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O contributo da comunicação para a constituição de

“si-mesmo”⇤
Miguel Franquet dos Santos Silva
Universidade Católica Portuguesa – Faculdade de Ciências Humanas

Índice 3.2.2 “As Aporias da Adscrição” . . 24


3.3 Comunicação e Acção . . . . . . 26
1 Introdução 1
1.1 A ‘Hermenêutica do Si’ no Pre- 4 O Plano da Narrativa 30
fácio de SA . . . . . . . . . . . 1 4.1 “Identidade Pessoal e Identidade
1.1.1 As três grandes intenções Narrativa” . . . . . . . . . . . . 30
filosóficas de SA . . . . . . . . 2 4.1.1 O carácter . . . . . . . . . . . 31
1.1.2 A estrutura de “Soi-même 4.1.2 A fidelidade à palavra dada . . 32
comme un autre” . . . . . . . 5 4.1.3 Identidade pessoal . . . . . . . 32
1.2 A problemática da comunicação 6
4.2 “O Si e a Identidade Narrativa” . 33
2 O Plano do Discurso: Abordagem
Semântica e Abordagem Pragmática 7 4.2.1 Distanciação e apropriação . . 36
2.1 Abordagem Semântica . . . . . 8 4.2.2 “As implicações éticas da nar-
2.2 Abordagem Pragmática . . . . . 11 rativa” . . . . . . . . . . . . . 38
2.3 Discurso e Comunicação . . . . 14 4.3 Identidade e Comunicação . . . 38
3 O Plano da Acção: Abordagem 5 Conclusão 41
Semântica e Abordagem Pragmática 16
6 Bibliografia 45
3.1 Abordagem Semântica . . . . . 17
3.1.1 Acção e Acontecimento . . . . 17 6.1 Obras de referência . . . . . . . 45
3.1.2 Motivo e Causa . . . . . . . . 18 6.2 Outras obras . . . . . . . . . . . 46
3.1.3 Acção e Intenção . . . . . . . 19
3.1.4 Ontologia do Acontecimento
Impessoal . . . . . . . . . . . 20 “A nossa tese constante será que a
3.1.5 Agente e Acção . . . . . . . . 22 identidade no sentido de ipse não implica
3.2 Abordagem Pragmática . . . . . 22 nenhuma asserção concernente a um
3.2.1 Aristóteles . . . . . . . . . . . 22 pretenso núcleo não-mutante da

personalidade.” P. RICOEUR, “O Si-mesmo
Seminário de licenciatura em Comunicação So-
como um outro”, (Soi-même comme un
cial e Cultural, sob a orientação do Professor Doutor
Joaquim de Sousa Teixeira e coordenação da Profes- autre), trad. brasileira, sa., Ed. Papirus, S.
sora Doutora Isabel Férin, setembro de 2001 Paulo 1991, 13.
2 Miguel Franquet dos Santos Silva

1 Introdução percurso de constituição da identidade do su-


jeito, que não é mais um eu, mas um si:
O nosso trabalho de Seminário de Licen- uma identidade reflexiva, que se descobre
ciatura em Comunicação Social e Cultural e cria temporalmente e que não se deixa
tem por objecto a relação entre a obra de aceder instantaneamente, nem se constitui
Paul Ricoeur “Soi-même comme un autre” 1 e como certeza última e fundadora de toda a
a problemática da comunicação humana. realidade.
À semelhança do que acontece com a In-
Ricoeur situa a ‘hermenêutica do si’ no
trodução, todos os capítulos (planos) deste
ponto intermédio de duas tradições filosófi-
trabalho são constituídos por duas partes.
cas: entre as ‘filosofias do cogito’, na linha
A primeira parte de cada plano destina-se
da filosofia de Descartes, e as ‘filosofias da
à exposição dos estudos de SA, relativos às
suspeita’, herdeiras dos trabalhos de Niet-
diferentes formas de agir (falar, fazer, narrar,
zsche, de Marx e de Freud.
imputar), agrupando cada um deles dois es-
tudos da referida obra. A filosofia cartesiana põe o sujeito de
Na segunda parte de cada plano apresenta- forma imediata e a-histórica. A identidade
mos uma breve reflexão sobre a temática da do sujeito, cuja certeza de existir provém do
comunicação, tendo como pano de fundo as facto de resistir à dúvida (cogito ergo sum)
questões abordadas na primeira parte. perde a sua ligação ao mundo. Às pergun-
O nosso trabalho vai centrar-se em torno tas ‘quem dúvida?’, ‘quem existe?’ e ‘o que
dos planos do discurso, da acção e da narra- sou eu?’, Descartes responde ‘alguma coisa
tiva, não tendo sido objecto da nossa análise que duvida, que pensa’; uma inteligência,
os últimos estudos da obra, relativos à di- um entendimento, uma razão. Estes pred-
mensão ética da ipseidade e às implicações icados atribuídos ao eu, em vez de o sin-
ontológicas da constituição ‘hermenêutica gularizarem, generalizam-no, aproximam-no
do si’. de todos os outros ‘eus’, conferindo carac-
terísticas comuns a todos eles. Não identifi-
cam, nem particularizam ‘o eu’, não recon-
1.1 A ‘Hermenêutica do Si’ no hecem a sua individualidade. A identidade
Prefácio de SA do ‘eu’, considerado entendimento e razão,
torna-se impessoal e abstracta. Neste sen-
No prefácio de SA, intitulado “A questão da tido, o cogito cartesiano está desancorado do
Ipseidade”, Ricoeur procura justificar a im- mundo, do tempo e do espaço, tornando-se
portância da ‘hermenêutica do si’ no longo uma certeza meramente formal.
1
P. RICOEUR, Soi-même comme un autre, Ed. A esta tradição filosófica do cogito
Seuil, Paris 1990. Nota: Obra ao longo do trabalho opõem-se as ‘filosofias da suspeita’. Para Ri-
citada com a sigla SA. As citações de SA serão tran- coeur, Nietzsche leva mais longe a dúvida
scritas a partir da edição:P. RICOEUR, O Si-mesmo cartesiana ao pôr o cogito em causa. A
como um outro, (Soi-même comme un autre), trad.
brasileira, sa., Ed. Papirus, S. Paulo 1991 e sofrerão dúvida estende-se à certeza de pensar. Tanto
apenas algumas alterações em função da sua adap- o acto de duvidar como aquele que duvida
tação à gramática da língua portuguesa. são considerados ficções.

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“Nietzsche não diz dogmaticamente – é esse ser que fala, que faz, que narra e que
embora aconteça também que o faça – atesta os seus actos a si, de forma a poderem
que o sujeito é multiplicidade; ele tenta ser-lhe imputadas as responsabilidades pelos
essa ideia; joga, por assim dizer, com a seus actos?
idéia de uma multiplicidade de sujeitos Esta é a primeira das três grandes in-
lutando entre eles, como tantas “célu- tenções filosóficas que presidem à elabo-
las” em rebelião contra a instância diri- ração de SA.
gente”.2
“A primeira intenção é marcar o pri-
Esta dúvida radical de Nietzsche chega mado da mediação reflexiva sobre a
mesmo a inviabilizar o projecto de uma iden- posição imediata do sujeito tal como ela
tidade, no sentido de uma unidade irredutível se exprime na primeira pessoa do singu-
e singular. Com efeito, se o sujeito é multi- lar: ‘eu penso’, ‘eu sou”’.3
plicidade, se é constituído por uma plurali-
dade de instâncias que não se podem ates- A segunda grande intenção filosófica, im-
tar a uma instância única, então não há lugar plicitamente inscrita no título da obra, é pro-
para qualquer identidade/unidade. ceder à distinção entre ‘identidade-idem’, e
De que forma então é que uma abordagem ‘identidade-ipse’.
‘hermenêutica do si’ pode situar-se entre A identidade é muitas vezes reduzida à
uma pretensão cartesiana de acesso imediato ‘identidade-idem’, à ‘mesmidade’. Este
ao sujeito e de fundação última, por um lado, aspecto da identidade representa o núcleo
e a suspeita de impossibilidade de unificação imutável, estático e constante de permanên-
de uma identidade de cariz nietzscheano, por cia no tempo. Ricoeur vê no ‘carácter’ o
outro? exemplo paradigmático e emblemático deste
aspecto da identidade.
1.1.1 As três grandes intenções filosófi- A mesmidade refere-se a esse núcleo sed-
cas de SA imentado da nossa identidade, que pode ser
identificado e reidentificado como sendo o
A ‘hermenêutica do si’ contrapõe à intuição
mesmo ontem, hoje e amanhã.
imediata do sujeito, a interpretação do si,
Contudo, Ricoeur concebe outra forma de
mediada pela análise e pela reflexão da acção
relacionamento de identidade com o tempo,
que o agente desencadeia. Ao falar, ao fazer,
a ‘identidade-ipse’, ou ‘ipseidade’. A ‘ip-
ao narrar e ao imputar-se ética e moralmente,
seidade’ é a forma dinâmica de manutenção
o sujeito reflecte o seu ser, manifesta-o. São
de si ao longo do tempo. Refere-se ao ‘si-
estas múltiplas manifestações que podem ser
memo’ que se mantém na diversidade das
interpretadas.
suas manifestações e das suas acções.
Através de várias mediações o sujeito
É a singularidade da relação que o si man-
procura a resposta à pergunta ‘quem?’ Quem
tém com a pluralidade das suas manifes-
2
P. RICOEUR, O Si-mesmo como um outro, (Soi- tações, e que comporta uma dimensão ética,
même comme un autre), trad. brasileira, sa., Ed. Pa-
3
pirus, S. Paulo 1991, 27. Ibidem, 11.

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que torna o ‘si-mesmo’ único, irredutível e alteridade que o constitui. ‘O si’ não é trans-
diferente de todos os outros. parente para si próprio e a análise do desdo-
bramento da alteridade mostrará como existe
“A equivocidade do termo ‘idêntico’ es- uma certa passividade na acção humana.
tará no centro de nossas reflexões sobre a Não é a liberdade humana que é posta em
identidade pessoal e a identidade narra- causa, mas uma certa ideia de liberdade. O
tiva, em contacto com um carácter maior homem não é a origem de toda a sua acção.
do si, a saber, sua temporalidade”.4 Existem disposições e forças que se mistu-
ram com as razões que levam o homem a agir
É a constituição temporal e histórica da e que não lhe são completamente “visíveis”.
ipseidade que impede que o sujeito se in- Contudo, segundo Ricoeur, a atestação
tua imediatamente. Nesta medida, as duas assegura, num modo diferente da certeza
primeiras intenções filosóficas que presi- ou da verificação científica, que é possível
dem à elaboração de SA são profundamente devolver à unidade\identidade as acções
solidárias. É através de uma mediação pelas em que o agente se manifesta e expressa.
expressões simbólicas de uma cultura que Constituindo-se como uma “espécie de
o sujeito procura compreender-se e desen- crença”, a atestação assegura a possibilidade
volver uma identidade que seja cada vez de perguntar por um ‘quem?’ irredutível a
mais sua, expressão de ‘si-mesmo’. um ‘o quê?’, impessoal e abstracto.

“A terceira intenção filosófica, esta, “Pela pergunta ‘o que?’, somos levados


explicitamente inclusa no nosso título a uma pesquisa predicativa sobre o que
encadeia-se com a precedente no sentido ‘pertence a este conhecimento que tenho
de que a identidade-ipse emprega uma de mim mesmo’ (AT, t. IX, p.22) ou,
dialéctica complementar daquela da ip- mais claramente ainda, ‘o que pertence
seidade e da mesmidade, isto é, a dialéc- à minha natureza”’6
tica do si e do diverso de si”.5
A atestação desempenha, assim, um papel
Esta nova dialéctica do ‘si-mesmo’ e do fundamental para situar a ‘hermenêutica do
diverso de si, assume proporções mais radi- si’ entre o cogito cartesiano e o anti-cogito
cais quando a alteridade é concebida como nietzscheano. Porque se à pergunta ‘quem?’
constitutiva da ipseidade, ideia sugerida não é possível responder um sujeito que se
desde logo pelo título “Soi-même comme un põe independentemente de toda a realidade,
autre”. do espaço e do tempo, como certeza última,
A dialéctica do si e do diferente de si con- existe a possibilidade de responder um si.
tribui para reforçar a necessidade da medi- Esta ligação do si ao ‘quem?’ é garantida
ação analítica e reflexiva como forma de o pela “crença”, pela “fé”, pela atestação da
sujeito saber que é, se constituir, ir sendo. acção ao seu agente.
Ao carácter temporal do si liga-se assim a Neste sentido, torna-se necessário salien-
4
tar que a noção de acção, compreendida
Ibidem, 12.
5 6
Ibidem, 13. Ibidem, 18.

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como a manifestação e expressão do ser, na ‘hermenêutica do si’ uma justificação a


como acto de um agente, contraposta à posteriori, ao permitir uma articulação entre
paixão, como afecção do paciente, tem de ser as quatro formas de agir e os princípios mais
compreendida à luz da asserção de que no elevados da especulação filosófica.
seio do ser existe um não ser, ou um ainda É no último estudo de SA, intitulado “A
não ser. É neste sentido que a acção é a respeito de que ontologia?” que o autor
“operação de um ser considerada como pro- irá problematizar a possibilidade da analogia
duzida por esse ser e não por uma causa exte- entre ser e agir e pôr em diálogo a questão
rior”7 , visto que a alteridade que o constitui, ontológica levantada pela ‘hermenêutica do
que de alguma forma lhe é “estranha”, faz si’ com as grandes propostas ontológicas da
parte de si. história da filosofia.
Mas o que fundamenta a possibilidade de
Sem ainda compreendermos o alcance
uma ‘hermenêutica do si’?
profundo da possibilidade da analogia entre
Em que medida é que o ser se manifesta?
ser e agir, podemos compreender a grande
Que relação se estabelece entre as análises
importância que assume em toda a ‘her-
fenomenológicas das diversas formas de agir
menêutica do si’, que após percorrer os qua-
e o ser?
tro planos fenomenológicos do agir (dizer,
No texto “De la Metaphysique à la
fazer, narrar e imputar), culmina numa inves-
Morale”, publicado em 1994 no número
tigação exploratória sobre o ser.
centenário da “Revue de Metaphysique et
de Morale”,8 Ricoeur procura fundamen- Pensamos que é justamente a partir da
tar, ao nível ontológico, o recurso à analise consideração do ser como acto e potência
fenomenológica das várias formas do agir que é possível prosseguir para a análise das
(falar, fazer, narrar, imputar), tal como são múltiplas formas do agir humano, que são,
apresentadas em SA. enquanto acções, formas do ser dizer-se.

“Então o que é ser?...É, responde


Aristóteles, agir” .9
Segundo Ricoeur, a analogia entre ser e 1.1.2 A estrutura de “Soi-même comme
agir resulta da ênfase dada a uma das pos- un autre”
sibilidades do ser dizer-se, neste caso, como
acto e potência (energeia – dynamis). O au- O plano do discurso
tor considera que a vantagem de reapropri-
ação do ser como acto e potência encontra Os dois primeiros estudos dizem respeito
7 ao discurso. Através da análise da linguagem
M. BARBOSA, “Acção”, in Logos, Enciclopé-
dia Luso-Brasileira de Filosofia, Vol. I, Ed. Verbo, do quotidiano, o autor procura responder à
Lisboa/São Paulo 1989, 54-57. pergunta quem é o sujeito que fala? De quem
8
Artigo posteriormente publicado em, P. RI- falamos quando nos referimos a uma pessoa
COEUR, Réflexion faite – Autobiographie intel- distinta das coisas? Quem fala designando-
lectuelle, Éditions Esprit, Paris 1995.
9
“Qu’est ce donc qu’être? C’est, répond Aristote,
se a si mesmo como locutor?
agir.” (Ibidem, 87, tradução livre do autor.) Como Ricoeur refere em “De la Meta-

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physiqe à la Morale”10 , o falar é a primeira Depois do desvio pela análise das intenções,
manifestação do agir. dos motivos, das causas e dos acasos iner-
entes à acção, a resposta à pergunta ‘quem?’
“Falar é o primeiro análogo, na me- fica enriquecida: a pessoa identificada por
dida em que é no meio simbólico, por- uma referência identificante é também al-
tanto verbal, que se determinam todas as guém que age, com esta ou aquela intenção,
outras modalidades do agir: a filosofia que deseja isto ou aquilo; alguém que pode
da acção é, na sua fase analítica, uma agir.
semântica das frases de acção e na sua No final deste conjunto de estudos é anal-
fase reflexiva, uma investigação sobre isada a adscrição da acção ao seu agente, in-
as formas de o agente se dizer e se vestigação que suscita algumas aporias.
reconhecer verbalmente autor dos seus O conjunto de estudos relativos à acção
próprios actos”11 . está intimamente ligado aos estudos an-
teriores, pelo facto de ser nos enunciados
O plano da Acção e proposições que se descreve a acção. E
porque é no acto de discurso que o locutor
O terceiro e o quarto estudos dedicam-se à se torna agente e se designa como o autor de
análise e à reflexão sobre a acção, no sen- seu acto.
tido mais restrito que o termo assumiu na
filosofia analítica de língua inglesa. No ter- O plano da narrativa
ceiro estudo o autor analisa a acção inde-
pendentemente do seu agente. Este estudo O quinto e o sexto estudo reportam-se à
revela a possibilidade de “ler” a acção como identidade e à questão do tempo. Quem é o
um texto. Neste sentido, estabelecer uma re- sujeito que narra, que conta a sua história,
lação entre a acção e um conjunto de motivos que se constitui como narrador e actor de
é como interpretar um texto relacionando- uma intriga capaz de adscrever a si as suas
o com o seu contexto. Ao longo deste es- acções?
tudo analisam-se os motivos e as causas da É neste conjunto de estudos que a nar-
acção, prevalecendo as questões ‘o quê?’ e ração fará a mediação entre descrever e pre-
‘porquê?’ sobre a questão ‘quem?’. screver predicados ético-morais ao agente e
No quarto estudo, o autor procura voltar a à sua acção. A narrativa constitui-se como
colocar a ênfase sobre a pergunta ‘quem?’. o “laboratório” das experiências éticas para
10
o homem, expondo-lhe possíveis modos de
P. RICOEUR, Réflexion faite – Autobiographie
intellectuelle, Éditions Esprit, Paris 1995.
ser-no-mundo que lhe revelam um si maior e
11
“Parler est le premier analogon, dans la mesure mais vasto do que um eu.
ou c’est en milieu symbolique, donc verbal, que se Por esta razão, os textos e as grandes obras
déterminent toutes les autres modalités de l’agir: la de uma cultura assumem grande importância
philosophie de l’action est, dans sa phase analytique, na mediação e no acesso indirecto ao si.
une sémantique des phrases d’action, et, dans sa phase
réflexive, une investigation des manières de se dire Segundo Ricoeur, a narrativa, ao imitar a
l’agent, de se reconnaître verbalement auteur de ses acção humana, tem o poder de pré-figurar,
propres actes.” (Ibidem, 95, tradução livre do autor.) de configurar e de transfigurar o mundo do

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homem, contribuindo decisivamente para a menêutica do si’ pode contribuir para pro-
constituição do si. mover a comunicação humana.
Em primeiro lugar é importante tentar es-
O plano Ético-Moral clarecer o que entendemos por comunicação.
Por comunicação pretendemos referir o
O sétimo, o oitavo e o nono estudos cen- processo através do qual os seres partilham
tram a sua investigação na dimensão ética e e põem em comum. Essa partilha não pode
moral da constituição da ipseidade. ser entendida como uma relação unilateral,
O agente está ligado à sua acção e é re- mas pressupõe receptividade e abertura ao
sponsável pelas consequências futuras que outro. Consideramos a comunicação uma
dela derivem. Reconhece-se responsável forma de relação entre os seres, entre ‘si-
pelas suas acções passadas e, sobretudo, as- mesmos’; uma forma privilegiada de relação
sume no presente a responsabilidade de ser entre ipseidade e alteridade.
si próprio aquele que agiu no passado e que Qual a importância que a comunicação,
agirá no futuro. considerada como uma acção, pode assumir
A dimensão temporal da ipseidade, forma na procura indirecta do si? O que acontece
dinâmica de permanência no tempo de uma à comunicação quando adquirimos a con-
identidade viva, reflexiva, adquire também sciência de que, como sujeitos, não somos
uma dimensão ética e moral; implica respon- um dado imediato, conquistado por intuição,
sabilidade. mas que nos começamos a compreender a
nós próprios através de muitas mediações?
Que importância pode assumir a comuni-
1.2 A problemática da cação para a construção da identidade-ipse,
comunicação para a ipseidade? O que acontece à comuni-
cação quando entendemos que a nossa iden-
A obra de Paul Ricoeur servirá de guia, de tidade não é estática, imutável, mas antes
luz orientadora, a partir da qual colocare- uma relação dinâmica com o tempo? Que
mos algumas questões relativas à comuni- importância assume a comunicação entre a
cação. Essas questões poderão revelar pon- ipseidade e a alteridade, a alteridade do outro
tos de contacto com alguns autores estuda- si, a alteridade da minha voz interna, da
dos ao longo da nossa licenciatura, questões minha alma, e a alteridade do meu corpo?
essas que nos esforçaremos por identificar e Ao limite, pretendemos questionar a co-
por explorar. municação no plano ontológico, como uma
A metodologia por nós adoptada consiste forma de ser, de agir. Como a forma privi-
em apresentar os estudos de SA relativos aos legiada de relação do homem com o mundo,
diferentes planos do agir e, com base nesses e do mundo com o homem. A comunicação
estudos, procurar o lugar e a importância adquire assim uma importância fundamental.
que, em nosso entender, a comunicação pode Estaremos a considerar a comunicação
assumir para a constituição da ipseidade. E como algo mais profundo do que a sim-
num sentido inverso, tentar compreender de ples troca de informações, no sentido da
que forma a consciência da constituição ‘her- comunicação funcional referida por Do-

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minique Wolton em “Pensar a Comuni- Ricoeur refere que é a problemática dos


cação”.12 Nesse sentido, estaremos mais pronomes pessoais que distingue e dinamiza
próximos de um conceito de comunicação estas duas abordagens.
a que Wolton apelidou comunicação norma-
tiva, considerada como partilha e comunhão. 2.1 Abordagem Semântica
Ao que ousaríamos adicionar, a partilha e a
comunhão de ‘si-mesmos’. A abordagem semântica caracteriza-se pela
procura do sentido dos enunciados. Centra
a sua análise no estudo da frase, que é a
2 O Plano do Discurso: unidade mínima do discurso.
A frase é uma totalidade irredutível à soma
Abordagem Semântica e das suas partes. Só nessa totalidade é pos-
Abordagem Pragmática sível a expressão de sentido, manifesto na es-
trutura da frase, na articulação das palavras
O plano do discurso corresponde ao primeiro
que a constituem.
registo de procura indirecta do si.
A Semântica é a ciência da frase, contra-
Os dois primeiros estudos de SA, através
posta à Semiótica, ciência dos signos.
de duas abordagens distintas da filosofia da
Contudo, falar é sempre falar de alguma
linguagem, procedem à pesquisa sobre a
coisa, é referir algo que está além da lin-
identidade do sujeito.
guagem. A referência surge assim como a
O plano do discurso agrupa em torno de si realidade para a qual o enunciado aponta.
a abordagem semântica e a abordagem prag-
mática. Duas abordagens que se comple- “Assim, a definição mais completa de
mentam e se dinamizam uma à outra. semântica é a teoria que relaciona a con-
Tal como afirmámos no estudo prece- stituição interna ou imanente do discurso
dente, o ‘dizer’ humano constitui uma à intenção exterior ou transcendente da
primeira forma de agir. Através do seu dizer, referência”.13
o homem pode designar pessoas, descrever
A hermenêutica, tal como é proposta por
acções, ou designar-se a si próprio.
Ricoeur, é a interpretação que caminha do
É importante referir que as duas aborda- sentido para a referência: do ‘o quê’ para
gens preservam alguma autonomia. A abor- o ‘acerca de quê’ do discurso. Uma her-
dagem semântica dedica a sua análise, so- menêutica que integra a dialéctica da expli-
bretudo, à pessoa de quem se fala, tratada cação e da compreensão. Não dispensa um
na terceira pessoa. Enquanto que a abor- momento analítico, explicativo, que procura
dagem pragmática centra a sua reflexão so- as articulações lógicas subjacentes à consti-
bre a primeira e a segunda pessoas, ‘um eu tuição da estrutura do texto. Contudo, a her-
que fala a um tu’ numa situação de inter- menêutica de Ricoeur não se limita ao mo-
locução. mento analítico, característico de algumas
12 13
D. WOLTON, Pensar a Comunicação, (Penser la P. RICOEUR, Teoria da Interpretação, (Interpre-
Communication), trad. port. V. Anastácio, ed. Difel, tation Theory: Discourse and Surplus of Meaning),
Lisboa 1999. trad. port. A. Morão, Ed. Porto, Porto, sd., 72.

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posições estruturalistas. Integra a compreen- um sujeito particular, como por exemplo,


são na explicação. Ambas constituem o cír- ‘Sócrates é um homem’. Contudo, além
culo hermenêutico: explicar mais para com- de ser um homem, Sócrates é um homem
preender melhor e compreender melhor para particular, distingue-se dos restantes homens
explicar mais. A compreensão procura resti- por poderem ser-lhe atribuídas característi-
tuir uma unidade à análise explicativa, reúne cas que o distinguem, que o tornam singular
os elementos identificados, as suas funções e único.
e reenvia-os para uma totalidade una, aberta Ricoeur distingue três categorias de oper-
e diferenciada. Compreensão e explicação adores de identificação, através dos quais a
relacionam-se dialecticamente e não con- linguagem minimiza o problema da general-
stituem dois momentos de um método que ização e abstracção que lhe é característica.
visa descobrir o sentido original do texto ou As três categorias de operadores de indi-
a intenção do seu autor. vidualização que permitem singularizar o su-
A abordagem semântica proposta no jeito de quem se fala são:
primeiro estudo de SA analisa o sujeito que Descrição definida - pela qual se con-
é enunciado, aquele de quem se fala. strói uma classe única de predicados para
Neste primeiro estudo, a questão do si é cada pessoa, através da intersecção de várias
colocada a um nível muito superficial. Não é classes. Por exemplo, ’o primeiro homem a
o acto de falar que é directamente estudado, ir à lua’ identifica um sujeito pela intersecção
mas antes o que é dito. das classes ‘primeiro’, homem’ e ‘lua’;
Como se designa alguém? Do que é que Nome próprio - processo que singulariza
falamos quando referimos uma pessoa em sem caracterizar, sem dar nenhuma infor-
oposição às coisas? mação acerca do sujeito;
É por um processo de individualização Pronomes pessoais, deícticos (pronomes
que distinguimos uma pessoa das restantes demonstrativos, advérbios de lugar e de
coisas e da globalidade dos corpos físicos. tempo) e tempos verbais - Estes indicadores
A identificação é o processo através do designam de cada vez sujeitos e coisas difer-
qual designamos alguém como uma entidade entes, pelo que a identificação exige o con-
única e distinta de todas as outras. Ape- hecimento da situação de enunciação.
sar de proceder por predicação e servir-se de O recurso aos operadores de individualiza-
conceitos, este processo não pretende classi- ção revela a necessidade de postular a alteri-
ficar, mas descrever mais e atingir o singular. dade no processo de identificação. O sujeito
Nesta medida, a identificação opõe-se à clas- designa-se por oposição aos outros sujeitos.
sificação, uma vez que esta última suprime a O primeiro homem a ir à lua distingue-se de
singularidade para abstrair o conceito. todos os outros que não foram, ou que não
É no discurso, entendido como o mo- foram os primeiros a ir lá. Pedro é um nome
mento de realização significativa da língua, disponível entre todos os nomes, e aquele
que o processo de identificação de alguém que está a ler o texto aqui e agora opõe-se
é possível. O discurso é a atribuição de a todos os outros.
um predicado a um sujeito lógico. Con- O processo de identificação procura re-
siste em atribuir um predicado universal a duzir a possível ambiguidade referencial do

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discurso e assegurar que os interlocutores re- Aparentemente, é o corpo que é recon-


conhecem as mesmas coisas e pessoas des- hecido como sendo o mesmo ao longo do es-
ignadas ou referidas. Apesar de se socorrer paço e do tempo. O corpo próprio tende, en-
de predicados universais, a identificação as- tão, a ocultar a ipseidade em favor da mesmi-
sume uma certa ostensividade ao ‘mostrar’ dade. Contudo, é legitimo perguntar qual
e ‘apontar’ para a coisa designada. Este as- é a ligação que se estabelece entre o corpo
pecto ostensivo é passível de inscrição na lin- próprio e a identidade-ipse.
guagem, sobretudo, através do recurso aos Pelo facto de serem considerados como
deícticos (aquele, aqui, agora), aos pronomes particulares de base, os conceitos de pessoa
pessoais e aos tempos verbais. O sentido e de corpo contrariam a ideia de um sujeito
deste tipo de operadores de identificação im- considerado uma consciência pura à qual se
plica uma auto-referência, visto que, por ex- juntaria um corpo.
emplo, ‘aqui’ e ‘agora’ são o espaço e o Surge então a dificuldade de saber se
tempo do sujeito da enunciação, do locutor. é possível predicar ‘qualidades psíquicas e
O nome próprio e a descrição definida mentais’ a um terceiro, tal como se predica
dependem menos do contexto espacio- a si mesmo.
temporal para identificar alguém. Con-
Aparentemente, predicar características
tudo, o nome próprio mostra-se menos efi-
físicas a um terceiro tal como se predica
caz para caracterizar uma pessoa e a de-
a si mesmo parece oferecer poucos proble-
scrição definida exige, por parte dos vários
mas, uma vez que descrevemos realidades
interlocutores, um mínimo de conhecimen-
observáveis. Mas será possível descrever ‘o
tos prévios comuns para proceder à identifi-
que vai na alma’ de outro?
cação de alguém.
É muitas vezes por combinação dos três Se o vocábulo ‘eu’ designa de cada vez
operadores que é possível reduzir a ambigu- pessoas diferentes, somos levados a concluir
idade de um discurso. Mas o que é ou quem que a possibilidade de predicação de ‘quali-
é o sujeito lógico de um processo de identifi- dades psíquicas’ tem de ser extensiva a qual-
cação? Do que é que falamos quando desig- quer outro que seja, que se pode designar a
namos uma pessoa, o que é uma pessoa? si próprio.
Os conceitos de pessoa e de corpo são in- Assim, o outro tem de ser reconhecido
troduzidos como particulares de base, como como sujeito de experiência, como possuidor
conceitos primitivos, que não podem derivar- de estados de consciência. Esta possibili-
se de nenhuns outros sem que a sua existên- dade dos estados de consciência significarem
cia não esteja já implicada. Pessoa e corpo sem referência à pessoa é a condição para se
são irredutíveis um ao outro. Uma pessoa falar de mente ou de psique.
é ou possui um corpo próprio, corpo esse Ao nível lógico e formal, a adscrição asse-
que é um corpo entre os restantes corpos. gura a possibilidade de predicar a alguém no
Mas é uma pessoa irredutível ao seu corpo, mesmo sentido que se predica a si mesmo.
na medida em quem podem ser-lhe predi- Esta ligação entre sujeitos lógicos e predi-
cadas ‘qualidades psíquicas e mentais’, que cados universais é ainda uma ligação fraca.
não são predicáveis ao seu corpo. Estabelece uma equivalência entre predicar

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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 11

‘qualidades psíquicas’ a si próprio e predicá- prossegue para uma investigação no campo


las a um outro. da Pragmática.
Ao nível da análise semântica, a pessoa
de quem falamos é uma das coisas entre as
restantes coisas do mundo. Através de re-
2.2 Abordagem Pragmática
cursos específicos, como a referência iden- A abordagem pragmática é a segunda es-
tifcante, a linguagem do quotidiano permite tratégia seguida em SA de procura do si na
a identificação e a reidentificação da pessoa alçada da filosofia da linguagem.
como sendo a mesma, de modo que os in- A Pragmática é a pesquisa sobre as situ-
terlocutores tenham por base a mesma refer- ações de interlocução, consideradas como
ência. Neste caso, é a identidade idem ou actos de discurso, como actos significantes,
a mesmidade que serve de referência à situ- que regulam o emprego da linguagem e con-
ação de interlocução: é de uma pessoa, que tribuem para a expressão do sentido dos
tal como eu, é sujeita de suas experiências enunciados. Coloca no centro das suas re-
e possuidora de certos predicados físicos e flexões, a própria enunciação, o acto de
psíquicos, que falamos. dizer. A pragmática procede à investigação
Designada como qualquer outra, a pessoa dessa reflexão do dizer no dito. A enunci-
de quem se fala não revela a sua identidade ação e o discurso são analisados como acon-
mais própria. Neste sentido, não há propri- tecimentos, como ocorrências no espaço e no
amente a possibilidade de adscrever a ipsei- tempo.15
dade de uma terceira pessoa, única, singular Esta corrente está fortemente marcada,
e indivisível. na filosofia analítica de tradição anglo-
saxónica, pela Teoria dos Actos de Discurso
“...é preciso adquirir simultaneamente a
(Speech-Acts) na linha dos trabalhos desen-
ideia de reflexividade e a de alteridade, a
volvidos primeiro por Austin e depois por
fim de passar de uma correlação fraca e
Searle.
muito facilmente assumida entre alguém
Austin distinguiu os enunciados em duas
e qualquer outro, e a correlação forte en-
grandes classes: constantivos, ou descritivos
tre si, no sentido de meu, e outro, no sen-
e performativos. Estes últimos distinguem-
tido de teu”.14
se dos anteriores pelo facto de realizarem
É neste contexto que a análise semântica aquilo mesmo que enunciam. A sua força
interpela a abordagem pragmática e solicita provém do facto de serem expressos na
a reflexão sobre o momento da enunciação, primeira pessoa: eu prometo, eu prometo-
momento em que o locutor se designa a si- te...
mesmo. Depois de Austin, Searle discrimina três
A investigação semântica do sujeito, como classes de actos subordinados, que se ref-
aquele de quem se fala, encontra as suas lim- erem tanto aos actos descritivos como aos
itações. E a investigação no plano linguístico 15
Para mais desenvolvimentos ver P. RICOEUR,
14
P. RICOEUR, O Si-mesmo como um outro, (Soi- Do Texto à Acção, (Du texte à l’action, Essais
même comme un autre), trad.brasileira, Ed. Papirus, d’herméneutique, II), trad. port. A. Cartaxo e M. J.
São Paulo 1991, 53. Sarabando, Ed. Rés, Porto, sd., 109 e seguintes.

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12 Miguel Franquet dos Santos Silva

performativos, e que se hierarquizam nos enunciação”16 . A reflexão do facto da enun-


seguintes níveis: ciação no sentido do enunciado interfere na
presumida transparência deste. Para exem-
1. Acto locutório – É o acto de dizer. Cor- plificar esta questão, Ricoeur dá o exemplo
responde ao conteúdo proposicional, à de dois enunciados: ‘o gato está sobre a es-
própria operação predicativa (dizer al- teira’ e ‘ eu afirmo que o gato está sobre a
guma coisa sobre alguma coisa). Pelo esteira’.
facto desta operação ser considerada um A primeira proposição tem a transparên-
acto salienta-se que são os locutores que cia de um enunciado puramente referencial,
fazem referência e não os enunciados ao passo que a segunda é atravessada pela
que referem; e que não são os enunci- reflexividade que reenvia o sentido para a
ados que querem dizer isto ou aquilo, própria enunciação.
mas os locutores que querem significar, Contudo, os dois enunciados têm o mesmo
estabelecer relações e criar sentidos; valor de verdade. Dependem da adequação
da proposição ao estado de coisas. São am-
2. Acto ilocutório – É o que fazemos ao bos verdade se o gato estiver efectivamente
dizer. Exprime a força que faz com que sobre a esteira e falsos se não estiver. Neste
um mesmo enunciado seja considerado caso, não é o conteúdo proposicional do
uma constatação, um pedido, ou uma enunciado que é fonte de opacidade, mas
ordem. Esta força expressa-se no dis- antes o facto da sua enunciação, expressa
curso oral através da prosódia, da en- pelo prefixo do performativo explícito ‘eu
toação, ou da expressão corporal. No afirmo que’. Dizer ‘eu afirmo que’ é fazer
discurso escrito inscreve-se, por exem- o que se está a dizer, isto é, afirmar alguma
plo, por meio da acentuação, ou do coisa.
tempo dos verbos; Ricoeur questiona se mesmo o acto lo-
cutório não pode ser considerado um acto
3. Acto perlocutório – O que fazemos por ilocutório, já que o locutor, ao afirmar al-
meio do acto de dizer. Este acto refere- guma coisa, pretende que o outro recon-
se aos efeitos que são provocados pelo heça o que ele diz como sendo verdadeiro.
dizer e que fazem do discurso um estí- Procura legitimar a sua capacidade para dizer
mulo que produz resultados. o que diz. Neste sentido, todo o acto de dis-
curso é atravessado por uma força ilocutória,
Enquanto que no acto ilocutório se pre- através da qual o sujeito do discurso procura
tende atribuir uma força ao enunciado, o acto legitimar o seu dizer e eliminar a opacidade
perlocutório realiza a sua intenção pelo facto resultante do ‘facto da sua enunciação’.
de dizer. Por outro lado, do ponto de vista lógico,
Exemplo do acto perlocutório é o casa-
16
mento, que as palavras do sacerdote, ou assi- F. RÉCANATI, La transparence et l’énonciation,
Paris, Éd. du Seuil, 1979, citado em P. RICOEUR,
natura de um documento efectivam. O Si mesmo com oum outro, (Soi-même comme un
Segundo François Récanati, “no sentido autre), trad. Brasileira, Ed. Papirus, São Paulo, 1991,
de um enunciado reflecte-se o facto da sua 63.

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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 13

‘eu afirmo que’ é o mesmo que dizer ‘eu bém um acontecimento porque ‘dá vida’ ao
declaro-te que’, ou seja, a enunciação equiv- código linguístico: é o momento de realiza-
ale à interlocução. ção da língua. Somente o uso da língua per-
A interlocução corresponde a uma troca de mite a significação.
intencionalidades: a intenção do locutor de Mas não é o enunciado que significa ou
dizer algo, ou de fazer algo dizendo, e a in- refere, mas sim os locutores. São estes
tenção do alocutor de reconhecer o propósito que agem e que fazem dizendo, tal como
do locutor. Este reflecte a sua intenção no nos mostra a Teoria dos Actos de Discurso.
seu dizer, aquele implica-se na situação ao Nesta medida, a tese segundo a qual o ‘facto
intentar reconhecer a intenção do primeiro. da enunciação’ introduz um grau de opaci-
O locutor e o alocutor não são considera- dade no sentido do seu enunciado tem de ser
dos o mesmo. Cada um deles é, implica-se compreendida à luz da implicação dos inter-
de maneira distinta na interlocução. As suas locutores nessa mesma enunciação.
intenções não são identificadas uma com a Não esqueçamos que o fio condutor deste
outra. É reconhecida a distância que os sep- estudo é a pesquisa sobre o sujeito que pode
ara. falar e que pode designar-se a si mesmo.
A Teoria dos Actos de Discurso, tal como A opacidade que pode resultar do ‘facto da
a apresentámos, mostra de que forma é enunciação’, não pode ocultar eternamente a
que o dizer se manifesta no dito; o facto opacidade que radica na reflexão na enunci-
de dizer interfere no sentido daquilo que ação do sujeito que diz.
é dito. Searle procedeu à identificação de
É com a ajuda dos operadores de identifi-
uma tipologia de actos subordinados e hier-
cação, especialmente os pronomes pessoais,
arquizados que, aparentemente, não implica
deícticos e verbos que o locutor se liga sim-
o sujeito da enunciação. E Récanati iden-
bolicamente, verbalmente, à sua enunciação.
tificou um factor de opacidade no discurso
Numa situação de interlocução, o locu-
proveniente do facto da sua enunciação.
tor, expresso pelo pronome pessoal ‘eu’, as-
Mas se é o locutor que ao agir cria senti-
sume uma importância preponderante. Mas
dos e faz referência e não o enunciado, será
o vocábulo ‘eu’ é ele próprio ambíguo:
a opacidade resultante do dizer no dito uni-
camente explicada pelo carácter de acontec- Do ponto de vista paradigmático ele é um
imento da enunciação? Que relação se esta- pronome pessoal, que designa a cada vez
belece entre esse carácter de acontecimento aquele que o emprega ao falar;
dos actos de enunciação e o seu sujeito? Em Do ponto de vista sintagmático ele é o
que medida a opacidade resultante do facto ponto de ‘ancoragem’ de toda a enunciação,
da enunciação implica o seu locutor? É o lo- o sustentáculo de todos os outros operadores
cutor fonte da opacidade? de identificação. Designa a pessoa, centro de
O discurso, diz Ricoeur, actualiza-se perspectiva sobre o mundo, única e limite do
como acontecimento e compreende-se como seu mundo.
significação. É um acontecimento na medida Do ponto de vista lógico, ‘eu estou con-
em que acontece num tempo e num espaço tente’ e ‘a pessoa que se designa a ela própria
determinado, único e irrepetível. Mas é tam- está contente’ não coincidem. Não há equiv-

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14 Miguel Franquet dos Santos Silva

alência entre o ‘eu’ e o referente da referên- apontar para um limite à comunicabilidade


cia identificante. da pessoa humana?
Por um lado, o termo ‘eu’ parece acom- Ao mesmo tempo que se pode dizer, se
panhar o processo da ipseidade, não re- pode expressar dizendo, o sujeito encontra o
flectindo uma identidade estática, imutável, limite do seu dizer, depara-se com o inefável.
uma vez que refere o sujeito que a cada vez é A sua linguagem é o seu mundo, constitui o
ele próprio sem ser o mesmo. Contudo, é ex- horizonte de sentido que enquadra todas as
tensivo a todos aqueles que o empregam ao suas experiências. Não é só o mundo cos-
falar. É no mesmo sentido que qualquer pes- mológico que está em seu redor e do qual
soa diz ‘eu’, referindo-se desse modo a ela faz parte, mas o seu mundo, limite do seu
própria. pensar, do seu dizer, do seu sentir. O ‘eu’
Quem é o ‘eu’ sujeito da enunciação? estabelece com o seu mundo uma relação de
Tal como a investigação sobre a pessoa, en- pertença da qual não se consegue distanciar,
quanto aquele de quem se fala, solicita uma que não lhe permite uma reflexão total sobre
abordagem pragmática, também esta se so- si próprio.
corre da teoria da referência identificante da
abordagem anterior.
No âmbito da Pragmática o ‘eu’ ganha
“Se ser pessoa é o tipo maior de sub-
mais sentido se for nomeado, tal como o aqui
sistência e, portanto, de distinção, de
e o agora adquirem mais sentido se os reme-
separação ou de incomunicabilidade on-
termos para um eixo de coordenadas geográ-
tológica, é ao mesmo tempo o ser mais
ficas e para um ponto determinado do cal-
aberto e mais comunicante com todos os
endário.
seres e valores”.18
Através de um processo de nomeação, é
possível ao ‘eu’ adscrever um nome a si
próprio e dizer ‘eu, Miguel Silva’. O ‘eu’,
reflexo da minha enunciação, do meu dizer, Para Ricoeur, esta questão não pode ser re-
pode ser identificado e reidentificado como solvida no âmbito da filosofia da linguagem.
sendo o mesmo em todas as ocorrências Com efeito, é uma questão que aponta para a
através de uma referência identificante, de ontologia, para a interrogação sobre que ser é
um nome. Mas qual é então a relação que esse que se presta a uma dupla identificação,
se estabelece entre o ‘eu’ sujeito do acto de como pessoa que se reflecte no seu fazer e
enunciação e a pessoa identificável por um como pessoa objectiva, identificável com um
processo de nomeação? nome.
Wittgenstein, em “Tractatus Lógico-
Philosophicus” refere que “5.6 Os limites e Investigações Filosóficas, (Tractatus Logico-
Philisophicus e Philosophical Investigations), trad.
da minha linguagem são os limites do meu port. M. S. Lourenço, Ed. Fundação Calouste Gul-
mundo” e “5.632 Eu sou o meu mundo benkian, Lisboa, 1995, 114-115.
(microcosmos)”.17 Estará Wittgenstein a 18
J. TEIXEIRA, “Pessoa”, in Logos, Enciclopé-
dia Luso-Brasileira de Filosofia, Vol. IV, Lisboa/São
17
L. WITTGENSTEIN, Tratado Lógico-Filosófico Paulo, Ed. Verbo, 1989, 101-102.

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2.3 Discurso e Comunicação curso”, pronunciado por Michel Foucault, a


2 de Dezembro de 1970, por ocasião da sua
De que forma é que o estudo apresentado
aula inaugural no Collège de France19 .
sobre o plano do discurso pode iluminar a
Segundo Foucault, o acontecimento do
problemática da comunicação humana?
discurso é controlado, seleccionado e organi-
A abordagem semântica explicita as pos-
zado com o propósito de esconjurar os seus
sibilidades e os limites de falar de uma ter-
poderes e perigos.
ceira pessoa; quando a pessoa é aquela de
Este controlo exercido sobre o discurso
quem se fala, a possibilidade de identificação
pode ser, em nossa opinião, considerado um
não vai além da referência identificante. O
factor de opacidade do discurso na medida
nosso dizer acerca da identidade de um outro
em que produz ruído e perturbação à comu-
é muito limitado. Podemos adscrever-lhe
nicação, à interlocução.
algumas características físicas e psíquicas,
tal como as poderíamos predicar a qualquer A opacidade do discurso seria aqui resul-
outro. É ao nível da identidade-idem, da tante de um conjunto de procedimentos de
mesmidade, que falamos do outro. poder, uns externos, os outros internos ao
discurso.
A abordagem pragmática mostra como a
pessoa é, ao mesmo tempo, aquela que fala A investigação de Foucault parte da con-
e aquela de quem se fala numa situação de statação de que o discurso é ele próprio o
interlocução. Esta última abordagem coloca objecto de desejo dos mecanismos de poder.
os limites da comunicabilidade da pessoa hu- Ao longo do seu texto procura identificar os
mana mais além, mas não consegue superá- diferentes constrangimentos que afectam a
los. produção do discurso. A vontade de ver-
dade é identificada como foco aglutinador de
Numa situação de interlocução o sujeito
todos os mecanismos de exclusão e de con-
designa-se a si mesmo. Porém, mesmo no
trolo. Segundo o autor essa vontade de ver-
plano linguístico o sujeito depara-se com al-
dade contribui inevitavelmente para obscure-
gumas dificuldades e limites ao ‘dizer-se’.
cer o caminho até ela.
A relação ambígua que se estabelece entre
o ‘eu’ sujeito da enunciação e o referente Os assuntos interditos ou a distinção en-
da referência identificante são a esse título tre razão e loucura são dois dos processos de
exemplificativas. O sujeito não consegue controlo do discurso que actuam do seu ex-
reflectir-se totalmente. terior. O comentário dos textos, a legitimi-
dade do discurso oriunda do autor, ou a seg-
Ao longo da abordagem pragmática
mentação do saber em disciplinas estanques,
procurámos compreender a problemática da
com metodologias e formas de verificação
opacidade do discurso, derivada da reflexão
próprias são os processos que actuam no in-
do dizer no dito. Segundo Récanati, a opaci-
terior do discurso.
dade provém do acto do discurso ser um
acontecimento do mundo, que tem lugar num Todos estes processos de controlo do dis-
espaço e num tempo determinados. 19
M. Foucault, A Ordem do Discurso, (L’ ordre du
A este respeito parece interessante con- discours), trad. port. L. Fraga e A. Sampaio (Brasil),
vocar o pequeno texto “A Ordem do Dis- ed. Relógio d’Água, Lisboa, 1997.

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16 Miguel Franquet dos Santos Silva

curso constituem-se como entraves à cri- O autor parece referir-se à dificuldade de


ação de novas relações de sentido, de novas inscrição no discurso de uma identidade ipse,
propostas de ser-no-mundo. Na sua base, de uma ipseidade.
estes entraves negligenciam a constituição
hermenêutica de todo o real, que está em per- O que há de categórico e de decisivo
manente relação, que pede para ser interpre- no discurso parece não se adequar a uma
tado. identidade-ipse, como forma dinâmica de
Mas as análises sobre a abordagem prag- permanência no tempo. Pelo contrário, o dis-
mática salientaram outra forma de opacidade curso parece fixar uma identidade, no sen-
dos discursos, talvez mais radical e profunda tido de mesmidade, com a qual o sujeito
que a primeira: a dificuldade de próprio su- pode deixar de se identificar, no limite, até
jeito se dizer a si próprio. no próprio momento da enunciação.
Foucault parece abordar este problema no Parece legítimo perguntar porque dizemos
início do seu texto: as coisas que dizemos. Será que somos sem-
pre os actores conscientes dos nossos enun-
“Não queria ter que entrar eu mesmo ciados?
nesta ordem aleatória do discurso; não
queria ter de me confrontar com o que Tal como sucede com outras formas de
ele tem de categórico e de decisivo; agir, o homem pode interpretar a sua comu-
gostaria que o discurso existisse em meu nicação e tentar compreender-se um pouco
redor como uma transparência calma, melhor a partir dessa reflexão.
profunda, indefinidamente aberta, onde
Aquilo que o homem comunica pode ser
os outros respondessem à minhas expec-
uma novidade inclusivamente para ele. E
tativas, e de onde, uma a uma, as ver-
ao interpretar as suas próprias palavras o
dades se erguessem.”20
homem encontra uma mediação que o vai
aproximando de ‘si-mesmo’.
Esta afirmação de Foucault parece tocar
no aspecto que consideramos ser o maior Do mesmo modo, ao interpretar aquilo
contributo do estudo sobre o plano do dizer que outros comunicaram e comunicam,
para a problemática da comunicação: o re- através das conversas que mantém, ou das
conhecimento do limite da comunicabilidade leituras que faz, o homem apercebe-se de
humana. outras formas de habitar o mundo, outras
A linguagem humana pela qual o homem formas de ser, que podem, também elas,
se diz a ele próprio não é uma linguagem contribuir para engrandecer o seu próprio
científica. É impossível encontrar na lin- mundo.
guagem uma forma de dizer o homem,
naquilo que ele é, ou vai sendo. Para se dizer Pensamos que o estudo da comunicação,
o homem tem de se interpretar e a sua ex- encarada como acto de um sujeito pode
pressão tem também ela de ser interpretada. inscrever-se num estudo mais lato, no campo
da filosofia da acção. Este parece ser o con-
20
M. Foucault, Op. Cit., 8. tributo da Teoria dos Actos de Discurso.

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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 17

3 O Plano da Acção: Abordagem A abordagem pragmática investiga as pos-


Semântica e Abordagem sibilidades de adscrição da acção ao agente,
assente num ‘poder fazer’ que o autorize a
Pragmática
dizer que a acção depende de si, que está em
O plano do agir abarca os dois estudos so- seu poder, que é a sua acção. Esta inves-
bre a teoria da acção. Engloba o terceiro e tigação suscita algumas aporias, problemas
o quarto estudos de SA que procuram nos limite, que permitem formular novas pergun-
enunciados e frases de acção a expressão do tas e desvelar novos sentidos relativos à lig-
agir humano e a relação que a acção estab- ação do agente com a acção, como verifi-
elece com o seu agente, sobretudo, na linha caremos no decorrer dos próximos estudos
das pesquisas de tradição anglo-saxónica da sobre a teoria narrativa.
filosofia analítica. O conceito de pessoa, que no estudo an-
Ambos os estudos pressupõem a possibil- terior é a mesma coisa a quem se predicam
idade de investigar a acção a partir do dizer características físicas e psíquicas, aquele de
humano. Contudo, apesar de se socorrer da quem se fala e aquele que se designa a si
linguagem do quotidiano para proceder à sua próprio é agora alguém que age, alguém que
investigação, a teoria da acção constrói a sua tem o poder de intervir no mundo.
própria rede conceptual, de modo a clari-
ficar algumas noções que a linguagem co- 3.1 Abordagem Semântica
mum tende a confundir.
Neste sentido, a teoria da acção enriquece “Semântica da acção sem agente” é o tí-
as investigações sobre a filosofia da lin- tulo do terceiro estudo de SA.21
guagem, que lhe serve de ‘organon’, de in-
strumento, ao explicitar a originalidade da O método das pesquisas em filosofia
relação entre agente e acção. analítica da acção consiste em descrever a
A teoria da acção contribui assim para a acção humana a partir da sua expressão
‘hermenêutica do si’ ao introduzir novas pis- simbólica, neste caso linguística, tornada
tas nas análises que visam distinguir mesmi- pública através de um enunciado. A partir do
dade e ipseidade, iniciadas no decorrer dos uso quotidiano das frases de acção, desen-
estudos anteriores. volve uma rede conceptual, que estabelece
Tal como sucede com o plano do dizer, as bases para toda a investigação futura so-
também o plano do agir é constituído por bre o agir humano, ao determinar o que conta
duas abordagens distintas e complementares: como acção entre os restantes acontecimen-
a abordagem semântica e a abordagem prag- tos do mundo.
mática. A noção de rede sugere uma malha de in-
A abordagem semântica centra a sua tersignificações que liga todos os conceitos
análise na clarificação da acção humana, ex- uns aos outros, de modo que o significado de
pressa no sentido dos enunciados, e na dis- 21
“Une sémantique de l’action sans agent” (P. RI-
tinção entre acção e os restantes fenómenos COEUR, “Soi-même comme un autre”, Éd. Seuil,
expressos verbalmente. Paris 1990, 73).

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18 Miguel Franquet dos Santos Silva

cada um só se manifesta plenamente na re- mente. Somente quando descrito como um


lação que estabelece com o todo da rede. A acontecimento, como um facto que ocorreu,
acção é a acção de um agente, assim como ou ainda ocorre (o braço moveu-se), pode ser
o motivo é o motivo de alguém que age, que alvo de verificação ou de falsificação, depen-
tem a intenção de atingir um fim, que deseja dentemente da adequação da proposição ao
qualquer coisa. estado de coisas.
A rede conceptual da acção resulta da É o intuito de esclarecer o que conta
cadeia de perguntas que pode ser colocada como acção entre os restantes fenómenos
ao agente de uma acção. Contrariamente a do mundo que coloca o par de perguntas ‘o
algumas posições da psicologia, a filosofia quê?’ – ‘porquê?’ no centro das análises da
analítica não funda os seus conceitos na ob- filosofia analítica da acção e que, de algum
servação de acontecimentos interiores, ou modo, contribui para ocultar a pesquisa em
na constatação de sensações cinestésicas ca- torno da questão ‘quem?’.
pazes de informar sobre a acção e sobre o seu Tal como referimos a propósito dos con-
agente. ceitos pertencentes à rede conceptual da
acção, também as perguntas ‘o quê?’ e
“... na filosofia da linguagem ordinária, ‘porquê?’ mostram-se interdependentes.
não se trata de acrescentar algo ao con- Com efeito, dizer o que é uma acção é
hecimento empírico, mas de reflectir so- começar a explicá-la; neste sentido, descr-
bre a coerência e a conveniência do dis- ever implica explicar por razões. Por outro
curso.”22 lado, para explicar por que uma acção teve
lugar é necessário referi-la, descrevê-la. Não
3.1.1 Acção e Acontecimento faz sentido falar em motivos sem falar da
acção da qual eles são o motivo.
A noção de acção começa por ser definida O conceito de acção parece assim remeter
em oposição à noção de acontecimento. para um conjunto de razões que explicam o
Acontecimento é o que chega ao mundo, facto do seu aparecimento: para um conjunto
aquilo que depois de observado pode ser ob- de motivos e de intenções que a distinguem
jecto de um enunciado descritivo verdadeiro de outros acontecimentos.
ou falso.
A acção é o que faz chegar; é o que pode
tornar verdadeira ou falsa uma asserção so- 3.1.2 Motivo e Causa
bre a sua realização. Uma vez realizada Do mesmo modo que o conceito de acção
torna-se um acontecimento, mas em si não começa por ser definido em oposição ao con-
pode ser alvo de uma proposição verdadeira ceito de acontecimento, também o conceito
ou falsa. Por exemplo, o acto de levantar o de motivo começa por se opor ao de causa.
braço não pode ser alvo de uma prova de ver- Emergem assim dois universos de discurso
dade, não é verdadeiro nem falso, é simples- aparentemente opostos e incomunicáveis: a
22
P. RICOEUR, O Discurso da Acção, (Le Dis- um deles pertencem as noções de acção e
cours de l’Action), trad. port. A. Morão, Ed. 70, de motivo, ao outro pertencem as noções de
Lisboa, sd, 30. acontecimento e de causa.

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Segundo Hume o conceito de causa pode Em muitos casos, as respostas a estas per-
ser definido independentemente do conceito guntas não enunciam um motivo racional,
de efeito, não havendo entre eles uma ligação fruto de uma deliberação, e em vez disso rev-
de implicação lógica. O exemplo referido em elam uma certa passividade por parte do su-
SA relaciona fósforo e incêndio, que podem jeito da acção. No caso das perguntas acima
ser definidos isoladamente, não se impli- colocadas, o agente pode responder que foi
cando necessariamente um ao outro. Neste uma pulsão ou uma disposição que o impeliu
sentido, uma explicação causal é a que es- a agir, ou pode mesmo dizer que é da sua
tabelece correspondências entre fenómenos ‘natureza’ agir assim em determinadas situ-
independentes uns dos outros. ações, que faz parte do seu carácter.
Inversamente, motivo e acção não podem Esta passividade inscreve-se numa
ser definidos um sem o outro, existindo en- gramática da afecção, ou da paixão. Pelo
tre ambos uma relação de implicação mútua, facto destes aspectos da identidade do
uma conexão lógica que impede que se iden- sujeito contribuírem para o afectar enquanto
tifique motivo com causa. agente podemos falar de auto-afecção.
Os motivos assemelham-se às razões de Neste sentido, o desejo introduz no dis-
agir. Pergunta-se pelos motivos de uma curso da acção um tipo de explicação que se
acção para inquirir sobre a ordem de razões afasta da ordem das razões e que exige uma
que explica, a posteriori, determinada acção. reavaliação do conceito humeano de causa
No entanto, considerar que todos os motivos (pelo facto de o desejo não constituir um an-
são racionais seria ignorar a importância que tecedente sem ligação lógica com a acção
o desejo assume na acção. consequente). Num certo sentido, é o agente
Na realidade, o desejo intervém na acção que se constitui como a causa da acção.
quer como dimensão racional, como sentido, Convém referir que o desejo não concorre
quer como força que constrange e afecta o para a explicação da acção em virtude de
sujeito. se constituir como uma dimensão interior
As análises fenomenológicas reconhecem passível de observação no decurso da acção.
essa dupla constituição do desejo. O desejo é sempre o desejo de qualquer
Por um lado, o desejo identifica-se com coisa, o desejo de agir ou de atingir alguma
uma certa noção de sentido. É a dimensão coisa agindo. Com efeito, o desejo inscreve-
racional que intervém na deliberação como se na explicação da acção, em virtude de es-
cálculo, como ponderação. Por outro lado, o tar logicamente implicado nesta.
desejo caracteriza-se por uma ideia de força Esta descrição fenomenológica do desejo
que afecta o sujeito e o impele a agir. propõe a superação da dicotomia entre mo-
Na linguagem do quotidiano é com fre- tivo e causa, pelo facto de introduzir na ex-
quência que se pergunta: plicação da acção uma dimensão ‘causal-
ista’.
“O que é que te impeliu a fazer isso?”; Mas também no plano ontológico a dico-
tomia entre acção e acontecimento e entre
“O que explica que te tenhas comportado motivo e causa é criticada.
dessa maneira?” Se corpo e pessoa são conceitos ir-

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redutíveis um ao outro, sendo que ao A análise da linguagem comum identifica


corpo se predicam características físicas e três usos correntes do termo intenção:
à pessoa características psíquicas e men-
1. Segundo o seu uso adverbial, a intenção
tais, dualidade que legitimaria a dicotomia
diz-se da acção realizada intencional-
acção/acontecimento e motivo/causa, é à
mente. Mas o que distingue a acções
‘mesma coisa’, à pessoa, que atribuímos as
intencionais?
duas séries de predicados. Assim, a acção
tem de ser considerada como uma certa con- As acções intencionais são as que
figuração de movimentos físicos, bem como fornecem as razões de agir como re-
um comportamento susceptível de ser inter- sposta à pergunta ‘porquê?’.
pretado segundo um horizonte cultural vasto, Contudo, em alguns casos, as razões
que o integra e torna significante. de agir confundem-se com as causas.
São exemplos disso a vingança ou a
gratidão.
3.1.3 Acção e Intenção
No entanto, a espécie mais frequente-
A análise conceptual da intenção apresenta, mente nomeada de vontade, o desejo,
no quadro da teoria da acção, uma nova enfatizado pela análise conceptual da
hipótese de recolocar a questão ‘quem?’ no intenção, não é aquele que afecta o su-
centro da pesquisa sobre a acção. jeito paciente, que o constrange, mas
Contudo, segundo Ricoeur, as várias antes o seu carácter de ‘desejabilidade’.
pesquisas da filosofia analítica sobre a acção A acentuação deste lado objectivo do
tendem a afastar essa possibilidade, ao colo- desejo desloca a atenção da questão
car para segundo plano o uso da intenção ‘quem?’ para o par de questões ‘o quê?’
como ‘intenção de’. Esse enfoque de uma – ‘porquê?’, contribuindo dessa forma
consciência em direcção a alguma coisa para ocultar o agente da acção.
a agir, colocaria no centro das análises a 2. Segundo o seu uso prospectivo, a in-
ligação entre agente e intenção. No en- tenção é a intenção pela qual se age. Ex-
tanto, a análise da ‘intenção de’ depende plicar uma certa intenção da acção é de-
da declaração de intenção por parte de um screver a ordem de razões que preside
agente, estudo que gravita em torno da abor- ao raciocínio prático que dá origem à
dagem pragmática e da Teoria dos Actos de acção.
Discurso.
Através do raciocínio prático o agente
O estudo de uma intenção não confirmada opta pela acção que poderá produzir a
por uma acção realizada, como é o caso da situação ulterior por si desejada.
‘intenção de’, conduz as análises semânti-
cas da intenção a privilegiar o seu uso adver- Neste caso, também as questões ‘o
bial, como acção realizada intencionalmente, quê?’ e ‘porquê?’ podem contribuir
passível de confirmação por uma acção e de para obliterar a questão ‘quem?’.
uma descrição pública através de um enunci- Segundo Ricoeur, em muitos casos, é a
ado. excessiva preocupação com a descrição

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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 21

da acção que tende a ocultar a adscrição 3.1.4 Ontologia do Acontecimento Im-


da acção ao seu agente. Para exempli- pessoal
ficar esta questão pensemos no relato
de uma acção que se preocupe exclu- É neste estádio da pesquisa sobre a rede con-
sivamente em descrever os factos, sem ceptual da acção que Ricoeur faz referência
procurar a unidade de sentido que pre- à obra de Donald Davidson.
side à acção, unidade inevitavelmente A tese de Davidson consiste em sustentar
radicada na ‘intenção de’ do agente. que a explicação por razões é uma espécie de
Esta descrição assemelhar-se-ia a um explicação causal.
inventário de fenómenos e não possuiria Em primeiro lugar é necessário referir que
qualquer configuração, qualquer sen- a explicação causal deve ser entendida à luz
tido. da tradição humeana, no sentido em que os
antecedentes e os consequentes podem ser
definidos independentemente um do outro.
3. Por último, o terceiro uso do conceito
de intenção, ‘ter intenção de’, exige a A explicação causal assenta, assim, no es-
atestação do agente à sua acção. A sua tabelecimento de relações de sentido entre
referência explícita ao futuro não per- vários acontecimentos singulares e descon-
mite o recurso à análise semântica, a tínuos.
não ser ao nível da declaração. Nessa Esta singularidade e descontinuidade en-
medida, a pesquisa sobre a ‘intenção tre os acontecimentos, necessária para que
de’ tem de ser remetida para uma abor- a explicação causal preserve um sentido
dagem pragmática, para uma reflexão humeano, só é possível mediante o reconhec-
sobre o acto de declarar uma intenção, imento de um estatuto ontológico dos mes-
pela qual o agente atesta a si a sua mos, equivalente à consignação de existên-
acção. cia dos objectos físicos. Segundo o autor,
os acontecimentos possuem uma substância,
subsistem por si.
“Há um momento (...), em que só um Por sua vez, as acções são consideradas
homem pode dizer qual é a sua intenção. como uma subclasse dos acontecimentos,
Mas não é nunca o equivalente a uma de- uma vez que a sua descrição refere algo que
scrição pública; é uma confissão partil- aconteceu, ou que está a acontecer. Se-
hada”.23 gundo Davidson, o que distingue as acções
dos restantes acontecimentos é a sua inten-
cionalidade, ou seja, o facto de visarem um
Ao nível da semântica da acção a ‘in-
fim, de realizarem uma intenção.
tenção de’ é remetida para a análise dos
O propósito de incluir uma explicação
seus outros usos, como acção realizada in-
causal na descrição da acção leva Davidson
tencionalmente e como motivo prospectivo.
a optar pelo uso adverbial do termo intenção.
23
P. RICOEUR, O Si-mesmo como um outro, (Soi- Como referimos a propósito da análise
même comme un autre), trad. brasileira sa., Ed. Pa- conceptual da intenção, é o seu uso adver-
pirus, S. Paulo, 1991, 91. bial que torna a descrição da acção numa ex-

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plicação das razões que levaram à sua efec- como fim é dizer que as condições que o
tivação. Deste modo, a intenção que carac- produziram são as que se requerem para
teriza a acção e que atribui à sua descrição a produzir o seu fim.”24
um carácter teleológico aparece submetida
a uma explicação causal que a remete para Este tipo de explicação adopta um con-
um conjunto de razões que estão a montante ceito de causa que se afasta do sentido
da acção, o que aparentemente constitui um humeano, pelo facto de ligá-la à acção, uma
paradoxo. vez que classificar uma acção como inten-
Levanta-se a seguinte questão: o carác- cional é decidir por que sistema a acção deve
ter intencional que distingue as acções dos ser explicada e excluir dessa explicação to-
restantes acontecimentos, quando reduzida dos os outros sistemas.
às ‘razões de’, esconjura a dimensão não
racional do desejo, identificada com a força e 3.1.5 Agente e Acção
com a ideia de passividade inerente à acção,
que aproxima a motivação da causalidade. Ao longo da exposição da abordagem
Dito de outro modo, surge a dificuldade semântica, há uma omissão da relação entre
de, por um lado, incluir na descrição tele- acção e agente.
ológica – que explicita as razões da acção - Os conceitos da rede conceptual da acção
a dimensão fenomenológica do desejo (difi- explicitados não exigem que o conceito de
culdade resultante do recurso ao uso adver- agente vá além da sua referência identif-
bial da intenção) e, por outro lado, de deslo- icante, de um ‘alguém’ expresso por um
car o conceito de causa, no sentido humeano, pronome pessoal qualquer.
para um conceito de causa ligado à acção. O uso adverbial da intenção contribui para
(em virtude da descontinuidade e impessoal- essa omissão, contraposta ao seu uso sub-
idade inerente à ontologia do acontecimento stantivado - ‘intenção de’ - que atende ao
impessoal). carácter temporal da intenção e que exige a
Charles Taylor introduz, a este respeito, o atestação do agente à sua acção sob a forma
conceito de explicação teleológica. Este con- de uma declaração de intenções.
ceito permite integrar à descrição da acção A explicação teleológica permite incluir
no plano discursivo, a explicação da acção na descrição da acção o seu carácter inten-
do tipo causal. cional e a sua explicação causal, mas ao ele-
A explicação teleológica consiste em de- vado preço da remissão da ligação da acção
screver um sistema ou uma lei de sistemas, ao seu agente para um segundo plano.
que explique que o facto de um aconteci- Finalmente, a ontologia do acontecimento
mento ter ocorrido é o resultado da intenção impessoal desenvolvida por Davidson não
para a qual ele tende. exige que o agente seja um ‘si-mesmo’, di-
verso de qualquer outro. A sua focaliza-
“...não são as condições antecedentes ção na existência do acontecimento, no seu
que explicam, mas a própria ordem que 24
P. RICOEUR, O Discurso da Acção, (Le Dis-
essas condições produzem. Dizer que um cours de l’Action), trad. port. A. Morão, Ed. 70,
acontecimento sucede porque é visado Lisboa, sd, 58.

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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 23

carácter irredutível, torna o agente num mero Mas será a adscrição de uma acção a seu
portador do acontecimento. agente equivalente à atribuição de predica-
Segundo Ricoeur é necessário desenvolver dos físicos e psíquicos às pessoas?
uma outra ontologia, que devolva ao estudo Será a acção um predicado como outro
sobre a acção a referência ao agente, consid- qualquer?
erado um ‘si-mesmo’.
3.2.1 Aristóteles
“Essa outra ontologia seria a de um
ser em projecto ao qual pertenceria No Livro III da Ética a Nicómaco, Aristóte-
de direito a problemática da ipseidade, les refere que a acção é dita depender do seu
como pertence de direito à ontologia do agente, num sentido específico da relação de
acontecimento a problemática da mesmi- dependência.
dade.”25 O Estagirita começa por distinguir as
acções que são feitas ‘apesar de si’ das
acções realizadas de ‘plena vontade’.
3.2 Abordagem Pragmática As acções feitas ‘apesar de si’ são aque-
Ao longo da abordagem semântica, a las cuja origem é exterior ao homem, que
força exercida pelas análises lógicas das não dependem de si. São exemplos deste
proposições, bem como as consequências da tipo de acções as que resultam da coacção
ontologia do acontecimento impessoal, difi- ou da ignorância. O seu princípio está fora
cultaram a pesquisa sobre a relação que se do agente.
estabelece entre o agente e a acção. As acções realizadas de ‘plena vontade’
A abordagem pragmática visa restituir à têm a sua origem no homem, dependem de
pergunta ‘quem?’ o lugar central no estudo si. Resultam de uma escolha preferencial e
da acção. A sua tarefa é estudar a especifici- de um momento pré-deliberativo, no qual o
dade da adscrição da acção ao seu agente, en- agente decide o que agir.
riquecida pelas várias mediações que as in- Neste sentido, o agente (autos) é o princí-
vestigações sobre o par de perguntas ‘o quê?’ pio (arkhé) da sua acção. Este sentido de de-
e ‘porquê?’ proporcionaram. pendência da acção ao seu agente, através da
A adscrição, tal como a definimos ao escolha preferencial, liga a teoria da acção à
longo do plano do dizer, consiste numa teoria ética. Segundo Aristóteles, o agir es-
atribuição de predicados físicos aos corpos e pecificamente humano pode caracterizar-se,
de predicadas psíquicos às pessoas, consid- essencialmente, por ser próprio à virtude, por
erados particulares de base. A pessoa é con- assumir uma dimensão ética.
siderada a ‘mesma coisa’ a quem se atribuem O conceito de princípio, por si só, não é
predicados físicos e psíquicos, predicados suficiente para especificar a ligação da acção
que conservam o mesmo sentido adscritos a ao agente, uma vez que é comum a todas
um si e a um diverso de si. as investigações sobre as coisas primeiras e
25
P: RICOEUR, O Si-mesmo como um outro, não discrimina o plano ético do plano físico.
(Soi-même comme un autre), trad. brasileira sa., Ed. Uma acção pode dizer-se ter o seu princí-
Papirus, S. Paulo, 1991, 107. pio no agente pelo facto de ser ele, ser o seu

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corpo, a desencadear um conjunto de movi- referem-se sempre a um agente, têm um au-


mentos físicos, observáveis, que dão origem tor.
à acção. A possibilidade de se distanciar da acção,
Com efeito, a relação entre acção e agente de pôr diante de si um leque de possibili-
só se pode especificar conjugando o conceito dades, de efeitos e de consequências, permite
de princípio e um dos termos que respondem ao agente deliberar e decidir como agir. É na
à pergunta ‘quem?’: “um princípio que é um reapropriação da deliberação que consiste a
si e um si que é princípio”. adscrição, através da qual um agente torna
É a referência a um sujeito, ele próprio o sua uma intenção e rejeita as restantes.
princípio de uma acção, que permite implicar O motivo, distingue-se da intenção, essen-
a pessoa, a quem se atribuem simultanea- cialmente, por se tratar de uma explicação
mente predicados físicos e psíquicos. Pes- de uma acção já realizada. O motivo liga-se
soa que não só executou a acção, como tam- tanto ao seu agente, como a sua significação
bém decidiu, segundo uma ordem de razões, se implica logicamente na acção. Para ques-
o que agir. tionar acerca de um motivo é necessário con-
Segundo Ricoeur, é esta conjugação entre jugar ‘quem?’ ‘o quê?’ e ‘porquê?’ (Porque
princípio e ‘o si’ que instaura o enigma que é que o Pedro se ria?). O motivo é sempre
se abre à investigação sobre adscrição. Difi- o motivo de alguém e de alguma acção. No
culdade expressa nas diferentes traduções do entanto, autor e o motivo estabelecem uma
texto de Aristóteles, que opõem uma acção relação paradoxal: se por um lado a pesquisa
que ‘depende de nós’ de uma acção que ‘está sobre o autor termina com a designação de
em nosso poder’. um nome, ou com outra referência identifi-
cante, a pesquisa sobre as razões de agir são
A preposição ‘em’ permite exprimir mel-
intermináveis. As motivações mergulham no
hor a passagem do plano físico para o plano
que há de mais inefável no homem, no mais
ético, ao passo que a preposição ‘de’ parece
profundo de si.
limitar-se mais estritamente ao plano ético.
A investigação sobre adscrição enraíza-
As metáforas da paternidade e de domínio se no cruzamento das pesquisas sobre o
são introduzidas por Aristóteles com o ‘quem?’ e sobre o ‘porquê?’, sobre a relação
propósito de clarificar a originalidade da re- entre o autor e o motivo.
lação de dependência da acção ao seu agente. Segundo Ricoeur, designar-se agente de
O homem é o pai das suas acções, o seu uma acção significa mais do que designar-se
princípio criador. E é, simultaneamente, o como locutor. É a pesquisa sobre as difer-
seu senhor, no sentido de que elas dependem enças de grau que separam um tipo de au-
de si próprio. todesignação do outro que dá origem às apo-
O agente fica ligado à sua acção por rias da adscrição.
fazer sua a escolha preferencial que conduz
àquela. A opção de agir é sua, pertence-lhe.
3.2.2 “As Aporias da Adscrição”
A adscrição consiste na remissão dos
vários conceitos da rede da teoria da acção A primeira aporia surge da reflexão sobre a
ao seu agente. Intenções, motivos, causas, proposição segundo a qual a adscrição a si e

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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 25

a um diverso de si conservam o mesmo sen- é prescrito agir em conformidade com deter-


tido. Com efeito, a adscrição a um outro minada regra de acção. Imputar uma acção
pressupõe um momento de suspensão da ao seu autor é considerá-lo responsável pelo
atribuição, no qual os predicados conservam seu acto, acto esse que pode ser julgado ele
o mesmo sentido. próprio permitido ou proibido.
Esta é a condição para se falar de Sendo a acção humana essencialmente
‘psíquico’, como repertório de predicados definida pela sua dimensão ética, conforme
psíquicos disponíveis numa cultura. à virtude, como refere Aristóteles, a sua ad-
Só numa situação de interlocução a sig- scrição ao agente tem de ser considerada da
nificação dos predicados varia relativamente mesma natureza que a imputação. Dizer que
à posição dos sujeitos falantes. Sem essa re- uma acção pertence a um agente é imputá-la
flexividade não haveria lugar para a relação a esse agente, é responsabilizá-lo por ela.
de dependência e de posse entre os predica- Neste sentido, o conceito de adscrição
dos da acção e o seu agente. afasta-se do conceito de descrição.
A adscrição comporta uma dimensão
“... para passar da suspensão da ad- ético-moral, contraposta à descrição, que se
scrição, através da adscrição neutral- limita à atribuição lógica de predicados a um
izada, à adscrição efectiva e singular, é sujeito.
preciso que um agente possa designar- Essa dimensão ética da adscrição, que a
se a si próprio de tal modo que tenha aproxima da imputação, apoia-se numa re-
um outro verdadeiro a quem a mesma lação causal que se estabelece entre o agente
atribuição é feita de modo pertinente”.26 e a acção, expressão da potência de agir.
A terceira aporia da adscrição resulta da
Neste sentido, a adscrição da acção ao questão: o que é a potência de agir?
agente, num sentido forte do termo ad- A análise à potência de agir tem como
scrição, exige que o locutor ateste a si a propósito permitir a reflexão sobre os funda-
sua acção, se designe ele próprio como seu mentos da responsabilidade do homem per-
autor; pelo que esta aporia só pode encon- ante o seu agir e contribuir assim para ilumi-
trar solução no quadro da abordagem prag- nar as dificuldades da adscrição.
mática.
A segunda aporia diz respeito ao estatuto “Dizer que uma acção depende do seu
da adscrição relativamente à descrição. agente equivale a dizer que ela está em
Uma vez que adscrever não é descrever, seu poder”.27
não é simplesmente atribuir predicados a um
sujeito lógico, será que pode equiparar-se à A reflexão sobre a proposição acima tran-
prescrição? scrita conduz-nos directamente para a prob-
A prescrição aplica-se simultaneamente lemática relação de causalidade entre agente
aos agentes e às acções. É a um sujeito que e acção.
26 27
P. RICOEUR, O Si-mesmo como um outro, (Soi- P: RICOEUR, O Si-mesmo como um outro,
même comme un autre), trad. brasileira sa., Ed. Pa- (Soi-même comme un autre), trad. brasileira sa., Ed.
pirus, S. Paulo, 1991,121. Papirus, S. Paulo, 1991,124.

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Com efeito, é pelo facto da acção estar em ‘quem?’ por uma referência identificante,
poder do agente que este se constitui como como por exemplo, um nome. A segunda
princípio da acção. mostra-se mais misteriosa e parece infind-
A questão que se levanta é, então, a de ável.
saber qual é a eficácia da explicação causal. Contudo, a série de causas encadeadas
Como se articula a explicação que remete a pressupõe um começo, para ser considerada
acção para o seu agente com a explicação completa. A procura do começo de uma série
que remete a acção para os seus motivos? de causas não é a de um começo absoluto,
Não são os motivos, em última análise, os mas do começo de uma série de explicações
motivos de um agente? relativas a uma cadeia de acções.
De que forma a pesquisa sobre a potência O problema é, então, delimitar o con-
de agir pode ajudar a compreender os funda- junto das acções que compõem determinada
mentos da responsabilidade do agente? prática. Só depois de identificada uma cadeia
O agente tem o poder de iniciar uma acção de acções é possível partir para a pesquisa
e, consequentemente, de produzir mudanças das causas, dos motivos e das intenções
no mundo. dessa prática.
As acções podem distinguir-se entre
Até onde pode estender-se a eficácia do
acções de base e cadeias de acções ou práti-
princípio e, consequentemente, estender a
cas. As acções de base são aquelas que
responsabilidade de um agente?
não requerem a mediação de quaisquer out-
ras para se realizarem. As cadeias de acções, Um dos problemas consiste em delimitar a
ou práticas, resultam de uma conjugação de esfera de acontecimentos pela qual o agente
acções intermédias, que mediam a possibili- é considerado responsável.
dade de produzir uma acção dita mais com- Tal como uma obra se autonomiza do seu
plexa. As práticas resultam de várias acções autor e o discurso do seu acontecimento
que, em muitos casos assumem um carácter através da escrita, os efeitos de uma acção,
estratégico e que exigem a aprendizagem de num certo sentido, também se autonomizam
regras e de códigos socio-culturais. do seu agente. Uma acção realizada, ao
Surge então o problema de saber qual entrar no curso do mundo pode produzir
é a descrição mais adequada à designação efeitos indesejados, ou mesmo perversos.
da cadeia de acções ou práticas, visto es- Em muitas situações é difícil saber quais
tas comportarem muitas acções intermédias. desses efeitos se ligam ao agente, têm em si
Esta questão é resolvida se ao longo da um princípio, dos que se ligam a causas ex-
cadeia de acções se puder identificar um ternas.
começo, uma causa primeira e integradora de Outra dificuldade surge quando se pre-
toda a série. Essa causa primeira pode ser en- tende delimitar a responsabilidade de um
tendida como unidade de sentido da acção. agente quando uma cadeia de práticas é pro-
Mas a investigação sobre as causas de uma duzida por mais do que um sujeito. Ricoeur
acção bifurca na pesquisa sobre o agente e afirma que nestes casos atribuir é distribuir,
na pesquisa sobre os motivos. A primeira processo que se assemelha mais a uma de-
detém-se com a resposta dada à pergunta cisão do que a uma constatação. Também

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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 27

neste sentido a adscrição se aproxima da im- e de uma série de coisas que depende da
putação e se afasta da descrição. ordem do mundo”.29
A ligação que se estabelece entre o agente
e a sua deliberação também pode ser alvo 3.3 Comunicação e Acção
de reflexão. Esta reflexão aponta necessari-
amente para uma investigação sobre a liber- O plano da Acção conclui a série de estu-
dade humana. Apesar de ser senhor da sua dos de SA que se desenvolveram sob a alçada
acção, não haverá um conjunto de causas, de da filosofia da linguagem. Tanto os estudos
algum modo exteriores ao agente, que con- que agrupámos no plano do Discurso como
strangem a sua deliberação? os que agrupámos no plano da Acção desen-
Pelo termo ‘co-responsáveis’ (sunaitioi), volveram as suas pesquisas em duas aborda-
Aristóteles conjuga a responsabilidade das gens distintas e complementares: uma abor-
acções que, dependendo de nós, têm um dagem semântica e uma abordagem prag-
princípio na natureza do nosso carácter, no mática. Este desdobramento corresponde à
conjunto das nossas disposições com aque- necessidade epistemológica e ontológica de
las acções que realizamos deliberadamente, inscrever na ‘hermenêutica do si’ um desvio
após escolha preferencial. da reflexão pela análise.
O projecto hermenêutico de Ricoeur as-
“A intenção de Aristóteles é seguramente senta na dialéctica da explicação e da com-
estender a responsabilidade de nossos preensão. Esta dialéctica serve de paradigma
actos às nossas disposições, portanto à à hermenêutica do texto como à hermenêu-
nossa personalidade moral completa, e tica da acção.
também conservá-la nos limites da uma O nosso propósito neste estudo é mostrar
responsabilidade parcial”.28 em que medida os procedimentos implicados
na hermenêutica do texto são aplicáveis ao
Segundo Ricoeur, a pesquisa sobre a estudo sobre a acção, ou seja, compreender a
potência de agir desenvolve-se na articulação acção como um texto.
de uma investigação sobre o agente e uma in- A análise da rede conceptual da acção rev-
vestigação sobre os motivos. ela como é possível, a partir da análise de
enunciados e frases de acção, descobrir os
“O que faria desse discurso do ‘eu motivos que a explicam.
posso’ um discurso diferente, é, em úl- O privilégio dado ao uso adverbial da in-
timo caso, a sua remissão a uma ontolo- tenção tem como principal objectivo inserir
gia do corpo próprio, isto é, de um corpo no discurso sobre a acção uma explicação
que é também meu corpo e que, pelo seu por razões.
duplo vínculo à ordem dos corpos físicos Evocar a razão de uma acção é colocá-la
e às pessoas, mantém-se no ponto de ar- num contexto maior, é integrá-la num hor-
ticulação de um poder agir que é o nosso izonte de regras e de convenções culturais.
28 29
P: RICOEUR, O Si-mesmo como um outro, P: RICOEUR, O Si-mesmo como um outro,
(Soi-même comme un autre), trad. brasileira sa., Ed. (Soi-même comme un autre), trad. brasileira sa., Ed.
Papirus, S. Paulo, 1991, 116. Papirus, S. Paulo, 1991, 135.

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28 Miguel Franquet dos Santos Silva

Por exemplo, o acto de estender a mão e Por outro lado, é necessário referir que
levantar o polegar possui um conjunto de a dialéctica entre conjecturar e validar ex-
significados que estão institucionalizados e ige que a interpretação da acção, como a do
que não dependem do agente. Contudo, texto, não se limite ao momento explicativo,
em contextos diferentes adquirem sentidos típico de algumas posições estruturalistas.
diferentes, podendo significar um pedido de O paradigma estruturalista também se im-
boleia ou um sinal de que está tudo bem. pôs nos estudos sobre a comunicação, sobre-
No caso de acções mais complexas, de- tudo em França a partir de 1960 e tem como
nominadas práticas, que articulam diversas base o “Curso de Linguística Geral” de Fer-
acções em ordem a produzir uma acção mais dinand de Saussure, publicado em 1916.
complexa, uma análise superficial do con-
“A linguística saussuriana, com a sua
texto pode não ser suficiente para explicar
proposta de construção de um objecto
os motivos de um agente. Abre-se assim um
de saber independente das manifestações
espaço de argumentação que visa validar a
subjectivas, ao destacar o domínio do
melhor explicação de entre um conjunto de
código da língua de entre o conjunto
explicações possíveis.
heteróclito e contingente da linguagem,
Este processo de argumentação, ligado à
apresentava-se então como uma espécie
tentativa de explicação da acção pelos seus
de farol orientador deste projecto reno-
motivos, evidencia uma plurivocidade de
vador”31 .
sentidos que aproxima a acção de um texto.
Este processo de argumentação dos mo- Saussure edificou a sua linguística a par-
tivos das acções assemelha-se à interpretação tir da diferença entre ‘langue’ e ‘parole’. A
textual em virtude da necessidade de conjec- ‘langue’ constitui o sistema de signos, que
turar vários sentidos do texto e de proceder, se opõem uns aos outros, aos quais é recon-
posteriormente, à validação daqueles que são hecida uma posição e uma função específica
os seus mais possíveis. no sistema. A ‘parole’ é a capacidade de em-
Como salientámos a propósito das aporias prego e utilização da ‘langue’.
da adscrição, em alguns casos, a adscrição de A linguística de Saussure privilegiou o
uma acção a um agente assemelha-se a uma estudo da ‘langue’ pelo facto desta corre-
decisão, em virtude da dificuldade extrema sponder a um sistema estável e quantificável.
em validar uma explicação. Privilegiou o estudo sincrónico ao estudo
A validação não se identifica com a veri- diacrónico e procurou atribuir um estatuto
ficação. Comporta antes um estatuto proba- científico à linguística, considerada a ciência
bilístico. geral dos signos, que se enquadrasse dentro
do paradigma positivista de racionalidade.
“Nem na crítica literária nem em ciên- Ao limite, como afirma Ricoeur, a posição
cias sociais há lugar para uma úl- estruturalista tende a encarar a linguagem
tima palavra... Ou, se existe uma, nós l’action, Essais d’herméneutique, II), trad. port. A.
chamamos-lhe violência.”30 Cartaxo e M. J. Sarabando, Ed. Rés, Porto, sd., 206.
31
A. D. RODRIGUES, Comunicação e Cultura,
30
P. RICOEUR, Do Texto à Acção, (Du texte à Editorial Presença, Lisboa 1999, 45.

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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 29

como um sistema fechado, de sentido ima- análise estrutural uma importância decisiva,
nente, que não tem relação com qualquer re- necessária, mas não exclusiva.
alidade extra-linguística. Segundo Ricoeur, A explicação de cariz estruturalista
esta abordagem à linguagem manifesta-se na procura extrair as ligações lógicas reveladas
definição de signo dada no “Curso de Lin- pela análise das unidades constitutivas de
guística Geral”. uma obra.
Significante e significado, unidades con- Nas Ciências Humanas, o modelo de ex-
stituintes do signo, revelam a ligação entre plicação estruturalista é aplicado a todas as
os signos do sistema, mas não a uma reali- áreas que comportem uma dimensão semi-
dade extralinguística, a uma referência. ológica, ou seja, a todos os fenómenos dos
O projecto hermenêutico de Ricoeur quais seja possível reconhecer um tipo de
propõe-se ‘dialogar’ quer com esta abor- relações características dos sistemas semi-
dagem estruturalista, quer com a hermenêu- ológicos.
tica romântica herdeira dos trabalhos de A análise conceptual da acção mostra
Schleiermacher. como a acção pode ser considerada um
Schleiermacher distinguiu dois tipos de dos fenómenos de entre os quais é possível
abordagem à linguagem: uma interpretação aplicar um modelo de explicação estrutural-
gramatical e uma interpretação técnica. ista. O significado da acção é passível de re-
A interpretação gramatical atende ao sistir ao facto da sua ocorrência. A expli-
carácter social e cultural da língua, enquanto cação da acção por razões enquadra-se num
que a interpretação técnica procura o carác- contexto de sentidos culturalmente estabele-
ter singular, individual do emprego da lín- cidos, institucionalizados, que podem ser in-
gua, para assim compreender a intenção do terpretados e que não implicam o recurso
autor. à observação de acontecimentos interiores.
A hermenêutica proposta por Schleierma- Neste sentido, é possível explicar uma acção
cher de cariz ‘psicologizante’ tornar-se-ia sem que isso implique um processo empático
célebre com a máxima: “compreender tão com o agente. Esta fixação do significado da
bem ou melhor o autor do que ele se com- acção é denominada conteúdo proposicional.
preendeu a si mesmo”. A hermenêutica as- É essa fixação que permite que a acção se
sim entendida considera a linguagem como o autonomize da intenção psicológica do seu
vínculo de objectivação da subjectividade de autor inscrevendo a sua marca no tempo É
cada indivíduo. Por um processo empático neste sentido que falamos em ‘acontecimen-
era proposto ao intérprete transferir-se para tos marcantes’.
a psique do autor e revelar a sua intenção ao Estas acções que marcam pela sua im-
comunicar. portância desenvolvem significações que
Ricoeur coloca o seu projecto hermenêu- podem ser actualizadas noutros contextos
tico num lugar diferente, que possibilita o espacio-temporais e re-efectuadas em novos
diálogo com as Ciências Humanas e que, não contextos sociais.
obstante, atenda ao enraizamento ontológico
do homem no mundo. “...como um texto, a acção humana é
A hermenêutica de Ricoeur atribui à uma obra aberta, cuja significação está

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30 Miguel Franquet dos Santos Silva

‘em suspenso’. É porque ela ‘abre’ no- esse ancoramento do homem no mundo está
vas referências e delas recebe uma pert- implicado em todo o acto de conhecer.
inência nova que os actos humanos estão A partir daí, compreender pressupõe a su-
também à espera de interpretações novas peração da estrutura sujeito - objecto.
que decidam a sua significação”.32 O sujeito participa do mundo que se
propõe estudar.
Segundo Ricoeur, é a própria natureza do Contudo, esse reconhecimento ontológico
objecto de estudo das Ciências Humanas que de pertença ao mundo não inviabiliza a as-
exige que o modelo hermenêutico de in- piração à ‘cientificidade’ de todo o conheci-
terpretação do texto se constitua como seu mento acerca do homem.
paradigma. A primeira perspectiva sobre uma obra é
O conceito de obra, indissociável da noção constantemente confrontada com o momento
de totalidade, de diversidade e de unidade explicativo dando origem a um novo olhar, a
exige que a interpretação do homem, de um uma nova relação entre todo e as partes. Esta
texto, ou de uma acção não se limite à ex- dialéctica entre a parte e o todo gera o círculo
plicação da estrutura lógica que combina as hermenêutico.
unidades identificadas e analisadas. A obra é Este processo vai permitir a reformulação
mais do que a soma das suas partes constitu- do mundo do sujeito e capacitá-lo para ol-
intes. har para a obra a partir de uma nova perspec-
tiva. Assim entendida, a compreensão não se
Ao analisar uma obra é necessário conjec-
refere ao momento empático, psicológico de
turar sobre as partes mais relevantes para a
transposição para a psique do autor, mas à
interpretação do todo, estabelecer níveis de
integração do momento analítico num todo
importância, construir relações. Este pro-
que constitui a obra, e que revela sentidos
cesso conjectural e provisório parte de uma
que estão para além de todas as possibili-
estrutura pré-compreensiva que revela uma
dades combinatórias das unidades discretas
certa subjectividade por parte do sujeito.
reveladas pela análise estrutural. É a dialéc-
Esta subjectividade constitui a perspec-
tica entre explicação e compreensão que rev-
tiva a partir da qual o sujeito ‘observa’ o
ela a semântica profunda, capaz de desen-
real. Essa estrutura antecipava, ou pré-
cadear um movimento que parte do sentido
compreensiva pode ser identificada com o
do texto, revelado na sua estrutura, em di-
preconceito. Não obstante, o preconceito
recção à sua referência, que apesar de es-
não constitui um entrave à construção de
tar exposta diante do texto, aponta para um
novos sentidos, à actualização do sentido de
mundo que está para lá da linguagem.
um texto ou de uma acção, é antes a partir
Ao longo deste estudo, a compreensão
dele que todo o acto de conhecer se desen-
dos motivos de uma acção não pôde ser en-
rola.
quadrada na dimensão temporal da existên-
A hermenêutica de Ricoeur reconhece que cia.
32
P. RICOEUR, Do Texto à Acção, (Du texte à É a teoria narrativa que vai introduzir a
l’action, Essais d’herméneutique, II), trad. port. A. dimensão temporal da experiência humana
Cartaxo e M. J. Sarabando, Ed. Rés, Porto, sd., 198. e que vai permitir a articulação das acções

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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 31

complexas ou práticas com níveis mais ele- 4.1 “Identidade Pessoal e


vados da hierarquia da práxis, planos de vida Identidade Narrativa”
e projectos globais de uma existência.
O quinto estudo de SA, intitulado “A iden-
tidade pessoal e a identidade narrativa”, tem
como principal propósito enquadrar a prob-
lemática da identidade pessoal no contexto
4 O Plano da Narrativa das pesquisas de tradição anglo-saxónica.
Ricoeur aponta algumas limitações aos es-
Sob o título O Plano do Narrativa pretende- tudos sobre a identidade pessoal, pelo facto
mos elaborar uma breve exposição sobre o de não distinguirem mesmidade e ipseidade,
quinto e o sexto estudos de SA, relativos ao as duas formas distintas de permanência da
tema da identidade. identidade no tempo. Consequentemente, os
estudos sobre a identidade pessoal descon-
Este conjunto de estudos exerce uma hecem a importância que a teoria narrativa
função de mediação entre os estudos anteri- assume na mediação entre esses dois pólos
ores, que se desenvolveram sob a alçada da da identidade.
filosofia da linguagem, e os estudos posteri- Contudo, antes de nos centrarmos na teo-
ores, relativos à dimensão ética e moral do si ria da identidade pessoal é importante pro-
e da sua acção. ceder à definição inicial dos termos ipsei-
No quinto estudo o autor apresenta as lim- dade e mesmidade e averiguar de que forma
itações das abordagens relativas à identidade os estudos sobre a identidade pessoal malo-
pessoal que não procedem à distinção entre gram ao não introduzir essa distinção.
mesmidade e ipseidade, duas formas distin- A mesmidade é o pólo da identidade que
tas de permanência no tempo. se caracteriza pela permanência do mesmo
É o estudo sobre a identidade narrativa, ao longo do tempo.
sobre a ligação entre intriga e personagens, Num primeiro sentido, a mesmidade
que vai revelar a mediação exercida entre os equivale à identidade numérica. Através
dois pólos da identidade. da operação de identificação identificamos
e ‘reidentificamos’ uma mesma coisa como
A narrativa tem ainda o poder de reve- sendo a mesma uma, duas, n vezes. Neste
lar novos sentidos às aporias entre agente caso, identidade significa unicidade.
e acção e a capacidade para se aplicar ao Num segundo sentido, a mesmidade
campo prático, servindo assim de apoio à in- equivale à identidade qualitativa. Em algu-
terrogação ética do homem. mas situações podemos substituir uma coisa
A interpretação de si encontra na narra- pela outra em virtude da sua semelhança ex-
tiva uma mediação privilegiada, capaz de in- trema, sem que haja perda semântica.
tegrar longas cadeias de acções, que são as Num terceiro sentido, a mesmidade equiv-
práticas, na história de uma vida, conferindo ale à continuidade ininterrupta. Apesar do
inteligibilidade e sentido ao processo tempo- reconhecimento de algumas dissemelhanças,
ral onde se desenrola a existência humana. identificamos alguns traços permanentes que

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32 Miguel Franquet dos Santos Silva

nos permitem dizer que estamos perante a munidade, se ligam a determinados valores,
mesma coisa. ideais e heróis e excluem outros.
Neste sentido, no carácter coexistem
“ Toda a problemática da identidade mesmidade e ipseidade, sendo que a primeira
pessoal vai girar em torno dessa busca forma de permanência no tempo oculta a se-
de um invariante relacional, dando-lhe gunda. A pergunta ‘quem sou eu?’ deixa-se
a significação forte de permanência no substituir pela pergunta ‘o que sou eu?’
tempo.”33
4.1.2 A fidelidade à palavra dada
4.1.1 O carácter
A manutenção de si na fidelidade à palavra
Uma das formas de permanência no tempo dada é a figura emblemática da ipseidade,
emblemáticas da identidade idem ou mesmi- forma de permanência de identidade diame-
dade é o carácter. tralmente oposta ao carácter.
O carácter pode ser entendido como o ‘o
quê?’ do ‘quem?’. É o conjunto das dis- “A palavra mantida afirma uma
posições adquiridas que permitem identificar manutenção de si que não se deixa in-
e reidentificar um indivíduo humano como screver, como o carácter na dimensão de
sendo o mesmo. alguma coisa em geral, mas unicamente
As disposições adquiridas ligam-se à naquela do ‘quem?’.34
noção de hábitos sedimentados ou em vias
de ser. O carácter integra assim uma dimen- A ipseidade revela uma forma dinâmica
são temporal. A sua história é o processo de de permanência no tempo, resultante de um
sedimentação de alguns hábitos que tendem comprometimento ético, no qual o indiví-
a ocultar a inovação que os precedeu. duo atesta a si a suas acções, os seus valores
Por outro lado, as disposições adquiridas e os seus princípios. A ipseidade refere-se
ligam-se também às ‘identificações com’ al- ao ‘quem’ singular, único e diferente de to-
guém ou alguma coisa. A identidade de dos os outros. O si que habita o seu corpo,
uma pessoa ou de uma comunidade, em certa mas que não é o seu corpo, que se identifica
medida, constrói-se a partir da identificação com um carácter, mas que é mais do que um
com valores, mitos, ideais ou heróis. Esta di- carácter imutável no tempo. Um si capaz de
mensão da identidade pressupõe a alteridade. se reflectir, se construir e de vir a ser.
É esta ideia de lealdade a determinados
ideais, valores ou heróis que transforma a 4.1.3 Identidade pessoal
permanência do carácter na manutenção de
si, figura emblemática da ipseidade. Com Locke introduz a noção de identidade de uma
efeito, a ‘identificação com’ pressupõe um coisa consigo mesma ao longo do tempo.
momento ético, de deliberação e de avali- A memória e a identidade formam uma
ação, pelo qual uma pessoa, ou uma co- equação que permite a comparação de uma
coisa consigo mesma ao longo do tempo.
33
P. RICOEUR, Soi-même comme un autre, trad.
34
Brasileira, Ed. Papirus, São Paulo, 1991, 142-143. Ibidem, 148.

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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 33

Esta comparação conduz à oposição entre invariável relativa à ideia de si, é levado a
identidade e diversidade. concluir que o si é uma ilusão.
Assim entendida, a noção de identidade Hume considera que é através da facul-
parece aproximar-se do pólo da mesmidade, dade da imaginação que restituímos unidade
em virtude da comparação e da procura do às impressões interiores, exigida pela identi-
idêntico. A memória permite-nos avaliar os dade, e através da crença que colmatamos o
traços que nos caracterizam e identificam em déficit de mesmidade que resulta do processo
momentos diferentes da nossa vida. de comparação das várias impressões.
Por outro lado, esta concepção da identi- Ricoeur questiona se não estaria Hume à
dade também se aproxima do pólo da ipsei- procura de um si irredutível ao mesmo ao
dade, em função da atestação desses traços longo do tempo. Pois nos casos em que não
permanentes a um ‘quem’, irredutível a um subsiste uma impressão invariável e perma-
‘o quê?’ nente é ainda possível perguntar quem é esse
Os traços que nos caracterizam ao longo ser que se interroga sobre a sua unidade, so-
do tempo e que permitem responder à bre a sua identidade.
questão ‘o que sou eu?’ referem-se sempre Levanta-se assim a questão de saber qual
a alguém que é irredutível a um conjunto de a validade dos critérios de identidade. Qual
predicados. Alguém que vive, que habita um o fundamento desses critérios?
corpo e que tem uma história. A questão é saber se é possível submeter
Locke introduz ainda o critério de iden- a mesmidade e a ipseidade a provas de ver-
tidade psíquica ao qual poderíamos opor o dade.
critério de identidade corporal. No caso da mesmidade, em virtude da
Os critérios de identidade são introduzidos comparação que é levada a cabo entre duas
como referências que ajudam a resolver al- ocorrências, o critério é aceitável, na medida
guns problemas levantados à identidade pes- em que serve de referência a essa mesma
soal pelos denominados ‘puzzling cases’. comparação.
O exemplo referido em SA é o da memória Mas será a resposta à pergunta ‘quem sou
de um príncipe que é transportada para o eu?’ passível de uma prova de verdade?
corpo de um sapateiro remendão. Qual é É neste estádio da reflexão que Ricoeur
a identidade deste novo ente, sapateiro ou convoca ao debate acerca da identidade a
príncipe? obra de Derek Parfit.
Se adoptarmos como Locke o critério Segundo Ricoeur, as posições de Parfit so-
psíquico de identidade, somos levados a con- bre a identidade edificam-se sobre a renúncia
cluir que a memória fez do novo ente um explícita a qualquer distinção entre ipseidade
príncipe. e mesmidade.
Com Hume inicia-se a era da dúvida e da Ricoeur questiona se, tal como Hume,
suspeita. Parfit, ao procurar um estatuto firme de iden-
Segundo Hume, a identidade corresponde tidade, baseada na mesmidade, não estava
a uma impressão de unidade invariável. destinado a pressupor um si que não procu-
Quem no seu interior só encontre uma diver- rava.
sidade de experiências e nenhuma impressão O recurso a alguns casos paradoxais so-

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34 Miguel Franquet dos Santos Silva

bre a identidade, revelados pelos ‘puzzling mais elevado grau a dialéctica da mesmidade
cases’, levam Parfit a concluir que a questão e da ipseidade; por outro, pretende explorar
da identidade é uma questão vazia, uma vez as funções de mediação que a teoria narra-
que em alguns casos a identidade de um su- tiva exerce entre a teoria da acção e a teoria
jeito é indeterminada. moral.
Segundo Parfit, a questão da identidade A dialéctica entre mesmidade e ipseidade
pessoal não é fundamental para que o sujeito é a dialéctica de duas formas distintas de per-
se constitua como sujeito ético. As posições manência de um identidade no tempo.
de Parfit assemelham-se às posições budis- Os problemas colocados à identidade pes-
tas que apelam à dissolução da identidade soal, no seio dos ‘puzzling cases’ de ficção
em prol da disponibilidade e da abertura ao científica, provocam alguns embaraços à
outro. O autor chega a afirmar que a identi- identidade considerada unicamente como
dade pessoal não é o que importa. mesmidade, como perpetuação de um núcleo
Segundo Ricoeur, esta tese assenta no estável de disposições através do qual iden-
facto de Parfit não distinguir mesmidade de tificamos uma pessoa como sendo a mesma
ipseidade. Mesmo nos casos mais pertur- ao longo do tempo.
badores dos ‘puzzling cases’, que tornam im- O maior contributo da identidade narrativa
possível a identificação e a reidentificação de para a constituição do si é a mediação que
uma pessoa como sendo a mesma, a pergunta opera na dialéctica entre mesmidade e ipsei-
sobre quem é o sujeito que se interroga e que dade.
procura a sua unidade mantém-se pertinente. A teoria narrativa procura a identidade ao
É importante perguntar quem é esse sujeito longo da história de uma vida, nas conexões
a quem a identidade pessoal não é o que im- que ligam os acontecimentos decorrentes no
porta. tempo e que fazem da história uma unidade
Parfit defende que é mais importante di- de sentido.
reccionar a atenção para as experiências em Com efeito, a identidade narrativa é o
si mesmas do que para a procura de uma equivalente da identidade de um person-
unidade da uma vida. A identidade deve con- agem, que se constrói em articulação com
stituir uma obra de arte mais do que uma a unidade temporal da história narrada. Por
reivindicação de independência. sua vez, a unidade temporal da história re-
Mas partir do princípio de que a minha sulta de uma síntese do heterogéneo, uma
identidade pessoal não é o que interessa não concordância discordante através da qual os
implica que a identidade do outro também vários acontecimentos e peripécias são in-
não interesse? tegrados no encadeamento da intriga, por
forma a produzir uma unidade de sentido
4.2 “O Si e a Identidade revelada no seu final. Os acontecimentos
narrativos tornam-se fonte de discordância
Narrativa” quando surgem e fonte de concordância no
O “Si e a Identidade Narrativa” é o título que fazem avançar a história.
do sexto estudo de SA que tem um duplo Neste sentido, os acontecimentos, pelo
propósito: por um lado, visa levar até ao facto de fazerem parte do movimento config-

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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 35

urador de uma narrativa, perdem a sua neu- A pessoa deixa de ser considerada uma
tralidade impessoal. Deixam de poder ser entidade distinta das suas experiências, um
descritos como entidades independentes dos mero portador dos acontecimentos. A sua
seus agentes e dos contextos das suas ocor- identidade é solidária da história narrada. É
rências, como sugeria a ontologia do acon- a identidade da história que faz a identidade
tecimento impessoal defendida por David- do personagem.
son. É este estatuto do acontecimento que Neste sentido, Claude Bremond introduz
distingue o modelo narrativo de todos os a noção de processo, eventual, em acto, ou
restantes modelos de conexão. acabado, desencadeado pelos personagens
O encadeamento da intriga tem o poder da narrativa. É a ideia de processo que
de transformar as ocorrências aparentemente dá sentido às acções desencadeadas pelos
aleatórias e ocasionais dos acontecimen- agentes, consideradas como manifestações
tos numa espécie de necessidade retrospec- de uma identidade dinâmica e em constante
tiva, que participa, simultaneamente, na con- construção ao longo da história.
strução da unidade da intriga e na construção A identidade narrativa é uma síntese do
da identidade dos personagens. heterogéneo que concilia diversidade e iden-
tidade. A identidade dos personagens deixa
“...a pessoa da qual se fala, o agente do de se caracterizar por uma permanência do
qual depende a acção têm uma história, mesmo ao longo da história para se tornar
são a sua própria história.”35 num processo dinâmico, que acompanha o
desencadear da intriga.
É a dialéctica do personagem, essa con-
Esta estreita relação entre a intriga, os
cordância discordante, que se vai inscrever
acontecimentos e os personagens possibilita
no intervalo entre os dois pólos da per-
que a narrativa supere, de algum modo, as
manência no tempo: mesmidade e ipseidade.
aporias da adscrição.
A identidade narrativa inclui assim uma
Ao narrador é dada a possibilidade de de-
dimensão ética, baseada nas decisões que
cidir o que conta como acção, delimitar o
os personagens tomam em face dos acon-
princípio e o fim das cadeias de acções, de-
tecimentos inesperados com os quais se de-
nominadas práticas, decidir quais as respon-
param.
sabilidades a imputar a cada um dos agentes
e desenvolver uma unidade de sentido que “Em qual sentido, portanto, é legítimo
reúna todos esses processos através de um ver na teoria da intriga e do person-
acto configurador. agem uma transição significativa entre
A narrativa constitui-se assim com um adscrição da acção a um agente que
‘laboratório’ onde podem ser experimen- pode e a sua imputação a um agente que
tadas múltiplas formas de agir, subordinando deve?”36
a cada uma delas uma série de consequências
e implicações éticas. Esta questão suscita duas vertentes: por
35
um lado é necessário compreender em que
P. RICOEUR, Soi-même comme un autre, trad.
36
Brasileira, Ed. Papirus, São Paulo, 1991, 138. Ibidem, 180.

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36 Miguel Franquet dos Santos Silva

medida a conexão operada pela narrativa en- forma, institucionalizados. Dependem de


tre intriga e personagens exige uma exten- uma dinâmica entre inovação e tradição, da
são considerável do campo prático, para que qual o agente participa pelo facto de recor-
a acção narrada seja equiparada à acção de- rer inevitavelmente ao horizonte de sentido
scrita; por outro lado, é necessário com- das práticas, que constantemente actualiza e
preender de que forma a narrativa pode servir inova.
de apoio à interrogação ética. É a pré-compreensão desse horizonte de
A teoria narrativa propõe-se reflectir so- sentido que nos permite encadear várias
bre cadeias mais complexas de acções do acções com a intenção de atingir um fim.
que a teoria da acção, pelo que a extensão Nesta medida, a organização das práti-
ao nível das práticas exige uma revisão da cas comporta um elemento narrativo, pré-
noção de acção, que se enquadre numa on- figurativo, que nos permite antecipar o
tologia diferente da ontologia do aconteci- efeito provocado por algumas das nossas
mento impessoal, proposta por Davidson. acções. Podemos antecipar as acções que
As práticas caracterizam-se pelo encadea- são necessárias desencadear na realização de
mento de um conjunto de acções mais sim- uma prática.
ples, que lhe estão subordinadas. Essa Mas o projecto da identidade narrativa
relação de subordinação depende do sen- pressupõe que o campo narrativo esteja ca-
tido estatuído por uma regra constitutiva da pacitado para se estender do nível das práti-
própria prática. Tomemos o exemplo da cas ao projecto global de uma existência, en-
prática referida em SA: o jogo de xadrez. tendido como o conjunto dos ideais direc-
Podemos identificar várias acções ligadas ao tores da vida de cada um. Entre ambos os
jogo, tal como mover um peão. Este gesto níveis da práxis situam-se os planos de vida,
torna-se significativo porque existe uma re- mais ou menos flexíveis e reequacionáveis,
gra constitutiva à prática do xadrez que de- dependentes do equilíbrio que se estabelece
termina que esse gesto conta como uma jo- entre as práticas que estes implicam e os
gada. planos globais de uma existência.
A Teoria dos Actos de Discurso também
se serve da noção de regra constitutiva. A “O campo prático aparece assim sub-
força dos actos ilocutórios depende da regra metido a um duplo princípio de determi-
que estatui o sentido de determinados verbos nação que o aproxima da compreensão
e expressões. O acto de prometer retira a sua hermenêutica de um texto pela troca en-
força ilocutória da regra que diz que prome- tre o todo e a parte. Nada é mais propí-
ter é obrigar-se a fazer alguma coisa que se cio à configuração narrativa do que esse
diz que se fará. jogo de dupla determinação.”37
Para além da sua função significante, a
A história de uma vida desenrola-se num
ideia de regra constitutiva reforça o carácter
duplo movimento: um movimento descen-
de interacção da maioria das práticas. De
dente, que parte dos ideais directores do pro-
alguma maneira, os significados estatuídos
jecto global de existência – ideais e valores
pelas regras não dependem do agente que
desencadeia a acção. Eles estão, de alguma 37
Ibidem, 187.

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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 37

com os quais nos identificamos – e que sub- lemático na medida em que subverte a nossa
ordina os planos de vida a adoptar e, conse- condição ontológica de pertença a um hor-
quentemente, as práticas que estes implicam; izonte histórico-cultural. Neste sentido, a
e um movimento ascendente, que parte dos fusão de horizontes é a fusão do horizonte do
planos de vida, considerados na sua unidade, mundo do leitor com o horizonte do mundo
em direcção a novos valores e ideais direc- do autor. Esta ideia de fusão implica que a
tores. interpretação se afaste da tentativa de apro-
Para Ricoeur, tal como para MacIntyre, priação da intenção psicológica do autor.
a “unidade narrativa de uma vida”, capaz O que o leitor interpreta e se apropria é o
de integrar as mediações que se estabelecem mundo que a obra projecta e que está objecti-
entre os vários níveis da práxis, tem como vada na sua estrutura, no seu sentido. O que
função servir de apoio a uma perspectiva só é possível uma vez que a obra se auton-
ética de vida boa. É a capacidade de config- omiza das condições sócio-psicológicas da
uração de uma unidade e de reunião de uma sua produção pela escrita. O sentido da obra
vida que a narrativa oferece à interrogação resiste ao acontecimento da sua produção e
ética. objectiva-se na estrutura do texto. Assim, o
Contudo, diferentemente de MacIntyre, destinatário de um texto abre-se a um uni-
Ricoeur considera que as narrativas de ficção verso infinito de leitores.
assumem um papel tão ou mais importante O momento da apropriação consiste na ac-
para a compreensão narrativa de uma vida, tualização do sentido de um texto por parte
do que as narrativas historiográficas e bi- do leitor, que se torna assim uma espécie de
ográficas. co-autor. Contudo, o momento da apropri-
Mas em que medida é que a literatura ação, pelo “qual torno meu o que antes era
de ficção suscita um questionamento do ‘si- alheio” não consiste na projecção do leitor
mesmo’ na vida real? na obra. Existe um projecto de mundo in-
scrito na obra, revelado pelas suas referên-
4.2.1 Distanciação e apropriação cias não ostensivas, que o leitor compreende
se se deixar seguir pelos sentidos possíveis
Para compreender que a literatura de ficção do texto, sem se querer impor a ele, sem
possa suscitar um questionamento do ‘si- querer instrumentalizar o que na obra é dito.
mesmo’ na vida real é necessário compreen- A apropriação pressupõe que a compreensão
der a dialéctica inerente à leitura, a dialéctica do sentido do texto seja contemporânea da
entre distanciação e apropriação. extensão da compreensão de si.
A dialéctica entre distanciação e apropri-
ação liga-se ao que Hans Georg Gadamer
chamou ‘fusão de horizontes’. Se por um
lado é necessário conquistar uma certa dis-
tanciação face ao objecto que pretendemos “Nesta autocompreensão, eu oporia o Si
estudar, o que constitui um requisito episte- mesmo, que parte da compreensão do
mológico do paradigma científico, por outro texto, ao ego, que pretende precedê-lo.
lado, esse distanciamento torna-se prob- É o texto, com o seu poder universal de

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38 Miguel Franquet dos Santos Silva

desvelamento de um mundo que fornece projectar um dos meus possíveis mais


um si mesmo ao ego.”38 próprios”. 39

Mas que referência real pode ser desve-


4.2.2 “As implicações éticas da narra-
lada pela narrativa ficcional ?
tiva”
Não é essa referência extra-linguística a
condição para que a ficção possa expandir-se “...de que maneira a componente nar-
do campo linguístico que lhe é próprio para rativa da compreensão de si pede como
a esfera prática? complemento as determinações éticas
É a faculdade da imaginação que possi- próprias à imputação moral da acção ao
bilita a transição da esfera teórica à esfera seu agente?”40
prática. Por imaginação entenda-se reestru-
turação de campos semânticos, ou segundo a Ao longo de uma narrativa, as acções dos
expressão de Wittgenstein, “ver como”. personagens são alvo de avaliações e de de-
A narrativa desenvolve o seu mundo, que liberações que conduzem à escolha de de-
Ricoeur chama ‘o mundo do texto’, que lib- terminado plano de acção em detrimento de
erto da referência ostensiva e descritiva tem o outro. Essas escolhas são objecto de consid-
poder de ‘apontar’ para dimensões do nosso erações éticas, alvo de elogio ou de censura.
ser que não se deixam dizer de modo des- As funções estéticas próprias da literatura
critivo. Esta outra realidade é, muitas vezes, não eclipsam as suas determinações éticas,
revelada pelas expressões metafóricas e sim- pelo que o julgamento moral das acções e
bólicas, caracterizadas por um “ver como”. dos personagens se submete, também ele, às
O poder referencial e cognitivo da narra- variações imaginativas da estrutura da narra-
tiva de ficção reside no facto de que a função tiva.
metafórica instaura uma inovação semântica, Deste modo, o mundo do texto serve de
uma nova relação de sentido entre coisas que apoio a avaliações éticas do próprio leitor
anteriormente estavam desligadas. É a fac- e contribui para o enriquecimento da sua
uldade de imaginação que permite ao autor maneira de pensar e de sentir.
“ver como” e ao leitor suspender o seu saber A identidade narrativa faz a ponte entre
sedimentado e apropriar-se desse novo pro- as disposições adquiridas e as ‘identificações
jecto de conhecer e de se conhecer. com’ sedimentadas, identificadas com a
O mundo do texto, estruturado e con- mesmidade do carácter e a manutenção ética
figurado pela narrativa visa reconfigurar o do si, identificada com a ipseidade.
mundo da acção e projectar um novo mundo Mas o que sucede à dimensão ética da
para o homem. identidade narrativa quando a identidade de
um personagem – sujeito parece indetermi-
“O que se deve, de facto, interpretar num nada?
texto é uma proposta de mundo, de um
39
mundo tal que eu possa habitar e nele P. RICOEUR, Do Texto à Acção, trad. port. A
Cartaxo e M. J. Sarabando, Rés Editora, sd, 122.
38 40
P. RICOEUR, Teoria da Interpretação, Porto Ed- P. RICOEUR, Soi-même comme un autre, trad.
itora, trad. port. A Morão, Porto, sd., 138. Brasileira, Ed. Papirus, São Paulo, 1991, 193.

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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 39

Nos casos em que parece impossível iden- Comunicação”42 e os estudos de SA relativos


tificar os traços distintivos da identidade de à identidade. Mais concretamente, pretende-
um sujeito, estará a resposta à pergunta mos reflectir sobre a importância que a iden-
‘quem sou eu?’ destinada a um nada abso- tidade assume na comunicação.
luto, que inviabilizaria qualquer suporte à in- Wolton distingue dois modelos de comu-
terrogação ética? nicação: a comunicação normativa e a co-
Não é sempre possível responder um si, municação funcional.
encarnado, vivo, que se procura e que é ca- Por comunicação normativa o autor en-
paz de se manter fiel à palavra dada? tende a partilha e o pôr em comum que es-
É neste ponto que a dimensão ética atrav- tão na origem etimológica da palavra comu-
essa a dialéctica da mesmidade e da ipsei- nicação (do latim communicare). Por co-
dade. municação funcional entende a ideia de di-
A construção da ipseidade sobre a perpet- fusão, ligada ao nascimento da imprensa e
uação irreflectida e inflexível das ‘identifi- mais tarde ao desenvolvimento de outras téc-
cações com’ e das disposições sedimentadas nicas de transmissão de informação.
levanta ambiguidades no plano ético. Ao longo da sua obra procura desmisti-
“Numa filosofia da ipseidade como é a ficar a ideia de que o desenvolvimento de
nossa, devemos poder dizer: a posse não novas tecnologias de comunicação conduz,
é o que importa”.41 necessariamente, ao cumprimento de um
ideal de comunicação normativa. Nem a ve-
Ousamos dizer que somos mais do que locidade, nem o aumento dos fluxos de in-
aquilo que pensamos. formação, nem a facilidade de acesso a po-
E é bom, em sentido ético, sermos mais do tentes técnicas de difusão conduzem a uma
que as ideias que pensamos serem as nossas, verdadeira partilha, um pôr em comum.
sermos mais do que os ideais que defende-
mos, os princípios que nos identificam. Há
“Na reivindicação do ‘direito à comu-
que ousar ir sendo, sem medo de perder essa
nicação’ queremos menos ouvir o outro
‘identidade fortaleza’ que dá a ilusão de se-
do que aproveitar a possibilidade de
gurança.
nos exprimirmos. Comunicar torna-
se, na maioria dos casos, sinónimo
4.3 Identidade e Comunicação de expressão, procurando cada um, em
Depois de analisados os dois estudos de SA primeiro lugar, não a interlocução, mas
dedicados à identidade pessoal e à identidade a possibilidade de falar”.43
narrativa, pretendemos reflectir sobre alguns
dos possíveis contributos destes estudos para Segundo Wolton, a comunicação via Inter-
a problemática da comunicação humana. net representa o paradigma da comunicação
Num primeiro momento procuraremos
42
analisar os possíveis pontos de contacto en- WOLTON, P., Pensar a Comunicação, trad. port.
tre a obra de Dominique Wolton, “Pensar a V. Anastácio, Ed. Difel, Miraflores, 1999.
43
WOLTON, D., Pensar a Comunicação, trad.
41
Idem, pág. 198. port. V. Anastácio, Ed. Difel, Miraflores, 1999, 56.

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40 Miguel Franquet dos Santos Silva

funcional. A possibilidade de troca de in- origem a interpretações diversificadas de


formação a longas distâncias, quase instan- uma mesma mensagem.
taneamente, traz consigo muitas vantagens, A comunicação tem como limite o outro,
sobretudo ao nível económico. Contudo, não que nunca será totalmente transparente para
evita as chamadas ‘solidões interactivas’. mim.
A comunicação estabelecida através de se- Mas não será essa diferença insuperável
dutores mecanismos de transmissão reflecte a fonte de uma inesgotável necessidade de
um desejo de expressão, centrado no uso procura e de comunicação?
dos dispositivos técnicos, e não uma partilha Não é justamente porque no outro há sem-
ou uma comunhão. O outro aparece como pre algo de novo, que me pode ajudar a
mero destinatário de uma mensagem e não desenvolver um dos ‘meus possíveis mais
como alguém considerado em ‘si-mesmo’. próprios’, que a comunicação humana pode
Por essa razão, torna-se muito importante constituir-se como mediação privilegiada en-
não confundir a difusão da comunicação fun- tre o ‘si-mesmo’ e o mundo?
cional com a partilha da comunicação nor- Pensamos que a dialéctica da mesmidade
mativa. e da ipseidade, revelada pela teoria narra-
Segundo Wolton, sem identidade e sem re- tiva, assume grande importância no esclarec-
conhecimento da alteridade não há comuni- imento da relação entre identidade e comuni-
cação. cação.
Em nosso entender, o potencial da comu-
A comunicação assenta na possibilidade
nicação é engrandecer o homem, abrir-lhe
de expressão das identidades, no direito à
novas possibilidades de ser que o aproximem
liberdade de expressão, consagrado nas con-
de ‘si-mesmo’.
stituições dos estados democráticos.
A identidade parece-nos radicalmente im-
Em contrapartida, também não há comu- plicada na comunicação em virtude da
nicação sem o reconhecimento da alteridade. maneira pessoal de existir, que afecta a aber-
O outro não pode ser reduzido ao mesmo, tura de cada um ao mundo das coisas, das
pelo que é imperativo reconhecer as distân- ideias e dos valores, que Ricoeur inicial-
cias e as diferenças que separam os inter- mente identifica com o carácter. No entanto,
locutores. Uma mensagem é interpretada de esta concepção do carácter, que insiste na sua
modo diferente por dois interlocutores, cujos imutabilidade, foi posteriormente reavaliada
contextos de recepção são diferentes. pelo próprio autor. Não obstante, pensamos
O horizonte cultural exerce uma função que tem a virtude de relacionar a identidade
de iluminação da significação, pelo facto de com o mundo de cada um, com o horizonte
situar a mensagem num conjunto de relações de sentidos que identificam cada pessoa. As-
de sentido mais vasto a partir do qual há in- sim entendida, a identidade intervém decisi-
terpretação. O enraizamento do homem num vamente na comunicação, como modo sin-
mundo precede e funda o momento de inter- gular como cada um ‘vê’ o mundo e se vê a
pretação de qualquer realidade. si. Ao dizer o mundo, o homem diz-se a si
É essa estrutura pré-compreensiva que é próprio.
diferente de sujeito para sujeito e que dá Mas a identidade do homem não é estática.

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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 41

O próprio carácter, figura emblemática da seja, um meio de criar uma identidade


mesmidade, tem uma dimensão temporal, ainda incerta”.45
tem uma história. A maneira pessoal de exi-
stir, a abertura ao mundo, acompanha as ino-
vações introduzidas nas ‘identificações com’ 5 Conclusão
e nas disposições adquiridas; evolui ao longo
de uma vida. Ricoeur refere no texto “De la Metaphysique
Comunicar não é pôr em comum uma à la Morale”46 que é a partir de uma con-
identidade estática e acabada. A comuni- cepção do ser como acto e potência (energeia
cação é antes uma das formas privilegiadas – dynamis).que se desenvolve o projecto de
de relação que permite a um si partilhar o seu uma hermenêutica reflexiva, que procura re-
mundo e abrir-se ao mundo do outro, consid- unir as múltiplas formas do ser dizer-se.
erado como um ‘si-mesmo’. Segundo Ricoeur, o sujeito não se põe
Neste sentido, a dialéctica da leitura (di- imediatamente, por intuição, como certeza
aléctica da distanciação e da apropriação) última e fundadora de toda a realidade.
também é extensiva à comunicação.44 Ricoeur situa a “hermenêutica do si” no
Tal como referimos anteriormente, o texto ponto intermédio entre as filosofias do cogito
só pode desvelar novos mundos ao leitor se cartesiano e as ‘filosofias da suspeita’. Ao
este não se impuser ao texto, não se projectar contrário de Nietzsche, defende a possibili-
nele. O si parte do texto e não tenta precedê- dade do sujeito aceder, através de muitas me-
lo. O que só é possível mediante o recon- diações, ao princípio que faz de si um ser sin-
hecimento de que a identidade, no sentido gular e único.
da posse de determinados predicados, não É através da interpretação das suas acções,
se pode tornar uma reivindicação de inde- dos símbolos, dos textos e das obras, cujo
pendência. modelo paradigmático é a hermenêutica do
O sujeito tem de estar aberto à possibil- texto, que o sujeito se compreende a si
idade de se transformar, de se reconfigurar, mesmo.
em virtude da relação dinâmica que estab- A certeza de se encontrar, de se compreen-
elece com os outros, com os textos, com as der como um si próprio, único e irredutível
obras de arte, com o universo cultural que é diferente de toda a verificação científica,
com ele comunica. constituindo-se antes pela crença e pela fé.
Os dois estudos agrupados no plano do
“A comunicação é, aqui, uma acção ou discurso procuram mostrar que é ao nível
do discurso, entendido como acto de lin-
44
“O texto é, para mim, muito mais que um guagem, que a questão do sujeito se coloca
caso particular da comunicação inter-humana, ele é em primeiro lugar.
o paradigma da distanciação na comunicação; a este
título, ele revela um aspecto fundamental da própria A um nível semântico a pessoa é uma
historicidade da experiência humana, a saber, que
45
ela é uma comunicação na e pela distancia” (P. RI- Ibidem, 323.
46
COEUR, Do Texto à Acção, trad. port. A Cartaxo e P. RICOEUR, Réflexion faite – Autobiographie
M. J. Sarabando, Rés Editora, sd, 109-110). intellectuelle, Éditions Esprit, Paris 1995.

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42 Miguel Franquet dos Santos Silva

coisa entre as restantes coisas das quais se dagem pragmática, para o acto da enunci-
fala. ação. É no acto de discurso que o significado
A pessoa, segundo Strawson, é constituída dos predicados atribuídos ao sujeito se ‘par-
por um corpo, do qual se predicam carac- ticularizam’, adquirem um sentido próprio.
terísticas físicas, mas uma pessoa a quem A pessoa, entendida como aquele de quem
podem predicar-se características psíquicas se fala, que tal como eu é possuidor de pred-
e mentais que não podem ser predicadas do icados físicos e de estados de consciência, é
seu corpo. Nesta medida, é à pessoa que se uma espécie ou género comum a várias sub-
atribuem os dois tipos de predicados. Pes- stâncias individuais. Mas cada pessoa é ela
soa que é também um sujeito, na medida própria uma substância individual concreta.
em que não pode ser predicada de qualquer A pessoa de quem se fala, identificável
outra. Não faz sentido dizer que Sócrates por uma referência identificante, é passível
é um Aristóteles ou que Aristóteles está em de ser reconhecida como sendo a mesma pe-
Sócrates. los vários interlocutores, mas não é nunca
Ao nível de uma semântica do discurso, atingida naquilo que faz de si um ser único
a designação de uma pessoa faz-se mediante e diferente de todos os outros.
um processo de identificação, seja por uma Mesmo numa situação de interlocução,
descrição definida, por um nome, ou por um em que o locutor se designa a ele mesmo, a
conjunto de outras referências identificantes possibilidade de dizer o que faz de cada pes-
ligadas ao uso de deícticos, ou de pronomes soa um ente particular depara-se com uma
pessoais. incomunicabilidade insuperável, ontológica.
Mas o carácter singular e único de uma Segundo Ricoeur, o ‘si-mesmo’ que cada
pessoa não se inscreve num discurso que pessoa é, diferente de todas as outras, radica
a identifique na terceira pessoa, apesar dos no pólo da identidade-ipse, ou ipseidade. A
predicados psíquicos conservarem o seu sig- pesquisa sobre este pólo da identidade exige
nificado quando atribuídos a si ou a um di- que a pergunta ‘quem sou eu?’ não se sub-
verso de si. stitua pela pergunta ‘o que sou eu?’.
A singularidade de uma adscrição de um Na realidade, quando tentamos responder
predicado a um sujeito efectiva-se na situ- a essa simples pergunta ‘quem sou eu?’ so-
ação de interlocução. A Teoria dos Actos mos levados a enunciar um conjunto de pred-
de Discurso mostra de que forma o sentido icados físicos, correspondentes à caracteri-
provém simultaneamente do seu enunciado zação do nosso corpo, um conjunto de pred-
como do acto da sua enunciação. A primeira icados psíquicos, correspondentes ao nosso
distinção formulada por Austin entre enun- carácter, à nossa personalidade, um conjunto
ciados constantivos e performativos e a pos- de valores, de princípios e de crenças que
terior tipificação por Searle dos actos lo- regem a nossa conduta e que se identificam
cutórios, ilocutórios e perlocutórios mostram com o que há de permanente em nós. Mas do
como o sentido de um acto de discurso ponto de vista lógico, estamos a responder à
aponta para mais longe do que seu conteúdo pergunta ‘o que sou eu?’ e a descrever o pólo
proposicional. A análise do discurso transita da identidade caracterizado pelo seu carácter
de uma abordagem semântica para uma abor- sedimentado e permanente, identificado com

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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 43

a mesmidade. Num certo sentido, aquilo que a montante de todo o agir e de toda a delib-
faz de cada pessoa um ‘si-mesmo’ ainda fica eração.
por responder. A dicotomia inicial entre os dois univer-
A pesquisa sobre a ipseidade prossegue sos de discurso é ultrapassada e a noção de
para o plano da acção. motivo é integrada na noção de causa.
Convém não esquecer que o fundamento O agente torna-se assim uma espécie de
da ‘hermenêutica do si’ reside na possibili- causa da sua acção. Quer os motivos
dade do ser se dizer de muitas maneiras, de racionais quer as pulsões e as disposições
se expressar no agir. sensíveis que o impelem a agir estão em si.
Ao nível da filosofia analítica da acção,
Num primeiro momento é necessário ex-
fundada na análise dos enunciados nos quais
plicitar o que conta como acção entre os
o homem descreve a acção, a pesquisa so-
restantes acontecimentos do mundo.
bre o agente não implica o reconhecimento
A teoria da acção começa por opor dois
de uma ipseidade. A pessoa que age, que
universos de discurso: acção e aconteci-
é autora de uma acção, é uma pessoa qual-
mento; motivo e causa.
quer, identificada por um pronome pessoal,
A acção diz-se de um fenómeno inten- por um nome, ou por uma descrição definida.
cionalmente motivado por um agente, expli- Ao nível semântico a explicação da acção
cado por uma ordem de razões. O acontec- centra-se na pesquisa sobre o par de pergun-
imento assemelha-se a um movimento que tas ‘o quê?’ – ‘porquê?’.
pode ser explicado não pela intenção de um O segundo estudo dedicado à teoria da
agente, mas por uma causa exterior. acção procura reabilitar a questão do sujeito
Esta oposição é superada pelas análises reflectido na sua acção.
fenomenológicas do desejo. Considerado na Segundo Aristóteles, a acção define-se
sua dupla constituição, o desejo refere-se, pelo facto de depender do próprio agente,
simultaneamente, ao carácter de ‘desejabil- pelo facto de estar em seu poder ou de de-
idade’, ao sentido de uma deliberação fun- pender de si. O Autos, diz o filósofo, é pai e
dada num querer algo, e à noção de força, senhor da sua acção.
ligada às disposições e pulsões que afectam O agente não só é o princípio da acção na
o sujeito. medida em que o seu corpo desencadeia um
As descrições fenomenológicas do desejo certo número de movimentos físicos, mas
evidenciam que existe uma certa passividade sobretudo porque tem a capacidade de de-
em todo o agir humano. Com efeito, para ex- liberar sobre o seu agir, de agir como um
plicar uma acção, um motivo tem de ser tam- homem prudente e virtuoso e de educar as
bém uma causa. Este parece ser o corolário suas inclinações e as suas disposições.
da explicação teleológica de Charles Tay- Dizer que uma pessoa é o princípio de uma
lor, que procura articular uma explicação acção é dizer que a deliberação que presidiu
por motivos, característica de uma descrição à acção é a sua deliberação, que os motivos
teleológica da acção, com uma explicação são os seus motivos; é dizer que ela é uma
causal, que atenda ao carácter passivo iner- espécie de causa da acção.
ente a toda a acção e que por isso se encontra A adscrição da acção ao seu agente afasta-

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44 Miguel Franquet dos Santos Silva

se da descrição de outros acontecimentos. no momento de avaliação e de deliberação


A dimensão ética presente no momento pré- que preside a acção.
deliberativo, no qual o agente decide como Contudo, uma análise semântica da ad-
agir, aproxima a adscrição da acção ao scrição suscita algumas aporias que só po-
agente de uma imputação de responsabili- dem ser resolvidas no âmbito da teoria nar-
dade. rativa.
No entanto, a determinação das intenções As pesquisas no âmbito da filosofia
que presidem a uma acção não é passível de analítica da acção colocam entre parênteses
uma prova de verdade. Explicar uma acção a dimensão temporal que integra as acções
é determinar o ângulo a partir do qual ela humanas descritas na linguagem do quotidi-
é compreensível; é integrá-la num contexto ano.
maior e estabelecer os argumentos que de- O modelo narrativo distingue-se de to-
vem ser considerados como os mais válidos dos os restantes modelos de conexão em
nesse contexto. A procura das intenções é função do estatuto do acontecimento que
sempre um processo de argumentação e de lhe é próprio. Os acontecimentos narra-
interpretação. tivos não são considerados acasos nem inde-
Ao limite, só o autor de uma acção pode pendentes entre si. A sua ocorrência con-
declarar quais os seus motivos e as suas in- tribui para conferir unidade a uma narra-
tenções mais profundas, pelo que no quadro tiva. Esta unidade/identidade resulta de uma
de uma análise semântica a adscrição de uma concordância discordante de vários acon-
acção ao seu agente pode conduzir a uma tecimentos que apontam para uma diver-
aporia. sidade de sentidos aparentemente inconcil-
iável. São fonte de discordância quando
Outra das aporias da adscrição resulta da
surgem e fonte de concordância no que
dificuldade em determinar a eficiência da ex-
fazem avançar a história. Esta concordân-
plicação causal.
cia discordante transforma a contingência do
Até onde se estende a responsabilidade de
acontecimento numa necessidade. Assim,
um agente?
todos os acontecimentos concorrem de uma
No caso de uma acção realizada por vários maneira ou de outra para dar sentido a uma
agentes é difícil de determinar o grau de re- história. Uma vez transposto para a identi-
sponsabilidade a atribuir a cada um deles. dade de um personagem, o acto configurador
Mas a questão coloca-se de um modo da intriga exerce uma função de mediação
mais radical quando se refere à liberdade entre a mesmidade e a ipseidade.
e à autonomia do sujeito. Até que ponto À pergunta ‘quem sou eu?’ posso respon-
a deliberação de um sujeito não é afectada der: sou a minha história; sou o princípio
por disposições, por pulsões ou mesmo por unificador de todas as minhas experiências.
uma tradição que o envolve e onde está en- Sou em ser em permanente constituição.
raizado? Ao contrário de algumas posições relati-
A pesquisa sobre a acção introduz novos vas à identidade pessoal, Ricoeur concebe
dados à reflexão sobre a identidade do su- a identidade como uma forma dinâmica de
jeito ao evidenciar que a ipseidade intervém manutenção de si ao longo do tempo.

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O contributo da comunicação para a constituição de “si-mesmo” 45

A permanência no tempo de alguns traços como também proporciona uma unidade à


que identificam um sujeito, apesar de sed- história de uma vida, propiciando assim a
imentados e relativamente estáveis também avaliação ética de uma vida no seu conjunto
têm uma história. Estes traços estão asso- exigida pela perspectiva teleológica.
ciados à mesmidade, da qual o carácter é “Soi-même comme un autre” estabelece
um exemplo emblemático. Contudo, a par assim as bases para a constituição de um ser
destes traços que permanecem no tempo, a em projecto, que se procura temporalmente
identidade de um sujeito também é consti- através da interpretação das suas acções, dos
tuída por uma manutenção de si. O sujeito, símbolos, dos textos e das grandes obras de
princípio e causa da acção, mantêm-se como uma cultura. Esta interpretação não exclui
um ‘si-mesmo’ na pluralidade das suas man- um momento epistemológico fundamental,
ifestações. A esta manutenção corresponde uma vez que é a dialéctica da explicação e da
um comprometimento ético, pelo facto de o compreensão que é capaz de revelar a semân-
sujeito estar implicado em cada momento de tica profunda de uma obra e assim desvelar
deliberação e de avaliação que antecede a sua o projecto de mundo que ela propõe.
acção. A ipseidade revela assim uma dimen- Pela apropriação, a compreensão de uma
são ontológica e uma dimensão ética. obra estende-se à compreensão de ‘si-
Para além da função de mediação que ex- mesmo’, contribuindo dessa forma para a
erce entre a mesmidade e a ipseidade, a nar- reconfiguração do mundo do sujeito e para
rativa também se constitui como o ‘labo- a constituição dos ‘seus possíveis mais
ratório’ das experiências éticas do homem. próprios’.
Segundo Ricoeur, não há narrativas etica- De que forma é que a comunicação pode
mente neutras. então contribuir para a constituição da ipsei-
O modelo narrativo permite ao autor de- dade?
terminar os começos relativos de todas as Na Introdução deste trabalho procurámos
cadeias de acções complexas, delimitar as definir a comunicação como um processo
responsabilidades de cada agente, proceder através do qual os seres partilham e põem
à explicitação das suas intenções profun- em comum. Como uma forma privilegiada
das e configurar uma unidade à ‘vida’ dos de relação entre ipseidade e alteridade.
personagens, resolvendo assim muitos dos Todo o projecto da hermenêutica do si as-
problemas difíceis colocados à adscrição das senta na necessidade de mediação pela alteri-
acções aos agentes. dade como forma de acesso aos princípios
Deste modo, o leitor pode avaliar eti- que fazem de cada pessoa um ente singular,
camente a conduta dos personagens e único e irredutível.
apropriar-se de novas possibilidades de ser Considerada como uma acção, a comuni-
e de agir. cação constitui-se como uma das formas do
A narrativa constitui-se como o lugar priv- ser dizer-se, pelo que comunicar é uma acção
ilegiado para a ‘hermenêutica do si”, uma passível de uma interpretação tal como as
vez que, por um lado, satisfaz a exigên- restantes acções em que o ser se manifesta
cia da distanciação, ao autonomizar-se do na sua singularidade.
contexto socio-psicológico da sua produção, O sujeito pode perguntar-se porque disse o

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46 Miguel Franquet dos Santos Silva

que disse, ou simplesmente porque o fez de 6 Bibliografia


determinada maneira. Ao interpretar sobre a
sua acção, pode compreender-se um pouco 6.1 Obras de referência
melhor. Aquilo que faz dele o que ele é só RICOEUR, Paul, “Soi-même comme un
se manifesta, não se diz. O homem diz-se ao autre”, Éd. Seuil, Paris 1990.
dizer o mundo.
Como refere Carlos Díaz a propósito da RICOEUR, Paul, “O Si-mesmo como um
estrutura intencional da pessoa: outro”, (Soi-même comme un autre),
trad. brasileira sa., Ed. Papirus, S.
“O ser humano é uma abertura radical Paulo 1991.
ao mundo e às outras pessoas, e por isso
o seu ser consiste em estar sendo, (...) em
estar em permanente estado de constitu- 6.2 Outras obras
ição...”47 ARISTOTE, “Éthique de Nicomaque”, trad.
fr. J. Voilquin, Éd. Gf-Flammarion,
Esta “abertura radical ao mundo e às out-
Paris 1965.
ras pessoas” ganha mais sentido se o sujeito
se consciencializar de que a sua identidade AGOSTINHO, “O Mestre”, trad port. A.
não coincide com o conjunto dos traços per- Pinheiro, Ed. Lisboa, Lisboa 1998.
manentes que o caracterizam. Ao perceber
que continua a ser ele próprio não sendo con- BELO, Fernando, “Epistemologia do Sen-
tudo o mesmo que no instante anterior, o su- tido, I vol. Entre Filosofia e Poesia,
jeito possibilita que a sua identidade se con- a questão semântica”, Ed. Fundação
stitua permanentemente, se configure e re- Calouste Gulbenkian, Lisboa 1991.
configure na relação que estabelece como os CASSIRER, Ernst, “Ensaio sobre o
outros e com o mundo. É esta relação que homem”, (An Essay on Man), trad.
chamamos comunicação. port. C. Branco, Ed. Guimarães,
À semelhança do que acontece com o mo- Lisboa 1995.
mento da interpretação, a comunicação tam-
bém implica que os sujeitos se exponham ao FOUCAULT, Michel, “A Ordem do Dis-
outro e ao mundo que o outro propõe con- curso”, (L’ ordre du discours), trad.
stantemente no seu dizer, na sua acção, nas port. L. Fraga e A. Sampaio, Ed. Reló-
obras que produz. gio d’ Água, Lisboa 1997.
Pensamos ser condição para a comuni-
HERDER, J. G., “Ensaio sobre a origem
cação essa abertura ao outro, essa disponi-
da Linguagem”, (Abhandlung über den
bilidade para abdicar de uma identidade es-
Ursprung der Sprache), trad. port. J.
tática e imutável. Sem essa disponibilidade
M. Justo, Ed. Antígona, Lisboa 1987.
a comunicação nunca poderia contribuir para
a constituição de ‘si-mesmos’. JEUDY, H.P., “ A Sociedade Transbor-
47
C. Díaz, “Pessoa”, in 10 Palavras Chave em dante”, (La Socété du Trop-Plein), trad.
Ética, (dir.) Adela Cortina, Ed. Verbo Divino, Estella port. P. Pereira, Ed. Século XXI, Lis-
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