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PATZDORF, Danilo. Seis propostas para os corpos deste milênio.

In: LEAL,
Dodi; DENNY, Marcelo (Org.). Gênero expandido: performances e
contrassexualidades. São Paulo: Annablume, 2018, pp. 143-162.

SEIS PROPOSTAS PARA OS CORPOS DESTE MILÊNIO

Autor: Danilo Patzdorf

Mini bio:
Danilo Patzdorf é artista, bailarino e pesquisador. Doutorando em Artes Visuais (ECA/USP),
Mestre em Ciências da Comunicação (ECA/USP) e graduado em Artes Visuais (ECA/USP),
interessa-se pela investigação do estatuto do corpo na contemporaneidade. Para tanto,
atravessa as áreas da dança, da performance, do teatro, da educação e da comunicação.

Resumo do artigo:
Partindo das principais obras de Haraway, Butler e Preciado traduzidas no início
deste milênio no Brasil, este artigo desenvolve seis propostas para revisarmos
conceitos que, direta ou indiretamente, são atingidos pelo ingresso da chamada
teoria pós-feminista e queer no debate acadêmico brasileiro. Avaliando
brevemente conceitos como corpo, sexualidade, gênero, desejo, prazer e sexo,
analisaremos as transformações operadas pelos princípios ciborguianos,
performativos e contrassexuais (desenvolvidos naquelas obras) sobre nossos
corpos e identidades sexuais.

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SEIS PROPOSTAS PARA OS CORPOS DESTE MILÊNIO

“Somos heterossexuais estatisticamente ou


molarmente, mas homossexuais pessoalmente, quer
o saibamos ou não, e, por fim, transexuados
elementarmente, molecularmente.”
(Deleuze e Guattari)

Escrever sobre o corpo está ficando cada vez mais complexo. Tão logo
fazemos uma afirmação, a prática corporal de outrem será a antítese do que
acabamos de postular. E isso é positivo. A cada dia que passa, torna-se mais e
mais difícil representar o corpo em sua unidade (porque talvez ela nunca tenha
existido) e numa única forma (porque, talvez, o corpo seja a própria
multiplicidade). Diversos autores, sobretudo a partir dos anos 1980, puseram o
corpo e o sujeito – essas duas instituições modernas que ainda influenciam
nossa compreensão da vida – numa mesa de dissecação teórica, rasgaram-no,
e viram que a essência de ambos não estava num interior, numa profundidade,
embaixo de algo orgânico ou inscrita em alguma verdade biológica, mas sim ao
lado, no exterior, na superfície, no horizonte, naquilo que não tem massa, naquilo
que parecia não pertencer ao eu, naqueles fluxos incapturáveis que doravante
poderiam ser chamados de corporalidade e subjetividade.
Emprestando parte do título da última obra de Ítalo Calvino, Seis
propostas para o próximo milênio, proporei aqui seis reflexões para os corpos
deste milênio. Esta última obra de Calvino foi escrita em 1984 e 1985 para uma
famosa conferência chamada Charles Eliot Norton Poetry Lectures.1 Porém,
antes de conseguir apresentar estas seis conferências, o autor faleceu, repentina
e inesperadamente, vítima de uma hemorragia cerebral, deixando de escrever a
última delas, intitulada Consistência.2

Estamos em 1985, quinze anos apenas nos separam do início de um


novo milênio. Por ora não me parece que a aproximação dessa data
suscite alguma emoção particular. Em todo caso, não estou aqui para
falar de futurologia, mas de literatura. O milênio que está para findar-
se viu o surgimento e a expansão das línguas ocidentais modernas e

1 Desde 1925, a Harvard University convida anualmente algum artista ou escritor para realizar seis conferências sobre
temas diversos. Já passaram pelo evento figuras como Igor Stravinsky (1939-40), Erwin Panofsky (1947-48), Meyer
Schapiro (1966-67), Jorge Luis Borges (1967-68), Umberto Eco (1992-93), William Kentridge (2011-12), entre outros.
2 As outras cinco conferências finalizadas (“Leveza”, “Rapidez”, “Exatidão”, “Visibilidade” e “Multiplicidade”) estão

reunidas, traduzidas e publicadas no Brasil na obra de Calvino (2015).

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as literaturas que exploraram suas possibilidades expressivas,
cognoscitivas e imaginativas. Foi também o milênio do livro, na medida
em que viu o objeto-livro tomar a forma que nos é familiar. O sinal talvez
de que o milênio esteja para findar-se é a frequência com que nos
interrogamos sobre o destino da literatura e do livro na era tecnológica
dita pós-industrial (CALVINO, 2015:13).

Esta é a apresentação que o autor faz de suas conferências e,


curiosamente, se trocássemos a palavra livro por corpo na citação acima,
teríamos uma semelhante interrogação que vários autores da mesma época
faziam acerca do corpo: qual o destino do corpo na era tecnológica dita pós-
industrial? O milênio que findou-se viu o surgimento e a expansão da forma
ocidental e naturalizada do corpo, essa configuração que nos é familiar e que
corresponde aos limites visíveis da pele.
Até aqui, aparentemente, nenhum problema. Entretanto, a questão que
este texto quer sublinhar é que nossa concepção ocidental e moderna de corpo
é toda ela produzida por um discurso europeu e heterossexual, o qual,
contemplando uma maioria normatizada, não apenas desconsidera, mas
também exclui toda a miríade de possibilidades expressivas e subjetivas dos
corpos e das sexualidades de uma dita minoria que não pode (ou não quer)
vivenciar o mundo a partir de tais premissas. Mais que isso, se considerarmos o
atual cenário político brasileiro, perceberemos que não se trata apenas de um
posicionamento epistemológico, mas do necessário reconhecimento da
existência de incontáveis expressões corporais e sexuais. Deste modo,
enquanto Calvino quis arrolar atributos que a literatura deveria preservar para o
milênio vindouro, elencaremos neste texto alguns conceitos sobre o corpo e
sexualidade que devem ser corrompidos no milênio que já adentramos. São eles:
corpo, sexualidade, gênero, desejo, prazer e sexo.
Se partirmos da premissa de que somos todos molecularmente
transexuados, não fará sentido discutirmos transexualidades, posto que
nenhuma subjetividade nasce cisgênero e heterossexual. Entretanto, essa
assertiva seria válida apenas se não vivêssemos num contexto de crescente e
radical investida para manutenção de concepções modernas (e, portanto,
violentas para nossa atualidade) sobre corpo, gênero e sexualidade no cenário
brasileiro contemporâneo. A não-inclusão de discussões acerca das chamadas
“identidades de gênero” no âmbito escolar, a concepção nuclear e heterossexual

3
do estatuto da família e o Brasil liderando o ranking mundial de violência
transfóbica são três realidades nacionais que revelam a urgência com que
precisamos refletir sobre o estatuto do corpo na contemporaneidade, caso
queiramos contemplar e acolher sua (aparentemente incômoda) multiplicidade
já operante.
Neste sentido, foi na entrada do milênio vigente que obras-primas sobre
corpo, gênero e sexualidade de grandes autoras estrangeiras (Haraway, Butler
e Preciado) foram traduzidas e publicadas no Brasil. Assim, no decorrer das
propostas apresentadas a seguir, analisaremos suas principais contribuições
para introduzir e aprofundar a discussão sobre o estatuto do corpo na
contemporaneidade e suas identidades sexuais, visando destruir noções
naturalizadas do corpo, gênero e sexualidade que fundamentam ou justificam
diversos tipos de violência praticados ordinariamente. O controle das identidades
trans (travestis, transgêneros e transexuais), enquanto identidades contra-
hegemônicas, parece não se dar por meio da repressão, mas antes pelo não-
reconhecimento de suas existências. Por isso, esse texto tecerá argumentos em
favor da desarticulação dos dispositivos de produção compulsória de
subjetividades cisgênero e heterossexual contidos, direta ou indiretamente, nos
conceitos discutidos doravante.

Primeira proposta – Corpo


“Estamos dolorosamente conscientes do que significa
ter um corpo historicamente constituído.”
(Donna Haraway)

O atual milênio tem uma penosa tarefa: acabar com o corpo. Mas, quando
pronunciamos a palavra corpo, a que estamos nos referindo exatamente?
Parece que a palavra corpo sofreu um processo de naturalização, como se ao
pronunciá-la estivéssemos todos de acordo quanto ao seu significado, e muitas
vezes utilizando-a como sinônimo para indivíduo. Ocorre que, para cada época
e para cada cultura, a palavra corpo possui diferentes significados e, ao
generalizá-la, impedimos atualizações necessárias para seu correto emprego.
Assim, insisto: a que nos referimos quando pronunciamos a palavra corpo? À
unidade deste terminal biológico perecível que (ainda) determina nossa

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existência? Ora, o transplante de órgãos rompe com a suposta unidade do corpo
para socializar nossas partes e também as cirurgias plásticas podem nos
transformar em menos de 24 horas numa pessoa totalmente diferente da que
aparentávamos no dia anterior, fazendo de nossas carteiras de identidade, de
um instante para o outro, um documento ilícito e comprovante da aparente
“falsidade ideológica” – tudo isso, sem rasurá-las.
O estatuto do corpo ocidental (aquele que a palavra corpo passou a
designar “naturalmente”) foi forjado durante os três últimos milênios, alcançando
sua forma final em meados do século XIX e XX. Foi a filosofia socrático-platônica
que plasmou uma separação corpo versus alma que já se esboçava nos escritos
homéricos, sendo tal separação ainda mais lapidada pela modernidade, bem
como a noção de indivíduo, tomando o corpo como propriedade de um sujeito
independente do seu entorno, é resultada de operações filosóficas que se
inspiraram em modelos econômicos do emergente capitalismo para fundar o
mito de sua autonomia.
Apesar de o corpo e o sujeito terem sido dilacerados por diferentes
pensadores do século XX,3 impossibilitando uma concepção unitária e estável
dos mesmos, sobrevive ainda uma concepção metafísica do corpo, sobretudo
nas representações religiosas, políticas e jurídicas, condenando aqueles que
corrompem a suposta naturalidade do corpo. Qualquer alteração em sua
natureza se configura como um ultraje a uma força superior (essencial),
justificando a incompreensão que em seguida se expressa pela violência física
e verbal praticada por aqueles que têm seus corpos conformados ao padrão
“natural” contra aqueles que não os têm.
Contra esta concepção, o milênio passado já nos legou um valioso texto
dedicado em acabar com a noção naturalizada de corpo e identidade. Publicado
em 1985 e traduzido/publicado no atual milênio no Brasil, o texto Manifesto
ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX, escrito

3
Por exemplo, Nietzsche entoará elogios desmedidos ao querer, desejar e sentir do corpo; Freud desmontará
o sujeito iluminista mostrando que nossa subjetividade é composta em grande parte por impulsos que não
provêm da razão; Merleau-Ponty reclamará um corpo que pensa com sua totalidade, fazendo uma outra
ontologia da carne; Foucault revelará todo o complexo sistema de elaboração e controle discursivo do
sujeito moderno, mostrando que até a própria noção de sujeito é ela mesma um dos dispositivos
responsáveis por fazer as instituições funcionarem; Deleuze e Guattari produzirão conceitos que revisarão
postulados sobretudo da psicanálise que antes pareciam irrevogáveis, colocando em xeque toda a estrutura
moderna que fundou e abrigou o indivíduo neurótico edipiano.

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pela bióloga e feminista Donna Haraway (2009), toma a figura do ciborgue como
um mito político que superaria a assimetria entre natureza e cultura, homem e
mulher, orgânico e inorgânico, promovendo uma nova leitura acerca das
subjetividades e das relações de poder na época de uma emergente
comunicação digital.

Por que nossos corpos devem terminar na pele? Por que, na melhor
das hipóteses, devemos nos limitar a considerar como corpos, além
dos humanos, apenas outros seres também envolvidos pela pele? (...)
Essas relações máquina/organismo são obsoletas, desnecessárias.
Para nós, na imaginação e na prática, as máquinas podem ser
dispositivos protéticos, componentes íntimos, amigáveis eus
(HARAWAY In: TADEU, 2009:92).

Um texto ainda não assimilado, um “argumento em favor do prazer da


confusão de fronteiras”, o Manifesto ciborgue mostra que as estratégias de
controle estão hoje concentradas nas “taxas de fluxo entre fronteiras, e não na
suposta integridade de objetos supostamente naturais” (Ib.:62), questionando
até mesmo a validade da biopolítica de Foucault para nossa atualidade – esta
“débil premonição da política-ciborgue” (Ib.:37).

O ciborgue é uma criatura de um mundo pós-gênero: ele não tem


qualquer compromisso com a bissexualidade, com a simbiose pré-
edípica, com o trabalho não alienado. O ciborgue não tem qualquer
fascínio por uma totalidade orgânica que pudesse ser obtida por meio
da apropriação última de todos os poderes das respectivas partes, as
quais se combinariam, então, em uma unidade maior. Em certo
sentido, o ciborgue não é parte de qualquer narrativa que faça apelo a
um estado original, de uma “narrativa de origem”, no sentido ocidental,
o que constitui uma ironia “final”, uma vez que o ciborgue é também o
telos apocalíptico dos crescentes processos de dominação ocidental
que postulam uma subjetivação abstrata, que prefiguram um eu último,
libertado, afinal, de toda dependência – um homem no espaço. As
narrativas de origem, no sentido “ocidental”, humanista, dependem do
mito da unidade original, da ideia de plenitude, da exultação e do terror,
representados pela mãe fálica da qual todos os humanos devem se
separar – uma tarefa atribuída ao desenvolvimento individual e à
história, esses gêmeos e potentes mitos tão fortemente inscritos, para
nós, na psicanálise e no marxismo (Ib.:38-39).

Daí que o pensamento “originário” tenha arregimentado a noção de corpo


e indivíduo, de uma maneira ou de outra, sob o campo do inquestionável
denominado “natural”. Neste sentido, Haraway nos impele a buscar uma política
fundada por coalizões (afinidades) e não por relações identitárias, afinal, “Não
existe nada no fato de ser ‘mulher’ que naturalmente una as mulheres” (Ib.:47).

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A consciência de que gênero e sexo são construtos discursivos nos libera de
uma conexão ficticiamente natural com o corpo, intensificando ao mesmo tempo
o caráter artificial (e, portanto, plástico) dos discursos transfóbicos. A carteira de
identidade, na forma do RG, é a parceira do corpo natural, aquela que exige uma
estabilidade e uma verossimilhança entre um passado (o nome de nascimento,
o sexo designado, a aparência) e o presente do corpo. As expressões das
subjetividades e dos corpos trans só serão reconhecidas quando o corpo
supostamente natural (aquele cisgênero e heterossexual) for desmontado em
sua “fictícia verdade” biológica.

Segunda proposta – Sexualidade


“A regulação binária da sexualidade suprime a
multiplicidade subversiva de uma sexualidade que
rompe as hegemonias heterossexual, reprodutiva e
médico-jurídica.”
(Judith Butler)

Um dos redutos mais cristalizados que o atual milênio deverá se esforçar


em transformar é o conceito de sexualidade. Somos o país que mais mata
pessoas trans e um dos mais homofóbicos do mundo.4 O que motiva tal violência
que, ao lado da crescente conquista de direitos LGBT, vem aumentando a cada
ano? De onde vem esse ódio que mobiliza um civil a premeditar, procurar e
assassinar uma pessoa apenas pelo fato dela ser trans ou homossexual? Seria
a sexualidade um campo naturalmente binário, separado entre heterossexuais
(aqueles que condizem com a natureza) e trans/homossexuais (aqueles que
corrompem a natureza)? Teria a sexualidade uma origem biológica à qual nos
reportarmos? Ou seria a sexualidade integralmente resultada de questões
psicológicas? Ou ainda seria a sexualidade toda ela constituída pela cultura?
O livro Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, da
filósofa norte-americana Judith Butler (2015), escrito nos anos 1990 e
traduzido/publicado no Brasil no atual milênio, põe-se a discutir teorias que

4
Estes dados estão documentados pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) nos relatórios anuais de assassinatos
de homossexuais no Brasil. Além destes, é possível tomar contato com tais estudos por meio das Secretarias
dos Direitos Humanos (SDH), bem como por meio dos relatórios da organização europeia “Transgender
Europe”, a qual faz uma comparação com os países de outros continentes, incluindo o Brasil. Todos estes
estudos têm seus números divulgados em seus respectivos sites oficiais.

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problematizam o funcionamento do gênero e da sexualidade. Revisando a
tradicional teoria feminista, a autora criticará aqueles posicionamentos que
compreendem o gênero como a “expressão cultural do sexo”.

O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural


de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica);
tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o
qual os próprios sexos são estabelecidos. Resulta daí que o gênero
não está para a cultura assim como o sexo para a natureza; ele
também é o meio discursivo/cultural pelo qual “a natureza sexuada” ou
“um sexo natural” é produzido e estabelecido como “pré-discursivo”,
anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age
a cultura (BUTLER, 2015:27, grifo da autora).

Com isso Butler se alinhará a Foucault para apresentar a “produção


histórica” da sexualidade, revelando o caráter compulsório da
heterossexualidade sobre nossas vidas. Os movimentos libertários e
emancipatórios da sexualidade, neste sentido, não contribuiriam em nada para
uma derrocada do sistema de controle das sexualidades, já que reduzem toda a
problemática a uma simples lei repressora, como se houvesse uma condição
livre e saudável anterior ou posterior às interdições da lei.

Em oposição a essa falsa construção do “sexo” como unívoco e causal,


Foucault engaja-se num discurso inverso, que trata o “sexo” como
efeito e não como origem. Em lugar do “sexo” como causa e
significação originais e contínuas dos prazeres corporais, ele propõe a
“sexualidade” como um sistema histórico aberto e complexo de
discurso e poder, o qual produz a denominação imprópria de “sexo”
como parte da estratégia para ocultar e portanto perpetuar as relações
de poder (Ib.:166).

A grande contribuição de Butler neste livro está em nos apresentar o


intrincado funcionamento da sexualidade como coextensiva ao poder. Se não há
sexualidade natural, e se também a sexualidade não é apenas o investimento
cultural de um determinado discurso sobre um corpo supostamente passivo, a
autora nos convida a considerar a complexa interação corpo-cultura-desejo-lei
para percebermos que que a sexualidade está alocada justamente nesse
interstício.

Para Foucault, ser sexuado é estar submetido a um conjunto de


regulações sociais, é ter a lei que norteia essas regulações situada
como princípio formador do sexo, do gênero, dos prazeres e dos
desejos, e como o princípio hermenêutico de autointerpretação. A

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categoria do sexo é, assim, inevitavelmente reguladora, e toda análise
que a tome acriticamente como um pressuposto amplia e legitima ainda
mais essa estratégia de regulação como regime de
poder/conhecimento (Ib.:168).

Para eliminar qualquer tentativa de mostrar a sexualidade e o gênero


como uma continuidade anatômica, Butler utilizará as análises de Foucault sobre
o caso de uma pessoa hermafrodita do século XIX chamada Herculine, que ora
fora considerada homem, ora mulher, ora homossexual e ora heterossexual,
concluindo que

A anatomia de Herculine não fica fora das categorias do sexo, mas


confunde e redistribui seus elementos constitutivos; na verdade, a livre
interação dos atributos tem o efeito de denunciar o caráter ilusório do
sexo como substrato substantivo permanente ao qual esses vários
atributos devem presumivelmente aderir (Ib.:176).

Vivemos numa complexa estrutura de poder forjada para não comportar


a existência de pessoas não-heterossexuais-binárias. Sua eficácia é tamanha
que não é necessária qualquer atividade direta por parte das instituições, já que
a ira dos civis se encarregará de assassinar os corpos transexuais. A violência
empreendida contra as pessoas trans não reside na passagem de um gênero
para outro, mas antes no perigo de corromper o binarismo homem/mulher
operante. Neste contexto, paradoxalmente, talvez as pessoas heterossexuais
sejam as que mais sofram com a heterossexualidade compulsória, posto que
devem seguir um rígido comportamento de condutas sociais e sexuais. Sem
ironia, é para a transexualidade que a heterossexualidade deverá se voltar caso
queira se livrar do enfadonho e monocromático padrão – marcado sobremaneira
pela função reprodutiva – que limita sua própria experiência sexual.

Terceira proposta – gênero


“Será que precisamos recorrer a um estado mais feliz,
anterior à lei, para podermos afirmar que as relações
de gênero contemporâneas e a produção punitiva das
identidades de gênero são opressivas?”
(Judith Butler)

Semelhante ao tópico anterior, a noção de gênero é outra questão sobre


a qual devemos nos debruçar no início deste milênio. Há também aqui algum

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dispositivo social que ativa o ódio coletivo quando o gênero não é performado
“corretamente”, dentro dos padrões e práticas possíveis estabelecidos para a
figura do homem e da mulher. Mas, afinal, como compreender o gênero? Nos
últimos anos temos visto calorosas discussões sobre as “identidades de gênero”,
no entanto, continuando ainda com Judith Butler para este tópico, veremos que
tal ideia contém resquícios daquilo que o conceito supõe estar superando.

Concebida originalmente para questionar a formulação de que a


biologia é o destino, a distinção entre sexo e gênero atende à tese de
que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o
gênero é culturalmente construído: consequentemente, não é nem o
resultado causal do sexo nem tampouco tão aparentemente fixo quanto
o sexo. Assim, a unidade do sujeito já é potencialmente contestada
pela distinção que abre espaço ao gênero como interpretação múltipla
do sexo (BUTLER, 2015:26).

Por mais que a ideia de gênero enquanto “culturalmente construído”


supere o discurso de que é o sexo biológico quem determina o comportamento
e o gênero da pessoa, ela ainda não é suficiente para esgotar o assunto. Se o
gênero é uma construção cultural,

Como e onde ocorre a construção do gênero? Que juízo podemos fazer


de uma construção que não pode presumir um construtor humano
anterior a ela mesma? Em algumas explicações, a ideia de que o
gênero é construído sugere certo determinismo de significados do
gênero, inscritos em corpos anatomicamente diferenciados, sendo
esses corpos compreendidos como recipientes passivos de uma lei
cultural inexorável (Ib.:28).

Para a autora, esta perspectiva da construção remeteria ainda a uma


concepção estruturalista do sujeito, na qual a separação natureza versus cultura
seria mantida e ratificada, como se do determinismo biológico saltássemos para
um determinismo cultural. Da mesma maneira, Butler questionará já nos anos
1990 o termo “identidade de gênero”, uma vez que seria impossível denominar
bilhões de pessoas sob uma mesma identidade fixa e estável.

Seria errado supor que a discussão sobre a “identidade” deva ser


anterior à discussão sobre a identidade de gênero, pela simples razão
de que as “pessoas” só se tornam inteligíveis ao adquirir seu gênero
em conformidade com padrões reconhecíveis de inteligibilidade do
gênero (Ib.:42).

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Poderíamos ficar tentados a chamar este processo, então, de “expressões
de gênero”; contudo, rapidamente, a autora nos alerta também sobre sua
insuficiência. Conceber uma “expressão de gênero” seria deslocar a
problemática para um “núcleo psicológico” do qual emanaria expressões de uma
interioridade invisível, impedindo uma análise da constituição política e
discursiva do sujeito. Após longas críticas, Butler nos entrega: o gênero é a
repetição estilizada de atos.

O efeito do gênero se produz pela estilização do corpo e deve ser


entendido, consequentemente, como a forma corriqueira pela qual os
gestos, movimentos e estilos corporais de vários tipos constituem a
ilusão de um eu permanentemente marcado pelo gênero. Essa
formulação tira a concepção do gênero do solo de um modelo
substancial da identidade, deslocando-a para um outro que requer
concebê-lo como uma temporalidade social constituída.
Significativamente, se o gênero é instituído mediante atos
internamente descontínuos, então a aparência de substância é
precisamente isso, uma identidade construída, uma realização
performativa em que a plateia social mundana, incluindo os próprios
atores, passa a acreditar, exercendo-a sob a forma de uma crença
(Ib.:243).

Com isso alcançamos o termo “performatividade de gênero” cunhado pela


autora para designar, sem incorrer em retrocessos despercebidos, a condição
da geração e manutenção do gênero na nossa sociedade.

A distinção entre expressão e performatividade é crucial. Se os


atributos e atos do gênero, as várias maneiras como o corpo mostra ou
produz sua significação cultural, são performativos, então não há
identidade preexistente pela qual um ato ou atributo possa ser medido;
não haveria atos de gênero verdadeiros ou falsos, reais ou distorcidos,
e a postulação de uma identidade de gênero verdadeira se revelaria
uma ficção reguladora. O fato de a realidade do gênero ser criada
mediante performances sociais contínuas significa que as próprias
noções de sexo essencial e de masculinidade ou feminilidade
verdadeiras ou permanentes também são constituídas, como parte da
estratégia que oculta o caráter performativo do gênero e as
possibilidades performativas de proliferação das configurações de
gênero fora das estruturas restritivas da dominação masculinista e da
heterossexualidade compulsória (Ib.:244).

Isto é, compreender o gênero enquanto performativo significa conceber


nossas “identidades de gênero” – sejam elas quais forem – como resultadas de
uma repetição e de uma valoração arbitrária, que no caso da atualidade
remontam às figuras estanques do homem e da mulher. O caráter performativo
do gênero sugere a ausência de um estatuto ontológico para o mesmo,

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desarticulando as justificativas da heterossexualidade compulsória que um dia
patologizou homossexuais e transexuais, mas que ainda hoje continua a
assassinar centenas de pessoas anualmente.
As performances artísticas de drags (queens ou kings) brincam
justamente com a “distinção entre a anatomia do performista e o gênero que está
sendo performado” (Ib.:237). Também a figura da/do travesti tem muito a nos
ensinar quanto às possibilidades do gênero, uma vez que se constitui na própria
derrocada da ideia de uma original ou verdadeira identidade de gênero. Deste
modo, não só as pessoas trans, mas todas estão num constante e periclitante
equilíbrio entre “três dimensões contingentes da corporeidade significante: sexo
anatômico, identidade de gênero e performance de gênero” (Ib.:237).

Quarta proposta – Desejo


“A metafísica da falta, que certas teologias e certas
formas de psicanálise compartilham, gostaria de nos
convencer de que falta alguma coisa a todos nós.”
(Beatriz Preciado)

O desejo deve ser outro elemento a ser destacado na agenda deste


milênio. Não no sentido de que desejamos pouco, de que estamos apáticos, de
que deveríamos ambicionar novos patamares. Na verdade, sempre desejamos
demasiadamente (esta é a condição do desejo), porém o problema que devemos
enfrentar é a permissão de sua movimentação. Por onde nossos desejos estão
autorizados a circular?
Há uma crença comum de que o desejo é a falta de algo, uma carência,
um buraco a ser preenchido – daí derivando formulações como “a metade da
laranja”, “a tampa da panela”, entre outras metáforas que suscitam uma
incompletude do ser que deseja. Acontece que o desejo não é o anseio de
tampar um buraco, mas antes a necessidade de criar novos buracos.
Um mito que deve ser combatido é de que o desejo nos impele a uma
busca da outra metade faltante, e que esta deveria possuir uma anatomia
necessariamente oposta para completar aquilo que falta àquele que deseja. Não
à toa, a metáfora da porca e do parafuso enquanto a única possibilidade de um
casal legítimo expressa diretamente esta concepção de desejo enquanto
encaixe, decorrendo daí a legitimação dos casais heterossexuais e, por

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conseguinte, a discriminação de uniões homo e transgêneras (porca-com-porca,
parafuso-com-parafuso, qual-seria-a-metáfora-para-a-união-de-pessoas-
trans?).
Contra tal compreensão do desejo enquanto falta e outras normatizações
da sexualidade, Beatriz Preciado5 publicou um livro no início deste milênio (2002)
chamado Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual,
traduzido e publicado no Brasil em 2014, no qual apresenta sua proposta de uma
nova sociedade, intitulada contrassexual, na qual haveria uma completa
subversão das práticas sexuais tradicionais.

A forma mais potente de controle da sexualidade não é, logo, a


proibição de determinadas práticas, mas a produção de diferentes
desejos e prazeres que parecem derivar de predisposições naturais
(homem/mulher, heterossexual/homossexual etc.), e que serão
finalmente reificadas e objetivadas como “identidades sexuais”. As
técnicas disciplinadoras da sexualidade não são um mecanismo
repressivo, e sim estruturas reprodutoras, assim como técnicas de
desejo e de saber que geram as diferentes posições de sujeito de
saber-prazer. (PRECIADO, 2014:156)

O controle das expressões sexuais e identitárias estaria, assim, não numa


repressão frontal controladora, mas na produção e reconhecimento estrito de
determinadas práticas normatizadas. Toda manifestação de um desejo que não
se enquadre no cardápio heterossexual de parcas opções é tratado como
perverso, anormal, doentio, e que, por isso, deve ser rapidamente retirado de
circulação. O controle das “identidades sexuais” está, assim, numa naturalização
daquilo que é permitido desejar. Ao que parece, desejamos apenas aquilo que
nos foi permitido desejar (apenas o que já está catalogado), e aí está o grilhão
que este milênio deve arrebentar.
O desejo não tem forma. O desejo não sobrevém no momento de uma
carência. O desejo não está localizado em determinada parte de nossa
anatomia. A questão é: não nos falta nada. O desejo é produção, é criação, e
aqui está uma virada conceitual na psicanálise proposta por Deleuze e Guattari

5
Preferimos manter o mesmo nome utilizado em sua publicação brasileira. Contudo, note-se que,
recentemente, o autor acrescentou Paul ao início do seu nome, apresentando-se atualmente como Paul
Beatriz Preciado. Ao final da obra aqui utilizada, o autor nos provoca: “Se sou homem ou mulher? Esta
pergunta reflete uma obsessão ansiosa do ocidente. Qual? A de querer reduzir a verdade do sexo a um
binômio. Eu dedico minha vida a dinamitar esse binômio. Afirmo a multiplicidade infinita do sexo!”
(PRECIADO, 2014:223).

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que Preciado se utiliza para superar qualquer noção utilitária, econômica e
normativa do desejar. O desejo é aquela força que vem para multiplicar os
supostos vetores ortogonais da conjugalidade: hétero ou homossexualidade. A
transgeneridade é, neste sentido, uma radiação multidimensional do desejo. Ou,
se quisermos, a transgeneridade é a própria imanência do desejo vivida na sua
multivocidade.

Quinta proposta – Prazer


“É preciso dinamitar o órgão sexual, aquele que se fez
passar pela origem do desejo, por matéria-prima do
sexo, aquele que se apresentou como centro
privilegiado, no qual se toma o prazer ao mesmo
tempo que se dá, e como reservatório de reprodução
da espécie.”
(Paul Beatriz Preciado)

Um penúltimo conceito que os corpos do atual milênio devem se


empenhar em desfazer é o de que o prazer sexual tem um local anatômico
específico. Os genitais não são a origem nem o destino do prazer. A acanhada
e repetitiva manipulação dos genitais para produção/obtenção do prazer parece
uma limitada estratégia para impedir a circulação dos desejos por outras partes
dos corpos que, facilmente, desencadeariam inéditas formas de existência e
convivência.

A contrassexualidade afirma que o desejo, a excitação sexual e o


orgasmo não são nada além de produtos que dizem respeito a certa
tecnologia sexual que identifica os órgãos reprodutivos como órgãos
sexuais, em detrimento de uma sexualização do corpo em sua
totalidade (PRECIADO, 2014:23).

A identificação do pênis e da vagina como centros exclusivos do prazer


sexual contribuem para uma naturalização do discurso da heterossexualidade
compulsória ao fazer coincidi-los com os aparelhos reprodutores, uma vez que,
enquanto dispositivo social de produção da feminilidade e da masculinidade, o
sistema heterossexual “recorta órgãos e gera zonas de alta intensidade sensitiva
e motriz (visual, tátil, olfativa...) que depois identifica como centros naturais e
anatômicos da diferença sexual” (Ib.:25). Mas as já popularizadas técnicas
contraceptivas (desde a camisinha, passando pela pílula anticoncepcional e a

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“pílula do dia seguinte”, ou ainda a vasectomia e a laqueadura) mostram que
nossas práticas sexuais não visam à reprodução, mas tão somente à
produção/obtenção do prazer.
Apesar da obviedade disso que está escrito na estrofe anterior, vale dizê-
lo porque é justamente aí que reside a força e a fraqueza dos discursos que
condenam práticas transgêneras e homossexuais. Continuando ainda com o
livro citado no tópico anterior, Preciado elenca diversas formas de práticas
sexuais que nulificam o discurso genitalizado do prazer por meio de sua
“contrassexualidade”.

O nome contrassexualidade provém indiretamente de Michel Foucault,


para quem a forma mais eficaz de resistência à produção disciplinar da
sexualidade em nossas sociedades liberais não é a luta contra a
proibição (como aquela proposta pelos movimentos de liberação
sexual antirrepresivos dos anos setenta), e sim a contraprodutividade,
isto é, a produção de formas de prazer-saber alternativas à sexualidade
moderna. As práticas contrassexuais (...) devem ser compreendidas
como tecnologias de resistência, dito de outra maneira, como formas
de contradisciplina sexual (Ib.:22).

Como seria masturbar um braço? É possível fazer uma cabeça gozar?


Essas e outras formas são sugeridas ao longo do livro como práticas sexuais
que não se inscrevem segundo uma definição de corpo, sexualidade e prazer da
modernidade. Se as relações sexuais entre homossexuais já suscitam revolta
por não serem “naturais”,6 a relação sexual entre pessoas trans (operadas ou
não) é a convulsão máxima dessa concepção do prazer genitalizado e, por isso
mesmo, uma prática genuinamente contrassexual. Radicalizando ainda mais
suas proposições, Preciado se debruça sobre o dildo7 para mostrar que, quando
utilizado, o prazer sexual sequer origina-se no corpo próprio.

Ao reconfigurar os limites erógenos do corpo trepador/trepado, o dildo


coloca em questão a ideia de que os limites da carne coincidem com
os limites do corpo. Perturba, desse modo, a distinção entre sujeito
sensível e objeto inanimado. Uma vez que pode se separar, resiste à

6
A ausência da penetração genital entre lésbicas, por exemplo, faz com que muitas pessoas não concebam
suas práticas sexuais enquanto sexo em si.
7
“O que é um dildo: um objeto, um órgão, um fetiche...? Devemos considerar o dildo como uma paródia
irônica ou como uma imitação grosseira do pênis? Quando faz parte de certas práticas lésbicas mulher-
macho-mulher-fêmea [butch and femme], deve-se interpretar o dildo como uma reminiscência da ordem
patriarcal? Por acaso o dildo é o sintoma de uma construção falocêntrica do sexo? O que dizer então dos
dildos que não são ‘fálicos’ (os que tem a forma de porco, de borboleta ou de sereia, ou que simplesmente
não são figurativos)?” (Ib.:71).

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força com que o corpo se apropria do prazer para si, como se este
fosse algo que viesse do próprio corpo. O prazer que busca o dildo
pertence ao corpo só na medida em que é reapropriação, só porque
este está “preso”. O dildo coloca a questão da morte, da simulação e
da falsidade no sexo. Inversamente, obriga a interrogar-se sobre a
vida, a verdade e a subjetividade no sexo. O dildo que goza sabe que
o prazer (todo prazer sexual) nunca é dado ou tomado, que nunca está
ali, que nunca é real, que sempre é incorporação e reapropriação.
(PRECIADO, 2014, p. 87)

Talvez o chamado “sexo virtual” (praticado diariamente por pessoas de


todas as identidades sexuais) já se configure também como uma prática
contrassexual, justamente por prescindir de uma corporeidade física/orgânica
para produção e obtenção do prazer, manipulando anatomias digitalizadas que
aí incluem toda forma possível de corpo: vibradores, membros, imagens,
conexões, palavras, fluxos digitais. No “sexo virtual”, superamos as distinções
de sexo e gênero, ultrapassamos os discursos vitalistas-naturalistas do corpo,
deslocamos o prazer do nosso centro corporal/genital para as redes digitais.
Nas práticas contrassexuais de produção/obtenção do prazer sexual, a
ejaculação tem sua função reprodutora anulada, tendo neste caso a mesma
função que o suor que escorre pelas costas, anulando todo o sentido do roteiro
pornográfico (boca-mamilos-genital). Não há função estanque, qualquer parte do
corpo pode figurar como centro produtor de prazer, assim como partes
(inorgânicas) que não pertencem aos corpos envolvidos. “Eu ainda não vi nada,
mas sei que o prazer não vem do corpo, seja masculino ou feminino, e sim da
encarnação prostética, da interface, ali onde o natural e o artificial se tocam”
(Ib.:207).

Sexta proposta – Sexo


“O sexo é uma tecnologia de dominação
heterossocial que reduz o corpo a zonas erógenas em
função de uma distribuição assimétrica de poder entre
os gêneros (feminino/masculino), fazendo coincidir
certos afectos com determinados órgãos, certas
sensações com determinadas reações anatômicas.”
(Paul Beatriz Preciado)

E aqui chegamos à última proposta para os corpos deste milênio: sexo.


Esta palavra que, em diversas línguas, designa ao mesmo tempo uma parte de

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nossa anatomia (nossos genitais) e também nossa prática sexual (com suas
sensações, prazeres e costumes), está reduzida a um único significante, como
se “fazer sexo” fosse uma repetição idêntica em diferentes culturas, épocas e
corpos. Existem tantas formas de praticar sexo quantas são as
combinações possíveis entre os corpos viventes. Mais que apenas os corpos,
também os objetos, os sons, as redes digitais, as imagens e a eletricidade podem
conosco compor uma prática sexual.
Todo este texto foi um argumento em favor da (1) desarticulação da noção
do corpo enquanto um núcleo de funcionamento natural, (2) do reconhecimento
da sexualidade enquanto coextensiva ao poder, (3) do gênero enquanto uma
performance estilizada, (4) do desejo enquanto produção multidimensional e (5)
do prazer enquanto sensação descentrada dos genitais para, enfim, podermos
intuir práticas sexuais de um tipo ciborgue-pós-gênero (Donna Haraway), ou
também uma prática sexual fora da economia da heterossexualidade
compulsória (Judith Butler) ou, por fim, uma prática contrassexual pós-genital
(Paul Beatriz Preciado).
Assim como Ítalo Calvino, que nunca escreveu sua última proposta para
a literatura do novo milênio, nossa última proposta para os corpos deste milênio
também ficará por ser escrita (embora por razões menos drásticas) porque seria
impossível propor uma prática sexual para outrem sem limitar-lhe a existência (a
história já nos fez isso). Neste caso, mais vale largarmos este texto para
colocarmos em prática aquilo que foi discutido nas linhas anteriores, ou ainda,
para quem se sentir impelido, escrever aqui suas próprias experiências e
ambições sexuais.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUTLER, Judith. Trad. Renato Aguiar. Problemas de gênero: feminismo e


subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2015;
CALVINO, Ítalo. Trad. Ivo Barroso. Seis propostas para o próximo milênio: lições
americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 2015;
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Trad. Luiz B. L. Orlandi. O anti-Édipo:
capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 2010;
HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-
socialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz (Org.). Antropologia do
ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009;
PRECIADO, Beatriz. Manifesto contrassexual: práticas subversivas de
identidade sexual. São Paulo: n-1 Edições, 2014.

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