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ARTE INTEGRANTE DO JORNAL PÚBLICO N.º 10.938 E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE
Epidemias
Apocalipse zombie,
sem efeitos especiais P14/15
Portfólio Para que muitos
possam ficar em casa, há
muitos que saem dela P10 a 13
PAULO PIMENTA
4 10 14 16
Entrevista Portfólio Ciências Sociais
Índice Júlio Machado Vaz
“Tenho hoje uma
Eles sabem
que não
em Público (I) Epidemias
Apocalipse zombie,
maneira mais saudável podem parar sem efeitos especiais
de olhar a vida”
V
oltar à normalidade. É mos tão impreparados para a catás-
a frase destes dias. Há trofe, apesar dos avisos dos cientis-
desejo de que tudo vol- tas, os mesmos a quem pedimos uma
te ao que era. Mas tam- vacina e de quem tantas vezes dize-
bém surgem vozes a mos que se limitam a viver à conta
proclamar que regres- do Estado. E quem diz cientistas diz
sar ao passado nem pensar, se isso artistas, os mesmos que na quaren-
signiÆcar décadas que arruinaram tena nos nutrem o espírito e o senti-
sistemas de saúde, habitação, segu- do de comunidade.
rança social e ambiente, colocando- E quem diz estas actividades diz
se o lucro à frente do bem-estar das outras, tantas vezes menosprezadas,
comunidades e do planeta. que garantem a assistência, a comu-
Vivemos tempos simultâneos. Por nicação, a informação, a administra-
um lado, a resposta imediata e a tra- ção e o pensamento. Será que aquilo
gédia, com famílias enlutadas que que valorizamos como coragem in-
nem conseguem enterrar os mortos, dividual, por mais abnegados que os
e um número incalculável de pessoas proÆssionais da saúde possam ser,
que Æcará desempregada. E por ou- não é aÆnal sintoma da falência de
tro, reÇectir o futuro imediato, para um sistema que deixa os mais des-
que não voltemos ao que nos trouxe protegidos morrer, porque preferiu
aqui e conjecturar outros rumos. salvar bancos em vez de hospitais?
O que está a acontecer não tem Que optou por premiar líderes que
qualquer virtude. Mas também não levaram empresas à falência, em vez
é um castigo divino da natureza, ou de dar condições aos proÆssionais
uma guerra, como a política nos faz de saúde, e a outros, que hoje se re-
crer, quando o momento deveria ser velam essenciais, cuja única opção
o de aÆrmar a semântica da empatia, há anos foi rumar ao estrangeiro?
da solidariedade, dos cuidados, do De que normalidade falamos? Uma
conhecimento e da cooperação, tan- onde as vítimas são aplaudidas como
to microlocal como global. heróis, depois de gestos sacriÆciais, A seguir
Esta é uma crise sanitária excep- perante um sistema que prefere es-
cional, resultante de uma pandemia quecer os vulneráveis para engordar Candidaturas à Linha de Apoio de Emergência às Artes
que se deseja conjuntural, que expôs o capital Ænanceiro? O vírus mata,
insuÆciências estruturais ao nível do mas também políticas de saúde adia-
sistema de saúde, e não só, e que terá das. Queremos voltar às lógicas que Estão abertas até amanhã as apresentação facultativa ou
consequências nas mais diversas ex- nos últimos anos desvalorizaram o candidaturas à nova Linha de projectada para o futuro. Podem
tensões da nossa existência. trabalho, tratando-o como custo? Ou Apoio de Emergência ao Sector candidatar-se instituições e
Nesse sentido, voltar ao normal, viver apenas do turismo, continuan- das Artes, integrada no quadro artistas que estivessem nos
não é opção. Não é suÆciente olhar do a acreditar na miragem do cres- de medidas excepcionais por últimos seis meses a trabalhar
a pandemia como acidente, sem tirar cimento económico permanente? causa do surto de covid-19. Com nas áreas dos projectos com que
daí consequências. Até agora temos O momento que estamos a viver o valor de um milhão de euros, se candidatam e que tenham
enfrentado com urgência o vírus. tanto pode resultar em mais austeri- esta linha é Ænanciada pelo veriÆcado uma paragem total ou
Mas também há uma expiação colec- dade, autoritarismo e quanto menos Fundo de Fomento Cultural do parcial das suas actividades
tiva que nos leva a erigir heróis (mé- democracia melhor, ou construir um Ministério da Cultura e devido à pandemia. Cada
dicos e enfermeiros, ou quem pro- espaço onde a democracia seja com- destina-se a apoiar instituições e projecto poderá ser apoiado
põe lógicas sacriÆciais por bem-in- patível com o máximo de equidade artistas nas áreas das artes com montantes até 20 mil
tencionadas que sejam, como social, política, cultural e económica. performativas, artes visuais e de euros, no caso das instituições, e
Ramalho Eanes, ou Suzanne O que está a acontecer não exige ape- cruzamento disciplinar. Os até 2500 euros, no caso de
Hoylaerts, a belga de 90 anos que nas reacção. Exige também agir de apoios a conceder destinam-se a artistas. As propostas à linha de
morreu depois de ceder um ventila- forma que abra espaço para a mu- projectos que prossigam emergência devem ser enviadas
dor) e que nos abstrai. dança. Não se fará tudo de uma vez. objectivos de interesse cultural, por email (cultura.covid19@mc.
Nesse movimento acabamos por Mas outra normalidade é precisa. podendo incluir apenas o gov.pt) e o formulário está no
não interrogar o que se passa de er-
rado com o nosso sistema para estar- Jornalista SOS cultura período de concepção e
desenvolvimento, sendo a
site da DGArtes e em www.
culturacovid19.gov.pt
Público • Domingo, 5 de Abril de 2020 • 3
Ficha técnica
22 23 24
Entrevista Estar Bem Crónica Opinião
Laura Spinney Respostas Quando Os tempos Director Manuel Carvalho
Directora de Arte Sónia Matos
“Só vamos aprender terapêuticas regressamos ao vão mudar? Editor Sérgio B. Gomes
a lição se morrer aos interesses velho normal? Designers Marco Ferreira e Sandra
muita gente” sexuais atípicos Silva Email sgomes@publico.pt
O valor do humano
À
pergunta “de que casa. A enfermeira não janta com internacional com exércitos, nacionalizar, racionalizar,
tem mais a família. Os velhos, nos lares, Grande angular provocações, inimigos e batalhas. impedir o desemprego e a
saudades?”, fogem uns dos outros. António Barreto Não é nada do que conhecemos. falência.
respondeu “do As chamadas grandes guerras Uns sabem o que se passa.
E
amor”. Ou então, ste é o terror. Que mundiais, a primeira e a segunda, Outros o que deve ser feito. Toda
“da minha tentamos esconder. são história. As gripes e as pestes a gente quer aproveitar a
liberdade”! Ou, ainda, “dos meus Com a televisão e as são história. As crises do petróleo, pandemia para realizar as suas
amigos”. séries. Com os a descolonização, as invasões e as fantasias. Os tolos querem acabar
Estes são os tempos em que a computadores e os guerras civis na antiga Jugoslávia, com o capitalismo. Os idiotas com
mulher não pode abraçar o telemóveis. A no Próximo Oriente e na Ásia do o socialismo. Os desavergonhados
marido que vai morrer. A família arranjar estantes. A arrumar Sudeste já são história, foram desejam ganhar dinheiro. Os
não está autorizada a enterrar o roupa. A ler e reler livros. A reais e terríveis, mas não são tresloucados pretendem
avô. O homem que vai trabalhar escrever. A organizar comparáveis ao que temos aí! conquistar o poder. E os
não se pode despedir da mulher. correspondência. A idealizar Aqui, agora, ninguém ataca intriguistas dedicam-se a
Os Ælhos não podem visitar a power points e trabalhos de ninguém. Ninguém abate encontrar culpados. Os
mãe. O namorado está interdito computador. A arranjar as ninguém, mas são homens e ressabiados procuram denunciar
de beijar a namorada. A mãe não fotograÆas de família. A reparar mulheres abatidos. As vítimas não os trafulhas. E os vigaristas só
pode acariciar o Ælho. Os amigos máquinas. A coser roupa. A são escolhidas. Os vírus não pensam em aproveitar. Verdade é
não jantam juntos. Os irmãos limpar a casa. A dormir. A matam de preferência brancos, que sabemos tão pouco!
estão proibidos de se encontrar. descansar. É o terror que negros, indianos ou índios. Não No início deste desastre, todos
Os Æéis não rezam aos seus queremos disfarçar com tarefas e perguntam a religião nem o sabiam tudo, os loucos perderam
deuses. Os cristãos não estão projectos adiados. partido político. Não querem a cabeça e disseram o que já
juntos pela Páscoa. Os É este desastre que tentamos saber que línguas falam as esquecem. Passados os primeiros
muçulmanos não vão à mesquita. perceber. Ou explicar. Mas apenas vítimas. O que não quer dizer que tempos, os que tudo sabem
Os judeus não frequentam a conseguimos encontrar o valor os países pobres não sejam mais começaram a acalmar-se. Os
sinagoga.
Estes são os dias em que os
humano da nossa vida. O valor do
presente. Para todos nós, para Parece história, vulneráveis, que os Estados sem
estruturas não sejam mais frágeis
políticos que cometeram erros
enormes agora corrigem. Outros
trabalhadores estão condenados
à paragem forçada. As máquinas
quase todos nós, o terror é
história. O que vivemos e nos mas história e que as nações mais povoadas e
menos desenvolvidas não sejam
deram garantias demagógicas,
agora acalmam-se. Mas muitos,
imóveis nas fábricas. Os aviões
Æcam alinhados na pista. Os
preparamos para viver não tem
termos de comparação. Nem é a não é. É hoje. mais fracas. E a verdade é que,
por enquanto, os países mais
cada vez mais, percebem que são
os homens e as mulheres que
carros eléctricos andam vazios. O peste ou a cólera. Nem a varíola poderosos do mundo são os que estão em causa. Os sentimentos e
mercado não tem clientes, nem ou o sarampo. Ou a tuberculose e Vivemos uma actualmente exibem os piores as famílias. A vida e o amor.
vendedores. Os comércios não a sida. Não que essas sejam ou indicadores. Mas não sabemos se Afaste-se a mentira e a demagogia,
têm produtos para os quais, de
qualquer maneira, não há
tenham sido mais brandas, talvez
não tenham sido. Mas foram em
crise no os países mais frágeis e mais
pobres da Ásia, de África ou da
festejemos a razão e aceitemos a
lágrima. A ciência e a pieguice
compradores. Os cinemas não
exibem Ælmes. O restaurante não
tempo mais largo e espaço menor.
Foram mais lentas. As notícias e
presente e no América Latina não venham a ter
crises iguais ou piores.
fazem parte do humano. São
humanas. A lágrima fácil e o
serve refeições. O quiosque não os vírus demoravam anos a futuro, sem raciocínio frio. O oportunismo e a
P
vende jornais. Os hotéis não espalhar-se. E também não é a arece história, mas sensatez. A aÇição e a serenidade.
recebem turistas. A excursão foi
adiada. As salas de museus
gripe espanhola nem a asiática,
que, para todos nós, são história e
saber ou história não é. É hoje.
Vivemos uma crise no
Todos são humanos. Como
humana, é esta sensação de que a
encontram-se vazias. As
redacções dos jornais estão
nunca pensámos que poderiam
ser actualidade. Nem ocorreu que
suspeitar do presente e no futuro,
sem saber ou
ciência avançou tanto e a vida
mantém-se tão frágil.
fechadas.
Vivemos um presente em que
poderiam voltar a ser verdade.
Mataram vidas, milhares ou
desenlace. suspeitar do
desenlace. Queremos saber tudo,
Mas o valor do humano não
está na suÆciência nem na
os velhos não jogam à sueca no
jardim. Os fãs não assistem ao
milhões. Mas não ameaçavam a
vida. Queremos já, mas nem sequer sabemos se
estaremos cá para contar. E,
presunção. O real valor do
humano está na generosidade e
desaÆo de futebol. O bando não
vai à noite beber copos e ouvir
É terror, não é guerra, não há
inimigo a abater, não há saber tudo, já, todavia, há tantos que sabem
tudo! Tantos que têm a certeza
na entrega. Na procura e na
humildade. Até na fragilidade.
música. As velhotas não fazem
tricot à beira da porta, na
adversário a estudar e a derrubar.
Não é crise económica, com mas nem das máscaras, das luvas e das
viseiras. Tantos que têm a certeza
Por isso, é preferível a incerteza
do biólogo, a dúvida do
má-língua. Os professores não
ensinam diante dos seus alunos.
indicadores, subsídios,
indemnizações, esmolas, sequer sabemos do que deve ser feito nas ruas,
nos comércios, nas escolas e nos
virologista e a cautela do médico
à certeza do político, à
Os estudantes não ouvem aulas. assistência e direitos sociais. Não hospitais. Tantos que têm soÆsticação do sociólogo e à
As Ælarmónicas não tocam. Os
coros não cantam. As equipas não
é crise com manipuladores dos
preços e especuladores das
se estaremos cá programas impecáveis para
reabilitar já a economia, evitar a
garantia do economista.
jogam. O médico não dorme em Ænanças. Não é conÇito para contar crise social, distribuir dinheiro, Sociólogo
4 • Público • Domingo, 5 de Abril de 2020
“Tenho
hoje uma
maneira mais
saudável de
olhar a vida”
Entrevista Júlio Machado Vaz Em À Escuta dos Amantes, conhecemos
alguns dos seus eternos amigos, como o médico Sobrinho Simões,
que é mais do que um irmão, e o seu lugar de refúgio, o seu “covil”,
em Cantelães, para onde levou as cinzas dos seus pais
Por Bárbara Wong texto e Paulo Pimenta fotografia
Público • Domingo, 5 de Abril de 2020 • 5
P
rogramas de rádio, de
televisão e 20 livros depois,
as reÇexões do médico
psiquiatra Júlio Machado Vaz
não são novas para os
leitores, mas é no livro À
Escuta dos Amantes, editado
pela Contraponto, que é
revelada uma faceta mais íntima, numa
espécie de autobiograÆa onde o autor dá a
conhecer os seus pais — foi Ælho único do
professor universitário Júlio Machado de
Sousa Vaz e da cantora Maria Clara —, o seu
famoso antepassado, o bisavô e Presidente
da República Bernardino Machado.
Ao longo das páginas deste livro,
conhecemos alguns momentos da sua
prática clínica que dura há 40 anos — é no
consultório que foi do seu pai, no Porto,
que Júlio Machado Vaz recebe o PÚBLICO,
num dia de Inverno, de chuva puxada a
vento que bate furiosa nas janelas antigas,
ainda a crise do coronavírus se encontrava
na China —; momentos esses que dão o
nome ao livro. Mas não só, porque no ano
em que fez 70 anos, em 2019, o médico
decidiu também reÇectir sobre a sua vida, a
vida do seu país, assim como convida o
leitor para uma viagem pelo seu gosto
literário e musical.
Em À Escuta dos Amantes, conhecemos
alguns dos seus eternos amigos, como o
médico Sobrinho Simões, que é mais do
que um irmão, e o seu lugar de refúgio, o
seu “covil”, em Cantelães, para onde levou
as cinzas dos seus pais.
Este livro é uma espécie de
autobiografia, escrito num discurso
livre, por associações. Foi uma opção
escrever assim?
Sim, foi uma opção perfeitamente
deliberada. O ano de 2019 foi muito pesado
e não precisava de escrever um livro. Mas,
em termos simbólicos, os 70 anos foram a
primeira idade sobre a qual me retive.
Porquê?
Quando eu Æz 50 anos, meu pai morreu.
Quando Æz 60, o que restava de minha mãe
[estava com Alzheimer há 12 anos] morreu.
E eu tive essa sensação das décadas. Aos 50,
não sabia para onde me virar; aos 60,
também não e aos 70 disse: “Alto e pára o
baile! Neste momento, quem está na linha
da frente para ir para a árvore de Cantelães
sou eu!” Apetecia-me escrever, em
associação livre, é verdade e a escrita
paciÆcou-me um bocado.
Estamos em 2020, já passou o medo dos
70 anos?
Em termos estatísticos, em teoria, eu não
chego aos 80... Os homens vivem menos
que as mulheres.
Os casados vivem mais?
Sim e eu vivo sozinho (risos). Portanto,
tenho mais risco. Tive a necessidade de
fechar um capítulo. Estava a receber mais
de 400 convites, de todo o lado, congressos
médicos, escolas, IPSS.
E está a recusar?
As pessoas têm sido muito compreensivas.
Digo-lhes que o que está marcado está; mas
não aceito mais nada. O ano de 2019 foi
pesado porque a clínica psiquiátrica é
pesada. As pessoas felizes não vêm cá fazer
nada. Estar bem e pagar a um psiquiatra é
um caso psiquiátrico! Ao Æm de 40 anos, eu
não sei o que é rotina porque ouço sempre
novas histórias, em que se aplica a velha
frase de “a realidade ultrapassa a Æcção”.
Depois, há a clínica em Adaúfe [o centro de
atendimento a toxicodependentes], c
6 • Público • Domingo, 5 de Abril de 2020
FACEBOOK DA ANTENA 1
momento, é o Æm do mundo. Com o passar
da idade, há, realmente, um rever de
hierarquias.
Relativizamos?
Sim. Eu hoje sou capaz de pensar duas ou
três vezes antes de decidir ou entrar num
conÇito. Há 20 ou 30 anos, não seria assim.
Depois, há outras questões como, por
exemplo, [a casa de] Cantelães, que tem 20
anos, mas gozo-a hoje de uma maneira que
aos 40 não seria capaz de gozar.
Com a idade, regressamos ao passado?
Sou Ælho único, contra o meu voto (risos)...
... Quando era miúdo pedia para ter
irmãos?
Então não pedia!? Eu intuía, sem sequer
conhecer a palavra, que em minha mãe
havia ambivalência e que a resistência era de
meu pai. Eu era mínimo e, uma vez, minha
mãe cedeu e disse-me: “Pede ao teu pai [um
irmão].” Eu era mínimo e telefonei a meu
pai, que foi o homem mais educado que
conheci em toda a minha vida, e
respondeu-me secamente do outro lado:
“Gastou uma chamada por causa disso?
Vemo-nos ao jantar.” Eu disse a minha mãe,
que percebeu que eu estava varado, e penso
que Æcou arrependidíssima. O que é que
aconteceu? Eu nasci com quatro quilos e a
coisa esteve feia. A minha avó materna vivia
connosco e contou-me que meu pai, no
corredor, dizia: “Se isto se resolver, nunca
mais, nunca mais.” Marcou-o de tal maneira
que quando eu anunciei a segunda gravidez
da minha ex-mulher, meu pai disse-me: “Mas
quer abusar da sorte?” Viveu a segunda
gravidez num permanente estado de alerta.
Como é ser filho único?
Fui Ælho único numa família enorme. Meu
bisavô teve 17 ou 18 Ælhos. Eu cresci nas
ilhas da Anselmo Braamcamp, na zona do
BonÆm [no Porto], e aprendi a falar com
toda a gente, com as visitas de meu pai à
noite, que era tudo salamaleques; e com
gente que vinha à janela e se virava para os
Ælhos e dizia: “Anda jantar, meu Ælho da
puta!” Tive sempre a nostalgia das grandes
mesas. Numa determinada altura, quando
estava a fazer o Sexualidades, também tinha
essa sensação de que não podia continuar
àquele ritmo. Na altura, cheguei aos 80
a ter as questões laborais. deveres iguais, mas não há perda de direitos Família e amigos quilos, de tal maneira que tinha episódios
Isso confirma-se nos estudos que adquiridos. Portanto, tu continuas a pagar e Na página anterior, Júlio Machado de apneia de sono. Tinha a minha rotina
contabilizam as horas de trabalho e seguras-me na cadeira para eu me sentar!” Vaz com os pais; em cima, com aqui, ia gravar a Lisboa, metia-me no carro,
concluem que as mulheres trabalham Às vezes, há um receio de dizer qualquer Manuel Sobrinho Simões, seu amigo no Ænal das gravações, e vinha com a
mais horas do que os homens. coisa que não esteja alinhado com o que a de longa data, com quem faz o música aos berros. Nessa altura, os convites
E trabalham! Há questões deliciosas nisso, maioria ou com o que uma minoria, que programa Old Friends, na Antena 1. das escolas era um despautério e não me
nós, homens, adoramos dizer e, às vezes seja capaz de mobilizar autênticos “Dá trabalho, porque somos os dois sentia no direito de dizer não porque tinha
peço desculpa — outras vezes não peço autos-de-fé, pensa e isso assusta-me um obsessivos e vamos ler artigos para a noção que, mais dia, menos dia, iam-me
porque o politicamente correcto chega a bocado. nos prepararmos para o programa” cortar o pio.
extremos —, mas nós adoramos dizer “eu Porquê? E cortaram?
ajudei”, não dizemos “eu partilhei”. Vou-lhe dar um exemplo, às vezes há uma Não, mas puseram-me às muitas da manhã,
Ajudar? Dá a entender que eu não tinha graçola e eu rio-me. Há graças inaceitáveis, aspecto, os mais velhos acabam por ter um no segundo canal.
obrigação. Costumava dizer aos meus mas há outras que não e que se entra num estatuto que não é valorizado. A mensagem Porque Portugal não estava preparado
alunos que, às vezes, o machismo é como a exagero... Eu tenho 70 anos e tive muitos que se passa é: ora aqui estão maneiras de para falar sobre sexualidade?
hemoÆlia, ataca os homens mas é anos de experiência de pesar o que dizia e, Ængir que não está a envelhecer, quando o Portugal estava, havia era pessoas que não
transmitido pelas mulheres. Muitas agora, por razões diversas, acabar nisso não ideal seria ajudar as pessoas a estavam!
continuam a educar os rapazes de maneira me agrada. envelhecerem bem. Sentia que não podia continuar naquele
diferente. O meu Ælho mais velho faz tudo o Chegamos a uma altura em que Como é que se envelhece bem? ritmo.
que a mulher faz em casa. pensamos: “Eu já estou numa idade em Não fazendo do envelhecimento um drama. Os meus primos mais velhos ainda
Falava do politicamente correcto, por que posso dizer tudo”? Se conseguimos uma progressiva contavam histórias de Paredes de Coura, a
vezes chega a ser inquisitorial, é culpa Não, de maneira nenhuma. Se estivermos paciÆcação com o passar dos anos — quinta da família. Meu pai contava que, às
das redes sociais? lúcidos, a idade traz-nos outro tipo de aconteceu-me a mim o que vi acontecer a vezes, eram 44 e que dormia em cima da
As redes sociais são capazes de responsabilidades. Embora esta sociedade outros: determinadas questões que me mesa de bilhar. Isto para um Ælho único era
linchamentos. Eu tenho uma amiga, desde seja cruel com os mais velhos e os infernizaram a vida aos 40, hoje, penso que o paraíso! Tive sempre uma fantasia: se um
os 17 anos, com quem janto uma vez por discrimine, eu fui educado com a ideia de não foi nada. Na adolescência, também dia tiver dinheiro, vou comprar uma quinta
mês, eu sempre paguei e, um dia, de que os mais velhos tinham mais temos dramas, parece que o mundo vai e a mesa vai estar sempre cheia. Estava a
provocação, disse-lhe: “Isto está a mudar, experiência, essa generalização é sempre acabar; quando somos mais velhos, gravar o Sexualidades e um dos meus
com a igualdade, quando é que pagas tu?” E falsa porque conheço adolescentes com 60 dizemos coisas terríveis como “ó querido, amigos mais queridos ligou e disse que
ela disse-me: “Tu ainda não percebeste qual anos. A nossa sociedade está muito rendida nem imaginas quantas namoradas ainda precisava de falar comigo. E eu liguei de
é a minha visão do feminismo: direitos e ao que é jovem e à aparência e, nesse vais ter” e é desadequado porque, naquele volta, naquele tempo o telefone era c
8 • Público • Domingo, 5 de Abril de 2020
Pedagogia e desobediência
Com a renovação do estado de
emergência, vieram maiores restrições de
circulação e deslocação e multiplicam-se
os apelos para que o isolamento social se
cumpra de maneira ainda mais eficaz
(entre as 00h de 9 de Abril e as 24h de 13
de Abril, as pessoas não possam fazer
deslocações para fora do concelho da sua
residência). As forças de segurança têm
estado na linha da frente quando é preciso
quem nos lembre da importância de
cumprir os apelos da DGS para tentar
travar o grave surto de covid-19. A
abordagem tem sido sobretudo
pedagógica, mas já houve 108 detidos por
crimes de desobediência. Nestas páginas,
agentes da PSP de Aveiro patrulham vários
locais do concelho, pedindo a quem se
aventura fora de portas sem um motivo
atendível para regressar a casa
12 • Público • Domingo, 5 de Abril de 2020
Semear e colher
Márcio, agricultor, tal como o bisavô, o avô e o pai, deixou o fato e
gravata e o sector bancário para se dedicar à terra. Fundou a Banca
Terra. Madruga para tratar das couves, alfaces, pimentos, cebolas...
Nas últimas semanas, a pressão das grandes superfícies tem
aumentado. “Parece que estão a vender mais. Querem
essencialmente produtos para sopa. A procura de alface decaiu
imenso. Agora, as pessoas só querem fazer sopa.” Por outro lado, a
entrega de cabazes porta a porta aumentou exponencialmente.
Patrícia, a mulher de Márcio, não tem mãos a medir. Já não dá
resposta aos pedidos. De luvas e facas, Manuela, Adília, Ana Jorge,
Damas, Alexandre e Márcio colhem o que semearam. No meio dos
campos, parecem esquecer o vírus. Fazem o que sempre fizeram
Público • Domingo, 5 de Abril de 2020 • 13
Epidemias
Apocalipse
zombie, sem
efeitos especiais
Zombies e epidemias presas que se contagiam e transÆguram em
Ciências Sociais em Público (I) crescente malignidade, híbridos de vampiros
O
encontro sobre e monstros esfarrapados, com sangue a
Que vamos lembrar desta epidemia? Quando epidemias e cidades era jorrar dos olhos e orelhas, pele a explodir,
na Universidade de ramos peçonhentos nascendo do tronco e
tudo passar, ao lado das memórias, talvez Goethe em Frankfurt, em membros, e outros elementos dos Ælmes de
2014, e reunia estudiosos terror. No cinema de pendor realista, os
também a certeza de ser prioridade política do tema colhidos entre a equivalentes dramáticos são o contágio
antropologia, a história, descontrolado, a evolução rápida de
e económica o reforço à saúde pública, à os estudos de ciência e a sintomas, hemorragias violentas,
saúde pública. Uma das apresentações era mortandade generalizada, militarização do
investigação, aos dispositivos para prevenção sobre zombies e sobrevivência a epidemias. espaço público, cenário de guerra e,
Estranhámos, alguns, a intrusão da idealmente, um Ænal de redenção pela
de calamidades e aos mecanismos de linguagem do cinema e jogos num simpósio ciência e a medicina, cujos agentes
em que dominavam os nomes sérios da personiÆcam heróis em duríssima provação.
mobilização de solidariedade social cólera, febre tifóide, síÆlis, tuberculose, Assim se viu em Contágio (2011), em Fora de
sida, SARS, chikungunya, dengue; em que Controlo (1995) e, de certo modo já, no
se falava de biossegurança e clássico de Elia Kazan Pânico nas Ruas (1950).
Por Cristiana Bastos cidades-sentinela, de políticas urbanas e Mas nem sempre é assim na vida real ou não
sanitárias passadas e contemporâneas, e se o é no início de cada nova epidemia.
articulavam interpretação histórica, análise As epidemias, mesmo as que se tornam
do presente e aprendizagem para uso apocalípticas, podem chegar sem efeitos
futuro. Eu levava a análise das políticas de especiais. Chegam em silêncio, invisíveis,
regulamentação para a síÆlis e prostituição mascaradas da banalidade das gripes e
em Lisboa e dos debates sobre transmissão resfriados, de pneumonias atípicas,
e tratamentos na primeira metade do encontrando negação e resistência,
século XX, apresentando um caso de surto fazendo-se acompanhar de informações
numa família multigeracional de Alfama, contraditórias, com notícias de longe, de
em que o alegado paciente zero fora um perto e, um dia, a má notícia de já estar
bebé aleitado por uma vizinha infectada — instalada no nosso espaço — país, continente,
resultado colateral de um trabalho já bairro, família, comunidade, rede de amigos.
terminado sobre o antigo hospital do Geram-se, entretanto, epidemias paralelas
Desterro em Lisboa e assistência à síÆlis. de notícias e contranotícias, de opiniões e
Outros participantes levavam análises da dissertações sobre o signiÆcado de uma
China e vizinhanças, do Mediterrâneo, do pandemia e da globalização, sobre os
Índico, das Américas. Ninguém vinha do cenários de devastação anunciados em
planeta Hollywood nem havia secção de fórmulas matemáticas, sobre o Æm do
Æcção cientíÆca, mas a referência ao mundo como o conhecemos. Surgem as
apocalipse zombie não estava ali deslocada; medidas de saúde pública que alteram os
pelo contrário, era a vanguarda conceptual quotidianos e reequacionam o futuro
na preparação para calamidades, a metáfora próximo e distante, não sem dar azo a mais
usada em departamentos de prevenção e epidemias de comentários sobre o estado de
saúde pública para hipotéticas epidemias de excepção; a biopolítica; as desigualdades
contornos imprevisíveis. que a epidemia reforça; o futuro da
economia e do ambiente; o potencial da
crise na transformação do modo como
Imaginação e realismo vivemos e viveremos; as políticas sanitárias
Ontem e hoje no cinema e na saúde comparadas; a pertinência dos testes; a
No topo, cena do filme Fora de Controlo (1995), em que os protagonistas lutam para A evocação de zombies traz-nos bandos de validade dos números apresentados; as
conter um vírus do tipo do ébola. Em cima, desenho asteca com vítimas de varíola mortos-vivos deambulando em busca de atitudes vigilantes de alguns governos e a
Público • Domingo, 5 de Abril de 2020 • 15
Laura Spinney
“Só vamos aprender
a lição se morrer
muita gente”
Entrevista A jornalista de ciência e escritora Laura Spinney
estudou o enorme impacto da crise provocada pela gripe
espanhola de 1918 para o livro Pale Rider. Para esta especialista, que
tem assinado vários artigos sobre a actual pandemia de covid-19,
“a história demonstra que gostamos de reagir em vez de prevenir”
Por Ivo Neto
E
scolas fechadas, cidades em conseguimos perceber a existência de uma muito. A melhor hipótese que temos é Foi uma forma de pressionar os
quarentena e cartazes a espécie de curva de Bell [gráÆco usado para abrandar a doença e isso só se torna governos?
alertar para a importância representar uma distribuição normal, uma possível com distanciamento social. São Acredito que sim. A emergência global foi
de lavar as mãos. Imagens linha em forma de sino]. Cresce de forma exactamente as mesmas técnicas usadas há declarada ainda no Ænal de Janeiro e essa
que fazem parte do nosso exponencial até atingir um pico e depois cem anos. Estratégias como a quarentena medida já previa estratégias de contingência
dia-a-dia, mas que mais não cai, eventualmente até desaparecer. Há um ou o isolamento social, a insistência na muito fortes. Escalar para pandemia não
são do que um reÇexo do padrão entre o novo coronavírus e a gripe lavagem das mãos ou a utilização de trouxe muitas mais possibilidades de
que aconteceu há cem anos espanhola. Além disso, são surtos que máscaras. combate. A pandemia foi declarada muito
quando, depois da Primeira Guerra evoluíram para um patamar global. E foi mais pacífico na altura o para fazer com que os responsáveis
Mundial, o mundo enfrentou um tipo de Mas, cem anos depois, o mundo está isolamento? nacionais acordassem. Certamente,
inimigo diferente, ainda mais mortífero do diferente… O debate foi exactamente o mesmo. Se perceberam que o maior risco não era o
que as batalhas travadas nas trincheiras. A Obviamente. De uma forma muito particular deveriam fechar as escolas, se as máscaras pânico, mas sim a complacência.
gripe espanhola, ou pneumónica, matou, de no que diz respeito às componentes funcionam ou se apenas funcionam em Foi uma questão política.
1918 e 1920, entre 50 a 100 milhões de tecnológicas. Mas, ainda assim, há determinados casos. O que hoje discutimos Sim. Essencialmente, o que quero dizer é
pessoas. Um quarto da população mundial elementos que não se alteraram. é muito semelhante ao que foi discutido na que a OMS fez a declaração de pandemia
da época foi contaminada. Em Portugal, No combate à doença? altura. para galvanizar os governos a fazerem mais
terão morrido cerca de 70 mil pessoas. Cem Sim. É realmente muito interessante que no Com todo o conhecimento sobre crises e mais rápido. As estratégias não estavam a
anos depois, o mundo enfrenta um novo período antes do desenvolvimento de uma passadas, será que o coronavírus foi funcionar.
vírus global. A jornalista de ciência Laura vacina, que vai demorar pelo menos um inicialmente ignorado? E há estratégias bem diferentes mesmo
Spinney, autora do livro Pale Rider: The ano, estamos reduzidos a usar o mesmo tipo Hoje, é muito fácil julgar. Quando tudo em países próximos. Temos o caso do
Spanish Flu of 1918 and How It Changed the de técnicas de distanciamento social que começou, sabia-se pouco e nunca ninguém Reino Unido. A estratégia inicial,
World, estudou o impacto dessa crise na foram usadas há cem anos. pensou que escalaria para um patamar diferente da maioria dos países
sociedade e a forma como o mundo Estamos, então, neste primeiro período, global. Mas, assim que a Organização europeus, terá sido também ela política?
enfrentou o problema. Apesar dos avanços a combater o coronavírus com as Mundial de Saúde declarou o coronavírus Uma forma de sublinhar o “Brexit”?
tecnológicos, a quarentena e o mesmas armas que foram usadas contra como uma emergência global, os governos A decisão foi política em todos os países. A
distanciamento social, mesmo num mundo a gripe espanhola. Um século depois… deveriam ter actuado de uma forma mais grande maioria demonstrou ser relutante
global, diferente dos anos 1910, continuam a Temos melhores medicamentos, há assertiva do que Æzeram. Deveriam em aprender com o que aconteceu noutros
ser a armas mais eÆcazes. antivirais e ventiladores. Exemplos de ter intensiÆcado as medidas desde logo. países. E isso, para mim, é uma grande
Quais são as semelhanças entre o novo ferramentas que não existiam naquela Claro que é muito fácil julgar agora… Mas é vergonha. A estratégia britânica foi guiada
coronavírus e a gripe espanhola de 1918? altura. Mas os antivirais, por exemplo, não verdade que os governos actuaram de forma por um modelo matemático que sugeria a
Uma pandemia tende a evoluir de forma são particularmente eÆcazes neste novo muito lenta e, acredito, foi por isso que a imunidade de grupo e que seria atingida de
muito parecida, independentemente da vírus. Claro que podem mitigar os sintomas OMS passou para a fase seguinte: a de forma rápida. Depois, perceberam que
doença que é. Se visualizarmos, quando alguém Æca doente. Mas não pandemia. muitas pessoas morreriam e que o sistema
Público • Domingo, 5 de Abril de 2020 • 17
DR
A variação que existe reÇecte a capacidade
que os diferentes países tiveram para reagir
ao aumento de contagiados. Há mais mortes
quando não se podem tratar os infectados
nos cuidados intensivos ou quando faltam
ventiladores. Mas os números variam de
hora para hora.
Mas os avisos foram feitos ao longo da
última década.
Sim. Fomos avisados e não Æzemos o
suÆciente para nos protegermos.
Porquê?
Somos humanos. E a história demonstra
que gostamos de reagir em vez de prevenir.
De actuar depois em vez de prevenir.
Infelizmente, é assim que somos.
Mas há países que actuaram cedo.
Sim. Se olharmos para os asiáticos, os
indicadores demonstram que conseguiram
mitigar a pandemia de uma forma mais
eÆcaz do que no Ocidente. Muito por causa
daquilo que aconteceu com a SARS.
Aprendemos, mas de uma forma muito
lenta. Não investimos o suÆciente nos
nossos sistemas de saúde. Mais uma vez, a
história demonstra que há uma tendência
para o pânico quando há uma pandemia e
depois de esquecimento e descuido,
quando está controlado. Só vamos aprender
verdadeiramente a lição se morrer muita
gente.
A China limitou o acesso a estrangeiros.
O mundo será diferente quando a
pandemia estiver controlada?
A estratégia da China, ao longo dos últimos
anos, é de abertura e não de se fechar. A
extensão das mudanças está muito
dependente da gravidade e das
consequências Ænais da pandemia. Nos
EUA, certamente, haverá uma discussão
alargada sobre o acesso aos cuidados de
saúde e na Europa teremos de repensar a
organização dos nossos sistemas de saúde.
O que está a acontecer é a prova de que não
servem para o número de pessoas que
existem e para o crescimento populacional.
São sistemas que envelheceram.
BETTMANN ARCHIVE/GETTY IMAGES
Uma das estratégias usadas na gripe
Máscaras de saúde acabaria por entrar em colapso e espanhola foi o isolamento de cidades
Em cima, Laura mudaram. Perceberam que a imunidade inteiras. Gunnison, no Estado do
Spinney, que deve ser alcançada de forma lenta. E é isso Colorado, nos EUA, passou incólume
assina que estão a fazer. Não estou é certa de que quando todas as comunidades à volta
regularmente já não seja tarde para evitar o que está a foram infectadas. A Europa ergueu
textos sobre acontecer em Itália ou Espanha. barreiras históricas entre países. Vão
ciência em Os números continuam a escalar a um permanecer?
alguns dos ritmo muito rápido. A covid-19 poderá Não. E se há coisa que o novo coronavírus
principais ser tão grave como a gripe espanhola? demonstra é que as fronteiras não
jornais e revistas Temos de olhar para os números de uma funcionam. As fronteiras são inexpressivas
do mundo. forma relativa. A população actual é quatro quando se trata de um vírus. Uma das lições
Sobre o actual vezes superior. Estima-se que a gripe que vamos aprender é a ter mais respeito
surto de espanhola tenha matado 50 milhões de pela OMS e a desenvolver mais cooperação
covid-19, a pessoas, possivelmente 100 milhões. entre os vários países.
jornalista diz: Apresentou níveis de letalidade superiores Poderemos também ver uma corrida
“Fomos avisados a qualquer outra pandemia de gripe na internacional para a descoberta da
e não fizemos história. Apesar de existirem padrões vacina?
o suficiente semelhantes, não acredito que o Tenho a certeza. Tal como aconteceu a
para nos coronavírus tenha níveis semelhantes de corrida para chegar à Lua. E todos devemos
protegermos.” infectados ou mortes. E os dados que estar gratos por isso. Porque precisamos
Spinney revela temos, mesmo que ainda sejam precoces, dela.
ainda que apontam para uma mortalidade entre os 1% E essa corrida não poderá ser perigosa?
muitos dos e os 2%. Se estes valores se concretizarem, o Há mecanismos para acelerar o processo
dilemas e das que continua a ser uma incógnita, teremos quando a necessidade justiÆca, tal como
discussões de resultados mais próximos dos de outras aconteceu com o ébola. Mas há médicos que
há cem anos são pandemias, como a gripe asiática, em 1957, aconselham a manter a calma. Há um
iguais aos de ou a gripe de Hong Kong, em 1968 — grande debate. Mas não se pode cortar a
hoje, como o uso nenhuma delas matou mais do que quatro segurança. Uma hipótese é deixar a vacina
generalizado milhões de pessoas no máximo. O que, sair de forma gradual, libertando-a para os
(ou não) de ainda assim, é muita gente. doentes de risco. Mas é tudo uma grande
máscaras E o que motiva taxas mais elevadas incógnita.
como, por exemplo, em Itália, que
ronda os 10%? ivo.neto@publico.pt
18 • Público • Domingo, 5 de Abril de 2020
Público • Domingo, 5 de Abril de 2020 • 19
Jogos
SUDOKU
Fronteira - Costa Coelho Fundão - Diamantino
Gavião - Mendes (Belver) , Pimentel Golegã - 16º
Lusitano Grândola - Costa Idanha-a-Nova - 1,5-2m
Dia de Äcar
Televisão
um espião de topo. A sua reinterpretar uma canção sua em
TVI
Terra Brava SIC 14,6 27,5
especialidade é entrar na mente Primeiro Jornal SIC 13,0 30,9 12,0 versão de esperança e humor.
das pessoas e extrair-lhes, durante
Cabo
Quer o Destino TVI 11,5 19,1
lazer@publico.pt
38,1
DOCUMENTÁRIO
o sono, os seus mais profundos
FONTE: CAEM
segredos. Mas, agora, para
resgatar a sua vida, tem uma
missão ainda mais complexa para RTP 1 1000 à Hora 2.04 Chicago Fire 2.51 FOX A Febre do Ouro: Água Bravas
cumprir: implantar uma ideia na 6.08 Todas as Palavras 6.30 Espaço Mar de Paixão 3.38 Saber Amar 9.52 Batman - O Início 12.10 12 Desafios Discovery, 21h
mente de alguém. Ele reúne a sua Zig Zag 8.00 Bom Dia Portugal Fim de 14.12 Tracers - Nos Limites 15.58 Estreia da terceira temporada da
equipa e delineia o impossível. Semana 10.30 Missa de Domingo de Missão Impossível: Nação Secreta série que acompanha uma família
Com argumento e realização de Ramos 12.04 As Idades da Inocência TVCINE TOP 18.36 Divergente 21.20 Insurgente de garimpeiros modernos, no
Christopher Nolan, um thriller de 13.00 Jornal da Tarde 14.31 Faz Faísca 11.40 A Vida Secreta dos Nossos 23.33 O Cavaleiro das Trevas Renasce longínquo e inóspito deserto do
acção com Leonardo DiCaprio, 15.20 Fado - História de Um Povo 17.12 Bichos 2 (VP) 13.05 Pokémon Detetive 2.30 The Walking Dead 3.15 APB Alasca. Depois de uma década a
Michael Caine, Joseph Jogo de Todos os Jogos 19.08 O Preço Pikachu (VP) 14.55 Aquaman 17.20 trabalhar juntos, Fred e Dustin,
Gordon-Levitt, Marion Cotillard e Certo 19.59 Telejornal 21.00 Especial Monstros Fantásticos: Os Crimes de pai e Ælho, separam-se com o
Ken Watanabe. Das oito Estado de Emergência 21.30 I Love Grindelwald 19.35 Captive State - FOX LIFE objectivo de aumentar as
nomeações para os Óscares, Portugal 23.19 Simone, o Musical 1.26 Cercados 21.30 After 23.15 O Intruso 9.03 Chicago Med 12.51 Nora Roberts: hipóteses de sucesso. Mas a dureza
colheu quatro estatuetas em Djon Africa 3.08 Web Therapy 3.36 0.55 A Primeira Purga 2.30 Família A Queda de Um Anjo 14.39 The Murder continua: piscinas geladas, quedas
categorias técnicas. África Colossal 4.28 Televendas Instantânea Pact 16.22 A Date to Die For 18.17 Uma de pedras e ursos são alguns dos
Noite com Beth Cooper 20.16 O Que obstáculos e perigos a enfrentar.
Monstros Fantásticos: Uma Rapariga Quer 22.20 Uma Sogra
Os Crimes de Grindelwald RTP 2 FOX MOVIES
MÚSICA
de Fugir 0.20 Dizem por Aí...
TVCine Top, 17h20 7.00 Euronews 8.00 Espaço Zig Zag 11.13 Namoro à Espanhola 12.47
O magizoologista Newt 12.23 Nas Profundezas 12.44 Capitão Whiskey Tango Foxtrot 14.27 A Chefe
Scamander é recrutado por Bíceps 13.06 A Ilha dos Desafios 14.01 15.55 Arma Mortífera 17.36 Arma DISNEY José Cid
Dumbledore para enfrentar o Scream Street 14.12 Os Daltons 14.28 Mortífera 2 19.21 Arma Mortífera 3 21.15 15.20 A Raven Voltou 15.45 Gabby TVI, 15h35
poderoso Gellert Grindelwald, Chovem Almôndegas 14.50 Folha de Arma Mortífera 4 23.17 O Especialista Duran Alien Total 16.10 Miraculous - As Uma tarde com o veterano José
que planeia reunir feiticeiros dos Sala 14.58 O Comissário Montalbano 1.02 A Fúria do Herói 2.28 Rambo: A Aventuras de Ladybug 16.35 Sadie Cid: primeiro, é entrevistado por
quatro cantos do mundo e 16.45 A Grande Travessia: Viajando Vingança do Herói 3.57 Rambo III Sparks 17.00 Gravity Falls 17.50 Star Fátima Lopes em Conta-me Como
dominar toda a população pelos Andes de Balão 17.15 Caminhos Contra as Forças do Mal 18.40 Os És; de seguida (às 15h35), surge
não-mágica. Com realização de 17.41 70x7 18.12 Chegou a Felicidade Green na Cidade Grande 19.25 em palco perante um Campo
David Yates, que já dirigira os 19.06 Joanna Lumley na Índia 19.54 CANAL HOLLYWOOD Miraculous - As Aventuras de Ladybug Pequeno esgotado, no concerto de
últimos quatros episódios da saga Corrida Ecológica 20.18 Cuidado com 11.40 Como Cães e Gatos 13.10 19.47 Sadie Sparks 20.11 Gravity Falls 24 de Novembro de 2008.
Harry Potter e também Monstros a Língua! 20.36 A Estagiária 21.30 Austrália 15.50 A Origem 18.15 Mad 21.00 Gabby Duran Alien Total 21.23 A
Fantásticos e Onde Encontrá-los, Jornal 2 22.04 Folha de Sala 22.10 Max: Estrada da Fúria 20.15 Raven Voltou 21.45 Coop & Cami Bobby McFerrin ao Vivo
um Ælme de aventura ambientado Tribunal de Família 23.04 Bobby Colombiana 22.00 A 5ª Vaga 23.55 no Alfa Jazz Festival
anos antes da chegada de Harry McFerrin ao Vivo no Alfa Jazz Festival Apanha-me Esse Gringo 1.30 7 RTP2, 23h04
Potter a Hogwarts, que adapta a 0.04 A Pequena Morte 1.04 Acima das Pecados Rurais 3.15 The November DISCOVERY Bobby McFerrin não pode ser
obra homónima de J. K. Rowling Nossas Possibilidades 1.50 Euronews Man - A Última Missão 17.45 Desmontar a História 19.20 desligado desse enorme sucesso
(também responsável pelo Como Fazem Isso? 21.00 A Febre do chamado Don’t worry, be happy.
argumento). O elenco inclui Eddie Ouro: Águas Bravas 3.00 A História do Mas pode ser associado a muito
Redmayne, Katherine Waterston, SIC AXN Universo 4.30 Desmontando o mais — é um dos mais premiados
Dan Fogler, Zoë Kravitz, Victoria 6.00 Malucos do Riso 6.40 Marvels 14.04 Batalha do Pacífico 16.19 A Hora Cosmos e mediáticos cantores do jazz
Yeates, Callum Turner, Jude Law e Spider Man 7.00 O11ze 7.25 Uma Mais Negra 17.54 Fúria de Titãs 19.36 A contemporâneo. Este é o registo
Johnny Depp. Aventura Secreta 9.00 Olhó Baião Ilha 21.55 Ali 0.40 Salt 2.25 No Limite do espectáculo que deu, em 2013,
12.00 Vida Selvagem: Animal Babies - da Ilusão 4.06 Assalto ao Metro 123 HISTÓRIA no Alfa Jazz Festival (Ucrânia),
Djon Africa First Year on Earth 13.00 Primeiro 17.07 A Fortaleza de Ricardo, Coração tendo como mote o álbum que
RTP1, 1h26 Jornal 14.15 Fama Show 14.45 de Leão 18.00 Piratas e Templários lançou nesse ano, Spirityouall.
A história de Miguel “Tibars” Investigação Criminal Los Angeles AXN MOVIES 20.10 Templários e o Santo Graal 21.33
INFANTIL
Moreira, ou Djon África, Ælho de 15.30 O Código Da Vinci 17.45 Bastille 14.00 Melhor é Impossível 16.18 A A Maldição de Oak Island 22.58
cabo-verdianos, nascido e criado Day - Missão Antiterrorista 19.30 Não Máquina do Tempo 17.55 O Segurança Alienígenas 1.06 Jesus: A Sua Vida 2.31
em Portugal. Educado por uma Há Crise 19.57 Jornal da Noite 21.30 do Shopping 19.30 O Segurança do A Fortaleza de Ricardo, Coração de
avó e sem nunca ter conhecido o Isto É Gozar Com Quem Trabalha 21.50 Shopping: Las Vegas 21.15 A Minha Leão 3.27 Fortalezas Medievais Uma Aventura do Outro
pai, Tibars viaja até Cabo Verde, 42.º Festival Internacional do Circo de Namorada Tem Amnésia 22.54 Miúdos Mundo (V. Port)
onde espera encontrá-lo. Mas essa Monte Carlo 23.45 Terra Nossa 1.30 Os e Graúdos 0.36 O Delator! 2.17 O TVCine Emotion, 11h35
viagem será, sobretudo, de Deuses do Egipto Coleccionador de Ossos 4.07 ODISSEIA Luís, um rapaz solitário de 12 anos,
autodescoberta. Assinado por Robocop - O Polícia do Futuro 18.29 Animais Bebés do Mundo 19.18 conhece Nag, Wabo e Mog, três
Filipa Reis e João Miller Guerra, o Lugares Secretos da Ásia 20.02 alienígenas amorosos mas muito
Ælme inspira-se na história real de TVI América do Norte Vista do Céu: trapalhões, cuja nave se
Moreira. 6.22 Todos Iguais 6.53 Campeões e AXN WHITE Cidades 24H 20.54 A Queda da despenhou no seu quintal. Mas os
Detectives 8.12 O Bando dos Quatro 13.03 Inesquecível 13.48 A Loira Cortina de Ferro 21.50 Memphis Belle: novos amigos têm de ser
HUMOR
9.28 Detective Maravilhas 11.05 Missa Virtual 15.20 Momentos Perdidos Avião de Combate 22.39 Hidroaviões: protegidos de um inimigo mortal:
12.30 Mesa Nacional 13.00 Jornal da 16.49 Cinco 18.19 Mentes em Conflito Uma Nova Era 23.31 Sex Mundi, a o seu próprio pai, um ovnilogista
Uma 14.40 Conta-me Como És 15.35 19.50 Estranhos Companheiros 21.25 Aventura do Sexo 0.20 Huang’s World convicto de que extraterrestres são
A Vida Lá Fora José Cid no Campo Pequeno 18.22 Georgia O’Keeffe 23.01 Confissões de 1.06 A Queda da Cortina de Ferro 2.02 seres muito perigosos. Uma
TVI, 23h22 Pesadelo na Cozinha 19.57 Jornal das 8 Uma Noiva Americana 0.38 Injustiçado Memphis Belle: Avião de Combate comédia animada com realização
Estreia. Nilton, António 22.00 Mental Samurai 23.22 A Vida Lá 2.10 The Halcyon 3.00 The Detail 3.45 2.55 Hidroaviões: Uma Nova Era 3.53 dos irmãos Wolfgang e Christoph
Raminhos, António Machado, Fora 0.06 Querido, Mudei a Casa! 0.58 A Teoria do Big Bang 4.57 O Mentalista Dark Net 4.21 Alimentos 3.0 Lauenstein, também responsáveis
Guilherme Duarte, João Seabra e, pela oscarizada curta Balance.
Público • Domingo, 5 de Abril de 2020 • 21
EM DESTAQUE
Actividades
Saudades do mar?
Aviste-o de casa
“Hoje, nas nossas exposições, não para identiÆcar o padrão de uma
se ouvem as gargalhadas e não se uge-de-pintas-azuis, responder a
vêem os sorrisos que nos uma adivinha sobre a
costumam encher de alegria e lontra-marinha, saber curiosidades
motivação. Os aquários continuam sobre o peixe-lua, conhecer um
com a cor que nos enche o olhar e projecto de conservação, ver um
o mesmo movimento que tem o Ælme sobre o mar português ou
poder de nos inspirar.” A embarcar na “onda de
mensagem chegou do Oceanário de tranquilidade” que pode ser um
Lisboa (fechado), há cerca de uma simples vídeo dos habitantes do
semana. Com uma promessa: aquário nas suas navegações.
“Vamos continuar a levar o Quem tem saudades de ver o mar
Oceanário e o oceano até si.” Já escusa de sair de casa: basta
está a ser cumprida. No Instagram mergulhar em família nestes
e no Facebook, há pelo menos uma desaÆos. Não faltam sequer umas
sugestão por dia, para Æcar Em Férias Debaixo d’Água.
Casa a Ver o Mar. Podem pedir-lhe Sílvia Pereira
Estar bem
GETTY IMAGES/ISTOCKPHOTO
Respostas terapêuticas
Desde 2019 que se encontra dis-
ponível em Portugal um programa
destinado a ajudar pedóÆlos a con-
trolar os seus ímpetos. Trata-se de
um programa criado pela equipa
Crónica
N
o novo normal, não meia mais tarde, não há roupa, janela, onde os vizinhos passeiam não é uma formalidade, espero
perco tempo a maquilhagem ou dilemas frívolos Bárbara Wong os seus cães numa rua em que os sinceramente que o meu
olhar para o que me atrasem, amasso e ponho carros se esqueceram de passar. interlocutor esteja de saúde. No
roupeiro, cheio, o pão no forno, que Æcou a No novo normal, produzo e novo normal, quando falo ao
sem saber o que
vestir. Não perco
levedar da noite anterior —
continuo a experimentar receitas
No novo consumo notícias de um tema só;
o mesmo que se impõe em todas
telefone em termos proÆssionais,
acabo por, invariavelmente,
tempo ao espelho numa rotina
que envolve limpeza, hidratação,
porque, embora descendente de
uma linhagem de padeiros, normal, não as conversas; o mesmo que me
faz suster a respiração enquanto
entrar na esfera pessoal, mesmo
sem querer. “Morreu-me uma
maquilhagem. Não Æco sentada
na cozinha a comer torradas e a
perdão, de industriais de
paniÆcação, ainda estou longe da sinto saudades me afasto dos poucos que passam
por mim na rua; o mesmo que
tia”, diz-me um assessor quando
lhe pergunto se está bem.
ver os emails de trabalho,
enquanto o sol quente a invade e
perfeição. Espero meia hora, o
tempo de preparar o local de de tudo o que invade os meus sonhos e me faz
acordar a pensar nesta vida que
“Desculpa, mas os miúdos estão
em cima de mim”, suspira uma
convida a Æcar mais um pouco. trabalho na mesa da sala. Como parece suspensa, mas que se colega. “Isto está a ser muito
Não perco tempo na paragem do pão quente com manteiga a era o velho desmorona a cada dia que passa. mau”, confessa uma fonte,
autocarro ou na estação de derreter, sem olhar para um No novo normal, quando assustada. “O que vai ser o nosso
metro.
No novo normal, não chego à
único ecrã, só para o lado de lá da normal escrevo “espero que esteja bem”, futuro? O futuro dos nossos
Ælhos?”, insiste. No novo normal,
MIGUEL MANSO
redacção, cumprimento a estas perguntas angustiam-me
segurança, saúdo os colegas que mais do que no velho normal.
chegaram mais cedo, lavo as No novo normal, descobrimos
mãos — no velho normal, já lavava novos amigos e novas
as mãos por andar nos solidariedades. No novo normal,
transportes públicos —, enxaguo ligamos aos mais velhos para
a chávena, encho-a de chá, olho a saber se precisam de alguma
ponte e o Cristo-Rei antes de ligar compra e compreendemos que
o computador e mergulhar no dia precisam de conversar.
de trabalho. Deixamos-lhes as compras à
No novo normal, não corro porta, falamos à distância,
para apanhar o autocarro que tentando dar aquele ar de que
pode ir cheio e seguro a mala, está tudo bem, queremos que
não vá alguém abri-la no meio Æquem animados, mas
dos solavancos e dos encontrões. fraquejamos na hora da
Ou não espero por aquele despedida, sem lhes podermos
autocarro que faz a rota maior, tocar.
em que posso ir sentada, e ver a No novo normal, fazemos um
cúpula da basílica e o jardim da bolo e cantamos os parabéns
Estrela, a sinagoga, o Marquês, virados para um ecrã quando
como se fosse uma turista pela queríamos levá-lo para a casa da
primeira vez na cidade ou família, abraçarmos toda a gente,
encontrar um velho conhecido e beijarmos o aniversariante e
irmos à conversa até casa. desaÆnarmos o “Parabéns a
No novo normal, não há idas às você”. No novo normal, não sei
compras; não há folhear as se Cristo vai ressuscitar, não
novidades nas livrarias; não há haverá gritos e gargalhadas à
montras nem monumentos para volta da mesa pascal, mas há um
ver; não há idas ao ginásio; não carro da polícia que insiste, pelo
há almoços com os colegas, em altifalante, para que
que mal nos ouvimos num permaneçamos em casa.
espaço onde a insonorização foi No novo normal, não sinto
esquecida; não há jantares com saudades de tudo o que era o
os amigos naquele restaurante velho normal, mas sinto dos
que acabou de abrir e temos abraços e dos risos dos outros
mesmo de ir experimentar; não que não os meus, com quem
há cinema, teatro e idas a atravesso este isolamento. Anseio
concertos. No novo normal, não pelo dia em que possamos,
vamos cumprir a Paixão Segundo Ænalmente, sair, respirar e viver
São João, na Gulbenkian, como sem medo de contágios.
não há Semana Santa.
No novo normal, acordo hora e bwong@publico.pt
24 • Público • Domingo, 5 de Abril de 2020
Opinião
Q
uando editou, em 1964, The Costa, em fazer ouvir a sua voz. Não se pode
times are a’Changin, Bob Dylan O Tigre de Papel jantar com uma personagem destas. Jean
previa o futuro. O seu e o da
América. John F. Kennedy fora
Fernando Sobral Monnet disse que a Europa será forjada nas
crises. O surto da covid-19 é uma dessas
assassinado meses antes e crises. É sanitária e económica. Será moral e
Dylan rompia com o passado. ética. Não poderá perder tempo com
Fora o trovador da personagens como o sr. Hoekstra.
renovação da música folk. Mais uns meses e Portugal vive um momento crucial. No
transformar-se-ia num herético: meio da sensatez política, tem sobrado
deslumbrado por Rimbaud e pelo LSD, espaço para o dislate. Transformar o Hospital
trocava a viola por uma guitarra eléctrica. Os Curry Cabral, por desígnio político do sr.
tempos tinham mudado. Recorda agora isso António Costa, numa unidade exclusiva para
numa canção sem Æm, Murder Most Foul. Diz o combate à covid-19 é um deles. Tal como
ele, que já viu tudo: “Thousands were foram, antes, as iniciativas políticas para
watchin’/No one saw a thing.” Fala da morte acabar com o Laboratório Militar e o Hospital
de J.F.K. e da misteriosa digressão mágica das Militar. Colocar-se já na Æla da frente para um
décadas de 1960 e 70. Poderia estar a falar de sebastiânico governo de “salvação nacional”,
um vírus invisível que dinamitou todas as como faz o sr. Rui Rio, é outro. Os políticos
certezas das sociedades modernas. portugueses usam demasiadas vezes a
Tal como nesses dias, os tempos estão a improvisação como almoço. Raras vezes
mudar? É verdade. desenham estratégias. Os resultados
Só que, agora, ninguém sabe onde colocar costumam ser desastrosos.
os pés: estes campos colocados à nossa Nada que os diferencie, aqui, da Europa
frente, outrora Çoridos e globais, estão dita comunitária. Há um velho ditado grego
minados. Cheios de espantalhos, de Jokers, que apetece recuperar agora: “Aqueles a
de Freddy Kruegers. Estamos num labirinto quem os deuses desejam destruir, primeiro
onde não vemos o Minotauro, mas sentimos enlouquecem.” A Europa, antes de se
a sua presença. Todos desejam respostas. destruir, está a enlouquecer. Os deuses
Mas, no mercado, estão esgotadas, como as europeus actuais simbolizam instituições
máscaras ou o álcool etílico. Em Delfos, os pós-modernas: são indiferentes ao que os
gregos perguntavam o futuro à pitonisa. cerca. No centro de toda esta tragédia sem
Hoje, o Google não nos dá respostas. Nem os solução está uma União Europeia
políticos, os mercados ou os videntes. Como burocrática. E que reage em vez de agir.
será o mundo depois da covid-19? Sabemos Poderá assistir, a prazo, a democracias mais
apenas o que desejávamos ignorar. Seremos musculadas. E quem pagará a crise? E como?
mais pobres e haverá uma astronómica E como será a gestão social de um mundo
dívida por pagar. Pior: até quando existirá empobrecido, sem presente e com um futuro
dinheiro, em países que não emitem moeda, muito nebuloso? Uma roleta russa?
para pagar a paz social? O Estado não é o O mundo tem surfado pelas redes sociais.
cofre do Tio Patinhas. Com cada vez menos contacto com a
A história do coronavírus é um duelo entre realidade. Algo vai mudar, mas talvez não
a saúde e a economia. Desejamos que ambas tanto como alguns desejaríamos. A grande
sobrevivam. Mas, até lá, temos de lidar com dúvida, no meio do cataclismo, será uma:
os vencidos da vida. Do país antes conhecido Æcaremos melhores ou piores pessoas do
como Holanda e agora novamente chamado que antes da covid-19? Foi a forma como
Países Baixos, esperávamos a subtileza dos tentámos domesticar o planeta aos nossos
quadros de Rembrandt, frutos belos de uma interesses que nos tornou alvos mais fáceis
sociedade aberta ao mundo. Pelo contrário, de vírus. Julgávamos ser os conquistadores.
coube-nos, nestes dias mais sombrios, o sr. Acabámos encurralados. A globalização, o
Hoekstra, holograma do sr. Dijsselbloem. viver numa rede sem Æm, fez agora reerguer
Julgou-se, por momentos, que o Ferrão dos fronteiras e desconÆanças. A economia
“Marretas”, resmungão que vive num caixote vencerá a saúde. Mas, mais ou menos
do lixo e que deseja que a sua vida seja o mutante, o mercado regressará sedento,
mais miserável possível, tinha agora assento como salvador. O vírus será o culpado de
no Eurogrupo. Não. Esta é uma personagem A quarentena de Bordallo todas as desgraças. E, como sempre, serão
real, menos carinhosa do que o Ferrão e usa As quarentenas não são uma novidade. Em 1879, Rafael Bordallo os mais frágeis que pagarão a crise, no meio
fato e gravata. Cómodo, com a barriga cheia, Pinheiro regressou do Brasil onde havia uma epidemia de febre- das cinzas.
pensa nele. E não nos outros. Fez bem amarela. Tem de ficar de quarentena no Lazareto, um edifício em
Portugal, por intermédio do sr. António Porto Brandão. Ali fez No Lazareto de Lisboa, memória desses dias. Jornalista e escritor
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