o elemento é humano,


mamífero, peixe, macaco, árvore, etc. Outros se referem ao formato do item: redondo,
plano, fino, etc.; ou à estrutura: oco, líquido; ou à consistência: flexível, rígido. Alguns
classificadores apontam a função do item (instrumento, habitação); outros se referem a
agrupamentos (conjuntos, cachos, feixes). Existem classificadores para períodos de
tempo (dia, noite) e para itens específicos, como canoa ou semente. Várias línguas
possuem um classificador genérico, para itens que não se incluam em nenhuma outra
classe. Como empregam diferentes conjuntos de números para contar diferentes
categorias de coisas, esses povos contam concretamente.

Notável é a língua palikur, que possui a maior variedade e complexidade de


termos numéricos para contagem. Além dos classificadores para a contagem de itens
materiais, ela possui um classificador para idéias abstratas, como doença ou
pensamento. Isso demonstra a compreensão de que não apenas coisas materiais podem
ser contadas, mas também conceitos abstratos, o que denota um estágio cognitivo
surpreendente para uma sociedade caçador-coletor.

A partir do nono milênio antes da nossa era, povos do Oriente Médio começaram
a empregar pequenos objetos de argila, moldados na forma de discos, ovóides, cones,
esferas, etc., como contadores. Cada configuração correspondia a uma categoria de
coisa a ser contada: uma ovelha correspondia a um disco, duas ovelhas a dois discos, e
assim por diante. Jarros de óleo eram contados com contadores ovóides. Esses
contadores eram colocados dentro de bolas de barro, denominadas de bullae, que eram
secas ao sol ou cozidas. Posteriormente, eram impressos na superfície das bullae. A
forma desses contadores parece ter dado origem aos primeiros sinais da escrita
sumeriana primitiva, que figuram nos denominados textos protoliteratos, pois, por
exemplo, seus sinais para óleo e ovelha assemelham-se a um ovóide e a um disco. Esses
povos, por conseguinte, empregaram contagem concreta até os primórdios da escrita.

A contagem concreta mostra como as sociedades enfrentaram o problema de lidar


com a pluralidade, ou distintos conjuntos de muitos itens, e encontraram soluções
diferentes para expressarem números. Na contagem concreta não existe separação entre
o número e a coisa que está sendo contada. Há uma identidade entre eles. Nos textos
protoliteratos, onde aparecem os primeiros signos gráficos que poderiam ser
denominados de numerais, continua em voga a contagem concreta, persistindo uma
identidade entre o signo e a coisa computada, portanto estes sinais ainda não se
configuram como numerais legítimos, mas sim como ancestrais diretos (=
protonumerais) destes. Jöran Friberg mostrou que nos textos protosumérios e proto-
elamitas existiam espécies de números que deviam ser empregados conforme a natureza
do que se ia contar, o que confirma esta assertiva.

Finalmente, Schmandt-Besserat (S-B) entende por contagem abstrata aquela que


emprega números abstratos, isto é, aqueles onde a idéia de número: um, dois, três,... é
abstraída da natureza das coisas que são contadas. Este sistema é muito conveniente,
pois números abstratos podem contar qualquer coisa; cada número abstrato é expresso
por uma palavra que permanece a mesma, não importa a natureza do que está sendo
contado; os números abstratos são infinitos. Os sumerianos começaram a empregar
números abstratos em seus textos literatos, portanto os sinais para números nestes textos
podem ser considerados, com certas restrições, como os primeiros numerais
verdadeiros. Os textos de Uruk IVa, cerca de 3.100 a.C., mostram os primeiros
empregos de numerais (expressando números abstratos) e pictógrafos (denotando
objetos). A noção de número pela primeira vez encontra-se dissociada da natureza do
objeto. Ao que parece, ao menos para os sumerianos e os elamitas, não existiu uma
linha divisória temporal absoluta entre os protonumerais e os numerais legítimos.
Ocorreu sim um período de transição entre uns e outros, onde podem ter coexistido.
Como vemos, a origem dos primeiros numerais autênticos está intimamente ligada à
origem da escrita. Os primeiros numerais seriam, em princípio, aqueles empregados
pela primeira escrita. Presentemente há uma polêmica sobre qual escrita seria a
primeira, como mostraremos na seqüência.

Pete DAMEROW (199-), do Instituto Max Planck para a História da Ciência,


desenvolveu um arcabouço teórico para uma epistemologia histórica do conceito de
número, levando em conta noções da Epistemologia Genética de Jean Piaget. Esboça
uma história da evolução cognitiva do conceito de número, por meio da psicologia
cognitiva. Para Piaget, o conceito de número está, por um lado, fundado em universais
cognitivos e, por outro, sujeito a mudanças históricas fundamentais.

Jean Piaget nasceu em Neuchâtel, Suíça no dia 9 de agosto de 1.896 e faleceu


em Genebra em 17 de setembro de 1.980. Estudou a evolução do pensamento até a
adolescência, procurando entender os mecanismos mentais que o indivíduo utiliza para
captar o mundo. Como epistemólogo, investigou o processo de construção do
conhecimento, sendo que nos últimos anos de sua vida centrou seus estudos no
pensamento lógico-matemático.

Pesquisou os passos e os processos por meio dos quais as crianças desenvolvem


suas habilidades para compreender e operar com objetos e conceitos. Descobriu que
uma criança principia a pensar espacialmente, aritmeticamente, sequencialmente e no
tempo antes que adquira um uso adequado da linguagem, isto é, antes que a cultura
verbal influencie consideravelmente na formação desses conceitos. Esse potencial
cognitivo é inato para cada idade, embora muda e se desenvolve à proporção que a
criança amadurece e trata com problemas de dificuldade crescente da sua realidade e
cultura, e à medida em que ela amplia seu raio de ação e multiplica suas atividades.

Afirmou que uma criança não adquire unicamente as noções de número e outros
conceitos matemáticos por meio do ensino, mas que estas noções em grande parte se
desenvolvem espontaneamente.

Descobriu que uma criança com cinco ou seis anos pode aprender os nomes dos
números e, se dez objetos são colocados em linha ela pode chamá-los por estes nomes,
mas se o arranjo linear é subvertido, a criança perde a certeza quanto ao total. Ela
aprendeu os nomes dos números, mas não entendeu a idéia essencial do número, que a
quantidade total de objetos permanece a mesma também quando eles são misturados.
Porém, meio ano ou mais posteriormente, aos seis e meio ou sete anos, ela formou a
idéia de número mesmo que não lhe tenha sido ensinado a contar. Nesta idade, sendo-
lhe apresentados dois grupos de igual número de objetos, um de objetos azuis e outro de
vermelhos, e perguntada qual grupo tem “mais”, ela irá descobrir que os dois grupos
têm o mesmo número de objetos colocando os azuis em correspondência com os
vermelhos. A noção de correspondência um-a-um, básica na técnica dos entalhes, surge,
portanto, nessa idade.

Piaget também descobriu que uma criança aprende espontaneamente a


compreender números cardinais (um, dois, três, ...) e ordinais (primeiro, segundo,
terceiro,...) quando ela cresce e aprende a distinguir que um objeto está antes ou depois
de outro no tempo e no espaço, isto é, na ordem da enumeração. Assimilou essa
habilidade manipulativa da geometria do tempo e do espaço antes mesmo de adquirir a
verbalização desses conceitos. Essas idéias provieram não do aprendizado, mas de
estágios de amadurecimento.

Aos três anos uma criança pode distinguir certas figuras, como um círculo ou
uma cruz, e dizer se são abertas ou fechadas. Não consegue, ainda, desenhar um
retângulo ou um triângulo. Se solicitarmos a uma criança de quatro anos que coloque
palitos verticais completando uma linha reta entre dois palitos distantes mais ou menos
40 centímetros, ela irá formar uma linha tortuosa. Ela ainda não adquiriu o conceito de
linha reta. Depois dos quatro anos ela irá formar uma linha reta com os palitos
alinhando-os com, por exemplo, o lado da mesa em que estiverem situados. Aos sete
anos ela poderá construir uma cerca reta com os palitos fechando um olho e verificando
seu alinhamento com o outro. Nesta fase adquiriu o conceito de ângulo de visão,
inclusive percebendo como outra pessoa olha para o mesmo objeto de outro ponto de
vista. Este é o princípio cognitivo fundamental para a cooperação grupal no tempo e no
espaço, indispensável, por exemplo, para a caça coletiva.

Nesta fase ela também começa compreender a noção de comprimento constante.


Por exemplo, se colocarmos duas árvores de brinquedo sobre uma mesa e então
colocarmos entre ela um “muro” de cartolina, separando-as. As crianças mais jovens
pensam que a distância entre as árvores mudou, não entendem que podemos somar as
duas partes e obter a distância total. Aos cinco ou seis as crianças pensam que distância
reduziu, tendo o muro consumido algum espaço. Próximo aos sete anos, começam a
perceber que a distância total não mudou, que os objetos intermediários não alteram a
distância total. Estão principiando a raciocinar em termos de espaço e tempo a um nível
adulto.

Por estágios a criança aprende a julgar e medir a altura ou largura de objetos,


aprendendo espontaneamente a estabelecer comparações com o uso e varinhas ou
barbantes. Finalmente aprende que o todo é constituído de partes, e que é possível
substituir unidades e mesmo assim reter o todo. Lentamente a criança adquiriu a idéia
de número, distância, medida, e ordem serial sem o emprego de um sistema de números
aritmético formal.

Admitindo que essas capacidades cognitivas são inatas no homem, pode-se


admitir que um caçador-coletor primitivo podia reconhecer a passagem do tempo de três
ou seis luas cheias, que representavam as estações. Posteriormente, poderia dividir esses
meses lunares em vinte e nove ou trinta numericamente precisas unidades-dias e, com a
aquisição de um sistema de notação externa no Paleolítico, esta habilidade começou a
ser institucionalizada culturalmente.

Damerow identificou os seguintes estágios cognitivos da evolução histórica do


conceito de número: 0) quantificação pré-aritmética; 1) proto-aritmética; 2) aritmética
baseada em símbolos; 2 a) nível de sistemas de símbolos dependentes do contexto; 2 b)
nível de sistemas de símbolos abstratos; 3) aritmética teórica; 3 a) nível de dedução em
linguagem natural; 3 b) nível de dedução formal.

Entende como o nível de quantificação pré-aritmética o estágio no qual nenhuma


atividade aritmética, exceto comparações, pode ser encontrada. No nível pré-aritmético
as comparações, bastante primárias, são feitas de um modo consciente e refletido, ao
contrário do que ocorre no senso numérico, onde comparações são feitas
instintivamente, em um nível sub-consciente. Pode-se, portanto, admitir que ocorreu a
existência de um estágio anterior a este proposto por Damerow, em que a humanidade
fazia apenas emprego do senso numérico, inato. No estágio de quantificação pré-
aritmética não há seqüências estruturadas de contagem e nem técnicas de contagem
como a dos entalhes, contagem corporal, contagem por nós ou por calculi (contadores).
As línguas nesse estágio possuíam apenas termos de natureza qualitativa para
quantidades. Como exemplo de culturas nesse estágio, podemos mencionar os Veddas,
os Chiquitos e os Tacanas. Esse estágio é paralelo ao de contagem sem números de S-B.
Para determinadas culturas, a distinção entre este estágio e o próximo pode ser difícil.

No segundo estágio, correspondente ao nível proto-aritmético, a representação de


quantidades é feita mediante correspondência um-a-um com conjuntos de objetos
concretos ou outros símbolos. É ainda o estágio de contagem sem números de S-B.
Damerow afirma que identificamos esse nível de desenvolvimento no Neolítico
Posterior e na Idade do Bronze Antiga, não aceitando sua existência no Paleolítico.
Existem, porém, artefatos como o osso (rádio) de um lobo, encontrado em 1.937 por
Karl Absalom, em Vestonice, na antiga Tchecoslováquia Central. Está gravado com 55
entalhes profundos e com idade calculada em aproximadamente 30.000 anos, mostra
que já no Paleolítico Superior o homem pré-histórico tinha noções do conceito de
número, ao menos no nível cognitivo proto-aritmético. Como este artefato foi de
extrema importância para o estudo da Matemática Paleolítica, dedicaremos no próximo
capítulo uma secção exclusiva para ele.

O nível 2 é caracterizado pelo surgimento de


sígnos numéricos, capazes de representarem
Fig.5.1 Numerais sumerianos simbolicamente números. O estágio 2 a) é uma
arcaicos
fase transicional entre o nível proto-aritmético
e aritmética baseada em símbolos. Corresponde ao nível de contagem concreta de S-B.
Nessa fase os símbolos têm seus valores numéricos determinados pelo contexto
metrológico respectivo, mudando de acordo com sua área de aplicação, sem qualquer
tentativa aparente de se fixar um valor numérico não ambíguo para os signos. Esta fase
parece ser caraterística das culturas da região da Mesopotâmia e do Elam, não se tendo
conhecimento, até o presente, de outros exemplos. Nessas culturas, desde o momento da
emergência da escrita, primeiro na Suméria e algo depois no Elam, em torno de 3.200
a.C, até a invenção do sistema sexagesimal posicional, em cerca de 2.000 a.C.,
exclusivamente sistemas simbólicos dependentes do contexto foram empregados.
Somente com a introdução deste sistema surgiu um sistema de notações numéricas que
unificou todas as formas de notações. Pode-se dizer que unicamente nesta data se
consolidou o nível 2 b), de sistemas de símbolos abstratos, onde realmente surgiram os
primeiros numerais verdadeiros, legítimos representantes de números abstratos. O nível
2 b) corresponde, portanto, ao estágio de contagem abstrata de S-B.

Como os estágios seguintes da evolução do conceito de número não apresentam


interesse para o nosso problema, serão apenas brevemente resumidos. O estágio 3) é
baseado em conceitos aritméticos (aritmética teórica), na forma de sistemas de
proposições matemáticas logicamente estruturados. Sua característica mais importante é
trabalhar com proposições aritméticas gerais, concernentes às propriedades dos números
abstratos. Divide-se em dois níveis, o 3 a), de dedução em linguagem natural e o 3 b),
de dedução em linguagem simbólica. O nível 3 a) é caracterizado pelo fato de que os
sistemas dedutivos consistem de afirmações e provas formuladas em linguagem natural,
como, por exemplo, nos Elementos de Euclides. Já no nível 3 b), de dedução formal, a
linguagem natural é substituída por linguagens formais, que corresponde ao estágio da
matemática atual.

Como se pode constatar, o estudo da emergência da escrita é fundamental para se


reconhecer quais os primeiros numerais. Atualmente, a comunidade acadêmica credita o
mérito pela invenção da escrita aos sumerianos, seguidos proximamente pelos elamitas
e egípcios. Algumas descobertas arqueológicas recentes mudam, de certa maneira, essa
perspectiva, como veremos.
Emergência da Escrita

Escrita Egípcia

Os numerais hieroglíficos egípcios, ao


contrário dos numerais sumerianos, não fornecem
pistas se houve um estágio de contagem concreta
antes da invenção da sua escrita. É bastante
inverossímil que flores de lótus (1.000) ou girinos
(100.000) tenham sido empregados como
Fig.5.2 Numerais hieroglíficos
contadores. Não se conhecem estágios
intermediários da sua evolução. Acreditava-se que sua escrita tenha surgido em torno de
3.000 a.C., porém escavações recentes efetuadas pelo Dr. Günter Dreyer, do Instituto
Arqueológico Alemão, no cemitério U em Abidos, especialmente na tumba U-J, podem
mudar essa cronologia. Essa tumba, cuja construção foi datada pelo C-!4 em 3.200 AC,
ou seja, cerca de 150 anos antes da 1a dinastia, continha cerca de 180 etiquetas
retangulares, de osso ou marfim, de aproximadamente 2 x 3 cm, com um pequeno furo
no canto, provavelmente para serem atadas com um cordão aos bens rotulados. As
etiquetas apresentam formas rudimentares, mas inconfundíveis, de hieróglifos. A tumba
U-J parece ter pertencido ao faraó hoje conhecido como Escorpião I, para diferenciar do
Escorpião II, de Hierakompolis, cuja maça é bem conhecida. É fato conhecido da
arqueologia a existência de laços comerciais, desde os tempos pré-dinásticos, entre os
egípcios e os povos da Mesopotâmia. Como essas descobertas recuam a data da
emergência da escrita egípcia para aproximadamente a mesma data do aparecimento da
escrita sumeriana, torna-se difícil afirmar com segurança qual escrita surgiu primeiro e,
portanto, quais seriam os primeiros numerais. De qualquer forma, no estágio atual de
conhecimento, parece que os numerais hieroglíficos, desde o princípio, representaram
números abstratos.

Fig. 5.3 Etiqueta


Escrita do Vale do Indo

Em maio de 1999, os americanos Jonathan Mark


Kenoyer, da Universidade do Wisconsin, e Richard
Meadow, da Universidade de Harvard, comunicaram o
Fig. 5.4 Protótipos de sinais da escrita achado de pedaços de cerâmica inscritos com o que
do Indo
parecem ser protótipos dos sinais da escrita do vale do
Indo (dravídica). Mostram símbolos com aspecto de tridente,

provavelmente ancestrais de
símbolos semelhantes da escrita do Indo.
Como pertencem à recentemente
identificada fase Ravi, datada de c. 3.300-
2.800 a.C, inscrevem a civilização do
vale do Indo na disputa pela prioridade da Fig. 5.5 Numerais da escrita do Indo

invenção da escrita. A civilização do vale do Indo floresceu entre 2.800 e 1.800 a.C,
quando se dissolveu em culturas regionais. Sua escrita tem cerca de 400 sinais e é
principalmente pictográfica. Provavelmente essa escrita representa uma língua
dravídica. Conhecem-se cerca de 3.700 inscrições, provenientes de 40 sítios da cultura
de Harapa e de vinte outros sítios. Ainda não está completamente decodificada, apesar
dos esforços de Asko Parpola e de Iravatham Mahadevan, seus principais decifradores.
Proto-Escrita da Cultura Vinča

Cabe a pergunta se existiram escritas anteriores às citadas. Uma forte candidata é


a escrita da cultura Vinča, que se localizava nos Balcãs
Centrais, região da antiga Iugoslávia. Como se
encontrava atrás da antiga Cortina de Ferro, essa cultura
é pouco conhecida da comunidade acadêmica ocidental.
É uma cultura da denominada Civilização Européia
Antiga, designação dada por Marija Gimbutas, em 1971,
Fig. 5.6 Símbolos Vinča com
possíveis valores numéricos para uma civilização que possuía pequenas cidades,
(numeração da lista de WINN)
templos intrincadamente ornamentados, trabalhava o
ouro e o cobre para a fabricação de ornamentos e
ferramentas, e floresceu no sul da Europa antes da
infiltração dos indo-europeus durante o terceiro e quarto
milênio a.C. Os mais antigos sítios dessa cultura
parecem ter surgido no sexto milênio a.C. e atingiu seu Fig. 5.7 Placa

apogeu no quinto milênio, declinando, ou sendo


destruída, talvez nos princípios do quarto milênio a.C. Centenas
de vasos miniaturas, pesos de fuso para fiar, pratos e copos
exibem signos lineares que testemunham a existência de uma
escrita. Milton McChesney WINN (1973), que estudou os signos
da cultura Vinča, elaborou uma lista de 210 sinais dessa escrita,
Fig.5.8 Placa da
Tartaria bem como um catálogo de suas inscrições. Os sinais da escrita
Vinča são padronizados e convencionalizados e representam um corpus de sinais
reconhecidos e empregados no decurso da cultura Vinča. Nenhuma evolução dos sinais
pode ser identificada até o momento. Dada a sua padronização, a extensão geográfica de
seu uso, bem como o significativo intervalo temporal do seu emprego, não podem ser
interpretados como marcas de fabricantes ou de proprietários. Descarta-se a hipótese de
que os sinais não representassem nada mais do que rabiscos ou símbolos mágicos, pois
há muitas repetições do mesmo símbolo, apontando assim um significado intencional, e
o seu uso continuou no espaço e no tempo, indicando assim a importância do seu teor e
da sua utilidade. É provável que a escrita tivesse um importante papel religioso. A
escrita nunca atingiu o estágio de escrita por sentenças, talvez por não ter necessidade
disso. O uso dos sinais era suficiente para os fins religiosos a que escrita possivelmente
se destinava. Não tinham necessidade de manter registros contábeis, como faziam os
sumerianos. Talvez por isso não passasse de uma proto-escrita. Sua antigüidade é
considerável. As placas de Tartaria são dos fins do sexto milênio antes da nossa era, a
placa de Gradešnica é datada de 4.300 a.C. Se realmente os sinais da cultura Vinča
configurarem uma escrita (ou proto-escrita?), então seus sinais numéricos são anteriores
aos sumerianos e seus concorrentes em mais de um milênio. Porém, até que se
obtenham textos mais extensos em maior quantidade, que se aquilate em que língua
estão redigidos e se tenha uma melhor idéia de sua interpretação, deve-se proceder com
cautela.

Escrita Chinesa

O desenvolvimento da escrita
chinesa na antiguidade se deu em três
estágios:1) inscrições em artefatos
cerâmicos; 2) inscrições oraculares em
ossos e conchas; 3) inscrições em bronzes.

O período neolítico na China durou


aproximadamente entre 6.000 e 2.000 a.C.
Fig. 5.9 Signos da cultura Yangshao
Artefatos cerâmicos eram feitos para
cozinhar e armazenar alimentos. Os signos da Fig. 5.9 foram encontrados em peças
cerâmicas da cultura Yangshao (c. 5.000-4.000 a.C) . Nos sítios de Banpo e Jianghai
mais de 200 cacos cerâmicos com vários signos inscritos foram encontrados. Muitos
deles são numerais ou marcas dos fabricantes.
Fig. 5.10 Signos da cultura Dawenkou (c. Signos inscritos em jade da cultura
4.000-2.500 a.C.) Liangzhu (c.3.300-2.200 a.C.)

O início da escrita na China aconteceu entre 2.500-2.000 a.C., e tem sido


associado com a cultura Liangzhu no sudeste da China e com a cultura Longshan
(c.3.300-2.200 a.C.) na península Shandong. Nos jades de Liangzhu diversos signos
compostos foram encontrados, que podem serem signos religiosos ou nomes de clãs.

Evidências arqueológicas descobertas em Jiahu (província de Henan, China)


apontam para o uso de signos para representar numerais já no VII milênio a.C.,
predatando os signos sumérios. Foram descobertos inscritos em carapaças de tartaruga
(Cuora flavormarginata), datando de 6.600 a 6.200 a.C., escavadas em Jiahu, sítio
descoberto na década de 60 e explorado a partir de 1.980,.

Provavelmente foram empregadas em processos divinatórios, semelhantes aos


“ossos oraculares” associados ao sítio de Yinxu, da dinastia Shang, posteriores a 1.700
a.C., que apresentam um bem desenvolvido sistema de escrita com cerca de 5.000
caracteres.

As denominadas inscrições oraculares Shang, inscritas em carapaças de tartaruga


ou escápulas de animais, quase todas provém de um único lugar, Yinxu (Yanxu),uma
vila agrícola em Anyang. Anyang era a capital da Dinastia Shang Posterior, entre c.
XIV - XII sec. a.C..
Fig. 5.11 Inscrições de Yinxu em carapaça e Fig. 5.12 Carapaças de tartaruga empregadas
escápula em processos divinatórios: ossos oraculares

Mais de 100.000 fragmentos ou ossos foram recuperados, cobertos com uma


multidão de tópicos: sacrifícios, viagens, campanhas militares, saúde, tempo, etc.
Alguns eram registros, outros consultas divinatórias a deuses e ancestrais.

Uma carapaça de Jihau (M233:15) apresenta linhas horizontais, semelhantes aos


numerais um e dois das inscrições de Yinxu; outra (M387:4) está inscrita com o signo (
/ \ ), similar ao numeral para oito dessas inscrições; na mesma carapaça há um único
traço vertical parecido com o seu numeral para dez. Os signos são intencionais e
significantes, não são arranhões acidentais, ou marcas de dentes de animais.

Fig. 5.13 Numerais empregados em inscrições oraculares

Alguns pares de carapaças tinham orifícios próximos das extremidades, através


dos quais suas partes superiores e inferiores podiam ser unidas por uma corda fina,
formando uma espécie de caixa, que continha grupos de seixos, aparentemente
escolhidos pelo tamanho e cor. O número de seixos por caixa varia, nenhum padrão
óbvio foi detectado. Podem ter sido empregados em uma antiga prática de numerologia,
na previsão de números auspiciosos. Porém a similaridade com as bulas e os tokens
mesopotâmicos é intrigante. Enquanto que a preocupação com numerais no Sumeriano
arcaico parece ter se originado de questões materiais (contabilidade, p,ex.), os signos de
Jihau parecem ser conectados com rituais, talvez pertencendo ao modelo onde divinação
e shamanismo extraem seu poder da palavra escrita.

Fig. 5.14 Signos de Jiahu:”olho”; numeral oito; desconhecido; “janela”

Este signos parecem ser os mais antigos e arcaicos (proto-?) numerais já


encontrados.
CAPÍTULO VI

TÉCNICAS DE CONTAGEM DA MATEMÁTICA PALEOLÍTICA

A Técnica dos Entalhes

As pessoas sentem, mais do que sabem, que há muitos registros


diferentes de verdade. A verdade científica, a verdade das ciências
empíricas, a verdade das ciências humanas, a verdade da filosofia, a
verdade da fé, a verdade das várias religiões. Há muitos níveis de
verdade que as pessoas sabem articular. Hoje, mais do que nunca,
busca-se a verdade.

Michel Renaud

O Rádio de Lobo de Dolní Vĕstonice

Vários textos de História da Matemática, ao estudarem os primórdios dessa ciência,


mencionam o osso de um lobo, um rádio, para sermos mais específicos, descoberto por
Karl Absolon na década de 30 do século passado, em Dolní Vĕstonice, na antiga
Tchecoslováquia Central, atribuindo-lhe uma idade estimada em 30.000 anos. Esse
artefato é geralmente considerado um dos mais antigos testemunhos do emprego do
processo de contagem pelo homem paleolítico, bem como a melhor evidência
remanescente de que ele utilizava um sistema de numeração de base 5. Inúmeros
Nota 1
competentes estudiosos dessa disciplina o citam; na , ao final deste capítulo,
encontramos sua descrição dada por estes autores.

É possível afirmar que é sistematicamente considerado como um dos mais antigos


testemunhos de registro numérico por parte do homem e, como as suas incisões estão
reunidas em grupos de cinco, a mais antiga evidência disponível do emprego da base
cinco em um sistema de numeração. Pode-se, portanto, considerá-lo como memorável
mito da História da Matemática. Contudo, alertamos: sua história, como todo o mito,
contém parcelas de verdade e de inverdade. Alongar-nos-emos em sua história por
considerarmos que ela representa importante exemplo de como analisar a ciência em seu
contexto.

Iremos, na seqüência, recapitular as circunstâncias de sua descoberta e divulgação,


bem como efetuarmos uma apreciação sintética sobre o notável sítio paleolítico de
Dolní Vĕstonice.

O Sítio Paleolítico de Dolní Vĕstonice

Um dos mais conhecidos sítios pré-históricos da Europa Central é o de Dolní


Vĕstonice, situado na montanhosa parte sul da Morávia, região do leste da atual
República Tcheca. Essa região sempre foi de interesse histórico, principalmente por ter
sido o pólo do Grande Império Morávio, o primeiro estado eslavo, que ali floresceu nos
séculos IX e X da nossa era. Contudo, colonos alemães estabeleceram-se na região, e
em cidades como Brno e Olomuc, já a partir do século XII. Desde então debates étnicos,
entre alemães e eslavos (tchecos), pontilham sua história.

A primeira menção de descobertas pré-históricas na região remonta ao século


XVII, quando um médico da corte do imperador relata que nela foram descobertos
grandes ossos. No transcorrer dos séculos seguintes médicos, professores, naturalistas e
botânicos, referem-se a inúmeros achados de ossos imensamente grandes, mais tarde
identificados como de mamutes.

As descobertas iniciais na Morávia, datadas do paleolítico, provieram das


escavações na caverna situada em Byčí Skála, em 1867; posteriormente outras cavernas
foram identificadas: Kulna, Pekárna e, em 1880, a Caverna Šipka. Karel Maška, então o
mais proeminente pré-historiador morávio da época, descobriu, em 1894, o espetacular
sítio ao ar livre de Předmosti, que forneceu 20 esqueletos para estudo.

Os sítios de Dolní Vĕstonice e de Pavlov, ambos ao ar livre, estão localizados a


cerca de 300m de distância um do outro, perto da vila de Dolní Vĕstonice, na parte sul
da Morávia, tradicionalmente uma região alemã. Essa vila era conhecida por seu nome
alemão de Unterwisternitz, e sua população era de origem alemã. Situam-se a
aproximadamente 35 km de Brno, nos sopés da Colinas Pavlov, as quais se elevam a
uns 500 m acima da planície circundante, na confluência dos rios Dyje e Svratja.
A escavação do sítio de Dolní Vĕstonice, um grande campo de caçadores de
mamutes, começou no verão de 1924, dirigida pelo Dr. Karl (Karel) Absolon, então
professor da Universidade de Praga e curador de Museu Morávio, de Brno, o qual foi,
durante os quinze anos seguintes, seu diretor dos trabalhos, principal arrecadador de
fundos, gerente de marketing e escritor de todos os seus relatórios de pesquisa. Em
Dolní Vĕstonice a ocupação se concentrou em dois locais principais: o primeiro, Dolní
Vĕstonice I, continha cinco sítios ocupados diacronicamente e foi escavado
continuamente por Absolon e Bohuslav Klima de 1924 a 1979; o segundo, Dolní
Vĕstonice II, foi descoberto em 1951, e encontra-se a uma distância de 80 m do
primeiro. Em 1985 esse último local foi ameaçado pela exploração comercial de uma
pedreira, sendo necessária uma operação de salvamento, realizada durante 1987. O sítio
de Milovice, a cerca de 3 km ao sul de Dolní Vĕstonice, está sendo escavado pelo
Instituto Antropus, do Museu Morávio.

O sítio de Dolní Vĕstonice I, desde o início, mostrou-se imensamente rico,


produzindo um grande número de importantes artefatos. Logo a imprensa estrangeira
divulgava manchetes pirotécnicas sobre ele, tal como a do The Illustrated London News
de 31 de outubro de 1925: Uma descoberta tão maravilhosa como aquela da tumba de
Tutankhamon – Morávia, há mais de 20.000 anos atrás. Essa prestigiosa revista
realizou uma extensa série de reportagens sobre as escavações, as quais se constituíram
na principal fonte de informações sobre elas para o público de fala inglesa, bem como
para o leitor europeu ocidental em geral. Em 1.929 o mesmo magazine publicou uma
seqüência de três extensos artigos sob o título: Uma estonteante “Pompéia” Paleolítica
na Morávia (23/11/29; 30/11/29; 14/12/29), que colocaram definitivamente a Morávia
no mapa da Europa e do mundo.

Em 21/08/1.936 o rádio de lobo foi encontrado por Absolon em Dolní Vĕstonice


I; o Illustrated London News publicou sua foto (Fig. 6.2) em 02/10/1.937, cerca de um
ano após sua descoberta, a qual, por muitos anos, permaneceu sua única ilustração
conhecida. Ampla divulgação foi dada ao achado, por ser o mais antigo artefato
matemático até então conhecido. Até essa data nenhuma notação numérica paleolítica
tinha sido reconhecida como tal, embora outros artefatos portando entalhes já tivessem
sido descobertos. Coube a Absolon o mérito de reconhecer que esses entalhes
representavam uma notação numérica, pois até então essa classe de artefatos era
classificada sob a vaga denominação de “artefatos de estilo geométrico”, ou apenas
como arte.

No meio dos anos 30 a questão racial principiava a entrar em ebulição na


Europa. A “civilização européia” era considerada ter evoluído a partir do ponto onde as
culturas africanas e australianas “estagnaram” e, além disso, sérias tentativas foram
então feitas para provar que “os europeus” tinham uma origem completamente distinta
delas.

Quando uma pequena cabeça de marfim foi encontrada em Dolní Vĕstonice I,


em 1.937, foi imediatamente anunciada com a manchete: Um “Leonardo da Vinci” Pré-
histórico de 30.000 anos atrás: o mais antigo retrato de um ser humano – uma cabeça
de marfim, que o Illustrated London News publicou exatamente na mesma edição da
divulgação da foto do rádio de lobo: 02/10/37. Sir Artur Keith escreveu, na introdução
desse artigo, prenunciando as sombras do racismo que iriam se estender sobre a Europa:
“É de particular interesse para nós Europeus – pois é o retrato de um dos pioneiros
brancos ou Caucasianos que começaram a colonizar a Europa nas últimas fases da Idade
do Gelo. Não é meramente a história da Morávia que está se abrindo, mas a história de
nossos antepassados – ou antepassadas – logo após sua primeira chegada na Europa
Central”. Uma peculiar combinação de uma narrativa histórica pan-européia e de um
discurso pseudo-científico emergiu na Europa na época, tentando justificar uma história
acerca da pureza racial européia, especialmente a dos brancos caucasianos.

Hitler ordenou a ocupação da Tchecoeslováquia, o que ocorreu em 14-


15/03/1.939, e instaurou o protetorado da Boêmia-Morávia. Karel Absolon deixou então
de ser o diretor das escavações em Dolní Vĕstonice I. Novas questões raciais afloraram,
todas “cientificamente” exploradas com “os últimos métodos científicos”, porém, a
população eslava (tcheca) não mais estava incluída na amostra da raça caucasiana,
apenas os de etnia alemã.

Himmler criou então o Centro de Pesquisa da História da Herança Ancestral que,


sob a orientação do Dr. Assien Bohmers, assumiu o controle de Dolní Vĕstonice,
tomando posse das escavações e de todo o material descoberto nos anos anteriores, pois
ele foi considerado demasiado importante para os propósitos do Terceiro Reich para ser
partilhado até mesmo por outros arqueólogos alemães. Bohmers passou a afirmar que as
pessoas que habitaram o sítio foram os Cro-Magnon, ou raça de Brno, os quais surgiram
após a “aniquilação” dos Neandertais nos continentes da Europa, Ásia e África, o que
foi considerada a “maior conquista” de todos os tempos. Essas pessoas eram de um
“tipo europeu”, o qual mais tarde originou os “indo-europeus” ou “indo-germânicos”.

a b c

Fig. 6.1 Artefatos de Dolní Vĕstonice: a) cabeça feminina de marfim de mamute. H= 5 cm ; b)


cabeça masculina de marfim, recentemente dada à luz; c) Venus de Dolní Vĕstonice. H= 11,5 cm.

A cabeça de marfim (Fig. 6.1 a) refletiria as características faciais da população


de Unterwinternitz / Dolní Vĕstonice e era “um bom exemplo” de um grupo racial
inteiramente indo-europeu, ao invés de ser representativa de grupos negróides ou
mongolóides. Como bem observa TOMÁŠKOVÁ (1.995) acerca do pensamento
vigente, os ancestrais da então população dessa vila eram “indo-germânicos” puros,
pois, afinal, essa não era a vila alemã de Unterwinternitz ?

Com o fim da segunda guerra mundial, a vila perdeu sua conotação alemã, toda
a sua população foi expelida, e forçada a se mudar para a Áustria e a Alemanha.
Unterwinternitz se tornou a tcheca Dolní Vĕstonice, e o controle dos sítios
arqueológicos novamente voltou às mãos tchecas. Em 1.948 a Tchecoslováquia
sucumbiu integralmente ao domínio da União Soviética; tudo escrito ou descoberto em
Dolní Vĕstonice, no período pós-guerra de 1.945 a 1.950, permaneceu impublicado ou
desapareceu. Parte reapareceu após 1.950, porém substancialmente alterada, para
atender às exigências ideológicas do novo regime, onde a arqueologia teve de se adaptar
à necessidade de uma rígida interpretação marxista. Materialismo e meios de produção
foram combinados, resultando daí o foco que a arqueologia tchecoeslovaca manteve até
praticamente a queda do muro de Berlim e o conseqüente esfacelamento da União
Soviética (1.989): o estudo tipológico das ferramentas de pedra.
Os anos de 1.949-1.956 foram particularmente severos, pontilhados por
julgamentos simulados, farsas montadas para atender os interesses do estado, campos de
trabalho e prisão de inocentes sob a acusação de serem “inimigos da república”. Karel
Absolon foi destituído de sua posição de pesquisa, e forçado à uma insignificância
profissional até sua morte, em 1.960, ocasião em que foi negada a seu filho, então
morando nos Estados Unidos, a oportunidade de comparecer ao funeral de seu pai.
Absolon foi o primeiro a afirmar que alguns sinais gráficos paleolíticos, no caso
entalhes, eram verdadeiras notações numéricas, pois até então eram classificados ou
como arte ou vagamente sob a denominação de “estilo geométrico”. Registre-se que
Absolon aparentemente sempre procedeu com lisura e dignidade em seus trabalhos
científicos, evitando abordar conotações racistas ou étnicas; o seu patriotismo de um
lado, e o seu regionalismo de outro, permearam todos seus escritos. Seu principal
objetivo parece ter sido colocar o sítio Morávio no mapa, bem como provar a
coexistência de mamutes e humanos.

As divulgações simultâneas (1.937) das descobertas do rádio de lobo e da cabeça


de marfim contribuíram para que se estabelecesse uma concepção generalizada, porém
algo difusa e subliminar, de que tanto a Matemática (o rádio) como a Arte (a cabeça)
tiveram suas origens na Europa, a qual era, por conseguinte, o ponto inicial de toda a
cultura e civilização da humanidade. Como ambas procediam do mesmo sítio, Dolní
Vĕstonice, seus artesãos “provavelmente eram” os Cro-Magnons, antepassados dos
indo-europeus e conseqüentemente dos indo-germânicos. Isso produziu um argumento
palatável, se bem que mendaz, logo aproveitado pela oportunista ideologia racista
nazista. O primeiro artefato matemático produzido pela raça humana era, portanto,
“importante evidência” de que a Matemática tinha se originado na Europa, e obra da
“superior raça indo-germânica”.

Aparentemente, esse efeito colateral da divulgação de sua descoberta não foi


intencional, porém colaborou para arraigar a concepção de que a Matemática teve sua
origem na Europa. Isso contribuiu para o surgimento nas décadas posteriores de uma
história da matemática fortemente eurocêntrica. Essa faceta desse importante mito da
História da Matemática é pouco conhecida.

Somente recentemente essa historiografia eurocêntrica da matemática passou a


ser contestada, com o surgimento do Programa Etnomatemática, arquitetado por
Ubiratan D’Ambrosio. A Etnomatemática propõe que a Matemática é um produto
cultural; todo povo, cultura ou sub-cultura, desenvolve sua própria matemática peculiar.
Matemática é, portanto, uma atividade universal, pan-humana.

A cabeça de marfim de Dolní Vĕstonice (Fig.6.1a) era a única representação


humana da arte paleolítica até então conhecida que mostrava as características faciais.
As demais figuras humanas pré-históricas como, por exemplo, a Venus de Dolní
Vĕstonice (Fig.6.1c), apenas sugerem os contornos da cabeça, não evidenciando os
traços da face. Em 1.988 uma família tcheca, atualmente morando na Austrália,
apresentou ao Dr. Alexander Marshack a cabeça em marfim de mamute mostrada na
Fig. 6.1b, para que o mesmo a autenticasse. Ela tinha sido descoberta em torno de 1.890
em um campo perto da vila de Dolní Vĕstonice. Submetida a testes preliminares,
empregando difração de raios X e análise espectral de partículas alfa, apresentou uma
idade de cerca de 26.000 anos, similar à dos achados daquela localidade.
Surpreendentemente, mostra características faciais bem diferentes da primeira cabeça,
apresentando traços característicos de neandertais, como a possante ossatura acima das
órbitas oculares e a forte musculação, ou negróide-mongolóide. Caso essa cabeça
tivesse sido encontrada por uma equipe de cientistas na década de trinta talvez o curso
da história fosse outro, pois não apresenta as então propaladas “características do povo
indo-germânico”.

O sítio de Dolní Vĕstonice recentemente novamente voltou a ocupar as


manchetes científicas, agora vinculado às origens das tecnologias cerâmica e têxtil. As
figuras em cerâmica queimada desse sítio, como a Venus da Fig. 6.1c, têm uma idade de
cerca de 26.000 anos, o que significa que são 14.000 anos mais velhas que os mais
antigos vasos de cerâmica já descobertos. A fabricação de vasos utilitários de cerâmica
tem 12.500 anos de idade no Japão, 8.400 no sudoeste da Ásia e 12.000 anos no norte
da China. Embora considerando que seis exemplares de terra ou argila modelados a mão
e possivelmente endurecidos pelo fogo sejam conhecidos de sítios do paleolítico
superior, provenientes de Mas D’Azil e La Bouiche, nos Pirineus, França; em
Kostienski, na antiga U.R.S.S.; em Maina, na bacia do Yenisei, na Sibéria; em Zazaragi,
no Japão; contudo, nos sítios Morávios de Dolní Vĕstonice, Pavlov, Předmosti e
Petrkovice na Tchecoslováquia foram encontrados mais de 10.000 fragmentos de
cerâmica, de longe o maior inventário dessa tecnologia já descoberto.

Em Dolní Vĕstonice foram descobertos os restos de dois fornos empregados para


queimar cerâmica, os mais antigos já encontrados. A cerâmica desse sítio é
particularmente durável, o que levanta a possibilidade de que essa tecnologia fosse mais
difundida do que demonstra o registro arqueológico, pois peças de outras áreas podem
não ter se preservado devido a problemas de durabilidade em objetos queimados a
baixas temperaturas, com uma composição vítrea instável.
Recentemente foi documentada a existência de tecnologias têxteis diversas e
sofisticadas no paleolítico, que incluem produção de cordas e redes, entrançamento de
cestos, fiação e fabricação de tecidos mediante teares. A evidência arqueológica provem
de 36 impressões de têxteis encontradas em fragmentos de argila, queimados ou não,
provenientes de Dolní Vĕstonice e Pavlov, produtos da cultura Pavloviana, com cerca
de 29.000-24.000 anos de idade. A fabricação de cordas tinha sido já reportada em sítios
mais jovens como Lascaux, França; Kosoutsy, Moldava; Mezhirich, Ucrânia.

O Rádio de Lobo Revisitado

Fig.6.2 Ilustração do The Fig.6.3 Ilustração do artigo de


Illustrated London News Absolon publicado em 1.958 no
Artibus Asiae.
publicada em 2/10/1.937.

Em uma determinada ocasião, quando o autor dessas linhas estava preparando uma
palestra sobre a Matemática na Pré-História, na qual empregaria recursos multimídia,
necessitou de uma cópia digital da foto publicada pelo London News (Fig. 6.2).
Brincando com o zoom do computador, notou que as incisões nele gravadas
aparentemente não estavam agrupadas em conjuntos de cinco, como os livros texto de
História da Matemática unanimente afirmavam, mas sim em duas séries contínuas: a
primeira, de baixo para cima, com suas incisões numeradas na foto de 1 a 25,
terminando por uma incisão maior; e a segunda, com suas incisões rotuladas de 1 a 30,
sendo a primeira incisão dessa série a de maior largura. Portanto, duas incisões mais
largas separam as duas séries. Isso parecia colidir com a evidência aludida de um
emprego de base 5.
O homem paleolítico empregou uma série de arranjos de incisões, cortes ou traços,
aparentemente para registrar correspondências um-a-um entre eles e os elementos de um
dado conjunto de objetos. A Fig. 6.4 mostra um apanhado desses arranjos.

Fig. 6.4 Arranjos de incisões empregados Fig.6.5 Tipos de arranjos possíveis de


pelo homem paleolítico grupos de 5 incisões.

Se o homem paleolítico realmente empregasse a base 5, seria de se esperar


observar na seqüência de incisões que utilizaria para registrar seus resultados de
contagem um determinado ritmo, ou periodicidade, caracterizado por algum tipo de
agrupamento das incisões em conjuntos de 5, talvez como algum dos indicados na Fig.
6.5. Porém, aparentemente, as incisões no rádio prosseguiam regularmente, sem indícios
de agrupamentos por 5.
Como essa foto é antiga (1.937), talvez uma foto mais recente do artefato, com
uma melhor definição, ajudasse a esclarecer a questão. Com o intuito de obtê-la,
iniciamos nossa busca.
Entramos em contacto inicialmente com Dr. Jiri Svoboda, que nos informou que
esse artefato, parte da coleção pré-guerra de Karel Absolon, hoje se encontra depositado
no Museu Morávio, em Brno. Como mencionamos nossa curiosidade acerca da
existência ou não de grupos de cinco incisões no osso, ele, para nossa surpresa, também
indicou não perceber qualquer ritmo padrão nelas. Através de sua cortês indicação,
contactamos o Dr. Martin Oliva, do Instituto Anthropos do Museu Morávio. O Dr.
Oliva nos informou que o rádio lá se encontra, contudo, sofreu importantes danos pelo
fogo no término da segunda guerra. O Museu conserva seu molde original, porém,
devido ao seu estado, inexistem fotos suas recentes. Dentro do seu conhecimento, a
melhor foto nítida disponível desse artefato figura em um dos últimos artigos
publicados por Absolon, dado à luz em 1958, onde expõe suas idéias acerca da
concepção que os homens paleolíticos da Morávia faziam sobre números. Muito
gentilmente, colocou à nossa disposição uma separata original desse artigo, para que
pudessemos pessoalmente examinar a foto. É a foto aqui incluída como Fig. 6.3.
Nela as incisões estão numeradas de cima para baixo: a seqüência superior inicia
com o número 1 no alto e termina com o 30, na primeira incisão mais larga; a segunda
série começa na outra incisão mais larga, denotada com 1, até a mais baixa, rotulada
com 25. Essa foto, porém, somente confirmou o que já suspeitávamos, observando a
foto de 1.937: as incisões realmente não estão agrupadas cinco a cinco, formam
somente duas seqüências regulares e contínuas, separadas por incisões mais largas.
Apenas a sua numeração, por motivo de economia de espaço nas fotos, procede de 5 em
5: 1, 5, 10,..., 25; 1, 5, 10,..., 30. A existência de grupos de cinco incisões nesse artefato
é, portanto, uma ficção, parte do mito que o envolve.
Cabe notar que o artigo de Absolon também não menciona a existência de grupos
de cinco incisões no osso. O argumento que Absolon empregou, desde a descoberta
desse rádio em 1.937 até seu artigo sobre o assunto em 1.958, para defender o emprego
da base 5 pelos homens paleolíticos, é que, em alguns ossos e outros artefatos pré-
históricos, são encontrados conjuntos de incisões que somam múltiplos de cinco; como
no rádio em questão, onde 25 = 5x5 e 30 = 5x6.
No seu artigo (ABSOLON, 1958) aponta alguns outros exemplos de artefatos
onde figuram incisões que totalizam números múltiplos de cinco. MARSHACK,
contudo, já alertava, com razão, que esse tipo de argumento não fornece uma prova
conclusiva do emprego de sistemas de numeração de base 5 pelos homens pré-
históricos, pois existem igualmente muitos outros testemunhos paleolíticos que também
portam conjuntos de incisões, os quais, todavia, totalizam números que não são
múltiplos de cinco. Em seu livro Roots of Civilization, publicado em 1972, encontramos
uma significativa gama de exemplos de conjuntos de incisões paleolíticas cujas somas
não totalizam números múltiplos de 5.
É pertinente indagarmos de que modo se originou essa concepção errônea de que
“a existência de grupos de cinco” incisões nesse artefato constitui uma “evidência
conclusiva” do emprego da base 5 pelos homens pré-históricos. Aparentemente, a
conjugação de duas premissas contribuiu para isso: 1) a afirmativa de Absolon que os
homens paleolíticos empregavam a base 5; 2) a foto do Illustrated London News de
1.937, onde as incisões estão numeradas de 5 em 5: 1, 5, 10,..., 25; 1, 5 , 10, ..., 30. De
alguma forma essas premissas foram embaralhadas, e alguém, que ainda não pudermos
identificar, na linha de transmissão ao longo do tempo desses bits de informação,
chegou à “conclusão” de que o rádio de lobo é uma “prova” do emprego da base 5 pelo
homem paleolítico, pois suas incisões, como se podia “constatar” na foto de 1.937,
figuram em “grupos de cinco”.
É impossível para os autores de textos de História da Matemática, ou de qualquer
ciência, consultarem todas as fontes primárias de seu ramo de conhecimento, ou
conferirem pessoalmente a exatidão de todos seus dados primários. Neste ponto o autor
deseja efetuar um mea culpa, pois também incluiu em seus escritos, acompanhando o
conhecimento vigente, menção a existência de agrupamentos de 5 incisões no artefato, e
em este se constituir em prova do emprego da base 5. A lição a ser aprendida com este
episódio é que o uso de fontes secundárias sempre deve ser feito cum grano salis, com
uma pitada de cautela.
Recentemente OLIVA (2000) procedeu à uma reavaliação das datações dos sítios
Morávios, sendo que as datas radiocarbônicas obtidas para Dolní Vĕstonice I
apresentam uma média de idade de 25-26.000 anos, o que confirma a antiguidade do
artefato.
O homem pré-histórico no registro através de entalhes de um processo de
contagem provavelmente não faria todas as incisões ao mesmo tempo, como bem o nota
MARSHACK (1972). Existe, portanto, a possibilidade que o autor desse registro
empregasse mais de uma ponta para efetuar as incisões. Se os entalhes do rádio de lobo
foram executados por meio de mais de uma ponta lítica diferente, isso seria uma prova
adicional da intencionalidade de um registro numérico por parte de seu gravador.
Consultamos o Dr. Oliva sobre a possibilidade da realização de um exame microscópico
desse osso, o que ajudaria a esclarecer se todas as incisões foram executadas pela
mesma ponta. O estado atual do osso, danificado pelo fogo, respondeu, parece não
permitir um exame rigoroso, conclusivo, no tocante à essa questão.
Embora esse rádio não constitua prova conclusiva do emprego da base 5 pelos
homens paleolíticos ainda permanece, na nossa opinião, um dos mais antigos registros
do emprego do processo de contagem pela humanidade. Além disso, sua epopéia o torna
memorável mito na História da Matemática.

Talhas Numéricas e o Antigo Testamento

Talhas numéricas
Logo que o homem começou a contar surgiu a necessidade de se anotar os números
resultantes deste processo. Se utilizasse, por exemplo, dos dedos da mão para contar um
conjunto de peles, ao término da contagem não restaria um registro material do
resultado obtido.

As mais antigas evidências arqueológicas do registro de números na Europa, obtidos


por meio de processos de contagem, são ossos marcados com incisões, que datam do
período Aurignaciano do Paleolítico Superior, como o rádio de lobo, cuja história
acabamos de registrar. Diversos ossos, com incisões regularmente espaçadas, foram
encontrados principalmente na Europa Ocidental.

Provavelmente faziam também incisões em pedaços de madeira para anotar


números, porém como ela é um material mais degradável que o osso, que se conserva
melhor, não sobreviveram testemunhos arqueológicos deles. Os homens estavam assim
inventando os rudimentos da contabilidade escrita, traçando algarismos nos ossos (ou
madeira), no sistema numérico mais rudimentar que existiu.

Essa técnica primitiva, de entalhar em bastões de madeira uma marca para cada
unidade computada, chegou até nossos dias. Exemplos dela encontramos no ás da
aviação, que para cada inimigo abatido faz pintar uma marca em sua aeronave; também
no assassino profissional que, para cada vítima, acrescenta uma incisão na coronha da
sua arma; ou, mesmo hoje, quando desejamos contar um dado conjunto de coisas,
riscamos um traço para cada seu elemento. A técnica do entalhe é, portanto, muito
antiga, de uso amplamente difundido.

Há até poucas gerações, os pastores alpinos e húngaros, assim como os celtas,


toscanos e dálmatas, tinham por hábito anotar o número de cabeças de seus rebanhos
gravando igual número de traços em pequenos bastões ou tabuletas de madeira.

O uso de talhas em contabilidade, como registro de obrigações, pode ser traçado


até o tempo das antigas tribos germânicas (cf. MENNINGER, p.228).

Inicialmente as talhas eram empregadas para acompanhar o registro dos números


parciais e sucessivos envolvidos em uma transação. Todavia, seu uso logo evoluiu,
outras funções foram adicionadas, a talha tornou-se uma forma de memória e
documento de autenticação, pois podia manter não apenas os estágios intermediários de
uma transação, mas também seu resultado final, além de servir como documento legal
da mesma. Neste novo papel, como registro definitivo da transação, adquiriu conotação
jurídica e também econômica, muito além da mera função aritmética do seu primeiro
emprego.

As marcas de propriedade foram os dispositivos adicionais que permitiram às


talhas assumirem o papel de ferramentas econômicas e legais. Simbolizavam o nome de
seu proprietário, representando-o legalmente em qualquer situação, como uma
assinatura. Tinham, assim, o mesmo caráter dos selos pessoais mesopotâmicos. O uso
impróprio de uma marca de propriedade era severamente punido pela lei.

Encontramos exemplos de restrições legais ao mal uso de talhas de marcas de


propriedade até praticamente a atualidade. Na França, o emprego das talhas era regular
até o século XIX, sendo que o Código de Napoleão, base do moderno sistema legal
francês, no seu artigo 1.333, que trata da certificação do envio de bens para um freguês,
menciona-as explicitamente como meio de garantia juridicamente aceito de que as
entregas tinham sido realizadas. Desde o século dezessete encontramos na legislação
francesa penalidades previstas para a falsificação e uso impróprio das marcas de
propriedade.

Estas marcas, verdadeiros sinais para nomes, constituíam a assinatura tradicional


dos analfabetos, assim como a prática dos entalhes numéricos era a contabilidade dos
iletrados. Eram símbolos convencionais, não apenas criadores de direitos mas também
geradores de obrigações.

Diversas “assinaturas” de imperadores poderosos, mas muitas vezes analfabetos,


não passavam de meros sinais para seus nomes, equivalentes funcionalmente às marcas
de propriedade ou a impressão dos selos pessoais mesopotâmicos. A Figura 6.6
exemplifica algumas, de influentes soberanos da Idade Média.

Fig.6.6 a) b) c) d)
Nela encontramos: em a) o nome-símbolo do Imperador Justiniano, em b) o de
Oto, o Grande. Em c) a assinatura de Pepino, o Breve, sendo que a cruz era desenhada
pelo escriba, o Imperador adicionava então somente os pontos e, finalmente, em d) a do
todo poderoso Imperador Carlos Magno que, como era iletrado, só desenhava o losango
do centro, o resto era completado pelo escriba.

O Tesouro Real Britânico, desde


o século XII, manteve o registro de
pagamento de taxas e impostos por seus
cidadãos em livros e talhas, o que
ocorreu até 1820. Em muitas partes da
Suíça e da Áustria, até recentemente as
talhas constituíam uma instituição social
e legal genuína. MENNINGER (1992),
menciona os bastões de madeira
Fig. 6.7 - Talhas duplas do Tesouro Real Britânico empregados pelos chineses da dinastia
Séc. XIII - Westminster
HAN (200 A.C.- 200 D.C.), encontrados
em uma torre da Grande Muralha da China, que registram eventos da vida ordinária e
comercial, lembrando que têm todas as características funcionais das talhas, exceto que
têm os caracteres pintados com pincel ao invés de gravados com uma faca. A palavra
para contrato, em chinês, é representada por um ideograma composto de três caracteres
(Fig.6.8): o primeiro, no alto, à esquerda, representa uma talha com entalhes; o segundo,
também no alto, à direita, representa uma faca; o terceiro, embaixo, significa “grande”.
Um contrato ou acordo, em chinês, significa literalmente, portanto, “uma talha com
entalhes grande”.

Podemos identificar três tipos principais dessas


talhas: a simples, formada por um único bastão ou vara de
madeira, onde se entalham registros numéricos. A dupla,
que era feita de um pedaço de madeira fendido no sentido de

Fig. 6.8 – ideograma seu eixo longitudinal até quase a sua extremidade. A parte
chinês maior era a “matriz”(stock), e a menor o “encaixe”(inset).
significando contrato.
Muito mais raras eram as triplas, formadas por três partes.
A talha dupla era um excelente
Encaixe (inset) Matriz (stock)
instrumento de registro, que podia ser
empregado em vários tipos de transações.
Por exemplo, quando um pagamento era
Registros numéricos Marcas de feito ou recebido, o devedor coloca o seu

propriedade
“encaixe” na “matriz”, que o credor
Fig. 6.9 - Talha dupla
geralmente mantinha consigo, sendo que o
ajuste devia ser perfeito, e marcas são cortadas, de diferentes profundidades, larguras e
intervalos entre elas, por meio de facas ou serras, ou removidas, de ambas as peças ao
mesmo tempo. Cada parte envolvida na transação retinha a metade da talha com a
marca de propriedade da outra parte interessada. Esse sistema maravilhosamente
simples de dupla entrada torna a trapaça praticamente impossível.

Da utilização de talhas duplas no cotidiano surgiram termos ainda hoje


empregados em atividades econômico-financeiras. O termo dividendo provavelmente
origina-se com a denominação da talha dupla inglesa, pois no século XIII ela era
chamada de tallia dividenda, ou simplesmente dividenda, bastão a ser dividido. O nosso
cheque, como certificado (ou ordem) escrito de pagamento, remonta ao costume do
tesoureiro real inglês de emitir matrizes de talhas duplas com um determinado valor
inscrito, por exemplo, com marcas de £20. O encaixe ficava de posse do tesouro. O
cidadão habilitado ao crédito ia ao tesouro com a matriz, e se o encaixe ali guardado se
ajustasse perfeitamente à matriz, recebia o valor devido. Esse ato de comparação era
denominado to check, o que, ainda hoje, em inglês, significa comparar um documento
original, ou peça escrita, com uma cópia, para ver se a cópia é correta.

Muito já se debateu sobre a origem dos numerais romanos. Presentemente,


autores como MENNIGER (1992) e IFRAH (2000) afirmam categoricamente que os
símbolos I, V e X, de longe os mais antigos da série desses numerais, são verdadeiros
fósseis pré-históricos, descendendo diretamente da gravação de marcas em talhas para a
contagem. MENNIGER argumenta também que a possível origem do V (5) seria a
divisão do X ao meio, originando os símbolos V (5 em algarismos romanos) e Λ . Este
último figura em moedas etruscas do século V A.C., com o valor numérico 5.

MENNINGER ressalta a correlação


entre cortar e computar existente entre as

Fig. 6.10 Possível origem dos algarismos


romanos I, V e X (cf. IFRAH, 2000).
palavras latinas putare, imputare, deputare e computare. Putare significa literalmente
cortar (fazer incisões, marcar – cf. amputare, amputar). Imputare é cortar em, indentar,
assim fazer uma incisão, uma marca, tem o significado figurativo de “assinalar um
débito a alguém” (cf.imputar). Já deputare tem o significado oposto de indentar, como
se uma marca fosse rasurada, apagada da talha após o débito ter sido pago. Computare
claramente tornou-se computar, calcular, como mostra o termo computus, empregado
na Idade Média como registro, cálculo de tempo. Em latim, rationem putare tem o
significado de contar.

As cartae partitae ou cartae dentatae (cartas, papéis divididos ou dentados), em


uso na Idade Média (MENNINGER, p. 232), eram contratos redigidos por inteiro duas
(ou mais) vezes em uma folha de papel ou pergaminho; na primeira vez o texto era
redigido por completo na parte de cima da folha e então copiado literalmente na parte de
baixo. Entre as partes superior e inferior eram desenhadas letras. O documento era então
cortado segundo uma linha sinuosa, ou em zigue-zague, entre as duas partes, sendo cada
parte remanescente entregue a um dos contratantes. O contrato somente era válido se as
partes se ajustassem perfeitamente.

Portanto, o uso de talhas, simples ou duplas, constituía prática comum


empregada por expressivo número de culturas ao longo da história da humanidade,
disseminadas globalmente. Sua função documental e legal, sua capacidade de registro,
sua praticidade e versatilidade, tornaram-nas instrumentos importantes das atividades
econômico-legais-financeiras cotidianas de um sem número de civilizações. Lembremos
que outros suportes materiais, como pergaminho e papiro, também podiam
desempenhar o mesmo papel da madeira das talhas duplas, como mostra o exemplo das
cartae partitae ou dentatae, funcionalmente equivalentes a estas.

Uma interessante aplicação das talhas, desvinculada de sua utilidade para


registros numéricos, é a contida no poema medieval Chevrefoil, do século XII da nossa
era, de autoria de Marie de France’s. A linha 61 deste poema de 118 linhas, Ceo fu la
summe de l’escrit, é provavelmente a mais conhecida linha da obra inteira de Marie de
France’s. Ela tem sido objeto de numerosos comentários, nenhum inteiramente
satisfatório.

Este poema tem por objeto a lenda de Tristão e Isolda (Iseut). Retornando do
exílio, Tristão esconde-se na floresta perto de Tintagel, onde sabe que a rainha Isolda
deverá passar. Para atrair sua atenção, corta um ramo de aveleira, apara-o, e divide-o ao
meio; escreve seu nome em uma das partes, que coloca estrategicamente para que a
rainha a veja quando passar. Como esse expediente já funcionou anteriormente, procura
utilizá-lo como meio de comunicação.

Em 1995, BUBSY deu uma nova interpretação desse episódio. Como a dupla
Tristão e Isolda, a talha consiste de duas partes que se pertencem, se completam; sua
evocação gera uma extraordinária imagem poética no poema. Como as duas peças da
talha estão legalmente unidas uma à outra, assim Tristão e Isolda estão ligados em uma
aliança, ou contrato, amoroso. Juntos formam a summa, soma, da transação, talvez
mesmo a summe de l’escrit, um casal que até hoje preenche a imaginação dos
enamorados.

Ë notável o emprego de talhas como sinal de uma aliança, um contrato,


simbolizado pela união perfeita entre suas partes.

O Antigo Testamento - O Livro de Tobias

Os livros da Escrituras são denominados canônicos, isto é, pertencem a um cânon,


ou registro, catálogo, e constituem um conjunto de textos inspirados por Deus, que
determinam a regra da fé cristã, e tal é o sentido de kanon: cana para medir, régua, logo
regra. Entre os livros considerados inspirados existe um grupo de sete livros do Antigo
Testamento, e outros sete do Novo, que são denominados de deuterocanônicos, do
grego deuteros, segundo, como se pertencessem a um segundo cânon, posterior ao
primeiro.

O primeiro, o cânon hebraico, posterior à era cristã, é fruto de uma série de disputas
que se prolongaram pelo menos até o século II D.C. Os doutores hebraicos para
estabelecer esse cânon se basearam em dois critérios, ao que parece: se o livro fora
escrito na Terra Santa (Palestina) e na língua sagrada (hebraico).

O segundo cânon, o alexandrino, elaborado pelos judeus alexandrinos no século I


D.C., reconhecia como sagrados também os livros deuterocanônicos, que não
compunham o cânon hebraico. A Igreja Católica considerou válido o cânon alexandrino,
no tocante aos livros do Antigo Testamento, outrora usado por Jesus e pelos Apóstolos,
seguindo fielmente a Tradição. Isso foi estabelecido nos Concílios de Hipona (393
D.C.), de Cartago (397 D.C.) e de Constantinopla (692 D.C.). Os Concílios Tridentino
(1546 D.C.) e Vaticano I (1870) consagraram definitivamente o cânon das Sagradas
Escrituras.

Os livros deuterocanônicos do Antigo Testamento são: Tobias, Judite, Sabedoria,


Eclesiástico, Macabeus, Baruc e carta de Jeremias. Os protestantes denominam esses
livros de apócrifos.

O livro de Tobias se baseia em um original semítico que se perdeu. São Jerônimo


empregou um texto “caldaico” (aramaico) para a Vulgata, que igualmente se perdeu;
porém, nas grutas de Qumrã foram descobertos restos de quatro manuscritos aramaicos
e de um manuscrito hebraico de Tobias. As versões grega, siríaca, e latina apresentam
quatro recensões13 do texto de Tobias acessíveis, representadas principalmente pelos
manuscritos Vaticano (B), Alexandrino (A), códice Sinaítico (S) e da Vetus Latina. Esta
última, apoiada pelos fragmentos de Qumrã, parece ser a mais antiga, e foi a empregada
como base para a tradução constante da Bíblia de Jerusalém (BJ), que iremos utilizar
como fonte para as citações das Escrituras incorporadas no presente trabalho.

O livro de Tobias narra uma história de família, tratando de dois grandes temas: o
justo submetido à provação e a prece atendida. Tobit, que residia em Nínive, na Assíria,
era um exilado da tribo de Nefertali. De caráter piedoso, caridoso, observante das leis
hebraicas, fica cego prematuramente. Seu parente, Ragüel, que mora em Ecbátana, tem
uma filha, Sara. Sara viu morrer sucessivamente sete noivos, mortos pelo demônio
Asmodeus nas suas respectivas noites de núpcias. Tanto Tobit quanto Sara pedem em
prece a Deus que os livre dessa vida. Deus então envia seu anjo Rafael para conduzir
Tobias, filho de Tobit, à casa de Ragüel, onde casa com Sara e recebe o remédio que irá
curar seu pai da cegueira.

O livro de Tobias parece ter sido composto no século III a.C., talvez por volta de
200 a.C., provavelmente em aramaico ou hebraico. Apresenta pontos de contacto com
uma obra apócrifa, denominada de Sabedoria de Aicar, cujo tema remonta pelo menos o
século V a.C. Pode ser considerado como um escrito didático de fundo histórico.
Inspira-se em modelos bíblicos, sobretudo nos relatos patriarcais do Gênesis, e
literariamente é enquadrado entre Jó e Ester, e entre Zacarias e Daniel. Enquadra a
13
Recensão: cotejamento do texto de uma edição com o original manuscrito.
narração nos séculos VIII-VI a.C., mas descreve-a empregando algumas vezes idéias,
costumes e práticas posteriores, dos séculos IV-III a.C.

O autor não prima pela precisão dos dados, tanto históricos como geográficos ou
topográficos. Por exemplo, em Tb 1,4 o velho Tobit presenciou em sua juventude a
divisão do reino de Israel após a morte de Salomão, o que ocorreu em 931 a.C. Foi
deportado, com a tribo de Neftali e seu filho Tobias, para Nínive, capital da Assíria, o
que ocorreu em 734 A.C. (Tb 1,5-10). Seu filho Tobias só veio a morrer após a ruína de
Nínive, sucedida em 612 a.C. (Tb 14,15). Existiria um intervalo de aproximadamente
trezentos anos entre a juventude do pai e o falecimento do filho, se o relato fosse
inteiramente fiável; porém é provável que o autor apenas quisesse realçar que as vidas
de Tobit e de seu filho foram extremamente longas, sendo essa a forma encontrada para
tal.

O livro menciona Senaquerib (704-681 a.C.) como sucessor imediato de Salmanasar


V (726-722 a.C.-Tb 1,15), omitindo assim todo o reinado de Sargão II (721-705 a.C.).

Em Tb 5,6 afirma que entre Rages (atual Rai, perto de Teerã) e Ecbátana (hoje
Hamadã) não haveria mais de dois dias de viagem, embora as duas cidades estejam a
uma distância de trezentos quilômetros uma da outra. Inverte a altitude relativa das duas
cidades, ao afirmar que Rages (que se encontra a 1132 m acima do mar) está acima de
Ecabátana (que se encontra a 2010 m de altura).

O episódio do depósito

Em Tb 4, 20 o velho Tobit conta ao seu filho, Tobias, acerca do depósito que fizera
para uma eventualidade: “Também quero dizer-te, meu filho, que deixei em depósito
com Gabael, filho de Gabri, em Rages, na Média, dez talentos de prata. Não te
preocupes, meu filho, se ficarmos pobres”.

Um talento (kikkar), medida de peso do Antigo Testamento, era equivalente a 34,


272 kg, e subdividia-se em 60 minas (1 mina = 571 g), sendo que 1 mina (mané) era
composta de 50 siclos (shequel, shequéis), de 11,4 g (BJ, p.2.353). Esse depósito
correspondia, portanto, a aproximadamente 340 kg de prata, quantia expressiva para a
época. Para se aquilatar seu poder aquisitivo, mencionaremos que no tempo de
Nabucodonosor (605-562 a.C.) um escravo custava em média 40 siclos, e um boi 20
siclos (CONTENEAU, p.97-98).

Provavelmente esse depósito constituía-se de prata sólida, não de moedas. Segundo


o costume da época, normalmente eram pequenas placas ou lingotes, gravados com
marcas que garantiam seu peso.

Inicialmente, todas as trocas baseavam-se em quantidades equivalentes de grão,


especialmente de cevada. Pouco a pouco a prata substituiu o grão, mas em peso, não em
moedas. Alguns nomes dessas medidas de peso se tornaram nomes de moedas, como o
talento. Se atribui à Lídia a invenção da moeda, talvez no século VII a.C., ou algo antes.
Senaquerib fundiu moedas de bronze de pequeno valor, de meio-siclos (COTENEAU,
p. 96); porém as primeiras moedas bem conhecidas na Ásia Ocidental foram os dáricos
persas, portadoras do nome do rei persa Dario (521-486 a.C.).

O tema prossegue no versículo 5:


1
Então Tobias respondeu a seu pai Tobit: “Pai, farei tudo quanto me ordenaste. 2Mas como poderei
recuperar esse dinheiro? Ele não me conhece e nem eu a ele. Que sinal lhe darei para que ele me
reconheça, creia em mim e me entregue o dinheiro? Além disso, não sei que caminho tomar para
chegar à Média”. 3Tobit então respondeu a seu filho Tobias: “Ele me deu seu documento, e eu lhe dei
o meu: eu o dividi em dois para que cada um ficasse com a metade. Tomei uma e deixei a outra com o
dinheiro. E dizer que já faz vinte anos que depositei esse dinheiro! Agora, meu filho, procura um
homem de confiança para teu companheiro de viagem, e lhe pagaremos pelo seu trabalho até a sua
volta; vai e recupera esse dinheiro junto a Gabael.”

A trecho desta narrativa que demanda análise e interpretação mais profunda é:

“Ele me deu seu documento, e eu lhe dei o meu: eu o dividi em dois para que
cada um ficasse com a metade. Tomei uma e deixei a outra com o dinheiro”.

Tobit efetuou o depósito de certa quantia em prata junto a Gabael. Vejamos como a
legislação assírio-babilônica, vigente na região em pauta, prescrevia este ato jurídico. O
parágrafo 122 do Código de Hammurabi tem a seguinte redação: “Se um awilum
[homem livre, de posse de todos os seus direitos] quer dar em custódia a um (outro)
awilum prata, ouro ou qualquer outro bem, mostrará a testemunhas tudo o que
entregar, redigirá um contrato e (então) dará em custódia”( BOUZON, 1980, p. 59).

Portanto, somente um depósito feito perante testemunhas e do qual existe um


documento legal estava protegido pela lei. Isto é referendado pelo parágrafo 123, que
prega: “Se ele deu em custódia sem testemunhas e sem contrato e onde ele deu (em
custódia) contestaram (o fato): esse caso não terá reivindicação”(id.). Um depósito
feito sem as devidas precauções legais indicadas no parágrafo 122 teria como possível
conseqüência jurídica que o depositante não poderia recorrer a um processo, caso quem
recebeu o depósito negasse o fato.

O Código de Hammurabi (1728-1686 a.C.) tem o seu texto em acádico cuneiforme


quase integralmente conservado em uma estela de diorito negro, com 2,25 m de altura,
hoje em exposição no museu do Louvre. Foi descoberta pela expedição arqueológica
francesa de J. de Morgan no inverno de 1901-1902 (dez.-jan.), nas escavações
realizadas na acrópole da capital elamita, Susa. Não é o corpo legal mais antigo
conhecido do Oriente Médio, muito antes dele, já Urukagina de Lagăs, no terceiro
milênio da era pré-cristã, tentara uma reforma legal, estabelecendo algumas leis e
preceitos. O Código mais antigo hoje conhecido em língua acádica é o do rei Bilalama
de Ešnunna, que reinou no século XIX a.C. Em sumério existe ainda outro código
anterior ao de Hammurabi, o Código de Lipit-Ištar de Isin (1875-1865 a.C.). O
sumerólogo Samuel S. Kramer identificou, em 1953, e traduziu, no ano seguinte, um
documento legal sumério mais antigo ainda, uma coleção de leis do rei Ur-Nammu (c.
2050-2032 a.C.), da terceira dinastia de Ur.

Mesmo a mais antiga legislação acádica, a de Ešnunna (Eshnunna), previa casos de


custódia de bens: “Se uma awilum deu em custódia a um naptarum14 (um de) seus bens
e a casa não foi arrombada, a porta não foi derrubada, a janela não foi arrancada e
(contudo) ele (o depositärio) deixou desaparecer o bem em custódia, que lhe foi dado:
deverá restituir seu bem ao depositante” (BOUZON, 1981, p.110).

É interessante compararmos o paralelismo existente entre esta jurisprudência e a


prevista pela lei mosaica: “ 6 Se alguém der ao seu próximo dinheiro ou objetos para
guardar, e isso for furtado daquele que o recebeu, se for achado o ladrão, este pagará

14
O naptarum era provavelmente uma pessoa da alta sociedade, um depositário profissional, gozando de
direitos especiais e imunidade diante dos funcionários reais e dos administradores locais; cuja casa era,
por isso, ideal para a custódia de bens.
7
em dobro. Se o ladrão não for achado, então o dono da casa será levado diante de
Deus para testemunhar que não se apossou do bem alheio”(Ex. 22, 6-7).

Têm sido feitas comparações das leis de Israel com outros códigos da região,
particularmente o Código de Hammurabi, e muitas semelhanças foram identificadas, o
que mostra que Israel pertencia à cultura do Mediterrâneo Oriental e compartilhava um
direito consuetudinário comum ao Oriente Próximo, um dos produtos da mescla de
povos e culturas que caracteriza o II milênio a.C.

Como a quantia depositada por Tobit era significativa, provavelmente procurou se


resguardar cumprindo todas as exigências legais, que demandavam a elaboração de um
contrato e a presença de testemunhas. O contrato com certeza foi registrado por escrito,
porém o texto não indica sobre que suporte a escrita foi redigida. Os suportes possíveis,
na época, eram: pedra, objetos ou folhas de metal (p.ex. chumbo, ouro, cobre), papiro
ou pergaminho, argila (tabletes), cacos de cerâmica, ou outro material perecível, como
madeira ou marfim.

Excluímos a pedra, pois não poderia ser dividida em dois, de acordo com o texto “...
eu o dividi em dois para que cada um ficasse com a metade”. A divisão de um contrato
escrito em pedra em dois, além de nada prática quase com certeza danificaria o texto.

Também deixamos de lado a possibilidade do emprego de folhas de metal batido,


devido à extrema raridade de sua ocorrência. Quanto a possibilidade do emprego de
objetos de metal como suporte do contrato, ocorre que eles eram normalmente
empregados como armas ou artigos de arte, tais como cabeças de lanças, espadas, taças
de prata, espátulas, placas de ouro, etc., os quais geralmente eram inscritos com textos
breves, que davam o nome do seu proprietário ou do deus a quem eram dedicados. Não
há registro, ao que se sabe, de seu uso habitual em contratos. Além disso, há o problema
de sua escassez, custo elevado e da quase impossibilidade de um objeto ser divisível em
dois.

O papiro, devido a seu baixo custo em comparação com o couro (pergaminho), era
comumente empregado no Antigo Egito, sendo exportado para a Fenícia tão cedo
quanto o século XI antes da nossa era. Os mais antigos papiros datam da V dinastia
egípcia, c. 2750-2625 a.C., porém os papiros judeu-aramaicos de Elefantina, do século
V a.C., estão entre os mais famosos. A palavra para “papiro” é pela primeira vez
mencionada na mesopotâmia em um texto do rei assírio Sargão II (721-705 a.C.),
enquanto que a palavra para “couro” não é aparentemente encontrada antes do período
persa, e “escrita em pergaminho” não ocorre certamente antes do período seleucida
(311-95 a.C)( DRIVER, p.16-17).

Em Tb 7,13 encontramos uma menção ao uso de papiro. Ragüel “13Chamou depois a


mãe da moça e mandou que trouxessem uma folha de papiro, e redigiu o contrato de
casamento, pelo qual dava a Tobias sua filha [Sara] por esposa, conforme a sentença da
lei de Moisés.” Essa menção provavelmente é anacrônica, fruto de imprecisão do autor
bíblico, que provavelmente confundiu o emprego costumeiro de folhas papiro para o
registro de contratos de casamento na Palestina, com os hábitos da época e da região em
que atribuí a ocorrência dos fatos que relata.

O parágrafo 128 do Código de Hammurabi prescreve: “Se um awilum tomou uma


esposa e não redigiu o seu contrato: essa mulher não é sua esposa”(BOUZON, 1980,
p.62). O elemento jurídico essencial no matrimônio mesopotâmico é, portanto, o
contrato escrito. Os contratos de casamento nessa região e nesse período histórico, eram
redigidos em tabletes de argila, para terem valor legal. Somente mais tarde, como
observamos, o papiro se tornaria comum.

Se um contrato, redigido em papiro ou pergaminho, poderia ser dividido em dois,


convém lembrar o uso das chamadas cartae partitae ou cartae dentatae (cartas, papéis
divididos ou dentados), em uso na Idade Média. O contrato somente era válido se as
partes se ajustassem perfeitamente; porém, aparentemente, essa prática era
desconhecida na antigüidade, não se tendo notícia de seu uso tanto na Mesopotâmia
como no Egito ou Israel.

Como o uso tanto do papiro como do pergaminho em contratos não é atestado na


região e no período histórico em consideração, pode-se, em princípio, descartar o seu
emprego no contrato de Tobit. Evidentemente, dada a perecibilidade desses materiais,
não se pode eliminar por completo essa possibilidade, embora não sobrevivam
testemunhos arqueológicos.

A argila, usada em tabletes como suporte para escrita de contratos era, de longe, o
meio material mais comum empregado na região e no período em pauta. Milhares de
exemplos desses contratos foram conservados. Cacos de cerâmica também foram
empregados como suporte da escrita, embora geralmente seu uso fosse restrito à redação
de comunicações menos formais.
Somente um pequeno número de indivíduos podia ler e escrever a escrita
cuneiforme. A maioria da população tinha de recorrer a escribas profissionais, quando
necessitavam de um documento legal. Muitas vezes os escribas adicionavam o próprio
nome após o das testemunhas nos documentos que produziam. As partes contratantes
não assinavam o seu nome, mas simplesmente “selavam”o tablete, enquanto a argila
estava úmida, com o seu selo pessoal. O selo, no qual habitualmente estava gravado o
nome do proprietário, servia não apenas como assinatura, mas também indicava sua
concordância com os termos do contrato. Caso a parte não dispusesse de um selo,
pressionava na argila úmida a unha, geralmente de seu polegar, ou a barra ou o canto de
sua vestimenta, de modo que deixasse uma marca permanente de seu assentimento aos
termos do contrato. É claro que antes do surgimento da ciência das impressões digitais,
nem a marca da unha nem a da barra da vestimenta serviam para identificar a pessoa
iletrada, essas marcas apenas asseguravam que ela estava no local e concordava com os
termos do contrato, o que era garantido pelas testemunhas presentes ao ato.

Dois tipos principais de selos foram empregados na mesopotâmia: a) os planos, mais


antigos, que estampavam por pressão uma figura na superfície da argila úmida; b) os
cilíndricos, que eram cilindros de pedra em cuja superfície lateral eram gravados
caracteres ou figuras em relevo negativo e muitas vezes perfurados segundo seu eixo
longitudinal. Quando o cilindro era rolado sobre argila úmida, especialmente preparada,
resultava uma impressão em relevo. A argila secava e endurecia rapidamente no ar
quente e seco da região, preservando assim uma imagem duradoura. Serviam, portanto,
como uma espécie de assinatura individual.

Qualquer pessoa envolvida no controle de transações necessitava de um selo que


caracterizasse irrefutavelmente a sua pessoa. Isso explica a aparição dos selos
cilíndricos figurativos em grande número a partir do período denominado de Uruk
Antigo (c. 3.200-3.100 a.C.), quando o número de transações que necessitavam ser
registradas era consideravelmente elevado. Não por coincidência, aproximadamente
neste mesmo período aparecem os primeiros exemplares da escrita suméria, a mais
antiga conhecida. As transações passaram a ser, então, pela primeira vez, registradas por
escrito, e autenticadas mediante a impressão dos selos pessoais dos participantes.

Inúmeras atividades administrativas, bem como uma ampla gama de objetos de


argila, requeriam essa “assinatura” pessoal, caracterizada pela impressão do selo. Vários
tipos de tampas e tampões de argila úmida, onde se rolavam os selos, fechavam
gargalos e aberturas de recipientes de argila. Amarravam-se cordões ou cordas para
fechar sacos, caixas ou mesmo portas, e na suas extremidades agregava-se uma porção
de argila úmida, onde se imprimiam os selos. Uma vez seca, funcionava como lacre,
garantindo a inviolabilidade do recipiente ou recinto. Muitos desses fechos de argila,
descobertos em escavações, ainda preservam a impressão das cordas em seu interior.

Os conteúdos dos recipientes, sacos, caixas ou recintos que tinham sido lacrados
com esses fechos de argila, eram certificados como sendo de responsabilidade da pessoa
ou autoridade que tinha deixado seu selo no fecho.

Testemunho desta prática encontramos em Tb, 9,5: “Gabael levantou-se, contou


para ele os sacos de dinheiro com os selos intactos [negrito nosso], e colocaram-nos
sobre os camelos”. Com certeza, esses “selos intactos”eram fechos de argila para os
sacos com a impressão íntegra do selo de Gabael, responsável pela sua guarda.

Tobit, de acordo com Tb 1, 12, era procurador do rei Salmanasar V (726-722 a.C.) e
administrava seus negócios. Era, portanto, um homem de posses, um agente comercial
do rei, acostumado aos procedimentos legais vigentes. Gabael também certamente era
uma pessoa acostumada a tais práticas, dedicando-se aos negócios, pois aceita em
depósito uma quantia significativa; talvez um depositário profissional ou proprietário de
uma casa comercial.

Conhecem-se algumas casas comerciais desta época: em Nuzi, perto de Kerkouk na


Assíria, encontramos a casa de Téhip-tilla, cujos arquivos registram negócios de quatro
ou cinco gerações. De particular interesse é a firma Murashu, estabelecida em Nippur.
Esses Murashu eram israelitas, pois, quando Nabucodonosor captura Jerusalém em 597
a.C. leva seus habitantes mais ilustres em cativeiro, inclusive o profeta Jeremias, e entre
eles estava a família Murashu. Ela prospera no exílio, atingindo seu ápice sob o reinos
de Artaxerxes I (464-424 a.C.) e Dario II ( 423-405 a.C.). Vários tabletes de seu arquivo
portam, além da escrita em cuneiforme, um resumo escrito a tinta com algumas palavras
em aramaico, pois nem todos sabiam ler o acádico (CONTENEAU, p. 92).

Os documentos mencionados em TB 5,3 - ”Ele me deu seu documento, e eu lhe


dei o meu” - provavelmente se referem aos selos pessoais de Tobit e Gabael, que
deveriam ser impressos no contrato de custódia da prata, registrado em tablete de argila,
para validá-lo de acordo com as práticas vigentes. Quando necessário, podia-se fazer
duas (ou mais) cópias do contrato, devidamente seladas, ficando cada parte envolvida
com uma. Uma cópia adicional, ou o próprio original, era depositado em um arquivo do
palácio, templo ou da casa comercial.

Prossegue o versículo: “Eu o dividi [o contrato] em dois para que cada um ficasse
com a metade. Tomei uma e deixei a outra com o dinheiro”. Nesse ponto surge uma
dificuldade aparentemente inexplicável. O texto afirma que Tobit tomou o contrato (o
que implica em que o documento era único) e o dividiu em dois, ficando ele com uma
metade e Gabael com a outra. Mas como seria possível dividir um tablete de argila
endurecida em dois? O tablete provavelmente desfazer-se-ia ao longo da fratura, com
provável perda de texto. Pelo mesmo motivo pode-se descartar o emprego de cacos de
cerâmica (ostracos, do grego óstrakon). Além disso, como ficariam as impressões
necessárias dos selos? Desconhece-se o emprego deste procedimento na mesopotâmia.

Retornando ao texto: “Pai, farei tudo quanto me ordenaste. 2Mas como poderei
recuperar esse dinheiro? Ele não me conhece e nem eu a ele. Que sinal lhe darei para
que ele me reconheça, creia em mim e me entregue o dinheiro?”. O sinal a que Tobias
se refere deveria estar contido na parte do contrato em mãos de Tobit. O texto do
versículo também implica em que apenas esta metade do contrato, de posse de Tobit,
permitiria a Gabael reconhecer que o seu portador (Tobias, que depois delegou a missão
a Azarias) era representante legítimo e autorizado de Tobit.

Em Tb 9, 1.5 Tobias delega a missão de receber a prata a Azarias (na realidade o


anjo Rafael), dizendo: ”3Dirige-se à casa de Gabael, dá-lhe o documento, recebe o
dinheiro e convida-o para que venha contigo para as bodas”. Azarias partiu então para
a casa de Gabael e “apresentou-lhe o documento e deu-lhe a notícia que Tobias, filho
de Tobit, havia casado e convidava para as bodas”.

Este documento era com certeza a metade do contrato de posse de Tobit. Porém,
como conciliar esses acontecimentos com o fato de que o contrato não podia estar
registrado em um tablete de argila, de acordo com as práticas históricas documentadas,
pois então não poderia ser dividido em dois, como o texto bíblico exige?

Um dos principais pontos a ser registrado em um contrato são os números que


quantificam os valores, pesos, medidas, datas, etc., nele acordados. Um dos principais
artefatos que a humanidade empregou para o registro de números, estudado nessa
disciplina, é o denominado talha numérica15, ou bastão com entalhes.

O documento citado em Tb 5, 1-3, o contrato de depósito, apresenta todas as


características funcionais de uma talha dupla. Foi dividido ao meio; servia como
registro documental da transação, provavelmente discriminando a quantia em custódia;
tinha valor legal; cada metade ficava de posse de uma das partes envolvidas, e apenas a
apresentação da metade em posse do depositante já permitia o cumprimento do
acordado.

No texto bíblico: Ele me deu seu documento, e eu lhe dei o meu, neste contexto o
termo documento faria, portanto, menção às marcas de propriedade de Tobit e Gabael,
que seriam registradas nas respectivas metades da talha. Na seqüência: eu o dividi [o
contrato] em dois para que cada um ficasse com a metade, a interpretação seria que a
talha representativa do contrato seria dividia em duas metades, uma entregue para Tobit
e a outra para Gabael.

A metade do contrato, que estava em posse de Tobit, permitiu posteriormente a


Gabael reconhecer que o seu portador (Azarias, por delegação de Tobias) era
representante legítimo e autorizado de Tobit.

Isto nos permite sugerir que esse documento era funcionalmente similar a uma talha
dupla, ou realmente fosse uma.

Mas teria sido este documento gravado em madeira? DRIVER (1954, p.16) nos
ensina que os mesopotâmicos também empregaram tabletes de madeira, embora
nenhum tenha ainda sido recuperado em escavações, o que não é de se admirar, dada
sua perecibilidade.

Além disso, o testemunho material que porventura os arqueólogos encontrariam em


uma escavação seria apenas um pequeno pedaço de madeira, corroído pelo tempo,
provavelmente mal conservado, pois dificilmente se esperaria encontrar uma talha
completa, indene, com o ajuste perfeito entre as partes preservado. Observariam,
quando muito, algumas incisões e talvez outras marcas misteriosas rabiscadas,
facilmente atribuíveis às condições do ambiente em que foi achado. Como sua

15
O termo técnico, em inglês, (notched) tally stick, será traduzido como talha numérica, com o sentido de
pequena vara ou bastão, em que se marca a contagem por meio de entalhes.
finalidade é desconhecida, seria rapidamente esquecido, sepultado em algum escaninho
de um porão de museu.

Exemplo disso temos nos tokens de argila, pequenos cones, esferas, cilindros, etc.
de argila, que foram os primeiros contadores empregados na contabilidade arcaica da
mesopotâmia. Quando foram encontrados, achou-se que não passavam de peças de
jogos, brinquedos de criança, ou objetos com finalidade desconhecida, e foram
esquecidos nos desvãos dos museus. Somente quando Denise Schmandt-Besserat
descobriu sua finalidade é que foram desenterrados e estudados.

Relevos assírios mostram tabletes duplos, com a aparência de serem unidos por
dobradiças, o que os impede de ser de argila, nas mãos de escribas, semelhantes ao
diptychon romano, que era formado por duas tábuas de madeira, unidas por uma espécie
de dobradiça, cobertas com cera, e empregados para anotações temporárias.
Provavelmente o ábaco sumeriano era de madeira, e empregava como contadores
varinhas de madeira (IFRAH, 2000). Portanto, é de se supor que o uso da madeira em
registros não era desconhecido pelos comerciantes da época estudada na mesopotâmia.

Poderia também, com menor probabilidade, como mostramos, ter sido escrito em
papiro ou pergaminho, funcionando então como uma cartae partitae.

Desse modo, é provável que Tb 5, 1-3 registre um dos mais antigos, senão o mais
antigo, testemunho textual escrito existente do emprego de talha dupla. Além disso, a
interpretação proposta permite esclarecer dúvidas levantadas pelo texto bíblico,
ajudando assim a mostrar que seu autor provavelmente anotou com fidelidade práticas
comerciais usuais na época dos acontecimentos por ele relatados.

A Aliança de Deus com Abraão

Os estudiosos identificam pelo menos três correntes principais de diferentes


tradições que contribuíram para a composição literária da Bíblia cristã. A primeira, a
tradição javeísta (J), é assim chamada porque emprega o nome divino IAHWEH desde a
narração da criação. Teve origem provavelmente em Judá e talvez tenha sido escrita, no
essencial, durante o reino de Salomão.
A segunda, a tradição eloista (E), emprega o nome ELOHIM para designar Deus.
Estima-se ser mais recente que a javeísta, e em geral é relacionada às tribos do norte.

A terceira, a tradição sacerdotal (P), a mais recente de todas, se preocupa com as


leis, a organização dos santuário, sacrifícios e ofertas. Exprime o espírito legislativo e
litúrgico. Esta tradição se deve aos sacerdotes do templo de Jerusalém, embora preserve
elementos antigos. Salomão iniciou a construção do templo de Jerusalém logo depois
de 970 a.C. Nesta tradição a criação obedece a um esquema semanal, litúrgico, tendo
Deus descansado no sétimo dia, o sábado, dia do repouso sabático.

No versículo 15 do Gênesis encontramos a primeira menção à aliança entre


Iahweh e Abrão.

9
Ele lhe disse: “procura-me uma novilha de três anos, uma cabra de três anos, um cordeiro de
três anos, uma rola e um pombinho.”10Ele lhe trouxe todos esses animais, partiu-os [dividiu-os]
pelo meio e colocou cada metade em face da outra; entretanto, não partiu as aves. 11As aves de
rapina desceram sobre os cadáveres, mas Abrão as expulsou. ... “17Quando o sol se pôs
estenderam-se as trevas, eis que uma fogueira fumegante e uma tocha de fogo passaram entre os
18
animais divididos. Naquele dia Iahweh estabeleceu uma aliança com Abrão nestes termos : “À
tua posteridade darei esta terra, do Rio do Egito até o Grande Rio, o rio Eufrates, 19os quenitas,
os cenezeus, os cadmoneus, 20
os heteus, os ferezeus, os rafaim, os amorreus, os

cananeus, os gergeseus e os jerobuseus.”

O antigo ritual da aliança está descrito em Gen 15, 9-11;17. Esta é a versão javista
do episódio da aliança, na qual talvez estejam incorporados os primeiros traços da
tradição eloísta.

Em Gênesis 17 surge nova narrativa da aliança, desta vez da lavra da tradição


sacerdotal. Treze anos depois do nascimento de Ismael, Deus renova sua aliança com
Abrão, nos termos seguintes.
1
Quando Abrão completou noventa anos, Iahweh lhe apareceu e disse: “Eu sou El Shaddai16,
anda na minha presença e sê perfeito. 2Eu instituo minha aliança entre mim e ti, e te

16
Antigo nome divino da época patriarcal ( Gen 28,3; 35,11; 43,14; 48,3; 49,23) mantido especialmente
pela tradição sacerdotal (cf. Ex 6,3), raro fora do Pentateuco, salvo em Jó. A tradução comum “Deus
Todo Poderoso” é inexata. O sentido é incerto; propô-se “deus da Montanha”, segundo o acádico
multiplicarei extremamente”.3E Abrão caiu com a face por terra. Deus lhe falou assim: 4”Quanto
a mim, eis minha aliança contigo: serás pai de uma multidão de nações. 5E não mais se chamará
Abrão, mas teu nome será Abraão 17, pois eu te faço pai de uma multidão de nações. 6Eu te
tornarei extremamente fecundo, de ti farei nações, e reis sairão de ti, de geração em geração, uma
aliança perpétua, para ser o teu Deus e o de tua raça depois de ti. 8À ti, e à tua raça depois de ti,
darei a terra em que habitais , toda a terra de Canaã, em possessão perpétua, e serei vosso Deus.
9
Deus disse a Abraão: “Quanto a ti, observarás a minha aliança, tu e tua raça depois de ti, de
geração em geração. 10E eis minha aliança, que será observada ente mim e vós, isto é, tua raça
depois de ti: todos os vossos machos sejam circuncidados. 11Fareis circuncidar a carne de vosso
prepúcio, e este será o sinal da aliança entre mim e vós. 12Quando completarem oito dias, todos
os vossos machos serão circuncidados, de geração em geração. Tanto o estrangeiro como o
comprado por dinheiro a algum estrangeiro que não é de tua raça, 13deverá ser circuncidado o
nascido em casa e o que for comprado por dinheiro. Minha aliança estará marcada na vossa carne
como uma aliança perpétua.

Diversamente da primeira aliança, esta segunda é concluída sem a prática de um


rito particular, talvez por constituir uma renovação da primeira. Em compensação, é
instituído o sinal da circuncisão, ritual de sangue típico dos semitas. Entre povos
vizinhos esse rito marcava a admissão ao estado adulto na tribo, mas para os israelitas
representava o sinal exterior de uma aliança: Deus seria seu Deus e Israel o seu Povo.

O termo empregado na bíblia para designar uma aliança é berit, vocábulo de


etimologia incerta. Em dois tabletes cuneiformes do século XV a.C., provenientes de
Misrifé (Qatna), publicados por J. BOTÉRO em 1950, figura a expressão TAR biriti,
que VAUX e ALBRIGHT (cf. VAUX, p.225) consideram idêntica à expressão bíblica
kārat b erit. Concluem que essa expressão técnica, b erit, que designa aliança, não era
criação exclusiva dos israelitas, mas existia em seu ambiente.

A aliança referida em Gen 17, 10-13 é conhecida como b erit milah, a aliança da
circuncisão, cujo sinal é corte da carne do prepúcio dos homens, e é fundamental para o

shadû; seria preferível entender “Deus da estepe”, segundo o hebraico sadeh e um outro sentido da
palavra acádica. Seria um nome divino trazido da Alta Mesopotâmia pelos ancestrais (BJ).

17
A doutrina do nome: o nome de um ser não apenas o designa, mas determina a sua natureza. Uma
mudança de nome marca, pois, uma mudança de destino (cf. Gen 17,15 e 35,10).
judaísmo, que a considera prioritária mesmo entre outros preceitos do Torah, tais como
a observação do Sabbath.

A aliança de Deus com Moisés, a aliança do Sinai, e outras do antigo


testamento, costumam ser interpretadas à luz dos antigos tratados de vassalagem do
Antigo Oriente, em particular dos tratados do grande rei hitita com seus vassalos da
Ásia Menor e do norte da Síria, nos séculos XV-VII a.C. Os tratados que podem ter
influído na formulação da aliança do Sinai são os da segunda metade do II milênio
A.C., ou seja, os tratados de Alalakh do século XV na Síria; o grupo de tratados hititas,
firmados entre 1.450 e 1.200 a.C.; e os tratados de Ras Šamra. Deve-se levar em conta,
porém, que muitas vezes o paralelismo é imperfeito.

TAYLOR (in ALEXANDER, 1986 p.123) observa o seguinte.

Para a mentalidade moderna, “aliança” é simplesmente uma questão de documentos legais e de


lacre; para a mentalidade hebraica, porém, ela intervinha em todas as relações humanas. A
aliança era o vínculo que unia as pessoas por meio de mútuas obrigações, quer se tratasse de um
matrimônio, quer de um contrato econômico ou de um compromisso verbal. Era, pois, natural
que também a relação com Deus fosse expressa com esse termo.

O termo berit foi usado especialmente em sentido religioso para expressar a


relação particular estabelecida entre Deus e o povo de Israel. Figura na promessa feita
por Deus a Noé de não mandar mais outro dilúvio sobre a terra (Gen 9,9); nas
promessas feitas a Abraão (Gen 15,18; 17,4); na aliança do Sinai celebrada com Moisés
no livro da aliança (Ex 24,7). O termo também é usado para uma aliança profana, como
entre Abraão e Abimelec (Gen 21,27); entre Isaac e o próprio Abimelec (Gen 26,29);
entre Jacó e Labão (Gen 31,44).

A aliança de Deus com Abrão é sancionada com um rito de passagem, o antigo


ritual da aliança, descrito em Gen 15, 9-11;17. O patriarca deve procurar uma novilha,
uma cabra e um cordeiro, todos de três anos, bem como uma rola e um pombinho;
depois de imolá-los deve dividir os quadrúpedes ao meio e colocar uma metade em
frente à outra. As aves são deixadas inteiras, talvez porque não possam ser facilmente
divididas ao meio.
Na conclusão da aliança entre Deus e Abraão, só Deus passa entre as vítimas
divididas, para significar que esta aliança é um pacto unilateral, fundamentado apenas
na iniciativa divina, sem que sejam impostas aos homens obrigações de qualquer
gênero. O Deus é simbolizado pela fogueira fumegante e pela tocha de fogo, elementos
típicos da teofania divina.
Nas alianças profanas, como resulta de uma passagem de Jeremias (34, 18-20),
os participantes deviam passar entre as duas partes dos animais sacrificados recitando
fórmulas imprecatórias, nas quais se declaravam assumir as conseqüências que adviriam
caso a aliança fosse rompida.
Um texto hitita reporta rito análogo. Se as tropas do rei hitita foram derrotadas
pelo inimigo, o seguinte ritual era executado: dividiam ao meio um homem, uma cabra,
um cão e um porco; separavam as metades e faziam uma porta de madeira entre elas;
em frente à porta acendiam uma fogueira, e as tropas passavam por esta porta; quando
chegavam ao fogo eram aspergidas com água (VAUX, p.225).
Os gregos e os romanos também realizavam ritos semelhantes na comemoração
de suas alianças solenes, tais como na aliança entre os Aqueus e os Troianos (Ilíada, III,
298 e s.), e também na aliança entre os Horácios e os Curiácios (Tito Lívio, I, 24).
A conclusão da aliança é designada na Bíblia por uma curiosa expressão: kārat
berit, que significa talhar, cortar, a aliança. Esta expressão gerou, através dos séculos,
perplexidade e polêmica entre leigos e estudiosos, pois o que se espera em uma aliança
consagrada é a união, a conjunção entre as partes, ou seja, exatamente o oposto à
divisão, corte, talho do pacto.

A explicação geralmente aceita para isso é que para sancionar a aliança uma
vítima era sacrificada e depois cortada, dividida ao meio. Podemos, todavia, propor uma
outra interpretação para este ritual, baseados no simbolismo da expressão kārat b erit,
talhar, cortar, a aliança.

Procurando processos ou artefatos simples, de uso cotidiano, cujo simbolismo


seja expresso pela divisão em duas metades, que se complementam harmoniosamente,
para simbolizar uma aliança, ou contrato, dentro da mentalidade hebraica, expressa por
TAYLOR, nos ocorre o paralelismo com a funcionalidade das talhas numéricas. Nas
talhas, como foi visto, a conclusão de uma transação, ou seja, o fechamento do acordo
entre as partes, é consagrado pela divisão, corte da talha em duas partes. A união
perfeita entre as partes simboliza a consagração da aliança.
A aliança hebraica é, antes de mais nada, um vínculo entre as pessoas por meio de
mútuas obrigações, um contrato entre partes, para o que a talha numérica vem sendo
empregada desde tempos imemoriais. Servia como registro documental da transação ou
do pacto, tinha valor legal, discriminava as obrigações de cada parte (contidas nos
registros numéricos), cada metade ficava de posse de uma das partes envolvidas e,
principalmente, simbolizava a aliança, o contrato, o acordo entre as partes.

O episódio de Tb 5, 1-3 nos mostra que os israelitas conheciam o emprego de talhas


numéricas, bem como as empregavam para o registro de contratos, ou seja, de suas
alianças seculares.

É o mesmo simbolismo que encontramos na talha confeccionada por Tristão,


empregando um ramo de aveleira, para patentear a aliança perfeita entre Tristão e
Isolda.

A talha, este artefato empregado no cotidiano para o registro de alianças, contratos,


cuja consumação era sua divisão, corte, em duas partes, pode ter servido de inspiração
para o antigo ritual da aliança, onde os animais sacrificados eram divididos, cortados
pela metade, para simbolizar a consecução do pacto entre as partes; daí a origem da
expressão kārat berit, talhar, cortar, a aliança.

Enfatizamos que a correspondência existente entre o aspecto legal de que estava


imbuída a aliança hebraica e o encerrado nas talhas numéricas evidencia o notável
paralelismo simbólico-funcional prevalecente entre elas.

Empregando os ensinamentos da epistemologia histórica, podemos constatar


que o conhecimento empírico oriundo do uso cotidiano das talhas numéricas, artefatos
matemáticos originados em tempos remotos para o registro de números, pôde
eventualmente gerar uma estrutura cognitiva que possivelmente veio induzir a criação
de um modelo mental cultural, no qual se vinculava a consagração de um acordo, de
uma aliança, à noção de talhar, cortar - kārat b erit, e ao ritual a ela associado.

Também esse é o conceito postulado por Ubiratan D’Ambrosio, quando ao


insistir que seu Programa Etnomatemática busca entender a aventura da espécie humana
na procura de conhecimentos e na adoção de comportamentos. Assinala que o cotidiano
está impregnado de saberes e fazeres próprios da cultura; que a todo instante os
indivíduos estão comparando, classificando, quantificando, medindo, explicando,
generalizando, inferindo e, de algum modo, avaliando, usando os instrumentos materiais
e intelectuais que são próprios à sua cultura. A aquisição e a elaboração do
conhecimento se dão no presente, afirma, como resultado de todo um passado,
individual e cultural, com projeção no futuro. Encara a sobrevivência e a transcendência
como a essência do ser humano. O que distingue o ser humano das outras espécies
viventes é sua vontade de transcender (D’AMBROSIO, 2002).

Essa vontade, a que D’Ambrosio se refere, é o que possivelmente levou os


israelitas a projetar seu conhecimento cotidiano do uso das talhas para uma esfera
transcendental, incorporando noções como talhar, cortar a elementos rituais de sua
religião.

O Cômputo do Tempo

A necessidade de se manter um registro da passagem do tempo, por mais


simples que seja, se manifesta mesmo dentre os mais primitivos povos, os caçador-
coletores. A duração de uma viagem, por exemplo, muitas vezes é medida em dias, ou
mesmo em luas. As estações da caça, da pesca, ou da coleta de determinados frutos ou
raízes, fundamentais para sua sobrevivência, necessitam ter seu início previsto e sua
duração controlada.

O ciclo das estações ao redor do ano se reflete no modo de vida desses povos, há
épocas de prosperidade e abundância, e épocas de agruras e necessidades. O inverno,
particularmente rigoroso nas regiões mais setentrionais, requer um planejamento prévio
para ser sobrevivido: abrigos devem ser aparatados, víveres armazenados, roupas
agasalhadoras confeccionadas. Nas regiões tropicais a estação das secas, com seu sol
abrasador e conseqüente carência de água e alimentos, também deve ter seu início
previsto e sua duração controlada, sob pena de morte certa.

Esse planejamento é necessário para articular as atividades, tanto individuais


como coletivas, da sociedade, tanto em relação a alguns fenômenos naturais, como os
mencionados, como também sobrenaturais. As danças cerimoniais da chuva, da
antecipação da caça, são alguns eventos coletivos em sociedades caçador-coletoras que
necessitam ser programados dentro de sua estrutura temporal, embora relacionados com
concepções sobrenaturais dessa cultura.

As várias sociedades, especialmente as primitivas, têm diferentes conceitos de


tempo e impõem diferentes estruturas ao cômputo do seu transcorrer. Idéias
matemáticas como ordem, unidades e ciclos, são os tijolos com que essas estruturas são
erigidas. O conceito e a estruturação do tempo, adotados por uma cultura e ensinados
aos seus filhos, tornam-se parte tão íntima da sua vida diária que muitas vezes não
conseguem atinar que outros povos podem perceber, organizar e medir o tempo de
forma diferente.

Exemplo notável de como a percepção do tempo pode ser diferente em


sociedades primitivas encontramos entre os termos numéricos da língua palikur, à qual
já nos referimos. O pensamento ocidental moderno determina que palavras como hora,
dia, semana, mês e ano sejam classificadas juntas como unidades de cômputo de tempo.
Os falantes do palikur usam para contar períodos de tempo o classificador de séries,
pois são eventos regularmente repetidos. Green registra que “uma noite” é paha-y
mtipka, um (paha) – série (y - classificador) – noite (mtipka). Já “um ano” é classificado
como “plano”, devido ao fato de ser definido de acordo com a estação das secas. Todas
as quatro estações (enchente, cheia, vazante, sol-época) são também classificadas como
planas, porque sua denominação é feita conforme o nível da água existente no campo
próximo das ilhas onde esse povo vive. Para eles “um ano” é paha-k kamu-kri, um
(paha) – plano (k – classificador) – sol (kamu) – época (kri). Um mês, para esse povo,
corresponde à uma lua, que, por sua vez, é considerada um homem. Dessa forma para
eles “um mês” é paha-v-ri kayg, um (paha) – animado (v – classificador) – masculino
(ri) – lua (kayg). Para os palikur a hora é uma medida de distância e não de tempo.
Provavelmente corresponde a uma medida da distância percorrida nas margens do rio
em que habitam, talvez por essa razão é empregado o classificador “irregular”. Para eles
uma hora é paha-a ler, um (paha) – irregular (a – classificador) – hora (ler).

Essa estruturação é que fornece uma orientação tanto para a vida dos indivíduos
como para a coletividade, organizando um esquema contínuo e coerente de eventos
periodicamente repetitivos ou de eventos especiais, que determinam o decorrer da vida
da comunidade.
A unidade de tempo mais facilmente percebida é o dia. É um ciclo de luz-
escuridão, ocasionado pelas diferentes quantidades de luz recebidas na superfície da
terra devido à sua rotação em torno de seu eixo. Exceto nas regiões situadas em latitudes
extremas, polares, normalmente desabitadas, onde o dia ou a noite pode durar até seis
meses, esse ciclo é bem discernido pelas diversas culturas. Os seres humanos podem
contar o número desses ciclos, desde que haja um ponto arbitrário de fim de um ciclo e
início de outro; podem também manter um registro material desse número, empregando,
por exemplo, a técnica dos entalhes. Podem subdividir esses ciclos (manhã-tarde,
horas), ou agrupá-los arbitrariamente.

Esse ciclo de luz-escuridão foi padronizado pelos cientistas ocidentais no


denominado dia solar médio, ou simplesmente dia, cujo ponto inicial é a meia-noite,
sendo subdividido em vinte e quatro unidades iguais, denominadas de horas, cada uma,
por sua vez, composta de sessenta subunidades cognominadas de minutos, os quais,
também são compostos cada um por sessenta novas subunidades chamadas de
segundos.

Uma lunação, ou seja, o período entre uma lua cheia ou nova e outra consecutiva
corresponde a 29,531 dias solares médios, ou 29 dias, 12 horas e 44 minutos. Um ano
tropical é composto de 365,2422 dias (365 dias, 5 horas, 48 minutos e 28 segundos), e é
equivalente a 12,368 lunações.

Cômputo do tempo entre os indígenas brasileiros

Os indígenas brasileiros são considerados como protótipos de povos caçadores-


coletores, portanto o estudo de sua cultura é de suma importância para a compreensão
do seu estilo de vida destes povos. O índio brasileiro percebia que as atividades de caça,
pesca, coleta e lavoura obedeciam a variações sazonais. Procurou entender estas
variações cíclicas, empregando este conhecimento principalmente em benefício de sua
subsistência.

Em 1612, Claude D’Abbeville, um missionário capuchinho francês viveu quatro


meses com os tupinambás do Maranhão. No seu livro “Histoire de la Mission de Pères
Capucins em l’Isle de Maragnan”, publicado em 1614 em Paris, anotou o nome de 30
constelações conhecidas por estes índios, mas infelizmente identificou apenas algumas
delas.

Germano Afonso, da Universidade Federal do Paraná, constatou que o sistema


astronômico dos tupinambás era muito semelhante ao utilizado atualmente pelos índios
guarani, do sul do Brasil, distantes cerca de 2.400 quilômetros dos primeiros e quase
400 anos posteriores, o que denota a persistência histórica e a invariância deste sistema.

D’Abbeville relata que conheciam um calendário solar: “Contam perfeitamente


os doze meses do ano como nós fazemos, pelo curso do sol indo e vindo de um trópico a
outro. Eles os reconhecem também pela estação das chuvas e pela estação das brisas e
dos ventos. Eles os reconhecem, ainda, pela colheita dos cajus [...] assim como nós
saberíamos aqui pela época da vindima”.

As constelações da Via Láctea eram muito importantes para estes indígenas, e


podiam ser constituídas de estrelas individuais ou de nebulosas, principalmente as
escuras. A Via Láctea é denominada de Caminho da Anta (Tapi’i rapé, em guarani) pela
grande maioria de nossos indígenas, devido mormente às constelações que representam
uma anta (Tapi’i, em guarani) nela contidas.

Cabe lembrar que constelações são asterismos construídos segundo a


weltanschaaung de cada povo, não são aleatórios. Vejamos algumas das principais
constelações de nossos indígenas e sua relação com o cômputo do tempo.

Quando a constelação da Ema (Guirá Nhandu, em guarani) surge totalmente no


lado leste, na segunda quinzena de junho, é um indicativo de que o inverno se inicia
para os índios do sul do Brasil; para os do norte é o inicio da estação da seca. Ela fica na
região do céu limitada pelas constelações ocidentais Crux e Scorpion. Também é
composta por estrelas das constelações Musca, Centaurus, Triangulum Australis, Ara,
Telescopium, Lupus e Circinus. Sua cabeça é formada pelas estrelas que envolvem a
nebulosa escura do Saco de Carvão, que fica perto da estrela α Crucis (Cruzeiro do Sul).
D’Abbeville registra que os tupinambás a conheciam com a Avestruz Branca, porém a
avestruz não é uma ave brasileira.

Quando a constelação do Homem Velho (Tuya, em guarani) surge totalmente ao


anoitecer, no lado leste, na segunda quinzena de dezembro, é um indicativo de que o
verão se inicia para os índios do sul do Brasil e começa a estação chuvosa para os do
norte. É assim denominada, segundo D’Abbeville, por ser semelhante a um homem
velho segurando um bastão. È constituída pelas constelações ocidentais Taurus e Orion.
Ela contém três outras constelações indígenas, cujos nomes em guarani são: Eixu
(Vespeiro, as Plêiades), Tapi’i rainhykã (queixada da anta, as Hyades, incluindo
Aldebarã) e Joykexo ( o cinturão de Orion).

Eixu significava ninho de abelhas (guarani), vespeiro (tupinambá), e marcava o


início do ano quando surge pela primeira vez no lado oeste, antes do nascer do sol
(nascer helíaco das Plêiades), na primeira quinzena de junho. Quando elas apareciam
era um indicativo seguro de que as chuvas iriam chegar, como efetivamente chegavam,
poucos dias após. Como Eixu aparecia poucos dias antes das chuvas e desaparecia no
fim desta temporada, os indígenas reconheciam perfeitamente o intervalo de tempo
decorrido de um ano a outro.

Tapi’i rainhykã, a queixada da anta,, prenunciava a chegada das chuvas para os


tupinambás. Joykexo, que representava uma linda mulher, símbolo da fertilidade, servia
como orientação geográfica, pois nasce no leste e se põe no oeste. Também
representava o caminho dos mortos.

A constelação da Anta do Norte é conhecida principalmente pelas etnias


indígenas habitantes do norte do Brasil, pois para as etnias da região sul ela permanece
próxima da linha do horizonte. Ela surge na segunda quinzena de setembro ao anoitecer,
no lado leste, indicando uma estação entre frio e calor para os índios do sul do país e
entre a seca e a chuva para os do norte. Fica na região do céu limitada pelas
constelações ocidentais Cygnus e Cassiopeia, sendo também formada por estrelas da
constelação de Lacerta (Lagarta), Cepheus e Andrômeda.

A constelação do Veado é principalmente conhecida pelos indígenas do sul do


país, pois ao norte permanece próxima à linha do horizonte. Quando surge na segunda
semana de março, ao anoitecer, do lado leste, indica uma transição entre o calor e o frio
para os índios do sul do Brasil e entre a chuva e a seca para os do norte. Fica na região
do céu limitada pelas constelações Vela e Crux, empregando ainda em sua formação
estrelas da constelação Carina e Centaurus.
As contribuições de Alexander Marshack

Neste ponto abriremos parênteses para explicitar o papel de Alexander Marshack


(1.918-2.004) no estudo da pré-história. Nasceu e estudou em Nova Iorque e nos seus
primeiros quarenta anos de idade perseguiu uma brilhante carreira jornalística e
cinematográfica. Na década de sessenta do século passado, foi incumbido de escrever
um livro sobre os feitos do Ano Geofísico Internacional. Nessa ocasião começou a se
interessar em como o homem primitivo poderia manter registros do transcorrer do
tempo.

Em 1.962 tomou conhecimento da descoberta do osso de Ishango, nas margens


do lago Rutanzige (antigo lago Edward), no Zaire, uma das nascentes do Nilo, por Jean
Heinzelin da Universidade de Ghent e do Instituto Real de Bruxelas. É um fragmento de
osso com 9,6 centímetros de comprimento, que tem em uma extremidade um pequeno
fragmento de quartzo afixado e está
entalhado com uma série de incisões
arranjadas em três colunas distintas,
que Heinzelin suspeitava que eram
mais que simples decoração, porém não
atinava com seu significado. Marschak
Fig. 6.11 As três faces do osso de Ishango identificou nas suas incisões o registro
de um calendário lunar. Essa nova
interpretação provocou uma revolução no conhecimento acadêmico do paleolítico, pois
o emprego desses artefatos como registro de tempo era até então insuspeitado. Isso
também constituiu um ponto de inflexão na sua carreira, passando a se dedicar
integralmente ao estudo desses artefatos, visitando museus em todo mundo para
examiná-los microscopicamente, técnica que disseminou nesse campo de pesquisa.
Afirmou-se reconhecida autoridade no campo; seus trabalhos, embora no princípio
contestados por sua carência de preparo acadêmico e autoridade, hoje são aceitos pela
maioria dos pesquisadores.

O osso de Ishango apresenta três faces com incisões feitas por 39 pontas
diferentes, encontrando-se hoje no Museu de História Natural de Bruxelas. Sua idade é
estimada em cerca de 8.500 anos.
Se observarmos o céu cada noite e contarmos os dias transcorridos entre uma lua
cheia e outra, ou entre uma lua nova e outra, encontraremos entre 29 ou 30 dias. Não se
pode contar o astronomicamente preciso período de 29,5 dias. No caso da lua nova,
pode ocorrer um período de invisibilidade de um, dois ou até três dias sem uma lua
visível, sendo que podemos considerar dois dias como uma média. Um observador
desse mês lunar poderia registrar esse período como de 28 a 31 dias. Porém, se ele
estiver errado em um dia aqui ou um dia ali na sua notação, ele estará sempre correto se
continuar registrando as próximas fases lunares, ou seja, com um registro acumulado de
vários meses lunares. Esse método é, portanto, autocorretivo se o registro abranger um
período de vários meses lunares.

Se, por exemplo, se computam 16 dias da invisibilidade para o dia da lua cheia,
não pode haver 16 dias para a próxima invisibilidade, mas sim 13, 14 ou 15. Essas
variações são ajustadas ou corrigidas nas próximas fases.

Os San (Bushman) da África do Sul comemoram a lua cheia com danças por três
noites. Estas noites correspondem a um período onde a lua está cheia, forte, saudável,
pois, na seqüência, a lua começa a morrer, pois a carne de seu corpo é cortada pelo
grande caçador, o sol. Essa é a interpretação que dão para a lua minguante. Deste
período até a lua nova, a invisibilidade, transcorrem cerca de 13 dias. Como não usam
números, esses 13 dias são acompanhados pela observação de seu decorrer. Poderiam,
na pré-história, serem registrados por incisões. Na lua nova, invisível, de acordo com a
narrativa Bushmen, está quase morta. Contudo ela nunca morre, renasce, qual fênix
renata das suas cinzas, cresce novamente, até atingir sua plenitude, em um ciclo
infindável.
Fig. 6.12 Interpretação de Marschak de uma face do osso de Ishango.

Com base nessas hipóteses, Marschak construiu um modelo lunar interpretativo


das colunas (faces) do osso de Ishango, propondo que provavelmente é um registro de
cinco ou talvez cinco e meia lunações. A Fig. 6.12 apresenta a interpretação sugerida
por Marschak de uma das suas faces. O homem de Ishango, como habitava
permanentemente à beira do lago, podia estar registrando talvez o tempo para a chegada
das chuvas, com o retorno das migrações sazonais, encerrando assim a temporada das
secas e a época das privações.

Marschak,
após o sucesso com
o osso de Ishango,
empreendeu um
périplo por museus
ao redor do mundo,
examinado todos os
ossos com incisões
Fig.6.14 Placa de osso de Blanchard
Fig.6.13 Osso de Kulna;
que estavam ao seu
Osso de Gontzi (abaixo) alcance. Em um fragmento de osso proveniente de um sítio
de caçadores de mamute em Kulna, Tchecoslováquia, com três grupos de 15-16-15
incisões, reconheceu o registro de um mês e meio lunar. Já um marfim de mamute
proveniente de Gontzi, na Ucrânia, delicadamente entalhado com uma série de
minúsculas incisões, parecia registrar um período de quatro lunações.

Uma pequena placa óssea (c. 11 cm) foi descoberta no sítio de Abri Blanchard,
na região da Dordonha, na França, provavelmente confeccionada por um artesão Cro-
Magnon, pois foi encontrada em depósitos Aurignacianos. Uma das faces contém 69
marcas incisas serpentinamente, que parecem registrar dois e meio meses lunares,
havendo um total de aproximadamente 172 entalhes no osso. Curiosamente, o formato
de algumas das marcas se assemelha às fases da lua, porém, isso deve ser analisado com
cuidado, pois podem apenas resultar do feitio das pontas empregadas nas incisões, bem
como do seu ângulo de contacto. O que parece importar é o seu número e sua
distribuição.

A existência de uma tradição de


registro de lunações recebe uma
confirmação adicional por meio de outra
placa óssea, também encontrada na
Fig.6.15 Abri Lartet, Gorge d’Enfer
Dordonha, no Abri Lartet no Gorge
d`Enfer. O total de marcas do osso, mais ou menos três ou quatro, responde por um
registro de onze meses, pois na face há 118 marcas, ou seja, 4 meses, o verso mostra 90,
ou seja três meses, e as laterais mais ou menos
121, ou perto de 4 meses.

Na Itália, do sítio de Barma Grande, na


fronteira com a França, foi encontrado um seixo
Fig.6.16 Seixo de Barma Grande gravado com três estilos de notação: a) séries de
linhas paralelas; b) outras séries de linhas sobre ou dentro de linhas paralelas, de certa
forma aparentando uma escrita; c) séries de ângulos. Há, portanto, agrupamentos não
lineares das marcas, em uma variação do estilo linear, por exemplo, do marfim de
Gontzi. Se estas marcas são notacionais, e se representam um registro de lunações, elas
abrangem um período de 15 meses lunares, uma estação a mais que um ano.
Do sítio de Le Placard, também na Dordonha,
provém um exemplo clássico de um objeto misterioso que
é denominado de bastão de comando (baton de
commandements), um nome que pressupõe uma
finalidade ritual. Estes objetos começam a surgir no
Aurignaciano. Na maioria das vezes têm um ou mais
orifícios, cuja utilidade é desconhecida. Não se sabe se
serviam para a colocação de cabos, mas, neste caso,
bastaria apenas um orifício, ou se para passar uma corda
de sustentação e servir como um adereço. Também foi
Fig.6.17 Bastão de
comando de Le Placard
sugerido que serviriam para amaciar couros, passando-os
várias vezes através do buraco. Muitas vezes apresentam figuras esculpidas, neste
artefato há a cabeça de uma raposa entalhada
numa extremidade. O bastão de Le Placard é
um objeto esculpido em chifre, com
aproximadamente 35 cm, com uma série de
marcas feitas por cerca de 25 pontas Fig.6.18 Bastão de Isturitz
diferentes, segundo Marschak. Elas parecem
representar um registro de pouco mais de 4 meses lunares.

De Isturitz, no sul da França, provém um osso do Perigordiano que lembra muito


os bastões de comando, porém é muito anterior aos mesmos, entalhado nas duas faces
com séries de marcas. A associação dessas marcas com um calendário lunar é possível,
uma das faces computando 4 e a outra 5 meses lunares. Isso parece indicar uma extensa
tradição, tanto desses objetos como de registro de lunações.

Talvez o artefato que Marshack acha que melhor demonstra a existência de um


registro numérico de lunações no
Paleolítico seja um pequeno (11 cm)
osso oco de águia, depositado no
Musée dês Antiquités Nationales, em
Saint-Germain-en-Ayle, França.
Encontrado também no sítio de Lê

Fig.6.19 Osso de águia de Le Placard Placard, provem de um nível com 13 a


15.000 anos de idade. Está cuidadosamente gravado com uma série de marcas que
parecem pequenos lambdas : λ. Cada lado parece registrar seis meses lunares,
totalizando precisamente um ano lunar. Existe um apito Paleolítico, igualmente feito de
osso de águia, também encontrado em Le Placard, que contém marcas no mesmo estilo.
Encontra-se na Coleção Piette, no mesmo museu. Um dos seus lados parece registrar
seis e o outro sete e meio meses lunares. As duas peças parecem confirmar a
interpretação de Marshack, de que existia no paleolítico uma tradição cultural de
registro numérico de observações de lunações, desde o
início do paleolítico superior até o magdaleniano, com
possivelmente mais de 20.000 anos de duração.

Francesco d´Errico retomou e aperfeiçoou as


técnicas microscópicas de Marschak, empregando
novas tecnologias, como microscopia eletrônica de
espalhamento. Confirmou a existência de uma
tradição de sistemas de informação externos no
paleolítico, afirmando que a análise microscópica de
alguns desses artefatos sugere que códigos complexos
foram adotados sistematicamente, baseados na
organização hierárquica da informação, usando
Fig.6.20 Desenvolvimento do
bastão de La Marche
marcas formalmente diferenciadas. Como exemplo disso,
retomou o bastão de La Marche, já anteriormente
analisado por Marschak. É um pedaço de chifre
descoberto no sul da França e datando de 17.000-11.000
anos antes do presente. As variações na distribuição
espacial e morfologia das marcas, intencionalmente feitas,
apontam para uma organização hierárquica da informação,
indicando um artefato capaz de armazenar externamente
algum tipo de informação. Marschak identificou neste
Fig.6.21 Rinoceronte peludo
de Solutre
bastão um possível registro de sete e meio meses lunares
em uma das suas faces, e de ao menos três meses na outra.

Em outro artefato, uma costela de um rinoceronte peludo escavada em Solutre e


datada de 22.000-17.000 anos antes do presente, 53 incisões foram feitas no lado
côncavo. D´Errico (2003) determinou a presença de 13 conjuntos de €entalhes feitos por
diferentes ferramentas, indicando a complexidade da informação armazenada.

A Etnografia nos fornece exemplos de calendários lunares empregados por


povos primitivos. Os nativos das Ilhas Nicobar, da Baía de Bengala, empregam bastões
calendários denominados de Kenrata, inscritos em uma madeira tropical branca e de
forma semelhante a uma faca ou adaga, lembrando bastante as “facas” ou “bastões do
paleolítico superior. O Kenrata mostrado na Fig. registra ao menos oito meses lunares.
Os períodos, como no paleolítico superior, são diferenciados tanto pela contagem como
pelo ângulo de incisão. Este
sistema está interessado nas
somas dos meses, de modo a
Fig.6.22 Calendário lunar das Ilhas Nicobar.
computar o “ano” Nicobarês de
seis ou sete meses. Os Nicobareses têm um sistema para nominar cada dia do mês lunar
e um nome para cada mudança de lua.

Outras técnicas, além da do entalhe, tais como: contadores (calculi), nós em


cordas, como os quipus sul-americanos, ou mesmo varinhas, como os bastões de contar
chineses, podem ter sido empregadas no paleolítico. Porém, essas técnicas não deixam
vestígios arqueológicos nem fossilizam. Somente podemos supor o seu uso mediante
analogias etnográficas. Todas essas técnicas, contudo, se fundamentam no mesmo
princípio matemático, o da correspondência um-a-um.

Para encerrarmos este capítulo, resta nos perguntarmos se algum vestígio de


aritmética paleolítica sobreviveu. Foi encontrada em Brassempouy, na França, em
depósitos do Magdaleniano, um ponta feita de chifre de rena. Ela tem um sulco
longitudinal que separa duas séries de incisões transversais, divididas em dois grupos
distintos, sendo 3-7 marcas de um lado e 9-5 marcas do outro. Esse sulco parece
estabelecer um vínculo entre o grupo de 9 com o de 5 marcas. Várias “explicações”
aritméticas foram propostas para este singular artefato. Vejamos algumas delas:

9–7=5–3=2

7 – 3 = 9 – 5 = ( 9 + 5) – (7 + 3) = 4

3 + 9 = 5 + 7 = 12
Fig. 6.23 Artefato de Brassempouy

Contudo, a ausência de outros vestígios arqueológicos que atestem a existência


de uma aritmética paleolítica, associada ao fato de que povos caçador-coletores têm
pouca ocasiões em que necessitam seu emprego, devemos proceder com cautela,
aguardando comprovações adicionais de sua realidade.

NOTAS AO CAPÍTULO VI

1. Descrição do Rádio
• Grupos de pedras são demasiado efêmeros para conservar informação: por isso o homem pré-
histórico às vezes registrava um número fazendo marcas em um bastão ou pedaço de osso.
Poucos desses registros existem hoje, mas na Tchecoslováquia foi achado um osso de lobo com
profundas incisões, em número de cinqüenta e cinco; estavam dispostas em duas séries, com
vinte e cinco numa e trinta na outra, com os riscos em cada série dispostos em grupos de cinco.
Tais descobertas arqueológicas fornecem provas de que a idéia de número é muito mais antiga
do que progressos tecnológicos como o uso de metal ou de veículos com rodas. Precede a
civilização e a escrita, no sentido usual da palavra, pois artefatos com significado numérico, tais
como o osso acima descrito, vêm de um período de cerca de trinta mil anos atrás (BOYER;
1968, 1974, p.3).

• ...Cinqüenta e cinco incisões, em grupos de cinco, foram cortadas no osso. As primeiras 25 são
separadas das incisões remanescentes por uma de comprimento dobrado. ... Nós podemos
reconhecer neste registro pré-histórico versões rudimentares de dois importantes conceitos
matemáticos. Um é a idéia de uma correspondência um-a-um entre os elementos de dois
diferentes conjuntos de objetos, neste caso entre o conjunto de incisões e o conjunto do que
for que seja que o homem pré-histórico estivesse contando. O outro é a idéia de base de um
sistema de numeração. O arranjo das incisões em grupos de 5 e de 25 indica um compreensão
rudimentar de um sistema de numeração de base 5 (BUNT, JONES, BEDIENT; 1976, 1988, p.2,3).

• ... De cerca de cinco mil anos depois [30.000 anos atrás] nós temos uma tíbia [sic] de um jovem
lobo, encontrada na Tchecoslováquia, a qual contém 57 [sic] incisões profundamente cortadas
e agrupadas por cincos. ...Tais artefatos representam um avanço distinto, um primeiro passo
para a construção de um sistema de numeração, onde a contagem de objetos em grupos é
suplementada por registros permanentes dessas contas (JOSEPH; 1991, 2000, p.24).
• As mais antigas evidências arqueológicas datam da assim chamada era Aurignaciana (35.000-
20.000 a.C.) e portanto aproximadamente contemporâneos do homem de Cro-Magnon.
Consistem de diversos ossos, cada qual ostentando marcas regularmente espaçadas, os quais
foram principalmente encontrados na Europa Ocidental. Entre esses há um rádio de um lobo,
marcado com 55 incisões em duas séries de grupos de cinco. Foi descoberto por arqueólogos
em 1937, em Dolní Vĕstonice na Tchecoslováquia, em sedimentos datados de
aproximadamente 30.000 anos de idade. O propósito dessas incisões permanece misterioso,
mas esse osso (cujas marcas são sistemáticas, e não artísticas) é um dos mais antigos
documentos aritméticos que chegaram até nós. Claramente demonstra que naquele tempo
seres humanos eram não somente capazes de conceber número em um sentido abstrato, mas
também de representar número em relação a uma base. Senão, pois, porque as incisões teriam
sido agrupadas em uma forma tão regular [em grupos de cinco], em vez de uma simples série
contínua? (IFRAH; 1994, 2000, p. 62)

NOTAS DE AGRADECIMENTOS

I. Agradecemos ao Dr. Jiri Svoboda por suas úteis indicações, que nortearam o caminho a
percorrer. Agradecemos em especial ao Dr. Martin Oliva, do Instituto Anthropus, por seu
valioso auxílio, sem o qual não seria possível a execução do estudo sobre o rádio de Dolní
Vĕstonice incluído neste capítulo.
II. Não podemos deixar de registrar nossos mais sinceros agradecimentos ao Dr. Antonio
Quirino de Oliveira, Frei Eduardo, por ter nos chamado a atenção para os simbolismos da
expressão kārat berit e do antigo ritual da aliança, bem como ao seu singular paralelismo com as
funções das talhas numéricas. Frei Eduardo é um notável lingüista, que domina o latim, o grego,
o hebraico, o francês, inglês e o espanhol, além de ter estudado aramaico e escrita cuneiforme.
Participou da Tradução Ecumênica da Bíblia, traduzindo Juízes e Daniel. Estudou arqueologia,
tendo participado de escavações em Israel (Siquém e Quifer), pelo American School of Oriental
Research e Hebrew Union College.
CAPÍTULO VII

ORIGENS DO MISTICISMO NUMÉRICO

Tudo dispuseste com medida, número


e peso.

Sab., 11, 20.

I. TUDO É NÚMERO

Preliminares - Pitágoras e sua escola

É notoriamente conhecida a posição da escola pitagórica, de que tudo é número;


neste capítulo examinaremos as origens dessa concepção.

Pitágoras de Samos, indubitavelmente, constitui personagem extremamente


importante para o desenvolvimento da Matemática, talvez o primeiro matemático puro
registrado pela história. Relativamente pouco se sabe sobre a sua vida ou sobre as suas
realizações matemáticas. O transcorrer do tempo conferiu-lhe proporções míticas,
tornando difícil joeirar o lendário do histórico. Mesmo biografias antigas, meritórias
pelo seu uso de fontes originais, hoje incompulsáveis, devem ser lidas cum grano
salis18, pois lhe atribuem poderes quase divinos, em tentativa de apresentá-lo como um
semideus.

A escola que criou era permeada por uma mescla de ciência e religião, e
alternava espírito científico com misticismo. Seu código de ética pregava o segredo de
sua doutrina, talvez para valorizar seus ensinamentos perante a comunidade. Essa aura
de mistério, que caracteriza a figura de Pitágoras, originou-se na antigüidade,
prevalecendo até o presente.

18
Com um grão de sal, isto é, com uma pitada de cautela.
Pitágoras nasceu em torno de 570 a.C.. O pai, Mnesarco, era gravador de gemas,
mercador proveniente de Tiro; a mãe, Pitais, era nativa de Samos. Pouco se sabe sobre a
sua educação, exceto que foi aluno de Ferecides. Quando tinha entre 18 e 20 anos
visitou Tales, então de idade avançada, em Mileto. Anaximandro, aluno de Tales,
lecionava nesta cidade, tendo Pitágoras presenciado suas preleções. Tanto Tales quanto
Anaximandro contribuíram para desenvolver o seu interesse em matemática e
astronomia.

Em cerca de 535 a.C. visitou o Egito, atendendo a uma sugestão de Tales.


Provavelmente levou carta de recomendação de Polícrates, tirano que controlava Samos,
e que mantinha alianças com a terra do Nilo. Ali visitou muitos templos, participando
de discussões com os sacerdotes. É possível que muitos dos ensinamentos sobre
costumes adotados pela sua escola, bem como questões de geometria, tenham sido
coletados nesta viagem.

Cambises II, rei da Pérsia, invadiu o Egito em 525 a.C.. Polícrates desistiu de
sua aliança com os faraós e enviou 40 navios para reforçar a armada persa. Os persas
venceram a batalha de Pelésio, no delta do Nilo, e capturaram Menfis e Heliópolis,
derrotando as forças egípcias. Pitágoras foi feito prisioneiro e levado para a Babilônia. É
possível que nesta ocasião tenha tido conhecimento do teorema que leva o seu nome, o
qual já era conhecido dos babilônios mais de mil anos antes.

Em cerca de 520 a.C. Pitágoras retornou a Samos. Logo após fez uma viagem a
Creta, para estudar seu sistema de leis. De volta a Samos, estabeleceu uma escola, que
denominou Semicírculo. Aproximadamente em 518 a.C. viajou para o sul da Itália, onde
fundou uma sociedade filosófica e religiosa em Crotona.

Esta sociedade contava com dois círculos de seguidores. O interno, cujos


adeptos eram conhecidos como mathematikoi, ou estudantes, viviam permanentemente
na sociedade, não tinham posses pessoais e eram vegetarianos. Eram ensinados
pessoalmente por Pitágoras. Já os do círculo exterior, os akousmatikoi, os ouvintes ou
aforistas, viviam nas próprias casas, freqüentando a sociedade apenas durante o dia. A
estes era permitido terem posses e não havia restrições quanto ao seu regime alimentar.

Neste período havia muitos ritos cercados de mistério, boa parte com origem no
oriente, que prometiam aos seus seguidores vida eterna. Para citar alguns, lembramos os
profetas órficos, que circulavam entre a Itália e a Grécia; o culto de Dionísio, onde
homens e mulheres mergulhavam em êxtases selvagens. Um modo mais pacato de se
obter a eternidade era por meio da iniciação nos mistérios de Demeter e Perséfone, em
Eleusis.

Todos esses cultos começavam com purificações rituais, para liberar a alma dos
eflúvios terrenos, para então aspirar à unidade com o divino. Havia então um
renascimento na divindade, e assim ganhava-se a vida eterna.

Os pitagóricos praticavam ritos de purificação e de iniciação, bem como


adotavam estilos de vida monásticos, ascéticos, o que também era comum em outros
cultos. O que os distinguia dos demais era o caminho que propunham para a elevação da
alma e comunhão com Deus, que era principalmente por meio da matemática. Deus era
a unidade e ordenara o universo por meio de números. O mundo era a pluralidade e
consistia em elementos contrastantes. É a harmonia que restaura a unidade entre as
partes contrastantes, moldando-as em um cosmos uniforme. Ela é divina, e consiste em
razões numéricas. Quem dominava esta harmonia numérica adquiria caráter divino e
imortal. É dentro desta doutrina mística que se desenvolveu a ciência exata dos
pitagóricos.

Em 513 a.C. Pitágoras retornou a Delos, pois fora informado de que seu antigo
professor, o sírio Ferecides, estava agonizando. Ali permaneceu por alguns meses, até o
sepultamento do mestre.

Por volta de 510 a.C. irrompeu uma guerra entre Crotona e uma poderosa cidade
vizinha, Sibaris. Pitágoras parece ter-se envolvido, de alguma forma, na disputa. Sibaris
foi derrotada e seu território incorporado ao Estado crotonense.

Em torno de 508 a.C. um aristocrata crotonense, chamado Cílon, incitou uma


multidão contra a sociedade pitagórica. Pitágoras se refugiou em Metaponto, onde se
difundiu um boato acerca do seu suicídio; porém muitas autoridades antigas afirmam
que ele morreu bastante idoso. Pitágoras, em 508 a.C., teria pouco mais de sessenta
anos, o que não justificaria essas afirmações. Resta buscar, portanto, comprovações da
sua sobrevivência após os calamitosos eventos desta data. A data da sua morte é,
portanto, uma questão ainda em debate.
O pitagorismo sofreu eclipses periódicos, como os provocados pela revolta de
Cílon e a posterior, mais grave, de 450 a.C., quando a sociedade foi dispersa pela Itália;
porém o movimento prosseguiu neste país até o ano 300 a.C., quando Aristoxeno entrou
em contacto com os remanescentes da comunidade, que foi sucessora direta da
sociedade de Crotona, em Tarento.

Durante os séculos III e II a.C. os pitagóricos levaram uma vida ascética, errante.
No século I antes da nossa era, quando os romanos já tinham conquistado quase todos
os territórios helenísticos, o pitagorismo mais uma vez se tornou uma força expressiva
no florescente Império Romano.

Inúmeras religiões orientais, como por exemplo o judaísmo alexandrino e a


religião egípcia, que tinham sofrido influência da filosofia grega, garimpavam
argumentos racionais, extraídos dos ensinamentos pitagóricos, em defesa de crenças,
muitas vezes absurdas e irracionais.

É a época dos pseudo-ensinamentos de Hermes Trimegisto, repletos de idéias


pitagóricas, com tintas de religião egípcia, ou de figuras semicharlatanescas, como
Apolônio de Tiana, que afirmava ser um avatar de Pitágoras.

Em Roma, Ovídio e Nigídio Fígulo reavivaram o interesse pela filosofia de


Pitágoras. Nicômaco de Gerasa, que viveu no século II d.C., redigiu interessante estudo
sobre a matemática dos pitagóricos e escreveu uma “Vida de Pitágoras”. Nesse mesmo
século surgiu Numênio de Apaméia, o qual sustentava que Platão era apenas mais um
pitagórico, combinando, assim, os ensinamentos desses dois filósofos.

No século seguinte, Plotino e Amélio, discípulos de Numênio, ajudados por


obras de Platão, contribuíram para esclarecer teorias metafísicas de Pitágoras. Porfírio,
discípulo de Plotino, também escreveu outra importante biografia de Pitágoras.

Esses sábios, juntamente com outros, como Moderato, Teon, Crônio e Trásilo,
deram novo ímpeto ao pitagorismo, originando o movimento renovador hoje conhecido
como neopitagórico. Gorman (1979) argumenta, com razão, que é difícil discernir se
são neopitagóricos ou neoplatônicos, em virtude das similitudes e complementaridades
dessas concepções filosóficas.
Quando os cristãos assumiram, no século IV d.C. o controle do estado romano,
os pitagóricos tornaram-se uma minoria perseguida, porém suas idéias continuaram a
ser disseminadas na antiga escola de Platão, a Academia de Atenas, e em Alexandria.
Essa situação perdurou até o século VI, quando Justiniano, o Imperador do Oriente,
fechou a Academia e proibiu o ensino de filosofias e doutrinas pagãs.

Por um período de mil e duzentos anos, do século VI a.C. ao século VI d.C., as


doutrinas de Pitágoras foram pregadas abertamente. Depois, a Idade das Trevas se
encarregou de obliterar esse conhecimento. Somente o Renascimento Italiano conduziu
a um renovado interesse pelo pensamento pitagórico, com a redescoberta dos escritos
clássicos.

A principal doutrina da filosofia pitagórica consistia na crença de que tudo era


número, ou assemelhava-se e harmonizava-se a ele. Jâmblico (c.250-325 d.C.) registra,
em sua “Vida de Pitágoras”, que o mestre repetia freqüentemente aos seus discípulos:
“Todas as coisas se assemelham ao número” (GUTHRIE, 1988, p.97; GORMAN, 1979,
p. 146). Esta é a origem do conhecido mote da escola pitagórica “Tudo é número”.
Iremos, na seqüência, procurar investigar as origens dessa concepção.

Nominação

A nominação de um fenômeno sempre antecede o trabalho intelectual da sua


compreensão e justificação. Esse é o processo que transforma o mundo de impressões
sensoriais, que compartilhamos com os animais, em um mundo próprio do homem, isto
é, cognitivo, um universo de idéias, explicações e significados. Toda a cognição teórica
tem como ponto de partida um mundo pré-moldado pela linguagem, observa
CASSIRER (1953), desse modo qualquer cientista, historiador, filósofo ou religioso
lida com seus objetos somente após a linguagem tê-los apresentado.

O liame original entre a lingüística e a consciência mítico-religiosa é expresso no


fato de que estruturas lingüísticas aparecem também como entidades míticas; a Palavra
torna-se então uma espécie de força primária, da qual todas as ações e seres provêm
(CASSIRER, 1953). A noção de que nome e essência de um dado ser estão
intrinsicamente relacionados, mediante uma correspondência necessária e interna, e que
nome não apenas denota mas realmente é o próprio ser, bem como a potência do ser real
está contida em seu nome, eis o que parece um dos conceitos fundamentais da
consciência mítico-religiosa primitiva.

Doutrina do Nome

Os mitos de criação geralmente procuram justificar a origem do universo, dos


seres vivos e da matéria em geral como produto da intervenção divina. Entre as formas
dessa intervenção podemos identificar duas, de interesse mais próximo. A primeira diz
respeito à criação como produto de uma ação divina: Deus fez (fiat). A segunda é a
criação pela palavra: Deus disse. Bastava ao Deus criador estabelecer um plano, emitir
uma palavra e pronunciar um nome para que a coisa prevista viesse a existir.

Essa, em síntese, era o que se pode denominar, seguindo CONTENAU (1950,


p.167), de doutrina do nome: uma coisa não existe até que receba, por intervenção
divina, um nome. Em conseqüência, se uma coisa não porta um nome, ela não existe.
Por coisa (res) entenderemos qualquer objeto material, animado ou inanimado. Essa
doutrina encontrava-se amplamente difundida por todo o Oriente Próximo antigo. Pode-
se suspeitar que suas raízes provavelmente mergulham no neolítico dessa região,
imersas na pré-história.

Bíblia

Os estudiosos identificam pelo menos três correntes principais de diferentes


tradições que contribuíram para a composição literária da Bíblia cristã. A primeira, a
tradição javeísta, é assim chamada porque emprega o nome divino IAHWEH desde a
narração da criação. Teve origem provavelmente em Judá e talvez tenha sido escrita, no
essencial, durante o reino de Salomão.

A segunda, a tradição eloista, emprega o nome ELOHIM para designar Deus.


Estima-se ser mais recente que a javeísta, e em geral é relacionada às tribos do norte.
A terceira, a tradição sacerdotal, se preocupa com as leis, a organização do
santuário, sacrifícios e ofertas. Exprime o espírito legislativo e litúrgico. Esta tradição se
deve aos sacerdotes do templo de Jerusalém, embora preserve elementos antigos.
Salomão iniciou a construção do templo de Jerusalém logo depois de 970 a.C. Nesta
tradição, a criação obedece a um esquema semanal, litúrgico, tendo Deus descansado no
sétimo dia, o sábado, dia do repouso sabático.

A primeira descrição da criação, Gênesis 1,1 – 2,4, pertence à tradição


sacerdotal, a segunda descrição (2,4 b –3,24) é de lavra da tradição javeísta.

As duas formas de intervenção divina mencionadas estão bem documentadas na


tradição bíblica cristã, no Gênesis: "Deus fez o firmamento, que separou as águas que
estão sob o firmamento das águas que estão acima do firmamento, e Deus chamou ao
firmamento "céu""(Gen:1,7 - grifo nosso). É a criação como produto de ação: Deus
primeiro fez (criou) o firmamento, depois nominou-o: céu. Outros exemplos da criação
pela ação figuram nos versículos 16, os astros; 25, os animais terrestres; 26, o homem.
A criação pela ação está mais bem explicitada na segunda descrição da criação, narrada
nos versículos Gên.:2, 4b-25, possivelmente uma tradição mais antiga.

A criação pela palavra aparece em diversas outras instâncias, como em Gên.:


1,3: "Deus disse: "Haja luz" e houve luz. Deus viu que a luz era boa, e Deus separou a
luz e as trevas. Deus chamou a luz "dia" e as trevas "noite" (grifo nosso). Observe-se
que primeiro Deus criou a luz por meio da palavra (Deus disse), denominando-a
posteriormente: luz.

A criação pela palavra reaparece em Salmos 33,6:

“O céu foi feito com a palavra de IAHWEH,

e o seu exército com o sopro de sua boca.”

Este salmo faz parte da coleção atribuída ao rei David (c.1010-970 A.C.),
embora não se tenha certeza acerca da data de sua composição.
Talvez a mais notável expressão do poder criador da palavra apareça no
Evangelho de São João, versículo 1,1:

"No princípio era o Verbo


e o Verbo estava com Deus

e o Verbo era Deus".

Outras culturas primitivas

Paralelo direto encontramos entre as tradições dos índios Uitoto: “No princípio, a
Palavra deu ao Pai sua origem” (PREUSS, apud CASSIRER, 1953, p.45). Do mesmo
modo, encontramos na Índia a exaltação do poder da Palavra mesmo acima do poder
dos deuses: “Da Palavra falada todos os deuses dependem, [e] todos os animais e
homens; na Palavra vivem todas as criaturas...; a Palavra é o Imperecível, o
primogênito da lei eterna, a mãe dos Vedas, o umbigo do mundo divino” (Taittirya
Brahm., 2,8,8,4; apud CASSIRER, 1953, p.48).

Entre os polinésios também encontramos mitos de criação em que o poder de


criação da Palavra é posto em evidência. Segundo um desses mitos, no início só
existiam as Águas e as Trevas. Io, o deus supremo, separou as águas pelo poder do
pensamento e pelo poder das suas palavras, criando assim o céu e a terra. Ele disse: “
Que as Águas se separem, que se formem os Céus, que a Terra surja”(ELIADE, 1963,
p.32). Outro mito similar envolve o deus Tananoa. A idéia básica é que Tananoa induz
o processo de criação pela remoção do silêncio original (Mutuhei) através da produção
da Palavra (tom) (CASSIRER, 1953, p.46).

Como a Palavra é a primeira a aparecer, também é considerada o poder supremo.


Não poucas vezes, culturas primitivas consideraram o nome da divindade, e não o
próprio deus, como fonte real de eficácia.

Mesopotâmia
O Gênesis conta a história de Abraão, nascido em "Ur dos caldeus"
(Gên.:11,28). Sabe-se hoje que Ur era cidade da Suméria. Os ancestrais de Abraão eram
nômades semitas que habitavam a Mesopotâmia. Gên.12,1 narra que Deus ordenou a
Abraão sair da Mesopotâmia para a terra que lhe mostraria. É geralmente aceito que
Abraão passou a viver em Canaã por volta de 1850 a.C., o que nos permite afirmar que
os relatos da criação descritos no Gênesis provêm de tradições que remontam, no
mínimo, ao final do terceiro milênio antes da nossa era, e que podem ter sido
influenciadas por narrativas similares sumérias.

Aos Sumérios é geralmente creditada a invenção da escrita, por volta de 3200-


3000 AC. Imediatamente em seguida, os seus vizinhos Elamitas desenvolveram a sua
escrita, que mostra clara influência da suméria.

A visão dos povos mesopotâmicos acerca do sobrenatural é uma mistura


inextricável de origem suméria e acádica, influenciada por crenças de uma população-
substrato de origem desconhecida. Como o eminente sumerólogo S. N. Kramer já
sublinhara, é muito possível que haja "traços de influência semítica mesmo na mais
antiga mitologia suméria, tanto quanto são encontrados no caso da língua suméria"
(apud HEIDEL, 1963, p.12). Isto reforça as conexões entre os mitos de criação sumérios
e os semitas hebraico - bíblicos.

Muito da literatura suméria foi escrito por falantes de acádio, quando o sumério
já era língua extinta. Os acadianos falavam uma língua semítica, podendo ter estado
presentes na Mesopotâmia desde o tempo em que os sumérios chegaram, ou se
haverem difundido pela região logo após. As suas culturas se mesclaram e devem ter
vivido conjuntamente de forma pacífica, gradualmente tornando-se parte integral da
cultura suméria. Sobre tabletes sumérios de argila, encontrados em Fara, datados de
2900-2800 a.C., nomes semíticos (acádicos) são atestados pela primeira vez. Pode-se
conjecturar, por conseguinte, que os antepassados de Abraão mantinham relações com
eles.

O mito de criação sumério Enûma Elish principia com as seguintes palavras:

1. "Quando no alto o céu (ainda) não tinha sido nomeado;


2. (E) abaixo a terra não tinha (ainda) sido chamada por um nome;"
(HEIDEL, p.18).

Isto mostra que para os sumérios as coisas (o céu, a terra), só passavam a existir após
receberem um nome: é o poder criador da palavra. Os acadianos tinham uma
expressão para designar uma coisa qualquer: "Tudo isto (aqui) que porta um nome"
(CONTENAU, p.167).

HEIDEL (1963) considera que o poema que ilustra esse mito, na forma como o
conhecemos, foi composto provavelmente durante a primeira dinastia babilônica (1894-
1595 A.C.), afirmando, porém, que o mito está indubitavelmente baseado na
cosmologia suméria.

Nomes e números

A propriedade que os números possuem de poderem ser combinados de vários


modos, de se poder escrever cada um de várias maneiras, sugere possuírem algo de
sagrado, induzindo a considerá-los como uma espécie de língua universal, capaz de tudo
expressar. A associação de números com nomes é muito antiga na cultura suméria.

Uma das primeiras manifestações do poder dos números encontra-se no panteão


sumério, onde existe uma hierarquia numérica dos deuses. Ao deus supremo, o deus do
céu An(u), associava-se o número "perfeito", a unidade (base) 60, o que nos permite
inferir a antigüidade deste sistema. A série numérica atribuída aos deuses, que traduz
também a sua importância hierárquica dentro do panteão sumério, é a seguinte (cf.
DHORME, 1949; IFRAH,1981, p.310),

An (Anu), deus supremo, deus do céu, 60

Enlil, deus da terra, filho de An, 50

Ea (Enki), o deus das águas, 40

Sin (Nannu), deus-lua, 30


Shamash ((Utu), deus-sol 20

Ishtar (Inanna), deusa-vênus, 15

Nergal, deus dos infernos 14

Marduk, e também Gibil e Nusku 10

O panteão sumério-babilônico, com os símbolos e números associados aos deuses,


pode ser apreciado nas figuras seguintes.

Fig.7.1 Símbolos de An 60 e Enlil 50 Ea 40

Fig.7.2 Sin 30 Shamash 20 Ishtar 15


Fig.7.3 Nergal 14 Marduk 10

Os mesopotâmios tiveram a idéia de atribuir um valor numérico aos signos de


seu silabário, de modo que todo o nome pudesse ser expresso por um número. A
criptografia denomina correspondências um-a-um entre sinais e numerais de
“substituição cifrada”. Por exemplo, Sargão II (722-705 a.C.), rei da Assíria, por
ocasião da construção do palácio de Khorsabad, procurou criar um elo entre sua
identidade e a muralha que o defendia, fazendo inscrever: "De 16.283 cúbitos, o número
de meu nome, eu fiz a medida de sua muralha" (RUTTEN, p.197, grifo nosso). Deste
modo estabeleceram a igualdade nome = número.

Dada a importância desta inscrição, convém examiná-la com maior


profundidade. É conhecida na literatura como a famosa Nameninschrift (inscrição do
nome), e provém de um cilindro, mas também foi encontrada inscrita em um touro e em
outros objetos. Reza o seguinte:

No mês de Abu, o mês do descenso do deus fogo, destruidor da vegetação [cultivada] crescente,
quando [se] assenta a plataforma de fundação para a cidade e a casa. Eu assentei a muralha de
fundação, eu construí o seu trabalho de tijolos. Templos substanciais, construídos firmes como as
fundações da eternidade, eu construí neste ponto para Ea, Sin, Nergal, Adad, Shamash, Urta.
Palácios de marfim, amoreiras, cedros, juníperos,e madeira de pistache eu construí ao seu
comando divino para minha moradia real. Um bit-hillani [?], uma cópia de um palácio hitita
[sírio], eu construí em frente de suas portas. Vigas de cedro e cipreste eu assentei para os
telhados. De 16.283 cúbitos, o número de meu nome, eu fiz a medida de sua muralha,
estabelecendo a plataforma de fundação sobre o leito de rochas da alta montanha (FOUTS,
1994).
A interpretação desta inscrição permanece em debate. Não parece uma hipérbole
literária com números, ou seja, o embelezamento intencional de um número com o
propósito de glorificar determinado monarca. Isto era um recurso literário relativamente
comum na Mesopotâmia daqueles tempos. Por exemplo, podemos citar as inscrições de
Rimush e de seu pai, Sargão I (c. 2.350 a.C.). Na de Rimush o número de convidados
para festejar (54.016) é convenientemente cerca de dez vezes o número de convidados
de seu pai. Um fenômeno similar pode-se constatar durante os reinos de Shalmanasar I
(c. 1.275-1.245 a.C.) e de seu sucessor Tukulti-Ninurta I (c.1.245-1.208). A inscrição
do primeiro cita a captura de 14.400 prisioneiros, enquanto o segundo afirma que
capturou 28.000, convenientemente o dobro do antecessor.

Outro notável exemplo poético de hipérbole literária numérica encontramos em


uma inscrição de Ugarit:

Deixe seu poderoso exército ser numeroso,

Trezentos dez-milhares.

Conscritos sem número,

Soldados para além de contagem.

Notem-se os termos hiperbólicos “sem número” e “para além de contagem”, em


um paralelismo sinônimo de 3.000.000.

O acádico é uma língua semita, juntamente com o hebreu, o árabe, o aramaico


etc. Ele tem três dialetos: o acádico antigo, o assírio e o babilônico. Pode-se dizer,
portanto, que qualquer coisa escrita em babilônico ou assírio está também escrita em
acádico. Os falantes do acádico emprestaram e adaptaram o silabário sumério para a sua
escrita.

Existe pequeno número de textos, denominados textos numérico-silábicos, que


estabelecem correspondência entre os sinais do silabário (A), com números. Entre esses
textos encontram-se os registrados nos tabletes: W22825+22808, Rm.806, BM
46603+46609, BM 47732+48191, BM 77233, MMA 86.11.364.
Estudando esses textos, PEARCE (1.996) mostrou o seguinte: 1) existe um
sistema consistente de atribuir correspondência entre numerais e sinais do silabário (A);
2) a presença de tabletes, que preservam essa paridade, em diferentes sítios, argúi contra
a existência de um “conhecimento secreto”.

Já no terceiro milênio encontramos o aparecimento em textos de valores


numéricos para sílabas, principalmente na ortografia de nome de deuses e de elementos
em nomes pessoais, relacionados a essas divindades. O corpus de inscrições de Susa
proporciona alguns dos mais antigos exemplos encontrados no segundo milênio. Nas
inscrições de Kidinû, cerca de 1.465 a.C. , aparece o valor 3,20 como o equivalente
numérico de “rei”. Também figuram 15 - 2,30 e 1,20 como equivalentes numéricos
para “direita”, “esquerda” e “trono”, respectivamente. No primeiro milênio,
encontramos numerais freqüentemente representando nomes divinos.

Embora seja difícil identificar o propósito para o qual esses textos numérico-
silábicos foram compilados, bem como o seu uso na prática cotidiana do escriba, eles
certamente contribuíram para a preservação e manutenção da tradição de ensino dos
escribas, especialmente nos princípios do primeiro milênio em geral, e no período
Seleucida em particular. A cópia fiel de textos tradicionais era parte integrante da
formação do escriba.

Heródoto conta que os gregos aprenderam a escrever com os fenícios. Os gregos


denominam suas letras de phoinikeia, isto é, coisas fenícias; a derivação da letras gregas
do alfabeto fenício é confirmada por uma série de similaridades nos seus nomes, no
modo em que eram escritas e pela sua ordenação, de alpha a tau. As mais antigas
inscrições gregas, rabiscos em pedaços de cerâmica, datam de 730 a.C., embora os
gregos já praticassem a escrita algum tempo antes.

No século VI a.C., os gregos desenvolveram um sistema de numeração escrita de


1 a 24 por meio de letras alfabéticas, conhecido como ático, baseado no princípio
acrofônico, segundo o qual a letra inicial da palavra para o número era seu numeral.
Nesse sistema, os números de um a quatro eram representados por riscos verticais
repetidos; para o cinco adotou-se um novo símbolo, a primeira letra da palavra grega
para cinco: pente (Π ou Γ). Para números de seis a nove combinava-se o símbolo Γ com
riscos unitários verticais: Γ era sete. Para as potências positivas da base dez,
empregava as letras iniciais das palavras correspondentes: ∆, para deka, dez; H para
hekaton, cem; X para khilioi, mil; M para myrioi, dez mil.

Após a introdução das letras minúsculas na Grécia, surgiu o sistema alfabético


ou jônio, onde a correspondência dos números era feita com as letras minúsculas.

Como a escrita grega era alfabética, herança dos fenícios, e não silábica, como a
babilônica, o passo natural era associar cada letra a um número, como já os babilônios o
tinham feito, associando cada sílaba a um número. O passo cognitivo é o mesmo:
associar cada signo da sua escrita a um número.

Os Hebreus também adotaram um sistema acrofônico similar. Os seus numerais


usam as vinte e duas letras do seu alfabeto, na mesma ordem das do alfabeto fenício, do
qual elas derivam, para representar, de aleph a tet, as primeiras nove unidades; então de
yod a tsade, as nove dezenas; finalmente de kof a tav, as primeiras quatro centenas.

Fig.7.4 Sistemas de numeração grego (jônio) e hebreu

Esses sistemas foram as sementes de grande parte do misticismo numérico


posterior, divulgado entre os gregos principalmente pela escola pitagórica, constituindo
a raiz da gematria e da cabala hebraica, e da numerologia moderna.
Egito

Encontramos também a doutrina do nome entre os egípcios. A importância da


preservação do nome entre eles era fundamental. O filho que ajudava a manter vivo o
nome do pai e, em conseqüência, a sua memória, cumpria meritória obrigação.
Acreditava-se que o corpo físico do homem era acompanhado, de um lado, por seu Ka,
ou duplo e, por outro, pelo seu nome, como uma espécie de duplo espiritual. O nome
era parte essencial do indivíduo; o seu apagar correspondia à sua destruição. Sem nome
ninguém poderia ser identificado no julgamento final, assim como o homem somente
passava a existir nesta terra após haver sido pronunciado o seu nome. Do mesmo modo,
a vida futura só podia ser atingida depois que os deuses do mundo de além-túmulo se
tivessem familiarizado com ele e pronunciado o seu nome.

Sir E. A. Wallis Budge nos ensina que o mito da criação egípcio, escrito no
papiro de Nesi-Amsu, relata que, antes de que o mundo e tudo o que nele se contém
começasse a existir, só havia o grande deus Neb-er-tcher, pois ainda nem mesmo os
deuses tinham nascido. Chegado o tempo em que ao deus caberia criar todas as coisa,
disse: "Produzi (i.e., criei) a minha boca, pronunciei o meu próprio nome como palavra
de poder e, assim, me expandi sob as evoluções do deus Quépera (=Neb-er-tcher), e
desenvolvi-me a partir da matéria primeva, que produzira multidões de evoluções desde
o princípio do tempo"(BUDGE I, p.104). Para os egípcios, portanto, a criação resultaria
da pronunciação do nome do deus Neb-er-tcher, ou Quépera, por ele mesmo, notável
caso de autogeração. Em outra versão este deus se confunde com Osíris.

No Capítulo XVII do Livro dos Mortos, encontramos o seguinte enunciado:


"Sou o grande deus Nu, que pariu a si mesmo, e fez do seu nome a companhia dos
deuses" (BUDGE I, p.105). Na seqüência, é perguntado: "Que significa isto ?" ou "Que
é isto? " Ao que é respondido: "É Ra, criador dos nomes dos seus membros, que veio a
existir na forma dos deuses que estão no séquito de Ra". Pode-se constatar que todos os
"deuses" do Egito não passavam de personificações dos nomes de Ra, cada deus era um
dos seus "membros"; o nome do deus era o próprio deus. Se o egípcio morto não
conhecesse os nomes dos deuses e demônios do mundo inferior, passaria por maus
bocados, com o bloqueio dos seus caminhos e portas fechadas, até que forças hostis lhe
dessem cabo; por isso, como lembrete e guia condutor da sua trajetória de além-mundo,
o egípcio procurava levar para o seu túmulo uma cópia ou resumo do Livro dos Mortos.

O nome de um egípcio que fosse objeto de maldição acarretava o mal ao seu


dono, como o que fosse objeto de benção ou de prece era agraciado com muitas coisas
boas. Esta é uma concepção muito difundida entre sociedades primitivas, mesmo na
nossa era. É costume, em muitas tribos, os aborígines possuírem dois nomes, um
verdadeiro, que deve ser mantido no máximo segredo, e outro de uso habitual,
cotidiano. Acredita-se que, se um feiticeiro vier a conhecer o nome verdadeiro de
alguém, terá grande poder sobre esta pessoa, podendo causar-lhe malefícios, lançando
feitiços e sortilégios sobre o seu nome. Isso mostra que a identidade entre o nome de
uma pessoa e a própria pessoa é noção extremamente difundida em todo o globo, em
todos os tempos. Mostra como a doutrina do nome pode ser considerada quase como
concepção arquetípica, enraizada no inconsciente de significativa parcela da
humanidade.

Outras civilizações

Em Roma, quando o conceito de “pessoa legal” foi formalmente articulado,


esse status foi negado a certos sujeitos físicos, a quem também foi negada a posse
oficial de um nome próprio. Por conseguinte, sob a lei romana, um escravo não podia
ter um nome legal, porque não era enquadrado como “pessoa legal” ao amparo da lei.

As cidades antigas possuíam divindades protetoras, cujos nomes eram


ciosamente guardados. Quando as legiões romanas sitiavam uma cidade, os sacerdotes
apressavam-se em dirigir orações ou encantamentos à divindade protetora do lugar,
convidando-a a se afastar ou a passar aos romanos, assegurando-lhe que seria bem
tratada, ou melhor do que anteriormente.

O nome da principal divindade protetora de Roma estava envolto no mais


profundo mistério. Temia-se que os seus inimigos pudessem atrai-la, fazendo-a
abandonar Roma. Do mesmo modo a própria cidade possuía um nome secreto, que
jamais poderia ser pronunciado ou escrito, nem mesmo nas cerimônias religiosas, para
afastar conjurações malévolas. A menção do nome da divindade ou do nome secreto da
cidade acarretava a pena de morte. Tão escrupulosamente foi isso observado, que até
hoje se ignora o nome secreto da cidade. Já se conjecturou que talvez fosse Quiris, de
onde advém quirites, cidadão romano, ou então Valentia.

Para os israelitas do antigo testamento, o nome de uma pessoa não apenas a


designa, mas determina sua natureza; uma mudança em seu nome marca uma mudança
em seu destino. Para alterar o fado de Abrão e de sua esposa Sarai, Deus troca seus
nomes para Abraão e Sara (cf. Gen 17, 5; 17, 15). Gen 35,10 registra que Deus mudou o
nome de Jacó para Israel, reordenando seu destino, para assinalar que sua descendência
constituiria a nação de Israel.

Os Esquimós acreditavam que o homem é composto de três elementos: corpo,


alma e nome.

Os indígenas australianos conservam os seus nomes em segredo, porquanto, se o


inimigo os conhecer, poderá prejudicá-los. Após o primeiro dos ritos de passagem,
cerimônias que lhes conferem direitos de homens maduros, a que se submetem,
abandonam, para sempre, os seus nomes.

Em outras tribos da Austrália Central, além de seu nome próprio, usual, todo
homem, mulher ou criança possuem outro, secreto, conferido pelos anciões. Este só é
conhecido dos membros já iniciados do grupo, e enunciado apenas em ocasiões solenes.
Fora disso, apenas é pronunciado após muitas precauções, para não ser ouvido por
pessoas estranhas ao convívio.

Os povos da Costa dos Escravos, na África, crêem na existência de um liame


real, material entre o homem e o seu nome, acreditando que, por meio deste, pode-se
causar-lhe mal.

Entre as tribos que acreditam que revelar o nome aos estrangeiros lhes concede
poder sobrenatural sobre os seus membros, encontram-se os seguintes: os Araucanos, do
Chile; selvagens da Güiana inglesa; Guamis, do Panamá; Apaches, do Novo México,
Arizona e Texas; Sicsicas ou Blackfeet, da família algonquina.

Já entre os que substituem os nomes indígenas, secretos, pelos dados pelos


europeus, agrupam-se: Navajos, do Novo México; Tonkawes, do Texas; Nishinam, da
Califórnia.
Os indígenas brasileiros, civilizados ou semicivilizados, possuem
freqüentemente dois nomes, sendo que um, o da língua nativa, mantém caráter mais ou
menos reservado, enquanto o outro, o da língua portuguesa, é o que empregam para
gozar das regalias de cidadão no convívio na comunidade. Porém há tribos que
costumam dar aos filhos mais de um nome indígena, como entre os Bororos, do Mato
Grosso, ou ainda os Caingangues, do Paraná.

Entre os Apopocuvas (Guaranis), o nome é como um pedaço da alma do seu


portador, idêntico a ele e, portanto, inseparável. O indígena não “se chama” isso ou
aquilo, na verdade é “isso ou aquilo” (GUÉRIOS, 1956). Os pais, ciosos dos seus
filhos, especialmente quando em contato com estranhos, mantêm os seus nomes em
segredo, atribuindo-lhes alcunhas. Muitas vezes, quando os pais falecem
prematuramente, sem comunicarem aos filhos os seus verdadeiros nomes, estes
permanecem o resto da vida inteira sem os conhecer.

O folclore brasileiro registra vários exemplos de magia simpática, baseados na


onipotência do nome: “escrever o nome de alguém num papel e fazê-lo queimar é
agouro certo”; “colocar o nome escrito [de um desafeto] em um formigueiro ou
cupinzeiro, para que seja destruído”, é infortúnio certo ( CASCUDO).

Na Rússia, costumava-se denominar o recém-nascido de ono, pronome neutro da


terceira pessoa, pelo receio de assalto de espíritos malignos. Talvez seja esse o motivo
de que, em várias línguas, a criança é do gênero neutro. O neutro é o gênero inanimado,
dos seres inertes, desprovidos de fluidos vitais ou alma, portanto, inatingíveis por meio
da magia.

Considerações finais

Como mostramos, a doutrina do nome, de que uma coisa passa a existir quando
recebe um nome, constituía concepção muito difundida entre os povos da antigüidade,
especialmente entre os mesopotâmios. Também estes desenvolveram o conceito de que
nome = número. A doutrina do nome pode ser reformulada assim: uma coisa passa a
existir quando recebe um número = nome. Logo, todas as coisas que existem têm
número. Ora, isso nada mais é do que a doutrina da escola pitagórica: "Tudo (todas as
coisas que existem) é número".
Dificilmente se pode negar a influência mesopotâmica nessa doutrina da escola
pitagórica. Embora a vida de Pitágoras seja pouco conhecida, obscura, envolta em
lendas, relatos tradicionais afirmam que ele estudou no Egito e na Babilônia. Mesmo o
conhecimento do teorema, ao qual o nome de Pitágoras ainda está ligado, de que em um
triângulo retângulo a soma do quadrado da sua hipotenusa é igual à soma dos quadrados
dos seus catetos, provavelmente provém dos babilônios.

Embora minúscula, uma pista dessa influência pode ter sobrevivido. Jâmblico,
um comentarista tardio (c.250-c.325), escreveu uma "Vida de Pitágoras", onde
menciona que entre os pitagóricos havia duas formas de filosofia, praticadas por dois
grupos, os ouvintes ou akousmatikoi e os estudantes ou mathematikoi. A filosofia dos
Ouvintes consistia em palestras, nas quais, segundo Jâmblico, não eram empregadas
demonstrações ou raciocínios lógicos, mas apenas emitidas orientações sobre como as
coisas deveriam serem feitas, ou sobre quais comportamentos deveriam ser adotados.
Eram-lhes apresentados dogmas divinos inquestionáveis que, sob juramento, não
deveriam ser revelados. As palestras eram de três tipos: no primeiro apenas se dissertava
sobre certos fatos; noutro, elucidavam-se estes fatos; no terceiro, prescrevia-se o que
deveria ou não ser feito acerca deles. As palestras subjetivas estudavam a natureza
especial de um determinado objeto, como o exemplo registrado por Jâmblico:

"Qual é a coisa mais sábia?

Número. A próxima coisa mais sábia é o poder de dar nome19." (grifo nosso -
GUTHRIE, 1988, p. 77).

Encontramos aqui a associação entre número e o poder de dar nome,


característico da doutrina do nome, o que pode testemunhar a influência mesopotâmica
sobre a doutrina pitagórica, isso se a tradução e a interpretação empregadas estiverem
corretas, e se Jâmblico preservou fielmente a tradição sobre a questão.

Também nessa região pode localizar-se a fonte para as concepções sobre o


misticismo numérico pelas quais essa escola se tornou conhecida.

19
the naming power.
A influência dos “bárbaros” (egípcios, caldeus, hindus, etc.) sobre as idéias
gregas já era amplamente admitida na antiguidade. Por exemplo, Clemente de
Alexandria (séc. II d.C.- morreu em 215), no seu livro Stromatei (Miscelâneas), em seu
Capítulo XV, cujo título muito sugestivo é “A filosofia grega em grande parte originada
dos bárbaros”, então escrevia:

E é bem sabido que Platão estava perpetuamente celebrando os bárbaros, relembrando que
ambos, ele e Pitágoras, aprenderam a maioria e os mais nobres de seus dogmas entre eles. ...E
refere-se que Pitágoras foi discípulo de Sonches, o arquiprofeta Egípcio; e Platão, de Sechnuphis
de Heliópolis; e Eudoxo, de Cnidius de Konuphis, que também era Egípcio. ...Alexandre, em seu
livro Sobre os símbolos pitagóricos, relata que Pitágoras foi um aluno de Nazaratus, o
Assírio...Assim a filosofia, uma coisa da mais alta utilidade, floresceu na antiguidade ente os
bárbaros, lançando suas luzes sobre as nações. Posteriormente veio para a Grécia. Em suas
primeiras filas estavam os profetas do Egito, e os Caldeus entre os Assírios, e os Druidas entre os
Gauleses; e os Samaneanos entre os Báctrios; e os filósofos dos Celtas; e os Magos da Pérsia,
que anteviram o nascimento do Senhor, e vieram para a terra da Judéia guiados por uma estrela.
Os gimnosofistas hindus estão também nesse número, e outros filósofos bárbaros....

Há, evidentemente, uma mistura heterogênea de diversas tradições antigas, cada


qual com maior ou menor grau de veracidade, que deve ser ponderada com cautela;
porém, a atribuição aos “bárbaros” de significativa parcela da filosofia grega parece
consistente.

Clemente cita a obra perdida De Symbolis Pythagoricis de Alexandre Polyhistor


(fl. ca. 50 a.C.), que colocava as raízes da filosofia grega entre os bárbaros. Alexandre
clamava que a filosofia tinha florescido antes dos gregos entre os profetas do Egito, os
Caldeus da Assíria, os Druidas da Gáulia, os xamãs da Bactria, os philosophati dos
Celtas, e os Magos da Pérsia.

Hoje a influência mesopotâmica e egípcia sobre várias idéias gregas, doutrinárias ou


científicas, é reconhecida. Ver, por exemplo, autores como NEUGEBAUER (1969),
SARTON (1993-Ancient...), FOWLER (1999).

Quanto à criação pela palavra, ATWELL (2000, p. 465) resume bem a opinião
atual sobre a questão:
A criação pela palavra divina era um conceito comum, disseminado no antigo Oriente Próximo.
Não era expressão tardia e refinada da atividade divina na criação; mas já era um conceito vivo
na antiga Suméria. Sua origem parece penetrar profundamente na crença primitiva no poder do
nome e na magia associada às palavras. Assim como uma imagem pode repartir a essência da
coisa que representa, também a palavra pronunciada tem o potencial da coisa que significa. Está
intimamente relacionada com a crença que um ato ritual evoca verdadeiramente a realidade que
ele representa.

II. O Número da Besta e a Tradição Apocalíptica

O número da besta surge no Apocalipse (Revelações) do apóstolo João, 13:18,


prenunciando o aparecimento do Anticristo: “Quem é inteligente calcule o número da
Besta, pois é um número de homem: seu número é seiscentos e sessenta e seis.”

Esse número é, provavelmente, o mais famoso e importante dentro da história da


cristandade. Inúmeras versões já lhe foram dadas e continuam a emergir, mesmo no
presente. Não poucas dessas interpretações vaticinaram desgraças, provações,
ocasionando conflagrações, desalentos e convulsões sociais, com graves
conseqüências para a humanidade.

Ao longo da história vários matemáticos se devotaram ao assunto, em um


determinado momento de suas vidas. Mencionaremos apenas alguns.

John Napier, o inventor dos logaritmos, publicou em 1.593 um caustico e


amplamente lido ataque à Igreja de Roma, intitulado “Uma descoberta integral das
Revelações de João”, no qual propugnava provar que o Papa era o Anticristo e que o
Criador estava disposto a terminar com o mundo entre 1.688 e 1.700. Esse livro
contou com 21 edições, das quais ao menos dez durante a sua vida. Napier acreditava
sinceramente que sua reputação posterior seria devida a esse livro.

O matemático Michael Stifel, amigo de Lutero, “provou” que as letras do nome


do Papa Leão X (LEO DECIMVS) correspondiam ao número da besta, 666. Em 1.528
Lutero conseguiu-lhe um lugar na paróquia de Lochau, onde cometeu o erro de prever
o fim do mundo. Ao se comprovar que estava errado, foi preso e demitido de seu
posto.

Isaac Newton estudou as profecias apocalípticas, dando sua própria interpretação


sobre elas em seu ensaio “Observações sobre as profecias”.

O interesse por esse número é compartilhado não apenas pelos matemáticos mas
também por sua ciência, a matemática. Nas últimas duas décadas houve um
recrudescimento no interesse no mesmo dentro da matemática, talvez incentivado pela
chegada do novo milênio. Vejamos alguns desses desenvolvimentos recentes (α)20 .

Dentro da teoria dos números, notou-se que o número da besta além de ser igual
a soma dos quadrados dos primeiros sete números primos:

2 2 + 32 + 5 2 + 7 2 + 112 + 132 + 17 2 = 666 ,


6 x 6 = 36
também é igual à soma dos 36 primeiros números inteiros: ∑ i = 666 , ou seja,
i =1
é

igual à soma dos números que figuram em uma roda de roleta.

Um número que tenha 666 dígitos é um número do apocalipse. Números do


apocalipse primos são dados por 10 665 + n , para n = 123, 1837, 6409, 7329, 8569,
9663,...

Um número apocalíptico é um número da forma 2n que contenha os dígitos 666.


Os primeiros valores de n que satisfazem ao requerido são n = 157, 192, 218, 229,...

Um número do demônio é um número x no qual os n primeiros dígitos de sua


parte fracionária [frac(x)] somam 666. O número pi (π) é um número do demônio, para
n = 144; também a razão áurea (Φ) o é para n = 146.

O número (10 666 )! é denominado número leviatã, onde 666 é o número da besta
e ! denota o fatorial de um número.

GRATTAN-GUINNESS, em um brilhante artigo (2.001) já notava que os


vínculos entre a matemática e o cristianismo ainda não foram ampla e devidamente
estudados. Concordamos integralmente com essa opinião. Embora exista uma vasta

20
Quando algum fato ou documento mencionado no texto do presente trabalho puder ser localizado em
um site específico da Internet, este site será referenciado por letras gregas minúsculas, sendo a data da
consulta e seu endereço indicado nas referências bibliográficas.
literatura marginal ao assunto, ela é, em sua quase totalidade, fantasiosa, especulativa,
sensacionalista e esotérica, vazia de conteúdo científico.

Nessa pseudo-literatura podemos identificar duas principais correntes nos dias


de hoje: na primeira, o autor erige em torno de alguns fatos históricos, bastante ou
pouco conhecidos do público, toda uma trama, com elementos de romance, aventura e
suspense. Reconhece, porém, o caráter fictício da narrativa, geralmente identificando o
que é real (histórico) e o que é de sua lavra. Essas obras devem ser apreciadas pelo
que proporcionam, isto é, entretenimento. Às vezes têm o mérito de chamarem a
atenção do grande público para algum fato histórico obscuro, gerando um interesse
saudável pela história Nota 1.

Já na segunda corrente o autor, com base em alguns fatos históricos, de modo


geral enviesadamente apresentados, pretensamente efetua “descobertas”, decifra
“códigos” e gera “previsões”. É característica dessa corrente que os dados históricos
normalmente sejam distorcidos, ou mostrados parcialmente, trabalhados e moldados
para que se encaixem dentro dos desígnios do autor, em completo desrespeito às
exigências de uma obra científica. Essa corrente é perniciosa, pois induz erroneamente
o público ingênuo a acreditar nela e nas suas “previsões” Nota 2.

Nos textos de história da matemática hoje disponíveis, como por exemplo


IFRAH (1981, p.332; 2000, p.260), MENNINGER (1992, p.267), EVES (1984,
p.219), entre outros, o número da besta é apresentado como uma aplicação singela da
gematria. Esse enfoque é, em nossa opinião, apenas parcial, pois não leva
suficientemente em consideração o contexto em que esse número surge, isso é, sua
aparição dentro do corpus conhecido como literatura apocalíptica.

O simbolismo envolvido não é devidamente apreciado e isso é sumamente


importante para o esclarecimento da questão. Também o que GRATTAN-GUINNESS
(op.cit.) denomina de inter-relações entre as religiões e a matemática, frisando
oportunamente que foram pouco estudadas, não merece o devido tratamento.

A análise dessas questões é equivalente, acreditamos, ao estudo da


etnomatemática dos apóstolos e de seus discípulos, ou seja, à compreensão da
etnomatemática dos primeiros cristãos. A etnomatemática dos primeiros cristãos
estava impregnada de misticismo numérico. A Palestina nessa época era um caldeirão
onde fervilhavam várias correntes de misticismo numérico, tais como o misticismo
numérico grego, o gnóstico, o hebreu (cabala), bem como o misticismo de vários
cultos de mistério em voga na época. Seu misticismo era um amálgama desses. Para
melhor compreendê-la, necessitamos conhecer as origens históricas desse misticismo.

Para efeito do presente trabalho, dividiremos a história da Palestina em: período


aquemênida (539-332 a.C.), período helenístico (332-37a.C.), período romano (37a.C.-
312/476 d.C.).

Origens

A propriedade que os números possuem de poderem ser combinados de vários


modos, de se poder escrever cada um de várias maneiras, sugere possuírem algo de
sagrado, induzindo a considerá-los como uma espécie de língua universal, capaz de tudo
expressar. A associação de números com nomes é muito antiga na cultura suméria.

Uma das primeiras manifestações do poder dos números encontra-se no panteão


sumério, onde existe uma hierarquia numérica dos deuses. Os mesopotâmios, como
constatamos, tiveram a idéia de atribuir um valor numérico aos signos de seu silabário,
de modo que todo o nome pudesse ser expresso por um número, estabelecendo deste
modo a igualdade nome = número.

Heródoto conta que os gregos aprenderam a escrever com os fenícios. Os gregos


denominam suas letras de phoinikeia (“coisas fenícias”), e a derivação das letras gregas
do alfabeto fenício é confirmada por uma série de similaridades nos seus nomes, no
modo em que eram escritas e pela sua ordenação, de alpha a tau. A data em que os
gregos derivaram seu alfabeto do alfabeto fenício é ainda hoje objeto de controvérsias.
BERNAL (1.990) acredita que isso ocorreu em torno de 1.400 a.C., ou mesmo em data
mais recuada, cerca de 1.700 a.C., enquanto que NAVEH (1.997) sustenta que não pode
ter ocorrido antes de 1.100 a.C.. As mais antigas inscrições gregas, rabiscos em
pedaços de cerâmica, datam de 730 a.C., embora os gregos já praticassem a escrita
algum tempo antes.

Como a escrita grega era alfabética, herança dos fenícios, e não silábica, como a
babilônica, o passo natural era associar cada letra a um número, como já os babilônios o
tinham feito, associando cada sílaba a um número. O passo cognitivo é o mesmo:
associar cada signo de sua escrita a um número.

Os helenos empregavam, como vimos, dois alfabetos na representação de


números: um, o milesiano ou jônio, empregava todas as letras do alfabeto, outro, o ático
ou herodiânico, empregava a letra inicial da palavra para o número como numeral.

Durante a idade helenística (de hellen = grego), após as conquistas de


Alexandre, a língua grega, a koiné, se tornou uma língua internacional, e a idéia
inovadora de usar letras (símbolos de sons) para denotar números, por meio do alfabeto
milesiano, se espalhou pelo Mediterrâneo e pelo Oriente Médio. Esse sistema foi
adotado pelos egípcios, persas, fenícios, árabes e judeus. No Egito, o sistema milesiano
parece ter sido adotado durante o reino de Ptolomeu Filadelfo (246-221 a.C.).

A doutrina do nome, que prega o poder criador da palavra, de que uma coisa
passa a existir somente quando recebe um nome, constituía concepção muito difundida
entre os povos da antigüidade, especialmente entre os mesopotâmios. Também estes
desenvolveram o conceito de que nome = número. Podemos reformular a doutrina do
nome assim: uma coisa passa a existir quando recebe um número = nome. Logo, todas
as coisas que existem têm um número. Ora, isso nada mais é do que a doutrina da escola
pitagórica: "Tudo [todas as coisas que existem] é [tem um] número". Provavelmente
essa é a origem do misticismo numérico desenvolvido pela escola pitagórica, o qual
influenciou profundamente o simbolismo numérico posterior, inclusive a numerologia
moderna.

Denomina-se de gematria, gematria numérica, ou isopsefia (a palavra grega para


gematria) ao sistema criptográfico onde se atribui às letras (de um alfabeto) ou às
sílabas (de um silabário) valores numéricos convencionados. A palavra isopsefia vem
do vocábulo grego isopsephos, onde iso- significa igual e psephos significa seixo, pois
os gregos empregavam seixos (ou calculi, em latim) nos cálculos com o ábaco, e
posteriormente na formação dos números figurados. A etimologia da palavra gematria é
duvidosa. Argüi-se que pode provir da palavra grega geometria (γεωµετρία), terra-
medida, apresentando-se como prova a evidência do uso da gematria na construção de
templos e outros edifícios oficiais, tais como o Partenon e o templo de Apolo em
Didyma. De qualquer forma, seu uso é aparente na Grécia por volta do século V a.C.,
embora a idéia geral possa ter sido bastante difundida ao redor do Mediterrâneo em uma
data anterior.

A gematria grega que nos é familiar requer 27 letras para representar três
eneadas (nônuplas) numéricas (1-9, 10-90, 100-900), empregando o sistema alfabético.
Porém, cumpre observar que três letras arcaicas (Digamma-6, Coph-90, Sanpi-900) se
tornaram obsoletas no meio literário e caíram em desuso, mas foram mantidas nos
cômputos numéricos e na gematria grega, pois do contrário não se disporiam das 27
letras necessárias para completar as três eneadas.

Os hebreus também adotaram um sistema de gematria similar. O antigo alfabeto


hebreu era muito parecido com o fenício. O alfabeto hebreu mais recente, cujo uso nos é
familiar na gematria, é denominado de hebreu quadrado; parece ter se originado do
alfabeto aramaico e se consolidado em torno do III-II século a.C. Seus numerais usam as
vinte e duas letras do seu alfabeto, na mesma ordem das do alfabeto fenício, do qual elas
derivam, para representar (de aleph a tet) as primeiras nove unidades, então de yod a
tzzadi, as nove dezenas, e finalmente de qoph a tau , as primeiras quatro centenas. Como
são necessárias 27 letras para a completa representação das três eneadas, aproveitou-se o
fato que cinco letras (kaph, mem, nun, pe, tzzadi) desse alfabeto têm formas duais,
conforme aparecem em posições ou inicial e medial ou final nas suas palavras. Os mais
antigos exemplos do emprego desse sistema surgem nos fins do séc. II a.C. e no início do
séc. I a.C., contemporâneos aproximadamente do período do Macabeus. Antes disso não
são conhecidos achados arqueológicos que comprovem o uso de letras hebraicas como
números. A Tabela I mostra os valores numéricos convencionados para os alfabetos
jônio, maiúsculo e minúsculo, e hebreu quadrado.
Tabela I

O uso do sistema de numerais alfabéticos gregos aliou a cada palavra escrita em


um dos antigos alfabetos, como o grego, o hebreu, o árabe, um valor numérico, desde que
o valor de cada letra pudesse ser somado até formar um único número, correspondente ao
número da palavra.

A aritmologia pode ser considerada como a filosofia dos poderes e virtudes de


determinados números inteiros. Já a aritmomancia é a prática da adivinhação ou da
previsão por meio da interpretação das propriedades mágicas dos números.

Misticismo numérico pitagórico

Pitágoras de Samos (570-508 a.C.) e sua escola deram origem ao misticismo


numérico mais antigo que se pode identificar com razoável grau de certeza. Pode-se
afirmar que esse misticismo exerceu extraordinária influência sobre a humanidade, desde
sua origem no século VI a.C. até praticamente os dias de hoje.

Os pitagóricos consideravam "os princípios das matemáticas" (os números) como


os princípios de todas as coisas, materiais ou não. Os números, portanto, davam origem a
todo o mundo material real. Mesmo coisas imateriais, tais como justiça, alma e razão,
originavam-se de "modificações" (combinações?) dos números. Consideravam "os
elementos" dos números serem "os elementos" de todas as coisas, os “átomos” do mundo
material real. O misticismo numérico pitagórico afirmava que: o número um é o gerador
de todos os números e o número da razão; o dois é o primeiro número par, ou feminino, o
número da opinião; três é o primeiro número masculino verdadeiro, o da harmonia, sendo
composto da unidade (1) e da diversidade (2); quatro é o número da justiça ou
retribuição, indicando o ajuste de contas; cinco é o número do casamento, união dos
primeiros números verdadeiramente femininos e masculinos e seis é o número da criação.

O 10, a tetractys ou década sagrada, representava o número do universo, pois é a


soma de todas as dimensões geométricas. Um ponto (a unidade - 1) gera as dimensões;
dois a reta de dimensão um; três pontos (3) não coplanares determinam um triângulo
com uma área de dimensão dois; quatro pontos (4) não coplanares determinam um
tetraedro com volume de dimensão três; portanto a soma dos números que representam
todas as dimensões dimensões é 1+ 2 + 3 + 4 = 10, o número perfeito. O número um
não era considerado um número para os pitagóricos, mas sim o princípio gerador de
todos os números e, por conseqüência, o princípio gerador de todas as coisas.

O misticismo numérico grego às vezes é denominado de Cabala Grega. Não


empregaremos essa nomenclatura, porque o termo Cabala é tradicionalmente aplicado
para nominar uma determinada corrente mística de origem hebraica, como veremos na
seqüência, a qual é posterior e sofreu influência do misticismo numérico grego, o que
pode suscitar interpretações incorretas.

Os neopitagóricos e os neoplatônicos

Com a dispersão da escola pitagórica em 450 a.C., o pitagorismo praticamente


desapareceu da história, exceto por uns poucos remanescentes. Por volta da metade do
século I a.C., ressurgiu o interesse nas idéias de Pitágoras por meio de um movimento
denominado de neopitagórico, que floresceu nos primeiros séculos de nossa era. Sob a
influência de Cícero, Nigidius Figulus (98-45 a.C.), seu amigo, tentou reviver o
pitagorismo em Roma. Outros neopitagóricos de importância foram Philo de Alexandria
(20a.C.- 40 d.C.), um judeu helenizado; Apolônio de Tyana (fl.c.50 d.C.), figura algo
charlatanesca, que se considerava reencarnação (avatar) de Pitágoras; Moderatus de
Gades (fl. segunda metade do séc.I d.C.), que criticou acerbamente Platão por ter se
apoderado das idéias de Pitágoras sem lhe ter dado o devido crédito; Theon de Smirna
(fl.c. 125 d.C.), que escreveu um tratado “A matemática útil para compreender Platão”,
o qual sobreviveu; Nicômaco de Gerasa (fl.c. 140-150 d.C.), sua obra “Introdução à
Aritmética” é uma de nossas principais fontes sobre a matemática pitagórica, sendo que
sua influência se estendeu pela idade média até a renascença; Numenius de Apamea (fl.
160 d.C.), cuja mistura dos pensamentos platônico médio e neopitagórico começa a
transformar esse movimento em neoplatônico.

É muito difícil estabelecer uma diferenciação clara entre os movimentos


neopitagóricos e neoplatônico, em virtude das similitudes e complementaridades dessas
concepções filosóficas. O movimento neoplatônico se originou no Egito e, embora
produto do pensamento helenístico, foi largamente influenciado pelos ideais religiosos e
tendências místicas do pensamento oriental.

Ammonius Saccas (nasceu em 242 d.C.) é considerado o fundador do


neoplatonismo, embora não tenha deixado obras escritas; Plotino (205-270 d.C.) é
considerado o primeiro sistematizador dessa escola, foi influenciado por Numenius e
discípulo de Ammonius, escreveu 54 tratados, as Eneadas, que sobreviveram. Porfírio
de Tiro (233-303 d.C.), seguidor de Plotino e Iâmblico (morreu c.330), aluno de
Porfírio, escreveram ambos biografias de Pitágoras. Proclus (410-485 d.C.) é
considerado o mais sistemático dos platonistas; escreveu vários tratados sobre os
pensamentos de Platão, bem como diversas obras sobre matemática.

Pensadores cristãos, praticamente desde o começo do cristianismo, encontraram


no espiritualismo de Platão um poderoso aliado na defesa da concepção da alma
humana, conceito que os pagãos rejeitavam. Quando as idéias de Plotino começaram a
prevalecer, os pensadores cristãos se aproveitaram disso para suportar a doutrina de que
há um mundo espiritual real, diverso do da matéria. Posteriormente filósofos cristãos,
como Nemésio (fl.c. 450), incorporaram todo o sistema do neoplatonismo de tal
maneira que foi considerado consoante com o dogma cristão. Foi Agostinho (354-430
d.C.), que conhecia os trabalhos de Plotino em uma versão latina, quem se encarregou
de depurá-los, adequando-os ao pensamento cristão.

Um conceito platônico, já presente no Timeus, o do Demiurgo, o do Grande


Artífice ou Fabricante, Arquiteto do Universo, mediador entre Deus, a fonte primeira e
suprema de todas as coisas, e o mundo material, teve importantes conseqüências para as
correntes filosóficas posteriores, principalmente os gnósticos, os quais estudaremos a
seguir. O mundo material foi criado pelo Demiurgo, pois Deus se restringia à sua orbe,
distante das coisas mundanas.

A Cabala

O termo Cabala (do hebreu Kabbalah, o recebido, o tradicional) é empregado


como um termo técnico para uma doutrina mística ou esotérica concernente a Deus e o
universo. Inicialmente consistia apenas de um conjunto de conhecimentos e tradições
populares, em contraposição à lei escrita (Torah), mas sob a influência dos
neopitagóricos (ou neo-platônicos) e dos gnósticos assumiu um caráter especulativo.
Sua principal característica era que, ao contrário da lei escrita, era reservada apenas a
uns poucos eleitos. Os dois livros que expõem esse sistema são a) o Sefer Yezirah (O
Livro da Criação (ou da Formação), e b) o Zohar.

O Zohar, conhecido como a Bíblia da Cabala, é um tratado compilado na idade


média, portanto não influiu no período que nos interessa, ou seja, próximo da origem da
cristandade. Já o Sepher Yezirah (γ) aufere de maior antiguidade. A data de sua
composição ainda é objeto de controvérsia; alguns atribuem sua autoria ao Rabbi Akiba
(c. 120 d.C.), outros sugerem que foi escrito em torno do ano 200 d.C., ou mesmo mais
tarde. Porém, ao menos parte de seu material pode remontar ao segundo século antes da
era cristã. O Sefer Yezirah é um tratado curto, que professa ser um monólogo do
patriarca Abraão, no qual, na forma de sentenças oraculares, enumera as trinta e duas
formas de sabedoria pelas quais Deus criou o universo. O espírito de Deus, os três
elementos primordiais (ar, fogo, água), e as seis dimensões do espaço (altura,
profundidade, leste, oeste, norte, sul) formam os Dez Sefirot. O termo Sefirot se origina
do substantivo hebreu “sefirah”, que significa originalmente “número”ou “categoria”.

O ar (ou espírito) produziu a água primal, a qual, por sua vez, foi condensada no
fogo. A água se condensava em neve, e esta em terra. Essa concepção de água primal é
uma concepção Semítica bastante antiga, a do oceano primal, conhecido como Apsu
pelos babilônios. A doutrina dos elementos primais provavelmente é de origem
semítica, sendo posteriormente adaptada e adotada pelos gregos. A teoria dos quatro
elementos (água, ar, terra e fogo) de Empédocles (c.495-435 a.C.) foi a que maior
influência exerceu na história da ciência, resistindo como hipótese de trabalho até o
início do século XVII da nossa era.
Assim como os números de dois a dez são oriundos do número um, os Dez
Sefirot também são oriundos do um, o espírito de Deus. Isso evidencia a influência
pitagórica nessa doutrina, sendo que os dez Sefirot representam a tectractys sagrada. As
vinte e duas letras do alfabeto hebreu produziram o mundo material, são a fundação e a
origem de todas as coisas, bem como os poderes criadores de toda existência e
desenvolvimento. A relação entre as letras e os Dez Sefirot não é claramente definida no
Yezirah. Porém, elas, pelo seu “peso” (valor intrínseco), sua combinação e seu
intercâmbio produziram toda a criação. As letras são os instrumentos pelos quais o
mundo real, que consiste em essência e forma, foi produzido a partir dos Sefirot, os
quais são meramente essências sem formas. Enquanto os três elementos primais
constituem a essência das coisas, as vinte e duas letras do alfabeto hebreu constituem a
forma.

A literatura apocalíptica do segundo e primeiro século pré-cristãos já continha os


elementos principais da cabala; de acordo com Josefo (c. 37-100 d.C.) tais escritos
estavam de posse dos essênios, que os guardavam zelosamente. Além da Palestina, a
Alexandria do século primeiro da era cristão, ou provavelmente bem mais cedo, com a
sua complexa ebulição de culturas egípcia, judaica, babilônica e grega, forneceu o solo e
as sementes para que essa filosofia mística, a qual sabia como misturar a sabedoria e os
desatinos dos antigos, emprestando a qualquer prática ou crença supersticiosa um
significado profundo e reverenciado.

A partir do exílio, no século VI antes da nossa era, os hebreus começaram a se


difundir pelo Oriente Médio e ao longo do Mediterrâneo Oriental. No século I a.C.,
calcula-se que havia um milhão de judeus só no Egito (ALEXANDER, p.497); boa
parcela da população de Alexandria era judaica e a maior parte das grandes cidades
registrava a presença de uma colônia judaica e de uma sinagoga. Esses eram conhecidos
como os judeus da dispersão, ou da diáspora, em grego.

Gnosticismo

Gnosticismo é conhecido como a teoria da salvação pelo conhecimento. Gnosis,


em grego, significa conhecimento. Esse esotérico sistema de teologia e filosofia
representa um dos mais obscuros e complicados problemas na história geral das
religiões. Sua origem antedata a cristandade, suas raízes já foram buscadas na Índia,
Síria, Pérsia, Babilônia e nas religiões de mistério helenísticas, permanecendo na
obscuridade. Originalmente era uma ciência secreta, uma disciplina arcani 21, ensinada
apenas aos iniciados. Existiu uma multiplicidade de doutrinas gnósticas, cujo estudo vai
muito além dos objetivos do presente trabalho. Vamos nos restringir à exposição de
algumas das suas idéias centrais, bem como de determinadas correntes que interessam
ao nosso propósito.

Quando Ciro conquistou a Babilônia em 539 a.C., duas grandes correntes de


pensamento se fundiram. A idéia da grande luta entre o mal e o bem, idéia central do
mazdeismo iraniano, se uniu com as concepções astrológicas babilônicas, de que os
astros, principalmente os sagrados sete: Lua, Mercúrio, Vênus, Marte, o Sol, Júpiter e
Saturno, tinham uma influência fatalística nas questões terrenas. Os sete astros,
simbolizados por milênios pelas torres em degraus (zigurates) babilônicas, deixaram de
serem deuses, mas permaneceram como archontes e dynameis, regras e poderes que
eram respeitados pelo homem. Dessa combinação surgiu a crença que a alma humana
deveria passar através das sete esferas planetárias (os sete astros) para atingir a esfera de
Deus. Essa ascensão da alma através das esferas planetárias para o céu além, uma idéia
desconhecida mesmo nas antigas especulações babilônicas, começou a ser concebida
como uma luta entre poderes adversos, o bem e o mal, e se tornou a primeira e
predominante idéia no gnosticismo.

O segundo grande componente do pensamento gnóstico é a mágica, isto é, o


poder de uma mistura de sons, nomes estranhos, gestos e ações produzir efeitos
sobrenaturais desproporcionais às suas causas. Esse componente provavelmente sofreu a
influência da Babilônia e Assíria, pois milhares de tabletes cuneiformes contendo
fórmulas mágicas ali foram encontrados.

Na concepção gnóstica o Demiurgo foi criado por uma série de emanações, as


quais também trouxeram ordem ao caos e ânimo espiritual à matéria sem vida. Essas
emanações são associadas aos aeons, os poderes criativos do cosmos, os quais na cabala
judaica correspondem aos Sefirot.

Até a descoberta recente dos códices de Nag Hamadi, de treze textos gnósticos
encerrados em um vaso de argila encontrado perto de Nag Hamadi, no Egito, em
dezembro de 1945, as únicas informações relativamente detalhadas sobre as seitas
gnósticas provinha dos escritos dos Pais da Igreja Católica. Durante o acalorado debate

21
Disciplina do segredo, como os ensinamentos dos primeiros cristãos eram considerados durante as
épocas de perseguições.
com os gnósticos no segundo e terceiro séculos, Irineu, Hipólito, Tertuliano, Clemente e
Orígenes apresentaram refutações contra os ensinamentos que consideravam heréticos,
definindo no processo pela primeira vez muito do que hoje é considerado doutrina
cristã.

A fase judaica do gnosticismo no primeiro século é conhecida como


Gnosticismo Sethiano, pois seus seguidores acreditavam serem descendentes de Seth, o
terceiro filho de Adão. Também no primeiro século uma figura gnóstica proeminente foi
Simão o Mago, a quem os Pais da Igreja atribuem a origem do gnosticismo cristão,
porém mais conhecido por sua menção no Novo Testamento e por sua disputa com o
apóstolo Pedro. Numa fase posterior encontramos o Gnosticismo Valentiniano, liderado
por Valentinus de Alexandria (110-175 d.C.), que foi responsável por uma importante
síntese do pensamento gnóstico no segundo século. Outros gnósticos notáveis foram
Basilides (fl.c.130 d.C.), Cerinto (contemporâneo de João), Marcion (fl.c.140d.C. ) e
Marcus (fl.c.150 d.C.).

O misticismo numérico grego desempenhou um papel proeminente no


desenvolvimento das doutrinas gnósticas. Por outro lado, a extremamente próxima
relação então existente entre o gnosticismo e os primeiros cristãos ressalta a influência
gnóstica na introdução desse misticismo no pensamento cristão primitivo.

O sacrossanto caráter de que o número foi investido, do primeiro ao quinto


século da era cristã, parece ter sido o resultado de um gradual porém poderoso influxo
de “disciplinas do mistério” orientais no Império Romano. A vacuidade espiritual do
paganismo oficial romano produziu um vazio, o qual tornou o poderoso misticismo do
oriente particularmente atrativo. Uma divindade após outra fulgurava e desvanecia em
popularidade no panteão romano, até que todas foram eclipsadas, primeiro pelo culto
egípcio de Isis e Osíris, depois pelo mitraismo da Pérsia e, finalmente, pela cristandade.

Irineu (125-203 d.C.), que foi bispo em Lyons no século segundo, escreveu um
tratado em cinco volumes “Contra as Heresias” (β), no qual nos fornece um relato
sobre a teologia do gnóstico Marcus. Marcus considerava as letras do alfabeto grego
conectadas aos aeons; sua interpretação mística do papel do alfabeto grego na criação
do universo é intrigantemente similar à do Sefer Yezirah, onde o alfabeto hebraico
desempenha igual papel. Ele também dividiu o alfabeto em oito grupos gramaticais: sete
vogais (Η,Ω,Α,Ι,Υ,Ε,Ο), oito semi-vogais (Ζ,Λ,Μ,Ν,Ξ,Ρ,Σ,Ψ) e nove consoantes mudas
(Β,Γ,∆,Θ,Κ,Π,Τ,Φ,Χ).
Outro gramático gnóstico, Marsanes, considerava que as letras do alfabeto grego
são “a nomenclatura dos deuses e dos anjos”, e que quando mudavam elas se
submetiam [invocavam] a deuses ocultos “por meio de batidas e tons e silêncios
[pausas] e impulsos” (BARRY, p.112-117). Esse conceito é central na magia
helenistica, como podemos constatar através dos papiros mágicos gregos, onde figuram
longas listas de nomes enigmáticos (voces magicae), combinações de vogais e
permutações de letras. Vários amuletos, pedras gravadas (glíptica), grafites contendo
exemplos dessa magia grega sobreviveram.

Como a letra grega α (alfa) geralmente representava o primeiro princípio, o


simbolismo gnóstico a utilizava como um nome de Jesus. O próprio Jesus parece ter
empregado esse misticismo numérico algumas vezes, como a Bíblia registra: “Eu sou o
Alfa e o Omega, o principio e o fim” (Apocalipse 1,8, 21,6 e 22,13); no antigo
testamento Isaias 44,6). Essas passagens foram consideradas pelos primeiros cristãos
como liberatórias do uso do misticismo numérico grego na interpretação da sua própria
fé, dado que o próprio Salvador o usava. Cabe registrar que esse misticismo estava de
tal forma impregnado nos hábitos e costumes da época, que o seu uso não constituía
nada excepcional, sendo perfeitamente compreensível no contexto cultural da época.

Irineu (Contra Heresias, livro I, cap. 15)(β) e Hipólito (Refutações de Todas as


Heresias, VI, 45)(β) nos fornecem a interpretação numérica gnóstica do nome de Jesus:
(grego) ΙΗΣΟΥΣ = 10+8+200+70+400+200= 888. Hipólito (op.cit.,VI, 47) também nos
indica a interpretação gnóstica da palavra AMEM = (grego) AMHN = 1+40+8+50= 99.

A correlação de Cristo, indicado como alfa e ômega, ΑΩ = 1+800 = 801, com a


pomba (grego) ΠΕΡΙ – ΣΤΕΡΑ = (80+5+100+10)+(200+300+5+100+1) = 801 (Irineu,
op. cit, I, 14-16), símbolo da Santíssima Trindade, do Espírito Santo na crença cristã, é
uma ilustração do uso de isopsefia para associar palavras ou frases de igual valor.

Abriremos aqui um pequeno parênteses para tratar das origens da doutrina da


trindade. Pais da Igreja como Clemente e seus discípulos Hipólito e Orígenes, que
viviam nos maiores centros do movimento gnóstico, no século segundo,
inevitavelmente buscavam inspiração nos modelos com os quais estavam em contacto.
Na época, uma das mais espinhosas fraquezas da doutrina, evidenciada pela heresia
ariana, que negava a divindade de Jesus, era o caráter dual da deidade: Deus (Pai) e
Deus (Filho).
Muitos gnósticos incorporavam os credos neopitagóricos (cf. Plotino, Iâmblico,
Proclus) sobre a trindade, a tríade mística. Para eles 1 e 2 não eram números, mas
somente princípios ou números potenciais, sendo que 3 era o primeiro número real. Três
representava toda a realidade, não somente sua imagem superficial, e também tinha um
começo (1), meio (2) e fim (3). Por meio da tríade, a unidade (1) e a diversidade (2), que
compõem a tríade (1+2=3), têm sua harmonia restaurada, porque o 3, atuando como
mediador, une os outros dois (1,2) em uma única ordem completa. Desse modo, a
ordem divina tinha um caráter triplo, pois a tríade era a unidade perfeita.

A presença de tríades divinas em todos os credos gnósticos com certeza foi um


fator determinante na criação da doutrina cristã da trindade, porém sua inspiração
última certamente provém do pensamento neopitagórico. Que o Pai e o Filho eram Um
era uma afirmação questionável, tanto em base numérica como filosófica, mas que o
Pai, o Filho e o Espírito Santo eram inquestionavelmente Um era um fato, por virtude
de serem Três!

Muitos dos mais antigos cristãos, incluindo o apóstolo Paulo, não parecem ter
conhecimento dessa doutrina. Por isso as duas citações do Novo Testamento, a primeira
(Mateus 28,19) referente a uma tríade (Pai, Filho e Espírito Santo) e a outra (I João 5,7)
referente à trindade (o espírito, a água e o sangue), são suspeitas de serem interpolações,
especialmente a última. Referências à Trindade somente se tornaram comuns após o
século terceiro, sendo que essa doutrina somente recebeu a aprovação oficial da Igreja
no Concílio de Constantinopla (381 d.C.).

Graças a Hipólito (op.cit., IV,14) temos uma descrição de uma técnica usada na
numerologia gnóstica, conhecida como pythmenes (tronos, ou raízes). Ë equivalente à
regra tradicionalmente conhecida como “regra dos noves”, ou “noves fora”. Quando um
número é dividido por nove, o resto é o mesmo daquele obtido se a soma dos dígitos do
número original é divisível por nove. Os cabalistas hebreus empregavam o pythmenes
sob o nome de aiq beker, também conhecido como Cabala das Nove Câmaras. Hipólito
também menciona a aplicação do pythmenes em um sistema numerológico empregado
pelos egípcios: “...eles calcularam a palavra “Deidade” e encontraram que ela reverte
em uma quíntupla com uma nônupla subtraída” (op.cit., IV,44). A palavra para
divindade em grego e copta é theos, ΘΕΟΣ = 9+5+70+200 = 284, mas
284=2+8+4=14=5+9, ou, de outra maneira, 284 dividido por 9 é 31, com um resto 5.

Oráculos e Invocações
Um dos mais antigos exemplos de isopsefia conhecidos é descrito pelo pseudo-
Calístenes, que escreveu uma biografia (Vida de Alexandre) no século III a.C. Relata
que um deus apareceu em um sonho a Alexandre, declarando-se seu protetor, e seu
nome seria reconhecido da seguinte forma : “Tome duzentos e some um; então cento e
um, e quatro vezes vinte, e dez; e tome o primeiro número e faça ele o último; e conheça
para sempre que deus eu sou” (BARRY, p.90). É dito que Alexandre interpretou o
sonho como: 200+1+100+1+(4x20)+10+200=592, número que corresponde ao das
letras do deus Grego-egípcio SARAPIS: Σ Α Ρ Α Π Ι Σ =200+1+100+1+80+10+200
=592. O nome Sarapis, ou Serapis, provavelmente é a composição dos nomes de dois
deuses egípcios, Osiris e Apis. O culto de Serapis foi introduzido em Alexandria por
Ptolomeu, o general sucessor de Alexandre no Egito.

Outros exemplos de isopsefia como método pelo qual os deuses podem revelar
segredos à humanidade, podem ser encontrados nos denominados Oráculos Sibilinos.
Na forma em que hoje os possuímos, compõem-se de quinze livros compilados por
judeus ou cristãos entre os séculos II e IV da nossa era. As Sibilas eram profetisas com
uma longa história no mundo grego-romano, já figuravam, por exemplo, nos escritos do
comediante grego Aristófanes (c.447-380 a.C.) e nos do poeta romano Virgílio (70-19
a.C.). Há citações de Pausanias, Plutarco, Lívio e outros afirmando que livros contendo
essas profecias eram mantidas em Roma, e só eram consultados em tempos de perigo ou
de acontecimentos anormais. Porém o capitólio romano, onde esses livros eram
mantidos, foi destruído pelo fogo no tempo de Sulla (84 a.C.) e novamente no tempo de
Vespasiano (60 d.C.).

Provavelmente só fragmentos restaram desse corpus antigo, que possivelmente


foram incorporados aos livros que hoje possuímos, os quais são um pastiche das
mitologias helenística e romana pagã, de lendas judias, tais como referências ao jardim
do Éden e da torre de Babel, bem como de uma longa lista de imperadores romanos; de
homilias gnósticas e cristãs primitivas e também de escritos escatológicos. Os rituais
associados às profecias, que os antigos romanos podiam ter lido, foram removidos pelos
editores judeus e cristãos.

O Livro V, que provavelmente foi escrito por um judeu egípcio nos fins do I
século da nossa era, aproximadamente contemporâneo, ou mesmo antecessor, do
Apocalipse de João, do qual alguns acreditam que pode ter sido o protótipo, é notável
pelas passagens apocalípticas ali contidas. Suas primeiras linhas descrevem, de uma
maneira pseudo-profética, mas obviamente retrospectiva, os imperadores romanos até
Marco Aurélio, seguindo curiosamente a ordem sugerida por Suetônio, o historiador
romano.

“Depois dos bebês que a loba tomou como crias, virá um rei [imperador] o primeiro e todos, a
primeira letra de cujo nome irá somar duas vezes dez; ele será vitorioso na guerra; e por seu
primeiro sinal ele terá o número dez; então após ele reinará um que terá a primeira letra como
sua inicial; perante ele a Trácia irá encolher-se, depois a Sicília, então Mênfis, Mênfis se
humilhou por falha de seus líderes, e de uma mulher arrojada, que caiu na onda (sic). Ele dará
leis ao povo e trará todos em sujeição, e depois de um longo tempo seu reinado reverterá para um
que terá o número trezentos como sua primeira letra, e o nome bem conhecido de um rio, cujo
domínio irá alcançar os persas e a babilônia: ele os medas com a lança. Então reinará um cujo
nome-letra é o número três; então um cuja inicial é vinte: ele alcançará a maior distância da maré
do oceano, rapidamente viajando com sua companhia Ausoniana. Então um com a letra
cinqüenta irá ser rei, um dragão caído exalará atroz guerra, que levantará a sua mão contra seu
próprio povo para matá-lo, e então espalhará confusão, representando o atleta, auriga, assassino,
um homem de muitas ações doentias; ele cortará através da montanha entre dois mares e os
manchará de sangue; ainda ele se desvanecerá até a destruição; então ele irá retornar, fazendo a
si próprio igual a Deus; assim Deus revelará sua insignificância. Depois dele três reis perecerão
cada um na mão do outro; então virá um grande destruidor de divindades, cujo número setenta
cabalmente mostra. Seu filho, revelado pelo número trezentos, tomará o poder. Após ele virá um
tirano devorador, marcado pela letra quatro, e então um homem venerável, pelo número
cinqüenta, mas após ele um que leva o signo inicial de trezentos, um celta, ....”(apud BARRY,
p.91-92).

É uma passagem deveras instrutiva para o nosso objetivo, pois exemplifica um


contexto apocalíptico contemporâneo a e talvez conhecido por João. A lenda atribui a
fundação de Roma aos gêmeos Rômulo e Remo, que foram adotados e criados por uma
loba. Após eles, virá o primeiro rei (imperador), cuja primeira letra de seu nome
(sobrenome) somará vinte: K, a inicial de César (KAISAR), vale 20; e por primeiro
sinal (primeira letra- I) de seu nome Julius (IULIUS), vale 10. É interessante notar que
Suetônio adota Julius César como o primeiro rei, o que provavelmente indica que o
editor desse livro provavelmente o adotou como fonte da seqüência de reis. O próximo
“terá a primeira letra como inicial”, apontando para o sucessor de Julio César, Augusto
(ou Otaviano), cuja inicial do nome é A, que derrotou Marco Antônio e Cleópatra, sem
dúvida a “mulher arrojada” mencionada. Então vem Tibério, cujo nome começa com a
letra T, equivalente a 300, e está ligado ao nome do rio Tibre (Tigre). As menções
crípticas a seguir são indicadas pelos valores numéricos 3=G para Gaius; 20=K para
Claudius; e 50=N para Nero.

É importante notar aqui as menções ao caráter doentio de Nero, bem como a


referência à então popular lenda do retorno de Nero após a morte, Nero Redivivus,
quando então conduziria um exército para o oriente; e a menção que ele se igualará a
Deus, ou seja, será um Anticristo, o qual será derrotado pelo Deus verdadeiro.

A noção do herói, líder ou tirano revivido é um arquétipo recorrente na história da


humanidade. Talvez seu mais antigo exemplo seja o de Alexandre o Grande. Como
morreu repentinamente nos confins do império macedônico, lendas se formaram acerca
de sua morte ou não morte, permanecendo em seus súditos a impressão de que
regressaria brevemente. Exemplos mais recentes encontramos nos casos de Frederico I
(o Barba Ruiva), que pereceu nas cruzadas em 1190, distante do seu feudo, gerando
assim a lenda de um Frederico futuro, revivido, o Imperador dos Últimos Dias; e de
Hitler, cujo suicídio em 1945 foi testemunhado por poucos, permanecendo no
inconsciente coletivo a impressão de que o insano retornaria.

Também encontramos aqui a descrição alegórica da Besta de sete cabeças do


Apocalipse (17,3;13,1), sendo que a Besta representava o poder imperial romano e as
sete cabeças os sete imperadores romanos (até Nero). A alegoria da besta como o poder
imperial já estava presente na visão de Daniel. Os “três reis”seguintes são Galba, Otho e
Vitélio. Os imperadores restantes indicados por suas letras gregas iniciais são:
Domiciano (∆=4), Nerva (N=50) e Trajano (T=300), que na realidade não era Celta mas
Espanhol.

No Livro I encontramos menção ao valor numérico do nome de Jesus, como


sendo na ordem de oito centenas, o que certamente coincide com a interpretação
gnóstica: ΙΗΣΟΥΣ = 10+8+200+70+400+200= 888.

Outra forma comum de misticismo numérico grego, além da isopsefia, era o uso
de acrósticos, ou notarichon, no qual as letras iniciais de uma frase ou de uma
passagem formam uma palavra. Talvez o acróstico mais famoso da história seja o que
ocorre no Livro VIII, no qual as letras iniciais dos versos formam: ΙΗΣΟΥΣ ΧΡΙΣΤOΣ
ΘΕΟΥ ΥΙΟΣ ΣΟTΗP (Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador). Agostinho de Hipona
(354-430 d.C.) ressalta que as letras iniciais desse acróstico formam a palavra grega
ΙΧΘΥΣ, que significa peixe, a qual sugeriu aos antigos cristãos o uso do peixe como
emblema da cristandade.

Numerosos exemplos do misticismo numérico grego aparecem em um corpus de


papiros greco-romanos conhecido como Papiros Mágicos Greco-Romanos. Contém
uma variedade de hinos, rituais, fórmulas mágicas, invocações, etc., datando do
primeiro ao quinto século da nossa era. Palavras mágicas (voces magicae), como
AKRAKANARBA, da qual deriva a nossa abracadabra, parecem ser simples algaravia.
Também eram populares palíndromos, palavras que podem ser lidas em ambas as
direções, comuns em amuletos, das quais a mais famosa era ABLANAHTHANALBA.

Jerônimo (342-420 d.C.), o autor da Vulgata, observou que o nome da divindade


solar Mithras/Meithras (MEIΘPAΣ) tinha o valor numérico de 365; o mesmo valor do
nome da divindade gnóstica solar Abrasax (ABPAΣΑΣ=365), conhecido como senhor
do ano de 365 dias, conforme notou Irineu.
A composição dos livros do Antigo Testamento
A história do povo de Deus, de Abrão até a entrada na terra de Canaã, bem como
a história das origens do mundo e do homem, o que compreende um período de doze a
treze séculos, foi registrada no Pentateuco (a Lei, ou a Torah), entre os séculos X e V
a.C., aproximadamente. O Pentateuco compreende os livros do Gênesis, Êxodo,
Levítico, Números e o Deuteronômio. As tradições judaica e a cristã sempre
consideraram Moisés como o autor do Pentateuco, daí a expressão Lei Mosaica.

Presentemente a posição doutrinária continua a afirmar que Moisés é o autor


intelectual do Pentateuco, embora conceda que possa ter se servido de colaboradores ou
secretários; e que para se descobrir a intenção dos hagiógrafos22 deve-se levar em conta
os gêneros literários a que pertencem (Dei Verbum, Concílio Vaticano II).

As críticas à posição de Moisés como o autor material do Pentateuco começaram


a surgir pelo fim do século XVI e início do XVII (da nossa era), quando se prestou
atenção às notáveis incongruências literárias evidentes em seus livros. Entre outros
autores, Astruc, médico pessoal de Luis XV, no século XVIII, distinguiu neles a
existência de duas fontes documentárias: uma chamava a Deus de IAHWEH, a outra, de
ELOHIM. Foi, assim, o inventor da denominada Teoria Documentária. Posteriormente,

22
Autor dos livros da Bíblia.
J. Wellhausen (1844-1918) incorpora essa teoria no estudo da história da religião em
Israel.

H. Gunkel, em 1895, criou o método da história das formas, cujos princípios


são:1.) estuda-se a história das formas literárias e sua inserção na vida (= Sitz im Leben);
2.) usa-se o método comparativo, comparando as formas literárias bíblicas com as de
outras literaturas orientais; 3.) acentua-se o elemento sociológico: a Bíblia é enquadrada
no mundo em que ela surgiu (no seu contexto histórico).

I.R. de Vaux é o autor atual que melhor integrou as conclusões da crítica literária
com a crença tradicional de ser Moisés o autor do Pentateuco. O núcleo central do
Pentateuco refere-se à época de formação do povo de Israel, onde, indubitavelmente,
Moisés teve um papel relevante, sendo o líder organizador do povo no campo religioso
e nacional. A crítica literária revela no Pentateuco a presença de várias tradições, ou
documentos, as quais conservadas e transmitidas junto aos vários santuários,
cristalizaram-se paulatinamente em ciclos literários, sob a pressão do ambiente e do
influxo de alguma personalidade importante, como assevera a hipótese da história das
formas.

Vaux reconhece quatro tradições, a saber: 1.) a Javista (J), fixada por escrito no
sul da Palestina, no tempo de Salomão (c.972-933 a.C.); 2.) a Eloísta, ao norte, pouco
posterior à Javista; 3.) a Sacerdotal (P, do alemão Priestercodex = código sacerdotal), do
clero de Jerusalém, durante o exílio babilônico (séc. VI a.C.); essas três primeiras deram
origem aos quatro primeiros livros do Pentateuco: Gênesis, Êxodo, Levítico e Números;
4.) a Deuteronomista (D), responsável pelo quinto livro, o Deuteronômio, a qual teve
sua origem no norte, sendo depois levada para Jerusalém (após 722 a.C.), sendo
encontrada no Templo na época de Josias (640-609 a.C.). O estudo comparativo das
literaturas do Oriente antigo nos mostra que essas quatro tradições espelham o ambiente
histórico não da época em que foram registradas por escrito, mas sim do tempo ao qual
se referem, ou seja, das origens de Israel.

Cada hagiógrafo reuniu as várias tradições de que dispunha, provindas de um


longo testemunho oral, e elaborou esse material de uma forma bastante própria,
imprimindo-lhe a sua personalidade e suas perspectivas teológicas pessoais, adaptando-
o e atualizando-o às exigências da sua época e dos seus contemporâneos. Dessa forma, o
autor intelectual, o inspirador dos livros do Pentateuco é realmente Moisés, porém cada
autor específico corporificou seu livro, o qual nos oferece uma esplêndida síntese das
várias fontes isoladas de que ele dispunha. Os livros da Bíblia, portanto, convém
ressaltar, não foram escritos por Deus, mas sim inspirados por Ele. A única parte da
Bíblia escrita diretamente pelo dedo de Deus (cf. Êxodo 31,18; Deuteronômio 9,10) são
as tábuas da lei (do Testemunho), recebidas por Moisés no monte Sinai.

Outro ponto que devemos esclarecer é quanto à falácia que apresenta o hebreu
como uma língua sagrada, divina, empregada por Deus quando “escreveu” os livros da
Bíblia. Para isso, necessitamos recapitular alguns pontos sobre o uso histórico do
hebreu. O hebreu foi comumente falado na Palestina até c. 300 a.C. De 300 a.C. até 70
d.C., não era mais habitualmente empregado, tendo sido substituído pelo aramaico, a
língua de Cristo e dos apóstolos, todavia permanecia importante porque era a língua do
Pentateuco e a do Templo de Jerusalém. O terceiro estágio começa com a destruição do
Templo pelos romanos (c.70 d.C.) e se estende até após a cristianização do império
romano, no séc. IV. Nesse período, o hebreu teve uma importância marginal, pois
embora o templo e a Torah retivessem sua centralidade simbólica, perderam muito de
sua influência política.

Nos textos mais antigos, notadamente no Pentateuco, o hebreu nem ao menos é


mencionado, nem se prescreve seu uso no culto público ou na oração privada. Em toda a
Bíblia hebraica, há uma única passagem onde o hebreu é, pela primeira vez, identificado
como uma língua distinta da de seus vizinhos (Nehemias.13:23-30). Só isso já basta
para desmistificar o hebreu como uma “língua sagrada”. Esse conceito só surge muito
mais tarde. Uma de suas primeiras aparições, senão a primeira que pode ser identificada,
surge no apócrifo Livro dos Jubileus (ξ), uma imitação do Gênesis, alegadamente
transmitida por um anjo; escrito em hebreu no segundo século antes da nossa era, e que
só sobreviveu inteiramente em uma tradução em etiópico antigo. A passagem diz
(Jubileus 12:25-27):

“E o Senhor Deus disse para mim [o anjo]: “Abra as orelhas e a boca [de Abrão] para que ele
possa ouvir e falar com sua boca na língua que é revelada porque ela cessou [de ser falada] da boca de
todos os filhos dos homens desde o dia da queda [de Babel ?]”. E eu abri sua boca e suas orelhas e seus
lábios e eu comecei a falar com ele em hebreu, na língua da criação. E ele tomou os livros de seus pais –
e eles eram escritos em hebreu – e copiou-os. E começou a estudá-los. E eu permiti que ele soubesse tudo
que ele era incapaz de compreender.
Isso influenciou alguns escritos rabínicos posteriores, bem como o Sefer Yezirah,
onde o conhecimento de que o universo foi criado por meio da escrita e da língua
hebraica conduziu a complexas especulações sobre as relações entre suas letras, suas
palavras e a realidade física.

Várias obras (cf. Apocalipse Abraão (15:7, β,ι); Apocalipse Zephaniah (8, λ); 2
Corintios 12:4)) mencionam que os anjos falavam em uma linguagem ininteligível pelos
homens; o Livro dos Jubileus afirma que essa língua era o hebreu, e que ele será o
idioma dos Fins dos Dias.

A Literatura Apocalíptica

A palavra apocalipse provém do verbo grego apokalypto, que significa revelar.


Por isso, o último livro da Bíblia canônica se denomina Apocalipse ou Revelações.

O período que vai de 200 A.C a 100 d.C. foi um dos mais atribulados em toda a
história dos judeus. A voz dos profetas se exaurira há tempos e, ao invés da idade de
ouro que predisseram, sobreveio a derrota, a ocupação e uma violenta perseguição
religiosa. Esses ingredientes propiciaram o surgimento de um novo gênero literário, o
que não seria de se admirar em semelhante período de tensões: a literatura
apocalíptica.

O Livro de Daniel, composto na segunda metade do segundo século antes da


nossa era (c, 165 a.C.), pode ser considerado como o mais antigo exemplo de um
apocalipse judaico, o qual inspirou vários outros apocalipses. O elemento apocalíptico,
que já existia nos profetas, por exemplo em Zacarias (1-6) , em Tobias (XII), pode ser
rastreado até as visões de Ezequiel (1-3), as quais talvez formam o protótipo do gênero.
No Novo Testamento encontramos exemplos de episódios apocalípticos em Lucas (21),
Mateus (24-25) e Marcos (13).

É muito difícil se estabelecer uma fronteira entre o gênero apocalíptico e o


profético, do qual de certa forma não é mais que um prolongamento. Encontramos uma
explicação do mecanismo das visões no Apocalipse de Maria Madalena (ζ), na
passagem onde ela pergunta ao Salvador se o vidente vê por meio da alma ou do
espírito (sic). A resposta do Senhor é:”Ele não vê nem através da alma nem através do
espírito, mas a mente que está entre os dois é o que vê a visão e ela é...” nesse ponto,
frustrantemente, o texto é interrompido, pois as quatro páginas seguintes não
sobreviveram no manuscritos disponíveis. Mas é claro que é a mente, o intelecto, que é
o vetor intermediário das visões.

Essas visões não têm valor por si mesmas, mas sim pelo simbolismo que
encerram. Em um apocalipse quase tudo tem um valor simbólico: os números, as coisas,
as partes do corpo e até mesmo as personagens que entram em cena. Um símbolo é a
representação visível de um objeto ou de uma idéia. No judaísmo primitivo, era
denotado não apenas por um signo, mas também por qualquer característica da relação
mística entre Deus e o homem. Simbolismo pode, para nossos propósitos, ser
considerado como o ato de dotar coisas ou ações externas com um significado interior,
notadamente para a expressão de idéias religiosas.

Na sua descrição da visão, o vidente traduz em símbolos as idéias que lhe foram
sugeridas por Deus, registrando assim coisas, cores, personagens, números simbólicos,
sem se preocupar com a incoerência do todo. Para entendê-lo, seria necessário aprender
sua técnica e retraduzir em idéias os símbolos que ele propõe, senão seus escritos não
passariam de uma algaravia desconexa e ininteligível.

De um modo geral, os apocalipses partilham de algumas características em


comum, entre outras, tais como: a) são revelações de coisas misteriosas, as quais estão
além do conhecimento humano ordinário; b) o desvendamento da sabedoria oculta se dá
através de uma visão ou sonho; c) os portadores das revelações normalmente são os
anjos; d) a principal preocupação desses escritos é com o futuro, o modo como Deus
tratará o homem, bem como seus propósitos últimos; e) o emprego do mistério como
fator preponderante em sua composição, além do uso de figuras fantásticas e de um
simbolismo mistificante; f) a utilização de linguagem simbólica para se referir a certas
pessoas, coisas ou eventos.

Muitas vezes os autores dos apocalipses, para valorizar sua mensagem, escrevem
sob o pseudônimo de alguma eminente personagem veterotestamentária, colocando-se
em um ponto de vista passado, tornando-se assim capazes de “predizer” eventos que
acontecem no presente. Os livros assim escritos recebem a denominação de
pseudoepígrafos.
Os apocalipses são fundamentalmente escatológicos. A escatologia é a doutrina
que trata das últimas coisas (ta eschata - em grego), da consumação dos tempos e da
história.

O apocalipse de João é o único representante desse gênero literário incluído nos


livros canônicos23 da Bíblia, o que induz erroneamente a se considerar que é o único
apocalipse existente. O que é pouco conhecido é que existem outros apocalipses, em um
número relativamente considerável, porém não canônicos.

A tradução dos livros do Antigo Testamento conhecida como a tradução dos


Septuaginta é a mais antiga, e os judeus fizeram uso dela bem antes do início da era
cristã. Foi primeiramente aceita pelos judeus alexandrinos, posteriormente se
difundindo entre todos os povos que falavam o grego. No tempo de Cristo era
reconhecida como um texto legítimo, e era utilizada na Palestina até mesmo pelos
rabinos. Os apóstolos e os evangelistas a empregaram, emprestando citações dela,
principalmente em relação às profecias. Sua história é bem conhecida: Ptolomeu II
Filadelfo (287-247 a.C.), rei do Egito, queria enriquecer a recém fundada Biblioteca de
Alexandria com uma cópia dos livros sagrados dos judeus, traduzida para o grego, a
koiné, a língua internacional da época. Foram convocados setenta e dois sábios, seis de
cada tribo de Israel, os quais foram isolados na ilha de Pharos, onde trabalharam por
setenta e dois dias nessa tradução. Findo esse prazo, sua obra foi julgada em perfeita
consonância com o original hebreu e o rei ficou altamente satisfeito, entronizando
solenemente o trabalho na Biblioteca.

Entre os livros considerados inspirados existe um grupo de sete livros do Antigo


Testamento, e outros sete do Novo, que são denominados de deuterocanônicos, do
grego deuteros, segundo, como se pertencessem a um segundo cânon, posterior ao
primeiro. O primeiro, o cânon hebraico, posterior à era cristã, é fruto de uma série de
disputas que se prolongaram desde a queda de Jerusalém em 70 d.C. pelo menos até o
século II d.C. Foi uma época muito difícil para os judeus que, para manter a unidade de
sua fé, procuraram estabelecer um cânon de seus livros sagrados. Esses eram divididos

23
Os livros da Escrituras são denominados canônicos, isto é, pertencem a um cânon, ou registro,
catálogo, e constituem um conjunto de textos inspirados por Deus, que determinam a regra da fé cristã,
e tal é o sentido de kanon: cana para medir, régua, logo regra.
em Hat-Torah (A Lei); Nebiim (Os Profetas) e wa-Kéthubim (Os Escritos). Os doutores
hebraicos para estabelecer esse cânon se basearam em dois critérios, ao que parece: se o
livro fora escrito na Terra Santa (Palestina) e na língua sagrada (hebraico).

O segundo cânon, o alexandrino, elaborado pelos judeus alexandrinos no século I


d.C., reconhecia como sagrados também os livros deuterocanônicos, que não
compunham o cânon hebraico. A Igreja Católica considerou válido o cânon alexandrino,
no tocante aos livros do Antigo Testamento, outrora usado por Jesus e pelos Apóstolos,
seguindo fielmente a Tradição. Isso foi estabelecido nos Concílios de Hipona (393
d.C.), de Cartago (397 d.C.) e de Constantinopla (692 d.C.). Os Concílios Tridentino
(1546 d.C.) e Vaticano I (1870) consagraram definitivamente o cânon das Sagradas
Escrituras.

Os livros não canônicos recebem a denominação de apócrifos, palavra que se


origina do grego apokryphos, que quer dizer escondido. Modernamente a palavra
apócrifo se revestiu de uma conotação negativa, significando algo não autêntico. Pelo
contrário, muitos dos livros apócrifos são testemunhos contemporâneos ou transmitem
tradições fiéis de fatos ou relatos dos quais nunca teríamos conhecimento de outra
forma, sendo assim fontes preciosas, em certos casos únicas, da história. No presente
trabalho nos limitaremos ao estudo dos apocalipses apócrifos.

O mais antigo documento conhecido sobre os apócrifos, o fragmento de


Muratori, datado do final do séc. II d.C., já menciona que somente os apocalipses de
João e de Pedro, este último com ressalvas, podiam ser lidos nas Igrejas. O elenco mais
extenso de escritos do Novo Testamento considerados apócrifos é o chamado Decreto
Gelasiano, escrito esse que usa o nome do Papa Gelásio (falecido em 496 d.C.),
publicado entre 412 e 532, mas que pode remontar em parte ao séc.III. Enumeram-se
nele sessenta livros rotulados de apócrifos.

Listamos, a seguir, alguns dos principais títulos desse gênero literário24, a


literatura apocalíptica: 1. O Livro de Enoch (Etiópico; partes mais antigas compostas
em cerca de 120 a.C.)(λ); 2. Assunção de Moisés (escrito provavelmente em hebreu no
início da nossa era, c. 4 a.C.-10 d.C.) (θ); 3. O Livro dos Segredos de Enoch (Enoch

24
Como muitos dos documentos a seguir figuram em mais de um site, indicaremos ao menos um endereço
para consulta, embora os outros sites indicados possam também ser compulsados. Caso pairem dúvidas
sobre informações extraídas de websites, pode-se compulsar uma versão impressa da maioria dos textos
referenciados a sites no presente trabalho nas seguintes obras: WISE (1999) e ROBINSON (1990).
Eslavônico; escrito em hebreu provavelmente na primeira metade do séc.I d.C.)(λ); 4. O
Apocalipse de Baruch (preservado inteiro somente em siríaco, escrito provavelmente no
início do séc. II d.C.)(λ); 5. O Apocalipse de Abraão (séc. I-II d.C.)(Testamento de
Abrão;β,ι); 6. Esdras (II ou 4 Ezra, semítico, aparentemente hebreu, composto
aproximadamente no ano 90 d.C.)(β,δ,κ,λ); 7.Os Oráculos Sibilinos (op.cit.)(λ,η); 8.) Os
Testamentos dos Doze Patriarcas (provavelmente um escrito do século I da nossa era,
escrito em hebreu)(λ); 9. a Ascensão de Isaias (séc. II d.C.)(θ); 10.O Apocalipse de
Elias (Elijah, séc. I-IV? d.C.)(λ); 11. O Apocalipse de Sofonias (Zephaniah; séc. I a.C.-
II d.C.)(λ); 12. O Apocalipse de Moisés ou A Vida de Adão e Eva (provavelmente
escrito em hebreu, data incerta)(δ); 13.O Apocalipse de Sedrach (séc. II-V? d.C.)(λ); 14.
O Apocalipse de Pedro (grego, contemporâneo do Apocalipse de João, c.130 d.C.)(β, δ);
15. O Apocalipse de Paulo (c.380 d.C.?)(δ); 16. O Apocalipse de Maria Madalena
(grego, séc. II d.C.)(ε, ζ); 17. O Apocalipse de Bartolomeu (séc. III-V d.C.)(grego) (η);
18. O Apocalipse de Adão (séc.I-II d.C.) (δ, ε, λ); 19. O Apocalipse de James (séc. II-III
d.C.)(ε, δ, η); 20. Apocalipse de Maria (da Virgem; séc.IX d.C.?)(β).

As origens desses apocalipses, se judaicas, cristãs ou gnósticas, ou ainda uma


combinação dessas, ainda hoje são objeto de discussões e controvérsias. Indicaremos
algumas delas: a) judaicas: 1; 2; 3; 4; 5; 6 (4 Ezra); 7 (livros III-V); 13 ; b) cristãs: 7
(Livro II); 9; 14; 15; 16; 17; 19; 20; d) judaicas+cristãs:6; 7 ; 8; 10; 11; 12; e)
gnóstica:18. Algumas dessas obras sofreram influências gnósticas em vários graus, por
exemplo (7;18;19), entre outras.

Ë importante observar que os primeiros cristãos, seguindo a tradição judaica,


consideravam a história dividida em duas eras: a que antecedia e a que sucedia ao
advento triunfante do Messias. A diferença entre as duas correntes, a cristã e a judaica, é
que enquanto os cristãos consideram Cristo como o Messias, os judeus ainda estão a
aguardar por Ele. O Apocalipse de João narra que, após a vinda do Messias, “as almas
dos que tinham sido decapitados por causa do testemunho de Jesus e da palavra de
Deus... tornaram à vida e reinaram com Cristo durante mil anos. Os outros mortos não
tornaram à vida antes que se completassem os mil anos.” (Apocalipse.20; 4, 5). No fim
desse período – o Milênio – seguir-se-á a ressurreição geral dos mortos e o Juízo Final.
Essa é origem dos movimentos milenaristas (Nota 1), que prevêem o fim do mundo no
término do milênio. Somente no século V, quando o cristianismo se tornou a religião
oficial do império romano, a desaprovação ao milenarismo se tornaria enfática.
Foi S.Agostinho, em sua obra Cidade de Deus, que propôs que o Apocalipse
deveria ser interpretado como uma alegoria espiritual e, quanto ao milênio, que ele tinha
começado na origem do cristianismo e estava plenamente realizado na Igreja, não
devendo ser interpretado literalmente como um intervalo de tempo; o que constitui a
doutrina ortodoxa cristã ainda hoje vigente quanto ao assunto.

A idéia de que as escrituras continham um significado oculto não é nova. Porém,


no século XII, surgiu uma nova espécie de escatologia, derivada dos apocalipses e dos
Oráculos Sibilinos. Joaquim de Fiore (1145-1202 d.C.), abade e eremita calabrês,
recebeu, entre 1190 e 1195, uma inspiração que lhe revelava um novo sentido escondido
nas escrituras, de imenso valor profético. A sua idéia inovadora era de que os métodos
tradicionais de interpretação das alegorias nelas contidas se aplicariam não apenas para
fins morais e dogmáticos, mas também serviriam para compreender e prever o
desenvolvimento da história. Elaborou então uma interpretação da história como uma
sucessão através de três idades, cada uma presidida por uma das pessoas da Santíssima
Trindade. A primeira idade era a idade do Pai ou da Lei, uma época de terror e servidão;
a segunda idade era a do Filho ou do Evangelho, uma idade de fé e de submissão filial;
a terceira seria a idade do Espírito, uma era de amor, alegria e liberdade. Suas idéias
foram encorajadas por nada menos que três papas, embora fossem contra a concepção
agostiniana de que o reino de Deus já tinha sido realizado sobre a terra, no momento em
que a Igreja nasceu, e que não se poderia esperar outro milênio

A influência de suas idéias pode ser detectada ainda nos dias de hoje como, por
exemplo, na concepção da história de Augusto Comte, com suas três fases sucessivas: a
fase teológica, a fase metafísica e a fase científica. Também na dialética marxista
reconhecemos sua influência, notadamente nas três etapas de sua consecução: o
comunismo primitivo, a sociedade de classes e um comunismo final, que deveria ser o
reino da liberdade e no qual o Estado terá desaparecido. Igualmente a expressão “O
Terceiro Reich”, de triste memória, e que foi cunhada em 1.923 pelo publicitário
Moeller Van den Bruck para designar “a nova ordem”, a qual deveria durar um milênio,
ecoa as idéias de Fiore.

O Apocalipse de João

O autor do Apocalipse se autodenomina João e que se encontrava na ilha de


Patmos quando recebeu a revelação (Apocalipse.1:9). Esse João era o apóstolo João, o
filho de Zebedeu, o discípulo amado de Cristo, que tinha sido banido para Patmos no
reinado de Domiciano (de 81 a 96 d.C.), segundo uma tradição registrada na mais antiga
História da Igreja que possuímos, escrita por Eusébio (260-341 d.C.), bispo de Cesaréia,
na Palestina. Patmos é uma de um grupo de pequenas ilhas próximas da costa da Ásia
Menor, situadas a cerca de vinte quilômetros de Éfeso.

Desde a antiguidade a atestação de sua autoria pelo apóstolo João é contestada. A


relação entre o apocalipse e o quarto evangelho tem sido discutida por inúmeros autores,
tanto antigos como modernos, uns negando, outros garantindo sua semelhança mútua.

Já no século segundo a seita herética dos Alogi (contrários à doutrina do verbo, da


palavras: a-logos), não aceitavam nem o Evangelho nem o Apocalipse de João, pois
acreditavam que essas obras tinham sido escritas por um herege de nome Cerinto. Essa
opinião foi compartilhada por alguns poucos pais da igreja, como Caio e Dionísio.

Dionísio, bispo de Alexandria de 247 a 264 d.C., já listava um rol de diferenças


entre eles, como: enquanto o evangelho é anônimo, o escritor do apocalipse prefixa seu
nome; a terminologia característica do evangelho, essencial à doutrina joanística, está
ausente no apocalipse, termos como vida, luz, graça, verdade não figuram no último; no
evangelho o grego é escorreito, enquanto que a linguagem do apocalipse parece a
Dionísio bárbara, desfigurada por erros de sintaxe. Embora os defensores de uma
autoria comum argumentem que essas diferenças se devam às naturezas peculiares de
cada obra (no apocalipse encontramos visões e revelações, já o evangelho é escrito
como um registro histórico), a maioria dos autores atuais considera-os frutos de dois
autores independentes. É certo, porém, que o autor do apocalipse pertenceu ao círculo
dos discípulos de João, sendo herdeiro fiel de parte valiosa dos seus ensinamentos. Isso
pode ser comprovado, entre outros detalhes, pela importância que em ambas as obras se
dá ao termo Logos, o Verbo, a Palavra ( João 1:1; Apocalipse 19:13; 1 João 1:1).
Embora alguns autores se refiram ao hagiógrafo do apocalipse como João o Presbítero,
optaremos por designá-lo doravante como João de Patmos.

Ë um escrito de circunstância, destinado a robustecer o ânimo e a esperança dos


primeiros cristãos, açoitados que eram por um período de perturbações e violentas
perseguições contra sua igreja nascente. Em seu estado atual, seu texto apresenta um
certo número de duplicações, de cortes na seqüência das visões e de passagens
aparentemente fora de contexto. Múltiplos argumentos acorrem aos comentadores no
intuito de explicar essas anomalias: compilação de fontes diferentes; deslocamento
acidental de certas passagens ou capítulos; interpolações, espúrias ou não; etc. A parte
propriamente profética (Apocalipse 4-22) aparentemente é composta por dois
apocalipses distintos, escrito pelo mesmo autor em datas diferentes, e depois
compilados em um só texto por uma outra mão.

A datação do apocalipse se baseia na afirmação de Eusébio, cujo mestre,


Policarpo, tinha estado entre os discípulos do apóstolo João, de que o seu exílio em
Patmos se deu no décimo quarto ano do reinado de Domiciano, o que nos dá o ano de
95 d.C., data tradicionalmente aceita para a obra, apesar de que sua autoria permaneça
contestada. É aceito, porém, que partes do mesmo já estariam redigidas desde o tempo
de Nero, ou seja, pouco antes de 70 d.C., ou de Vespasiano, que o sucedeu.

Quanto à sua canonicidade, o testemunho mais antigo que possuímos, o fragmento


Muratori, já o menciona como inspirado, porém a polêmica sobre sua inclusão ou não
no cânon foi prolongada. Sobre essa questão Eusébio não se define; o Peshito, a Vulgata
Síria, não o aceita, bem como Cirilo de Jerusalém (315-386 d.C.); assim como não
figura na lista de livros canônicos dos sínodos de Laodicéia (325 ?) e no de Gregório
de Nazianzus (381). Até o século V as igrejas da Síria, Capadócia e da Palestina não o
incluíam no cânon das escrituras, prova que não o consideravam obra de um apóstolo.
Lutero descartou-o, bem como Zwinglio e Erasmo. Somente com o concílio de Trento
(1545-1563) foi definitivamente incluído no rol dos livros canônicos.

Toda a literatura apocalíptica se fundamenta em um dualismo ético e


cosmogônico: o Princípio e o Fim; o Bem e o Mal; o Céu e a Terra; Jerusalém e
Babilônia; Ocidente e Oriente; Deus e Satã; o Cordeiro e a Besta; Cristo e o Anticristo;
888 e 666. Esse dualismo, representado pelo embate entre as forças da luz e as das
trevas, também desempenhou um papel preponderante no gnosticismo e no mitraismo,
podendo suas origens serem rastreadas até o zoroastrismo persa. Nos deteremos agora
na análise do papel representado pela Besta do Apocalipse.

O Anticristo, ou a Besta do Apocalipse

Esse papel maligno é representado no apocalipse por três atores: o dragão


(Apocalipse 12; 3-17), com sete cabeças e dez chifres e, nas cabeças, sete diademas, que
aparece no céu (12:3); a primeira besta, com dez chifres e sete cabeças, sendo que sobre
os chifres tinha dez diademas, que emerge do mar (13;1-8); a segunda besta (13:11-18),
com dois chifres, que surge da terra, também designada como o falso profeta (16:13;
19:20). Outras menções sobre esse papel aparecem em: 11:7 (a besta que surge do
abismo); 17:7-8 (a besta que sobe do abismo, com sete cabeças e dez chifres); 20:7
(Satanás solto de sua prisão). O desempenho de tal papel é quase unanimente atribuído
ao que se costuma denominar de Anticristo, ou Besta do Apocalipse, embora os
comentadores divirjam quanto ao ator que o representa, ou seja, ao versículo que o
designa.

Quanto à natureza do Anticristo, as opiniões se dividem: a) é um princípio


demoníaco, porém incorpóreo, não sendo assim nem pessoa nem entidade; b) é uma
pessoa, ou do passado (Nero, Diocleciano, Calígula, etc.), ou do presente, ou do futuro;
c) é uma entidade (o papado, o império romano, etc.), antiga, moderna ou por vir.

O dragão, com segurança, pode ser identificado com o Diabo, ou Satanás,


conforme esclarece o versículo 12: 9 : “Foi precipitado [à terra, por Miguel e seus
anjos] o grande dragão, a antiga serpente, aquele a quem chamam Diabo e Satanás, o
sedutor do mundo inteiro”. Já a primeira besta, a que sobe do mar, um lugar maléfico
segundo a mentalidade hebraica, e recebe seu poder do dragão (Satanás), é uma criatura
híbrida, cujos traços são reminiscências das quatro bestas que representam os sucessivos
impérios do mundo em Daniel 7. Seus diademas e seus chifres (ícones de soberania e
poder), fazem dela a imagem do estado autoritário (o império romano, sendo César seu
representante supremo), inimigo de Deus. O dez chifres são habitualmente interpretados
como os reis vassalos sob a supremacia de Roma. A segunda besta, a que fala com a voz
de Satanás (13:11), é a religião oficial, dominada pelo estado, identificada como o falso
profeta (16:13; 19:20). O dragão e a primeira besta eram uma imitação do Pai e do
Filho, a segunda besta é um arremedo do Espírito; assim, o caráter trinitário dessas
entidades malignas é um simulacro caricatural da Trindade, havendo na realidade um
único papel malévolo, o do Anticristo ou da Besta do Apocalipse.

João de Patmos supõe que a doutrina concernente à vinda do Anticristo já é


conhecida dos seus leitores; muitos exegetas25 acreditam que essa doutrina tornou-se
conhecida na Igreja por meio dos escritos de Paulo (2 Ts 2:3-10).

25
Pessoa que pratica a exegese; exegese é minuciosa interpretação de um texto ou palavra, especialmente
da Bíblia.
O versículo 13:16-17 reza: “[a segunda besta] Faz também com que todos,
...recebam uma marca na mão direita ou na fronte, para que ninguém possa comprar
ou vender se não tiver a marca, o nome da Besta ou o número do seu nome”. Essa
marca com que todos são assinalados é a imagem (ícone) do imperador, notadamente
nas moedas do reino. Esse parece ser o significado dessa passagem, de que todas as
transações comerciais, sejam compras ou vendas, seriam impossíveis para aqueles que
não tivessem a marca da besta, ou seja, moedas com a efígie do imperador ou com o seu
nome. Contra essa interpretação argüi-se que os judeus no tempo de Cristo não tinham
escrúpulos em manusearem moedas com a efígie de César: “Dai, pois, a César o que é
de César, e a Deus, o que é de Deus” (Mateus 22:15-22). Porém cabe lembrar que o
horror dos judeus por imagens de imperadores era devido principalmente à sua repulsa à
idolatria que Calígula tinha adrede anteriormente adotado: o culto ao César Imperador
como divindade. Ele confiscara diversas sinagogas, transformando-as em templos
pagãos nos quais sua estátua era venerada e, absurdo dos absurdos, em 40 d.C.
entronizara uma imagem sua no sacrossantíssimo Templo de Jerusalém! Não à toa
Calígula sempre foi forte candidato à Besta do Apocalipse.

Analisemos agora o versículo 17: 9-11: “[as sete cabeças] São também sete reis,
dos quais cinco já caíram, um existe e o outro ainda não veio, mas quando vier deverá
permanecer pouco tempo. A Besta que existia e não existe mais é ela própria o oitavo e
também um dos sete, mas caminha para a perdição”. As sete cabeças da Besta são sete
imperadores; cinco deles, diz João, já caíram: Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e
Nero. “Um existe”, diz o autor, ou seja: Vespasiano (70-79 d.C., época aproximada da
redação da primeira parte do apocalipse), constituindo-se assim no sexto imperador. O
sétimo “ainda não veio, mas quando vier deverá permanecer pouco tempo”
provavelmente é Tito, que reinou apenas por dois anos (79-81).

O oitavo é Domiciano (81-96). João de Patmos identifica-o como a Besta, porém


acrescenta: “...que existia e não existe mais é ela própria o oitavo e também um dos
sete, mas caminha para a perdição”. Isso soa muito enigmático, de sabor oracular. A
pista para a solução dessa charada é fornecida por um mito popular muito difundido
nesse tempo. A morte de Nero tinha sido testemunhada por poucos. Principalmente no
extremo do império, no oriente, permaneceu a impressão de que Nero ainda estava
vivo. Testemunho disso encontramos no Livro V dos Oráculos Sibilinos, como já
mencionamos. Desse modo, os contemporâneos de João acreditavam piamente em seu
retorno. Nero ganhara reputação por sua licenciosidade e extrema crueldade; no seu
reinado (de 54 a 68 d.C.) a primeira grande perseguição aos cristãos ocorrera: culpou-os
pelo incêndio que arrasou Roma em 64 d.C. Nessa época, o apóstolo Pedro foi
crucificado de cabeça para baixo e Paulo decapitado, ambos em Roma. A segunda
grande perseguição ocorreu sob Domiciano, o que conduziu João a considerá-lo um
segundo Nero, “Nero redivivus”. Desse modo, conta Domiciano como o oitavo e, ao
mesmo tempo, também um dos sete precedentes, a saber Nero.

Essa é a interpretação textual dessa parte do apocalipse, aceita atualmente pela


maioria dos exegetas. Vejamos agora a explicação do número da Besta (Ap 13:18) à luz
da gematria.

O Affair Nero Reavaliado

A passagem que nos interessa é: “Quem é inteligente calcule o número da


Besta, pois é um número de homem: seu número é seiscentos e sessenta e seis
(Apocalipse 13:18).”

Como vimos, no início da era cristã dois alfabetos, o grego e o hebreu,


correlacionavam suas letras a valores numéricos, capacitando-os assim a propiciarem
às palavras por meio deles escritas interpretações pela gematria. Como o Apocalipse
foi originalmente escrito em grego, e no texto o número 666 é Χ Ξ F, ou χ ξ F em
minúsculas, isso no autoriza a argumentar que o alfabeto em que João de Patmos
pensava quando escreveu esse texto era o grego, e primeiramente deveríamos procurar
sua interpretação em palavras desta língua.

Alguns poucos documentos muito antigos consignam 616 ao invés de 666. Duas
explicações são propostas para esse fenômeno: a primeira, já aventada por Irineu
(Adversus Haereses,V, 30), afirma que a letra medial xi (csi, 60: Ξ,ξ) foi copiada
erroneamente como iota (10: Ι, ι), tratando-se, portanto, de um erro do copista. É a
mais aceita, tendo-se em vista que a maioria dos documentos registra 666. A segunda
explicação será apresentada mais adiante.

Praticamente desde o surgimento do Apocalipse tem-se procurado quem atenda


ao prescrito nessa passagem Irineu, já no século II, nos proporciona as mais antigas
interpretações que possuímos desse enigmático versículo. No seu livro Adversus
Haereses (V, 30; β) propõe que os Latinos em geral, ou seja, ou romanos, atendam ao
requerido no apocalipse, pois a interpretação pela gematria da palavra grega lateinos
(ΛΑΤΕΙΝOΣ=30+1+300+5+10+50+70+200=666) nos dá o número da besta, 666. Não
satisfeito, sugeriu ainda o nome EVANTHAS e o deus TEITAN (Titã), como
possíveis candidatos. Ë interessante observar que Irineu admitia apenas o cálculo
gemátrico grego.

Como vimos, o candidato ao título de Besta do Apocalipse mais aceito pelos


exegetas é Nero. Como Porém, seu nome em grego, complementado pelo seu título
CÉSAR (NEPΩN KAEΣAP= 50+5+100+800+50+20+1+5+200+1+100 = 1332) não
soma 666. Há evidências que João de Patmos conhecia algo de hebreu, pelo seu uso de
termos dessa língua, como Armagedon e Abadon. Por isso, tentou-se a transposição do
seu nome para essa língua: NRUN=50+200+6+50=306, QSR=100+60+200= 360,
306+360=666. Essa é a interpretação usual do Número da Besta que figura nos livros
de história da matemática citados, e é apresentada como exemplo padrão da gematria.
Se o N (nun, 50) final de NRUN for excluído, tem-se então NRU QSR, e valor do
nome passa a ser 616; é o que alguns autores propõem para justificar a escrita 616 ao
invés de 666. Todavia, essa segunda explicação teve uma aceitação restrita.

Contudo, vários comentadores (BARRY, p.145) têm observado que essa


transposição é imperfeita, pois a letra inicial de César deveria ser K=kaph=20 ao
invés de Q=qoph=100, o que forneceria para o nome um valor numérico de 586 e não
666. Além disso, o nome verdadeiro de Nero era Lucius Domitius Ahenobarbus, o
qual não perfaz 666 nem em grego nem em hebreu; somente quando foi adotado pelo
imperador Cláudio, que casara com sua mãe Agripina, é que passou a se chamar Nero
Claudius Caesar Drusus Germanicus. Era um caráter brutal, que raiava a insanidade,
tendo mandado matar a própria mãe em 59 d.C. Suetônio, o historiador romano autor
da Vida dos Doze Césares (início do séc.II d.C.), registra que nas muralhas de Roma
podia-se ler o seguinte grafite: “Conte os valores numéricos das letras do nome de
Nero, e os em “ele matou sua própria mãe”, e você achará que sua soma é a mesma”.

Realmente, se notarmos que Nero (NEPΩN=50+5+100+800+50=1005) equivale


a 1005, e que “ele matou sua própria mãe” (grego I∆IAN MHTEPA AΠEKTEINE =
10+4+10+1+50+40+8+300+5+100+1+1+80+5+20+300+5+10+50+5 = 1005)
igualmente soma 1005, não é de se admirar que seus contemporâneos acreditassem
que a gematria atestava a natureza de seu caráter; isso também comprova que o seu
uso era amplamente disseminado entre o vulgo. Porém, em que pese a maioria das
interpretações textuais apontarem-no como o candidato mais provável à Besta do
Apocalipse, os cálculos de gematria geralmente apresentados como prova dessa
identificação são, como vimos, pouco convincentes, se levarmos em conta os critérios
dessa prática tradicionalmente aceitos na época.

O segundo candidato mais provável, como mencionamos, era o imperador


Diocleciano ( Diocletian Augustus). Seu nome, quando consideradas somente as letras
que são numerais romanos (em maiúsculas: DIoCLes aVgVstVs =
500+1+100+50+5+5+5 = 666) também somaria 666; todavia, o emprego de numerais
romanos é questionável, pois não era tradição na prática da gematria.

Inumeráveis outros candidatos foram surgindo, como, por exemplo, Antemos,


Iapetus, Gerbert, Maomé, Lutero, Calvino, Luis XIV, Bonaparte, etc. Em um período
turbulento da história da igreja, um papa cognominava seu opositor de Anticristo,
designação que lhe era devolvida em seguida. Em 1584, Peter Bungus, um místico
católico, “demonstrou” que Lutero era o Anticristo, pois o seu nome, em um alfabeto
numeral romano, dava 666: LVTHERNVC = 30+200+100+8+5+80+40+200+3=666.
Em revide, os discípulos de Lutero não demoraram a retrucar o apodo, observando que
os numerais romanos contidos na frase VICARIUS FILII DEI (Vigário do Filho de
Deus), que está na tiara papal, igualmente perfazem 666: VICarIVs fILII De I =
5+1+100+1+5+1+50+1+1+500+1 = 666.

Pela escolha deliberada de um determinado alfabeto, palavra ou nome, bem


como do sistema de gematria a adotar, é possível “deduzir” aproximadamente
qualquer significado que se queira de uma dada palavra, nome ou passagem. A
interpretação depende apenas da criatividade e da fantasia do praticante. É igualmente
óbvio que nenhum valor numérico simbólico pode ser interpretado com um razoável
grau de certeza sem que se tenha uma pista do alfabeto empregado e da intenção do
autor.

Cabe ao autor observar que, dentro do seu conhecimento e compulsando o


corpus apócrifo a que teve acesso, a passagem registrada em Apocalipse 13:18 é única
no contexto da literatura apocalíptica. Como, portanto, não é um traço comum a esse
gênero literário, é válido indagar se essa passagem não é apenas uma interpolação
posterior na profecia concernente à Roma. Essa opinião é compartilhada por vários
autores, como por exemplo Toy e Kohler (cf. verbete Book of Revelation, Jewish
Encyclopedia, ν). Nesse caso, 13:18 teria seu valor profético significativamente
diminuído, restando talvez apenas sua importância como um exemplo histórico da
aplicação da gematria. É importante observar que a Igreja Católica nunca avalizou
uma interpretação literal de 13:18, em que pesem as quizílias históricas já
mencionadas.

É provável que a motivação para essa interpolação tenha sido a manutenção do


equilíbrio do dualismo Cristo - Anticristo; como o Cristo era reconhecido na época26
numericamente por 888, optou-se arbitrariamente por 666 para representar o
Anticristo. Portanto, embora essa debatida interpolação possa talvez ter sido inserida
com a melhor das intenções, e contenha possivelmente algum valor profético, sua
interpretação literal deve ser tomada cum grano salis27.

Alguns Exemplos de Pseudogematria Apocalíptica Moderna

Dentro da pseudogematria apocalíptica moderna, praticamente qualquer trapaça


é válida para justificar as intenções dos “numerólogos”. Vejamos algumas. William
Henry Gates III, o presidente da Microsoft, é conhecido como Bill Gates (III).
Convertendo seu nome em valor numérico, empregando os valores tabulados do ASCII
(American Standard Code for Information Interchange), temos:

BILL GATES 3 : (66+73+76+76)+(71+65+84+69+83)+(3) = 666.

A batota aqui é que o valor do número 3 no ASCII é dado por 51 e não 3. Mas é
interessante a escolha do ASCII como um alfabeto em gematria.

Outra interpretação fantasiosa, envolvendo agora a Internet, a World Wide Web


– WWW, é a seguinte: sua sigla www, quando escrita em letras hebraicas é ‫ווו‬
(VauVauVau); como ‫( ו‬Vau) vale 6, teríamos www = ‫ = ווו‬666, a besta apocalíptica
informática. Aqui o logro é que o valor dado pela gematria para www é 6+6+6=18, não
666, pois a gematria prega que deve-se somar os valores de cada letra, não
simplesmente justapô-los. A mesma explicação se aplica ao exemplo seguinte.

Observou-se que cada um dos nomes do ex-presidente do E.U.A. Ronald Wilson


Reagan tem 6 letras, logo o nome forma 666. Outra tentativa aplicada ao mesmo
presidente envolve a adoção do alfabeto a=101; b=102;...;z=126; e a observação que a
pronúncia fonética do sobrenome desse presidente (REAGAN) é algo como REAGUN,

26
Jesus: (grego) ΙΗΣΟΥΣ = 10+8+200+70+400+200= 888.
27
Com uma pitada de cautela.
cujo valor nesse alfabeto é 118+105+101+107+121+114 = 666. Aqui há dois engodos:
o primeiro, a escolha do alfabeto; o segundo, a opção pouco convincente pela pronúncia
fonética do sobrenome.

Para encerrarmos, uma última interpretação referente ao fundador da “dinastia


Bush”. Empregando-se o mesmo alfabeto aplicado ao Reagan, notou-se que I. G. BUSH
(que foi seu vice-presidente), vale 109+107+102+121+119+108=666, daí a “dinastia
apocalíptica”. Aqui o embuste envolve a escolha das letras do nome. O seu nome
completo verdadeiro é George Herbert Walker Bush, não havendo a inicial I no nome,
nem sendo admissível tomá-la pelo numeral romano I (um, primeiro). O seu filho, o
atual presidente, se chama George Walker Bush, cujo nome também não satisfaz.

Numerologia Moderna

Os pitagóricos, como mostramos, com sua idéia de que tudo era número, podem
ser considerados como os precursores do misticismo numérico. Os seus sucessores, os
néo-pitagóricos, mais de meio milênio depois, ampliaram e aprofundaram as
propriedades místicas atribuídas aos números inteiros. No transcorrer da idade média, o
misticismo e o simbolismo numérico fervilhavam na Europa, embora idéias inovadoras
sobre o assunto não surgissem.

O misticismo numérico tradicional, grego de origem, associava nomes (pessoas),


palavras ou passagens a números. Com o exemplo do número da besta, vimos como um
caráter maligno (o Anticristo) foi correlacionado a um número (666), o qual,
eventualmente, poderia servir para identificá-lo. Porém, somente nos fins do século
XIX, surgiu a idéia revolucionária de que, além de se associar um número a uma
pessoa, as propriedades místicas desse número influíssem nela. Essa noção conduziu a
muitos adeptos da numerologia moderna a alterarem seus nomes, mudando assim seus
números associados, optando por números/nomes com aspectos benfazejos.

Provavelmente essa idéia surgiu de um paralelo com a astrologia, pois os


astrólogos por muitos séculos vêm correlacionando signos astrológicos às pessoas, e
aplicando propriedades místicas desses signos para elaborar previsões e dar conselhos.

DUDLEY (1997) atribui essa idéia à Josephine Balliet, de Atlantic City, New
Jersey, que considera como a fundadora da numerologia moderna, embora admita que
ela possa ter tido predecessores.
Sobre a vinda do Anticristo e de seus sinais, à guisa de conclusão, o melhor
conselho a seguir é o dado por Irineu de Lyon no século II, ainda surpreendentemente
válido e atual, que endossamos: “É assim mais acertado, e menos perigoso, aguardar o
cumprimento da profecia do que fazer conjecturas e previsões acerca de qualquer nome
que se possa aventar, visto que muitos nomes podem ser encontrados que possuem o
número mencionado [666]; e esta questão irá, apesar de tudo, permanecer insolúvel”
(Adversus Haereses, V, 30, β).

NOTAS AO CAPÍTULO VII

Nota 1. Dentro dessa corrente destacaremos apenas duas obras: O Nome da Rosa (Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1983), de Humberto Eco, e o Código Da Vinci (New York, Doubleday, 2004), de Don Brown.
O pano de fundo da primeira obra é perpassado pela influência das diversas heresias milenaristas no
vulgo da época em que se passa a ação, bem como não aceitação da propriedade de bens materiais por
parte dos primeiros franciscanos, que pregavam a humildade e a pobreza, o que ocasionou sérios embates
com a cultura materialista então vigente na Igreja. Para melhor compreensão desse background
recomendamos a leitura de COHN (1980). Já na segunda obra, o pano de fundo envolve tanto alguns
conceitos (Fibonacci, criptografia, número de ouro, etc.) verdadeiros, como entidades, algumas reais
(Opus Dei, Templários), outras imaginárias (Priorado), e alguns artefatos pseudo-históricos, como o
“criptex” atribuído à Leonardo, na verdade inexistente. Mistura, portanto, elementos históricos reais com
inventados; embora no início da obra o autor afirme que é um obra de ficção, mencionando que se baseou
em fatos reais, listando uns poucos, no seu desenrolar a ficção e a realidade estão entretecidas. O perigo
reside no fato de que a maioria do seu público leitor não possui um conhecimento da história sólido e é
incapaz, portanto, de separar o joio do trigo, sendo induzida a acreditar que todos os elementos do enredo
são reais. Essas obras, como afirmamos, valem pelo entretenimento que proporcionam.
Nota 2. Como exemplo dessa corrente selecionamos o best seller O Código da Bíblia (São Paulo, Cultrix,
2002), de Michael Drosnin. Nessa obra o autor constrói uma teia de conjecturas baseada em um pseudo-
código que “descobriu” nos livros da Bíblia hebraica. Considera, pois, o hebraico a língua sagrada.
Afirma que “Moisés recebeu de Deus a Bíblia” (p.25), que as letras hebraicas de seus livros contém um
“código secreto”, que pode ser descoberto se selecionarmos em um dado trecho uma letra, pulando na
seqüência um número fixo de letras, então uma outra, e assim por diante, mediante um programa de
computador. Essas letras reunidas formam palavras, nomes, profecias escondidas no “código da Bíblia”.
O autor demonstra um total desconhecimento, provavelmente intencional, de como os livros históricos da
Bíblia foram realmente compilados, de como o hagiógrafo reuniu, por vezes, várias fontes, acrescentou
interpolações, redigindo a forma final segundo seu estilo. O hebreu, particularmente no Torah, como
vimos, nunca foi considerado uma língua sagrada. Além disso, em qualquer trecho escrito, em qualquer
língua, de qualquer autor, podemos descobrir “significados ocultos” se empregarmos seu “método”,
bastando escolhermos o trecho, o inicio da mensagem, e o salto por que optarmos de forma
intencionalmente enviesada. Desaconselhamos a leitura desse tipo de obra.

Nota 3. Sites da Internet

Dada a volatilidade do material disponível na Internet, bem como a mutabilidade de


seus endereços, será indicada, entre parênteses, a data da consulta ao site respectivo.

α) Mathworld (07/jan/05): http://mathworld.wolfram.com

β) Enciclopédia Católica (/05/jan/05): http://www.newadvent.org/cathen/

γ) (/07/jan/05): http://www.webcom.com/hermit/page/sefer.htm

δ)(10/jan./05): http://wesley.nnu.edu/biblical_studies/noncanon/index.htm

ε) The Gnostic Society Library: (12/jan./05):

http://www.gnosis.org/naghamm/nhlcodex.html

ζ) (/12/jan/05): http://www.thenazareneway.com/the_gospel_of_mary_magdalene.htm

η) (/15/jan./05) : http://www.comparative-religion.com/christianity/apocrypha/

θ) (/12/jan./05): http://www.piney.com/Testament-Moses.html

ι) (jan./05): http://www.oxleigh.freeserve.co.uk/pt01c.htm

κ) Early Church Fathers (/05/jan./05) : http://ccel.org./fathers2/ANF-08/anf08-106.htm

λ) Early Jewish Writings (/07/Jan.05): http://www.earlyjewishwritings.com/

µ) Early Christian Writings (/05/jan./05) : http://www.earlychristianwritings.com/

ν) Jewish Encyclopedia (/08/jan./05) : http://www.jewishencyclopedia.com/index.jsp

ξ) (09/fev/05): http://www.ccel.org/c/charles/otpseudepig/jubilee/
CAPÍTULO VIII

GEOMETRIA PALEOLÍTICA

Um símbolo não traz explicações; impulsiona para além de si


mesmo na direção de um sentido ainda distante, inapreensível,
obscuramente pressentido e que nenhuma palavra de língua
falada poderia exprimir de maneira satisfatória.

Karl Jung

Mitos, rituais e símbolos – origens do pensamento abstrato

Segundo ELIADE (1986), o mito é uma realidade cultural extremamente


complexa, que conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar
em um tempo primordial, o tempo fabuloso dos “começos”. É a narração de uma
criação, descreve-se como uma coisa foi produzida, como começou a existir. Sua
função soberana é revelar os modelos de todos os rituais e de todas as atividades
humanas significativas: tanto a alimentação como o casamento, o trabalho, a
educação, a arte ou a sabedoria. Daí a importância dos chamados mitos de criação, os
mitos cosmogônicos. Mito e ritual são complementares; ritual é o drama mágico para
o qual o mito é o seu livro de palavras, que não raro sobrevivem muito depois de ter
cessado o desenrolar do drama propriamente dito.

Rituais são desempenhos para assinalar situações de liminaridade, como


passagem de um estágio de um ciclo vital para outro (nascimento, puberdade,
casamento, morte); ou mudança de uma atividade econômica (plantio, colheita); ou
relacionados à alteração de ciclos climáticos (chuvas, primavera, verão, outono,
inverno); ou ainda de caráter propiciatório (caça, pesca); divinatório (predição do
futuro) e de cura. A encenação ritual exige a personificação de seus atores,
caracterizada de alguma forma, seja pela sua ornamentação corporal, pelas suas
vestimentas, adornos ou uso de objetos rituais. Tudo é simbólico em um objeto ritual.
Ensina a etnologia que os mitos narram a origem, a aparência e o modo de uso
dos objetos rituais; portanto, pelo seu estudo e mediante a observação pormenorizada
do cerimonial poder-se-ia, teoricamente, chegar à fundamentação mítica dos objetos
rituais. Isso, contudo, é impossível em se tratando da pré-história, onde tanto os
mitos como os personagens desses cerimoniais há muito se desvaneceram nas
penumbras do tempo.

Os povos caçador-coletores, como mencionamos, dispõem de um universo de


mitos extraordinariamente rico, porém de conteúdo aparentemente estranho ao
pensamento moderno ocidental, o qual, porém, deve apresentar significativa
similaridade com o pensamento abstrato vigente no paleolítico.

Símbolo é algo que, por convenção arbitrária, designa ou representa uma


realidade complexa. Alerta JUNG, porém, para a importante diferença existente entre
sinal (signo) e símbolo: o sinal é sempre menos do que o conceito que ele representa,
enquanto que o símbolo sempre representa mais do que o seu significado imediato e
óbvio. Exemplos disso temos na balança, símbolo da justiça, e na cruz, símbolo da
cristandade. Através da simples observação de seu aspecto material, ou da mera
constatação da sua utilidade, somos incapazes de intuir a complexidade de seu
conteúdo simbólico. Ë geralmente aceito que o comportamento moderno do homem
se iniciou quando começou a pensar abstratamente, ou seja, a empregar, consciente e
intencionalmente, símbolos.

Breve História do Simbolismo

Os primeiro símbolos que se tem conhecimento aparecem na arte paleolítica.


Inicialmente se pensava que eram apenas produto da art pour l´art, ou seja, as
imagens eram feitas apenas por prazer, divertimento ou decoração, despidas de
significado simbólico. Achava-se que, como os primitivos tinham muito tempo para
o lazer, podiam dedicar-se a satisfazer seus prazeres estéticos. Propagavam-se idéias
românticas acerca dessa arte, como as que estavam eternamente embebidos no culto
à beleza.

Giambatista Vico (1668-1755), jurista italiano, um dos últimos a dominar o


saber universal, desafiou em 1734 a noção vigente que os povos “selvagens ou
primitivos” tinham uma mente diferente dos povos “civilizados”. Afirmou que os mitos
e as explicações que davam para os fenômenos naturais não eram simplesmente
nonsense baseado na ignorância, elas eram “poéticas” ou “metafóricas” e não deviam
ser tomadas literalmente. Como Vico estava muito adiante de seu tempo permaneceu
ignorado; esse preconceito de “mentalidade primitiva” perdura até hoje,

Em 1.865, Sir Edward Tylor (1.832-1.917) já pressentia uma afinidade entre arte
pré-histórica e magia. Salomon Reinach (1.858-1.932), elaborando esta tese, propôs em
1.903 que o único modo que podemos entender a arte paleolítica é examinando o modo
de vida de povos “primitivos” existentes no presente, ou seja, estudando as culturas dos
povos caçador-coletores. Levantou, na ocasião, uma questão para a qual ainda não
temos resposta: é possível compreender a arte paleolítica sem recorrer às analogias?
Empregando-as não estaremos simplesmente recriando o passado com uma imagem do
presente?

Outra idéia difundida no início do século XX foi a do totemismo. Esta palavra


deriva de um vocábulo Ojibwa, uma tribo norte-americana de índios, que denota um
animal, ou uma planta, que é o emblema de um clã. Pode-se falar, portanto, de um
povo-águia, ou um povo-urso. As cavernas paleolíticas seriam pólos de grupos de
determinados totens e as suas imagens representariam totens. Porém, como numa
mesma caverna geralmente encontram-se imagens que representam diversos animais, a
afirmação de que esta caverna seria do “povo-bisão”, por exemplo, não se sustenta.

Mais tarde, o Abade Henry Breuil (1.877-1.961) e outros expandiram a hipótese


da magia para abranger a caça mágica, ou magia simpática, onde as imagens dariam ao
caçador poder sobre a presa. Atingir a imagem de um bisão com uma lança, por
exemplo, representaria uma antecipação do sucesso da caça, que estaria garantida pelo
ritual mágico prévio. Isso explicaria porque a maioria das imagens estaria escondida em
recônditos de cavernas: a magia deve ser feita longe vista dos curiosos. Porém, apenas
15 % das imagens de bisões paleolíticos mostram-nos feridos ou morrendo, a maioria
parece realisticamente estar viva.

A noção de estrutura foi desenvolvida pelo lingüista suíço Ferdinand de


Saussure (1.857-1.913), sendo que algumas das distinções que levantou influenciaram o
estudo da arte paleolítica. Distinguiu entre langue (linguagem ou gramática) e parole
(fala, discurso); langue é assim a estrutura e parole o discurso produzido com esta
estrutura. Também diferenciou entre estudos diacrônicos e sincrônicos. Os diacrônicos
estudam o desenvolvimento de uma linguagem ao longo do tempo, já os sincrônicos
examinam uma linguagem em um dado tempo, ou seja, sua estrutura, sua langue.
Símbolo, para Saussure, consiste na unidade dentre o referente (signo) e o significado.

Max Raphael, seguidor de Saussure, adepto das teorias marxistas, afirmou que a
arte do paleolítico superior não explicita nada sobre os instrumentos de produção destes
povos, o sobre suas técnicas de caça, ou mesmo sobre suas habitações, isto é, sobre os
componentes materiais de sua infra-estrutura. O que ela narra, por meio de um código
estruturado, é sobre a luta social. Como no totemismo, os grupos sociais eram
representados por meio de animais; animais em combate representavam lutas de clãs.

Annette Laming-Emperaire (1.917-1.978) em seus estudos argüi que a


mentalidade do homem paleolítico era muito mais complexa do que se supunha, e que
as imagens parietais deveriam ser estudadas como composições planejadas, não pinturas
individuais dispersas randomicamente. Rejeitava qualquer asserção simplista de
totemismo, bem como o valor de analogias etnográficas. Argumentava que a dificuldade
de acesso a muitas imagens subterrâneas apontava para prováveis intenções sagradas de
seus executores. Seus trabalhos cambiaram a ênfase de questões relativas à magia para
seus significados simbólicos.

Claude Levi-Strauss foi o pai do movimento estruturalista na antropologia e na


arqueologia. A base de seu trabalho reside na noção de que oposições binárias
constituem o fio unificador, a lógica oculta, que governa todo o pensamento humano.
Por oposições binárias entendia duas noções opostas, como por exemplo claro-escuro,
alto-baixo, homem-mulher, vida-morte. A linguagem de toda a sociedade, bem como
seu sistema de relações e sua a mitologia,
incorpora variações deste tema binário.

André Leroi-Gourhan, seguindo os


passos e Emperaire e Strauss, analisou os
dados numéricos das imagens e suas
localizações em 66 cavernas, pois entendia

Fig. 8.1 Grupos de sinais de Leroi-Gourhan


que uma cuidadosa série de agrupamentos
de imagens tinha que ser compreendida
estudando-se suas relações uns com os outros. Dividiu as imagens de animais em
quatro grandes grupos: A) pequenos herbívoros: cavalo, ibex (bode montês), veado e
corça (animais pequenos), rena; B) grandes herbívoros: auroques (bois primitivos) e
bisões;C) espécies periféricas: mamute, veado (animais grandes, como os alces); D)
animais perigosos: urso, felinos, rinocerontes. Associou o grupo A com feminilidade, e
o B com masculinidade.

Dividiu os sinais gráficos encontrados nas cavernas e que não representavam


animais em dois grupos: “a” e “b”. O grupo “a” compreendia os sinais “estreitos”:
riscos simples ou duplos, filas de pontos, ganchos, propulsores (dispositivos
empregados no lançamento de lanças), sinais com farpas. O grupo “b” abrangia sinais
“amplos”: triângulos, ovais, quadrangulares, símbolos claviformes. Entendia que os
sinais do grupo a e b pareciam originários de representações esquemáticas da genitália
masculina e feminina, respectivamente. Para ele, a arte parietal paleolítica podia ser
resumida por uma oposição binária principal: A+a (masculina) e B+b (feminina).

Leroi-Gourhan via A e B como constituindo uma oposição binária, sendo os


animais C adições periféricas. Construiu o que denominou de “mitograma”: A+B-C,
onde o sinal – não representava subtração, mas sim agregação. Esse mitograma era um
modelo mental, a estrutura (langue), da arte paleolítica. Os animais e sinais masculinos
eram espalhados pelas cavernas, enquanto que os femininos se concentravam nas suas
áreas centrais. Nas áreas centrais, o par cavalo: bisão, auroque tinha destaque, enquanto
que os animais do grupo C eram periféricos na composição das cenas. A câmaras
profundas, os divertículos, eram associados aos animais perigosos D.

Para ele, essa arte era a expressão das idéias do homem paleolítico concernentes
à organização natural e sobrenatural do seu mundo, uma verdadeira weltanschauung
(visão de mundo), e o mitograma era um veículo que poderia carregar uma carga ampla
de significados.

Piaget, também um estruturalista e construtivista ferrenho, foi induzido por sua


oposição ao empirismo a exclusivamente enfatizar a construtividade do sujeito e a
considerar as estruturas matemáticas daí resultantes como fonte de toda a realidade e de
toda possibilidade. Considerava uma das principais objetivos de sua epistemologia
genética a explicação de como o conhecimento necessário, isto é, o conhecimento que
não se apóia em observações, emerge.

As idéias estruturalistas vêm sendo substituídas modernamente por um enfoque


psico-neuro-fisiológico, onde a ênfase em estrutura é trocada pela ênfase na atividade
consciente do homem, na sua consciência, traduzida por seu comportamento simbólico.

Hoje são aceitos como parâmetros de atividade simbólica: uma linguagem


estruturada completamente moderna; a confecção de imagens; o enterro elaborado de
alguns de seus mortos; adornos corporais que carregam informações sobre seus
portadores ou sobre o grupo a que pertencem; tecnologias de ferramentas de pedras que
vão além de modelos puramente funcionais, identificadoras de grupos sociais.

Por exemplo, a indústria lítica associada aos Neandertais, menos elaborada, com
peças mais cruas, é denominada de Chatelperroniana, com sua fase precedente a
Mousteriana, enquanto a que é correlacionada aos Cro-Magnon, representantes do
Homo sapiens moderno, mais complexa, é denominada Aurignaciana. Essas culturas
são conhecidas na atualidade como tecnocomplexos.

Steve Mithen, incorporando a noção de que a inteligência humana é modular,


propõe a existência de quatro módulos mentais, a saber: inteligência social; inteligência
técnica; inteligência relativa à história natural e a inteligência lingüística. Além disso,
admite existirem quatro processos físico-cognitivos: a confecção de imagens visuais, a
classificação destas imagens em classes, a comunicação intencional e a atribuição de
significado às imagens. Embora as três primeiras possam ser encontradas em primatas
não-humanos, a quarta é característica dos hominídeos.

Estados Intensificados de consciência

A noção de consciência é complexa e pode variar nos modos de pensar ocidental


e oriental. Alguns vêm nela conotações esotéricas, despidas de caráter científico.
Outros, como nos sonhos e visões medievais, acreditam que ela é o vetor de
conhecimentos transmitidos pela divindade. Hildegaard de Bingen (1.098-1.179)
acreditava que suas visões não eram apenas instruções pessoais de Deus, mas também
transmitiam-lhe a estrutura material do universo.

Reconhece-se atualmente a existência de um espectro de consciência, ela pode


variar desde o normal até estados alterados. Segundo Martindale, quando caímos no
sono passamos pelos seguintes estágios: vigília, ou pensamento orientado para
problemas, estágio fundamental para a compreensão do pensamento matemático;
fantasias realísticas; fantasias autísticas; devaneio; estados hipnóides, onde se está
caindo no sono; e sono profundo. As fases desse espectro podem ser percebidas
diferentemente de pessoa a pessoa, ou mesmo de cultura a cultura. Veja-se o exemplo
do que ocorreu com o espectro da luz solar.

Quando Newton descobriu a decomposição da luz solar empregando um prisma,


ele não decidiu inicialmente que este espectro era composto de sete cores. Tendo um
pobre discernimento de cores, perguntou a um amigo quantas cores ele identificava: sua
resposta: sete. Desde então, a ciência ocidental assumiu que a luz era composta por sete
cores. Na realidade, outros povos reconhecem e designam por nomes diferentes dos
ocidentais segmentos desse mesmo espectro, dividindo-o de outras formas.

Duas trajetórias do espectro e consciência podem ser identificadas: a da


consciência normal e a trajetória intensificada, que conduz a alucinações. A consciência
normal atravessa as fases seguintes: alerta; vigília, ou pensamento orientado a
problemas; sonhar acordado; estados hipnóides; sonhos e sono profundo inconsciente.
Na fase de vigília estamos concentrados na solução de problemas, normalmente
originários e estímulos provenientes do dia a dia, sendo fase importante para a
matemática, pois nela nos atemos às questões abertas em estudo, embora ainda em um
estado de consciência relativamente alerta. Entramos então na fase de sonhar acordado,
que Martindale divide em fantasia realística, onde ainda pensamos em estratégias para a
solução de problemas, gradualmente recaíndo na fase da fantasia autística, onde a
realidade externa é menos relevante. Penetramos então nos devaneios, onde o
pensamento racional enfraquece e imagens sucedem a imagens, numa seqüência
narrativa. Os devaneios revertem-se nos estados hipnóides, que ocorrem quando
principiamos a cair no sono. As imagens, as fantasias neste estado podem ser
extraordinariamente vívidas, podendo ser visuais ou auditivas; por exemplo, as pessoas
podem acordar acreditando que alguém entrou em seu quarto. Começam então a sonhar,
onde uma sucessão de imagens se manifesta como em uma narrativa. Durante a fase
REM (rapid eye movement), caracterizada por movimentos dos olhos, que precede o
sono profundo, a atividade neuronal aleatória produz imagens mentais. Começa então o
sono profundo, onde não há elaboração e imagens. Charles Laughlin denomina a parte
inicial dessa trajetória de consciência fragmentada.

O poder criador da matemática muitas vezes se manifesta nos estágios mais


profundos da consciência. Ramanujan, relata Hardy, “sonhava” com resultados
matemáticos complicados e anotava-os em cadernos quando acordava. Atribuía à deusa
Kali o envio desses “sonhos”.

A trajetória intensificada de consciência conduz a estágios alucinatórios, obtidos


mediante uma privação de sentidos, durante a qual a redução de estímulos externos
estimula a liberação de vívidas fantasias. Qualquer pessoa normal, isolada em ambientes
escuros, à prova de som, pode experimentar alucinações em poucas horas. Muitas
técnicas meditativas orientais requerem que seus praticantes concentrem-se em um
único ponto focal, que pode ser um mantra ou um símbolo visual, desligando-se do
ambiente circundante. Outras técnicas, como sons rítmicos produzidos por tambores,
estímulos visuais, como um contínuo relampejar de luzes, ou mesmo danças ritmadas
ou contínuas, como entre os dervixes, também produzem esses efeitos. No ocidente,
estados conhecidos como êxtase religioso, produzidos por meditação prolongada, com
repetição contínua de preces, igualmente são estados alterados de consciência.

Quando os olhos se relaxam, adaptando-se à escuridão, o campo visual se


ilumina com pequenas nuvens e clarões luminosos que se movimentam, geralmente em
tons pastéis de azul, verde, laranja e amarelo. Se pressionarmos os olhos aparecem uma
série de outras figuras, geralmente formando padrões geométricos. Essas visões são
denominadas de fosfenos, do grego phos, luz, e phainein, mostrar.
Como se originam dentro do olho e do cérebro, eles constituem fenômenos
perceptuais comuns a toda humanidade. São o primeiro estágio da trajetória
intensificada de consciência após o sonhar acordado. Lewis-Williams denomina-os de
fenômenos entópticos, do grego dentro da visão, por se originarem entre o olho e o
córtex cerebral. Classifica os fenômenos entópticos em fosfenos propriamente ditos
(produzidos dentro do olho) e formas constantes (produzidas pelo sistema neuro-visual,
após o olho).
Fosfenos podem tanto ser produzidos espontaneamente como provocados de
certos modos. Aparecem espontaneamente apenas quando o olho carece de estímulos
visuais e está sujeito a uma prolongada abstinência visual. Alguns especialistas
acreditam que os fosfenos podem ser responsáveis pelo fenômeno de “ver a luz”,
reportado por místicos religiosos que meditam na escuridão. As pessoas que sofrem
batidas na cabeça geralmente “vêem estrelas”, que nada mais são que fosfenos
induzidos por meios mecânicos. Um método menos traumático de se produzir fosfenos
consiste em pressionar os globos oculares com os dedos, com as pálpebras fechadas.
Podem também ser induzidos por uma ampla gama de agentes químicos, como
álcool, toxinas e drogas alucinogênicas, ou pela aplicação de estímulos elétricos ao
córtex cerebral. Mesmo pessoas cegas vêm fosfenos se seu cérebro é estimulado
eletricamente.

Fig. 8.2 Esquerda: padrões de fosfenos; direita: padrões da arte paleolítica,

Altamira, Espanha (modificado de OSTER, 1970).

Fig. 8.2.1 Modos de indução de Fig. 8.2.2 Classificação de Knoll dos


fosfenos (cf. OSTER,1970) fosfenos induzidos eletricamente.
As sociedades primitivas faziam uso de diversos tipos de drogas capazes de
provocar alucinações, transes e visões. O uso ritual de Nymphaea caerula como parte do
culto de Osiris é conhecido no Egito Dinástico; os incas empregavam folhas de coca; os
astecas consideravam cogumelos alucinogênicos serem teonanacatl, ou seja, serem a
carne do Deus; Heródoto descreve a prática de inalação de fumaça de cânhamo
(Cannabis) pelos citas; os arianos do Rig Veda ingeriam o soma, uma bebida
intoxicante; lembramos ainda o emprego do vinho nos cultos de Dionísio (Grécia) e
Baco (Roma). Os índios da América do Sul, especialmente da região amazônica,
utilizam o tabaco (Nicotina); folhas e chá de coca (Erythroxylon coca); bebidas
alcoólicas fermentadas; o rapé alucinógeno de Piptadênia; plantas do gênero
Banisteriopsis, que produzem bebidas narcóticas conhecidas como hayahuasca, yagé,
pinde, etc.; e preparados narcóticos empregando plantas do gênero Datura: borrachero,
miaya, yerba de huaca, etc.. Cogumelos, como o Amanita muscaria, ou o cactus peyote,
também têm seu uso como alucinogênicos bastante difundido entre diversas culturas.
SHERRAT (1997) estudou a ocorrência de narcóticos em rituais no Neolítico,
particularmente de sementes de papoula (Papaver somniferum) e cânhamo (Cannabis
sativa). Sementes de papoula já tinham sido identificadas desde 1878 entre materiais
recuperados de vilas neolíticas lacustres suissas, e também foram mais tarde foram
encontradas em cavernas dessa era na Espanha. O uso de cannabis durante a Idade do
Ferro, desde a Europa ocidental até a China, é bem documentado; provavelmente esta
espécie se difundiu das estepes para a Europa e China. Essas plantas eram conhecidas
dos primeiros agricultores na Europa, que muito provavelmente sabiam de suas
propriedades narcóticas.

Xamanismo

O termo xamanismo, primeiro empregado para descrever práticas e credos dos


“feiticeiros”, “homens sagrados”, ou “curandeiros” siberianos, hoje descreve um
conjunto de preceitos e costumes partilhados por muitos povos no mundo. Algumas das
características dos sistemas xamanísticos, ensina a etnologia comparativa, são
fundamentais, arquetípicos diríamos, e amplamente disseminados ao redor do globo.
Etnólogos consideram que o xamanismo é amplamente encontrado em sociedades
igualitárias, habitualmente de caçador-coletores, embora nem todas essas sociedades
sejam xamanísticas. Segundo um levantamento efetuado por Érika Bourguignon em 488
sociedades listadas no Atlas Etnográfico28, 90 % destas, ou seja 437 culturas,
apresentavam alguma forma de estados alterados de consciência.

Fig. 8.3 Esq.: “feiticeiro” de Trois Fréres (Breuil); centro: xamã siberiano,
Witsen, 1705; dir.: dança xamãnica tupinambá, Lery,1706.

Listaremos três características xamanísticas. A primeira é a crença em um


universo composto de diversos níveis superpostos, ou mundos paralelos. Os eventos que
ocorrem em nosso mundo são diretamente condicionados pela influência dos poderes
que habitam um ou outro desses mundos. A segunda, a crença em que certos indivíduos,
os xamãs, em determinadas circunstâncias, podem fazer contacto direto com esse(s)
outro(s) mundo(s), tendo assim o poder de alterar eventos no nosso mundo. A terceira
característica é de que o xamã estabelece esse contacto, em uma direção ou em outra,
empregando espíritos auxiliares, que muitas vezes assumem a forma de animais, os
quais ou vêm ao xamã ou este se transforma neles. Esse contacto muitas vezes assume a
forma de um vôo místico, através de sensações de desencorporeamento, falta de peso,
viagens a lugares distantes, que incluem mudanças de perspectiva, com visualizações
aéreas dos arredores.
O vôo místico dos xamãs é muitas vezes descrito como a passagem através de
um buraco, túnel ou vórtice na terra, ou em direção a uma luz muito brilhante. Algumas
vezes uma luz brilhante no centro do campo da visão cria este tipo de imagem. Esse tipo
de imagem é uma percepção humana universal. É semelhante a muitas descrições de
experiências de quase-morte, como este fenômeno também é conhecido na atualidade.
O fato de que o xamanismo se encontra amplamente disseminado ao redor do
globo não é devido ao contacto direto, ou indireto, entre os diversos povos que o
28
Apud David Lewis-Williams, 2002, p.131.
praticam, mas porque, ao menos parcialmente, está enraizado na inevitável necessidade
que o ser humano tem de racionalizar, de controlar a natureza, bem como no uso de
estados alterados de consciência, que são intrínsecos ao sistema nervoso central
humano, e aparecem, de uma forma ou de outra, em praticamente toda a sociedade.
Certas pessoas, em todo o tempo e lugar, e em qualquer sociedade, são objeto de
visões e alucinações. Essas experiências podem ser provocadas pelo uso de drogas, ou
devido a certos estados patológicos, bem como podem ser provocadas por fatores tais
como isolamento, escuridão, concentração intensa, enfado extremo, jejuns prolongados,
falta de sono, sofrimento, ou sons vibrantes e ritmados, semelhantes ao latejar. A
sociedade racionalista moderna encara essas pessoas como doentes, viciadas ou insanas,
porém, nas sociedades primitivas, elas assumem papéis de líderes espirituais, profetas,
pajés ou xamãs. Porém, alguns xamãs podem padecer de epilepsia, esquizofrenia,
enxaquecas e de uma ampla gama de outras patologias.
Muitos espeleologistas têm descrito os efeitos alucinatórios que as cavernas
podem provocar, onde o frio, escuridão, umidade e a ausência de referências sensoriais
encorajam o surgimento de visões. Pode-se classificar a ocupação das cavernas na idade
da pedra, especialmente no paleolítico europeu, em três tipos: a) cavernas para
habitação: geralmente não são muito profundas, não raro são apenas reentrâncias,
simples abrigos, em paredões rochosos; b) cavernas santuário: raramente visitadas e
nunca usadas para habitação, normalmente se extendem profundamente sob a
superfície; c) cavernas de utilização comunitária, cujos exemplos mais conhecidos são
as cavernas de Lascaux, na França, com 17.000 anos de idade, e Altamira, na Espanha,
com 12.000 anos. Abrigos rochosos decorados são muitas vezes considerados como
“portais” de duas mãos entre o mundo real e o “outro” mundo.

Processos do córtex visual – modelo neurofisiológico

Vários autores, como GOMBRICH, BEDNARIK, HALVERSON, LATTO e


HUDSON, enfatizaram que os motivos primitivos, especialmente as formas
geométricas, são esteticamente interessantes não apenas porque refletem características
do mundo, mas sim porque estimulam propriedades do sistema visual humano.
Em 1980 HUBEL e WIESEL descobriram que células do córtex visual primário
são organizadas para responder à orientações específicas de uma linha, e que a
percepção de formas pode ser fabricada pela agregação de características selecionadas.
Descreveram como o córtex pode funcionar como um estágio primário na análise da
orientação de linhas, e como é um aspecto importante do processamento da informação
visual, que se efetua por meio de uma hierarquia de células simples, complexas e
hipercomplexas, através das quais a natureza da informação acerca da linha pode se
tornar cada vez mais abstrata.
BARLOW propôs a teoria da detecção de características, pela qual as células
corticais, que formam o nível inferior de uma hierarquia de células, respondem
progressivamente às características geométricas cada vez mais abstratas das formas.
Dessa maneira, células dos mais baixos níveis responderiam às linhas mais primitivas,
enquanto que as dos níveis mais altos responderiam à características geométricas
simples dessas linhas, como ângulos, paralelismo e perpendicularismo e, na seqüência,
pelas combinações de atividades de células complexas e hipercomplexas particulares,
surgiria a percepção de formas geométricas mais elaboradas, como retângulos, losangos
e círculos, e assim por diante, até a percepção de figuras representacionais, que
envolveriam centros de alta ordem do córtex cerebral e do cérebro.
Embora essa seja uma simplificação do processo real, que ainda não é
inteiramente compreendido, pesquisas recentes tendem a confirmar esse quadro,
mostrando como o córtex primário processa informações referentes à orientação de
linhas, ângulos e perpendicularismo entre elas.
Para essa corrente, a preocupação com a feitura de signos geométricos seria um
estímulo importante para o desenvolvimento do olho e do cérebro humano, um pré-
requisito importante para a realização de formas representacionais, as quais envolveriam
outras áreas do córtex visual.
Dentro dessa concepção, a geometria seria uma capacidade inata do ser humano.
As habilidades geométricas adquiridas nas tarefas cotidianas desenvolveriam e
ampliariam essa capacidade.

Simbolismo em Matemática

A Matemática é, por sua própria natureza, a ciência dos símbolos. A primeira


providência a ser adotada, recomendada pela escola formalista, como vimos, é a
expressão dos conceitos matemáticos em símbolos. Para ela, a Matemática nada mais é
que um jogo com estes símbolos, seguindo determinadas regras. Considera que a
linguagem do vulgo não é adequada à concisão e exatidão por ela requerida.
Cassirer, em seu Essay on Man, define o Homem como um ser simbólico, ao
invés de um ser racional, porque é
“este caráter do conhecimento humano que determina o lugar do homem na
cadeia dos seres...Conhecimento humano é por sua verdadeira natureza conhecimento
simbólico. É este o fator que caracteriza tanto sua força como suas limitações. E por
pensamento simbólico é necessário fazer uma distinção nítida entre o real e o possível.
Um símbolo não tem existência real como parte do mundo físico; ele tem um
significado. No pensamento primitivo é muito difícil diferenciar entre as duas esferas de
ser e de significado. Elas estão constantemente sendo confundidas; um símbolo é
considerado como que dotado com poderes mágicos físicos. Mas com o posterior
progresso da cultura humana a diferença entre coisas e símbolos tornou-se claramente
sentida, o que significa que a distinção entre realidade e possibilidade também se torna
mais e mais pronunciada” (apud OTTE, 2003).
Muitas vezes se questiona como conceitos matemáticos podem ser fonte de
pensamento criativo para muitas ciências. Antes de mais nada, convém desmistificar um
mito, de que não se pode fazer ciência sem Matemática. Muitas ciências, principalmente
em seus estágios iniciais, se desenvolveram sem recorrer a uma linguagem simbólica
matemática. A teoria da evolução de Darwin é um exemplo marcante, bem como muitas
das ciências humanas, como o Direito, ou naturais, como a Medicina. Somente em
estágios avançados de seu corpo de doutrina recorreram à Matemática. Portanto, a
imprescindibilidade da matemática na confecção das ciências é questionável, ao menos
em seus estágios iniciais.
Os símbolos, enquanto armazenados na mente humana, são fugazes,
inconspícuos, difíceis de serem comunicados. Sua transmissão cultural é limitada ao que
um indivíduo pode memorizar se não dispõe de uma mídia externa de armazenamento.
Denominamos de internalismo quando os símbolos são armazenados unicamente na
mente dos indivíduos de uma dada cultura; de externalismo quando são estocados em
uma mídia material externa.

A transmissão do significado dos símbolos, quando guardados de uma forma


puramente internalista, se dá unicamente por meio da tradição oral. Esta tradição,
porém, pode comunicá-los fielmente por períodos de tempo relativamente curtos. Em
períodos maiores, milhares ou dezenas de milhares de anos, seus significados
geralmente se perdem, ou são, no mínimo, corrompidos.

A invenção de sistemas simbólicos visuais externos, armazenados em mídias


materiais, principiando com as artes mobiliária e parietal, com entalhes em ossos e
culminando com a invenção da escrita, constitui evento chave na evolução cognitiva
humana. De ao menos três maneiras o externalismo pode contribuir para a melhora das
capacidades computacionais do homem: como uma memória artificial permanente,
como um ato epistêmico e como âncora para idéias não intuitivas.

Multiplicar ou dividir dois números grandes de memória não é tarefa fácil, sendo
praticamente impossível se são realmente grandes. Em compensação, se escrevemo-los
em um papel, uma memória artificial permanente, executar essas operações é
relativamente fácil. Mas o trabalho com mídias simbólicas externas não se limita apenas
ao armazenamento em memórias artificiais, ele também muitas vezes constitui, por si
só, um ato epistêmico, pois algumas ações necessárias para resolver problemas podem
ser executadas mais fácil e seguramente com o seu emprego do que apenas recorrendo à
memória. Hoje em dia, o uso de mídias externas torna factíveis soluções
computacionais que nunca alcançaríamos sem elas. O emprego do computador é
imprescindível atualmente na demonstração de certos teoremas, como, por exemplo, seu
uso na recente demonstração da conjectura de Kepler.

Sem símbolos externos, pensamentos que são de difícil compreensão ou


representação não sobrevivem na competição por atenção demandada por outros mais
simples originários da evolução cultural. Dessa forma, quando conceitos matemáticos
estão registrados fora do cérebro, estão menos sujeitos a serem corrompidos por
matemáticos individuais, ou menos vulneráveis quando na competição com idéias mais
fáceis de aprender, mais imaginativas, ou que requerem menos esforço computacional.

Conforme De Cruz observa, “o externalismo ativo, a tentativas consistentes dos


matemáticos em formular operações matemáticas por meio de símbolos externos, é a
causa principal da flexibilidade e abstração do pensamento matemático”. O uso de
símbolos, de notações, é um dos principais motivos da “irrazoável efetividade” do seu
emprego nas ciências, que tem intrigado filósofos por séculos. Einstein, que
inicialmente considerava a matemática apenas uma ferramenta, posteriormente
considerava-a como uma das principais fontes da criatividade científica, quando aliada à
observações empíricas.

De Cruz propõe dois tipos de idéias matemáticas. O primeiro, que denomina de


idéias opacas, são aquelas não intuitivas ou que não podem ser visualizadas apenas em
pensamento, como, por exemplo, os números imaginários ou os espaços não-
euclidianos. A maneira de colocá-las é através de um conjunto externo de símbolos,
cujo significado permanece semanticamente inacessível para nós. Através da
externalização expandimos desse modo nossa capacidade de representação, delegando
ao mundo material operações incondizentes com nossas estruturas mentais. O segundo
tipo, as idéias transparentes, é composto por aquelas idéias a que se pode ter acesso
semântico, ou seja, podemos intuitivamente aprender seu significado. Os conceitos
matemáticos teriam dessa forma uma estrutura híbrida, composta de notações
simbólicas transparentes e opacas. Essa estrutura é que é uma valiosa ferramenta
epistêmica, e que responde por significativa parte do poder criativo da matemática.

O corpo de conhecimentos que hoje conhecemos como Matemática é composto


por este repertório simbólico externo e interno, adequado às estruturas mentais psico-
neuro-fisiológicas do homo sapiens, construído ao longo de milênios de evolução, e
modelado social e culturalmente.
É importante notar que todo o simbolismo matemático existente é adequado às
nossas estruturas mentais, desse modo apenas matemáticos humanos, equipados com
cérebros humanos, constroem e compartilham entre si idéias matemáticas como as
conhecemos. Portanto, mesmo que se a matemática pudesse ter uma existência real fora
dos nossos cérebros, bem como mídias oportunas, a única matemática que jamais
poderemos conhecer é aquela construída por seres humanos equipados com cérebros
humanos. Isso é uma especificidade da nossa espécie, uma invariante física da nossa
realidade.

Podemos exemplificar isso de várias maneiras. Já nos referimos ao fato de que o


espectro que nós vemos, as cores com que estamos acostumados, são características do
nosso sistema visual; outras espécies vêm as cores de modo diferente. Não enxergamos,
por exemplo, as faixas do infravermelho ou do ultravioleta. A nossa realidade é tri-
dimensional, não conseguimos visualizar, por exemplo, um hipercubo, um cubo
quadridimensional, onde em um vértice concorrem quatro arestas mutuamente
ortogonais. Nunca poderemos conhecer, enxergar um hipercubo, embora facilmente
possamos operar com este ente, graças ao externalismo e à estrutura hibrida desta
ciência.

Se outras matemáticas construídas por espécies diferentes de seres porventura


existirem, devem ser minimamente compatíveis com as estruturas mentais do homo
sapiens para que por ele possam ser compreendidas. O grau de compatibilidade com
nosso arcabouço mental é o que determina a possibilidade de um mínimo entendimento
pelo homem das diversas matemáticas eventualmente possíveis.

Limiar da mente moderna

Há uns 40.000 anos atrás, na transição do Paleolítico Médio para o


Paleolítico Superior, os hominídeos na Europa começaram a assumir um
comportamento que os arqueólogos classificam como moderno. Principiaram a
fabricar armas e ferramentas mais avançadas, a se expressar por meio das artes e da
música, a construírem redes de escambo de longas distâncias, características da
modernidade. Essa explosão cultural refletia um movimento iniciado 5-10.000 anos
antes na África. Os estudiosos modernos denominaram essa transição do Paleolítico
Médio para o Paleolítico Superior de Revolução do Paleolítico Superior, ou, mais
dramaticamente, de Revolução Criativa ou Revolução Simbólica. Até essa data, a
Europa era território estritamente neandertal. Como vimos, aproximadamente nessa
ocasião os homo sapiens modernos, dotados de linguagem articulada e complexa,
começaram a migrar da África, colonizando a Europa. Por esse motivo, a
exclusividade pela implantação da Revolução Criativa lhes é geralmente creditada.

Porém, descobertas recentes parecem indicar que elementos de


comportamento moderno podem ser rastreados muito mais antigamente do que se
supunha. O comportamento humano moderno parece ter emergido em um processo
que pode mais aptamente ser classificado como evolução do que revolução. Outras
espécies de hominídeos, como os neandertais, podem também ter apresentado
algumas características desse comportamento.
As mais antigas evidências de pensamento simbólico

Alguns artefatos sugerem que hominídeos estavam engajados em práticas


modernas bem antes do homo sapiens pintar a primeira caverna na Europa. Vejamos
alguns deles. Foram encontrados em Schöningen, na Alemanha, três propulsores de
lança de madeira com cerca de 400.000 anos.

Em 1.980-81 foi escavada em Berekhat Ram, nas colinas de Golã, em Israel, uma
pequena figura com 35 mm de altura, 25 mm de largura
e 21 mm de espessura, feita de material vulcânico,
aparentando representar uma figura feminina. Foi
encontrada entre dois fluxos de cinza e sua idade é
estimada em mais de 230.000 anos. Hominídeos
começaram a imigrar da África tão cedo quanto 1,8
milhões de anos atrás; grupos posteriores entraram no
Levante carregando tradições Acheulianas com
Fig.8. 4 Proto-figurinha tecnologias Levaloisianas. Essa figurinha aprece ter
de Berekhat Ram
sido feita aparentemente pelo homo erectus,
empregando ferramentas de pedra dessa tecnologia. Análises microscópicas parecem
demonstrar ter sido realmente feita por mãos humanas.

A técnica Levaloisiana (Levallois technique) da cultura Acheuliana data de


aproximadamente 300.000 até 125.000 anos atrás e representa a
primeira tentativa de produção em massa e padronização das
ferramentas. Enquanto que o homo erectus fabricava as
ferramentas Acheulianas tradicionais, a nova técnica de Levallois
parece estar associada com Homo sapiens arcaico.

A vênus ou figurinha de Tan-Tan foi descoberta por Lutz


Fiedler em um depósito do Rio Draa, poucos quilômetros ao sul
da cidade marroquina de Tan-Tan. Os sedimentos inferiores
contém ferramentas de pedra Acheulianas arcaicas típicas, sem a
presença de espécimens da técnica Levallois. Esses sedimentos
Fig. 8.5 Vênus de
datam de 300.000 a 500.000 anos atrás. Foi encontrada a apenas
Tan-Tan
alguns centímetros de machados dessa indústria. Possivelmente
os hominídeos dessa época nesse local atingiam a Europa pelo Estreito de Gibraltar.
Ela tem 58,2 mm de comprimento, 26,4 mm de largura e 12,0 mm de espessura, e
pesa cerca de 10 g. Ela parece ter sido pintada com tinta vermelha.

Do ponto de vista matemático, a simetria tri-dimensional dos machados de pedra


bifaciais aponta para o surgimento do conceito de simetria, o qual parece ter
emergido em torno de 1 milhão a 600.000 anos atrás. Representativos dessa fase são
os bifaciais de sítios africanos tais como Olorgesailie, Kenya (c. 750,000-999,000
anos atrás) e Olduvai George Estrato IV (600,000-800,000 anos atrás); sítios do
Oriente Médio como Joub Jannine II (800-900,000 anos
atrás), Gesher Benot Ya'akov (780,000 a.C.) e Latamne
(500-700,000 a.C.); e o estilo europeu de Abbeville (c.
600,000 a.C.). Além da adição de um novo senso tri-
dimensional de espaço, em comparação com a indústria
do Acheuliano Antigo, o Acheuliano Médio parece ter
padronizado a manufatura bifacial em dois tipos
Fig. 8.6 Olduvai George
predominantes: um lanceolado e fino e outro cordiforme,
Machados bifaciais
caracterizando assim as tradições do Oriente Médio e
Africana, respectivamente.

O sítio de Gross Pampau, na Alemanha, com datações


estimadas em 400.000 – 500.000 anos, é notável por
apresentar algumas formas geométricas, como um tetraedro
em pedra e um padrão geométrico inciso em um artefato
lítico. Mesmo que o tetraedro

Fig. 8.7 Gross Pampau


possa ter uma origem natural, só
o fato de ter sido escolhido e
preservado pelos hominídeos associados ao sítio
evidencia o interesse deles por formas
geométricas, o que denota o mais antigo Fig. 8.8 Gross Pampau vestígio de
- tetraedro
interesse pela geometria que temos
conhecimento.

Descoberto em 1969, o sítio de Bilzingsleben, na Alemanha, com cerca de


400.000 anos de idade, é notável por nele terem sido descobertos mais de 200.000
artefatos de pedra, bem como centenas de osso, madeira e chifre. O sítio foi descoberto
no século XIX; escavações foram conduzidas nas décadas de 1970-80 por Dietrich
Mania; e na de 1.990 por Jurgen Vollbrecht. Está associado a restos de Homo erectus, e
fornece a primeira evidência inequívoca de que ele entalhava incisões deliberadas em
artefatos de ossos. Talvez seja o mais antigo registro conhecido da técnica de entalhes,
embora não se possa afirmar com certeza absoluta que representem registros numéricos.

Entre os entalhes encontrados, há uma fragmento de


tíbia de elefante que tem um grupo de 7 marcas inciso, e
uma segundo grupo com mais 14 marcas, bem como
uma secção faltante. Mania propôs uma reconstrução da
parte faltante com uma terceira secção simétrica de 7
marcas, o que totalizaria 28 ao todo, apontando para a

Fig. 8.9 Bilzingsleben evidência de um calendário lunar. Contudo, essa


reconstrução não é amplamente aceita.

Outro arranjo geométrico verdadeiramente notável


está inscrito em um osso da pata (tarso) de um elefante
da floresta. parece ser constituído de um retângulo
inscrito em outro retângulo. A zona criada entre os dois
retângulos está marcada com várias incisões paralelas
e perpendiculares, bem como linhas inclinadas, dando a
impressão dessa área estar hachureada. É talvez Fig. 8.10 Bilzingsleben a mais
antiga representação de figuras geométricas, ou seja, de
retângulos, que se tem conhecimento, obra de um antepassado do Homo sapiens, o
Homo erectus. Talvez seja exemplar verdadeiramente único da
sua geometria, uma proto-geometria hominóide.

Encontraram-se seis ossos com incisões deliberadamente feitas,


de origem claramente não utilitária. O estudo realizado por
microscopia a laser
confirma a
intencionalidade das
incisões.
Fig. 8. 11 Oldisleben 1
Fig. 8.12 Oldisleben
O sítio de Oldisleben 1, próximo, é igualmente notável.
Dois ossos, com cerca de 120.000 anos, mostram entalhes e uma figura geométrica,
talvez a mais antiga intencionalmente incisa conhecida, cuja intencionalidade é
incontestável. O primeiro está gravado com 20 marcas em dois conjuntos de marcas
paralelas. O segundo apresenta uma figura geométrica em forma de flecha, ou dardo,
que parece emergir de uma outra forma geométrica, que está parcialmente quebrada.
Esta outra forma pode ter sido um hexágono ou um pentágono, e é muito bem
executada, não restando dúvidas de que incorporava um simbolismo que nos é
desconhecido.

De particular relevância são dois ossos encontrados na Caverna Kozarnika no


noroeste da Bulgária. Um osso de
bovídeo com 10 incisões paralelas,
com aproximada-mente 8 cm de
comprimento, e um osso de cervídeo
com 27 entalhes ao longo de uma face
Fig. 8.13 Osso de bovídeo Kozarnika
foram encontrados em 2.004 em um
estrato contendo implementos de pedra, bem como um molar e um fragmento de
crânio humano. Datações paleomagnéticas situam esse material entre 1,1 e 1,4
milhões de anos, o que aponta para a mais antiga evidência do conceito de
paralelismo já encontrada. Aparentemente os entalhes foram feitos intencionalmente
paralelos, porém não se pode
afirmar que o que se procurava
era o paralelismo, ou que denotavam
uma notação numérica.

Uma vértebra de elefante, com sete


entalhes divergentes, datando de
600.000-700.000 anos atrás, foi
descoberta em Stranska skala, na
Fig. 8.14 Stranska scala
Tchecoeslováquia, perto de Brno.

Como até o presente não recebeu um estudo microscópico pormenorizado, sua


natureza antrópica permanece questionada.

Outros padrões geométricos foram também encontrados, aguardando estudos que


certifiquem sua natureza antrópica intencional e não utilitária. Por exemplo, na
localidade de Asselt, em Panheel, Holanda, foi escavado um padrão geométrico
inscrito em pedra, com 350.000-400.000 anos. Porém sua
validação ainda permanece sub-judice.

A arte parietal deste período também está presente. A mais


antiga localizada está na Caverna Auditorium (Auditório), no
complexo de Bhimbetka, Madhya Pradesh, Índia Central. Este
complexo abrange 754 abrigos, sendo mais de 500 com pinturas
em rocha, embora nem todas
tão antigas. Começou a
Fig. 8.15 Asselt
ser escavado em 1.971. A
idade dos petroglifos da Caverna Auditorium
é de 200.000-500.000 anos. Contém dez cúpulas
(incisões circulares) e um petroglifo linear, e
Fig. 8.16 Daraki-Chattan
possivelmente representações de elefantes.

Daraki-Chattan é uma caverna pequena , estreita e profunda na Colina Indragarh,


Tehsil Bhanpura, distrito de Mandsaur, Madhya Pradesh. Mais de 500 petroglifos em
forma de cúpula foram encontrados. Foram descobertas por Ramesh Kumar Pancholi,
em 1.972. Giriraj Kumar estudou e documentou o sítio desde 1.995, e sua escavação
começou em 2.002 e continua até o presente. Era um local de produção de ferramentas;
a sua idade deste sítio é estimada também em 200.000-500.000 anos. A incisão de
cúpulas também é documentada em La Ferrassie, France, c. 60,000 a.C.; com 18
cúpulas, provavelmente produzidas por neandertais, o mostra o alcance dessa tradição.

O mais antigo objeto de arte que se tem conhecimentos é um seixo de jasperita,


de Makapansgat, África do Sul. Provém de uma caverna que contém vestígios de
australopitecus do Pliceno posterior, com 2,5 a 3 milhões de
anos de idade. Ele foi coletado a muitos quilômetros da caverna
onde foi encontrado, provavelmente por Australopithecus
africanus ou outro hominídeo muito antigo. A sua forma natural
e sua cor vermelha devem ter atraído a atenção destes
hominídeos, que o coletaram e transportaram para a caverna
onde viviam. Este é um exemplo do comportamento não
Fig. 8.17 Makapangast
utilitário desses primitivos, coletavam e transportavam objetos
novos ou exóticos, tais como cristais, fósseis ou seixos
coloridos, por curiosidade ou prazer estético.

O uso de peças de joalheria também é uma indisputável evidência de


simbolismo, uma forma de reconhecimento da importância do indivíduo, do seu orgulho
pessoal, pois, sem isso, seriam apenas objetos materiais sem utilidade prática. Contas
atadas por uma corda e pendentes talvez sejam os mais antigos exemplos desta
joalheria. Não eram usados apenas por vaidade, somente decorativos, provavelmente
usufruíam de uma variedade de significados simbólicos. O próprio conceito de jóia é
antropomórf
ico, animais
não o
conhecem..

Fig. 8.18 Pendentes de Repolusthöhle: dente e osso perfurados


Em
etnografia tais adereços indicam disponibilidade para casamento, status social, status
político, emblemas de clãs e outros significados somente acessíveis aos membros destas
culturas. Esses artefatos eram feitos de conchas, pedra, marfim, âmbar, dentes, chifres,
madeira e mesmo cascas de ovos de avestruz. Como a perfuração de materiais duros,
como pedras ou dentes, requeria muito tempo, esforço e dedicação, esses adereços eram
muito admirados e valorizados.

Talvez os mais antigos objetos com perfurações feitas por hominídeos seja dois
pendentes de Repolusthöhle, na Áustria, com cerca de 300.000 anos. O primeiro é um
incisivo e lobo, com uma perfuração junto à raiz muito bem executada. O segundo é
uma ponta de osso quebrada, aproximadamente triangular, com um furo perto de um
canto.

De singular importância são três fragmentos de discos de casca de ovos de


avestruz, provenientes do sítio de El Greifa, Wadi el Adjal,
perto de Ubari, no Marrocos. Datados de 200.000 anos
atrás, sua circunferência quase perfeita e a
Fig. 8.19 El Greifa
qualidade com que as perfurações foram executadas indica
que os hominídeos do Acheuliano possuíam uma bem desenvolvida tecnologia para
trabalhar com este frágil meio, com uma confiança e habilidade admirável. Contas
similares foram encontradas na Índia, proveniente do Paleolítico superior, e em outros
sítios da África.

Fig. 8.20 Quneitra

Do sítio de Qafzeh, em Israel, associado a restos do homo sapiens moderno,


provém um artefato de pedra inciso com linhas concêntricas, que não podem ser
atribuídas a causas naturais, medindo 6,2 cm. Foi
encontrado associado a restos de ocre, denotando um
possível uso simbólico. Esse e outro artefato proveniente
do sítio de Quneitra, também em Israel, ambos com uma
idade entre 90.000 e 100.000 anos antes do presente, são
Fig.8.21 Qafzeh
nitidamente não utilitários e podem ter sido empregados
em algum contexto simbólico.

Outros exemplos de um simbolismo muito mais antigo do que se imaginava


podem ser citados. Como Bednarik muito bem observa, os modelos didáticos existentes
sobre o assunto estão ultrapassados. Eles estão baseados em concepções antiquadas
sobre a evolução física e cognitiva do homem, muitas vezes preconcebidas e
preconceituosas. Eles se atêm a uma perspectiva zelosamente eurocêntrica sobre o
mundo. Seu conceito de uma “pré-história primitiva” é baseado na opinião de que
relatos escritos são mais confiáveis do que os orais, o que não é uma conjectura testável,
portanto não científica logo irrelevante, na definição de Popper. A história, já se
afirmou, é escrita pelos vencedores. A escrita pode ter sido importante para algumas
sociedades, mas não para outras.
Existem algumas culturas, como os Hopi, que não têm um conceito de tempo
como o do ocidental; para eles não há um fluxo contínuo do tempo, com um passado,
um presente e um futuro. Para esse povo, uma divisão baseada em uma linha temporal,
como a da história e pré-história, separadas pela emergência da escrita, não tem o menor
significado. Só cabe analisarmos a evolução física e cognitiva do homem dentro de seus
respectivos contextos, com suas condicionantes anatômicas, materiais, sociais e
culturais.

A ciência do Paleolítico deve ser analisada dentro do seu contexto, ou seja, do


modus vivendi dos caçador-coletores. Difere, por natureza, da do Neolítico, com seu
novo habitat agricultor-domesticador. O seu corpo de doutrina, porém, progride
paulatinamente, em uma evolução histórica contínua. Não faz sentido classificá-las
como sub-científicas, para empregarmos um termo de Hoyrup, ou ciências de segunda
classe, ou mesmo não científicas. Isso é um preconceito moderno, baseado em um ponto
de vista eurocêntrico, de forte conotação positivista. Cada uma delas é uma ciência per
si, em seu contexto, em seu tempo, por seus próprios méritos, avaliada e aceita por seus
integrantes. Constituem-se, portanto, em etnociências válidas, cuja sucessão histórica
conduziu à ciência atual. Preferimos denominá-las de proto-ciências, do grego prôtos,
primeiro, o que está à frente. Logo, cabe falarmos acerca da Proto-Geometria ou Proto-
Aritmética do Paleolítico ou do Neolítico.

Achados da Caverna Blombos

Recentemente uma série de manchetes espocaram nas páginas da imprensa mundial,


portando títulos tais como “Entalhes incendeiam debate sobre a origem do pensamento
abstrato” (Los Angeles Times, 11/01/2.002); “Os antigos humanos pensavam?”
(Newsweek International, 21/01/2.002); “Ferramentas indicam que comportamento
humano “moderno” começou na África” (África News Service, 10/12/2001).
Estas manchetes originaram-se de uma série de descobertas efetuadas por uma
equipe comandada pelo antropólogo Dr. Christopher Henshilwood, do South African
Museum e da State University de Nova Iorque, ealizadas na Caverna Blombos,
localizada a cerca de 300 quilômetros a leste da Cidade do Cabo, na África do Sul. Elas
pareciam desafiar teorias correntes que defendem que o comportamento humano
moderno teve origem em uma “explosão criativa” ocorrida na Europa há
aproximadamente 35.000 anos atrás, no Paleolítico Superior, bastante disseminadas e
aceitas pela ciência contemporânea.
A Caverna Blombos está situada perto da Baía Still, em um penhasco junto à
costa, a cerca de 100m do Oceano Índico, 34,5m acima do nível do mar. Seu nível
estratigráfico superior, correspondente à camada superficial, é da Idade da Pedra Tardia,
apresentando datações entre 300 e 2.000 anos atrás. Uma camada de areia eólica estéril
separa esse nível superficial dos níveis atribuídos à Idade da Pedra Média (IPM) na
África, que corresponde aproximadamente ao Paleolítico Médio Europeu. Os níveis
correspondentes à IPM foram começaram a ser escavados em 1992, de 1997 a 2.000
passaram a ser pesquisados anualmente. Os itens escavados em 2000, nessa camada,
foram classificados em três fases: uma superior (BBC M1), caracterizada por pontas de
pedra faciais bifoliadas e poucos ferramentas de osso; uma média (BBC M2) que
continha mais de 20 ferramentas de osso com poucas pontas bifaciais; e uma inferior
(BBC M3), rica em conchas e restos de peixes.
Técnicas de luminescência, de ressonância eletrônica (ESR), e estudos comparativos
de dados obtidos de escavações localizadas em outros sítios, permitiram estabelecer
uma idade mínima de 70.000 anos para esses achados (D’ERRICO, HENSHILWOOD,
NILSEN, 2.001). Estudos realizados pelo Aberystwyth Luminescence Laboratory,
empregando técnicas modernas que estimulam oticamente a luminescência de tal modo
que permitam calcular quando um determinado grão de areia foi exposto à luz,
possibilitaram calcular a idade dos grãos de areia depositados pelo vento no estrato onde
foram encontrados os artefatos de Blombos. Chegaram a uma idade de 77.000 anos.
Para os nossos objetivos, deter-nos-emos em dois dos achados da Caverna Blombos.
Um é um fragmento de osso com incisões, outro é um pedaço de ocre gravado com um
padrão de linhas paralelas.

Fig.8.22 Fragmento de osso com incisões paralelas. Caverna Blombos.


Foto e desenho (apud D’ERRICO, HENSHILWOOD, NILSEN, 2.001).
Esse osso foi recuperado em 1.992 e pertence à fase BBC M1; é provavelmente um
fragmento de um osso mandibular de um mamífero. Onze incisões foram realizadas
paralelamente ao eixo maior da mandíbula; uma linha superficial e descontínua
intercepta obliquamente outras seis; sete têm um perfil relativamente sinuoso. A
ausência de microdanos nas paredes das incisões e a boa aparência das estrias internas
sugerem que o osso estava fresco quando foram feitas.

Estudos realizados por D’ERRICO, HENSHILWOOD e NILSEN (2.001)


demonstram que as incisões foram produzidas intencionalmente, não sendo fruto de
descarnagem produzida por um raspador de pedra
(semelhante ao da Fig. 8.32), nem foram ocasionadas
por causas naturais, tais como riscos por atrito ou
estrias produzidas por raízes. Indubitavelmente essas
marcas foram produtos de mãos humanas. Empregou- Fig.8.23 Ponta, gravador e
se para isso observações com microscópio ótico de raspador de pedra.

baixo aumento e eletrônico de espalhamento, além de estudos comparativos com ossos


descarnados mediante ferramentas de pedra.

Os resultados desses estudos mostram que as incisões nesse fragmento foram feitas
intencionalmente, o que é sugerido pelo número, orientação, perfil sinuoso e localização
anatômica dos entalhes, e pelo uso de uma ponta em vez de um perfil cortante, tal como
um raspador.

Obviamente esse fragmento oferece somente uma apreciação parcial do padrão


original de entalhes do osso, evidentemente muito maior, o que torna difícil avaliar o
nível de complexidade dos procedimentos adotados em sua confecção e o grau de
complexidade de seu projeto. Não é improvável, porém, que os autores desses entalhes
tinham intenções simbólicas quando de sua confecção, observam os autores desse
estudo. Também é claro que eles, dentro das suas limitações de ordem técnica,
procuravam desenhar um conjunto de traços paralelos cuidadosamente entalhados em
uma superfície plana.

Cabe aqui uma comparação com objetos


semelhantes da Europa. Um osso29 encontrado

29
Fragmento
Fig.8.24 de osso,
Osso gravado segundo
com linhas GERDES
paralelas. La (1992, p.18), ou de pedra, conforme MARSHACK (1972,
Ferrassie. Musteriense
p.349).
em La Ferrassie, na Dordonha, França, junto aos restos de uma criança Neandertal,
atribuído ao período musteriense, do Paleolítico Médio, com uma idade de cerca de
50.000 anos, está gravado com uma série de finos traços paralelos.

B. FROLOV (1977) vê nesses traços “uma primeira estrutura matemática, que


nasceu depois de centenas de milhares de anos de aplicação prática de séries de golpes
para fabricar machados de mão e depois de muitas experiências com instrumentos de
corte que legaram entalhes” (apud GERDES, 1.992, p.19). OKLADNIKOV reconhece
nesses desenhos um passo decisivo no desenvolvimento da arte e da lógica dos
conceitos abstratos (id., op.cit.). Porém, observa apropriadamente GERDES, essa
interpretação não esclarece o porquê foram entalhados traços paralelos, isto é, qual o
simbolismo desses traços.

Expressiva parcela dos antropólogos modernos é de opinião que os Neandertais não


possuíam capacidades intelectuais suficientes para desenvolver os comportamentos
tradicionalmente considerados característicos do Paleolítico Superior; que os
ornamentos pessoais a eles associados não passam de imitações, sem cabal compreensão
de seu conteúdo abstrato; e que eram incapazes de comportamento simbólico,
provavelmente por causa de sua pouco desenvolvida capacidade de fala. Isso porque
foram encontrados apenas algumas poucas dúzias de ornamentos indubitavelmente
atribuídos aos Neandertais, enquanto milhares foram achados em sítios Cro-Magnon,
sendo que estes últimos são considerados legítimos antepassados do homem moderno.
Além disso, a arte paleolítica, expressa através de imagens, está associada praticamente
em sua totalidade a sítios Cro-Magnons. Essa visão, contudo, vem cambiando
paulatinamente. Estudiosos como D’ERRICO, ZILHÃO, JULIEN e outros, em um
artigo controverso (1.998), entendem que eram seres humanos dotados de cultura, e que
não há razão para se assumir que eram incapazes de “comportamento moderno”.
Argumentam que os Neandertais não poderiam ter imitado os Cro-Magnon,
simplesmente porque já estavam assumindo esse “comportamento” muito antes destes
surgirem no cenário.

Mesmo as concepções tradicionais sobre sua extinção, as quais admitem ter ocorrido
por obra dos Cro-Magnon, ancestrais dos humanos modernos, por volta de 30.000 anos
atrás, não deixando legado, vêm mudando. A Península Ibérica parece ter sido o último
refúgio dos Neandertais. Em 1.999 JOÃO ZILHÃO, diretor do Instituto Português de
Arqueologia, descobriu no Vale do Lapedo, situado a cerca de 140 quilômetros de
Lisboa, o esqueleto de uma criança, o qual apresenta tanto traços de Neandertais como
de Cro-Magnons (KUNZIG, 1.999). Esse esqueleto híbrido vem sendo considerado
como testemunho do cruzamento entre essas raças. Desse modo a concepção vigente
que os Neandertais foram substituídos por imigrantes modernos começa a perder o
sentido. Uma emigração da África parece ter ocorrido, mas esses emigrantes foram
cruzando, em graus variáveis, com as populações arcaicas que encontravam pelo
caminho.

Passaremos agora a analisar o segundo e o mais importante dos achados na Caverna


Blombos. Trata-se de dois pedaços de ocre que contém desenhos abstratos
cuidadosamente gravados em uma superfície. Resultados de análises criteriosas sobre os
mesmos ainda não foram publicados, ao que temos conhecimento, porém, o que já foi
divulgado nos permite tecer algumas considerações preliminares. Foram encontrados no
mesmo estrato da Idade da Pedra Média da África na Caverna Blombos, portanto, sua
idade é superior a 70.000 anos; 77.000 segundo as últimas estimativas. O ocre já
apresentado pode ser apreciado na Fig.8.25.

Fig.8.25 Ocre com padrão geométrico. Blombos.

Ocres vermelhos, que são óxidos de ferro (Fe2O3), provêm de hematitas (palavra de
origem grega, significando “como sangue”) e de outras rochas ricas em ferro
(especularita, limonita, etc.); são relativamente comuns em muitas formações geológicas
e em solos. Nenhum outro pigmento mineral compete com a habilidade do ocre de
penetrar os poros dos arenitos, onde um motivo pintado com hematita se torna quase
indestrutível. Outros pigmentos, mas não o ocre, podem mudar suas cores com a idade.

Quando de alta qualidade, principalmente os com matizes ricos e profundos, eram


muito estimados e procurados, sendo amplamente “comercializados”, isto é, trocados
por bens valorizados, entre os povos primitivos espalhados pelo mundo, que
despendiam considerável tempo em viagens para sua obtenção. São conhecidos
principalmente por seu emprego em pinturas de cavernas e em contextos associados a
rituais de sepultamentos, notadamente entre os Neandertais, todavia também foram
amplamente empregados, tanto por povos antigos como atuais, em medicamentos de
uso interno e externo, repelentes de insetos, conservantes de madeira ou de alimentos,
curtimento de peles, colocação de cabos em implementos de pedra, ou em ouras
finalidades.

A antiguidade de seu uso é uma questão controversa, pois geralmente está conectada
com os primórdios do comportamento cerimonial e simbólico, bem como com o debate
sobre as origens dos homens anatomicamente modernos. Na África, o primeiro registro
arqueológico de ocre parece ser sua ocorrência em um sítio de Olduvai George
(c.500.000 anos idade, ERLANDSON, 1.999); os ocres encontrados em Twin Rivers,
associados à indústria lítica Lupemban Inferior, da antiga Idade da Pedra Média da
África, têm uma idade superior a 400.000 anos (BARHAM, 2.002). Na Europa, ocres
foram identificados em sítios de Ambrona, do Acheuliano Antigo, com uma idade entre
400.000 e 230.000 anos (ERLANDSON, 1999). Parcela desses sítios mais antigos,
inicialmente correlacionados com o Homo Erectus, é hoje atribuída ao Homo Sapiens
arcaico.

Os hominídeos da África Central e Oriental parecem ter incorporado a cor em suas


vidas em torno de 270.000 anos atrás (BARHAM, 2002), mas o contexto social de seu
uso permanece especulativo. Uma paleta de suas cores, baseada em amostras de
minerais de Twin Rivers, seria composta de: amarelo, marrom, vermelho, púrpura, rosa
e azul escuro. Cristais de especularita podem produzir um pó que cintila. Os
Neandertais também coletavam e processavam pigmentos, mas predominantemente
dióxido de manganês ao invés de hematita.
Os ocres de Blombos representavam, portanto, bens preciosos, estimados por seus
donos, adequados para ostentarem um conteúdo simbólico importante, convenientes
serem objetos rituais. Lembramos que símbolos e comportamentos baseados em
símbolos são, por definição, arbitrários, e dependem de convenções para que sejam
aceitos e tenham sucesso.

Passemos agora a examinar o padrão gravado nesse ocre. Observando-o (Fig.8.25)


constatamos que a superfície onde aparece a gravura está danificada à direita, talvez o
desenho se prolongasse, mas provavelmente não muito, nessa direção. Aparentemente,
seu autor estava tentando reproduzir um padrão geométrico similar ao da Fig. 8.26.

Fig.8.26 Possível padrão geométrico do Fig. 8.27 Trançado de fita, com um


ocre de Blombos. o
ângulo de incidência de 60 , ao redor
de um rebordo.

Passaremos a averiguar se esses achados podem ser considerados como produto


de atividades matemáticas. No fragmento de osso detectamos uma tentativa consciente e
intencional de se construir um conjunto de retas paralelas. Nele encontramos entes
matemáticos (as retas); um conceito matemático (o paralelismo entre elas) e um
processo matemático (a construção desse conjunto). Portanto, dentro da nossa
conceituação arbitrada para atividade matemática, podemos dizer, concordando com
FROLOV, que realmente pode ser classificado como produto de uma atividade
matemática. É, evidentemente, uma atividade extremamente rudimentar, primitiva, mas
não totalmente isenta de conteúdo matemático.

Já no ocre de Blombos encontramos indícios de um pensamento abstrato mais


elaborado, poder-se-ia dizer notável, se considerarmos sua idade. Notemos,
inicialmente, a tentativa de se traçar três retas paralelas 1, 2 e 3 (Fig. 8.25).
Encontramos aqui entes matemáticos (as retas 1,2,3) e o conceito matemático de
paralelismo. Além disso, o autor procura traçar as retas 1 e 3 eqüidistantes da reta
central 2, o que aponta para o conhecimento do conceito de distância entre retas.
Chamamos atenção para o terceiro losango, denotado pela letra C, da esquerda para a
direita. Nele visualizamos a pista mais importante de que o autor estava procurando
construir, de modo inteiramente consciente e racional, um padrão geométrico, talvez
como o da Fig. 8.26. Ao traçar a reta 6 o autor errou o ângulo de incidência, e esta não
ficou paralela às demais, tal como a reta 5, o que demonstra apreensão do conceito de
ângulo. Percebendo isso, procurou consertar o erro, e recomeçou traçando a reta 7,
agora com paralelismo melhorado; porém, como ficou algo sinuosa, terminou traçando
a reta 8, muito mais retilínea. Do mesmo modo, não satisfeito com a distância e o
paralelismo da reta 9, traçou a reta 10, e o losango C ficou com sua forma definitiva,
muito mais parecido com o B. Se tivesse condições de apagar as retas 6 e 9, defeituosas,
o padrão ficaria com uma forma satisfatoriamente regular; mas, graças a isso, podemos
constatar que o hominídeo autor dessas linhas estava, consciente e intencionalmente,
procurando construir o padrão geométrico que tinha em mente, mostrando com isso
considerável capacidade de abstração. Observamos, igualmente, que por todo o desenho
perpassam os importantes conceitos matemáticos de simetria e periodicidade (ritmo),
fundamentais para a construção de padrões.

Nesse ocre encontramos, portanto, entes (retas), conceitos (paralelismo, ângulo,


distância, simetria, etc.) e processos (construções geométricas) matemáticos. Pode-se
então afirmar, com razoável segurança, ser produto de atividade matemática humana,
dentro da conceituação adotada, constituindo-se assim talvez no mais antigo exemplo de
padrão geométrico conscientemente executado até hoje descoberto.

Também é interessante notar que esta mais antiga demonstração de pensamento


abstrado, codificada em uma construção geométrica, produto consciente e intencional de
atividade matemática, foi descoberta na África, o que parece deslocar o pólo inicial da
origem do comportamento humano moderno da Europa para esse continente. Ressalve-
se, porém, que essas descobertas iniciais são muito escassas, e não se pode ainda
descartar a hipótese de que sejam produto de algum gênio paleolítico isolado.

Outra indagação susceptível de ser feita é se esse ocre seria um exemplo de arte ou
de atividade matemática paleolítica. Como D’AMBROSIO justamente observou, nesse
estágio primitivo da evolução do conhecimento, no alvorecer do comportamento
humano moderno, as suas formas, tais como a Matemática e a Arte, surgem inicialmente
mescladas e indiferenciadas. Além disso, a Arte não deixa de ser uma forma de
matemática inconsciente.
No tocante a fundamental questão, já levantada por GERDES para o artefato de
La Ferrasie aqui transportada para o ocre de Blombos, de qual o simbolismo contido nos
traços gravados, lembramos que todo o símbolo é, por definição, arbitrário,
necessitando de uma convenção para sua aceitação. Qual a convenção aceita para a
interpretação desses símbolos nos é obscura, passível apenas de especulações, talvez
definitivamente sepultada nas fímbrias do tempo. Se o ocre de Blombos era um objeto
ritual, o seu conteúdo simbólico está, portanto, fora do nosso alcance, podemos apenas
conjecturar sobre seu possível significado, baseados em exemplos análogos
emprestados da etnografia.

O que é interessante, ressaltamos novamente, é que atividades que podemos


classificar como matemáticas estão ligadas aos primeiros vestígios de pensamento
abstrato, de comportamento humano moderno, como podemos comprovar com esse
ocre.

A seguir passaremos em revista as principais motivações que podem


possivelmente ter influenciado o despertar do pensamento matemático geométrico, com
o fito de atualizar, sob a luz dos desenvolvimentos mais recentes sobre esses assuntos, o
que os livros de História da Matemática contêm acerca da pré-história da geometria.

Possíveis motivações que podem ter influenciado as origens do pensamento


matemático geométrico

Natureza

Encontramos na Natureza vários tipos de formas geométricas. Elas aparecem


tanto na natureza morta, inanimada, tais como em cristais; na forma circular do Sol e da
Lua; no formato do arco-íris; na parábola descrita pelo arremesso de uma pedra; etc.;
como nas formas de origem orgânica, na estrutura das colméias; nas conchas; nos
desenhos das peles e das pegadas dos animais; nos polígonos construídos pelas teias de
aranha; nas espirais delineadas nas flores do girassol; nas pinhas; etc.
EVES lembra que “As primeiras considerações geométricas do Homem parecem
ter tido a sua origem em observações simples que provêm da habilidade humana de
reconhecer forma física e de comparar figuras e tamanhos” (apud GERDES, 1992,
p.15).

Essa habilidade geométrica seria, portanto, uma capacidade inata da espécie, do


mesmo modo que o senso numérico também representa uma habilidade humana inata
para números. Essas capacidades seriam transmitidas geneticamente, caracterizando
assim uma herança (geométrica e numérica) da espécie, efetiva, embora limitada e
rudimentar Esse mesmo autor nota que “formas físicas possuem um caráter
ordenado... atraindo necessariamente a atenção da mente refletiva” (id., op.cit). É esse
caráter ordenado, isto é, a percepção de padrões, o fascínio pela simetria, o estímulo
estético, que atrai o interesse do homem por essas formas. Observa, porém, GERDES:
“para geometrizar são necessários não só objetos geometrizáveis, mas também a
capacidade de, na percepção desses objetos, abstrair de todas as propriedades, para além
da sua figura - esta capacidade é o resultado de um longo desenvolvimento histórico de
experiências humanas” (id.). Nisso residem as bases do comportamento humano
moderno, a sua capacidade de pensar abstratamente, de adotar simbolismos, que
encontramos expressas no ocre de Blombos, peça ilustrativa do mais antigo estágio
dessa aventura humana.

Karl Von Steinem, visitando o Brasil no século XIX, notou que padrões
ornamentais, que para nós civilizados parecem puramente formais, para os índios
brasileiros representavam peixes, besouros, cobras, abelhas, vespas e outros animais. A
similaridade de formas entre o puramente convencional e o realístico lhe permitiu intuir
que provavelmente o primeiro se desenvolveu a partir do último.

a b

Fig.8.28 Cestaria Fig. 8.29 Padrões Karajás


Baniwa
Alguns exemplos etnográficos brasileiros nos permitem constatar essa afirmação.
Na Fig. 8.28 encontramos dois exemplos de padrões empregados na cestaria dos índios
Baniwa, da região do Rio Negro: o primeiro (a) é denominado de kettamarhi,
representando o desenho das costas de um determinado tipo de besouro; o segundo (b),
makowe ithi, lembra o olho de certa ave noturna. Os padrões da Fig. 8.29, empregados
pelos índios Karajás, têm as seguintes interpretações: a) ninhos de vespas; b) morcegos;
c) desenho da pele da cobra cascavel; d), e) e f) desenhos das peles de cobras diversas.

É possível que o padrão do ocre de Blombos tenha como inspiração alguma


forma geométrica regular da Natureza.

Ornamentação corporal

BERNSTEIN afirma que um código simbólico reforça um padrão de valores dado


e leva os membros de um grupo a internalizar as normas no processo de interação.

Aspectos de estruturação social tradicional, no que se refere aos sistemas de


classificação social, que categorizam os elementos de um grupo, estão diretamente
relacionados à ornamentação corporal, seja ela feita por meio de pinturas, tatuagens,
penteados elaborados, enfeites e mesmo complementos tais como mantos, tiaras,
chapéus, etc.

Pintura corporal

Estudos etnológicos nos permitem afirmar que a pintura corporal de um


indivíduo conforma uma linguagem simbólica que expressa uma ampla gama de
informações sobre o seu status social, sexo e idade, bem como sobre os grupos
cerimoniais a que pertence, classificados segundo os papéis que desempenham nos
rituais, bem como seu grau de iniciação. Pode adquirir dimensões transcendentais,
estando então associada ao domínio da natureza (magia); ou interpretações
cosmogônicas (mitos de criação); ou cosmológicas (estruturação do mundo, ordem
cósmica). De certa maneira, a ornamentação corporal é a forma direta e concreta de
comunicar identidade pessoal e social.

Fig. 8.30 Padrões de pintura corporal Xicrin

A pintura corporal pode empregar pigmentos tanto de origem mineral, por


e Mkrãnôti.

exemplo o ocre, como de origem orgânica, tais como o suco de jenipapo, o carvão
vegetal e o urucum, que desaparecem ao fim de um certo tempo, devido à higiene
corporal ou ao atrito. Essa é uma vantagem, pois os padrões pintados podem ser
substituídos por outros, de acordo com as necessidades da ocasião.

Provavelmente o homem passou a empregar a pintura corporal quando incorporou


a cor em suas vidas, o que parece ter ocorrido, na África, há cerca de 270.000 anos.

Exemplos etnográficos demonstram mostram ser comum e universal o emprego


de padrões geométricos em pinturas corporais.

Tatuagens

As tatuagens também configuram uma linguagem simbólica semelhante à da


pintura corporal, porém são duradouras. A técnica da tatuagem consiste em perfurar
a pele com objetos pontiagudos, como dentes de cotia, de tubarão, ossos de pássaros,
etc., previamente mergulhados em uma tinta indelével, geralmente negro de fumo,
embora outros pigmentos possam ser empregados. São executadas seguindo padrões
geométricos ou animalísticos tradicionais.

O emprego do negro de fumo gera um problema para os humanos de pele


escura, como os negros africanos ou os australianos, pois o desenho então não é
visível. A solução que esses povos encontraram consiste em praticar incisões na pele
em vez de perfurá-la. Depois, esfregando-se na ferida substâncias irritantes, como
areia ou cinza, se obtém a formação de um tecido cicatricial, caracterizado por
intumescimentos. A esse processo se denomina escarificação. Os desenhos formados
por esses intumescimentos podem constituir formas geométricas complicadas.

A dor associada a esses procedimentos constitui importante fator psicológico,


componente essencial da conscientização dos participantes sobre a importância dos
rituais de iniciação que os exigem.

Evidentemente, testemunhos arqueológicos do emprego desses processos


implicam na preservação da pele humana, o que só ocorre em circunstâncias
excepcionais.

Em 1.929 o arqueólogo russo Sergei Rudenko “escavou” alguns kurgans,


montes sepulcrais de terra, artificiais, em Pazyrik, local não distante do ponto onde
as fronteiras modernas da Rússia, da Sibéria e da China se encontram. Nessa região o
solo está permanentemente congelado (permafrost). A “escavação” foi feita mediante
baldes de água quente cuidadosamente despejados no conteúdo congelado dos
sepulcros. Recuperaram-se magníficos objetos de couro, tapetes, têxteis e outros bens
igualmente perecíveis, bem como os corpos preservados de seus donos, em seus
esquifes de madeira, com suas peles cuidadosamente tatuadas. Esses sepultamentos
datam de 500 a.C.

Em 1.991, transeuntes praticando trilhas nos Alpes no norte da Itália


encontraram os restos congelados de um homem neolítico, conhecido como o
homem de Hauslabjoch ou, popularmente, Ötzi, o homem do gelo. Com uma idade
de 5.300 anos, sua pele está gravada com 59 tatuagens. Seu simbolismo é
desconhecido, embora as marcas de tatuagens nas costas e na perna coincidam com
pontos de tratamento de dor por acupuntura. Estudos radiológicos mostraram
evidências de osteoporose em Ötzi, que pode ter respondido à acupuntura. A
acupuntura, contudo, é presentemente acreditada como surgida na China há cerca de
2.000/3.000 anos atrás. Embora isso possa ser apenas uma coincidência fortuita,
alguns especialistas crêem que essa evidência possa apontar para que a acupuntura
possa ter aparecido simultaneamente em várias culturas; bem como que populações
pré-históricas poderiam ter um profundo, possivelmente intuitivo, conhecimento do
corpo humano, associado talvez à prática de tatuagens.

Adornos diversos
Podem também ostentar uma linguagem simbólica complexa, do mesmo modo
que as pinturas, as tatuagens e as escarificações corporais. Não raro se constituem em
objetos rituais, prezados e valiosos entre os povos que os cultuam. Além disso,
muitas vezes seu apelo estético também os torna bastante requisitados.

São feitos dos mais diversos materiais, desde que disponíveis, tais como: ossos,
dentes, conchas, madeira, sementes, contas, pedras, semi-preciosas ou não, couro,
chifres, marfim, unhas, plumas, etc.. Assumem variadas formas: pendentes, colares,
tiaras, diademas, braceletes, braçadeiras, pingentes, cilindros labiais e auriculares
(botoques), bastões, anéis e outras. Penteados elaborados também constituem
adornos corporais.

Conforme o artefato, ou pode ser gravado com complexos desenhos, ou a


combinação criteriosa de diversos de seus elementos componentes, como sementes,
contas, etc., pode formar elaborados padrões geométricos decorativos.

Fig.8.31 Figura Fig.8.32 Bracelete de Mezin e seu desenvolvimento.


feminina estilizada.
Os fabricantes de ornamentos do paleolítico, ao escolherem, por exemplo, dentes
de certas espécies como matéria prima, provavelmente estavam tentando assumir
algumas das qualidades desses animais. O processo conceitual de que uma parte
simboliza o todo do animal é denominado metonímia. Uma fundamentação metonímica
para a confecção de ornamentos corporais é bem conhecida pelos antropólogos, por
meio do estudo recente de pequenas sociedades, cujos membros têm rituais em que
assumem as qualidades desses animais.
Diversos exemplos de adornos paleolíticos são conhecidos. De particular
interesse é a figura feminina estilizada (Fig. 8.31), gravada em uma presa de mamute,
encontrada em Predmostí, Moravia, na antiga Tchecoslováquia. Pertence à cultura
Pavloviana, datando de 29.000 a 24.000 anos atrás. Parece contar com uma série de
adornos, bem com uma tiara (?) de desenho complexo. Na Fig. 8.32 vemos um intricado
desenho geométrico gravado em um bracelete, também de marfim de mamute,
descoberto em Mezin, na antiga União Soviética, bem como um grande pendente
decorado, proveniente de Lalinde, França. Numerosos outros exemplos demonstram ser
comum o uso de padrões geométricos em adornos paleolíticos (ver Jelínek, 1976).

Vestimentas, Têxteis, Teares

O homem pré-histórico é costumeiramente imaginado como vestido de peles,


vagando em caçadas. Na realidade, achados arqueológicos de couros e peles pré-
históricos são extremamente raros, pois esses materiais só se conservam em
circunstâncias excepcionais, principalmente em ambientes anaeróbicos. Até a
descoberta das vestimentas de Ötzi, feitas de pele, à exceção de um notável casaco,
confeccionado com longas gramíneas, provavelmente empregado como proteção para
repelir água de suas vestimentas e equipagem de couro e pele, apenas dois outros
achados do Neolítico Europeu eram conhecidos: uma bainha de uma faca de pedra,
proveniente de Wiepenkathen, Alemanha; e um poncho de pele da Dinamarca. Já da
Idade do Bronze e do Ferro exemplos de artefatos de couro e pele são conhecidos
oriundos principalmente de pântanos turfosos, como os da Dinamarca, Alemanha e
Holanda; outros exemplares são provenientes de esquifes de carvalho ou minas de sal,
tais como as de Hallstatt (id.).

Presentemente essa concepção arraigada sobre as vestimentas do homem


primitivo vem se alterando substancialmente. Recentemente foi documentada a
existência de tecnologias têxteis diversas e sofisticadas no paleolítico, que incluem
produção de cordas e redes, entrançamento de cestos, fiação e fabricação de tecidos
mediante teares. A evidência arqueológica provém de 36 impressões de têxteis
encontradas em fragmentos de argila, queimados ou não, provenientes de Dolní
Vĕstonice e Pavlov, produtos da cultura Pavloviana, com cerca de 29.000-24.000 anos
de idade. A fabricação de cordas tinha sido já reportada em sítios mais jovens como
Lascaux, França; Kosoutsy, Moldava; Mezhirich, Ucrânia. O aparecimento de agulhas
com olho durante o gravetiense acrescentou a costura à essas tecnologias; embora talvez
inicialmente estivessem associadas à fabricação de redes, posteriormente podem ter sido
empregadas em bordados. Alguns artefatos que podem ter servido como peso para
teares sugerem a existência destes no paleolítico.

Foram recuperadas mais de 200 exemplares de figuras femininas do paleolítico,


principalmente do período gravetiense, compreendido entre 27.000 e 20.000 anos atrás,
denominadas de “Vênus” na literatura. Cada tipo dessas figuras provavelmente tinha seu
próprio conteúdo simbólico, traduzido pela sua pose e valorização de determinadas
partes da anatomia feminina. ABRAMOVA e GVOZDOVER, em 1960 e 1989,
respectivamente, foram os primeiros a estudar os padrões da decoração dos corpos das
Vênus, e a sugerir que alguns deles poderiam indicar alguma espécie de vestimentas.
Vários outros estudiosos, entre eles ADOVASIO, SOFFER, BARBER, chegaram à
conclusão que esses ornamentos das figuras européias de Vênus clara e
indubitavelmente representam têxteis ou entrançados baseados em fibras vegetais.

A cabeça da Vênus de Willendorf (Fig.8.33) é considerada como coberta com


uma touca ou chapéu tecido em fibras. Os estudiosos eliminam a hipótese de que possa
ser um elaborado tipo de penteado, baseados na forma com que o cabelo humano cresce.
Também é possível que seja alguma modelo de rede para os cabelos. Esse tipo de
cobertura da cabeça foi identificado em corpos femininos recuperados nas turfeiras
dinamarquesas.

A Vênus de Kostienski mostra indícios de um bandeaux, claramente tecido,


sustentado por tiras. Cintos, algumas vezes sustentando saias de cordas, são vestidos na
cinturas ou nos quadris. A saia da Vênus de Lespugue consiste de 11 cordas ligadas a
uma corda base que serve como cinto, e observações do artefato confirmam que foi
confeccionada de fibras vegetais. BARBER (1.992) acredita que essas saias de corda
são símbolos da fertilidade feminina.
Fig. 8.33 A partir da esquerda: Vênus de Willendorf; Vênus de Lespuge; Vênus de Kostienski, frente e
costas; Vênus (Dame) de Brassempouy.

Provavelmente o uso de vestimentas tecidas de fibras vegetais se alternava com o


uso de peles, atendendo assim a parâmetros sociais ou sazonais.

Como é sabido, a tecnologia da tecelagem de tecidos, das redes, de artefatos


entrançados, implica em conhecimentos geométricos elaborados, necessários para a
construção dos padrões que aparecem nestes produtos.

Entrançamento de fibras vegetais

Fig. 8.34 A partir da esquerda: “brasão”, Lascaux; entrançamento de um


padrão hexagonal (apud GERDES, 1992).

Na caverna de Lascaux, França, encontramos, entre as pinturas murais ali


existentes, figuras retangulares divididas como um tabuleiro de xadrez, um tanto
irregular, sendo que quadrados alternados são pintados com cores diferentes (Fig.8.34).
São conhecidas como “brasões”. Provavelmente foram inspiradas na arte de entrançar.
Como em poucos minutos o entrançamento de tiras ou fitas vegetais pode produzir, por
exemplo, um cesto simples, prático, para o transporte de alimentos; essa arte, graças à
sua utilidade, possivelmente apareceu muito cedo na história da humanidade. A cestaria
era conhecida no paleolítico, onde provavelmente antecedeu a tecelagem, que pode ter
evoluído dela.

GERDES (1992) nos ensina como entretecer um padrão hexagonal simples. A


partir de uma fita que incide com um ângulo de 60o em um rebordo, se atam outras fitas,
às quais se entrelaçam fitas horizontais, formando o desenho indicado na Figura 8.27. O
padrão hexagonal pode ser observado na natureza, por exemplo, nas colméias de
abelhas.

É interessante notar que se atarmos uma tira a um rebordo duas vezes mais largo,
com um ângulo de incidência de 60o, obtém-se um padrão semelhante ao do ocre de
Blombos (ver Fig. 8.25), onde parece figurar um padrão hexagonal. Se o desenho desse
ocre foi inspirado na arte de entrançar, ou em algum padrão geométrico da natureza, é
impossível decidir; sob a perspectiva dos milênios transcorridos, pode-se apenas
conjecturar.

Cerâmica

Os mais antigos vestígios da tecnologia da cerâmica são as figurinhas encontradas


em Dolní Vĕstonice, com 26.000 anos de idade, cerca de 14.000 anos mais velhas do
que os mais antigos vasos cerâmicos. A fabricação de vasos utilitários de cerâmica tem
12.500 anos de idade no Japão, 8.400 no sudoeste da Ásia e 12.000 anos no norte da
China.

Embora considerando que seis exemplares de terra ou argila modelados a mão e


possivelmente endurecidos pelo fogo sejam conhecidos de sítios do paleolítico superior,
provenientes de Mas D’Azil e La Bouiche, nos Pirineus, França; em Kostienski, na
antiga U.R.S.S.; em Maina, na bacia do Yenisei, na Sibéria; em Zazaragi, no Japão;
contudo, nos sítios Morávios de Dolní Vĕstonice, Pavlov, Predmosti e Petrkovice na
Tchecoslováquia foram encontrados mais de 10.000 fragmentos de cerâmica, de longe o
maior inventário dessa tecnologia já descoberto.
Fig. 8.35 Figurinhas de cerâmica de Dolní Vĕstonice: leoa e rinoceronte.
Em
Dolní Vĕstonice foram descobertos os restos de dois fornos empregados para queimar
cerâmica, os mais antigos já encontrados. A cerâmica desse sítio é particularmente
durável, o que levanta a possibilidade de que essa tecnologia fosse mais difundida do
que demonstra o registro arqueológico, pois peças de outras áreas podem não ter se
preservado devido a problemas de durabilidade em objetos queimados a baixas
temperaturas, com uma composição vítrea instável.
A cerâmica pintada surgiu no
Neolítico, principalmente no
Oriente Médio, em sítios como
Çatal Huyuk, Jarmo, Hassuna,
Samarra, Tel Halaf, e também

Fig. 8.36 Fachada de templo.


mais tarde na cultura Yang
Fig. 8.37 Prato
Uruk.
policrômico. Shao, na China, entre outros
lugares. Desde os seus príncipios encontramos motivos geométricos, alguns bastante
elaborados, como no prato policrômico proveniente de Tel Halaf mostrado na Fig. 8.37,
que data de 4.500-4.000 a.C., que indica um domínio sofisticado da geometria.

Armadilhas, habitações, painéis e mosaicos


Diversos
Fig. 8.38 Esquerda: motivos
desenhos geométricos
geométricos: da paleoarte
El Castillo, Espanha; vinham
centro e direita: sendo
desenhos considerados
de Font de Gaume,
França.

Diversos motivos geométricos da paleoarte vinham sendo considerados como


representativos de armadilhas, escudos, redes, ou mesmo habitações (Fig. 8.23). Ou
mesmo admitia-se um significado ritual para eles, como armadilhas ou cabanas para os
espíritos.

A partir da década de 1.960, contudo, a corrente estruturalista encabeçada por


André Leroi-Gourhan e Annete Leming-Emperaire propôs uma nova interpretação. A
freqüência e a distribuição espacial das figuras de cavalos e bisões na arte parietal fez
surgir a idéia de que esses animais possuíam significado simbólico. Esses
pesquisadores, independentemente um do outro, chegaram à conclusão que eles
simbolizavam a divisão da sociedade paleolítica em elementos masculinos e femininos.
A paleoarte refletiria, portanto, essa divisão. A distribuição topográfica dos animais nas
paredes das cavernas, segundo essa corrente, representava a estrutura da sociedade dos
caçadores.
Fig. 8.39 Símbolos masculinos Símbolos femininos

Os símbolos geométricos também foram divididos em masculinos e femininos,


segundo a divisão proposta para a sociedade paleolítica (Fig.8.39).

Essa concepção influenciou profundamente os trabalhos posteriores sobre o


tema, até o surgimento de novos modelos, como o da associação de estados alterados
(xamanismo) com fosfenos, e o modelo neurofisiológico, já descritos.

Com o advento das primeiras vilas e cidades, no neolítico, como Jericó (c. 8.000
a.C.) e Çatal Huyuk (c.7.000 a.C.), as habitações começaram a ter suas paredes
decoradas. Surgem, então, os primeiros painéis murais pintados, muitas FigÇatal
Huyuk, que mostra uma erupção vulcânica ameaçando uma cidade.
Recentemente, em 2.007, no norte da Síria, em Jaadet Al-Maghara, arqueólogos
descobriram o que parece ser o mais antigo painel pintado conhecido, coberto com
motivos geométricos, com uma idade de 11.000 anos.
Fig. 8.30 Jaadet Al Maghar Pintura mural em vermelho, preto,
branco.

Na seqüência apareceram os mosaicos, muitas vezes compostos de materiais


diversos, como no apresentado na Fig. 8.36, uma fachada de um templo de Uruk, cidade
que floresceu no alvorecer da história, em torno de 3.200 a.C., onde encontramos um
mosaico de motivos geométricos, feito com cones de argila queimada em forma de
“pregos”.
O emprego de motivos geométricos na decoração de construções se generalizou
a partir daí, se transmitindo para as civilizações históricas posteriores.

Mapas

Uma definição padrão, encontradiça nos dicionários, é que mapa é “uma


representação, geralmente em uma superfície plana (bi-dimensional), de uma porção do
espaço”. Envolve aspectos cognitivos complexos, que implicam na transferência de
formas tridimensionais adquiridas por meio da visão para superfícies planas, além de ser
necessário um excelente manejo da noção de distância. Existem vários tipos de mapas,
os mais importantes, para os nossos objetivos, são o que podemos denominar de mapas
de viagem, que permitem ao viajante se localizar e se orientar para chegar ao seu
destino.
Sem um armazenamento externo da informação, os pontos de orientação, as
referências, as distâncias, são internalizados, armazenados na memória, e transmitidos
oralmente. Isso é o que deve ter ocorrido durante a pré-história. Essa transmissão oral
deve ter se dado entre gerações por meio de contos, canções, ou mesmo poemas,
decorados, repetidos continuamente, transmitidos de pai para filho.

As distâncias provavelmente eram computadas em termos de tempo de viagem,


levando-se em consideração o meio de deslocamento, se a pé, ou de trenó, ou de barco,
a remo ou a vela. Ainda hoje falamos de uma caminhada de três horas, ou de uma
viagem de uma semana.

Muitas sociedades primitivas possuem termos para leste, oeste, norte e sul, os
pontos cardeais, conforme nos ensina a etnografia. Tal terminologia pode sugerir que é
normal entre primitivos conceber noções espaciais por meio de um sistema de
coordenadas euclidiano, quase da maneira que nós fazemos. Já vimos que filósofos
como Kant propuseram que a geometria euclidiana expressa uma das classes de idéias
inatas ao homem, os a priori sintéticos.

O horizonte de um viajante é, para ele, aparentemente circular, quando se


encontra, por exemplo, no mar aberto ou nas vastidões árticas, sem pontos de referência
notórios. Leste e oeste originam-se das direções onde o sol nasce e se põe, o nascente e
o poente. Porém não há características óbvias e universais do mundo físico
correspondentes ao norte e sul, exceto pela estrela polar e pela constelação do Cruzeiro
do Sul, bem como algumas estrelas circumpolares. O uso das estrelas por povos
primitivos aparentemente está mais ligado ao cômputo de ciclos da agricultura do que
para a navegação, isso é ainda mais ainda constatável nas latitudes tropicais.

A representação das quatro direções conota um simbolismo muito antigo, como,


por exemplo, na disposição leste-oeste dos corpos em enterros pré-históricos. As quatro
direções estão simbolicamente reproduzidas na orientação de muitas igrejas cristãs,
onde a nave está orientada leste-oeste e seus transeptos norte-sul. O corpo humano
também fornece um modelo de dois eixos ortogonais, com um eixo da esquerda para a
direita e outro dos pés à cabeça.

Quando fatores topográficos constituem pontos de referência permanentes como,


por exemplo, para os aborígenes australianos, povos caçadores coletores, sua orientação
se dá em relação aos mesmos; eles normalmente se deslocam mantendo uma imagem
mental destes fatores constantemente atualizada, a qual são capazes de lembrar com
grande acurácia mesmo após muitos anos. Há relatos de que uma única viagem foi
suficiente para provocar uma impressão indelével mesmo após 40 anos. Também
apelam à percepção de sinais naturais, como o vento ou o sol. Não são capazes de
construir mapas como os conhecemos, ou seja, representações acuradas de orientações
ou escalas, mas são capazes de se deslocar, se orientar e encontrar fontes de água e de
comida com grande precisão quando necessário. Aparentemente não recorrem às
estrelas na sua orientação.

Quando a paisagem é monótona, como nas vastidões nevadas do ártico ou da


Sibéria, a orientação dos povos caçadores coletores seus habitantes se dá por meio de
uma variedade de pistas sensoriais, como tivemos oportunidade de comentar.

Para a construção de mapas é fundamental a noção de mudança de perspectiva.


A habilidade de compreender relações espaciais por meio de fotografias aéreas ou
mapas bidimensionais envolve a capacidade de mudar a perspectiva pessoal de 90 º, da
horizontal para a vertical; de interpretar uma diminuição geral de escala; de interpretar a
representação simbólica de objetos quando estes são apresentados em forma de imagens
bidimensionais, como fotografias. Pesquisas mostram que a habilidade de reconhecer
relações espaciais concretas mostradas em fotografias aéreas e de plotar cursos
hipotéticos entre determinados pontos nestas fotografias é desenvolvida no nível pré-
operatório. Crianças de seis anos são capazes de interpretar fotos aéreas verticais.

Apesar de suas pobres habilidades em representação gráfica, aborígenes parecem


ter alguma compreensão conceitual de coordenadas espaciais, embora, é claro, sua
orientação se dá principalmente em termos de imagens do terreno, complementada por
indicações do sol e dos ventos. Porém, o uso de sistemas de coordenadas não é
imprescindível na produção de mapas.

Caçadores coletores, como alguns povos esquimós, são capazes de confeccionar


mapas bastante precisos, sem baseá-los em pontos cardeais, empregando unicamente
conhecimento topográfico. Sua maneira de desenhá-los consiste em primeiro marcar
pontos cuja posição relativa é bem conhecida. Situam-se, por exemplo, em uma colina,
olhando ao redor para marcar os pontos corretamente. São capazes de desenhar na neve
mapas topográficos significativamente precisos; porém, devido à carência de medições,
distâncias e direções são bastante aproximadas.
Fig. 8.41 Mapas esquimós Aivilik: da esquerda: mapa nativo; mapa nativo;

A Figura 8.41 mostra dois mapas da Ilha de Southampton esboçados por


esquimós Aivilik, um local favorito de caça deste povo e, para comparação, um mapa
moderno foi acrescentado. Como se pode comprovar, a acurácia desses mapas é
admirável, se levarmos em conta que foram elaborados de memória, sem recursos
técnicos modernos, como bússolas, GPS, ou fotos aéreas.

Alguns povos recorrem às estrelas para orientação. Os


nativos de Puluwat, ilha pertencente às Ilhas Carolinas,
no Pacífico, se orientam em mar aberto usando uma
“bússola” de estrelas, cujo aprendizado é feito com o
auxílio de varinhas e
seixos e leva cerca de
doze anos para ser
memorizado. Além disso,
Fig. 8.42 Meddo; apud.Asher
outros pontos como
recifes, velocidade e direção de correntes, pássaros
marinhos, etc., são levados em consideração.

Verdadeiramente notáveis são os mapas de varinhas


das Ilhas Marshall. São feitos do arcabouço das folhas de Fig. 8.43 Rebbelith; id.
palmeiras, atados com fibras de coco e algumas vezes com
umas poucas conchas adicionadas. Medem geralmente 60/120 cm por 60/120 cm. São
de dois tipos: o primeiro, que inclui os meddo e os rebbelith, são mapas como
conhecemos; mostram as posições relativas de ilhas, atóis e outros detalhes geográficos.

Já os do segundo tipo, os mettang, não são o que classificaríamos como mapas,


mas introduzem a perspectiva dos fatores ambientais que os navegadores das ilhas
Marshall acham determinantes para sua orientação em mar aberto. Eles praticam o que
se denomina de navegação das ondas (wave piloting), onde é importante levar em
consideração as interações entre as massas de terra e os fenômenos oceanográficos.

Os mettang são representações estáticas, idealizadas, das formas e movimentos no


mar, bem como da interface terra-mar. São modelos explanatórios da geometria
dinâmica que embasa o sistema de navegação das ondas por eles empregado. Levam
em conta fenômenos físicos como reflexão, refração, e difração das ondas. Observam a
composição (interferência) das ondas quando se refletem em obstáculos como ilhas ou
atóis. Notam a influência dos ventos nas ondas, das correntes submarinas, da topografia
subaquática.

O que é interessante é que esses artefatos aparentemente não são necessários


enquanto no mar, são usados apenas em terra. São artifícios mneumônicos, destinados à
transmissão e aprendizado do conhecimento de navegação desses povos. Constituem-se
em informações externalizadas, arquivadas fora da memória. São complementados por
canções (alinlokonwa), cantadas pelos canoeiros, para se manterem alertas e confiantes,
bem como para se recordarem dos indicadores de direção. O número de vezes que uma
determinada canção é repetida também serve para estimar o tempo, o quanto do trajeto
foi percorrido.

A geometria desses artefatos é complexa, envolvendo segmentos, retas,


retângulos, triângulos, curvas, etc. O que é notável é a conjugação de idéias
matemáticas, através de representações geométricas espaciais, com sistemas físicos,
denotando uma capacidade simbólica muito avançada, muito além do que a cultura
ocidental costuma admitir para “povos primitivos”.

Talvez o mais antigo mapa que se tem


conhecimento seja um mapa astral, e não
terrestre. A Caverna de Lascaux foi
descoberta em 1.940 por crianças, e
contém cerca de 600 pinturas e 1500
gravuras. O mural denominado de “Sala
dos Touros” tem aproximadamente 18 m
de comprimento, 7 m de largura e está a
Fig.8.44 Mapa astral da caverna de Lascaux.
6,5 m de altura, e está datado de 15.000
anos antes da nossa era. A pesquisadora espanhola Luz Antequera Congregado em
sua tese doutoral (em 1.992) propôs que os seis pontos situados acima do ombro do
touro (nº 18) da Sala dos Touros representavam as Plêiades e, em 1.994, que os
quatro pontos à esquerda da face do touro (Fig. 8.44) as estrelas do cinto de Orion.
Posteriormente, outros pesquisadores, entre os quais Frank Edge, afirmaram que
esses pontos representavam a constelação do Touro.

Os touros são na realidade auroques, uma espécie de boi selvagem, hoje


extinto. Michael Rappenglüeck, da Universidade de Munique, acredita que a arte
parietal da caverna de Lascaux envolve não somente a representação de constelações,
mas também é uma reprodução simbólica da cosmologia xamânica paleolítica.
Contudo, até hoje não foram encontradas provas incontroversas da existência de uma
astronomia paleolítica.

O mais antigo mapa terrestre de que se tem conhecimento é o mural de Çatal


Höyük, na Anatólia, na Turquia moderna. Essa pintura mural mede
aproximadamente 2,7 m e está datada pelo radiocarbono em 6.200 + 97 a.C., tendo
sido encontrada em 1.963 por James Mellaart. As casas desse sítio neolítico, que data
do início da era agrícola, portanto uma das mais antigas áreas urbanas, eram chatas,
sem portas ou janelas, construídas umas ao lado das outras. Seus habitantes entravam
pelo teto plano, por meio de escadas.

Por isso era


normal para
seus habitantes
ver sua cidade
de um ponto de
vista aéreo,
como se
contemplasse
uma fotografia

Fig. 8.45 Mapa de Çatal Höyük


da cidade tirada
de um avião.
Essa seria a
imagem mental que seus habitantes formariam de sua cidade, que foi cristalizada
nessa pintura mural, digna representante da arte parietal neolítica. Civilizações
posteriores seguiram essa mesma convenção; presentemente, quase todos os mapas
são desenhados como se olhássemos do céu ao invés de olharmos de uma perspectiva
oblíqua ou mesmo horizontal. Esse mural representa a mais antiga planta conhecida
de um conjunto residencial e, exceto por estar desprovida de medições e direções
acuradas, atende às mesmas convenções que hoje empregamos para tal.

Mellaart acredita que represente a própria Çatal Höyük, mostrando


aproximadamente 80 de suas edificações densamente compactadas. Uma das
ilustrações desse mapa mostra as paredes norte e leste do templo. Atrás da cidade há um
vulcão em erupção, com detritos vulcânicos incandescentes rolando em suas encostas ou
sendo atirados da cratera, sobre a qual paira uma nuvem de fumaça e cinzas. Os cones
gêmeos do vulcão sugerem que era uma erupção do Hasan Dag, que se eleva a mais de
3500 m sobre a planície de Konya e é visível de Çatal Höyük, como ilustrado no mural.
Essas montanhas vulcânicas eram importantes para os habitantes de Çatal Höyük, pois
eram jazidas de obsidiana, que empregavam na confecção de ferramentas, armas,
joalheria, e outros objetos. Este vulcão esteve ativo nessa região por mais 4.000 anos
após a data da confecção do mural, o que indica que o mural é provavelmente uma
representação realística de um acontecimento histórico.

Considerações Finais

Finalizando nossa revisão concisa sobre a pré-história da geometria, gostaríamos


de frisar o que segue. Os achados de Blombos, notadamente o ocre estudado, parecem
representar as mais antigas evidências de atividades matemáticas, que podemos
classificar com elevado grau de certeza como intencionais, encontradas até a presente
data. Igualmente assinalamos que, considerando que essas mais antigas pistas de
pensamento simbólico por parte do ser humano podem ser classificadas como
matemática, isso nos autoriza a afirmar que a matemática está profundamente incrustada
nas origens do pensamento abstrato da nossa espécie, como mostram outros
testemunhos geométricos em achados ainda mais antigos que os de Blombos.

O estágio atual do conhecimento nos permite afirmar apenas que a origem da


cognição, do pensamento simbólico, abstrato, parece estar de certa forma conectada à
matemática. Este, bem como outros aspectos do comportamento moderno, é parte de um
mosaico de evoluções, sendo produto de uma convergência entre muitas trajetórias
evolucionárias. O próprio cérebro humano evoluiu diferentemente, a taxas variadas,
como o comprova a diversidade física dos diversos hominídeos presentes na faixa
temporal em pauta. Vários comportamentos (gregarismo, xamanismo, etc.), incluindo
tecnologias diversas (ornamentação corporal, tecelagem, trançados, cerâmica,
armadilhas, construções, etc.), simbolismo e linguagem, também seguiram por vias
distintas ao longo de trajetórias particulares. Essas trajetórias foram submetidas no
tempo e no espaço a pressões seletivas, podendo ter convergido em áreas diferentes de
formas relativamente distintas. Em alguns poucos casos podem ter ocorrido fenômenos
isolados, de iniciativas adiante de seu tempo, que, porém, não tiveram continuidade. A
realidade é muito mais complexa que o conjunto de nossas certezas.

O mesmo pode-se afirmar do surgimento da geometria. Fatores evolutivos


anatômicos, especialmente do córtex visual, necessitam, como sublinhamos, ser
considerados. Esses fatores precisam ser associados às diversas motivações que o
pensamento geométrico do homo experimentou ao longo desse tempo. Provavelmente
não houve uma motivação principal diretora da evolução do pensamento geométrico,
mas sim uma composição de motivações, cada qual com uma intensidade distinta,
atuando segundo trajetórias diversas, em momentos diferentes.

AGRADECIMENTO

Agradecemos sinceramente ao ilustre Prof. Dr. Ubiratan D’Ambrosio, por nos ter
chamado a atenção para os achados da Caverna Blombos.
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Maio 2010

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