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1
Ciro de Souza Brito1
RESUMO: O acesso à terra para povos e comunidades tradicionais pode ser viabilizado por
meio de diferentes modelos de regularização fundiária no Brasil. Todavia, esses modelos são
disponíveis a priori na legislação e não costumam contemplar as reivindicações desses
grupos. Quando são desenvolvidos a partir e conquistados pelas mobilizações desses grupos,
tendem a sofrer processos de apropriação pelo Estado e por agentes externos e logo deixam de
atender as demandas originárias a que se destinavam. Por isso, vislumbra-se que, do ponto de
vista de povos e comunidades tradicionais, há muita luta pela frente no que tange aos
processos de apropriação encampados pelo Estado e por agentes externos em torno da
regularização fundiária no Brasil. E este trabalho propõe algumas reflexões teóricas sobre esse
tema. Com abordagem qualitativa, emprega o método dialético e utiliza a técnica da pesquisa
bibliográfica, em que se privilegiaram obras a partir dos anos 2000 e dos ramos das ciências
sociais e jurídicas. A ideia é pensar instrumentos jurídicos de regularização que atendam as
reais demandas – especialmente a regularização integral dos territórios tradicionais - e evitar a
apropriação das reivindicações dos grupos tradicionais. Resta aos povos e comunidades
tradicionais, como afirmo no título, continuarem na luta, fortalecerem suas estratégias e
renovarem suas forças.
ABSTRACT: Access to land for traditional peoples and communities can be made possible
through different models of land regularization in Brazil. However, such models are available
a priori in legislation and do not usually address the claims of these groups. When they are
developed from and conquered by the mobilizations of these groups, they tend to undergo
processes of appropriation by the State and external agents and soon fail to meet the original
demands for which they were intended. Therefore, it is clear that, from the point of view of
traditional peoples and communities, there is a lot of struggle for the ownership processes
faced by the State and by external agents regarding land regularization in Brazil. And this
paper proposes some theoretical reflections on this theme. With a qualitative approach, it uses
1
Advogado. Mestre em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável pelo Instituto Amazônico de
Agriculturas Familiares da Universidade Federal do Pará. Foi bolsista CAPES. Membro do grupo de pesquisa
Conhecimento e Direito (UFPA) e do Núcleo de Pesquisa em Direito e Diversidade (UFMA). Realizou cursos de
verão na Peking University, China, e no Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Portugal.
Atualmente é assessor jurídico de Questões Agrárias para Povos e Comunidades Tradicionais no Instituto de
Colonização e Terras do Maranhão.
the dialectical method and the technique of bibliographical research, in which works from the
2000s and from the social and legal sciences were favored.The idea is to think of legal
instruments of regularization that meet the real demands - especially the full regularization of
the traditional territories - and avoid the appropriation of the demands of the traditional
groups. It remains for the traditional peoples and communities, as I say in the title, to continue
in the struggle, to strengthen their strategies and to renew their forces.
A luta pelo acesso a terra é uma das principais pautas de povos e comunidades
tradicionais no Brasil2, uma vez que a terra é essencial para a identidade desses grupos por ser
o lugar onde criam, fazem, produzem e se reproduzem.
A depender da autodesignação adotada pelos grupos, o acesso a terra pode ser
viabilizado por meio de diferentes modelos de regularização fundiária, que, disponíveis a
priori, não costumam contemplar as reivindicações desses grupos e, quando construídos e
conquistados pelas mobilizações desses povos, em seguida sofrem processos de apropriação
pelo Estado e por agentes externos e logo deixam de atender as demandas dos povos e
comunidades tradicionais a que se destinam.
Um dos principais entraves é o da regularização dos territórios tradicionais em sua
integralidade e em conformidade com a concepção dos grupos tradicionais. Logo, além da
luta pela regularização e da difícil escolha – ou aceitação, quando o Estado não dá alternativas
- por um modelo de regularização que contemple o máximo de garantias possíveis, povos e
comunidades tradicionais ainda têm que lutar pela regularização integral de seus territórios,
que – quando o são - costumam ser regularizados apenas parcialmente.
Portanto, ante o direito a terra e demais direitos assegurados especialmente pós
Constituição de 1988, há muita luta pela frente, no que tange aos desafios à regularização
fundiária no Brasil. Esses desafios vêm se complexificando ante o Estado de exceção
2
BENATTI, José Heder. Propriedade comum na Amazônia: acesso e uso dos recursos naturais pelas populações
tradicionais. In: SAUER, Sérgio; ALMEIDA, Wellington (Orgs.). Terras e territórios na Amazônia:
demandas, desafios e perspectivas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2011, p. 93-113. BENATTI, José
Heder. Desafios para a Governança de Terras num Território em Disputa: o caso do Estado do Pará. In: LIMA,
Rosirene Martins; SHIRAISHI NETO, Joaquim; SOUZA FILHO, Benedito (Orgs.). Dinâmicas territoriais e
conflitos socioambientais. São Luís: EDUEMA, 2017, p. 191-207. MOREIRA, Eliane Cristina. Justiça
Socioambiental e Direitos Humanos: uma análise a partir dos direitos territoriais de povos e comunidades
tradicionais. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.
implementado a partir do golpe de 20163, que colaborou para o desmonte de vários direitos
outrora conquistados4. E este trabalho propõe algumas reflexões teóricas sobre esse tema.
Com abordagem qualitativa, emprega o método dialético e utiliza a técnica da pesquisa
bibliográfica, em que se privilegiaram obras a partir dos anos 2000 e dos ramos das ciências
sociais e jurídicas.
Na primeira seção do trabalho, apresento um debate sobre o conceito adotado,
algumas definições elencadas em normas federais e algumas características gerais que a
literatura das ciências sociais e jurídicas concebe em relação a povos e comunidades
tradicionais. O objetivo é ajudar na compreensão do conceito e entender especificidades que
rodeiam esses indivíduos pertencentes a povos e comunidades tradicionais.
Na segunda seção, discorro sobre as duas principais convenções internacionais
que resguardam direitos de povos e comunidades tradicionais, como foram concebidas e suas
principais consequências para os ordenamentos jurídicos nacionais. O objetivo é destacar o
direito à autodeterminação e o direito ao território que esses povos fazem jus e ratificar que
esses direitos devem ser observados e garantidos nos ordenamentos pátrios.
Na terceira seção, teço breves apontamentos relativos à identidade de povos e
comunidades tradicionais, vinculando a vitalidade e reprodução de elementos identitários ao
território no qual esses grupos vivem. Ainda, discuto algumas definições sobre território. O
objetivo é justamente evidenciar que não há povo ou comunidade tradicional dissociado de
seu território, razão pela qual esses territórios devem continuar sob a autonomia desses
grupos, sendo necessário, portanto, que sejam regularizados pelo Estado.
Por fim, abro a quarta seção com uma discussão sobre territorialidade,
sustentando que essa noção é responsável por dar vitalidade aos territórios e compreender as
específicas relações cujos povos e comunidades tradicionais nutrem por seus lugares. Levanto
críticas a regularização fundiária com base na apropriação que Estado e agentes externos
3
Alvaro Bianchi (2016) aborda a noção de golpe, defendendo que seja alargada em relação às clássicas noções
circuladas na literatura, especialmente voltadas a golpes militares. Para Bianchi, grupos do poder legislativo e
judiciário também podem operar golpes de Estado. Conforme Moretzsohn (2016), além de agentes dos poderes
estatais, a mídia também é um ente poderoso na instauração de um golpe e assim o foi no caso brasileiro
(BIANCHI, Alvaro. O que é um golpe de Estado? Blog Junho, 26 mar. 2016. Disponível em
<http://blogjunho.com.br/o-que-e-um-golpe-de-estado/>. MORETZSOHN, Sylvia Debossan. A mídia e o golpe:
uma profecia autocumprida. In: FREIXO, Adriano; RODRIGUES, Thiago (Orgs.). 2016, o ano do golpe. Rio de
Janeiro: Oficina Raquel, 2016).
4
LEITE, A.Z.; CASTRO, L. F. P.; SAUER, S. A questão agrária no momento político brasileiro:
liberalização e mercantilização da terra no Estado mínimo de Temer. OKARA: Geografia em debate, João
Pessoa, v. 12, n. 2, p. 247-274, 2018. MATTEI, Lauro. A política agrária e os retrocessos do governo Temer.
OKARA: Geografia em debate, João Pessoa, v. 12, n. 2, p. 293-307, 2018.
5
DIEGUES, Antonio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: HUCITEC,1998.
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livre”, “castanhais
do povo”, faxinais e fundos de pasto:terras tradicionalmente ocupadas. 2. ed. Manaus: PGSCA – UFAM, 2008.
LOBÃO, Ronaldo. Cosmologias Políticas do Neocolonialismo: como uma política pública pode se transformar
em uma política do ressentimento.Rio de Janeiro: EdUFF, 2010.
6
Juliana Santilli considera que os agricultores familiares ou tradicionais, como denomina, também são
considerados povos e comunidades tradicionais, mesmo não havendo expressamente tal reconhecimento no
ordenamento jurídico brasileiro. A justificativa da autora é da participação ativa desse grupo na conservação da
agrobiodiversidade (SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos: proteção jurídica à diversidade
biológica e cultural. São Paulo: Peirópolis, 2005).
7
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Apresentação da Coleção Documentos de Bolso. In: SHIRAISHI
NETO, Joaquim (Org.). Direito dos povos e das comunidades tradicionais no Brasil: declarações, convenções
internacionais e dispositivos jurídicos definidores de uma política nacional. Manaus: UEA, 2007, p. 8
8
Mesmo assim, há autores que insistem em utilizá-lo, talvez achando se tratar de algum tipo de preciosismo.
Refiro-me, por exemplo, a Manuela Carneiro da Cunha e Mauro W. B. Almeida (2001), Juliana Santilli (2005;
2009), Girolamo Treccani (2006), Moreira (2007) e Ronaldo Lobão (2010).
9
DIEGUES, Antonio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: HUCITEC,1998.
10
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livre”,
“castanhais do povo”, faxinais e fundos de pasto:terras tradicionalmente ocupadas. 2. ed. Manaus: PGSCA –
UFAM, 2008.
11
DIEGUES, Antonio Carlos et al (Orgs.). Os Saberes Tradicionais e a Biodiversidade no Brasil. São Paulo:
NUPAUB/USP; PROBIO/MMA; CNPq, 2000, p. 16-26.
12
Report of the World Commission on Environment and Development: Our Common Future. Disponível em
<http://www.un-documents.net/our-common-future.pdf>.
13
LOBÃO, Ronaldo. Cosmologias Políticas do Neocolonialismo: como uma política pública pode se
transformar em uma política do ressentimento.Rio de Janeiro: EdUFF, 2010, p. 24.
14
CUNHA, Manuela Carneiro da; ALMEIDA, Mauro W. B. Populações tradicionais e conservação ambiental.
In: CAPOBIANCO, João Paulo Ribeiro et al. (Orgs.). Biodiversidade na Amazônia Brasileira: avaliação e
ações prioritárias para a conservação, uso sustentável e repartição de benefícios. São Paulo: Estação Liberdade;
Instituto Socioambiental, 2001, p, 186.
15
Ibid.
16
Op. cit.
Victor Toledo17 cataloga que existem mais de 300 (trezentas) milhões de pessoas
pertencentes a povos e comunidades tradicionais vivendo em 75 (setenta e cinco) países do
mundo e ocupando praticamente cada um dos principais biomas do planeta. Preocupado em
sistematizar características gerais desses grupos em caráter global, o autor traz uma lista de
“postulados” que são simplificados na Tabela 01, contrapostos a lista semelhante
sistematizada por Antonio Diegues et al18, em relação a povos e comunidades tradicionais no
Brasil.
1 são descendentes dos primeiros habitantes de ligação intensa com os territórios ancestrais, onde o
territórios que foram conquistados durante os grupo social se reproduz econômica e socialmente,
Descobrimentos habita e ocupa por várias gerações (ainda que alguns
membros individuais possam ter se deslocado para os
centros urbanos e voltado para a terra de seus
antepassados)
17
TOLEDO, Victor M. Povos/comunidades tradicionais. Trad. Antonio Diegues. In: LEVIN, S. et al. (Eds).
Encyclopedia of Biodiversity. Academic Press, 2001. p. 02.
18
DIEGUES, Antonio Carlos et al (Orgs.). Os Saberes Tradicionais e a Biodiversidade no Brasil. São Paulo:
NUPAUB/USP; PROBIO/MMA; CNPq, 2000. p. 17.
2 são povos dos ecossistemas, tais como agricultores, conhecimento e relação de simbiose aprofundados
pastores, caçadores, extrativistas, pescadores e ou entre a natureza, os ciclos naturais e os recursos
artesãos que adotam uma estratégia multi-uso na naturais, que se reflete na elaboração de estratégias de
apropriação da Natureza uso e de manejo dos recursos naturais.
3 praticam formas de produção rural de pequena tecnologia utilizada relativamente simples, de impacto
escala e intensiva em trabalho, produzindo limitado sobre o meio ambiente. Há uma reduzida
pequenos excedentes, apresentando necessidades divisão técnica e social do trabalho, sobressaindo o
satisfeitas com reduzida utilização de energia artesanal, cujo produtor (e sua família) domina o
processo de trabalho até o produto final
4 não dispõem de instituições políticas centralizadas, presença de instituições sociais e políticas próprias e
organizando suas vidas a nível comunitário e tradicionais, mas fraco poder político, que, em geral,
tomando decisões com base em consensos reside com os grupos de poder dos centros urbanos
5 compartilham língua, religião, crenças, vestimentas conhecimento transmitido pela oralidade de geração
e outros indicadores de identificação, assim como em geração e linguagem própria, muitas vezes não a
uma relação estreita com seu território nacional
6 apresentam uma visão de mundo especifica, importância das simbologias, mitos e rituais
consistindo de uma atitude de proteção e não- associados à caça, à pesca e a atividades extrativistas
materialista em sua relação com a terra e os
recursos naturais, baseada num intercâmbio
simbólico com o mundo natural
7 são dependentes de uma sociedade e cultura sistemas de produção principalmente voltados para a
hegemônicas subsistência, mas não se limitando a isso, tendo
relação com o mercado, e reduzida acumulação de
capital
8 identificam-se como povos e comunidades auto identificação e identificação pelos outros como
tradicionais grupos culturais distintos
Fonte: elaborada pelo autor (2017), com utilização de dados de Toledo (2001) e Diegues et al (2000).
chamada sociedade envolvente19. Logo, não produzem excedente nem há divisão técnica e
social do trabalho, tal como se diz em relação ao chamado taylorismo.
Não há consenso entre os autores nas características n. 4. Toledo admite haver
povos e comunidades tradicionais que não dispõem de instituições políticas centralizadas,
enquanto Diegues diz o contrário. Dependendo do que se compreende como instituições
políticas é possível afirmar que associações locais, como Clube de Mães e Associações
Quilombolas são consideradas como instituições políticas centralizadas, uma vez que
possibilitam reflexões e decisões coletivas, por exemplo.
Toledo diz, na característica n. 7, que povos e comunidades tradicionais “são
dependentes de uma sociedade e cultura hegemônicas”. Trata-se de uma visão particular e,
quando pensamos no contexto brasileiro, equivocada. Em que pese estejam em constante
interação com o sistema capitalista, não há dados que comprovem que são dependentes desse
sistema ou mesmo de uma sociedade ou cultura hegemônicas20. Basta observar os modos de
vida de alguns povos indígenas que sequer interagem com outras comunidades e nunca foram
adeptos do capitalismo.
Por último, Toledo não dá relevância às relações de parentesco e compadrio que
são fundamentais na construção, fortalecimento e reprodução de povos e comunidades
tradicionais no Brasil, conforme elenca Diegues (característica n. 9).
Como fica evidente, traçar uma definição para povos e comunidades tradicionais é
encarar um desafio, por se incorrer no risco da extrema generalização e, consequentemente,
pobreza analítica ou por se incorrer no risco de extrema particularização e, portanto, exclusão
de grupos e significações relevantes. Em que pese relatórios oficiais e autores das ciências
sociais e jurídicas indicarem que são características “comumente aceitas”, importante salientar
que as referências aqui trazidas se tratam de uma breve síntese da discussão. O esforço
analítico de sistematizar características para ajudar na compreensão da categoria é válido,
mas, a todo momento, cabe muita atenção e senso crítico do leitor.
19
CHAYANOV, Alexander V. Sobre a teoria dos sistemas econômicos não capitalistas. In: SILVA, Graziano da
Silva et al. A Questão Agrária. Trad. Edgar Afonso Malagodi; Sandra Brizolla e José Bonifácio Amaral Filho.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1981, p. 133-163. SHANIN, Teodor. A definição de camponês: conceituações e
desconceituações – o velho e o novo em uma discussão marxista. Revista NERA, Presidente, Ano 8, n. 7,
jul./dez. 2005, p. 1-21 Jul/Dez.2005. ASSIS COSTA, Francisco de. Uma referência modelar:a experiência Ford
no Tapajós. In: ASSIS COSTA, Francisco de. Formação agropecuária da Amazônia: os desafios do
desenvolvimento sustentável. 2. ed. Belém: Ed. NAEA, 2012, p. 38-49.
20
Ainda mais se entendermos os processos culturais como processos de interações constantes na qual não
haveria perdas e sim trocas (BHABHA, Homi. O pós-colonial e o pós-moderno: a questão da agência. Editado
por Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003, p. 239-273).
21
Apesar de ter ratificado em julho de 2002, o Brasil a promulgou somente em 19 de abril de 2004, por meio do
Decreto nº 5.051.
22
RAMOS, Christian; ABAMO, Laís. Introdução. In: Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais e
Resolução referente à ação da OIT/Organização Internacional do Trabalho. Brasília: OIT, 2011, p. 06.
23
MOREIRA, Eliane Cristina Pinto. Justiça Socioambiental e Direitos Humanos: uma análise a partir dos
direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.
24
RAMOS, Christian; ABAMO, Laís. Introdução. In: Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais e
Resolução referente à ação da OIT/Organização Internacional do Trabalho. Brasília: OIT, 2011, p. 06.
25
Ibid.
26
MARÉS DE SOUZA FILHO, Carlos Frederico. Terra mercadoria, terra vazia:povos, natureza e
patrimônio cultural. Revista InSURgência, Brasília, ano 1, v. 1, n. 1, jan./jun. 2015, p. 57-71.
27
Conforme dados do site oficial da CDB. Disponível em <https://www.cbd.int/information/parties.shtml>
Acesso em 10 fev. 2016.
recursos e à repartição justa e equitativa dos benefícios derivados de sua utilização (artigo
15)28.
Eliane Moreira29 destaca que a CDB foi importante por ampliar e diversificar os
atores que fazem parte das discussões sobre a biodiversidade, uma vez que, com a valorização
econômica da biodiversidade, estes atores ingressam no debate com empresas, estados
nacionais, entidades internacionais, ONGs e, claro, os grupos tradicionais.
Como salienta Alfredo Wagner Berno de Almeida30, da articulação entre a
Convenção 169 da OIT e a Convenção sobre a Diversidade Biológica, constata-se que a noção
de povos tradicionais, que antes denotava principalmente um tributo ao lugar geográfico e a
um suposto isolamento cultural, tornou-se vinculada a reivindicação atual de grupos sociais.
Acrescento: reivindicação de acesso à terra e regularização de seus territórios tradicionais.
Contudo, tem-se observado enormes dificuldades operacionais em se “enquadrar” as situações
fundiárias vivenciadas por povos e comunidades tradicionais aos modelos de regularização
preexistentes31, que, em geral, não costumam atender as demandas específicas de cada grupo
tradicional que, quando consegue, se vê obrigado a optar pelo modelo que mais garanta seus
direitos.
Um desses modelos é o da Reserva Extrativista, que se desenvolveu a partir da
experiência de seringueiros no Estado do Acre, tendo Chico Mendes como grande liderança.
Segundo Shiraishi Neto32, as reservas extrativistas, desde sua criação em 1992, têm
apresentado grandes dificuldades nas suas implementações. Ora, o mesmo modelo vem sendo
imposto para todas os povos e comunidades tradicionais que se dedicam ao extrativismo, não
importando suas particularidades e diferenças.
28
SANTILLI, Juliana. Agrobiodiversidade e direitos dos agricultores. São Paulo: Peirópolis, 2009.
29
MOREIRA, Eliane Cristina Pinto. Conhecimento tradicional e a proteção. T&C Amazônia, Ano V, Número
11, junho de 2007, p. 33-41.
30
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Apresentação da Coleção Documentos de Bolso. In: SHIRAISHI
NETO, Joaquim (Org.). Direito dos povos e das comunidades tradicionais no Brasil: declarações, convenções
internacionais e dispositivos jurídicos definidores de uma política nacional. Manaus: UEA, 2007, p. 7-8.
31
Ibid.
32
SHIRAISHI NETO, Joaquim. A particularização do universal:povos e comunidades tradicionais face às
Declarações e Convenções Internacionais. In: SHIRAISHI NETO, Joaquim (Org). Direito dos povos e das
comunidades tradicionais no Brasil: Declarações, Convenções Internacionais e Dispositivos Jurídicos
definidores de uma Política Nacional. Manaus: UEA, 2007.
para a consecução de objetivos específicos37. Este segundo caso, penso se tratar de uma
consequência natural do direito à autodeterminação dos povos, previsto na Convenção 169 da
OIT, cuja autonomia compõe uma de suas dimensões. O problema reside no caso em que são
considerados objetos de tutela sem seu consentimento.
Um relatório da Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Sociais do Ministério
Público de Minas Geras38expõe que povos e comunidades tradicionais são grupos que nutrem
relações específicas com o território e com o meio ambiente, reforçando e, de certo modo,
fundindo componentes fundiários e ambientais. Por isso, são povos que reivindicam/ ocupam
seus territórios tradicionais e respeitam o princípio da sustentabilidade, buscando a garantia da
sobrevivência das gerações presentes e futuras sob os aspectos físicos, culturais e econômicos.
Victor Toledo39 aponta que povos e comunidades tradicionais são uma fração
significativa dos seres vivos que se apropriam da biomassa exercendo impactos reduzidos
sobre a biosfera. Eles geralmente vivem em áreas consideradas de fronteira ou áreas de
refúgio de grande riqueza natural, onde a estrutura, não os componentes dos ecossistemas,
estão mais ou menos intactos. Por conta disso, vêm ganhando grande atenção dos movimentos
ambientalistas e conservacionistas, que passam a enxergar neles um meio de salvação para o
planeta. Especialmente os conservacionistas recebem críticas por romantiza-los e criarem uma
versão do “nobre selvagem contemporâneo”.
Com efeito, há uma ideia de que a conservação da biodiversidade resta impossível
sem a participação de povos e comunidades tradicionais e isso está sendo reconhecido cada
vez mais em círculos nacionais e internacionais. “Áreas protegidas baseadas em consulta, co-
manejo ou mesmo manejo tradicional vão provavelmente se tornar importantes nos próximos
anos, uma vez que o papel das culturas tradicionais está sendo cada vez mais reconhecido” 40.
Sarita Albagli lembra, inclusive, que esses povos possuem conhecimentos e
práticas agrícolas e de subsistência adequadas ao meio em que vivem, possuindo, portanto,
37
Em que pese polêmica, cabe a seguinte reflexão: “Não percebi nas ações de vários grupos minoritários uma
práxis de libertação. Em muitos casos, o que se pode perceber é o desejo pela inclusão em políticas de tutela”
(LOBÃO, Ronaldo. Cosmologias Políticas do Neocolonialismo: como uma política pública pode se transformar
em uma política do ressentimento.Rio de Janeiro: EdUFF, 2010, p. 17).
38
COORDENADORIA DE INCLUSÃO E MOBILIZAÇÃO SOCIAIS (CIMOS) - Ministério Público de Minas
Gerais (MPMG). Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais. Belo Horizonte: Ministério Público de
Minas Gerais (MPMG), 2014.
39
Op. cit..
40
TOLEDO, Victor M. Povos/comunidades tradicionais. Trad. Antonio Diegues. In: LEVIN, S. et al. (Eds).
Encyclopedia of Biodiversity. Academic Press, 2001, p. 12.
um papel de “guardiães do patrimônio biogenético do planeta” 41.E esse discurso que vem
ganhando força tanto desemboca quanto se fortalece pelo Direito nos âmbitos nacionais e
internacional. No Brasil, se verifica uma intensa mobilização pelo reconhecimento de direitos
protagonizada pelos povos e comunidades tradicionais. Especialmente no tocante ao processo
de reconhecimento do caráter plural e multiétnico das sociedades, tem-se favorecido a
constituição de um campo jurídico do “direito étnico” e, portanto, de uma forma própria de
refletir o direito42. Inclusive, a Constituição de 1988 reconheceu a formação pluriétnica do
País, bem como o direito à diferença cultural, uma série de direitos coletivos, o direito à
sociodiversidade, ao patrimônio cultural, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à
biodiversidade e ao território tradicional43.
Em síntese, por interagirem com a biodiversidade de maneira sustentável, sob a
ótica de algumas visões, povos e comunidades tradicionais “servem” apenas como
conservadores ou preservadores do meio ambiente enquanto um recurso econômico, pouco –
ou nada – importando seus modos de criar, fazer, viver, produzir e se reproduzir. Essa
diminuição não tem como ser vista senão como uma redução utilitarista, que até mesmo a
vivência empírica menos duradoura e atenta cuida de desmistificar. Claro que estes grupos
contribuem de maneira significativa para tal44, mas não devem ser reduzidos a isso.
As relações específicas que os grupos tradicionais estabelecem com suas terras
tradicionalmente ocupadas e seus recursos naturais fazem com que esses lugares sejam mais
do que terras, ou simples bens econômicos. Eles assumem a qualificação de território, que
implica dimensões simbólicas. No território estão impressos os acontecimentos ou fatos
históricos do grupo e estão enterrados os ancestrais, que se encontram em sítios sagrados.
41
ALBAGLI, Sarita. Interesse Global no Saber Local: a geopolítica da biodiversidade. In. MOREIRA, Eliane,
et al. Seminário Saber Local/Interesse Global: propriedade intelectual, biodiversidade e conhecimento
tradicional na Amazônia, 2005, p. 18.
42
SHIRAISHI NETO, Joaquim. A particularização do universal:povos e comunidades tradicionais face às
Declarações e Convenções Internacionais. In: SHIRAISHI NETO, Joaquim (Org). Direito dos povos e das
comunidades tradicionais no Brasil: Declarações, Convenções Internacionais e Dispositivos Jurídicos
definidores de uma Política Nacional. Manaus: UEA, 2007, p. 25-52.
43
DIEGUES, Antonio Carlos et al (Orgs.). Os Saberes Tradicionais e a Biodiversidade no Brasil. São Paulo:
NUPAUB/USP; PROBIO/MMA; CNPq, 2000.
44
CUNHA, Manuela Carneiro da; ALMEIDA, Mauro W. B. Populações tradicionais e conservação ambiental.
In: CAPOBIANCO, João Paulo Ribeiro et al. (Orgs.). Biodiversidade na Amazônia Brasileira: avaliação e
ações prioritárias para a conservação, uso sustentável e repartição de benefícios. São Paulo: Estação Liberdade;
Instituto Socioambiental, 2001, p. 184-193.
Logo, o território determina o modo de vida e a visão de homem e de mundo dos grupos
tradicionais e, ao mesmo tempo, é apreendido e vivenciado45.
Segundo Fernando Mamani, terra é um espaço natural onde vive a comunidade e
um lugar sagrado de interação, que compreende: o éter (espaço de cima); o espaço de baixo,
onde vivemos; o que está dentro da terra; e o espaço indeterminado, onde moram os
ancestrais. Já território é o espaço com estrutura organizativa, conforme usos, costumes,
tradições, idiomas, cosmovisões, princípios e valores próprios dos povos que nele vivem e
convivem. É onde se exercem direitos e responsabilidades comunitários e os direitos de
relação46.
45
COORDENADORIA DE INCLUSÃO E MOBILIZAÇÃO SOCIAIS (CIMOS) - Ministério Público de Minas
Gerais (MPMG). Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais. Belo Horizonte: Ministério Público de
Minas Gerais (MPMG), 2014.
46
MAMANI, Fernando Huanacuni. Buen Vivir / Vivir Bien: filosofia, políticas, estrategias y experiencias
regionales andinas. Lima, Peru: Coodinadora Andina de Organizaciones Indígenas (CAOI), 2010.
47
“[...] território integra todas as formas de existência em suas diversidades natural e espiritual. O território é um
conceito de vida comunitária. E, como nossa tradição ancestral nos ensina, não é um recurso para explorar, é um
espaço de vida recíproca e complementar” (tradução livre). Ibid., p. 78.
48
TRECCANI, Girolamo. Terras de quilombo: caminhos e entraves do processo de titulação. Belém: Secretaria
Executiva de Justiça, Programa Raízes, 2006.
Sobre os modos de apropriação dos territórios, Juliana Santilli defende que haja
uma dupla interpretação sobre a aplicação das normas nacionais sobre o território a depender
da destinação das atividades da comunidade. Quando se tratar de atividades tradicionais
voltadas para a subsistência ou consumo interno, os grupos tradicionais não devem ser
sujeitos a restrições estabelecidas pela legislação ambiental, não podendo os órgãos
ambientais impor de forma coercitiva medidas e sanções administrativas contra práticas
49
LOPES, 1995, p. 2 apud Op. cit., p.196.
50
CRUZ, Valter do Carmo. Territorialidades, identidades e lutas sociais na Amazônia. In: ARAUJO,
Frederico G. Bandeira de; HAESBAERT, Rogério (Orgs.). Identidades e territórios: questões e olhares
contemporâneos. Rio de Janeiro: Access, 2007, p. 93-122.
51
“São recursos naturais, é a fronteira, é delimitação, é a estrutura, é a organização, é muito mais, poruqe tudo é
integral” (tradução livre). QUISPE, Miguel Palacín. Prólogo Estamos construyendo nuevos paradignas. In:
MAMANI, Fernando Huanacuni. Buen Vivir / Vivir Bien: filosofia, políticas, estrategias y experiencias
regionales andinas. Lima, Peru: Coodinadora Andina de Organizaciones Indígenas (CAOI), 2010, p. 9.
52
Essa linha de raciocínio se justifica constitucionalmente, devido o art. 216, inciso II, que determina que o
Estado deve proteger as manifestações das culturas afro-brasileiras e ainda inclui, entre os bens culturais
imateriais, os modos de criar, fazer e viver dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (SANTILLI,
Juliana. Socioambientalismo e novos direitos: proteção jurídica à diversidade biológica e cultural. São Paulo:
Peirópolis, 2005).
53
Ibid.
54
COORDENADORIA DE INCLUSÃO E MOBILIZAÇÃO SOCIAIS (CIMOS) - Ministério Público de Minas
Gerais (MPMG). Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais. Belo Horizonte: Ministério Público de
Minas Gerais (MPMG), 2014.
55
DIEGUES, Antonio Carlos et al (Orgs.). Os Saberes Tradicionais e a Biodiversidade no Brasil. São Paulo:
NUPAUB/USP; PROBIO/MMA; CNPq, 2000.
56
O sentido de descontínuo não se contrapõe ao sentido de contínuo elencado por Cruz. Enquanto no primeiro,
fala sobre a descontinuidade geográfica em relação a limites geográficos oficiais, o segundo fala justamente de
uma continuidade de usos por parte dos povos e comunidades tradicionais, mesmo que haja essa descontinuidade
de divisões político-administrativas.
57
Op. cit.
58
LITTLE, Paul. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da teritorialidade.
Anuário Antropológico/ 2002-2003, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004, p. 251-290.
identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu
território ou homeland”. Essa territorialidade é responsável pela produção do território e tem
uma multiplicidade de expressões, de acordo com as particularidades das comunidades. Entre
essas particularidades, temos: o regime de propriedade comunal; os vínculos afetivos que
mantêm com seu território; a história da sua ocupação guardada na memória coletiva; e o uso
social que dá ao território e as formas de defesa dele.
Segundo Almeida59, territorialidades específicas podem ser consideradas “como
resultantes de diferentes processos sociais de territorialização e como delimitando
dinamicamente terras de pertencimento coletivo que convergem para um território”. A
territorialidade funciona como fator de identificação, defesa e força, mesmo em se tratando de
apropriações temporárias dos recursos naturais, por grupos sociais classificados muitas vezes
como “nômades” e “itinerantes”.
Para Treccani60, a territorialidade desvenda maneiras como cada grupo molda o
espaço em que vive e que se difere das formas tradicionais de apropriação dos recursos da
natureza. O foco não é a terra em si, mas a relação estabelecida com a terra ocupada por eles.
Essas diferentes territorialidades invocam diferentes direitos, que tem eco no ordenamento
jurídico brasileiro, e acabam por gerar ou evidenciar conflitos no território.
A partir da ideia de que a territorialidade constrói o território do grupo, Sundfeld
afirma que a regularização fundiária de um território deve recair, portanto, tanto sobre os
espaços em que o grupo mora e cultiva, quanto sobre aqueles destinados ao lazer, à
manutenção da religião, à perambulação entre as famílias do grupo e também ao estoque de
recursos naturais61. Ou seja, a regularização deve ocorrer sobre todo o território tradicional,
procurando observar as territorialidades específicas. O ideal é que a discriminação da área
seja feita pela equipe do órgão de terras competente para regularizar, mas acompanhada e
seguindo as orientações de representantes dos povos e comunidades tradicionais interessados.
Há vários problemas que se colocam a regularização dos territórios tradicionais.
Um deles, como aponta o relatório da Coordenação de Inclusão e Mobilização Sociais do
59
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livre”,
“castanhais do povo”, faxinais e fundos de pasto:terras tradicionalmente ocupadas. 2. ed. Manaus: PGSCA –
UFAM, 2008, p. 29.
60
TRECCANI, Girolamo. Terras de quilombo: caminhos e entraves do processo de titulação. Belém:
Secretaria Executiva de Justiça, Programa Raízes, 2006.
61
2002 apud SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos: proteção jurídica à diversidade
biológica e cultural. São Paulo: Peirópolis, 2005.
Como alerta Carlos Marés de Souza Filho64, os territórios destes grupos são muito
valiosos, pois ocupam terras e mantêm sobre elas a natureza e a si mesmos. Ocorre que
políticas integracionistas pretendem transformar cada integrante de povos e comunidades
tradicionais em trabalhador individual, ou proprietário individual de um lote de terreno,
terminando, assim, com a noção de povo/comunidade e, consequentemente, liberando o
território, possibilitando que ela se esvazie e se torne mercadoria, capital. Essas políticas
funcionam com o combustível da ideologia da negação de existência desses povos, uma vez
que ao se negar a sua existência nega-se a ocupação que fazem da terra.
Na visão de Ronaldo Lobão, povos e comunidades tradicionais têm autonomia
sobre o espaço que ocupam, justificada pelas anterioridades históricas vividas nesses próprios
espaços ou em seu direito à reprodução social e cultural. Todavia, há alguns óbices que se
62
COORDENADORIA DE INCLUSÃO E MOBILIZAÇÃO SOCIAIS (CIMOS) - Ministério Público de Minas
Gerais (MPMG). Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais. Belo Horizonte: Ministério Público de
Minas Gerais (MPMG), 2014.
63
Ibid., p. 13.
64
MARÉS DE SOUZA FILHO, Carlos Frederico. Terra mercadoria, terra vazia:povos, natureza e
patrimônio cultural. Revista InSURgência, Brasília, ano 1, v. 1, n. 1, jan./jun. 2015, p. 57-71.
põem contra a prática da autonomia desses grupos. Isso porque na trajetória da conquista do
espaço social desejado, direitos relativos à autonomia são transformados em políticas de
tutela, como falei anteriormente, de preservação, ou, pior, de salvação65. E essa transformação
opera por meio da manipulação de agentes externos66 aos sentidos atribuídos pelos grupos
tradicionais às categorias tempo e espaço67.
Esse processo pode ser entendido como um processo de apropriação
perigosíssimo, no qual um dos resultados é a violenta substituição do saber local pelo saber
científico, que se dá, no caso investigado por Lobão 68, por meio de técnicas de manejo que se
desejam sustentáveis. Outro resultado é o esvaziamento das relações de sentimentos dos
espaços vividos por povos e comunidades tradicionais, em nome da conservação da
biodiversidade69. Há uma inversão do natural andamento dos processos sociais70 desses
grupos, que costumam basear suas interações no afeto, gerando ressentimento 71. Nos dois
casos acima, a apropriação reflete diretamente nas territorialidades e, consequentemente, na
concepção de território. Daí ser tão perigoso e a necessidade de ser combatido.
Lógico que os povos e comunidades tradicionais não assistem esses processos e
transformações pacificamente. Pelo contrário, quanto mais latentes, mais conflitos emergem
nos territórios.Um desafio que se impõe, portanto, é pensar para além dos instrumentos e
mecanismos jurídicos de regularização fundiária preexistentes, admitir a coexistência de
diversos instrumentos para a efetivação de direitos e até pensar a criação de outros que não
passem pela apropriação a que me referi anteriormente.
Ora, a regularização deve atender as demandas dos grupos e deve ocorrer sobre os
territórios tradicionais em suas integralidades.Como afirma Joaquim Shiraishi Neto72
65
LOBÃO, Ronaldo. Cosmologias Políticas do Neocolonialismo: como uma política pública pode se
transformar em uma política do ressentimento.Rio de Janeiro: EdUFF, 2010.
66
Esses agentes externos seriam representantes da sociedade nacional (especialmente acadêmicos), grupos
nacionais e internacionais (ONG’s, OS’s, OSCIP’s e ING’s) e o próprio Estado.
67
LOBÃO, Ronaldo. Tempo(s) e Espaço(s) do(s) Direito(s): articulações do global ao local, sem vice-versa.
Humanidades, n. 59, out. 2012, p. 70-79.
68
LOBÃO, Ronaldo. Cosmologias Políticas do Neocolonialismo: como uma política pública pode se
transformar em uma política do ressentimento.Rio de Janeiro: EdUFF, 2010.
69
Esse esvaziamento condiz com o esvaziamento da noção de lugar, conforme relata Arturo Escobar (2008),
Andréa Zhouri e Raquel Oliveira (2010), Joaquim Shiraishi Neto (2014) e Ciro Brito e Noemi Porro (2016).
70
“Significa a operação da vida social, a maneira pela qual as ações e a própria existência de cada ser vivo
afetam a dos outros indivíduos com os quais se relaciona” (FIRTH, 1974, p. 20 apud LOBÃO, Ronaldo.
Cosmologias Políticas do Neocolonialismo: como uma política pública pode se transformar em uma política do
ressentimento.Rio de Janeiro: EdUFF, 2010 2010, p. 15).
71
Ibid.
72
SHIRAISHI NETO, Joaquim. A particularização do universal:povos e comunidades tradicionais face às
Declarações e Convenções Internacionais. In: SHIRAISHI NETO, Joaquim (Org). Direito dos povos e das
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda, cabe pensar para além dos instrumentos e mecanismos jurídicos de regularização
fundiária preexistentes, admitir a coexistência de diversos instrumentos para a efetivação de
direitos e até pensar a criação de outros que não admitam processos de apropriação. E não há
como se fazer isso sem a participação ativa dos grupos interessados. Ante o atual Estado Pós-
Democrático em que vivemos, não sendo tal participação viabilizada pelo governo, que seja
pela pressão dos próprios grupos. Não é tempo de ordem e silêncio.
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