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ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO SILVA

A ENCENAÇÃO NO COLETIVO:
DESTERRITORIALIZAÇÕES DA FUNÇÃO DO DIRETOR
NO PROCESSO COLABORATIVO

Tese apresentada aa Departamento de Artes


Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo para obtenção do
titulo de Doutor em Artes.

Área de Concentração: Teoria e Prática do Teatro


Orientador: Praf. Dr. Jacó Guinsburg

São Paulo

2008 .
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Escola de Cornunicacôes e Artes da Universidade de São Paulo

---J
Silva, Antonio Carlos de Araújo. 1
A encenação no coletivo: desterritorfalízacôes da f unção
iI
cio diretor no processo colaborauvo/ Antônio Araújo
550 Paulo: A. C. A. Silva, 2008. I
222 f.

Tese (Doutorado) - Departamento de Artes Cénicns/' Fscola


II
ele Cornunicacôes c Artes da Univorsidedo de São Paulo.
12/06/2008.
I
Orientador: ProL Dr. Jacó Guinsburg.
Biblioprafia

1. Processo colaborativo 2. Criação coletiva 3. Encenação


Conternporênea 4. Metodologia de ensaio S. Teatro da Verlig0rn
I. Guinsburg, Jacó 11. Titulo.

CDO 21.ed. - 792


RESUMO

511.\',\. A. C~ A.
A encenação no coletivo: desterrítoríalizações da função do diretor
no processo colaboratívo. 2008_ 222 f Tese (Doutorado) - Escola de Comunicações e
Artes. Universidade de São Paulo. São Paulo. 2008.

A tese investiga o campo de ação e o papel do diretor teatral no âmbito da oiaçt1o C(J-
Ietívu e do processo coleborotivo, modos de criação compartilhada surgidos nas décadas
de 60 e 90. respectivamente. Numa perspectiva coletivizada de construção da obra
cênica. em que a autoria passa a ser cornungada por todos. o encenador deixaria de
ser urna figura Imprescindível, limitando-se ás tradicionais f-unções de organização e
gerenciamento. ou seu papel criativo autônomo estaria sofrendo urna readcquação
ou redefinição? A autonomia da encenação estaria em crise ou o papel do diretor
estaria se destcnitorializando? Visando responder a tais questões o trabalho realiza
um estudo histórico. teórico e metodológico de distintas experiências coletivas de
criação. C01l1 ênfase especial no processo colaborativo e na função do diretor. Além
disso, examina os processos de ensaio de O Livro de Jó; Apocalipse 1,11 e IJR-3. do 'Teatro
da vertigem, a fim de descrever e refletir sobre os seus respectivos procedimentos e
práticas coletivas de criação. Por fim, à luz das discussões teóricas e elas experiências
teatrais aqui tratadas. realiza-se urna análise da função do encenador no processo co-
laborativo. bem corno urna reflexão sobre aspectos ela encenação contemporânea.

Palavras-chave: Processo colaboratívo. Criação coletiva. Encenação contemporânea.


Metodologia de ensaio. Teatro da Vertigem. Grupos teatrais.
AB5TRACT

Directing in a theatre collective: the deterrltoríalizatíon of the


5 II.VA, A. C. f\.
director's role in the collaborativc processo 2008. 222 f Thesís (Doctorate) - Escola de
Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008.

This thesis investigates the thearre director's role anel field of action in rwo theatre
movements whose creative processes are shared by all participants, namely the
collective crecnon anel the collaborativc processo which emerged in the 60s and 90s.
respectively. 111 a theatre work that is built coüectively, whose authorship is an act
of communíon in whích everyone participares anel shares, one may wonder whether
the dírector will be no longer needed, his role being restricted to organizing anel
managing the staging, ar that his autonornous creative role in the producríon of
a play is being rearranged 01' redefined. 15 the autonorny of theatre directing and
of thc mise en scêne going through a crisis? Is the role of the director becoming
deterrirorialized? In arder to address these issues, a hístorical, rhcoretica! anel
mcthodological study of different creative experiments involving theatre work that
is created collectively is carried auto with a special ernphasis on the collaborative
process anel thc dírector's role in such processo In addition, the rchearsal processes
in O Livro deJô ('file Hook oJJo1J): ApocaUpse 1,11 (i\pocalY[Jse I,J 1) anel BR<~. rhrec plays by
Teatro da Vertigem. werc analysed, with a view to describing anel reflecting upon its
collective procedures and practices of creation. Finally, in thc light of file thcorctical
issues anel tlieatre experiences discussed in this thesis, an analysis of lhe director's
role in the collaboratíve process is made, as well as a reflection 011 some aspects of
conternporary theatre directing.

Key words: Collaborative processo Collective creatíon. Conternporary theatre directing,


Rehearsal methodology, Teatro da Vertigem. Theatre groups,
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 01

2 ENCENAÇÃO COLETIVA: O ENCENADOR


NA CRIAÇÃO COLETIVA 06
2.1 Experiências Precursoras 07
2.2 Estúdio do Teatro Piscator 18
2.3 Criação Coletiva 27
2.3.1 Criação Coletiva na CoJõmbia 38
2.3.1.1 Teatro Experimental de Cali (TEC) 39
2.3.1.2 Teatro La Candelaria 48

3 PROCESSO COLABORATIVO: ABORDAGEM TEÓRICA 56


3.1 Processo Colaborativo como Modo de Criação 58
3.2 Processo Colaborativo como Metodologia de Trabalho 62
3 .3 Processo Colaborativo como Modo de Produção 63
3.4 Processo Colaborativo como Resultante Estética 66
3.5 O Problema da Autoria 68
3.6 O Problema da Tornada de Decisão 72
3.7 Polifonia e Construção da Cena 79
3.8 Conceito de Processo Colaooretivo 82
3.8.1 Idéia de Processo 83
3.8.2 Jde ia de Cola boracão 87

4 ESTUDO DE CASO: O PROCESSO DE ENCENACÃO


DE O LIVRO DE JÓ, APOCALIPSE 7117 E BR-3 91
4.1 O Processo da Encenação em O Livro de Já 92
4.2 O Processo da Encenação em Apocalipse 7,71 102
4.3 O Processo da Encenação em BR-3 118

5 PARA UMA POÉTICA DO PROCESSO CQLABORATIVO


NO TEATRO DA VERTIGEM 147
5.1 Definição do Projeto 148
5.2 Definição do Dramaturgo e da Equipe de Criação 148
5.3 Pesquisa Teórica 149
5.4 Pesquisa de Campo 150
5.5 Atividades Pedagógicas Correlatas 153
5.6 Treinamento Direcionado 155
5.7 Depoimento Pessoal e Depoimento Coletivo 156
5.8 Exercicios de Vivência 158
5.9 Improvisações e Jogos 159
5.10 Pergunta/Resposta 161
5.11 Escrita Automática 161
5.12 Workshop 162
5.13 Seleção do Material 165
5.14 Canovaccio 167
5.15 Improvisacâo do Canovaccio 168
5.16 Feedback 168
5.17 Roteiro 170
5.18 Primeira Versão do Texto 171
5.19 Análise Ativa 172
5.20 Pesquisa de Interpretação 173
5.21 Investígação e Apropriação do Espaço 174
5.22 Ensaios Abertos 177
5.23 Ensaios durante a Temporada 178

6 A ENCENAÇÃO NO COLETIVO: O ENCENADOR E


O PROCESSO COLABORATIVO 179
6.1 Função e Campo do Encenador 179
6.2 Encenação Performativa 182
6.3 Encenação-ern-Processo 188
6.4 A Encenação no Coletivo e o Encenador Colaborativo 192

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS 202

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 210

ANEXOS ~7

ANEXO A - Diretivas para o Coletivo Teatral do Teatro Piscator 218


ANEXO B - Fichas Técnicas Resumidas dos Espetáculos 220
1

1 INTRODUÇÃO

Se e111 nossa dissertação de Mestrado procuramos tratar. de maneira detalhada,


das diferentes etapas do processo de criação de uru espetáculo.. pareceu-nos estí-
mulante. agora, na pesquisa que resultou nesta tese ele Doutorado. deliruitar U111
aspecto específico desse processo, a fim ele poder aprofundá-lo. Elegemos, então. o
campo da direção teatral C01110 objeto de estudo. Na verdade, a opção foi por UI11
recorte ainda mais restrito, isto é, o papel do diretor eIll UI11 processo coletivo e
compartilhado de criação. Que perfilou que competências - habilidades. conheci-
mentes e atitudes - esse cnccnador, trabalhando numa perspectiva grupal, necessi-
taria desenvolver?
O eixo de nossa pesquisa será a análise da função elo diretor no chamado JJl~()CeSSo
[ola1Jorativo processo esse surgido 110 Brasil. nos anos 90, que pressupõe a partici-
y

pação criativa colctívízada de todos os envolvidos no trabalho. A referida dinâmica


- numa definição sucinta - se constitui I1UI11 modo de criação em que cada um dos
integrantes, a partir de suas junções artísticas espccíjicas. tem espaço propositivo garan-
tido. Além disso. ela não se estrutura sobre hierarquias rígidas. produzindo, ao fínal,
urna obra cuja autoria é dividida por todos.
Frente a tal perspectiva, não esraríamos diante de UIl1<l reconfiguração da função
do cncenador? Ou estaria ele, novamente. relegado a Ul11 papel secundário de I11CrO
organizador material ou disciplinador ele urna equipe? Ainda que seja prematuro
falar em um novo paradigma para a direção teatral. a encenação colaborativa parece
se contrapor à noção do diretor tradicional, centralizador e unificador, responsável
por todas as decisões relativas ao processo de ensaio e ao espetáculo e definidor ela
maneira e do momento nos quais os atores e os outros criadores poderiam atuar.
Esse papel autocrático do encenador remete à célebre divisão taylorista do Inundo
do trabalho ern que a alguns poucos cabe a missão de conceber, planejar e dirigir o
processo produtivo, e aos demais, apenas executá-lo.. sem quase nunca ter a visão
do todo ou a possibilidade de modificar os rUI110S preconcebidos. Porém, por que a
concepção da obra cênica não poderia ser definida, cooperativamente. pelos atores e
demais criadores. ao invés de se restringir apenas ao diretor?
Por outro lado, o faro de. num processo colaborativo, o encenador compartilhar o
eixo conceitual e a responsabilidade pela criação artística com os outros integrantes,
significaria urna perda de especificidade em seu papel? Se. por exemplo, a coorde-
nação dos ensaios. a mediação dos conflitos. a supervisão do trabalho de todos os
envolvidos, a busca incessante pela sinergia dos diversos elementos de urna cornposí-
2

ção cênica continuam sendo atribuições suas, será que, nesse processo de divisão de
autorias. o encenador não passaria a ter Ulll caráter mais catalisado r, "enzimático" e
provocador de uma polifonia criativa. ao invés do seu conhecido papel unificador?
Tal atitude ou perspectiva por parte cio encenador parece exigir dele a crença na
capacidade que o outro tem ele criar. o conhecimento profundo das características
e habilidades dos seus parceiros de trabalho. bem COll10 das Iimitações e inseguran-
ças que os impedem de desenvolver suas potencialidades criativas. Ao instigar uma
postura <uiva - e não apenas reativa -. ele compromete-se com um processo de cria-
ção que envolve mais riscos e coloca ern xeque a sua própria função cenrralizadora
e de condução.
Em outras palavras. a contaminação ou o compartilhamento das autorias colo-
caria em perigo a autonomia de sua criação. ou. pelo contrário. a redímensíonarta?
COIlIO se estabelece a sua criação diante das inevitáveis polarizações e das vontades
individuais divergentes. presentes ern processos dessa natureza? E. se não podemos
falar na "morte do diretor" ou no "fim da encenação", seria apropriado pensarmos
em Ulll "diretor em crise" ou em urna "encenação fraturada"?
Ou ainda. valendo-se de alguns conceitos deleuzianos. seria apropriado falar em
urna rctenitotializaçdo da encenação? Ou talvez. quiçá, melhor seria investigarmos a
sua destenitorilllizllÇiio? A noção de "território paradoxal" como um território sem pre
por vir e sempre por ser construído. UI11 território pensado por Deleuze não C0l110
"lugar geográfico", mas C01no "zona de experiência", parece vir se delineando COIUO
urna boa tradução para o ]Wbi!clt deste encenaclor-cm-processo.
Tais percepções nos levam ainda a outros questionamentos: nessa dinâmica de
compartilhamento das autorias, o encenador não estaria abdicando do seu conheci-
elo papel ele construtor de urna unidade? A noção ele ensenlble. fundamental na prática
ele encenadores COlHO Meiningen, Antoíne c Stanislavski, não estaria sendo revísitada
por outro ângulo. que não o da unidade harmoniosa do todo. mas pelo viés da ação
criadora do conjunto. do coletivo. do grupo?
E. por fim, se vivemos na época do teatro "perforrnativo" 0\.1 "pós-dramático", não
estaríamos diante de urna encenação, também ela, pcrformacíva? Ou ainda. no limite,
seria possível pensar em termos de urna "anarquí-encenação", liberta dos princípios
tradicionais de autoridade e liderança?
Esta tese pretende, justamente. abordar tais questões, verificando possíveis modi-
ficações na função do encenador a partir da experiência do processo colaborativo. Procu-
ra. nesse sentido. identificar as eventuais readequacões ou redefinições do papel do
diretor numa dinâmica compartilhada de criação. e checar se. ao ampliar seu campo
de possibilidades. tal papel estaria encontrando outras formas de atuação.
É inegável a relação do objeto desta pesquisa C0J11 o 111eU próprio oficio de dire-
tor, Venho trabalhando numa perspectiva coletivizada. desde a criação do Teatro da
Vertigem, en11992. grupo no qual exerço a função de encenador. Daí o interesse em
3

mapear. analisar e quiçá. sístematízar, a pesquisa que empreendi de forma prática.


no campo da direção teatral, nesses últimos quinze anos.
Ao avaliar a experiência da referida companhia nos processos de construção da
r,ilogia 13t1)lica e em BR·3, posso afirmar que, na arca da direção, procurei garantir e
estimular a participação de cada um dos integrantes do grupo, tanto na criação mate-
rial ela obra. C0I110 também na reflexão crítica sobre as escolhas estéticas. os encarni-
nhamentos metodológicos e os posicionamentos ideológicos e éticos. Tal perspectiva
me fez repensar e redesenhar. significativamente. a minha atuação como encenador,
Daí. por essas razões. a tese apresentar corno embasamento pnitíco central as experi-
ências realizadas no Teatro da Vertigem,
Outro aspecto importnnte da tese é o seu diálogo CDll1 a minha atuação pedagógi-
ca e universitária dos últimos oito anos, especificamente no que refere-se à formação
de novos diretores. Tanto na Escola Livre de Teatro de Santo André e. especialrnen-
te. no Departamento de Artes Cênicas ela ECA-U5P. projetei. coordenei e ministrei
cursos voltados exclusivamente para a formação do aluno-diretor, Em alguns deles.
por exemplo, pude desenvolver urna prática pedagógica associada concretamente ao
processo colaborativo - tema fundamental deste trabalho. Muitas elas reflexões aqui
encetadas foram frutos dessa experiência e do diálogo fecundo e intenso ocorrido ern
sala ele aula.
NUIl1a visão panorâmica do percurso empreendido para a elaboração da tese. par-
tiu-se de urna reflexão sobre a criação coletiva para. então. realizar-se um estudo teó-
rico e metoclológico mais detalhado do processo colaborativo. Evidentemente. o eixo
agregador de toda a pesquisa {oi o campo ele experiência e o papel elo diretor nesses
1110dos de criação.
No primeiro capítulo. após a realização de um breve panorama histórico de expe-
riências exemplares de coletivização da criação. faz-se urna análise UHl pouco mais
detida sobre o Estúdio do Teatro Piscator, A razão dessa escolha se deveu ao fato
de tal experiência se encontrar melhor descrita do que outras - contemporâneas ou
anteriores a ela -. pela disponibilidade de fontes e do material encontrado, corno
também em função de Piscator ter sido professor de judith Malina - criadora, junto
COll1 Julian Beck, do Livirig Theater, Tal "filiação" nos pareceu significativa corno UUl

"estudo de caso" anterior discussão sobre a criação coletiva.


á

Além da experiência do próprio Living, fez-se um recorte sobre duas importantes


companhias latino-americanas. o Teatro Experimental de Calí e o Teatro La Candelaria.
A primeira é responsável pela sistematízação do primeiro método de criação coletiva.
que percorrerá e influenciará o movimento teatral em todo o continente. e a segunda.
além de também ter estruturado teoricamente urna rnerodología de trabalho coletivi-
zado. antecipa, sob certos aspectos. a dinâmica criativa do processo colaborativo.
O segundo capítulo faz urna discussão sobre o processo colaboratívo, identifican..
do algumas matrizes teóricas que inspiram - ou podem inspirar - o seu modo de
4

funcionamento. Ainda que o eixo orientador encontre-se dentro elo âmbito da teoria
teatral. buscou-se o diálogo C0I11 outros campos ou disciplinas. C01110 a Teoria Literá-
ria, a Matemática ou a Sociologia. Valemo-nos, entre outros. dos trabalhos de análise
combinatória ela Teoria dos Jogos. dos estudos sobre polifonia de Bakhtin e do concei-
to de tllulUdào de Antonio Negri.
Evidentemente. o objetivo não foi se aprofundar nessas outras áreas. mas utilizá-
las COI110 provocadoras e fontes de ressonâncias possíveis C0111 o universo teatral. Ou
seja. a idéia foi convocar tais disciplinas. sempre que pareceu oportuno e iluminador
algU111 eventual entrecruzarnento com o teatro, a fim de criar conexões entre a refle-
xão e o fazer teatral com outros saberes e práticas.
O capítulo seguinte se baseia em um estudo prático de caso. a saber. o processo de
encenação de O Livro de jõ, Apocalipse 1,11 e BR-3, espetáculos esses realizados pelo Te-
atro da Vertigem. O objetivo. além de mapear o percurso de elaboração dessas obras,
foi identificar a ação da direção nas díferenres fases do processo: definição do proje-
to: pesquisa teórica e de campo: realização de workshops e irnprovisações: construção
da dramaturgia: direção de atores; coordenação de estágios e oficinas e. por fim, a
materialização do espetácu lo no espaço escolhido.
No quarto capítulo. procuramos esboçar os dispositivos e procedimentos práticos
do processo colaborativo. à luz da maneira corno ele é realizado 110· Teatro da Verti-
gem. Por ser UI11 modo de criação essencialmente experimental. não pretendemos
consolidá-lo COI110 urna metodologia fechada nem Il1UÍto menos estimular a sua utili-
zação por outros grupos ou coletivos. Trata-se, única e simplesmente, da tentativa de
sistematização ele princípios e praticas mais ou 1l1CnOS recorrentes. na trajetória de
construção dos espetáculos do grupo até agora.
O último capítulo da tese parte de urna discussão sobre a função da direção para
refletir sobre as tendências e I"UlnOS da encenação contemporânea. A partir desse
contexto. busca-se analisar o papel do encenador que atua em coletivos teatrais..
criando de forma compartilhada, Aqui. também. foram realizadas algumas pontes
com diferentes campos elo conhecimento, mais especificamente, com os estudos da
complexidade - teorias de rede. emergência e dissolução de hierarquias- e C0l11 a filo-
sofia pós-estruturalista de Deleuze e Cuattari - principalmente no que se refere aos
conceitos de agendaTllcnto e rnultipliddadc.
É claro que. ao tratar das teorias acima citadas, pretendemos ídennücar <IS possíveis
conexões entre as suas proposições e aquelas inerentes ao campo teatral. Porém, tal
opção não visou substituir ou anular a reflexão que vem sendo realizada por estudiosos
de teatro sobre a cena contemporânea, COlllO é o caso. entre outros. de Sílvia Fernan-
des. Renato Cohen josette Féral, Hans-Thies Lehrnann. Patrice Pavis ou Bernard Dort.
Tais teorizações - teatrais e extra-teatrais - pareceram profícuas para se pensar
a função da encenação na conternporaneidade e. e111 especial. dentro do âmbito de
modos compartilhados de criação. Existe aí também, sem dúvida. um desejo de me
5

contaminar COI11 referenciais teóricos distintos e de repensar o meu próprio conheci-


mente sobre a direção teatral.
Em suma, esta tese se configurou C01110 um estimulante exercício reflexivo sobre
a área da encenação. possibilitando. ainda. a sistematização e o compnrtilhamento
da pesquisa que venho empreendendo há anos. Tanto numa sala de ensaio COlHO
numa sala de aula, por mais abertos c receptivos que tais ambientes possam ser, rea-
lizam-se experiências de caráter restrito e interno. além de. no caso da direção. carac-
terizarcm-se por UI11 viés eminentemente pratico. Daí, a perspectiva de um diálogo
diferenciado que esta tese proporciona.
Por fim. gostaria de ressaltar a importância dos estímulos. das provocações. e
do diálogo C0111 o meu orientador, o Prof Jacó Guinsburg. A sua condução rigorosa.
inteligente e sensível foi fundamental para que este trabalho tivesse vindo "á cena".
Não fosse por ele, várias das considerações aqui levantadas teriam padecido de maior
desenvolvimento. Devo-lhe. também, a sugestão e o norte para a pesquisa histórica
sobre os antecedentes da criação coletiva. Sem suas indicações e seu auxílio jamais
teria conseguido desenvolvê-la a contento. Além disso. a sua interlocução com os pro-
cessos de criação nos quais atuei corno diretor foi imprescindível para o exercício de
recuo crítico e de aguçarnento do olhar sobre eles.
6

2 ENCENAÇÃO COLETIVA: O ENCENADOR E A CRIAÇÃO COLETIVA

"Ihe colkctivc crcation.


Concept ofa theatre cmnIJllny, II \\'orkin.g group, as
i\utlp·chist commurze
Free tllecltre [... )
'I1tc al1oUtcotic ntoUlcnt at which (1 collcctíve of individunls bccomes itscU: V~fhcr'c
is tlJe dircctor? Helslze is II glowin,g partíciI1CHtt, no longe,· tI lienatell jrom tlw
1,clfonners. the pe,fot1ucrsfroni the director n
(Julian Beck, nw LiJe (1 tllC 111eater)'

o teatro, por sua natureza. constitui-se numa prática coletiva, envolvendo artistas
e técnicos na sua criação e execução e, além destes. o público. no momento de sua
recepção - e, também, produção, C01110 no caso dos ensaios abertos. Porém, o termo
"coletivo" aqui diz respeito à quantidade numérica de pessoas envolvidas no fenôme-
no teatral - que pressupõe. no mínimo, Ull1 actante e um espectante - ou â quantida-
de e variedade de funções nele presentes.
Em nosso trabalho. contudo. utilizamos o conceito de "coletivo" associado a um
1110do de fazer, à maneira corno as diferentes funções ou atribuições se articulam rumo
à criação da obra cênica. Nessa perspectiva é que utilizamos a noção de "dinâmicas
coletivas de criação". cujo acento e foco se encontram num processo compartilhado,
coopcrativado e democrático do fazer artístico. Ou seja. não há UHl criador cpicõrurico
para onde l udo convirja, mas um conjunto de criadores que vão definindo. coletiva-
mente. os rumos, os conceitos, as práticas e as materializações de sua obra/processo.
Caberia a pergunta. quanto ci noção de "dinâmicas coletivas de criação", acerca da
pertinência de sua utilização no plural. Pois seria correto pressupor distintas formas de
ocorrência desse compartilhamento de <lutadas. ou. ao contrário. o mais apropriado seria
afirmar a sua singularidade. relegando as diferenças entre um processo e outro. a idios-
sincrasias sem maior relevância? Seriam, por exemplo, os termos aiaçc10 coletiva e processo
colaborativo nomes distintos para urna mesma prática? Ou. ao conrrário. traduziriam dinã-
nucas e processos. que apesar de aparentados. consubstanciam fenômenos diferentes?
É a partir dessa contraposição que o presente trabalho orientará as suas reflexões
iniciais. procurando. em seguida, tratar detidamente do processo cokibomttvo. Porém,
antes de analisarmos tal confrontação. julgamos pertinente trazer ~l tona alguns ante-
cedentes históricos exemplares das práticas coletivas de criação.

"A criação coletiva/Conceito de urna companhía de teatro. de UI11 grupo de trabalha.


cOlnojConlllIla anarquistaj'Ieatro livre l...) O momento apoteõtíco no qual um coletivo
de indivíduos se torna ele mesmo. Onde está o diretor? Ele/ela é um participante ar-
dente. não mais alienado dos l1erfonllers, os perfonllers do diretor" (trad, nossa}.
7

2.1 EXPERIÊNCIAS PRECURSORAS

Não pretendemos. é claro, a realização de uru levantamento histcriográfico exaus-


tivo e completo das experiências grupais democráticas que antecederam a criação
coletiva dos anos 60 e 70. Tal mapeamento fugiria bastante do escopo desta pesquisa,
já que seu cerne está estruturado em torno do processo colaborativo. e de urna noção
de encenador que aparece no final do século XIX e se consolida ao longo do século
seguinte. O objetivo. portanto, será apenas o de assinalar alguns exemplos significa..
tivos de dinâmicas artistico-comunirãrias precursoras.
Poderíamos. é claro. apontar as experiências coletivas de criação ocorridas nas
guildas do teatro medieval, nas companhias de cornnledia delfcute e nas trupes de
Shakespeare ou Moliére, Tais exemplos - cada qual exibindo diferentes formas de
organização e ele construção c1<1 obra cênica - atestam a presença do trabalho criativo
compa rti lhado, não apenas na elaboração de suas respectivas obras, mas COlHO cvi..
ciências de U111 modo de fazer "socializado" que percorre a própria história do teatro.
Contudo. é a partir do momento de afírmação do cncenador enquanto Ut11 artista
autônomo que iniciaremos o nosso sobrevôo.
Na passagem do século XIX para o xx, o movimento simbolista russo vai propor,
por exemplo. UI11a espécie de "fraternidade poética" ou "fraternidade universal". Ela
seria composta pela associação ele artistas de varias áreas. visando a uma "ação coleti-
va" - misto de "comunhão", "espetáculo de massa", "culto religioso" e "atitude revo-
lucionária", de natureza anti-racionalista c antiburgucsa. O inspirador desse movi-
mcnto, Viacheslav Ivanov. filósofo e poeta responsável pela elaboração de importante
ideário utópico teatral, vislumbra que "os atores começariam a recitar ou a cantar no
próprio palco. desceriam então para a platéia, misturando-se à multidão e. distribuin-
do figurinos e máscaras para todos que quisessem, envolveriam o público presente
em uma irnprovisaçâo criativa comunírária'". Não deixa de ser curiosa a semelhança
desse projeto - jamais realizado - com as criações coletivas das décadas de 60 e 70.
De qualquer forma, esse "coletivismo altruísta". tal COIllD definido por Rudnírsky, vai
influenciar, entre outras iniciativas. a criação de um teatro deuorninado CCJ\s Tochas".
em "'1906, do qual participou Meyerhold.
Ivanov associava a crise do teatro de então à perda do que ele denominava de
princípio sohónlÍ - termo de tradução complexa, utilizado ern vários campos artísti-
cos no final do séc. "IX e início do séc, xx, envolvendo a idéia de "lugar de reunião".
"templo ou catedral" e "coletividade". Segundo ainda a tradução de Arniard-Chevrel
"as palavras SOb01TIlyj, sobornosr' implicam, no teatro especialmente, a comunhão espi-

2 Russiall & Sovid llwilLrc; tnlClitioll &


RlJDNlTSf..'Y. K . aw awmt-garde. London: Thames and
Hudson, 1988. p. i o.
8

ritual de toda urna sociedade. em urna ação COIllUI11 coletiva. freqüentemente dotada
de um caráter de celebração rcligiosa'". Para o filósofo-poeta simbolista. a crise do
teatro decorria, justamente. dessa perda de seu aspecto comunitário. participativo e
coletivo. Pois. "o essencial na arte teatral é seu caráter sohónti. I...} a arte teatral é em
primeiro lugar uma ruanifestação coletiva. coral. social, S()lJóf·Hr··~.
O Teatro de Arte de Moscou (TAM). por sua vez. também será palco ele alguns pro-
jetos e experimentos comunitários. O primeiro deles surge, embrionariamente, por
meio de um fecundo cliãlogo entre Górki e Staruslavski. Tal discussão tinha corno foco
a participação ativa do dramaturgo em sala de ensaio. o qual escreveria o texto a partir
das improvisações dos atores. A idéia proposta por Córki, em 1910 - 01.1 1911, segundo
Sérgio [imcnez" -. tinha por objetivo a criação de UH1 estúdio. C0111 jovens atores, para
desenvolver urna colaboração baseada em improvisos, os quais teriam corno norte a
idéia do Ca110VClCc10 da commedín dell'nrte. Isto é. a partir de UHl argumento fornecido pre-
viamcnte pelo dramaturgo aos intérpretes, estes se empenhariam em desenvolvê-lo por
meio de improvisações. Segundo a descrição do projeto. realizada por Jacó Guinsburg,

Providos de um esboço de enredo e das personagens. os comediantes se poriam a


trabalhar. cada qual aprofundando a sua parte através da técnica do improviso e
podendo aferir os resultados com os companheiros de elenco, aos quais competiria,
além de contracenar, criticar e comptcrncnmr as elaborações dos iruérprctes."

De acordo com Cuinsburg, os atores teriam total liberdade para a elaboração elas
personagens, cabendo ao diretor

[...) apenas a incumbência de evitar o uso inconsciente de situações ou expressões


'Iircrarias' ou o inflamento desmesurado da importância de cada papel. para fins de
exibicionismo pessoal. Mas, urna vez efetuado os ajustes necessários {..., emerglria
UI11 texto teatral que teria todas as condições de subsistir cenicamente. sobretudo

depois de aperfeiçoado e rematado durante os ensaios. cabendo ao dramaturgo,


apenas então. o eventual trabalho de lhe dar uma última demão no acabamento.'

Essa "criação coletiva por Ull1 teatro da Improvisação" provocaria ainda. na anã-
lise de Cutnsburg, uma renovação no repertório cio Teatro de Arte de Moscou. É

3 C. Les Symbolisles Russes et lc TIzéãtn:. Lausanne: t',\ge d'Hommc, 1994. p. 28.


AMJ,\RO·CJfJ;\'REI.,
4 STEI1ANOVJ\. G. J\. Idéia "sobónrogo teatru" v IJoctitdlt!skoifilossóJii Víutcheslavn J\'onova (/\ id~itl
de "rearro 'Sobónli'" na filosofia lJoéLica de ViClcllesluv Ivnnov]. Moscou: Ed. GITIS. :W05. p. 56
(citação traduzida por Elena Vâssina].
5 JJMENEZ. 5.El EVllugdio de Slallislavski sc.glm sns Clpostoles, los aJ1órriJos, la reforma, los falsos
profdas)' Judas Isccríore. México: Crupo Editorial Gaceta, 1990. p. 243.
6 CUINsnURC. j. Stanisldvski, Meierhold ó eia. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001. p. 110.
7 Ibid., p. 110.
9

curioso perceber. também, a relação deste tipo de prática COIll os procedimentos


metodológicos do processo colaborativo - em especial. no desenvolvimento da dra-
rnaturgia por meio de UI11 canovaccio. Contudo, baseando-se na descrição acima. iden-
rificamos urna presença artística mais atuante por parte do dramaturgo, no início e
final do processo. e não durante todo o seu desenvolvimento - que ficaria. no caso.
a cargo principalmente dos intérpretes. Esta ênfase na contribuição do ator para a
confecção da dramaturgia é apontada na análise que jimenez empreende da propos-
ta apresentada ao TAM:

Sempre interessou a Stanislávski a possibilidade de participação dos atores na


criação do texto da obra. corno um meio estimulante para a iniciativa criadora
na formação da personagem cênica. Respeitando sempre o papel primordint
da dramaturgia corno base da arte teatral. Stanislávski tentou integrar a este
trabalho experimenta! U111 dramaturgo com experiência. o qual dirigiria o pro-
cesso criador de formação da obra. A idéia de Stanislávski sobre a colaboração
do dramaturgo com o reatro na criação do drama foi apoiada fervorosamente
em um momento por Córki. (...) Górki entregaria a Stanishivskí , para uso expe-
rírnental no Estúdio. alguns roteiros COIll o argumento da obra em projeto e as
características das personagens participantes. Górki escreveria o texto defini-
tivo somente depois de levar em conta as anotações que os atores sugerissem
durante 03 ensaios."

Apesar do estímulo e empenho elo dramaturgo de I~(Jlé. tal proposta não chegou a
se efetivar. Contudo. ela serviu C01110 fonte inspiradora na constituição do Primeiro
Estúdio do Teatro ele Arte de Moscou. Será justamente aí que ocorrerá outra significa-
tiva experiência comunitária do TAM.
Criado em 1912. corno espaço de experimentação e desenvolvimento dos princí-
pios do "sistema" stanislavskiano. reuniu alguns membros brilhantes como Richarcl
Boleslavski. Mikhail Tchékhov e Evguêni Vakhrãngov, Organizado e capitaneado por
Leopold Sulerjttzki .- seguidor da visão comunitária de Tolstói - em parceria com Sta-
nislávski. o Primeiro Estúdio visava tanto ao aprimoramento artístico quanto ético
de seus integrantes. Segundo Hélene Henry,

De SU~lS convicções tolstoianas. Sulerjítzki retém, sobretudo. as posições espiritu-


alistas. humanistas e pacifistas. a reivindicação de UIn trabalho ancorado nos valo-
res terrenos e de estruturas do tipo cornunal. "Aproximar as pessoas. construir
urna obra comum, objetivos comuns, um trabalho comum. urna alegria comum,

8 JIMENt:1... 5•• El E\'cmgelio e1c: Sraníslavslâ segun sus Cl170stoles, los ClIJôcrifos. la n:fonlllJ, los filrSOS
profetas YJudas Isrnríotc, p. 243.
10

Iutar contra a vulgaridade. a violência e a injustiça. servir ao <111101' e à natureza.


à beleza e a Deus". estes são os objetivos do teatro. (...) É assim que Stauislávski
definia o objetivo que Sulerjítzkí destinava ao Estúdio."

Tal perspectiva comunitária ficou evidenciada nas famosas férias ele verão do
lO

Estúdio", organizadas por Sulerjítzki ele 1913 a 1915. em que todos os seus membros
iam para Ut11a fazenda na costa do luar Negro, na Criméia, próximo de Evpatória,
para trabalharem coletivamente a terra. De acordo C0l11 Henry, nessas experiências,
"o coletivo do primeiro Estúdio, reestruturado à maneira de urna comuna elo sócia-
lismo utópico. experimenta urna existência estritamente disciplinada. voltada para
a natureza e o trabalho em C0I11Ull1 , 1O. Stanislávski pretendia, junto conl seu compa-
1

nheiro "Súler". a criação de uma "comunidade de artistas" ou ainda, de urna "ordem


espiritual de artistas". Segundo ele, este "lado agrícola" elo Estúdio precisaria ser
fomentado. pois poderia contribuir para a união das pessoas:

(.••1 comprei terras numa magnífica praia de areia e coloquei-as à disposição do


Estúdio. Com dinheiro arrecadado em espetáculos dados em Evparória. construí-
mos naquelas terras prédios de natureza social. I...) depósitos para inS[I1.1I11enlOS
agrícolas, sementes, viveres alímcntícios. reservas. sótãos para a conservação de
carne e leite. etc. Cada pupilo deveria construir com suas próprias mãos a casa que
se lhe concedia para morar nos dias difíceis. Durante dois ou três anos um grupo
de pupilos do Estúdio, dirigidos por Sulicrjirzkí ia para Evpatória durante o verão,
onde levava vida primitiva. sem teto. Os próprios integrantes do grupo carregavam
e lavravam as pedras para a construção dos edifícios de função pública. (...1. Toda a
comunidade de homens primitivos andava seminua e naturalmente bronzeada de
sol. Sulíerjítzki 1...\ estabelecia um regime severo. Cada pupilo do Estúdio tinha a
sua obrigação social: um era o cozinheiro. o outro o cocheiro. esse se ocupava da
parte administrativa. aquele era o barqueiro. creu

Esta utopia comunitária, marcada pelo tolstolsmo, e baseada na disciplina. na


fraternidade. no trabalho COIU a terra e no contato C0l11 a natureza. é descrita, "de
dentro", por U1l1 dos integrantes mais famosos do Estúdio, Vakhtângov:

1...1nós ceifãvamos tanto quanto serrávamos madeiras. Era duro 110 início. depois
isso nos agradou. Nós o chamávamos assim: "o trabalho forçado e pesado dos cri-

9 Grillondu Foycr. spectacle pilare du prernier Studio. in J\ltenzatives Tllélitl"alcs


IIENICl'. H. ls:
87: StcmislcnrslilTcllckllOV. Bruxelles. n° 87.4(' trimestre 2005. p. 10.
10 lbid.• p. 10.
11 STANISLAVSKI. K. ÀHnlw Vida na Arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1989. pp.
47 6 -4 79 .
11

111in0505". Você se dá conta. o dia inteiro trabalhando duro! Lá, nas maravilhosas
margens do Dniepr, Nós tínhamos vindo para tirar férias. c desde o primeiro dia.
nos despacharam para o trabalho. Estranho. não é'? E não é estranuo. tarnbérn ,
que nós tenhamos retornado à Moscou ern plena forma e COll1 toda a força. todos
negros. felizes. orgulhosos de nossos bíceps. de nossas palmas calejadas e de nos-
sos bronzeados?'?

De acordo COI11. Poliakova. nUt11 elos estudos mais completos já publicados sobre
Sulerjítzki.

o objetivo do Estúdio era a criação de um teatro-comuna, C0l11 uma direção cole-


\iva 1...] COll1 o ideal de um trabalho em comum. COH1 participação nos lucros, C01n

organização de um lugar específico para descanso no verão. com liberdade e COll1

contato C0l11 a terra. que é lavrada pelas próprias mãos, t:J

o regimento interno do Primeiro Estúdio foi concebido nU111a base voluntária e


de confiança mútua, o que denotava a amizade e a forte aproximação entre os seus
integrantes. Os mandamentos e princípios de trabalho não diziam respeito apenas
aos atores, mas "abrangiam todos os seus membros. incluindo os técnicos e os operá-
dos elo palco. Todos eles fazia In parte da irmandade do Estúdio, na base ela igualdade
[CID relação àqueles princípios]"!'.
O Primeiro Estúdio, vários anos depois da morte de Sulerjitzki (1.916) e já tendo
reclamado a sua autonomia do Tt\rvI - o que o transformou no Segundo Teatro ele
Arte de Moscou - realizará ainda algumas experiências de "direção coletiva". Após a
montagem de 1\ [1tllga. ern 1925, foi preparada urna produção de PcterSblltg. de Andreí
Bely. cncabeçada por Mikhail Tchékhov, e coordenada por três diretores: Alcxander
Cheban, Serafirna Birrna e Vladimir Tatarinov. Pratica coletiva comum no Segundo
TAM, ela agradou ao escritor da obra, que via o processo COlHO um "trabalho criativo
coletivo no qual o autor se tornava o diretor e o ator, o dré:U11aturgo·· 15 •
Contudo. COIllO aponta Rudnitsky, essa sensação positiva por parte do autor foi
prematura. O crítico P. Markov acusava a montagem de "falta de coordenação dire..
torial" e observava que "ao colocar o espetáculo nas mãos de três diretores. o teatro
condenava-se à falta de unidade" e que "a formalização externa da montagem estava
atrasada em dez anos", Aíérn disso, o mérito "coletivo" da empreitada repousava

12 VAKHT,,\NGOV, E. Éails sur li: 11uFâln:. Lausanne: L·Âge d'Homrne. 2000, p. 185.
1.3 POUAKOVA. E. L Lcopold Antónovitch 5ulcljíl.ski. Moscou: Ed. lskusrvo. 1970. p. 381 (citação
traduzida por Eluna Vássina).
14 AI.PEllS. Boris. TeCltrálnie Ótcl1crkí (Ensaios Teatrais), MOSCO\l: Ed. Iskustvo, 1977. p . 31 (cíta-
çâo traduzida por Elena V,issilla).
15 RUDNlTSKY. J\•• Russian fJ Sovict l1zel1tre: tracUliou & r1le avallt-garcfc. p. 193,
12

exclusivamente na excelência "individual" da interpretação de Mikhaíl Tchékhov.


O próprio Bely apontava a contradição de que. na verdade. era aquele grande ator
quem dirigia a peça através dos três diretores. Em função do fracasso de Pct"erslnn-g
e das oposições e dissensões internas da companhia. Tchékhov renunciou de vez "a
idéia de 'direção coletiva'"!",
Vakhtângov, por sua vez, levará os ensinamentos cooperativistas de. Sulerjitzki
e do Primeiro Estúdio para o teatro de arte judeu Habirna. Criado em Moscou, em
1918, por Naurn Zernach, com repertório apresentado em língua hebraica. ele teve,
por um período, a direção de Vakhtãngov e a supervisão do próprio Staníslávski.
Segundo Cuinsburg,

j...) foi nesse local que Vakhtângov, secundado pelo entusiasmo do 'coletivo. onde
rodos. comediantes ou não. eram iguais em direitos - o que subsistiu durante mui-
tos anos. embora a igualdade de salários deixasse de vigorar na companhia - e onde
reinava uma estrita autodisciplina e ninguém violava ou transgredia as normas',
lançou-se a. urna criação ex nihih).t7

o referido diretor nisso fará nesse teatro UI11él de suas encenações mais importan-
res, a da peça O DfLJuk. de Sch. Aa-Ski. em 1921. Nela, durante os ensaios, ele lançarã
111<10 da improvisação de forma mais acentuada que Stnníslãvski. utizando-a Con10
uma ferramenta para a construção da encenação. Além disso. Vakhtãngov contribuiu
siguificativamentc para a transformação do Habitua em UI11 verdadeiro cnsemble, nos
I1101des do Teatro de Arte de Moscou. ao sobrepor a formatação artistica coletiva
às personalidades individuais dos atores. I~ importante ressaltar que essa noção de
eflscmlJle - isto é. a idéia de um "conjunto" teatral- rem COlHO pressuposto urna afina-
ção coletiva ela companhia do ponto de vista do resultado apresentado - não denotan-
cio relação, necessariamente, C0111 urn processo democrático de feitura.
O estudioso Ouriel Zohar, responsável por uma curiosa associação entre a cria-
ção coletiva e a ideologia elo kibutz. lamentará o afastamento do teatro Habima de
seus princípios e práticas cooperativistas. característicos de sua fase vakhtangoviana.
Segundo ele. o Habírna "iniciou-se sob urna forma coletiva. luas C0111 o tempo ele se
distanciou de seus objetivos iniciais para tornar-se um pesado estabelecimento de
producões?« ~ próximo a um teatro do tipo "empresa comercial".
Outra experiência coletivista de enorme importância foi o teatro de agitprop sovi-
ético. Ocorrido entre 1917 e 1932, ele se configura corno o antecessor mais signifi-
cativo - ou. até mesmo, o inventor - da criação coletiva. Fruto da Revolução Russa,

16 RUJ>NITSKY. K., Rllssian & Sovict 11lcatre: tradHion & lhe Cll'ant·gm-dc. p. 194.
17 GUINSnURC, J•• Stanislcivsli, Mt.iCrllOld & eia. p. 206.
18 ZOIlAR, o. Un LivirJg 111carn: collectíf inspíré par l'idéologie du kibboutz. 11léâlrt!{s}
Engagé(sJ. fase, 7. 1997, p. 202.
13

define-se C0l110 U1l1 forte movimento teatral ele agitação e propaganda, baseado em
urna estrutura de autogestão coletiva, tendo por objetivos a instrução e o fomento à
luta revolucionária c à construção do socialismo. É desta época o surgimento dos gru-
pos auto-ativos, definidos por Silvana Garcia. C0I110 "coletivos de produção artística
que congregam díferenres 'círculos', abrangendo os diversos aspectos da educação
política e da vida cultural ele seus membros. Desempenham também U111 papel de
reprodutores, formando e estimulando outros coletivos"!",
O auto-ativismo, idealizado por Pavel Kerjentsev - teórico do Proletkult -recusa o
"profissíonalismo da ideologia burguesa", valorizando, ao conrrãrio. o "amadorismo"
e os princípios teatrais coletivistas e participativos. Entre. estes úttimos, por exemplo,
encontra-se a supressão da "autoridade do texto escrito ou tirania elo encenador". O
teatro auto-ativo busca, de acordo com jean-Pierrc Morel,

l...1a mobilidade dos papéis [representados por UIU ator] e dos contratos. a abertura
permanente da trupe aos voluntários; a dabo1"(lçcio coletiva do roteiro c do espetáculo,
auxiliada pelo apelo. Iimitado e controlado. a especialistas; a participação a mais
ampla possível da coletividade nos projetos do teatro. [...1 pela sua presença, suas
opiniões e sua ajuda concreta nos ensaios c na preparação material (cen ários. figu-
rinos), e também por meio de um papel ativo (a "co-interpretação" dos espectado-
res) na representação; por fim, o abandono do espaço teatral fixo, graças a espetá-
culos adaptados ou concebidos para serem apresentados ao ar livre [t cat ro de rua)
ou em locais não-habítuais (fabricas, escolas. hospitais, qunrtéis), e graças ao papel
assumido pelos atores nas tarefas utilitárias, elas quais a comunidade se beneficiará
(preparação de festas. ajuda na alfabetização e na cscolariznção).>'

Apenas por tal descrição se pode perceber a mudança radical no pensamento e na


prática teatral que essas "brigadas artísticas" ou que esse "teatro operário" vai pro"
vocar, Além ela renovação do repertório e das formas teatrais. da eficácia no cumpri-
mento dos objetivos políticos. do atrelamento da investigação estética à exploração
dos conteúdos tratados, se instituira também, U111 sistema de cotas para a distribui-
ção dos recursos financeiros entre os integrantes do grupo. Ou seja, trata-se de uma
estrutura de produção. criação e funcionamento em moldes inteiramente coletivis-
tas. Por outro lado, haverá a preocupação em multiplicar a quantidade de coletivos
teatrais existentes, o que serã auxiliado por urna política de publicações e pela manu-
tenção de atividades pedagógicas de formação,
No que diz respeito à encenação, ela resultará lide U1l1 somatório do esforço de
todos e de cada um", além da "possibilidade de até mesmo o diretor ser substituído

19 GARCIA. s. lí:atro clCl1vfilitânda. São Paulo: Editora Perspectiva, 1990. p. 6.


20 cou.scnr de travaíl de I'Equipe "Théãtre Moderno" du GR 27 du CNRS. I.c l1zt?ãtn.· d'agil-p'-0l)
de 1917 à 1932. Lausanne: L1 Cité - L'Âged'Homme, 1977. torne f. p. 34 (grifo nosso).
14

por um grupo cujos membros se revezariam na condução dos ensaios'?'. Ou seja, a


encenação. corno a dramaturgia, passa a ser desenvolvida colerivamente. Teremos,
assim, tanto lllll "coletivo ele dramaturgos" quanto um "coletivo de enccnadores" tra-
balhando para a criação de Ul11 teatro socialista e proletário.
Esse caráter socializado do fazer teatral associado ao instrumente improvisacional
levará ainda ~l criação de urna assim chamada "ação coletiva". baseada ern roteiros de
agitação. A dramaturgia desses experimentos será caracterizada por composições de
[afina curta, estruturada na forma de roteiros, e utilizando-se de colagens de textos
os mais variados. Aliás. as formas dramatúrgicas do agitprop se caracterizarão. justa-
mente. pela brevidade. maleabilidade e adaptabilidade. pensadas antes corno instru-
monto. do que CO111O UI11 f1l11 em si.
Entre as iniciativas mais importantes da cena soviética pós-revolução, poderíamos
citar, o Teatro da Sátira Revolucionária: o Teatro de Agitação de Leningrado; o Teatro
da Juventude Operária (Tlv\M) e o coletivo Blusa Azul. Este último produzirá outra
forma teatral de atuação, denominada "jornal-vivo". Garcia analisa assim o 1110clo de
criação coletivizado do grupo, marcado pela elaboração do material cênico por dife-
rentes e sucessivos "círculos":

A produção dos jornais-vivos do Blusa Azul obedece à estrutura de divisão em


comissões que caracteriza a maioria elos coletivos. Cada círculo - de dramaturgia,
de música, de artes plásticas etc. - torna a seu encargo a parte que lhe compete na
construção do espetáculo: a seleção e o tratamento cênico dos assuntos, a partitura
musical do espetáculo. a confecção de cenários e figur\i'\os e acessórios."

o TRAM. criado em se tornará também urna das manifestações elo agitprop


1922,

mais bem sucedidas da época. O seu método de trabalho é "inteiramente coletivista.


O tC111a específico da peça é escolhido após muitas discussões pelo consenso do grupo
e a partir daí o desenvolvimento drarnatúrgíco se dá simultaneameute à concepção
cênica. O texto da peça se constrói junto C0111 a montagem'?".
Uma das idéias e práticas fundamentais do teatro de agitação soviético será, justamen-
te. a noção de "criação coletiva". Ela será definida por Kerjentsev da seguinte forma:

Não convém de forma alguma confundir a criação coletiva COll1 todas as outras
atividades artísticas ele massa: por CXCI11plo, a declamação a várias vozes. a inter-
venção dos coros na ópera. as cenas de massa nos espetáculos dramãtlcos, A cria-
ção coletiva no teatro se caracteriza pelo: a) esforço dos participantes para encar-
nar em formas cênicas os interesses mais elevados do coletivo (isto é. o ideal

21 GARCIA. S., '[carro da ,r..·filitânda. p. 27.


22 Ibid., p. 35.
23 lbid.. p. 40.
15

comunista em toda a sua diversidade); b) companheirismo na organização do tra-


balho. excluindo toda espécie de auroritarismo e favorecendo muito arnplamcnre
a crítica; c) relação consciente de cada um dos participantes C0l11 os problemas
gerais que são colocados."

Baseado nesse ideal de coletivismo teatral, os atores lançavam mão de U111 rotei-
ro. improvisavam o texto. e construíam. todos juntos. a dramaturgia da peça e do
espetáculo. Segundo Amiard-Chevrcl, os "responsáveis políticos do Exército Ver-
melho encorajaram vivamente essas 'criações coletivas' corno premissas de UI11.
novo teatro":".
No capítulo VII ("As novas vias do teatro") do tratado denominado "O Teatro Cria-
dor":", Kerjentsev estrutura pela primeira vez - até onde sabemos - os princípios
norteadores da criação coletiva. De acordo com ele. "a criação teatral coletiva" pode
ocorrer sob as seguintes condições:

a) Cada participante deve. na medida do possível. fazer U1l1 trabalho ativo ern todos os
domínios da encenação. estudar a fundo o texto da peça e os diversos papéis. refle-
til- sobre o cenário e sobre a parte musical do espetáculo. enunciar a interpretação
que propõe para ele. elaborar um plano de encenação. etc.
1)) As encenações devem conjugar de maneira criativa os esforços dos diretores. dos
atores. dos cenógrafos, dos músicos, dos escritores e dos outros participantes. pois
é somente por esse trabalho em comum que o teatro refletirá plenamente a arte
em seu conjunto.
c) O cnccnador único poderá ser substituído por um grupo dirigente: no curso de
seu trabalho. ele convocará uma participação ativa de todos os outros membros
do círculo. de forma a examinar e a precisar. de ruane ira criativa. lodos os deta-
lhes da encenação durante o transcorrer dos ensaios. Naturalmente. o grupo de
encenação designa. a cada vez, uma única pessoa para conduzir efetivamente o
ensaio.
d) Freqüentemente. o texto de trabalho pode ser tornado somente corno um ponto
de partida. uma espécie de assunto adequado e de material literário. para que seja.
na seqüência. segundo as indicações dos participantes. modificado cru uma obra
totalmente nova.
e) É necessário dedicar urna atenção particular à complexa organização criativa. não
somente das cenas em separado. mas das partes ern seu conjunto. isto é. à criação
de novas obras teatrais de acordo C0111 o terna ou o assunto escolhido.

24 COLLEC1"lf.1.l"11Jéãtrcd'l1b'il - p l·OlHle 1917 li 1932. torne 11. PI>. 31-32.


25 lbid.. tome I. p. 50.
26 Na verdade. este texto irã conhecer cinco edições diferentes. de 1918 a 1923. O dOt1.1-
mente citado é o da Sol edição. revista e aumentada, datada de 1923-
16

f) Podem-se fazer tentativas a fim de atrair os espectadores para UH1 trabalho ativo
sobre a encenação. convocando-os para escolher as peças. para dar a sua opinião
sobre as encenações c mesmo para participar, pouco a pouco. das cenas de massa."

Kerjcntsev, ao enfatizar a necessidade de compartllhamento do conhecimento c da


participação de cada UH1 dos integrantes em todos os aspectos e setores ela criação da obra.
materializa o ideãrio da criação coletiva. muito antes de sua formulação na segunda meta-
de do século xx, É claro que o termo Cliação coletiva não tem exatamente a mesma conota-
ção daquela empregada ou definida nos anos 60. Porém, a sua filiação é inequívoca.
Corno pôde ser observado, o encenador não é o único responsável pelo conceito e
pelo plano de nnse cn scénc, o qual dívidirá com todo o restante do coletivo. Ele deverá
ainda "conjugar" as contribuições de todos os participantes, trabalhando numa dinã-
mica horizontal de organização e produção. Além disso, as montagens são realizadas
por urna equipe de diretores - isto é. urna "direção coletiva" - ou. no caso de um
único encenador, ele poderá também ser substituído por um "grupo de dirigentes".
Em outras palavras. há UHl pressuposto para desindividualizar o trabalho do diretor.
Porém, não deixa ele chamar a atenção um procedimento proposto: a condução em si
dos ensaios deve ser realizada apenas por um único diretor, definido pelo "grupo ele
encenação" para atuar naquele dia.
Quanto á função do encenador no teatro auto-ativo. ela será também a de "recru-
tar sem cessar novos talentos, de procurar artistas. de educar as pessoas inexperientes
e de não uulizar somente os serviços daqueles que já são peritos na arte do palco'?",
í: evidente a atribuição de um papel pedagógico ao teatro de agitação. característica
essa que será incorporada pelo diretor - ou coletivo de diretores. Contudo. a aprendi-
zagem técnica por parte dos artistas é relegada a U111 segundo plano. a fim de evitar
possíveis desvios de foco.
As críticas negativas que pudemos encontrar em relação a algumas das encena-
ções do teatro prolerário as consideram C01110 "antíartísticas", "sem idéias" e com
baixa qualidade artísrica. Uma das razões que poderiam justificar tais avaliações é,
justamente, a pouca experiência e a falta de um melhor preparo técnico e artístico
por parte dos diretores.
Outro aspecto relevante da criação coletiva soviética é a fabricação de uma novadra-
maturgía a partir de um terna ou assunto - baseado ou não em material literário pree-
xistente -, tendo COll10 procedimento-base as improvisações dos atores e as contribuições
de todo o coletivo artístico. O apelo participação concreta dos espectadores, seja na
à

construção da obra, seja no momento de sua apresentação, traduz também um desejo de


recusa da passividade e de fomento à ação política e à "produtividade" da platéia.

27 cou.scnr. I.e l1lc!t1trc d·'lgit -prop cl~ 1917 ti 1932. torne U. p.32.
torne Il, p. 25.
28 Ibíd..
17

É curioso apesar das profundas diferenças icle<;>lógicas. essa participação


C0I110.

ativa elos espectadores no ato teatral. materializava o projeto utópico simbolista de


integração arte-vida. As idéias de lvanov influenciaram. sem dúvida, as de Kerjentscv,
Na avaliação de Rudnitsky,

Centenas. algumas vezes milhares de pessoas participavam (nos" festivais de mas-


sa"], e não apenas atores. 1l1aS também trabalhadores. soldados, marinheiros, que
não somente atuavam nas montagens COIl10 ainda, simultaneamente. junto com os
outros, tomavam-se seus espectadores. Portanto. até certo grau, pela não separação
entre espectadores e atores. os "cortejos cívicos de massa" realizaram o sonho de
Vyacheslav Ivanov da "ação coletiva". Mas o caráter desses esperaculos não se arnol-
da de forma alguma na Utopia de lvanov. Eles eram. ao contrário. milirantes.>

Esses "festivais de massa", C0l11 seus espetáculos de - e para -tl1ulticIões. traduzem


antes um espírito numérico e quantitativo de "coletivismo". do que o de uma criação
pensada e elaborada coletivarnente. Nesse sentido. urn espetáculo COn1Q A Tornada do
Palácio de Inverno (1920). dirigido por Nikolai Evrêinov, do qual participaram cerca de
10.000 soldados e marinheiros. não se nos configura como 1.11na genuína criação cole-
tiva - pelo menos não no que diz respeito a U111 modo compartilhado e consciente
de construção. Os participantes aí funcionam mais corno figurantes. "repetidores" de
movimento e Il1aSSa coral, do que propriamente C01no criadores.
C01110 urna observação final dos procedimentos elo agitprop e cio coletivismo auto-
ativo soviéticos, podemos ainda apontar o seu caráter não-ilusionista e ele revelação
do processo ele feitura. De acordo COIl1 Kerjcntsev,

Sobre as paredes do foyer e dos corredores Ido teatro] serão afíxados todos os estu-
dos de figurinos e de cenários. desenhados para a peça. e todo o V01UlllOSO trabalho
preparatório será exposto para aqueles que desejarem tornar conhecimeruo dele.
O teatro proletário não deve esconder nenhurn ele seus segredos de fabricação. Do
primeiro ao último passo, o seu trabalho deve estar acessível a qualquer pessoa.>'

o teatro proletário e de agitprop russo irá influenciar significativamente a prática


de Piscator e Brechr. Este último, por exemplo. ao analisar as mudanças na dramaturgia
alemã dos anos 20. afirmará que "urna nova técnica de construção de peças foi elabo-
rada. Coletivos reduzidos de especialistas, entre os quais historiadores e sociólogos. se
colocaram a produzir peças'?'. Durante o processo de construção dos espetáculos, Bre-
cht vai também advogar que. se cada ator ensaiasse os papéis de seus companheiros de

29 RUDNrrSKY. K., Russian f, Sovirt l1zetltre: tr'aditiOfl E.t t1tc ClVlHll·garc1c.'. p, 44.
'l1rC:àtrt.' tI'agir -prop de 1917 ri 1932. torne Il, p, 32.
30 COI.J.ECTll:, l.~
31 URECUT. u. Éails sur lc 11léãtre. Paris: L'Arche, 197 2 • torne t , p. 234.
18

cena ~ e não apenas o seu próprio -. haveria urna melhora significativa na representa-
cão e todas as cenas ganhariam COIll isso. Para o dramarurgo e cnccnador alemâo. "a
arte não é alguma coisa de individual. Tanto na sua gestação quanto nos seus efeitos. ela
é alguma coisa ele coletivo'v''. Por isso. ele não trata os atores corno lucros instrumentos
seus, ao contrário. convoca-os corno parceiros de criação, experimentando as propostas
surgidas em ensaio. Defendendo uma perspectiva cooperativa de elaboração da obra
°
- o que envolvia também próprio público do Berliuer Enscrnble. por meio de debates.
durante o período de ensaios anteriores à estréia -. Brecht afirma que a "divisão moder-
na do trabalho transformou. em varies domínios importantes. a atividade criadora. O
ato de criação tornou-se UHl processo coletivo de criação, um cmHinZllUll ele caráter dialé-
tico. de tal modo que a invenção original isolada perdeu a sua siguificacão">.
No caso de Piscaror, resolvemos realizar um estudo, <i parte. da singular experiência
coletiva de criação que ele levou a cabo no Estúdio de seu teatro. AléI11 dessa signifi-
cativa contribuição, tal enccnador foi professor de [udírh Malina, urna das fundadoras
do Living Theatre. Píscator exerceu urna influência rransformadora nas concepções
teatrais dela e de seu parceiro. julian Beck. sendo responsável, indiretamente, pela
inspiração dos princípios da criação coletiva nesses dois diretores americanos. Apenas
tal filiação ou herança j<Í justificaria urna análise mais detalhada desse - injustamente
esquecido - diretor alemão, especialmente no que diz respeito ao Estúdio do Teatro
Piscator (PiscaLor~Hiiluw).fundado em Berlim, C111 i927.

2.2 ESTÚDIO DO TEATRO PISCATOR

"Em oposíçiio aa priuci]>io ditatorial rrmumt da empresa lt!dtrol. que dá ao


diretor tifo pouca liberdade (luunlO (lOS seus subordinudos, () princípio de
uma comunidade dc!moLTâtica. colocada ao st!rviço de url1a idda. mio cc:s-
S{1 de comprowu' (l sua tificâda (' a sua importânda l11tnWna c clrtisticCl. I~
(Erwin Piscator, Teatro Político)

Erwin Piscator (-1.893-"1966). diretor cujo conceito e prática de teatro político consti-
tuíram uma das mais significativas forças criativas no teatro alemão da década de 2.0,
foi também revolucionário ao realizar urna série ele impactantes espetáculos multi-
mídia. que se valiam ela montagem simultânea de discursos reais, trechos de notícias.
fotografias e seqüências fílrnicas. Tais concepções estéticas e procedimentos tecnoló-

3 2 BRI:CHT. H. [~crits sur k nu=(Ítr~. Paris: ltArchc. 197'2, torne 1, p. óg.


33 Ibid.• torne 2. p. 523.
19

gicos vão influenciar, por exemplo.. a formulação do teatro épico de Brecht. Ele vai.
ainda, desenvolver e teorizar sobre o teatro-docurncntârio. U111a contribuição artísti-
ca importante. embora um pouco negligenciada na avaliação geral de S\.1~ obra.
No plano ideológico. Piscator foi urna das vozes artísticas mais aguerridas e defen-
saras elo Comunismo, o que não se limitava al~enas a uma filiação partidária, mas
compreendia U111 projeto artístico ele fundação de um teatro proletário. Nesse senti-
elo. é impossível pensar a sua obra sem perceber a relação ínrrinseca que este encena-
dor estabelecia entre programa político e experimentaçâo estética.
Alguns dos aspectos cooperativistas e coletivizados de Sua prática artística estão
profundamente enraizados no projeto comunista de igualdade entre os homens c de
urna sociedade sem classes - pilares fundamentais do pensamento daquela doutrina.
Na verdade. tal desejo igualitário cnconrra-se no cerne do socialismo utópico e cien-
tífico, em sua defesa do trabalho coletivo. da propriedade C01l1UIll da terra e na [orça
transformadora - e revolucionária - da associação e do cooperativismo.
No nosso caso, é sobre a experiência elo Estúdio - uma espécie de "espaço alterna-
tivo". ou "campo de cxperimcnração" ou. ainda. um "lugar de treinamento", acoplado
ao palco principal do Teatro Piscaror - que interessará refletir. Foi nele que Píscaror
radicalizou urna original prática coletiva de criação teatral. Sob o aspecto institucional.
O Estúdio apresentava U111a independência total em relação <10 Teatro do qual fazia par-
te, devendo apenas compartilhar C0J11 o 111CStl10 a sua orientação ideológica.
1~ importante lembrar que a perspectiva do trabalho coletivo sempre lhe fora cara.
111esr110 antes da fundação deste "espaço alternativo". COlHO pode ser dcprecndido de
sua obra teórica mais importante. () Tccllro Político:

Conforme 111Ínha concepção ele 111UIHlo. eu sempre me esforcei para realizar esta
simples idéia: nunca t rabal har a não ser em colaboração. O teatro, por sua pró-
pria natureza. implica num esforço coletivo. Nenhuma outra forma de arte. salvo a
arquitetura e a música orquestral. depende tanto quanto ele ela existência de uma
comunidade homogênea."

Ainda que o termo "comunidade homogênea" possa suscitar urna discussão sobre
o grau de homogeneidade possível - ou sequer existente - em grupos e coletivos, é
irnportante não perdermos de vista o contexto histórico em que ele está inserido. no

34 {llSCA'rOR, ~.
I.C TIll!t1lrt! Poliuque. Paris: I:Arche. 1972, P.136. Sugerimos a leitura ela tra-
dução francesa [realizada por Arthur Adamov com LI colaboração de Claude Sebisch]
ou espanhola (fcíta por Salvador Vila) ao invés da tradução brasileira Cli:tltro Político, Ed.
Civilização Brasileira. trad. de Aldo Delta Nina, 1968). Tal tradução - a única disponível
em português - contém inúmeros erros, omissões e falhas de edição, o que pode COJU-
prometer o entendimento das proposições teóricas d~ Piscator, Todas as citações desta
obra. presentes neste capítulo. foram por nós traduzidas da referida edição francesa.
20

qual - COt\10 já dissemos - a n1i\it~\11Cia política comunista é indtssociávcl do projeto


artístico deste cncenador, .
À época ele seu trabalho na VolksbiHl1H! - anterior à criação de seu próprio teatro
-- Piscator já arriscava o desenvolvimento de "embriões de coletivos". Em UIll texto
escrito para o periódico Berliner B(jrsell-CouJier. ele afirma que: "O coletivo de teatro.
a influência de nossa concepção de Inundo sobre todo o aparelho [teatral]. tudo isto
cria urna comunidade que (._.1 faz do encenado!" um membro da trupe. no 111CSlno
nível que o diretor de cena, o ator. o autor e o dramaturgisra">.
Contudo. somente alguns anos mais tarde, enquanto Diretor Artístico do PiSC(1-
t'or-HiHuIC. ele conseguirá, através da criação do Estúdio, colocar em prática prece-
dirnentos coletivos que não foram levados a cabo na Volkshiilule e nem ll1eS1110 no
palco pri ncipal de seu próprio teatro. Tal êxito estava relacionado ao fato ele o Estú-
dio não ter que responder aos compromissos e às pressões de bilheteria e crítica. O
território de risco e experimentação associado aos estúdios - característica esta que
atravessará todo o teatro no século xx, e cuja origem remonta aos diferentes estú-
dios do Teatro de Arte de Moscou - fornecia o meio ideal para os projetos artísticos
mais arrojados.
Outra razão do sucesso encontrava-se. também, na força c no entusiasmo ele ato-
res e colaboradores mais jovens. ainda não conformados pela dinâmica rotineira da
produção teatral. Tal coletivo produziu UHl modus oIJerancli bastante peculiar. assim
caracterizado: atores, dramaturgos, músicos, diretores. cenógrafos e até mesmo os
técnicos. participam conjuntamente desde a escolha elo projeto a ser realizado até a
discussão de rodas as etapas ele sua elaboração.
Segundo Piscator, este Estúdio teria a missão de "UH) laboratório. onde os mcm-
bros do teatro e todos aqueles que participam de suas atividades podem se exercitar.
na prática, em tarefas sempre novas. e adquirir, cada uru encorajando o out 1'0 e C0111-
plotando-se mutuamente, urna visão de conjunto do trabalho":"..
Ü curioso COll10. no final da década de vinte. num momento ele franca ascensão
do reinado elo encenador - que coabitava COll1 o teatro de texto, por lllll lado. e com
o teatro do grande ator ali atriz. por outro - essa experiência do Estúdio também
j~í antecipava a criação coletiva das décadas de 60 e 70. Se. por Ulll lado, o Estúdio
atacava os mecanismos de funcionamento da empresa teatral e de suas estruturas
hierárquicas. por outro. ele conclamava e estimulava a contribuição ele todos os seus
colaboradores - artisticos c técnicos.
É claro que contradições ocorriam dentro deste projeto coletivizante. Piscator não
omitirã a existência de rivalidades. disputas. ciúmes e mal-entendidos nele presentes,
Aliás, a contradição mais aparente pode ser percebida no fato deste teatro - idealí-

35 PISCJ\TOR. E.• Le l1uFâ[r~ l'olilitlue. pp.136-137.


36 lbid.• pp. 138-139.
21

zado COI110 UH1 coletivo - levar o sobrenome individual de seu fundador no tit ulo ela
ín s rit u i çâo : Teatro Pisca!m:
Maria Piscator, ao avaliar a dimensão do projeto artístico de seu esposo. onze anos
após o seu falecimento, afirma que "ainda que o teatro 11;10 possa mais simplesmente
mostrar o indivíduo. fora de todo o seu contexto social. mas sim inserido na história.
ele {o teatral não é mais concebível sem urna colaboração entre o autor. o encena-
dor. o cenógrafo. os maquinistas, os atores":". É sintomárico e revelado r que o balan-
ço geral das contribuições deste importante diretor alemão. feito por alguém que o
acompanhava de perto, traga para o primeiro plano o 1110clo de criação e ele produção
fomentados pelo Teatro Piscator,
Un1 pouco mais à frente. ao discorrer sobre o projeto do Estúdio. ela reafirmará tal
posição. concluindo que "o novo estilo que Piscato r tenta criar apela para urna ell1horaçiio
coletiva, que é a finalidade elo trabalho do autor, dos técnicos, dos músicos, dos atores">,
Ou seja. modo ele criação e resultante estética estariam ínrnnamenre imbricados.
Ao descrever mais detalhadamentc o trabalho do Estúdio, Erwin Piscator nos rela-
ta que dentro dele.

1...1 os atores não estão mais unidos somente pelo elo sempre frouxo de uma rola-
cão de contrato: eles formam um coletivo. ao qual. C0l11 iguais direitos c deveres,
pertencem também o autor. o músico, o diretor de cena c o cinensta: e é este cole-
tivo que decide a escolha das peças a serem representadas. que chega. por meio de
discussões amigáveis. à concepção geral ela encenação. que elege o respectivo erice-
nador e a dístribuição dos papéis e que. em resumo. empreende e e ncaruinha lodo
o trabalhe cuja última etapa - o cspct ãculo acabado - n50 será mais importante elo
que as semanas de preparação durante as quais se pode formar uma vontade sólida
c uniuiria. nascida CIl1 discussões teóricas, e Iundameruada na experimentação do
material que constitui a peça. envolvendo os atores e o aparato técnico."

Tal descrição. se assim o quiséssemos, bem poderia ser transposta a alguns procedi-
mentes de trabalho do Living 11Jcatre. Opcn TItcater ou mesmo do T11éâtre du Soleil. Percebe-
11105 nela, por exemplo, a inegável imporrãncía do trabalho do ator. dando subsídios à cria-
ção cênica ou ainda experimentando na prática UI11 material dramatúrgico previamente
escrito. Em outras palavras, estabelece-se urna aproximação estreita entre a cena e o texto,
entre a sala de ensaio e o gabinete do dramaturgo, com ganhos para ambos os lados.
Além disso, outro fato que chama a atenção é a ênfase dada ao aspecto processual,
considerado tão importante quanto o resultado final. É surpreendente - e uvnnt [(1 Iettre
- a sua defesa do processo de criação. das "semanas ele preparação" apresentarem a Ines-

37 PISCATOR. M. c 1J,\tMIER, j.-M. Písrntor et l~ Thélitn: Polititluc.l'aris: Payor, 1983. p, l60.


38 lbid.. p. 160 (grifo nosso).
39 I']SC:\TQI{. S:.• Le '111éiitrl! l'olilillue. p. 139·
22

IHa importância do "espetáculo acabado". Claro que () que está em jogo é o "grau de ela-
boração" do cspeuiculo e não a negação do seu compartilhamento C0111 o público. O pres-
suposto de "tornar pública" a obra era fundamental ao projeto de um teatro político.
O aspecto processual vai ser reforçado por Píscator em llIl1 capítulo posterior ("UIU
Ano de Estúdio"). dedicado às montagens realizadas no Estúdio. Encontramos aí. por
exemplo, a importância dada ao caráter pedagógico de sua empreitada: "Corno dis-
se anteriormente, o Estúdio não cumpria a sua tarefa apenas com as apresentações
públicas dos espetáculos, O essencial de seu trabalho residia nas suas atividades de
ensino":", Ou seja. o Estúdio funcionava tanto corno U111 campo de experimentação
artístíca e ideológica de ponta, corno um centro de formação para jovens artistas ou
recém-ingressos no Teatro Piscator. Esta perspectiva educacional e de reciclagem de
conhecimentos revela outra face de seus objetivos programáticos.
Em relação a este último aspecto. as atividades eram assim encaminhadas:

1... 1 são oferecidos aos membros do Estúdio cursos e conferências nos quais são tra-
tados todos os grandes problemas filosóficos e políticos de nossa época. Aí também
se ensina. al ém do estudo sobre as personagens. o aprendizado de línguas estran-
geiras e os métodos de educação do corpo. O programa de estudos era estabelecido
em função da peça a ser representada."

Contudo. é importaute ressaltar. a perspectiva do engajamento politico jamais pode-


ria estar dissociada do eixo pedagógico. pois "COIl10 esta [nossa] concepção de mundo
é ativa, os atores do nosso teatro elevem ser educados a fim de se tornarem homens de
ação"·l;. Portanto. urna parte significativa do embasamento te órico das at ividadcs linha
por objetivo fomentar a consciência crítica dos artistas e técnicos envolvidos.
No que diz respeito ao modo de funcionamento do Estúdio. Piscator - além de
mentor da idéia - ocupava o lugar de coordenador geral daquela experiência. Ou seja,
ele era o Diretor Artístico do Estúdio - o que não deve ser confundido COll1 a figu-
ra do encenador, Isso porque o Estúdio convidou. ao longo de sua curta existência,
outros diretores para integrarem a equipe de criação dos espetáculos nele realizados.
cuja função. aí sim, era propriamente a de encenar as peças escolhidas.
Ao analisarmos especificamente a função do encenador dentro deste contexto.
chama a atenção que, algumas elas atribuições normalmente a ele delegadas. passem
a ser decididas coletivamente. Corno exemplo, pode ser citado a escolha do texto ou
a subseqüente divisão dos papéis nele contidos. Contudo, o que mais surpreende é o
fato de o próprio conceito da encenação tornar-se uma deliberação da equipe ele tra-
balho. Entre as possíveis vantagens dessa partilha de atribuições, Piscator vai apontar

4(} })\SCATOR. E•• Le 111~(itn~ PoUtique. p. 2.14.


41 Ibid.• p. 140•
.p lbid.• p. 140.
23

que "este princípio de trabalho coletivo permite ao diretor de cena c ao encenador se


desmcumbircm ele urna parte de suas tarefas intelectuais c materiais":'>,
Contudo, seria possível ainda urilízarrnos o termo "encenador" BUlHa experiência
na qual () conceito de encenação é decidido coletivamente e na qual o diretor perde
espaço no seu campo de ação? O próprio Piscator chega a urna postulação radical na
qual af rma que ern '\1111 teatro fundado sobre o princípio da coletividade nasce U111.
l ipo de din:çiio coletíva"·H.
Ora, estaríamos nesse caso, diante da diluição da função do encenador, tJI COlHO
preconizada pela criação coletiva? En1 uma primeira análise. sim. O problema é que,
ao longo da sua descrição sobre o funcionamento elo Estúdio. Píscator não elucida
inteiramente a dinâmica elos papéis artísticos dentro elo trabalho de criação, Não
raro, chegamos a ter percepções contraditórias sobre tal sistemática.
Por exemplo, é possível depreender em outras passagens elo texto que. ainda que
o diretor tenha perdido parte da sua autoridade e autonomia, a função a ele atribuída.
permanece. Ele mantém o papel de diretor - e não apenas de urn IBero orgnnizador >

atuando COlHO membro ativo e criador, dentro da companhia. É claro que. nesse caso,
ele é ,nais UHI entre os criadores; e não o criador único Ou principal. Também é impor-
tante ressaltar que, dífercnrementc ela criação coletiva, as outras funções criativas e
técnicas - dramaturgo, ator, músico, diretor de cena, dramaturgista, cenotécnico, etc.
- mantêm-se garantidas. Por este viés. tal experiência encontra urna correspondência
inequívoca C0111 o processo colaborarivo.
Além disso. a ênfase dada à relação do dramaturgo C0l11 os outros criadores em sala
de ensaio - onde se experimentaria o texto. dando possibilidade ao autor de reconhe-
cer os defeitos c qualidades ele sua peça c, conseqüentemente. reescrevê-la - é outro
aspecto dessa aproximação. A dramaturgia, nessa mccüda. não é coletiva, porém, ela é
testada c exercitada conjuntamente pela equipe. C01l1 o objetivo de aperteiçoã-la.
Portanto, se por um lado. poderíamos remeter o cnfraquecimenro ela função do
encenador (1 uma antecipação da criação coletiva. por outro lado. o pape} do drama-
turgo no Estúdio de Píscaror materializaria urna dinâmica mais próxima (1 do pro-
cesso colaborarivo. Nesse sentido. encontramo-nos diante de urna matriz híbrida e
problemática. luas que, sem dúvida. se configura (:Ot1\O um pólo precursor de prece-
dirncntos coletivos de criação de décadas posteriores.
Contudo. faltam-nos outros relatos documentais sobre Li experiência do Esrúdio
para que pOSSaI110S afirmar, categoricamente, tais sirnilitudes e diferenças com o pro-
cesso colaborativo. A descrição que Píscator nos oferece padece de maiores detalha-
mentes. pois dedica apenas poucas páginas ele seu livro-chave. Teatro Polft'ico. para
relatar a rica e complexa dinâmica de funcionamento do Estúdio.

43 l'ISChTOIt. I~ .• Le ]1zéc1lrc? PoliticlUC. p. 139.


44 lbid.• p, 137 (grifo nosso).
24

1\ análise de Maria Piscator também não apresenta maiores elucidações. O seu tex-
to vai pouco além de um resumo ou balanço geral das propostas do marido, mesclan-
do. aqui e ali. algumas considerações pessoais. Dentre elas, todavia, destacaríamos
uma em especial, relativa ao trabalho elo dramaturgo dentro do Estúdio: "A noção
de obro. de autor se transforma completamente. Nada é defininvo":". Essa discussão
sobre "autoria" é um dos problemas centrais associados aos 1110dos cooperativados
de criação e exigirá, de nossa parte, uma atenção específica.
Outra ponderação reincidente - e C01l10 tal, relevante - pode ser encontrada na
conclusão do trecho dedicado ao trabalho coletivo do Estúdio ("A noção de Coletivo").
Apesar de se tratar - COIl10 já vimos antes - de um instigante insight, tal percepção não
é por ela desenvolvida: '~A exigência de UH1 trabalho em comunidade não é somente
práríca. É dela que depende o esr.ilo···16 • Em outras palavras. Maria Piscator advoga que
este modo de fazer coletivo incorre necessariamente l1\.\111a conformação estética.
De qualquer maneira, o ideal coniuniuirio praticado no Estúdio. aponta e antece-
de elementos do trabalho realizado pelo Living 'I1reatrc. É evidente que a relação pro-
fessor-aluno vivida entre Erwin Piscator e judirh Malina, quando o primeiro se encon-
trava exilado nos Estados Unidos. foi extremamente profícua e rendeu frutos". Pois
aquilo que 110 Estúdio se Iirnirara a um experimento radical, de curta duração e C0111
pequena repercussão internacional, irã se consubstanciar ele forma potente no modo
ele criação do Uvillg 'nwatrc. alçando-o ao posto de um dos principais representantes
ela chamada criação coletiva. Tal hipótese pode. de certa forma, ser confirmada na
avaliação de judith Malina sobre seu mestre:

' ...\ eu sou ê\\un~\ de Piscator, não somente por ter seguido seu ensinamento c $(~U tra-
balho em Nova Iorque. mas sobretudo porque eu lenho a intenção de continuar a via
que ele abriu. [...1 praticamente nos esquecemos de Piscator, apesar de sua influência
sobre o teatro ter sido considerável. (...) todo o teatro sofreu a influência de Píscator,
ele SU~l reflexão sobre a inclusão do espectador na ação e no espaço teatral, Eu acredi-
to que Brecht e Piscator ínvenraram junto o teatro político moderno, Quando eu sai
da escola 1111C Drarnatic Workshop], a situação do reat ro em Nova Iorque era dosas-
trosa. (...1 No momento em que julian Beck e eu decidimos fundar lJll1 teatro. nós ()
chamamos de Líviug Theatrc porque nós desejávamos criar a1bf\H)1'l coisa que fosse
capaz de mudar C0l11 o tempo. de seguir o fluxo. o movimento da história, de respon-
der às metamorfoses do indivíduo c da sociedade. E este teatro existe ainda hoje. nós

45 l'JSCATOR, :.t. e J'AI.MIER, j.-M. Píscuror et Ie J11écHrc: J>oliticlue. p. 160.


46 Ibid.. p. 161.
47 Sugerimos. a este respeito, a leitura de 11rc l)iscato1" EXl't?lirllC:llt. no qual a sua autora. Maria
Píscator, faz UI11 relato pessoal de lodo o período do exílio americano. No livro h.i U1'n ca-
pitulo onde são descritas as atividades do The Drurnatíc Workshop, onde Piscator deu au-
las para judith Malina, Marlon Brando. Ben Gazzara. Tenncssee Williarns, entre outros.
25

continuamos a criar espetáculos que exprimem verdadeiramente. corno reivindicava


Píscaror. o engajamento de cada ator e de cada pessoa que trabalha conosco."

A guisa de conclusão do sobrevôo histórico até aqui percorrido - desde o sim-


bolismo até Piscator - podemos destacar que as experiências teatrais .colcrivas ana-
lisadas apresentam traços distintivos nos 1110dos de operação. e mesmo variações
em seus formatos e objetivos quanto ao compartilhamento da criação. De manci-
ra sucinta. poderíamos descrever essas complexas motivações, características ou
materialtzações - muitas vezes justapostas ou imbricadas: em sua diversidade - da
seguinte forma:

• Estímulo II vida comunitária, associada ao trabalho C0111 a terra. ao retorno


à natureza e à divisão das tarefas "domésticas" e cotidianas, constituindo
urna espécie de "comunidade" ou "C0111Una" teatral:
• Comunhão ou "fraternidade" de artistas, de diferentes áreas, trabalhando
conjuntamente para a realização de um evento artístico integrado. num
misto de celebração religiosa e coletivismo altruísta;
• Definição coletiva. por parte do grupo. estúdio ou teatro. dos ternas de
interesse ou das peças a serem montadas, e de suas respectivas concepções
cênicas. Além dos artistas, tornavam parte de tais escolhas. os técnicos. os
operários e os espectadores associados:
• Socialízação cio conhecimento:
• As ligações e colaborações entre os artistas não decorrem ele imperativos
contratuais. mas si m de filiações ideológicas. políticas. c de desejos artisti-
cos Oll de pesquisa comuns:
• Presença do dramaturgo em sala de ensaio, criando o texto em parceria com
os atores, dirctoríes) e demais colaboradores. por meio de improvisações e
discussões;
• Elaboração do espetáculo por meio da divisão das áreas de criação em
diferentes comissões ou "círculos", cada qual encarregado de um aspec-
to específico ela 1110n tagern:
• Horízontalidade e Íh:rualclade nas relações de trabalho. não havendo distin-
ções hierárquicas entre artistas e técnicos. e mesmo entre os diferentes cam-
pos artísticos;
• Companheirismo na execução dos trabalhos e recusa elo autoritarismo:
• Abolição da divisão estrutural do elenco entre atores protagonistas. atores
coadjuvantes e figurantes;

48 coi.u.cnr. Av~c Hn:cht. Artes: Acres Sud/Acadénlie cxpérirncntale des tbéãtrcs, 1999.
Pp·5 1 -53 .
26

• Investigação coletiva das personagens. por meio da qual cada um dos ato-
res cxperimenra lodos os papéis;
• Direção ou encenação coletiva. levada a cabo por um grupo de diretores
ou pelo próprio conjunto de integrantes do coletivo:
• Acúmulo de várias - ou de todas - funções artísticas por U111 único e rnes-
1110 integrante, ou. pelo menos, o incitamento ao trânsito entre as diferen-
tes funções;
• A autoria da obra é coletiva e deve conjugar a contribuição artística de
todos. Tal perspectiva parece produzir urna resultante estética marcada
por esse modo compartilhado de criação;
• Organização e produção cooperativada: aurogcstão coletiva e democrática:
• Controle dos meios de produção por parte do coletivo;
• Divisão igualitária de salários ou lucros;
• Estímulo ao exercício da crítica e autocrítica. por parte de todos os intc-
grantes, produzindo uma espécie de "crítica coletiva" permanente. tarn-
bérn praticada no diálogo aberto COl11 o público;
• Convocação do espectador para participar elo processo de construção da
obra, seja por meio de debates realizados CIn ensaios abertos. seja por sua
contribuição concreta nos variados aspectos criativos da montagem, ou
ainda, por sua participação em "cenas de massa":
• Rompimeuto da separação atores/observadores. estimulando a participa-
ção dos espectadores durante a apresentação e promovendo um apelo à
.. produtividade" cio público:
• Realização de espetáculos ao ar livre e em espaços não-convencionais. de for-
ma a se integrar e a comungar mais diretamente COIll a vida dos cidadães:
• Caráter nâo-ilusionista e processual acentuado. por meio da revelação dos
procedimentos de fabricação e elo percurso de construção da obra:
• Projeto de reciclagem e de formação de novos artistas e coletivos. C0111 o
objetivo de se produzir um efeito multiplicador:
• Part.icipação dos artistas na viela cotidiana da comunidade. por meio de
atividades pedagógicas Oll assistenciais.

Os aspectos acima relacionados sintetizam as variadas abordagens ou perspccti-


V\lS do "fazer teatral coletivo", relativas ao início do século passado. Contudo. o que

mais se evidencia é o quanto tais elementos ou visões antecipam as práticas artís-


ticas democráticas da segunda metade do século xx. Estas últimas apresentarão, é
claro. matizes ou amálgamas diferentes; porém, serão indubitavelmente devedoras,
no campo da arte, de uma matriz tolstoiana, simbolísta e/ou do agírprop.
27

2.3 CRIAÇÃO COLETIVA

Na tentativa ele definição desse termo, tarefa esta bastante problemática. na medi-
da em que existiram diferentes experiências de criação coletiva nas décadas de 60 e
70, em vários países elo Inundo. Patrice Pavis buscará alguns denominadores C01l1Uns
a essas distintas conforrnaçôes: espetáculo "não assinado por uma só pessoa. mas ela-
borado pelo grupo envolvido", COlll um texto "fixado após as improvisações durante
os ensaios", fazendo a peça "tender para urna encenação 'coletiva">". Tornando o
Living Thcatre c o Théãtre du Solei! como experimentos ernblemáticos. Pavis aponta-
ré! ainda o desejo de reação por parte dessas companhias contra a divisão do trabalho
e a especialização. bem COlHO a busca pelo ideal de um artista de teatro polivalen-
te. Tais aspectos. a aboHçdo da JUllçc10 especializada e a polivalêucia artística - elementos
estrciramcnte vinculados UI11 ao outro - constituem um eixo fundamental para nossa
reflexão sobre a criação coletiva.
Essa perspectiva pode também ser confírmada em urna análise da trajetória elos
grupos teatrais brasileiros elos anos 70, C0I11 ênfase especial no Asdrubal Trouxe o
Trombone. realizada pela pesquisadora Sílvia Fernandes:

(...] a cooperativa de produção favorecia o processo de criação coletiva dos espcrácu-


los. levando á diluição da divisão rigída entre funções artisrlcas c a uma democrá-
t íca repartiçâo de tarefas práticas. Todos os participantes eram autores. cenógrafos.
figurinistas. iluminadorcs. sonoplastas e produtores dos espetáculos. Era evidente a
intenção de fazer dos trabalhos o fruto da colaboração de cada pal'llcipantc.""

Se tomarmos o clepoimcuto artistico de julían Bcck, co-fundador cio Living The-


atre, ele definirá a criação coletiva COnlQ U11) exemplo de "Processo de Autogestâo
Anarco-cornunisra" e a descreverá da seguinte forma:

UIU grupo de pessoas se reúne. Não há nenhum autor em quem se apoiar. o qual
arranca o impulso criativo de você. Destruição da superestrutura da mente. Então,
a real idade vem. Nós ficamos sentados durante meses conversando. absorvendo.
descartando, criando urna atmosfera na qual nós não somente inspiramos uns aos
outros, mas onde cada um se sente livre para dizer o que quer que seja (...). Gran-
de selva pantanosa. U1l1a paisagem de conceitos. almas. sons, movimentos, teorias.
copas de poesia. selvageria, terra erma e vasta. errãncía. Então. você recolhe tudo e
ordena. Durante o processo. urna forma se apresentará por si mesma. t\ pessoa que

49 Dicionário clt.' Tentro. São Paulo: Editora Perspectiva. 2001. p. 79.


llAVJS. 1'.
50 fEl{NANDES, s. Gnll'os 'l~lUrais -Anos 70. Campinas: Editora da Unicamp, 2000, p. 14.
28

[;11a J11CnOS pode ser quem vai inspirar aquela que Iala mais, :\0 final. ninguém sabe
quem {oi realrnente respousávet por aquilo. o ego individual é carregado para a escu-
ridão. todo mundo está satisfeito, todos têm urna sal isfação pessoal maior do que a
satisfação do "eu" solitário. E urna vez que VOte experimentou isto - o processo de
criação artística em colctívidade - o retorno à velha ordem parece um retrocesso."

Portanto, ele uma maneira geral, e tornando corno base as referidas experiências
grupais americanas, francesas c brasileiras. podemos perceber que na criação coleti-
va existe UI11 desejo de diluição das funções artísticas ou. no rninimo. de sua relativi-
zação. Conforme analisado em nossa dissertação de mestrado. podemos identificar

1...] um acúmulo de atributos ern cada artista envolvido ou urna transitoriedade


mais fluida das funções entre eles. Portanto. no limite. não [remosl mais um único
dramaturgo, mas uma dramaturgia coletiva. nem apenas llJ11 cncenador. mas urna
encenação coletiva. e nem mesmo um figurin,ls\.a 0\.1 cenógrafo ou ilurninador. 111as

urna criação de cenário. luz c figurinos. realizada conjuntamente por todos os inte-
grantes do grupo."

Existern ainda. segundo Eduardo Vazquéz Pérez - crítico cubano e estudioso da cria-
ção coletiva na América Latina - duas formas correntes de se pensar tal fenômeno. urna
ele caráter mais abrangente e outra bastante restritiva, A primeira considera que haja
criação coletiva sempre que ocorrer U111<l signíficat iva participação do ator no processo
de criação do espetáculo. Já a segunda perspectiva identifica o fenÕ111CnO ela criação cole-
tiva apenas onde 11(10 esteja presente a função elo diretor cênico?'. [: importante perceber
corno a figura do cnccnador, nesta segunda abordagem, é compreendida C0l110 um entra-
ve ou COl110 um antípoda em experiências de compartilhamento criativo.
Muitas são as razões levantadas para o surgimento da criação coletiva. Tanto os
elemeutos conjunturais da época - marcada pela contracultura. pelo movimento hip-
pie e seu projeto comunitririo, pelo ativismo político e libcrtário acentuado - quanto
as necessidades especificamente teatrais - falta de urna dramaturgia que se moldasse
perfeitamente às inquietudes sociais. temáticas e estéticas dos grupos de teatro de
então. ou ainda. a busca de Ul11a relação mais participativa com o público - tudo isso
é invocado para justificar o aparecimento deste novo 1110do de criação.

51 IU;CK. J. 'l1w L~ft: Df!IH: l1rL"Clt~,.: lhe n'lal íon of tJw m·tist to tlu' stnlggl~ of OH: pt'ol'k. New York:
Limefíght Editíons, 1986. pp 8.t-8S.
52 ~1\.Vh. 1\. c. A. A Géne$t! do VCl1ig~m: O Processo de Crinrdo ti<' '0 Pm°(llSO Pcrdidn'. ~002. 192. f.
Dissertação (Mestrado em Artes) - Escola de Comunicações c Artes. Universidade de
São Paulo, p, 101.
53 CÉS(·cDf:'S. f. C. (org.). El 'lenrro [cHif1oam~ricarlO de Crt.'ClciÓtt Coll'ctiva. Ciudad de La Habana:
Casa de las Américas, 1978. p. l3'3.
29

No Brasil. alguns representantes significativos dessa vertente são. entre out ros.
o Asdrubal Trouxe o Trombone (1974): Pod Minoga (1972): União e Olho Vivo (1972):
Núcleo Independente (970) - grupo egresso cio Teatro de Arena, e que leve conta-
to com Enrique Buenaventura -: e ainda os espetáculos do grupo Sonda - C01110 O
Rito do Amo:: Selvllgcllt (1969) - e do grupo TUCA (sob a direção de Mãrío Piacentini)
- Conullll (1969) e O Terceiro Dernôuio (1970). O Teatro Oficina. além do intercâmbio
com o Living Tneatre c C0l11 o grupo argentino Los Lobos, realiza um marcante
espetáculo de criação coletiva. Gradas Serior (1972). elaborado a partir de uma via-
gern pelo país.
Nos outros países da América Latina. a criação coletiva também teve uma impor-
tância enorme dentro elo panorama teatral, chegando mesmo a tornar-se um elos
elementos identitãrios ele sua cena. C0I110 bem observa Randy Martin, ela é fruto da
conjuntura das vanguardas estrangeiras associada <1 dinâmica local. sugerindo um
"movimento" cênico transnacional dentro do continente laríno-americano. Além dis-
so. ela se encontra fortemente marcada pelo desejo de "exploração da participação
dos atores e do público no processo criativo do teatro (...]. O teatro da criação coletiva
desdobrou a suscetibilidade ela arte para a participação">',
Na busca de U1l1<l nova relação com a platéia - na perspectiva de urna "estética
participativa" - procurou-se subverter a experiência de passividade por parte elos
espectadores. de forma a que não se acomodassem enquanto convidados distantes
ela cena. mas que assumissem UI11 papel mais ativo, crítico c integrado. No limite..
almejou-se que o projeto artístico viesse a se configurar COl110 urna criação ele todos,
rompendo-se a barreira entre artistas e público.
Tal objetivo fez COH1 que vários grupos deixassem os palcos italianos c criassem
espetáculos c intervenções em ruas e praças. na busca ele um contato direto com
os transeuntes-espectadores. Procurava-se C0111 isso. também. atingir e C0l1SCiC1Uizar
criricarncnte UI11 público que jamais iria ao teatro. Neste desejo de "parricipaçâo"
encontrava-se embutido um projeto utópico ele trausforrnaçâo da realidade.
Se. por um lado, montagens C0l11 temática social e histórica. sob um forte viés de
engajamento político. foram urna das vertentes mais fortes na cena latino-arnerica-
na. houve outras. que aliavam crítica de costumes. liberação sexual e experiências
Iisérgicas a U111 radical aspecto de pesquisa formal, Estes últimos, inclusive, sofreram
com juizos preconceituosos, corno se não passassem de "outra coisa que não evasão
ou estampido raivoso de rebeldes sem causa, ou pretexto para elevar a pornografia e
o consumo de drogas à categoria de espetáculo para uma platéia mórbida'?",

54 M.r\RTJ N, R. Sodalisl Ensemblcs: lhcaler ,md slate in Cuba anel NicllragUtl. Minneapolis: Univer-
sity ofMinncsota Press. 1994. p.43.
55 DOMiNGUEZ. Carlos Espínosa. "Entrevista con Manuel Calícb. Creaciôn Colectiva: un te-
atro nccesario y urgente", In: CÉSPEDES, F. G. (org.), El 'lCiltro l.aLirwmnclicano de Cn.'clcián
Coll'ctivll. P.34.
30

No que diz respeito à metodologia de trabalho, os procedimentos foram inúrne-


ros, ele acordo com as características de cada grupo. Pesquisa teórica . levantamento
de documentação histórica, entrevistas c questionários, coleta de narrativas orais,
pesquisa ele campo, longos processos de ensaio, feedlJack ela platéia. são alguns dos
elementos mais recorrentes.
Por exemplo, no que diz respeito às diversas formas de encaminhamento da pesquisa,

1...1 alguns grupos trabalham com times de pesquisa especializada (tais COlHO estu-
dantes de ciências sociais ou assistentes sociais] ou desenvolvem as suas próprias
habilidades nestas áreas. Muitos grupos são observadores integrados nas cornuni-
dades, nas quais eles passam a maior parte de seu tempo e freqüenremeutc moram
ali: desta forma a condução de entrevistas se torna mais informal c estimula uma
contribuição mais espontânea para dentro da montagem (...I.~(,

Além disso. às vezes também é realizado um estudo minucioso da comunidade.


através Lida expressão verbal e não verbal (o estudo das expressões idiomáticas. pro-
núncia. [0111 de fala, e os gestos e a linguagem corporal de forma geral"?",
Contudo. é a itnprovisaçào - como uma Ierramenra de criação do texto e da cena
- a prática COnlUI11 a todos aqueles grupos. Ela é. entre todos. o instrumento central
ela criação coletiva. tornando-se praticamente impossível pensar Ul11a sem a outra, e
vice-versa. Também assim o será no âmbito do processo colaborarivo.
Segundo Pérez. é possível identificar três formas de criação coletiva no que diz
respeito à elaboraçâo do texto:

1) A que parte de um texto já elaborado (urna obra de teatro]. O processo de monta-


gCln. desde o estudo do próprio texto, vai ser realizado pelos integrantes do grupo
em conjunto. I...)
2) A que na elaboração do texto só intervém uma parte dos integrantes do coletivo.
para depois prosseguir de Iorma similar á descrita no parágrafo anterior. (...1
3) A que tanto o texto COll10 a encenação são elaborados por rodos os membros do
grupo. Isto não exclui que a elaboração final da peça fique a cargo de U1l1 elos inte-
grantes do coletivo, porém sornente depois que o grupo já tenha improvisado sobre
o material colhido da investigação."

U111 aspecto importante frisado por Pérez é que essas formas de criação por ele

56 WEISS, J. A. (with Damasceno. L.: Frischmann, D.; Kaíser-Lcnoír, C.; Pianca, 1\01.: Rizk. B.
J.) I.Cltin i\mClicuu P01Jular '11J(~cu~r: fh~ first fi\'~ n:nhnic.'s. Albuquerque: University of New
Mcxico Press, 1993. p. t 68.
S7 Ibíd.• p. 169.
58 CÉSI'UOES. f. c. (org.), 1;1 '1i:curo LatilwlUllCl;ccmo til! Cn.'etció'l Cokctivel. p. 14 L
31

mapeadas não têm UIll uso excludente. Isto é. o f11CSI110 grupo. dependendo dos seus
interesses e necessidades naquele momcnro. pode trabalhar C0111 urna ou outra des-
sas três maneiras. em espetáculos diferentes.
J~ importante observar ainda que o terceiro item de sua análise abre urna possibi-
lidade ele aproximação C0l11 o processo colaborativo. na medida em que a síntese dra-
matúrgica final possa ser realizada por UUIll dos integrantes do coletivo". Porém, não
fica claro que esse "integrante" seja. de fato, um dramaturgo, convocado pelo grupo,
desde o início, a assumir esta função. Além disso, nada é mencionado em relação à
manutenção da função cio encenador,
Caberia então verificarmos COI110 se coloca tal função dentro da criação coletiva. Se
tomarmos corno base as análises de Pavis e Fernandes. o papel do encenador - corno de
resto das outras áreas artísticas - está repartido dentro do grupo. Todos os integrantes
são cnccnadores CIl1 potencial. tendo direito ao exercício desta função. O diretor. nesse
sentido. desaparece COlHO UHl criador irulividua! é a sua obra-encenação. a sua autoria
pessoal. encontra-se distribuída e compartilhada pelo coletivo. Portanto. ele não pro-
duz urna criação autônoma particular. Na verdade. no limite, nem se poderia reivindi-
car a ação específica de um diretor, jí.\ que todas as funções teriam sido abolidas.
É claro que. C0t11 isso. não se possa afirmar a inexistência de U111a proposta de
encenação. Se pensarmos em alguns espetáculos-ícones da criação coletiva, tais corno
Pllrllclise Now (Living Theater, 1968). 1789 (Théãtrc du Solcil, 1970), ou Tmre-rne Ledo
(Asdrúbal Trouxe o Trombone, 1977), é evidente a presença de um conceito de ence-
nação. ele urna escritura cênica bem dcfi nida. de uma poética espacial e interpretati-
va formalizada e perceptível ú leitura cIo espectador. Ou seja, podemos falar sim em
urna cnceuucdo, porém numa encenação coletiva, desenhada a várias In50s.
Por exemplo. quando julian Beck vai descrever o processo de criação de outra
importante obra elo Living, ele afirma categoricamente que "J\-1ysLelies Ilvlysterics CHIeI
Srualler Píeces. 19641 não tinha UHl diretor, Nós todos criamos (essa peça] em menos de
quatro meses, fazendo mudanças de vez em quando durante os meses que se segui-
ram, Alguns membros da companhia contribuíram 111<lÍS elo que outros. Que impor-
tâncía rem iSSO?"S9.
Se analisarmos apenas o final desta última citação. jeí podemos entrever que nem
tudo é assim tão pacífico na seara da encenação coletiva. Primeiramente - como vere-
mos adiante - porque a figura do cncenador continuou existindo dentro ele alguns
grupos, ainda que de forma velada e não-assumida. Em segundo lugar, porque houve
algumas companhias de criação coletiva - por exemplo, La Candelaria - que não
abdicaram da função elo diretor. O que estava em jogo, ali, não era a existência ou
não deste papel, luas sim o momento do processo onde ele entraria e" além disso, a
revisão da sua forma de atuação.

59 UECK, l., '111c l.if~ oftlte l1tc<ltt'r: th~ rdatios\ ofthc urtís; to lhe struggle Oflh~ 17col'k. p. 47.
32

Beatriz Rizk, pesquisadora do teatro colombiano. em seu estudo sobre o Nuevo


Teatro La!inoamcric(}uo apresenta um modelo de criação colet iva que abre espaço para
a manutenção das funções. Segundo ela ...... a criação coletiva n,10 eliminou defini-
t ívarncnre o texto de autor nem excluiu o diretor. ainda que seja UIl1 lugar-comum
bastante aceito de que ali não havia campo nem para UI11 nem para o outro"?".
No caso específico da direção, Rizk ainda afirma que o que se aboliu fora a forma
ditatorial do encenado!" trabalhar, C não a função em si. De acordo CQt11 sua análise.

t... 1continua existindo urna divisão estrita de trabalho na qual o diretor - ou direto-
res designados - continua dirigindo. O que acontece é que já não trabalha de uma
maneira ditatorial. mas sim com a colaboração dos atores. Agora. o que de fato a cria-
ção coletiva aboliu foi a hierarquização das tradicionais companhias de teatro, quase.
sempre funcionando atrav és do produtor, que era o dono da empresa. c girando em
torno de U111 sistema de "estrelas", que. sem dúvida. era a atração da bilhereria."

Carlos José Reyes, dramaturgo c diretor colombiano. em UIll importante ensaio


denorni nado "La Cre(Kióll Colcctiva: una llucva orgCltlizaciôn interna del trllhajo teatral''.
também defende a permanência da função do diretor dentro deste modo de criação,
Segundo ele..,... (este) método de trabalho (...) não implica na abolição do diretor.
mas sim na destruição de sua onipotência . O diretor jtl não marca mecanicamente
os movimentos, de acordo COll1 seus gostos estéticos ou seus caprichos. Ele estuda as
imagens de maneira coletiva e, através de urna aruilisc intensa. escolhe , seleciona.
organiza":". Ou seja. a criação individual elo diretor. após urna etapa de colet ivização
e de discussão sobre o \nateria\ levantado. mantém-se garantida.
Também Peréz aflrma carcgoricarncntc que Ué errôneo ver a criação coletiva como
o oposto ao teatro de autor ou ao diretor cênico", e aponta que o que se encontra em
crise não são as funções ou especialidades. mas, sim, "as rígidas relações que se esta-
beleccm entre elas·'6J.
Contudo. é importante lembrar que a referência principal para esses estudiosos
é justamente aquela do Nuevo TeaLro colombiano. o qual - veremos a seguir - por seu
caráter metodológico peculiar. se assemelha bastante às experiências do processo
colaborativo,
Em urna direção similar a de Rizk e de Reyes, Marína Píanca - outra referência
Importante para os estudos sobre o teatro latino-americano - faz urna defesa do tra-
balho individual dentro da criação coletiva. Segundo ela.

60 RJ7.K, B. El Nuevo 'f<,'arro LatirW{lmeric:auo: ulla lcClUl"(l ltistór1cil. Mlnneapolís: The Prisma
Insrituteff'he Instituto for the Study of ldeologies and Litcraturc, 19 87. p. 69.
61 lbid.. P: 69.
62 CÉSPI:UHS. F. G. (org.), EllbHro I.Lltinoaml'ricarw de CrL'ación Colcctiva, p. 92.
63 lbid.• p. 136.
33

I...) esta metodologia não é. em nenhum momento. uma negação do trabalho indi-
vidual. A criação coletiva implica ern um trabalho pessoal. em um descnvolvirnon-
to pessoal árduo c comprometido. porém nunca solitário. E caso estabeleça urna
hierarquia dentro do trabalho. não é a hierarquia vertical superior-inferior. mas
sim a hierarquia taxonômica c teleológlca em função daquilo que. crn sua relação
C0l110 público. interessa fundamentalmente ao grupo,".•

Corno podemos perceber pelas análises anteriores. o problema da abolição da


função artistica do diretor ou de sua autoria individual, no àmbito da criação coleti-
va. é 1111l terna complexo e contraditório. O que se apresenta COlHO mais consensual
é o faro de que. se não podemos pensar em autores individuais autônomos e inde-
pendentes. presenciamos. ao menos. U111 conjunto de indivíduos COl\1 uma postura e
atitude autoral, ao longo elo processo de criação.
Se ampliarmos esse debate em relação à dramaturgia, veremos que a questão da
autoria individual também fica colocada em xeque. especialmente no caso de peças
originais escritas pelo grupo. Corno aponta Weiss, "em razão do processo coletivo [...1
a autoria individual com freqüência equivale a editar ou escrever os rascunhos e o
texto final. baseados nas contribuições do grupo. E no caso de peças preexistentes, a
mão do diretor c as decisões elo grupo influenciarão a forma da montagem":".
No prtrnciro caso. a peça pode ter a assinatura do grupo inteiro ou apenas levar
o nome de Ulll dos membros da equipe - o que não é visto COlHO uma dcscaract.e-
rização da criação coletiva. pois todo o processo ele escritura foi realizado colcti-
varncntc. Tal procedimento de trabalho a aproxima. sem dúvida, ela estrutura elo
processo colaborarivo.
Já no caso de textos drarnatúrgicos preexistentes. é COll1U111 a peça funcionar mais
COlHO UJ11 ponto ele partida ou COlHO Ulll material de inspiração a ser reclaborado
pelas interferências e proposições cênicas do grupo. Ou seja, a dramaturgia se cons-
titui apenas Co\)'\O UH) pretexto para os desejos e necessidades artísticas da equipe. E,
portanto. na rnedída em que o processo ele criação é toelo compartilhado. a autoria
preexistente do dramaturgo não põe eI11 perigo a expressão grupal.
Outra característica ímportaute da dramaturgia da criação coleríva é seu cará-
ter provisório. mutante. afeito a contínuas reescrituras, tanto durante o processo de
ensaio, quanto a partir da recepção dos espectadores. Cada peça apresenta muitas
versões, I11CS1110 após vários meses da abertura oficial para o público, Os famosos
"debates após o esperáculo'.. nos quais a platéia expõe as suas críticas e sugestões, vão
redesenhar tanto o texto quanto a montagem.

6.~ PJI\NCt\. M.El 'Je!Uro ele Nucstral\fIll"lÍca: un 1>t'O)'cxto conCincllwI1959-J989. Minncapnlis: The
Institute for thc Study ot Ideologics and Literature, 1990. p. 89.
65 WllJSS. J. A. (with Damasceno, L.; Fríschmann. D.: Kaiser-Lcnoir, C.; Pianca, t-..1.: Rizk, B.
J.). Lntin Amerícnn Popular Thcat~r: lhe firs! Jh·e ccururícs. p. 167.
34

Portanto. podemos perceber nessa relação intrínseca. interdependente e sirnul-


tãnea entre a dramaturgia e a cena, o quanto o aspecto teatral do texto fica mais
acentuado do que sua COnf0I111açào literária. Aliás. ele tende a incorporar ao máximo,
citações, trechos de entrevistas, depoimentos colhidos cru pesquisa de campo, etc., o
que lhe confere. em geral, um formato de mosaico,
Muitos dos seus detratorcs irão justamente criticar este aspecto episódico. frag-
rnentãrio, de estrutura cumulativa e de justaposição - às vezes esquemática e super-
ficial. Chega-se até 1l1CSIllO CI11 função de urna suposta fragilidade drarnatúrgica, a
t

considerar a criação coletiva como "uma coisa de transição", um "mal necessário"?",


Poder-se-ia. contudo. contra-argumentar, que U1l1 cios objetivos centrais deste "modo
de feitura" é a realização de urna ação teatral, mais do que a produção de uma obra
de grande valor literário.
Weiss, I1UI11 exercício de distanciamento das questões e problemas específicos
desse fazer coletivizado. realiza urna análise de caráter global. na qual propõe
urna síntese das contribuições mais importantes da criação coletiva. Segundo ela,
o seu mérito

1...1 não reside somente na criação de UI11 novo texto ou mesmo de uma nova 111011-

ragem, 1l1aS no seu complexo processo. que (1) serve corno uma experiência educa-
cional para os membros do grupo. tanto em relação às questões históricas e sociais
quanto ~l sua relação COJl1 a comunidade ou (On1 o público: (2) constrói ligações
com inst ituíçôes de pesquisa ou intelectuais. por um lado. e organiznçóes comuni-
t.irias. por outro: (3) equipara a divisão de tarefas dentro da organização \grupat\ e
habilita lodos os membros COll1 instrumcntnl crítico: (r-t) contribuí para o clescnvol-
virncnto do repertório e ele estilos de montagem e irucrpretacão. o que contribui
para a (orça culrural de U]l1 setor especifico da sociedade c para o desenvolvimento
de um teatro nacional."

Contudo, a criação coletiva não esrã imune a problemas. Também em nossa dis-
sertação apontamos algumas das contradições nela presentes:

I...} nem todos os participantes possuíam habilidades, interesse ou desejo ele assumir
vários papéis dentro da criação. Esta polivalência de funções acabava acontecendo
apenas no plano do discurso - teoricamente ousado e estimulador - mas pouco
concretizado no dia-a-dia dos ensaios. (...} Muitas vezes. também, essa perspect.i-
va do "todo Inundo faz tudo" escondia certos traços de manipulação. Por exern-
1'10. determinado dramaturgo ou diretor pregava tal discurso coleuvízante visando

66 CÉSPEO!:S, F. G. [org.), EI Tearro l,alinotHlIcr;cano ele Cn.'tldón Colectíva, p.73.


67 WHSS. }. A. [wirh Damasceno, L.; Fríschrnann. D.; Kaiser-Lenoir, C.~ Piauca, ~l.: Riz.l<. B.
J.). /..alirz i\mcliccm I'opular ~nlC,Hcr'; lhe Jil"st fi"!! celllUrícs. p. 169.

- -- - - - -- -- -_ .__ .-
35

camuflar 1I111 desejo de autoridade e. dessa forma, evitava confrontos e conflitos


<:0111 os out ros integrantes do grupo.?'

A propósito dessa afirmação. recordamo-nos de urna palestra?" de joseph Chaikiu,


criador do Opcn Theater - outro emblemático grupo americano de criação coleti-
va - na qual relatou, auto-ironicamente, que no início de cada ensaio ele tinha que
relembrar a toda a equipe que ele não era o diretor do trabalho e que ndo estava ali
para conduzir a criação. função esta que deveria ser compartilhada por todos.
Contudo. segundo Chaikin, as suas opiniões eram as que mais tinham peso nas
discussões e acabavam por orientar os rumos do espetáculo. Ou seja. ele. de fato, era
o diretor. Por mais que essa situação fosse negada ou tratada corno tabu. ela acabava
ocorrendo na prática, e Chaikin, numa corajosa autocrítica. via aí U111a atitude sua de
manipulação. Segundo ele também, tal situação ele funções veladas e não-assumidas
se estendia a outras áreas de criação no Open Theater,
julian Beck também discorre sobre o desconforto que ele e judlth Malina senti-
rarn, durante a montagem de Frankstein. por estarem numa posição de comando. O
processo inteiro foi marcado por esse "mal-estar de função" dos dois diretores - tan-
ro do grupo COll1 eles, quanto deles COI1l eles mesmos. Bcck, por exemplo, afirma
que .,Frankstcin se recusou a ser coeso dentro do tempo pré-determinado. SCI11 preci-
sar dos rígidos planejamentos do diretor"?", Um pouco mais adiante, ele descreve o
encenador apenas COlHO um veículo para os atores -UllllllCdiunr. de acordo com suas
palavras. o que traz também a conotação xarnãnicn da incorporação. do "cavalo":

Nós precisávamos controlar um projeto cujas necessidades nós não podíamos rncsurar,
Ele comandava o seu próprio destino. Os diretores, J & J lJulian Beck e judith Malina],
contudo, estavam construindo UI11 espeuirulo {l<u'a os talentos de urna companhia de
atores da qual eles conheciam cada um deles intilnalnente. Os atores dirigiam a eles
mesmos através do medium I"nll~io··. "veículo". mas também "médíum" do diretor,"

Ainda que essa noção do encenador corno 1.1111 "veiculo" ou "cavalo" não deixe
de ser bastante sugestiva e provocadora. o contexto em que ela aparece traz él pers-
pectiva cIo desaparecimento ou enfraquecimento de tal função. Porém, o principal
problema é essa "crise de identidade" ou "culpa do oficio" que parece atravessar os
processos mencionados. Pois, na verdade, trata-se de diretores que não assumem - ou
que não querem assumir - a própria direção que, ele fato. exercem.

68 SII.V.l\. A. C. A., A Gênese da Vertigem: o Processo cle Criaçlio de 'o l'llraiso Perdido', p.r o 1.
69 P..s testra proferida em novembro de 1997. no I'S ,.:!:2. em Nova Iorque. na qual se avalia-
va a experiência do Open Theater no contexto do teatro de vanguarda americano.
70 BI~C:K. J.. ]1h? T.ife oflhe l1Icatc:r: lhe n~l(uion of the m1fst to Lhe slrllggle Dflhe! people. p, 48.
71 lbid.• pp. 618-49.
36

o fato ele esses grupos apresentarem lideranças fortes - CIl1 geral. diretores - vem
materializar uma aparente contradição COl1l o discurso coletivizante da criação coleti-
va . [udith Wciss faz um levantamento exaustivo desses "diretores artísticos fortes"n~
entre os quais destacamos alguns: Buenavenrura, no caso do TEC; Santiago Garcia. no
La Candelaria: Arahualpa Del Cioppo. no El Calpón: Maria Escudero no Teatro Libre
'Ieatro: Sergio Corrieri. no Teatro Escambray: César Vieira, no União e Olho Vivo. etc
Poderíamos acrescentar a essa lista os nomes j(l vistos de julian Beck e judith Malina,
no caso cio Living Theatre: [oscph Chaikin. no Opcn Theater: Ron Davies, no San Fran-
cisco Mime Troupe: Luis Valdez, no Teatro Campesino: Peter Schumarm, no Bread anel
Puppet Theatcr, Ariano Mnouchkine, no Théãtrc du Soleil, Salvador Távora. no la Cua-
dra de Scvilla. Albert Boaclella, no EIsjoglars, e mesmo - apesar de se tratar de um forte
grupo de atores - de Hamilton Vaz Pereira. no Asdrubal Trouxe o Trombone.
Segundo Weiss,

{•.. ) O problema da hierarquia e de papéis definidores parece ser paradoxal: (...l nós
só podemos concluir que apesar da rejeição geral do princípio da "estrela". o cole-
tivo não-hierárquico é mais bem sucedido quando o grupo é mais estreitamente
identificado com UI11 diretor ou fundador forte. {...) Contudo. todos esses grupos
conseguiram desenvolver um exitoso processo interno e uma divisão de responsa-
bilidades. o que indicaria que o papel do diretor e também aquele de um coordena-
dor habilidoso c de UH\ f.\Cilitador. 7J

Apesar da presença do "diretor ou fundador forte" provocar urna crise quase per-
manente na dinâmica interna elas relações intra-grupais, Weiss rccoloca ta] presença
por outro àng1110 e afirma a sua importância, Ela desmonta a aparente contradição
associada á existência de um líder dentro do grupo. desde que garantida a divisão de
trabalho e de criação entre todos os integrantes. e sob a condição de que esse diretor-
coordenador ou facilitador atue em consonância C0l11 o coletivo. Contudo. trata-se
de urna análise a postcnori de um fenômeno c, pelo que j<Í foi descrito, vívcnciado de
forma bem distinta por quem lidava com o problema ele dentro.
Ainda que tenha havido grupos de criação coletiva com dinâmicas internas dis-
tintas. essa questão da liderança parece ser 111enOS problemãríca no processo colabo-
rativo. Em primeiro lugar porque. desde o início, o papel do diretor j~í se encontra
assumido pelo grupo. Depois, as opções e os caminhos dentro cio grupo são sem-
pre discutidos por todos - com várias das escolhas sendo feitas através ele votação.
Além disso. ocorre também o surgimento de outras lideranças em áreas diferentes do
trabalho. Por exemplo, se o diretor incita ou coordena os debates artísticos. outros

72 WElSS. J. A. (with Damasceno, L.: Fríschrnann. D.: Kaiser-Lenoir, C.; Píanca, M; Rizk, n.
1.). UUifl t\mcriam Popular 'nzealer': l1le: jirs! Jivr: ccuturies,
p. 156.
73 Ibid .• p. 156.
37

membros do grupo encabeçam questões técnicas, pedagógicas. financeiras. adminis-


trarivas ou de turnês. A idéia de múltiplas lideranças ou até IneS1l10 de lideranças
rotativas - corno no caso da Companhia São Jorge ele Variedades - surge ele forma
mais orgânica no âmbito elo processo colaborativo,
É claro que a insistência por parte da mídia em atribuir a apenas um indivíduo o
esforço e o comprometimento que são coletivos. provoca urna grave distorção - não
raro. fonte ele grande descontentamento entre os membros da equipe. Existe uma
dificuldade em se perceber que. por mais que haja urna "direção artística forte", o
grupo não funciona atrelado a uma única vontade autoritária. as funções são com-
partilhadas. e as escolhas estéticas, ideológicas c processuais são debatidas por todo
o coletivo de artistas.
Porém, retornando aos pontos problemáticos concernentes () criação coletiva.
outro aspecto levantado diz respeito ao trabalho dos atores. Dada a perspectiva do
acúmulo de funções. o trabalho do intérprete. em geral, ficava relegado a um segun-
do plano. Não raro houve críticas falta de um rigor técnico, à ausência ele depura-
à

ção no trabalho vocal e corporal, à necessidade ele U111 maior aprofundamento na


construção das personagens. Ou seja. () desejo de polivalência artística acabava por
prej udicar a área específica ela interpretação - quando já não resultava deficitávia por
eventuais fragilidades ela própria dramaturgia.
AI ias, esta foi urna das razões que fez C0I11 que joseph Chaikin saísse do Living
Theatcr c fosse montar o seu próprio grupo. Segundo ele.

(...] eu gostaria de saber mais sobre interpretação do que eu tive acesso {... I atra-
vés do l.ivíng Thcatcr, Naquela época. o I.iving Theater não estava realmente nada
interessado CIH interpretação. e raramemc explorava as próprias potencialidades
do ator ou da experiência do grupo. O constante estado de emergência no Living
Theater impedia isso."

Os teóricos Fernando Duque Mesa e Jorge P. Prada apresentam ainda outra crítica.
no que diz respeito à relação forma-conteúdo do espetáculo: "o abandono do plano
estético-formal ao se privilegiar o plano conteudistico''>. Trata-se de urna observação
importante. pois a concretização do plano estético é vital para a potência da obra ofe-
recida ao espectador. Contudo. tal avaliação negativa não pode ser generalizada - ain-
da, é claro, que ela diga respeito especialmente ao panorama teatral COI0I11bhlno.
Se cousiderarmos verdadeiro que alguns grupos de cunho mais engajado e ativista
privilegiavam a mensagem direta, a doutrinação política, a crítica social explícita em

74 C1V\1 KtN. J. TIu: Presence Df rhe Actor, New York: Theatre Communications Croup, 1991 (re-
iwi1'\t), p.52.·
75 ~lES ..\ . f.
I); ORTlZ. I:. r .: PRAOi\. J. 1'. Invcstigaciân}' P"axis ]t.'lllml cn Colombj(1. Santafé de Bo-
gorá: Colcultura, 1994. p·74.
38

detrin1ento de unia experunentaçâo formal, por outro lado. houve também aqueles
que trouxeram inovações estéticas radicais. Alguns grupos, inclusive. conseguiram aliar
preocupações rernáticas - em geral ele ordem política. social ou de costumes - COlU
inquietações formais de ponta. corno no caso do próprio Livíllg. do Soleil ou do Asdrubal.
Não pretendemos, ao trazer essas observações críticas. desqualificar ou desmcre-
cer a experiência da criação coletiva. É inegável que obras fuudarnenrais na história
cio teatro no século xx foram criadas dentro desse modelo. O que está em foco é a
análise e a comparação dessa experiência COll1 outra dinâmica coletiva de criação"»
surgida nos anos 90. e que vem sendo denominnda processo colaborativo.
Porém, antes de a abordarmos, parece-nos importante analisar a experiência da
criação coletiva na Colômbia, na medida em que ela antecipa ou apresenta certas
semelhanças C0l11 o processo colaborativo. Poderíamos. é claro. realizar outros estu-
dos de caso. tanto brasileiros quanto internacionais. Contudo. tal abertura do pano-
rama de amostragem nos faria incorrer em grave risco de superficialidade. além de
desfocar a trajetória pretendida. qual seja. a de traçar as conexões e diferenças entre
a criação coletiva e o processo colaborativo.

2.3.1 CRIAÇÃO COLETIVA NA COLÔMBIA

Se é impossível pensarmos a experiência da criação coletiva sem nos referirmos a


grupos-ícones corno o Living Theatrc, () Open Theater, o San Francisco Mime Troupe
e o Bread anel Puppet Thcater nos Estados Unidos. e ao Théãt rc du Solcil. na França.
em igual medida deveria ser óbvia a remissão a alguns grupos latino-americanos.
Contudo. na prática. o teatro produzido na América Latina ainda é pouco conhecido
- quando não negligenciado - por estudiosos e artistas no Brasil.
No caso específico da criação coletiva. tal desconhecimento ou omissão constitui
fato mais grave. na medida em que tal modo de criação conheceu profícuo dcsenvol-
vírnento por todo o continente. cspeciatmente a partir de 1963. Los Lobos e El Libre
Teatro Libre. na Argentina; EI Galpón, no Uruguai; ICrUS. no Chile: Yuyachkani e
Cuatrotablas, no Peru: Ollantay, no Equador: Rajarabla na Venezuela. Teatro Escarn-
bray, em Cuba. são apenas alguns poucos exemplos ele UI11 rico e complexo quadro.
Contudo. foi a Colômbia o país onde tal prática floresceu COlll mais repercussão.
tanto no que diz respeito à produção artística quanto à reflexão teórica e metodoló-
gica. O Teatro Popular de Bogotã, o Teatro Libre, de Ricardo Camacho, mas especial-
mente o Teatro Experimental de Calí (TEC). ele Enrique Buenaventura e o Teatro La
Caudelãria, de Santiago Garcia e Patrícia Ariza constituíram marcos da criação cole-
tiva em nosso continente.
39

Não fosse apenas isso, a experiência colombiana - dífererucmente daquelas ocor-


ridas na Europa. Estados Unidos e mesmo no Brasil - apresenta aspectos peculia-
res em seu 1110do de criação que a aproxima do que denominamos hoje. processo
colaborativo. Em outras palavras, o que ocorreu na Colômbia rrara-se de Ut11 caso
excepcional - corno em La Candelaria - não facilmente classificâvel. em termos de
metodologia de trabalho.
Por exemplo. ao realizarem UI11a análise da criação coletiva na Colômbia, Mesa e
Prada a definem de forma bastante similar aos procedimentos do processo colabora-
tivo. Segundo eles.

(...) o teatro COI110 projeto coletivo é urna criação de lodos. no qual não se eliminam
3S especialidades. mas, pelo contrãrio, elas são fomentadas e convivem. Por isso. é
freqüente encontrar no interior de UI11 dramaturgo que. de acordo com
grupo UI11

estas premissas, recolhe as propostas dos atores, cenógrafos c demais membros


CI11 suas áreas específicas. até conseguir configurar o produto teatral, resultante

de urna série de inter-relações que se gestam e crisralizam no processo de trabalho


corno expressão global lzadora do grupo. i6

A defesa que ambos os pesquisadores fazem da manutenção das funções especí-


ficas durante o processo de criação - que vai no sentido oposto das análises de Pavis
sobre a criação coletiva - remete diretamente à dinâmica de trabalho dentro do pro-
cesso colaborativo. Claro que tal aürrnacão rem um caráter genérico e abstrato. o
que torna tundamcntal urna observação mais detida sobre as práticas do TEC e do La
Candclaria.
Portanto. pareceu-nos pertinente e elucidativo UHl estudo à parte destes dois gru-
pos - lideranças fundamentais de Ull1 movimento então denominado Nucvo "feat.ro
Colornbiallo -. tanto pelas sistematizações relativas à criação coletiva. quanto pela pas-
sagern ou ponte que realizam com o teatro brasileiro contemporâneo,

2.3.1.1 TEATRO EXPERIMENTAL DE CALI (TEC)

Enrique Buenaventura (1925~2oo3), fundador do 'Ieatro Experimental de.Calí é, depois


ele Augusto Baal. o artista-teórico latino-americano com maior reconhecimento in terna-
cional, Além de dramaturgo, diretor e ator, ele foi responsável por urna das primeiras - e
mais conhecidas - sistematizações teóricas sobre a metodologia da criação coletiva.

76 MESA. F, u; ORTIZ. F. (l.: PRAU ..\ , J. I'. Im'cstigaaóll y Pnlxis Teatral eu Coloml}ja , p.65.
40

Em 1955. depois de viver na Argentina e no Chile. é convidado a integrar a recém


inaugurada Escueta Departamental de Teatro. em Calí, que será o berço elo futuro
TEC. Antes disso. teve contato C0111 111na importante linhagem brcchtiana. via Berli-
ner Ensemble, Piccolo Teatro di Milano e T.N.P., de Jean Vilar,
No TEC serão criadas algumas das obras mais significativas elo teatro colombiano,
ii
C0I110 i\ la di~sl.ra ele Dios Padre - peça-símbolo da companhia. retomada e reescrita

em cinco versões diferentes. e mantida em repertório por quase trinta anos -, La tra-
gedia dei rey Cll1istophe e Un rélJuier1'l por cl padre de las Casas.
Os princípios norteadores da prática artística de Buenaventura - tanto corno em
Piscator - buscavam o alargamento da participação criativa de cada um elos inte-
grantes do grupo em todas as etapas do processo de construção do espetáculo. Corno
conseqüência houve UHl redímensíonarnento do papel do ator, do dramaturgo e do
diretor. pois, segundo Buenavcntura,

1...1 não há hierarquias. nem propriedade privada dos acontecimentos c. no aspecto


art.ístico. não há autoridade. O Diretor não impõe a sua concepção da obra aos ato-
res e nC111 estes devem 'realizar' a concepção elo diretor. A concepção da montagem
é algo que se elabora entre todos. Todos se comprometem COJll os objetivos do tra-
balho. C0l11 a sua significação. com a relação que o trabalho deve estabelecer C0l11 o
público. Todos são responsáveis por cada palavra do trabalho."

Segundo Marina Pianca. existiu, porém, urna trajetória no processo de colcriviza-


çâo artística do TEC. Ela ocorreu antes no âmbito da dramaturgia. para só depois che-
gar <i encenação: "para Buenavcntura, o conflito criação individualjcriaçâo coletiva
se estabeleceu prirneirarnenre a nível drarnatúrgico para depois evoluir ern direção a
um questionamento do critério de autoridade elo próprio diretor'?",
No TEC. ele forma semelhante àquela desenvolvida no Estúdio elo Teatro Píscator,
a concepção do espetáculo não é atributo do - ou apenas do - diretor. Ela é "desce..
berra" ou proposta - ou ainda. negociada - por todos os integrantes do trabalho, Isto
é, novamcnre nos encontramos diante da idéia de uma "encenação coletiva". Contu..
do. Buenaventura parece ter conseguido avançar ainda mais na materialização dessa
idéia. Indo além da apresentação de alguns princípios gerais ou conceitos norteado-
res do seu processo de criação - COlHO ocorre em o Teatro Político. de Píscator - ele

77 Existe urna tradução em português desta peça (li Dinifll cl~ Deus Pai), realizada por Hugo
Villavícenzío, e lançada numa coletânea de textos teatrais latino-americanos contemporã-
neos, intitulada Tt:'cUro da AmJrictl ullina. pelo Teatro-Escola Célia Helena. em 200.t.
78 nUENAvENTURA, H. "Teatro o 'taetro': Diálogo entre dos mancras de ver (Ir. artigo pu-
blícado no jornal fi Pucblo. Calí. em 16 de fevereiro de 1975 (xérox rcdatilografado do
referido artigo).
79 PIANCA. M. El 'leatro de! Nueura j\.mclica: un 1Jroy~cto contincnrC11 1959-1989. p. 89.
41

ir~\
sistematizar, PélSSO a passo, os procedimentos metodol ógicos ela criação coletiva.
- Escrito em 1972, este método percorreu rodo o continente. balizando, orientando e
servindo de modelo para outros grupos e coletivos.
Beatriz Rizk, em seu livro sobre Buenavenrura. analisa o processo de const rução deste
método, Segundo ela, tal metodologia "foi se gestando pouco a pouco, a partir cio próprio
fazer, Iniciou-se. na verdade. ao questionar a autoridade do diretor, com a concordância
do mesmo, j~l quase convertido em 'estrela' do grupo. pelos atores efetivos'?", O passo
seguinte, segundo ela, foi o surgimento de U111 "coletivo de direção", o qual fui se amplian-
do até envolver todo o grupo dentro do processo ele criação. Por fim, C01110 resultado dessa
prática. o método foi sendo experimentado. sistematizado e, então. publicado.
Em linhas gerais. Rizk o apresenta dividido nas seguintes etapas:"!

1. 1\ investigação:
2. A elaboração do texto (COI11 a sua respectiva análise crítica);
3. A improvisação ("coluna vertebral do processo"):
4. 1\ montagem:
5. A apresentação diante cIo público (o que inclui a síntese dialética do espetáculo)

o primeiro elemento que chama a atenção -- pois para o senso comum, tal pers-
pectiva se apresenta quase corno um paradoxo - é a sistematização e a defesa de um
1néLodo para a criação coletiva. Muitas vezes associada a espontaneisrnos irracionalis-
tas ou a processos criauvos caóticos, desorganizados e descontrolados. Buenavcntura
vem postular o contrário: '·0 método é a condição nccessãrta do trabalho coletivo 1...1.
Só se o método for conhecido e dominado por lodos os integrantes do grupo e aplica-
do de modo coletivo é que se garante UIl1a verdadeira criação coletiva "M~.
Em outras palavras. o método. aqui. não é visto apenas COll10 urna ferramenta
desejável ou útil. mas sim, urna condição necessaria e exigida pelo próprio pro-
cesso. A criação coletiva, corno querem alguns de seus críricos mais ferinos ou
derratores. não é sinônimo de bagunça ou de um delirante "anarco-rnisticismo'?".
Ela demanda, pelo contrário, urna estruturação metodológica.

la dmmaturgia âc la crt:IJcióll cokctíva. Cidade do México: Crupo Edi-


80 RfZK, B. lJueucWt.'nlU1"CI;
torial Careta. 1991, p, 108-109.
81 lbid., p. 110,
82 UUENAVENTURA. E.; VIPAl. J. "Notas para um método de criação coletiva". artigo publi-
cado na Revista Camatim. da Cooperativa Paulista de Teatro. n". 37, 1° semestre de 2006
(tradução de Eduardo Fava Rublo).
83 Expressão cabível, porém utilizada pejorativamente por Anatol Rosenfeld, ao criticar
determinadas posturas e prãticas irracionalistas utilizadas pelo Livin.g 'I1,C?!Hn:. Sugerimos
a leitura dos artigos "Irracionalismo Iípfdêmíco", "l,hring '17rcatn: c o Grupo 1.000" e "Os
demônios do 1lJCt\". por ele escritos. e reunidos na obra Prismas do Icntro, São Paulo:
Perspectiva, 1993. pp, 207·211: 219·Z30.
42

Outro ponto a destacar é a estreita relação deste método C0111 o sistema stanis-
lavskiano. O próprio Bucnaventura relaciona a "etapa ela investigação e elaboração
do texto" COll1 o chamado "trabalho de I11Csa", desenvolvido por Stanislavski c Dan-
rchenko, Segundo ele. o método da criação coletiva iniciaria por urna análise de texto
- "texto" aqui. entendido de forma abrangente. C0l110 sinônimo de "esquema de con-
flito", compreendendo desde as pantomimas romanas até uma dramaturgia de for-
Inato convencional. Ainda que Stanislavski tenha abandonado o "trabalho de mesa'
na última etapa de suas investigações. tal prática - sempre realizada no início de um
processo de montagem - ficou a ele associada.
Outra vinculação C01l1 o diretor russo aparece no uso que B'llcnaventura faz do con-
ceito de "analogia". Sranislavski preconizava a utilização de "situações análogas" corno
1110tor ou gatilho para a vivência do papel. Segundo ele. tal procedimento aproximaria
o ator do conflito vivido pela personagem. por um viés indireto, ligado à própria expe-
riência e subjetividade elo intérprete, sem que () I11eSnlO tivesse que se esforçar - ou
forçar - emocionalmente para concretizar UI11a dada situação-límíre elo papel.
Para o criador do TEC, a "analogia" é U111 instrumento ele trabalho para o ator,
definindo-a em termos muito semelhantes aos stanislavskianos: "O que entende-
1110S por analogia? Entendemos um conflito semelhante ao sugerido na obra ou na
parte ela obra que queremos improvisar'?". Contudo, pode-se perceber um desde-
brarnento na utilização desta ferramenta. Se, para Stanislavski, a "sit unção análoga"
esui fundamentatmcntc associada ~\ construção da personagem, em Huenaventura.
a analogia é utilizada também COI110 um meio de análise e invesrigação do texto,
das situações e dos conflitos nele contidos. Al ém disso, ela é 11I11<l forma de [ornar
a improvisação mais critica e criadora, possibilitando a revelação dos mecanismos
ideológicos em jogo.
E por que ~l sua opção por Sranislavski, ao invés de algum outro criador talvez
mais facilmente associável ao universo da criação coletiva? Parece-nos que a gramá-
tica do sistema stanislavskiano, ao se contrapor às idéias-clichês de inspiração divina
ou ele arroubos interpretativos inconscientes e desconrrolados. funcionava melhor
como referência modelar - e espécie de antídoto - contra as armadilhas de urn subje-
tivismo caótico ou de um esponraneísmo sem técnica, inimigos prováveis de proces-
sos grupais de criação.
A crítica que poderia ser feita, talvez. seja a de U1l1 excessivo espelhamento deste
método de criação coletiva no sistema sranislavskiano. Contudo, ele não se reduz a
uma cópia ou mera adaptação deste último, até porque Buenaventura irá amalgamar
urna perspectiva brechtiana - relativa aos princípios do teatro épico c dialético - à
sua metodologia.

84 nUEN:\VllNTURA, 1;.: VlDAI., J., "Notas para um método de criação coletiva", Revista Cam(l~
rim, n", 37. p. 31 .
43

Além disso. o artista-teórico colombiano vai propor - em sintonia ~Oln o projeto


coletivizante de Piscator - a prática de UI11a "dramaturgia coletiva I'. realizada por
uma "comissão de texto". responsável pela materialização literária das pesquisas teó-
ricas e das improvisações realizadas pelo grupo. As etapas a serem cumpridas - sem
nenhurna rigidez. é importante que se diga - seriam as seguintes: seleção de UHl
terna: pesquisa teórica organizada em equipes (formadas pelos membros elo grupo);
improvisaçâo dos acontecimentos principais; primeira seleção de cenas ou imagens,
e. por fim, a concretização da primeira versão do texto.
A parte literária propriamente dita ficaria a cargo da já referida "comissão de texto"
- ou, ern alguns casos. se necessário. do próprio Bucnaventura. Ela. então. seria subrnc-
tida novamente à critica dos atores, nUI11 processo contínuo defeedlJQck e rcescritura elo
texto, tantas vezes quanto fossem nccessãrias. Ao fina) dessa dinâmica de constantes
retro-alímenraçóes. por decisão coletiva. se chegaria à apresentação par;l o público.
Contudo, retrocedamos um pouco. de volta à sístemarízação e111 etapas da criação
coletiva - tal C01l10 apresentada por Rizk - a fim ele pcreorrernos a proposta método-
lógica cio TEC.
A primeira delas - a etapa da investigação -- vai desde a escolha do terna e do
levantamento dos objetivos do grupo até a "formação de comissões que se ocupam
de estudar os diferentes aspectos político-econômicos e sociais, COTll o objetivo de
determinar o marco contexrual geral do projeto artístico. Isto também Ocorre quan-
elo um grupo torna como ponto ele partida 11111 texto já escrito" 85. É claro que essa
etapa ganha outra conformação quando o ponto de partida é urna obra dramatúrgíca
já previa 111cn te escrita. ..
Após esse período de estudos. parte-se para a elaboração do texto. o qual é criado
conjuntamente por toda a equipe. J~ importante lembrar - corno já discutimos antes
- que o tratamento final ela peça pode ficar a cargo de algum dos integrantes do gru-
po~ que se responsabilizaria pelo acabamento literário do 11leS1110.
Segundo Rizk, a partir ela primeira versão do texto, passa-se análise critica do à

mesmo. através da identificação elas "relações de conflito" - maiores c menores - até


se conseguir definir claramente o "conflito central" da peça. É importante, segundo
Buenaventura. que todos os atores tenham uma visão de conjunto da obra, não se
limitando apenas ao entendimento dos conflitos de suas personagens. Todos deveu)
ser capazes de perceber as "forças em conflito", a "motivação geral" da obra, além
ela visão global da "trama" (os acontecimentos ern ordem causal c cronológica) e do
"argumento" (os IneSI110S acontecimentos da trama, luas dispostos na ordem tempo-
1'<11 proposta pela peça).
Então. após isso, parte-se para a divisão do texto em "seqüências" (conjunto de
situações que "vão desenvolvendo por meio de reviravoltas as contradições internas

8s MESA. F.I)~ ORTJ1.. 1:. 1'.; l'RADA. 1·1'., Im'~slig(l(.ióny Pmxis "li:atral,!1l ColomlJia. p.73.
44

das forças eru conflito"): "situações" (conjunto de ações. também entendida COIllO
"UJl1 momento da correlação ele forças". que vão se modificando quando estas se
transformam] e, por fim, "ações" ("a unidade básica do conflito e pode conter mais
de UI11 conflito, mas está determinada pela motivação, Se esta muda, a ação muda"]"
Ou seja, parte-se de urna instância maior para UI11a menor: urna seqüência é formada
por situações. e estas, por ações.
Terminada a análise e a divisão da peça. passar-se-ia à etapa da improvisação.
vista CO\l\O "urna primeira abordagem crítica do texto. que resulta na reescritura do
texto sobre o palco por meio de imagens. l~ também urna espécie de jogo'?". Será por
meio ela improvisação que os atores conseguirão se colocar artisticamente ele forma
mais plena. Através dela. suas visões de Inundo, suas opiniões, suas proposições tex-
ruais e cênicas virão à tona. permitindo urna real escritura do espetáculo. Por meio
desta etapa também são trazidas propostas visuais, sonoras, espaciais. etc. Em seu
esquema metodológico, Buenaventura propunha vários tipos de improvísação, que
permitiam se aproximar ou se distanciar desta dramaturgia em construção:

• Improvisação por analogia (ou metafórica): a mais utilizada pelo TEC, por
ser aquela "que se aproxima do texto por meio {da improvisação] ele expe-
riências análogas vividas ou criadas pelo ator". Podem também inventar
alguma "história paralela a que esta sendo narrada", E "em algumas ins-
tâncias. pede-se aos outros atores que não participaram da improvisação.
que contem. sem ncnnuru juízo. o que viram, e destas novas interpreta-
ções se seleciona rnatcríal para novas propostas";
• Improvisação por dissociação: "uma variação da anterior que tem mais a ver
com a organização do trabalho do que COH1 a improvisação cru si. Depois
de proposto o conflito, se fazem as improvisações análogas nas quais se vão
dissociando as imagens que foram encontradas. Então se estabelece uma
ordem elas imagens obtidas mediante um processo de eliminação até se che-
gar à imagem finar'. (Apesar de nossos esforços de pesquisa. faltou-nos um
maior número de elementos ou referências práticas para a compreensão
exata desse tipo de improvisação):
• Improvisação por oposição: "aproxima-se do texto através de urna imagem
de sentido oposto". Também "deixa-se livre a lógica da imaginação e dos
sentidos, e bloqueia- se a lógica analítica". E ainda permite "aos atores se
aproximar do texto seguindo o procedimento ela oposição binária; os COI1-
rrários imediatos corno um meio para produzir sentido. Assim, por exemplo,
a fome se representa por seu oposto. a gula; ou a pobreza pela riqueza":

86 RJZK. H.• BucuewcrHunl: Ia t!rlHnaturgia d~ la crcación colectiva. pp. 112-113.


87 Ibid., p. 113.

------------------------------ -- - - - -- - - - -
45

• lmprovisaçâo por inversão ou contradição: ao invés de se buscar "os pólos


diretamente opostos. procura-se os conrrasensos. Esta contradiçâo do scn-
lido na formação das imagens vem realçar a diferença que existe entre
a realidade e a percepção que dela se tem l...[, cheia de imagens falsas e
distorcidas. Um bom exemplo do impacto que se consegue ao utilizar este
tipo de improvisação seria colocar na boca de um mendigo a linguagem de
um grande chefe burocrata..~g.

Tais formas de improvisação vão permitindo. à medida que o processo caminha,


a seleção do material para a construção da cena e elo espetáculo. É comum também,
os atores se dividirem em equipes distintas de improvisação, cada qual COIU ternas
especificas, proporcionando urna dinâmica onde cada equipe analísará e criticará as
improvisações propostas pelas outras equipes.
Segundo Bucnaventura ainda, "a improvisação não deve ser usada para montar o
texto, mas sim para desmontá-lo'?". o que nos leva novamente a U111a associação com
o "Método das Ações Físicas" sranislavskiano. Nele. especialmente nos procedimen-
tos ela "análise ativa", encontramos urna maneira similar de abordar a improvisação
como um meio de analisar praticamente as circunsráncias e as motivações em jogo.
Corno já dissemos, á influência elo mestre russo tem um peso considerável na formu-
lação metodológica bucnaventuriana.
Outro ponto importante a ser destacado - e que concerne imediatamente â
direção - é que "a improvisação não pode nos dar. tampouco. a concepção da
obra. Tratar de comprovar a concepção que ternos da obra através da i rnprovi-
sação é tão inútil para uma boa aplicação elo método. corno chegar il mont agcrn
reivindicando não ler concepção alguma. c esperando que tal concepção saia elas
improvisaçôes"?". Apesar de ser bastante discutível a idéia de urna concepção que
não possa emergir das improvisações. o que parece estar CIn jogo aqui é. por um
lado. a não utilização da improvisação COIll0 U111<.l "muleta" ou uma panacéia ern
relação à concepção do trabalho e, por outro. o- perigo de sua mera instru rucntali-
zação corno urna forma de comprovação do já sabido - o que anularia o seu caráter
investigatório e analítico.
O próximo passo do método é aquele referente à montagem, e representa "um
n:t01110 ao texto e o seu corejamento C0111 o resultado elas improvísações"'". Segundo
a análise de Mesa e Prada desta etapa, nela "se dá por terminadas as improvisações,
iniciando-se UHl processo de seleção ou decantação das diversas linguagens contem-

88 IUZK, s. mNuc\'o Tenrro


I.cUiuoilmericano: unn leclUra hislóríClL Minneapolis: The Prisma
Inst ituteft'he Instirute for the Study of ldeologies anel Lirerature. J 987, p, 77~78.
89 Cí:SPEDES, F. G. (org.), El·H:atro I.atinonmeriaul:O de Cn.'tJcióu Colectiva. p. 't02.
90 Ibid.• p. 102.
91 Ul7.K. n., Bucuavcntum; l.a f)nullalm-gia de la Cn:aciôn Colcctíva. p. 116 (grifo nosso).
46

pladas no discurso do espetáculo teatral":", Buenaventura discorre sobre três impor-


[antes "retornos" ou movimentos ele revisão do texto:

• "0 retorno à seleção", quer dizer, um corejarnento entre as novas propos-


(as surgidas nas Improvisações com o texto inicial, visando à elaboração de
outra versão e ~l conseqüente reconstrução do discurso cênico ou "discurso
da montagem". Tal cotejameuto remete-nos àquele projeto - não-realizado
- proposto por Górki a Stanislávski:
• "0 retorno às personagens em função de suas relações", ou seja, urna rea-

valiação do papel das personagens dentro da estrutura do texto;


• O retorno à conformaçâolmarerializaçâo elos "diferentes códigos. o sonoro,
o gestual. o visual, o proxêmico", procedendo a sua revisão. além ela realiza-
<;50 de "outras improvísaçõcs. de maquiageru, adereços, coreografia. etc:'. No
momento em que todos esses elementos estiverem revistos e reartículados
- o que poderá também ser feito por meio de comissões organizadas para
esse fim -. acontecerá, então. finalmente. a abertura da peça para a platéia.

Chegamos, portanto, fl última etapa da sisternatizaçâo metodológica proposta por


Buenaventura: a apresentação diante do público, a qual agregarli debates e discus-
sões C0111 a platéia. após as apresentaç ões. Segundo ele. o público devera se colocar
frente ao que foi apresentado, discutindo o que ficou claro ou não. criticando aspectos
ela montagem ou propondo alterações. Nesse sentido "o público se converte cru co-cria-
dor elo espetáculo. pois, por sua vez. vai orientando o grupo sobre novas mudanças que
serão acrescentadas nas versões seguintes"?'. Novas versões ou, até JneSJ110. no limite,
novas peças. Ou seja, a idéia de UJ11 trabalho em processo. continuamcnre em mudança
c nunca concluído, é um aspecto fundamental deste modo de criação.
julgamos pertinente expor, ainda que de forma sintética, a referida metodologia
de trabalho do TEC. por acreditarmos que ela materializaria a proposta ele Buena-
ventura de uma encenação realizada por todos - ou no mínimo. por uma comissão
designada para tal flI11. Na verdade, COlHO jcí foi visto, não apenas a encenação. 111as
todas as outras áreas da criação receberiam semelhante tratamento,
Ainda que seja inegável o poder aglutinador e de liderança de Buenavenrura. per-
cebe-se o seu esforço para coletivizar as funções de criação. O quanto isso se deu na
prática é algo que mereceria U1l1 estudo específico e de maior fôlego.
Contudo, COU1D no caso de Piscator, vemo-nos diante de UI11 grave problema: a
grande dificulda.de para se encontrar os ensaios teóricos produzidos por Bucnaven-
tura - ou por outros integrantes do grupo. I~ lamentável - e, ao lneS1110 tempo, sinto-

92 MHSJ\. F. n: oarrz, J. 1'., lrl\'l:sligl1dôny Praxis TCi!tnd cn Colmnbül. {).73.


I:. 1'.; PKt\l}A,
93 R[7.K. H•• Hut!uavt.'llt1U"a: l.a DrmnutlHbJÍU clt: la Cr(aciárl Colfctiva. p. l t 7.
47

mát íca - a enorme lacuna bibliográfica em relação a U111a experiência tão importante
COll10 a do TEC. E não nos referimos apenas aos títulos em português. Mesmo na

Colômbia, ou em outros países latino-arnericanos são escassas - quando não esgota-


elas - as obras de c sobre Bucnaventura.
No caso do Brasil. COlll exceção de UI11 ou outro artigo, e de raríssimos trabalhos
acadêrn icos'". não encontramos nenhum livro escrito unicamente sobre este grupo
ou sobre a sua metodologia de trabalho. Também não pudemos recuperar referências
a possíveis apresentações ou turnês eu} nosso país, anteriores à morte ele Buenavcn-
tura - ocorrida em 2003.
Porém, gostaríamos de fazer aqui urna pequena digressão, em decorrência da des-
coberta de urna curiosa história. de caráter anedótico. narrada por Herrnilo Borba
Pilho crn relação ao criador elo TEC. Sabe-se que Buenavcntura, no início da década
de 50. após urna conferência em Manaus, viajou para o Recife. Lá permaneceu por
alguns meses. sob a generosa acolhida de Hermilo. que o convidou. ainda. a dirigir
aquele que seria seu primeiro espetáculo "profissional". O encontro desses dois artis-
tas não foi, porém, elos mais tranqüilos. Além de uma permanência mais longa do
que a desejada e de diferenças culturais. metodológicas e estéticas. pesou o rato ela
direção realizada por Bucnavenrura, no Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP).
tele sido lll11 fracasso retumbante. .. . .
No capítulo 10 do segundo volume de sua retralogia aurobiogrãfíca-âcciorial -
iuritu lada Um Cavnlhctro da Segunda Deflulêncin - Herrnilo Borba Filho descreve assim
o seu "hóspede":

Tratava-se de um colombiano alucinado (...) desembarcando no Recife com a roupa


do corpo e urna maleta de papelão onde guardava ires cach irnbos. urna muda de
camisa c cuecas. alguns livros e manuscritos de peças de teatro c poesias. Dosem-
barcara pela manhã, I...) suando em bicas debaixo do sol ardente, mastigando U111

cachimbo cujo ftl1110 ernpestava tudo num círculo de trinta metros em volta,"-

Não bastasse isso. a experiência dos ensaios com Buenaventura, no Teatro do


Estudante ele Pernambuco, também não resultou das mais felizes. segundo o mesmo
relato de Hermilo: ul... J atirou-se ao trabalho. gritando I1l11na mistura de castelhano
e português. exigia horas sem fim de repetição. os atores se irritavam. as brigas SUf-
gíam, mas ele desconhecia melindres e caras fechadas"?", Segundo Luís Reis - jorna-
lista e pesquisador da obra de Borba Filho - a peça aí montada não foi UJn Paroquiallo
Inevitóvel - corno descrito em A Porteiro do Mundo - mas sim, Tr~s Cavalheiros a Rigor.

94 Sugerimos. a propósito. a consulta a duas recentes dissertações de Mestrado. de auto-


ria de Luciana Cristina Magiolo e Marília Carbonari (ver Referências).
95 BORnA FII.IIO. H. A I'01·tl'irct cIo l\ihmdo. Porto Alegre: Mercado Aberto Editora, 1995. p. ~65.
96 tbid.• P.267.
48

t~\lnl>érn deautoria de Hcrmilo, cuja estréia ocorreu em 18 de setembro de 1952. De


acordo com Luís Reis. quando Paroquiauo foi escrita. Buenaventura jti se encontrava
bem longe de Recife - ele também. provavelmente. rraurnatizado com sua rempora-
da pernam bucana.?'
De qualquer maneira, apesar da descrição jocosa. das incompatibilidades culturais
c do malogro da experiência TEP*Buenavenlura - houve apenas cinco apresentações
cio referido espetáculo - Hcrmilo Borba Filho escreveu urna elas personagens de Um
Paroquiano Inevitável inspirado em Buenaventura. além de homenageá-lo, dedicando-
lhe esta peça.
Contudo. ainda continuamos à espera, aqui no Brasil, da publicação de obras que
tratem das contribuições artísticas e metodológicas do criador do Teatro Experimental
ele Cali, capazes de oferecer urna apreciação mais substancial e adequada do grupo.

."

2.3.1.2 TEATRO LA CANDELARIA

Outro grupo modelar de criação coletiva em nosso continente. o Teatro La Can-


ciciaria, surgiu em 1966. em Bogotá. Criado por artistas e intelectuais colombianos..
ele tem em Santiago García e Patrícia Ariza, dois elos seus principais representantes
- ambos atuantes até hoje na manurencão do trabalho do grupo. Apesar de. como no
TEC. ter trabalhado com textos clássicos e com obras de-autoria individuai de drama-
turgos contemporâneos. a contribuição mais conhecida ele La Candclaria diz respeito
às suas pecas de criação coletiva.
Entre elas, poderíamos destacar Nosot.roslos cmnulws (-1972) - que linha o subtirulo
ele COflluneros 1781, sob assumida influência do espeuículo J793, do Théârre du Solcil
~; La ciuâad c;lorcula (1973); Guadalupe a,1os sin cuenta (1975) - o maior sucesso nacional e
internacional do grupo. urna das peças-ícone da criação coletiva Iatiuo-aruericana -~
Los Díez Dias que cstrcmecíeron al Mundo (1976); Golpe de sucrte (198o)~ El poso (1987) - obra
apresentada no Brasil.. no ano 2000, apenas em Belo Horizonte - e Iin la Raya (-1992).
f\ imporrãncia do grupo, para além das montagens em si - C0l11 turnês por roda
a América Latina. Estados Unidos e Europa - recaí também sobre a sistematização
teórica do seu processo de trabalho. Com o mesmo intuito daquele empreendido
por Enrique Buenaventura, Santiago Carcía procurou descrever e desenvolver um
método de criação coletiva. a partir da prática realizada dentro de La Candetaria.
Por esse impulso de metod ízação do trabalho de criação. tanto ele. COlHO Buena-

97 lnforruações recolhidas junco ao pesquisador Luis Reis. quando de nossa participação


em um seminãrto no Recitl! (PE) - II Seminário de Cririca Teatral: o Pensamento c a
Encenaçâo - ocorrido entre 14 e 18 de agosto de 2006, no Teatro Armaz ém.
49

ventura e Augusto Boal ocupam UI11 lugar importante no diálogo teoria-prática. na


América Latina.
Procuraremos, pois. analisar tal proposta metodológica, ainda que o grupo tenha
bastante reservas em nomear COI110 "método" os seus procedimentos de criação -
prefere. ao contrário chamá-los de "renuuivas". Nosso foco. COlHO na parte anterior.
recairá sobre a atuação elo encenador dentro ele semelhante dinâmica coletiva.
A experiência de La Candclaria apresenta ainda outro diferencial ern relação ao
papel da direção. Diferentemente de Piscator e Buenaventura - que defendiam con-
ceitualmente e/ou praticavam a assim chamada "encenação coletiva" - Santiago Gar-
cia raramente deixará de assumir a sua função ele diretor. Ainda que a criação dos
espetáculos do grupo tenha tido a colaboração de todos os integrantes. é a drarnarur-
gia - ou, COlHO também é chamada, a ollto1-ia - que aparece corno cdação coletiva nas
fichas técnicas. não a direção. Esta última, via de regra. é atribuída a Santiago.
Nesse sentido. a experiência do grupo vai se aproximar - sob o aspecto da erice-
nação - do que denominamos hoje processo colaborativo. Foi por essa razão que
resolvemos tratar ela experiência de La Candelaria S0111ente agora. corno U111a última
etapa - ou mesmo <:01110 urna transição - antes de iniciarmos o estudo propriamente
dito sobre o modo de criação colHhonHivo.
Nossa investigação torna corno base a análise dos procedimentos de trabalho pro-
postos por Santiago Garcia em seu livro Temia y PracHca dd 'IecHro~:\.
Para Carcía. o ator. dentro de uma perspectiva grupal, deve ter a sua ação ampliada,
funcionando não apenas corno criador, mas rambérn C01110 administrador e divulgador,
Este ator versátil. COIU múltiplas funções. dentro e (ora elo processo ele criação. institui
outro paradigma no contexto teatral de então. COllLUC!O. para este "novo tipo de ator"
- advoga Garcia - não existem ainda escolas de formacâo habilitadas. devendo ser O
próprio grupo o espaço pedagógico adequado para este fim. Além disso, numa criação
coletiva. o ator seria responsável por UIl1 texto gcstual que complementaria o texto lite-
rário. Ou seja. ele é responsável pela invenção de imagens e de soluções cênicas para o
espetáculo.
Em linhas gerais, a metodologia ele criação apresentada - ainda que varie ele peça
para peça - traz alguns elementos recorrentes:

Busca do terna - O terna é o assunto fundamental ela obra. que no início elo pro-

98 Esta obra encontra-se traduzida para o português pela editora Hucitec, porém a tradu-
ção realizada é a da primeira ed ição da obra. lançada em 1983. Santiago Garcia produ-
zirá duas nOV<lS edições, ampliadas c revistas, a primeira em 1989. e a segunda - que
utilizamos COlHO base dessa pesquisa - em 1994. Sugerimos aos interessados que adqui-
ram esta terceira edição da obra. disponível apenas em espanhol. Mais recentemente,
em 2002. Santiago Garcia lançou o Temia y Prciclica del Tetltt'o I/. As indicações técnicas
dessas obras encontram-se descritas nas Referendas, ao final do presente trabalho.
50

cesso encontra-se vago e genérico. para então. a partir das futuras improvisações e
elaborações termais. ir ganhando contornos mais definidos.
Definição do argumento - para o grupo. o argumento constitui o conjunto de
razões c explicações do tema. I? a maneira corno ele é desenvolvido e fundamentado,
ou seja. é a justificação do rema. Em outras palavras. "o argumento é a forma corno
se apresenta o terna. Equivaleria à forma elo conteúdo. enquanto que o terna é a subs-
tüncia do conteúdo"?'.
Encontro da motivação - etapa que define o caráter coletivo do trabalho. na
medida em que a proposição do projeto não vem do diretor ou de algum membro
especifico da companhia. mas nasce de urna vontade coletiva do grupo, aliada ao
contexto histórico c à realidade em que o I11eSlllO se encontra inserido. Os elementos
subjetivos e intuitivos têm um peso preponderante nesta fase.
Realização da investigação - etapa mais científica c objetiva . caracterizada
pelo estudo. levantamento e análise do material pesquisado. I~ C0111U111 aqui o gru-
po se dividir em equipes especificas a fim de contemplar diferentes áreas relativas
ao processo ele investigação (equipe responsável pelo levaruamcnro de material cru
jornais e revistas; equipe destinada à coleta ele obras literãrias relativas ao terna:
equipe dedicada à pesquisa do material musical. etc.], Vários estudiosos e especia-
listas acadêmicos também são convidados pelo grupo para auxiliar no aprofundá-
monto do material.
Etapa das improvisações - momento no qual o grupo começa a experimentar e
a reatralizar elementos escolhidos de toelo o material pesquisado até então. Segundo
Garcia. "o grupo esui saturado de informações c. neste momento. começa a traduzi-las.
a elabora-las através de improvisaçõcs'"?", Também aqui. a companhia pode se dividir
CU) diferentes equipes de irnprovísacão. responsáveis. cada uma, por problemas ou

assuntos dist intos. Ao final desta etapa, o grupo chega à elaboração de um novo mate-
rial, só que agora. teatralizado.'?' Garcia chama atenção também para a im portãncia
do caráter sempre renovado ele condução das improvisacôes. Segundo ele. "cada obra
exige urna técnica ou uma forma diferente de fazer as improvisações. N~10 pOclC1110S
nos contentar COIl1 fórmulas de improvisaçâo resultantes de trabalhos anteriores. ou
COIl1 esquemas de trabalho produzidos por outros grupos"!". I~ curioso C01110 tal afir-
Inação parece denotar discordância ou crítica ao método bucnaventuriano.
Hipótese de estrutura - fase de conformação elo argumento c de delimitação do

99 Gt\Jtci,\. s. 'lcmia y Pnlctica cid Tt."urro. 3,1 ed. Santafé de Bogotá: Ediciones Teatro La Cande-
laria. 1994. p. 34.
100 lbid.• p. 39.
1 01 í~ importante ressaltar que o grupo experimentou t..rmbém, CI11 outros processos de
crlnção, mesclar as etapas de busca do terna. investigação c improvisação, fazendo-as
ocorrer símulraneamenre.
102 GARCiA. s.• op.or., p. 41.
51

terna. Equivale ao primeiro momento de sínteseJ e de elaboração estrutural elo material.


Se a etapa anterior se caracteriza pela ênfase em ímprovtsacõcs analógicas - marcadas
por elementos merafóricos - esta. ao contrário. será baseada CI11 improvisações "do
argumento", ou seja. destinadas à construção elo argumento geral. Aqui ocorre tam-
bérn a determinação das linhas temáticas - os assuntos que serão tratados em todos os
quadros e cenas do argumento geral -- e a definição das linhas "do argumento", COI11
o seu conseqüente entrelaçamento com as linhas temáticas. EIl1 geral. parte-se da pri-
meira hipótese de estrutura para. no final desta fase, se conseguir chegar a urna segun-
da hipótese de estrutura - mais bem definida e concatenada.
Montagem e texto definitivo - resultado direto da segunda hipótese de estrutura.
esta etapa compreende dois planos: o operativo e o textual. O primeiro diz respeito a
todos os elementos cênicos tais corno música, figurinos. cenografia, etc. e o segundo
à dramaturgia e às falas propriamente ditas. De maneira semelhante ao que ocorreu
anteriormente no processo. o grupo também se divide em comissões específicas: urna
ele música, outra de figurinos e cenografia. e urna terceira dedicada à dramaturgia (U _.•
[que] vai recolhendo os diálogos que aparecem nos ensaios e nas improvisações e. U111a
vez elaborados - escritos - os apresenta ao grupo para que sejam discutidos e. o mais
importante, ensaiados."lOJ). Esta comissão ele texto pode convidar UI11 escritor ou poeta
para com ela colaborar. ou pode ser composta por U111 número reduzido de integrantes
elo grupo. Um dado importante a ser mencionado é que a elaboração do plano operativo
se d á concomitantemente ao plano textual - ainda que este último seja o derradeiro
elemento a se concretizar'?'. Corno no caso do TEC. o texto também será modíficado
pelos comenrarios dos espectadores. após as apresentações. Ainda ele acordo com Garcia.
nesta dinâmica entre os dois planos reside a característica mais importante da criação
coletiva: "a criatividade no plano operativo. determinante do plano textual, é resultado
do fato ele que o terna foi investigado em profundidade pelo coletivo"!".
l~ importante lembrar que. apesar de estarmos estudando alguns princípios meto-
dológicos de criação de La Candela ria. esta metodologia não esrã dissociada de uma
militância política - tal corno vimos em Piscator, Para Santiago Garcia. "a práríca
da criação coletiva permitiu ao nosso grupo compreender com mais amplitude a
enorme importância de saber relacionar a práxis artística com a práxis política"!".

103 Cr:\RcL-\. s •• TC!Ol-itJ)' Pracliccl deI Ta:alro. p. 46.


104 Jl claro que o plano textual poderá nunca apresentar urna cristalização definitiva. no
C41S0de se tratar de urna PCÇ~\ corri estrutura aberta. onde está pressuposto uma cons-
tanto Improvisação dos atores. Segundo Careta. o texto aqui funcionaria COlHO um
canOVllCÔO de commedia ddI'arr(!. ou seja. (On1 uma escritura aberta. oral. E curioso que
Luís Alberto de Abreu, na elaboração de urna drmnaturgia relacionada ao processo co-
laborativo, também utiliza o termo cano\'m,·cio. porém corno UU);'l etapa intcnncdiãria
de desenvolvimento para uma versão final do texto.
tOS CARC[,\. s.. 0I'. dL. p, 47.
106 lbid.• p- ~t8.
S2

Ele chega. inclusive. na conclusão de seu livro, a afirmar que "'...) resolvemos nos
arriscar a criar (inventar) nós 111eSI110S nossas próprias obras. não corno resultado de
urna pose estcticísta. mas sim movidos pelas exigências elo momento. AssiJ11 nasceu
a 'criação coletiva- ern nosso país'"?",
Ou <linda, ao final da descrição do processo de trabalho de seu grupo, Garcia rei-
tera que "as possibilidades criativas do grupo dependem da capacidade criativa dos
indivíduos que o conformam e, por sua vez. eles estão determinados pela capacidade
do grupo em apreender a realidade:"?",
Dentre os princípios norteadores do percurso da criação dentro de La Candelaria,
vale a pena destacar

'...}o conjunto do processo corno lIJU fenômeno no qual o gnlpo se apropria paula-
tinamente dos terrenos de privilégio do autor c do diretor teatral COl1)O individuali-
dades criadoras do texto e do espetáculo. Queremos ressaltar novas possibilidades
de relação entre o autor (seja o grupo. ou urna com íssão - COJno CIl1 La Candelaria
- ou UH) dramaturgo - corno é o caso de Enrique Buenavenrura c o TEC). o diretor.
o ator e o público.'?"

Onde, porém, as experiências processuais de La Candelaria se aproximam ou


apontam para aquelas relativas ao processo colaborativo? O ponto-chave está na pre-
sença de 11111 especialista ou de alguém que aSSUJllC a responsabilidade sobre uma
determinada área ele criação. num momento específico da montagem. Ou seja. na
primeira fase do processo. o grupo desenvolve todas as áreas artíst ícns coletiwuncllLc.
para então, IHII11 segundo momento, convocar, eleger ou conceder \.11na determinada
área para um colaborador. que passa a responder por aquela função. De acordo com
Carcia, "as etapas ele investigação e criação da hipótese da montagem se realizam em
conjunto, e na etapa final se requer urna divisão de trabalho eI11 especializaç(j(}s" 1 l0.
Nesse sentido, o processo de La Candelaria se estrutura de forma 1111sta. conjugando.
num primeiro momento. um desejo - e uma prática - de polivalência arrísuca C de apa-
gamento das funções - marcas características da criação coletiva - com UI11 momento
posterior onde as [unções são restabelecidas - tal C01110 no processo colaborativo.
Outro ponto semelhante é UI11él coordenação geral do trabalho a cargo do diretor
ela companhia. Ainda que o grupo pesquise coletivamente ou se divida em várias
equipes ou comissões. todas elas sofrem uma supervisão por parte do diretor. Dife-
rentemenre do TEC. o qual se propunha a U111(\ encenação coletiva. a presença ele
Santiago Garcia enquanto diretor do grupo foi uma constante na trajetória de La Can-

107 GAltcí,\. s .. ll-oriCl y Pmclica clt:! ·1t.'aLro. p. 265.


108 lbid.• p. 49.
109 Jbid.• 1'. 50.
1 to lbid.. p, 56 (grifo nosso).
53

deIaria - ainda que tenha havido momentos onde outros membros do grupo experi-
111cntaran1 o ofício ela direção.
É claro que o diretor aqui não se coloca - e nem é considerado - COlHO o principal
criador. O simples fato da existência de um período do processo em que todos criam
tudo, j<l relat ivizn todo o espaço das autorias e enfraquece a existência de-hierarquias.
Pois. "3 posição do autor [dramaturgo] C01110 executor do texto (autor-texto) sofreria a
transformação ator-texto e. em segundo lugar. a relação diretor-montagem teria que
submeter-se a semelhante reconsideração'"!'.
Em suma. tanto o texto corno a montagem seriam criados ern parceria pelo drama-
turgo. diretor e atores. cabendo a estes artistas. nU111 1l10111ento posterior do processo.
a finalização e o acabamento em suas áreas específicas. Ainda assim - o que difere um
pouco cio processo colaborativo - cada urna dessas funções. cada U111 destes especialis-
tas. continua tendo que se submeter ao trabalho coletivo da subcomissão ou do grupo.
Daí a posição de Garcia CIl1 defender a não-autonomía dessas funções. Além
- C01no acabamos ele ver - da submissão da criação individual à deliberação do cole-
tivo, ele arguIllcnta sobre a inegável existência de complexas ligações e de 111ÚlU<lS
dependências entre ator. diretor e dramaturgo. Portanto. não faria sentido advogar
qualquer autonomia criadora das diferentes áreas teatrais.
Ele aponta, porém, com lucidez, a preponderância de U1113 função sobre outra. de
acordo com o momento do processo. Por exemplo, o dramaturgo teria urna atuação
mais acentuada no momento final da etapa elas hipóteses de estrutura c logo depois,
na consolidaçâo da primeira versão da pc<;a. Ou ainda. certo privilegio elo ator Cl11 rcla-
cão ao dramaturgo c ao diretor, corno provocador das transfonuacõcs textuais. a partir
elo 11lOlnCIHo em que () espetáculo é apresentado e discutido pelos espectadores. Mes-
1110 que o diretor continue trabalhando sobre a montagem c que o dramaturgo possa
recolher c modificar o material surgido nos debates COIll o público. é o ator quem. ele
fato. lidera tal confrontação. sendo ele o responsável para se chegar ao segundo texto
ela B10l1tagC111 - o que equivaleria ao texto final e definitivo. ou algo próximo disso.
Beatriz Rizk. ao estudar os processos de criação do grupo apresenta distintas meto-
dologias de trabalho. que variam de acordo C0111 o momento e os objetivos ora em
questão. Por oxeruplo, na elaboração da peça Diálogo Del Rebusque (1981). foi a partir
de um texto escrito na íntegra pelo diretor do grupo. Santiago Garcia. que os atores
foram convocados a criar - neste caso. não mais o texto. 111aS a montagem em si.
j(í ern Golpe: ele Suerre, a partir de 111na investigação inicial conjunta. realizada por
todos os integrantes. houve urna divisão do grupo CIn três equipes de trabalho. para
tratar dos diferentes aspectos da montagem (música: dramaturgia e cenografia e figu-
rinos) C0l11 a ajuda de especialistas. Estas equipes recebiam urna coordenação geral
por parte de Santiago Carcía.

111 G:\I~c:i:\. s.• 'l~ori(l y Prurtíru dcl Teutro, p. 60.


S4

Um terceiro método experimentado em La Caudelaría trouxe ainda outra forma


de confecção ela dramaturgia. Após os períodos de investigação do terna c das subse-
qüentes improvisações. cada ator foi convocado a escrever a sua própria peça. Toda a
equipe. então. escolheu aquela que melhor convinha ao coletivo.
De qualquer forma, independentemente das variações de metodologta aplicadas. jri é
possível perceber o "lugar" cioencenado!" dentro do coletivo, desde o Estúdio Piscator até
O La Candelaria. Para o diretor alemão, por exemplo, havia urn projeto de coletivização
da encenação dentro do Estúdio. O diretor individual, ainda que ali existisse. abdicava de
vários de seus atributos em prol da emancipação do coletivo. Daí. ser mais apropriado
descrever tal fenômeno utilizando-se o termo "encenação coletiva".
Os grupos de criação coletiva da década de 60 c 70 - incluindo aí o TEC, de Rue-
naventura - vão perseguir modelo semelhante. porém, ampuando-o para todas as
áreas de criação - e não apenas na direção. Nesse sentido. eles foram ainda mais
longe. radicalizando o projeto de Piscator, Porém, sofreram todo o tempo UHl dilema
entre o discurso colctívizante e a existência de lideranças individuais não-assumícías.
O próprio Buenaventura, por sua presença e força dentro do grupo. é UI11 exemplo
inequívoco ele tal contradição.
J~i no caso de La Candelaria. através das diferentes "tentativas" do grupo. houve a
experimentação de estratégias ele retorno à manutenção das funções artísticas. Isso.
contudo. sem pôr em risco a dimensão grupal. Nesse sentido. o papel do diretor - e
dos outros criadores - permanecia garantido desde que ele se mantivesse em perrna-
ncnte negociação c consonância COIll o coletivo.
Partimos. pois. de um diretor "enfraquecido" ou cuja função se encontrava em
processo de dituição (Piscator e TEC) para \11'n diretor sub judice, condicionado pelo
grupo (La Candclaría).
Apesar desta última perspectiva não ter sido a única adotada pela companhia
colombiana. transformando-a CI11 seu JUOâU5 operaudí, tal abordagem abriu caminho
para urna reavaliação do "rodo-mundo-faz-tudo". e reconfigurou o lugar da função
artística individual dentro de sua prática coletiva. Ou seja, estamos a UHl passo do
processo colaborativo e da reinstauração do cncenador individual - e dos outros indi-
víduos-criadores - corno partícipe de UHl coletivo de criação.
Ao olharmos esta trajetória, seria incorreto pensar o processo colaborativo corno
urna espécie de continuação, de desdobramento, de "reterritorializnçâo" da criação
coletiva? Na defesa desse argumento podemos invocar a análise de Mesa e Prada
quando afirmarn que

a criação coletiva foi gerando novas dinâmicas durante os últimos anos da


(... 1
década de oitenta. ele onde se pode avaliar uma uorãvel qualificação através do
desenvolvimento das especializações em alguns campos espccifícos. corno no
G1SO do dramaturgo c do encenador, E tudo graças ao permanente fluir dessa.
55

relação dialética do trabalho coletivo. aonde diretor. atores c demais irucgrant es


da equipe se vão trcinaudcfpveparando até conseguirem convergir p,lra urna cspe-
cializl1(âo.1 t:!

Portanto, seja corno um movimento interno de desdobramento dentro ele seu pró-
prio percurso. seja corno exceções - ou 1110111entos de exceção dentro de urna deter-
minada trajetória artística grupal -, é problemático definir a criação coletiva apenas
por meio ela supressão das funções e do "todo-mundo-faz-tudo". Incorremos, se assim
o fizermos, no risco de generalizações amplas demais ou na manutenção de visões
reducionistas que se consolidaram através do tempo.
Contudo, se é importante, por um lado, ressaltar que o m()dlL~ opel·auc1i de algumas
cOlllpanhias teatrais latino-americanas t.enha se diferido de outras da mesma região e
de suas congêneres européias e americanas. por outro lado. este 1110do particular de
criação não foi hege111õnico. Isto é, houve vários grupos, corno vimos anteriormente.
onde a autoria individual era Inativo de crise ou desconforto. e tratada C0I11 reservas.
É claro que. em algumas dessas experiências. parecia existir UI11 receio ou confusão
entre "função individuar' e "cstrclísrno", além de grupos que viam a permanência elo
autor personalizado C01110 resquício de U1l1 teatro "burguês" e "anri-revolucionárío".
Recusava-se, na verdade. a "especialização" ou a "proflssionalísmo' dentro elos moldes
burgueses de distribuição dos papéis de trabalho. Sob essa ótica, a criação individuali-
zada era vista COlHO inimiga ou corno elemento inconciliável C01l1 a criação grupal.
Daí porque. via de regra. o processo e o resultado criativos eram coletivizados pelo
grupo todo ou realizados por equipes reduzidas - que funcionariam COI110 pequenos
coletivos dentro de UH1 grande coletivo. Tal dinâmica configurou - COlHO jri vimos - urna
prática e/ou um discurso de negação ou de enfraquecimento da autoria individualizada.
Nesse sentido, não nos parece que o processo colaborativo se configure COlHO
uma mera cópia ou U111 rcvival da criação coletiva. Não se [rala de UH) mesmo
fenômeno. apenas alcunhado de forma diferente. Ainda que ele se constitua corno
urna decorrência. um desdobramento ou uma reconfiguração daquela experiência
da década de 60 e 70, o que está em jogo não é apenas urna mudança de nome.
MeSI110 se os termos criação coletiva e processo colaborativo podem ser considerados
Ul11 tanto vagos e imprecisos. os processos ~lOS quais eles remetem circunscrevem
U111 1110(\0 específico e peculiar de criação. Passemos, pois, a fim de melhor inves-
tigarmos esta hipótese, <I discussão sobre o processo colaborativo e a função do
cncenador dentro dele.

lI:? MESI\, F. D; ORTIl. F. I'.; l'(V\DA, J. ('., 11lv~stig(1(,ión y l'nlxis Tl.'cUral en Colombill. p.74.
56

3 PROCESSO COLABORATIVO: ABORDAGEM TEÓRICA

"lvhtllídâo mlv é IJl!m ~nc{Jntro da íiI~lllidadcf Ul'Hl pura c:adr(l(clO


das diferenças, nms é f) nxoll1zecímcnlo de C1IW, 11()J" trás de idcnti-
dacks c cllfenmças, l'ml(' existir 'al.go comum', sempre que de seja
ell tendido como prolifcl·ação de atividades criativas, rd{lçõ(~s ou
!0111WS associariw2s clife"l'ntt~s."

{Antonio Negri. Cinco Li~·õr!s sobre (I hl1pério)

Num dos primeiros textos escritos sobre o processo colaborativo, Luís Alberto de
Abreu observa que ele. enquanto fenômeno. "provém em linhagem direta ela chama-
da criação coletiva". mas, por outro lado. Ué necessário que se preserve as funções de
cada artista"}. Advoga que "de uru lado existe total liberdade de criação e interferên-
cia, mas de outro é vedado a U111 criador assumir as funções do outro. Ou seja. um
ator pode discutir. sugerir mudanças, propor diálogos ou até IneSI110 escrever uma
cena, no entanto é o dramaturgo que deverá fazer a organização desse material">, Ao
final de sua reflexão. Abreu chega mesmo a postular que "sem hierarquias desne-
cessarias, preservando a individualidade artística dos participantes, aprofundando a
experiência ele cada um, o processo colaborativo tem sido urna resposta consistente
para as questões propostas pela criação coletiva dos anos 1970":1.
Se a reflexão ele Luís Alberto de Abreu nos fornece algumas pistas para a compre-
ensão do referido fenômeno. gostaríamos de acrescentar a elas algumas considera-
ções advindas da nossa própria experiência de criação no Teatro da Vertigem. cuja
prática também é denominada pelo grupo processo colaborativo.
Conforme expresso CI11 nossa dissertação ele mestrado, "tal dinâmica (...( se consti-
tui numa metodologia ele criação em que toelos os integrantes. a partir de suas funções
artísticas específicas, têm igual espaço propositivo, sem qualquer espécie de hierar-
quias. produzindo UI11a obra cuja autoria é compartilhada por todos?", Hoje. contudo.
acreditamos que melhor do que "ausência" de hierarquias. seja mais apropriado pen-
sarmos ern hierarquias momentâneas ou flutuantes. Iocalizadas, por algum Il10111en-
[0, em U111 determinado pólo de criação (dramaturgia, encenação. interpretação, etc.)
para então. no 11101l1ento seguinte. se mover rumo a outro vértice artístico.
Antes de prosseguirmos. contudo. é importante ressalvar que tanto pela ausên-
cia de distanciamento histórico quanto pelo fato de nossas criações artísticas se

1 ..\mn~u. L 1\."Proccsso Cotaoorarivo: relato e rcítcxõcs sobre uma experiência de críação".


In: Cculemos dei 1:1.T. Ano I. Número o. Março de 2003. Santo André. p. 3..1.
2a Ibid.. I>. 40.
3 Ibid., p, 41.
4 SIJ.VA. A. C. A., 1\ Gênese ela V~t1igt:m: o Processo de C,i{!~·ào de 'O Pnmlso l'~nlicJo'. p. 101.
S7

realizareIn no àrnbito do processo colaborativo. a aruilise deste fenômeno encon-


t ra-se atravessada por estes condicionantes. Se tal C0111IH·0I11ctilnento. por um lado.
interfere numa analise crítica mais imparcial, por outro. ele faz emergir urna visão
de dentro. permeada por quem a pratica no seu cotidiano de criação. Ou seja. esta-
1110S diante de perdas e ganhos inevitáveis. mas que necessitam ser levados ern
consideração.
A expressão processo colalJorativo C0I11CÇOU a ser usada na segunda metade da déca-
da de 90 dentro ele UI11 contexto de retomada elo movimento de teatro de grupo na
cena paulistana. O retorno desta perspectiva grupal, que aparece quase corno um
contraponto à hegemonia do encenador no teatro brasileiro da década anterior. vai,
pouco a pouco, ganhando urna dimensão nacional. Não que os gl1.1pOS tenham deixa-
do de existir após a década de 70 - entre outros coletivos importantes e atuantes nes-
se período. poderíamos destacar o Grupo Galpão) o Imbuaça, o Ponkã" ou ainda o ót
Nóis Aqui Traveiz - luas o forte da produção teatral nacional orbitava ern torno dos
cnceriadores. São. desse período, montagens importantes de Cerald Thomas. Ulysses
Cruz. Bia Lessa, Gabriel Vilella, entre outros.
j\ palavra "colaborativo" era usada também por companhias estrangeiras que tra-
balhavam num regime de compartilhamento da criação, corno era o caso do grupo
britânico Out: of ]oint.. dirigido por Max Sttaford-Clark ou a novaiorquina SITI Com-
pany, dirigida por Anne Bogart. POréIl1, referiam-se ao seu 1110do de criação corno
collalJoraUve \vork (trabalho colaborativo),
No contexto nacional. o termo foi usado por grupos COlHO o Vertigem, Cia dos Ato-
res, Grupo Galpão, Bendita Trupe. Argonautas. Cia. Livre. Grupo XIX, Maldita COJl1pa-
nhia ou a Cia. Luna Luncra, entre outros, Ele foi adotado tan1DCIH C0111Q instrumento
pedagógico nos cursos de formação da Escola Livre de Teatro de Santo André c no
Departamenro de Artes Cênicas da Escola ele Comunicações e Artes da USP.
No caso dos grupos.. o termo foi sendo empregado de maneira informal, sem o
caráter programático de "manifesto" ou "bandeira". COI110 urna forma ele nomear
urna retomada da perspectiva compartilhada de criação. Contudo. havia o desejo de
não associar diretamente essa retomada ao modo de realização da criaçâo coletiva.

5 o pesquisador luis Fernando Ramos. em conversa coru o autor deste trabalho. levanta
~ hipótese desse importante grupo paulista da década de 80 - do qual fizeram parte,
entre outros. Luiz Roberto Galizia. Paulo Yutaka, e Alice K. - ter realizado a "passagem"
ou mesmo se constituir em espécie de "antecessor" do processo colaborativo, Segundo
ele. o Ponkã apresentava "uma sotisticação que repropunha o trabalho coletivo do fim
dos anos sessenta aliando ao rigor já praticado, por exemplo, pelo Oficina, .... dispostçãc
de rnetodicamenre canalizar as energias criativas do grupo no sentido de voltar a fazer
proposições estéticas e de linguagem. projeto que o histórico grupo dos anos sessenta
abandonaria definitivamente depois de GmrilIs Ser101'. em favor de UJJla aruação mais
política e existencial que já ocorria fora do teatro. O Ponkã aliava essa proposta coletiva
à necessidade de U1l1 encenador forte. mas sem personalismo. que tinha a idéia de cons-
[ruir COll1 a energia do grupo todo, tanto o material dramatúrgico quanto cênico".
58

Por exemplo, dentro do Teatro da Vertigem. existia urna recusa ela idéia do "todo-
rnundo-Iaz-tudo", do "obaobísmo", dos "espetáculos de expressão corporal" associa-
dos àquele 1110do ele criação das décadas de 60 e 70. Ainda que tal recusa fosse fruto
de urna visão reducionista ou preconceituosa - compartilhada por vários outros gru-
pos de então -. havia urna clara motivação de restabelecimento do discurso coletivo
em contraponto ao teatro de diretor.
Se. por um lado. parecia haver um projeto de retornada de princípios e valores
da criação coletiva - porém. praticados ele maneira distinta -, por outro, havia urna
recusa da "década dos encenadores", sem, C0111 isso, pretender abolir a função ou
a figura do diretor. Quase corno se o processo colaborativo pudesse realizar urna
síntese do discurso e da ideologia coletiva COll1 a permanência ela função artística
individual.
Urna consideração importante a ser feita é que os termos tcntro de grupo e processo
colal1orlllivo não são necessariamente sinônimos. Ainda que, desde meados da década
de 90. presenciemos urna retomada C um fortalecimento do movimento de reatro
de grupo - que vem marcando a cena contemporânea brasileira até agora -. existem
vários coletivos teatrais que não trabalham - ou que não clcnorninam seu processo de
criação - dentro de parâmetros do processo colaborativo,
Tal distinção também poderia ser feita em relação ft criação coletiva. Só para ficar-
mos no âmbito brasileiro, se grupos corno o Pocl Minoga, o Asdrubal Trouxe () Trorn-
bane, o Sonda. o Teatro União e Olho Vivo ou o Núcleo Independente podem ser facil-
mente associados ~) criação coletiva, outras companhias importantes corno o Arena
e o Oficina apresentavam processos de trabalho distintos - ainda que. vez ou outra.
tenham flertado com a criação coletiva, C0l110 foi o caso elo Oficina na montagem do
espeuiculo GnlciCl$ SeiifW.
Poderíamos realizar, antes de qualquer coisa, e corno primeira abordagem teórica,
UHl exercício de pensar o processo colaborativo por diferentes aspectos ou (111 b'1l1os. Vísua-
lizarnos quatro possíveis recortes. a saber: COIll0 modo de criação, C01no metodologia de
trabalho. COlHO modo de produção e corno resultante estética.

3.1 PROCESSO COLABORATIVO COMO MODO DE CRIAÇÃO

De maneira geral, o processo colaborativo é visto COll10 um método, tanto por


profissionais da área quanto 1)01' estudiosos de teatro. Ora. se os métodos são carni-
nhos, diretrizes operacionais, que podem ser rígidos ou abertos. enquanto os modos
são a maneira de colocar em diálogo. de inter-relacionar os diferentes elementos
na construção dei obras será que não seria revelador pensar o processo colaborativo
59

tan1lJén1 a partir elo seu modo de fazer? Ou melhor, estudá-lo à luz desse biriôruio
mctodo e modo?"
Tal perspectiva pode nos ajudar a entender o porquê algumas pessoas advogam,
de maneira ferrenha. que processo colaboraf'ívo e cJiaçiio coletiva são denominações dis-
tintas para uma prática que seria a mesma. Talvez a defesa da equivalência desses
dois termos esteja baseada ern UH1 tipo de visão que os pensa enquanto l1rétoc1o. E. ele
fato, por seu fazer coletivizado, por sua diretriz dialógica. pode-se, sem incorrer em
erro, pensá-los geminadamentc.
Contudo, se olharmos para essas duas dinâmicas pelo viés do 11lodo, perceberemos
que o COl110 se opera a inter-relação entre os diferentes elementos de criação produz,
aqui, processos distintos. Por exemplo, o diálogo ocorre entre funções j<l definidas e
assumidas desde o início. O trabalho de criação só se inaugura. ele faro, a partir desse
pacto previamente estabelecido. Ou seja, o grupo. por meio de un\ consenso - ou
endosso - define a ocupação de cada área artística, segundo o interesse e a habilidade
dos integrantes ou convidados. É claro que. em muitas das funções, tal decisão nem
se faz necessária, na medida em que é C0I11UIl1 a permanência e a continuidade dos
colaboradores, de um projeto para o outro.
Se. em relação às personagens, não é rara a existência de urna etapa. dentro dos
ensaios. C1n que todos os atores exploram todos os papéis. o mesmo não ocorre em
relação às funções. Ou seja, não ha um período em que todos os integrantes expe-
rirneutarn todas as funções - ou em que elas são deixadas em aberto por um tem-
po - para. só então. haver a definição de quem fará a cenografia ou a dramaturg!a.
Sabemos, por exemplo, que em algumas práticas de criação coletiva. quando ocorria
algum tipo de definição de ~1tribuiçào. ela só se estabelecia muito tempo depois de
- -iniciados -os ensaios.
Além disso, da forma corno praticada pelo Vertigem até agora. a criação não tem
se caracterizado pela mobilidade de funções. Porém nada impede que isso aconteça.
Pois, se essa mobilidade ocorrer de um projeto para outro - e não dentro de U111 mes-
1110 espetáculo - não há a descaracterização do processo colaborativo, Por exemplo..
não haveria nenhum problema de UI11 ator elo grupo numa determinada peça, vir a
se tornar o dramaturgo ou o diretor na montagem seguinte.
Nem 111eSlnO a sirnultaneidadc ou conjugação de funções dentro de U111 ruesrno
projeto, apesar ele se constituir numa situação mais complexa, inviabilizaria a prática
do processo colaboratívo. Tudo iria depender de quais funções seriam assumidas pela
mesma pessoa e da capacidade do grupo em gerenciar urna situação assim.
Se a horizontal idade das funções é uma regra básica de funcionamento desse
1110c!O de criação. é inegável a revalorização do ator COIllO um criador em pé de igual-

6 Essa definição - e discussão - de "método" e UIl10do" foi apresentada pela Prof",


Mônica Baptista Sampaio Tavares. na sua disciplina de Pós-Graduação denominada
"Processo Criativo c Metodologia", por nós cursada 110 1° semestre de 2005.
60

dade COIll o dramaturgo e o diretor. A sua função autoral, muitas vezes encoberta ou
restrila à execução técnica de determinada personagem, fica potencializada no pro-
cesso. Na prática. no instável equilíbrio de forças da sala de ensaio. a dramaturgia e
a direção parecem "perder" seu caráter de onipotência e onisciência. abrindo espaço
para uma interferência autoral forte por parte dos intérpretes.
Outro aspecto importante diz respeito à síntese final. Se, na criação coletiva, a
autoria individual - quando ela ocorre - deve estar submetida à vontade grupal, aqui
ocorre U111 tensicnamento ao limíte entre estes dois pólos. Isto porque o artista res-
ponsável por urna área relu a palavra final sobre ela. Parte-se do pressuposto. é claro.
que ele irá discutir. incorporar elementos. negociar C0l11 o coletivo - durante o tempo
que for necessário -. porém, no caso de algum impasse insolúvel, a síntese artística
final estará a cargo dele.
Aliás, toda essa dinâmica de negociações é causa principal da dilatação do tempo
de ensaio. Gasta-se - e não "perde-se" - muito tempo em debates e na busca ele solu-
ções em que todos se reconheçam. A criação se torna mais lenta e distendida. o que
pode se tornar UI11 elemento de desgaste nas relações. a longo prazo. Por outro lado.
é muito difícil o amadurecimento de UI11 discurso coletivo. de forma orgânica e cons-
ciente. sem ser por essa via.
A existência de urna forte autoria individual cria um importante pólo tensiona-
dor em lllll processo marcado por inúmeras interferências e contribuições. Ele tanto
favorece a filtragem c seleção do vasto material produzido quanto funciona corno
um eixo aglutinador das proposições grupais. Se. por UI11 lado. ele age corno urna
barreira. um limite. uma fronteira. por outro, ele facilita e estimula a interlocução e
a expansão elas zonas ele colaboração.
Esse pólo criador individual- por paradoxal que pareça - acaba também acirran-
elo o posicionamento grupal, Ele provoca uma tensão produtiva. ou até mesmo UIl1
- ---- .anragouísmo. que Iortalece o próprio grupo e o conceito-geral que o n1<.~SnlO tem elo
trabalho - ainda que por via ela crise e do conflito. Por outro lado. as individualidades
também saem fortalecidas por essa dinâmica ele confrontos, díãlogos e negociações.
presentes dentro do processo.
Aliás, poder-se-ia pensar a "crise" não apenas corno uma conseqüência à qual o
grupo está necessariamente fadado. ]11aS C0l110 um mecanismo implíciro e impul-
sionador em processos desta natureza. Ou seja. a sua deflagração pode ser vista não
COl110 uma reação espontânea e indesejada. mas corno urna ação rransformadora.

produzida pelo próprio processo.


É possível ainda analisar o processo colaborativo à luz dos elementos de subordi-
nação e coordenação. Em um teatro mais tradicional. com hierarquias rígidas e bem
definidas - muitas vezes, inclusive. demarcadas por clãusula contratual-.. as relações
internas de trabalho estão submetidas a UI11a pirâmide de subordinações. Por exern-
plo, o ator se submete às indicações do diretor.. que por sua vez se submete às indica-
61

ções elo dramaturgo e, lodos juntos. se submetem aos parâmetros cio produtor. Ou. se
ao contrário, o espetáculo órbita em torno de UI11 determinado ator. essas linhas ele
dOlninaç<10 se invertem.
lí em tl111 caso diametralmente oposto a esse, o da criação coletiva. o que se esta-
belece - ou se procura estabelecer - é um plano de horizontalidade máximo. Ou seja.
ninguém subjuga ou direcioná ninguém. Toclos estão em pé de igualdade, o tempo
inteiro. em relação a todos os aspectos da criação. Daí que. nos casos em que tal dinã-
mica - e o projeto utópico nela embutido - tenha funcionado efetivamente, presen-
ciamos UI11a estrutura baseada num sistema ele coordenação.
No caso do processo colaborativo, o que ocorre é UIl1a contínua flutuação entre
subordinação e coordenação. fruto ele UIl1 dinamismo associado às funções e ao
momento em que o trabalho se encontra. Por exemplo. a definicâo do projeto. dos
colaboradores. das técnicas a serem experimentadas (treinameuto físico e vocal. tipo
ele exercícios, etc.), é toda ela decidida ou endossada coletivamente - n(10 raro através
ele votação. em caso de impasse, Ou seja. essa etapa ocorre sob a égide ela coordena-
ção. Em outros momentos, COlHO a distribuição dos papéis (a cargo do diretor). a defi-
nição final do texto (a cargo do dramaturgo) ou o desenho da luz (a cargo do ilumina-
dor}. por mais que ocorram debates e confrontos. o grupo acata a decisão de quem é
o responsável por aquela função. Isto é, trabalha sob urn regime de subordinação.
I~ claro que tais definições não são ocasionais. Ao contrário, são fruto de muita cxpc-
rimcntnçâo. de longo amadurecimento c ele constantes negociações entre os inte-
grantes. Elas são conseqüência, ainda, ela complexa rede de interdependências que
marca todo o processo. Ü muito COIllUI11, por exemplo. haver contínuas mudanças
ele opinião c de posicionamento em razão desses embates criativos. O ideal. porém.
quando se opera numa sisternática de subordinação, é que ela 11<10 ocorra no âmbito
mesquinho ela luta de poder ou ela mera demarcação ele território.
Além disso. o exercício de acatar urna definição artística alheia parte ele uma esco-
lha anterior e criteriosa realizada por todo o coletivo ern relação a esse "outro" COJll o
qual se estabelece urna parceria. Ou seja. trata-se de UIl1a subordinação que é decor-
rente de uma prévia dinâmica de coordenação. O grupo escolheu C0l11 quem quis
trabalhar e não simplesmente foi contratado para realizar um espetáculo (0111 uma
equipe pré-definida.
Por outro lado. os colaboradores convidados pelo grupo também não atuam COlHO
simples executores. Eles participam e contríbuern para a definição do conceito-geral
cIo trabalho (vale a pena observar que há urna grande diferença entre "exercer uma
função" e "ser funcionário" - subentendendo aqui, no caso deste último, uma sub-
missão passiva e burocrática]. Dessa forma, os colaboradores-convidados vão se inse-
rir também nessa dínãmica fluida de coordenação-subordínnção.
E. por fim, é importante perceber que esses regimes podem ocorrer sucessivamen-
te. num jogo de ir-e-vir, dentro ele um mesmo momento da montagem. Por exemplo,
62

no âmbito da direção, a materlalizaçâo das marcas C! das movimentacões ocorre desta


maneira. Os atores propõem gestos ou deslocamentos, o diretor seleciona c produz
uma partitura. os atores, então. reconfiguram aquele primeiro desenho; o diretor,
por sua vez, determina urna segunda formalização, e assim por diante.
Em todos esses casos, pode-se identificar a existência de urna atitude artística
autoral, marcada por um intrincado jogo de dependência-independência, e que osci-
la entre liderar e cooperar. entre impermeabilidade e porosidade. O que é diferente.
em UHl processo desta natureza, de ser "Maria-vai-com-as-outras" ou. no pólo oposto.
de empacar e não arredar pé antes mesmo do inicio das discussões.
Por todos os exemplos acima referidos é possível perceber que o que está em pau-
la não é a presença ou não do elemento dialógico ou participativo, mas o como ele se
estabelece. Nesse sentido, pelo viés do modo. processo colobomtívo e cri<lç(lo roletívn não
$(10 a mesma coisa. não traduzem a mesma experiência. E a referida distinção - entre
l11étot1o e modo - é capaz de nos ajudar a entender a discussão. muitas vezes polêmica,
que cerca esses dois conceitos teatrais.

3.2 PROCESSO COLABORATIVO COMO METODOLOGIA DE TRABALHO

Se examinarmos o processo colaborar IVO sob o ponto ele vista metodológico. é


possível identificarmos alguns princípíos de trabalho. O perigo. COI110 sempre. é a
transformação disto em receituário ou fórmula, Nesse sentido parece preferível apro-
ximar-sc de tais princípios COJl10 pontos de reverberação ou corno agentes dcsenca-
doadores. Funcionariam como pontos ele partida ou gatilhos, a partir elos quais. cada
processo engendraria seus dcsdobmmentos particulares. seus mecanismos e contra-
mecanismos de estruturação. seus campos de experiência. suas acomodações e turbu-
lências. suas precipitações e dispersões. En1 5\.U\1a. diferentes percursos e renovados
procedimenros a cada vez c a cada nova montagem,
Eles podem ser pensados também COlHO agentes eU1 uma estratégia de operação
drarnatúrgica ou cênica. capazes de provocar o aparecimento ele experimentos tex-
tuais. corporais, imagétícos.. etc. Ou seja. atuariam corno estímulos para a produção
das escrí tu ras do espetáculo.
Outra possibilidade ainda é abordar tais princípios COlUO regras de jogo. capazes de.
indicar parâmetros de ação e de organizar o percurso dos ensaios. Por se tratar de um
processo sem dramaturgia prévia. sem personagens definidas, sem marcações dadas de
antemão. sem tempo de duração rígido anterior à estréia do espetáculo. entre outros
elementos abertos. essas regras serviriam corno balizas de navegação.
Muitos desses princípios estão associados ao aspecto de transitividade de criações
63

COIl1partilhadas. O processo colaborativo é UI11 processo transitivo e baseado na cir-


culação de materiais cênicos entre os criadores. Por exemplo, no caso do ator. ele íun-
ciona tanto corno proposital' de textos e imagens próprias quanto experirncntadnr de
propostas vindas dos outros atores e elos demais participantes do projeto.
Analisaremos mais à frente. de Iorma detalhada. os vários elementos constitutivos. os
procedimentos de trabalho e as diferentes etapas deste tipo de processo. Por ora. nos res-
rringiremos apenas a enunciar as suas linhas de força fundamentais. São elas. a saber:

• Atitude autoral c propositiva:


• Vontade e capacidade de cooperação:
• Existência c potencialízação de funções artísticas específicas. definidas
antes do início dos ensaios:
• Tempo indeterminado de ensaio;
• Interesse em pesquisa e experimentação:
• Realização de pesquisa teórica e de campo:
• Prática baseada em improvisações e \vorkshops;
• Construção cênica ancorada na tensão entre depoimento pessoal e depoi-
mcnto coleuvo:
• f~nfase no caráter processual. incorporando o precário e o inacabado à pró-
pria constituição ela linguagem:
• Criação de dramaturgia inédita;
• Encenação processual e aberta;
• Processo continuado de Jecdhack;
• Perspectiva de compartilhamento pedagógico:
• Abertura do processo de ensaio a estagiários. convidados e público interessado;
• Interferência dos espectadores na construção da obra.

3.3 PROCESSO COLABORAT1VO COMO MODO DE PRODUÇÃO

o processo colaborativo não se restringe apenas ao âmbito da criação. Ele pode


ser pensado como uma (anua de organização de gestão coletiva. de tipo cooperativo.
Isso quer dizer que as decisões fundamentais relacionadas à estrutura organizacional.
administração. controle financeiro. direção de produção passam pelo crivo e pela deli-
beração grupal. Desde questões simples, corno gastos C0I11 papelaria c gráfica para a
confecção de projetos, até o aluguel de urna sede para a companhia ou a aceitação de
um convite para turnê. tudo passa por discussões internas do coletivo. A divisão de
cachês também é acordada conjuntamente e. salvo exceções, os valores não prívile-
64

gj;lIl1funções. Ou seja. tanto o dramaturgo. o diretor. os atores ou os outros colabora-


dores recebem a mesma quantia. Tal divisão é sempre rediscutida e redefinida a cada
novo trabalho. não existindo um padrão imutãvel ele distribuição a ser seguido.
Por detrás deste sistema cooperativado, encontra-se um projeto de valorização
equânime de todos os integrantes do grupo. As funções. C01l10 j.i dissemos, são man-
tidas. porém, nenhuma delas é tratada corno mais importante do que outra. Ou. para
sermos mais precisos. ainda que haja momentos onde urna dcrerminada função
lenha preponderância ou destaque. no cômputo final a contribuição de rodos se equi-
para. E isto é o que deve ser valorizado - inclusive monetariamente.
Quando ocorrem distinções salariais. elas estão relacionadas, em geral. a razões
ele histórico de permanência dentro do grupo. tempo (parcial ou integral) dedicado
~l execução do projeto. acúmulo de funções artísticas com funções adrn inistrativas
ou, no caso de turnês. UH) diferencial para quem viaja ou não. É C0I11llIn. nessas
situações. o estabelecimento de UH1 regime de cotas a fim de criar parâmetros para
a divisão. Por exemplo. se urn determinado integrante realiza apenas o trabalho de
criação. ele receberá o equivalente a duas cotas da verba de salário do projeto ou
do líquido da bilheteria. Já aquele que estiver atuando concomitantemente na área
artística e adminístrativa ou de produção. receberá urna cota a mais. rotalizando três
cotas. Outra distinção que também ocorre é aquela entre cachês - relativos aos artis-
tas e colaboradores técnicos ligados ao grupo - C salários - relativos às contribuições
artísticas c técnicas pontuais. sendo que os primeiros são, sempre que possível, de
montante superior aos segundos.
Aliás. ainda que o fechamento do borderô ou os gastos projetados na planilha de
produção sejam executados por U111 administrador ou produtor. especialmente con-
1ralado para esse fim. periodicamcnre ocorre urna prestação de contas por parte dele
para todo o grupo.
Portanto, o que ocorre em UHl processo desta natureza - COlHO tam bérn ocorreu
na criação coletiva - é o controle C a socialização dos meios de produção por parte
dos integrantes do coletivo. COIllD defende Walter Benjamim, o trabalho cIo "autor
consciente das condições da produção intelectual contemporânea (...1 não visa nunca
a fabricação exclusiva de produtos, mas sempre, ao mesmo tempo, a dos meios de
produção'". Nesses processos. por conseguinte. os artistas - ou urna parte significa-
tiva deles - são também produtores e administradores, tanto do projeto quanto do
espetáculo. E mesmo para aqueles que não querem assumir tais tarefas, trabalha-se
com transparência na apresentação periódica dos gastos. Portanto. o grupo adquire,
concomitantemente. a propriedade C0I11UI11 dos meios de l,roduçâo c cliaçdo.
O conceito de modo ele produção conjuga duas noções clássicas da teoria marxista:
a de forças produtivas (os meios de produção) e a de relações de produção. O primeiro

7 l\EN1:\MlN. w. Magi<t c Iécnüu, l\rt~ c Política. São Paulo: Editora BrasHicnse. 1993. p. J 31.
65

remete ao estágio ele desenvolvimento dos instrumentos c tecnologias de que dada


sociedade dispõe para produzir os bens materiais que lhe são nccessãríos, tais COlHO
matérias primas, máquinas, empresas. além do número e a qualificação dos trabalha-
dores. O segundo, às formas de propriedade por meio das quais os homens concentram
- ou distribuem - essas forças de produção. bem COlHO os produtos do trabalho hU111a-
no. Moelo de produção seria. portanto. grosso modo, a conjugação de forças produtivas
com relações de produção em UHl determinado estágio evolutivo da humanidade.
Obviamente, esses conceitos podem parecer deslocados na análise das relações de
trabalho de um grupo teatral. haja vista que a análise marxista focava prcponderan-
temente a produção concreta de mercadorias e não. de bens simbólicos. No entanto,
poderíamos pensar que as forças produtivas do fazer teatral envolvem toda a gama de
elementos ele que os artistas dispõem para a feitura da criação. tais C0l110 os próprios
recursos humanos - por exemplo, a voz e o corpo do alar -, bem COlHO os aspectos
materiais envolvidos - cenários. figurinos. iluminação etc. Incluiria, também. os conhe-
cimentos e as metodologias do fazer artístico. As relações de produção, por sua vez,
envolveriam o modo como o processo e o produto do trabalho se encontram concentra-
dos (relações de exploração) ou coletivizados (relações igualitárias}, Essa última forma
permite que a expressão de cada UI11 seja valorizada de forma equânime no conjunto. e
que todos se sintam igualmente "proprietãrios" do resultado do trabalho coletivo.
Tal perspectiva Iavorcce o estabelecimento de relações de trabalho bastante dife-
renciadas elo modelo empresarial. além de propiciar urna nova organização interna
do trabalho teatral. O fato de o grupo produzir ou gerir a produção, tanto do processo
de ensaio quanto da montagem em si. acarreta urna reestruturação interna, na qual
os integrantes se dCS\OGHl1 também para distintas funções administrativas. Entre
elas, poderíamos citar direção financeira. captação de recursos. prestação ele con-
tas, administração, confecção de textos para editais. programação visual. divulgação.
documentação. ele. Essas funções. além da importância em si para a continuidade e
sobrevivência do grupo e do trabalho, estimulam o aparecimento de lideranças indi-
viduais. Portanto não estamos mais sob a égide do "grande líder". mas de múltiplas
lideranças. tanto no campo artistico quanto no da produção - diretor administrativo,
diretor financeiro. diretor técnico, diretor artístico, dramaturgo, encenador, etc.
O cruzamenro e a superposição de tarefas artísticas e produtivas nern sernp re é
tranqüilo. Com freqüência ocorrem interferências de Ul11a área em outra. às vezes
COIl1 perdas para ambos os lados. Por exemplo, um clesentendirncnro em relação a

uma questão administrativa pode ser carregado para dentro da sala de ensaio. Ou
ainda. urna reunião artística demorada ou 11111 ensaio que avança até a madrugada
adia decisões Importantes de produção que precisariam ser tomadas C0l11 presteza.
Contudo. apesar dos possíveis curto-circuitos, o ganho decorrente do controle admi-
nistrativo e produtivo é. ainda assim, superior. Ele induz a Ulll amadurecimento nas
relações intra-grupais. fortalece os princípios de associação e cooperação. conscienriza
66

sobre os problemas e percalços materiais. aprofunda urna relação não-alienada COIU


o próprio fazer, estimula posicionamentos ideológicos mais definidos e favorece urna
dinâmica não-hierarquizada entre os integrantes. 'rendo em vista seu modo ele Iuncio-
namento. não seria demasiado adjetivá-la de produção associativa ou colaborativa.

3.4 PROCESSO COlABORATIVO COMO RESULTANTE E5TETICA

Antes de qualquer coisa, talvez caiba a pergunta: um 1110<\0 de criar compartilua-


do e coletivizado levaria a urna resultante estética particular? A princípio. <1 resposta
possível parece negativa. Isso porque, ao analisarmos o processo colaborativo, perce-
bentos que ele não tem urna estrutura homogênea. nem urna metodologia rígida e
nem mesmo compreende um único estilo. Ao contrário. trabalha COll1 proccdimen-
tos e técnicas bem variadas e os espetáculos dele resultantes têm linguagens as mais
distintas. Trata-se. fundamcnralmente. de um processo de caráter experimental.
Contudo é possível identlficarmos alguns elementos estéticos recorrentes ou prc-
ponderantes. Comecemos pela dramaturgia. Alias, parece-nos importante fazer urn
parêntese aqui. Por mais que. às vezes. haja esquecimento ou desconsideração ern
relação a este fato. o processo colaborativo estimula ativamente a escritura de peças.
Nesse sentido. ele poderia estar inserido no que vem sendo chamado de «nova dra-
marurgia ". pois. al ém de funcionar corno uma estratégia de criação textual. ele, de
fato, produz novas peças c revela à cena novos dramaturgos.
Devemos ficar atentos a tal aspecto. na medida em que existe muito preconceito
em relação a textos escritos no bojo de urna dinâmica grupal. Por exemplo. a drama-
turgia produzida pela criação coletiva é, <ué hoje, vista com enormes ressalvas - o
que mereceria urna revisão mais criteriosa. É claro que muitas das peças produzidas
eram fracas estruturalmente e pecavam por paníletarismo e superficialidade no tra-
ramento cios ternas. Contudo, isto é diferente de rotular toda aquela produção sim-
plesrncnte corno .,má drarnamrgía ". E esse I11CSn10 fantasma parece também rondar
os textos criados em processo colaborativo.
Mas voltemos aos elementos estéticos recorrentes. No caso das peças. é COIllU111 a
presença de forte elemento monológico. COIllO urna parte significativa do processo
é alimentada por \vorkslwps individuais trazidos pelos atores. este aspecto não-dialó-
giro, de ausência de intercâmbio verbal. caracterizado por depoimentos pessoais em
forma de monólogo, irá marcar a resultante drarnatúrgica.
Outro traço relevante refere-se a urna escritura que ocorre em torno ou a partir de
imagens cênicas fortes. Ou seja, mais do que o desenvolvímento de conflitos psicoló-
gicos ou de longas digressões verbais. a dramaturgia encontra-se germinada e mate-
67

rializada em sínteses imagéticas. Ainda que seja pedida aos atores a criação de textos
escritos. a parte mais significativa das improvisações e workslwps está assentada na pro-
dução de imagens, o que justifica a presença determinante delas no resultado final.
Poderia ser apontada ainda a existência ele urn elemento fragmentário, ele justa-
posição de cenas sem forte ligação causal, produzindo urna estrutura dramãtica mais
aberta e rarnificada. Tal configuração. marcada por elementos de colagem, intertex-
tualidade e cadeias de leitruotiv. é resultado direto do conjunto diversificado de vozes
artísticas presentes no processo. e poderia incorrer em flacidez estrutural e em peças
"colcha-de-retalho", Porém a presença de UHl dramaturgo individual contribui para o
fortalecimenro do texto, evitando UI11a perigosa generosidade benevolente - a qual.
de brincadeira. denominamos "síndrorne ele Madre Teresa de Calcutá" -. que se vê.
obrigada a incorporar as contribuições ele todos os integrantes o tempo inteiro.
A não-hierarquização das [unções também acaba refletindo numa obra em que
os aspectos textual, espetacular ou interpretativo não têm caráter epicêntrico. Em
outras palavras. rn.\111 processo constituído a partir de hierarquias móveis, os dife-
rentes elementos ela cena vão também apresentar urna flutuação de dominâncias ao
longo do espetáculo. Às vezes é o texto que terá predominância, enquanto em outros
momentos, é o trabalho do ator ou a experiência sinestésica proposta pela encenação
que capturara a atenção do espectador.
Em relação a esse último aspecto. é possível observar como muitos dos espetá-
culos realizados em processo colaborativo nprcsentam urna forte experimentação
espacial c{ou de relação C0\11 a cidade e seus espaços públicos. Parece existir urna
conexão entre estes coletivos autorais e um projeto de exploracão do espaço cênico c
ele interferência em locais específicos da cidade.
Apesar de não haver uma relação direta entre a dínámica interna deste tipo ele
processo COlll UH) projeto de ocupação urbana, alguns elementos podem ser identifi-
cados. O fato de os integrantes do grupo trazerem seus problemas e interesses para
os ensaios, corno material ele criação. parece contaminar o trabalho C0l11 questões
ligadas à vida na cidade. Além disso. muitos desses grupos têm suas sedes em bairros
específicos (Bixiga, Vila Maria Zélia. BaITa Funda, Luz, etc.), o que provoca urna inte-
ração cotidiana COll1 o entorno destes locais. Aliada a esta conjuntura. as constantes
atividades pedagógicas realizadas pelos artistas com a população local trazem para o
âmago da companhia, depoimentos. histórias e questões a ela concernentes.
No que diz respeito à interpretação, a perspectiva testemunhal e prepositiva solici-
tada aos atores induz a um registro mais cxperiencial, COll1 fortes traços performáricos.
Isso é acentuado pelo fato da não existência de um texto prévio. de personagens prontas.
de marcações desenhadas previamente pelo diretor. o que amplia a zona de insegurança
na qual o ator deverá trabalhar. Este elemento de desorientação, de perigo e de risco acom-
panha todo o processo. deixando marcas na qualidade de presença e no registro físico e
vocal dos intérpretes, o que os aproxima bastante àqueles do peljol7llcl-.
68

3.5 O PROBLEMA DA AUTORIA

Teatro de vários autores. resultado de uma interação múltipla e de U111 trabalho


coletivo, C01l10 se coloca a questão da autoria dentro do processo colaborativo? Se na
criação coletiva - salvo exceções - o autor desaparece enquanto criador individual
para deixar surgir urna "autoria coletiva", no processo colaboratívo ocorre um retor-
no e Ul11a valorização do autor singular. Contudo ele não está isolado: o exercício de
autor, realizado em cada função artística. dialoga e é confrontado com a vontade gru-
paI. Daí que o resultado final continua sendo de todos os envolvidos. porém mantém
salvaguardada a contribuição artística pessoal. I~ neste) zona de litígio, com fronteiras
de difícil demarcação. que se exerce a batalha autoral. No processo colaborativo. a
questão da autoria exclusiva não se coloca; o autor ali é, necessariamente. "inclusivo".
Na verdade. essa discussão sobre as noções de obra. ele autor e de autoria jéí vem
de longa data, e suscita opiniões bem diversificadas. Roland Barthes. no seu célebre
ensaio UA Morte do Autor", advoga o fim da autoria para que haja o surgimento da
escritura. Perfaz a noção histórica de "autor", apontando para o "prestígio do indiví-
duo" na sociedade moderna. Segundo ele, ·'0 autor é urna personagem moderna ..:>. É
desse período o aparecimento de t1111a leitura critica da obra que a enxerga apenas
COlHO a voz de uma única c só pessoa.
Barthes invoca Mallarmé na associação entre "autor" e "proprietário", e concorda
COIU a sua opinião de que a linguagem que fala, não o autor?". Propõe também urna

distinção entre "autor' e "escriptor", O primeiro termo diz respeito a urna noção de
paternidade. de anterioridade, de origem em relação il obra, em suma, de UI11 "Autor-
Deus". .Jü o segundo. "nasce ao mesmo tempo que seu texto". não h<í precedência
mas, sim, concomitância. inscrição feita no aqui e no agora, o que lhe outorga um
caráter "performativo":".
Se não podemos nos esquecer elo 1110111cnto ern que esse ensaio foi escrito - 1968
- e nem ele sua ressonância contextual COll1 o período ela criação coletiva. por outro
lado devemos ter em mente que a questão-chave defendida por Barthcs para a 1110r-
te do autor tem C0l110 alvo o fortalecirnento do leitor. É aí que se encontra o ponto
nevrálgico de sua discussão sobre autoria. Não é à toa que seu texto se encerra COUl a
célebre frase "0 nascimento do leitor deve pagar-se COiU a morte do autor" 11.
Se tal defesa pode ser remetida à nova relação C0l11 a platéia c fi sua transfor-
mação em co-autores advogada pela criação coletiva. ela também não é estranha à
abordagem que o processo colaborativo faz do público. Contudo. Barthes apresenta

8 ltAKTJlnS. R. ORumor dl1l.íngtla. São Paulo: Martins Fontes. 2004, p. 58.


9 Ibid.. p. 59·
10 Ibid.. p.61.
I 1 Ibid., p, 64.
69

dois termos que parecem fecundos à nossa discussão: "escritura coletiva" c "escri-
tura múltipla".
Ainda que ele 11,10 faça uma comparação entre esses conceitos. associando o pri-
mciro a UHl procedimento de dessacralizaçâo do autor realizado pelo surreal ismo.
e o segundo, a UI11 tipo de escritura que dispensa qualquer decifração, t0I11alllOS a
liberdade de estabelecer Ulll paralelismo entre os dois.
Se pensarmos a "escritura coletiva" C0l110 aquela realizada por várias mãos. todas
juntas escrevendo. ao mesmo tempo, UHl mesmo "texto". poderíamos associá-la a
urna prática COnlU111 na criação coletiva. Ao contrario. a "escritura múltipla" definida
COl110 "um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras
variadas, das quais nenhuma é originar', onde "o espaço da escritura deve ser percor-
rido, e não penetrado". remete-nos ao território do processo colaborativo.
Nele, os vários autores - ou autorias - não se somam, mas coabitam dentro da
obra. As diferentes escrituras individuais estão ali mantidas, identificáveis, e o con-
junto se ferina não pela síntese entre elas. luas pelo diálogo e atrito, pelo choque de
pólos artísticos particularizados, que se justapõem ou se contaminam, mas não se
diluem UIl1 no outro.
UHl ensaio também importante, que nos aponta alguns elementos em relação ao
problema da autoria. é o de Michel Foucaulr. denominado "O que é UI11 autor?". Nele,
são discutidas as noções de autor, de obra, de autenticidade. de escrita, da "função
autor" e da "funçào sujeito". Em sintonia com Barthes, ele não reivindicara própria-
mente a "morte' do autor, I11aS sim o seu dcsaparecirnento ou apagamento, C0l110
urna estratégia "que permite descobrir o jogo da função autor"!".
O (ato de pensar o "autor" corno urna função CI11 si amplia () campo deste conceí-
to, pois ultrapassa a associação e a dependência entre a "autoria" e a pré-existência
de funções artísticas definidas. I~ COlHO se ela não fosse mais UI11 dado imanente da
função ou a ela condicionada. Foucault. ao abolir a subordinação entre esses dois
termos. nos faz pensar a função-autor corno UH1 aspecto anterior e C01l111111 a todas as
funções artísticas individualizadas.
Aliás, ele problematiza a questão da individualidade na autoria. ao afirmar que
"a palavra 'obra' e a unidade que ela designa são provavelmente tão problemáticas
COlHO a individualidade elo autor"!'. Por exemplo, em que medida ela não comporta-
ria em si, urna pluralidade de "eus"?
Além disso, ele afirma que o "nome ele autor serve para caracterizar U111 certo
modo de ser do discurso"!' e apresenta alguns critérios que agrupam obras distintas
sob a mesma autoria individual: "homogeneidade": "filiação": "mútua autenticação",
"explicação recíproca"; e "utilização concomitante". Se nos utilizassemos de tais cri-

12 J:OUCAUl.l'. M. O {llW f um autor? Lisboa: Vega, 2006. pp. 80-S1.


13 lbid., p. 39.
14 Ibid.• p.45.
70

térios. perceberíamos a sua funcionalidade tanto para a autoria individual quanto


coletiva. Ou seja, poderíamos empregá-los, por exemplo. tanto para a autora-individual
Cláudia Schapira COlHO para o autor-coletivo Núcleo Bartolomeu ele Depoimentos.
Chama ~l atenção. também, a afirmação ele Foucault de que teria sido a crítica lilC-
rária a responsável pela construção da "forma autor". Essa idéia da autoria COll10 urn
construto, corno um "arte-fato". C0l110 uma operação. nos estimula a refletir sobre
COI110 tal construção ele autorias se dá no processo colaborativo. Se, por exemplo. na
criação coletiva. o apagamento do autor poderia provocar urna autoria índividualjh1ca.
lacuuar, cheia ele fissuras - o que é diferente de não-autoria -. a fim ele maximizar a
autoria coletiva. no processo colaborativo, procura-se conjugar autorias individuais
fortes capazes de propiciar ou potencializar urna autoria coletiva também forte. Ou
seja. todos são autores c co-autores. simultaneamente. Trata-se de construções ou
operações distintas - 3111bas. C0l11 bons e maus resultados.
Nesse sentido. parece-nos U111 equívoco reduzir a autoria no processo colabo-
rativo a uma mera organização do material apresentado. A não ser, é claro. que
se expanda o entendimento ela noção de "organização", aliando a ela U111a atitude
construtiva e criadora - e não apenas de urna simples arrumação. O artista aqui não
é só UH1 disciplinador, um faxineiro ou UI11 guarda ele trânsito. Ao contrário. ele cria.
um conceito e articula U1l1 discurso que nasce das várias contribuições recebidas.
A autoria não se dei por flltragem - noção que implica UJ11 alto grau de passividade
- mas por urna construção conceirua I e uma reclaboração ela matéria cênica com-
partilhada. ainda que. por vezes. isso possa significar apenas UH1 simples arranjo ou
urna pequena incisão.
Outro elcruento a ser destacado é que. segundo Foucault. 3 "função autor" produ-
ziria 0111 discurso caracterizado corno UH1 objeto de apropriação ou corno "um bCIl1
preso num circuito de propriedades":". Tal condição traz à tona. conseqüentemente,
questões relativas aos direitos de autor. E daí. a pergunta: COIllO eles se (010Can1 den-
tro de uma dinâmica grupal?
Tornando corno referência o relato de outras companhias e a experiência do 'leatro
da Vertigem, a questão do direito ele autor está presente. porém nunca aparece corno
impedimento ao processo ou à viela elo espetáculo. Diferentemente da criação coletiva,
onde talvez essa discussão não se colocasse. aqui os artistas assinam individualmente
por suas criações. Portanto. além das autorizações legais cabíveis (SBAT, ECAD. crc.) e da
correra menção no material de divulgação e no programa, o artista se vê - utilizando a
noção foucaultíana - COlHO o "proprietãrio" daquela sua área específica de criação.
Esse aspecto. ás vezes. durante períodos de grande tensão dentro do processo, até
pode aparecer por meio de uma fala explosiva como, por exemplo, "eu não assino
isso" ou Use fOI· para ficar desse jeito, eu prefiro que não coloquem o meu 110111C na

15 H)Uü\W.l'. M., O cIUC! li um aulor? p. 47.


71

ficha técnica". Tais irrupções agressivas, no entanto. nunca passaram de reações pas-
sageiras a momentos de agudas crises.
Se se tratasse de Ull1 formato empresarial tradicional. talvez as conseqüências e os
desdobramentos fossem outros. Porém. no processo colaborativo, o fato de a autoria
individual estar sempre sendo estimulada pelo diálogo com as proposições e interfe-
rências do grupo todo. a demarcação rígida dos direitos de criador fica relativizada tG.
Aliás. COl110 j~í vimos, não se trata apenas ele urna dinâmica de estimules e retro-ali-
mentaçôes. Há. de 1:1 to. a incorporação de sugestões e formalizações oriundas dos
outros membros da companhia, no C01]JUS da criação individual.
Essa autoria, que se dá. - ainda que não exclusivamente -. por mecanismos ele
apropriação, torna altamente problemática urna atitude de proibição ou veto à exi-
bição da obra individual. Na verdade. urna explicação para isso se encontra no fato
ele se tratar de U111a obra individual sim, porém impregnada de impressões digitais
alheias. criada em diálogo e em interdependência C0I11 urna obra grupal.
No caso da encenação, por exemplo. seria UHl contra-senso advogar tais direitos.
tamanhas são as contribuições sugeridas por toda a equipe. E 11leS1110 no caso elo
ator. cujo resultado artístico se d,l no corpo - o que o torna mais palpável. às vezes,
do que um conceito ele direção - também não parece fazer sentido urna eventual
briga por direitos de autoria. Pois a criação dele está atravessada pela dos outros
atores - seja quando experimentaram a sua personagem ou quando trouxeram
material cênico para ela -, pelo diálogo C0l11 a direção - as marcações e os gestos
foram criados em parceria - c pelas interferências dos outros criadores - por cxern-
plo, uma proposta de figurino que consegue formalizar urna personagem ou figura
ainda cmbrionaria.
Prova disso é que - por relatos e experiência própria - sempre que houve a neces-
sidade de realizar substituições. 111eSI110 em saídas mais conflituosas. nunca houve
recusa. proibição ou 111eSIll0 solicitação de porcentagem financeira pela criação. por
parte dos atores que deixaram o grupo.
Examinando o problema da autoria C0I11 nosso orientador. Jacó Guinsburg. ele
defende que não há a exclusão de autorias no processo de trabalho ela criação cole-
tiva. EI~lS continuariam ali, presentes, ainda que menos assumidas. Segundo ele. o
diferencial que ocorre em relação ao processo colaborativo é que nele a autoria se
coloca de f O rr11a mais objetivada.

16 Na opinião de Abreu. por exemplo, "num processo de criação compartilhada n~10 há mui-
to espaço para 'minha cena', J11CU texto', 'minha idéia'. Tudo é jogado numa arena co-
t

11111111 c examinado. confrontado e debatido até o estabelecimento de U1l1 'acordo' entre


os criadores. É claro que esse acordo não significa reduzir a criação ao senso COlllU1l1. nem
transformar o vigor da criação artística nuru acordo de cavalheiros. É um acordo tenso,
precário, sujeito, muitas vezes. a constantes reavaliações durante o percurso" (In: AHRElJ,
J.. :\•• "PrOcessoColaborarivo: relato c reflexões sobre urna experiência de criação", p.36).
72

Além disso. tanto CI11 um quanto em outro, a atitude autoral ocorre em todas as
etapas ela criação, desde a definição do conceito até a finalização das apresentações
públicas. A distinção, no caso da criação coletiva, dizia respeito à recusa ou à dificul-
dade com a autonomia de urna atitude aurora! individual.
Se quiséssemos ampliar ainda mais essa discussão. precisaríamos refletir sobre
corno o papel da internet vai desesrabilízar C propor U1118 nova perspectiva sobre o
problema da autoria. Compartilhamento de dados, lJlogs, sitcs cujos textos e imagens
podem ser reconfigurados por cada usuário que ali navegar, são alguns exemplos da
ampliação de perspectiva sobre o lugar da autoria no contexto atual. Segundo jcan-
Louis Lebrave,

(...) a estabilidade das noções de autor e de propriedade intelectual roi l...Isubmetida


a outra investida com a aparição das grandes bases de "dados textuais' c das cxperi-
ências ela 'biblioteca eletrônica'. Em pouco tempo será possível dispor de um inter-
texto ilimitado. com o qual o usuário poderá jogar, entrelaçando empréstimos e
comentários. praticando colagem e plagiare. inventando caminhos não-lineares!'

3.6 O PROBLEMA DA TOMADA DE DECISÃO

Aproxiruando-nos mais do universo da direção. além de tratar-se de questão cor-


relata àquela da autoria. seria pertinente abordarmos o problema da tomada de deci-
sões dentro elo processo colaborativo. Quem decide o quê? Quando é que UI11él decisão
se torna necessãria e inadiável? C0I11D se cki o processo ou a sisternát ica das escolhas
durante os ensaios. tendo em vista a pluralidade de opiniões?
Antes ele tudo. gostaríamos de invocar U111a teoria extra-teatral que estabelece
conexões diretas com este problema: a teoria dos jogos. Criada pelo matemático john
von Neumann e desenvolvida, entre outros, por Morton D. Davis, a partir de estudos
de análise combinatôrla. ela busca a aplicação de propriedades matemáticas a pro-
blemas econômicos. sociais e políticos. Tal teoria diz respeito príncipatmeruc à toma-
da de decisões que necessitam ser feiras cooperativamente. por meío de barganhas,
negociações, estratégias e equilíbrio de forças. tanto entre dois indivíduos (Two-Perscn
Crime) quanto entre vários (n-Person Gante)\~.
Lidando COll1 questões COlHO conflito vs. cooperação. competítividade V5. coalizão.

17 ZUJ.AR. R. (arg.). Criação em Processo: ensaios de aíticcl genérica. S~10 Paulo: Iluminuras, 200~.
p. t 17.
18 uwrs, M. D. Gmnt! TIlem)': II nontec1mic<ll inLroducliolZ. Mincola: Dover Publicatious. 1997.
pp. XVII-X\'IU.
73

escolha vs. acaso, a teoria dos jogos ajuda a pensar sobre decisões que precisam ser
romadas conjuntamente, acordos que precisam ser estabelecidos a partir de dife-
rentes interesses. e dilemas ou situações paradoxais que nccessíram ser superados.
Portanto. nada mais apropriado para o cotidiano da sala de ensaio. onde dramaturgo.
diretor e atores ., negociam" uma criação compartilhada. e que a partir de preferên-
cias individuais chega-se a escolhas coletivas.
Por outro lado, é importante estarmos atentos às limitaçóes da teoria dos jogos
em relação ao campo artístico. Por se tratar de modelo matemático - do qual não
rrararcmos aqui - C01l1 aplicações específicas no campo da ciência política ou da
(lchninistração. entre outros, em que se buscam "soluções". "estratégias" ou até mes-
1110 "formas de se ganhar urna disputa". as correspondências C0I11 o universo teatral
devem ser realizadas CaIU cuidado. O aspecto evolucionista e cornportamental dessa
teoria. marcadamente behaviorista. também inspi ra cautela. Além disso. a lgumas
correntes da administração se utilizam desses princípios corno forma de "exploração
da cooperação". Portanto. o que vai nos interessar não é a aplicação t~atnll da teoria
dos jogos. mas, símplesmente. algumas possíveis aproxiruações a seu universo!".
No processo de ensaio. é comum o conflito entre desejos artísticos individuais
contrastantes C mesmo desses em relação a aspirações coletivas de ordem mais geral.
Às vezes. sem perceber. as pessoas estão lutando entre si movidas por impulsos nar-
cisistas. demarcações de territórios ou crises de insegurança. Ao mesmo tempo, rarn-
bérn, subsiste a vontade e a necessidade de cooperarem UI11;lS com as outras.
Enquanto diretor, COlHO perceber as motivações e as forças que se encontram em
jogo? Corno não transtormar. por exemplo, o período de livrc-cxperuuernução dos
papéis por parte dos atores em urna estratégia de cornpct ição? Corno levar em conta
as aspirações individuais sem, com isso. se tornar refém delas. sem prejudicar o pro-
jeto que é. na origem e 110 fim. coletivo?
Morton D. Davis vê a tornada de decisões COlHO U111 jogo de estratégia, e aponta
que "em um jogo, cada jogador deve avaliar a extensão na qual os seus objetivos com-
binarn ou colidem C0111 os objetivos elos outros e decidir se vai cooperar ou competir
C0l11 lodos ou alguns deles'?"
Se concordarmos quanto à natureza de "jogo: que atravessaria essa clinàmíca
elas escolhas grupais, que regras as no rtea riarn? Antes de qualquer coisa. Davis
coloca a questão numérica corno fator determinante. Urna decisão entre dois - por

19 Outro fator importante na compreensão da teria dos jogos foram i.1S duas palestras
realizadas pela física Gila Guinsburg ao grupo de orientandos do Prof. jacó Cuinsburg.
no 1° semestre de 2007. Nesses encontros. ela realizou uma "tradução" da Iinguagcm
matemática envolvida nesta teoria e ajudou-nos COIll exemplos práticos, retirados do
cotidiano, a transpor fórmulas e equações para casos concretos. 'Ial contribuição 1\\OS-
trou-sc bastante útil no descnvolvirncnto dessa pane do trabalho.
20 DAV[S. M. 1>., Game '11IeorJ'; u lIonL~c1mical irlll"oductioll. p. XIV.
74

exemplo, UIl1 ator e o diretor - é muito distinta daquela tomada entre mais de
duas pessoas ou "n" pessoas - imaginemos. ern nossa área, urna "assembtéta'' C0111
o grupo teatral inteiro.
t\1énl disso. se no jogo bUSGll110S encontrar tinta solução. aqui, - especialmente
por se tratar de várias pessoas reunidas. todas convivendo C0I11 objetivos coincidcn-
tcs c discordantes - esta solução pode não existir OU~ ao contrário. existirem várias
possíveis. Segundo ele. os jogos complexos são menos previsíveis do que os jogos
simples. porém são mais interessantes e férteis.
Entre as dificuldades associadas à tornada de decisões podem ser destacados três
fatores: a falta de conhecimento das conseqüências de cada urna das opções possíveis:
as manipulações - conscientes ou não - dos outros "jogadores": e a interferência do
acaso. Na esfera do processo colaborativo, o grau ele empirismo a ele inerente acaba
por maximizar estas dificuldades.
U1n cios elementos que pode auxiliar a tornada de decisão é a expressão elas pre-
ferências da pessoa. de maneira consistente, a fim ele que ela possa realizar urna
escolha racional. Segundo Davis. um fator determinamo no processo de escolha é a
fonn(1 corno as diferentes alternativas são expressas. pois as pessoas nem sempre
U _ ••

tornam decisões baseadas em suas condições ou circunstâncias. 111aS sim em COlHO


essas condições apareceram ou foram descritas'?'.
Sob o ponto de vista teatral, a razão é apenas urn elos fatores em jogo. o que limita
bastante o acolhimento da sugestão acima mencionada. Por outro lado. o exercício do
diretor em tentar clariücar ou explorar as preferências artísticas dos outros integrantes
elo grupo pode, de tato. ajudar no processo decisório. [: bastante comum. por exemplo.
quando um dos atores expressa confusamente - ou C0l11 alguma timidez - suas pro-
posições. elas serem descartadas imediatamente pelo restante do grupo. Isso no caso
de serem ouvidas. Nesse sentido. o papel do diretor em apresentar tOcll15 as diferentes
alternativas surgidas. garantindo um nível de expressão consistente e claro. pode evi-
tar injustiças e auxiliar UH1 processo ele escolha mais amadurecido.
Davis identifica ainda distintas categorias de jogos: os inteiramente competitivos.
os inrciramentc cooperativos e os de caráter misto. No caso do processo colaborati-
vo. por toda a complexidade que ele envolve. parece haver urna aproxirnaçâo maior
C0l11 a última categoria. Por outro lado. talvez ele pudesse ser pensado COlHO UH) jogo
fundamentalmente cooperativo. porém atravessado por elementos competitivos. Tal
percepção advérn da identificação de motívações contraditórias nos "jogadores".
Por exemplo, no momento da distribuição elos papéis ou na fase de improvisações
destinadas (la desenvolvimento das personagens. o posicionamento dos atores tende
a ser bastante ambíguo. Se, por um lado, existe o desejo coletivo de realizar a melhor
peça possível. por outro, as personagens maiores, filais complexas ou protagonistas

2 t (JAVJ S. M. n., Came 11fí:OT)'; a uoU!cc1micell iruroductíon. p. 73.


75

exercem atração maior sobre os intérpretes. Além disso, numericamente falando. os


atores se constituem C01110 UHl subgrupo em que lodos exercem a mesma função,
C111 contraponto Ü presença de U111 cenógrafo ou de 1UH ilurninador, Portanto. o fator
cornpetitividade é inerente ao processo. queiramos ou não.
Contudo. se em espetáculos comerciais, no momento de realização do castillg.
o diretor pode acirrar ou est imular tal cornpctiriviclade. numa perspectiva grupal
isso deve ser evitado ou atenuado. Caso contrário, podem ocorrer desgastes e cisões
incontornáveis no bojo do trabalho. Fechar os olhos c fazer de conta que essas dispu-
tas não existem é. também, ingênuo e perigoso.
Urna saída possível é manter a consciência de tais conflitos ao longo dos ensaios c. ao
invés de querer extirpar ou reprimir esse traço competitivo, adotar transparência em rela-
ção às escolhas. O encenador, por exemplo, deve justificar o mais concretamente possível
- não usando apenas o critério elo gosto pessoal - as opções dramatúrgicas de desenvol-
vimento das personagens c as escolhas ator-papel por ele realizadas. Invocar ou lembrar
alguns dos aspectos artísticos fundamentais. motivadores do projeto coletivo em curso.
também pode auxiliar. Contudo. na maior pane das vezes. os sentimentos ele "perda" e
frustração são inevitáveis e só são superados - quando o são - muitos IllCSCS depois.
Entre os aspectos ou traços importantes levantados por Davis em relação aos jogos
cooperativos e mistos. destacamos alguns:

• Comunicação: o grau de capacidade ele comuuicação elos jogadores pro-


duz efeito significativo no resultado do jogo. En1 outras palavras, a inabili-
dade para se comunicar é um problema crucial e se constitui numa "eles-
vantagem". Nos jogos cooperativos é fundamental. ainda, que os jogadores
possam se comunicar livremente.
• Restrição de alternativas: ao invés ele se trabalhar ('0111 uma infinidade de
opções, o princípio da Iimitação de alternativas pode provocar o Iorralecí-
mento de posições dos jogadores c. conseqüentemente. auxiliar a tomada
de decisões. No caso do processo colaborativo. ainda que seja útil trabalhar
sob um espectro bastante amplo no início da pesquisa. o encarnínhamcn-
lo restritivo em relação ao campo de interesse, é fundamental para que o
grupo "encontre" o eixo - ou eixos -do espetáculo.
• Ameaças: urna ameaça é a afirmação de que você agirá de determinada
maneira sob determinadas condições. O seu objetivo é provocar a mudan-
ça de comportamento em alguém ou no grupo todo, algo que talvez não
ocorresse não fosse a existência desta ameaça. Além disso, urna ameaça só
é efetiva na medida em que ela for plausível. Ern relação ao teatro, sabe-
mos que muitas dessas ameaças não passam de irrupção emocional pas-
sageira. Contudo. ela apresenta também outras dimensões. Por exemplo,
durante o processo de ensaio de Apocalipse 1,11, do Teatro da Vertigem, o
76

dramaturgo ameaçou não assinar o texto caso o final ela peça tornasse
determinado rl1l110. Tal afirmação - que se mostrou, posrcriormcute. se
rrara apenas de uma provocação - causou impacto no grupo e fez com que
intensificássemos a busca por 1I111 final que pudesse contemplar a todos.
• Construção de acordos: C0I11D todo acordo é alcançado coletiva e volunta-
riamente. a partir ela negociação entre os jogadores. ele deve ser "protegi-
do" por regras que garantam o seu cumprimento, No que diz respeito ao
teatro. a elaboração de "regras de proteção dos acordos" pode soar derna-
siado coercitivo ou burocrãtico. Porém. pode-se estabelecer - c lembrar,
sempre que necessário - pactos artísticos C0111Uns. A idéia em si de cons-
trução e de rnanutenção de acordos - ainda que eles possam ser t ransfor-
mudos inteiramente num momento posterior - é bastante valiosa para o
bom cucaminharucnto do processo.
• Agir coopcrntivnmcnte: cada jogador tem duas escolhas básicas. "coo-
perar" ou "não cooperar". Quando todos os jogadores atuam cooperati-
vamenre. cada um deles tem melhor resultado individual do que quando
todos atuam sem cooperação. De fato. cooperar COIll um parceiro que não
coopera de volta pode levar ao desastre. E basta apenas UIll dos integran-
tes não querer cooperar para que todo o grupo sofra perdas. Davis sugere
a importância em determinar - ou estar atento - sob quais condições os
jogadores cooperam. Ele aponta quatro fatores principais: o tamanho dos
"pagamentos" - no sentido daquilo que você "ganha" em cooperar -: o
modo COlHO a outra pessoa joga; a habilidade para comunicar e a persona-
Iidade dos jogadores - por exemplo. a capacidade de confiar e de inspirar
confiança. Entre os fatores desfavoráveis, estariam a desconfiança dois]
outroís) jogadoríes). a ambição. a ignorância ou falta de consciência do
que significa cooperar e do C01110 fazê-lo e, por último, a comperitfvidade
- alguns jogadores. por exemplo, não concebem jogar sem ser competitiva-
mente. Ele alerta ainda que. a partir de vários experimentos realizados, foi
constatada Ull1<1 tendência consistente e progressiva dentro elos jogos. em
agir de modo não-cooperativo. Cita por fim o biólogo Williarn D. Hamílton
quando o mesmo alerta que "o problema é que enquanto U111 indivíduo
pode se beneficiar da mútua cooperação.. cada um pode ganhar ainda mais
através da exploração dos esforços cooperativos cios outros":", No caso do
encenador que trabalha em processos de criação compartilhada, perceber
os obstáculos ou os facilitadores da cooperação passa a ser urna de suas
funções relevantes. Cabe a ele estimular e criar mecanismos de colabora-
ção entre todos os integrantes do grupo.

~2 I)AV~S, M. D •• Gome Thcory; (1 Jlonrcchnicul illtroduclioll. p. 149.


77

Segundo ainda a definição de Davis, os jogos cooperativos - c, em certa medida,


também os mistos - são aqueles nos quais os jogadores elevem formar coalizões uns
com os out r05 e considerar quais incentivos ou atrativos eles devem oferecer ou acei-
tar. Cada coalizão rem UHl valor específico, que pode ser definido COIl10 a quantidade
mínima que aquela coalizão pode obter caso todos os seus membros estejam unidos
e joguem C01l10 UI11 time.
SabC1110S bem COIno, ao longo do processo de ensaio, tais coalizões vão sendo for-
macas e desfeitas. a depender dos gostos e interesses individuais. e do momento em
que se encontra o trabalho. Essas alianças "temporárias" entre parte cios atores e o
dramaturgo ou entre a direção e a dramaturgia, por exemplo, vão ser detcrminanres
no encaminhamento das opções artísticas e dos procedimentos metodológicos. É bas-
tante freqüente, também, o choque entre coalizões diferentes. fundamental ao exercí-
cio da cooperação e à busca de soluções alternativas. Porém, insisto. o fluxo constante
na formação e dissolução de alianças, de parcerias transitórias, em que hoje lutamos
pela manutenção de determinada cena e amanhã nos confrontamos sobre determina-
elo corte no texto, é um dado bastante característico do processo colaboratívo.
Idealmente, ern jogos do tipo cooperativo, os jogadores têm a capacidade de se
expressar c de agir conjuntamente. da maneira que lhes aprouver. Contudo. na prá-
tica, isso não ocorre bem assim. Segundo Davis. por exemplo. ..a espacializacão física
dos jogadores afeta as negociações. c os jogadores que são agressivos e rápidos para o
embate se d~10 melhor do que outros que são mais reservados?", No caso do processo
teatral. isto não rem necessariaruenrc validade. já que uma sugestão apresentada em
cena. ainda que no fundo ela sala ou COlHO conrraplano de uma imagem. pode exer-
cer impacto inquestionável sobre todo o grupo. Além disso. desde que garantida a
expressão ele todas as idéias ou opiniões. a "agressividade" ou "rapidez" de UH) "joga-
dor" lenl UIl1 ganho - se tiver - apenas temporário,
Em relação aos resultados. eles podem ser os mais diversificados possíveis, na
medida em que se (rata ele 11111 tipo de jogo de alta complexidade. I? de sua natureza
ser composto por um amp lo espectro de encontros e por inúmeras variáveis - entre
elas, por exemplo, a capacidade dos jogadores em negociar. Aliás, o fluxo de negocia-
çõcs e barganhas é intenso aqui, e custam a se fixar em algum lugar.
Esse elemento da "negociação" é fator-chave no processo de construção do texto c
da cena. Por exemplo. UI11 ator pode desejar que determinado 1110I11ento da trajetória
ele sua personagem esteja presente no roteiro enquanto o dramaturgo. ao contrarie.
prefere o uso de elipse naquele trecho. Esses 1l1útUOS convencimentos ou "barganhas'
não ocorrem apenas por lucia de discussões verbais. mas se dão no campo da própria
cena. através de urna improvisação mostrada em defesa de um argumento, ou do
texto que é reescrito para justificar dererminada posição. Nesse sentido. apesar do

23 nAVlS. M. D.• Gcuuc: ]11~0I)': (! nonredznical ÍntroductÍeJU. p 192.


78

ator mais combativo. por exemplo. conseguir colocar suas reivindicações de forma
rápida e explícita, o ator mais reservado tem. por sua vez, o espaço da cena para se
manifestar - o que. via de regra, produz convencimento bem mais efetivo
Nos jogos cooperativos. também, a noção de "poder' é 111aÍs sutil c mais difícil de
avaliar. Neles, o conceito de poder é maís impalpável e esquivo, j~í que é imperativa a
cooperação COIll o outro. tenha-se ou não empatia por ele. Daí decorre que o "poder'
é sempre potencial, pois necessita da cooperação dos outros para se materializar,
Além disso. muitas vezes a "dominância" de um posicionamento ocorre pela capa-
cidade de implementar propostas mais adequadas - o que significa que todos vão
"ganhar" mais do que ganhariam se mantivessem a proposta anterior.
Sem esquecermos as ressalvas feitas à teoria dos jogos no possível diálogo com a
prãtíca teatral, acreditamos que a discussão sobre o "poder" e a forma C01110 ele se
materializa é das mais oportunas ao pensarmos o processo colaboratívo. Nele, apesar
das funções estarem estabelecidas. não ocorre a subserviência pacífica dos integran-
tes do grupo a alguma deliberação art ística individual. Tais resoluções s~10 continua-
mente confrontadas e exigem urna dinâmica de convencimento. Ou seja. é COlHO se
o "poder" estivesse sempre colocado em xeque, relativizado, e fosse contestável em
suas decisões. Nesse sentido é que ele pode ser visto corno mais esquivo e permeável
do que em processos mais tradicionais.
Além disso. sem a cooperação de todos os membros da companhia. este "poder"
não tem força ele instauração. Ele depende da anuência e ela participação do outro
para se concretizar enquanto ato. Nâo adianta. por exemplo, o diretor querer impor
fl forca determinada marcação ou gesto. Caso o ator não aprove tal sugest-ão ou não
seja convencido pelos argumentos do diretor, não lui corno obrigá-lo. Via de regra,
a força de uma idéia ou proposição que impacte todo o grupo exerce muito mais
"poder" do que qualquer atitude autorüária.
Davis chama a atenção também para os mecanismos de conversão elas vontades
individuais em decisões grupais, num contexto em que a opinião de cada pessoa é
igualmente importante. O procedimento mais simples - e bastante freqüente nos
grupos teatrais que criam coletivamente - é o da votação, Contudo. corno estabelecer
mecanismos de votação que. de fato, traduzam as preferências gerais? Muitas vezes.
por exemplo. a votação por simples maioria pode incorrer em erros ou distorções.
D<1Í. em casos COlllO estes. ser preferível urna estratégia de votação por maioria abso-
luta ou. melhor ainda. por turnos ou etapas - em que o que está em jogo é o destarte
das opções que causem maior rejeição dentro do coletivo.
Por fím, tornando COlHO base nossas experiências teatrais, podemos acrescentar
que a recorrência das parcerias ou a continuidade de membros cio grupo ele 11111 tra-
balho a outro, facilitam e acentuam o espírito de cooperação. A repetição dos encon-
tros. ainda que possa incorrer na armadilha da acomodação, contribui. sern dúvida.
para o amadurecimento da tornada de decisões em processos de co-criação.
79

3.7 POLIFONIA E CONSTRUÇÃO DA CENA

1\ idéia de polifonia, tal corno definida por Bakhtin. é bastante útil para se pensar
o processo colaboratlvo. Apesar de se tratar de urna reflexão sobre a obra ele llIll úni-
co autor - no caso. Dostoievski - é possível expandir esse conceito para UHl {nado de
criação onde estão envolvidos vários autores.
O pensamento artístico ele tipo polifôníco se caracteriza pela presença simultânea
de vozes autônomas, mutuamente contraditórias. Segundo Bakhtin, trata-se da "multi-
plicidade ele vozes e consciências independentes e imiscíveis" formando uma "autêntica
polifonia de vozes plenívalentcs'?", Este aspecto da imíscíbilidade pode ser remetido ao
caráter autônomo - ou de relativa autonomia - das diferentes contribuições artísticas
dentro elo processo colaborativo. Corno já dissemos, não ocorre a sorna ou fusão das dife-
rentes áreas. Elas são consonantes. mas sem se dissolverem ou se desinregrarern uma na
outra; são contíguas. porém, às vezes. contrárias e até mesmo contraditórias entre si.
Por outro lado. essa independência pressupõe diálogo e interconexão entre as
diferentes [unções. O próprio pensador russo dirâ mais à frente que "o principal na
polifonia [...] é justamente o fato de ela realizar-se entre diferentes consciências. ou
seja. ele ser inreraçâo e a interdependência entre estas">. Ou seja, trata-se de uma
auronornia relativa. que não tem a obrigação de amalgamar os diferentes campos
artísticos. 1l1a5 depende do diálogo entre eles para se potencializar,
O processo colaborativo busca, na verdade, sínteses parciais, relativas a cada íun-
çâo. Tanto é assim que podemos identificar 1.11n conceito de 50111 . de luz. de interpre-
tação. etc.. que se justapõem uns aos outros. É claro que nesse deslizamento ele dis-
tintas concepções. ocorrem infiltrações, contaminaçôes, penei rações entre dobras e
sulcos. já que não se (rala aqui. de superfícies lisas, mas sim, precárias e acidentadas.
Porém, ínsísttmos. sem que haja dissolução ou desfiguracâo de campo. Por sua vez,
essas sínteses parciais comporão U1l1a síntese geral, não condicionada pelo imperatí-
vo da unidade de estilo ou pela padronização hornofõnica.
O próprio Bakhtin vai falar em "interaçdo de várias consciências imiscíveis">. o
que pressupõe um elemento dialógico e conectivo na autonomia por ele assinala-
da. Tal dialogismo. contudo, não implica homogeneídade. nem afinidade entre os
diferentes elementos constitutivos da obra. A criação se dá, ao contrário. a partir de
"mareriais heterogêneos, beterovalcntes e profundamente estranhos", resultando um
trabalho "poliest:ilistico ou sem estilo", upolienfático e contraditório'?",

24 n/\KUTIN. M. Pn)bt.:mas dt! Po~tica de DostoiévskL Rio de Janeiro: Forense Universitária,


2002. p. .t.
25 lbid.. p. 37.
26 Ibid .• p, 7 (grifo nosso).
27 Ibid.• pp. 13-1&~.
80

Essa multiplicidade de fontes, de matérias e de vozes é central no processo coíaborati-


vo, resultando também em complexa diversidade estilística. Ainda que o texto apresente
determinado [0111- o que nC1l1 sempre OCOlTC - ele poderá ser atravessado por urna trilha
sonora de caráter contrário ou colocado em um espaço fisico que lhe crie turbulências.
Tal dínârníca é diferente do caos ou da emropia. jzi que 11111 longo processo de conectivi-
dades e diálogos foi embasando e gestando aquela independência de estilos.
No plano ideotógico. ainda que haja princípios norteadores dentro do grupo - por
exemplo. determinada visão sobre o uso de verbas públicas ou sobre política cultural
- eles convivem COIll a presença de elementos clissonanres. Durante os ensaios é bastan-
te C0t11Unl o choque ou a contraposição de visões de Inundo díspares. Tais contradições,
contudo. não são extirpadas, mas sim, alimentadas. Ou seja. elas estarão explicitamente
presentes dentro da obra. revelando cisões inerentes ao grupo. Por outro lado. haverá o
movimento de busca por territórios intermediários, mínimos denominadores C0I11Uns,
enfim. soluções viáveis para que os diferentes pontos-de-vista sejam atendidos.
Urna diferença. talvez. em relação à criação coletiva pode ser aqui percebida.
Corno vimos, houve vários grupos em que U111 forte posicionamento ideológico e polí-
tico levava à produção de obras que deveriam espelhar e garantir. inequivocamente,
tal discurso. Contudo. na perspectiva da polifonia. a "multiplicidade de centros-cons-
ciência" não pode ser reduzida "a um denominador ideológico">, J~ curioso. porém.
que o próprio Santiago Garcia, de La Candelaria, invoque o conceito de Bakhtin C111
seus escritos teóricos. Segundo ele, "pelo fato de recorrer, desde o inicio, a vários tex-
tos. a diversas abordagens que vêm dos próprios integrantes ou de outros colabora-
dores no processo de criação do espetáculo. a criação coletiva. em geral, assume um
caráter intcrtextual e polifónico ou 'carnavalesco'. tal corno definido por Bí.\khtin..."·!9.
Ainda que não esteja incorreta tal associação. ela não dá conta da integralidade do
conceito bakhtiníano.
Outro elemento caracterizador da construção politõnica é a variedade e simulia-
neidade ele planos - textuais. filosóficos. sociais, culturais) etc. -. também denorní-
nada COlHO "multiplanaridacle". Esta característica leva) antes de tudo. a um cnfra-
quecimento do elemento dramático - quando não à sua destruição. Dai a afirmação
de Bakhtin de que Uno romance polifõnico de Dostoíevski o diálogo autenticamente
dramãtico pode desempenhar apenas papel bastante secundário">.
A dramaturgia - c a cena - produzida em processo colaboratívo vai incorporar essa
presença de planos distintos. identificáveis, por exemplo, no amplo espectro de regis-
tros. no cruzamento de referências. no choque ele discursos. na estrutura fragmentada
e no IllOS<lÍCO de textos e cenas, O elemento drarnãtíco coabita C0l11 o épico. o lírico. o
testemunho, o documental criando uma cena - e U111 texto - multifacetada.

28 nl\KHTJN. M .• Problemas da Poética de Dosfoié\'sJ...i, p. 16 (grifo nosso).


29 GI\Rci:\. 5 •• 'H:onay Prac(ictlcld leaLro, p. 80.
30 nAKIITIN. 1'01 •• op. cit .• P 16.
81

Outros traços fundamentais da polifonia são a coexistência e a illl"Craçiio. Tais ele-


mentes, na visão bakhtiniana. ocorrem no espaço e não no tempo. o que determina
- ao contrário do aspecto multiplanar - urna atração pela forma dramática. Para o
pensador russo isso provoca urna forma de interpretar o mundo que "procura captar
as etapas propriamente ditas em sua silnultaueidcule. confrontâ-las e contrapô-las drama..
ricamente e não estende-las numa série em formação'?'.
I~ importante pontuar que o aspecto sÍnutlldneo no processo colaborarivo não ocorre
apenas na obra acabada. Ele é parte determinante do sistema de feitura. Diferenremen-
te de trabalhos mais tradicionais - em que se t0I11él um texto já escrito, ensaia-se o mes-
1110 COIll os atores e, na seqüência, os outros criadores aportam as suas contribuições
- aqui. todas as áreas artísticas são desenvolvidas simultaneamcnrs, Não h.i o ímperauvo
de anterioridades e posterioridades. Portanto. as inter-relações entre os conteúdos e as
formas se dão contíguamente durante o próprio fazer - e não apenas na recepção. Daí
que, além de Ul113 cena polífõnica ternos U111 processo que, também ele, é polifônico.
Além disso. essa contigüidade e coexistência contribuem, durante os ensaios, para
o enfraquecimento ou relativização das hierarquias. 1\s diferentes funções estão colo-
cadas lado a lado, têm autonomia para propor rUIllOS, idéias ou recuos. Não pedem
permissão para se colocar nem interferir.
Ainda que Bakhtin esteja se referindo ao autor Dostoiévski, é surpreendente COn1Q
ele parece descrever, ao tratar da conjugação de múltíptas vontades e pontos-ele-vista.
a dinâmica de trabalho do processo colaboratívo - rodo ele pluralista e contraditório.
UH} exemplo disto aparece na afirmacão ele que

1...1 a cssêncía da polifonia consiste justamente no faro de que as vozes, aqui. per-
mancccrn independentes e. corno tais. combinam-se numa unidade de ordem supe-
rior à da homofonia. ('001 é precisamente na polifonia que ocorre a combinação de
várias vontades individuais. realiza-se a saída de princípio para além dos limites de
lIma vontade. Poder-se-ia dizer assim: a vontade artística da polifonia é a vontade de
combinação de muitas vontades, a vontade do acol1[ccin1ento.J~

A vontade do encenador é apenas urna entre várias, e no acontecimento-cena que o


grupo quer instaurar, o seu papel não parece ser o de criação à fórceps de Ul11a "unidade
de ordem", Ao contrário. sua contribuição é a de garantir o espaço de emissão das distin-
tas vozes, de estimular as suas altissonâncias sern, contudo. refinar a gagueira. o desafi-
namenro e a mudez, permitindo que urna possível "unidade" aCOITa C01110 fruto-adubado
dessas interações - a partir delas e ao fim delas. A ele, cabe o oficio eleouvir todas aquelas
vozes simultaneamente. de não se ensurdecer no barulho ou, então. de fazer do ruído.

31 nAKHTJN, M .• l)roblemlls da Poétial de Dosraiévski, p. 28.


32 Ibid., 1> 21. (grifo nosso}.
82

partitura. Ele 1150 da voz a ninguém - atitude paternalista indesejada - porque todos já
têm voz. são donos dela. E a sua própria voz. a voz do cncenador, n~10 é a de solista nem
de prima..dona. e nem também se encontra dissolvida nU\\1 coral indistinto. Ela é um
canto singular, contraponto e contracanto e. às vezes, só afonia e silêncio.
Mas e a unidade. tão cara él atividade da direção? Bern, talvez possamos respon-
der C0l110 Bakhttn quando ele afirma que "a unidade do romance polifônico, que
transcende a palavra. a voz e a ênfase. permanece oculta":". No caso do processo ou
da cena polifôníca, a sua unidade é produzida pela diversidade. ou. corno sugere o
teórico russo, encontra-se encoberta.

3.8 CONCEITO DE PROCESSO COLABORATIVQ

o termo processo colaborativo tem origem incerta. A palavra "colaborativo", por vol-
ta de meados da década de 90, ganhou maior emprego c ampliou as suas conotações
no meio artístico e cultural. Con1D já apontamos, o diretor inglês Max Sttaford-Clark
refere-se ao trabalho da sua companhia Our-of-joint C0I110 sendo collalJorat"ive \vork
(Utrabalho colaborativo"). Em livros de dramaturgta e direção pu blícados naquela
década. lançava-se mão deste vocábulo para a referência a qualquer processo de cria-
ç<10 envolvendo o elemento coletivo ou compartilhado. Anne Bogart. nos worksllOl1s
com a SlTI Company - da qual e diretora artistica - e durante os ensaios ele American
SilclltS 3-J • também utilizava freq ücntcmcutc a palavra colluborotion ("colaboração").
Baseados em lembranças pessoais. recordamos que durante os ensaios ele O Livro
de Já, do Teatro ela Vertigem. o termo "colaborativo" foi usado aqui e ali. ele maneira
informal, sempre C01110 f 01"111 a de caracterizar urna dinâmica de criação cornpartilha-
da e grupal. Porém não ternos claro o momento no qual Q grupo começa a empregar
conscientemente a expressão processo colaborativo. Talvez com o desejo de caracterizar
o que Iazíamos, aliado ao desgaste do termo cliaçiio coletiva. fornos denominando nos-
so trabalho por meio daquela expressão.
Além disso, esse espetáculo marcou também a parceria artística COUl Luís Alberto
de Abreu. dramaturgo que veio de significativa experiência coletiva no Grupo Marn-
bembe. Ao nos reencontrarmos alguns anos depois, corno professores da Escola Livre

33 H,\}(fl'flN, M .• Problemas d(l PoJrka de.' Dostoil~\'ski. P.45.


34 Durante o período de 1996- 1997. por lucia da bolsa Fdlo\\'ship (\fth~ Am~lic(S.s. concedida
pelo Kcnnedy Center for lhe Performing Arts. tive a oportunidade de acompanhar o
processo de ensaio de vários diretores amerlcanos. Entre eles. Arme Bogart, COIU a qual,
além de workJzol's e aulas na Columbia Universiry, realizei estágio de observação da
montagem de I\.mclic<ltl SHcnts.
83

de Teatro ele Santo André - onde coordenamos vários cursos juntos. reunindo alunos
de dramaturgia e direção - Abreu também adotava a expressão processo colaborortvo.
Fora dali. em outras companhias e coletivos. ouvíamos o lllCS1l10 conceito ou simila-
res: dramaturgia colaboratíva: processo compartilhado: dramarurgia CJH processo; teatro
coletivo; criação grupal, etc. Todos eles querendo traduzir Ulll tipo de fenômeno que não
ocorria apenas no campo do teatro. Se pensarmos nos coletivos de artes plásticas (Bijari: A
Revolução Não Será Televisionada; etc.), de cinema, de música, entre outros, rodos apon-
tavam para projetos de compartilhamento ele autorias. l\1eSI110 fora do universo elas artes.
experiências COI110 a da Wildpedia ou do jornalismo colaborativo são exemplos disso.
Portanto, menos importante do que determinar a autoria ou a origem exata da
expressão processo colllborativo é flagrar a tendência de época, o contexto histórico
particular, a inquietação relativa ao rnodo de fazer teatro. que colocava em sintonia
diversos artistas e companhias, dentro e fora do país.
No caso do Teatro da Vertigem, adotamos e continuamos a usar essa expressão
pelo significado e força que a reunião destes dois vocábulos suscita: o elemento "pro-
cessual" aliado ao "trabalho cru conjunto". Essa ênfase colocada na idéia de processo.
ern que o "colaborativo" funciona C01110 urna qualidade ou característica intrínseca.
é bastante relevante. Além, é claro. do parentesco com outra noção valiosa. a de \vork
in process, que, segundo Renato Cohen "conceitualmente [...1 carrega a noção ele tra-
balho e ele processo">. Nesse sentido. parece-nos fundamental o exame em separado
dos dois vocábulos-conceitos que C0111pÕenl a expressão processo colaborativo.

3.8.1 IDÉIA DE PROCESSO

Afastando-se das idéias de "genialidade". "inspiração" e "obra-prima", a arte con-


tcmporânea instaura um novo paradigma de produção e recepção, caracterizado pelo
elemento da precariedade. do transitório, do inacabado e do processual. Valoriza-se
a luta COIll a materialidade. o percurso de formação da obra, o trabalho do artista,
corno antídoto às mistifícações de toda ordem relativas à criação. Ou seja. ocorre o
deslocamenro da ênfase dada apenas à obra concluída, passando-se a valorizar tam-
bém o seu processo de construção. MeSIl10 a idéia de "ponto final" é posta em xeque.
As obras - corno seus processos - estão marcadas por um movimento contínuo, tran-
sitório. sempre aberto a novos desdobramentos.
O teatro, pelo caráter de reversibilidade de sua escritura. já que não se encontra

35 CDHEN. '\Vork in Progrcss' na Ceua CorHcmpoz-t1uea: aiw;ão, cuccnaçüo c rcc«.'pção. São Paulo:
H.
Perspectiva. 1998. p.20.
84

gravado na fixidez de 11l1l suporte imutável - o que ocorre C0111 a fotografia. a literatu-
ra ou o cinema. por exemplo, - configura-se como lugar privilegiado ela mutabilidade.
}\ idéia de "estréia" vem sendo cada vez mais relativizada pelas noções de "ensaio
aberto" ou de "abertura pública do processo", I~ cada vez mais C0111UI11 a perspectiva
de um trabalho sempre em desenvolvírnento, que vai produzindo novas versões de si
nlCSn1Q durante o período de apresentações. Aliás, é justamente o fim da temporada
que. hoje. marcaria o fim da obra - e de seu processo. E essa finalização, na maior
parte das vezes. não é caracterizada pelo gesto deliberado. volitivo e heróico da "últi..
rua pincelada", luas é fruto do abandono. da desistência. do cansaço ou incapacidade
em continuar transformando aquele material vivo. O que existe é apenas a "última
versão", não mais a "versão final".
Ainda que o público e parte da crítica avaliem com reserva e preconceito essa
categoria do provisório. enxergando ali preguiça. descuido ou até I11eSnl0 má-fé por
parte dos artistas, o que está em jogo é um novo paradigma do fazer teatral. A "obra-
em-aberto". o "espetáculo inacabado.... o work in progress - ao contrário do que. se ima-
gina - requer investimento de tempo e trabalho muitas vezes superior ao da "peça
pronta". Isso porque não existe repouso nem acomodação. O imperativo da constru-
çâo-rcconstrução permanente é o oposto da lassidão, do afrouxamento. do "colher os
louros", Planta-se e ceifa-se, aduba-se e poda-se todo o tC111pO. nU111 fluxo de criação
ininterrupta. O que demanda um novo olhar e UI11 instrumental crítico diferenciado
por parte da recepção.
'\0 pensarmos o percurso da criação - ou trazê-lo para o primeiro plano - dirc-
cionamos nosso olhar para os meios materiais e para o {nado de produção cIo fazer
teatral. Essa abordagem cria também uma tensão entre processo e produto, que aca-
ba sendo iluminadora para ambos. Aliás - e é preciso insistir nisso - a ênfase na dis-
cussão sobre os procedimentos de trabalho e sobre a trajetória de construção da obra
não elimina ou abole a instância da recepção.
No universo do teatro, por mais que os ensaios tenham a duração de anos e
que ocorram encerrados em recônditas salas. sem nenhuma instância de abertura
pública, esta última certamente é desejada pelos artistas e ocorrerá em momento
oportuno. Mesmo os chamados "grupos de treinamento" treinam para. em alguma
instância ou em algum trabalho futuro. materializarem o contato C0I11 os especta-
dores. Corno afirma o prof. Jacó Guinsburg. não existe teatro sem recepção. e ela
ou é lIIll pólo subentendido e potencial durante o período de feitura, ou é trazida
concretamente para compartilhar do processo de criação - e da obra daí resultante.
Portanto. discutir a trajetória de construção não se restringe a urna instância urnbí-
lical e auto-centrada, isolada do mundo, mas, ao contrário. pressupõe. planeja e
estimula o lugar e a ação do espectador. Ou seja. o ato criativo não se completa sem
a sua comunicação,
Amparados pela discussão estabelecida pela crítica genética. podemos pensar o
85

período de ensaio corno llIll "texto móvel">, escrito e apagado a várias mãos, por
todos os artistas envolvidos e pelo próprio público - quando este é convidado a inter-
ferir nos rUBlOS da criação. Período SíSI11ico, turbulento e instável que produz uma
"escritura" de igual natureza. Nesse sentido, talvez seja fecundo pensar o processo ele
trabalho corno UOl "texto", como urna "obra" também, com elementos estruturais,
operadores e dispositivos, e até mesmo com precipitações estéticas. É claro que sem-
pre perpassado pelo provisório e pelo transformativo.
U111 processo tem natureza tateante. composta pelo movimento contínuo de se

fazer, desfazer e refazer. Ele é regido pelo princípio ela incerteza. No desenrolar ele
sua trajetória. os poucos marcos de orientação sinalizam. às vezes. apenas aquilo que
não se quer. O descarte. o "não", a recusa tem força de gerrninaçâo, A forma vai sur-
gindo ele urna dinâmica de exclusões. Por esse ângulo. o processo não é democrático.
ele não acolhe tudo. ele expele e regurgira, põe para fora, elimina.
Por outro lado. na medida em que permite que os elementos, as propostas. as
idéias venham à tona e sejam discutidas e/ou experimentadas, ele assume um caráter
profundamente dcmocratízante. É esse lugar paradoxal o hahitat do processo colabo-
rativo. Ele admite e estimula que o ator traga urna cena-depoimento baseada em suas
memórias mais preciosas, para. em seguida. descartá-la, rcdirecíonã-Ia para outro
ator ou ainda. transformá-la inteiramente.
Cecília Almeida Salles, pesquisadora das diferentes linguagens artísticas dentro
do campo da crítica de processos. vai pensar o ato criativo a partir da noção de "tcn-
dêncía", ou seja. (01110 movimento dialético entre rUBlO e incerteza. Essa perspecti-
va abre espaço para o acolhimento do acaso. tornando-o UHl operador importante
na construção da obra. Segundo ela. "aceitar a intervenção do imprevisto na conti-
nuidade do processo com tendência. imptica compreender que o artista poderia ter
feito aque la obra de modo diferente daquele que fez. Admite-se que ou iras obras
teriam sido possíveis":". Em outras palavras. a obra acabada é. ao üm e ao cabo.
apenas Ul1UJ possibilidade de precipitação dentre inúmeras outras. experimentadas
durante o processo. Ela é a possibilidade que se fixou.
Salles acrescenta ainda outro aspecto importante. O da "falha" - ou. se quiser-
IllOS ampliá-lo, podcríarnos nomeá-lo C01110 "fracasso". Para ela. "o movimento cria-
tivo mostra-se. também. C01110 UIU percurso falível. As rasuras dão a conhecer as
diversas nuances de erros e das diferentes maneiras de enfrentarnento dessa possi-

3 6 Philippe Willernart afírma. entre algumas definições possíveis de "texto móvel", que
"carregado de sentidos 'desconhecidos' do escritor. o 'texto móvel' insiste até estar
completamente esvaziado c tornando-se um espaço oco sem mais poder sobre o escri-
tor. a ponto de liberá-lo e deixando-o entregar o texto ao editor" (In: ZUtAR, R. (org.).
Cnnçiio em Processo: ensaios de rriticn gt.'uética, p. 78).
37 ZUlAH. R. (org.). C,;açüo em Processo: ensaios de Criticcl gc:n~tíca. p. 1.86_
86

bilidade de erro'?". Talvez a angústia do processo criativo resida justamente nesse


ininterrupto embate COll1 o fracasso. O "fracassar de novo. o fracassar melhor", na
visão beckcttiana.
Daí a dificuldade de se concluir a obra, de se considerar que ela esteja pronta. O
fim do processo representa. apenas. "um ponto final suportável" na medida em que
lia artista se vê diante ela impossibilidade de determinar o último absoluto'?".
No pólo oposto a este, encontra-se a tentativa de determinação do ponto de parti-
da. Buscar a origem da obra. o exato 1110I11ento do primeiro impulso, não passa de ilu-
são. Isto porque urna obra engendra a seguinte, dentro desta j~l existem os elementos
embrlonários, os esporos daquela. O percurso criativo está marcado por elos. cone-
xões, continuidades insuspeitas IneS1110 em momentos de ruptura. Segundo Salles, "a
abordagem do movimento criador. C01110 urna complexa rede de inferências. reforça
nossa contraposição à visão da criação corno urna inexplicável revelação sem história.
ou seja, urna descoberta sem passado e futuro":",
O processo - no constante diálogo entre o sensível e o intelectual - rearticula. pro-
1110ve combinatórias c associações de elementos. o que o faz estar sempre numa zona-
limite. de intensidades e hesitações, de pulsões e recalcarnenros. Ele tem a tarefa de
tornar visível o nebuloso, de dar forma ao vago e ao abstrato.
Saltes vai discorrer também sobre a tensão entre limite e liberdade, em que. por
UI11 lado, o artista tem possibilidades infinitas para a sua criação e. por outro. ele

deverá enfrentar e constranger a sua obra às leis intra e extra-processuais. Pois, "criar
\\vrcnlenle não significa poder fazer qualquer coisa, a qualquer 1l101l1Cnro. em quais-
quer circunstâncias e de qualquer maneira. mas fazer seleções e tornar decisões.
Limites internos ou externos il obra I...) oferecem resistência à liberdade do art ista
c revelam-se C0l110 propulsores da criacão":". Além do que. 111UÊtos desses limites
podem ter sido criados pelo próprio artista, corno mecanismo interno de embate ou
corno instrumenro de auto-estimulação.
Por fim. caberia ainda falar sobre a questão do inacabarnento relativo ao proces-
so. Há sempre uma diferença insuperável entre aquilo que o artista deseja realizar e
aquilo que ele de fato consegue. Daí. o processo - c o objeto dele resultante - estarem
fadados à incornpletude. Porém, ao contrário ela resignação. esta permanente insa-
tisfação é ativa e propulsora. É justamente por essa busca incansãvel da melhor obra
possível que o processo nunca finaliza. Ou seja. "o objeto 'acabado' pertence a ll111
processo inacabado":".
Essa luta infinda entre acabamento e inacabamento, essa sensação de urna obra

JS ZUT.AR. R. (org.], CJiaçlio em Pvcccsso: ensaios de ctÍtica gcnc:ticll, p. 186.


39 Ibid.• p. t 87.
40 lbid.• p. 188.
41 Ibid.• p. 195.
42 Ibid.• p. 199.
87

que sempre fracassa em se concluir. ele UHl processo esticado até o último dia de
apresentação. de 11111 estar sempre "em obras". remetem ao tipo de espetáculo-em-
processo que vívenciarnos no Teatro da Vertigem.

3.8.2 IDÉIA DE COLABORAÇÃO

o segundo vocábulo ela expressão processo colaborativo materializa a dimensão cole-


tiva do fazer. o construir junto. o criar compartilhado. Esre aspecto múltiplo e asso-
ciativo caracteriza toda a estruturação do processo. que é marcado pela pluralidade e
precisa se organizar de forma a atender sua natureza multivocaí. Determina também
urna conformaçâo estética contaminada. contraditória. com a memória de várias
mâos impressa no corpo da obra.
Porém, antes de tudo. talvez coubesse a pergunta sobre o que motiva essa força
ele agregação, o que caracteriza esse "estar junto". Partindo de uma perspectiva mais
abstrata, poderíamos recorrer às reflexões filosóficas de jean-Luc Nancy sobre o sen-
tido de c0111unidade, do viver em COHHH1L Segundo ele, por exemplo, "não h~l a cornu-
nhâo, não há o ser COnlU111, h~l o ser em COIllUI11. (... 1j\ existência só é para ser partilha-
da. Mas esta partilha {...1 não distribui U111a substã ncia nem um sentido comum. Ela
só partilha a exposição do ser. a declinação de si. o tremor sem rosto da identidade
exposta: ela 110S partilha":".
Essa instância da exposição pessoal. da divisão não de coisas ou de objetos. }11aS
da partilha de nós mesmos, uns com os outros. parece ficar ainda mais acentua-
ela dentro de um grupo de teatro. O labor C0111UI11 se alimenta do tutano dessas
diferentes identidades, das memórias e dos desejos pessoais os mais recônditos,
de segredos que são "revelados" - ou encobertos pela metamorfose cênica - em
irnprovisaçôes c \vorkshops.
A questão do comum vai reaparecer no conceito de Juulticlão de Antonio Negri, que
procura distanciá-la da idéia de "uniforme" ou de "idêntico". Ela também não teria
nada a ver com o "igualitário". Segundo ele. 1fluItidão não pode ser vista corno sinôni-
1110 ele "massa", informe e descaracterizada. mas corno uma "multipticidade ele sin-
gularidades", que buscam "construir de maneira cooperativa formas e instrumentos
comunirarios":". Ora. não é justamente essa tensão entre singularidades criativas que
funda a dinâmica do processo colaborativo?
Ele afirma ainda que tais "singularidades mantêm certamente sua força própria.

43 NANey. j-L I.Cl Commuuauté Désoeuvréc. Mesnil-sur-I'Estrée: Christian Bourgois Édít.cur.


200.1. pp. 208-209.
44 NEGRl. A. Cinco Lições sobre o Império. Rio de janeiro: DP&A editora, 2003. PI>. 45-46.
88

11laS a mantêm dentro de uma dinâmica relacional, que permite construir. ao mesmo
tC111pO. a si 111CSll1as e ao todo":". Parece-nos surpreendente como essa conceituação
poderia ser utilizada, quase sem nenhuma adaptação para definir o modo de criação
compartilhado que estamos tratando aqui.
Porém, C011'\O se organiza esse comum? Para o sociólogo italiano. o problema "não
é juntar indivíduos isolados, luas construir de maneira cooperativa formas e instru-
mentes comunitários c conduzir ela reconhecimento (ontológico) do comum":", Essa
afirmaçâo do "singular", do "subjetivo" - e não do "individuar' - dentro (~O "rnúltí-
plo", proporciona-nos urna chave bastante útil para pensar o processo colaborarívo.
Isto porque nele, quanto mais radicalizada estiver cada singularidade artística. mais
potente e eficiente ocorrerá o processo de criação.
Tal percepção fica reforçada quando. mais à frente. NCgIi acrescenta que o trabalho da
multidão é U111 produto das relações entre singularidades. e especialmente, em sua defi-
nição de multidão: "comunidade de diferenças I...] onde as singularidades são concebidas
COlHO produção de diferença. O COlllUI11 (na multidão] nunca é o idêntico. não é 'comuni-
dade..··l i . Ou seja. uma noção já bem distante daquela enunciada por Piscator, ao propor
urna "comunidade homogênea". Pois a homogeneidade ali revelava UI11 projeto de aparar
ou pacificar as diferenças, em nome da consolidação de urna ideologia e de UHl projeto
artístico único. Aqui. ao contrario. quer-se acirrar as diferenças, colocá-las em choque. C111
litígio. fazendo com que as singularidades produzam cada vez mais diferença. mais hcte-
rogeneidade.A singularidade, por sua vez. "é feita do conjunto e faz o conjunto":".
Baseados nessa abordagem poderíamos definir o processo colaborativo corno um
conjunto mulrifuncional de subjetividades que constroem simultaneamemc. a si
mesmas e ao todo, produzindo urna obra de natureza heterogênea, não-hicrarquixa-
da e multidisciplinar,
Daí pensarmos que a criação coletiva poderia ser vista COlHO a associação ele artis-
tas polivalentes, sem função definida, em contraposição ao processo colaborativo,
de caráter multifuncional. Pois. para este último, é fundamental a manuteução das
funções artísticas e o diálogo objetivado entre elas.
O sociólogo italiano vai ainda mais longe, concluindo que "o trabalho, hoje. para
ser criativo, deve ser 'comum', ou seja. produzido por redes de cooperação":", Essa
idéia de rede. de processos determinados por redes relacionais, vem também sendo
utilizada por vários outros pensadores. COlHO eixo paradigrnãtico para refletir sobre
a cultura e a arte contemporânea.
Cecília Almeida Salles, em sua obra mais recente, estuda os processos de criação

45 NI~GIU. 1\. Cinco Hções sobr~ o Irnl'élio. Rio de Janeiro: DP&A editora. 200]. pp. 14~.
46 lbid.• pp. 45-46.
47 lbid.. p.148.
48 lbid.. p. 159.
49 lbid.. p, 153.
89

justarnente a partir dessa visão reticular. O seu interesse central é "pensar a criação
COI110 rede de conexões. cuja densidade esta estreitamente ligada à multipücídade
das relações que a mantém. No caso do processo de coustrução de urna obra. pode-
1110S falar que, ao longo desse percurso. a rede ganha complexidade à medida que
novas relações vão sendo estabelecidas'?"
Baseada nas análises de André Parente - que vê na noção de rede a instauração
ele um "pensamento das relações" em contraposição a um "pensamento de essências"
- Sallcs vai apresentar as características fundamentais dos processos conrcmporãne-
os ele criação: "simultaneidade de ações. ausência de hierarquia, não linearidade e
intenso estabelecimento de nexos">'.
Aliás. a defesa da eliminação de hierarquias - e também da simultaneidade ele
ações - corno característica da cena atual. aparece na definição de Hans-Thies Leh-
rnann do teatro pós-dramático. Segundo ele.

I...] um princípio geral do teatro pós-dramãtico é a des-híerarquização dos recur-


sos teatrais. Essa estrutura não-hierárquica contraria nitidamente a tradição.
que para evitar a confusão e produzir a harmonia e a compreensibilidade privi-
legiava UI11 modo de concatenação por hípotaxe. norrnatizando a sobreposição
e a subordinação dos elementos. Com a l)(uO(Jtdxe do teatro pós-drarnâtíco os
elementos não mais se concatenam de rriodo inequívoco.'?

Evidentemente, a ênfase colocada por Lehmann nessa eles-hierarquização repousa


sobre a obra em si e na sua recepção por parte do espectador. Contudo. é oportuno
conectar essa supressão de hierarquias ao percurso de feitura ela obra. Ú aí onde a dinã-
mica do processo colaborativo tem urna de suas âncoras centrais, Podemos. de fato .. pen-
sá-lo COI110 um processo rclacíonal, reticulado. construído a partir de múltiplas e móveis
interações. Na dimensão inrra-grupal, esta rede de conexões ocorre entre todos os cria-
dores envolvidos. Porém. ela se d~í também em dimensão cxtra-grupal, dos artistas C0111
o seu entorno. seja por meio da pesquisa de campo ou de ações pedagógico-artísticas na
comunidade, seja pela interferência dos espectadores na construção da obra.
Nesse sentido. o conceito de Salles de "criação corno rede em processou cabe intei-
ramcnte aqui. Pois se trata de um modo do fazer teatral alicerçado no contato. nas
contaminações. nos pactos. nas mútuas afetações. no estímulo às interferências COlHO
forma de desenvolver a criação. Segundo a autora. as 'interações são "responsáveis pela
geração de novas idéias ou possibilidades de obras'?".

50 SAI.tES. c. A. Redes da Criaçtio: COIlS111tÇt;O da Obr'C1 de arte. Vinhedo: Edírora Horizonte. 2006.
p.17.
51 Ibid.• p.17
52 l.EHMJ\NN. H.-T. °lhHro l)ós·dremuícico. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 143.
53 SALlES~ C. t\..~ op. cit., p. 34.
90

Ela invoca ainda Edgar Morin, nos seus estudos sobre complexidade, o qual defi-
ne as interações corno "ações recíprocas que modificam o comportamento ou a
natureza dos elementos envolvidos: supõem condições de encontro. agitação. tur-
bulência e tornam-se. em certas condições. inter-relações. associações. combina-
ções, comunicaçôes. etc.. ou seja, dão origem a fenômenos de organização">'. Um
pouco mais à frente. Morin conclui que "a realidade, no entanto, é feita de laços e
interações, e nosso conhecimento é incapaz de perceber o complexus - aquilo que é
tecido em conjunto" 55 •
Aliás, refletir sobre o processo colaborativo à luz elas teorias da complexidade
não deixa ele ser estimulante. Pois. é da natureza desse modo de criação se constituir
C0l110 processo complexo e multícomposto, repleto de ambivalências c plurivalên-

cias. Por exemplo. ao pensarmos CIU fenômenos e formas de organização. () processo


colaborativo se assemelha ao dos sistemas dínãrnicos. "situados em algum ponto
entre a ordem na qual nada muda COlHO pode ser o caso elas estruturas cristalinas. e
o estado de total desordem ou caos corno é o caso da dispersão da fumaça li$(;.
Essa forma de organização. que não tem a rigidez do teatro tradicional nem a
falta de norte de experiências toralmente à deriva. nos auxilia a entrever um tipo de
organização mais móvel, permeável, aberta ao imprevisto. baseada numa estrutura
C0l11 fundações mais maleãveis. Um processo que é capaz de instaurar o caos e se
nutrir dele. luas sem, C0l11 isso. tornar-se seu refém.
Nesse sentido, a questão das funçôes volta a desempenhar papel importante,
Recordamo-nos da palestra do físico teórico Nelson Fiecllcr-Ferrara aos alunos do
curso de Direção Teatral da ECA-USP. no 2° semestre de 2004. Cln que ele defendia
a complexidade COI110 UIl1 fenômeno distinto de entropia. Segundo ele, dada a difi-
culdade crescente em se conhecer a fundo qualquer assunto - por suas inúmeras
camadas. desdobramentos, vasta bibliografia disponível. grande quantidade ele pes-
quisadores. centros de referência no Inundo todo. etc. - a saída não se encontraria
mais na multi-especialização - idéia. vale ternbrar, defendida pela criação coletiva.
Ao contrário. o exercício da complexidade consistiria em trocar. dialogar. compar-
tilhar o conhecimento Clprofttndado de sua área com a ele outros especialistas em
áreas distintas. Tais irnbricamentos e retro-polinizações seriam capazes de produzir
novos conhecimentos e criações. evitando o risco da superficialidade,

54 SALU:S. C. A.• Redes da Cliaçc1o; COll5tfllÇij() c1(1 obnl de urte, p. 24.


55 Ibid .• p. 24.
56 MORIN. 1:.; CIURANA. l~-Ro: MOlvrA. R. O. Educar fUI Era PlcmeuÍlia: o peuseunenlo complexo como
método ele llprendizagem IJdo etrt: c incerreza lrumcuw. São Paulo: Cortez Ed.. 2003. p. 46.
91

4 ESTUDO DE CASO: O PROCESSO DE ENCENAÇÃO DE O LIVRO


DE JÓ, APOCALIPSIE 1,,17 E SR-3

"0 mapa é (lbt!rto, é conectâvel CI1Z todas as suas diuw1ls()cs, des-


rnontdvcl, reversível, suscetível de receber moclijlcaçür.!s conslan-
temente. Ele pode ser nlsglldo, revertido, adaptar-se (l rnont«-
gcns de qualquer nnrurezs, ser prepilrlldo por um indjvíduo, um
grupo, unm fonnação social. Pode-se desenhá-lo numa pnrede,
conccbê-Io como obra de urre, coustruí-Io como uma açâo políti-
ca ou COUto uma meditllçdo.'·
(CHies Deleuze e Félix Cuattari, l\fil Platôs)

Após a discussão de caráter teórico realizada nos capítulos anteriores. julgamos im-
portante realizar U111 diálogo COIn casos concretos da prática teatral, no sentido de veri-
ficar procedimentos c dínãmicas relativas à pesquisa por nós empreendida. Escolhemos,
então. analisar três processos realizados pelo Teatro da Vertigem. que resultaram nos
espetáculos O Livro de J6 Apocalipse 1,11- que COlllpÕe111 a Tfilogia Bíblica - e BR-3.
y

Diferentemente ele nossa díssertação de mestrado. na qual realizamos minuciosa


descrição de todo o percurso dos ensaios e analisamos os vários aspectos c etapas da
construção de O Pnrníso Perdido. pretendemos agora enfatizar o âmbito ela direção.
Apresentaremos, é claro. numa espécie de sobrevôo, os mapas de percurso. a fim ele
que se possa ter 11111 panorarua da trajetória de feitura dos espetáculos. Porém, () alvo
de nossa reflexão será os diferentes aspectos ela criação do encenaclor. no âmbito do
processo colaborativo.
jusuuncntc pela natureza coletiva dos trabalhos aqui descritos. os problemas de
encenação vinculam-se orgânica c necessariamente às outras áreas de criação. Por-
tanto) se abordamos questões draruatúrgicas ou interpretativas. por exemplo. é por-
que elas dizem respeito, de urna forma ou de outra, a questões de direção. seja na
condução elo processo, seja no desenvolvimento da escritura cênica da montagem.
Tornando C0l110 base os cadernos de direção e anotações pessoais, além do ape-
lo à memória nas inevitáveis lacunas de registro, procuraremos, quando necessãrío,
recorrer a depoimentos de outros criadores que fizeram parte dos trabalhos aqui
tratados. Recorreremos ainda a textos escritos por participantes dos processos. que
aparecem na forma de programas das peças. livros sobre a companhia e trabalhos de
pesquisa de cunho acadêmico e não-acadêmico. Além disso. em razão de nossa parti-
cipação concreta nesses processos de criação, realizaremos esta reflexão alternando
a redação do texto entre a primeira e a terceira pessoa do singular e. pelo aspecto
coletivo dos processos, também na primeira pessoa. do plural,
92

Pelo fato de já ter sido examinado exaustivamente em nossa dissertação, conside-


ramos não ser mais necessário discutir o percurso de realização ele O Paraíso Perdido.
Ele será retornado apenas a título de exemplificação ou contraponto. quando ne-
cessário. lniclaremos. portanto. nossa investigação. a partir do segundo trabalho da
companhia. isto é. O Livro de jó.

4.1 O PROCESSO DA ENCENAÇÃO EM O LIVRO DE JÓ 1

o percurso ele construção do segundo espetáculo ela Trilogia Bíblica do Teatro da


Vertigem vai sedimentar alguns dos princípios e procedimentos presentes no traba-
lho anterior. ao lneSI110 tempo em que. decididamente, recusará outros. Ninguém
saiu ileso do Paraíso e foram necessários vários meses para o entendimento e absor-
ção daquela experiência. A sua longa temporada. com cerca de nove 111eSeS de apre-
sentações ininterruptas. permitiu-nos reavaliar nossa dinâmica de trabalho antes que
tivéssemos que projetar os próximos passos da companhia.
Porém, antes de tratarmos das novas configurações que o processo de O Livro de Já
vai assumir, gostaríamos de apresentar. grosso modo, a sua estrutura geral e as dife-
rentes etapas de seu percurso:

• Período ele trabalho do dramaturgo com () diretor: etapa em que foram


discutidas e definidas as questões centrais relativas <'l adaptação elo texto
bíblico e ú criação drarnatúrgtca- (agosto a dezembro de 1993):
• Estudos teóricos e análise do livro bíblico Já: leituras e discussões realizadas
pela direção e atores. sem a participação do dramaturgo (outubro a dezem-
bro de 1993);
• Início dos ensaios prãtícos: etapa de livre-exploração dos ternas e persona-
gens. realizada durante um mês, sem a presença do dramaturgo. Esse mês

Este processo de criação contou com a participação de Luís Alberto de Abreu, na drama-
turgia e dos atores Daníella Nefussi, Matheus Nachtergacle, Miriarn Rinakli. Sergio Srvíe-
ro, Siornnra Scnrõder e Vander\ei Bernardino. A assistência de direção foi feita por Marcos
Lobo. que havia trabalhado COl110 ator em O Paraíso P&."rdiclo. A ficha técnica completa. com
a descrição de todos os criadores e colaboradores, tanto deste processo como dos dois
outros que serão analisados a seguir, pode ser consultada nos anexos desta tese.
~ Luis Alberto de Abreu desejava. desde o início. que o seu trabalho em O lJ,,'ro de Já não
fosse uma "adaptação", mas sím uma "recriação" do texto bíblico. Por outro lado, a
direção não pretendia uma rccríação transfigurada da matriz original. corno cru Ha-
mlet-mdquinu ou Medcamaterial. de Iíeiner Müller. O resultado final parece ter ocupado
um lugar Intcrmcdíãrio entre esses dois pólos.
93

inicial era sempre referido. durante o processo, C01110 "o período da Hebrai-
ca", pois os ensaios ocorreram no Clube A Hebraica) (janeiro de 1994);
• Apresentação para o grupo da primeira versão do texto. seguido de sua
análise e discussão C01l1 a dramaturgia (fevereiro de "1994):
• Período de análise ativa: etapa de experimentação prática da peça, culmi-
nando na definição dos papéis (março-abril de 1994);
• Levantamento cênico do texto e produção de novas versões ela drarnatur-
gia (abril a outubro de 1994):
• Trabalho de aprofundamento das interpretações e ele esboço das marca-
ções (julho a outubro de 1994);
• Entrada no Hospital Urnberto Primo: ensaios de exploração elo espaço c
definição da trajetória do espetáculo (novembro de 1994);
• Finalização do trabalho de encenação: aprimoramento elo desenho gestual
e das marcações: refinamento da espacialização das cenas e ensaios de uti-
lização dos objetos hospitalares (dezembro de 1994 a janeiro de 1995);
• Abertura para o público. por meio da realização ele dois ensaios gerais e
urna pré-estréia (6 a 8 de fevereiro de 1995):
• Estréia do espetáculo (9 de fevereiro de 1995):
• Novo período de ensaio para a realização de modificações (fevereiro a abril
de 1995);
• Temporada de UI11 ano e sete meses, COll1 apresentações de quinta a do-
mingo e sessões duplas aos finais ele semana (até 08 ele setembro ele 1996).

A primeira instância a ser analisada remete às dificuldades da dramaturgia C111 pro-


cesso. Por ter se tratado da primeira experiência do grupo C0111 criação colaborativa, a
construção dramatúrgíca em O Paraíso Perdido ocupou quase todo o tempo do processo,
roubando muito do espaço de trabalho que deveria ser dedicado aos atores c à cena.
Até a beira da estréia todos tinham atuado. quase que unicamente. C01110 atores-drama-
turgos ou diretor-dramaturgo, sern tempo de dedicação para as funções específicas.
É claro que. no processo colaborativo, a drarnaturgização é compartilhada por lo-
dos. não sendo função exclusiva do dramaturgo, O problema, porém, reside no fato de
que o processo de ensaio não é sinônimo apenas de criação dramatúrgica e nem pode
privilegiar demasiadamente este aspecto em detrimento dos demais. O processo tatu-
bém é "colaborativo" na criação das personagens, da cena, dos figurinos. da luz etc.
Em razão disso. decidimos que o texto/roteiro elo próximo projeto seria esboça-
do no período anterior à entrada em sala de ensaio. e que só inicinríaruos os traba-
lhos práticos quando tivéssemos a primeira versão da peça. Aí sim esse texto seria

3 Nos meses seguintes ao trabalho na Hebraica. c anteriores à entrada no Hospital U01-


berto Primo. os ensaios foram realizados na sala dos Alcoólatras Anônimos, na Igreja
Santa Ifigênía.
..
~..:.~

94

explorado. transformado. modificado, e as sugestões dos atores e da direção a ele


j ncorporadas.
A idéia, portanto. não era abdicar da dramaturgia em processo, mas sim propor o
seu encaminhamento de outra forma. O Livro de Já representou urna resposta a esse
desejo. O processo de escritura da peça compreendeu UI11 primeiro momento em
que apenas o diretor e o dramaturgo trabalharam juntos, produzindo mais de urna
versão do texto: e 11111 segundo momento em que novas versões foram sendo criadas
a partir da colaboração concreta dos atores.
Urna crítica que poderia ser feita a esta segunda etapa, diz respeito à pouca presen-
ça do dramaturgo em sala de ensaio. Por urna série de Iimitaçóes externas ao processo
- corno. por exemplo, o horário de trabalho do grupo ou o local de moradia do escritor
- não foi possível contar com a sua participação in loco o quanto gostaríamos.
Para minunizar o problema e garantir a natureza colaborativa do processo. foi
uccessária a criação de urna nova atribuição para o diretor. Ele deveria recolher se-
manalrncnte todas as observações e críticas dos atores e levá-Ias pessoalmente ao
dramaturgo para a sua apreciação. Juntos. os dois discutiriam também o que havia
ocorrido nos ensaios, mapeando tanto as novidades e descobertas. quanto as necessi-
dades, dúvidas e problemas. O diretor. portanto, assumiu um papel de porta-voz dos
atores na relação COll1 a dramaturgia. Essa dinâmica de mediação alterava, IHélS não
enfraquecia o caráter coletivo da proposta.
Abreu, porém, em urna entrevista. parece não reconhecer as interferências dos
atores corno parte do processo de construção do texto de O Livro de Jô. Segundo ele.
"tinha informações de corno chegavam as cenas escritas ao elenco, mas isso sempre
através do diretor, Nesse sentido ndo houve sugestões dramatúrgicas por parte do
elenco. Havia. sim. muita conversa e discussões com o diretor, sobre personagens. ce-
nas. trechos do texto bíblico a relevar ou desconsiderar":'. O que talvez o dramaturgo
tenha esquecido é que todas as discussões a que ele se refere Ioram alimentadas por
urna lista semanal de problemas ou sugestões trazidas à baila pelos atores. I~ lógico
que a elas se juntavam as minhas próprias considerações enquanto diretor - o que
pode ter acentuado essa impressão de um trabalho textual circunscrito ao díãlogo
dramaturgo-encenador -~ porém é Inegável a contribuição dos intérpretes no percur-
so de desenvolvimento da peça.
Evidentemente que. ao longo do extenso período de ensaios - C0l11 duração de
cerca de 11111 ano e dois meses - houve momentos em que recebíamos a visita do
dramaturgo. Em (ais ocasiões. realizávamos "corridos" de lodo o material trabalhado

4 in; w. O l-ivro ele Já, ele LuísAlberto tIr: ~~ln'(!u: mito e invenção dramática. 2000.
ANDt{ADE. W,
199 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Filosofia, Letras e
Cíências Humanas. Universidade de São Paulo. p. 164 {grifo nosso). É sintomático que.
um pouco mais à frente nessa mesma entrevista. Abreu reconheça que O Livrodt:Já "foi
um texto que construí de forma autônoma, embora participativa'' (p~ 1.66),
95

até então. e refletíamos conjuntamente sobre eventuais modificações, Esses poucos


encontros representaram também a oportunidade do contato direto dos atores com
o escritor, sem a mediação da direção.
A presença esporádica do dramaturgo nos ensaios, apesar ele ter motivado críticas
por parte dos alares. não foi, necessariamente, danosa ao processo. Corno observa
Ana Rebouças. "trabalhando de forma mais distanciada dos ensaios e optando por
dar 11111 acabamento formal c1 sua obra, o autor [Luís Alberto de Abreu] pôde resol-
ver problemas estruturais que muitas vezes surgem CIn urna dramaturgia pensada
exctusívamcnrc para a cena, feita exclusivamente em função da cena. corno é o caso
de Apocalipse 1,11. e era a prática das criações coletivas. Ganha-se. por um lado. em
frescor e espontaneidade; perde-se, por outro, em relação ao aprofundamento do
universo temático c à formaliznçâo e acabamento do texto.. . s .
. Outra solicitação concernente à dramaturgia, requisitada exclusivamente pelos
intérpretes. dizia respeito ao desejo de trabalhar COIU Ut11a narrativa encadeada. li-
near. com progressão e causalidade, ao invés de UI11 texto construído por meio ela
multiplicidade fragmentada de cenas. Essa reivindicação estava associada claramente
à vontade dos atores de interprerarem personagens com trajetória definida. ao invés
de figuras de caráter mais coral e alegórico, presentes na peça anterior;
Segundo ainda a avaliação do grupo, o processo deveria equilibrar melhor o com-
poncnte corporal e vocal. O Paraíso Perdido tinha explorado quase que exclusivamente
o movimento c a exprcssividade gestual. Porém, havia agora a necessidade de 111er-
gulho no universo da palavra. da fala e do dialogo, Os atores reconheciam o seu
descompasso técnico entre voz e corpo. e julgavam importante o aprimoramento elo
trabalho ela emissão e da expressão vocal. Nesse sentido, o caráter altamente liter ário
do livro bíblico Jô, associado <1 proposta do draruaturgo em escrever a peça ern versos,
pareciam desafios que vinham ao encontro dessas necessidades. Aliás, urna das metas
ela direção de atores foi justamente evitar o tom declamatório. 111lÜtO freqüente em
textos com registro poético. O diretor abriu espaço considerável. no planejamento
dos ensaios. ao exercício e à investigação elo trabalho C01U o verso.
Outra ressalva feita pelo grupo referiu-se ao aprofundamento da discussão religio-
sa. Pareceu-nos que O Pa7'aíso Perdido havia conseguido apenas colocar tal assunto em
pauta, porém, sem desenvolvê-lo a contento. O resultado disso foi UHl espetáculo de
caráter mais impressionista. sensorial. abstrato. que traduzia o que o grupo pensava
naquele momento, não obstante. insuficiente para os anseios de questionamento
elo tema do sagrado na contemporaneídade. Se a peça anterior fora marcada pelo
movimento físico e expressivo. precisaríamos, agora, trazer o verbo para o centro
da arena. Necessitávan10s incluir o texto e a fala em nossa matéria cênica. a fim de

5 CCnicllllll DmmauubJ'jl1lJm si1eir a COlltcJlI[Jorcinc!a. 2001.155 f. Dissertação


SJl.Vi\. A. M. R. R. Podica
(Mestrado em Artes) - Escola de Comunicações c Artes, Universidade de São Paulo. p. 117.
96

conseguir abordar outros aspectos da discussão sobre fé e ateísmo, religiosidade e


fanatismo. sofrimento humano e a questão do mal, ou ainda. neste caso. sobre o
silêncio de Deus.
Quanto ao estudo da ciência, permanecia no grupo o interesse de continuar in-
vestigando possíveis aproximações daquele universo C0l11 o campo da arte. Porém,
na peça anterior. existiram duas vertentes paralelas - a Física e a temática religiosa
- que, às vezes, cruzavam-se ou se retroalimentavam, e outra parte das vezes. não. Na-
quele processo. partíramos da Mecânica Clássica. sem que ela necessariamente nos
levasse à discussão sobre o sagrado.
O grupo. então. colocou-se a seguinte pergunta: e se aqui fizéssemos o caminho
contrário. partindo do terna. c deixando que ele. por urna necessidade que lhe fosse
intrínseca. levasse-nos ao campo da ciência?
Dessa forma, após algum tempo de trabalho. e percebendo C01110 a doença de Já
se constituía no elemento fundamental para a concepção do espetáculo. chegou-se à
idéia de recorrer à Medicina COIl10 o pólo científico ideal para aquele diálogo inter-
disciplinar, Começamos a estudar manuais de sintomatologia clínica e, ainda que de
maneira menos extensa do que aquela realizada na Física Clássica. retraçamos uma
trajetória similar de pesquisa.
Após a leitura da descrição médica de UI11 conceito - por exemplo. "calafrio" -~
os atores o investigavam "cientificamente", procurando explorar com o corpo e a
voz. aquele sintoma. Depois. eram realizadas improvisações nele baseadas. na busca
ele urna possível plasmacâo expressiva - no caso. corno se movimentar em cena ou
corno falar um trecho do texto. estimulado pela sensação de "calafrio". Por fim, asso-
ciávamos 0$ sintomas às personagens c, então, a exploração dos conceitos médicos se
dava dentro do contexto da peça.
Dentre alguns dos sintomas que foram pesquísados. poderíamos citar: febre; tre-
1110r: cãibra; vômiro: dor de cabeça: dificuldade de respirar. sufocamemo ou falta de
ar; respiração ofegante; tontura; dor de ouvido; paralisia de um membro: tosse: zum-
bido no ouvido: dores nas articulações; enrijecimento das artículaçôes; convulsões;
cólica; dor abdominal: espirro; coceira; dificuldade para engolir; cansaço; azia ou
gosto amargo na boca; soluços; formigamento; enjôo ou náusea; dor de dente; pon-
tadas; sensação de areia nos olhos e fotofobía. Poi bastante estirnulantc e inspirador.
elo ponto de vista expressivo. perceber a interferência que tais sintomas causavam no
gestual das personagens e na elocução do texto versifícado de Abreu.
Ainda que muito desse trabalho não tenha aparecido explicitamente na composí-
ção dos caracteres, ele serviu COIUO base ele treinamento para o estado interpretativo
almejado. Na falta ele uma melhor palavra. o grupo o definiu COll10 visceralid(ulc, Con-
ceito este já bastante gasto - além de servir C01110 indicador de interpretações "an-
gustiadas" ou marcadas por UHl "exorCiSI110 expressivo" -. para nós. ele definia urna
atuação mais física. de relação concreta com o corpo, sugerindo o mínimo possível
97

de representação. Buscávamos um estado de "dcscarnamento", corno se a pele hou-


vesse sido arrancada ou a carne rompida por urna fratura exposta.
Nesse sentido, o "treino de sintomas" criado pelo grupo, que era marcado pela
físicidadc e vocalização dos sinais de doença. colocava os atores em contato direto c
profundo com sua carne e órgãos. Febre. convulsões. vômito e falta de ar são alguns
exemplos de manifcsrações que traduzem a agonia do corpo e a iminência da morte.
No nosso caso. a sua fabricação - ainda que em pequeno grau - no corpo e voz dos
atores. estimulava..lhes a instauração do estado-lirnite almejado para o espetáculo.
Até IneS1110 o aquecimento - que alternava butõ, método Suzuki e treinamento
psicofísico de origem barbiana (numa releitura estabelecida pela atriz EU Daruj) - es-
tava conectado à busca de visceralidade que pretendíamos. Aliás. essa abordagem de
11111 treinamento direcionado às necessidades da criação será levada para os próximos

espetáculos da companhia,
No caderno de direção. aparecem algumas outras enunciações para os objetivos
pretendidos em relação à interpretação. definidos ern comum acordo com os atores:
Uestado de convalescença": "trabalhar no limite ou COIll situacões-Iimite insu portá-
veis": "sensação contínua de estar sob tortura ou sob pressão"; "lidar C0l11 o princípio
da energia e não com o da força"; "buscar um profundo estado de concentração física
e psicológica" e "transições abruptas da apatia à extrema violência. e vice-versa",
Outro elemento trabalhado com os intérpretes. decorrente do conceito de hibri-
dismo de gêneros proposto pela dramaturgia, foi o treinamento dos registros épico c
dramático. Corno O texto alternava e imbricava lodo o tempo esses dois regist r05, era
importnnte o domínio de cada um deles em separado e, principalmente. a passagem
- ás vezes, numa mesma frase - de U1l1 a outro". l-oram realizados, por exemplo, vários
exercícios de narração em primeira e terceira pessoa, ou ele um relato que se rransfor-
mava em vivência dramátíca. c vice-versa. O maior desafio para os atores constituía-se
justamente na alternância rápida entre esses dois registros, na medida em que a peça
esgarçava os limites entre narração, diálogo dramatico e rubrica.
Diferentemente elo processo anterior, houve a proposição de U111a dinâmica em

6 Rubens Brito denomínarã como "máscara tripla' ou "terceira mãscarn" esse procedimento
dramarúrgico desenvolvido por Abreu em O Lívro de Jó. cru que coexistem elerucruos
épicos c dramáticos. Segundo ele. citando o próprio dramaturgo numa entrevista. tal
mascara pretendia "essa coisa de juntar o personagem dramãtico C0111 o narrador que
narra a si próprio c sofre a ação da narração" [p.az}, Para Brito, a mascara tripla "resul-
ta do duplo investimento de mãscaras sobre o personagem que é. J\n1bas ~\S aplicações
têm o t0l11 épico por se tratar de ações narrativas. rvlas a resultante é dramática, pois
não existe o dísranciamento proposto por Brecht e sim urna aproximação do ator com
o personagem e deste COll1 a platéia. Em outras palavras, pode-se dizer que Abreu apli-
ca recursos épicos par..\ obter a identificação da platéia com os personagens que sua
cena apresenta, objetivando. C0111 isso. gerar a emoção" (P.148). In nnrro. S.J. R. Do« Peões
ao Rei: O li!atro lh,ico4Drmnâtico de Luís Alberto ele J\breu. 1999. 226 f. Tese (Doutorado eU1
Artes] - Escola de Comunicações c Artes, Universidade de São Paulo.
98

que os atores experimentaram todas as personagens. Durante várias semanas. sem


qualquer restrição quanto idade. tipo fisico ou sexo. os intérpretes rea\1'l.aran1 im-
à

provisações c \vorkshops de cada urna das personagens do texto bíblico. Tal procedi-
meruo. além ele auxiliar a direção na definição dos papéis. estimulou o estudo con-
junto das personagens. Ao final desse período. o grupo constituiu urna visão mais
complexa c madura daquelas figuras. MeS1l10 após a distribuição dos papéis, cada
ator pôde contar com a contribuição trazida pelos seus companheiros - cada qual
revelando. acentuando ou propondo UJl1 ângulo diferente em relação às personagens
- o que proporcionou um ponto de partida multifacetado para o início do trabalho de
construção interpretaríva.
Esse processo marcou também a incursão do grupo nos procedimentos da pesqui-
sa de campo. Ela se constituiu COll10 instrumento auxiliar na elaboração das persona-
gens, em um momento mais avançado dos ensaios. Foram feitas visitas, - em geral
individuais -. a alas de doentes terminais, necrotérios. aulas de anatomia. Instituto
Médico-Legal (IML). entre outros. Diferentemente da regra utilizada nos espetáculos
posteriores. tais visitas não tinham a obrigação de se transformar em material cênico
a ser apresentado. podendo se restringir apenas à experiência vivcncial dos atores.
Em suma, nesse processo pudemos tratar de forma mais integral o trabalho do
ator, levando-o a UI11 ponto que não fora possível em O Paraíso Perdido. Não somente
o corpo e a voz - e o decorrente aprimoramento na expressão elo texto -, mas tam-
bérn o estado de presença. o jogo entre os intérpretes c a construção do desenho c da
trajetória das personagens. foram conquistas de uma abordagem mais rotalízante da
atuaçâo. Se. por um lado, houve um inequívoco amadurechneruo dos atores no IHa'
nejo de seu próprio instrumental. por outro, a direção conseguiu reservar e garantir
um tempo de ensaio satisfatório para a elaboração do trabalho interpretativo.
Uma das principais razões desta conquista foi o fato de a primeira versão' do texto
ler sido trazida logo 110 início elos ensaios. Por mais que a dramaturgia tenha sofrido
várias modificaçôcs ao longo do processo e que os atores tenham contribuído significa-
tívarnerue para as sucessivas recscrituras da peça. partiu-se, desde o início, ele UH'l mate-
ria} bem estruturado. O grupo obteve uma base textual mais sólida para alicerçar o tra-
balho das improvisações e a construção das personagens. Somado a isso havia a própria
narrativa bíblica que. por si só. j<Í apresentava uma história COIll começo. meio e fim.
Tal contexto pôde liberar. ainda que em parte, a direção e os atores para o desen-
volvirnento específico de suas áreas, Conrínuãvamos operando enquanto arores-dra-
maturgos ou encenador-drarnaturgo.. porém, não exclusiva ou preponderantemente
corno fora o caso de O Paraíso !)crdido. Contudo, não há corno negar que o processo de
construção do texto foi filais fechado que aquele do espetáculo anterior. O grau de in-

7 Na verdade. não exatamente a prirncim versão. pois o l~X[O foi reescrito cerca de [rés
vezes antes de ser apresentado aos atores. Até esse momento. o dialogo relativo à escri-
tura da peça Ocorreu apenas entre a dramaturgla e a direção.
99

terferência do grupo. seja pelo suporte da matriz mítica. seja pela estrutura e registro
textual fornecidos pela dramaturgia logo de início. foi. proporcionalmente, menor;
No âmbito da encenação. a escolha de um hospital para a apresentação do espetácu-
lo era urna idéia norteadora. Diferentemente da peça anterior. em que o espaço da igre-
ja surgiu COlHO possibilidade cênica somente após vários Il1eSeS de ensaio. em Já essa
escolha ocorreu poucos dias depois da definição do projeto. Tanto é que. na primeira
discussão C0l11 o grupo sobre a idéia da futura montagem, ambos os elementos - o tex-
to bíblico sapíencial e o espaço hospitalar - foram apresentados concomitantemente.
Em nossa concepção. a utilização de objetos hospitalares reais - macas, Gl1TOS de ex-
purgo, suporte para soro. etc. -. imantados COt11 a história pregressa de sua utilização. se
associava ao cheiro forte de fon1101 que impregnava o ambiente. acentuando - pela via
contrtiria, do cuidado e da assepsia - a relação C0111 a enfermidade e os seus sintomas,
Além disso. durante a apresentação do espetáculo. existia o fator ela proximidade,
Os atores. ao longo elas cenas, encontravam-se sempre muito perto da platéia. às vezes
estabelecendo contato físico direto C0111 ela - por exemplo, em eventuais toques ou
esbarrões. O corpo do ator se tornava algo concreto. literalmente palpável, o que inten-
sificava () caráter da presença. do aqui e do agora. Por outro lado. essa exígua distância
ator-espectador acentuava uma sensação incômoda, desconfortável, c até mesmo de
risco. Por exemplo. o público muitas vezes se sujava do "sangue" da personagem jó.
Essa relação direta e sem mediaçôes, tanto COll1 os atores quanto C01n o lugar e
os objetos de cena. provocou. por exemplo. urna longa negociação entre diretor c
ilurninador [Cuilhcrmc Bonfanri) para que este último não se utilizasse do recurso
de Iumaça no espetáculo. Por mais que tal recurso. além ele "esculpir" a luz, ajudasse
na criação de urna aunosfcra mais concentrada. ele acabaria por esconder. maquiar c
poet izar a crueza hospitalar,
Cont lido. equivocadamente. não conseguimos abrir mão do elemento-fumaça no
final ela peça. pois os refletores teatrais ficariam escancaradamente expostos. 'l~ll ex-
posição viria contra o conceito de luz desenhado até então, que deixava à mostra
apenas as fontes luminosas hospitalares - olhos cirúrgicos. negatoscópios, focos au-
xiliares. luminárias de fototerapia. etc. As outras fontes de luz. compostas por al-
guns poucos refletores tcarrais. encontravam-se escondidas no lado externo do pré-
dio. autis de janelas revestidas. e só eram utilizadas em momentos muito específicos
- por exemplo, em monólogos de Já com Deus.
Por outro lado. a fumaça no final do espetáculo sugeria - lnadvcrnclameute urnar

resolução milagrosa para o percurso de sofrimento de jó, Ou seja. o contrãrio do que


pretendíamos. Ao invés da tornada de consciência pelo próprio protagorrista e da
compreensão individual do significado de sua trajetória - que se dava sem a aparição
ex nlnchinl1 da divindade, indicada pelo texto bíblico original - o efeito cênico da fu-
maça abria brecha para urna solução redentora e exógena.
S0111cnte três anos depois, na temporada do espetáculo na Dinamarca, descobri-
100

mos a possibilidade de utilização de refletores HML ele altíssima luminosidade. que.


ao serem acionados. provocavam o ofuscamento imediato do olhar. A partir deste
momento pudemos, finalmente. abolir o que restava da presença de fumaça na peça.
e elímlnar urn efeito teatral desnecessário. equivocado e de gosto duvidoso.
O hospital. COl110 lugar-purgatório, COl110 espaço privilegiado do pútlzos e do sofri-
mente, da contaminação e da iminência da morte, traduzia a leitura de UI11 JÓ com
,\IOS proposto pela encenação. Ele materializava. também, o desejo de configurar
uma "poética da dor". Além disso. ao colocar o público ali dentro. exposto à concreru-
de arquitetõnica e dos objetos, e à memória e ao imaginário hospitalar. a encenação
pretendia intensificar o fator-experiência. Ao invés da observação passiva, segura e
distanciada. os espectadores deveriam se confrontar com eles mesmos enquanto pos-
síveis "[ós", e correr o risco de se contaminarem eles também.
BUSG1Valnos a realização de urna cena imersiva, caracterizada pela impregnação
e convocação dos sentidos. e baseada na participação mais do que na observação. na
atuação mais do que na representação. Havia o desejo de produzir uma experiência
integral para Gula U111 dos espectadores ali presentes. reunindo e ativando elementos
físicos. sensoriais. emocionais e racionais.
No caso específico elo Hospital Umberto Primo. desativado em 1993. o espetáculo
se constituía, também, corno urna denúncia in loco do caos do sistema governamental
de saúde. fechado há quase UIll ano por falta de recursos e equipamentos, o grande
complexo- hospitalar abandonado espelhava. nitidamente. a ineficiência na gestão
da saúde e o descaso <':0111 o bem público. Era freqüente nos jornais daquela época. a
veiculacâo de imagens de alas hospitalares apinhadas ele doentes ou ele cirurgias de
crncrgôncia realizadas em corredores. Conseqüentemente. tal contexto amplificava
a sensação de desconforto e revolta na platéia. quando a mesma caminhava por três
andares de UI11 enorme hospital. repleto de quartos. enfermarias e instrumental 111é-
clico, inteiramente deixado ao abandono.
O grupo, inclusive. estabeleceu acordo com ,1 associação dos funcionários elo Um-
berro Primo - os quais se encontravam há meses sem receber salário - de repassar
urna porcentagem da bilheteria (20%) para o f11n<10 de caixa da entidade. I

Outra modificação importante levada a cabo em O LivrodeJó foi o tempo destinado à


exploração do espaço. Na igreja tivemos pouco mais de quinze dias para realizar toda a
adaptação da peça no local, duração esta insuficiente e prejudicial ao espetáculo. l-louve
um aprendizado, pelo erro. de que um lugar não-convencional> também denominado
sue spedJic - demanda li rn período maior de apropriação, Além disso. peja primeira vez,
foi estruturado um caminho metodológico de abordagem e de investigação do espaço.
Entre outros procedimentos, a direção idealizou formas de se aproximar do lugar.
de "entrar" em seus interiores, de perceber a sua "respiração", a fim de descobrir o
teatral dentro do arquitetônico. de trabalhar a sua atmosfera e memória COlHO recur-
sos para a interpretação dos atores. e ainda. de experimentar diferentes trajetórias
101

espaciais para o espetáculo que dialogassem C0111 a estrutura


.\
da dramaturgia. Para
tanto. o grupo destinou dois meses de ensaio. antes da estréia, apenas ao processo de
ocupacão e apropriação cênica do hospital.
Poder-se-ia esperar que um processo tão longo. COll1 UHl ano e dois meses de en-
saios. - sem considerar o tempo anterior de preparação e de estudos teóricos -, deve-
ria estar mais que concluído às vésperas da chegada do público. Porém, outra vez, as-
sim não sucedeu, e o importante livro bíblico sapiencial flagrava a nossa ignorância.
i\ resposta da platéia fez o grupo perceber que o espetáculo apresentava várias falhas
c leituras indesejadas. Isso provocou, conseqüentemente, a necessidade de uma série
de modificações. A mais grave disse respeito ao final da peça. que teve de ser reescri-
(o e recncenado à luz do feedbllck recebido.
Apesar do cansaço e do desgaste nas relações intra-grupais, tornou-se obrigatória
a continuação elos ensaios após a estréia. Aliás, por paradoxal que pareça. UBl dos
maiores problemas deste processo foi justamente o longo período de ensaios. De
qualquer forma, o público que assistiu a O Uvro de Já a partir da segunda semana pre-
senciou 11111 final inteiramente diferente daquele da semana anterior.
Outra razão para o dítatamento da fase de construção ela peça. além da inintcr-
rupta dinâmica de feedback e da natureza colaborativa e dialógica do processo - que.
C01110 vimos, consome enorme tempo de trabalho -. disse respeito à procura elo local
para as apresentações. Se a diflcuklade para encontrar a igreja levou o grupo a urna
grave crise interna. no caso cio hospital. a situação não tor'cliferente. Tivemos que
enfrentar vários meses de procura vã e de negociações emperradas, Se1l1 qualquer
perspectiva concreta de solução. Tal contexto de incerteza gerou ansiedade e preo-
cupacão na companhia, provocou o prolongamento dos ensaios além do desejável. c
intensificou o desgaste e a deterioração do processo ele criação.
Ainda quanto à encenação. poderíamos levantar urna última análise. Havia nela
o desejo muito forte de criaçâo ele unidade e de coesão estética. desejo este ao qual
os espetáculos posteriores responderão de forma mais relativizada. Por outro lado.
diferentemente de O Paraíso Perdido. houve a busca de maior equilíbrio entre o texto
dramatúrgíco c o texto espetacular. Ou seja. tentou-se conectar e conjugar a instância
verbal - coesa e bem estruturada - (OHl a instância imagética c arquitetônica - mar-
cada por forte plasticidade e significação. Em função disso. O Livro deJó configurou-se
corno experiência bem sucedida do dialogo e da relativa equivalência ele forças entre
o discurso dramarúrgíco. interpretativo e espetacular,
Fruto - e causa - disso, o processo colaborativo se desenvolveu de forma mais
amadurecida e consciente que no espetáculo anterior, embora sua plena consolida-
ção ocorra apenas na montagem seguinte do grupo.
102

4.2 O PROCESSO DA ENCENAÇÃO EM APOCALIPSE 7,17 8

Antes de iniciarmos a abordagem do processo. seria importante discorrer sobre a


origem do projeto e do conceito da encenação de Apocalipse 1.11. Por mais que o Apo-
calipse de Sõo jodo estivesse presente no horizonte de possibilidades de futuros espetá-
culos do Teatro da Vertigem - em que, entre outros. figuravam OCântico dos Cânticos e
o Hdes;Clstes. apenas para nos aterrnos ao universo bíblico - ele não ocupava nCnhU111
lugar de destaque ou de preponderância. Ao contrário. a proximidade do fim de mi-
lênio provocava U111 sentimento de rejeição pela sua escolha. pois nada nos parecia
pior elo que espetáculos corncmorarívos Ou de efeméridc.
Contudo, uma notícia de jornal reverteu tal recusa. Após vários meses fora do Bra-
sil. morando em Nova Iorque C01l10 bolsista do Kennedy Ccnter for the Perfonning
Arts. deparei-me COIn um jornal brasileiro que estampava, na capa. a notícia da "queí-
ma" de UH1 índio pataxó? por cinco jovens de classe média-alta. ern Brasília. Tal fato
provocou-me UI11 sentimento de desolação e revolta tamanhas, dada a crueldade c o
absurdo ela situação. que decidi que iria propor o terna elo apocalipse para o grupo.
Associando-se a isso. a longa ausência do país me estimulava o desejo crescente de
refletir sobre ele. Na verdade. considero esse aspecto UIl1a das mais relevantes "con-
seqüências" ou "aquisições" da minha estadia de UIU ano e dois meses nos Estados
Unidos. Talvez a perspectiva - configurada pela primeira vez - de olhar o pais de 10Il-
gc, distanciadarncnte. ou talvez a visão deturpada e estcrcot ipada que a maioria elos
americanos revelava do Brasil. ou talvez ainda. as constantes discussões (0111 brasilei-
ros emigrados -legais e ilegais - que descartavam o desejo de retorno ú terra natal,
enfim. tudo isso foi gerando urna sensação interna de desconforto e perplexidade. Tal
sentimento - distante de patriotismos, banzes ou ufanismos de toda ordem - irnpul-
sionava-me a UIl1 confronto com questões nacionais e me insuflava urna vontade ele
repensar o país.
Nesse sentido. só interessava o aspecto catastrofista do texto bíblico apocalíp-
tico na medida em que ele pudesse traduzir a violenta realidade brasileira. Urna

mistura do "fim do mundo" da virada de milênio com o "fim de mundo' da boca
do lixo paulísrana. Em outras palavras, o i\pocCllipse de Silo jodo atravessado pelo
apocalipse da (Avenida) São João, de f o1"Ina que as figuras alegóricas bíblicas fossem

8 Este processo de criação contou com a participação de Fernando Bonassi. na drarnatur-


gia. c dos atores joclson Medeiros. luciana Schwinden, Luis Miranda, Mariana l.ima.
Miriarn Rinaldi, Roberto Áudio, Sergio Siviero e Vandcrlei Bernardino. i\ assistõncia de
direção foi fei'i.) por M~\fcOS B'I.llhõe-s. O processo marcou também a entrada de Eliana
Monteiro no grupo. que assumirã a direção de cena.
9 Seu nome era Caklino Jesus dos Santos. conhecido como "0 índio Caldino", Ele foi quei-
mado vívo enquanto dormia, no dia ao de abril de 1997. ,lPÔS ter participado - numa
c!~;giGl ironia - das comcmoracões do Dia do lndio. n.~l G\pitallcd(!faL
103

atualizadas para as personagens excluídas e desterritorialízadas elo nosso desigual


.\
e discrepante tecido urbano.
Portanto. não imaginava a encenação COll1 tons medievalistas ou futuristas. mas
com urna linguagem que pudesse revelar o Brasil contemporâneo, A própria sugestão
de trabalhar COll1 Fernando Bonassi, escritor de verve agressiva. cuja obra se vincula
ao universo marginal e suburbano de São Paulo. ia ao encontro desse desejo. Havia.
inclusive, nessa opção. o vislumbre de que a conformação estética do espetáculo
devesse combinar registros díspares. como o "alto" e o "baixo", o "elevado" e o "chu-
lo". e em que a escatologia apocalíptica se traduzisse numa linguagem, também ela.
escatológica.
Além disso. a encenação desejava associar a matriz bíblica a algum recente "apoca-
lipse" ocorrido na história da cidade. Dai, a escolha do massacre dos 111 presos pela
polícia Militar de São Paulo. ocorrido em 02 de outubro ele 1992, c a idéia de realizar
o espetáculo nas dependências do Complexo Penitenci.irio do Carandiru. Na verda-
de. o projeto original pretendia encenar a peça dentro do próprio pavilhão 9 - local
onde se deu a chacina - integrando presos. atores e espectadores numa experiência
reatral Imrdcore. Vale ressaltar que, corno em Já e ao contrário de Paraíso. a idéia elo es-
paço surgiu antes do início elos ensaios. logo após a definição temática. Infelizmente.
devido a inúmeras questões de segurança, foram vetadas as apresentações naquelas
dependências e, C01110 compensação. foi oferecido o desativado Presídio do Hipódro-
1l10w. na Mooca, para a realização da montagem.

Apesar da profunda frustração que se abateu sobre o grupo - decorrente dessa


negativa - ainda vislumbrãvarnos. naquele momento, contar com a participação dos
presidiários do Carandiru na temporada da peça. Brincávamos, internamente. que
"se Maorné não ia à montanha, então que o Carandiru iria ao Hipódromo". Além disso.
acreditávamos lograr a materialização cênica do massacre dos 111 presos - ou o seu
equivalente mais próximo - naquele presídio da Mooca,
Quanto aos desdobramentos do conceito de encenação. eles foram se tornando
conscientes apenas durante o processo de ensaio. Além dos aspectos acima levanta-
elos. foram aparecendo outros, de natureza correlata. O espetáculo. por exemplo, pa-

recia invocar um tom hiperbólico. exagerado. excessivo e paroxístico. Nesse sentido.
a direção incentivava os atores ao limite do descontrole e do gritado. Essa histeria.
passível de ser lida apenas corno bad acting ou hísrrionismo barato. na verdade fazia
parte de uma estética do vômito, do trash. do precário e do malfeito, que traduzia
nossas intenções cênicas. A própria concepção visual do espetáculo deveria. também,

10 O Presídio do Hipódromo. ex-cadeia pública do Estado. foi desativado em 1995. du-


rante o governo Mário Covas. em função de uma rebelião ocorrida ali dentro, no ano
anterior. O local também apresenta um histérico marcante corno prisão política. tanto
no período do Estado Novo. para os adversários da ditadura Vargas. quanto no período
da ditadura militar.
104

enfatizar este elemento ele precariedade e de pobreza. sem qualquer apelo a efeitos
tecnológicos ou a acabamentos técnicos de primeira qualidade.
Havia ainda o desejo de que a peça pudesse "chacoalhar" o espectador e retirá-lo
de sua catatonia. Tal conlO a personagem João. a platéia não deveria antever nem se
aterrorizar C0l11 o futuro, filas sim, ser capaz de olhar de novo. e sem letargia, o pre-
sente. Daí o caráter agressivo. indignado e pontiagudo da linguagem da encenação.
em que se buscava romper C0111 a anestesia do olhar por meio de um choque sinesté-
sico ele alta voltagem.
Esse componente de violência se consolidava pelo contraste ou contraposição de
elementos díspares - colocados lado a lado e sem transição. na mesma cena - bem
C01110 pela concretização. sem mediações. da brutalidade e selvageria. Neste último
caso. chegava-se a lançar 111ão, inclusive. de inserções do "real", COl110 na controverti-
da cena de sexo explícito.
Talvez coubesse Ul11 parêntese exemplificador, retirado da própria peça. A única
ocasião do espetáculo em que a platéia era convidada a interagir exptícíramente com
os atores era durante a cena de Talidomida do Brasil (urna deficiente física e mental).
no Ato do Juízo Final. quando lhe eram entregues ovos crus. Via de regra, imitando
a ação da personagem Anjo Poderoso, quase todos os espectadores jogavam os seus
ovos sobre a atriz Luciana Schwinden, intérprete ele Talidornida.
Exatamente nesse instante. em função elo ato de linchamento. operava-se urna in-
versão no jogo de violência proposto pela peça. De espectadores passivos das imagens
ele agressão e selvageria. o público se tornava. ele mesmo, agente delas. promovendo
c corroborando a brutalidade mostrada em cena. Conseqüentemente, por flagrar CIn
si mesma esse traço de violência, a platéia tornava-se cúmplice e consciente de sua
própria ação desumana e. de certa forma. era também julgada naquele tribunal.
O desejo último do projeto da encenação nunca foi () "choque pelo choque". mas
a descstabüízação dos sentidos e a recuperação da perspectiva crítica por parte da
platéia. capazes de provocar algum tipo de rc-sensíbilizacão ou de ativação ele possi-
bilidades transforrnadoras. O final do espetáculo colocava nas mãos do próprio ho-
mern-cidadão - e não de uma divindade - a capacidade de mudança do estado de coi-
sas. Daí il saída de todos - atores e público - de dentro do presídio para a rua. onde os
aplausos, no meio da calçada. ressoavam C0l110 urna "retornada" símbólica da cidade
pelos artistas e espectadores. Era COIllO se ganhãssemos novamente o espaço urbano.
corno se recuperássemos a dimensão pública e a confíguração coletiva da ãgora. O
tom pessimista da peça se revertia. então. numa ação positiva de reencontro COl11 a
pôlis e COIll o sentido de cidadania.
Contudo. iniciemos a discussão sobre o processo de I\J>ocCJlipsc "1,11. O seu plane-
Iamento partiu. antes de qualquer coisa. da identificação do que de melhor ocorreu
nos dois trabalhos anteriores. ao IlleSI110 tempo em que procurou evitar alguns dos
problemas previamente encontrados. Em certa medida, ele funcionou COlllO filtro
105

dos procedimentos de ensaio de O Paraíso Perdido e O Iívro de Jâ. Talvez, por isso. a
unânime percepção grupal de que ele tenha sido o 111a15 equilibrado de todos os pro-
cessos vividos até então.
De início, houve a divisão dos ensaios em duas grandes fases. A prímeira dedica-
da exclusivamente à escritura elo texto, e a segunda, ao levantamento das cenas. ao
trabalho de interpretação e à construção do espetáculo. Estabelecemos também UUl
pacto coletivo que. caso a dramaturgia resultante daquela primeira etapa não fosse
satisfatória, não nos obrigaríamos a passar à etapa seguinte e nem produziriamos
U111 espetáculo nela baseado.

De determinada maneira, retornávamos o espírito existente em O Par<tiso Perdido,


cujo elemento mais importante era a pesquisa a ser realizada. Porém, desta vez. não
negávamos a possibilidade da montagem de urna peça. caso o processo a ela nos en-
caminhasse. Era claro e consciente que ambicionávamos li 111 a fonnalização cênica
ao fim do período de ensaios. mas não desejrivamos ser pressionados por ela, nem
por ela constrangidos. Portanto. ao contrário cio primeiro processo elogrupo. em que
o "desejo de espetáculo" era UHl tabu. aqui ele se encontrava explicitado e assumido
desde o início. Por outro lado. porém, não gostaríamos ele repetir a coação da estréia
de O Paraíso Perdido. que tanta turbulência trouxe ao final dos ensaios.
Além disso, diferentemente do que ocorreu em O Livro de J6. desejávamos a pre-
sença mais freqüente do dramaturgo eU1 sala de ensaio. especialmente durante as
ímprovísações temáticas, recolhendo e dialogando din:ll1mcnte C0111 o material bruto
produzido pelos atores. É claro que sabíamos da inviabilidade da freqüência diária.
por parte do escritor, nUI11 processo de longa duração, Por outro lado. por paradoxal
que parecesse. também havia sido importantes os largos períodos ele ausência e aías-
tarncnto de Luís Alberto de Abreu durante a construção de Jô.
Daí. as perguntas-desafios que o grupo então se colocava: C0l110 trabalhar com o
dramaturgo, trazê-lo para o embate corpo-a-corpo da sala ele ensaio. sem provocar o
constrangimenrc das dinâmicas individuais de criação. e sem a pressão decorrente
da estréia do espetáculo? C01110 encontrar U111t1 estrutura que favorecesse o diálogo
entre as diferentes funções durante a escritura do te~to? Corno conjugar a alternân-
cia de presença e ausência do dramaturgo durante o processo?
t\ resposta que vislumbramos foi a criação de UH1 momento específico no trabalho,
C0I11 duração previamente estipulada. em que o dramaturgo pudesse acompanhar ;11-

teg.ralmcnte o ensaio. Além disso, incorporando a experiência positiva ocorrida em O


UVf"O de Jb. também deveria haver períodos em que diretor e dramaturgo pudessem

trabalhar conjuntamente sem a presença dos outros integrantes. Por fim, deveriam
ainda ser resguardados os momentos em que o dramaturgo trabalhasse solitariamen-
te no desenvolvimento do texto.
Para tanto. foi idealizado o seguinte esquema de trabalho:
106

FASE 1 - CRIAÇÃO DA DRAMATURG1A"

• Encontros preparatórios: tiveram por objetivos a definição do drarnatur-


go; o estabelecimento ela estrutura e cronograma do processo: a resolução
de questões práticas em relação ao espaço físico para os ensaios; o levan-
tamento de material bibliográfico e. por fim, a realização de leituras, es~
tudos teóricos e discussões concernentes ao terna do apocalipse (agosto a
outubro de 1998);
• Primeiro Worksl1op: trabalho prático em sala de ensaio. C0111 a presença
elos atores e do diretor. a partir das principais referências de textos apo-
calípticos selecionados pelo grupo, a saber: o A]Joculipse de Séio lodo; o Livro
de Daniel; os apocalipses apócrifos; IJrcifccias e i\clivínhações~ de Leonardo ela
Vinci: e Considerações sobre o Apocalipse de Sito )odo e o Livro de Daniel, de lsaac
Newton. O dramaturgo Fernando Bonassi não participou desse workshop,
pois se encontrava concluindo urna bolsa de residência artística. na Ale-
manha. Por essa razão, todas as improvisações foram gravadas em vídeo.
Além disso. por meio de conversas telefônicas diárias, dramaturgo e di-
retor avaliavam o ensaio do dia anterior e planejavam o seguinte. Este
\Vorksho]J teve a duração de duas semanas. (13 a 24 de outubro de 1998);
o Primeiro intervalo: trabalho conjunto do dramaturgo - jü ele volta ao Bra-
sil - e do diretor. sem a presença dos atores. na tentativa de encontrar UI11
eixo estrutural a partir das inúmeras improvisacões realizadas. durante o
Primeiro \tV{wk.sh0l':
• Segundo \tVorkshop: trabalho de improvisaçôcs baseado exclusivamente no
l\pocCllipsc de Siio.lodo. do Novo Testamento, na versão da Bíblia de Jt:r1l5alén1.
Retornada de algumas personagens urbanas surgidas no Primeiro \'Vorkshop.
COH) a criação ele conexões entre elas e as figuras bíblicas. O dramaturgo já
se encontra presente nos ensaios e participa ativamente elo processo. apre-
sentando os prímeiros fragmentos de texto. Este workshop também teve a
duração de duas semanas (07 a 19 de dezembro de 1.998):

• Segundo intervalo: novo trabalho conjunto do dramaturgo e elo diretor,
sem a presença dos atores, visando à seleção de cenas, à escolha de mate-
rial para reimprovisações e à escritura de prirneiros esboços de texto:
o Terceiro WorksholJ: desenvolvido, na sua maior parte. pelas propostas de
textos trazidas pelo dramaturgo. Houve também aqui a preparação de U111
"varal de cenas", primeiro esforço de organização de todo o material sele-

11 Tanto essa fase quanto :1 seguinte ocorreu nas dependências da Oficina Cultural Oswald
de Andrade, como parte do Projeto de Residêncía Artística do Teatro da Vertigem na-
quela oficina. O espetáculo foi todo atí criado. desde o Primeiro \Vork.shop ~llé o início
dos ensaios no Presídio do Hipódromo.
107

cíonado e de estabelecimento de urna possível linha narrativa. As ímpro-


vísações e workshops se restringiram, neste momento, apenas à parte final
do texto bíblico - aquela que tratava de "Nova jerusalém", EUl suma, esta
etapa foi voltada para a seleção de material. articulação da estrutura. reso-
lução elo firn da peça e experimentação relativa à distribuição cios papéis.
Este workshop teve a duração de três semanas (18 de janeiro a 05 de feve-
reiro de 1999}~
• Terceiro intervalo: trabalho do dramaturgo e do diretor. novamente sem
a presença dos atores, visando a uma seleção final do material levantado e
a um esboço de estruturação da peça;
• Escritura do prímeíro esboço do texto: trabalho realizado solitariarnen-
te pelo dramaturgo:
• Prímeíra avaliação: discussão deste primeiro esboço COIll o diretor e a
dramaturgista (Lucienne Guedes). Foram escritos e avaliados. na verdade.
dois esboços do texto. com um intervalo de tempo entre a produção do
primeiro e do segundo;
la Escritura da primeira versão do texto: trabalho este também realizado
solitariamente pelo dramaturgo:
• Segunda avaliação: discussão desta primeira versão da dramaturgia com
lodo o grupo:
GI Escritura da segunda versão do texto: trabalho este também realizado
solitariarncnte pelo dramaturgo, a part i r do Iec:dback grupal recebido:
• Leitura dramática do texto: foram realizadas duas leit uras dramriticas na
Festival de Teatro de Curitiba. e uma, no Auditório da Folha de S. Paulo,
todas seguidas de discussões C0l11 a platéia (26 e 30 ele março de 1999);

FASE 2 - CR1AÇÃO DO ESPETÁCULO

• Ensaips de levantamento do texto; realizados ao longo de quase sete me-


ses. com a participação de todos os criadores (cenógrafo, iluminador, figu-
rinista. etc.). UIHa vez por semana. ou no máximo a cada quinze dias. o ma-
teriaí cênico levantado era apresentado para discussão COll1 o dramaturgo.
As experimentações concernentes à encenação e ao trabalho de direção de
atores também ocorreram durante esse período. Além disso. houve aqui o
início das oficinas COITI os presidiários no Carandiru e dos estágios de aCOIl1-
panharneuto em todas as áreas de criação (abril a setembro de 1999);
• Ensaios de ocupação do espaço: trabalho de investigação e de implantação
elo espetáculo no Presídio do Hipódromo (outubro-novembro de 1999);
o Ensaios abertos: primeira experiência do grupo em um processo de fcrd-
108

back por parte da platéia, antes da estréia, aliada à manutenção regular e


paralela dos ensaios. a fim de incorporar as críticas e sugestões levantadas
(novembro-dezembro de 1999);
o Estréia de Apocalipse 1,11 (14 de janeiro de 2000).
• Temporada: o espetáculo ficou em cartaz cerca de um ano, com sessões de
quinta a domingo (até 17 de dezembro de 2000).

Os procedimentos desenvolvidos nos três workshops de construção do texto e no


período posterior ele elaboração do espetáculo reúnem muitos dos exercícios e práticas
realizadas em O ParaÍSo Perdido e O Livro de Jó. Contudo. eles aparecem aqui de forma
mais consciente e estruturada l:!~ Nesse sentido, esse processo marca o amadurecimento
elogrupo em relação ao seu lTWdU5 openmdi de criação. As categorias de exercícios, por
exemplo.. passaram a receber nome definido [treinamento direcionado; vivência; cscri-
ta automática: pergunta/resposta; worksllOfJ; pesquisa de campo. entre outros) c, sinto-
maticamente, já denominávamos nosso 1110do de trabalho como processo colalJorativo.
Quanto às técnicas de aquecimento. em função do desejo ele realizar urna peça
violenta e agressiva. julgamos que elas deveriam se estruturar em torno elo elemento
"luta". Optou-se, então, pejo ke111pÔ - arte marcial indiana baseada no movimento dos
animais - e pela capoeira de Clugola. Mais tarde. no processo, integramos a luta [cHic(l
- denominada na Inglaterra e Estados Unidos corno stnge comlmt.jighl" direction ou slage
jight. Trata-se de princípios ele coreografia de luta, usados no cinema e teatro. para
simular, com veracidade, combates de alto teor agressivo. garantindo a segurança e
a integridade física dos atores. Todas essas técnicas visavam é1 estimular nos intérpre-
tes um caráter bélico e animalesco. além de auxiliar na concentração. prontidão e
clisponibil idade física.
Incorporamos ainda. cru fase mais avançada dos ensaios. a medilllçt10 Rojnet.'sh ou.
também chamada, JTlt!clHaçt1o lltivcz. O foco, nesse caso, era diferente daquele da luta.
Buscava-se a exaustão física associada a um estado de livre expressão das pulsôes
mais inconscientes c a experimentação de um estado de "insanidade", que nos pare-
.
cia r\.\ndan~ental ao registro interpretativo do espetáculo,
"-

Tal conceito não estava definido a pnort, tendo sido encontrado - ou melhor, ten-
do emergido - durante a primeira fase dos ensaios. J\ partir de UIn registro que mis-
turava desequilíbrio emocional, ímprevisibilidade e desespero a UIll estado-Ilmite

J2 Para ..1 descrição detalhada dos exercícios e procedimentos de trabalho utilizados no


processo de criação deste espet ..iculo, indicamos a leitura da díssertacão de mestrado
de Miriam Rinaldi, O Alor do 'Ii'(flro da Vt.'11i.~c:m: o J'l"Ul"CSSO clt: nitlçtio üe '''\lJofClli/1sl' 1,11".
Sugerimos. também. a pesquisa realizada por Mariana Lima. corno resultado da Bolsa
Vítac de Artes. denominada O f'l'OC~~-S() Cotubormtvo no TeatnJ ftt.'J1l1o como hust' u l't'squisa t:
rt'aliZilçuO do t'S/>diÍculo ~\pof(llillSl" I, lI', do 'li>alro da Vertigem}. Ambas encontram-se discri-
minadas nas Referências. ao final da tese.
109

de ser - que foi aparecendo. pouco a pouco. ern algumas improvisações ., e workshops
- buscamos um 110111e para defini-lo. Exatamente COl110 ocorrera C0l11 o termo "visce-
rnlidacle", em O Livro deJá, que nos soava desgastado demais. a palavra "insanidade"
era a que mais se aproximava ou traduzia o estado que almejávamos, Estava longe de
ser perfeita. mas funcionava como espécie de palavra-guia ou de termo-farol.
O grupo julgava importante ainda. a distinção desse conceito em relação ao de
·'loucura". O estado "insano" não era aquele dos doentes psiquiátricos, pois tal condi-
ção poderia justificar - e, portanto. reduzir- a dimensão exacerbada das personagens.
Segundo a atriz Miriarn Rinaldi, que participou do processo de criação. "mudanças
inesperadas de atitude. excentricidade, apatia, mutismo, obsessão e alternância de
humor foram algumas elas características que experímenramos na composição das
personagens e que nos remetiam a essa zona do insano"!". Ou seja. tratava-se de um
registro de interpretação fronteiriço. Iimite, transbordante e excessivo, mas que não
incorria na representação nem na encarnação da loucura.
Por outro lado. esboçava-se também o tipo de linguagem ou estilo que ,ul0 nos inte-
ressava. Sem que o soubéssemos antecipadamente. foi somente por meio elas propos-
las trazidas pelos atores que as ressalvas c os repúdios foram se tornando conscientes
e assumidos - especialmente por iniciativa da dramaturgia e ela direção. Por exemplo,
percebemos que o texto e o espetáculo não deveriam trabalhar em chave realista, ou
melhor, de realismo psicológico. J,} o realismo estranhado, fraturado por elementos
absurdos ou ilógicos. este sim, nos interessava. Além disso. descartamos a imagistica e
o bcsti.irio medieval, o humor televisivo à la Casscta e Planeta e a ficção científica e sua
estética futurológica. Por fim, queríamos também que o espetáculo escapasse do (0111
cínico. que nos parecia símplífícaclor c fácil para a abordagem dos ternas escolhidos.
Porém, retornando aos três workshops de construção do texto. houve a projeção.
para cada U111 deles. de que durassem de duas a três semanas. C0I11 cerca de seis horas
por dia de trabalho. Estabelecemos também algumas regras básicas ou princípios
condutores: nunca chegar atrasado; lidar COll1 o material temático sempre na pers-
pectiva do depoimento pessoal ou de urna visão crítica própria; não querer impres-
sionar o diretor ou o dramaturgo: não reprimir nenhuma proposta ou ponto de vista.
por mais tolo ou preconceituoso que tosse. sem 111Cdo de cair no trash. no clichê. no
óbvio e no senso-comum: ser sincero com você mesmo e com o outro; c. last but not
lt'lIst. não querer repetir o sucesso de O Livro ele já e nem a sua estética.
Em relação a esse último aspecto. tratava-se de UH1 pacto coletivo ela maior im-
portâncía. Por mais que O Paraíso Perdido tenha rendido prêmios e atraído atenção do
público e da crítica. o espetáculo posterior obteve repercussão ainda mais inesperada.
O grupo realizou temporada de um ano e sete meses na cidade de São Paulo. viajou

t'3. R\N,\l.Ol, M. () Ator do "{hlt'·O du \\'rlig\'m: o processo de oiuçiio de A})()ccdipse 1.} 1. 2005. Dis-
sertaç..âo {MeSlrado em 1\l"LCS) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São
Paulo. p. 103.
110

para várias capitais brasileiras, amealhou prêmios e foi alçado ao circuito de festivais
intcrnacio.nais. O lado perigoso de todas essas conquistas, contudo. para tiill grupo re-
lativ~nl1ente jovem e no seu segundo espetáculo. era o da acomodação precoce e o do
incbrhllnento pelo sucesso. Daí que. em UI11 elos primeiros encontros preparatórios.
foi reiterada, enfaticamente. a necessidade de esquecermos todas aquelas vitórias e
louros para que conseguíssemos nos aventurar ele novo. Era preciso que matássemos
O Lívro de Já a fi111 de que não nos domesticássemos.
Esse espírito de investigação de outras possibilidades ternáticas e estéticas, e de recu-
sa da repetição do modelo anterior, estimulou 11111 estado de entrega e de abertura nos
atores, que foi extremamente fértil. Os workshops foram marcados por U111 registro de
alta intensidade criativa, e por lllll ininterrupto hrllinstonn de cenas e proposições!', em
que o elemento da censura - e ela autocensura - parecia não existir. Além disso. por mais
que não se tratasse de urna estratégia pensada previamente, o fato de os três \\'orkshops
terem C01110 foco a construção da dramaturgia. liberava os atores e o enccnador para
experirncnraçôes mais descompromissadas. Era corno se quem estivesse na berlinda.
naquele momento, fosse o dramaturgo. desresponsabilizando os demais criadores da
tarefa de produzir bons resultados teatrais ou de formalizaçôes cênicas acabadas.
l~ importante ressalvar que o dramaturgo em Apocalipse 1 II - CO111 O ele resto. no
r

processo colaborativo em geral - n50 funcionou apenas COIll0 organizador ou selecio-


nadar do material cênico produzido pelos atores. Fernando Bonassi, além de propor
- em parceria COll1 a direção - estímulos verbais e irnagéticos para os intéspretcs,
ou de escolher e descartar elementos propostos pelo grupo, irá também rearticular.
transformar ou reescrever tal material. bem COlHO produzir cenas e textos de autoria
própria - ainda que inspirado ou mobilizado pelo que ocorria em sala de ensaio",
Uma caracterísrica inerente à dramaturgia é o seu caráter pouco dialógico. Mesmo
quando as personagens estão interugindo. o que sobressai nessa suposta troca. é o
elemento monológíco. Ou seja. a aparência de clíaloglsmo esconde, na verdade. UI11(..
justaposição de solilóquios que se cntrecortam, Se tal consrrução textual vincula-se,
sem dúvida, a procedimentos da dramaturgia contemporânea. aqui. ela revela tam-
bém rastros processuais. Como vimos, o depoimento pessoal - que é. muito freqücn-
temente, materializado por meio de \vorkshojJs - induz à formalízação de cenas indi-
viduais, C0l11 caráter monológico. O texto ele Apocalipse 1,11 flagrá. indubitavelmente.
tal dinâmica. espelhando sem distorções o processo no qual ele foi gerado.

14 Miriam Rinaldi, em sua referida dissertação. chega a computar um total de mais de 5.10
cenas, apenas no período dos três \\'orbhops.
15 t\ dramaturgia c a direção tiveram várias discussões divergentes a esse respeito. pois
Fernando Bonassi tendta \.\ considerar a sua i.lti(\l{\(! de apropriação 0\\ de- reclaboraçào
do material proposto pelo grupo como não-autoral. algo próximo da atividade de co-
pidesquc ou de mera organização. t\ discordância dessa avaliação. enquanto diretor.
baseia-se no fato de ser possível identificar. no resultado tinir} do texto, cenas inteiras
e monólogos que foram produzidos inteiramente por ínícíauva do dramaturgo.
111

Outro elemento auxiliar na busca de novos rumos artísticos para a companhia


refere-se à visão que o dramaturgo tern elo trabalho do grupo. Ainda que esse não .
seja um critério na escolha do escritor. é curioso corno cada novo dramaturgo pare-
ce recusar ou ter ressalvas em relação ao espetáculo anterior. Luís Alberto de Abreu
criticava o aspecto por demais fragmentário de O Puruíso Perdido. Fernando Bonassí
rejeitava o caráter ritualístico e "elevado" de O Livro de Já. enquanto Bernardo Calva-
lho. em BR-3. defendia a redução dos aspectos alegóricos. e propunha uma narrativa
com começo, melo e fim, sem a estrutura de quadros autônomos. em contraposição
ao que ocorrera em AIJocalil'se '1,11.
Apesar das diferenças artísticas. metodológicas e de temperamento elos dramarur-
gos que trabalharam com o Vertigem. é preciso reconhecer que a relação destes C0l11 a
direção sempre foi das mais profícuas. Mesmo C0l11 divergências pontuais ou em 1110-
mentos de crise. o diálogo díreror-dramaturgo foi estimulante e provocativo. As razões
dessas bem-sucedidas parcerias POdC111 ser encontradas no interesse do encenado!" pela
criação de novos textos c, por sua vez. no interesse <los dramaturgos pela visualidade e
intcrdisciplinaridade, além da abertura à instância processual e coletiva.
A etapa dos três worksllOps marcou, também, a entrada de um novo colaborador no
processo de ensaio do Vertigem: o dnunaturg ou dramaturgista. Se. em Paraíso Perdido.
Sérgio de Carvalho acumulou tal função COIll a de dramaturgo propriamente dito c.
em O Livro ele )6. Ivan Marques funcionou COlHO coordenador teórico no período inicial
dos ensaios. em Apocalipse 1 11. o grupo deu 11n1 passo além. Convidou Celso Cruz para
t

assumir (1 função ele dramaturgísta no Primeiro \Vorkshop c. após a sua saída. trouxe
Lucícnue Guedes para ocupar este lugar. Alérn ele ter colaborado intensamente nos
dois \\'orkslwps seguintes. a dramarurgista teve 1I1H papel imporumtc na construção do
espetáculo. especialmente por meio elos constantes diálogos COll1 o dramaturgo.
No que diz respeito à interferência da direção ao longo dessa primeira fase, ela
cumpriu um papel fomentador ou provocador da criação do dramaturgo e dos atores.
Seja por meio do diálogo 0\1 da contraposição. seja por meio da sugestão de est irnulos
concretos. o diretor foi mobilizando o fluxo da criação dentro do processo. Além dis-
so. ele funcionou C0l110 parceiro do dramaturgo na seleção e na organização do mate-
ria! produzido. Segundo Miriarn Rinaldi, ao avaliar a quantidade numericamente su-
perior de comentários da direção no Terceiro Workslwp em relação aos dois primeiros,
«a voz do diretor [aumentou] em número e grau, reflexo de um direcionamento mais
objetivo e seletivo dos materiais apresentados e reapresenrados, (Houve) também in-
dicações mais claras na pesquisa de interpretação e de criação das personagens"!".
Quanro à dist ribuição dos papéis. o processo se deu diferentemente de O Livro
ele Jô. Ali. pela pré-existência ele personagens advindas da matriz bíblica. houve um
período de Iívre-experímentação de cada urna delas. por parte dos atores. Já em 1\1JO-

16 R1N:\l.lll. M., O Ator do 'lt:atro da Vt:rligem: o processo de nia{(io de Apocalipse 1.11. p. 89.
112

({llipse t, ·11. ao contrário. as personagens - ainda que referenciadas no original bíblico


- foram emergindo das próprias improvisações dos atores. Ou seja, 05 intérpretes. de
certa forma, já "escolhiam' de antemão as figuras que lhes interessava encarnar - ou.
quenl sabe. eram por elas escolhidos. Portanto, él divisão dos papéis foi se dando 01"-
ganicarnente. de maneira que o último \vorkshop serviu apenas como confirmação do
que j,í se desenhava. Apenas urna ou outra personagem chegou a ser experimentada
por mais ele um ator, quando do início da segunda fase dos ensaios".
O aspecto mais problemático do "casting' referiu-se aos atores que não tiveram as
suas proposições de personagens selecionadas para o texto final. No pólo diametral-
mente oposto. houve a incorporação, por parte da dramaturgia, de várias persona-
gens criadas apenas por l.lI11 único ator. Na prática, tal situação provocava, necessária-
mente. a migração ele mareríal cênico de um intérprete para outro. Essa transferência
de personagens, em alguns casos. foi difícil e gerou crises internas no processo. Con-
tudo, tanto pelas negociações do diretor C0l11 os "doadores" mais apegados às suas
criações. quanto pela total apropriação e reelaboração de tais "doações" por parte
dos "receptores", as eventuais turbulências foram superadas.
Após o final dos três worksnops e das leituras dram.iticas públicas. avaliamos a dra-
maturgia daí resultante e tornamos a decisão de realizar a sua montagem. O texto,
ainda que parecesse necessitar de maior descnvolvírnento. conseguia traduzir. satis-
fatoriamente, as motivações centrais do grupo.
Demos início, então. à segunda fase do processo de ensaio. que seria destinada à

criação elo espetáculo, Os encontros. a partir de agora. ocorreriam cinco vezes por
semana, C0111 cerca de seis horas diárias. Nessa 1:15(\ contudo. a presença do drama-
turgo se reduziria a urna vez por semana ou. em situações excepcionais. a apenas um
encontro a cada quinze dias.
Nesse dia UI)"' era apresentado a ele todo o material cênico desenvolvido até cn-
tão. o que não incluía apenas o levantamento do texto, ruas também novas ide ias ou
sugestões para a solução de problemas. Após o "corrido" das cenas, o grupo inteiro
discutia C01l1 o dramaturgo as questões. as dúvidas, as conquistas c as eventuais no-
vas necessidades. Nas apresentações realizadas a cada quinze dias, todos os outros

criadores envolvidos participavam ativamente. e suas experimentações - de luz, figu..
Tino, cenografia ou SOU1 - eram incorporadas aos "corridos".
Essa nova etapa. além dos exercícios jti mencionados - porém, executados em
outro contexto e almejando propósitos ligados ~1 encenação e à interpretaçâo - agre-
gava ainda outras dinâmicas, Dentre elas. poderíamos citar: análise ativa do texto;
experimentação da trajet ória das personagens [improvisações realizadas a partir do
percurso das personagens, privilegiando os eventuais tUllzíng points): esboço de mar-

17 As personagens "João" e "Juiz" foram testadas pelos mores V..mdcrlci llernurdino e


Sergio Siviero durante um breve período. antes que \L decisão final fosse tomada.
113

cações e espacialização: trabalho com a palavra (série ele exercicios para exploração e
.\
apropriação do texto escrito); pesquisa de campo voltada para o universo elas perso-
nagens: e, por fim, ensaios individuais para aprofundamento do trabalho interpreta-
tivo (ensaios idealizados exclusivamente para as necessidades de UI11 ator específico.
C0l11 o objetivo de ajudá-lo a superar dificuldades particulares e de adensar a constru-

ção ele sua personagem].


É importante notar que a pesquisa de campo nesse processo ganhou urna dirnen-
são maior que no anterior. Se em jâ referia-se apenas à elaboração das personagens.
em Apocalipse ela se prestava também ao desenvolvimento da dramaturgia. Por exem-
plo, durante o período dos três workshops, foi realizada urna série de "visitas" a locais
pré-def nidos pelo dramaturgo e diretor. Entre eles. poderíamos destacar a rodoviária
do Tietê: a cracolãndia: o Minhocão: as saunas da Rua Augusta: os teatros de sexo
explícito da Rua Aurora; uma delegacia de polícia no Pari e, ainda. a Rua Amaral Cur-
gel, C0l11 sua mistura de prostitutas. traficantes, travestis e moradores de rua. Corno
instrumental de pesquisa, chegamos, inclusive. a lançar mão de algumas noções do
geógrafo Milton Santos sobre espaço urbano - por exemplo, a identificação da pre-
-~en\a .de-vários tempos diferentes (acelerado/dilatado; rápidojlento) em um mesmo
espaço. Havia também uma regra obrigatória: qualquer atividade de CéUllPO deveria
ser "transformada" em alguma formalização cênica. Ou seja. ela não poderia se res-
tringir apenas à experiência impressiva ou subjetiva dos atores.
Durante-a criação elo espetáculo, realizamos também algumas atividades extra-
ensaio, de caráter pedagógico, porém associadas diretamente à construção da cena. i\
primeira delas foi um curso de iniciação teatral para os detentos dos pavilhões cinco.
oito c nove elo Complexo Pcnitenciario do Carandiru, Tal oficina - que teve a duração
de oito meses - poderia ser justificada apenas pelo viés da pesquisa de campo, corno
se fosse uma das "visitas" a local especifico na cldade - no caso. o maior presídio da
América Latina. Contudo, em relação ao Caraudiru. a questão ia mais além, Havia. pri-
meiramente. o desejo de que o espetáculo fosse apresentado nas dependências deste
complexo prisional. Em segundo lugar. existia o interesse de que tanto o processo
de ensaio quanto as apresentações pudessem congregar urna mistura de aspectos ,la
"vida real" COIll outros. de natureza teatral. Tal vontade implicava, entre outros ele-
mentes. na conjugação de trabalho entre atores e não-alares - no sentido profissional
do termo - os quais participariam da construção e da temporada do espetáculo,
É importante salientar que toclos esses aspectos conjunturais, relativos ao projeto
artístico do grupo, foram discutidos franca e abertamente C0l11 os prisioneiros. desde
o início. ~I~11 prerrogativa auxiliou no estabelecimento de UI11 pacto ou compromisso
comum, COIll torça de contrato oral, entre eles e nós. Nesse sentido. por exemplo.
alguns dos ensaios regulares da peça foram realizados dentro do Carandiru, corno
parte elo referido curso de iniciação teatral.
Essa iniciativa estava também vinculada ao acordo previamente estabelecido C0l11
114

o diretor elo presídio para a participação dos detentos em Apocalipse "1,11. A última
.\
parte da oficina, então. se voltou para o trabalho específico de construção de perso-
nagem, de memorização do texto e de aprendizado ela marcação de algumas cenas da
peça. especialmente daquelas em que os detentos atuariam de forma coral.
lnfelizmente. às vésperas da estréia oficial do espetáculo. apesar de todos os esfor-
ços de negociação - caracterizados por inúmeras reuniões C0111 políticos e C01l1 fun-
cionários da Secretaria de Administração Penitenciária - foi definitivamente negada
a participação dos presos na temporada da peça. A frustração foi geral. pois tanto o
grupo se sentiu ludibriado pelos poderes públicos quanto os detentos viram ruir a
sua possibilidade de atuação artística no trabalho.
De qualquer forma. ainda que o espetáculo não tenha podido contar com 3 presen-
ça deles em cena. é inegável o quanto essa experiência, dentro de 111113 penitenciária
ativa. I11arCOll profundamente o processo de ensaio, e a nós artistas. Ternos a certeza
que Apocalipse 1,II não seria o 1l1CSI110 sem as contribuições. a convivência intensa e
o complexo diálogo com aqueles presidi ários. Ninguém do Vertigem saiu imune ou
indiferente a esta "descída aos infernos", bem C01110 um movimento transformador
também ocorreu naquele grupo de detentos.
Ironicamente, tivemos que esperar até o Festival Theater der "Velt 2.002. na Ale-
- - manha. para podermos atuar em um presídio ativo. E foi apenas também em outro
país, na Polônia. durante a participação no Festival Internacional Dialog-Wroclaw
(2003), que pudemos, finalmente, contar com a participação dos presidiários em-cena.
Somente aí. na cidade que abrigou o Teatro-Laboratório de Grotowski. o conceito orí-
ginal da encenação pôde se completar.
Outra atividade pedagógica. igualmeutc fundamental ao processo de construção
da peça, foi a realização de oficinas de criação C0l11 estudantes e csragiarios, durante a
residência artística do Teatro da Vertigem. na Oficina Cultural Oswald de Andrade. i\
idéia cent ral dessa iniciativa era abrir os ensaios do grupo para pessoas previamente se-
lecionadas, que acompanhariam o dia-a-dia do trabalho. Ao invés de U111 curso regular
de direção ou iluminação, o conjunto de "alunos" poderia ver de perto o trabalho do
diretor ou a criação da luz. vinculado ao desenvolvimento concreto de um espetáculo.
No nosso caso, em especial, os estagiários puderam contribuir direramente na feitura
da obra. trazendo suas visões, sugestões e críticas ao projeto. Tal, dinâmica se configu..
rou, pois. C0010 UI11 misto de processo pedagógico e assistência de criação.
A princípio. ficamos preocupados se esse acompanhamento por parte de pessoas
estranhas ao grupo não causaria algum tipo de constrangimento à criação. Até aque-
le momento nossos processos de ensaio haviam sido fechados. e víamos com descon-
fiança. num misto de desrespeito e dessacralização, a presença de "curiosos" dentro
da sala de trabalho. Contudo. para nossa surpresa. sucedeu o contrario.
Nos primeiros dias. claro. foi desconfortável a presença de observadores exter-
é

nos. Porém, movidos por esse desconforto de mão dupla. nós e eles f 011105 estudando
115

lnaneiras possíveis para que urna melhor integração ocorresse. No caso da oficina de
direção. os estagiários não apenas participavam dos ensaios. luas compartilhavam
do planejamento do cronograma da semana. discutiam problemas referentes à inter-
pretação. sugeriam encaminhamentos em reuniões de produção. e assim por diante.
Além disso. cada um deles fazia o acompanhamento individual de um ator, ajudan-
do-o e interferindo na construção de sua personagem, Desta forma, depois de algum
tcnlpo, eles passaram a construir a peça C0l11 o grupo e, de certa maneira. expuseram-
se aos lneS1110S riscos que nós.
Além do assistente de direção oficial (Marcos Bulhões). passei a contar C0111 sete
assistentes-est~igiários18C0111 os quais dividia o trabalho diariamente. Enquanto en-
saiava na sala principal urna determinada cena, acompanhado do estagiário que
havia ficado responsável por ela, o assistente e os outros estagiários se encontra-
vam, ao mesmo tempo, em salas contíguas, fazendo a análise. o levanramenro ou
o primeiro esboço de marcação das cenas subseqüentes - que, por sua vez, mais
tarde. passariam necessariamente por mim. Portanto. a cada segunda-feira, quando
nos reuníamos para estruturar o cronograma ela semana, fazíarnos o agendamento
ele trabalho para cada Ulll elos diretores envolvidos. de forma a contemplar essa di-
náutica rotativa de ensaio elas cenas.
Foi gratificante perceber que o processo colaborativo ficou muito mais "colabo-
rativo' COIll esse sistema artístico-pedagógico. As interferências na criação se multi-
plicaram, o que aumentou a complexidade do trabalho. deixando-o. apesar das difi-
culdades. mais polifõnico e provocativo. O mito elo artista isolado e misantropo, que
mantinha seu processo de criação trancado a sete chaves. encontrava-se relativizado.
t\ abertura dos ensaios. desde que realizada com critério. não comprometia o clesen-
volvimento da obra. Por outro lado. enquanto professor de teatro. tal dinâmica se
C0111prOVOU COlHO urna das experiências pedagógicas mais intensas e bem-sucedidas

que tive a oportunidade de coordenar.


Contudo, apesar dos acertos acima descritos. essa segunda etapa elo processo tam-
bém comportou algumas contradições. Primeiramente, a rígida divisão entre "fase de
criação do texto" e "fase de criação do espetáculo" mostrou-se inócua e inoperante.
Ambos os períodos se influenciaram e se contaminaram todo o tempo, As fronteiras
entre as diferentes etapas de construção da obra revelaram-se tênues, quando não

18 Durante os ensaios na Oficina Oswald de Andrade os cstagiãrlos-assistcntes foram: Kleber


Vallim, Péricles Raggio, Silvania Barbosa. Simone Shuba, Stella Marini. Verenna Corostiu-
ga e Eliana Monteiro. 1\0 entrarmos no Presídio do Hipódromo. Kl ebe f Vallim integrou-se
ao elenco di' peça e Silvania Barbosa passou a ocupar a função de Produção Executiva.
Nesse momento. também. dois novos estagiários de di reção agregaram-se ao processo,
oriundos do UlfSO de Direção Teatral do Departamento de Artes Cênicas da EC:\-USP: Cláu-
cia Felipe e André Bortolanza. Quando da estréia do espetáculo, Eliana MOIlC('jro assumiu
a Direção de Cena e Stclla Marini e Verenna Corostiaga se tornaram Assistentes de Dirc.. .
ção de Cena. integrando a equipe da peça durante toda a temporada de J'\lmculil's~ 1.1 I.
116

inexistentes. Inúmeras reelaborações dramatúrgicas foram realizadas fi medida que


avançavanl os ensaios de cena. bem COIll0 várias das imagens ou idéias apresentadas
à época da construção do texto tornaram-se matrizes para a Iínguagern da encenação.
Tais separações constituem, na melhor das hipóteses, apenas ênfases ou acentos dife-
renciados. de acordo CaIU o momento do processo.
Apesar da divisão racional e bem-intencionada dos ensaios de Apocalipse em dois
1110111entos distintos, o diálogo entre eles se deu natural e organicamente. e a pre-
tendida separação se revelou apenas U1l1a espécie de subterfúgio didático ou psico-
lógico - por exemplo, no sentido de não tensionar os atores em relação ao "peso"
de construção da dramaturgia, No processo colaborarivo não existe criação de texto
desvinculada da criação ele cena. e vice-versa. O critério da succssívidade também se
rclativizn, pois nem todas as coisas se criam antes ou depois ele outras, 11135 sim. conco-
miranternente. Um determinado J1l0111ento jri pode estar prenhe do seguinte. trazen-
do dentro de si o seu passado e o seu futuro. Por mais que quiséssemos a ordem e o
seqücnciarnento. a criação nos arrastava ao caos.
Outra contradição referiu-se à duração dos ensaios C0I11D UI11 todo. Havíamos saí-
do de O Livro de JÓ traumntizados C0l11 processos demasiado extensos. Pretendíamos,
pois. com essa nova estruturação. gerenciar melhor o tempo e. sem C0I11pr0I11ctcr a
profundidade da investigação. atingir um resultado cênico <:0111 maior rapidez. No
entanto. se comparado COIll os dois espetáculos anteriores. Apocalipse 1,11 foi aquele
que teve o mais largo período de ensaio. a saber, UH1 ano e quatro meses.
Porém, C0010 então explicar Ut11 desgaste e cansaço menores do que nos outros
dois? Urna possível resposta para essa charada encontra-se não apenas na natureza
do projeto. mas também na maneira COl110 foram propostas e articuladas as diferen-
tes etapas do processo. Apesar de mais extenso. houve urna melhor cstruturaçâo na
dinãmícn de ensaio. A sua configuração em partes diferenciadas. cada qual com mo-
vimentos ou tendências específicas. mínimízou a rotina do trabalho.
Contudo. tal distensão temporal continuou ainda a ser tU11a das objeções centrais
dos atores. Miriam Rinaldi, por exemplo, critica o desequilíbrio quantitativo de rem-
po dedicado à construção dramarúrgica quando comparado àquele destinado à ela-

boração das partituras corporais dentro do espaço. Segundo ela. "os atores reclamam
um maior equilíbrio entre a experimentação e a repetição":". Porém, não seria esta
uma das caracterlsticas ou objetivos desse tipo de processo. isto é. muita experimcn-
taçâo e pouca repetição?
Cabe-nos ainda tratar de dois momentos importantes na feitura desse espetáculo:
a entrada no espaço e o período ele ensaios abertos. A ocupação do Presídio do Hipó-
dromo, apesar de inúmeros contratempos burocráticos e de produção. foi él mais ela-
borada de todas. Além de aprofundarmos os procedimentos de exploração espacial

J 9 R(~AlDl. M •• OAtor ele> 'll-ulro ela Vt:rligl'ru: () processo de L1"iaçclo de "lJOC(llipsl' 1.11. p. 1 Sf).
117

desenvolvidos enl O Livro de Já. acrescentamos a preocupação com o aspecto "ener-


gético" ou "vibracional" do espaço- A entrada no lugar foi preparada com bastante
cuidado pelo grupo, contemplando desde 11111a faxina geral em todas as zonas de cir-
culação até urna limpeza de caráter "espiritual", realizada por especialistas na área.
Houve também, na primeira semana de ensaio no local. a introdução de urna téc-
nica conhecida corno "Viewpoints", Esta técnica. proveniente da dança pós-moderna
alnericana e adaptada para o teatro pela diretora Anne Bogart, apresenta princípios
que são muito adequados à fase exploratória de espaços não-convencionais, Entre
olHros aspectos, ela investiga a relação do corpo dos atores C0l11 as formas e linhas do
lugar. criando UI11 diálogo concreto corri a arquitetura. Desenvolvemos. portanto. no
processo de ocupação do Hipódromo, os tópicos relacionados aos Vit~Wl)OÜl1S de espa-
ço: "massas sólidas" (paredes. pisos. tetos. janelas. portas. mobiliário, etc.): rext uras;
tuminosidnde: cores; "metáforas espaciais": "relações espaciais" e topografla-",
Quanto ~l etapa dos ensaios abertos. ela se constituiu numa experiência-modelo
das mais importantes para a companhia, Nunca. antes de U1l1a estréia. tính<.11110S rea-
lizado mais que três ensaios com a presença de público. Dessa vez. porém, durante o
período de um Inês e meio. tivemos a oportunidade ele nos confrontar com o Jeedback
dos espectadores, o que alterou signifícativamente as conformações do traba lho.
Descobrimos que o processo se tornava mais colaborativo na medída ern que ga-
rant íamos um espaço definido para as interferências e sugestões do público. Isso não
quer dizer que. após a estréia. esse diálogo COIll a platéia deixasse ele ocorrer. Porém..
a insrauraçâo de um 1110111cnto de abertura da criação. ainda no período de ensaio.
promoveria a colaboração dos espectadores na feitura da obra e na confecção de sua
própYla materialidade. No caso de Apocalipse 1,1]. as objeções criticas c as proposições
elo público foram reescrevendo e remodelando o espetáculo. Nele. a experiência do
processo colaboratívo parecia ter chegado à sua instância mais abrangente.
t\ função da encenação, nessa dinâmica compartilhada de criação. também pa-
rece rcr conquistado U111 maior amadurecimento. Ao invés da busca pela unidade
estilística - corno em Jd - a direção. em Apocuitpse. deixou que variadas linhas ele
for emergissem. provocando o aparecimento de distintas vertentes estét icas, Por
1'a
exemplo, o Quarto de João (1\tO I) apresenta um realismo estranhado, pontuado por
elementos absurdos ou fantasmagóricos - as "aparições" da Noiva, do Senhor Morto
e do Anjo Poderoso, A Boite New jerusalém (Ato 11). por sua vez. recebe o tratamento
de um cabaré grotesco e histérico. O Massacre (Ato IlI}. ao contrário, vai em direção a
uma formalízação híper-reatísta - este é o único momento, inclusive. que () presídio
é apresentado enquanto tal. sem maiores metaforismos. Por fim. o Juízo Final (Ato

20 Para uma descrição detalhada desses tópicos e um melhor conhecimento da técnica.


aconselhamos a leitura de duas obras-chave: Amw HOgCll"t Vkwf1oints, editada por Michael B.
Dixon e joel A. Smith, c "nu:Vit.'·wpoí1JlS Book. escrita pela própria Anne Bogart (>111 parceria
COIn Tina Landau. Ambas encontram-se discriminadas nas Referências. ao final da tese.
118

IV) é marcado por forte teatralísmo - a descida do Juiz. a Noiva na escada. a crucifica-
ção da Besta, a procissão do Anjo Poderoso e de ~el1s asseclas. o enforcamento do juiz,
entre outros. Ou seja, há a emergência e a coabitação de diferentes vetores estéticos.
Não é ele se estranhar que urna peça ancorada - tenultica e processualmente - na
cidade de São Paulo. cujos bairros e lugares serviram C01110 fonte de referência para
a construção da dramaturgia e da cena. não sofresse a influência dessa urbanidade
multífacerada, Corno imaginar que urna cidade marcada pela pluralidade e mistura
de traços arquitetônicos díspares não induzisse a uma equivalente justaposição de
estilos e linguagens. num espetáculo nela inspirado?
Além disso. a encenação deixou vir à tona. de forma mais integral e intensa do
que nos espetáculos anteriores. o hibridismo e a polifonia das diferentes vozes e vi-
sões artísticas do grupo. Apocalipse 1.11 conseguiu matertalízar, a contento, a natureza
impura e colaborativa do processo de origem. E nos fez perceber que a "unidade" da
encenação não se encontra, apenas. no resultado estético da obra. mas também, na
conformação e na linguagem do processo.

4.3 O PROCESSO DA ENCENAÇÃO EM BR-32 1

i\ idéia-leme para a estruturação do processo - e para a construção do espetáculo


- (oi a realização de urna pesquisa de campo em três regiões do pais - Brasilãndia
(SP). Brasília (DF) e Brasiléia (1\C) - cujo único elo aparente residia no fato de todas
apresentarem o radical "brasü" na formação de seus nomes. É claro que. além da
coincidência vocabular - CTn si mesma lúdica e acidental>- estava em jogo o desejo de
discutir o controvertido terna da "identidade nacional".
Para tanto. foí realizada uma imersão do grupo em Brasilândia, bairro da Zona Nor-
te da cidade de São Paulo. durante o período de um ano (ianeiro a dezembro de 200 4).
Além d1550. no Inês de julho do referido ano foi empreendida uma viagem de 35 dias,
realizada por todos 05 criadores da peça. Partindo de São Paulo c cruzando o pais por
via terrestre, num ônibus-caminhão denominado Exploranter, a expedição artística
chegou até o Acre. 'I~11 viagem marerializava, no plano geográfico. possíveis conexões
entre aquelas regiões, as quais o espetáculo procuraria relacionar. no plano simbólico.
Em outras palavras. BR-3 efetivou a construção de um espetáculo a partir de urna
estrutura cartográfica: três regiões distintas: viagem por suas estradas ou vias de

21 ESte processo contou com a participação de Bernardo Carvalho, na dramaturgía. c dos


atores Bruna Lessa, Bruno Batista, Câcia Coulart. Daniela Carmona, Denise de Almeida.
Ivan Kraut, Lucíana Schwinden, Marília de Santis, Roberto Audio, Rodolfo Henrique.
Sergio Pardal c Sergio Siviero. A assitência de direção foi feita por Eliana Monteiro.
119

ligação; pesquisa de G1I11pO em ecossistemas urbanos diferenciados. Ao invés de um


·l
texto de base ou de referência. COIllO havia ocorrido nos processos anteriores. seriam
o estudo in loco das regiões e a experiência por elas proporcionadas que informariam
os direcionamentos artísticos do projeto. j\ pesquisa de campo, portanto, deixava de
ser apenas instrumento para se tornar matriz da criação.
Por considerarmos o processo colaborativo como uma metodologia ele criação em
rede - ou mapa -. tal metodologia, nesse novo trabalho elo Teatro da Vertigem, espe-
lhava um núcleo conteudístico e conceitual que era, também ele. cartográfico. Em
outras palavras, o modo do processo dialogava concretamente com o próprio assunto
ou tema-motor,
Porém, antes de tudo, é importante que se tenha a visão global do percurso de
criaçâo. a fim de permitir a localização de seus pontos cardeais. O mapa geral do pro..
cesso, de forma sintética e esquemática, desenhou-se ela seguinte maneíra:

• Definição elo projeto: início da escolha do dramaturgo e demais colabora-


dores: realização das primeiras incursões do grupo a Brasiiândia (2° semes-
tre de 2003);
o Leituras; seminários: encontros C0111 intelectuais convidados; fechamento
da equipe de criação; primeiro módulo das oficinas e da pesquisa de carn-
po em Brasilándia ('10 semestre de 2004):
• Viagem por terra até o Acre e pesquisa de campo em Brasília e Brasiléia (30
de junho a 3 de agosto ele 2004)~
o Discussão do argumento proposto pelo dramaturgo: irnprovisaçôes a par-
t ir da viagem e do argumento; segundo módulo das oficinas e da pesquisa
de campo em Brasilándia (2° semestre de 2004);
o Elaboração do roteiro; improvisações, exercícios e \Vorkshops relacionados
;1 construção da dramaturgia: escritura da primeira versão do texto: início
dos estágios em todas as áreas de criação (-t o semestre de 200S):
o Experimentações cênicas a partir da dramaturgia criada: produção de no-
vas versões do texto: ensaios de apropriação e colocação do espetáculo no
Rio Tietê; realização dos ensaios abertos ao público (2° semestre de 2005);
• Ensaios corridos e técnicos; finalização da dramaturgia; aprimoramento do
espetáculo e do trabalho interpretativo: sincronização na logística da monta-
gern: estréia oficial; temporada de dois meses e meio (10 semestre de 2006).

o processo de 13R-.1 iniciou-se em meados de 2003. a partir do fórum artístico inter-


no da companhia. no qual se fez llJll balanço do percurso artístico percorrido para a
elaboração da Trilogia Bíblica (O Paraíso Perdido; O Lívro clcJá e Apocalipsf! 1,11). i\lérn (1,1
avaliação crítica dos procedimentos e resultados atingidos até ali. fez-se também um
120

esforço de identificação das futuras metas artísticas e das vontades pessoais e coletivas,
.,
Entre. os tópicos levantados, apareceu fortemente o desejo de abandono ou suspensão
da temática religiosa. Ainda que se percebesse o quanto tal assunto não se encontrava
esgotado em nossas criações, havia urna recusa ou cansaço em relação a ele.
Enl função disso, cada integrante trouxe textos. peças ou idéias que gostaria de tratar
no próximo espetáculo. Após vãríos encontros de compartilhamento deste rnateríal -
boa parte dele. curiosamente. composta por monólogos -, não se conseguiu chegar a ne-
nhum denominador comum, Finalmenre, por não vislumbrar perspectivas de consenso
a curto prazo, apresentei ao grupo o embrião de um projeto, ainda confuso e nebuloso.
En1 decorrência da exposição fotográfica de Thomas Farkas. no Instituto Moreira Sal-
les (2002), em que eram apresentadas imagens de Brasília em construção - com seus tra-
ços arquitetônicos ainda pela metade, sujos de terra e desfigurados - ocorreu-me o desejo
de lançar mão deste material para a realização de um espetáculo, Acrescentou-se a isso
a lembrança de um projeto irrealizado. proposto pela Secretaria Municipal ele Cultura,
para que o grupo montasse urna peça na periferia da Zona NOIte. VIn bairro em especial,
naquele momento, chamou a atenção da companhia: Brasilândia. Desnecessário dizer
que, pela semelhança vocabular, a associação Brasília-Brasílànclia foi imediata.
Se o Vertigem saía de Apocalipse 1,11 exaurido da temática religiosa. por QUI ro lado..
tal espetáculo descortinou U111 universo de provocantes questões relativas à sociecla-
de brasileira. Foi inegrivel a mobilização do grupo em relação aos problemas nacio-
nais ali tratados. Talvez caiba reconhecer que, se Apocalipse. por um lade, marcou a
últ ima etapa de urna trilogia bfbHn.l, por outro, ele se configurou corno a primeira for-
malizacâo de urna futura t rilogia hrasildra. De alguma forma. BR-3 já se encontrava.
cmbrionariamcntc, dentro dele.
O passo seguinte na elaboração do novo projeto se deu ele forma eminentemente
lúdica. Movido pelo radical "brasü", o grupo perscrutou UHl atlas geográfico e eles-
cobriu. na extremidade do Acre, urna pequena cidade chamada Brasiléia, O círculo
havia se fechado. Na verdade. não um círculo, 1l1aS urna parábola. Esta era a figura
geométrica que unia. no traçado do mapa, aqueles três Brasis, cuja única associação
residia na mera coincidência vocabular.
Por outro lado. tal escolha cartográfica apontava para uma discussão de país, não
pejo viés geral e abstrato. mas ancorada em três lugares muito específicos e concre-
tos. Chamava a atenção. ainda. o fato de aquela parábola imaginária perfazer um
sentido centrípeto. do litoral rumo ao interior. Estava. enfim, esboçado o desenho do
projeto: o grupo faria UJl1<l viagem para o interior do país. até o limite de suas últi-
I11as fronteiras. e criaria urna peça a partir desta expedição-experiência.

Partiu-se, então. para a escolha da equipe de. criação. Diferentemente dos proces-
sos anteriores, o primeiro passo foi a busca do dramnturgísta. a fim de que ele pudes-
se auxiliar, desde logo. na escolha do escritor e nas primeiras abordagens teóricas do
projeto. Foram convidados a professora e pesquisadora Sílvia Fernandes e o diretor e
121

c1r~lll1aturgo Ivan Delmanto para ocuparem essa função.


Em seguida. houve o encontro C0l11 vários potenciais dramaturgos, a saber. Ber-
nardo Carvalho. Perréz, João das Neves. Mareio Souza e Milton Hatourn, O interesse
do grupo oscilou entre escritores associados. ele alguma forma, às regiões geográficas
envolvidas no projeto. e outros, cuja obra compreendesse alguma filiação ao gênero
"literatura ele viagem".
Considerou-se. também, a possibilidade de convidar três dramaturgos diferentes
para a escritura ela peça. ']:,1 perspectiva não estava vinculada apenas à equivalência
numéríca em relação aos locais escolhidos. Representava. também, a oportunidade de
retornar a parceria de trabalho C0I11 Luís Alberto de Abreu e Pernando Bouassí - que
se associariam, por sua vez. a um terceiro dramaturgo, Contudo, esta idéia foi abando-
nada mais tarde. pois se julgou que melhor do que uma tríade heterogênea ele visões
dramatúrgícas. seria mais desafiador a presença de um único escritor que pudesse
estabelecer as conexões entre aqueles diferentes lugares. Após várias reuniões - algu-
mas delas. polêmicas - a escolha do grupo recaiu sobre o autor Bernardo Carvalho.
Esse período preparatório marcou, ainda. as primeiras incursões da companhia
em Brasilândia. Estabeleceu-se contato C0l11 agentes culturais e sociais que trabalha-
varn na região e, por meio deles, foi possível conhecer e se aproximar cios líderes co-
munitários locais. A partir desses encontros. definiu-se conjuntamente - o Teatro ela
vertigem e as lideranças do bairro -, a forma de atuação do grupo ali dentro. Ou seja.
os dias de trabalho. os tipos de oficina. os locais onde seriam minísrradas as aulas. os
mecanismos de divulgação e inscrição. entre outros aspectos.
Outro ponto fundamental do projeto era ti constituição de uma sede "avançada'
e temporária da companhia. no bairro. Por meio ele negociações C0l11 os líderes lo-
cais, foi disponibilizada urna casa semi-destruída. pertencente à comunidade. que o
grupo deveria reformar para uso. O acordo proposto era que os recursos financeiros
alocados para a reforma do imóvel equivaleriam ao aluguel que seria pago por sua
ocupação durante um ano. Outro quesito do acordo, nesse caso condicionado pela
companhia, era que. quando da saída do vertigem. ao final do ano de trabalho. aque-
le espaço deveria ser utilizado para ati~idades artísticas e educacionais.
Antes de se prosseguir e analisar os aspectos relativos ao percurso da encenação
de BR-3. é importante urna descrição mais detalhada da trajetória dos ensaios. Se an-
tes foi apresentado o mapa geral de desenvolvimento do projeto. pretende-se agora
realizar urna cartografia mais pormenorizada das etapas de criação. capaz de revelar
a sua estrutura reticular.
122

FASE DA PESQUISA TEÓRICA E DE CAMP022

ENCONTROS COM ESCRITORES (2003/2004)

• Márcio Souza: conversa sobre seu livro Galvez, O Impemdor do Acre (15 ele
dezembro de 2003):
• Bernardo Carvalho: conversa sobre o processo de criação dos romances
Nove Noites e l\1ongâlia (20 de dezembro de 2003);
• Milton Hatourn: conversa sobre sua visão de Manaus e da região Norte.
além de discussão sobre seus dois romances, Relato dtJ um Cerro Oriente c
Dois Innãos (13 de janeiro de 2004);
• João das Neves: conversa sobre sua experiência C0111 tribos indígenas no
Acre (15 de janeiro de 2004);
• Bernardo Carvalho: segundo encontro com o escritor. destinado a apro-
fundar e esclarecer algumas questões de ordem artística. e a auxiliar o
grupo na tomada de decisão em relação à escolha elo dramaturgo (18 de
janeiro de 2004):
• Ferréz: conversa sobre seu trabalho sócio-cultural no Capão Redondo. bair-
ro da periferia ele São Paulo (24 de janeiro de 2004).

OFICINAS E TRABALHO PRÁTICO EH 8RASIL ..~NDIA (2004)

o Visitas às comunidades do bairro. ONGs e associações de moradores. En-


contros com líderes comunit ários para a definição das oficinas. locais para
a sua realização e formas de divulgação c inscrição nas mesmas. Acornpa-
nhamento ela reforma da "sede" avançada do grupo (janeiro-fevereiro):
o Participação da companhia na festa do 57° Aniversário de Brasilãndin. no
Largo da Pancada (24 de janeiro]:

22 As fontes documentais utilizadas para o estabelecimento deste mapa do processo


foram: os cademos de dircção~ os relatórios enviados ~\ Secretaria Municipal de Cul-
tura. em razão da Lei de Fomento ~IO Teatro: os relatórios internos do gnJpo. e o
cronograma de: atividades realizado pelo dramaturglsta Ivan Delmanro. SCI11pre que
ocorreu alguma dúvida, lacuna ou contradição de inforrnaçôcs optou-se pelos regis-
tros contidos nos cadernos de direção, Esta Iase e a seguinte tiveram suas atividades
realizadas tanto em Brasilândia - na "sede" do grupo. situada no jardim Paulistano,
e em vários outros locais no bairro - quanto na Casa NOl. residência artística tempo-
nlria da companhia. localizada no centro histórico de São Paulo. ao lado da Praça da
Sé. nU111 projeto de parceria com a Secretaria Municipal de Cultura. O grupo ocupou
a Casa N°) de dezembro de 2002 a novembro de 2005. data do início dos ensaios aber-
lOS de B~-3 no Rio Tietê.

I
123

• Encontro preparatório das oficinas. realizado C0111 a líder comunitária Noê-


.\
mia, coordenadora do Núcleo Sócio-Educativo Arte na Rua (29 elejaneiro);
• Encontro C0111 Márcia Barral, liderança política na região da Freguesia do
ó, e subprefeita ele Brasllândia durante o ano de 2003 (o3 de fevereiro);
• Encontro preparatório C0111 a professora Maria Lúcia Pupo, destinado à
orientação do grupo sobre princípios de teatro-educação. e ao auxílio no
planejamento e condução das oficinas (3 de março];
• Início das treze oficinas: teatro para crianças; teatro para adolescentes
(turmas 1 e 2); música: DJ; cenografia; iluminação: figurino; dramaturgia:
vídeo; formação de monitores: expressão corporal para mulheres e teatro
para a melhor idade" As aulas ocorriam urna vez por semana. durante todo
o ano - COll1 exceção de julho -. sempre às terças-feiras. de manhã e à tar-
de (9 de março]:
• Festa de lançamento do Projeto BR-3 e inauguração elo Barracão Cultural
- nome dado ~l "sede" elo grupo -. no jardim Paulistano (l.1 de março):
• Início das atividades de livre-investigação: por meio de vísitas, encontros.
entrevistas. caminhadas de reconhecimento, improvisações na "sede" ela
companhia e no seu entorno, o grupo ia recolhendo material e experimen-
tando a vivência prática do lugar. Tais atividades ocorriam pelo menos
UI11a vez por semana. durante todo o ano - COIll exceção de julho -. às
quintas-feiras à tarde (-18 de março):
o Visita à favela Vila Penteado, acompanhada da professora Márcia Apareci-
da da Silva e de seus alunos da Escola Municipal Théo Dutra [i o de abril);
• Segundo encontro <:0111 a professora Maria Lúcia Pupo, destinado ~l primei-
ra avaliação elo trabalho nas oficinas (23 de abril);
o Encontro com Inéditos e terapeutas elo Núcleo de Saúde Mental ele Brasi-
lándia (30 de abril);
• Excursão pela Serra da Canrareira, guiada por alunos das oficinas (·l5 de
maio]:
o Terceiro encontro com a professora Mnria Lúcia Pupo, destinadq à avalia-
ç~10 do trabalho pedagógico desenvolvido até então (31 de maio);
• Encerrnmenro da primeira etapa das oficinas: apresentação pública e con-
junta dos experimenros desenvolvidos ao longo do semestre, pelos alunos
de todas as oficinas (26 de junho);
• Início da segunda etapa das oficinas, além da realização de nova divulga-
ção para os cursos com excedente ele vagas (10 de agosto);
o Encerramento da segunda e última etapa das oficinas: apresentação públi-
ca dos trabalhos desenvolvidos ao longo do ano. pelos alunos de todas as
oficinas, seguida de confraternização final entre os participantes e o grupo
us de dezembro].
124

ENCONTROS COM INTELECTUAIS E PESQUISADORES {l~ SEMESTRE DE 2004)23


.,
• Antonio Nóbrega, ator e músico: discussão sobre a identidade e as matrí-
zes do ator brasileiro (27 de janeiro);
• Márcia Aparecida ela Silva. professora de geografia na Escola Municipal
Théo Dutra. ern Brasilândia, e moradora do bairro: discussão sobre sua
tese de doutorado Perccpçdo da Paisage,n e Plnnejczmento no Dístríto da Brasi~
liindia - SP, apresentada ao Departamento de Geografia da FFLCHI USP, em
2002 (22 de março);
• Marta Baião. atriz: relato de sua experiência de trabalho com psicodrarna,
em Brasilãndia e em outras regiões periféricas de São Paulo (13 de abril);
• Cibele Rizek, urbanista: discussão sobre urbanismo e políticas públicas na pc-
riíeria de São Paulo. Sua fala recebeu o título de "Centro e Periferia. inclusão e
exclusão" (26 de abril);
o Pedro Fiori Arantes. arquiteto: encontro sobre as diferenças e contrastes
da arquitetura em Brasília e São Paulo (3 de maio):
• Suely Rolnik, psicóloga: discussão sobre políticas da subjetividade. capita-
lismo cognitivo e fetichízação do objeto artístico (10 de maio);
• Wagner Hermuche, fotógrafo: apresentação e discussão sobre seu livro
Abstrata Brasília COllcrela (17 de maio):
• Guilherme Wisnik, arquiteto: discussão sobre a obra de.. Lúcio Costa e a
utopia da arquitetura moderna (24 de maio):
• Luiz Rccamrin Barros. arquiteto: discussão sobre a construção de Brasília e
a modernização conservadora no Brasil (31 de maio):
o Maria Antonieta Antonacci, professora de história da PUC-SP: discussão
sobre o trabalho d05 seringueiros no Acre (4 de junho);
9 Aírton Rocha, professor de história da Universidade Federal do Acre (UFAC):
apresentação de impressões e análises do Acre - e de Brasiléia -, do ponto
ele vista de um acreano (18 de junho).

CONFERENCIAS ABERTAS AO PÚBLICO (1~ SEMESTRE DE 2004)

• "Icrritorializaçâo da Pobreza e Precariedade Urbana em Brasilândin", com


o sociólogo Pedro Aguerre (27 de fevereiro);
• Lançamento do Projeto BR-3, C0l11 o Teatro da Vertígern (03 de março]:
o "Amazônia e Literatura", C0l11 o escritor Milton Hatourn (2 ele abril);

2J Estes l"nCOJ1rfOS ocorriam. via de regra. às segundas-feiras. das 20]WO às 23hoo. na Cas..l
N" 1. envolvendo todos os criadores e colaboradores do trabalho. Eles não eram abertos
no pÚblicD.
125

• "A ferina difícil: artes plásticas no Brasil". C0111 o crítico de arte Rodrigo
Naves (30 de abril);
• "Trem-fantasma; a modernidade na selva", com o pesquisador e crítico lite-
rário Francisco Foot Hardrnan (7 de maio):
• "Sociologia das religiões no Brasil". COIll o sociólogo Antônio Flávio Píeruc-
ci (14 de niaio):
• "Trãfico e crime organizado no Brasil", com o juiz e ex-secretário nacional
antidrogas Walter Maierovich (11 de junho).

V\AGEM (JULHO-AGOSTO DE 2004)~'"

o Brasília: Visita ao Palácio do Planalto. ao Congresso Nacional e ao Palácio da


Alvorada. Reunião COl110 o senador Tião Viana. Visita ~l Catedral da cidade, ao
Panreão ela Pátria e ao Espaço Lúcio Costa. Encontro C0l11 o poeta Adão Lopes
Xavier.. com os construtores-pioneiros, SI'. João Ornar e Sr. Francisco Simões
Júnior (seu Chiquinho), com o historiador Luís Sérgio Duarte e C0l11 Ul11 gru-
po de teatro de 'Iaguatinga. Visita à Favela Estrutural. ao Parque Nacional de
Brasília. ao Núcleo Bandeirante. à Ceilândia e ao Chaparral, Visita fI Vila Pla-
ualto, bairro dos pioneiros de Brasília. Conversa COH1 a socialite Moema Leão.
Seminário no CCBB. denominado "Visões de Brasília". do qual participaram
o poeta Tl' Catalão. a urbanista Raquel Rolnik e a socióloga e professora da
UNH. Maria Angélica Madeira. discutindo a proposta do Projeto BR-3. Encon-
tro C01H o poeta Nkolas Behr c com o cineasta André Luis Oliveira. Visita ao
Vale do Amanhecer. Encontro e consulta COIl1 o pai Raul de Xangô. Palestra
elo Teatro da Vertigem e encontro COH1 representantes do movimento tear ral
local. Participação em UH1 ritual ele danças circulares para a lua [somente as
mulheres). Visita ao Memorial das Idades dos Povos do Brasil, criado pelo his-
toriador Paulo Bertran ('1 a 7 de julho);
o Serranópolis: Caminhada pela cidade acompanhada do vereador Théo. Vi-

sita ~·IS pinturas rupestres. Visita ao sítio arqueológico Arara Azul. Conversa
C0111 violeiros e sanfoneiros da cidade. Oficina teatral ministrada pelo Teatro
da vertigem na Escola Municipal JK. Visita ao famoso "puteiro" da cidade
(somente os homens] (8 de julho);
• Cuiabá: Reunião no SESC Arsenal. Camin hada pela região portuária e
margens do Rio Cuiabá. Visita ao Museu do Rio. ao Monumento do Centro

::q Foi publicado um diário de viagem, na Folha Online, escrito pelo dramaturgista Ivan
Dehnaruo. no qual ele relata impressões pessoais c tece análises sobre sua expcriên-
cin durante o percurso. O endereço do site é:http://v~'\vwl.folha.uol.com.br/foJh'l/cspe­
dal/2004/ceatrodavenígl·m/diario_dt'_viagem.slunl1
126

Geodésico e à Casa do Artesão. Participação em festa junina na periferia da


cidade. na qual se apresentaram grupos de siriri (dança) e cururu (música),
manifestações folclóricas regionais. Visita à Chapada dos Cuimarães (9 de
julho):
• Vila Bela da Santíssima Trindade: Conversa C0l11 moradores da cidade.
Visita às ruínas de UJ11a igreja de 1752. Encontro COlll Dona Nemésia. urna
das moradoras mais antigas de Vila Bela. e organizadora da Festa do Divi-
no. da Dança do Chorado e da Dança do Congo, Visita a um circo mam-
bernbe em apresentação na cidade. o Circo Fantástico (-t t de julho):
• ji-Paraná: Caminhada pela cidade e visita ao teatro local (12 de julho);
• Porto Velho: Estadia em uma pequena comunidade do Santo Daime. Pas-
seio de barco pelo Rio Madeira. Visita ao Museu Ferroviário e aos escom-
bras da ferrovia Madeira-Mamoré. Encontro COlll a pesquisadora Arneide
Cernin. estudiosa do Santo Daime e de suas ramificações e dissidências no
Brasil (Cefiures: Colônia sooo: Céu do Mapiá; Barquinha: Uniâo cto Vegetal).
Encontro com João Ribeiro Nogueira. líder religioso do Centro Eclético de
Correntes da Luz Universal. ligado ao Santo Daime. (13-14 de julho):
• Rio Branco: Visita ~IOS pontos turísticos da cidade e aos marcos da guerra
contra a Bolívia. Visita à Rua Eduardo Assmar, à Camelcira, il Casa dos Po-
vos da Floresta, (1 Casa do Artesão e ao Museu da Borracha. Caminhada pelo
Bairro Pá Pôco e pela Praça da Bandeira. Palestra elo Teatro da Vertigem e
encontro com representantes da classe teatral local. Visita à comunidade
original do Santo Daime, localizada em Alto Santo. região na periferia de
Rio Branco. e encontro com Dona Peregrina, esposa do Mestre lrineu Ser-
ra (criador elo Santo Daimc). Encontro COll1 o historiador Marcos Vinicius
Neves. chefe do Departamento de Património Histórico e Cultural do Acre.
Visita à Colônia Souza Araújo. leprosário de ruo Branco. Visita e livre-inves-
tigação na periferia da cidade. em especial no Bairro Chico Mendes. Convcr-
sa C0l11 os professores de história da Universidade Federal do Acre. Gérson
Souza c Airton Rocha. Participação em cerimônia elo Santo Daime, em Alto
• Santo. (15 a 20 de julho):
• Porto Acre: Viagem de barco pelo rio Acre até o seringal Bom Destino.
Visita a urna casa dos índios Apuauã. Visita ao "memorial" da Revolução
Acreana. em Porto Acre (19 de julho);
• Seringal Dois Irmãos: Estadia e pernoite na reserva extrativisra. próxi-
ma a Xapuri. Conversa com seringueiros. Visita a "estradas de seringa" e
acompanhamento do trabalho de retirada do látex. Realização de oficina
teatral com os filhos dos seringueiros (20-2 t de julho):
• Xapuri: Visita ~l casa de Chico Mendes. Conversa com sindicalistas e ex-se-
ringueiros do IYf local. Visita ao pólo moveleiro de Xapuri. Visita à Fundação
127

Chico Mendes. Visita ao "museu" do Sr. Antônio: dois galpões C0l11 todos os
tipos de vestígios, jornais. garrafas, rótulos e sucatas. colecionados há vários
anos por ele. Encontro com o irmão de Chico Mendes, no Sindicato dos Tra-
balhadores Rurais (21-22 de julho);
• Brasiléia: Visita à Rua da Goiaba e conversa com vários moradores antigos
da cidade. C01110 Dona Oceana, Seu Dadá e Seu Sebastião. Noite no Forró
da Cacilda. Visita ao Seringal BOIU Sucesso. Encontro COll1 ° historiador
Marcos Fernando. Encontro com o D1". Tufic, representante da comunidade
libanesa local. Encontro com íarnar Pinheiro, filha de Wilson Pinheiro. e
corn o líder seringueiro Osmarino Amâncio. Visita a Bpitacíotãndía. cidade
fronteiriça "rival" de Brasiléia e encontro C0111 Gislene Salvatierra. ACOll1-
panhamento da eleição para presidente do sindicato dos seringueiros de
Brasiléia e entrevista com integrantes elas duas chapas. Visita ao Centro
Cultural ele Brasiléia. Livre-investigação da cidade e encontro COll1 diversos
moradores (entre os quais. parteiras, benzedeiras. seringalistas. delegado
de polícia, radialista. prefeito. etc.), realizados individualmente ou em du-
plas (22 de julho a 01 de agosto);
• Assis Brasil: Visita à tríplice fronteira entre Brasil. Peru e Bolívia. Parti-
cipação na Festa de Congraçamento dos Povos. Estadia por dois dias, de
parte do grupo. na aldeia indígena dos jaminawa (24 elejulho);
Cll Cobija: Visita à cidade boliviana que faz fronteira C0l11 Brasiléia. Visita ao
Cristo Seringueiro, na Igreja Nuestra Scnora Del Pilar. Encontro C0111 a "Rai-
nha Mariana", urna louca de rua, na praça central ela cidade (27 de julho);
• Rio Branco: Encontro COll1 Gregório Filho, presidente ela Fundação Elias
Mansour, Primeira avaliação da viagem. Volta a São Paulo. (02-03 de agosto).

FASE DE CRIAÇÃO DO TEXTO/CRIAÇÃO DA CENA25

CRIAÇÃO DO ARGUMENTO E DO CANOVACCIO (2~ SEMESTRE DE 2004) •

• Bernardo Carvalho trabalha individualmente na escritura do argumento


ou sinopse do enredo. Início da segunda etapa das oficinas em Brasilândia
(agosto);

~5 Após a viagem ao Acre, o Teatro da Vertigem interrompeu tcmporurlamente o Projeto


BR-3. a fim de apresentar a íntegra da Trilogia Bíblica. no Festival lnternacional de Belo
Horizonte (FIT-BI-I). (!Jl1 agosto de 200••. Tal intervalo foi utiliz.ado como período de tra-
balho individual para o dramaturgo Bernardo Carvalho, a fim de que ele pudesse aprc-
sentar uma proposta de argumento para o grupo. no inicio de setembro. As otlcinas em
Brasilândia foram retomadas em agosto, mesmo sem a presença de toda a companhia.
128

• Análise e discussão ela proposta de argumento elaborada pelo dramaturgo (se-


'\
ternbrol;
• lrnprovísações a partir de situações do argumento. Improvisações e
workshops baseados nos diários de viagem de cada um dos atores. Realiza-
ção de ensaios dedicados às personagens centrais do argumento. nos quais
todos os atores experimentaram cada urna das personagens. Realização ele
workshops específicos sobre Brnsilãndia, Brasília e Brasíléia. Estruturação
elo canovllccio. compreendido corno organização das ações e personagens
(outubro a dezembro):
o Processo de seleção dos estagiários de Direção e de Direção de Arte (outubro]:
• Processo de seleção dos estagiários de Interpretação e de Produção. Iní-
cio dos esr.igios de Direção e de Direção de Arte. Realização ele quatro
\v()rkslwjJs intensivos de interpretação: "Dança", COJll Ricardo Iazetta: "Más-
cara Neutra", (0111 Cuca Bolaffi: "Canto", COIl1 Laércio Resende e "Antropo-
logia Pessoal". com ~larcclo Gabriel (novembro):
o Treinamento de Máscara Neutra. COll1 Cuca Bolaffi, Início dos trabalhos
C0l11 o xarnã Lynn Mário Menezes de Souza. Encerramento das oficinas em

Brasilândia (dezembro).

CRIAÇÃO DO ROTEIRO (JANEIRO A MARCO DE 2005)

G Início da segunda etapa do processo de criação. visando ~l estruturação


do roteiro. Tal trabalho foi também realizado a partir de Improvisações
e workslwps, tendo COI110 base tanto o argumento e o cano\'accio quanto a
experiência da viagem. Processo ele seleção elos estagiários das outras .ire-
as de criação e início oficial de todos os estágios de acompanhamento - à
exceção dos de Direção e Direção ele Arte que se iniciaram no final do ano
anterior (janeiro):
o Distribuiçâo dos papéis. Elaboração ela versão final do roteiro. a partir das
contribuições e sugestões de todos os integrantes do projeto (fevereiro);
o Encerr~\lnento da segunda etapa do processo de criação dramatúrgica, por
meio da encenação da versão final do roteiro - realizado na íntegra e sem
interrupções. É importante notar que todas as falas e marcações eram ain-
da improvisadas. Duração: 6 horas (11 de março):
o Recesso para que Bernardo Carvalho escrevesse 05 diálogos da primeira
parte do texto. Período de descanso para os atores (2.1 quinzena de março).

I
129

ESCRITURA DO TEXTO E CRlAÇÃO DAS CEN,ô,S (ABRIL A JULHO DE 2005)

• Início da montagem da primeira parte do texto. Todas as sextas-feiras


ocorria a apresentação das cenas levantadas durante a semana. Esta etapa
compreendeu UHl espaço de experimentação não apenas para o texto e a
interpretação. luas também para as demais áreas de criação: direção. luz.
música, cenário e figurino (abril);
• Escritura e rnontagern da segunda parte do texto (maio-junho];
• Corrido integral da primeira versão do texto - composta pela reunião da
primeira e segunda parte. Nesta apresentação. os diálogos e as falas já se
encontravam memorizados pelos atores. e havia também um esboço de
marcaçâo, Duração: 4 horas. sem interrupção (11 de julho);
• Período de descanso de 15 dias para os atores e demais criadores (20\ quin-
zena de julho).

OCUPAÇÃO CENtCA DO RIO TiETE (2~ SEMESTRE DE 2005)

• Primeiras visitas ele reconhecimento ao Rio Tietê. realizadas por cada área
de criação. isoladamente. COlHO também por todo o grupo junto. incluindo
aí os estagiários. Produção da segunda versão do texto, com rcclaboração
dos diálogos e da estrutura, ern função das sugestões levantadas após o cor-
rido do 111ês anterior (agosto):
• Trabalho de investigação c de apropriação cênica do Rio Tietê. por meio de
improvisações e workslwps. Esta etapa consistiu na busca da definiçâo do
percurso. do sentido da navegação e elo local específico para cada cena. Foi
realizado também um estudo ela duração dos deslocamentos e da logística
de transporte de atores e técnicos [setembro-outubro].


- --- DTÁLOGO COM O PUBUCO (NOVEMBRO DE 2005 A JUNHO DE 2006)

o Realização de ensaios abertos: ao final de cada apresentação os cspecta-


dores eram convidados a preencher UIU questionário. por meio do qual
apontavam problemas e sugestões de mudança, Esses questionários eram
avaliados cuidadosamente e discutidos com as áreas de interesse. Enl
caso de pertinência. as críticas e proposições por eles levantadas eram
incorporadas ao espetáculo (novembro-dezembro):
o Remontagem da cenografia. luz e S0I11. em função da pausa de fim de ano.
A partir da experiência dos ensaios abertos e do feedback recebido, houve a

l
130

realização ele várias melhorias técnicas. Todo o foco do trabalho. durante


o Inês de janeiro. esteveconcentrado apenas nos aspectos materiais da
montagem, pois. como parte do acordo firmado corn O DAEE~G. não pode-
ria haver ensaios no período crítico de chuvas (janeiro);
• Retomada dos ensaios no rio. visando aos seguintes objetivos: realização
dos ajustes finais. aprimoramento da logística de cena - no sentido de
resolver a equação atores e contra-regras + deslocamentos nas margens +
trajetos das embarcações -: ensaios técnicos; detalhamento da interpreta-
ção e redução do tempo total do espetáculo (fevereiro);
• Estréia de BR-3 {24 de março ele zooõ);
• Temporada de dois 111eSeS e meio, interrompida abruptamente no início
de junho. em razão da elevação do valor ele aluguel dos barcos (até 04 de
junho de 2006).

(~ importante relembrar que. apesar deste mapa ele percurso apresentar as eta-
pas de BR-3 numa seqüência cronológica, elas devem ser pensadas íntegradamentc,
como nós ou picos de urna rede, em constante e contínua contnminação. Em outras
\ palavras. elevemos ser capazes de interconectar esses pontos. de pensa-los enquanto
I
I
I
!
acontecimentos geminados. frutos, não apenas. de Ul11a lógica causal. O tempo da
criação artística não é linear. e segundo Saltes, "qualquer momento do processo é
simultaneamente gerado e gerador-r...), e a regressão e a progressão são infíniras":".
Do percurso apresentado. elegemos alguns aspectos que concernern - direta ou
I
J
indiretamente - fi condução do trabalho c ao Gll11pO de acão do encenador, Procura-
1
",
mos, também. apontar algumas crises e contradições. jél que elas se constituíram em
l
1 linhas de força motrizes na materialização da própria peça.
\ Um dos pontos mais problemáticos do processo referiu-se à relação entre os atores
1
\ c a dramaturgia, Urna parte disso. é claro. pode ser associada ao temperamento forte e
~
i
às vezes beligerante do dramaturgo c. por outro lado, às manifestações egóicas dos ato-
res em relação às suas personagens. Porém, é possível identíflcarmos outras causas
i igualmente significativas. Uma delas concerne nostalgia do processo de r\J1ocCllipse
1.;. à

i
por parte dos atores. Pela natureza do que nos propusemos naquele momento. além
1"j
I
j
do próprio modo C0I110 Fernando Bonnssí operava, os atores tiveram uma enorme
- - 1- - - -
t
i interferência na primeira fase de criação da peça. Corno j<.t descrito. não existiu nc-
Ii nhuma proposta a priolÍ por parte do dramaturgo, e o que se consolidou corno texto
.~
de Apocalipse fOÍ fruto direto dos três workshops iniciais.
Nesse sentido. a dramaturgia de Bonassi é explicitamente mais generosa em relação
às sugestões dos atores e suas necessidades. Ela consegue concretizar - e talvez mais

26 Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado de Suo Paulo.


27 SAlUiS. c. A•• Rt',ks da Criação: constnlçtio du ohm de urh.', p. 26.
131

do que isso. estampar - as múltiplas interferências dos intérpretes e elo diretor na


construção da peça. Contudo. apesar de menos aparente. o texto de BR-3 também
incorpora vários elementos provenientes das íruprovisações e workslwps. além ele dia-
logar com o ferdbclck e as sugestões da direção.
Não podemos nos esquecer que. apesar das diferenças ele temperamento, estilo
e metodologia de trabalho. o dramaturgo é convidado pelo 'teatro da Vertigem para
participar de urna dinâmica coletiva de criação. Tal dinâmica, contudo. pode aSSU1111r
distintas ferinas de funcionamento, sem ter que obedecer a alguma regra "ideal",
estabelecida de antemão. Existe apenas um princípio ele base: o projeto do grupo é
anterior à escritura da dramaturgia, Ou seja. a peça n50 tem papel fundador nem
funciona como ponto de partida. Por outro lado. porém, ela não é mero pretexto e
nem está subordinada aos caprichos ela encenação. Em outras palavras. o dramatur-
go escreve <l partir de um projeto cênico grupal a ele apresentado - e não a partir de
urna encenação previamente imposta.
Segundo a análise de Ana Rebouças, O texto é pensado e estruturado em função
H

do processo de criação. resultando na inscrição de urna poética cênica. ainda que


virtual'?". Poderíamos afirmar; nesse sentido. que a dramat urgia conrracena COHl a
encenação. e vice-versa.
Bernardo Carvalho, num movimento aproximado àquele de Luis Alberto de Abreu.
trouxe UI11 argumento narrativo C0l110 base para o desenvolvimento da dramaturgia.
Na verdade. ele o fez COll1 111UíIO menor incisão do que Abreu, na medida ern que este
último já apresentou a primeira versão integral do texto. logo após o Inês inicial de
ensaio. Sinrornat icarnente. Já e nR-3 são peças em que o elemento narrativo estru- é

t uraclor, o que solicita do dramaturgo 41 prévia visão global da história. sob pena de o
enredo não lograr comunicação ou se plasmar de forma fltícida e claudicante.
Ali.is, nos dois encontros iniciais COIl1 Carvalho. ainda antes ela escolha de seu
nome COlHO escritor do projeto. houve urna única condição imposta por ele: escrever
uma história C0111 começo, meio e fim. Não lhe interessava. portanto. urna drama-
t urgia de fragmentos. composta por cenas autônomas e isoladas. e com personagens
que não cumprissem urna trajetória. Apesar de certas divergências e dúvidas, sur-
gidas nesses encontros. o grupo concordou C0I11 o pré-requisito narrativo e t01110U.
conjuntamente. a decisão de convidei-lo corno dramaturgo.
Talvez nâo tenha ocorrido a alguns atores, naquele momento, que a concordância
COU1 essa condição significaria deixar a cargo do escritor. em primeira instância, a

28 suvx. J\. :-.1. R. K. P{)~tim Ci!uim na Dramaturgia Bmsi"..'ird Contf.'JUlWnillt'll. p. 32. A propósito
da tensão entre dramaturgia c encenação. Rebouças atírmarti. na p. 116 desta disserta-
ç50. que "N'O 1.ívrodeJó percebe-se a existência de dois sistemas paralelos (texto c cena)
que às vezes apresentam POIl[OS de contato que colaboram para conduzir a narrativa
(como na metáfora do tempo) e outras vezes se contrapõem. tornando-se evidente a
justaposição ou contraposição dos dois sistemas (como na metáfora do espaço)".
132

composição do argumento e a estruturação do enredo. Além disso. a referência do


processo anterior - baseado. corno vimos, ern outros parâmetros - era ainda muito
forte (na verdade. a única, pois muitos elos atores não viveram o processo de constru-
cão de O UltroJá). Tal contexto. portanto, foi gerando comparações a todo tCU1PO e de
toda ordem, instaurando urna espécie de "saudades elo Apocalipse" que, ao fim e ao
cabo. se revelavam injustas com ambos os processos.
Prirnelrarnente, porque ~l construção de Apocalipse 1,11 .. apesar de intensa e estí-
mulante, não foi tranqüila e sem conüítos. No 1110111cnto em que Bonassí. por cxern-
pio, realizou cortes expressivos no texto. muitos dos atores ficaram sem lhe dirigir
a palavra durante várias semanas. Em segundo lugar. esperar ou cobrar de BI<-3 uma
dinâmica não inerente à sua natureza. só poderia gerar insatisfações e Irustracão de
expectativas.
Os atores reclamavam que não eram ouvidos pelo dramaturgo e que não perce-
biam suas proposições sendo incorporadas ao texto. Acrescido a isso. havia um fator
agravante: a dificuldade de compreensão ou de aceitação elo conceito proposto pelo es-
critor para as personagens da peça. Por exemplo, um caráter introvertido. C0l11 poucas
falas. e sem justificativas claras para seu comportamento. era lido pelos atores C01110
"má dramaturgia". Outras vezes. a resistência era fruto ela dificuldade em lidar com a
própria materialidade do texto. C0I110 se faltasse - 11<1 visão dos intérpretes - "emboc á-
dura teatral" à peça. Por fim. o sofisticado jogo de quebra-cabeça da história e o rrans-
bordarnenro narrativo da peça eram criticados por filiação supostamente indevida ao
universo do cinema ou da literatura - corno se a dramaturgia contemporânea j~l não
tivesse explodido as fronteiras de linguagem e as molduras drarnat icas tradicionais.
Por sua vez. o dramaturgo se via desrespeitado pela maneira COl110 os problemas
eram colocados em grupo e se sentia injustiçado por determinadas avaliações feitas
em relação ao texto. II sintomático o artigo escrito para o jornal francês Libérutiou. in-
titulado "Eu odeio os atores". O terna central desse art igo é justamente a descrição ele
sua experiência no processo de nR~3. Nele, apesar <\0 tom bem-humorado. Carvalho
não deixa de expor seus problemas com os interpretes:


Nós estamos na fase das improvisaçôcs r... I. Eu não agüento mais f...l. Para minha
estupefação. a minha trama inicia) se modifica pouco a pouco. e. freqüentemente.
para pior - sobretudo quando as improvisações são confiadas .1 algum dos trinta
jovens atores estagiários l...[, Eles me dizem que isto faz parte do processo. E que
sou eu quem deve se adaptar. I...} (~ difícil C0I1[rol<11" a minha expressão de frustra-
ção e de ódio. para não falar do meu desespero f...)-~I).

A franqueza do dramaturgo, perceptível no referido artigo, trouxe-lhe vários dcsa-

29 CJ\RV:\l.flO, U. "Jc hais lcs actcnrs". In: UlJt?mliun. 5 e 6 de março de 2005. p, <IS.
133

fetos ao longo dos ensaios. Talvez por sua pequena prática em dinâmicas ele criação
grupal, Carvalho demonstrou maior dificuldade tanto para lidar coru os hu':nores e
instabilidades dos outros criadores. quanto para assimilar o ininterrupto jorro propo-
sítívo elo processo. Diversas vezes. inclusive. em razão da ênfase com que defendia
seus pontos de vista, a sua convicção era interpretada corno rigidez ou intransigência.
Esse conjunto de aspectos acarretou. infelizmente. o crescente distanciamento entre
atores e escritor.
As rusgas e polêmicas advindas do embate desses dois pólos atravessaram todo
o processo. já desde a apresentação inicial do argumento. Nos IUOInen(OS de maior
acirramento do conflito, a encenação ocupava 11111 papel de mediação c de gerenciá-
mento da crise. Contudo. tal função apaziguadora teve lllll custo artístico - e pessoal
- alto. Muito do tempo destinado à criação foi subtraído para discussões do relacio-
narnento grupal, esfriamento dos ânimos ou intermináveis convencimentos sobre a
qualidade das proposições. Nunca antes essa figura de "diretor-bombeiro" havia sido
tão requisitada nos processos de trabalho do Vertigem.
Este teor polêmico, interno ao grupo, também ocorreu durante a recepção. A dra-
maturgia ele BR-3 foi muitas vezes atacada C01110 o "problema" do espetáculo. Curio-
samenre. essa avaliação negativa - a nosso ver, injusta - também recaiu sobre o texto
de l\l'ocnlípse 1.'1 L Tal reincidência crítica suscita UIll questionamento: em que medida,
no diálogo entre dramaturgia c encenação. determinadas opções cênicas acabam por
dificultar a leitura da dimensão textual? Se. por urn lado. na dinâmica colaborativa, é
absurdo dissociar essas duas instâncias. por outro. a encenação pode criar "obstáculos"
à compreensão. (01110 por exemplo, ao optar por UIH espaço não-convencional.
No caso de BR-3. a dramaturgia colocava um enorme desafio para a encenação, con-
cernente à comunicação - ou ü explicitação - de sua complexa narrativa. C:01110 fazer
com que a platéia pudesse acompanhar o cntrecho e as reviravoltas daquela saga bra-
sileira? Corno encenar urna peça-romance ou urna peça-filme? Talvez, U111(1 possível
solução fosse a da concentração do foco ou a da limpeza na Iinguagcm cênica. Contudo.
ao contrário. a encenação também ela se caracterizou por urna dimensâo épica. O re-
sultado.. então, nesse caso. foi marcado pela justaposição de transbordamentos cênicos
e narrativos. O que. de novo. nos faz questionar: tal conjugação - por seu caráter dupla-
mente excessivo - não provocaria ruídos de leitura para ambas as instâncias?
Por outro lado. a experiência cênico-fluvial do espetáculo não espelharia - e. portanto,
intensificaria - a viagem das personagens, no plano ficcional?Ou ainda, o périplo pelo Tietê
não agregaria UI11 fator de vivência ou de "realidade" para os espectadores. potencíalizando
~ e materializando - o caráter de epopéia da narrativa? Esses questionamentos suscitam
considerações controversas. pois as mesmas opções de direção podem, simultaneamente.
- e ,'IS vezes, dentro da mesma cena -. dificultar e contribuir para o fortalecimento de aspec-
tos da dramaturgia. Nesse sentido. sem pretender estabelecer um juizo definitivo sobre a
questão, cabe-nos. ao menos, apontar a existência de tal tensão no espetáculo BR~3.
134

Outro ponto passível de discussão refere-se à pesquisa teórica. Con10 ocorrera em OParaí-
.\
so Perdido, o grupo parece ter novamente se estendido em demasia na quantidade de leituras,
encontros e seminários. O problema, talvez, não resida no excesso de material teórico estu-
dado - diferentes e múltiplas informaçôes podem provocar os criadores de forma imprevi-
sível -. 111as. sim. na duração ou estruturação desta etapa dentro do processo. Por exemplo,
se ao invés de seis meses ininterruptos de 111H módulo de palestras e debates. houvesse a
alternância (0111 momentos práticos de criação, o aproveitamento das informações em sala
de ensaio e a sua incorporação à própria feitura da obra poderiam ter sido maximizados,
As oficinas em Brasilãndia significaram outro grande aprendizado nas intervenções
pedagógicas do grupo. Nunca antes tínhamos realizado, com tanto cuidado. o plane-
jamento e a aproximação a urna comunidade específica. Desde a escolha do que seria
desenvolvido até a orientação por parte de uma profissional especializada na área (lvia-
ria Lúcia Pupo}, a tentativa do grupo foi a de buscar um diálogo consistente e maduro
C0111 os moradores locais. Procurou-se fugir da lógica "oficlneira" - em geral associada

à obrigatoriedade de contrapartida soclal s-, que substitui a qualidade da experiência


pelo mero cumprimento de tarefa assistencial.
Além disso. o dia-a..dia das oficinas trouxe desafios enormes. Por exemplo, C0l110
conduzir urna experiência de criação literária C0l11 alunos mal-alfabetizados. pouco
interessados na escrita e cujo principal meio de expressão se dava pela oralidade?
Ou ainda, COlHO estimular a invenção ele figurinos CI11 alunos que pretendiam apenas
aprender a costurar? As faltas constantes. os abandonos temporários ou definitivos
e a entrada ele novos alunos durante todo o tempo ele duração das oficinas. fizeram
pane dos percalços com os quais o grupo teve que aprender a lidar. A realidade. ali,
era bastante dist inta das experiências pedagógicas em escolas formais. e mesmo elos
workshops e cursos livres já nunistrados pela companhia.
Houve também a preocupação COll1 a continuidade ou permanência das atividades
iniciadas pelo grupo. Procurou-se. por exemplo, identificar lideranças dentro das classes
e fomecer-Ihcs um apoio suplementar de formação. a fim de que os trabalhos pudessem
ter prosseguimento sem a presença elo Vertigem. i\ oficina de cenografia realizou. inclu-
sive, urna intervenção no próprio local do curso, COll1 o objetivo de melhorar, visual e
espacialmente, as condições físicas do ambiente". Houve ainda a organização de U11'\a
série de atividades extraclasse COI110 visitas a 11111Seus. teatros. empresas de 50111 OU luz.
no sentido de ampliar a visão dos alunos ern relação à arte e <10 teatro.

30 Segundo o relato de Márcio Medina. coordenador desta oficina. houve "um trabalho. em
murírão. com a comunidade local. de limpeza do terreno em torno da Cl~1 de Cultura.
Cada aluno 'adotou' uma pedra. que pintou de branco. desenhou (0111 carvão e depois fe7- a
sua pintura. Nessa última fase, pintamos exrcrnamcnrc a unidade e. com a participação de
grafiteiros locais, os alunos desenharam c pintaram imagens e mensagens sobre diversos
ternas levantados por eles. tais como cidadania. preservação da natureza, diferenças", in
H~RNI\NDES. S.~ I\umo. R. "{cntro du Vt!rtig~m - BR-3. São Paulo: Perspectrvalnnus», 2006. (>.98.
135

Outro aspecto desta experiência pedagógica foi a integração de alunos ao espetá-


.\
culo BR-3. tanto no âmbito artístico - C0l110 atores ou assistentes de direção de arte -
quanto na área técnica. É o caso. por exemplo, dos intérpretes Bruno Batista e Denise
de Almeida. que se associaram ao espetáculo. mantendo urn vínculo de relação com a
companhia. Mesmo os alunos que não foram incorporados. contribuíram de alguma
forma, para a criação do espetáculo, seja por meio de suas histórias ou relatos. seja
pelo auxilio que prestaram ao grupo no diálogo COIU a comunidade, Desde o início
todos sabiam das intenções do projeto e foram convidados a ajudarem ou a particí-
parem corno co-criadores de J3R-3. Houve ofícineiros ainda que foram indicados para
outras companhias teatrais. na condição de operadores de luz ou técnicos de som,
A idéia da viagem, C0l110 vimos, foi UI11 elemento axinl neste processo e trouxe
contribuições significativas para o encenador, desde imagens até materiais de uso cê-
nico concreto. O périplo de São Paulo até o Acre trouxe. ainda. o ato mesmo de viajar
corno U111 dos motores de criação do espetáculo. e a questão ela identidade - conceito-
chave da encenação - adquiriu nessa experiência um campo privilegiado para a sua
investigação. Segundo bem observa o filósofo Sergio Cardoso. as viagens

(...) assinalam sempre desarranjos internos ao próprio território do viajante, advin-


dos das fissuras e fendas que permeiam sua identidade. 1... 1 Pois. as viagens. na
verdade. nunca transladam o viajante a UH1 meio completamente estranho. 1...1mas,
marcadas pela ínterioridadc do tempo. alteram e díferenciaru seu próprio Inundo.
tornam-no estranho para si I...)() estranhamente das viagens n;10 é nunca
1l1eSI110.

relativo a um outro. mas sempre ao próprio viajante. {...l O "estrangeiro" está sem-
prc j.i delineado - latente c invisível - nas brechas da nossa identklade. na trilha
aberta por nossa própria indeterminação."

Para além das "armadilhas" presentes em empreitadas desta natureza - COlHO a mera
conrernplaçâo turística ou o exrratívlsmo predador de informações - UI11 aspecto cen-
tral ele nossa experiência foi a realização de uma viagem coletiva. Dezoito pessoas viajan-
do juntas. durante cerca de trinta e cinco dias, rumo ao Brasil profundo. Esta vivência
cornunirária. este cruzamento cotidiano de impressões. este compartilhamento de inti-
midades - acordávamos juntos. tomávamos as refeições em horários semelhantes, divi-
diarnos os banheiros, víajávamos durante horas a fio. \.11'\\ ao lado do 0\,\\:1'0-. foi tecendo
uma base comum para o processo e a criação que se descortinavam nossa frente. à

Além disso, o foco inicial da pesquisa foi adquirindo novos contornos. Além de
Brasil~lndia. Brasília e Brasiléia, outras cidades ou pontos de parada no percurso. fo-
rarn ganhando irnportãncia. A experiência elas distâncias e dos trajetos de ligação

31 CARDOSO. s. "O olhar viajante (do ctnólogol't. In: NOVAE5. :\. (org.), O Olhm: São Paulo: Cia.
das Letras. 1988. p. 347·360.
136

também se afirmou corno terna nuclear. quase equivalente à das três localidades
escolhidas. BR-3. portanto, falaria de unlâ jornada e de um grupo de artistas-viajantes.
á luz da contaminação provocada pela vivência de determinados lugares. e dos deslo-
carnentos geográficos entre eles. O prefixo "brasil" não apenas unificava o percurso.
mas também Ilagrava tudo o que nele é separado. distinto e mal integrado.
Essa viagem coletiva foi tão marcante no processo que, de certa forma, ela vai de-
terminar o próprio suporte do espetáculo. O que é proposto aos espectadores, ao en-
trarem num barco e cruzarem 14 km de trecho urbano do rio Tietê, é justamente uma
experiência de deslocamento geográfico. de expedição pela cidade. nR-3 é uma "peça
de viagem" que espelhá o destocamento país adentro realizado pela companhia.
Quanto ao t ratarnento idealizado pela encenação para o terna da identidade nacio-
nal, pretendia-se passar ao largo de discursos patrióticos oficiais. O que interessava
ao grupo era a noção de identidades dinâmicas e móveis - ainda que essa mutabilida-
de ocorresse dentro de limites. sem se abrir indefinidamente. Refutava-se a idéia de
un111 identidade nacional rígida. por se tratar de U111 conceito, via de regra. utilizado
C0l110 mecanismo de manutenção do poder, ele controle sobre um grupo social. ou
ainda. COlHO estratégia de manipulação política.
Além disso. discutir "identidade brasileira" a partir dos três locais escolhidos ja
era. por si só. problemático. Brasilândia - ao contrário da Mooca, ou elo Bixiga - não é
um bairro C0l11 caracrerlstlcas identiuirias especialmente marcantes. Compõe, junto
C01l1 outras regiões periféricas da cidade. zanas urbanas COJU perfis assemelhados
de pobreza e exclusão. Brasília, ao contrário. apresenta traços arquitetônicos írnpa-
rcs. símbolos não só locais. ruas nacionais. Porém, trata-se de urna cidade construída
artitlcialmente. "ele cima para baixo", refém de urna identidade forjada de antemão.
Brasiléia, por sua vez, é cidade de fronteira, de passagem, de trânsito entre brasilei-
ros e bolivianos. Uma cidade em que se fala português e espanhol, e onde essas duas
nacionalidades COllVlVCJl1 e se estranham ao 111esIllO tempo.
Portanto, o projeto BR-3 tratava de três regiões onde a questão da identidade era
complexa e difícil de ser apreendida. pois ela se relativizava a todo tempo. Contudo.
essa zona do contraditório ou paradoxal, ern que a identidade é problema, crise ou
quase impossibilidade, pareceu constituir um lugar privilegiado e estimulante para
discutir a "brasilidade".
Foi-se encaminhando, então. para noções de identidade vinculadas a urna pers-
pectiva mais temporal do que geográfica, C01110 se se tratasse de um "vir-a-ser" ou de
"instantâneos de identidade", que se precipitam e evaporam a todo o momento. Nes-
se sentido. buscou-se materializar. no texto e na cena. identidades flutuantes. fluidas
e turvas, corno o próprio rio onde a peça se passaria.
Dai porque tal abordagem ficava potencializada pelo espaço cênico proposto pelo
encenador, Os espectadores, colocados longe da terra firme, balançando de um lado para
Outro dentro da ernbarcaçâo, vívenciaríam U111a instabilidade física real, reflexo de íden-
137

tidades também oscilantes. fugidias e em constante trânsito. presentes no plano ficcio-


nal. O rio se movia, o barco se movia, os espectadores se moviam dentro dele. criando
um diálogo entre esta justaposição de movências e o deslizamento das identidades.
Tal instabilidade também se confirmava por antro elemento identificado ao longo
da pesquisa. Durante um ano. o grupo presenciou o estado de construção permanen-
te e de interminável canteiro de obras. nas ruas de Brasilãndia, Essa obsessão constru-
tora vinculava-se à "arquitetura de sobreposições" da laje. Por outro lado. em Brasília.
flagrou-se urna arquitetura moderna cheia de rachaduras e goteiras. clamando por
preservação. Era C01110 se a obra-edifício nunca estivesse concluída, fundada sempre
em um "entre", ora ern zona de perpétua fabricação. ora em estado de decadência
precoce. Urna obra que. se chegasse a nascer. já nasceria deteriorada. E que nos tor-
nava construtores ou restauradores. mas nunca habitantes. Essa condição identitária
em incessante edificação direcionará. por exemplo, o conceito elos figurinos. traba-
lhado a partir de uniformes da construção civil.
A viagem nos mosrrou também que a "brasilidade" não residia apenas no plano da
língua ou de manifestações culturais específicas. mas aparecia na recorrente devas-
tação da natureza. Destruição esta. que era justificada pelo projeto de urna pretensa
- e sempre adiada - modernidade. Flagrou-se. portanto, urna identidade na c pela des-
truição. presente nos córregos poluídos de Brasilãndia, nas favelas e assentamentos
ao redor do plano piloto. C1l1 Brasília. e nas castanheiras mortas, no meio de florestas
devastadas pelo ngrobusíness. em Rondônia e no Acre.
Daí. mais urna vez, o porquê de o rio Tietê se configurar COlHO o espaço ideal da en-
cenação. Rio quase sólido, moribundo, veia doente e inüamada no corpo da cidade. ele
materializava o símbolo perfeito do impulso predatório ele certo projeto de modernidade,
Além disso. o Tietê é um não-lugar. invisível aos próprios cidadãos que passam pelas mar-
ginais diariamente. Esgoto a céu aberto criado por nossas próprias ações. insistimos em
não reconhecê-lo corno obra nossa ou. simplesmente, viramos-lhe o rosto. Curiosamente
também, o Tietê é U111 rio que corre para dentro - daí a sua importância para os bandci-
rantes - o que. de certa forma, espelhava a viagem do grupo ao interior do país.
Colocar o espectador ali dentro significava obrigá-lo a olhar de frente a doença - a

Sua e a da cidade -. a sentir o cheiro de enxofre e a reconhecer a sua nção predatória.
COI11 isso. pretendíamos injetar nele. o antídoto da anestesia. Por outro lado. este
'41nergulho" no rio, significava também a sua redescoberta, a sua reconquista. a sua
j nscrição. de novo. no mapa de percepções da urlJis. Desejávamos que o espetáculo
pudesse "devolver" ao cidadão o rio da sua cidade. Ou, no mínimo, ressensibilizá-Io
para a sua presença c existência. '1'a1 dimensão utópica. para o Vcrtígem. era mais
forte do que o desejo de rcssignifícação do rio enquanto espaço teatral.
Outro elemento elo projeto poético de HR~3. ao qual não pUde1110S escapar - apesar
do pacto estabelecido pelo grupo no fórum que antecipou o inicio do processo -. foi
a questão religiosa. A presença das igrejas evangélicas em Brasilândia, das diversas
138

seitas místicas em Brasília (COll10 se esquecer elo "carnaval levado a sério" do Vale
do Arnanhecer?) e do Santo Daime no Acre. fez C01n que voltássemos atrás em nosso
acordo inicial. Não era possível tratar desses três lugares - e nem dos trajetos entre
eles - sem abordarmos o problema religioso. Daí porque a condução do processo - ao
invés de se pautar por inflexíveis decisões tornadas de antemão - deve permanecer
sempre permeável àquilo que dele emerge.
Contudo. é importante ressaltar que a encenação, em nenhum I110J11ento. se propôs
à reprodução fotográfica ou à realização de urn "tearro-documenrãrío" sobre aqueles
lugares. Além de tal perspectiva trair urna indlsfarçável arrogância cultural, ela contra-
ria o desejo de falarmos da nossa experiência em contato e001 tais localidades. COI110
traçar um retrato do Distrito Federal se não moramos ]~l? C0J110 documentar o Acre..
se não passamos mais do que dezoito dias nesse estado? E mesmo Brasilândia. apesar
de situada em São Paulo. nós só a "descobrimos", C0111 nosso olhar "estrangeiro", em
função do projeto. Além do que. nossa atuação no bairro - ainda que bastante superior
à dos outros dois lugares - se restringiu ao curto período de um ano.
Portanto, pretendíamos falar apenas de certa Brasilãndia. aquela que nos atraves-
sou e que contarnínou nossa sensibilidade e imaginaçâo. Isto é. a nossa Brasilândia,
moldada a partir da experiência concreta ela companhia naquela região. Não é à toa
que, no resultado final do espetáculo. este bairro paulistano marcou urna presença
maior do que a da capital federal ou a da cidade acreana. Foi C0l11 ele que. apesar da
curta duração, estabelecemos o diãlogo mais continuado e duradouro. Foi ali que cs-
tivemos mais vezes. que trabalhamos mais tempo, e que conseguimos, ainda que em
escala reduzida. transformar e sermos transformados pelo ambiente.
Entre os remas de improvisação e workshop utilizados ao longo do processo. alguns
dos quais em diálogo direto C0111 questões acima levantadas, poderíamos citar: "o que
é familiar e o que é estrangeiro": "virar de costas é o primeiro movimento de rejeição
do outro"; "a recusa de urna identidade que não é sua"; "passeio por Brasilândia de
olhos vendados"; "relação mãe-filho: a Brasilãndia que você não quer que seu filho
veja"; "Brasília imagínária": "Brasiléia imaginária". entre outros.
Em relação à interpretação. o conceito de identidade também funcionou rOIHO

elemento norreador, Foi em função dele que se optou pelo treinamento de masca-
ra. Partiu-se da técnica de máscara neutra - de acordo COll1 a estruturação formula-
da pelo pedagogo francês jacques Lecoq - passou-se pela meia-máscara. até que se
atingiu o treino COll1 máscara expressiva". Além das constantes trocas de identidade
propostas pela dramaturgia em relação às personagens. a encenação lançará mão do
uso de "máscaras de látex" e de "máscaras de fotos". Tais máscaras deveriam ser cons-
truídas a partir dos próprios rostos dos atores. com o máximo de rigor mimético e

):! Para o desenvolvimento deste treino. o bTfUPO contou com assessoria de Cuca Rolaffi
(mascara neutra) c de Daniela Biancardi e Luciana Viacava [máscara expressiva: antilise
do movimento e jogo da máscara),
139

naturalista possível, a fim ele materializar a discussão ídentitária proposta pela peça.
.\
Essa sobreposição estranhada ele caracteres iguais, em que o ator vestia UI11a máscara
que estampava a foto ou a imagem de seu próprio rosto, contribuía para colocar em
xeque ou em crise as percepções C0l11UnS sobre identidade. O naturalismo ela repro-
dução mimética das feições elos atores era friccionado pelo paroxismo de teatralidade
advindo elo recurso da máscara,
O elemento do risco físico também estava potencializado no espetáculo. Na verdade.
trata-se de UHl aspecto central no trabalho ele ator elo Vertigem. Interpretar ao ar livre, à
beira das marginais. em UI11 rio poluído ou sobre margens inclinadas. colocava os atores
em constante estado de perigo. Muitas das cenas ocorriam sobre embarcações leves. às
quais se tinha que entrar e sair C01l1 rapidez. ou permanecer em pé dentro delas, dizen-
do o texto sem se desequilibrar. É claro que o risco de urna queda dentro d'água, em tais
condições, era iminente. Outras cenas, em terra firme ou nas margens, não eram menos
perigosas. As bermas de concreto inclinadas. a presença de ratos c baratas. o risco de
contaminação pela sujeira acumulada e. ainda. a atitude agressiva dos motoristas nas
marginais ou dos transeuntes sobre as pontes - inconseqüentes a ponto de jogar pedras
nas embarcações -. tudo isso gerava 11111 estado ele alerta c preocupação. A interpretação.
em tal contexto. exigia o aguçamento máximo da sensibilidade. a obrigação irrevogável
de se estar no aqui e no agora", e o instinto de sobrevivência sempre à flor da pele.
Tais condicionantes. aliadas ao princípio autoral do trabalho do ator. utilização à

de elementos autobiográficos e à busca elo desenvolvimento pessoal. intensificavam


a ligaçâo elo registro interpretativo COll1 o universo da performance. A atuação aqui é
encarada 111CnOS COll10 atividade profissional, c mais corno campo de experiências. A
dirccâo, por sua vez. também se encaminhou para uma concepção perfonnãtica da
cena. ao dialogar com as irrupções elo real e a especificidade do espaço. c ao inten-
sificar os aspectos ele presença e de acontecimento. E mesmo a dramuturgia ele BR-3,
apesar do caráter narrativo c da existência de personagens. também abriu espaço
para instâncias de performatividade". Isto aparece. por exemplo, nos jogos que Ber-
nardo Carvalho estabelece entre a história do grupo ou os elementos biográficos de
seus integrantes COIU as personagens da peça.
É importante ressalvar que. apesar de todo o perigo real envolvendo a apresen-
tação do espetáculo. foi tornada uma série de medidas para impedir ou atenuar pos-
síveis acidentes. Os atores interpretavam com luvas. joelheiras. botas impermeáveis

33 Este ímpcrativo do "aqui c agora" gerava. curiosamente. um estado meditativo parti-


cular. não associado il tranqüilidade e ao repouso. mas sim à urgência c ao desconforto.
Chegamos a nos referir a ele como "estado meditativo de emergência".
]&1 Ana Rebouças. por outro viés, analísarã a interferência do ek"J1lClUO pcrfornultico em
jô, Segundo da. "é o que parece acontecer na concepção do espct.lculo O Livro dc jó. que
apresenta lima estrutura dramática integra que é constantemente desesrabítízada c
desc..struturada peja performance, em uma dimeusâo tract..it". in suvc, A, ~\, R. \t •• Pcétícu
Ct.~nic(1 rm {)mmulUrgiu Hrasíldm CVlIcemportinca. p. 11G.
140 .

antiderrapantes e. principalmente. neste caso, com coletes salva-vidas. freqüente-


mente costurados aos figurinos. e feitos sob medida para o peso e as din1cnsões de
cada ator. Toda a equipe técnica e de criadores foi vacinada ou recebeu medicações
contra doenças passíveis de serem contraídas naquele ambiente (hepatite A e B; téta-
no e lcptospirose). Além disso, foi contratado U1l1 técnico de segurança e. mais tarde.
UHl engenheiro de segurança. que propuseram soluções para os riscos identificados.
Também instruirarn todo o grupo, por meio de encontros expositivos, alertas c de-
monstração de procedimentos. sobre noções básicas de segurança. Por fim. foram re-
alizados, ainda. inúmeros ensaios dedicados exclusivamente à apropriação do lugar.
Isso compreendia desde o entendimento técnico dos deslocamentos ou as subidas e
descidas dos barcos. até a busca de soluções alternativas para situações ou marcações
mais arriscadas.
A dificuldade na direção de atores residiu. muitas vezes. na troca de registros que
o texto ou a encenação pediam. Além das múltiplas identidades que caracterizavam
os personagens e da necessidade de trânsito de urna a outra - às vezes na n1eSI11a
cena -. também era exigida do ator urna alternância entre a construção e a não-cons-
trução, entre a formalização expressiva mais acentuada e a não-interpretacâo, Talvez
pela falta de experiência nesta última modalidade, alguns atores sentiam dificuldade
quando lhes era solicitado para "pararem de interpretar", isto é. simplesmente dize-
rem o texto ou executarem um movimento com naturalidade. Além da dificuldade
técnica de realização deste registro. havia urna desconfiança em relação a-ele, -segui-
da. CI11 geral. c10 sentimento - equivocado - de "perda" de qualidade interpretativa.
J\ própria condícão espacial requeria flexibilidade na conformaçâo expressiva elo tra-
balho do ator. Por exemplo, as cenas apresentadas nas margens.. com o barco do público
em posição mais afastada, solicitavam 11111a amplificação gestual diferente daquela reali-
zada dent 1'0 da embarcação. onde os atores se encontravam ao lado dos espectadores.
Outro difícil aprendizado para os intérpretes {oi a relação <':0\1\ os microfones. Tan-
to as cenas das margens, em razão da distância da platéia e do barulho das marginais,
quanto aquelas no interior do barco principal. em função do ruído do 1110to1'. exigiam
o uso de amplificação eletrônica. Tal prerrogativa consumiu inúmeras noras de en-
saio. a fim de que houvesse clareza na captação das vozes e urna eficiente equalização
sonora dentro da embarcação. Além disso. o domínio técnico desses insrrumcntos de
mediação da voz causou significativos ajustes interpretativos. Por exemplo. em ce-
nas de alta voltagem emocional os atores estavam impedidos de gritar, sob pena de
danificarem os microfones de lapela ou de provocarem problemas de microfouia nas
caixas de som, Conseqüentemente. os intérpretes tiveram que aprender a construir
urna intensidade emocional dentro de urna faixa vocal reduzida". Havia também o

35 O grupo contou com ~l assessoria VOGll de Mônica Montcncgro, que já havia trabalha-
do COJll a companhia em "llOW!iI}s,: 1.11.
141

irnpeclit ivo. sob qualquer hipótese, de molharem os microfones e de falarem nos 1110-
mentes eU1 que não estivessern'em cena - a fim de evitar vazamentos de som.
Durante o processo de construção das personagens foi realizada. C0I110 elnjó e em
Apocalípse, uma pesquisa de campo específica. Os atores, de acordo COIU seus papéis.
visitaram igrejas evangélicas, salões de beleza e delegacias de polícia. além de se
encontraram C0l11 pessoas associadas ao trafico, adolescentes da FEBEivf. pilotos de
barco. policiais, etc. O ator Sergio Pardal. inclusive. em função da personagem "Bar-
queiro". chegou a realizar U111 curso de pilotagem de embarcações de pequeno porte,
prestou prova ele habilitação e adquiriu urna carteira de piloto.
Quanto ~l distribuição dos papéis. ela apresentou caráter UI11 pouco diferenciado
dos outros processos. Primeiramente. porque ao escrever o argumento, o drarnatur-
go já tinha em mente os atores que poderiam desempenhar as suas personagens.
Ainda que não tivesse caráter obrigatório - e nunca o dramaturgo impôs tais escolhas
ú direção - este era uru dado contextual difícil de ignorar. En1 segundo lugar. o fón..1111
que antecedeu o início elos ensaios trouxe à tona, por parte cios atores, desejos e desa-
fios interpretativos a serem enfrentados. Além disso. as improvisações do argumento
sugeriram novas possibilidades para essa relação ator-personagem, que vieram se
somar aos elementos acima levantados. C0l110 em Já. também houve urn período em
que os atores experimentaram todas as personagens. Ao final. pelo fato de a direção
ter conseguido conciliar os diferentes critérios apresentados. a distribuição das per-
sonagens n~10 provocou nenhuma grande polêmica ou insatisfação.
Infelizmente. o IneSI110 não pode ser dito em relação às etapas posteriores do pro-
cesso. A medida que o argumento ia se transformando no roteiro. as reclamações dos
atores - fI·UlO do dcsconteruamento C0I11 a dramaturgia - começaram a crescer.
Os problemas se íntcnsiticararu com a entrada dos estagiários de interpretação. De
forma semelhante a Apocclípse I, 11. houve esrágios de acornpanharnento em todas as
areas de criação. Porém, a experiência. dessa vez. foi mais acidentada. Por exemplo,
o estágio de direção sofreu C0t11 a imaturidade dos participantes e com a falta de um
maior comprometimento deles COJU o trabalho. Entretanto. é importante que se diga,
os poucos que ficaram até o finapr. apresentaram urn inegável empenho e dedicação.
O espeuiculo, inclusive, incorporou as estagiárias Suzana Aragão e Carol Pinzan em
seu quadro funcional, COl110 responsáveis pela assistência de direção de cena.
No caso do estágio de interpretação. o seu funcionamento e resultado foram ain-
da mais insatisfatórios. Entre as possíveis causas. poderíamos destacar: grande quan-
tidade de participantes (trinta e um atores). o que provocou UHl acentuado grau de
dispersão nos ensaios: forte competitívidade entre os estagiários, já que nem todos
poclerlam ser incorporados ao espetáculo; envolvímentos afetivos entre os intérpre-

]6 Os estagiários de Direção que acompanharam o processo "lté a SU"l útti ma etapa foram:
André Queiroz. Carol Pinzan, Marilia Risí c Suzana Aragão,
142

tes mais antigos e os recém-chegados. o que provocou situações desagradáveis no


interior do grupo. .,
Além disso. as constantes críticas ao texto por parte do núcleo antigo de intér-
pretes acabaram contaminando os mais novos, e indispondo-os também em relação
à dramaturgia. Aliás. a "cultura da reclamação", que grassava entre ,1 maioria dos
atores participantes. minou 111Uito do prazer da sala de ensaio, além de consumir \.1111
tempo precioso do trabalho. Parecia que o lixo do rio tinha trazido à tona a nossa
própria sujeira. O diretor, por sua vez, oscilava entre "cuidar" das interminaveis insa-
tisfações e tornar posições mais duras em momentos de agudízação da crise.
Aliás. ainda no que compete à direção. houve falha na escolha dos pares c falta
de U111 melhor encaminhamento no que concerne à quantidade e à interferência dos
novos integrantes presentes no processo. Além do dramaturgo, o grupo recebia.. para
Utl1J primeira parceria de criação. o cenógrafo, a figurinista. os criadores musicais, os
clramaturgistas e o produtor. Portanto. além da associação de vários estagiários aos
ensaios. houve UI11a mudança significativa dos criadores de BR-3 em relação à Trilogia
Bíblica, a maior parte deles. neófitos na dinâmica do processo colaborarivo.
Por outro lado. agravando tal situação. ocorreu o fato de dois atores antigos do
Vertigem não participarem da peça, Vanderlei Bernardino. integrante desde o primei-
ro espetáculo. decidiu se ausentar por UI11 período. a fim de vivenciar outras expe-
riências teatrais. Miriam Rinaldi, atriz desde O Livro de Jô. e força agregaclora i rnpor-
rante no grupo. mudou-se temporariamente para Nova Iorque. No meio do processo.
ainda, outra atriz de longa data, Luciana Schwinden. resolveu abandonar o processo.
alegando motivos de ordem pessoal".
Talvez. diante da ausência de parceiros antigos e da presença ele tantas novas
vozes. o núcleo central da companhia tenha perdido o eixo - c. por que não, a identi-
dade. É curioso - c sintomárlco - que o grupo tenha realizado justamente um projeto
discutindo questões ideruiuirias. diante de tal contexto. Por um lado. a companhia
sofria na pele a perda de referências importantes, por outro. via-se desafiada a incor-
porar novos registros e parceiros.
A ocupação cênica do rio também foi bastante problem ática. De lodos os espaços
utilizados pelo Vertigem este foí o que apresentou os maiores desafios. Comparado
às outras montagens. por exemplo, foi onde ensaiamos o maior tempo antes da es-
tréia. Trabalhamos cerca de oito meses in loco. No início, ensaiávamos apenas 1111l dia
por semana no rio c os outros quatro. na Casa N°!. Depois, após conseguirmos a au-
torização do DAEE. os ensaios passaram a OCOITer diariamente lá - salvo em dias de
chuva ou de outros eventuais problemas (quebra da embarcação: excesso ou falta de
volume d'água no leito do rio. etc.).

37 Luciana Scnwinüen retomará a BR-J dois meses antes da estréia. substituindo LI atriz Tel-
ma Vieira. impossibilitada de continuar no trabalho em razão de uma gravidez de risco,
143

Os procedimentos metodológicos de exploração elo espaço fOra111 semelhantes àque-


les de Aporulipse, entretanto, COlIl obstáculos redobrados. Primeíramente. tínhamos
apenas um barco para as atividades. o que limitava os deslocamentos e o ensaio Sill1UI-
tâneo de várias cenas. Depois, surgiu a questão da dificuldade ele comunicação entre
diretor e atores. Para falar C0111 os intérpretes nas margens, por exemplo, a direção
teve que lançar mão de rnegafone, pois a voz alta 011 o grito não funcionavam em um
espaço aberto e ruidoso. Un1 pouco mais tarde, criou-se UHl sistema de mediações: o
diretor falava por meio de rádio com o seu assistente, que estava na margem, próximo
aos atores. Esse assistente, então, transmitia-lhes o feedlJllck da direção. O tempo consu-
mido nesse "telefone seu, fio", associado às inevitáveis distorções e rnã compreensão
do que era solicitado, ajudavam a tornar o processo de ocupação ainda filais lento.
Além disso. os ensaios estavam sujeitos às condições climáticas. Se chovesse. não
havia trabalho, mesmo que todos j<l estivessem lá, aquecidos e C0l11 figurino. Inúme-
r05 ensaios foram cancelados.. enquanto outros. interrompidos no meio. Às vezes, a
chuva não ocorria no trecho urbano do Tietê, ocupado pelo grupo. mas sim na cabe-
ceira ou nascente. Porém, isso já era suficiente para provocar o aumeuto do VOlU111C
ele água e O conseqüente alerta de perigo, causando. inevitavelmente. o cancelarnen-
lo do trabalho. Muitas vezes, o motor do barco fundia ou estragava. e tínhamos que
ser rebocados por outra embarcação. Ou seja, perdíamos horas esperando a vinda do
socorro e. ern geral. o ensaio daquele dia - e elos próximos - costumava ficar compro-
metido até a finalização do reparo do 1110tor.
Corno existiam obras ele engenharia civil sendo executadas nas margens e leito do
Tietê. houve diversas situações de impedimento dos ensaios. Por exemplo, quando
ocorriam explosões dentro da água. para o desassoreamenro ou rebaixamento da
profunclidacle do rio. a colocação dos explosivos e dinamites podia ocupar um dia
inteiro. Isto acarretava o cancelamento total do ensaio ou, no miniruo. urna mudan-
ça emergencial no cronograma da pe<;a. O problema é que só sabíamos, na hora, ao
chegarmos para trabalhar. os entraves do dia. Por mais que o grupo solicitasse urna
agenda semanal das atividades das obras. não havia nenhum esforço por parte elas
~lnpreiteiras em avisar, com antecedência, dos eventuais impedimentos.
A bem da verdade, éramos vistos corno estranhos ali dentro. e muitas vezes sofre-
1110S boicotes e perseguições de engenheiros e operários que hí trabalhavam. Houve
falsas acusações - por exemplo, em relação a supostos desrespeitos às normas ele se-
gurança - que nos custaram dias de explicação ou retratação Secretaria de Recursos
à

Hídricos ou ao DAEE. A parte qualquer teoria conspiratória, não restava dúvida de


que algumas empreiteiras tentaram dificultar a realização do espetáculo.
Fruto desse boicote velado, toda semana era C0l11UIll aparecer alguma nova con-
dição para continuarmos no rio. Ora, era a necessidade de um técnico de segurança
que acompanhasse os ensaios. ora, era a inesperada proibição de U1l1 local que já vi-
nha sendo utilizado cenicamente, Ou ainda, para nossa estupefação, alguma descabida
144

prerrogativa moral, corno, por exemplo, as atrizes não poderem conversar COI11 os rua-
.\
rinheiros <.?U operários.
Após a construção do barco dos espectadores. denominado Almirante do Lago, a
situação melhorou um pouco. Foi. possível instalar um sistema provisório de 50111
- C0l11 o qual, por meio de microfone. o diretor conseguia se comunicar diretamente
com os atores -. além de se tornar factível a marcação das cenas no espaço de acordo
com o ângulo de visão que os espectadores teriam durante o espetáculo. Graças à
presença do Almirante do Lago. o grupo passou a contar com dois barcos de apoio, o
que auxiliava na realização dos ensaios simultâneos.
Porém, li 111 a situação traumática estava na iminência de irromper, Segundo a em-
presa proprietária" da embarcação principal. a navegação durante a peça poderia ser
realizada CIn qualquer sentido, tanto no fluxo quanto no coutraüuxo do rio. De acor-
do C0111 sua avaliação. O "potente" motor elo Almirante do Lago seria capaz ele parar o
barco em ré ou de fazer qualquer manobra complexa necessária. Esta informação, é
importante ressaltar. foi confirmada e reconürmada vãrías vezes.
TOll1<1n<1o COl110 baliza a diminuição do tempo ele duração do espetãculo. o grupo
optou pela navegação no sentido do fluxo do tio. pois ela pouparia vários minutos
de deslocamento, além de proporcionar urna passagem mais rápida de urna cena a
outra. De posse de todos esses dados. passamos várias semanas explorando e implan-
tando as cenas ela peça de acordo C0I11 essa orientação fluvial. Chegamos, inclusive. a
correr a peça inteira seguindo o sentido elo fluxo do rio. isto é. partindo da Ponte da
Anhangüera e desembarcando no Cebolão.
Contudo. quando o Almirante do Lago começou finalmente a navegar no Tietê. a
situação revelou-se completamente outra. Além da pouca velocidade e do 1110tor que
fundia e quebrava frcqúenternenre, o barco não conseguia ficar parado no fluxo do
rio. A empresa passou dias tentando. infruriferamentc, resolver a questão. Ao final.
reconhecendo a irreversibilidade do problema, comunicou ao grupo a necessidade de
inversão do sentido da peça no espaço.
O impacto de lal notícia causou \.\11"\ trauma no elenco. Vários atores - justificada-
mente - caíram aos prantos, pois viram todo o trabalho árduo de semanas ir, Iireral-
mente. por água abaixo. A realidade. nua e crua, era que teríamos que C0111eça)' do
zero novamente. Porém, não havia outra saída. Fomos obrigados a remarcar a peça
inteira. agora no contrafluxo, isto partindo do Cebolão e desembarcando na Pon-
é.

te da Anhangüera. Sem dúvida. este foi o pior momento no processo ele ocupação
espacial do Tietê.
Contudo. passado o trauma e a crise dele decorrente, descobrimos que, em ter-
11105 de possibilidades cênicas, o sentido do conrrafluxo era muito mais fecundo. Urna
vez mais, os limites à liberdade de criação mostraram-se inspiradores. Tal percepção

]8 1\ Transrio Navegação Fluvial 5.1\.


145

trouxe novo alento aos criadores. o que determínou que a remarcação espacial fosse
realizada em um tempo de ensaio proporcionalmente menor,
A encenação. por sua vez. logrou definir um conceito de utilização do espaço. As
cenas do texto situadas em Brasília seriam encenadas ao redor elos viadutos, onde o
aspecto de monumentalidade ficava evidenciado. Utilizamos. para tanto. o Cebolão, a
ponte da Cl7fM e o viaduto da Anhangüera. Já as cenas em Brasilândía ocorreriam em-
baixo de pontes. no sentido de acentuar o elemento de precariedade. Em função disso.
as encenamos sob a Ponte dos Remédios e sob a ponte Atílio Fontana. Por fim. aquelas
que se sítuavarn enl Brasíléía seriam apresentadas ao ar livre. nas margens e leito do rio.
reforçando o aspecto de "natureza" - salvo a cena do Seringal Egito, que demandava um
local fechado.
Um grande desafio para a encenação concernia à criação de focos de atenção num
ambiente In arcado pela dispersívidade". Além dos recursos de luz - via recorte do espaço
- e de som - via uso de microfones, que auxiliavam na compreensão do que era dito - a po-
sição do barco principal e a sua distância das margens era muito ímportante. Un1 posicio..
namcnto errado poderia comprometer a percepção visual. prejudicando a fruição da cena.
Além disso. o excesso de afastamento do barco alargava em demasia o campo de visão elo
espectador; o que desviava a atenção e "esfriava" a experiência. Daí os vários ensaios COIU
os marinheiros e capitães das embarcações. a fim de que eles compreendessem o rigor
exigido e dominassem tecnicamente <15 manobras, Fundamental também, nesse sentido.
foi o papel desempenhado por Eliana Monteiro. na coordenação da logística de cena.
Por fim. o feedlJack do público esteve mais organizado em Bl~-3 do que nos proces-
sos anteriores. A dramarurgista Silvia Fernandes elaborou UHl questionário que era
cn trcgue ao público no final ela peça. O f~110 de os espectadores retornarem juntos,
no mesmo ônibus. em direção ao Memorial da América Latina - ponto de partida c
chegada do espetáculo>. "obrigava-os" a despender um tempo "livre", antes da volta
às atividades cotidianas, Talvez, por essa razão. quase lodos os questionários eram
precnch idos cuídadosamcn te.
As perguntas destinadas ao público eram as seguintes:


1) Quais são as suas impressões sobre o espetáculo? 2) Qual é sua opinião sobre o
texto? Foi possível compreender a narrativa? Quais foram as passagens ern que
ela não ficou clara? 3) Qual é a sua opinião sobre a encenação? O que você achou
interessante e quais as cenas de que não gostou'? 4) Qual é a sua opinião sobre a
interpretação? Corno foi a experiência da voz microfonada dos atores? S} Você acha
a peça muito longa? 6) Você teve urna boa visibilidade do espetáculo?

39 Por exemplo. em jri, a dramaturgia tentava resolver tal problema por meio da utilização
do verso - qUI! apresenta uma estrutura sonora sintética - e do elemento épico, matcría-
lizado pela narração elahistória. que era constantemente retomada ao longo da peça,
146

Os questionários eram recolhidos e entregues à direção no dia seguinte. que fazia


urna listagem das críticas negativas e das sugestões de mudança. Esses tópicos eram
discutidos c ensaiados com os atores. contra-regras e marinheiros, e alguns outros
itens, de caráter mais específico. encaminhados às devidas áreas de criação. Corno em
Apocalipse, muitas modificações foram efetivadas eID razão dos comentários da platéia.
Os mecanismos ele Jeecll111ck. corno já vimos, são um dos pilares do processo cola-
borativo, Por um lado. eles se constituem em diálogos internos do artista com a obra-
em-processo, permitindo uma constante avaliação e julgamento, por parte de todos
os criadores e participantes. Por outro. eles efetivam urna prática de diálogo externo,
realizado diretamente entre o artista e o receptor. Ainda que nem todas as altera..
ções daí advindas resultem, necessariamente, ern melhoras do objeto. é inegável a
colaboração concreta entre diretor e espectador. Aliás. não elevemos nos esquecer da
natureza "observadora" do papel do diretor. que o (orna. de certa maneira, o "pri-
melro espectador" da obra. Aqui. nesse caso, ocorre também o inverso. COll1 a platéia
assumindo UI1l papel diretivo. isto é. o de 11111 "espectador-diretor".
O processo de BR-3. de todos o mais desafiador e desgastante para o grupo. foi
também o de maior duração: dois anos e meio. No ãrnuito da encenação. ele consoli-
dou o aspecto híbrido e polifõnico que teve início em Apocalipse. 1\ impureza cênica, a
justaposição de estilos e linguagens, a multiplicidade simultânea de registros ganhou,
aqui, dimensão privilegiada. Os três andares do Almirante do Lago. a presença conco-
mitante de duas ou três embarcaçôes na mesma cena. o jogo entre as duas margens
e a distensão espacial quílomérricn criava múltiplos planos cênicos e "plaraforrnas"
poliestilíst icas. Nesse sentido. a encenação. também ela. foi marcada por dcslizamcn-
tos de idem idade. assumiu várias máscaras e traços, e a sua "unidade" revelou-se
pluralista e flutuante. Ela espelhou, enfim, a fragmentação territorial e a diversidade
geográfica que lhe deram origem,
147

5 PARA UMA POÉTICA DO PROCESSO COLABORATIVO NO TEATRO


DA VERTIGEM

"(...' a ftmçdo ARTfsTICt\ da cHiviclade teatT"llllldo é. certamente.


a OilJçii() ri.: divisas, de podeI; de st?gurança. I~ seu ccu'lÍlcr sub-
vrrsivo (atençiio, lJWis uma vez, II essa poderosa palavra) o que
(onta, o que a define"
(Luiz Roberto Galizia, Teremos ele Ser Radicais)

Tornando corno base as experiências realizadas pelo Teatro da Vertigem para a


realização de seus espetáculos. buscamos identificar os princípios ele trabalho e os
procedimentos recorrentes que nortearam a prática do grupo. COIll isso não preteri-
demos anular as características específicas relativas a cada lllll dos processos nem
tabular uma fórmula ou receítuãrío metodológico.
Cada companhia ou coletivo de artistas encontra o seu 1110do de operar. à
medida que o movimento criador se instaura. Corno bem afirmou Pareyson, na
formulação de sua estética da "formativldade". a arte ué UI11 tal fazer que. en-
quanto faz. inventa o por fazer c o modo de fazer, ol • Portanto. se entendemos a
obra C0l110 um vir-a-ser, resultante do embate entre matéria e pensamento, em
que "concebe-se executando. projeta-se fazendo. encontra-se a regra operando">,
cada grupo inve n tará o seu próprio "processo colaborativo". O que descrevemos
a seguir são os elementos, as etapas e os procedimentos reincidentes elo nosso
próprio fazer-inventar,
É importante ressalvar que algumas dessas etapas OCOITenl simultaneamente. Ou
seja, a linearidade da descrição não espelhá com fidelidade a dinâmica de sobrepo-
sições que caracteriza a prática. Trata-se de recurso didático. a fim de melhor apre-
sentar o mapa elo percurso. devendo. portanto. ser relativizado. Ainda que haja. em
~lgllns casos, sucessão temporal, essas "anteriorídades" e "posterioridades" se inver-
tem C0111 freqüência. esgarçam a cronologia. criando flechas temporais multidirecio-
nais. Convidamos, pois. a que se faça UHl esforço de pensar as distintas fases sincroní-
camente. e não apenas em seqüencia, C0l110 se encontra aqui descrito.
Cabe ainda acrescentar que cada elemento apresentado não é mais do que uma
tentativa de delímítacão de campo. Delímitações precárias. pois cada aspecto contami-
na ou é contaminado pelo outro. As suas fronteiras são tênues - ou elásticas - e cada
campo deve ser pensado COll10 núcleo vibratório de irradiação mais do que corno terri-

1 l':\lU~YSON. J~ OS {'robkmas (la Eslt:tíca. São Paulo: Martins Fontes. 1989. p. 32.
2 Ibid.. p. 32.
148

tórios rigidamente delimitados. Feitas essas ressalvas, passemos aos "dispositivos" ou


"linhas de força" recorrentes elos processos de criação do Teatro ela Vertigem.

5.1 DEFINiÇÃO DO PROJETO

A definição elo projeto é realizada por meio de discussões coletivas envolvendo to-
dos os integrantes fixos da companhia. Ceralmente ocorre a partir de urna dinâmica
que denominamos fórum", Nela, é feita a avaliação elo processo anterior e elo espetá-
CI

culo resultante, seguida de UHl brainstonn de desejos individuais positivos e negativos.


Isto é, aquilo que cada integrante tem vontade de trabalhar ou aquilo do qual ele já
está cansado ou não tem mais interesse em desenvolver. O passo seguinte é a mate-
rialização dessas vontades por meio da apresentação de propostas concretas - peças,
contos. textos filosóficos. recortes de jornal etc. - trazidas por cada U111. Então, todo
esse material é lido e discutido conjuntamente. O objetivo é encontrar U1l1 denorní-
nador C0111Unl ou eleger a proposta que tenha causado maior reverberação no grupo
- ou ainda. caso seja possível, a junção. numa nova idéia, de algumas das sugestões. O
íOll.1I11 se encerra corri a definição da questão, tema, problema ou dispositivo que será
o (oco do próximo projeto.

5.2 DEFINiÇÃO DO DRAMATURGO E DA EQUIPE DE CRIAÇÃO

Escolhido o núcleo temático - ou o dispositivo central do trabalho -, parte-se


para a definição do escritor. Elemento fundamental no tripé dramaturgia-encenação-
interpretação - base geradora do processo colaborativo - esse cscjiror representa o
elemento absolutamente novo, o "outro" que virá dialogar COlll a companhia. Dada
a importância ele sua função. ele atua COI110 urna espécie de provocador - ou até
1l1CSI110 de antagonista - num contexto marcado por relações já estabelecidas e de

longa duração. Em geral. o escritor efetua uma ação simultaneamente perturbadora


e estimuladora, trazendo outras e novas referências para o grupo. Daí a importância
c o cuidado nessa escolha. A partir da sugestão de nomes trazidos por todos os inte-
grantes. inicia-se o trabalho de leitura dos textos de possíveis convidados e. até mes-
l110. o convite para que venham se encontrar informalmente CO'l1 o grupo - para urna
conversa ou discussão sobre sua obra. Tornando COlHO base a sintonia COIll o marerial
litertirio e urna empatia mínima COtU o escritor - avaliada nos encontros realizados
149

ao vivo - o grupo discute e elege aquele C0111 qUCI11 pretende trabalhar. Viemos in-
sist indo no termo "escritor". pois não há a obrigatoriedade de que o convidado seja
necessariamente UH1 dramaturgo profissional.
Após essa definição. caso seja necessário. parte-se para o convite aos outros co-
laboradores. Por mais que se busquem parcerias de longo prazo nas .;h·eas visuais e
musicais do espetáculo, ocorre ele um antigo colaborador não poder integrar o pro-
jeto naquele momento ou também do grupo querer estabelecer novos vínculos - em
geral decorrente de desgastes ou insatisfações ligados ao processo anterior.
Os procedimentos ele escolha são semelhantes aos da dramaturgia. A partir de
um leque de indicações apresentado pelos integrantes do grupo, entra-se em contato
C0111 o material produzido por esses artistas e, em alguns casos, recorre-se ainda a

encontros pessoais COll1 os possíveis parceiros. Esse período de perscrutação e soncla-


gcm é seguido da busca ele U111 consenso relativo à escolha elos nomes.
Apesar ela participação de todos nessa dinâmica de indicações e seleção. é COJllllIU
1..1111 maior eugajamento dos atores na elclçào do dramaturgo. e da direção na escolha
dos outros colaboradores. As razões disso. provavelmente, estão ligadas ao papel da dra-
maturgia no desenvolvimento das personagens e das falas - foco de especial interesse
dos atores - c. por outro lado, da Importância do cenógrafo. figurinista. criador I1111SicaI.
etc. para o âmbito da linguagem espetacular - foco de preocupação elo eucenador,
Pouco COIllUl11 nesse momento, na medida em que o projeto apenas começa a
se esboçar, POdC1l1 ser feitas também indicações para possíveis atores convidados.
Na prát icn do Vertigem. por haver um núcleo fixo de atores, é mais freqüente tais
escolhas ocorrerem numa etapa posterior dos ensaios. em função de necessidades
específicas do projeto.
De qualquer maneira. esta fase de definição dos colaboradores é ext-rc1rlal1lcnLe
importante para o êxito elo projeto. pois. quem colabora. colabora com alguém. Em
outras palavras. em UHl processo baseado na instância do compartilhamento. a de-
fi nição das parcerias e a formação do grupo de trabalho podem determinar tanto os
resultados quanto a própria sustentação e sobrevivência de urna prática coletiva.

5.3 PESQUISA TEÓRICA

Constitui-se de leituras, estudos teóricos e seminários que visam ao mapeamento


e aprofundamento cio assunto escolhido. Na verdade. tal pesquisa ocorrerá ao longo
de todo o período de ensaios - ainda que COlll mudança de foco, corno por exemplo,
no auxílio à construção das personagens -, porém ela apresenta urna ênfase acentua-
da nos primeiros meses de trabalho. É freqüente também o convite a especialistas ou
150

intelectuais para realizarem palestras públicas ou encontros fechados C0111 o grupo.


a fim de discutirem ternas ou questões pertinentes ao projeto. O ievantarncnto de
material iconográfico ou fílrnico desempenha outro papel importante aqui.
É preciso ficar atento CIn relação ao excesso de leituras. seminários e encontros
teóricos. Por se tratar de ternas amplos, estimulantes e dos quais o grupo tem pouco
conhecímeruo. às vezes ocorre UHl acúmulo ou sobrecarga da parte teórica. dilatan-
do o processo ainda mais, e consumindo um tempo precioso dos ensaios.
A coordenação dessas atividades fica. ern geral. a cargo do dramaturgista. Ele aju-
da na organização das leituras. na análise de textos. no encaminhamento d<15 discus-
sões. na sugestão dos palestruntes a serem convidados e no levantamento de material
visual e bibliogrãüco, entre outras atividades de caráter teórico.

5.4 PESQUISA DE CAMPO

A pesquisa de campo ocorre. principalmente, em dois momentos dos ensaios: na


etapa de criação do texto c durante a fase de construção das personagens. Apesar da
diferença de objetivos, os procedimentos se assemelham. Por meio de visitas de invcs-
rigaçáo a determinados locais ou comunidades: percepção de seus aspectos topogr.ifi-
coso arquitetônicos e sensoriais (cores, cheiros. luminosidade. sonoridades, "vibrações",
ctc.): conversas com seus habitantes ou freqüentadores; entrevistas; levantamento de
histórias orais: registros em foto ou vídeo: identificação de traços lingüísticos, sociais,
culturais e materiais e, principalmente, pela realização ele uma experiência ou vivên-
cia concreta in loco. perfaz-se o estudo pratico daquele espaço ou situação.
A coleta de documentação c <1 experimentação vivencial podem ser realizadas
individualmente ou em grupo. Às vezes, a presença da companhia inteira pode ser
UUl elemento inibidor ou provocar estranheza no local. Neste caso. a depender da si-
tuação. opta-se pelo desmembramento do coletivo. e seus membros conduzem a pes-
Guisa solitariamente 0\.1 em duplas. O uso de câmeras ou gravadores também requer
bastante cuidado. a fim de não criar situações artificiais. Muitos dos registros devem
se utilizar apenas da memória e das impressões do pesquisador-observador, devendo
ser lançados em cadernos de ensaios. blocos de notas pessoais ou diários ele viagem
somente após a finalização dos encontros.
Contudo. existe um encaminhamento norteador para a pesquisa de campo, CS-
pecialmente no caso dos atores. Eles devem, necessariamente, transformar aquela
experiência in loco CUl algum material prático. quer sejam imagens, personagens,
Improvisações ou werkshops. A visita ou encontro precisa ser reelaborndo em forma
cênica, não podendo se limitar apenas ao plano impressivo-subjetivo dos íntérpre-
151

leso Além disso. eles devem adotar uma postura de observadores ativos. interferindo.
questionando. duvidando. buscando inter-relações - mesmo sem se manifestar expli-
cirarnenre durante o alo da pesquisa",
É neccssãrio estar atento a algumas armadilhas - ainda que seja necessário cair
nelas para poder. então. desarmá-las. A primeira refere-se ao aspecto turístico. Tal
aspecto acaba por restringir a pesquisa de campo ao simples registro do inusitado
ou à observação superficial de paisagens humanas e geográficas. A troca e o diálogo
remam-se epidérmicos e a experiência se dilui no entretenimento.
O segundo problema é o risco do voyeurisrno. Por se tratar, em alguns casos. de
situações ou locais significativamente distanciados do universo do grupo. instaura-se
um fiísson ou uma curiosidade mórbida, às vezes COIU forte conotação sexual. Essa
possibilidade que se abre à pesquisa de campo, de penetrar em universos fechados
ou de compartilhar segredos inauditos cria Ut11 fascínio magnético e erotiza o olhar.
I~ claro que essa energia libidinosa pode ser útil em determinadas "aproxirnações",
o'cranclo encontros ele alta voltagem e estimulando interesses mútuos e comuns. A
~

questão é quando tais encontros reduzem-se apenas a jogos ele sedução camuflados,
a 111ecanisI110S de conquista. em que cada um quer mostrar unicamente o melhor de
si ou aparentar mais do que é. Daí, sob tais circunstâncias, a pesquisa adquire UHl
caráter artificial e mentiroso.
Mais pernicioso ainda é quando esse voyeurismo vem marcado por diferenças de
classe social. nível de educação ou poder aquisitivo. O "outro". nesse caso. t ransfor-
ma-se em "bicho de zoológico", ao qual se oferece uma ternura complacente c carido-
sa. i\ iurcracão com o "menos favorecido" passa a ser instrumento de alívio ela culpa
social ou elemento de 17wrkeUng de pretensas preocupações sociais. Na perspectiva
contrária - ou seja. do ponto de vista do "objeto de estudo" - o pesquisador se reduz
a manancial de recursos. a fonte de investimento e. até H1CS1l10. a bóia de salvação. O
grupo, então. se torna urna espécie de ÜNG. com o dever de alimentar, vestir. educar
ou fornecer oportunidades de trabalho.
Urna terceira armadilha diz respeito ao perigo da exploração c do extranvismo, Isto
é. a companhia coleta histórias. informações. elementos ele toda ordem, apropria..se
desse material bruto recolhido, transforma-o em peça teatral- ou apenas enverniza ou
enfeita a sua obra C0l11 ele - e não disponíbiliza nada em troca (é claro que o espetáculo
resultante dessa interação representa a principal "troca"; porém, muitas vezes. a comu-
nidade não é sequer convidada para assisti-lo). Quando muito. são oferecidas oficinas

3 Em nossa dissertação de mestrado. descrevemos a "observaçâo ativa" corno urn prece-


dirnento de pesquisa que não implica "na mera observação do fato". mas que. ao con-
trário. pressupõe UI11 dialogo ativo com os fatos". procu rando estabelecer as relações
OI

internas entre eles. Para a an ..ilise completa desse conceito - retirado da metodologia
científica -. consultar o capítulo t , 1'1'. 15-17. in: SlLVA. 1\. C. t\ .. ,\ Gênese da Vt.'l1igem: o
1),.oce550 ek O·iaçiio ,k '0 Paraíso Perdido'.
152

- ;15 vezes de discutível valor pedagógico - ou alguma recompcnsaçào de ordem mate.. .


rial, E111 outras palavras. não se estabeleceu ele fato um diálogo. em que pesquisadores
e pesquísados se modificam a partir da interação. cru que todos ganham - e perdem
também - em decorrência do encontro. Trata-se apenas de uma lógica de expropriação
contrabandeada para o âmbito artístico. Tal atitude. além de se constituir em falha
ética grave. joga por terra as "boas intenções" do projeto. revelando ainda UHl dado de
contradição e mauipulação do qual, às vezes. não se tem consciência.
Alguns cuidados ou dispositivos podem ser úteis na prevenção dessas armadilhas
- ou. no mínimo. nos auxiliam a sairmos delas. O primeiro deles refere-se à duração
e <1 continuidade da pesquisa. Quanto mais tempo nos expusermos a determinado
local ou comunidade e quanto mais freqüente e continuada for a nossa interação
ali. maiores as chances de aprofundar a investígacão e de alicerçar as relações. Tal
pressuposto provoca a transformação do "rurísrico" em "cotidiano". Dai porque a as-
similação do tempo-ritmo local. o "não fazer nada". o "entediar-se", são instrumentos
importanres para se alcançar camadas mais subterrâneas na pesquisa de campo. Por
paradoxal que pareça. o pesquisar pressupõe, também, o "não-pesquisar". o abando-
nar a pesquisa ou. ao menos, o esquecer que se está pesquisando.
No caso do voyeurismo, esse procedimento funciona C0l110 antídoto poderoso. I~
pouco comum o Jrissou que perdure 111eSeS a fio. pois. a atração exercida pelo fator
"novidade" é inversamente proporcional à duração da experiência. Ou seja. atividades
de médio e longo prazo permitem que as contradições emerjarn, que os problemas e
conflitos manifestem-se c. ainda. que as aparências forjadas se dissolvam.
Um segundo dísposírivo de auxilio é a construção (ouJunt'a ela invcst igaç~10. aliando
pesquisador c pesquisado. EI11 outras palavras. trata-se da elaboração de um projeto que
procure eles-hierarquizar sujeito c objeto. O pesquisador. nessa perspectiva. não é "rnc-
lhor' ou "mais importante" que o pesquisado. mas constrói e reconstrói a sua investiga-
ção em diálogo com ele. Por sua vez, o pesquisado não cstã à mercê e nem é dependente
do pesquisador. já que interfere nos 11.11nOS e encaminhamentos elo trabalho. Essa abor-
dagem, por exemplo. permite determinar as prioridades momentâneas de UI11(l comuní-
dade e garante a presença de seus pontos-de-vista no interior do projeto. Todos, portanto,
são tratados corno sujeitos e elimina-se a dicotomia ativo-passivo. Com isso, esvai-se a
perversa lógica do paternalismo c do assísrencialísmo, que ronda a pesquisa de campo.
Alíãs, a colaboração de U111 líder comunitãrio, de Ul11 tunctonãrío da instituição,
de um freqüentador do local ou. simplesmente, de membros residentes ele urna CQ-
munidadc, podem ser de inestimável valia para a pesquisa. Eles trazem o conheci-
mente ele dentro, autóctone, podendo auxiliar a entrada e a presença elo grupo num
dererminado lugar. Ajudam também a revelar problemas e contradições que. talvez,
demorassem muito tempo para serem percebidos. Este tipo de parceria deve ser estí-
muíado, tornando cuidado. é claro, para não restringir a leitura de campo apenas ao
olhar desse guia-colaborador,
153

Aliado a isso é fundamental a honestidade e a transparência nos objetivos do pro-


jeto. Obviamente, no caso ele alguma investigação pontual. "arriscada" Ou sigilosa,
em que a revelação dos propósitos possa pôr em risco o contato ou a realização do
trabalho. tal sugestão não cabe, Porém, via de regra. defendemos a explicitação dos
desejos e das metas da companhia, Por exemplo, julgamos Importante já no primeiro
encontro ou visita, esclarecer o porquê se está ali, o que se quer. o que se pode ofere-
cer ern troca, quanto tempo esui previsto de trabalho e. ornais fundamental, solicitar
a permissão e o auxílio do local ou comunidade para a realização da pesquisa.
Um terceiro elemento a ser levado em consideração é o que o grupo pode oferecer
ou desenvolver corno espécie de retorno ao apoio prestado. De novo. a resolução sobre
essa contrapartida necessita ser discutida e negociada C0l11 o próprio lugar c seus ha-
bitantes ou freqüentadores. Deve-se buscar urna construção conjunta do que fazer. ao
invés da imposição de uma proposta fechada por parte da companhia. Quando se chega
a esse pacto comum, urdido por urna elaboração conjunta. os mecanismos de explora-
ção tendem a se esvaziar. E 1l1CSIllO que UIn determinado local, por exemplo, não queira
absolutamente nada do grupo. tal decisão terá sido consentida por ambas as partes.
A pesquisa de C<.lIl1pO proporciona urna experiência viva que se S0l11a à pesquisa
teórica e ~t cornplemcnta. Ela causa urna impregnação vivenciar nos artistas envol-
vidos - especialmente nos atores - que pode ser determinante para a construção do
texto e das personagens. Ainda que, algumas vezes, seja vista C0111 preconceito. C01110
se os atores estivessem apenas "fazendo laboratório". ela tem urna significação e lUH
poder de interferência que vão além disso.
Por fim, ~l presença do drarnaturgisra nessa etapa da pesquisa rem urna importância
capitaL Ele auxilia nas entrevistas externas. na reflexão sobre procedimentos C? resultados,
no acompanhamento das atividades, na proposição de estímulos. na documentação da
pesquisa ele campo, entre outras contribuicôes, Ainda que sua atuação apresente outras
facetas relevantes ao longo elo processo. é inegtivel o seu destaque nessa fase do trabalho.

5.5 ATIVIDADES PEDAGÓGICAS CORRELATAS

o processo colaboratívo, por sua própria natureza, tem UIl1 caráter aberto. agrega-
dor e inclusivo. Esta dimensão que ocorre entre os criadores. no ãm bito intra-grupal,
ganha sentido e amplitude maior ao incorporar alunos, estagiários e outros observa-
dores externos durante o período de ensaios.
Mais do que apenas oferecer oficinas teatrais a possíveis interessados, procura-se
integrar os aprendizes e estagiários ao processo da criação. A idéia é que eles atuem
ativamente da feitura da obra, seja discutindo ou experimentando elementos que vc-
154

nharn sendo trabalhados pela companhia, seja "colocando a mão na massa" - através
da apresentação de cenas, da proposíção de workshops, da sugestão de idéias de luz,
S0111 , figurinos. etc. - seja, ainda. participando presencialmenrc no espetáculo final
- corno atores, operadores de 50111 ou luz, músicos, etc.
Ao invés ela idéia de "aprender para depois fazer", procura-se incorporar o apren-
dizado ao movimento turbulento e dinâmico do próprio criar. Nesse sentido, não
existem "professores" e "alunos", mas criadores - COIl1 maior. menor ou nenhuma
experiência - colocados juntos em situação de criação. Evideuternenre que os artis-
tas do grupo funcionam COlHO coordenadores ou orientadores de percurso. contudo.
sem a preocupação didãrlca de um curso formal.
Por exemplo, nas oficinas ou estâgios de direção que coordenamos. nunca houve
encontros sobre técnicas de direção ou teoria da encenação. Ao contrário, sentáva-
1110S juntos e planejãvamos o cronograma de trabalho da semana. discutíamos os
problemas internos ou as crises de processo e fazíamos U111 braillstonn de exercícios,
jogos e ternas de ímprovisação para serem aplicados nos ensaios. À medida que ocor-
ria o aumento da cumplicidade entre nós. tratávamos de ternas delicados ou espinho-
sos concernentes às outras áreas de criação e, inúmeras vezes, pedíamos auxílio ou
socorro aos estagiários para problemas difíceis de resolver.
Este papel do "professor em crise", hesitante, angustiado. do mestre frágil ou
fragílizado. é urn papel diflcil ele aceitar c de assumir - por ambos os lados. C0l110 a
pessoa que coordena o processo pode ficar sem rumo? C01110 se deixar orientar por
alguém transpassado pela dúvida? Esse exercício da fragilidade. esse cnfrcntamcnto
do saber falho e incompleto exigem uma maturidade tanto (lo "mestre" quanto elo
"aprendiz" difícil - c dolorida - de se atingir.
Contudo. se superado esse 111ilO do "protessor-sabc-tudo", ao invés da falência da
didática. ocorre a sua revitalizacâo. Todos aprendem e ensinam, sabem e erram. cxpe-
rimentam o prazer da descoberta conjunta e o terror da paralisia e da impotência. I~
preciso perceber as limitações - suas e do outro - para que novos conhecimentos se pro-
duzarn. Mais do que o fracasso da pedagogia ternos urna pedagogia do - e no - fracasso.
No nosso caso. o que ocorre, ao longo dos ensaios. é a imbricação do artístico no
pedagógico, e vice-versa. Um alimenta e é alimentado pelo outro. O que é diferente
de desnparcccrcm um no outro. de se tornarem a nleSl11Cl coisa. De novo. insistimos no
diálogo entre os campos, e não nas suas dissoluções. Portanto, as oficinas e os esui-
gios não são simplesmente tarefas a serem cumpridas nem se reduzem a contraparti-
das obrigarórias. Elas são outra forma de exercício do colaborativo e de ampliação da
sua prática. Expõem os "oficineiros" a um processo de criação em que as fraturas es-
tão expostas, Lançam os "aprendizes" na concretude do fazer artístico. não enquanto
observadores passivos, luas co 111o agentes de criação.
Além disso. conforme já rnenciouado, as oficinas também cumprem \.\111 papel de re-
torno ou devolução do grupo em relação a determinada comunidade. É importante, con-
155

tudo. a fim eleevitar problemas, que os conteúdos, a freqüência e os horários sejam acor-
dados através do diálogo entre as necessidades lõcais e os interesses ou possibilidades da
companhia. As aulas e os estágíos funcionam como UHl espaço de aprofundamento das
relações entre os artistas e os residentes/freqüentadores do local, estimulando o surgi-
mento ele material para a criação. Se. por um lado, através de tais atividades pedagógicas.
os artistas se inserem na comunidade e passam a exercer uma função dentro dela, por
outro, aquela paisagem geográfica e humana impregna a obra em gestação.

5.6 TREtNAMENTO DIRECIONADO

A noção de treinamento veio sofrendo modificações ao longo da trajetória do Tea-


tro da Vertigem. De 111n lugar de destaque. COIll função quase autônoma no processo.
ele passou a estar vinculado às necessidades da criação. 1\0 invés de um treinamento
voltado para si mesmo, numa prática umbilical do ator CaIU seu corpo, voz e auto-
expressão. houve o encaminhamento para a noção de "treinamento aplicado". Isto é,
associado diretamente às questões da obra em fabricação.
Nesse sentido. ele não se reduz apenas ao aquecimento físíco-vocal no início dos
ensaios, mas prepara ou introduz os atores 110S aspectos expressivos e artísticos do
trabalho. Ainda que o treino contenha uma dimensão técnica acentuada. tal dimensão
estabelece vínculos estreitos (OHl o terna. (0111 o registro interpretativo pretendido c
com procedimentos formais que serão desenvolvidos no espetáculo. 1\ idéia c se afastar
de urna técnica cabotina, virtuosísrica. autocenrrada, para coloca-In a serviço do discur-
so cênico. O que - é importante ressaltar - é diferente da sua abolição ou descarte.
Outra prática do grupo foi a de criação de UH1 treinamento específico para cada
montagem, estimulando o aparecimento e a invenção de procedimentos técnicos pe-
culiares. Se. por exemplo. em Paraíso Perdido trabalhamos C0I11 Laban c Improvisação
de Contato. paralelamente a isso foi desenvolvido UI11 treino baseado nos princípios
da Mecânica Clássica - objeto de nossa pesquisa naquele momento. Já em () Livro de
Jô. conforme descrevemos. houve a criação de urna prática baseada em estudos de
síutomatologia clínica.
Essa perspectiva de técnicas "inventadas" - que não elimina a outra. de técni-
Las "irnportudas" - estimula urna atitude ativa e prepositiva por parte dos atores e
subverte certa rnístífícação tecnicista - a ela "técnica pela técnica", em que o apren-
dizado das ferramentas é meramente quantitativo e desprovido de dimensão crítica
ou artística. Além disso. traz UI11a dímcnsão criativa para um pólo. em geral. visto
apenas COlHO instrumental. e redimensiona a relação de dependência entre método
e expressão - na medida em que cada espetáculo pede a invenção de seus próprios
156

procedimentos e ferramentas. As técnicas "inventadas", ainda. pressupõem uma par-


ceria entre direção e atores. e só se delineiam após algum 'tenlpo de ensaio.
No caso das técnicas "importadas" ou "exógenas' - butô, Suzuki, Laban, etc. - recor-
remos a profissionais habilitados para virem colaborar C0l11 o grupo. Outra alternativa.
ainda. é a condução do treino ficar a cargo de algum dos atores do grupo que detenha
conhecimento específico numa determínada metodologia. De qualquer forma, a esco-
lha das técnicas e dos respectivos instrutores é realizada coletivamente. sem imposição
da direção. Na maioria das vezes. inclusive. a indicação vem dos próprios atores. por já
terem experimentado algum instrumental que julguem ser útil ao trabalho.

5.7 DEPOIMENTO PESSOAL E DEPOIMENTO COLETIVO

Antes de passarmos às dentais instâncias prãtícas presentes nos ensaios. é funda"


mental discutirmos U111 dos eixos centrais do processo colaborativo: o depoimento
pessoal. Por paradoxal que pareça. no âmbito de um projeto coletivo. tal depoimen-
to é responsável por inegâvel força agregadora. j\ valorização da perspectiva indivi-
dual pode. é claro. num primeiro momento, acirrar as diferenças. Contudo, a médio
prazo. ela possibilita a construção de urna plataforma COItlUIU: Isso. cvídcntemcntc,
desde que haja ;\ existência prévia de U1\1 contexto grupal e de U111 projeto coletivo
de base. Na verdade. scrri essa constante tensão entre depoimento pessoal e dcpoi-
monto coletivo - tensão essa de difícil apaziguamento durante o processo - que
definirá o 1110do colaborativo de criação. Porém, insistimos, é justamente a radicali-
zação das subjetividades que vai propiciar. de maneira orgânica c endógena. que o
discurso coletivo se forme.
Conforme j<i analisado em nossa dissertação de mestrado". o depoimento pessoal
é U1l1 testemunho, urna confissão. urna opinião ou um posicionamento crítico reali-
zado de forma cênica. É claro que posições individuais aparecem nas discussões e de-
bates durante os ensaios. POréITI. o que denominamos depoimento pessoal pressupõe
um ponto ele vistafonnalizlIdo cenicamente. sem importar aí grau de acabamento. Ele°
se configura, portanto, da seguinte maneira:

• é desenvolvido a partir da relação e do confronto dos atores com os conteú-


dos e ternas do projeto (aspecto opinativo):
resgata a memória pessoal. com a retomada freqüente de histórias passadas
e de registros subjetivos remotos (aspecto autobiográfico e confessional);

.~ StLVA. :\. C. A •• A G~nt:sc d{l V~rtig\.1n: o Processo de Críuçdode'O Pnrniso Perdido', pp, 84-86.
157

• exercita a reflexão crítica e conceitual C0111 respeito aos ternas, por meio
de U111a tornada de posição (aspecto crítico).

Além disso. o depoimento pessoal cumpre U1l1a dupla função no processo. É. por
um lado, insrrumento de investigação da pesquisa temática e. por outro. gerador de
material cênico bruto para a dramaturgia e o espetáculo. Na verdade. sob esse último
aspecto. o depoimento pessoal se torna o próprio fragmento cênico passível de reelabo-
ração. Ou seja. ele tanto é procedimento metodológico quanto resultado expressivo.
O depoimento pessoal é a base sobre a qual se constrói a criação. É em razão
dele que se consolida. por exemplo, o ator-autor. Ao invés ele ser apenas tradutor,
intérprete ou repetidor de falas alheias. o ator vai produzir o seu próprio discurso,
enunciar a sua visão de Inundo. ou seja. posicionar-se. Esse posicionamento é tanto
estético quanto ideológico. pertence tanto ao indivíduo-ator quanto ao cidadão-ator.
enraíza-se na vivência pessoal. mas também no contexto histórico-social em que ela
está inscrita, em suma, constrói urna formulação que imbrica arte e vida.
No processo colaborativo, portanto. o ator não apenas representa personagens. mas,
sobretudo. efetua um depoimenro artístico autoral. Sob este ângulo, ele se aproxima
da idéia de per:fi)t1rzer. que cria a partir da sua visão de mundo particular. trazendo para
a cena urna presentificação - ou reelaboraçâo - de sua própria história de vida.
Do ponto de vista estritamente interpretativo, a prática do depoimento pessoal.
por seu caráter confessional. vai estimular no ator U1l1 estado de abertura e despren-
diruento, provocando o que poderíamos chamar de dcsvehuncnto. Nesse sentido. o
depoimento pessoal se constit ui em ferramenta capaz de interferir nos mecanismos
de bloqueio do ator. estimulando a sinceridade c a entrega. Ele contribui também no
processo ele autoconhccimento do ator, imbricando prática artística e experiência de
vida. consciência da obra c consciência de si.
Segundo Mário Santana. em sua análise sobre o depoimento pessoal. a sua função é

I...) fornecer aos atores estímulos de superação das


próprias limitaçôcs. é buscar que
se deixem em condições de dar vazão ao interdlto e ao iudízívcl; àquelas possihiijda-
des ele fala pessoal onde o insólito. o inusitado ou o ínsuportável brotam de impulsos
pessoais profundos e livres de compromissos (0111 estruturas expressivas prévias,"

1)0ponto de vista grupal, o exercício desse depoimento acaba por promover a


cumplicidade e o amadurecimento nas relações interpessoais, '11'1 medida em que os
intérpretes vão conquistando. conjunrarnenre. um espaço COll1UIll de desvdamel1t"os~ j\
medida que um ator se abre e compartilha suas histórias. memórias pessoais. opiniões

5 SANTANA, ~f. J\ •.r\ Ctua t~ cl Atuaçl10 come; dt:[JDfmeUlo esr~lko do ntor Cliudm- nos t~Spl.'leicul{)~ ',\
CnIZCH1" elas CrieUl(flS' t' i\poculipst.' 1.LI·, ~003~ 197 f. Tese (Doutorado CU\ An~s) - Escola
de Comunicações e Artes. Universidade de São Pau [o. p. 154.
158

e críticas, os outros atores rarnbérn se contaminam por tal atitude. e um espírito co-
letivo de respelto ITIútuO, de parceria e de cumplicidade vai se consolidando.
Contudo, é importante ressaltar que. apesar do caráter de auto-exposição ineren-
te a essa abordagem, é o ator quem decide que material ou que memória de seu "baú
pessoal" ele pretende compartilhar com o grupo. Estabelece-se U111 pacto, inclusive.
de que ninguém deverá expor algo com que não se sinta apto a lidar ou que ainda não
esteja suficienrernente "trabalhado" no plano subjetivo. O limite entre desvelurnento
e terapia de grupo é tênue. com o agravante de que não possuímos capacitação pro-
fissional na área psicológica para coordenar - ou socorrer - tais desvios. E. sobretudo,
porque o nosso objetivo é. na origem e no final, a realização de UI11a obra artística.
Quanto ao diretor. ele cumpre urn papel importante no sentido ele estimular e
acirrar os pontos de vista ele cada integrante em relação ao projeto e de incitar os
atores a investigarem a si ll1CSl110S e a extensão dos seus limites. Ele eleve evitar a cen-
sura e o menosprezo a posicionamentos mais fnigeis ou confusos, a fim de não criar
urna atmosfera de intimidação.
Corno já dissemos, ser.i da intensificação deste 0111<11" individual que emergirá a
visão panorâmica do conjunto. A radicalização das singularidades abre espaço para
que os diferentes dialoguem . contraponham-se e. na seqüência. o conjunto se afirme.
O ator submisso, que não se posiciona - o que é diferente do ator neutro. já que a
neutralidade pode implicar num posicionamento -. é um entrave à polifonia grupal.
Pois é justamente do embate de múltiplos depoimentos pessoais que se construirá o
depoimento colet ivo.

5.8 EXERCíCIOS DE VIVÊNCIA

i\ vivência é urna prátíca de trabalho de matriz stanislavskiana - e strasberguiana


-~ realizada no inicio dos ensaios, logo após o treino. que funciona corno UI113 espécie •
de aquecimento sensorial. emocional e imaginativo para o ator. São exercícios realiza-
dos individualmente, muitas vezes com os olhos fechados. que não visam a nenhuma
produção de material cênico e nem têm a preocupação C0111 a comunicação. Trata-se de
1111) procedimento que procura colocar o ator em contato consigo mesmo, por meio de

algum estímulo temãtíco ou contexrual relativo ao projeto. Além disso, a fim de auxi-
liar na concentração. trabalha-se CQIn luz baixa e (0111 estímulos sonoros ou musicais,
Por exemplo. em Apocalipse 1,11. urna proposta lançada aos atores como 1110le do
exercício foi: "O mundo vai acabar em 24 horas. O que você faria nesse tempo que
lhe resta?". Tal proposição, realizada na primeira semana de ensaio. visava a colocar
os atores frente â possibilidade do "fim do mundo", aproximando-os das suas reações
159

e sensações. sob um ponto vista intimo e particular. Ou seja. ao invés de criarem


cenas de 1110rte e destruição. interessava-nos que entrassem ern contato com as suas
subjetividades. sem a obrigação de nada explicitarem.
A direção, caso necessário, pode interferir no exercício, sugerindo desdobramen-
tos à proposição inicial. POrélTI. os atores não elevem nunca interromper o fluxo da
experiência para ouvirem tais indicações. Aliás. podem inclusive desconsiderá-Ias,
caso a sua vivência não comporte ou dialogue com aquele novo estímulo, No exerci-
cio descrito acima. por exemplo, após alguns minutos do início. a direção reduzia o
tempo que antecedia a catástrofe: faltam 12 horas"; falta t hora", "faltam 5 rninu-
U Oi

tos": "falta apenas U111 minuto".


Esse tipo de exercício serve também para aproximar os atores de ternas grandio-
50S c abstratos.. proporcionando-lhes uma experiência mais individualizada. Além,
é claro. de evitar as respostas-prontas e a caricatura. Ele gera um estado Ilsico. sen-
sorial e emocional ao IneSI1l0 tempo em que reduz a censura e a autocrítica do ator
- já que não há a necessidade de apresentar nem comunicar nada. Por outro lado ele
"aquece' a sua subjetividade para as improvisações e work..,hops que virão a seguir
O perigo ele urna prática corno essa é o desvio para os famigerados exercícios do
tipo "ameba com angústia", em que se vê U111 bando ele atores sofrendo, gritando e
se contorcendo. Esse risco, de fato, existe. e sua prevenção vai depender da forma
COlHO o diretor enuncia o estímulo e da maneira COI110 o ator lida com a proposição.
C0I11ü já dissemos, busca-se uma aproximação inicial ao tema, urna resposta indivi-

dual, urna investigação subjetiva e n50, eXOrciSI110S expressivos descontrolados.

5.9 IMPROVISAÇÕES E JOGOS

A improvisação cumpre um papel vital - talvez o mais importante - no processo


colaborativo, Quase todas as práticas lançal11 mão dela. utilizando-a para 0$ mais
diferentes fins: investigação elo terna: desenvolvimento da dramaturgia; criação de
cenas; produção de imagens: aprofundamento das personagens; ocupação espacial.
entre outros.
E COUlO se opera o trabalho da improvisação na prática concreta dos ensaios?
Além das dinâmicas jri citadas e de outras que iremos tratar a seguir, podemos identi-
ficar algumas formas recorrentes de sua utilização. a saber:

o Improvisações de clichês: feitas no período inicial dos ensaios COIllO forma


de. por \\\1\ lado, expurgar todas as idéias-prontas e irnagens-padrão que
ternos de determinado assunto e. por outro, reavaliar alguns elementos
160

dos clichês que. se reelaborados, poderiam ser úteis à discussão. Por exem-
plo, em Apocalipse 111, corno contraponto ao exercício de vivência acima
descrito, foi proposto aos atores que trouxessem todas as suas imagens de
fim de mundo e de destruição. da Bíblia às histórias em quadrinhos, sem
medo de caírem na obvícdade. A idéia era que "colocassem para fora". que
"gastassem" tudo aquilo que parece ter se impregnado e cristalizado no
seu imaginário;
o Improvisações ternãticas: realizadas C0l11 o propósito de mapear os ternas
e subtemas do projeto e. num segundo 1110111ento, aprofundar a discussão
dos recortes estabelecidos;
• Irnprovisaçôcs de personagens: importantes tanto no levantamento geral
ele possíveis personagens para a dramaturgia quanto. depois. para o me-
Ihor delineamento delas e de suas relações.

Todas as improvisações acima descritas são utilizadas C0l110 instrumento de cons-


trução do texto e do espetáculo. Portanto. elas cumprem tanto um papel de produção
de material bruto quanto de aprofundamento das proto-cenas que começam a se es·
boçar, Aliás, a enorme quantidade de imagens, de possibilidades de personagens e de
novos interesses temáticos. suscitados pelas improvisações, tornam o processo mais
complexo e estabelecem pontos de contato inesperados - além, é claro. ele subverter
as "idéias primeiras" elo grupo e da direção. Aliás. esse estado febril e convulsivo de
criação. decorrente de UI11 sem-número ele improvisações. provoca nos atores UU)
desprendimento, urna abertura. UI1) clespudor e U111<l suspensão da aurocensura, que
só vêm ajudar na investigação.
() procccümemo norreador básico desta prática é () da "rcntariva-e-crro". E. de
faro, experimenta-se muito. testam-se várias possibilidades. perscruta In-se vários ca-
minhos para, ern boa parte das vezes, não se chegar a lugar nenhum. Contudo, esse
errar contínuo é condição síne qUCl nun de qualquer investigação artística.
En1 termos de condução. salvo onde dito o contrário, as improvisações podem
ser realizadas por meio de dinâmicas individuais. duplas. trios ou coletivamente. No

que se refere ao tempo de preparação, ele oscila de zero a vinte minutos. Tuelo vai
depender da proposta. Por exemplo, se é fornecido um livro de fotografia aos atores
para que eles escolham ali alguma imagem, o tempo gasto na leitura e seleção das
fotos será necessariamente maior ao de urna frase-estimulo lançada de chofre. Con-
tudo. o tempo despendido não é garantia de melhor resultado. Prova disso é que as
improvisações fl queima-roupa COSLUI11anl produzir. freqüentemente. material cênico
de inegável qualidade.
Quanto aos jogos, eles também são bastante utilizados ao longo dos ensaios.
porém adaptados ou recriados para atender a alguma necessidade de investigação
temática ou interpretativa. Por exemplo. em O Livro de Jó» trabalhamos com U111 jogo
161

de resistência que espelhava a situação do protagonista ao ser testado por Saranás.


Cada ator deveria trazer três "provações". erri' grau crescente de dificuldade. pen-
sadas sob medida para outro determinado ator - ou seja. se algum deles odiasse
fumaça ele cigarro. o jogador-desafiante fumaria e baforaria na sua frente. Caso o
outro jogador conseguisse resistir às três "provações". ele receberia um presente do
desafiante, também escolhido sob medida. Este é um exemplo ela adaptação de jo-
gos COIlIUI1S - ou Il1eSIlIO de jogos infantis - para situações pertinentes ao projeto.

5.10 PERGUNTA/RESPOSTA

Tipo de improvisação proveniente do processo de trabalho da coreógrafa alemã


Pina Bausch, em que UH1 conjunto de perguntas ou palavras-chave é utilizado para
estimular os bailarinos à produção de material cênico. Brn nosso caso, a partir de
urna indagação relativa ao tema do projeto, os atores devem responder à queima-
roupa. sob a forma ele um fragmento de cena. Esta dinâmica. em geral, é feita indi-
vidualrnente,
1\ idéia é a produção ele urna resposta imediata, espontánea. sem grandes refle-
xôcs, deixando aflorar elementos inconscicnros e ilógicos. Também é importante o
fato de o ator 11(10 querer impressionar ou divertir o restante do grupo, nem C0111-

parar as suas respostas com a de outro companheiro, Não existem respostas certas
ou erradas para as perguntas propostas. As vezes. por exemplo, uma resposta que
aparentemente tenha se desviado da pergunta, pode suscitar conexões inesperadas.
Por outro lado. a resposta cênica a ser dada nâo tem a obrigação de "responder' nada.
Ela pode simplesmente se constituir em urna nova pergunta, lançada de volta para o
dramaturgo. o diretor OH os outros atores.
Além disso. é COll1Ul11 muitas elas questões não produzirem qualquer material de
interesse. Caso isso ocorra. - o que é normal e esperado -. o diretor pode optar por
reformular a pergunta ou propor U111a questão inteíramente nova.

5.11 ESCRITA AUTOMÁTICA

Procedimento empregado pelos surrealistas. corno forma de suscitar a produção


de um jorro textual. evitando mecanismos de autocensura. No processo ele ensaio.
essa é urna prática que estimula os atores ti criação verbal ou literária. fornecendo
162

também idéias. frases ou fragmentos ele texto para o dramaturgo, Tais contribuições,
é claro, podem ou não ser incorporadas à peça. A escrita automática, portanto, é urna
Improvisação redigida, realizada lndividualmente e à queima-roupa, COll1 U111 tempo
exíguo de duração. a partir de urna pergunta ou bordão. Por exemplo. em Apoccllipse
1;1 -1, alguns dos estímulos utilizados foram "Quem você julgaria e por quê?" ou "Eu
me arrependo de..:'. enquanto que em O Livro de Jó. "Eu acredito em..".
Esta dinámica aCOITe de maneira simples: distribui-se urna tolha em branco c 11111
lápis para os atores. fornece-se a pergunta ou bordão. e cada UH1 deles, sentado ou dei-
tado no chão, escreve o seu texto. de forma ininterrupta. O ator não eleve premeditar,
reescrever ou corrigir a gramãtica. a fim de que a escrita saia corno um fluxo, sem
pausa nem controle. Ele não eleve também se preocupar C0l11 clareza, lógica ou sentido.
nesse seu texto em erupção. Ao final de UIl1 curto tempo - não superior a dez minutos
- cada UI11 deles vem à frente e f~l1.. urna leitura simples, não-interpretada. daquilo que
escreveu. Depois que todos leram. os textos são recolhidos e entregues ao dramaturgo.
Esse tipo de prática aquece e estimula os intérpretes a se colocarem corno atores-
dramaturgos no trabalho.

5.12 WORKSHOP

Improvisação COJll maior grau de elaboração. 1I11l;] "quase-cena", preparada CO!l1

um ou mais dias de antecedência. c que estimula a visão inclividuol de cada ator em re-
lação a um assunto ou problema, Apesar de concebido individualmente, ele pode in-
corporar outros atores no momento das apresentações. í: tUH dos eixos fundamemais
do processo colaborativo e coloca em evidência a função autoral do ator. Tanto corno
o ClUlOVílCCÍO ou o roteiro para o dramaturgo, ou a montagem e a ocupação espacial
pa ra o enccnador, () worksllOp é, para o ator, o seu espaço por excelência de criação e
posicionamento artístico.

O termo \VorksllOp, na verdade, tem pelo menos três significados distintos. O pri-
melro deles é aquele que nomeia um "curso intensivo". urna "oficina", 111n "seminá-
rio prático", A segunda acepção. de acordo C0111 a tradição anglo-americana, o define
corno U1l1 processo teatral de curta duração. em que se realiza o esboço de algo. que
poderá ou não ser desenvolvido posteriormente. É comum. tanto em companhias in-
dependentes (vVooster Croup: Mabou Mines, etc.) quanto em teatros que criam e pro-
duzern suas próprias peças (Royal Court Thcarre: New York Theater Workshop. etc),
existirem esses "balões de ensaio" de possíveis novos trabalhos para o repertório.
Às vezes, urna peça-em-processo ou urna produção embrioruiria pode ser desen-
volvida por meio de vários \vorkshops, separados por intervalos de tempo, até que se
163

decida por sua montagem oficial. O workshop. portanto. assume o caráter de teste. de
livre-exploração artística sem as pressões de produção. isto é~ torna-se um espaço de
"segurança e intimidade", corno definido por Schechner; Segundo o diretor e teórico
americano. o u,vorkshop é UlTI ternpojespaço protegido onde as relações intra-grupais
podem se desenvolver sem serem ameaçadas por agressões extra ou inter-grupais'";
Talvez. em decorrência dessa idéia de "livre-experimentação", o teI1l1O \vorkshop vai
ganhar ainda uma terceira conotação. Entramos em contato coru ela pela prática de
trabalho do grupo Boi Voador. dirigido por Ulisses Cruz. Nesse Importante grupo P;lU-
lista da década de 80. o workshop traduzia a idéia já mencionada de urna "quase-cena",
que era apresentada pelos atores durante o processo de montagem do espetáculo.
Uma pequena diferença entre esta prática e aquela realizada pelo Teatro da Verti-
gem repousa no fato de o Boi Voador - e de outros grupos da época - usar o workshop
principalmente COl peças prontas ou em adaptações. Ele era 11111 inst rumento desti-
nado. COTll maior ênfase. à encenação e ao levantamento do espeuiculo. No caso do
Vertigem. além de cumprir esse papel, o workshop tem importância fundamental na
criação e construção da dramaturgia.
É justamente no período de elaboração do texto que ocorre o maior número de
\vnrkshops. Evidentemente, eles servirão também à criação do espetáculo. porém, o
seu toco, nesse lTI0I11cnto. está colocado no Ievantamento de material para o roteiro
e na investigação de possíveis personagens. Na última fase dos ensaios. pouco após a
entrada..no espaço, a dinâmica de \VorksllOps deixa de existir.
(~uanto à sua mecânica de funcionamento, trabalhnmos sob determinados pará-
metros, pactuados pelo grupo inteiro. Todos os dias, ao final cio ensaio. o drnmarurgo
c o diretor - ou apenas este último - propõem um estimulo para ser trazido na forma
ele workshop no dia seguinte - ou no máximo dois dias depois, se assim deterrninado.
Esse estímulo pode ser urna palavra. urna frase. UIl1a imagem ou UHl fragmento ele
texto. No dia seguinte. todos os atores devem apresentar o seu \vorkshop. () qual tradu-
zírá a visão pessoal daquele ator em relação à proposição dada.
À medida que os ensaios vão se desenrolando, é comum algum dos atores não
querer apresentar o seu \\'orksholJ. Porém, em função elo pacto firmado, tal possibili-
dade não existe. Ou seja. ele deve elaborar alguma cena. seja no intervalo do cate ou
111eSlllO minutos antes de se apresentar. Este cotidiano de intensa profusão de cenas.
de incessante b1"aiustunn gera UI11 material heterogêneo e desigual. Por outro lado, po-
rém, esse caos criativo contínuo vai esgotando <15 idéias-prontas e abrindo o processo
para textos, imagens e soluções inesperadas.
Assim, a exaustão física grotowskiana parece, no processo colaborativo. ganhar
urna dimensão ligada fi exaustão de propostas - idéias. textos, imagens ou cenas - as
quais os atores devem produzir no calor da hora do ensaio ou nos workslrops trazidos

6 SCIlECIlNER. u. P~rfon1l(mct: "I1rt!01)'. london: Routledge. 1994. pp. tO)-104.


164

de casa. Contudo, essa exaustão não é aquela do cansaço, mas Si111. do esgotamento
- no sentido deleuzíano do termo", Isto é, não ocorre a extcnuação, a desertiflcação
artística. 111as sim, 1.1111 esgotar total de possibilidades que acaba provocando o apare-
cimente inesperado de novas idéias ou conformações.
Poder-se-ia perguntar aonde desemboca tanto material cênico e textual produzido
nos \Vorkshops e improvisações. Conforme apontamos em nossa dissertação", urna par-
te dessa produção. de fato. se perde; outra parte se materializa no corpo dos atores
- ainda que de forma não explícita. como, por exemplo, numa qualidade de presença
- e uma última parte. enfim, se concretiza em cena. Ou seja. nem tudo se perde. luas
também nem tudo se transforma.
É fundamental que os atores se sintam livres para trazer de casa. naquelas 24
horas de preparação, o que quer que seja. Não deve haver censura, nem recusa ele
nenhum impulso ou desejo que lhes ocorrer. Eles apresentam, então. U111 esboço de
cena ou uma improvisação estruturada, C111 que criaram e/ou selecionaram o texto
- se houver - as imagens, a música, os objetos, o espaço, a luz e os figurinos. Em
outras palavras, eles se exercitam enquanto atores-dramaturgos, atores-encenadores.
atores-cenógrafos e assim por diante - o que é diferente de se tornar ou élSSUI11Ír o
lugar do dramaturgo, do enccnador ou do cenógrafo.
Além disso. a qualidade plástica ou técnica relativa a essas áreas não é o que
vem em primeiro lugar. O que importa é a materialização de um conceito ou de um
ponto de vista. Apesar disso, na prática. alguns workshops revelam alto grau de ela...
boração estética.
Após as apresentações do dia. o grupo todo realiza uma discussão sobre () que roi
visto e. a partir desse fcedback. o diretor ou o dramaturgo pode solicitar a reelabo-
ração do material. O intuito é desenvolver melhor alguma idéia ou imagem cênica,
permitindo o aprofundamento do ator em relação às suas próprias visões. Não é inco-
mum, portanto, os atores apresentarem duas ou três versões de UI11 mesmo \vorkslwp
- às vezes até C0I11 acréscimos de texto propostos pela dramaturgia.
Apesar de o depoimento pessoal ser inerente a tudo o que ocorre cn1 sala de ensaio,
ele fica maximizado nos workshops. Isto, provavelmente, em decorrência da formaliza-
ção cênica por eles exigida. Em outros tipos ele improvisação, por exemplo, é C0l11U111 a
alternância de momentos de acirramento e de diluição deste depoimento, O worksltop.
ao contrário, exige urna síntese artística que estimula o ponto de vista individual.

7 Segundo Deleuze, no posfiicio às peças para televisão <te neck~u. eoth:l'\~do L'El1uisé.
·'0esgotado muito mais elo que o cansado. 1...1O cansado apenas esgotou a realiza-
é

ção. enquanto o esgotado esgota todo o possível. (...1apenas o esgotado pode esgotar
o possível. uma vez que ele renunciou ..1 toda necessidade. preferência. finalidade ou
signifícação". In: .H:CK~Tr. s. QUCld d uulrt.'s pit:ct:s lJOUI' In tckl'ision. Paris: Les Éditions de
Minuit. 1992, pp. S?-61 [trad. Alexandre de Oliveira Henz).
g SlLV..\ , ..\ . c. i\ •• 1\ CérH:S~ ,in \'t:t1igcrn:o Proresso clt: Criaçclo de '0 f'amíso {1adidu·. p. 98 e p.IS0.
165

Não elevemos nos esquecer, porém, que apesar de planejado solitariamente por
um ator, ele acaba congregando o grupo inteiro em sua execução. Na maior parte .
das vezes, esse ator-encenador convida os outros intérpretes a participarem de sua
proposta. Não há ensaio. tudo é combinado na hora e improvisado ali mesmo, No
entanto. seguindo as indicações de U111a estrutura dramatúrgica e cênica elaborada
previamente pelo ator-proponente.
Essa dínàmica prepositiva individual acaba fomentando. COU10 já vimos, um tipo
de clramaturgia monológica. Contudo. tal tendência pode ser revertida por meio da
firme interferência do dramaturgo durante a elaboração do texto. Ela também pode
ser atenuada pelo estímulo do encenador à realização de exercícios dialogados e de
UI11 maior número de improvisações coletivas,

Porém, a natureza pessoal e particular do \vorkslwlJ não e a responsável pela trans-


formação da peça numa descosida colcha de retalhos. Não nos esqueçamos de que es-
sas "quase-cenas" aparecem com maior força na primeira etapa do trabalho. Ou seja.
ainda que tenhamos urna constelação de discursos individualizados. não conectados
entre si. eles só explicitam os di ferentes pontos de vista presentes no grupo. O passo
seguinte do processo. C0l110 veremos, consiste na busca dos mínimos denominadores
C0l11unS e 11<1 conseqüente construção de UHl discurso coletivo.

Por fim, gostaríamos de apontar que. nu seqüência das atividades de UUl dia de
ensaio. o \vorkshop aparece corno a última dinâmica. sendo seguido apenas pela ava-
liação grupal do que foi desenvolvido naquele encontro. A idéia é de um encaminha-
mente que vri "aquecendo" criativamente os atores. Parte-se do treinamento direcio-
nado. de caráter mais físico, para urna instância mais subjetiva. materializada pelas
vivências. A seguir, vêm as improvisações - grupais, em duplas ou em trios; tcm.iti-
cas: de personagens: escrita automãtíca: pergunta/resposta, etc. - e somente então,
são apresentados os workshops. culminado o dia de trabalho. Portanto. resumindo. a
seqüência que geralmente é empregada nos ensaios é a seguinte:

TREINAMl;NTO DIRECIONADO -) VIVl:NCIA -) IMPROVISAÇÕES -) \VOIU(SHOPS -) AVAU/\Çl\O


DO DIA De TRt\BALllO
D

5.13 SELEÇÃO DO MATERIAL

Quais são os critérios que orientam a escolha do material, tendo ern vista a enor-
me quantidade de exercícios. improvisações e workshops realizados durante a fase
inicial elos ensaios? É neste momento que a existência de funções artísticas definidas
cumpre U111 papel fundamental.
166

l~ claro que tudo o que é produzido ao longo do processo vai sendo debatido. dia-
riarnente, por todos os integrantes. Essa dinâmica cotidiana de discussão estimula
o reconhecimento de zonas de interesse C011111n1 e, também, é lógico. das áreas de
conflito. Dai que, U111a parte das escolhas Ocorre organicamente, por rneío do diálogo
e da negociação. cabendo ao dramaturgo ou ao diretor apenas o papel de facilitar.
mapear ou organizar as distintas sugestões e opiniões. Ambos podem contribuir tarn-
bém para deixar explícito e assumido aquilo que agrupo deseja excluir da obra. ou
seja. funcionariam COl110 uma espécie de consciência da via negativa do trabalho.
Contudo. outra parte da seleção - seja pelo seu caráter 111(115 polêmico, duvidoso ou
delicado - é difícil de ser feita. Por exemplo, em razão do apego aos próprios depoimen-
t05 pessoais - atitude compreensível e justificável - os atores tendem a lutar pela perma-
nência ele um volume de material maior do que o desejável. Dai se tornar premente a
interferência incisiva. do dramaturgo e do diretor. em relação às escolhas a serem feitas.
Nessa etapa do processo. por exemplo, é necessária a transformação das idéias e
proposições cru um C€UIOVClccio. Portanto, o dramaturgo precisa chamar a rcsponsabili-
dade para si em relação a essa estruturação. Tarefa difícil, pois se parte de 1.1111 I110I11Cn-
lO em que tudo pode. marcado por vigorosa ebulição criativa, para a primeira tentativa
de roteirização. na qual deve imperar uma rigorosa e cuidadosa seleção. Desnecessário
dizer que, em geral, esse é o primeiro grande momento de crise no processo').
A tarefa da dramaturgia não se restringe apenas a apontar o que fica e o que sai.
mas também a identificar o material que carece ainda de maior desenvolvimento - o
que significa a necessidade de mais improvisações e workshops. Porém, o fator mais
determinante dessas escolhas é jusrarnenrc a própria cena. Isto é. aquilo que funciona
ou não. teatralmente. Deve-se evitar transformar essa etapa de seleção numa arena
argumentativa, na qual a esgrima verbal e a retórica discursiva tornam-se as principais
fontes de convencimento. Ao contrário. é a cena que deve nos dizer - e convencer - do
que. de todo o material levantado. deve permanecer ou ser eliminado. COll10 afirma
Luís Alberto de Abreu. a cena "é o fiel da balança c. CO111 o algo concreto e objetivo. é
hierarquicamente superior à idéia. imagem, ao projeto. às visões subjetivas"!",
à

9 Alonso Alegria. dramaturgo e diretor teatral peruano, identifica nessa etapa do ira-
balho um dos pontos mais problemáticos da criação coletiva. Segundo ele. ··é uma
miscelânea de coisas. tem muitas mãos nesse prato. (...) quem quiser trazer o seu. pode
trazer o seu, e como não é aceitável que um individuo diga em relação aos dez [emas
ou dez cenas apresentadas pelos dez integrantes do grupo. que diga para examinarmos
uma e abandonarmos as outras nove. isso é impossível. porque isso não é muito cole-
rivo. Corno não há urn diretor autorinlrío, não existe quem pOSS'l dizer isso co. então.
o que acontece? Opta-se por apresentar as cenas de todo inundo 0\1 aquelas em que
tenha havido um consenso. ao invés de - desnecessário dizer - colocarmo-nos todos
de acordo para escolher UIn único incidente, para examiná-lo com profundidade" {In:
CF.Sl'l:DI:S. F. G. (org.). fi 'lhuro LaliuotUm',;mllo de Crecuiôn COlt.'CtíviL. pp. 6~-65J.
io . \RRFoU. 1.....\ •• "Processo Colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência d~ cria-
ção", In: Cacfc.'J"IIos dll ECf. p. 38.
167

Abreu define cena "não como a unidade acabada. mas qualquer organização de
ações proposta por atores, diretores ou dramaturgos"!'. Portanto, a idéia é observar
atentamente o conjunto do material cênico produzido até ali - o qual, evidentemen-
te. apresenta uma qualidade precária e inacabada - e "perguntar" a ele ou encontrar
nele. as balizas do roteiro.
É importante ter ern mente que. além dos critérios gerais até aqui levantados.
cada obra vai demandar ou criar os seus próprios critérios de seleção. Ou seja. o pro-
cesso de elaboração do texto - e da cena - gera os seus parâmetros específicos ele es·
colha. Daí a necessidade de se estar atento 80 fluxo da criação e de desenvolver urna
capacidade de escuta que permita identificar tais parâmetros no seu nascedouro - ao
invés. simplesmente, de impor urna visão exógena e desconectada do processo.

5.14 CANOVACCIO

Termo proveniente da cOHl1llcdia clelrllrte e empregado por Luís Alberto de Abreu


para definir a estruturação básica das ações e personagens" l2• Trata-se, portanto.
lO

da primeira organização ou sistematizaçâo, por escrito. do material criativo surgido


em sala de ensaio. Pode ser definido corno um roteiro sem falas ou escalera - termo
usado no cinema - que propõe um percurso com início. meio e fim, de situações
e personagens. de cenas e de ações, de imagens e ele conceitos do trabalho. E\e é o
pri meiro passo rUBlO à construção do texto final c da d rarnaturgia da cena. Insisto
na presença desses dois aspectos porque, apesar do carwvaccio estabelecer uma asso-
ciação mais direta C0111 a produção do texto escrito, ele é. também. urna ferramenta
importante na estruturação do espetáculo. Por mais que dividamos em etapas a
constituição dessas duas instâncias, trata-se apenas de urna questão de ênfase, pois
a feitura do texto e da montagem ocorrem simultaneamente no processo colabora-
tivo. Na verdade. poderíamos dizer que o espetáculo j.i começa a se delinear desde
-. .
a prnnerra - --
rmprovisaçao.
Abreu alerta ainda que "embora o canovaccio seja responsabilidade da dramatur-
gia ele não se constitui em mera 'costura' das propostas do coletivo nem uma visão
particular do dramaturgo"!'. Ou seja. o dramaturgo não se transforma em mero es-
criba de improvisações. atuando apenas corno copidesque dos ensaios. Por outro lado.
essa estruturação dramatúrgica precisa dialogar em alguma medida COlll o que vem

I t I\BRf.U~ I.. A.~ "Processo Colaborativo: relato e re.flCx.Õe5 sobre uma experiência de cria-
çâo", In: CCHknws da El.T. p. )8.
t2 lbid.. p_]8,
13 1hid., p. 38.
168

sendo criado em ensaio, É essa tensão entre voz individual e voz coletiva. marca - e
cicathz - elo processo colaborativo, que deverá moldar o corpo do canovl1ccio.
Na prática do Vertigem, costumamos também denominar esse primeiro roteiro-
geral corno "esqueleto" ou "varal de cenas". Além disso, já experimentamos esboçar
inicialmente um argumcnto - espécie de sinopse do trabalho. na qual. em UHl ou dois
parágrafos, são descritas as circunstâncias centrais e as trajetórias das personagens
- para só então haver a construção do canovaccio.

5.15 IMPROVISAÇÃO DO CANOVACCIO

Após a definição do cnnovoccío. parte-se para a sua improvisação integral. sem


interrupções. Por se tratar da primeira tentativa de organização. o resultado dessa
Improvisação costuma ser bastante extenso e extenuante. Apresenta, em média,
U1l1a duração de quatro a seis horas. Além disso. dada a complexidade da empreita-
da - em que. por exemplo, são resgatadas personagens, imagens ou fragmentos de
cena que foram improvisadas vãrías semanas antes - tornam-se necessários UI11 ou
mais dias de preparação. Os atores precisam se lernbrar do que fizeram, os objetos
de cena e.figurinos necessitam ser resgatados. o roteiro ele músicas e de ocupação
do espaço tem que ser confeccionado. enfim. toda uma preparação matcrlal e logís-
tica deve ser realizada.
C0l110 é importante a percepção do todo, disposto num fluxo continuo, a improvi-
sação da íntegra do canovacôo não deve ser interrompida - aconteça o que acontecer.
Portanto. não está previsto nenhum intervalo durante a apresentação.
Além disso. todo o material é gravado em vídeo. a fim de fornecer urna memória do
processo. um arquivo de cenas e UHl suporte imagético para os posteriores desenvolvi-
meruos drarnatúrgico, cênico e mesmo interpretativo. Por exemplo. ao ocorrer a transfc-
rência de uma determlnada personagem, do ator-proposítor para outro ator, esse matçríal
gravado poderá servir corno base de apoio, estudo ou referência. Ou seja. a gravação cum-
pre o papel de "texto escrito' da peça, associado ao elemento de sua realização cênica.

5.16 FEEDBACK

UIU elemento-chave do processo cotaborativo. que irá atravessá-lo inteiramente,


do primeiro ensaio à última apresentação. é aquele relativo ao exercício da crítica e
do feeclback. Realizado diariamente por todos os integrantes do grupo. ao se discutir
169

as improvisações e os \vorksho]Js~ ele assume U111 papel igualmente importante no pe-


ríodo de seleção e construção do texto. .\
É a partir dos comentários e das impressões sobre o material visto que as escolhas
serão definidas e que as perspectivas de desenvolvimento aparecerão. A crítica aqui.
não tem caráter apenas avaliador ou de julgamento. luas assume função prepositiva,
capaz de estimular e impulsionar os desdobramentos artísticos do projeto.
Contudo. tal exercício pressupõe um aprendizado específico e certo grau de ama-
durecimento ela equipe de criação. C01110 divergir da improvisação do parceiro sem
desmerecê-la, e. ao mesmo tempo, deixar claras as razões ela discordância? COIllO
ouvir a crítica negativa em relação a determinada proposição? sem torná-la pessoal-
mente? Na maior parte das vezes. o que está em jogo não são o acabamento ou a exe-
cução técnica perfeita do que foi apresentado, 111as sim o sentido daquilo no âmbito
da est rut ura da obra. do projeto estético ou do discurso coletivo da companhia.
Se o excesso crítico pode gerar entraves e bloqueios. intimidações e constrangi-
mentes - elementos arruinadores de qualquer processo criativo -. o constante "pisar
em ovos", o cuidado extremado, o elogio indiscriminado e o recalque ou sublimação
da instância crítica podem ser igualmente nocivos.
Além disso. se o fccdback cumpre urna função criadora e prepositiva nos ensaios.
ele pressupõe. também. UIl1a interferência na área de criação alheia. Tal perspectiva
não só é bem vinda corno deve ser estimulada. Ela faz parte da natureza do processo
colaborativo, Porém, ele novo. é necessário estar atento, tanto para quem critica e
sugere COI110 para quem recebe a avaliação. para não transformar sugestão em ímpo-
siçâo. ou assimilação em "política de boa vizinhança". Interferir não significa desres-
peitar. nem muito JllCnOS anular ou tornar o lugar do outro.
Se realizado de forma madura e respeitosa, o processo continuado de IeedlJc!ck
consolida e aguça o olhar crítico do grupo. criando urna pratica de reflexão que só
contribui para o aprofundamento da pesquisa. A crítica ao outro e a critica a si pró-
prio criam uma dinâmica de retroalimentação e elevam, positivamente. o padrão de
qualidade e de exigência do trabalho.
Pelo caráter precário e afeito a constantes mudanças, a obra-em-construção exige
um tipo de crítica processual. ela também. Por mais que se vejam cenas "prontas",
textos impressos. conformações estéticas "definidas" é preciso treinar o olhar para
observar aquilo corno algo em mutação. Não se observa - e se critica - apenas "o-que-
é", mas também "o-que-pode-vir-a-ser", Essa percepção da potencialidade. do germe,
do esporo, provoca urna abertura no campo de visão e evita abortos artísticos apres-
sados e desnecessários.
A crítica processual tem caráter prepositivo. Ela não apenas aponta os problemas,
mas procura encontrar as possíveis soluções. É urna crítica imaginatíva e criadora,
capaz de se colocar no lugar do outro sem, contudo. roubar-lhe a posição. Por outro
lado, aprender a receber um feedback dessa natureza? significa tornar-se perrneãvel,
170

deixar-se contaminar. flexibilizar o controle sobre a própria criação. A influência


aqui não deve causar angústia.
Esse exercício de escuta. interferência e transformação prepara o grupo para o
fcedback mais arriscado. aquele que ocorre durante os ensaios abertos e apresenta-
ções. A crítica por parte de indivíduos completamente alheios ao processo pode ser
bastante desestabilizadora, porém, por outro lado. se ganha o olhar virgem sobre a
obra. Treinada numa prática cnrlco-proposítíva ao longo dos ensaios. a companhia
tem maiores condições de conseguir filtrar o ataque gratuito da sugestão oportuna.
Consegue ter marurídade para ouvir ou ler os comentários da platéia e encaminhar
as modificacões que façam sentido para aquele projeto artístico em questão.
Em geral urüizarnos o termo ufeedbad:" no lugar de "crítica". Por mais que se fale
em crítica construtiva 0\.1 processual ou criadora. este termo traz ainda. infelizmente,
urna conotação negativa de julgamento e valoração. Caber-nos-ia resgatar o sentido
de cliscernimento da raiz desse termo - o que não é tarefa simples, dada a carga de
significação que lhe foi imposta. A palavra feedlwck. ao contrário. pelo significado
presente 0111 sua construção composta, traz a idéia de "alimentar de volta" ou de "re-
troalimentação". Ser nutrido - e não destruído - pelo comentário do outro, carrega
urna conotação positiva e generosa. de partilhamento e cumplicidade.

5.17 ROTEIRO

Após a discussão e avaliação do «iuovorcío. realizada pelo grupo todo. a dramaturgia


inicia a decupagem e o detalhamento dos conteúdos (te cada cena c a revisão do po-
sicíonamento delas na estrutura, Além disso. a necessidade de exclusão ou criação de
novas cenas também é colocada em pauta. Em SUI11a. ocorre a reelaboracão do canovac-
do - primeira síntese drarnarúrgíca - na busca de UIl1a nova conformação. mais consis-
tente e estruturada. Ela é chamada, então. de "segunda versão do c(lllovaccio" ou - C0111ü
denominamos em nossa prática. a fim de melhor distinguir as etapas - de "roteiro".

() objetivo central desta segunda estruturação é trabalhar contra a superficiali-
dade e o esquematisrno que rondam a dramaturgia de origem coletiva. Por exemplo,
a elaboração de novas cenas pode vincular-se ao desenvolvimento da trajetória de
determinada personagem 0\\ á criação de pontos de tensão e ele contradição na estru-
tura. Busca-se. também. a redução do recorte temático a fim de evitar o dado pano-
rãmico - em detrímento da complexidade. Procura-se engendrar, ainda. uma rede de
conexões mais sólida entre as diferentes cenas e personagens.
Apesar do roteiro ainda não possuir falas, a concatenação das cenas, a trajetória
das personagens e o conteúdo central de cada trecho da estrutura encontram-se mais
claros para todos.
171

Finalizado o roteiro, parte-se para a sua improvisação na íntegra, em moldes se-


melhantes àqueles empregados para o CQ1l0VQCt1o. A diferença qualitativa principal
reside no maior grau ele apropriação do material por parte dos atores. O resultado,
menos precário do que o anterior. ainda assim apresenta qualidade irregular. espe-
cialmente pelo fato de as falas serem improvisadas, Por mais que o eixo temático e
o percurso das personagens estejam definidos. os diálogos improvisados costumam
ser extensos e prolixos. Em razão disso. o tempo de duração dessa apresentação do
roteiro é pouco menor do que aque la do «movncdo.
Desnecessário dizer que parte considerável do quebra-cabeça realizado pela dra-
mnturgia. modificando cenas de lugar e reordenando episódios ou seqüências. se
d~í também por "tentativa-e-erro". Dai a necessidade do roteiro ser testado e corrido
Integralmenre mais ele urna vez. a fim de se verificar os pontos frágeis e as propostas
ele medi ficação.

5.18 PRIMEIRA VERSÃO DO TEXTO

Terminada a experimentação do roteiro. a dramaturgia inicia a escritura do texto


propriamente dito. Esse é o I11011lento em que os monólogos e diálogos começam a
apresentar melhor qualidade-literária e a peça. finalmente, ganha C011)o. Além disso,
há a clepuracão de todos os aspectos dramatúrgicos ji\ levantados (personagens, eixo
temático crc.).
O texto. em geral. não é entregue ele urna vez. mas sim. em blocos. Toda semana
o dramaturgo escreve c apresenta novas cenas. que serão trabalhadas pela direção
c atores. I~ COIllUIll. a partir desse 1110111Cnro. urna presença menor do dramaturgo
CIl1 sala de ensaio. por encontrar-se em pleno processo de confecção do texto. Além
disso. a sua ausência no dia-a-dia do trabalho permite-lhe uma visão mais distanciada
do que vem sendo produzido pelo grupo. fator este que contribui para uma melhor
avaliação dos resultados.
Na prática do Vertigem, tudo o que é ensaiado durante a semana é apresentado
ao final da mesma, por meio de UOl pequeno "corrido". Esse é o momento em que
o dramaturgo está presente para assistir ao trabalho que foi realizado com o texto"
c marca também o encontro C0111 todos os outros colaboradores. Após os corridos é
realizada urna reunião geral de avaliação. na qual devem comparecer, no mínimo.
os atores, o diretor e o dramaturgo. Trata-se de intensa ocasião de troca e fcedhack,
tanto pela presença de todos - ou quase todos - os criadores. quanto pela possibili-
dade ele urna reflexão "a quente", logo após a apresentação das cenas. Esse corrido
semanal é a oportunidade que o grupo tem de começar a perceber. de fato, a obra-
em-construção.
172

É freqüente o acirramento dos ânimos nessa etapa, já que de todas aquelas pos-
sibilidades infinitas de obras.iesboça-se a materialização de apenas umn. O ator. por
exemplo, não improvisa mais longos monólogos, devendo. ao contrário. memorizar
U1l1 conjunto reduzido de frases. Tudo começa a ser sintetizado e o grupo é obrigado
a encarar as resultantes de seu esforço. Além disso. esse é o 1110111ento em que ainda
cabe alguma grande modíflcação estrutural. Daí a presença de lUTI maior fôlego nos
embates e discussões.
Se. por todas <15 razões expostas, a dramnrurgia encontra-se na berlinda. sofreu-
do pressões de toda ordem, a encenação, por sua vez, está mais livre para realizar
experimentações. É o momento eru que são testadas possibilidades de estilos. de
linguagens. de espacíalízações e de atmosferas, Por não estar no foco elas atenções,
o diretor adquire um espaço privilegiado para testar as suas idéias e encaminhar os
seus decorrentes desdobramentos, O mesmo ocorre com os outros criadores. A cada
semana, nessa fase. figurinista. cenógrafo. iluminador e diretor musical utilizam o
"corrido" para experimentar as suas propostas. Isto cria 1.I111a ebulição artística, urna
efervescência teatral. que torna cada "corrido" um espetáculo fl parte.
Apesar da imbricação e ela simultaneidade de lodos os aspectos ela montagem, se-
ria oportuno relembrar o trajeto percorrido pela escritura dramatúrgica:

J\ltGUM[~NTO -) C.·\NOV,\CCIO -) ROTEIRO -) TEXTO

5.19 ANÁL\5E AT\VA

À medida que as cenas vão sendo escritas e enviadas ao grupo. e realizado um


trabalho de estudo de texto. baseado nos procedimentos stanislavskianos da Análi-
se Ativa. Por se tratar de urna metodologia dinâmica. que alterna instâncias teóri-
cas e praticas, ora trabalhando analiticamente sobre o rexto, ora estudando as suas
motivações ern cena. ela parece bem adequada à abordagem de Un1é1 dramaturgia
em processo.
Maria Knébel, citando o próprio Stanislavskí Cl11 UI11 encontro que tiveram, afirma
que "a análise ativa é um dos meios que conduzem o ator a UID estudo profundo e
concreto da ação, c que revela a mola das forças motrizes da obra.. . \-).
Essa f01"n1(1 de trabalho também auxilia os atores na memorização das falas. pois
tl sua instância prãtíca pressupõe o acompanhamento da lógica argumentativa e
das linhas de ação, tais como foram escritas. Na verdade. ela funciona C0l110 um ins-

14 l(:.'lÜUliI.••\1_ o. La Píflalnll ,-ou lu CI"cClliân Acloml. Madrid: Editorial Fundamentos. zooo. p, 56.
173

trurnento para a descoberta das ações - instrumento este que se encontra ancorado
no esqueleto da peça - possibilitando aos intérpretes. a partir daí. a mcrnorizaçâo
do texto.
Segundo Bella Merlin. o objetivo central da Análise Ativa, além de retirar o ator
da passividade inerente às "leituras de mesa ", é fazê-lo encontrar a partitura das
ações físicas. Para tanto. realiza-se a seguinte seqüência:

1. Você lê urna cena;


2. Você discute a cena:
3. Você improvisa a cena sem maiores referendas ao texto:
4. Você discute a improvisação, antes de retornar ao texto;
5. Você C0I11para o que quer que lenha ocorrido na sua improvisação com as pala-
vras e os acontecimentos do texto. tal C0l110 ele foi escrito."

Aliás, a aplicação desse mecanismo de análise acaba auxiliando na identificação


de pontos cegos, de "buracos" e de ralhas na construção drarnatúrgica. i\ Analise
Ativa. portanto. não CU111pre apenas UHl papel ele avaliação e mapeamento, 111<15 gera
novas propostas para a reescrírura da peça. Muitas das modificações ocorridas entre
a primeira e a segunda versão do texto silo dela decorrentes.
Além da Análise Ativa, são propostos ainda jogos e improvisações. os quais procu-
ra111 investigar as circunstâncias. as motivacôes das personagens. os conflitos entre
elas e os seus traços característicos. Corno, nesse Jl10111cnto. j~í se trabalha sobre U111
texto concreto - ainda que em estado de mutação - os procedimentos não difercn1.
muito daqueles empregados no estudo de urna dramaturgia previamente escrita. ()
diferencial reside na constante lembrança e percepção de que se esui atuando sobre
um objeto móvel, em contínua transformação.
Depois que o texto inteiro - cena após cena - foi analisado e levantado. realiza-se
um novo corrido do trabalho. na íntegra. Esse corrido - c os próximos que virão - vai
gerar outras modiflcações c. conseqüentemente, novas versões do texto irão surgir, É
comum a produção de cinco. seis ou mais versões até o final da temporada, Ou seja,

o trabalho C0111 a dramaturgia continuará mesmo depois da estréia.

5.20 PESQUISA DE INTERPRETAÇÃO

UH1 dos perigos do processo colaborativo é a utilizaçâo do tempo de ensaio apenas


para a resolução de questões dramatúrgicas. deixando em segundo plano o trabalho

1S MmUJN. H. Tiu: COUlpktt: Stauisldvsky Toolk:it. London: Nick lIern Books, 2007~ p. 197.
174

do ator e os problemas da encenação. Na trajetória do Vertigem, a experiência de O


Paraíso Perdido - em que incorremos em tal erro - serviu de lição.
É claro - COI110 já dissemos - que dramaturgia, encenação e interpretação se de-
scnvolvern simultaneamente. desde o início. Ou seja, o ator já se encontra desen-
volvendo U111a qualidade de presença ou estudando uma possível linha expressiva
desde o primeiro dia de ensaio. Na verdade. a diferença reside apenas nUI11a questão
de ênfase. Existem períodos do processo em que o texto está em maior evidência en-
quanto, em outros. por exemplo, a preocupação C0111 o espaço se destaca.
Se por um lado, o acúmulo de experiências ao longo do processo - via treinarnen-
to. improvisações e worksheps - vai necessariamente se materializar no corpo e voz
do ator. por outro, é importante dedicar urna atenção específica e detalhada à cons-
trução interpretativa. Na medida ern que o ator é solicitado a pensar e a agir tOn10
dramaturgo e encenador - e assim o será até IneSIl10 após a estréia - é fundamental
que o processo também abra espaço para o seu exercício enquanto intérprete. Isso,
de novo. sem nos esquecermos de que essa condição de ator-drnmaturgo-cncenador
já cria e instaura, por si mesma, outro registro de interpretação.
Nesse sentido, procuramos realizar praticas que aprofundem o trabalho de atua-
ção. Trata-se de procedimentos já utilizados durante a criação da dramaturgia - jogos.
exercícios e improvisações - porém, agora. voltados exclusivamente para esse fim. Por
exemplo, ao invés de 11111(1 vivência de exploração temática - talvez desnecessária a
essa altura - é proposto 11111 exercício de estados internos relativos ao personagem. Os
workshops também mudam de foco. acirrando o cruzamento de componentes pessoais
com as figuras a serem representadas. Além disso. é idealizada uma pesquisa de campo
especifica para cada ator. voltada exclusivamente para as suas necessidades e interes-
ses. Con10 também se trata de uma interpretação-em-processo. a direção de atores vai
se estender por toda a temporada, incorporando a pesquisa interpretativa à presença
do público.


5.21 INVESTIGAÇÃO E APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO

o processo colaborativo pode gerar espetáculos destinados a qualquer tipo de


espaço cênico. seja ele italiano. arena. semi-arena ou "não-convencional". Corno essa
reflexão sobre procedimentos torna corno base a experiência do Teatro da Vertigem.
falaremos sob o ponto de vista da ocupação de espaços públicos e urbanos. não-ins-
titucionalmente destinados ao teatro. numa categoria denominada site sl'ecijic. Não
trataremos, porém, da luta política, burocrática. admlnistrativa e ele produção para a
liberação dos locais de apresentação - que ocorre paralelamente ao processo ele cria..
175

ção do texto e da montagem. Partiremos do momento em que o espaço encontra-se


disponível para a realização dos ensaios.
A encenação. apesar de experimentar registros e formalizações concomitante-
mente à escritura do texto. só vai se consolidar enquanto visão e linguagem após a
entrada no lugar. Isso. é claro. por se tratar de UI11 trabalho de natureza síre speciJic. O
espaço, nesse caso, é Ul11 divisor de águas na criação do encenador, além ele configu-
rar-se corno UHl elemento autônomo no espetáculo. Por outro lado. - é importante
ressaltar -. a função criadora do encenador encontra-se presente ao longo de todo o
processo. não se restringindo apenas a essa fase.
O local da apresentação. evidentemente, afetará também a dramaturgia - que
deverá ser reelaborada à luz desse novo elemento - e o trabalho dos atores, o qual
sofrerá um redímensionamento radical em razão desta ocupação. Ou seja. o processo
de descoberta. exploração e dí.ílogo C0111 o espaço será compartilhado por todos.
Entre algumas das atividades que congregam lodo o grupo. poderíamos citar os
exercícios de percepção espacial ou de sensibilização arquitetônica. os workshops re-
alizados a partir de algum nicho específico ou. ainda, as improvisações de implanta-
ção elas cenas para aquele novo local. O espaço. nesse memento. passa a ser o motor
c o objetivo da colaboração.
O mesmo vigor e ebulição ínvestigativa que a companhia sentiu durante a confec-
ção do caflOVllcdo e do roteiro são. de certa forma, revividos aqui. Testa-se com grande
liberdade a conformação do espetáculo àquela nova lógica arquitetõnica. Por exem-
plo, a mesma cena é experimentada eru nichos distintos e o percurso do espetáculo
é improvisado em diferentes trajetórias espaciais.
Assim que o trajeto é definido. inicia-se a explorarão ele possibilidades cênicas em
cada trecho. Novas improvisações são solicitadas aos atores e o dramaturgo começa a
adequar a sua escritura àquelas condições arquitetônicas. O próprio deslocamento de
UIl1 nicho a outro. ou de urna cena à seguinte, pede acréscimos ou exclusões de texto
que não estavam previstas.
Acrescente-se a isso o impacto que o local exerce na sensibilidade dos inrérpretcs,
afetando tanto a qualidade de presença quanto a construção das personagens ou fi-

guras. Os elementos de perigo e de risco. inerentes a esses lugares, fazem C01l1 que os
atores saiam de suas zonas de segurança e atuem num estado quase sempre limite,
Dentro da prática do Teatro da Vertigem, desenvolvemos a seguinte seqüência de
procedimentos em relação ao reconhecimento c à apropriação espacial:

• Livre-exploração do local: primeiro contato <:0111 o ambiente, realizado por


meio de uma "caminhada", "dança' ou ele alguma vivência sensorial. Se111
nenhuma preocupação ou vinculação com a peça ou as personagens. 1\
idéia é se deixar levar pela arrnostera ou pela própria curiosidade;
o Jogos: abordagem lúdica e descornpromissada de lidar com o lugar. por
176

111Cío de jogos infantis clássicos ou adaptados (esconde-esconde, cabra-cega,


caça ao tesouro, etc.). Tal dinâmica ajuda a "quebrar o gelo" com o local,
atenuando os constrangimentos, a timidez e os eventuais medos:
• vtewpotnts de espaço: técnica adaptada para o teatro pela diretora america-
na Anne Bogart, que trabalha COIl) Improvisações de movimento a partir
de aspectos ligados à arquitetura e à topografia (dimensões do ambiente,
texturas, lumiuosidade, etc.):
• Encontrando ou construindo a "casa" ela personagem: primeira dinãmi-
ca de aproximação ao universo da peça. Também com caráter lúdico. ela
consiste em propor aos atores que busquem - ou construam - um nicho
dentro do espaço. que servir,' corno "morada" ele suas personagens;
• Jogos e improvisações situacionais: buscam, por meio de Impressões subje-
tivas ou de "tentativa-e-erro", um diálogo do espaço COlll situações ou cír-
cunstãncias concretas da peça. Nesse momento, inicia-se. de fato. a C0111-
plexa "transposição" e reconfiguração daquilo que foi construído em sala
de ensaio para UI11a nova conformação arquitetõnica;
• Experimentações da trajetória do espetáculo e do percurso do público den-
tro do espaço: através de vários "corridos" da peça inteira, vão sendo testa-
das diferentes possibilidades de ocupação. estrururacão e deslocamentos.
Trata-se do momento de espaciulízação da seqüência integral elas cenas.
procurando identificar relações plásticas. simbólicas e metafóricas com o
lugar. Í~ a primeira vez, também, que se experimenta a materialidade do
texto CIH diálogo COIH a concretude do local. Em suma, esta etapa instaura
o processo de rcssignificaçâo do espaço:
• Ensaios de marcação: definida a trajetória espacial da peça? inicia-se o trabalho
de investigação das possibilidades de cada cena dentro do nicho escolhido:
• Ensaios de aprofundamento da interpretação: além da apropriação espacial
e do domínio técnico na rclacão C0111 o lugar e seus objetos - fundamental
para evitar acidentes -, estes ensaios exploram outras camadas de dirilo-
go do ator C0l11 a arquitetura. Ao invés de "brigar" COll1 o espaço e as suas

dificuldades. buscam-se maneiras de utilizar os elementos arquitetônicos.
atmosféricos, acústicos, "energéticos" ou ligados à história 0\\ memória do
lugar, a favor do trabalho interpretativo. A idéia é potencíalízar o estado de
presença do ator ou os aspectos simbólicos das personagens por meio da re-
lação concreta com a materialidade e a significação dos objetos e do local:
• Corridos e ensaios gerais: fundamentais para o domínio da "logística de
deslocamentos' de uma zona a outra, de um nicho a outro. Eles marcam
também a etapa final do processo de apropriação do lugar;
• Ensaios abertos: importantes na definição da quantidade real ele especta-
dores por sessão, na compreensão do deslocamento do público pelo espaço.
177

na correção ele problemas ele visibilidade e na identificação de elementos


de risco pai'a a platéia. que não foram ainda percebidos.

Pelo esquema acima proposto, pode-se perceber um percurso no processo de ocu-


pação espacial. que parte do ator para a personagem, e daí para o espetáculo COl1l0 UHl
todo. Conquistado isso. volta-se novamente para uma instância menor, primeiramente
relativa à cena. e depois. ao trabalho individualizado de cada ator. S0I11cnte, então. con-
sidera-se o espetáculo levantado. Poderíamos. portanto, resumir assim este percurso:

o ATOR NO ESP,\ÇO -) A }lERSONAGEM NO ESP,\ÇO -) A TRAJETÓRIA DO ESPET,\CULO

NO ESPt\ÇO -) A ESI'ACIALIZAÇr\O DE CADA CENA EM SEUS RESPECTIVOS NICHOS -)

A INDIVIDUAI.IZ,\çi\o DO TRABAlHO DO ATOR NO DIALOGO COM O I~SPr\ÇO -) ENSAIOS CORRIDOS

5.22 ENSAIOS ABERTOS

Concluída a fase de ocupação cênica do espaço. o processo se abre, novamente, a


outras colaborações. Na medida em que ja é possível "correr" o esboço do espetácu-
lo, do início ao fim, sem interrupções, realiza-se. finalmente, a abertura cios ensaios
para eventuais interessados.
O fccdlJack dos espectadores. por lucia de conversas ou questionários distribuídos
ao final ela apresentação. identifica problemas até então n~10 percebidos. além de
fornecer sugestões úteis à montagem. Nesse sentido. o público torna-se um parceiro
concreto da criação. interferindo na materialidade da própria obra.
O fator "colaborativo" se amplia nessa convocação da platéia para a arena do pro-
cesso. 'relu-se UHl público participativo se exercitando numa recepção processual. 1\
criação explode os muros da sala de ensaio. ocupa o espaço público c transforma os
espectadores em agentes transformadores da obra. Por outro lado. os artistas ganham
outros "parceiros' de trabalho, e um novo aprendizado de escuta se faz necessário.
Diferentemente das avaliações de markeUng COIll potenciais consumidores ou mes-
mo dos testes de público no teatro comercial, o objetivo cios ensaios abertos não
é (ornar a peça mais pnlanivel e entretida - e, portanto, mais vendável - n1~\S, ao
cont rário, a sua meta é encontrar mecanismos de intensificação da experiência e ele
radicalização do olhar crítico.
Parece-nos sintomático que essa busca de outra relação COI1l o público, baseada
não na manipulação, mas no resgate de sua dimensão de cidadania. dialogue com a
maneira corno as próprias relações internas se estabelecem no interior ela C01l1pa..
nhia. Se compreendermos o grupo teatral C01110 Ulll microcosmo social, com leis de
178

funcionamento e convivência. é de se esperar que discurso e obra. que ética interna


e ações externas. estejam intcgràdas ou se espelhem.
Na prática do Vertigem. os ensaios abertos têrn a duração de quatro a seis serna-
nas. O texto e a cena se modífícam sensivelmente após essa interferência direta dos
espectadores. Urna nova versão da peça é produzida. a montagem incorpora grande
parte elas críticas e sugestões oferecidas e, para os atores - além das contribuições
mencionadas - a presença da platéia marca Ul11a nova etapa em seu trabalho, jti que,
a partir daí. o fenômeno teatral se completa,

5.23 ENSAIOS DURANTE A TEMPORADA

i\ cst réia do espetáculo n50 determina a finalização do processo. Durante vários


meses ao longo da temporada, seja por avaliação interna da companhia, seja por co-
mentários do público. outras alterações textuais e cênicas são ainda efetuadas.
Os questionários continuam a ser distrtbuídos e é COn1tUn ocorrerem apresen-
tações especiais para grupos específicos de espectadores - estudantes de teatro ou
arquitetura. moradores de uma determinada comunídade, escolas ele ensino médio.
etc. Tais espetáculos são. em geral. seguidos de debates - o que, por sua vez, coloca
em pauta o olhar C' as sugestões de UHl setor particular.
O processo colaboratlvo. portanto. só se conclui com a última apresentação. Ou
melhor, não se conclui nem mesmo C0111 ela. O seu caráter aberto e inacabado pcrma-
nece na memória COI110 U111 motor de continuidade e aperfeiçoamcnro para a próxi-
ma obra - a qual. por sua vez. também permanecera inconclusa.

Gostaríamos ele reiterar que o conjunto de procedimentos e dispositivos apresen-


tados não tem a pretensão de se constituir em urn método reproduzível e aplicável
a outros coletivos de criação. Cada obra inaugura o seu próprio processo e método..
logia, Ele também não almeja se configurar C01UO uma sistemntização do processo
colaborativo em geral. Traduz. apenas, a síntese de quinze anos de trabalho no Teatro
da Vertigem. Reflete a nossa prarica particular de colaboração. Espelhá a forma corno
a entendemos e a experimentamos até agora. Amanhã. talvez. j<i será outra. Pois, o
seu interesse e eficácia residem, justamente, na sua contínua Inabilidade.
179

6 A ENCENAÇÃO NO COLETIVO: O ENCENADOR E O


PROCESSO COLABORATlVO

',\ cena 'work in ].,rogress· é gestada pelo gl1lIJO de criação e pelos


atotes-perkmncrs a partir de impulsos da c1ireçc1o, num processo
distinto da 'oiaçcio coleHva'7 e expcricncieulo em lulJoratótio'·
(Renato Cohen, ''-'Vork in Progress' na Cenn Contemponlflea)

6.1 FUNÇÃO E CAMPO DE AÇÃO DO ENCENADOR

Qual é campo de atuação do encenador? Da organização material ela cena à pro-


dução dos sentidos do espeuiculo, o espectro de sua ação é amplo. Antes, porém, de
se discutir seus atributos, seria pertinente urna breve apresentação daquilo que se
entende propriamente por "função". A definição do termo, encontrada nos dicioná-
rios, compreende desde a "atividade natural ou característica de algo que integra urn
conjunto" até "obrigação a cumprir" ou "papel a desempenhar", passando ainda por
"atividade específica de cargo assumida em urna instituição", "oficio" e "profissão"
(Houaissj'. Na sua acepção jurídica, ela é vista corno "o conjunto dos direitos, obriga-
cõcs e atribuições duma pessoa CTn sua atividade profissional específica" (Aurélio}'.
i\ idéia de "operação", "atividade" ou "ação". dirigida para UI11 dctcrrninado fim, per-
passa quase todas as definições.
Do ponto de vista filosófico, a noção de "função" já traz em si a idéia de "unifica-
ção ". Kant, na Crítica ela Raziio Pura, a define corno "a unidade da ação. que consiste
em ordenar diversas representações sob urna representação C0I11UIn"3. Hume. antes
dele. associarã ainda os aspectos ela "interdependência" e da "conexão" ,"15 relações
funcionais.

No caso específico deste trabalho, cabe lembrar que o elemento ftmçdo é o aspec-
to axial definidor do processo colaborativo. Se a criação coletiva permitia. a cada
membro do grupo, a máxima utilização de sua capacidade criadora na associação
concomitante de diferentes áreas de criação, o processo colaboratívo, por sua vez, vai
direcionar essa capacidade criadora para uma determinada função ou atributo.

t HQUJ\ISS, A.: VI [J.AR. M. S. Dici01Uhio llOUctiss dl. Ufl,~tlU Portugu~s{1. Rio de janeiro: Objetiv.. I.
2001. p, 140~.

z J=F.IUU~lR/', A. n, 11. Novo J\un:1io Século XXI: o didomÍJio tlulingulZ lJortu.f:,r'lu:sa 3. ed, Rio de Janeiro:
Nova Fronteira. 1999. PI>. 951-952.
3 IN BRUGGl:R. vV. Dicionârio d~ FilosoJia, São Paulo: Ediwra Herder, 19Gz. P.Z56.
180

Ora. seria a função do encenador urna "atividade natural" dentro da montagem?


Se pensarmos sob o ponto da vista da necessidade de um olhar exremo, de alguém
que, "saindo de cena", seja capaz de perceber o conjunto e emitir uma opinião sobre
ele ou sugerir-lhe algum ajuste ou modificação, parece sim, "natural" e "espontâ-
neo", que tal atividade ocorra. Por outro lado. é possível perceber. historicamente,
a instituição da obrigutcriedude desse "papel". Ainda que mesclada ou acumulada à
função do dramaturgo, do cenógrafo, do primeiro-ator ou ainda. 11 do chefe da trupe,
essa atividade de "observador externo" ou de "organizador da cena" vai se impondo
e se consolidando.
Passo seguinte. á medida que o teatro apresenta contornos mais complexos, tal
atividade se estabelece corno um "oficio" ou "profissão". Surge, então, a função do
"régísseur" ou "diretor de palco", que passa a coordenar todos os aspectos materiais de
conformação do espetáculo, desde a troca de cenários e adereços até a marcação dos
atores, promovendo assim, a organização objetiva da cena.
Na segunda metade do século XIX. em decorrência dos avanços tecnológicos, da
iluminação elétrica. da "mutabilidade e polimorfismo do espaço cênico", da "arn-
plitude e variedade do repertório", c, sobretudo, ainda segundo Bernard Dort, pela
"rnodifícação quantitativa e qualitativa do público teatral" - que se dá tanto por sua
composição heterogênea de classes quanto por sua atitude frente ao teatro -, a função
do diretor se amplia de um plano apenas material para outro. de âmbito conceitual.
De acordo C0l11 o teórico francês. "diante de UI11 público variado e em constante mo-
dificação, a obra não mais possui urna significação eterna, mas exclusivamente UHl
sentido rdativo. vinculado ao lugar e ao momento". o que torna neccssá ria "a inter-
venção de um cnccnador":'.
Este encenado}', portanto. fará a ··mediHçüo de um espetáculo historicizado", na 111e-
dida em que foi introduzida na representação teatral. "uma tornada de consciência
histórica", obrigando-nos, enquanto espectadores, a perceber a nossa própria historiei-
dade. Dort conclui seu ensaio apontando a contradição essencial ela encenação moder-
na: de urn lado. a sua "vocação historicista", de "comunicação histórica e social" c. de
outro. o seu desejo de autonomia absoluta. ele criação fechada ClU si mesma'.

Seja C01110 for, a encenação deixa de se restringir ao âmbito técnico para assumir
111l1él dimensão artística diferenciada em relação aos outros elemeruos teatrais. Ela se
{orna agente de urna escritura cênica, ou ainda. essa própria escritura. O encenador
ou "metteur en scêne" passa a ter a atribuição de fabricar o(s} sentidoís) da obra, de
constituir um recorte ou 111na visão que lhe seja própria, de conferir UIl1a unidade ao
discurso espetacular. Segundo Jacó Cuinsburg, referindo-se à "função e [à( necessida-
de da operação diretorial",

af n, "Condição Sociológica da Encenação Teatral", in: O 'li'lItro


'>ORT. t: SUll Rcalidmlt:. São
!'ilUlo: Editora Perspectiva. 1977. pp. 83-99 (grifo nosso).
5 lbid., pp. 97"99 (!,'Tifo nosso).
181

{---t do projeto de direção. que poderá abranger os rninirnos pormenores e os rnáxirnos


significados de tudo o que se encontra e age em cena. provém a totalidade daquilo
que o espetáculo pode transmitir ou transmite corno prescnrificação teatral,"

Guinsburg, contudo. vai mais além na discussão sobre a função do diretor. Em


diálogo C0111 o autor deste trabalho, ele afirma que "o encenador não se reduz a urna
função histórico-estilística. luas cumpre, sobretudo. urna função estrutural",
O diretor realizaria ainda. segundo Dort", a mediação entre o texto e o espetáculo.
os quais passam a estabelecer urna relação de mútuo condicionamento. Ele é, enfim.
o responsável pela criação de um sistema cênico regido por leis próprias, tornando-
se. portanto O autor do espetáculo.
Que ral função tenha. por uru lado, se hipertrofiado ao longo do século XX. 0\.\. por
outro. sido continuamente colocada em xeque ou negada, tem-se que admitir que não
é possível conceber o teatro moderno e contemporâneo sem a sua contribuição. A fun-
c;ão do encenador revolucionou a linguagem teatral. modificando os nossos paradigmas
de leitura e percepção do próprio teatro. Nesse sentido. não se trata mais de um movi-
rnento ou tendência localizada dentro da categoria "teatro de encenador". mas sim na
quase impossibilidade de dissociação entre teatro contemporâneo e encenação.
Que seja possível realizar um espetáculo sem a presença do diretor. não resta dú-
vida. porém, a função do "olhar externo' continuará sendo demandada ou exercida
por algum integrante do trabalho. Que se possa abdicar da concepção do cncenador,
é também fato, contudo. a sensibilidade do espectador contemporâneo parece reque-
rer uma construção doís) senridoís) da cena. atribuição esta que deverá ser desempe-
nhada por alguém da companhia, ou por toda ela. conjuntamente, não importa. En1
out ras palavras, se podemos abrir 111ão da autoria do indivíduo diretor. o mesmo não
pode ser dito em relação à JiU1Çiio da direção ou encenação, Por mais problemática e
complexa que essa cornpetência seja. a cena contemporânea necessita entabular UHl
diálogo - ainda que tenso - C01n ela.
A autoria, no caso do encenador, está geralmente associada à configuração ele
certo campo de coerência conceitual ou teórica e à constituição de uma unidade es-

tilística ou estética particular. São estes os elementos que lhe conferem o caráter de
interpretação pessoal. Essa autoria. às vezes vista com desconfiança. parece sempre
estar CI11 busca de sua Iegitimaçâo. Segundo Patrice Pavis, a encenação. COI110 parte
visível do teatro. "teve que afirmar a sua legitimidade, convencer que ela não era
nem urna decoração facultativa nem UHl discurso derivado e arbitrário'",
Retomando a questão da função. poderíamos citar. entre os principais atributos

6 (;mNSnURC. Jm,'ó. Du Cena t'Ul G:nu. São Paulo: Editora Perspectiva. ~OOl. p. ~6.
7 ()()RT.n, "Condição Sociológica da Encenação Teatral", pp. 97.98.
S PAVIS, P.l.u Misc en Scc:ne CC)JII.:mlWrdim:; or(~irl(.'5. lt'udauú'S, pcrsJ1L'ctin·s. Paris: Armand Co-
lin, :~007, p, r i.
182

associados ao papel do encenador, os seguintes aspectos: condução do processo de


ensaio: marerializnçâo cio conceito de encenação por meio dos elementos cênicos e
dos intérpretes: análise do texto teatral; no caso de dramaturgia em processo. cola-
boração COlll dramaturgo e atores na seleção de cenas - ou ele trechos de cenas - para
a composição do texto: direção de ator - o que compreende, entre outros elementos,
a construção vocal e corporal das personagens e o trabalho de intenções. ritmos e
musicalidade do texto; investigação e exploração de possibilidades cênicas; edição
do material levantado em ensaio: estabelecimento do tempo-ritmo e das atmosferas:
construção das transições entre as cenas; marcação dos atores e desenho dos deslo-
camentos: composição das cenas ele grupo: coordenação da mecânica do espetáculo:
afinação técnica da peça - entrada e saída de cenários, adereços, "deixas" de 50111 e
luz. ajustes nos volumes vocais e sonoros. etc.; garantia da segurança dos atores e do
público; no caso de espaços não-convencionais. resolução da condução e/ou colocação
do público no espaço e elos decorrentes problemas acústicos e de visibilidade. espa-
cialização elas cenas e eliminação de elementos desconcentradores da atenção.
Por fim, seria possível pensar as funções da direção por uma via negativa. Recor-
rendo a algumas das denegações ele Pavis. poderíamos afirmar, entre outros pres-
supostos. que o diretor não realiza cenicamente urna potencialidade text tia I nem
precisa ser fiel ao texto dramático. Além disso. na via contrária. a encenação "não
aniquila. nem dissolve o texto clramârico'". Não cabe também ao diretor a obrigação
de preencher supostos "buracos" do texto por melo do discurso cênico. E. 1(15l l.1Ul lWt
lellst, não há a necessidade de que ele siga as rubricas do texto nem qualquer de suas
indicações cênicas.

6.2 ENCENAÇÃO PER FORMATIVA

A encenação contemporânea vem estabelecendo um forre relação C0111 a pefjor-


mnnce. sendo contaminada e reconflgurada por ela. Relação de desconfiança. muitas

vezes. até mesmo antipoda, em alguns casos. 1l1HS também legítima e complementar;
Utilizamos aqui o conceito mais restrito de performance, associado à pelfonllClUrC art.
~IO invés da noção amplíada COIU que Richard Schechner vem abordando este termo,
no campo dos l'erfonJance studies - incorporando a ele os rituais. as cerimônias cívicas.
a política, as apresentações esportivas, entre outros aspectos da vida social.
Nesse sentido, o caráter autobiográfico. não-representacional, não-narrativo. de
contraponto à ilusão. e baseado na intensificação da presença e do momento da ação,
num acoruecirnento compartilhado entre artistas e espectadores - traços caracterís-

9 l':\VfS. I). O T~tllro no Cmzmnc!lIto de CulLuras. São [~1l11o: Editora Perspectiva, aoos. pI" 2)·:!.7.
183

tícos ela arte perforrnática - vão orientar as sugeridas aproximações C0111 o campo
.\
teatral. Segundo Lehrnann, "é evidente que deve surgir urn campo de fronteira entre
performance e teatro à medida que o teatro se aproxima cada vez de urn aconteci-
mento e dos gestos de auto-representação do artista performático"!".
O caráter multídíscíplinar, de cruzamento de diferentes linguagens artísticas. tão
axial na performance, é também prática recorrente na encenação atual. que se alia.
cada vez mais. às artes plãstícas, à dança. à música e ao cinema, Porém, diferente-
mente do projeto wagncriano de síntese das artes em sua Gesamtkunst\verk. o encena-
dor contemporâneo coloca lado a lado essas diferentes linguagens artísticas. "presen-
tificando-as" autonomamente,
O corpo em risco. colocado em situaçâo-Iírnire, que não representa mais persona-
gens. mas utiliza sua autobiografia corno material cênico, é outro ponto em COTI1Ulll
desse diálogo. Corno analisa joseue Féral, o perjeJrlner recusa "totalmente a persona-
gem e [... 1 [põe] em cena o artista ele-mesmo, artista que se coloca corno um sujei-
to desejante e performante, n1"5 sujeito anônimo interpretando a ele mesmo ern
cena"!'. Ou ainda. na visão de Jorge Clusberg. "o perfonlIcr não 'alua' segundo o uso
C0111Unl do termo; [...) ele não faz algo que foi construído por outro alguém sem sua
ativa participação" 12. Ou seja, essa instauração da presença elo corpo e da pessoa do
próprio pCJfonner. não mediada por instâncias flccionais. que marcou a cisão entre
"representação" - associada ao teatro - e "apresentação' - elemento-base da perfor-
mance - será revista c rcarticulada pela encenação contemporânea,
Entre outros elementos, ela vai lançar mão da exposição nua e crua do corpo do
ator-pcrjormer. de sua ampliação imagética - ou de partes dele - por meio de recursos
tecnológicos. acentuando o elemento presencial - ou pondo em xeque a sua ausência
ou virtualidacle -. além de colocar em risco ou em perigo a integridade física dos pró-
prios amadores. Í~ inegável a matriz artaudiana e de experimentos C01110 os do Living
'I'hearer nessa busca de UH] teatro "vivo" e não-representado.
A questão do olhar de fora, da observação externa, função precípua do diretor,
também dialoga C0l11 a atitude do pefJonner. Féral, por exemplo, reitera esse caráter
ele não-imbricação na obra. pois o peffol1ncr "mantém sempre um direito do olhar. É
o olho. substituto da câmera que filma, (...1operando deslizamentos. superposições.
arnpliaçôcs em um espaço e sobre um corpo tornados os instrumentos de sua própria
exploração" n~ Ou ainda, na formulação de Glusberg. "o pCljhnncr atua corno um ob-
servador. Na realidade. ele observa sua própria produção. ocupando o duplo papel de

1 o I.EH~t."NN. II.-T. "ll'cHro p()s.{lramcíLico. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 223.
1 t ':(~RA1 .• J. "Pcrformunce et théãrralité: le sujet démysrifié". In: f ÉRr\ t, J.: Sr\VON.\. J. I.•: \.V.·\LI'I:R.
E ...\. [dir.), 'nléiitTalit~, écJilw·(.' er míst." l'fI srêne, Qucbéc: Éditions Hurtubise HMII, 1985. p, 135.
12 CJ.USnERG, J. A Arte: clll Pelfonnafln:. São Paulo: Editora Perspectiva. 1987. p.73.
1] l·ÉR:\J.• op. cit.. p, 131 (grito do autor).
184

protagonista e receptor do enunciado (a pCJformunce)" I.', Essa observação. não raro, é


marcada pela auto-ironia e pela autocrítica. Nesse sentido. 9 ator se transforma, ele
também. no cncenador da obra, ou seja, U111 pcifonner-encenador. Renato Cohen sin..
tetíza bem tal perspectiva:

Apesar da ênfase para a atuação a perfOl1nmlCt! não é U111 teatro de ator. pois. [...] o
discurso da lJcifonnmrce é o discurso da mise en scêne. tornando o lJf?llonncr urna parte
e nunca o todo do espetáculo [mesmo que ele esteja sozinho em cena. a ilumlnação,
o S0111 etc. serão tão importantes quanto ele - ele poderá ser todo enquanto criador
111<15 não enquanto atuante) (...1O l'crfonnl?r, à medida que verticaliza lodo o proces-
so de criação teatral, concebendo e atuando. se aproxírna da pessoa descrita por
Appia em t\ Obra deArte Viva. que acumularia as funções de autor c cncenador,"

Contudo, esse paroxismo da presença e da biografia pessoal não ocorrerá apenas


por meio dos atores. Na medida em que a função precípua elo diretor não é mais a
passagem do texto à cena. o campo ele experiência do próprio enccnador se abre
também COl110 material cênico. Suas memórias, histórias pregressas e busca de au-
rodescnvolvirncnto são convocadas para a construção do espetáculo. Na verdade, a
vida pessoal do encenador já se encontra. desde o momento da escolha dos projetos.
determinando os critérios de seleção. Portanto. a encenação passa a ser. em certa
medida. a encarnação. a "rnise en chair" do diretor. E ele. por sua vez. torna-se, en-
tão. U111 cncenador-perjormer - que trabalhará no elaboração elo acontecimento cênico
com um grupo ele pelformers-encenadores.
A questão da especificidade do espaço para a performance é outro ponto ele con-
tato <:0111 a encenação site spccijic contemporânea, na merlída em que "toda perfor-
111anCe só é feita (e 56 pode ser feita) em e para Ut11 dado espaço ao qual ela está indis-
soluvelrnentc ligada"lf>. Esse locaí especifico e único. muitas vezes aberto à própria
cidade, e às eventuais interferências dos espectadores-atuadores. vai trazer ai nda a
questão do inesperado, do diálogo e da incorporação do acaso dentro da obra. Como
Clusberg aponta, "deve-se ter em mente que o elemento inesperado na lleljonllauce é

inesperado não só para o espectador, (...1mas também e primeiramente ao artista de
pcrjormnnce, cujo trabalho sempre tem um aspecto de inesperado" \7.
Outro dado de aproximação importante refere-se à pouca ou ~l ausência de hie..
rarquia entre os elementos constitutivos da cena. no âmbito da performance, Tal
perspectiva dialoga díretamente C0J11 as hierarquias móveis do processo colaboratívo.
Pois, C0I110 vimos, tal mobilidade ou flutuação entre as funções acaba gerando uma

1~. GJ.USDERG. J•• I\ I\r"lc deI Pt!lfonumKt:. p. 76.


! 5 C:OHF.N. R. Perfonnanrc como Linguugem. São Paulo: Editora Perspectiva. 1989, p, 102.
16 1·(iR,\I., J.• "Performance et théãtralité: lc sujct démystífié", p. \ ~9.
17 GLU!iDERC. J.• op.cír.. p. 83.
185

obra em que nem o texto, o ator ou a encenação têm carãrer epicêntrico. Ou seja, a
.,
resultante do espetáculo - corno no caso da performance - reflete urna alternância de
dorninâncias textuais, cênicas, interpretativas. etc. ao longo de sua apresentação.
Contudo. uma diferença pode ser encontrada na análise distintiva que Renato
Cohen faz entre happening - de caráter mais grupal - e performance - de natureza
preponderantemente pessoal. Nesta última,

1...] o trabalho passa a ser muito mais individual. É a expressão de UI11 artista que verti-
caliza todo seu processo. dando sua leitura de mundo, e a partir daí criando seu texto
(no sentido sígníco), seu roteiro e sua forma de atuação. O l'erfonncr vai se assemelhar
ao artista plástico. que cria sozinho sua obra de arte: t...( Por esse motivo vai ser mui-
to mais reduzido o trabalho de criação coletiva. Mesmo quando o artista (no caso,
UHl cncenador) trabalha em grupo (...1esse processo se <hi por 'colaboração' 0\.\ por
'direção', Essa relação I...) vai ser urna relação horizontal. de colaboracão.v

J~curioso que Cohen já utilize aqui a palavra "colaboração" para descrever urn
modo de criação horizontal que seria distinto daquele da criação coletiva. Ü claro que
o que ele tem em mente não é ainda a dinâmica ocorrida no processo colaborativo,
o que se evidencia no exemplo por ele apresentado: a parceria entre Robert Wilson e
Philip Class, na qual este último compõe. separada e independentemente, a música
para suas "óperas". A colaboração, nesse caso, se dei pela equivalência das diferentes
criações. isto é. pela não-subjugação da produção musical à vontade e ao discurso do
encenador, Ú na afirmação territorial de suas autonomias, e na justaposição não-dia-
logada de suas criações, que eles "colaboram".
O rcat ro contemporâneo, ao deixar aparente e evidenciado o seu processo de fa-
bricaçâo. também estabelece conexão COIU os aspectos de revelação de proccdirneu-
tos construtivos, presente na performance. Ela, segundo Péral, "se interessa por uma
ação em curso de produção mais do que COl um produto acabado":". O posicionamen-
lo perforrnativo do encenador, nessa medida, o condicíona menos para a realização
da obra perfeita.... deixando que o espetáculo apresente ern cena e eU1 ato O seu pró-
U

prio processo de feitura. Tal perspectiva se materializa tanto pela explicitação de ras-
tros do processo, pela não-rnaquiagem dos seus buracos. fissuras e fracassos. quanto
peja apresentação da obra corno 1.1111 constante e contínuo \Vork ín progress.
Por todas as aproximações acima levantadas e, ainda. tornando corno base a abor-
dagem de Féral-", segundo a qual ela prefere o uso do termo "teatro perforrnatívo"

\ g cO\mN. R. P~rfonntm('~ como UllguClgem. pp. 100-10 l.


"Performance er théãtraHté: te sujet dérnystiflé", p. 137.
19 FF.J<AI.• j .•
20 Tal abordagem foi apresentada em recente palestra no Encontro Mundial das Artes
Cênicas (ECUM) - 6'\ Edição 2008. realizada em Belo Horizonte e São Paulo. em 20 e 27
de março de aoox, respectivamente.
186

ao invés de "teatro pós-dramático" para se referir à cena contemporânea, resolvemos


também nomear esta direção estreitamente vinculada à performance corno "encena..
cão performatíva".
Tal tipo de encenação. inclusive. na sua busca de negação da representação. chega
a se apresentar COIll0 urna não-encenação. Bvídentemenre, não no sentido pré-meinín-
gcriano, de mera organização material dos elementos. mas colocando em crise a capa-
cidade "todo-poderosa" que ela teria de unificar. simbolizar ou interpretar um texto ou
a própria realidade. Experiências de "não-encenações' ou de "mísc en scênes precãrías"
podem ser encontradas nas leituras encenadas. nas encenações improvisadas ou cons-
truídas a partir de dispositivos ímprovísacionaís, e ainda. nos exercícios cênicos incon-
clusos. nos quais o aspecto processual - de apresentação do processo, de revelação do
"movimento-do-fazer", do "showíng doing" ("nl0strar o próprio fazer, no momento em
que se t:1Z") schcchneriano - espelhá. sem dúvida, procedimentos performativos.
Tanto COI110 na performance. a encenação performativa pretende provocar a ins-
tauração de UIH acontecimento. Segundo Féral, "não contando nada nem imitando
ninguém, a performance (...) sem passado, nem futuro. acontece. transforma a cena
em acontecimento. acontecimento do qual o sujeito sairá transformado. esperando
uma outra performance para seguir o seu percurso":".
Portanto. o objetivo principal deste tipo de encenação é 1l1enOS a amarração esté-
rica do todo, mas, sobretudo. a produção ele experiência. Busca-se urna interferência
no espectador a fim de que ele seja capaz de "mobilizar sua própria capacidade de
reação e vivência a fim de realizar a participação no processo que lhe é oferccícla'<',
ES5e posicionamento pcrformativo do teatro. segundo Lehrnann, abre-lhe, justamcn-
te. possibilidades de novos estilos de encenação.
Contudo. ainda de acordo (0111 Féral,

I···) contrariamente à performance. () teatro está impossibilitado de não colocar.


dizer. construir, fornecer pontos de vista: pontos de vista elo enccnador sobre a
representação. do autor sobre a ação. do ator sobre a cena. do espectador sobre o
ator. Há toda urna multiplicidade de pontos de vista e de olhares 1...1. A performance

não rem nada a dizer. nada a dizer a si mesmo. a capturar, a projetar, a introjetar
a não ser os fluxos. as redes. os sistemas. Tudo nela aparece c desaparece como
urna galáxia de 'objetos transicíonaís' (\tVinnicott). que só representam as falhas da
captura da representação. I... J Ela não procura dizer (COTllO o teatro). I11JS provocar
relações sinestésicas de sujeito a sujeito."

Tal discussão leva. necessariamente, ao problema da unidade. que atravessa. por

21 fÉJV\L. J. "Performance et théãtralité: le sujet d érnystiflé", p. t35 (grifo do autor).


22 I.EJlMANN. u-r, TeCllro ].lôs·clrmncHico, p. 224
2] f(.. R:\I.. op. cit., pp, J 36-138.
187

mais de UI11 século. a função do encenador. Ao contrário ela perfomance, que não visa
ao estabeleclmento de um sentido geral ao discurso cênico ou à marerlalízação de
um ponto de vista sobre um determinado assunto ou texto, a encenação parece. por
natureza. convocada a essa composição ou articulação do sentido. Pavis busca ern Co-
peau a formulação clássica da noção de mise cn scêne: "ela é a 'totalidade do espetáculo
cênico que emana de um pensamento único. que o concebe, o regula e, no fundo, o
harmoniza":". Ainda que o espetáculo possa colocar em xeque um posicionamenro
ou deixar em aberto a amarração de um significado último, o imperativo da consti-
tuição ele unidade parece ser sempre urna espécie de teleologia da encenação.
Bernard Dort sustenta. porém, que essa "vontade de unificação (...] é somente
UHl fenômeno histórico":". Em outras palavras. é preciso se interrogar sobre essa
visão do teatro - e da encenação - corno arte unificada. A unidade artística da re-
presentação surge com o teatro realista. no final do século XIX. Tratava-se. ali. de
urna unidade não apenas visual ou cenográfica. mas também elo registro de inter-
pretação dos atores. Essa busca da unidade estilística e rítmica do espetáculo no
seu conjunto. de um eixo estético no discurso da encenação, da conformação de
um todo orgânico e harrnôníco. é o que veio a configurar a noção de ensemble, que
atravessará todo o século xx.
Contudo. em sua análise. Dort aponta para urna nova configuração relativa à en-
cenação:

Constatamos hoje urna emancipação progressiva dos elementos da representação


e vemos ai urna mudança de estrutura desta última: a renúncia a uma unid.\de
orgânica prescrita ti priori e o reconhecimento do feito teatral C01110 urna polifonia
significante. aberta sobre o espectador."

o teórico francês opõe. então. a "visão unitária" de Wagner ou de Craig a Ul11a


"visão agonistica". que pressupõe tl1TI combate entre os diversos elementos cênicos
para a construção do sentido, do qual o juiz serei o espectador.
A encenação performativa, nesse sentido. vai buscar justamente se libertar da
construção da unidade. do discurso homogêneo e do sentido articulador, Ela pro-
curará se deixar atravessar por sentidos, por linhas de força, por hcterogeneklades
materiais. discursivas e de linguagens. Ao invés da "produção de sentido", busca-se.
como na performance. a "produção de presença", ao invés da "organização simbóli-
ca", da "homogeneização dos materiais" ou da amarração de UHl sentido, emergem
"pedaços de sentido", possibilidades tateantes de significação. postas em movimento
e em contato, por ação do diretor. Ele, então, funcionaria mais corno Ul11 operador de

24 P,\VI~.P. La .\Jist.' cn Sân\? ContclUpomille: O1iginl'S. lenclallCl!s. perSl}t!ctiws. p.45.


25 »oxr. B. ta Rt.'pn:senralion ÉmandpJe. i\RLES~ ACfl:S SUl). 1<)88. lt. 177.
26 Ibid.• p. l78.
188

fluxos erráticos. U111 "presentíficador" de "pedaços de representação", um produtor


de urna rede de motivos cênicos diversos.
Inspirada pela performance - e por sua estrutura ele collage e de lcitmotiv<! encadean-
do as ações - a encenação performativa vai colocar os diferentes fluxos de desejo e de
sentido em conexão, deixando emergir as diversidades. habitando CUl heterotopias e,
por fím. desestabilízarã, a todo momento, as cristalizações de unidade. Corno sustenta
Pavis .. no seu recente estudo sobre a encenação contemporânea, "a encenação tornou-
se peljormemce. no sentido inglês da palavra: ela participa de U111a ação. ela se encontra
em um devir permanente'?'. E. nesse sentido. a associação - ainda que instável- entre
"performance' e "encenação" é UI11 dado ao qual a cena contemporânea não consegue
mais escapar, pois "urna não vai sem a outra. é somente a dosagem que varia. Í-: ncces-
sário inventar unta perft)nuise [junção das palavras 'performance' e 'rnisc cn scêne'[">,

6.3 ENCENAÇÁO-EM-PROCESSO

o teatro contemporâneo, ampliando seu campo de formalização c experiência.


vem colocando enorme ênfase no aspecto processual. deixando ele se pautar apenas
pela obra acabada e pela produção de resultados. Tal perspectiva. por conseqüência.
também alarga os sentidos e os procedimentos da encenação.
Diferentemente de parâmetros mais tradicionais. o início do trabalho da direção
não necessita ocorrer. obrigatoriamente, antes dos ensaios. O projeto da encenação.
por sua vez. não precisa estar definido ou programado II l',iori. mas se inicia no mo-
mente 1l1eSl110 em que os ensaios começam. Por esse caráter indeterminado e aberto
às vari áveis processuais. o encenador se coloca em pé de igualdade C0l11 os outros
criadores. Ele não sabe "mais", nem sabe "antes": na verdade. ele "não sabe", "igno-
rância" esta. em igual medida daquela de seus parceiros de trabalho. O saber. neste
caso. será construído junto. durante a elaboração da obra.

Sem uru conceito definido de antemão nem UI11 plano estético preestabelecido. a
encenação se plasma no aqui-e-agora elo processo. assumindo um caráter movediço C
permeável. Segundo a análise de Renato Cohen,

Apesar dessa fase processual exísrír também em outros procedimentos criativos.


no campo em que estamos definindo C01no linguagem work in proress, opera-se COll1
maior número de variáveis abertas. partindo-se de 1.111l fluxo de associações. UIl1a

27 nOKT. n.• In Rcprt:.l)entution rimanciptFc. p. 37.


'2.8 lbid,.. p. ,",o.
189

rede de interesses/sensações/sincronicidades para confluir. através do processo, em


.,
li 111 1'0 rei ro(storyboard. 29

Essa abordagem tateante e empírica da encenação coloca o diretor também em


situação ele risco. A sua "autoridade", muitas vezes construída sobre um saber prévio
em relação aos l1.1nlOS da criação, é relativizada ou colocada em suspensão. j\ ele tam-
bérn, COIll0 aos atores, é proposto um mergulho no escuro e no desconhecido. Nada
garante a obtenção de Ul11 resultado. Além disso. a idéia de "algném que conduz a um
determinado lugar" sofre um abalo. pois este "lugar" será construído coletivamente,
ao longo dos ensaios. O processo. por se constituir em tramas de percursos possíveis
e potenciais. é atópíco ou heterotópico. De acordo C0111 Cohen,

Caracterizando uma linguagem de risco. marcada pela vulnerabilidade e também


pelo mergulho e descoberta de novas significações. o work in prorcss, enquanto pro-
duto criativo. estabelece através de seus anaforismas, da criação de novas sintaxes
cênicas. uma nova t!pístcmée consouante C01l1 os paradigmas contemporâneos.:so

A plasmação da encenação, portanto, ocorre a postcriori. a partir da experiência


in loco, das Improvisações dos atores. elas discussões entre todos os participantes,
da retro-altmenração do público. A experimentação e o contínuo cambiamcnto,
supressões e desvios- baseados na dinâmica ele tentativa-e-erro", são os operadores
que construirão o conceito de encenação. l~ C01110. segundo Zular, "se a escritura
buscasse, por meio da produção ele possibilidades e sucessivas escolhas. a forma
que possibilita a autoria, COlHO os seis personagens em busca de UHl autor na peça
de Pirandcllo">.
Nesse sentido, o olhar específico do encenador produzirá, sim. uma leitura ou
recorte do material levantado. A diferença é que ela se constrói simultaneamente
C0111 os outros elementos do espetáculo, sofre contaminações e contraposições a todo

tempo e se modifica ao longo do percurso criativo. O encenador, portanto. precisa


ser capaz de perceber os pontos de referência ou os núcleos vibratórios de sua visão
particular, ao I11eS1l10 tempo em que se mantém permeável às derivas, às híbrida-

~9 COHHN. R, 'Wol"k in pmgn:ss' lICJ Cena Conh:ml'oninL'tl: nillçcio. enct.'mJçtin ~ recepção. São Paulo:
Edicora Perspectiva, 199&, p. 17. Cohen utiliza tanto o termo U'ork in progn:~s - jd conso-
lidado na literatura critica - quanto \\'()rk in processo visando, segundo ele. incorporar "as
noções de progresso temporal e processualidade" (Ibid.. p, XXVIII)
30 Ibid.• p. 45·
3t "Erro", corno bem define Cohen, "enquanto espaço do vivo. do novo. do não previa-
mente conhecido, \...1A inserção do elemento 'erro' corrobora. no universo artístico,
o princípio da incertezajindeterminação de Hcisenbcrg. que rompe (0111 o paradig-
ma do determinismo' (Ibid.. p. 97).
3~ ~UJ.AR. R. (org.], Criuç,io ~rn Processo: ensaios de CJÍL'iCCl genéticcl. p. t 9.
190

çôes, enfim, aos campos de força dos outros colaboradores. evitando cristalizações
prematuras. e duvidando sempre da forma acabada.
A encenação processual. é importante reiterar. não busca a fusão ou a união de
todas as contribuições artísticas. Ao contrário, ela estimula e garante a independên-
cia das partes. justapõe e friccioná diferentes sentidos ou percepções e coloca as múl-
tiplas e divergentes intensidades. em combate. Poderíamos pensar tal processo de
forma assemelhada àquela corn que Dort analisa a representação contemporânea
não-unificada. na qual

I...} os diversos elementos entrariam ern colaboração, e JneSI110 em rivalidade. ao


invés de contribuírem I...) para a edificaçâo ele um sentido comum, Então, o espec-
tador poderia escolher tapar os buracos ou apagar os excessos de tal polifonia que
não conheceria mais urna domínanre. I...)as relações entre os com ponentes da cena
podem mesmo ser pensadas não em termos de união ou de subordinação. O que
ocorre urna comperíção, o que se desenrola diante de nós. espectadores. é urna
é

contradição. A teatralídade. então. não é mais somente esta "espessura de signos"


da qual falava Roland Barthes. Ela é também o deslocamento destes signos. a sua
impossivcl conjunção. o seu confronto sob o olhar do espectador desta representa-
ção COla ncipada."

o processo teatral coletivo não é. necessariamente, um campo pacífico e organi-


zado. Ele é marcado por assirncrrías. irrupcões. transbordamentos prepositivos. con-
flitos e instabilidades. A encenação iu progrcss vive. então. o paradoxo ele querer con-
trolar esse sistema dinâmico c. ao 1l1CSnl0 tempo, de ter pouco ou nenhum controle
sobre ele. Na verdade. trata-se de uma resultante em constante estado de tensão, em
que as cristalizações e dissipações cênicas são forjadas através de contínuas lulas c
negociações. Por ser uma obra "em obras", ela relauvíza a todo tempo a sua confor-
mação, interroga-se constantemente sobre a sua materialidade, resultando uma en-
cerração em contínuo confronto COll1 O seu estatuto de precariedade.
Dentro desse contexto. os ensaios tornam-se COIUO um "meio de cultura" para a
germinação de cenas. Contudo, o encenador n~10 se relaciona C0l11 seus colaborado-
res COIllO se eles fossem meros fornecedores de matéria cênica em estado bruto. A
instância processual cria associações. interpolações. mutações, pclissemias, redes de
conexões nas quais todos se tornam, símulrancamcnre. produtores. receptores e rrans-
formadores de tudo o que emerge em sala de ensaio. O diretor não é. portanto, apenas
um mero organizador material do caos criativo - ele é, antes. um "organizador" da
experiência -, nem também U111 "aproveitador" ou "expropriador' de contribuições ar-
tísticas alheias. O seu texto espetacular é. ele também, urna escritura CIU processo.

33 DOR"!'. n.• l.a Rt"présentation ÉlUcUldpéc. pp. 181-183.


191

Ao colocar em diálogo ou confronto os elementos, os materiais e os sujeitos da


criação. o processo passa a ser o protagonista da cena. Conseqüentemente, a direção
postula ou encontra o seu discurso não na afirmacão isolada de sua individualidade.
mas no embate COll1 o outro. A encenação-em-processo é urna encenação negociada,
ou. se quisermos, é uma encenação de alteridades,
E não é somente ela que se encontra em desenvolvimento: o imperativo processu-
al impregna e mobiliza tudo. Ternos, portanto. UI11a dramaturgia em processo, urna
interpretação em processo, urna iluminação em processo, e assim por diante. No caso
especifico do processo colaborativo, num âmbito mais amplo do que aquele delinea-
do por Cohen, não se trata apenas da estruturação de um "roteiro" ou "storyboard",
Hii o objetivo de se constituir urna dramaturgia textual. Porém, a sua formulação
pode passar longe dos modelos dramátícos convencionais e até mesmo incorporar
procedimentos artísticos os mais diferenciados.
Essa tensão entre "dramaturgia eu) processo" e "encenação em processo" serã, na
verdade, urna das linhas de força centrais no desenvolvimento da obra. Por operarem
concomirantemente e em conjunto. o dramaturgo cria também a encenação. e o cncc-
nador, por sua vez. participa na criação do texto. Os dois pólos se auxiliam, apesar de
ninguém "servir" a ninguém, Cena e texto estão juntos, dialogam, e. de certa forma,
sem perder sua autouomía ou campo, estão marcados e contaminados UI11 pelo outro.
No limite, ambos abdicam do seu caráter processual eU1 si. para adquirirem urna dínâ-
mica processual inter-relacional. Em outras palavras. trata-se de urna "dramaturgia em
processo de encenação" e de uma «encenação em processo de dramaturgizaçâo".
Texto c cena apresentam estrutura relativamente móvel ou, se quisermos, marca-
da por uma estabilidade precária. O conflito entre diferentes proccssualidades criam
ondas de turbulência que afetam. simultaneamente, as precipitações cênicas e textu-
ais. Tais efeitos sísmicos. contudo. ao invés de enfraquecerem as decorrentes forma-
tações e formalizaçôes, trazem-lhes força renovada. Os pólos não se anulam, não se
dissolvem, nem se submetem um ao outro. Em outras palavras, eles não se desestru-
turam, adquirindo, ao contrário. uma estrutura porosa. permeável e flexível. A dire-
ção, por exemplo, não dcsconsrrói ou relê o texto a seu bel prazer. pois já inscreveu

ou inseminou nele a sua própria poética espetacular. Por outro lado. a dramaturgia
ta 111 bé 111 já inoculou 3 sua "texrualidade' ou teatralidade no discurso da encenação.
Tanto é assim que. no processo colaborativo, n50 é pertinente a tentativa de iden-
tificar aquilo que foi inserido ou criado pelo dramaturgo. pelo encenador ou pelos
atores. Corno ocorre urna associação entre o literario e o cênico, em que estrutura
drnmatúrgíca e projeto de encenação estão profundamente imbricados. essa demar-
cação dos territórios de contribuição.. quando não Impossível de ser determinada. soa
ingênua, egóíca e extemporânea.
É importante ressaltar que a encenação-em-processo não se conclui COI11 a estréia
do espetáculo. Ela continua o seu trabalho de transformação da cena até o fim da
192

temporada. Daí a importância do acompanhamento do encenador, ainda que não


diário, no curso das apresentações. É claro que uí~la encenação compreende, por
I11CnOr que seja. um grau de formalização e de fechamento do processo. A diferença
reside na manutenção - ainda que dentro de certos limites - de sua capacidade de
autotransformação. Ela pressupõe - e é capaz de percorrer - um caminho de volta.. da
cristalização cênica à forma-ern-rnovímento. Tal corno na oscilação de estado entre
partícula e onda, a encenação oscila, continuamente, ent re produto e processo. Não
se trata apenas da remernoração e repetição, a cada espetáculo, de palavras ou mar-
caso mas sim, da reinstauraçào da mem ória e elas pulsões elo processo. Não é somente
o texto drarnatúrgíco ou cênico que é revivido a cada (a)presentação, mas também, e
fundamentalmente. o rexto processual.
De qualquer forma. nlérn de identificarmos a escritura da encenação como um
produto necessária e intrinsecamente dependente do processo, encontramo-nos dian-
te. também. de outra resultante: o processo da encenação é apresentado ou revelado
enquanto tal, na própria formulação cênica. Em outras palavras. o resultado estético
da "encenação-em-processo" é a colocação em cena do "processo da encenação", A
linguagem a ser utilizada - ou por meio da qual a cena se expressará - é a linguagem
do percurso. O ínacaburnento deixa de ser condição contextual ou rastro de imper-
feição para se constituir corno materialidade cênica, isto é. texto c cena processuais.
No sentido inverso ela transmutação ficcional do ator em personagem, temos a anti-
metamorfose da "encenação" em "processo'',

6.4 A ENCENAÇÃO NO COLETIVO E O ENCENADOR COLABORAT1VO

C01110 o diretor atua num processo socializado de construção do espetáculo? Con-


forme já analisamos, numa dinâmica coletiva de criação. o encenador não é mais o
epicentro do trabalho, para onde tudo converge. O seu poder autocrático se desesta..
biliza, abrindo espaço para o partilhamento das decisões e para as interferências na
condução do processo. O conceito elo espetáculo. ainda que possa ser por ele sinte-
tizado, é. eIn geral, construído ao longo dos ensaios, a partir de múltiplas contribui-
ções e hibridaçôes.
O enccnador, portanto. recusa o seu proragonisrno ou a sua protagonízação dentro
do processo, assumindo o papel de partícipe de uma coralidade, Ocorre 1.1111«1 mudan-
ça em seu posicionamento. pois ele abdica da atitude autoritária - o que é diferente
de perder a "autoridade" ou abrir 111<io da "autoria" - assumindo. ao invés. o papel
de provocador ou orientador dentro da equipe. O atributo da liderança ocorre. então,
num contexto de participação e negociação. O diretor coordena o processo, mas tal
193

coordenação pressupõe diálogo, crítica e autocrítica, interferência do grupo c, em


alguns casos. até mesmo decisões por meio de votação.
Trata-se de um encontro de artistas e não de discípulos que orbitarn ao redor de
11111 diretor-guru. Aliás, o processo colaborativo. por demandar U1l1a postura criativa e
crítica por parte dos integrantes, tende a recusar a figura do diretor-profeta. do dire-
ror-messiânico. Delegar a alguém a f-unção de conduzir não implica crença cega; pelo
contrdrio, espelha urna confiança construída ao longo de vários meses - ou (lHOS - de
trabalho em COIllUll1. Este "poder" de coordenar - que não é imposto exogenarnente,
luas baseado em cumplicidade duramente conquistada - pode ser colocado em xeque
ou contestado durante os ensaios.
Outro aspecto importante é o fato de o grupo criar a partir de um projeto cênico co-
letivo e não de urna encenação previamente concebida. O "projeto cênico" tem um ,1Ju-
bito maior que o de uma "encenação". pois compreende desde a definição do terna ou
assunto a ser tratado. a escolha da equipe. o consenso em relação a encaminhamentos
merodológicos até as elaborações conceituais, artísticas e éticas da obra. A encenação.
por sua vez. apesar de estreitamente vinculada ao projeto cênico, diz respeito à mate-
rialização concreta do discurso em cena. Valendo-se ela definiçâo de Cohen,

o topos da encenação e o da justaposição e cspacialização (mise rn pIace) de todos


os elementos da operação cênica: atuantes, cenãríos (t.'lt\'Íromnent). textos (tramas
de kitmotiv), imagens, ruídos. partituras são estruturados e passam a vivificar uma
retórica de signagens e signifícações: o discurso da mist! t'1Z srrnc. ~~

Evidcntemcnre que esse discurso cênico vlrá atravessado pelos discursos singula-
rcs de cada UH1 dos criadores. O diretor. então. teria justamente a função de agrupar
tais discursos. ou melhor, de colocá-los ern movimento. lado a lado. conectando as
subjetividades criadoras. 1\ escritura da obra, nesse contexto. se d<Í em regime de co-
criação. pelo confronto concomitante de distintas autorias. Cabe. pois. ao encenador,
estimular a enunciação do discurso por parte de cada um dos integrantes do grupo.
Contudo, o fomento a esse ponto de vista individual, a essa criação particular, não
deve colocar em risco a coesão grupal e o depoimento artístico coletivo. O diretor
precisa equilibrar - ou melhor, manter em tensão contínua - o "singular" e o "coleti-
vo". estimulando e dialogando ao máximo com o que cada criador oferece e, ao Ines-
mo tempo, socializando e colocando enl embate essas contribuições particulares.
A encenação no coletivo. portanto. é urna encenação híbrida. apoiada e1\1 multi-
vocalidades e em pluríperspectivísmos, na qual as hierarquias são precárias ou I11Ó-
veis, e vão se revezando ao longo do processo e na própria resultante da obra. cuja
natureza da construção é complexa. Essa hibridização. segundo Cohen, "resulta da
194

intercessão de significações/cenas formando., um corpo único sem característica de


collClJ;e":J5. Ele sustenta que o lVork iTll)roCeSs

{...I é muito distinto di.) "colagem". que é uma construção de menor potência. Se
na colagem teatral agnlpam·se cenas por associação temática. irnagética e até por
número de personagens. na hibridização busca-se o unívoco nas diferenças. cadeias
de significação de um mesmo enunciado ou digladiaçôes de opostos pertinentes."

o encenador colaborativo, nesse sistema dinâmico. vai inter-relacionando as con-


cornitãncías e os paralelismos das distintas contribuições. fazendo C0I11 que os campos
anisricos específicos. em sua relativa autonomia, interajam entre si. Nesse sentido, é
Importante reiterar que a autonomia da encenação. no processo colaborativo, é acentu-
adarnente relativa. A criação do encenador não deixou de existir e não se resume à mera
organização material da cena. porém, ela só se consolida pela dinâmica dialógíca entre
os campos. É um truísrno afirmar que o diretor necessita do outro - seja ele ator. técnico
ou membro da equipe -para materializar sua concepção cênica. Porém, o que levanta-
1110S aqui é de outra OrdC111. pois não se trata apenas do plano de execução. Será somen-
te por meio da colaboração - concreta. efetiva e horizontal - que a própria concepção
do diretor será forjada. Ela e o gatilho ou a matriz geradora da encenação ern si.
l~ curioso corno a torça motora das colaborações para a existência ela própria en-
cenação j<i aparece na chamada "década dos encertadores" do teatro brasileiro. C01110
bem observou Sílvia Fernandes. a estética de Gerald Thornas. nos anos 80. esteve
profundamente vinculada ü parceria e às contribuições de Daniela Thomas e Beth
Coelho. Contudo. essa relação de co-dependência não era assumida - o diretor ali se
apresentava corno o principal criador - e nem foi levada às últimas conseqüências.
COlHO será feito a partir da década de 90:. 7 •
Po(}críi.1I110S afirmar que o percurso construtivo da encenação no coletivo se dará,
justamente, pela operação dessas múltiplas colaborações. que funcionarão C01110 li-
nhas ele força. vetores. cadeias de leitntotive processuais, capazes de provocar a es-
truturaçâo do conceito e da materialidade da direção. Tais vetores não funcionam
apenas pela via positiva. por exemplo, na afirmação de um determinado impulso ou
rastro. 1l1aS também atuam por via negativa. no descarte e na rejeição de caminhos,
formalizaçôes ou procedimentos. A poética geratíva da encenação se dá nessa zona
de embate. de simultaueidades conflituosas e de territórios díspares.
Um eixo fundamental deste diãlogojcombate se dá entre o encenador e o ator,
no caso. um ator-performcr. COIllO já vimos, o diretor compartilha C0111 os atuantes

:J5 COIJnN, R•• '\-Vork tn J.lro~n.'s$· nu Ccun Conh'1Hpotl1nen: niariio. t'rlct'uuçélo t' r't'cc:pçiiu. p. 44.
36 Ibjd.~ p.az.
37 Observação rcatizada pela referida pesquisadora no contexto do Exame de Qualifica-
ção deste trabalho.
195

a criação elas imagens cênicas. dividindo com eles a autoria do texto espetacular.
Nessa abordagem criativa. portanto, o.ator se posicioná também C0l110 enccnador;
Não no sentido de disputar esta função COIll o diretor que foi oficialmente designa-
do para esse papel. No entanto. é inegável o seu exercício enquanto tal- ainda que
rernporaria ou provisoriamente. O workshop. por exemplo, é o território privilegia-
do deste ator-encenador,
O diretor. por mais que estimule o ator a trazer todo e qualquer tipo de proposição.
sem nada lhe censurar. funciona também COlHO um pólo crítico a lJostCfioli daquilo que
é levantado em sala de ensaio. Ao mesmo tempo em que necessita ser CÚ111pl1ce elo
"despudor" criativo do atuante. cabe-lhe analisar e selecionar o que é trazido nos en-
saios co111 urna reserva de distanciamento. Ele precisa. ainda, por UI11 lado. identificar
as dificuldades ou travas de cada um dos atores em relação à temática do projeto. ,\U-
xiliando-os na dissolução desses bloqueios. e simultaneamente, por outro lado. servir
corno barreira ou "bloqueio" para grande parte do material produzido.
No processo de montagem, essa ação elo diretor sobre os atores. e destes sobre
aquele, criam fricções e dobras. cujas eventuais contradições só vêm a fortalecer a
dinâmica dos ensaios. Ambos os pólos se motivam todo o tempo, não cabendo ao
encenado!" o papel - comumente a ele associado - de estimulador-mor;
Por fim, parafraseando Dort. talvez pudéssemos afirmar que a vocação da encenação.
hoje. não seja a de "figurar UHl texto ou de organizar UHl espetáculo, mas de ser urna
crítica em ato da significação. I...) Tanto quanto construção, a teatralidadc é interroga-
ção do sentido'?", 1\ encenação. portanto, apresentaria tanto um caráter sincstésico e de
instauração de experiência. quanto ele ativação do viés crítico e de autoquestionamento.
Encenar é também, nessa perspectiva. colocar em questão o próprio ato de encenar.
Seria possível ainda, examinar o âmbito ela encenação colaborauva à luz ele ou-
t ro inst rumcnral teórico, no caso, ele algumas referências extra-teatrais oriundas dos
estudos de complexidade e da filosofia. Por exemplo, parecem-nos iluminadoras as
pistas sugeridas por Steven Johnson ao estudar os SiSt CI11élS de auto-organização".
U

__Jªj~(j_ sistemas colocariam em questão a necessidade de UIl1 líder. afirmando a pos-


sibilidade das comunidades se organizarem por si próprias. Os estudos realizados por

Johnson sobre os "fenômenos coletivos emergentes" - criando urna analogia entre
mundo biológico e cultural - levam-no a defini-los COl110

(...) complexos sistemas adaptativos que mosrram comportamento emergente.


Neles. os agentes que rcsidern C1\'\ uma escaía C01l1(>(;a1l1 a produzir comportarncn-
to que reside em UI11a escala acima deles (...[, O movimento das regras de nível
baixo para a sofisticação do nível mais alto é o que chamamos de emergência."

38 u, La Jkl'résl'1llMion Éml1odl JC:e. p, 18....


LJORT.
39 IOHNSON, s. Em<:rgênciu: u dímlmicll de rede ~m fonnigtls. c~n:lJros. cidl1llt:$ I! sojtwcJrt.·s. Rio de
janeiro: Jorge Zahar Editor. 20<J3. p. 14.
196

El11 outras palavras. trata-se de sistemas que dispensam o controle centralizado


e se! auto-organizam de baixo para cima. Um pouco mais adiante, ao definir melhor
tal "sistema complexo". o autor o conceituá de urna forma que em muito remete ao
processo colaborativo:

(...) sistema C0l11 múltiplos agentes interagíndo dinamicamente de diversas formas,


seguindo regras locais e não percebendo qualquer instrução de nível mais alto
I...} mostram a qualidade distintiva I...] de reagirem às necessidades específicas c
mutantes de seu ambiente."

Esses sistemas dinâmicos têm a capacidade de não se fixarem em um único for-


mato, apresentando forte caráter adaptativo. Tal perspectiva parece eCOHr no acentu-
ado traço de expertmenralismo que marca os processos coletivos de criação. No caso
dos sistemas emergentes, johnson vai identificar. entre outros. os princípios da "intc-
ração entre vizinhos" - díãíogo c ações conjuntas realizadas entre pares, localizados
num 111eSnl0 nivel do sistema - e uJt!edback" - autocrítica do sistema. Tais princípios
auxiliam o funcionamento do sistema em sua natureza irregular e descentralizada,
dispensando a necessidade de líderes organizadores.
O elemento do feedback, cabe ressaltar, cumpre um papel fundamental, pois "os
sistemas emergentes não são intrinsecamente bons.. . ·n . í~ importante que o sistema
tenha um meio de se auto-avaliar, pois dependendo de seus componentes e da íorrna
de articulação entre eles. podem apresentar também objetivos altamente destrutivos.
Dai. il necessidade ele um disposit IVO crítico capaz de auto-regulamentar, OU~ no mini-
mo, servir de alerta. para a comunidade.
Outro aspecto encorajado por esse tipo de sistema é o dos encontros aleatórios. As
interações aleatórias dos indivíduos. o caráter arbitrtirio dos encontros na exploração
de U111 determinado território possibilítam a percepção do próprio sistema em ação,
favorecendo a capacidade de adaptação dos integrantes de um coletivo. e abrindo-os ao
novo e ao acaso.
Esta inteligência coletiva do sistema faz COIn que o mesmo encontre regras 10-
cai-sn-de funcionamento, isto é. dispositivos de ação que agem de forma coorde-
nada, os quais independem de qualquer gerenciamento central. A adaptabilidade
vai surgir justamente deste conhecimento em nível local. Está aí. justamente na

40 JOJlNSON. 5.• l:1JtL'rgblciu: ti (lim1micn cle rede em fonui.l;,Cls. (ó·c:l1ros. cideulcs r: softw"rc:s. p, 15·
.11 Ibid.• p, tOt •
•J2 Segundo johnson. "locul é o termo ideal para compreendermos o poder da lógica do
enxame. Vl~l\10S comportamentos emergentes em sistemas como os de colônias de for-
migas. onde os agentes indívlduals do sistema prestam atenção a seus vizinhos mais
próximos em vez de ficarem esperando por ordens superiores. Eles pensam localmen-
te c! agem localmente. mas sua ação coletiva produz comportamento global" lln: Ibid.•
I>. 5~. grifo do autor).
197

capacidade ele construção coletiva de regras C0111UnS ele ação. .'fa potência e a sobre-
vivência dos sistemas emergentes,
A princípio. a presença do diretor teatral parece não fazer qualquer sentido em
sistemas descentralizados - ou policêntricos ~ e que dispensam a interferência de urna
autoridade central - C01110 aqueles estudados por Johnson. Contudo, o encenador,
COlHO urna das linhas de força nessa rede dinâmica, poderia garantir a interconexão
elos elementos. a ação dos dispositivos criados coletivamente. a manutenção de um
permanente jeedback e, ainda, fomentar o caráter de experímentalisrno e de produção
ele novas experiências. Os processos de escritura cênica. em âmbito coletivo. podem,
portanto, se aproximar dos parâmetros de sistemas não-lineares. especialmente da-
qucles baseados na auto-organização, sem excluírem, com isso. a figura do diretor.
A filosofia pós-estruturalista de Deleuze e Cuattari - pensadores estes que produ-
ziram, sintomaticamente, eles também, urna obra eru estreita colaboração - também
nos fornece pistas fecundas para refletirmos a atuação do encenado!" colaborativo.
Em urna de suas obras mais importantes, eles afirmam:

Não chegar ao ponto eru que não se {\11. mais EU. luas ao ponto em que já não tem
qualquer importâncía dizer ou não dizer EU. Não SOlllOS mais nós mesmos. Cada
um reconhecerá os seus. Pomos ajudados. aspirados, multiplicados."

Os conceitos ele muHipHdclades r~não supõem nenhuma unidade, 'não entram em


nenhuma totalidade e tampouco remetem a Ul11 sujeito" +'), de heccddadcs C'individu-
ações sem sujeito" oiS), de lizomCl [formado por "princípios de conexão e heterogenei-
dade" oH,) c. de agendamento. entre outros, se mostraram inspiradores para a reflexão
que ora empreendemos.
Renato Cohcn também já apontava a potência do pcnsamenro deleuziano para o
diálogo com os procedimentos do \vork in progrcss e de organizações não-hierárquicas:

Conceitos COI110 os de "territórios". "agenciamento". "devir", "singularidade",


"máquina", "fluxos", ..rizoma.. . - todos eles dentro da granl.itica dcleuzo-guarrariana
e que têm ern COJl1Un1 a noção de dinâmica. processo, reocupação de espaço físico,
imaginário. mental - dão contingência e abrangência teórica aos novos modelos c.
parricularmente. ao modo de operar do work in processo Explicitam, também outros
modos narrativos que operam redes. fluxos pulsionais e seqüências não-causais."

43 nt:J.EuZE, c.: GUXJT..\ RI. F. Mill)latô~: C(tpitalisuto e EsquizoJr,;n\cl. São Paulo: Eüitora 34. 1995.
voI. p_ J 1 (grifo dos autores),
1.
44 Ibid.. p. 8.
45 lbíd., p. 8.
•16 lbid., p. 15·
4? COHEN. \1•• '\iVork in progn:s$' nu CenaCmHcmpnnlnea: c11oçao. t·uccntlçüo e rt·J(l."PÇ(lO, p. ::J.
198

Entre todos esses conceitos, nos deteremos. em especial. na noção de ngen-


cialnento, Ela pressupõe, de modo geral. dois eixos: o primeiro, ligado ao con-
teúdo e à expressão, e o segundo. ao território e à desterritorializnção. Ambos
parecem ressoar a discussão sobre encenação contemporânea que ora ernpre-
endemos.
Fugindo da velha dicotomia forma-conteúdo - já que "expressão" e "conteúdo" se
referem um ao outro e interferem un1 no outro, sem o primeiro ser uma descrição ou
representação do segundo. isto é. ambos têm urna "forma" e uma "substância" em
si mesmos -. os autores vão colocar. lado a lado, o "agenciamento maquínico" - que
refere-se aos corpos, às ações e às paixões. aspectos estes, conteudístícos. compondo
um "sistema pragrnático" - e o "agenciamento coletivo de enunciação" - concernen-
te aos signos e enunciados, de caráter expressivo, compondo um "sistema serniórico",
Segundo Zourabichvili. podemos falar em agenciamento "todas as vezes em que pu·
dermos identificar e descrever o acoplamento de um conjunto de relações muteriaís
c ele U111 regime de signos correspondentes":"
O eixo conteúdo/expressão parece traduzir urna possibilidade de composição do
território da encenação. corno agenciamento. por um lado. de atuadorcs - que se in-
ter-relacionam, se conectam ou se "maquinam" por meio de ações e de afetos - c. por
outro, de enunciados cênicos coletivos. A territorialidade da encenação se funda. ela
também. nesta sirnulrancídade de conteúdo e expressão.
O segundo eixo do agenciamento, relativo às "linhas de desrerrttoria liznçâo",
subverte ou transborda o agenciamento territorial. arrastando-o a outros agcn-
ciamentos, a tcrr itórios inexplorados e descodificaclos, ao abandono do estabe-
lecido. São as "linhas de fuga" que trazem em si a potência de mutação. c que
abrern o agenciamento para algo que não é ele mesmo, podendo. inclusive, colo-
cá-lo em ameaça.
Este eixo. por sua vez, parece reverberar o impulso da encenação colaborativa. de
abandonar o caráter ccntralizador e unirãrio, migrando para regiões Iirnitrofes. po-
Iícêntricas e de convívio de heterogeneidades. Ao abrir mão do controle uniticador,
ao exorcizar o centro de poder. a encenação se desterritorializa, O cncenador, então.

não passaria mais a materializar aquele coletivo, a representar aquele "um" que es-
maga a multiplicídade constitutiva do conjunto".
Um aspecto importante do conceito de agenciamento e a sua não-redução à opo-
síção entre individual e coletivo. O agenciamento propõe. ao contrário. outros 1110-
dos ou sentidos do coletivo. Isto porque. para Deleuze e Cuattari, 110 enunciado é
sempre coletivo, mesmo quando parece emitido por urna singularidade solitária \...\

48 ZOUR:\UICJlVJU. F, O \'c)caZmlârio ele: D(?kuzc. Rio de Janeiro: Relume Dumará. ~OO:f. p, :W •


.~9 As llU\~S e encontros com Petcr l'ill Pelbart embasaram várias das considerações aqui
levantadas,
199

o enunciado jamais remete a llJTI sujeito":". Daí porque o agenciamento compõe um


.,
território coletivo ou faz funcioná-lo.
O problema que se coloca, no âmbito específico da encenação, é C01110 pensar esse
coletivo ou multiplicidade C0l11 um mínimo ele jogo - o que pressupõe regras -. de
coesão, 0\.1. para usar o termo deleuziano, ele UITI "plano de consistência". E111 relação
ao conceito de multiplicidade - fundamental à operação de urna dinâmica colabora-
tiva - Deleuze o designa não corno "urna combinação de múltiplo e de uno, mas, ao
contrário. urna organização própria do múltiplo COn1Q tal. que de 1110do algum tem
necessidade da unidade para formar um sistema ·'51. Ainda de acordo com o autor. é
necessário que os elementos que compõem a multiplicidade "sejam determinados
1-..1por relações recíprocas que não deixem subsistir qualquer independência'?",
Daí o desafio de se instaurar UIll "plano de consistência" sem, contudo. abrir mão do
elemento anárquico Ou não-hierárquico - desafio esse que poderia incorrer no perigo ela
volta do organizador central e superior. Contudo, para as coisas se organizarem não é ne-
cessário um organizador - papel que traz eln si um principio transcendente. No caso do
teatro. a questão seria corno fomentar um processo que crie esse "plano de consistência"
cênico. sem a obrigatoriedade da figura do encenador autocrático. Ou seja, corno fazer
com que o encenador alue corno um agenciador coletivo de enunciação?
Uma saída para tais questionamentos poderia ser a idéia do encenador C01110 UHl
facilitador.. no caso, um facilitado!" de agenciamentos. Ele precisaria. antes de tudo..
trabalhar em prol do agenóanlento coletivo até porque. muitas vezes, é por meio do
diretor que se aglutinam determinadas forças de um determinado \110do. Tal perspec-
tiva não se configura C0l110 contradição. Pois é importante reiterar que 1111l agencia-
mcnto, na sua conexão de múltiplos elementos. 11<10 é algo caótico ou sem organiza-
ção. Ele comporta vários procedimentos ou dispositivos singulares.
O agenciamento produz uma certa individuação - que é singular e coletiva. simul-
taneamente. Lembremo-nos que o "coletivo", para Deleuze e Cuattari. não se opõe ao
"singular", Ele. na verdade" é composto por singularidades em jogo ou. se quisermos,
por um jogo de singularidades. Daí falarmos no binômio - e não na oposição - singu-
lar-coletivo, já que o singular é sempre produzido no coletivo e este último.. é sempre
UI11 coletivo de singularidades. De acordo C0l11 Deleuze, reafirmando o caráter impes-
soal e pré-individual das singularidades nômades e anônimas.

Longe de serem individuais ou pessoais. as slngularldades presidem à gênese dos


indivíduos e das pessoas: elas se repartem em U111 "potencial" que não comporta
por si mesmo nem Ego (Moi) nem Eu Ue) pessoal. mas que os produz a\u,,\i1..~\nd()-

50 OHHUZE. c.: Gut\'rrARI, f. KaJkll; pOl" uma literalunl menor. Rio de janeiro: tmago Editora.
1977. p. 121-
Sl lJf.tEU7.E. C. Difcn:nçtl e R~pctiçtiCJ. 2 ed. rev, e atual. São Paulo: Craal, :wo6. p. ~6(l.
52 Ibid.• p, 261.
200

se. efetuando-se. as figuras desta atualização não se parecendo em nada ao poten-


cial efetuado.'!

Nesse sentido. o encenador poderia funcionar corno um elemento agenciador no


"canteiro de obras". Ele fomentaria ou garantiria que determinado campo de expe-
riência se produzisse. que os fluxos ele desejo não estívessem bloqueados, que UUl
plano ele consistência e de intensidades se estabelecesse. e que a percepção critica
não desaparecesse ao longo do processo. Ainda que ele detivesse o poder em deter-
minados momentos, esse poder seria móvel e rotativo, tanto quanto as hierarquias
flutuantes das quais ele também faz parte.
Não se trata. portanto, de urna encenação à deriva. 111as. sim, de urna encenação
da deriva ou sob deriva. O encenador é convocado corno \.1111 operador de redes dinã-
micas. reterritorializando cenicamente os inúmeros experimentos, ao n1eSI110 tempo
em que se encontra aberto às linhas de fuga do próprio processo. À superfície de uma
estrutura cênica marcada por mutações e inúmeras variáveis, o encenador atuaria
corno um catalisador, corno UI11 "metteur en flux".
A autonomia de sua escritura cênica ocuparia um lugar semelhante àquele des-
crito por Philippe \'Villen1art. quando ele sustenta o deslocamento elo "estudo dos
processos de criação do escritor, sujeito da enunciação. para o srnpror, que ocupa o
verdadeiro lugar ou campo das mudanças, sem ser todavia o agente'?". En1 outras
palavras. mais do que compor cenas, o cncenador colaborarívo trabalharia a cons-
trução da obra-processo - ou do processo-obra - por meio de procedimentos gcrari-
vos. dispositivos c operadores. Aliás, () conceito de "dispositivo", ('01110 um elemento
capaz de engendrar situações. seria mais apropriado. a nosso ver. para se pensar as
matrizes cênicas atuais. A estrutura cênica dele resultante seria reticular ou, então,
permitiria operar com redes ou COIll campos de forca,
Se no século XIX houve o surgimento da nusc-en-scéne COlHO uma arte autônoma, e o
século xx presenciou a sua incontestável consolidação, que caminhos se apontam para
o diretor nesse nascente século xxi? Não estaríamos hoje. frente à retomada de uiu tea-
tro grupal e coletivizado, diante de U1l1é1 mudança "territorial" em relação à direção?
• O século XXI, ao consolidar o uso da tecnologia digital e das redes virtuais de
cooperação, não traria ern seu bojo urna "auarqui-encenação", liberta dos conceitos
de autoridade e unidade? Será que a força ela nuse-cu-scéne. contemporaneamcnte Ia-
laudo. não residiria na sua capacidade de potencialízar os agentes nela conectados?
Talvez UI11 "novo" diretor surja quando ele "liberta-se do seu ego. liberta-se de seu
nome, liberta-se da pretensão inócua ele entrar para a história e, então, ao se desrer-
ritorializar pode participar de um plano mais complexo, onde o sentido construído

53 nf.\.~\l1.1;. c. L~~\'tl tio Sentido.• 1 ed. São Paulo: Editora Perspectiva. 2006. p. 105.
54 ZUL/\H. R. (org.], Cti(l~·(io em Processo: c:'llSClios tk Clít"iC(l gt:ne:tifU. p, 8] (gritl"J do ..L Uto r).
201

pelo autor é substituído pelas estratégias ele múltiplos sentidos em co-autoria COIll
seus integrantes", num entrelaçamento de "multiplicidades heterogêneas nU111 jogo
ele livres conexões'""
Se ainda é prematuro realizar tal afirmação. especialmente ao nos defrontarmos
com o complexo e diversificado fenômeno da encenação contemporânea. talvez
seja pertinente. ao menos, pensá-la no âmbito restrito das experiências dos coleti-
vos teatrais atuais.

55 IJJ\Rki:TO. n.: I'F.HJSSINOT1'(). Jl..." CUltUI&l da lmanõncía", in catálogo du C:X17o::içdo FItE ]002.
São Paulo, Paço das Artes, Imprensa Oficial do Estado, pp. 1.t-23.
202

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
·l

PrOCllr~1I110S. ao longo cio trabalho. descrever e analisar algumas experiências de


atuação do diretor teatral quando colocado CIn situação de compartilhamento da
criação. Partimos, inicialmente, de exemplos do final do século XIX e inicio do século
xx por ser a época do estabelecimento ela encenação enquanto arte autônoma. Nesse
período. identificamos três matrizes fundamentais com as quais esse diretor-colabo-
rador vejo dialogar: a matriz tolsroiana, a simbolista e a do agirprop. A partir desses
exemplos, percorremos a idéia da ..fraternidade de artistas" do simbolismo russo, a
utopia da "comunidade de trabalho" do Primeiro Estúdio do Teatro de Arte de Mos-
cou, o projeto revolucionário da "comuna teatral auto-ativa" do agit-prop soviético e.
ainda, os experimentos criativos coletivistas do Estúdio do Teatro Píscator,
Em tais experiências. o papel do encenador autocrático foi, de certa forma, re-
dimensionado. Em primeiro lugar. ele p<lSSOl1 a ser visto COBIO um colaborador em
situação de igualdade com os outros artistas. perdendo o seu estatuto ele superiori-
dade. Depois. ele partilhou a escrita cênica C0l11 outros cncenadores. por meio de
experimentos de dircçüo coletiva. nos quais um grupo de diretores coordenava, con-
juntamente. o processo da montagem - ainda que se revezassem, iudividualmente,
na condução di.iria dos ensaios. Além disso. foi estimulada a sua parceria concre-
ta C0l11 atores e escritores no desenvolvimento do texto dramatúrgico. criado por
meio de improvisações. Ou seja. o diretor tornava-se. nesse caso, um fomcntador e
co-partícipe da criação drarnatúrgica.
Além disso, o projeto utópico coletivista o impulsionou a encenar as suas peças
ao ar livre, em espaços públicos e dentro de rugares não-convencionais. trabalhan-
do com atores e não-atores - no sentido profissional do termo - na busca da comu-
nhão (0111 a comunidade ou da agregação política. " Importância da dimensão pe-
dagógica do encenador e da instância processual da obra também ganharam relevo
nesse Iirniar - e primeiras décadas - do século xx.
Aspectos que anteriormente estavam associados à sua função. passam a ser com-
partilhados pelos outros integrantes do coletivo. tais C01110 a escolha elo texto, o es-
tabelecirnento do conceito ou plano ele encenação e a distribuição elos papéis. Alkis..
o seu papel será o de conjugar as contribuições artísticas de todos os colaboradores
no resultado cênico final.
É claro que ~l figura c a ação desse encenador democrático coexistirão com aque-
1<1 dos grandes encenadorcs autocráticos - ás vezes, até nleS1TIO. conjugando essas
duas instâncias UU1l1 nlCSlUO artista, a depender do momento ou do contexto ern
203

que ele atuasse. corno foi o caso de Evrêinov, Vakhtãngov ou Piscator. Além disso.
o desejo de configuração elo eflsclnble - objetivo perseguido pelo menos desde Mei-
ningen - também perpassara ambos os modelos, quer sejam compartilhados ou
hierarquizados.
COIl10 nosso intuito não foi realizar um mapeamento de cunho historiogrrifico,
defrontamo-nos, algumas décadas depois. nos anos 1960 e 1970. com outra expe..
riência utópico-comunitãria exemplar: a criação coletiva. 1:,1 modo de construção
teatral trará dificuldades no estudo e na avaliação do papel do diretor, em razão do
fato de terem existido diferentes formas de criação coletiva nesse período. tanto
no Brasil quanto no exterior e. conseqüentemente. distintas maneiras de atuação
do encenador dentro delas. O 1110do de funcíonamenro criativo em grupos C0l110
Théâtre du Solcil, Livíng Theatre. La Candelaria ou Pod Minoga espelham bem tal
diversidade.
Contudo, de certa forma a criação coletiva retomará as matrizes rolsto iauas,
simbolistas e de agitprop do início do século xx, acirrando-as ou mesclando-as de
acordo COll1 o projeto artístico e ideológico dos grupos. Por exemplo, o viés COll1U-
nirririo. de retorno à natureza e a urna vida I11enOS artificial - de inspiração tols-
toíana - se associarã ao elemento do "viver em comunidade", do vcgetarianisrno,
do culto ao natural. da ruptura elas amarras elo corpo e da sexualidade. presentes
em vários grupos teatrais de rendência telúrico-estética. Neles. buscava-se a reto-
mada da expressão do corpo. da interpretação mais "natural", do desnudamento
- metafórico e concreto - dos atuantes. remetendo à não-interpretação ou ao im-
brícamento arte-vida da performance. t~ interessante notar C01110 esses traços de
i nspi ração tolstoiana retornam COlll o movimento conrracultural caructcrfst ico da
época. 11111ito bem representado por coletivos teatrais t01110 o Living Theatre ou
o gru 1'0 TUCA.
A matriz simbolista c seu forte componente estético, de pesquisa de linguagem
e de reunião das artes. reaparecerão nos coletivos teatrais caracterizados pela pri-
mazia da plasticidade e pela ênfase no aspecto visual- e SU~l decorrente mistura ou
tránsito ele linguagens artísticas. Exemplos dessa tendência são o Pocl Minoga ou

o grupo Sonda. Não nos esqueçamos ainda que o campo ela polivalência art isrica e
dos vetores sínestésícos, tão caros a uma parcela significativa da criação coletiva,
também foram marca da corrente simbolisra.
Por fim, o caráter político, de conscientização e agitação, eixo da matriz do agit-
prop, encontrará reverberações no engajamento, na contestação social, no discurso
revolucionário e na militância comunista de grupos COIllO o San Francisco Mime
Troupe, o União e Olho Vivo ou o Núcleo Independente.
l~ claro que se trata. aqui. de tendências ou ênfases. e não de categorias rígidas
e fechadas. Prova disso é que alguns grupos transitarão ou amalgamarão essas
matrizes, em combinacões diferenciadas. nas suas práticas artísticas. É o caso do
204

próprio Líving - com intensa atuação política e preocupações estéríco-forrnais


avançadas - e também do Théàtre du Soleil, que reúne, no caso, além desses dois
aspectos. aquele de raiz tolstoiana. da vida em comunidade, Alguns outros gru-
pos. ao contrário. vão radicalizar ou acentuar urna - ou duas - dessas tendências.
ern detrlmento de outra. O Asdrúbal, por exemplo, apesar de não se configurar
corno uma "comunidade hippie", traz em si o desejo de falar de sua geração. de
sua "turma". e a formação do grupo advérn desse desejo de fazer teatro "entre
amigos". Porém. em paralelo a isso. é 1.1111 grupo marcado por inquietações for-
mais e pela pesquisa de linguagem, O Teatro Experimental de Cali, por sua vez, c
1l1CSnlO o La Candelaria, apesar de não serem avessos totalmente a algum tipo de
busca forma 1, irão militar por um teatro de conscientização política e social. de
extração piscatoriana e do agítprop.
Quase todos eles, contudo, serão atravessados pelo desejo de rompimento C0111
o espaço cênico tradicional - ou, pelo 1l1enOS, de recusa da rígida separação ator..
espectador -, por forte caráter de contestação - política, artística ou de costumes
- e pela retomada do ator corno um eixo criador na construção da dramaturgia c
do espetáculo.
Além disso, o ataque especlalização - elemento conjuntural da época - recairá
à

sobre todos os setores da criação artística. o que inclui, portanto, a direção. A auto-
ria solitária do dramaturgo e o poder cenrralizaclor do diretor precisariam - no ârn-
bito de um projeto coletivista - ser abolidos. É claro que essa abolição das funções
encontra-se associada, também, ao desejo de supressão das fronteiras que separam
os diferentes campos artísticos.
Dai que exercer a função ele diretor de forma individualizada passa a se constí-
tuir em problema. i\ fim de resolvê-lo. oscila-se entre tentativas de climinaçâo desse
papel. seja por meio da direção coletiva. realizada por lodo o grupo conjunturuenrc.
ou por uma "comissão" de direção, seja pela aceitação de sua permanência, desde
que sub judice.
A direção. portanto, vive sob a égide de UH1 "mal-estar" de função. O papel do
diretor - e o atributo de sua autoria - não é assumido. isto é. lida-se ("0111 ele de

forma problernãtíca, Contudo, não raramente esse discurso de su pressão da função
diretiva esconde traços manipuladores por parte de lideranças dentro do grupo.
C0t110 dissemos. a dificuldade para analisar a atuação do encenado!" na criação
coletiva é decorrente dessas contradições. Houve companhías que aboliram o diretor
ou que o colocaram sob suspeita ou "em quarentena" - COIl10 foi o caso de alguns
trabalhos do Líving Theatre ou do Open Thearer; Houve outras, ao contrario, em que
LI coletivização das funções limitou-se à dramaturgia ou às demais áreas de criação.

mas que mantiveram a figura de um coordenador - ou mesmo de Uf11 encenador, Foi


o que ocorreu, por exemplo, com Santiago Garcia, em 1-<' Candelaria. Outros grupos,
ainda, experimentaram mecânicas diferentes de criação, ao longo de suas trajetórias,
205

ou foram se encaminhando de Ull1 modo "sem diretor" para outro, que compreendia
a sua presença. - em certa medida. o TEC exernplifica tal percurso.
De qualquer forma. independentemente dos modelos. o elemento da improvisa-
ção foi a principal ferramenta do diretor - nos casos, é claro, em que se manteve essa
função -. tanto na construção dos textos coletivos quanto na escritura cênica grupal.
Ainda que possamos identificar experíências que partiram de dramaturgia pré-
via. a base da criação coletiva - C01110 também do processo colaborativo - se susten-
ta na construção e escritura de novos textos - mesmo que sem palavras, baseando-
se apenas em gestos ou "expressão corporal". Na prática. porém. não era incomum
nesses grupos haver alguém - às vezes. o próprio diretor - que recolhia todo o
material das improvisaçôes e o alinhavava ou ordenava. Foi assim com [ulian Beck..
Ariane Mnouchkhine. Santiago Carcía. Hamilton Vaz Pereira e Mário Piaccut ini,
entre outros.
Nos anos 1990. já sob \.11n contexto em que a especialização não é vista mais
C0l110 vilã ou COlHO entrave à criação grupal, haverá a retornada de um projeto tea-
tral coletivista que mantém a figura do encenado]'. Trata-se, <:01110 vimos, do proces-
so colaborativo, fundado no diálogo entre funções previamente estabelecidas. Tal
prática delineou os rumos, os processos e a linguagem de alguns grupos brasileiros.
entre os quais. o Teatro da Vertigem.
O diretor, nesse modo de criação, não se encontra no epicentro ela cena nem é
um corpo estranho a ela. Por um lado. ele é um dos responsáveis - COll1 os outrõs
integrantes - pela efetivação da experiência coletiva c pela garantia elo cornpartt-
Ihamento da criação e, por outro. ele se constitui em voz autoral autônoma, em
diálogo com out ras vozes, igualmente autônomas. A sua função esra objet ivada e é
Iegttimada pelo grupo. desde o inicio elo trabalho.
Nem I11eSnlO a preponderância dessa função em algum 1110111cn todo processo é
vista corno "problema", na medida em que houve etapas no trabalho nas quais outros
criadores assumiram papel de destaque. Essa rotatividade de dorninãncias desarma a
lógica do autoritarismo, garantindo o P~lC{O de horizontalidade das funções.
1\ preexistência de UH1 projeto grupal ou COlllUI11 permite. também, que as au-
torias individuais pOSSa1l1 se constituir. sem colocar em risco a prática e o depoí-
mento coletivo. Na verdade, pelo contrário. o conjunto de criações individuais vai
conformando e embasando essa criação grupal, l~ na tensão permanente entre
esses dois pólos que a criação do encenador ocorrera. Ele nem impõe, cxogena-
mente, a sua concepção. nem se reduz a IBero organizador do marerlal produzido
pelo grupo. A sua autoria não é urn dado a priori, mas se materializa nesse espaço
dialógíco e de mútuas interferências. Trata-se de urna autoria que nasce contami-
nada e que coabita COIU outras autorias. A criação dela resultante tem, portanto.
urna au tonomia re lativa.
Procuramos mostrar, "de dentro", corno essa dinâmica eles-hierarquizada e in-
206

tcrdependente ocorre na prática de UH1 processo teatral. No caso, na nl0nt1.\~en1


de [rês espetáculos do Teatro da Vertigem. Ao fazermos, hoje. um balanço dessas
experiências - algumas delas j~i bern distanciadas no tempo - podemos identificar
alguns elementos reincidentes. que dão sustentação aos procedimentos criativos
do grupo. Primeiramente, a idéia de pesquisa e experimentação, motor tanto da
concepção dos projetos quanto das atividades desenvolvidas ern sala ele ensaio. Tal
pesquisa está associada a um processo de descoberta e aprendizado, entendendo
a criação como urna forma de conhecimento - de si próprio e do Inundo. Essa in-
vestigação ocorre em várias instâncias: teórica, temática, de campo, interpretativa.
espacial. estética. entre outras.
Depois. pode-se apontar a criação compartüuada, No processo de ensaio. a co--
laboração instaura U111 campo de forças. que atuam urnas sobre as outras. gerando
um material cênico híbrido e contaminado. Se tais interações. por U111 lado. $(10
marcadas pelo paradoxo e pela crise. por outro. geram urna potência de criação
advinda. justamente. da vertigem da experiência. O processo colaborativo é. sobre-
tudo. um acontecimento: o acontecimento da partilha.
O princípio do .~ por que não?", da discordância em relação a modelos tradicio-
nais rígidos - o que é diferente de recusar a tradição -. do desvio das regras. do jogo
CaIU as variantes. de revelação das coisas fora de seu contexto habitual. da busca de
urna criação inimiga da rotina e da burocracia. são outros aspectos desses preces-
50S. Aliás, existe urna tentativa do grupo de se reinvcnrar, de se transformar a cada -

novo trabalho. de incorporar a mudança corno UHl procedimento de criação.


t\ perspectiva ela intcrtextualidade e ela incorporação ü obra do inesperado $(10
também elementos presentes nos percursos de construcão, Muitas vezes. o irnpre-
visto é acolhido e trausforma-se C"111 regra ou em dispositivo da poética do grupo.
Por exemplo. no que diz respeito ,~l encenaçâo. ocorre uma dinâmica em que "con-
cepção" c "realização" se dão concomitantemente. levando a um jogo exploratório
sem um rígido plano pré-concebido.
A dramaturgia, por sua vez. não é mero ponto de part ida ou condição sobre a
qual o grupo cria a sua obra. Pelo contrário, ela nasce no bojo e no calor do proces-
so. Daí o fato da forma assumida pelo texto estar intrinsecamente conectada ao fa-
zer concreto da sala de trabalho e ao depoimento pessoal dos artistas participantes.
Esta dinâmica de múltiplas interferências. de árduas e exasperantes negociações.
provoca a necessidade de processos longos de ensaio, nunca - até agora - inferiores
a um ano de duração.
Apesar das entradas e saídas de membros da equipe. inerentes a qualquer proje-
to coletivo. a criação se estrutura sobre urna prática de trabalho continuado, o que
provoca o amadurecimento das relações grupais, e a construção de parcerias artísti-
cas de longa data. I~ claro que, diante de tal contexto, o risco da acomodação existe,
Contudo. ele é minimizado pela entrada de novos colaboradores a cada projeto. pc-
207

Ias críticas e fredback ao longo elo processo, e pelas intensas e dolorosas avaliações
.\
- os fóruns - realizadas entre UU1 espetácuío e outro.
A experiência cio Vertigem não apresenta apenas U1TI âmbito artístico e preces-
sual, 111<1S inclui urna dimensão pedagógica. Ela se estrutura como formação interna
dos próprios integrantes, e se abre. também, ao diálogo com artistas iniciantes.
estagiãríos. membros da comunidade ou simples interessados. Ela é responsável
tanto por uma formação no grupo quanto pela forrnaçâo do grupo. Aliás, cabe recor-
dar que o Vertigem foi criado corno UI11 grupo de estudos e, portanto. na raiz de sua
origem, encontramos tal matriz pedagógica.
Outro aspecto fundamental, claramente associado à imagem do grupo, refere-se à
apropriação de espaços públicos. Tais espaços. não destinados funcional e institucío-
nalmente à atividade teatral. travam UHl diálogo com 05 ternas e as questões propos-
tos pelos espetáculos. Suas diferentes arquiteturas funcionam corno um texto a ser
decifrado e reconstruído - ou reescrito - pela intervenção artística da companhia.
Busca-se a instauração de U111a cena imersiva. que aguça os sentidos, a emoção
e a razão dos espectadores. gerando não apenas utn exercício de observação - dis-
tancíado e mental - ruas, sobretudo, um campo de experiência. A sinestesia dos
espetáculos dialoga C0l11 a própria sinestesía do tecido urbano que lhes deu origem.
Paralelamente à ressignificação elo espaço para o espectador. ele é induzido a urna
perda de referências, de marcos de localização. sendo lançado numa situação la-
biríntica. Na verdade. tal desreferenciatização perceptiva não é apenas geográfica,
I11aS também temporal.

Essa cena processional e em estações faz C0I11 que o corpo do espectador seja
investido e comprometido na ação da peça. Ela exige. também. UJ11a relação íntima
e aproximada C0l11 os atores. o que determina um número reduzido de pessoas
na platéia. Tal proximidade e estado-de-presença fazem C0111 que o trabalho oscile,
constantemente. entre o físico mais carnal e o metafísico mais impalpáve! dos te-
mas tratados. Aliás, a temática flagra, também em si. outra oscilação: vai da abstra-
cão do sentimento religioso à concretude da sociedade brasileira atual,
A ocupação e a reativação destes espaços coletivos inauguram, também, rela-
ções inauditas entre o fíccional e o real. Em resumo, uma peça de ficção, ainda que
contaminada por elementos documentais, é colocada num espaço de realidade. O
objetivo, contudo. não é 11111 ernbaralhamento confuso e letárgico entre estas duas
esferas. luas sim a potencialização crítica do diálogo entre elas.
Além disso, a apropriação artística de edifícios institucionais e a ressignificação
de espaços públicos provocam uma interferência concreta na vida da pôlis. É ofere-
cida aos cidadãos a possibilidade de redcscobrirern a sua cidade. de recuperarem
locais esquecidos ou abandonados, de ocuparem lugares e trajetos até então inex-
piorados e. por fim, de reencontrarem a dimensão pública do próprio teatro. Em
São Paulo, os trabalhos do Vertigem delinearam uma linha de força centrífuga na
208

cartografia ela cidade. Partindo do centro histórico (Igreja Santa Ifigênia), o grupo
OCUl)OU um edifício no centro expandido, na região da Av. Paulista (Hospital Um-
berto Prímol; instalou-se, em seguida, no Brás, na Zona Leste (Presídio do Hipódro-
mo), e, por fím, realizou urna intervenção na marginal (Rio Tietê). A percepção dos
limites da cidade. portanto. foi se ampliando a cada novo espetáculo.
Para finalizar. caberia acrescentar que nos processos analisados houve, por um
lado. a busca constante de transformação dos próprios criadores, tanto no âmbito
pessoal quanto artístico, e por outro, a crença na possibilidade de afetar e transfor-
l11a1' o espectador por meio da ação teatral.
A luz das experiências do Vertigem, procuramos mapear os elementos-chave da
pesquisa prática que empreendemos há quinze anos. Nosso objetivo não foi o da
constituição de UI11 "manual de trabalho". até porque a natureza experimental e
cambiante dos processos impede fixações demasiado rígidas. Além disso.. há que se
tornar cuidado com urna super valorização de métodos e sistemas. Por exemplo, o
caráter anárquico de U111 grupo corno o Living Theatre, avesso a formalizações me-
todológícas, não o torna menos modelar e propagador de conhecirnentos do que o
Teatro Experimental de Calí e seu método de criação coletiva.
De qualquer forma. os processos de ensaio do Vertigem nos serviram de base
para refletir sobre o papel do diretor no processo colaborativo, O encenado}'. ali.
n~10 ocupa o lugar de centro gravitacional em torno do qual órbita toda a criação.
1\0 contrário. h;í a convivência e a simultaneidade de vários centros irradiadores. t~
corno se o diretor se deslocasse para o lado ou para as margens, não no sentido de
tornar marginal o seu trabalho. mas sim de investigar as fronteiras e os limites ele
sua função c. ao fazer isso. se destcrritorializar,
Se. por um lado. é prematuro falarmos de um novo paradigma para o trabalho
do enccnador, por outro, é evidente que seu papel tenha sofrido certo dcslocarncn-
to ou reconfiguração. O seu campo ele possibilidades e a sua forma de at uação ga-
nham aspectos particulares. O diretor, aqui, não tem o controle integral do processo
- e nem do espetáculo. Ocorre urna dinâmica de criação que não se encontra mais,
inteiramente. em suas mãos, pois há um transbordamento criativo que ultrapassa.
a própria direção, O diretor não é filais a "cabeça" do grupo, pois o grupo habita o
corpo inteiro do processo-obra, elos membros inferiores ao cérebro. do olho à mão,
dos ouvidos à língua.
Esse encenador colaborativo é. antes ele tudo, um encenador-facilitador, um en-
cenador-carulísador. um encenndor-enzimãtíco. Dai vem a idéia de lançar 11150 do
conceito de agenciamento para refletir esse campo de experiência ou esse territó-
rio paradoxal que é o processo compartühado de criação. Pois. de acordo com esse
conceito. o que está em jogo não são indivíduos ou subjetividades, 111aS sim singu-
Iarídadcs em Iuncíonamento. ou ainda. multiplicidades capazes de abrir mão da
unidade para comporem um sistema. O encenador "agenclador", nesse sentido, não
209

se coloca enquanto um organizador central, mas COlHO um facilitador de agencia-


mentes. um conectar de múltiplos elementos, um provocador de experiências para
que. só então. a partir daí. UHl "plano de consistência" cênico se estabeleça.
O enccnador colaborativo não se restringe a UJ11 encenador de processo colabora-
tivo, mas seu trabalho pressupõe. ern alguma medida, um processo cornparttlhado
de criação. A encenação no coletivo refere-se. portanto. a qualquer sistema teatral
de criação em que a função do diretor esteja presente e assumida. porém operando
num campo múltiplo e coletivizado de criação, Ela é provocadora ele urna polifonia
criativa. Trata-se de uma encenação contaminada e marcada por autonomia rela-
tiva, Nela. não nos encontramos, nem de longe, próximos do "fím da encenação",
mas sírn de uma encenação desterritorializnda.


210

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1 Gfev, 1975.
Enrique; vtl)Al.. Jacqncline. NOl.dS para U111 método de criação coletiva. }kvl~tCl
nUENAvl;.NTUV.A.
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Eduardo Fava Rublo).


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ZOHAR, Ouriel. Un Living TIzeatre collectif inspiré par t'idéclogie <lu kibboutz. 11\éâtr~(sJ
l~ngagé(s). fase, 7. pp. 201-209. 1997.

CATÃLOGO

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2002. São Pa111o~ Paço das Artes. Imprensa Oficial do Estado. p. 14-23. [2002}.
ANEXOS
218

ANEXO A - DIRETIVAS PARA O COLETIVO TEATRAL


DO TEATRO PISCATOR

Apresentamos aqui a tradução de UI11 trecho suprimido da edição brasileira do TeClh-o


Político. de Erwin Piscator, Tal excerto expõe os princípios diretivos do Teatro Piscator,
em U111 projeto elaborado por Erich Mühsam, com a aprovação do próprio Piscator, Pela
írnporrància esclarecedora deste documento - que norteava também as atividades dentro
do próprio Estúdio - julgamos oportuna a sua inclusão:

Diretivas para o coletivo tentrul do Tentro Píscntor


1. O coletivo do Teatro Piscator é um órgão corpm#atívo fundado sobre reiações amigâveis. Ele!
é constituído por amantes cIa arte animados por um espírito revolucionário, Cl ue aSSlunC1H
o duplo engajamento de cuidar àa progrnmaçdo e das realizações do Teatro Píscntor; ulém
de aconselhar constcnrcmenrc a direção e de assumi,. li responsabilidade comum pelo Teatro
Pisco tor,

2. O coletivo decide, com total independência, II sua composiçcio, sem outra preocllpaçc1o que
aquela de ml111tez- o nível ideológico do teatro e u suo eficácia politirn. O lnímero de c(Jlabo-
rndorcs do coletivo ndo é limit'ado. Os colaboradores podem ser recrutados por desiguclÇclo
da asst~mbléía. no caso clt' ser neccssâ ria UIna ~o](!bo,.açc1o espcciiica ,e ocasional. COlHO re.~ra
gernl. só se lJode pôr Ji nz a uma colabofaçüo soh II lwsc de um acordo aUligâvel) tendo como
resultado uma deôarllçüo comum e pública das partes envolvidas. Esta clcclanlçdo ndo (!pn:~
senturd jnmuis uni cnrriter dif(llnut6rio. As exclusões decididos (OH! rll a \'ontlulc do colabora-
dor exdnído só podem ser promulgadas por meio ele uma reunido do colc!U\'O COll\'ocada para
esse fitn, li qual devem cstnr presentes pelo menos dez membros do coletivo, sendo que uma
mai01ill mínima de 70% é necessária.

3. O coletivo reparte todos os trabalhos (elclboraçlio e escolha definitiva do repertório,


organização do Estúdio, redaçcio do lJrogrn ma, etc.), após uma análise das comperéncícs,
segundo entendimento entre seus membros c as comissões fonn<ldas, em nniruo acordo; ern
certos casos, o coletivo se reserva o direito de tomar umn decísdo em conjunl.o. O u·abaJho ao
coletivo não é remunerado nem fixado previametH'c por escrito, segundo normas anteriores à
]J"ópria experiência prática.

4. Toda atividade do coletivo e de seus comitês é fundada sobre os princípios!ullclnmenl'clis do


livre consentímenrc, da igualdade de direitos e da responsabilidade individual em consonlÍncia
com II responsabilidade coletiva. Será deixado P01- ronto da iniciativa pessoal de cada ,nemuro
do coletivo a [atia ele liberdade necessária ao cumprimento pmzercso do trabalho, devendo
219

esre ser conciliâvt!l com o conceito de uma coletividade fundada sobre a camaradagem e sobre
uma ideologia comum cspccíJica. O Ileso do trabalho repousa fundamclltalmerll.e sobre os
ombros elos membros da comissão. O coletivo se retine ao menos uma vez por mtJs para OUVÜ-
e discutir o relatório de trubnlho das diferentes seções c, outro vez ainda, para ser infonllada
pela direçdo do '[eatro Pismror sobre as atividculcs e os projetos do teatro. J

1 PtSCATOR. E. l.e TIléâtr~ Po1ili'luC. Paris: L'Arche Éditeur, 1972. pp.l:37·138.


220

ANEXO B - FiCHAS TÉCNICAS RESUMIDAS DOS ESPETÃCULOS

o LIVRO DE JÓ

CR IAÇ:\O Teatro da Vertigem

DRAMI\TUItGIA Luís Alberto de Abreu AMBIENTAÇJ\O CENOG(V\FICA Marcos Pedroso

A"TORES Daniella Nefussi {Mulher de jó, l:IGUll1NOS E VJSAGISMO Fábio Namalarne


1995}
[oeIson Medeiros (Sofar, 1997) COM)'OSIÇÃO E DIRI:ÇÃO MUSICAL
Lismara Oliveira (Coro. 1995-6) Laércio Resende
Lucíana Schwinden (Mulher ele Já. 1998)
Marcos Lobo (Sofar, 1996) COORDENAÇ/\O TeÓRICA Ivan Marques
Mariana Lima (Mulher de jó, 1995-7)
Matheus Nachtergacle (ló, 1995-7) :\SSISl'ENTI~ DI: DIlU:ç;io Marcos Lobo
Miriam Rinaldi (Elifaz, Coro)
Roberto Audio UÓ. 199B} PROJETO ACÚSTICO Kako Guirado
Sergio Siviero (Mestre. Eliú)
Siornara Schrõder (501:11". 1995-6) Pll,.OD~JÇÃO I=.XECUTiVA

Suja Legaspe (Coro. 1996) Anna Leonor Silva Costa


Vanderlei Bernardino (Contramestre. Marcos Moraes
Balclad) Noêrnia Duarte

MÚSICOS Alexandre Caldino (voz) DIREÇ/\O DE PI~ODUçAo Marcos Moraes


Camíla Lordy Costa (teclado. voz)
Flávia Campos (voz) CONCEPÇÃO E DiRI~ÇÃO GERAI.
Giovanna Sanches (voz) Antônio Araújo
José Eduardo Areias (voz)
Míriam Cápua (percussão. voz)
Rita Carvalho (voz)
Roseli Câmara (percussão. voz)

n.UMlNAÇ1\.O Guilherme Bonfanti


221

APOCALIPSE 1/71

C}tIAÇJ\O Teatro da Vertigem

DRAMt\7URGI:\ Fernando Bonassi DI~SHNIIO DE I.UZ Guilherme Bonfantí

ATORES joelson Medeiros (Anjo Poderoso) CENOGRAFIl\ Marcos Pedroso


Luciana Schwinden (Talidomida do
Brasil. Homem Machucado) J:IGURINOS Fábio Narnatame
luis Miranda (Carteiro. Policial
Fundamenralista. Benedito. Pastor DIREÇÃO MUSICAL E TRII.HA SONORA
Alemão. Palhacinho 1) Laércio Resende
Mariana Lima (Babilônia)
Miriam Rinaldi (Noiva, Palhacinho 2) })(v\M,\TURGISMO Lucienne Guedes
Roberto Audio (Senhor Morro c Besta)
Sergio Siviero [juiz] I\SSESTÊNCIA DE DIRl;Ç:\O Marcos Bulhões
Vanderlei Bernardino (joão]
OIREÇi\o nE C{~NA l~ I\DMINlsrRJ\Çt\O
Pt\RTICII'AÇ,\O ESPECJAI. Aline Arantes Eliana Monteiro
{Criança)
Amanda Viana e Wagner Viana (Banira e PROJETO ACÜSTICO Kako Cuirado (Usina
Arít ana - casal de sexo explícito) Sonora)
Kleber Vallim (Policial Fundamentalista,
Coelho. Chacrinha, Co-Co Boy, Pai) I'RODUÇ/\O EXECUTIVA Adriana Oddi
Silvania Barbosa
EI.1:NCO CONVIDADO
(Policiais Fundamentalístas, Adoradores) DIREÇÃO DE PRODUÇÃO Fernanda Signorini
Alexandre Russin
Eduardo Avelino CONCEI)çAo E DIREÇÃO GERAL
Marçal Costa Antônio Araújo
Pedro Vieira
Tales Vinicius
222

BR-3

CRIAÇ)\O Teatro da Vertigem

DRJ\MATURGIA Bernardo Carvalho DESENHO DI: LUZ Cuilherme Bonfanti

ATORES Cãcia Goulart (Evangelista e Rainha DIREÇJ\O DE ARTE Márcio Medina


lv~ariana)

Daniela Carrnona (Hclienay. Fiel da HGURlNOS Marina Reis


Tia Selma c Mulher do Senador e
Seringueiro) CRIAÇÃO. DIREÇÃO MUSICAL E DESENHO DE SOM
Luciana Schwindcn (Zulema Muricy. Tia Marcus Siqueira
Selma e Mulher de Jonas e Seringueira) Thiago Cury
Roberto Audio (jonas)
Sergio Siviero (Dono dos Cães) COORDm~Açi\oTEÓRICt\ E DRAM~\TURGISMO

Sílvia Fernandes
ATORES CONVI DADOS Bruna Lessa (Patrícia. Ivan Delmanro
Pernas c Fiel da Tia Selma)
Bruno Batista (Edmílson. Pernas. Crente ASSISTi~NCIJ\ DE DIREÇ,\O Eliana Monteiro
da Igreja dos Mortos, Cão e Seringueiro)
Denise de Almeida (Sereia. Pernas. ASSISTBNCJ/\ DE DIREÇ,\O Dll CI:NA

Sombra de Vanda, Seringueiro] Carol Pinzan


Ivan Kraut (Galego. Pernas. Gladiador. Suzana Aragão
Cão. Oséias. Vendedor de poeira.
Seri ngueíro e Senador) DESENHO Df SOM (I·KOJETO ACÚSTICO)
Marília de Santis (lovelina, Vanda, Kako Cuirado
Princesa. Funcionário de Pedro Biló e
Seringueiro) I)RODUÇÃO EXCECUTIVJ\' Carol Di Deus
Rodolfo Henrique [Douglas e Daníela Renzo
Escriturário) Erlon Souza
Sérgio Pardal (Barqueiro. Pedro Biló e Leal) Paula Micchi

MÚSICOS Amilcar Ferraz Farina (laptop e COOROI~Nt\Ç'\O DH j'RODUÇÃO Carla Esrefam


cavaquinho)
Gabriel Levy (acordeon)
Aloísio Cézar (acordeon)
CONCEPÇÃO E DIREÇÃO GERAI#

Antônio Araújo

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