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“si-mesmo”⇤
Miguel Franquet dos Santos Silva
Universidade Católica Portuguesa – Faculdade de Ciências Humanas
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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 3
“Nietzsche não diz dogmaticamente – é esse ser que fala, que faz, que narra e que
embora aconteça também que o faça – atesta os seus actos a si, de forma a poderem
que o sujeito é multiplicidade; ele tenta ser-lhe imputadas as responsabilidades pelos
essa ideia; joga, por assim dizer, com a seus actos?
idéia de uma multiplicidade de sujeitos Esta é a primeira das três grandes in-
lutando entre eles, como tantas “célu- tenções filosóficas que presidem à elabo-
las” em rebelião contra a instância diri- ração de SA.
gente”.2
“A primeira intenção é marcar o pri-
Esta dúvida radical de Nietzsche chega mado da mediação reflexiva sobre a
mesmo a inviabilizar o projecto de uma iden- posição imediata do sujeito tal como ela
tidade, no sentido de uma unidade irredutível se exprime na primeira pessoa do singu-
e singular. Com efeito, se o sujeito é multi- lar: ‘eu penso’, ‘eu sou”’.3
plicidade, se é constituído por uma plurali-
dade de instâncias que não se podem ates- A segunda grande intenção filosófica, im-
tar a uma instância única, então não há lugar plicitamente inscrita no título da obra, é pro-
para qualquer identidade/unidade. ceder à distinção entre ‘identidade-idem’, e
De que forma então é que uma abordagem ‘identidade-ipse’.
‘hermenêutica do si’ pode situar-se entre A identidade é muitas vezes reduzida à
uma pretensão cartesiana de acesso imediato ‘identidade-idem’, à ‘mesmidade’. Este
ao sujeito e de fundação última, por um lado, aspecto da identidade representa o núcleo
e a suspeita de impossibilidade de unificação imutável, estático e constante de permanên-
de uma identidade de cariz nietzscheano, por cia no tempo. Ricoeur vê no ‘carácter’ o
outro? exemplo paradigmático e emblemático deste
aspecto da identidade.
1.1.1 As três grandes intenções filosófi- A mesmidade refere-se a esse núcleo sed-
cas de SA imentado da nossa identidade, que pode ser
identificado e reidentificado como sendo o
A ‘hermenêutica do si’ contrapõe à intuição
mesmo ontem, hoje e amanhã.
imediata do sujeito, a interpretação do si,
Contudo, Ricoeur concebe outra forma de
mediada pela análise e pela reflexão da acção
relacionamento de identidade com o tempo,
que o agente desencadeia. Ao falar, ao fazer,
a ‘identidade-ipse’, ou ‘ipseidade’. A ‘ip-
ao narrar e ao imputar-se ética e moralmente,
seidade’ é a forma dinâmica de manutenção
o sujeito reflecte o seu ser, manifesta-o. São
de si ao longo do tempo. Refere-se ao ‘si-
estas múltiplas manifestações que podem ser
memo’ que se mantém na diversidade das
interpretadas.
suas manifestações e das suas acções.
Através de várias mediações o sujeito
É a singularidade da relação que o si man-
procura a resposta à pergunta ‘quem?’ Quem
tém com a pluralidade das suas manifes-
2
P. RICOEUR, O Si-mesmo como um outro, (Soi- tações, e que comporta uma dimensão ética,
même comme un autre), trad. brasileira, sa., Ed. Pa-
3
pirus, S. Paulo 1991, 27. Ibidem, 11.
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que torna o ‘si-mesmo’ único, irredutível e alteridade que o constitui. ‘O si’ não é trans-
diferente de todos os outros. parente para si próprio e a análise do desdo-
bramento da alteridade mostrará como existe
“A equivocidade do termo ‘idêntico’ es- uma certa passividade na acção humana.
tará no centro de nossas reflexões sobre a Não é a liberdade humana que é posta em
identidade pessoal e a identidade narra- causa, mas uma certa ideia de liberdade. O
tiva, em contacto com um carácter maior homem não é a origem de toda a sua acção.
do si, a saber, sua temporalidade”.4 Existem disposições e forças que se mistu-
ram com as razões que levam o homem a agir
É a constituição temporal e histórica da e que não lhe são completamente “visíveis”.
ipseidade que impede que o sujeito se in- Contudo, segundo Ricoeur, a atestação
tua imediatamente. Nesta medida, as duas assegura, num modo diferente da certeza
primeiras intenções filosóficas que presi- ou da verificação científica, que é possível
dem à elaboração de SA são profundamente devolver à unidade\identidade as acções
solidárias. É através de uma mediação pelas em que o agente se manifesta e expressa.
expressões simbólicas de uma cultura que Constituindo-se como uma “espécie de
o sujeito procura compreender-se e desen- crença”, a atestação assegura a possibilidade
volver uma identidade que seja cada vez de perguntar por um ‘quem?’ irredutível a
mais sua, expressão de ‘si-mesmo’. um ‘o quê?’, impessoal e abstracto.
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physiqe à la Morale”10 , o falar é a primeira Depois do desvio pela análise das intenções,
manifestação do agir. dos motivos, das causas e dos acasos iner-
entes à acção, a resposta à pergunta ‘quem?’
“Falar é o primeiro análogo, na me- fica enriquecida: a pessoa identificada por
dida em que é no meio simbólico, por- uma referência identificante é também al-
tanto verbal, que se determinam todas as guém que age, com esta ou aquela intenção,
outras modalidades do agir: a filosofia que deseja isto ou aquilo; alguém que pode
da acção é, na sua fase analítica, uma agir.
semântica das frases de acção e na sua No final deste conjunto de estudos é anal-
fase reflexiva, uma investigação sobre isada a adscrição da acção ao seu agente, in-
as formas de o agente se dizer e se vestigação que suscita algumas aporias.
reconhecer verbalmente autor dos seus O conjunto de estudos relativos à acção
próprios actos”11 . está intimamente ligado aos estudos an-
teriores, pelo facto de ser nos enunciados
O plano da Acção e proposições que se descreve a acção. E
porque é no acto de discurso que o locutor
O terceiro e o quarto estudos dedicam-se à se torna agente e se designa como o autor de
análise e à reflexão sobre a acção, no sen- seu acto.
tido mais restrito que o termo assumiu na
filosofia analítica de língua inglesa. No ter- O plano da narrativa
ceiro estudo o autor analisa a acção inde-
pendentemente do seu agente. Este estudo O quinto e o sexto estudo reportam-se à
revela a possibilidade de “ler” a acção como identidade e à questão do tempo. Quem é o
um texto. Neste sentido, estabelecer uma re- sujeito que narra, que conta a sua história,
lação entre a acção e um conjunto de motivos que se constitui como narrador e actor de
é como interpretar um texto relacionando- uma intriga capaz de adscrever a si as suas
o com o seu contexto. Ao longo deste es- acções?
tudo analisam-se os motivos e as causas da É neste conjunto de estudos que a nar-
acção, prevalecendo as questões ‘o quê?’ e ração fará a mediação entre descrever e pre-
‘porquê?’ sobre a questão ‘quem?’. screver predicados ético-morais ao agente e
No quarto estudo, o autor procura voltar a à sua acção. A narrativa constitui-se como
colocar a ênfase sobre a pergunta ‘quem?’. o “laboratório” das experiências éticas para
10
o homem, expondo-lhe possíveis modos de
P. RICOEUR, Réflexion faite – Autobiographie
intellectuelle, Éditions Esprit, Paris 1995.
ser-no-mundo que lhe revelam um si maior e
11
“Parler est le premier analogon, dans la mesure mais vasto do que um eu.
ou c’est en milieu symbolique, donc verbal, que se Por esta razão, os textos e as grandes obras
déterminent toutes les autres modalités de l’agir: la de uma cultura assumem grande importância
philosophie de l’action est, dans sa phase analytique, na mediação e no acesso indirecto ao si.
une sémantique des phrases d’action, et, dans sa phase
réflexive, une investigation des manières de se dire Segundo Ricoeur, a narrativa, ao imitar a
l’agent, de se reconnaître verbalement auteur de ses acção humana, tem o poder de pré-figurar,
propres actes.” (Ibidem, 95, tradução livre do autor.) de configurar e de transfigurar o mundo do
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homem, contribuindo decisivamente para a menêutica do si’ pode contribuir para pro-
constituição do si. mover a comunicação humana.
Em primeiro lugar é importante tentar es-
O plano Ético-Moral clarecer o que entendemos por comunicação.
Por comunicação pretendemos referir o
O sétimo, o oitavo e o nono estudos cen- processo através do qual os seres partilham
tram a sua investigação na dimensão ética e e põem em comum. Essa partilha não pode
moral da constituição da ipseidade. ser entendida como uma relação unilateral,
O agente está ligado à sua acção e é re- mas pressupõe receptividade e abertura ao
sponsável pelas consequências futuras que outro. Consideramos a comunicação uma
dela derivem. Reconhece-se responsável forma de relação entre os seres, entre ‘si-
pelas suas acções passadas e, sobretudo, as- mesmos’; uma forma privilegiada de relação
sume no presente a responsabilidade de ser entre ipseidade e alteridade.
si próprio aquele que agiu no passado e que Qual a importância que a comunicação,
agirá no futuro. considerada como uma acção, pode assumir
A dimensão temporal da ipseidade, forma na procura indirecta do si? O que acontece
dinâmica de permanência no tempo de uma à comunicação quando adquirimos a con-
identidade viva, reflexiva, adquire também sciência de que, como sujeitos, não somos
uma dimensão ética e moral; implica respon- um dado imediato, conquistado por intuição,
sabilidade. mas que nos começamos a compreender a
nós próprios através de muitas mediações?
Que importância pode assumir a comuni-
1.2 A problemática da cação para a construção da identidade-ipse,
comunicação para a ipseidade? O que acontece à comuni-
cação quando entendemos que a nossa iden-
A obra de Paul Ricoeur servirá de guia, de tidade não é estática, imutável, mas antes
luz orientadora, a partir da qual colocare- uma relação dinâmica com o tempo? Que
mos algumas questões relativas à comuni- importância assume a comunicação entre a
cação. Essas questões poderão revelar pon- ipseidade e a alteridade, a alteridade do outro
tos de contacto com alguns autores estuda- si, a alteridade da minha voz interna, da
dos ao longo da nossa licenciatura, questões minha alma, e a alteridade do meu corpo?
essas que nos esforçaremos por identificar e Ao limite, pretendemos questionar a co-
por explorar. municação no plano ontológico, como uma
A metodologia por nós adoptada consiste forma de ser, de agir. Como a forma privi-
em apresentar os estudos de SA relativos aos legiada de relação do homem com o mundo,
diferentes planos do agir e, com base nesses e do mundo com o homem. A comunicação
estudos, procurar o lugar e a importância adquire assim uma importância fundamental.
que, em nosso entender, a comunicação pode Estaremos a considerar a comunicação
assumir para a constituição da ipseidade. E como algo mais profundo do que a sim-
num sentido inverso, tentar compreender de ples troca de informações, no sentido da
que forma a consciência da constituição ‘her- comunicação funcional referida por Do-
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‘eu afirmo que’ é o mesmo que dizer ‘eu bém um acontecimento porque ‘dá vida’ ao
declaro-te que’, ou seja, a enunciação equiv- código linguístico: é o momento de realiza-
ale à interlocução. ção da língua. Somente o uso da língua per-
A interlocução corresponde a uma troca de mite a significação.
intencionalidades: a intenção do locutor de Mas não é o enunciado que significa ou
dizer algo, ou de fazer algo dizendo, e a in- refere, mas sim os locutores. São estes
tenção do alocutor de reconhecer o propósito que agem e que fazem dizendo, tal como
do locutor. Este reflecte a sua intenção no nos mostra a Teoria dos Actos de Discurso.
seu dizer, aquele implica-se na situação ao Nesta medida, a tese segundo a qual o ‘facto
intentar reconhecer a intenção do primeiro. da enunciação’ introduz um grau de opaci-
O locutor e o alocutor não são considera- dade no sentido do seu enunciado tem de ser
dos o mesmo. Cada um deles é, implica-se compreendida à luz da implicação dos inter-
de maneira distinta na interlocução. As suas locutores nessa mesma enunciação.
intenções não são identificadas uma com a Não esqueçamos que o fio condutor deste
outra. É reconhecida a distância que os sep- estudo é a pesquisa sobre o sujeito que pode
ara. falar e que pode designar-se a si mesmo.
A Teoria dos Actos de Discurso, tal como A opacidade que pode resultar do ‘facto da
a apresentámos, mostra de que forma é enunciação’, não pode ocultar eternamente a
que o dizer se manifesta no dito; o facto opacidade que radica na reflexão na enunci-
de dizer interfere no sentido daquilo que ação do sujeito que diz.
é dito. Searle procedeu à identificação de
É com a ajuda dos operadores de identifi-
uma tipologia de actos subordinados e hier-
cação, especialmente os pronomes pessoais,
arquizados que, aparentemente, não implica
deícticos e verbos que o locutor se liga sim-
o sujeito da enunciação. E Récanati iden-
bolicamente, verbalmente, à sua enunciação.
tificou um factor de opacidade no discurso
Numa situação de interlocução, o locu-
proveniente do facto da sua enunciação.
tor, expresso pelo pronome pessoal ‘eu’, as-
Mas se é o locutor que ao agir cria senti-
sume uma importância preponderante. Mas
dos e faz referência e não o enunciado, será
o vocábulo ‘eu’ é ele próprio ambíguo:
a opacidade resultante do dizer no dito uni-
camente explicada pelo carácter de acontec- Do ponto de vista paradigmático ele é um
imento da enunciação? Que relação se esta- pronome pessoal, que designa a cada vez
belece entre esse carácter de acontecimento aquele que o emprega ao falar;
dos actos de enunciação e o seu sujeito? Em Do ponto de vista sintagmático ele é o
que medida a opacidade resultante do facto ponto de ‘ancoragem’ de toda a enunciação,
da enunciação implica o seu locutor? É o lo- o sustentáculo de todos os outros operadores
cutor fonte da opacidade? de identificação. Designa a pessoa, centro de
O discurso, diz Ricoeur, actualiza-se perspectiva sobre o mundo, única e limite do
como acontecimento e compreende-se como seu mundo.
significação. É um acontecimento na medida Do ponto de vista lógico, ‘eu estou con-
em que acontece num tempo e num espaço tente’ e ‘a pessoa que se designa a ela própria
determinado, único e irrepetível. Mas é tam- está contente’ não coincidem. Não há equiv-
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Segundo Hume o conceito de causa pode Em muitos casos, as respostas a estas per-
ser definido independentemente do conceito guntas não enunciam um motivo racional,
de efeito, não havendo entre eles uma ligação fruto de uma deliberação, e em vez disso rev-
de implicação lógica. O exemplo referido em elam uma certa passividade por parte do su-
SA relaciona fósforo e incêndio, que podem jeito da acção. No caso das perguntas acima
ser definidos isoladamente, não se impli- colocadas, o agente pode responder que foi
cando necessariamente um ao outro. Neste uma pulsão ou uma disposição que o impeliu
sentido, uma explicação causal é a que es- a agir, ou pode mesmo dizer que é da sua
tabelece correspondências entre fenómenos ‘natureza’ agir assim em determinadas situ-
independentes uns dos outros. ações, que faz parte do seu carácter.
Inversamente, motivo e acção não podem Esta passividade inscreve-se numa
ser definidos um sem o outro, existindo en- gramática da afecção, ou da paixão. Pelo
tre ambos uma relação de implicação mútua, facto destes aspectos da identidade do
uma conexão lógica que impede que se iden- sujeito contribuírem para o afectar enquanto
tifique motivo com causa. agente podemos falar de auto-afecção.
Os motivos assemelham-se às razões de Neste sentido, o desejo introduz no dis-
agir. Pergunta-se pelos motivos de uma curso da acção um tipo de explicação que se
acção para inquirir sobre a ordem de razões afasta da ordem das razões e que exige uma
que explica, a posteriori, determinada acção. reavaliação do conceito humeano de causa
No entanto, considerar que todos os motivos (pelo facto de o desejo não constituir um an-
são racionais seria ignorar a importância que tecedente sem ligação lógica com a acção
o desejo assume na acção. consequente). Num certo sentido, é o agente
Na realidade, o desejo intervém na acção que se constitui como a causa da acção.
quer como dimensão racional, como sentido, Convém referir que o desejo não concorre
quer como força que constrange e afecta o para a explicação da acção em virtude de
sujeito. se constituir como uma dimensão interior
As análises fenomenológicas reconhecem passível de observação no decurso da acção.
essa dupla constituição do desejo. O desejo é sempre o desejo de qualquer
Por um lado, o desejo identifica-se com coisa, o desejo de agir ou de atingir alguma
uma certa noção de sentido. É a dimensão coisa agindo. Com efeito, o desejo inscreve-
racional que intervém na deliberação como se na explicação da acção, em virtude de es-
cálculo, como ponderação. Por outro lado, o tar logicamente implicado nesta.
desejo caracteriza-se por uma ideia de força Esta descrição fenomenológica do desejo
que afecta o sujeito e o impele a agir. propõe a superação da dicotomia entre mo-
Na linguagem do quotidiano é com fre- tivo e causa, pelo facto de introduzir na ex-
quência que se pergunta: plicação da acção uma dimensão ‘causal-
ista’.
“O que é que te impeliu a fazer isso?”; Mas também no plano ontológico a dico-
tomia entre acção e acontecimento e entre
“O que explica que te tenhas comportado motivo e causa é criticada.
dessa maneira?” Se corpo e pessoa são conceitos ir-
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plicação das razões que levaram à sua efec- como fim é dizer que as condições que o
tivação. Deste modo, a intenção que carac- produziram são as que se requerem para
teriza a acção e que atribui à sua descrição a produzir o seu fim.”24
um carácter teleológico aparece submetida
a uma explicação causal que a remete para Este tipo de explicação adopta um con-
um conjunto de razões que estão a montante ceito de causa que se afasta do sentido
da acção, o que aparentemente constitui um humeano, pelo facto de ligá-la à acção, uma
paradoxo. vez que classificar uma acção como inten-
Levanta-se a seguinte questão: o carác- cional é decidir por que sistema a acção deve
ter intencional que distingue as acções dos ser explicada e excluir dessa explicação to-
restantes acontecimentos, quando reduzida dos os outros sistemas.
às ‘razões de’, esconjura a dimensão não
racional do desejo, identificada com a força e 3.1.5 Agente e Acção
com a ideia de passividade inerente à acção,
que aproxima a motivação da causalidade. Ao longo da exposição da abordagem
Dito de outro modo, surge a dificuldade semântica, há uma omissão da relação entre
de, por um lado, incluir na descrição tele- acção e agente.
ológica – que explicita as razões da acção - Os conceitos da rede conceptual da acção
a dimensão fenomenológica do desejo (difi- explicitados não exigem que o conceito de
culdade resultante do recurso ao uso adver- agente vá além da sua referência identif-
bial da intenção) e, por outro lado, de deslo- icante, de um ‘alguém’ expresso por um
car o conceito de causa, no sentido humeano, pronome pessoal qualquer.
para um conceito de causa ligado à acção. O uso adverbial da intenção contribui para
(em virtude da descontinuidade e impessoal- essa omissão, contraposta ao seu uso sub-
idade inerente à ontologia do acontecimento stantivado - ‘intenção de’ - que atende ao
impessoal). carácter temporal da intenção e que exige a
Charles Taylor introduz, a este respeito, o atestação do agente à sua acção sob a forma
conceito de explicação teleológica. Este con- de uma declaração de intenções.
ceito permite integrar à descrição da acção A explicação teleológica permite incluir
no plano discursivo, a explicação da acção na descrição da acção o seu carácter inten-
do tipo causal. cional e a sua explicação causal, mas ao ele-
A explicação teleológica consiste em de- vado preço da remissão da ligação da acção
screver um sistema ou uma lei de sistemas, ao seu agente para um segundo plano.
que explique que o facto de um aconteci- Finalmente, a ontologia do acontecimento
mento ter ocorrido é o resultado da intenção impessoal desenvolvida por Davidson não
para a qual ele tende. exige que o agente seja um ‘si-mesmo’, di-
verso de qualquer outro. A sua focaliza-
“...não são as condições antecedentes ção na existência do acontecimento, no seu
que explicam, mas a própria ordem que 24
P. RICOEUR, O Discurso da Acção, (Le Dis-
essas condições produzem. Dizer que um cours de l’Action), trad. port. A. Morão, Ed. 70,
acontecimento sucede porque é visado Lisboa, sd, 58.
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carácter irredutível, torna o agente num mero Mas será a adscrição de uma acção a seu
portador do acontecimento. agente equivalente à atribuição de predica-
Segundo Ricoeur é necessário desenvolver dos físicos e psíquicos às pessoas?
uma outra ontologia, que devolva ao estudo Será a acção um predicado como outro
sobre a acção a referência ao agente, consid- qualquer?
erado um ‘si-mesmo’.
3.2.1 Aristóteles
“Essa outra ontologia seria a de um
ser em projecto ao qual pertenceria No Livro III da Ética a Nicómaco, Aristóte-
de direito a problemática da ipseidade, les refere que a acção é dita depender do seu
como pertence de direito à ontologia do agente, num sentido específico da relação de
acontecimento a problemática da mesmi- dependência.
dade.”25 O Estagirita começa por distinguir as
acções que são feitas ‘apesar de si’ das
acções realizadas de ‘plena vontade’.
3.2 Abordagem Pragmática As acções feitas ‘apesar de si’ são aque-
Ao longo da abordagem semântica, a las cuja origem é exterior ao homem, que
força exercida pelas análises lógicas das não dependem de si. São exemplos deste
proposições, bem como as consequências da tipo de acções as que resultam da coacção
ontologia do acontecimento impessoal, difi- ou da ignorância. O seu princípio está fora
cultaram a pesquisa sobre a relação que se do agente.
estabelece entre o agente e a acção. As acções realizadas de ‘plena vontade’
A abordagem pragmática visa restituir à têm a sua origem no homem, dependem de
pergunta ‘quem?’ o lugar central no estudo si. Resultam de uma escolha preferencial e
da acção. A sua tarefa é estudar a especifici- de um momento pré-deliberativo, no qual o
dade da adscrição da acção ao seu agente, en- agente decide o que agir.
riquecida pelas várias mediações que as in- Neste sentido, o agente (autos) é o princí-
vestigações sobre o par de perguntas ‘o quê?’ pio (arkhé) da sua acção. Este sentido de de-
e ‘porquê?’ proporcionaram. pendência da acção ao seu agente, através da
A adscrição, tal como a definimos ao escolha preferencial, liga a teoria da acção à
longo do plano do dizer, consiste numa teoria ética. Segundo Aristóteles, o agir es-
atribuição de predicados físicos aos corpos e pecificamente humano pode caracterizar-se,
de predicadas psíquicos às pessoas, consid- essencialmente, por ser próprio à virtude, por
erados particulares de base. A pessoa é con- assumir uma dimensão ética.
siderada a ‘mesma coisa’ a quem se atribuem O conceito de princípio, por si só, não é
predicados físicos e psíquicos, predicados suficiente para especificar a ligação da acção
que conservam o mesmo sentido adscritos a ao agente, uma vez que é comum a todas
um si e a um diverso de si. as investigações sobre as coisas primeiras e
25
P: RICOEUR, O Si-mesmo como um outro, não discrimina o plano ético do plano físico.
(Soi-même comme un autre), trad. brasileira sa., Ed. Uma acção pode dizer-se ter o seu princí-
Papirus, S. Paulo, 1991, 107. pio no agente pelo facto de ser ele, ser o seu
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Com efeito, é pelo facto da acção estar em ‘quem?’ por uma referência identificante,
poder do agente que este se constitui como como por exemplo, um nome. A segunda
princípio da acção. mostra-se mais misteriosa e parece infind-
A questão que se levanta é, então, a de ável.
saber qual é a eficácia da explicação causal. Contudo, a série de causas encadeadas
Como se articula a explicação que remete a pressupõe um começo, para ser considerada
acção para o seu agente com a explicação completa. A procura do começo de uma série
que remete a acção para os seus motivos? de causas não é a de um começo absoluto,
Não são os motivos, em última análise, os mas do começo de uma série de explicações
motivos de um agente? relativas a uma cadeia de acções.
De que forma a pesquisa sobre a potência O problema é, então, delimitar o con-
de agir pode ajudar a compreender os funda- junto das acções que compõem determinada
mentos da responsabilidade do agente? prática. Só depois de identificada uma cadeia
O agente tem o poder de iniciar uma acção de acções é possível partir para a pesquisa
e, consequentemente, de produzir mudanças das causas, dos motivos e das intenções
no mundo. dessa prática.
As acções podem distinguir-se entre
Até onde pode estender-se a eficácia do
acções de base e cadeias de acções ou práti-
princípio e, consequentemente, estender a
cas. As acções de base são aquelas que
responsabilidade de um agente?
não requerem a mediação de quaisquer out-
ras para se realizarem. As cadeias de acções, Um dos problemas consiste em delimitar a
ou práticas, resultam de uma conjugação de esfera de acontecimentos pela qual o agente
acções intermédias, que mediam a possibili- é considerado responsável.
dade de produzir uma acção dita mais com- Tal como uma obra se autonomiza do seu
plexa. As práticas resultam de várias acções autor e o discurso do seu acontecimento
que, em muitos casos assumem um carácter através da escrita, os efeitos de uma acção,
estratégico e que exigem a aprendizagem de num certo sentido, também se autonomizam
regras e de códigos socio-culturais. do seu agente. Uma acção realizada, ao
Surge então o problema de saber qual entrar no curso do mundo pode produzir
é a descrição mais adequada à designação efeitos indesejados, ou mesmo perversos.
da cadeia de acções ou práticas, visto es- Em muitas situações é difícil saber quais
tas comportarem muitas acções intermédias. desses efeitos se ligam ao agente, têm em si
Esta questão é resolvida se ao longo da um princípio, dos que se ligam a causas ex-
cadeia de acções se puder identificar um ternas.
começo, uma causa primeira e integradora de Outra dificuldade surge quando se pre-
toda a série. Essa causa primeira pode ser en- tende delimitar a responsabilidade de um
tendida como unidade de sentido da acção. agente quando uma cadeia de práticas é pro-
Mas a investigação sobre as causas de uma duzida por mais do que um sujeito. Ricoeur
acção bifurca na pesquisa sobre o agente e afirma que nestes casos atribuir é distribuir,
na pesquisa sobre os motivos. A primeira processo que se assemelha mais a uma de-
detém-se com a resposta dada à pergunta cisão do que a uma constatação. Também
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neste sentido a adscrição se aproxima da im- e de uma série de coisas que depende da
putação e se afasta da descrição. ordem do mundo”.29
A ligação que se estabelece entre o agente
e a sua deliberação também pode ser alvo 3.3 Comunicação e Acção
de reflexão. Esta reflexão aponta necessari-
amente para uma investigação sobre a liber- O plano da Acção conclui a série de estu-
dade humana. Apesar de ser senhor da sua dos de SA que se desenvolveram sob a alçada
acção, não haverá um conjunto de causas, de da filosofia da linguagem. Tanto os estudos
algum modo exteriores ao agente, que con- que agrupámos no plano do Discurso como
strangem a sua deliberação? os que agrupámos no plano da Acção desen-
Pelo termo ‘co-responsáveis’ (sunaitioi), volveram as suas pesquisas em duas aborda-
Aristóteles conjuga a responsabilidade das gens distintas e complementares: uma abor-
acções que, dependendo de nós, têm um dagem semântica e uma abordagem prag-
princípio na natureza do nosso carácter, no mática. Este desdobramento corresponde à
conjunto das nossas disposições com aque- necessidade epistemológica e ontológica de
las acções que realizamos deliberadamente, inscrever na ‘hermenêutica do si’ um desvio
após escolha preferencial. da reflexão pela análise.
O projecto hermenêutico de Ricoeur as-
“A intenção de Aristóteles é seguramente senta na dialéctica da explicação e da com-
estender a responsabilidade de nossos preensão. Esta dialéctica serve de paradigma
actos às nossas disposições, portanto à à hermenêutica do texto como à hermenêu-
nossa personalidade moral completa, e tica da acção.
também conservá-la nos limites da uma O nosso propósito neste estudo é mostrar
responsabilidade parcial”.28 em que medida os procedimentos implicados
na hermenêutica do texto são aplicáveis ao
Segundo Ricoeur, a pesquisa sobre a estudo sobre a acção, ou seja, compreender a
potência de agir desenvolve-se na articulação acção como um texto.
de uma investigação sobre o agente e uma in- A análise da rede conceptual da acção rev-
vestigação sobre os motivos. ela como é possível, a partir da análise de
enunciados e frases de acção, descobrir os
“O que faria desse discurso do ‘eu motivos que a explicam.
posso’ um discurso diferente, é, em úl- O privilégio dado ao uso adverbial da in-
timo caso, a sua remissão a uma ontolo- tenção tem como principal objectivo inserir
gia do corpo próprio, isto é, de um corpo no discurso sobre a acção uma explicação
que é também meu corpo e que, pelo seu por razões.
duplo vínculo à ordem dos corpos físicos Evocar a razão de uma acção é colocá-la
e às pessoas, mantém-se no ponto de ar- num contexto maior, é integrá-la num hor-
ticulação de um poder agir que é o nosso izonte de regras e de convenções culturais.
28 29
P: RICOEUR, O Si-mesmo como um outro, P: RICOEUR, O Si-mesmo como um outro,
(Soi-même comme un autre), trad. brasileira sa., Ed. (Soi-même comme un autre), trad. brasileira sa., Ed.
Papirus, S. Paulo, 1991, 116. Papirus, S. Paulo, 1991, 135.
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28 Miguel Franquet dos Santos Silva
Por exemplo, o acto de estender a mão e Por outro lado, é necessário referir que
levantar o polegar possui um conjunto de a dialéctica entre conjecturar e validar ex-
significados que estão institucionalizados e ige que a interpretação da acção, como a do
que não dependem do agente. Contudo, texto, não se limite ao momento explicativo,
em contextos diferentes adquirem sentidos típico de algumas posições estruturalistas.
diferentes, podendo significar um pedido de O paradigma estruturalista também se im-
boleia ou um sinal de que está tudo bem. pôs nos estudos sobre a comunicação, sobre-
No caso de acções mais complexas, de- tudo em França a partir de 1960 e tem como
nominadas práticas, que articulam diversas base o “Curso de Linguística Geral” de Fer-
acções em ordem a produzir uma acção mais dinand de Saussure, publicado em 1916.
complexa, uma análise superficial do con-
“A linguística saussuriana, com a sua
texto pode não ser suficiente para explicar
proposta de construção de um objecto
os motivos de um agente. Abre-se assim um
de saber independente das manifestações
espaço de argumentação que visa validar a
subjectivas, ao destacar o domínio do
melhor explicação de entre um conjunto de
código da língua de entre o conjunto
explicações possíveis.
heteróclito e contingente da linguagem,
Este processo de argumentação, ligado à
apresentava-se então como uma espécie
tentativa de explicação da acção pelos seus
de farol orientador deste projecto reno-
motivos, evidencia uma plurivocidade de
vador”31 .
sentidos que aproxima a acção de um texto.
Este processo de argumentação dos mo- Saussure edificou a sua linguística a par-
tivos das acções assemelha-se à interpretação tir da diferença entre ‘langue’ e ‘parole’. A
textual em virtude da necessidade de conjec- ‘langue’ constitui o sistema de signos, que
turar vários sentidos do texto e de proceder, se opõem uns aos outros, aos quais é recon-
posteriormente, à validação daqueles que são hecida uma posição e uma função específica
os seus mais possíveis. no sistema. A ‘parole’ é a capacidade de em-
Como salientámos a propósito das aporias prego e utilização da ‘langue’.
da adscrição, em alguns casos, a adscrição de A linguística de Saussure privilegiou o
uma acção a um agente assemelha-se a uma estudo da ‘langue’ pelo facto desta corre-
decisão, em virtude da dificuldade extrema sponder a um sistema estável e quantificável.
em validar uma explicação. Privilegiou o estudo sincrónico ao estudo
A validação não se identifica com a veri- diacrónico e procurou atribuir um estatuto
ficação. Comporta antes um estatuto proba- científico à linguística, considerada a ciência
bilístico. geral dos signos, que se enquadrasse dentro
do paradigma positivista de racionalidade.
“Nem na crítica literária nem em ciên- Ao limite, como afirma Ricoeur, a posição
cias sociais há lugar para uma úl- estruturalista tende a encarar a linguagem
tima palavra... Ou, se existe uma, nós l’action, Essais d’herméneutique, II), trad. port. A.
chamamos-lhe violência.”30 Cartaxo e M. J. Sarabando, Ed. Rés, Porto, sd., 206.
31
A. D. RODRIGUES, Comunicação e Cultura,
30
P. RICOEUR, Do Texto à Acção, (Du texte à Editorial Presença, Lisboa 1999, 45.
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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 29
como um sistema fechado, de sentido ima- análise estrutural uma importância decisiva,
nente, que não tem relação com qualquer re- necessária, mas não exclusiva.
alidade extra-linguística. Segundo Ricoeur, A explicação de cariz estruturalista
esta abordagem à linguagem manifesta-se na procura extrair as ligações lógicas reveladas
definição de signo dada no “Curso de Lin- pela análise das unidades constitutivas de
guística Geral”. uma obra.
Significante e significado, unidades con- Nas Ciências Humanas, o modelo de ex-
stituintes do signo, revelam a ligação entre plicação estruturalista é aplicado a todas as
os signos do sistema, mas não a uma reali- áreas que comportem uma dimensão semi-
dade extralinguística, a uma referência. ológica, ou seja, a todos os fenómenos dos
O projecto hermenêutico de Ricoeur quais seja possível reconhecer um tipo de
propõe-se ‘dialogar’ quer com esta abor- relações características dos sistemas semi-
dagem estruturalista, quer com a hermenêu- ológicos.
tica romântica herdeira dos trabalhos de A análise conceptual da acção mostra
Schleiermacher. como a acção pode ser considerada um
Schleiermacher distinguiu dois tipos de dos fenómenos de entre os quais é possível
abordagem à linguagem: uma interpretação aplicar um modelo de explicação estrutural-
gramatical e uma interpretação técnica. ista. O significado da acção é passível de re-
A interpretação gramatical atende ao sistir ao facto da sua ocorrência. A expli-
carácter social e cultural da língua, enquanto cação da acção por razões enquadra-se num
que a interpretação técnica procura o carác- contexto de sentidos culturalmente estabele-
ter singular, individual do emprego da lín- cidos, institucionalizados, que podem ser in-
gua, para assim compreender a intenção do terpretados e que não implicam o recurso
autor. à observação de acontecimentos interiores.
A hermenêutica proposta por Schleierma- Neste sentido, é possível explicar uma acção
cher de cariz ‘psicologizante’ tornar-se-ia sem que isso implique um processo empático
célebre com a máxima: “compreender tão com o agente. Esta fixação do significado da
bem ou melhor o autor do que ele se com- acção é denominada conteúdo proposicional.
preendeu a si mesmo”. A hermenêutica as- É essa fixação que permite que a acção se
sim entendida considera a linguagem como o autonomize da intenção psicológica do seu
vínculo de objectivação da subjectividade de autor inscrevendo a sua marca no tempo É
cada indivíduo. Por um processo empático neste sentido que falamos em ‘acontecimen-
era proposto ao intérprete transferir-se para tos marcantes’.
a psique do autor e revelar a sua intenção ao Estas acções que marcam pela sua im-
comunicar. portância desenvolvem significações que
Ricoeur coloca o seu projecto hermenêu- podem ser actualizadas noutros contextos
tico num lugar diferente, que possibilita o espacio-temporais e re-efectuadas em novos
diálogo com as Ciências Humanas e que, não contextos sociais.
obstante, atenda ao enraizamento ontológico
do homem no mundo. “...como um texto, a acção humana é
A hermenêutica de Ricoeur atribui à uma obra aberta, cuja significação está
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30 Miguel Franquet dos Santos Silva
‘em suspenso’. É porque ela ‘abre’ no- esse ancoramento do homem no mundo está
vas referências e delas recebe uma pert- implicado em todo o acto de conhecer.
inência nova que os actos humanos estão A partir daí, compreender pressupõe a su-
também à espera de interpretações novas peração da estrutura sujeito - objecto.
que decidam a sua significação”.32 O sujeito participa do mundo que se
propõe estudar.
Segundo Ricoeur, é a própria natureza do Contudo, esse reconhecimento ontológico
objecto de estudo das Ciências Humanas que de pertença ao mundo não inviabiliza a as-
exige que o modelo hermenêutico de in- piração à ‘cientificidade’ de todo o conheci-
terpretação do texto se constitua como seu mento acerca do homem.
paradigma. A primeira perspectiva sobre uma obra é
O conceito de obra, indissociável da noção constantemente confrontada com o momento
de totalidade, de diversidade e de unidade explicativo dando origem a um novo olhar, a
exige que a interpretação do homem, de um uma nova relação entre todo e as partes. Esta
texto, ou de uma acção não se limite à ex- dialéctica entre a parte e o todo gera o círculo
plicação da estrutura lógica que combina as hermenêutico.
unidades identificadas e analisadas. A obra é Este processo vai permitir a reformulação
mais do que a soma das suas partes constitu- do mundo do sujeito e capacitá-lo para ol-
intes. har para a obra a partir de uma nova perspec-
tiva. Assim entendida, a compreensão não se
Ao analisar uma obra é necessário conjec-
refere ao momento empático, psicológico de
turar sobre as partes mais relevantes para a
transposição para a psique do autor, mas à
interpretação do todo, estabelecer níveis de
integração do momento analítico num todo
importância, construir relações. Este pro-
que constitui a obra, e que revela sentidos
cesso conjectural e provisório parte de uma
que estão para além de todas as possibili-
estrutura pré-compreensiva que revela uma
dades combinatórias das unidades discretas
certa subjectividade por parte do sujeito.
reveladas pela análise estrutural. É a dialéc-
Esta subjectividade constitui a perspec-
tica entre explicação e compreensão que rev-
tiva a partir da qual o sujeito ‘observa’ o
ela a semântica profunda, capaz de desen-
real. Essa estrutura antecipava, ou pré-
cadear um movimento que parte do sentido
compreensiva pode ser identificada com o
do texto, revelado na sua estrutura, em di-
preconceito. Não obstante, o preconceito
recção à sua referência, que apesar de es-
não constitui um entrave à construção de
tar exposta diante do texto, aponta para um
novos sentidos, à actualização do sentido de
mundo que está para lá da linguagem.
um texto ou de uma acção, é antes a partir
Ao longo deste estudo, a compreensão
dele que todo o acto de conhecer se desen-
dos motivos de uma acção não pôde ser en-
rola.
quadrada na dimensão temporal da existên-
A hermenêutica de Ricoeur reconhece que cia.
32
P. RICOEUR, Do Texto à Acção, (Du texte à É a teoria narrativa que vai introduzir a
l’action, Essais d’herméneutique, II), trad. port. A. dimensão temporal da experiência humana
Cartaxo e M. J. Sarabando, Ed. Rés, Porto, sd., 198. e que vai permitir a articulação das acções
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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 31
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32 Miguel Franquet dos Santos Silva
nos permitem dizer que estamos perante a munidade, se ligam a determinados valores,
mesma coisa. ideais e heróis e excluem outros.
Neste sentido, no carácter coexistem
“ Toda a problemática da identidade mesmidade e ipseidade, sendo que a primeira
pessoal vai girar em torno dessa busca forma de permanência no tempo oculta a se-
de um invariante relacional, dando-lhe gunda. A pergunta ‘quem sou eu?’ deixa-se
a significação forte de permanência no substituir pela pergunta ‘o que sou eu?’
tempo.”33
4.1.2 A fidelidade à palavra dada
4.1.1 O carácter
A manutenção de si na fidelidade à palavra
Uma das formas de permanência no tempo dada é a figura emblemática da ipseidade,
emblemáticas da identidade idem ou mesmi- forma de permanência de identidade diame-
dade é o carácter. tralmente oposta ao carácter.
O carácter pode ser entendido como o ‘o
quê?’ do ‘quem?’. É o conjunto das dis- “A palavra mantida afirma uma
posições adquiridas que permitem identificar manutenção de si que não se deixa in-
e reidentificar um indivíduo humano como screver, como o carácter na dimensão de
sendo o mesmo. alguma coisa em geral, mas unicamente
As disposições adquiridas ligam-se à naquela do ‘quem?’.34
noção de hábitos sedimentados ou em vias
de ser. O carácter integra assim uma dimen- A ipseidade revela uma forma dinâmica
são temporal. A sua história é o processo de de permanência no tempo, resultante de um
sedimentação de alguns hábitos que tendem comprometimento ético, no qual o indiví-
a ocultar a inovação que os precedeu. duo atesta a si a suas acções, os seus valores
Por outro lado, as disposições adquiridas e os seus princípios. A ipseidade refere-se
ligam-se também às ‘identificações com’ al- ao ‘quem’ singular, único e diferente de to-
guém ou alguma coisa. A identidade de dos os outros. O si que habita o seu corpo,
uma pessoa ou de uma comunidade, em certa mas que não é o seu corpo, que se identifica
medida, constrói-se a partir da identificação com um carácter, mas que é mais do que um
com valores, mitos, ideais ou heróis. Esta di- carácter imutável no tempo. Um si capaz de
mensão da identidade pressupõe a alteridade. se reflectir, se construir e de vir a ser.
É esta ideia de lealdade a determinados
ideais, valores ou heróis que transforma a 4.1.3 Identidade pessoal
permanência do carácter na manutenção de
si, figura emblemática da ipseidade. Com Locke introduz a noção de identidade de uma
efeito, a ‘identificação com’ pressupõe um coisa consigo mesma ao longo do tempo.
momento ético, de deliberação e de avali- A memória e a identidade formam uma
ação, pelo qual uma pessoa, ou uma co- equação que permite a comparação de uma
coisa consigo mesma ao longo do tempo.
33
P. RICOEUR, Soi-même comme un autre, trad.
34
Brasileira, Ed. Papirus, São Paulo, 1991, 142-143. Ibidem, 148.
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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 33
Esta comparação conduz à oposição entre invariável relativa à ideia de si, é levado a
identidade e diversidade. concluir que o si é uma ilusão.
Assim entendida, a noção de identidade Hume considera que é através da facul-
parece aproximar-se do pólo da mesmidade, dade da imaginação que restituímos unidade
em virtude da comparação e da procura do às impressões interiores, exigida pela identi-
idêntico. A memória permite-nos avaliar os dade, e através da crença que colmatamos o
traços que nos caracterizam e identificam em déficit de mesmidade que resulta do processo
momentos diferentes da nossa vida. de comparação das várias impressões.
Por outro lado, esta concepção da identi- Ricoeur questiona se não estaria Hume à
dade também se aproxima do pólo da ipsei- procura de um si irredutível ao mesmo ao
dade, em função da atestação desses traços longo do tempo. Pois nos casos em que não
permanentes a um ‘quem’, irredutível a um subsiste uma impressão invariável e perma-
‘o quê?’ nente é ainda possível perguntar quem é esse
Os traços que nos caracterizam ao longo ser que se interroga sobre a sua unidade, so-
do tempo e que permitem responder à bre a sua identidade.
questão ‘o que sou eu?’ referem-se sempre Levanta-se assim a questão de saber qual
a alguém que é irredutível a um conjunto de a validade dos critérios de identidade. Qual
predicados. Alguém que vive, que habita um o fundamento desses critérios?
corpo e que tem uma história. A questão é saber se é possível submeter
Locke introduz ainda o critério de iden- a mesmidade e a ipseidade a provas de ver-
tidade psíquica ao qual poderíamos opor o dade.
critério de identidade corporal. No caso da mesmidade, em virtude da
Os critérios de identidade são introduzidos comparação que é levada a cabo entre duas
como referências que ajudam a resolver al- ocorrências, o critério é aceitável, na medida
guns problemas levantados à identidade pes- em que serve de referência a essa mesma
soal pelos denominados ‘puzzling cases’. comparação.
O exemplo referido em SA é o da memória Mas será a resposta à pergunta ‘quem sou
de um príncipe que é transportada para o eu?’ passível de uma prova de verdade?
corpo de um sapateiro remendão. Qual é É neste estádio da reflexão que Ricoeur
a identidade deste novo ente, sapateiro ou convoca ao debate acerca da identidade a
príncipe? obra de Derek Parfit.
Se adoptarmos como Locke o critério Segundo Ricoeur, as posições de Parfit so-
psíquico de identidade, somos levados a con- bre a identidade edificam-se sobre a renúncia
cluir que a memória fez do novo ente um explícita a qualquer distinção entre ipseidade
príncipe. e mesmidade.
Com Hume inicia-se a era da dúvida e da Ricoeur questiona se, tal como Hume,
suspeita. Parfit, ao procurar um estatuto firme de iden-
Segundo Hume, a identidade corresponde tidade, baseada na mesmidade, não estava
a uma impressão de unidade invariável. destinado a pressupor um si que não procu-
Quem no seu interior só encontre uma diver- rava.
sidade de experiências e nenhuma impressão O recurso a alguns casos paradoxais so-
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34 Miguel Franquet dos Santos Silva
bre a identidade, revelados pelos ‘puzzling mais elevado grau a dialéctica da mesmidade
cases’, levam Parfit a concluir que a questão e da ipseidade; por outro, pretende explorar
da identidade é uma questão vazia, uma vez as funções de mediação que a teoria narra-
que em alguns casos a identidade de um su- tiva exerce entre a teoria da acção e a teoria
jeito é indeterminada. moral.
Segundo Parfit, a questão da identidade A dialéctica entre mesmidade e ipseidade
pessoal não é fundamental para que o sujeito é a dialéctica de duas formas distintas de per-
se constitua como sujeito ético. As posições manência de um identidade no tempo.
de Parfit assemelham-se às posições budis- Os problemas colocados à identidade pes-
tas que apelam à dissolução da identidade soal, no seio dos ‘puzzling cases’ de ficção
em prol da disponibilidade e da abertura ao científica, provocam alguns embaraços à
outro. O autor chega a afirmar que a identi- identidade considerada unicamente como
dade pessoal não é o que importa. mesmidade, como perpetuação de um núcleo
Segundo Ricoeur, esta tese assenta no estável de disposições através do qual iden-
facto de Parfit não distinguir mesmidade de tificamos uma pessoa como sendo a mesma
ipseidade. Mesmo nos casos mais pertur- ao longo do tempo.
badores dos ‘puzzling cases’, que tornam im- O maior contributo da identidade narrativa
possível a identificação e a reidentificação de para a constituição do si é a mediação que
uma pessoa como sendo a mesma, a pergunta opera na dialéctica entre mesmidade e ipsei-
sobre quem é o sujeito que se interroga e que dade.
procura a sua unidade mantém-se pertinente. A teoria narrativa procura a identidade ao
É importante perguntar quem é esse sujeito longo da história de uma vida, nas conexões
a quem a identidade pessoal não é o que im- que ligam os acontecimentos decorrentes no
porta. tempo e que fazem da história uma unidade
Parfit defende que é mais importante di- de sentido.
reccionar a atenção para as experiências em Com efeito, a identidade narrativa é o
si mesmas do que para a procura de uma equivalente da identidade de um person-
unidade da uma vida. A identidade deve con- agem, que se constrói em articulação com
stituir uma obra de arte mais do que uma a unidade temporal da história narrada. Por
reivindicação de independência. sua vez, a unidade temporal da história re-
Mas partir do princípio de que a minha sulta de uma síntese do heterogéneo, uma
identidade pessoal não é o que interessa não concordância discordante através da qual os
implica que a identidade do outro também vários acontecimentos e peripécias são in-
não interesse? tegrados no encadeamento da intriga, por
forma a produzir uma unidade de sentido
4.2 “O Si e a Identidade revelada no seu final. Os acontecimentos
narrativos tornam-se fonte de discordância
Narrativa” quando surgem e fonte de concordância no
O “Si e a Identidade Narrativa” é o título que fazem avançar a história.
do sexto estudo de SA que tem um duplo Neste sentido, os acontecimentos, pelo
propósito: por um lado, visa levar até ao facto de fazerem parte do movimento config-
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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 35
urador de uma narrativa, perdem a sua neu- A pessoa deixa de ser considerada uma
tralidade impessoal. Deixam de poder ser entidade distinta das suas experiências, um
descritos como entidades independentes dos mero portador dos acontecimentos. A sua
seus agentes e dos contextos das suas ocor- identidade é solidária da história narrada. É
rências, como sugeria a ontologia do acon- a identidade da história que faz a identidade
tecimento impessoal defendida por David- do personagem.
son. É este estatuto do acontecimento que Neste sentido, Claude Bremond introduz
distingue o modelo narrativo de todos os a noção de processo, eventual, em acto, ou
restantes modelos de conexão. acabado, desencadeado pelos personagens
O encadeamento da intriga tem o poder da narrativa. É a ideia de processo que
de transformar as ocorrências aparentemente dá sentido às acções desencadeadas pelos
aleatórias e ocasionais dos acontecimen- agentes, consideradas como manifestações
tos numa espécie de necessidade retrospec- de uma identidade dinâmica e em constante
tiva, que participa, simultaneamente, na con- construção ao longo da história.
strução da unidade da intriga e na construção A identidade narrativa é uma síntese do
da identidade dos personagens. heterogéneo que concilia diversidade e iden-
tidade. A identidade dos personagens deixa
“...a pessoa da qual se fala, o agente do de se caracterizar por uma permanência do
qual depende a acção têm uma história, mesmo ao longo da história para se tornar
são a sua própria história.”35 num processo dinâmico, que acompanha o
desencadear da intriga.
É a dialéctica do personagem, essa con-
Esta estreita relação entre a intriga, os
cordância discordante, que se vai inscrever
acontecimentos e os personagens possibilita
no intervalo entre os dois pólos da per-
que a narrativa supere, de algum modo, as
manência no tempo: mesmidade e ipseidade.
aporias da adscrição.
A identidade narrativa inclui assim uma
Ao narrador é dada a possibilidade de de-
dimensão ética, baseada nas decisões que
cidir o que conta como acção, delimitar o
os personagens tomam em face dos acon-
princípio e o fim das cadeias de acções, de-
tecimentos inesperados com os quais se de-
nominadas práticas, decidir quais as respon-
param.
sabilidades a imputar a cada um dos agentes
e desenvolver uma unidade de sentido que “Em qual sentido, portanto, é legítimo
reúna todos esses processos através de um ver na teoria da intriga e do person-
acto configurador. agem uma transição significativa entre
A narrativa constitui-se assim com um adscrição da acção a um agente que
‘laboratório’ onde podem ser experimen- pode e a sua imputação a um agente que
tadas múltiplas formas de agir, subordinando deve?”36
a cada uma delas uma série de consequências
e implicações éticas. Esta questão suscita duas vertentes: por
35
um lado é necessário compreender em que
P. RICOEUR, Soi-même comme un autre, trad.
36
Brasileira, Ed. Papirus, São Paulo, 1991, 138. Ibidem, 180.
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36 Miguel Franquet dos Santos Silva
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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 37
com os quais nos identificamos – e que sub- lemático na medida em que subverte a nossa
ordina os planos de vida a adoptar e, conse- condição ontológica de pertença a um hor-
quentemente, as práticas que estes implicam; izonte histórico-cultural. Neste sentido, a
e um movimento ascendente, que parte dos fusão de horizontes é a fusão do horizonte do
planos de vida, considerados na sua unidade, mundo do leitor com o horizonte do mundo
em direcção a novos valores e ideais direc- do autor. Esta ideia de fusão implica que a
tores. interpretação se afaste da tentativa de apro-
Para Ricoeur, tal como para MacIntyre, priação da intenção psicológica do autor.
a “unidade narrativa de uma vida”, capaz O que o leitor interpreta e se apropria é o
de integrar as mediações que se estabelecem mundo que a obra projecta e que está objecti-
entre os vários níveis da práxis, tem como vada na sua estrutura, no seu sentido. O que
função servir de apoio a uma perspectiva só é possível uma vez que a obra se auton-
ética de vida boa. É a capacidade de config- omiza das condições sócio-psicológicas da
uração de uma unidade e de reunião de uma sua produção pela escrita. O sentido da obra
vida que a narrativa oferece à interrogação resiste ao acontecimento da sua produção e
ética. objectiva-se na estrutura do texto. Assim, o
Contudo, diferentemente de MacIntyre, destinatário de um texto abre-se a um uni-
Ricoeur considera que as narrativas de ficção verso infinito de leitores.
assumem um papel tão ou mais importante O momento da apropriação consiste na ac-
para a compreensão narrativa de uma vida, tualização do sentido de um texto por parte
do que as narrativas historiográficas e bi- do leitor, que se torna assim uma espécie de
ográficas. co-autor. Contudo, o momento da apropri-
Mas em que medida é que a literatura ação, pelo “qual torno meu o que antes era
de ficção suscita um questionamento do ‘si- alheio” não consiste na projecção do leitor
mesmo’ na vida real? na obra. Existe um projecto de mundo in-
scrito na obra, revelado pelas suas referên-
4.2.1 Distanciação e apropriação cias não ostensivas, que o leitor compreende
se se deixar seguir pelos sentidos possíveis
Para compreender que a literatura de ficção do texto, sem se querer impor a ele, sem
possa suscitar um questionamento do ‘si- querer instrumentalizar o que na obra é dito.
mesmo’ na vida real é necessário compreen- A apropriação pressupõe que a compreensão
der a dialéctica inerente à leitura, a dialéctica do sentido do texto seja contemporânea da
entre distanciação e apropriação. extensão da compreensão de si.
A dialéctica entre distanciação e apropri-
ação liga-se ao que Hans Georg Gadamer
chamou ‘fusão de horizontes’. Se por um
lado é necessário conquistar uma certa dis-
tanciação face ao objecto que pretendemos “Nesta autocompreensão, eu oporia o Si
estudar, o que constitui um requisito episte- mesmo, que parte da compreensão do
mológico do paradigma científico, por outro texto, ao ego, que pretende precedê-lo.
lado, esse distanciamento torna-se prob- É o texto, com o seu poder universal de
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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 41
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42 Miguel Franquet dos Santos Silva
coisa entre as restantes coisas das quais se dagem pragmática, para o acto da enunci-
fala. ação. É no acto de discurso que o significado
A pessoa, segundo Strawson, é constituída dos predicados atribuídos ao sujeito se ‘par-
por um corpo, do qual se predicam carac- ticularizam’, adquirem um sentido próprio.
terísticas físicas, mas uma pessoa a quem A pessoa, entendida como aquele de quem
podem predicar-se características psíquicas se fala, que tal como eu é possuidor de pred-
e mentais que não podem ser predicadas do icados físicos e de estados de consciência, é
seu corpo. Nesta medida, é à pessoa que se uma espécie ou género comum a várias sub-
atribuem os dois tipos de predicados. Pes- stâncias individuais. Mas cada pessoa é ela
soa que é também um sujeito, na medida própria uma substância individual concreta.
em que não pode ser predicada de qualquer A pessoa de quem se fala, identificável
outra. Não faz sentido dizer que Sócrates por uma referência identificante, é passível
é um Aristóteles ou que Aristóteles está em de ser reconhecida como sendo a mesma pe-
Sócrates. los vários interlocutores, mas não é nunca
Ao nível de uma semântica do discurso, atingida naquilo que faz de si um ser único
a designação de uma pessoa faz-se mediante e diferente de todos os outros.
um processo de identificação, seja por uma Mesmo numa situação de interlocução,
descrição definida, por um nome, ou por um em que o locutor se designa a ele mesmo, a
conjunto de outras referências identificantes possibilidade de dizer o que faz de cada pes-
ligadas ao uso de deícticos, ou de pronomes soa um ente particular depara-se com uma
pessoais. incomunicabilidade insuperável, ontológica.
Mas o carácter singular e único de uma Segundo Ricoeur, o ‘si-mesmo’ que cada
pessoa não se inscreve num discurso que pessoa é, diferente de todas as outras, radica
a identifique na terceira pessoa, apesar dos no pólo da identidade-ipse, ou ipseidade. A
predicados psíquicos conservarem o seu sig- pesquisa sobre este pólo da identidade exige
nificado quando atribuídos a si ou a um di- que a pergunta ‘quem sou eu?’ não se sub-
verso de si. stitua pela pergunta ‘o que sou eu?’.
A singularidade de uma adscrição de um Na realidade, quando tentamos responder
predicado a um sujeito efectiva-se na situ- a essa simples pergunta ‘quem sou eu?’ so-
ação de interlocução. A Teoria dos Actos mos levados a enunciar um conjunto de pred-
de Discurso mostra de que forma o sentido icados físicos, correspondentes à caracteri-
provém simultaneamente do seu enunciado zação do nosso corpo, um conjunto de pred-
como do acto da sua enunciação. A primeira icados psíquicos, correspondentes ao nosso
distinção formulada por Austin entre enun- carácter, à nossa personalidade, um conjunto
ciados constantivos e performativos e a pos- de valores, de princípios e de crenças que
terior tipificação por Searle dos actos lo- regem a nossa conduta e que se identificam
cutórios, ilocutórios e perlocutórios mostram com o que há de permanente em nós. Mas do
como o sentido de um acto de discurso ponto de vista lógico, estamos a responder à
aponta para mais longe do que seu conteúdo pergunta ‘o que sou eu?’ e a descrever o pólo
proposicional. A análise do discurso transita da identidade caracterizado pelo seu carácter
de uma abordagem semântica para uma abor- sedimentado e permanente, identificado com
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a mesmidade. Num certo sentido, aquilo que a montante de todo o agir e de toda a delib-
faz de cada pessoa um ‘si-mesmo’ ainda fica eração.
por responder. A dicotomia inicial entre os dois univer-
A pesquisa sobre a ipseidade prossegue sos de discurso é ultrapassada e a noção de
para o plano da acção. motivo é integrada na noção de causa.
Convém não esquecer que o fundamento O agente torna-se assim uma espécie de
da ‘hermenêutica do si’ reside na possibili- causa da sua acção. Quer os motivos
dade do ser se dizer de muitas maneiras, de racionais quer as pulsões e as disposições
se expressar no agir. sensíveis que o impelem a agir estão em si.
Ao nível da filosofia analítica da acção,
Num primeiro momento é necessário ex-
fundada na análise dos enunciados nos quais
plicitar o que conta como acção entre os
o homem descreve a acção, a pesquisa so-
restantes acontecimentos do mundo.
bre o agente não implica o reconhecimento
A teoria da acção começa por opor dois
de uma ipseidade. A pessoa que age, que
universos de discurso: acção e aconteci-
é autora de uma acção, é uma pessoa qual-
mento; motivo e causa.
quer, identificada por um pronome pessoal,
A acção diz-se de um fenómeno inten- por um nome, ou por uma descrição definida.
cionalmente motivado por um agente, expli- Ao nível semântico a explicação da acção
cado por uma ordem de razões. O acontec- centra-se na pesquisa sobre o par de pergun-
imento assemelha-se a um movimento que tas ‘o quê?’ – ‘porquê?’.
pode ser explicado não pela intenção de um O segundo estudo dedicado à teoria da
agente, mas por uma causa exterior. acção procura reabilitar a questão do sujeito
Esta oposição é superada pelas análises reflectido na sua acção.
fenomenológicas do desejo. Considerado na Segundo Aristóteles, a acção define-se
sua dupla constituição, o desejo refere-se, pelo facto de depender do próprio agente,
simultaneamente, ao carácter de ‘desejabil- pelo facto de estar em seu poder ou de de-
idade’, ao sentido de uma deliberação fun- pender de si. O Autos, diz o filósofo, é pai e
dada num querer algo, e à noção de força, senhor da sua acção.
ligada às disposições e pulsões que afectam O agente não só é o princípio da acção na
o sujeito. medida em que o seu corpo desencadeia um
As descrições fenomenológicas do desejo certo número de movimentos físicos, mas
evidenciam que existe uma certa passividade sobretudo porque tem a capacidade de de-
em todo o agir humano. Com efeito, para ex- liberar sobre o seu agir, de agir como um
plicar uma acção, um motivo tem de ser tam- homem prudente e virtuoso e de educar as
bém uma causa. Este parece ser o corolário suas inclinações e as suas disposições.
da explicação teleológica de Charles Tay- Dizer que uma pessoa é o princípio de uma
lor, que procura articular uma explicação acção é dizer que a deliberação que presidiu
por motivos, característica de uma descrição à acção é a sua deliberação, que os motivos
teleológica da acção, com uma explicação são os seus motivos; é dizer que ela é uma
causal, que atenda ao carácter passivo iner- espécie de causa da acção.
ente a toda a acção e que por isso se encontra A adscrição da acção ao seu agente afasta-
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