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A ENCENAÇÃO NO COLETIVO:
DESTERRITORIALIZAÇÕES DA FUNÇÃO DO DIRETOR
NO PROCESSO COLABORATIVO
São Paulo
2008 .
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Escola de Cornunicacôes e Artes da Universidade de São Paulo
---J
Silva, Antonio Carlos de Araújo. 1
A encenação no coletivo: desterritorfalízacôes da f unção
iI
cio diretor no processo colaborauvo/ Antônio Araújo
550 Paulo: A. C. A. Silva, 2008. I
222 f.
511.\',\. A. C~ A.
A encenação no coletivo: desterrítoríalizações da função do diretor
no processo colaboratívo. 2008_ 222 f Tese (Doutorado) - Escola de Comunicações e
Artes. Universidade de São Paulo. São Paulo. 2008.
A tese investiga o campo de ação e o papel do diretor teatral no âmbito da oiaçt1o C(J-
Ietívu e do processo coleborotivo, modos de criação compartilhada surgidos nas décadas
de 60 e 90. respectivamente. Numa perspectiva coletivizada de construção da obra
cênica. em que a autoria passa a ser cornungada por todos. o encenador deixaria de
ser urna figura Imprescindível, limitando-se ás tradicionais f-unções de organização e
gerenciamento. ou seu papel criativo autônomo estaria sofrendo urna readcquação
ou redefinição? A autonomia da encenação estaria em crise ou o papel do diretor
estaria se destcnitorializando? Visando responder a tais questões o trabalho realiza
um estudo histórico. teórico e metodológico de distintas experiências coletivas de
criação. C01l1 ênfase especial no processo colaborativo e na função do diretor. Além
disso, examina os processos de ensaio de O Livro de Jó; Apocalipse 1,11 e IJR-3. do 'Teatro
da vertigem, a fim de descrever e refletir sobre os seus respectivos procedimentos e
práticas coletivas de criação. Por fim, à luz das discussões teóricas e elas experiências
teatrais aqui tratadas. realiza-se urna análise da função do encenador no processo co-
laborativo. bem corno urna reflexão sobre aspectos ela encenação contemporânea.
This thesis investigates the thearre director's role anel field of action in rwo theatre
movements whose creative processes are shared by all participants, namely the
collective crecnon anel the collaborativc processo which emerged in the 60s and 90s.
respectively. 111 a theatre work that is built coüectively, whose authorship is an act
of communíon in whích everyone participares anel shares, one may wonder whether
the dírector will be no longer needed, his role being restricted to organizing anel
managing the staging, ar that his autonornous creative role in the producríon of
a play is being rearranged 01' redefined. 15 the autonorny of theatre directing and
of thc mise en scêne going through a crisis? Is the role of the director becoming
deterrirorialized? In arder to address these issues, a hístorical, rhcoretica! anel
mcthodological study of different creative experiments involving theatre work that
is created collectively is carried auto with a special ernphasis on the collaborative
process anel thc dírector's role in such processo In addition, the rchearsal processes
in O Livro deJô ('file Hook oJJo1J): ApocaUpse 1,11 (i\pocalY[Jse I,J 1) anel BR<~. rhrec plays by
Teatro da Vertigem. werc analysed, with a view to describing anel reflecting upon its
collective procedures and practices of creation. Finally, in thc light of file thcorctical
issues anel tlieatre experiences discussed in this thesis, an analysis of lhe director's
role in the collaboratíve process is made, as well as a reflection 011 some aspects of
conternporary theatre directing.
1 INTRODUÇÃO 01
ANEXOS ~7
1 INTRODUÇÃO
ção cênica continuam sendo atribuições suas, será que, nesse processo de divisão de
autorias. o encenador não passaria a ter Ulll caráter mais catalisado r, "enzimático" e
provocador de uma polifonia criativa. ao invés do seu conhecido papel unificador?
Tal atitude ou perspectiva por parte cio encenador parece exigir dele a crença na
capacidade que o outro tem ele criar. o conhecimento profundo das características
e habilidades dos seus parceiros de trabalho. bem COll10 das Iimitações e inseguran-
ças que os impedem de desenvolver suas potencialidades criativas. Ao instigar uma
postura <uiva - e não apenas reativa -. ele compromete-se com um processo de cria-
ção que envolve mais riscos e coloca ern xeque a sua própria função cenrralizadora
e de condução.
Em outras palavras. a contaminação ou o compartilhamento das autorias colo-
caria em perigo a autonomia de sua criação. ou. pelo contrário. a redímensíonarta?
COIlIO se estabelece a sua criação diante das inevitáveis polarizações e das vontades
individuais divergentes. presentes ern processos dessa natureza? E. se não podemos
falar na "morte do diretor" ou no "fim da encenação", seria apropriado pensarmos
em Ulll "diretor em crise" ou em urna "encenação fraturada"?
Ou ainda. valendo-se de alguns conceitos deleuzianos. seria apropriado falar em
urna rctenitotializaçdo da encenação? Ou talvez. quiçá, melhor seria investigarmos a
sua destenitorilllizllÇiio? A noção de "território paradoxal" como um território sem pre
por vir e sempre por ser construído. UI11 território pensado por Deleuze não C0l110
"lugar geográfico", mas C01no "zona de experiência", parece vir se delineando COIUO
urna boa tradução para o ]Wbi!clt deste encenaclor-cm-processo.
Tais percepções nos levam ainda a outros questionamentos: nessa dinâmica de
compartilhamento das autorias, o encenador não estaria abdicando do seu conheci-
elo papel ele construtor de urna unidade? A noção ele ensenlble. fundamental na prática
ele encenadores COlHO Meiningen, Antoíne c Stanislavski, não estaria sendo revísitada
por outro ângulo. que não o da unidade harmoniosa do todo. mas pelo viés da ação
criadora do conjunto. do coletivo. do grupo?
E. por fim, se vivemos na época do teatro "perforrnativo" 0\.1 "pós-dramático", não
estaríamos diante de urna encenação, também ela, pcrformacíva? Ou ainda. no limite,
seria possível pensar em termos de urna "anarquí-encenação", liberta dos princípios
tradicionais de autoridade e liderança?
Esta tese pretende, justamente. abordar tais questões, verificando possíveis modi-
ficações na função do encenador a partir da experiência do processo colaborativo. Procu-
ra. nesse sentido. identificar as eventuais readequacões ou redefinições do papel do
diretor numa dinâmica compartilhada de criação. e checar se. ao ampliar seu campo
de possibilidades. tal papel estaria encontrando outras formas de atuação.
É inegável a relação do objeto desta pesquisa C0J11 o 111eU próprio oficio de dire-
tor, Venho trabalhando numa perspectiva coletivizada. desde a criação do Teatro da
Vertigem, en11992. grupo no qual exerço a função de encenador. Daí o interesse em
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funcionamento. Ainda que o eixo orientador encontre-se dentro elo âmbito da teoria
teatral. buscou-se o diálogo C0I11 outros campos ou disciplinas. C01110 a Teoria Literá-
ria, a Matemática ou a Sociologia. Valemo-nos, entre outros. dos trabalhos de análise
combinatória ela Teoria dos Jogos. dos estudos sobre polifonia de Bakhtin e do concei-
to de tllulUdào de Antonio Negri.
Evidentemente. o objetivo não foi se aprofundar nessas outras áreas. mas utilizá-
las COI110 provocadoras e fontes de ressonâncias possíveis C0111 o universo teatral. Ou
seja. a idéia foi convocar tais disciplinas. sempre que pareceu oportuno e iluminador
algU111 eventual entrecruzarnento com o teatro, a fim de criar conexões entre a refle-
xão e o fazer teatral com outros saberes e práticas.
O capítulo seguinte se baseia em um estudo prático de caso. a saber. o processo de
encenação de O Livro de jõ, Apocalipse 1,11 e BR-3, espetáculos esses realizados pelo Te-
atro da Vertigem. O objetivo. além de mapear o percurso de elaboração dessas obras,
foi identificar a ação da direção nas díferenres fases do processo: definição do proje-
to: pesquisa teórica e de campo: realização de workshops e irnprovisações: construção
da dramaturgia: direção de atores; coordenação de estágios e oficinas e. por fim, a
materialização do espetácu lo no espaço escolhido.
No quarto capítulo. procuramos esboçar os dispositivos e procedimentos práticos
do processo colaborativo. à luz da maneira corno ele é realizado 110· Teatro da Verti-
gem. Por ser UI11 modo de criação essencialmente experimental. não pretendemos
consolidá-lo COI110 urna metodologia fechada nem Il1UÍto menos estimular a sua utili-
zação por outros grupos ou coletivos. Trata-se, única e simplesmente, da tentativa de
sistematização ele princípios e praticas mais ou 1l1CnOS recorrentes. na trajetória de
construção dos espetáculos do grupo até agora.
O último capítulo da tese parte de urna discussão sobre a função da direção para
refletir sobre as tendências e I"UlnOS da encenação contemporânea. A partir desse
contexto. busca-se analisar o papel do encenador que atua em coletivos teatrais..
criando de forma compartilhada, Aqui. também. foram realizadas algumas pontes
com diferentes campos elo conhecimento, mais especificamente, com os estudos da
complexidade - teorias de rede. emergência e dissolução de hierarquias- e C0l11 a filo-
sofia pós-estruturalista de Deleuze e Cuattari - principalmente no que se refere aos
conceitos de agendaTllcnto e rnultipliddadc.
É claro que. ao tratar das teorias acima citadas, pretendemos ídennücar <IS possíveis
conexões entre as suas proposições e aquelas inerentes ao campo teatral. Porém, tal
opção não visou substituir ou anular a reflexão que vem sendo realizada por estudiosos
de teatro sobre a cena contemporânea, COlllO é o caso. entre outros. de Sílvia Fernan-
des. Renato Cohen josette Féral, Hans-Thies Lehrnann. Patrice Pavis ou Bernard Dort.
Tais teorizações - teatrais e extra-teatrais - pareceram profícuas para se pensar
a função da encenação na conternporaneidade e. e111 especial. dentro do âmbito de
modos compartilhados de criação. Existe aí também, sem dúvida. um desejo de me
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o teatro, por sua natureza. constitui-se numa prática coletiva, envolvendo artistas
e técnicos na sua criação e execução e, além destes. o público. no momento de sua
recepção - e, também, produção, C01110 no caso dos ensaios abertos. Porém, o termo
"coletivo" aqui diz respeito à quantidade numérica de pessoas envolvidas no fenôme-
no teatral - que pressupõe. no mínimo, Ull1 actante e um espectante - ou â quantida-
de e variedade de funções nele presentes.
Em nosso trabalho. contudo. utilizamos o conceito de "coletivo" associado a um
1110do de fazer, à maneira corno as diferentes funções ou atribuições se articulam rumo
à criação da obra cênica. Nessa perspectiva é que utilizamos a noção de "dinâmicas
coletivas de criação". cujo acento e foco se encontram num processo compartilhado,
coopcrativado e democrático do fazer artístico. Ou seja. não há UHl criador cpicõrurico
para onde l udo convirja, mas um conjunto de criadores que vão definindo. coletiva-
mente. os rumos, os conceitos, as práticas e as materializações de sua obra/processo.
Caberia a pergunta. quanto ci noção de "dinâmicas coletivas de criação", acerca da
pertinência de sua utilização no plural. Pois seria correto pressupor distintas formas de
ocorrência desse compartilhamento de <lutadas. ou. ao contrário. o mais apropriado seria
afirmar a sua singularidade. relegando as diferenças entre um processo e outro. a idios-
sincrasias sem maior relevância? Seriam, por exemplo, os termos aiaçc10 coletiva e processo
colaborativo nomes distintos para urna mesma prática? Ou. ao conrrário. traduziriam dinã-
nucas e processos. que apesar de aparentados. consubstanciam fenômenos diferentes?
É a partir dessa contraposição que o presente trabalho orientará as suas reflexões
iniciais. procurando. em seguida, tratar detidamente do processo cokibomttvo. Porém,
antes de analisarmos tal confrontação. julgamos pertinente trazer ~l tona alguns ante-
cedentes históricos exemplares das práticas coletivas de criação.
ritual de toda urna sociedade. em urna ação COIllUI11 coletiva. freqüentemente dotada
de um caráter de celebração rcligiosa'". Para o filósofo-poeta simbolista. a crise do
teatro decorria, justamente. dessa perda de seu aspecto comunitário. participativo e
coletivo. Pois. "o essencial na arte teatral é seu caráter sohónti. I...} a arte teatral é em
primeiro lugar uma ruanifestação coletiva. coral. social, S()lJóf·Hr··~.
O Teatro de Arte de Moscou (TAM). por sua vez. também será palco ele alguns pro-
jetos e experimentos comunitários. O primeiro deles surge, embrionariamente, por
meio de um fecundo cliãlogo entre Górki e Staruslavski. Tal discussão tinha corno foco
a participação ativa do dramaturgo em sala de ensaio. o qual escreveria o texto a partir
das improvisações dos atores. A idéia proposta por Córki, em 1910 - 01.1 1911, segundo
Sérgio [imcnez" -. tinha por objetivo a criação de UH1 estúdio. C0111 jovens atores, para
desenvolver urna colaboração baseada em improvisos, os quais teriam corno norte a
idéia do Ca110VClCc10 da commedín dell'nrte. Isto é. a partir de UHl argumento fornecido pre-
viamcnte pelo dramaturgo aos intérpretes, estes se empenhariam em desenvolvê-lo por
meio de improvisações. Segundo a descrição do projeto. realizada por Jacó Guinsburg,
De acordo com Cuinsburg, os atores teriam total liberdade para a elaboração elas
personagens, cabendo ao diretor
Essa "criação coletiva por Ull1 teatro da Improvisação" provocaria ainda. na anã-
lise de Cutnsburg, uma renovação no repertório cio Teatro de Arte de Moscou. É
Apesar do estímulo e empenho elo dramaturgo de I~(Jlé. tal proposta não chegou a
se efetivar. Contudo. ela serviu C01110 fonte inspiradora na constituição do Primeiro
Estúdio do Teatro ele Arte de Moscou. Será justamente aí que ocorrerá outra significa-
tiva experiência comunitária do TAM.
Criado em 1912. corno espaço de experimentação e desenvolvimento dos princí-
pios do "sistema" stanislavskiano. reuniu alguns membros brilhantes como Richarcl
Boleslavski. Mikhail Tchékhov e Evguêni Vakhrãngov, Organizado e capitaneado por
Leopold Sulerjttzki .- seguidor da visão comunitária de Tolstói - em parceria com Sta-
nislávski. o Primeiro Estúdio visava tanto ao aprimoramento artístico quanto ético
de seus integrantes. Segundo Hélene Henry,
8 JIMENt:1... 5•• El E\'cmgelio e1c: Sraníslavslâ segun sus Cl170stoles, los ClIJôcrifos. la n:fonlllJ, los filrSOS
profetas YJudas Isrnríotc, p. 243.
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Tal perspectiva comunitária ficou evidenciada nas famosas férias ele verão do
lO
Estúdio", organizadas por Sulerjítzki ele 1913 a 1915. em que todos os seus membros
iam para Ut11a fazenda na costa do luar Negro, na Criméia, próximo de Evpatória,
para trabalharem coletivamente a terra. De acordo C0l11 Henry, nessas experiências,
"o coletivo do primeiro Estúdio, reestruturado à maneira de urna comuna elo sócia-
lismo utópico. experimenta urna existência estritamente disciplinada. voltada para
a natureza e o trabalho em C0I11Ull1 , 1O. Stanislávski pretendia, junto conl seu compa-
1
1...1nós ceifãvamos tanto quanto serrávamos madeiras. Era duro 110 início. depois
isso nos agradou. Nós o chamávamos assim: "o trabalho forçado e pesado dos cri-
111in0505". Você se dá conta. o dia inteiro trabalhando duro! Lá, nas maravilhosas
margens do Dniepr, Nós tínhamos vindo para tirar férias. c desde o primeiro dia.
nos despacharam para o trabalho. Estranho. não é'? E não é estranuo. tarnbérn ,
que nós tenhamos retornado à Moscou ern plena forma e COll1 toda a força. todos
negros. felizes. orgulhosos de nossos bíceps. de nossas palmas calejadas e de nos-
sos bronzeados?'?
De acordo COI11. Poliakova. nUt11 elos estudos mais completos já publicados sobre
Sulerjítzki.
12 VAKHT,,\NGOV, E. Éails sur li: 11uFâln:. Lausanne: L·Âge d'Homrne. 2000, p. 185.
1.3 POUAKOVA. E. L Lcopold Antónovitch 5ulcljíl.ski. Moscou: Ed. lskusrvo. 1970. p. 381 (citação
traduzida por Eluna Vássina).
14 AI.PEllS. Boris. TeCltrálnie Ótcl1crkí (Ensaios Teatrais), MOSCO\l: Ed. Iskustvo, 1977. p . 31 (cíta-
çâo traduzida por Elena V,issilla).
15 RUDNlTSKY. J\•• Russian fJ Sovict l1zel1tre: tracUliou & r1le avallt-garcfc. p. 193,
12
j...) foi nesse local que Vakhtângov, secundado pelo entusiasmo do 'coletivo. onde
rodos. comediantes ou não. eram iguais em direitos - o que subsistiu durante mui-
tos anos. embora a igualdade de salários deixasse de vigorar na companhia - e onde
reinava uma estrita autodisciplina e ninguém violava ou transgredia as normas',
lançou-se a. urna criação ex nihih).t7
o referido diretor nisso fará nesse teatro UI11él de suas encenações mais importan-
res, a da peça O DfLJuk. de Sch. Aa-Ski. em 1921. Nela, durante os ensaios, ele lançarã
111<10 da improvisação de forma mais acentuada que Stnníslãvski. utizando-a Con10
uma ferramenta para a construção da encenação. Além disso. Vakhtãngov contribuiu
siguificativamentc para a transformação do Habitua em UI11 verdadeiro cnsemble, nos
I1101des do Teatro de Arte de Moscou. ao sobrepor a formatação artistica coletiva
às personalidades individuais dos atores. I~ importante ressaltar que essa noção de
eflscmlJle - isto é. a idéia de um "conjunto" teatral- rem COlHO pressuposto urna afina-
ção coletiva ela companhia do ponto de vista do resultado apresentado - não denotan-
cio relação, necessariamente, C0111 urn processo democrático de feitura.
O estudioso Ouriel Zohar, responsável por uma curiosa associação entre a cria-
ção coletiva e a ideologia elo kibutz. lamentará o afastamento do teatro Habima de
seus princípios e práticas cooperativistas. característicos de sua fase vakhtangoviana.
Segundo ele. o Habírna "iniciou-se sob urna forma coletiva. luas C0111 o tempo ele se
distanciou de seus objetivos iniciais para tornar-se um pesado estabelecimento de
producões?« ~ próximo a um teatro do tipo "empresa comercial".
Outra experiência coletivista de enorme importância foi o teatro de agitprop sovi-
ético. Ocorrido entre 1917 e 1932, ele se configura corno o antecessor mais signifi-
cativo - ou. até mesmo, o inventor - da criação coletiva. Fruto da Revolução Russa,
16 RUJ>NITSKY. K., Rllssian & Sovict 11lcatre: tradHion & lhe Cll'ant·gm-dc. p. 194.
17 GUINSnURC, J•• Stanislcivsli, Mt.iCrllOld & eia. p. 206.
18 ZOIlAR, o. Un LivirJg 111carn: collectíf inspíré par l'idéologie du kibboutz. 11léâlrt!{s}
Engagé(sJ. fase, 7. 1997, p. 202.
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define-se C0l110 U1l1 forte movimento teatral ele agitação e propaganda, baseado em
urna estrutura de autogestão coletiva, tendo por objetivos a instrução e o fomento à
luta revolucionária c à construção do socialismo. É desta época o surgimento dos gru-
pos auto-ativos, definidos por Silvana Garcia. C0I110 "coletivos de produção artística
que congregam díferenres 'círculos', abrangendo os diversos aspectos da educação
política e da vida cultural ele seus membros. Desempenham também U111 papel de
reprodutores, formando e estimulando outros coletivos"!",
O auto-ativismo, idealizado por Pavel Kerjentsev - teórico do Proletkult -recusa o
"profissíonalismo da ideologia burguesa", valorizando, ao conrrãrio. o "amadorismo"
e os princípios teatrais coletivistas e participativos. Entre. estes úttimos, por exemplo,
encontra-se a supressão da "autoridade do texto escrito ou tirania elo encenador". O
teatro auto-ativo busca, de acordo com jean-Pierrc Morel,
l...1a mobilidade dos papéis [representados por UIU ator] e dos contratos. a abertura
permanente da trupe aos voluntários; a dabo1"(lçcio coletiva do roteiro c do espetáculo,
auxiliada pelo apelo. Iimitado e controlado. a especialistas; a participação a mais
ampla possível da coletividade nos projetos do teatro. [...1 pela sua presença, suas
opiniões e sua ajuda concreta nos ensaios c na preparação material (cen ários. figu-
rinos), e também por meio de um papel ativo (a "co-interpretação" dos espectado-
res) na representação; por fim, o abandono do espaço teatral fixo, graças a espetá-
culos adaptados ou concebidos para serem apresentados ao ar livre [t cat ro de rua)
ou em locais não-habítuais (fabricas, escolas. hospitais, qunrtéis), e graças ao papel
assumido pelos atores nas tarefas utilitárias, elas quais a comunidade se beneficiará
(preparação de festas. ajuda na alfabetização e na cscolariznção).>'
Não convém de forma alguma confundir a criação coletiva COll1 todas as outras
atividades artísticas ele massa: por CXCI11plo, a declamação a várias vozes. a inter-
venção dos coros na ópera. as cenas de massa nos espetáculos dramãtlcos, A cria-
ção coletiva no teatro se caracteriza pelo: a) esforço dos participantes para encar-
nar em formas cênicas os interesses mais elevados do coletivo (isto é. o ideal
Baseado nesse ideal de coletivismo teatral, os atores lançavam mão de U111 rotei-
ro. improvisavam o texto. e construíam. todos juntos. a dramaturgia da peça e do
espetáculo. Segundo Amiard-Chevrcl, os "responsáveis políticos do Exército Ver-
melho encorajaram vivamente essas 'criações coletivas' corno premissas de UI11.
novo teatro":".
No capítulo VII ("As novas vias do teatro") do tratado denominado "O Teatro Cria-
dor":", Kerjentsev estrutura pela primeira vez - até onde sabemos - os princípios
norteadores da criação coletiva. De acordo com ele. "a criação teatral coletiva" pode
ocorrer sob as seguintes condições:
a) Cada participante deve. na medida do possível. fazer U1l1 trabalho ativo ern todos os
domínios da encenação. estudar a fundo o texto da peça e os diversos papéis. refle-
til- sobre o cenário e sobre a parte musical do espetáculo. enunciar a interpretação
que propõe para ele. elaborar um plano de encenação. etc.
1)) As encenações devem conjugar de maneira criativa os esforços dos diretores. dos
atores. dos cenógrafos, dos músicos, dos escritores e dos outros participantes. pois
é somente por esse trabalho em comum que o teatro refletirá plenamente a arte
em seu conjunto.
c) O cnccnador único poderá ser substituído por um grupo dirigente: no curso de
seu trabalho. ele convocará uma participação ativa de todos os outros membros
do círculo. de forma a examinar e a precisar. de ruane ira criativa. lodos os deta-
lhes da encenação durante o transcorrer dos ensaios. Naturalmente. o grupo de
encenação designa. a cada vez, uma única pessoa para conduzir efetivamente o
ensaio.
d) Freqüentemente. o texto de trabalho pode ser tornado somente corno um ponto
de partida. uma espécie de assunto adequado e de material literário. para que seja.
na seqüência. segundo as indicações dos participantes. modificado cru uma obra
totalmente nova.
e) É necessário dedicar urna atenção particular à complexa organização criativa. não
somente das cenas em separado. mas das partes ern seu conjunto. isto é. à criação
de novas obras teatrais de acordo C0111 o terna ou o assunto escolhido.
f) Podem-se fazer tentativas a fim de atrair os espectadores para UH1 trabalho ativo
sobre a encenação. convocando-os para escolher as peças. para dar a sua opinião
sobre as encenações c mesmo para participar, pouco a pouco. das cenas de massa."
27 cou.scnr. I.e l1lc!t1trc d·'lgit -prop cl~ 1917 ti 1932. torne U. p.32.
torne Il, p. 25.
28 Ibíd..
17
Sobre as paredes do foyer e dos corredores Ido teatro] serão afíxados todos os estu-
dos de figurinos e de cenários. desenhados para a peça. e todo o V01UlllOSO trabalho
preparatório será exposto para aqueles que desejarem tornar conhecimeruo dele.
O teatro proletário não deve esconder nenhurn ele seus segredos de fabricação. Do
primeiro ao último passo, o seu trabalho deve estar acessível a qualquer pessoa.>'
29 RUDNrrSKY. K., Russian f, Sovirt l1zetltre: tr'aditiOfl E.t t1tc ClVlHll·garc1c.'. p, 44.
'l1rC:àtrt.' tI'agir -prop de 1917 ri 1932. torne Il, p, 32.
30 COI.J.ECTll:, l.~
31 URECUT. u. Éails sur lc 11léãtre. Paris: L'Arche, 197 2 • torne t , p. 234.
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cena ~ e não apenas o seu próprio -. haveria urna melhora significativa na representa-
cão e todas as cenas ganhariam COIll isso. Para o dramarurgo e cnccnador alemâo. "a
arte não é alguma coisa de individual. Tanto na sua gestação quanto nos seus efeitos. ela
é alguma coisa ele coletivo'v''. Por isso. ele não trata os atores corno lucros instrumentos
seus, ao contrário. convoca-os corno parceiros de criação, experimentando as propostas
surgidas em ensaio. Defendendo uma perspectiva cooperativa de elaboração da obra
°
- o que envolvia também próprio público do Berliuer Enscrnble. por meio de debates.
durante o período de ensaios anteriores à estréia -. Brecht afirma que a "divisão moder-
na do trabalho transformou. em varies domínios importantes. a atividade criadora. O
ato de criação tornou-se UHl processo coletivo de criação, um cmHinZllUll ele caráter dialé-
tico. de tal modo que a invenção original isolada perdeu a sua siguificacão">.
No caso de Piscaror, resolvemos realizar um estudo, <i parte. da singular experiência
coletiva de criação que ele levou a cabo no Estúdio de seu teatro. AléI11 dessa signifi-
cativa contribuição, tal enccnador foi professor de [udírh Malina, urna das fundadoras
do Living Theatre. Píscator exerceu urna influência rransformadora nas concepções
teatrais dela e de seu parceiro. julian Beck. sendo responsável, indiretamente, pela
inspiração dos princípios da criação coletiva nesses dois diretores americanos. Apenas
tal filiação ou herança j<Í justificaria urna análise mais detalhada desse - injustamente
esquecido - diretor alemão, especialmente no que diz respeito ao Estúdio do Teatro
Piscator (PiscaLor~Hiiluw).fundado em Berlim, C111 i927.
Erwin Piscator (-1.893-"1966). diretor cujo conceito e prática de teatro político consti-
tuíram uma das mais significativas forças criativas no teatro alemão da década de 2.0,
foi também revolucionário ao realizar urna série ele impactantes espetáculos multi-
mídia. que se valiam ela montagem simultânea de discursos reais, trechos de notícias.
fotografias e seqüências fílrnicas. Tais concepções estéticas e procedimentos tecnoló-
gicos vão influenciar, por exemplo.. a formulação do teatro épico de Brecht. Ele vai.
ainda, desenvolver e teorizar sobre o teatro-docurncntârio. U111a contribuição artísti-
ca importante. embora um pouco negligenciada na avaliação geral de S\.1~ obra.
No plano ideológico. Piscator foi urna das vozes artísticas mais aguerridas e defen-
saras elo Comunismo, o que não se limitava al~enas a uma filiação partidária, mas
compreendia U111 projeto artístico ele fundação de um teatro proletário. Nesse senti-
elo. é impossível pensar a sua obra sem perceber a relação ínrrinseca que este encena-
dor estabelecia entre programa político e experimentaçâo estética.
Alguns dos aspectos cooperativistas e coletivizados de Sua prática artística estão
profundamente enraizados no projeto comunista de igualdade entre os homens c de
urna sociedade sem classes - pilares fundamentais do pensamento daquela doutrina.
Na verdade. tal desejo igualitário cnconrra-se no cerne do socialismo utópico e cien-
tífico, em sua defesa do trabalho coletivo. da propriedade C01l1UIll da terra e na [orça
transformadora - e revolucionária - da associação e do cooperativismo.
No nosso caso, é sobre a experiência elo Estúdio - uma espécie de "espaço alterna-
tivo". ou "campo de cxperimcnração" ou. ainda. um "lugar de treinamento", acoplado
ao palco principal do Teatro Piscaror - que interessará refletir. Foi nele que Píscaror
radicalizou urna original prática coletiva de criação teatral. Sob o aspecto institucional.
O Estúdio apresentava U111a independência total em relação <10 Teatro do qual fazia par-
te, devendo apenas compartilhar C0J11 o 111CStl10 a sua orientação ideológica.
1~ importante lembrar que a perspectiva do trabalho coletivo sempre lhe fora cara.
111esr110 antes da fundação deste "espaço alternativo". COlHO pode ser dcprecndido de
sua obra teórica mais importante. () Tccllro Político:
Conforme 111Ínha concepção ele 111UIHlo. eu sempre me esforcei para realizar esta
simples idéia: nunca t rabal har a não ser em colaboração. O teatro, por sua pró-
pria natureza. implica num esforço coletivo. Nenhuma outra forma de arte. salvo a
arquitetura e a música orquestral. depende tanto quanto ele ela existência de uma
comunidade homogênea."
Ainda que o termo "comunidade homogênea" possa suscitar urna discussão sobre
o grau de homogeneidade possível - ou sequer existente - em grupos e coletivos, é
irnportante não perdermos de vista o contexto histórico em que ele está inserido. no
34 {llSCA'rOR, ~.
I.C TIll!t1lrt! Poliuque. Paris: I:Arche. 1972, P.136. Sugerimos a leitura ela tra-
dução francesa [realizada por Arthur Adamov com LI colaboração de Claude Sebisch]
ou espanhola (fcíta por Salvador Vila) ao invés da tradução brasileira Cli:tltro Político, Ed.
Civilização Brasileira. trad. de Aldo Delta Nina, 1968). Tal tradução - a única disponível
em português - contém inúmeros erros, omissões e falhas de edição, o que pode COJU-
prometer o entendimento das proposições teóricas d~ Piscator, Todas as citações desta
obra. presentes neste capítulo. foram por nós traduzidas da referida edição francesa.
20
zado COI110 UH1 coletivo - levar o sobrenome individual de seu fundador no tit ulo ela
ín s rit u i çâo : Teatro Pisca!m:
Maria Piscator, ao avaliar a dimensão do projeto artístico de seu esposo. onze anos
após o seu falecimento, afirma que "ainda que o teatro 11;10 possa mais simplesmente
mostrar o indivíduo. fora de todo o seu contexto social. mas sim inserido na história.
ele {o teatral não é mais concebível sem urna colaboração entre o autor. o encena-
dor. o cenógrafo. os maquinistas, os atores":". É sintomárico e revelado r que o balan-
ço geral das contribuições deste importante diretor alemão. feito por alguém que o
acompanhava de perto, traga para o primeiro plano o 1110clo de criação e ele produção
fomentados pelo Teatro Piscator,
Un1 pouco mais à frente. ao discorrer sobre o projeto do Estúdio. ela reafirmará tal
posição. concluindo que "o novo estilo que Piscato r tenta criar apela para urna ell1horaçiio
coletiva, que é a finalidade elo trabalho do autor, dos técnicos, dos músicos, dos atores">,
Ou seja. modo ele criação e resultante estética estariam ínrnnamenre imbricados.
Ao descrever mais detalhadamentc o trabalho do Estúdio, Erwin Piscator nos rela-
ta que dentro dele.
1...1 os atores não estão mais unidos somente pelo elo sempre frouxo de uma rola-
cão de contrato: eles formam um coletivo. ao qual. C0l11 iguais direitos c deveres,
pertencem também o autor. o músico, o diretor de cena c o cinensta: e é este cole-
tivo que decide a escolha das peças a serem representadas. que chega. por meio de
discussões amigáveis. à concepção geral ela encenação. que elege o respectivo erice-
nador e a dístribuição dos papéis e que. em resumo. empreende e e ncaruinha lodo
o trabalhe cuja última etapa - o cspct ãculo acabado - n50 será mais importante elo
que as semanas de preparação durante as quais se pode formar uma vontade sólida
c uniuiria. nascida CIl1 discussões teóricas, e Iundameruada na experimentação do
material que constitui a peça. envolvendo os atores e o aparato técnico."
Tal descrição. se assim o quiséssemos, bem poderia ser transposta a alguns procedi-
mentes de trabalho do Living 11Jcatre. Opcn TItcater ou mesmo do T11éâtre du Soleil. Percebe-
11105 nela, por exemplo, a inegável imporrãncía do trabalho do ator. dando subsídios à cria-
ção cênica ou ainda experimentando na prática UI11 material dramatúrgico previamente
escrito. Em outras palavras, estabelece-se urna aproximação estreita entre a cena e o texto,
entre a sala de ensaio e o gabinete do dramaturgo, com ganhos para ambos os lados.
Além disso, outro fato que chama a atenção é a ênfase dada ao aspecto processual,
considerado tão importante quanto o resultado final. É surpreendente - e uvnnt [(1 Iettre
- a sua defesa do processo de criação. das "semanas ele preparação" apresentarem a Ines-
IHa importância do "espetáculo acabado". Claro que () que está em jogo é o "grau de ela-
boração" do cspeuiculo e não a negação do seu compartilhamento C0111 o público. O pres-
suposto de "tornar pública" a obra era fundamental ao projeto de um teatro político.
O aspecto processual vai ser reforçado por Píscator em llIl1 capítulo posterior ("UIU
Ano de Estúdio"). dedicado às montagens realizadas no Estúdio. Encontramos aí. por
exemplo, a importância dada ao caráter pedagógico de sua empreitada: "Corno dis-
se anteriormente, o Estúdio não cumpria a sua tarefa apenas com as apresentações
públicas dos espetáculos, O essencial de seu trabalho residia nas suas atividades de
ensino":", Ou seja. o Estúdio funcionava tanto corno U111 campo de experimentação
artístíca e ideológica de ponta, corno um centro de formação para jovens artistas ou
recém-ingressos no Teatro Piscator. Esta perspectiva educacional e de reciclagem de
conhecimentos revela outra face de seus objetivos programáticos.
Em relação a este último aspecto. as atividades eram assim encaminhadas:
1... 1 são oferecidos aos membros do Estúdio cursos e conferências nos quais são tra-
tados todos os grandes problemas filosóficos e políticos de nossa época. Aí também
se ensina. al ém do estudo sobre as personagens. o aprendizado de línguas estran-
geiras e os métodos de educação do corpo. O programa de estudos era estabelecido
em função da peça a ser representada."
atuando COlHO membro ativo e criador, dentro da companhia. É claro que. nesse caso,
ele é ,nais UHI entre os criadores; e não o criador único Ou principal. Também é impor-
tante ressaltar que, dífercnrementc ela criação coletiva, as outras funções criativas e
técnicas - dramaturgo, ator, músico, diretor de cena, dramaturgista, cenotécnico, etc.
- mantêm-se garantidas. Por este viés. tal experiência encontra urna correspondência
inequívoca C0111 o processo colaborarivo.
Além disso. a ênfase dada à relação do dramaturgo C0l11 os outros criadores em sala
de ensaio - onde se experimentaria o texto. dando possibilidade ao autor de reconhe-
cer os defeitos c qualidades ele sua peça c, conseqüentemente. reescrevê-la - é outro
aspecto dessa aproximação. A dramaturgia, nessa mccüda. não é coletiva, porém, ela é
testada c exercitada conjuntamente pela equipe. C01l1 o objetivo de aperteiçoã-la.
Portanto, se por um lado. poderíamos remeter o cnfraquecimenro ela função do
encenador (1 uma antecipação da criação coletiva. por outro lado. o pape} do drama-
turgo no Estúdio de Píscaror materializaria urna dinâmica mais próxima (1 do pro-
cesso colaborarivo. Nesse sentido. encontramo-nos diante de urna matriz híbrida e
problemática. luas que, sem dúvida. se configura (:Ot1\O um pólo precursor de prece-
dirncntos coletivos de criação de décadas posteriores.
Contudo. faltam-nos outros relatos documentais sobre Li experiência do Esrúdio
para que pOSSaI110S afirmar, categoricamente, tais sirnilitudes e diferenças com o pro-
cesso colaborativo. A descrição que Píscator nos oferece padece de maiores detalha-
mentes. pois dedica apenas poucas páginas ele seu livro-chave. Teatro Polft'ico. para
relatar a rica e complexa dinâmica de funcionamento do Estúdio.
1\ análise de Maria Piscator também não apresenta maiores elucidações. O seu tex-
to vai pouco além de um resumo ou balanço geral das propostas do marido, mesclan-
do. aqui e ali. algumas considerações pessoais. Dentre elas, todavia, destacaríamos
uma em especial, relativa ao trabalho elo dramaturgo dentro do Estúdio: "A noção
de obro. de autor se transforma completamente. Nada é defininvo":". Essa discussão
sobre "autoria" é um dos problemas centrais associados aos 1110dos cooperativados
de criação e exigirá, de nossa parte, uma atenção específica.
Outra ponderação reincidente - e C01l10 tal, relevante - pode ser encontrada na
conclusão do trecho dedicado ao trabalho coletivo do Estúdio ("A noção de Coletivo").
Apesar de se tratar - COIl10 já vimos antes - de um instigante insight, tal percepção não
é por ela desenvolvida: '~A exigência de UH1 trabalho em comunidade não é somente
práríca. É dela que depende o esr.ilo···16 • Em outras palavras. Maria Piscator advoga que
este modo de fazer coletivo incorre necessariamente l1\.\111a conformação estética.
De qualquer maneira, o ideal coniuniuirio praticado no Estúdio. aponta e antece-
de elementos do trabalho realizado pelo Living 'I1reatrc. É evidente que a relação pro-
fessor-aluno vivida entre Erwin Piscator e judirh Malina, quando o primeiro se encon-
trava exilado nos Estados Unidos. foi extremamente profícua e rendeu frutos". Pois
aquilo que 110 Estúdio se Iirnirara a um experimento radical, de curta duração e C0111
pequena repercussão internacional, irã se consubstanciar ele forma potente no modo
ele criação do Uvillg 'nwatrc. alçando-o ao posto de um dos principais representantes
ela chamada criação coletiva. Tal hipótese pode. de certa forma, ser confirmada na
avaliação de judith Malina sobre seu mestre:
' ...\ eu sou ê\\un~\ de Piscator, não somente por ter seguido seu ensinamento c $(~U tra-
balho em Nova Iorque. mas sobretudo porque eu lenho a intenção de continuar a via
que ele abriu. [...1 praticamente nos esquecemos de Piscator, apesar de sua influência
sobre o teatro ter sido considerável. (...) todo o teatro sofreu a influência de Píscator,
ele SU~l reflexão sobre a inclusão do espectador na ação e no espaço teatral, Eu acredi-
to que Brecht e Piscator ínvenraram junto o teatro político moderno, Quando eu sai
da escola 1111C Drarnatic Workshop], a situação do reat ro em Nova Iorque era dosas-
trosa. (...1 No momento em que julian Beck e eu decidimos fundar lJll1 teatro. nós ()
chamamos de Líviug Theatrc porque nós desejávamos criar a1bf\H)1'l coisa que fosse
capaz de mudar C0l11 o tempo. de seguir o fluxo. o movimento da história, de respon-
der às metamorfoses do indivíduo c da sociedade. E este teatro existe ainda hoje. nós
48 coi.u.cnr. Av~c Hn:cht. Artes: Acres Sud/Acadénlie cxpérirncntale des tbéãtrcs, 1999.
Pp·5 1 -53 .
26
• Investigação coletiva das personagens. por meio da qual cada um dos ato-
res cxperimenra lodos os papéis;
• Direção ou encenação coletiva. levada a cabo por um grupo de diretores
ou pelo próprio conjunto de integrantes do coletivo:
• Acúmulo de várias - ou de todas - funções artísticas por U111 único e rnes-
1110 integrante, ou. pelo menos, o incitamento ao trânsito entre as diferen-
tes funções;
• A autoria da obra é coletiva e deve conjugar a contribuição artística de
todos. Tal perspectiva parece produzir urna resultante estética marcada
por esse modo compartilhado de criação;
• Organização e produção cooperativada: aurogcstão coletiva e democrática:
• Controle dos meios de produção por parte do coletivo;
• Divisão igualitária de salários ou lucros;
• Estímulo ao exercício da crítica e autocrítica. por parte de todos os intc-
grantes, produzindo uma espécie de "crítica coletiva" permanente. tarn-
bérn praticada no diálogo aberto COl11 o público;
• Convocação do espectador para participar elo processo de construção da
obra, seja por meio de debates realizados CIn ensaios abertos. seja por sua
contribuição concreta nos variados aspectos criativos da montagem, ou
ainda, por sua participação em "cenas de massa":
• Rompimeuto da separação atores/observadores. estimulando a participa-
ção dos espectadores durante a apresentação e promovendo um apelo à
.. produtividade" cio público:
• Realização de espetáculos ao ar livre e em espaços não-convencionais. de for-
ma a se integrar e a comungar mais diretamente COIll a vida dos cidadães:
• Caráter nâo-ilusionista e processual acentuado. por meio da revelação dos
procedimentos de fabricação e elo percurso de construção da obra:
• Projeto de reciclagem e de formação de novos artistas e coletivos. C0111 o
objetivo de se produzir um efeito multiplicador:
• Part.icipação dos artistas na viela cotidiana da comunidade. por meio de
atividades pedagógicas Oll assistenciais.
Na tentativa ele definição desse termo, tarefa esta bastante problemática. na medi-
da em que existiram diferentes experiências de criação coletiva nas décadas de 60 e
70, em vários países elo Inundo. Patrice Pavis buscará alguns denominadores C01l1Uns
a essas distintas conforrnaçôes: espetáculo "não assinado por uma só pessoa. mas ela-
borado pelo grupo envolvido", COlll um texto "fixado após as improvisações durante
os ensaios", fazendo a peça "tender para urna encenação 'coletiva">". Tornando o
Living Thcatre c o Théãtre du Solei! como experimentos ernblemáticos. Pavis aponta-
ré! ainda o desejo de reação por parte dessas companhias contra a divisão do trabalho
e a especialização. bem COlHO a busca pelo ideal de um artista de teatro polivalen-
te. Tais aspectos. a aboHçdo da JUllçc10 especializada e a polivalêucia artística - elementos
estrciramcnte vinculados UI11 ao outro - constituem um eixo fundamental para nossa
reflexão sobre a criação coletiva.
Essa perspectiva pode também ser confírmada em urna análise da trajetória elos
grupos teatrais brasileiros elos anos 70, C0I11 ênfase especial no Asdrubal Trouxe o
Trombone. realizada pela pesquisadora Sílvia Fernandes:
UIU grupo de pessoas se reúne. Não há nenhum autor em quem se apoiar. o qual
arranca o impulso criativo de você. Destruição da superestrutura da mente. Então,
a real idade vem. Nós ficamos sentados durante meses conversando. absorvendo.
descartando, criando urna atmosfera na qual nós não somente inspiramos uns aos
outros, mas onde cada um se sente livre para dizer o que quer que seja (...). Gran-
de selva pantanosa. U1l1a paisagem de conceitos. almas. sons, movimentos, teorias.
copas de poesia. selvageria, terra erma e vasta. errãncía. Então. você recolhe tudo e
ordena. Durante o processo. urna forma se apresentará por si mesma. t\ pessoa que
[;11a J11CnOS pode ser quem vai inspirar aquela que Iala mais, :\0 final. ninguém sabe
quem {oi realrnente respousávet por aquilo. o ego individual é carregado para a escu-
ridão. todo mundo está satisfeito, todos têm urna sal isfação pessoal maior do que a
satisfação do "eu" solitário. E urna vez que VOte experimentou isto - o processo de
criação artística em colctívidade - o retorno à velha ordem parece um retrocesso."
Portanto, ele uma maneira geral, e tornando corno base as referidas experiências
grupais americanas, francesas c brasileiras. podemos perceber que na criação coleti-
va existe UI11 desejo de diluição das funções artísticas ou. no rninimo. de sua relativi-
zação. Conforme analisado em nossa dissertação de mestrado. podemos identificar
urna criação de cenário. luz c figurinos. realizada conjuntamente por todos os inte-
grantes do grupo."
Existern ainda. segundo Eduardo Vazquéz Pérez - crítico cubano e estudioso da cria-
ção coletiva na América Latina - duas formas correntes de se pensar tal fenômeno. urna
ele caráter mais abrangente e outra bastante restritiva, A primeira considera que haja
criação coletiva sempre que ocorrer U111<l signíficat iva participação do ator no processo
de criação do espetáculo. Já a segunda perspectiva identifica o fenÕ111CnO ela criação cole-
tiva apenas onde 11(10 esteja presente a função elo diretor cênico?'. [: importante perceber
corno a figura do cnccnador, nesta segunda abordagem, é compreendida C0l110 um entra-
ve ou COl110 um antípoda em experiências de compartilhamento criativo.
Muitas são as razões levantadas para o surgimento da criação coletiva. Tanto os
elemeutos conjunturais da época - marcada pela contracultura. pelo movimento hip-
pie e seu projeto comunitririo, pelo ativismo político e libcrtário acentuado - quanto
as necessidades especificamente teatrais - falta de urna dramaturgia que se moldasse
perfeitamente às inquietudes sociais. temáticas e estéticas dos grupos de teatro de
então. ou ainda. a busca de Ul11a relação mais participativa com o público - tudo isso
é invocado para justificar o aparecimento deste novo 1110do de criação.
51 IU;CK. J. 'l1w L~ft: Df!IH: l1rL"Clt~,.: lhe n'lal íon of tJw m·tist to tlu' stnlggl~ of OH: pt'ol'k. New York:
Limefíght Editíons, 1986. pp 8.t-8S.
52 ~1\.Vh. 1\. c. A. A Géne$t! do VCl1ig~m: O Processo de Crinrdo ti<' '0 Pm°(llSO Pcrdidn'. ~002. 192. f.
Dissertação (Mestrado em Artes) - Escola de Comunicações c Artes. Universidade de
São Paulo, p, 101.
53 CÉS(·cDf:'S. f. C. (org.). El 'lenrro [cHif1oam~ricarlO de Crt.'ClciÓtt Coll'ctiva. Ciudad de La Habana:
Casa de las Américas, 1978. p. l3'3.
29
No Brasil. alguns representantes significativos dessa vertente são. entre out ros.
o Asdrubal Trouxe o Trombone (1974): Pod Minoga (1972): União e Olho Vivo (1972):
Núcleo Independente (970) - grupo egresso cio Teatro de Arena, e que leve conta-
to com Enrique Buenaventura -: e ainda os espetáculos do grupo Sonda - C01110 O
Rito do Amo:: Selvllgcllt (1969) - e do grupo TUCA (sob a direção de Mãrío Piacentini)
- Conullll (1969) e O Terceiro Dernôuio (1970). O Teatro Oficina. além do intercâmbio
com o Living Tneatre c C0l11 o grupo argentino Los Lobos, realiza um marcante
espetáculo de criação coletiva. Gradas Serior (1972). elaborado a partir de uma via-
gern pelo país.
Nos outros países da América Latina. a criação coletiva também teve uma impor-
tância enorme dentro elo panorama teatral, chegando mesmo a tornar-se um elos
elementos identitãrios ele sua cena. C0I110 bem observa Randy Martin, ela é fruto da
conjuntura das vanguardas estrangeiras associada <1 dinâmica local. sugerindo um
"movimento" cênico transnacional dentro do continente laríno-americano. Além dis-
so. ela se encontra fortemente marcada pelo desejo de "exploração da participação
dos atores e do público no processo criativo do teatro (...]. O teatro da criação coletiva
desdobrou a suscetibilidade ela arte para a participação">',
Na busca de U1l1<l nova relação com a platéia - na perspectiva de urna "estética
participativa" - procurou-se subverter a experiência de passividade por parte elos
espectadores. de forma a que não se acomodassem enquanto convidados distantes
ela cena. mas que assumissem UI11 papel mais ativo, crítico c integrado. No limite..
almejou-se que o projeto artístico viesse a se configurar COl110 urna criação ele todos,
rompendo-se a barreira entre artistas e público.
Tal objetivo fez COH1 que vários grupos deixassem os palcos italianos c criassem
espetáculos c intervenções em ruas e praças. na busca ele um contato direto com
os transeuntes-espectadores. Procurava-se C0111 isso. também. atingir e C0l1SCiC1Uizar
criricarncnte UI11 público que jamais iria ao teatro. Neste desejo de "parricipaçâo"
encontrava-se embutido um projeto utópico ele trausforrnaçâo da realidade.
Se. por um lado, montagens C0l11 temática social e histórica. sob um forte viés de
engajamento político. foram urna das vertentes mais fortes na cena latino-arnerica-
na. houve outras. que aliavam crítica de costumes. liberação sexual e experiências
Iisérgicas a U111 radical aspecto de pesquisa formal, Estes últimos, inclusive, sofreram
com juizos preconceituosos, corno se não passassem de "outra coisa que não evasão
ou estampido raivoso de rebeldes sem causa, ou pretexto para elevar a pornografia e
o consumo de drogas à categoria de espetáculo para uma platéia mórbida'?",
54 M.r\RTJ N, R. Sodalisl Ensemblcs: lhcaler ,md slate in Cuba anel NicllragUtl. Minneapolis: Univer-
sity ofMinncsota Press. 1994. p.43.
55 DOMiNGUEZ. Carlos Espínosa. "Entrevista con Manuel Calícb. Creaciôn Colectiva: un te-
atro nccesario y urgente", In: CÉSPEDES, F. G. (org.), El 'lCiltro l.aLirwmnclicano de Cn.'clcián
Coll'ctivll. P.34.
30
1...1 alguns grupos trabalham com times de pesquisa especializada (tais COlHO estu-
dantes de ciências sociais ou assistentes sociais] ou desenvolvem as suas próprias
habilidades nestas áreas. Muitos grupos são observadores integrados nas cornuni-
dades, nas quais eles passam a maior parte de seu tempo e freqüenremeutc moram
ali: desta forma a condução de entrevistas se torna mais informal c estimula uma
contribuição mais espontânea para dentro da montagem (...I.~(,
U111 aspecto importante frisado por Pérez é que essas formas de criação por ele
56 WEISS, J. A. (with Damasceno. L.: Frischmann, D.; Kaíser-Lcnoír, C.; Pianca, 1\01.: Rizk. B.
J.) I.Cltin i\mClicuu P01Jular '11J(~cu~r: fh~ first fi\'~ n:nhnic.'s. Albuquerque: University of New
Mcxico Press, 1993. p. t 68.
S7 Ibíd.• p. 169.
58 CÉSI'UOES. f. c. (org.), 1;1 '1i:curo LatilwlUllCl;ccmo til! Cn.'etció'l Cokctivel. p. 14 L
31
mapeadas não têm UIll uso excludente. Isto é. o f11CSI110 grupo. dependendo dos seus
interesses e necessidades naquele momcnro. pode trabalhar C0111 urna ou outra des-
sas três maneiras. em espetáculos diferentes.
J~ importante observar ainda que o terceiro item de sua análise abre urna possibi-
lidade ele aproximação C0l11 o processo colaborativo. na medida em que a síntese dra-
matúrgica final possa ser realizada por UUIll dos integrantes do coletivo". Porém, não
fica claro que esse "integrante" seja. de fato, um dramaturgo, convocado pelo grupo,
desde o início, a assumir esta função. Além disso, nada é mencionado em relação à
manutenção da função cio encenador,
Caberia então verificarmos COI110 se coloca tal função dentro da criação coletiva. Se
tomarmos corno base as análises de Pavis e Fernandes. o papel do encenador - corno de
resto das outras áreas artísticas - está repartido dentro do grupo. Todos os integrantes
são cnccnadores CIl1 potencial. tendo direito ao exercício desta função. O diretor. nesse
sentido. desaparece COlHO UHl criador irulividua! é a sua obra-encenação. a sua autoria
pessoal. encontra-se distribuída e compartilhada pelo coletivo. Portanto. ele não pro-
duz urna criação autônoma particular. Na verdade. no limite, nem se poderia reivindi-
car a ação específica de um diretor, jí.\ que todas as funções teriam sido abolidas.
É claro que. C0t11 isso. não se possa afirmar a inexistência de U111a proposta de
encenação. Se pensarmos em alguns espetáculos-ícones da criação coletiva, tais corno
Pllrllclise Now (Living Theater, 1968). 1789 (Théãtrc du Solcil, 1970), ou Tmre-rne Ledo
(Asdrúbal Trouxe o Trombone, 1977), é evidente a presença de um conceito de ence-
nação. ele urna escritura cênica bem dcfi nida. de uma poética espacial e interpretati-
va formalizada e perceptível ú leitura cIo espectador. Ou seja, podemos falar sim em
urna cnceuucdo, porém numa encenação coletiva, desenhada a várias In50s.
Por exemplo. quando julian Beck vai descrever o processo de criação de outra
importante obra elo Living, ele afirma categoricamente que "J\-1ysLelies Ilvlysterics CHIeI
Srualler Píeces. 19641 não tinha UHl diretor, Nós todos criamos (essa peça] em menos de
quatro meses, fazendo mudanças de vez em quando durante os meses que se segui-
ram, Alguns membros da companhia contribuíram 111<lÍS elo que outros. Que impor-
tâncía rem iSSO?"S9.
Se analisarmos apenas o final desta última citação. jeí podemos entrever que nem
tudo é assim tão pacífico na seara da encenação coletiva. Primeiramente - como vere-
mos adiante - porque a figura do cncenador continuou existindo dentro ele alguns
grupos, ainda que de forma velada e não-assumida. Em segundo lugar, porque houve
algumas companhias de criação coletiva - por exemplo, La Candelaria - que não
abdicaram da função elo diretor. O que estava em jogo, ali, não era a existência ou
não deste papel, luas sim o momento do processo onde ele entraria e" além disso, a
revisão da sua forma de atuação.
59 UECK, l., '111c l.if~ oftlte l1tc<ltt'r: th~ rdatios\ ofthc urtís; to lhe struggle Oflh~ 17col'k. p. 47.
32
t... 1continua existindo urna divisão estrita de trabalho na qual o diretor - ou direto-
res designados - continua dirigindo. O que acontece é que já não trabalha de uma
maneira ditatorial. mas sim com a colaboração dos atores. Agora. o que de fato a cria-
ção coletiva aboliu foi a hierarquização das tradicionais companhias de teatro, quase.
sempre funcionando atrav és do produtor, que era o dono da empresa. c girando em
torno de U111 sistema de "estrelas", que. sem dúvida. era a atração da bilhereria."
60 RJ7.K, B. El Nuevo 'f<,'arro LatirW{lmeric:auo: ulla lcClUl"(l ltistór1cil. Mlnneapolís: The Prisma
Insrituteff'he Instituto for the Study of ldeologies and Litcraturc, 19 87. p. 69.
61 lbid.. P: 69.
62 CÉSPI:UHS. F. G. (org.), EllbHro I.Lltinoaml'ricarw de CrL'ación Colcctiva, p. 92.
63 lbid.• p. 136.
33
I...) esta metodologia não é. em nenhum momento. uma negação do trabalho indi-
vidual. A criação coletiva implica ern um trabalho pessoal. em um descnvolvirnon-
to pessoal árduo c comprometido. porém nunca solitário. E caso estabeleça urna
hierarquia dentro do trabalho. não é a hierarquia vertical superior-inferior. mas
sim a hierarquia taxonômica c teleológlca em função daquilo que. crn sua relação
C0l110 público. interessa fundamentalmente ao grupo,".•
6.~ PJI\NCt\. M.El 'Je!Uro ele Nucstral\fIll"lÍca: un 1>t'O)'cxto conCincllwI1959-J989. Minncapnlis: The
Institute for thc Study ot Ideologics and Literature, 1990. p. 89.
65 WllJSS. J. A. (with Damasceno, L.; Fríschmann. D.: Kaiser-Lcnoir, C.; Pianca, t-..1.: Rizk, B.
J.). Lntin Amerícnn Popular Thcat~r: lhe firs! Jh·e ccururícs. p. 167.
34
1...1 não reside somente na criação de UI11 novo texto ou mesmo de uma nova 111011-
ragem, 1l1aS no seu complexo processo. que (1) serve corno uma experiência educa-
cional para os membros do grupo. tanto em relação às questões históricas e sociais
quanto ~l sua relação COJl1 a comunidade ou (On1 o público: (2) constrói ligações
com inst ituíçôes de pesquisa ou intelectuais. por um lado. e organiznçóes comuni-
t.irias. por outro: (3) equipara a divisão de tarefas dentro da organização \grupat\ e
habilita lodos os membros COll1 instrumcntnl crítico: (r-t) contribuí para o clescnvol-
virncnto do repertório e ele estilos de montagem e irucrpretacão. o que contribui
para a (orça culrural de U]l1 setor especifico da sociedade c para o desenvolvimento
de um teatro nacional."
Contudo, a criação coletiva não esrã imune a problemas. Também em nossa dis-
sertação apontamos algumas das contradições nela presentes:
I...} nem todos os participantes possuíam habilidades, interesse ou desejo ele assumir
vários papéis dentro da criação. Esta polivalência de funções acabava acontecendo
apenas no plano do discurso - teoricamente ousado e estimulador - mas pouco
concretizado no dia-a-dia dos ensaios. (...} Muitas vezes. também, essa perspect.i-
va do "todo Inundo faz tudo" escondia certos traços de manipulação. Por exern-
1'10. determinado dramaturgo ou diretor pregava tal discurso coleuvízante visando
- -- - - - -- -- -_ .__ .-
35
Nós precisávamos controlar um projeto cujas necessidades nós não podíamos rncsurar,
Ele comandava o seu próprio destino. Os diretores, J & J lJulian Beck e judith Malina],
contudo, estavam construindo UI11 espeuirulo {l<u'a os talentos de urna companhia de
atores da qual eles conheciam cada um deles intilnalnente. Os atores dirigiam a eles
mesmos através do medium I"nll~io··. "veículo". mas também "médíum" do diretor,"
Ainda que essa noção do encenador corno 1.1111 "veiculo" ou "cavalo" não deixe
de ser bastante sugestiva e provocadora. o contexto em que ela aparece traz él pers-
pectiva cIo desaparecimento ou enfraquecimento de tal função. Porém, o principal
problema é essa "crise de identidade" ou "culpa do oficio" que parece atravessar os
processos mencionados. Pois, na verdade, trata-se de diretores que não assumem - ou
que não querem assumir - a própria direção que, ele fato. exercem.
68 SII.V.l\. A. C. A., A Gênese da Vertigem: o Processo cle Criaçlio de 'o l'llraiso Perdido', p.r o 1.
69 P..s testra proferida em novembro de 1997. no I'S ,.:!:2. em Nova Iorque. na qual se avalia-
va a experiência do Open Theater no contexto do teatro de vanguarda americano.
70 BI~C:K. J.. ]1h? T.ife oflhe l1Icatc:r: lhe n~l(uion of the m1fst to Lhe slrllggle Dflhe! people. p, 48.
71 lbid.• pp. 618-49.
36
o fato ele esses grupos apresentarem lideranças fortes - CIl1 geral. diretores - vem
materializar uma aparente contradição COl1l o discurso coletivizante da criação coleti-
va . [udith Wciss faz um levantamento exaustivo desses "diretores artísticos fortes"n~
entre os quais destacamos alguns: Buenavenrura, no caso do TEC; Santiago Garcia. no
La Candelaria: Arahualpa Del Cioppo. no El Calpón: Maria Escudero no Teatro Libre
'Ieatro: Sergio Corrieri. no Teatro Escambray: César Vieira, no União e Olho Vivo. etc
Poderíamos acrescentar a essa lista os nomes j(l vistos de julian Beck e judith Malina,
no caso cio Living Theatre: [oscph Chaikin. no Opcn Theater: Ron Davies, no San Fran-
cisco Mime Troupe: Luis Valdez, no Teatro Campesino: Peter Schumarm, no Bread anel
Puppet Theatcr, Ariano Mnouchkine, no Théãtrc du Soleil, Salvador Távora. no la Cua-
dra de Scvilla. Albert Boaclella, no EIsjoglars, e mesmo - apesar de se tratar de um forte
grupo de atores - de Hamilton Vaz Pereira. no Asdrubal Trouxe o Trombone.
Segundo Weiss,
{•.. ) O problema da hierarquia e de papéis definidores parece ser paradoxal: (...l nós
só podemos concluir que apesar da rejeição geral do princípio da "estrela". o cole-
tivo não-hierárquico é mais bem sucedido quando o grupo é mais estreitamente
identificado com UI11 diretor ou fundador forte. {...) Contudo. todos esses grupos
conseguiram desenvolver um exitoso processo interno e uma divisão de responsa-
bilidades. o que indicaria que o papel do diretor e também aquele de um coordena-
dor habilidoso c de UH\ f.\Cilitador. 7J
Apesar da presença do "diretor ou fundador forte" provocar urna crise quase per-
manente na dinâmica interna elas relações intra-grupais, Weiss rccoloca ta] presença
por outro àng1110 e afirma a sua importância, Ela desmonta a aparente contradição
associada á existência de um líder dentro do grupo. desde que garantida a divisão de
trabalho e de criação entre todos os integrantes. e sob a condição de que esse diretor-
coordenador ou facilitador atue em consonância C0l11 o coletivo. Contudo. trata-se
de urna análise a postcnori de um fenômeno c, pelo que j<Í foi descrito, vívcnciado de
forma bem distinta por quem lidava com o problema ele dentro.
Ainda que tenha havido grupos de criação coletiva com dinâmicas internas dis-
tintas. essa questão da liderança parece ser 111enOS problemãríca no processo colabo-
rativo. Em primeiro lugar porque. desde o início, o papel do diretor j~í se encontra
assumido pelo grupo. Depois, as opções e os caminhos dentro cio grupo são sem-
pre discutidos por todos - com várias das escolhas sendo feitas através ele votação.
Além disso. ocorre também o surgimento de outras lideranças em áreas diferentes do
trabalho. Por exemplo, se o diretor incita ou coordena os debates artísticos. outros
72 WElSS. J. A. (with Damasceno, L.: Fríschrnann. D.: Kaiser-Lenoir, C.; Píanca, M; Rizk, n.
1.). UUifl t\mcriam Popular 'nzealer': l1le: jirs! Jivr: ccuturies,
p. 156.
73 Ibid .• p. 156.
37
(...] eu gostaria de saber mais sobre interpretação do que eu tive acesso {... I atra-
vés do l.ivíng Thcatcr, Naquela época. o I.iving Theater não estava realmente nada
interessado CIH interpretação. e raramemc explorava as próprias potencialidades
do ator ou da experiência do grupo. O constante estado de emergência no Living
Theater impedia isso."
Os teóricos Fernando Duque Mesa e Jorge P. Prada apresentam ainda outra crítica.
no que diz respeito à relação forma-conteúdo do espetáculo: "o abandono do plano
estético-formal ao se privilegiar o plano conteudistico''>. Trata-se de urna observação
importante. pois a concretização do plano estético é vital para a potência da obra ofe-
recida ao espectador. Contudo. tal avaliação negativa não pode ser generalizada - ain-
da, é claro, que ela diga respeito especialmente ao panorama teatral COI0I11bhlno.
Se cousiderarmos verdadeiro que alguns grupos de cunho mais engajado e ativista
privilegiavam a mensagem direta, a doutrinação política, a crítica social explícita em
74 C1V\1 KtN. J. TIu: Presence Df rhe Actor, New York: Theatre Communications Croup, 1991 (re-
iwi1'\t), p.52.·
75 ~lES ..\ . f.
I); ORTlZ. I:. r .: PRAOi\. J. 1'. Invcstigaciân}' P"axis ]t.'lllml cn Colombj(1. Santafé de Bo-
gorá: Colcultura, 1994. p·74.
38
detrin1ento de unia experunentaçâo formal, por outro lado. houve também aqueles
que trouxeram inovações estéticas radicais. Alguns grupos, inclusive. conseguiram aliar
preocupações rernáticas - em geral ele ordem política. social ou de costumes - COlU
inquietações formais de ponta. corno no caso do próprio Livíllg. do Soleil ou do Asdrubal.
Não pretendemos, ao trazer essas observações críticas. desqualificar ou desmcre-
cer a experiência da criação coletiva. É inegável que obras fuudarnenrais na história
cio teatro no século xx foram criadas dentro desse modelo. O que está em foco é a
análise e a comparação dessa experiência COll1 outra dinâmica coletiva de criação"»
surgida nos anos 90. e que vem sendo denominnda processo colaborativo.
Porém, antes de a abordarmos, parece-nos importante analisar a experiência da
criação coletiva na Colômbia, na medida em que ela antecipa ou apresenta certas
semelhanças C0l11 o processo colaborativo. Poderíamos. é claro. realizar outros estu-
dos de caso. tanto brasileiros quanto internacionais. Contudo. tal abertura do pano-
rama de amostragem nos faria incorrer em grave risco de superficialidade. além de
desfocar a trajetória pretendida. qual seja. a de traçar as conexões e diferenças entre
a criação coletiva e o processo colaborativo.
(...) o teatro COI110 projeto coletivo é urna criação de lodos. no qual não se eliminam
3S especialidades. mas, pelo contrãrio, elas são fomentadas e convivem. Por isso. é
freqüente encontrar no interior de UI11 dramaturgo que. de acordo com
grupo UI11
76 MESA. F, u; ORTIZ. F. (l.: PRAU ..\ , J. I'. Im'cstigaaóll y Pnlxis Teatral eu Coloml}ja , p.65.
40
em cinco versões diferentes. e mantida em repertório por quase trinta anos -, La tra-
gedia dei rey Cll1istophe e Un rélJuier1'l por cl padre de las Casas.
Os princípios norteadores da prática artística de Buenaventura - tanto corno em
Piscator - buscavam o alargamento da participação criativa de cada um elos inte-
grantes do grupo em todas as etapas do processo de construção do espetáculo. Corno
conseqüência houve UHl redímensíonarnento do papel do ator, do dramaturgo e do
diretor. pois, segundo Buenavcntura,
77 Existe urna tradução em português desta peça (li Dinifll cl~ Deus Pai), realizada por Hugo
Villavícenzío, e lançada numa coletânea de textos teatrais latino-americanos contemporã-
neos, intitulada Tt:'cUro da AmJrictl ullina. pelo Teatro-Escola Célia Helena. em 200.t.
78 nUENAvENTURA, H. "Teatro o 'taetro': Diálogo entre dos mancras de ver (Ir. artigo pu-
blícado no jornal fi Pucblo. Calí. em 16 de fevereiro de 1975 (xérox rcdatilografado do
referido artigo).
79 PIANCA. M. El 'leatro de! Nueura j\.mclica: un 1Jroy~cto contincnrC11 1959-1989. p. 89.
41
ir~\
sistematizar, PélSSO a passo, os procedimentos metodol ógicos ela criação coletiva.
- Escrito em 1972, este método percorreu rodo o continente. balizando, orientando e
servindo de modelo para outros grupos e coletivos.
Beatriz Rizk, em seu livro sobre Buenavenrura. analisa o processo de const rução deste
método, Segundo ela, tal metodologia "foi se gestando pouco a pouco, a partir cio próprio
fazer, Iniciou-se. na verdade. ao questionar a autoridade do diretor, com a concordância
do mesmo, j~l quase convertido em 'estrela' do grupo. pelos atores efetivos'?", O passo
seguinte, segundo ela, foi o surgimento de U111 "coletivo de direção", o qual fui se amplian-
do até envolver todo o grupo dentro do processo ele criação. Por fim, C01110 resultado dessa
prática. o método foi sendo experimentado. sistematizado e, então. publicado.
Em linhas gerais. Rizk o apresenta dividido nas seguintes etapas:"!
1. 1\ investigação:
2. A elaboração do texto (COI11 a sua respectiva análise crítica);
3. A improvisação ("coluna vertebral do processo"):
4. 1\ montagem:
5. A apresentação diante cIo público (o que inclui a síntese dialética do espetáculo)
o primeiro elemento que chama a atenção -- pois para o senso comum, tal pers-
pectiva se apresenta quase corno um paradoxo - é a sistematização e a defesa de um
1néLodo para a criação coletiva. Muitas vezes associada a espontaneisrnos irracionalis-
tas ou a processos criauvos caóticos, desorganizados e descontrolados. Buenavcntura
vem postular o contrário: '·0 método é a condição nccessãrta do trabalho coletivo 1...1.
Só se o método for conhecido e dominado por lodos os integrantes do grupo e aplica-
do de modo coletivo é que se garante UIl1a verdadeira criação coletiva "M~.
Em outras palavras. o método. aqui. não é visto apenas COll10 urna ferramenta
desejável ou útil. mas sim, urna condição necessaria e exigida pelo próprio pro-
cesso. A criação coletiva, corno querem alguns de seus críricos mais ferinos ou
derratores. não é sinônimo de bagunça ou de um delirante "anarco-rnisticismo'?".
Ela demanda, pelo contrário, urna estruturação metodológica.
Outro ponto a destacar é a estreita relação deste método C0111 o sistema stanis-
lavskiano. O próprio Bucnaventura relaciona a "etapa ela investigação e elaboração
do texto" COll1 o chamado "trabalho de I11Csa", desenvolvido por Stanislavski c Dan-
rchenko, Segundo ele. o método da criação coletiva iniciaria por urna análise de texto
- "texto" aqui. entendido de forma abrangente. C0l110 sinônimo de "esquema de con-
flito", compreendendo desde as pantomimas romanas até uma dramaturgia de for-
Inato convencional. Ainda que Stanislavski tenha abandonado o "trabalho de mesa'
na última etapa de suas investigações. tal prática - sempre realizada no início de um
processo de montagem - ficou a ele associada.
Outra vinculação C01l1 o diretor russo aparece no uso que B'llcnaventura faz do con-
ceito de "analogia". Sranislavski preconizava a utilização de "situações análogas" corno
1110tor ou gatilho para a vivência do papel. Segundo ele. tal procedimento aproximaria
o ator do conflito vivido pela personagem. por um viés indireto, ligado à própria expe-
riência e subjetividade elo intérprete, sem que () I11eSnlO tivesse que se esforçar - ou
forçar - emocionalmente para concretizar UI11a dada situação-límíre elo papel.
Para o criador do TEC, a "analogia" é U111 instrumento ele trabalho para o ator,
definindo-a em termos muito semelhantes aos stanislavskianos: "O que entende-
1110S por analogia? Entendemos um conflito semelhante ao sugerido na obra ou na
parte ela obra que queremos improvisar'?". Contudo, pode-se perceber um desde-
brarnento na utilização desta ferramenta. Se, para Stanislavski, a "sit unção análoga"
esui fundamentatmcntc associada ~\ construção da personagem, em Huenaventura.
a analogia é utilizada também COI110 um meio de análise e invesrigação do texto,
das situações e dos conflitos nele contidos. Al ém disso, ela é 11I11<l forma de [ornar
a improvisação mais critica e criadora, possibilitando a revelação dos mecanismos
ideológicos em jogo.
E por que ~l sua opção por Sranislavski, ao invés de algum outro criador talvez
mais facilmente associável ao universo da criação coletiva? Parece-nos que a gramá-
tica do sistema stanislavskiano, ao se contrapor às idéias-clichês de inspiração divina
ou ele arroubos interpretativos inconscientes e desconrrolados. funcionava melhor
como referência modelar - e espécie de antídoto - contra as armadilhas de urn subje-
tivismo caótico ou de um esponraneísmo sem técnica, inimigos prováveis de proces-
sos grupais de criação.
A crítica que poderia ser feita, talvez. seja a de U1l1 excessivo espelhamento deste
método de criação coletiva no sistema sranislavskiano. Contudo, ele não se reduz a
uma cópia ou mera adaptação deste último, até porque Buenaventura irá amalgamar
urna perspectiva brechtiana - relativa aos princípios do teatro épico c dialético - à
sua metodologia.
84 nUEN:\VllNTURA, 1;.: VlDAI., J., "Notas para um método de criação coletiva", Revista Cam(l~
rim, n", 37. p. 31 .
43
8s MESA. F.I)~ ORTJ1.. 1:. 1'.; l'RADA. 1·1'., Im'~slig(l(.ióny Pmxis "li:atral,!1l ColomlJia. p.73.
44
das forças eru conflito"): "situações" (conjunto de ações. também entendida COIllO
"UJl1 momento da correlação ele forças". que vão se modificando quando estas se
transformam] e, por fim, "ações" ("a unidade básica do conflito e pode conter mais
de UI11 conflito, mas está determinada pela motivação, Se esta muda, a ação muda"]"
Ou seja, parte-se de urna instância maior para UI11a menor: urna seqüência é formada
por situações. e estas, por ações.
Terminada a análise e a divisão da peça. passar-se-ia à etapa da improvisação.
vista CO\l\O "urna primeira abordagem crítica do texto. que resulta na reescritura do
texto sobre o palco por meio de imagens. l~ também urna espécie de jogo'?". Será por
meio ela improvisação que os atores conseguirão se colocar artisticamente ele forma
mais plena. Através dela. suas visões de Inundo, suas opiniões, suas proposições tex-
ruais e cênicas virão à tona. permitindo urna real escritura do espetáculo. Por meio
desta etapa também são trazidas propostas visuais, sonoras, espaciais. etc. Em seu
esquema metodológico, Buenaventura propunha vários tipos de improvísação, que
permitiam se aproximar ou se distanciar desta dramaturgia em construção:
• Improvisação por analogia (ou metafórica): a mais utilizada pelo TEC, por
ser aquela "que se aproxima do texto por meio {da improvisação] ele expe-
riências análogas vividas ou criadas pelo ator". Podem também inventar
alguma "história paralela a que esta sendo narrada", E "em algumas ins-
tâncias. pede-se aos outros atores que não participaram da improvisação.
que contem. sem ncnnuru juízo. o que viram, e destas novas interpreta-
ções se seleciona rnatcríal para novas propostas";
• Improvisação por dissociação: "uma variação da anterior que tem mais a ver
com a organização do trabalho do que COH1 a improvisação cru si. Depois
de proposto o conflito, se fazem as improvisações análogas nas quais se vão
dissociando as imagens que foram encontradas. Então se estabelece uma
ordem elas imagens obtidas mediante um processo de eliminação até se che-
gar à imagem finar'. (Apesar de nossos esforços de pesquisa. faltou-nos um
maior número de elementos ou referências práticas para a compreensão
exata desse tipo de improvisação):
• Improvisação por oposição: "aproxima-se do texto através de urna imagem
de sentido oposto". Também "deixa-se livre a lógica da imaginação e dos
sentidos, e bloqueia- se a lógica analítica". E ainda permite "aos atores se
aproximar do texto seguindo o procedimento ela oposição binária; os COI1-
rrários imediatos corno um meio para produzir sentido. Assim, por exemplo,
a fome se representa por seu oposto. a gula; ou a pobreza pela riqueza":
------------------------------ -- - - - -- - - - -
45
mát íca - a enorme lacuna bibliográfica em relação a U111a experiência tão importante
COll10 a do TEC. E não nos referimos apenas aos títulos em português. Mesmo na
cachimbo cujo ftl1110 ernpestava tudo num círculo de trinta metros em volta,"-
."
Busca do terna - O terna é o assunto fundamental ela obra. que no início elo pro-
98 Esta obra encontra-se traduzida para o português pela editora Hucitec, porém a tradu-
ção realizada é a da primeira ed ição da obra. lançada em 1983. Santiago Garcia produ-
zirá duas nOV<lS edições, ampliadas c revistas, a primeira em 1989. e a segunda - que
utilizamos COlHO base dessa pesquisa - em 1994. Sugerimos aos interessados que adqui-
ram esta terceira edição da obra. disponível apenas em espanhol. Mais recentemente,
em 2002. Santiago Garcia lançou o Temia y Prciclica del Tetltt'o I/. As indicações técnicas
dessas obras encontram-se descritas nas Referendas, ao final do presente trabalho.
50
cesso encontra-se vago e genérico. para então. a partir das futuras improvisações e
elaborações termais. ir ganhando contornos mais definidos.
Definição do argumento - para o grupo. o argumento constitui o conjunto de
razões c explicações do tema. I? a maneira corno ele é desenvolvido e fundamentado,
ou seja. é a justificação do rema. Em outras palavras. "o argumento é a forma corno
se apresenta o terna. Equivaleria à forma elo conteúdo. enquanto que o terna é a subs-
tüncia do conteúdo"?'.
Encontro da motivação - etapa que define o caráter coletivo do trabalho. na
medida em que a proposição do projeto não vem do diretor ou de algum membro
especifico da companhia. mas nasce de urna vontade coletiva do grupo, aliada ao
contexto histórico c à realidade em que o I11eSlllO se encontra inserido. Os elementos
subjetivos e intuitivos têm um peso preponderante nesta fase.
Realização da investigação - etapa mais científica c objetiva . caracterizada
pelo estudo. levantamento e análise do material pesquisado. I~ C0111U111 aqui o gru-
po se dividir em equipes especificas a fim de contemplar diferentes áreas relativas
ao processo ele investigação (equipe responsável pelo levaruamcnro de material cru
jornais e revistas; equipe destinada à coleta ele obras literãrias relativas ao terna:
equipe dedicada à pesquisa do material musical. etc.], Vários estudiosos e especia-
listas acadêmicos também são convidados pelo grupo para auxiliar no aprofundá-
monto do material.
Etapa das improvisações - momento no qual o grupo começa a experimentar e
a reatralizar elementos escolhidos de toelo o material pesquisado até então. Segundo
Garcia. "o grupo esui saturado de informações c. neste momento. começa a traduzi-las.
a elabora-las através de improvisaçõcs'"?", Também aqui. a companhia pode se dividir
CU) diferentes equipes de irnprovísacão. responsáveis. cada uma, por problemas ou
assuntos dist intos. Ao final desta etapa, o grupo chega à elaboração de um novo mate-
rial, só que agora. teatralizado.'?' Garcia chama atenção também para a im portãncia
do caráter sempre renovado ele condução das improvisacôes. Segundo ele. "cada obra
exige urna técnica ou uma forma diferente de fazer as improvisações. N~10 pOclC1110S
nos contentar COIl1 fórmulas de improvisaçâo resultantes de trabalhos anteriores. ou
COIl1 esquemas de trabalho produzidos por outros grupos"!". I~ curioso C01110 tal afir-
Inação parece denotar discordância ou crítica ao método bucnaventuriano.
Hipótese de estrutura - fase de conformação elo argumento c de delimitação do
99 Gt\Jtci,\. s. 'lcmia y Pnlctica cid Tt."urro. 3,1 ed. Santafé de Bogotá: Ediciones Teatro La Cande-
laria. 1994. p. 34.
100 lbid.• p. 39.
1 01 í~ importante ressaltar que o grupo experimentou t..rmbém, CI11 outros processos de
crlnção, mesclar as etapas de busca do terna. investigação c improvisação, fazendo-as
ocorrer símulraneamenre.
102 GARCiA. s.• op.or., p. 41.
51
Ele chega. inclusive. na conclusão de seu livro, a afirmar que "'...) resolvemos nos
arriscar a criar (inventar) nós 111eSI110S nossas próprias obras. não corno resultado de
urna pose estcticísta. mas sim movidos pelas exigências elo momento. AssiJ11 nasceu
a 'criação coletiva- ern nosso país'"?",
Ou <linda, ao final da descrição do processo de trabalho de seu grupo, Garcia rei-
tera que "as possibilidades criativas do grupo dependem da capacidade criativa dos
indivíduos que o conformam e, por sua vez. eles estão determinados pela capacidade
do grupo em apreender a realidade:"?",
Dentre os princípios norteadores do percurso da criação dentro de La Candelaria,
vale a pena destacar
'...}o conjunto do processo corno lIJU fenômeno no qual o gnlpo se apropria paula-
tinamente dos terrenos de privilégio do autor c do diretor teatral COl1)O individuali-
dades criadoras do texto e do espetáculo. Queremos ressaltar novas possibilidades
de relação entre o autor (seja o grupo. ou urna com íssão - COJno CIl1 La Candelaria
- ou UH) dramaturgo - corno é o caso de Enrique Buenavenrura c o TEC). o diretor.
o ator e o público.'?"
deIaria - ainda que tenha havido momentos onde outros membros do grupo experi-
111cntaran1 o ofício ela direção.
É claro que o diretor aqui não se coloca - e nem é considerado - COlHO o principal
criador. O simples fato da existência de um período do processo em que todos criam
tudo, j<l relat ivizn todo o espaço das autorias e enfraquece a existência de-hierarquias.
Pois. "3 posição do autor [dramaturgo] C01110 executor do texto (autor-texto) sofreria a
transformação ator-texto e. em segundo lugar. a relação diretor-montagem teria que
submeter-se a semelhante reconsideração'"!'.
Em suma. tanto o texto corno a montagem seriam criados ern parceria pelo drama-
turgo. diretor e atores. cabendo a estes artistas. nU111 1l10111ento posterior do processo.
a finalização e o acabamento em suas áreas específicas. Ainda assim - o que difere um
pouco cio processo colaborativo - cada urna dessas funções. cada U111 destes especialis-
tas. continua tendo que se submeter ao trabalho coletivo da subcomissão ou do grupo.
Daí a posição de Garcia CIl1 defender a não-autonomía dessas funções. Além
- C01no acabamos ele ver - da submissão da criação individual à deliberação do cole-
tivo, ele arguIllcnta sobre a inegável existência de complexas ligações e de 111ÚlU<lS
dependências entre ator. diretor e dramaturgo. Portanto. não faria sentido advogar
qualquer autonomia criadora das diferentes áreas teatrais.
Ele aponta, porém, com lucidez, a preponderância de U1113 função sobre outra. de
acordo com o momento do processo. Por exemplo, o dramaturgo teria urna atuação
mais acentuada no momento final da etapa elas hipóteses de estrutura c logo depois,
na consolidaçâo da primeira versão da pc<;a. Ou ainda. certo privilegio elo ator Cl11 rcla-
cão ao dramaturgo c ao diretor, corno provocador das transfonuacõcs textuais. a partir
elo 11lOlnCIHo em que () espetáculo é apresentado e discutido pelos espectadores. Mes-
1110 que o diretor continue trabalhando sobre a montagem c que o dramaturgo possa
recolher c modificar o material surgido nos debates COIll o público. é o ator quem. ele
fato. lidera tal confrontação. sendo ele o responsável para se chegar ao segundo texto
ela B10l1tagC111 - o que equivaleria ao texto final e definitivo. ou algo próximo disso.
Beatriz Rizk. ao estudar os processos de criação do grupo apresenta distintas meto-
dologias de trabalho. que variam de acordo C0111 o momento e os objetivos ora em
questão. Por oxeruplo, na elaboração da peça Diálogo Del Rebusque (1981). foi a partir
de um texto escrito na íntegra pelo diretor do grupo. Santiago Garcia. que os atores
foram convocados a criar - neste caso. não mais o texto. 111aS a montagem em si.
j(í ern Golpe: ele Suerre, a partir de 111na investigação inicial conjunta. realizada por
todos os integrantes. houve urna divisão do grupo CIn três equipes de trabalho. para
tratar dos diferentes aspectos da montagem (música: dramaturgia e cenografia e figu-
rinos) C0l11 a ajuda de especialistas. Estas equipes recebiam urna coordenação geral
por parte de Santiago Carcía.
Portanto, seja corno um movimento interno de desdobramento dentro ele seu pró-
prio percurso. seja corno exceções - ou 1110111entos de exceção dentro de urna deter-
minada trajetória artística grupal -, é problemático definir a criação coletiva apenas
por meio ela supressão das funções e do "todo-mundo-faz-tudo". Incorremos, se assim
o fizermos, no risco de generalizações amplas demais ou na manutenção de visões
reducionistas que se consolidaram através do tempo.
Contudo, se é importante, por um lado, ressaltar que o m()dlL~ opel·auc1i de algumas
cOlllpanhias teatrais latino-americanas t.enha se diferido de outras da mesma região e
de suas congêneres européias e americanas. por outro lado. este 1110do particular de
criação não foi hege111õnico. Isto é, houve vários grupos, corno vimos anteriormente.
onde a autoria individual era Inativo de crise ou desconforto. e tratada C0I11 reservas.
É claro que. em algumas dessas experiências. parecia existir UI11 receio ou confusão
entre "função individuar' e "cstrclísrno", além de grupos que viam a permanência elo
autor personalizado C01110 resquício de U1l1 teatro "burguês" e "anri-revolucionárío".
Recusava-se, na verdade. a "especialização" ou a "proflssionalísmo' dentro elos moldes
burgueses de distribuição dos papéis de trabalho. Sob essa ótica, a criação individuali-
zada era vista COlHO inimiga ou corno elemento inconciliável C01l1 a criação grupal.
Daí porque. via de regra. o processo e o resultado criativos eram coletivizados pelo
grupo todo ou realizados por equipes reduzidas - que funcionariam COI110 pequenos
coletivos dentro de UH1 grande coletivo. Tal dinâmica configurou - COlHO jri vimos - urna
prática e/ou um discurso de negação ou de enfraquecimento da autoria individualizada.
Nesse sentido, não nos parece que o processo colaborativo se configure COlHO
uma mera cópia ou U111 rcvival da criação coletiva. Não se [rala de UH) mesmo
fenômeno. apenas alcunhado de forma diferente. Ainda que ele se constitua corno
urna decorrência. um desdobramento ou uma reconfiguração daquela experiência
da década de 60 e 70, o que está em jogo não é apenas urna mudança de nome.
MeSI110 se os termos criação coletiva e processo colaborativo podem ser considerados
Ul11 tanto vagos e imprecisos. os processos ~lOS quais eles remetem circunscrevem
U111 1110(\0 específico e peculiar de criação. Passemos, pois, a fim de melhor inves-
tigarmos esta hipótese, <I discussão sobre o processo colaborativo e a função do
cncenador dentro dele.
lI:? MESI\, F. D; ORTIl. F. I'.; l'(V\DA, J. ('., 11lv~stig(1(,ión y l'nlxis Tl.'cUral en Colombill. p.74.
56
Num dos primeiros textos escritos sobre o processo colaborativo, Luís Alberto de
Abreu observa que ele. enquanto fenômeno. "provém em linhagem direta ela chama-
da criação coletiva". mas, por outro lado. Ué necessário que se preserve as funções de
cada artista"}. Advoga que "de uru lado existe total liberdade de criação e interferên-
cia, mas de outro é vedado a U111 criador assumir as funções do outro. Ou seja. um
ator pode discutir. sugerir mudanças, propor diálogos ou até IneSI110 escrever uma
cena, no entanto é o dramaturgo que deverá fazer a organização desse material">, Ao
final de sua reflexão. Abreu chega mesmo a postular que "sem hierarquias desne-
cessarias, preservando a individualidade artística dos participantes, aprofundando a
experiência ele cada um, o processo colaborativo tem sido urna resposta consistente
para as questões propostas pela criação coletiva dos anos 1970":1.
Se a reflexão ele Luís Alberto de Abreu nos fornece algumas pistas para a compre-
ensão do referido fenômeno. gostaríamos de acrescentar a elas algumas considera-
ções advindas da nossa própria experiência de criação no Teatro da Vertigem. cuja
prática também é denominada pelo grupo processo colaborativo.
Conforme expresso CI11 nossa dissertação ele mestrado, "tal dinâmica (...( se consti-
tui numa metodologia ele criação em que toelos os integrantes. a partir de suas funções
artísticas específicas, têm igual espaço propositivo, sem qualquer espécie de hierar-
quias. produzindo UI11a obra cuja autoria é compartilhada por todos?", Hoje. contudo.
acreditamos que melhor do que "ausência" de hierarquias. seja mais apropriado pen-
sarmos ern hierarquias momentâneas ou flutuantes. Iocalizadas, por algum Il10111en-
[0, em U111 determinado pólo de criação (dramaturgia, encenação. interpretação, etc.)
para então. no 11101l1ento seguinte. se mover rumo a outro vértice artístico.
Antes de prosseguirmos. contudo. é importante ressalvar que tanto pela ausên-
cia de distanciamento histórico quanto pelo fato de nossas criações artísticas se
5 o pesquisador luis Fernando Ramos. em conversa coru o autor deste trabalho. levanta
~ hipótese desse importante grupo paulista da década de 80 - do qual fizeram parte,
entre outros. Luiz Roberto Galizia. Paulo Yutaka, e Alice K. - ter realizado a "passagem"
ou mesmo se constituir em espécie de "antecessor" do processo colaborativo, Segundo
ele. o Ponkã apresentava "uma sotisticação que repropunha o trabalho coletivo do fim
dos anos sessenta aliando ao rigor já praticado, por exemplo, pelo Oficina, .... dispostçãc
de rnetodicamenre canalizar as energias criativas do grupo no sentido de voltar a fazer
proposições estéticas e de linguagem. projeto que o histórico grupo dos anos sessenta
abandonaria definitivamente depois de GmrilIs Ser101'. em favor de UJJla aruação mais
política e existencial que já ocorria fora do teatro. O Ponkã aliava essa proposta coletiva
à necessidade de U1l1 encenador forte. mas sem personalismo. que tinha a idéia de cons-
[ruir COll1 a energia do grupo todo, tanto o material dramatúrgico quanto cênico".
58
Por exemplo, dentro do Teatro da Vertigem. existia urna recusa ela idéia do "todo-
rnundo-Iaz-tudo", do "obaobísmo", dos "espetáculos de expressão corporal" associa-
dos àquele 1110do ele criação das décadas de 60 e 70. Ainda que tal recusa fosse fruto
de urna visão reducionista ou preconceituosa - compartilhada por vários outros gru-
pos de então -. havia urna clara motivação de restabelecimento do discurso coletivo
em contraponto ao teatro de diretor.
Se. por um lado. parecia haver um projeto de retornada de princípios e valores
da criação coletiva - porém. praticados ele maneira distinta -, por outro, havia urna
recusa da "década dos encenadores", sem, C0111 isso, pretender abolir a função ou
a figura do diretor. Quase corno se o processo colaborativo pudesse realizar urna
síntese do discurso e da ideologia coletiva COll1 a permanência ela função artística
individual.
Urna consideração importante a ser feita é que os termos tcntro de grupo e processo
colal1orlllivo não são necessariamente sinônimos. Ainda que, desde meados da década
de 90. presenciemos urna retomada C um fortalecimento do movimento de reatro
de grupo - que vem marcando a cena contemporânea brasileira até agora -. existem
vários coletivos teatrais que não trabalham - ou que não clcnorninam seu processo de
criação - dentro de parâmetros do processo colaborativo,
Tal distinção também poderia ser feita em relação ft criação coletiva. Só para ficar-
mos no âmbito brasileiro, se grupos corno o Pocl Minoga, o Asdrubal Trouxe () Trorn-
bane, o Sonda. o Teatro União e Olho Vivo ou o Núcleo Independente podem ser facil-
mente associados ~) criação coletiva, outras companhias importantes corno o Arena
e o Oficina apresentavam processos de trabalho distintos - ainda que. vez ou outra.
tenham flertado com a criação coletiva, C0l110 foi o caso elo Oficina na montagem do
espeuiculo GnlciCl$ SeiifW.
Poderíamos realizar, antes de qualquer coisa, e corno primeira abordagem teórica,
UHl exercício de pensar o processo colaborativo por diferentes aspectos ou (111 b'1l1os. Vísua-
lizarnos quatro possíveis recortes. a saber: COIll0 modo de criação, C01no metodologia de
trabalho. COlHO modo de produção e corno resultante estética.
tan1lJén1 a partir elo seu modo de fazer? Ou melhor, estudá-lo à luz desse biriôruio
mctodo e modo?"
Tal perspectiva pode nos ajudar a entender o porquê algumas pessoas advogam,
de maneira ferrenha. que processo colaboraf'ívo e cJiaçiio coletiva são denominações dis-
tintas para uma prática que seria a mesma. Talvez a defesa da equivalência desses
dois termos esteja baseada ern UH1 tipo de visão que os pensa enquanto l1rétoc1o. E. ele
fato, por seu fazer coletivizado, por sua diretriz dialógica. pode-se, sem incorrer em
erro, pensá-los geminadamentc.
Contudo, se olharmos para essas duas dinâmicas pelo viés do 11lodo, perceberemos
que o COl110 se opera a inter-relação entre os diferentes elementos de criação produz,
aqui, processos distintos. Por exemplo, o diálogo ocorre entre funções j<l definidas e
assumidas desde o início. O trabalho de criação só se inaugura. ele faro, a partir desse
pacto previamente estabelecido. Ou seja, o grupo. por meio de un\ consenso - ou
endosso - define a ocupação de cada área artística, segundo o interesse e a habilidade
dos integrantes ou convidados. É claro que. em muitas das funções, tal decisão nem
se faz necessária, na medida em que é C0I11UIl1 a permanência e a continuidade dos
colaboradores, de um projeto para o outro.
Se. em relação às personagens, não é rara a existência de urna etapa. dentro dos
ensaios. C1n que todos os atores exploram todos os papéis. o mesmo não ocorre em
relação às funções. Ou seja, não ha um período em que todos os integrantes expe-
rirneutarn todas as funções - ou em que elas são deixadas em aberto por um tem-
po - para. só então. haver a definição de quem fará a cenografia ou a dramaturg!a.
Sabemos, por exemplo, que em algumas práticas de criação coletiva. quando ocorria
algum tipo de definição de ~1tribuiçào. ela só se estabelecia muito tempo depois de
- -iniciados -os ensaios.
Além disso, da forma corno praticada pelo Vertigem até agora. a criação não tem
se caracterizado pela mobilidade de funções. Porém nada impede que isso aconteça.
Pois, se essa mobilidade ocorrer de um projeto para outro - e não dentro de U111 mes-
1110 espetáculo - não há a descaracterização do processo colaborativo, Por exemplo..
não haveria nenhum problema de UI11 ator elo grupo numa determinada peça, vir a
se tornar o dramaturgo ou o diretor na montagem seguinte.
Nem 111eSlnO a sirnultaneidadc ou conjugação de funções dentro de U111 ruesrno
projeto, apesar ele se constituir numa situação mais complexa, inviabilizaria a prática
do processo colaboratívo. Tudo iria depender de quais funções seriam assumidas pela
mesma pessoa e da capacidade do grupo em gerenciar urna situação assim.
Se a horizontal idade das funções é uma regra básica de funcionamento desse
1110c!O de criação. é inegável a revalorização do ator COIllO um criador em pé de igual-
dade COIll o dramaturgo e o diretor. A sua função autoral, muitas vezes encoberta ou
restrila à execução técnica de determinada personagem, fica potencializada no pro-
cesso. Na prática. no instável equilíbrio de forças da sala de ensaio. a dramaturgia e
a direção parecem "perder" seu caráter de onipotência e onisciência. abrindo espaço
para uma interferência autoral forte por parte dos intérpretes.
Outro aspecto importante diz respeito à síntese final. Se, na criação coletiva, a
autoria individual - quando ela ocorre - deve estar submetida à vontade grupal, aqui
ocorre U111 tensicnamento ao limíte entre estes dois pólos. Isto porque o artista res-
ponsável por urna área relu a palavra final sobre ela. Parte-se do pressuposto. é claro.
que ele irá discutir. incorporar elementos. negociar C0l11 o coletivo - durante o tempo
que for necessário -. porém, no caso de algum impasse insolúvel, a síntese artística
final estará a cargo dele.
Aliás, toda essa dinâmica de negociações é causa principal da dilatação do tempo
de ensaio. Gasta-se - e não "perde-se" - muito tempo em debates e na busca ele solu-
ções em que todos se reconheçam. A criação se torna mais lenta e distendida. o que
pode se tornar UI11 elemento de desgaste nas relações. a longo prazo. Por outro lado.
é muito difícil o amadurecimento de UI11 discurso coletivo. de forma orgânica e cons-
ciente. sem ser por essa via.
A existência de urna forte autoria individual cria um importante pólo tensiona-
dor em lllll processo marcado por inúmeras interferências e contribuições. Ele tanto
favorece a filtragem c seleção do vasto material produzido quanto funciona corno
um eixo aglutinador das proposições grupais. Se. por UI11 lado. ele age corno urna
barreira. um limite. uma fronteira. por outro, ele facilita e estimula a interlocução e
a expansão elas zonas ele colaboração.
Esse pólo criador individual- por paradoxal que pareça - acaba também acirran-
elo o posicionamento grupal, Ele provoca uma tensão produtiva. ou até mesmo UIl1
- ---- .anragouísmo. que Iortalece o próprio grupo e o conceito-geral que o n1<.~SnlO tem elo
trabalho - ainda que por via ela crise e do conflito. Por outro lado. as individualidades
também saem fortalecidas por essa dinâmica ele confrontos, díãlogos e negociações.
presentes dentro do processo.
Aliás, poder-se-ia pensar a "crise" não apenas corno uma conseqüência à qual o
grupo está necessariamente fadado. ]11aS C0l110 um mecanismo implíciro e impul-
sionador em processos desta natureza. Ou seja. a sua deflagração pode ser vista não
COl110 uma reação espontânea e indesejada. mas corno urna ação rransformadora.
ções elo dramaturgo e, lodos juntos. se submetem aos parâmetros cio produtor. Ou. se
ao contrário, o espetáculo órbita em torno de UI11 determinado ator. essas linhas ele
dOlninaç<10 se invertem.
lí em tl111 caso diametralmente oposto a esse, o da criação coletiva. o que se esta-
belece - ou se procura estabelecer - é um plano de horizontalidade máximo. Ou seja.
ninguém subjuga ou direcioná ninguém. Toclos estão em pé de igualdade, o tempo
inteiro. em relação a todos os aspectos da criação. Daí que. nos casos em que tal dinã-
mica - e o projeto utópico nela embutido - tenha funcionado efetivamente, presen-
ciamos UI11a estrutura baseada num sistema ele coordenação.
No caso do processo colaborativo, o que ocorre é UIl1a contínua flutuação entre
subordinação e coordenação. fruto ele UIl1 dinamismo associado às funções e ao
momento em que o trabalho se encontra. Por exemplo. a definicâo do projeto. dos
colaboradores. das técnicas a serem experimentadas (treinameuto físico e vocal. tipo
ele exercícios, etc.), é toda ela decidida ou endossada coletivamente - n(10 raro através
ele votação. em caso de impasse, Ou seja. essa etapa ocorre sob a égide ela coordena-
ção. Em outros momentos, COlHO a distribuição dos papéis (a cargo do diretor). a defi-
nição final do texto (a cargo do dramaturgo) ou o desenho da luz (a cargo do ilumina-
dor}. por mais que ocorram debates e confrontos. o grupo acata a decisão de quem é
o responsável por aquela função. Isto é, trabalha sob urn regime de subordinação.
I~ claro que tais definições não são ocasionais. Ao contrário, são fruto de muita cxpc-
rimcntnçâo. de longo amadurecimento c ele constantes negociações entre os inte-
grantes. Elas são conseqüência, ainda, ela complexa rede de interdependências que
marca todo o processo. Ü muito COIllUI11, por exemplo. haver contínuas mudanças
ele opinião c de posicionamento em razão desses embates criativos. O ideal. porém.
quando se opera numa sisternática de subordinação, é que ela 11<10 ocorra no âmbito
mesquinho ela luta de poder ou ela mera demarcação ele território.
Além disso. o exercício de acatar urna definição artística alheia parte ele uma esco-
lha anterior e criteriosa realizada por todo o coletivo ern relação a esse "outro" COJll o
qual se estabelece urna parceria. Ou seja. trata-se de UIl1a subordinação que é decor-
rente de uma prévia dinâmica de coordenação. O grupo escolheu C0l11 quem quis
trabalhar e não simplesmente foi contratado para realizar um espetáculo (0111 uma
equipe pré-definida.
Por outro lado. os colaboradores convidados pelo grupo também não atuam COlHO
simples executores. Eles participam e contríbuern para a definição do conceito-geral
cIo trabalho (vale a pena observar que há urna grande diferença entre "exercer uma
função" e "ser funcionário" - subentendendo aqui, no caso deste último, uma sub-
missão passiva e burocrática]. Dessa forma, os colaboradores-convidados vão se inse-
rir também nessa dínãmica fluida de coordenação-subordínnção.
E. por fim, é importante perceber que esses regimes podem ocorrer sucessivamen-
te. num jogo de ir-e-vir, dentro ele um mesmo momento da montagem. Por exemplo,
62
7 l\EN1:\MlN. w. Magi<t c Iécnüu, l\rt~ c Política. São Paulo: Editora BrasHicnse. 1993. p. J 31.
65
uma questão administrativa pode ser carregado para dentro da sala de ensaio. Ou
ainda. urna reunião artística demorada ou 11111 ensaio que avança até a madrugada
adia decisões Importantes de produção que precisariam ser tomadas C0l11 presteza.
Contudo. apesar dos possíveis curto-circuitos, o ganho decorrente do controle admi-
nistrativo e produtivo é. ainda assim, superior. Ele induz a Ulll amadurecimento nas
relações intra-grupais. fortalece os princípios de associação e cooperação. conscienriza
66
rializada em sínteses imagéticas. Ainda que seja pedida aos atores a criação de textos
escritos. a parte mais significativa das improvisações e workslwps está assentada na pro-
dução de imagens, o que justifica a presença determinante delas no resultado final.
Poderia ser apontada ainda a existência ele urn elemento fragmentário, ele justa-
posição de cenas sem forte ligação causal, produzindo urna estrutura dramãtica mais
aberta e rarnificada. Tal configuração. marcada por elementos de colagem, intertex-
tualidade e cadeias de leitruotiv. é resultado direto do conjunto diversificado de vozes
artísticas presentes no processo. e poderia incorrer em flacidez estrutural e em peças
"colcha-de-retalho", Porém a presença de UHl dramaturgo individual contribui para o
fortalecimenro do texto, evitando UI11a perigosa generosidade benevolente - a qual.
de brincadeira. denominamos "síndrorne ele Madre Teresa de Calcutá" -. que se vê.
obrigada a incorporar as contribuições ele todos os integrantes o tempo inteiro.
A não-hierarquização das [unções também acaba refletindo numa obra em que
os aspectos textual, espetacular ou interpretativo não têm caráter epicêntrico. Em
outras palavras. rn.\111 processo constituído a partir de hierarquias móveis, os dife-
rentes elementos ela cena vão também apresentar urna flutuação de dominâncias ao
longo do espetáculo. Às vezes é o texto que terá predominância, enquanto em outros
momentos, é o trabalho do ator ou a experiência sinestésica proposta pela encenação
que capturara a atenção do espectador.
Em relação a esse último aspecto. é possível observar como muitos dos espetá-
culos realizados em processo colaborativo nprcsentam urna forte experimentação
espacial c{ou de relação C0\11 a cidade e seus espaços públicos. Parece existir urna
conexão entre estes coletivos autorais e um projeto de exploracão do espaço cênico c
ele interferência em locais específicos da cidade.
Apesar de não haver uma relação direta entre a dínámica interna deste tipo ele
processo COlll UH) projeto de ocupação urbana, alguns elementos podem ser identifi-
cados. O fato de os integrantes do grupo trazerem seus problemas e interesses para
os ensaios, corno material ele criação. parece contaminar o trabalho C0l11 questões
ligadas à vida na cidade. Além disso. muitos desses grupos têm suas sedes em bairros
específicos (Bixiga, Vila Maria Zélia. BaITa Funda, Luz, etc.), o que provoca urna inte-
ração cotidiana COll1 o entorno destes locais. Aliada a esta conjuntura. as constantes
atividades pedagógicas realizadas pelos artistas com a população local trazem para o
âmago da companhia, depoimentos. histórias e questões a ela concernentes.
No que diz respeito à interpretação, a perspectiva testemunhal e prepositiva solici-
tada aos atores induz a um registro mais cxperiencial, COll1 fortes traços performáricos.
Isso é acentuado pelo fato da não existência de um texto prévio. de personagens prontas.
de marcações desenhadas previamente pelo diretor. o que amplia a zona de insegurança
na qual o ator deverá trabalhar. Este elemento de desorientação, de perigo e de risco acom-
panha todo o processo. deixando marcas na qualidade de presença e no registro físico e
vocal dos intérpretes, o que os aproxima bastante àqueles do peljol7llcl-.
68
distinção entre "autor' e "escriptor", O primeiro termo diz respeito a urna noção de
paternidade. de anterioridade, de origem em relação il obra, em suma, de UI11 "Autor-
Deus". .Jü o segundo. "nasce ao mesmo tempo que seu texto". não h<í precedência
mas, sim, concomitância. inscrição feita no aqui e no agora, o que lhe outorga um
caráter "performativo":".
Se não podemos nos esquecer elo 1110111cnto ern que esse ensaio foi escrito - 1968
- e nem ele sua ressonância contextual COll1 o período ela criação coletiva. por outro
lado devemos ter em mente que a questão-chave defendida por Barthcs para a 1110r-
te do autor tem C0l110 alvo o fortalecirnento do leitor. É aí que se encontra o ponto
nevrálgico de sua discussão sobre autoria. Não é à toa que seu texto se encerra COUl a
célebre frase "0 nascimento do leitor deve pagar-se COiU a morte do autor" 11.
Se tal defesa pode ser remetida à nova relação C0l11 a platéia c fi sua transfor-
mação em co-autores advogada pela criação coletiva. ela também não é estranha à
abordagem que o processo colaborativo faz do público. Contudo. Barthes apresenta
dois termos que parecem fecundos à nossa discussão: "escritura coletiva" c "escri-
tura múltipla".
Ainda que ele 11,10 faça uma comparação entre esses conceitos. associando o pri-
mciro a UHl procedimento de dessacralizaçâo do autor realizado pelo surreal ismo.
e o segundo, a UI11 tipo de escritura que dispensa qualquer decifração, t0I11alllOS a
liberdade de estabelecer Ulll paralelismo entre os dois.
Se pensarmos a "escritura coletiva" C0l110 aquela realizada por várias mãos. todas
juntas escrevendo. ao mesmo tempo, UHl mesmo "texto". poderíamos associá-la a
urna prática COnlU111 na criação coletiva. Ao contrario. a "escritura múltipla" definida
COl110 "um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras
variadas, das quais nenhuma é originar', onde "o espaço da escritura deve ser percor-
rido, e não penetrado". remete-nos ao território do processo colaborativo.
Nele, os vários autores - ou autorias - não se somam, mas coabitam dentro da
obra. As diferentes escrituras individuais estão ali mantidas, identificáveis, e o con-
junto se ferina não pela síntese entre elas. luas pelo diálogo e atrito, pelo choque de
pólos artísticos particularizados, que se justapõem ou se contaminam, mas não se
diluem UIl1 no outro.
UHl ensaio também importante, que nos aponta alguns elementos em relação ao
problema da autoria. é o de Michel Foucaulr. denominado "O que é UI11 autor?". Nele,
são discutidas as noções de autor, de obra, de autenticidade. de escrita, da "função
autor" e da "funçào sujeito". Em sintonia com Barthes, ele não reivindicara própria-
mente a "morte' do autor, I11aS sim o seu dcsaparecirnento ou apagamento, C0l110
urna estratégia "que permite descobrir o jogo da função autor"!".
O (ato de pensar o "autor" corno urna função CI11 si amplia () campo deste conceí-
to, pois ultrapassa a associação e a dependência entre a "autoria" e a pré-existência
de funções artísticas definidas. I~ COlHO se ela não fosse mais UI11 dado imanente da
função ou a ela condicionada. Foucault. ao abolir a subordinação entre esses dois
termos. nos faz pensar a função-autor corno UH1 aspecto anterior e C01l111111 a todas as
funções artísticas individualizadas.
Aliás, ele problematiza a questão da individualidade na autoria. ao afirmar que
"a palavra 'obra' e a unidade que ela designa são provavelmente tão problemáticas
COlHO a individualidade elo autor"!'. Por exemplo, em que medida ela não comporta-
ria em si, urna pluralidade de "eus"?
Além disso, ele afirma que o "nome ele autor serve para caracterizar U111 certo
modo de ser do discurso"!' e apresenta alguns critérios que agrupam obras distintas
sob a mesma autoria individual: "homogeneidade": "filiação": "mútua autenticação",
"explicação recíproca"; e "utilização concomitante". Se nos utilizassemos de tais cri-
ficha técnica". Tais irrupções agressivas, no entanto. nunca passaram de reações pas-
sageiras a momentos de agudas crises.
Se se tratasse de Ull1 formato empresarial tradicional. talvez as conseqüências e os
desdobramentos fossem outros. Porém. no processo colaborativo, o fato de a autoria
individual estar sempre sendo estimulada pelo diálogo com as proposições e interfe-
rências do grupo todo. a demarcação rígida dos direitos de criador fica relativizada tG.
Aliás. COl110 j~í vimos, não se trata apenas ele urna dinâmica de estimules e retro-ali-
mentaçôes. Há. de 1:1 to. a incorporação de sugestões e formalizações oriundas dos
outros membros da companhia, no C01]JUS da criação individual.
Essa autoria, que se dá. - ainda que não exclusivamente -. por mecanismos ele
apropriação, torna altamente problemática urna atitude de proibição ou veto à exi-
bição da obra individual. Na verdade. urna explicação para isso se encontra no fato
ele se tratar de U111a obra individual sim, porém impregnada de impressões digitais
alheias. criada em diálogo e em interdependência C0I11 urna obra grupal.
No caso da encenação, por exemplo. seria UHl contra-senso advogar tais direitos.
tamanhas são as contribuições sugeridas por toda a equipe. E 11leS1110 no caso elo
ator. cujo resultado artístico se d,l no corpo - o que o torna mais palpável. às vezes,
do que um conceito ele direção - também não parece fazer sentido urna eventual
briga por direitos de autoria. Pois a criação dele está atravessada pela dos outros
atores - seja quando experimentaram a sua personagem ou quando trouxeram
material cênico para ela -, pelo diálogo C0l11 a direção - as marcações e os gestos
foram criados em parceria - c pelas interferências dos outros criadores - por cxern-
plo, uma proposta de figurino que consegue formalizar urna personagem ou figura
ainda cmbrionaria.
Prova disso é que - por relatos e experiência própria - sempre que houve a neces-
sidade de realizar substituições. 111eSI110 em saídas mais conflituosas. nunca houve
recusa. proibição ou 111eSIll0 solicitação de porcentagem financeira pela criação. por
parte dos atores que deixaram o grupo.
Examinando o problema da autoria C0I11 nosso orientador. Jacó Guinsburg. ele
defende que não há a exclusão de autorias no processo de trabalho ela criação cole-
tiva. EI~lS continuariam ali, presentes, ainda que menos assumidas. Segundo ele. o
diferencial que ocorre em relação ao processo colaborativo é que nele a autoria se
coloca de f O rr11a mais objetivada.
16 Na opinião de Abreu. por exemplo, "num processo de criação compartilhada n~10 há mui-
to espaço para 'minha cena', J11CU texto', 'minha idéia'. Tudo é jogado numa arena co-
t
Além disso. tanto CI11 um quanto em outro, a atitude autoral ocorre em todas as
etapas ela criação, desde a definição do conceito até a finalização das apresentações
públicas. A distinção, no caso da criação coletiva, dizia respeito à recusa ou à dificul-
dade com a autonomia de urna atitude aurora! individual.
Se quiséssemos ampliar ainda mais essa discussão. precisaríamos refletir sobre
corno o papel da internet vai desesrabilízar C propor U1118 nova perspectiva sobre o
problema da autoria. Compartilhamento de dados, lJlogs, sitcs cujos textos e imagens
podem ser reconfigurados por cada usuário que ali navegar, são alguns exemplos da
ampliação de perspectiva sobre o lugar da autoria no contexto atual. Segundo jcan-
Louis Lebrave,
17 ZUJ.AR. R. (arg.). Criação em Processo: ensaios de aíticcl genérica. S~10 Paulo: Iluminuras, 200~.
p. t 17.
18 uwrs, M. D. Gmnt! TIlem)': II nontec1mic<ll inLroducliolZ. Mincola: Dover Publicatious. 1997.
pp. XVII-X\'IU.
73
escolha vs. acaso, a teoria dos jogos ajuda a pensar sobre decisões que precisam ser
romadas conjuntamente, acordos que precisam ser estabelecidos a partir de dife-
rentes interesses. e dilemas ou situações paradoxais que nccessíram ser superados.
Portanto. nada mais apropriado para o cotidiano da sala de ensaio. onde dramaturgo.
diretor e atores ., negociam" uma criação compartilhada. e que a partir de preferên-
cias individuais chega-se a escolhas coletivas.
Por outro lado, é importante estarmos atentos às limitaçóes da teoria dos jogos
em relação ao campo artístico. Por se tratar de modelo matemático - do qual não
rrararcmos aqui - C01l1 aplicações específicas no campo da ciência política ou da
(lchninistração. entre outros, em que se buscam "soluções". "estratégias" ou até mes-
1110 "formas de se ganhar urna disputa". as correspondências C0I11 o universo teatral
devem ser realizadas CaIU cuidado. O aspecto evolucionista e cornportamental dessa
teoria. marcadamente behaviorista. também inspi ra cautela. Além disso. a lgumas
correntes da administração se utilizam desses princípios corno forma de "exploração
da cooperação". Portanto. o que vai nos interessar não é a aplicação t~atnll da teoria
dos jogos. mas, símplesmente. algumas possíveis aproxiruações a seu universo!".
No processo de ensaio. é comum o conflito entre desejos artísticos individuais
contrastantes C mesmo desses em relação a aspirações coletivas de ordem mais geral.
Às vezes. sem perceber. as pessoas estão lutando entre si movidas por impulsos nar-
cisistas. demarcações de territórios ou crises de insegurança. Ao mesmo tempo, rarn-
bérn, subsiste a vontade e a necessidade de cooperarem UI11;lS com as outras.
Enquanto diretor, COlHO perceber as motivações e as forças que se encontram em
jogo? Corno não transtormar. por exemplo, o período de livrc-cxperuuernução dos
papéis por parte dos atores em urna estratégia de cornpct ição? Corno levar em conta
as aspirações individuais sem, com isso. se tornar refém delas. sem prejudicar o pro-
jeto que é. na origem e 110 fim. coletivo?
Morton D. Davis vê a tornada de decisões COlHO U111 jogo de estratégia, e aponta
que "em um jogo, cada jogador deve avaliar a extensão na qual os seus objetivos com-
binarn ou colidem C0111 os objetivos elos outros e decidir se vai cooperar ou competir
C0l11 lodos ou alguns deles'?"
Se concordarmos quanto à natureza de "jogo: que atravessaria essa clinàmíca
elas escolhas grupais, que regras as no rtea riarn? Antes de qualquer coisa. Davis
coloca a questão numérica corno fator determinante. Urna decisão entre dois - por
19 Outro fator importante na compreensão da teria dos jogos foram i.1S duas palestras
realizadas pela física Gila Guinsburg ao grupo de orientandos do Prof. jacó Cuinsburg.
no 1° semestre de 2007. Nesses encontros. ela realizou uma "tradução" da Iinguagcm
matemática envolvida nesta teoria e ajudou-nos COIll exemplos práticos, retirados do
cotidiano, a transpor fórmulas e equações para casos concretos. 'Ial contribuição 1\\OS-
trou-sc bastante útil no descnvolvirncnto dessa pane do trabalho.
20 DAV[S. M. 1>., Game '11IeorJ'; u lIonL~c1mical irlll"oductioll. p. XIV.
74
exemplo, UIl1 ator e o diretor - é muito distinta daquela tomada entre mais de
duas pessoas ou "n" pessoas - imaginemos. ern nossa área, urna "assembtéta'' C0111
o grupo teatral inteiro.
t\1énl disso. se no jogo bUSGll110S encontrar tinta solução. aqui, - especialmente
por se tratar de várias pessoas reunidas. todas convivendo C0I11 objetivos coincidcn-
tcs c discordantes - esta solução pode não existir OU~ ao contrário. existirem várias
possíveis. Segundo ele. os jogos complexos são menos previsíveis do que os jogos
simples. porém são mais interessantes e férteis.
Entre as dificuldades associadas à tornada de decisões podem ser destacados três
fatores: a falta de conhecimento das conseqüências de cada urna das opções possíveis:
as manipulações - conscientes ou não - dos outros "jogadores": e a interferência do
acaso. Na esfera do processo colaborativo, o grau ele empirismo a ele inerente acaba
por maximizar estas dificuldades.
U1n cios elementos que pode auxiliar a tornada de decisão é a expressão elas pre-
ferências da pessoa. de maneira consistente, a fim ele que ela possa realizar urna
escolha racional. Segundo Davis. um fator determinamo no processo de escolha é a
fonn(1 corno as diferentes alternativas são expressas. pois as pessoas nem sempre
U _ ••
dramaturgo ameaçou não assinar o texto caso o final ela peça tornasse
determinado rl1l110. Tal afirmação - que se mostrou, posrcriormcute. se
rrara apenas de uma provocação - causou impacto no grupo e fez com que
intensificássemos a busca por 1I111 final que pudesse contemplar a todos.
• Construção de acordos: C0I11D todo acordo é alcançado coletiva e volunta-
riamente. a partir ela negociação entre os jogadores. ele deve ser "protegi-
do" por regras que garantam o seu cumprimento, No que diz respeito ao
teatro. a elaboração de "regras de proteção dos acordos" pode soar derna-
siado coercitivo ou burocrãtico. Porém. pode-se estabelecer - c lembrar,
sempre que necessário - pactos artísticos C0111Uns. A idéia em si de cons-
trução e de rnanutenção de acordos - ainda que eles possam ser t ransfor-
mudos inteiramente num momento posterior - é bastante valiosa para o
bom cucaminharucnto do processo.
• Agir coopcrntivnmcnte: cada jogador tem duas escolhas básicas. "coo-
perar" ou "não cooperar". Quando todos os jogadores atuam cooperati-
vamenre. cada um deles tem melhor resultado individual do que quando
todos atuam sem cooperação. De fato. cooperar COIll um parceiro que não
coopera de volta pode levar ao desastre. E basta apenas UIll dos integran-
tes não querer cooperar para que todo o grupo sofra perdas. Davis sugere
a importância em determinar - ou estar atento - sob quais condições os
jogadores cooperam. Ele aponta quatro fatores principais: o tamanho dos
"pagamentos" - no sentido daquilo que você "ganha" em cooperar -: o
modo COlHO a outra pessoa joga; a habilidade para comunicar e a persona-
Iidade dos jogadores - por exemplo. a capacidade de confiar e de inspirar
confiança. Entre os fatores desfavoráveis, estariam a desconfiança dois]
outroís) jogadoríes). a ambição. a ignorância ou falta de consciência do
que significa cooperar e do C01110 fazê-lo e, por último, a comperitfvidade
- alguns jogadores. por exemplo, não concebem jogar sem ser competitiva-
mente. Ele alerta ainda que. a partir de vários experimentos realizados, foi
constatada Ull1<1 tendência consistente e progressiva dentro elos jogos. em
agir de modo não-cooperativo. Cita por fim o biólogo Williarn D. Hamílton
quando o mesmo alerta que "o problema é que enquanto U111 indivíduo
pode se beneficiar da mútua cooperação.. cada um pode ganhar ainda mais
através da exploração dos esforços cooperativos cios outros":", No caso do
encenador que trabalha em processos de criação compartilhada, perceber
os obstáculos ou os facilitadores da cooperação passa a ser urna de suas
funções relevantes. Cabe a ele estimular e criar mecanismos de colabora-
ção entre todos os integrantes do grupo.
ator mais combativo. por exemplo. conseguir colocar suas reivindicações de forma
rápida e explícita, o ator mais reservado tem. por sua vez, o espaço da cena para se
manifestar - o que. via de regra, produz convencimento bem mais efetivo
Nos jogos cooperativos. também, a noção de "poder' é 111aÍs sutil c mais difícil de
avaliar. Neles, o conceito de poder é maís impalpável e esquivo, j~í que é imperativa a
cooperação COIll o outro. tenha-se ou não empatia por ele. Daí decorre que o "poder'
é sempre potencial, pois necessita da cooperação dos outros para se materializar,
Além disso. muitas vezes a "dominância" de um posicionamento ocorre pela capa-
cidade de implementar propostas mais adequadas - o que significa que todos vão
"ganhar" mais do que ganhariam se mantivessem a proposta anterior.
Sem esquecermos as ressalvas feitas à teoria dos jogos no possível diálogo com a
prãtíca teatral, acreditamos que a discussão sobre o "poder" e a forma C01110 ele se
materializa é das mais oportunas ao pensarmos o processo colaboratívo. Nele, apesar
das funções estarem estabelecidas. não ocorre a subserviência pacífica dos integran-
tes do grupo a alguma deliberação art ística individual. Tais resoluções s~10 continua-
mente confrontadas e exigem urna dinâmica de convencimento. Ou seja. é COlHO se
o "poder" estivesse sempre colocado em xeque, relativizado, e fosse contestável em
suas decisões. Nesse sentido é que ele pode ser visto corno mais esquivo e permeável
do que em processos mais tradicionais.
Além disso. sem a cooperação de todos os membros da companhia. este "poder"
não tem força ele instauração. Ele depende da anuência e ela participação do outro
para se concretizar enquanto ato. Nâo adianta. por exemplo, o diretor querer impor
fl forca determinada marcação ou gesto. Caso o ator não aprove tal sugest-ão ou não
seja convencido pelos argumentos do diretor, não lui corno obrigá-lo. Via de regra,
a força de uma idéia ou proposição que impacte todo o grupo exerce muito mais
"poder" do que qualquer atitude autorüária.
Davis chama a atenção também para os mecanismos de conversão elas vontades
individuais em decisões grupais, num contexto em que a opinião de cada pessoa é
igualmente importante. O procedimento mais simples - e bastante freqüente nos
grupos teatrais que criam coletivamente - é o da votação, Contudo. corno estabelecer
mecanismos de votação que. de fato, traduzam as preferências gerais? Muitas vezes.
por exemplo. a votação por simples maioria pode incorrer em erros ou distorções.
D<1Í. em casos COlllO estes. ser preferível urna estratégia de votação por maioria abso-
luta ou. melhor ainda. por turnos ou etapas - em que o que está em jogo é o destarte
das opções que causem maior rejeição dentro do coletivo.
Por fím, tornando COlHO base nossas experiências teatrais, podemos acrescentar
que a recorrência das parcerias ou a continuidade de membros cio grupo ele 11111 tra-
balho a outro, facilitam e acentuam o espírito de cooperação. A repetição dos encon-
tros. ainda que possa incorrer na armadilha da acomodação, contribui. sern dúvida.
para o amadurecimento da tornada de decisões em processos de co-criação.
79
1\ idéia de polifonia, tal corno definida por Bakhtin. é bastante útil para se pensar
o processo colaboratlvo. Apesar de se tratar de urna reflexão sobre a obra ele llIll úni-
co autor - no caso. Dostoievski - é possível expandir esse conceito para UHl {nado de
criação onde estão envolvidos vários autores.
O pensamento artístico ele tipo polifôníco se caracteriza pela presença simultânea
de vozes autônomas, mutuamente contraditórias. Segundo Bakhtin, trata-se da "multi-
plicidade ele vozes e consciências independentes e imiscíveis" formando uma "autêntica
polifonia de vozes plenívalentcs'?", Este aspecto da imíscíbilidade pode ser remetido ao
caráter autônomo - ou de relativa autonomia - das diferentes contribuições artísticas
dentro elo processo colaborativo. Corno já dissemos, não ocorre a sorna ou fusão das dife-
rentes áreas. Elas são consonantes. mas sem se dissolverem ou se desinregrarern uma na
outra; são contíguas. porém, às vezes. contrárias e até mesmo contraditórias entre si.
Por outro lado. essa independência pressupõe diálogo e interconexão entre as
diferentes [unções. O próprio pensador russo dirâ mais à frente que "o principal na
polifonia [...] é justamente o fato de ela realizar-se entre diferentes consciências. ou
seja. ele ser inreraçâo e a interdependência entre estas">. Ou seja, trata-se de uma
auronornia relativa. que não tem a obrigação de amalgamar os diferentes campos
artísticos. 1l1a5 depende do diálogo entre eles para se potencializar,
O processo colaborativo busca, na verdade, sínteses parciais, relativas a cada íun-
çâo. Tanto é assim que podemos identificar 1.11n conceito de 50111 . de luz. de interpre-
tação. etc.. que se justapõem uns aos outros. É claro que nesse deslizamento ele dis-
tintas concepções. ocorrem infiltrações, contaminaçôes, penei rações entre dobras e
sulcos. já que não se (rala aqui. de superfícies lisas, mas sim, precárias e acidentadas.
Porém, ínsísttmos. sem que haja dissolução ou desfiguracâo de campo. Por sua vez,
essas sínteses parciais comporão U1l1a síntese geral, não condicionada pelo imperatí-
vo da unidade de estilo ou pela padronização hornofõnica.
O próprio Bakhtin vai falar em "interaçdo de várias consciências imiscíveis">. o
que pressupõe um elemento dialógico e conectivo na autonomia por ele assinala-
da. Tal dialogismo. contudo, não implica homogeneídade. nem afinidade entre os
diferentes elementos constitutivos da obra. A criação se dá, ao contrário. a partir de
"mareriais heterogêneos, beterovalcntes e profundamente estranhos", resultando um
trabalho "poliest:ilistico ou sem estilo", upolienfático e contraditório'?",
1...1 a cssêncía da polifonia consiste justamente no faro de que as vozes, aqui. per-
mancccrn independentes e. corno tais. combinam-se numa unidade de ordem supe-
rior à da homofonia. ('001 é precisamente na polifonia que ocorre a combinação de
várias vontades individuais. realiza-se a saída de princípio para além dos limites de
lIma vontade. Poder-se-ia dizer assim: a vontade artística da polifonia é a vontade de
combinação de muitas vontades, a vontade do acol1[ccin1ento.J~
partitura. Ele 1150 da voz a ninguém - atitude paternalista indesejada - porque todos já
têm voz. são donos dela. E a sua própria voz. a voz do cncenador, n~10 é a de solista nem
de prima..dona. e nem também se encontra dissolvida nU\\1 coral indistinto. Ela é um
canto singular, contraponto e contracanto e. às vezes, só afonia e silêncio.
Mas e a unidade. tão cara él atividade da direção? Bern, talvez possamos respon-
der C0l110 Bakhttn quando ele afirma que "a unidade do romance polifônico, que
transcende a palavra. a voz e a ênfase. permanece oculta":". No caso do processo ou
da cena polifôníca, a sua unidade é produzida pela diversidade. ou. corno sugere o
teórico russo, encontra-se encoberta.
o termo processo colaborativo tem origem incerta. A palavra "colaborativo", por vol-
ta de meados da década de 90, ganhou maior emprego c ampliou as suas conotações
no meio artístico e cultural. Con1D já apontamos, o diretor inglês Max Sttaford-Clark
refere-se ao trabalho da sua companhia Our-of-joint C0I110 sendo collalJorat"ive \vork
(Utrabalho colaborativo"). Em livros de dramaturgta e direção pu blícados naquela
década. lançava-se mão deste vocábulo para a referência a qualquer processo de cria-
ç<10 envolvendo o elemento coletivo ou compartilhado. Anne Bogart. nos worksllOl1s
com a SlTI Company - da qual e diretora artistica - e durante os ensaios ele American
SilclltS 3-J • também utilizava freq ücntcmcutc a palavra colluborotion ("colaboração").
Baseados em lembranças pessoais. recordamos que durante os ensaios ele O Livro
de Já, do Teatro ela Vertigem. o termo "colaborativo" foi usado aqui e ali. ele maneira
informal, sempre C01110 f 01"111 a de caracterizar urna dinâmica de criação cornpartilha-
da e grupal. Porém não ternos claro o momento no qual Q grupo começa a empregar
conscientemente a expressão processo colaborativo. Talvez com o desejo de caracterizar
o que Iazíamos, aliado ao desgaste do termo cliaçiio coletiva. fornos denominando nos-
so trabalho por meio daquela expressão.
Além disso, esse espetáculo marcou também a parceria artística COUl Luís Alberto
de Abreu. dramaturgo que veio de significativa experiência coletiva no Grupo Marn-
bembe. Ao nos reencontrarmos alguns anos depois, corno professores da Escola Livre
de Teatro ele Santo André - onde coordenamos vários cursos juntos. reunindo alunos
de dramaturgia e direção - Abreu também adotava a expressão processo colaborortvo.
Fora dali. em outras companhias e coletivos. ouvíamos o lllCS1l10 conceito ou simila-
res: dramaturgia colaboratíva: processo compartilhado: dramarurgia CJH processo; teatro
coletivo; criação grupal, etc. Todos eles querendo traduzir Ulll tipo de fenômeno que não
ocorria apenas no campo do teatro. Se pensarmos nos coletivos de artes plásticas (Bijari: A
Revolução Não Será Televisionada; etc.), de cinema, de música, entre outros, rodos apon-
tavam para projetos de compartilhamento ele autorias. l\1eSI110 fora do universo elas artes.
experiências COI110 a da Wildpedia ou do jornalismo colaborativo são exemplos disso.
Portanto, menos importante do que determinar a autoria ou a origem exata da
expressão processo colllborativo é flagrar a tendência de época, o contexto histórico
particular, a inquietação relativa ao rnodo de fazer teatro. que colocava em sintonia
diversos artistas e companhias, dentro e fora do país.
No caso do Teatro da Vertigem, adotamos e continuamos a usar essa expressão
pelo significado e força que a reunião destes dois vocábulos suscita: o elemento "pro-
cessual" aliado ao "trabalho cru conjunto". Essa ênfase colocada na idéia de processo.
ern que o "colaborativo" funciona C01110 urna qualidade ou característica intrínseca.
é bastante relevante. Além, é claro. do parentesco com outra noção valiosa. a de \vork
in process, que, segundo Renato Cohen "conceitualmente [...1 carrega a noção ele tra-
balho e ele processo">. Nesse sentido. parece-nos fundamental o exame em separado
dos dois vocábulos-conceitos que C0111pÕenl a expressão processo colaborativo.
35 CDHEN. '\Vork in Progrcss' na Ceua CorHcmpoz-t1uea: aiw;ão, cuccnaçüo c rcc«.'pção. São Paulo:
H.
Perspectiva. 1998. p.20.
84
gravado na fixidez de 11l1l suporte imutável - o que ocorre C0111 a fotografia. a literatu-
ra ou o cinema. por exemplo, - configura-se como lugar privilegiado ela mutabilidade.
}\ idéia de "estréia" vem sendo cada vez mais relativizada pelas noções de "ensaio
aberto" ou de "abertura pública do processo", I~ cada vez mais C0111UI11 a perspectiva
de um trabalho sempre em desenvolvírnento, que vai produzindo novas versões de si
nlCSn1Q durante o período de apresentações. Aliás, é justamente o fim da temporada
que. hoje. marcaria o fim da obra - e de seu processo. E essa finalização, na maior
parte das vezes. não é caracterizada pelo gesto deliberado. volitivo e heróico da "últi..
rua pincelada", luas é fruto do abandono. da desistência. do cansaço ou incapacidade
em continuar transformando aquele material vivo. O que existe é apenas a "última
versão", não mais a "versão final".
Ainda que o público e parte da crítica avaliem com reserva e preconceito essa
categoria do provisório. enxergando ali preguiça. descuido ou até I11eSnl0 má-fé por
parte dos artistas, o que está em jogo é um novo paradigma do fazer teatral. A "obra-
em-aberto". o "espetáculo inacabado.... o work in progress - ao contrário do que. se ima-
gina - requer investimento de tempo e trabalho muitas vezes superior ao da "peça
pronta". Isso porque não existe repouso nem acomodação. O imperativo da constru-
çâo-rcconstrução permanente é o oposto da lassidão, do afrouxamento. do "colher os
louros", Planta-se e ceifa-se, aduba-se e poda-se todo o tC111pO. nU111 fluxo de criação
ininterrupta. O que demanda um novo olhar e UI11 instrumental crítico diferenciado
por parte da recepção.
'\0 pensarmos o percurso da criação - ou trazê-lo para o primeiro plano - dirc-
cionamos nosso olhar para os meios materiais e para o {nado de produção cIo fazer
teatral. Essa abordagem cria também uma tensão entre processo e produto, que aca-
ba sendo iluminadora para ambos. Aliás - e é preciso insistir nisso - a ênfase na dis-
cussão sobre os procedimentos de trabalho e sobre a trajetória de construção da obra
não elimina ou abole a instância da recepção.
No universo do teatro, por mais que os ensaios tenham a duração de anos e
que ocorram encerrados em recônditas salas. sem nenhuma instância de abertura
pública, esta última certamente é desejada pelos artistas e ocorrerá em momento
oportuno. Mesmo os chamados "grupos de treinamento" treinam para. em alguma
instância ou em algum trabalho futuro. materializarem o contato C0I11 os especta-
dores. Corno afirma o prof. Jacó Guinsburg. não existe teatro sem recepção. e ela
ou é lIIll pólo subentendido e potencial durante o período de feitura, ou é trazida
concretamente para compartilhar do processo de criação - e da obra daí resultante.
Portanto. discutir a trajetória de construção não se restringe a urna instância urnbí-
lical e auto-centrada, isolada do mundo, mas, ao contrário. pressupõe. planeja e
estimula o lugar e a ação do espectador. Ou seja. o ato criativo não se completa sem
a sua comunicação,
Amparados pela discussão estabelecida pela crítica genética. podemos pensar o
85
período de ensaio corno llIll "texto móvel">, escrito e apagado a várias mãos, por
todos os artistas envolvidos e pelo próprio público - quando este é convidado a inter-
ferir nos rUBlOS da criação. Período SíSI11ico, turbulento e instável que produz uma
"escritura" de igual natureza. Nesse sentido, talvez seja fecundo pensar o processo ele
trabalho corno UOl "texto", como urna "obra" também, com elementos estruturais,
operadores e dispositivos, e até mesmo com precipitações estéticas. É claro que sem-
pre perpassado pelo provisório e pelo transformativo.
U111 processo tem natureza tateante. composta pelo movimento contínuo de se
fazer, desfazer e refazer. Ele é regido pelo princípio ela incerteza. No desenrolar ele
sua trajetória. os poucos marcos de orientação sinalizam. às vezes. apenas aquilo que
não se quer. O descarte. o "não", a recusa tem força de gerrninaçâo, A forma vai sur-
gindo ele urna dinâmica de exclusões. Por esse ângulo. o processo não é democrático.
ele não acolhe tudo. ele expele e regurgira, põe para fora, elimina.
Por outro lado. na medida em que permite que os elementos, as propostas. as
idéias venham à tona e sejam discutidas e/ou experimentadas, ele assume um caráter
profundamente dcmocratízante. É esse lugar paradoxal o hahitat do processo colabo-
rativo. Ele admite e estimula que o ator traga urna cena-depoimento baseada em suas
memórias mais preciosas, para. em seguida. descartá-la, rcdirecíonã-Ia para outro
ator ou ainda. transformá-la inteiramente.
Cecília Almeida Salles, pesquisadora das diferentes linguagens artísticas dentro
do campo da crítica de processos. vai pensar o ato criativo a partir da noção de "tcn-
dêncía", ou seja. (01110 movimento dialético entre rUBlO e incerteza. Essa perspecti-
va abre espaço para o acolhimento do acaso. tornando-o UHl operador importante
na construção da obra. Segundo ela. "aceitar a intervenção do imprevisto na conti-
nuidade do processo com tendência. imptica compreender que o artista poderia ter
feito aque la obra de modo diferente daquele que fez. Admite-se que ou iras obras
teriam sido possíveis":". Em outras palavras. a obra acabada é. ao üm e ao cabo.
apenas Ul1UJ possibilidade de precipitação dentre inúmeras outras. experimentadas
durante o processo. Ela é a possibilidade que se fixou.
Salles acrescenta ainda outro aspecto importante. O da "falha" - ou. se quiser-
IllOS ampliá-lo, podcríarnos nomeá-lo C01110 "fracasso". Para ela. "o movimento cria-
tivo mostra-se. também. C01110 UIU percurso falível. As rasuras dão a conhecer as
diversas nuances de erros e das diferentes maneiras de enfrentarnento dessa possi-
3 6 Philippe Willernart afírma. entre algumas definições possíveis de "texto móvel", que
"carregado de sentidos 'desconhecidos' do escritor. o 'texto móvel' insiste até estar
completamente esvaziado c tornando-se um espaço oco sem mais poder sobre o escri-
tor. a ponto de liberá-lo e deixando-o entregar o texto ao editor" (In: ZUtAR, R. (org.).
Cnnçiio em Processo: ensaios de rriticn gt.'uética, p. 78).
37 ZUlAH. R. (org.). C,;açüo em Processo: ensaios de Criticcl gc:n~tíca. p. 1.86_
86
deverá enfrentar e constranger a sua obra às leis intra e extra-processuais. Pois, "criar
\\vrcnlenle não significa poder fazer qualquer coisa, a qualquer 1l101l1Cnro. em quais-
quer circunstâncias e de qualquer maneira. mas fazer seleções e tornar decisões.
Limites internos ou externos il obra I...) oferecem resistência à liberdade do art ista
c revelam-se C0l110 propulsores da criacão":". Além do que. 111UÊtos desses limites
podem ter sido criados pelo próprio artista, corno mecanismo interno de embate ou
corno instrumenro de auto-estimulação.
Por fim. caberia ainda falar sobre a questão do inacabarnento relativo ao proces-
so. Há sempre uma diferença insuperável entre aquilo que o artista deseja realizar e
aquilo que ele de fato consegue. Daí. o processo - c o objeto dele resultante - estarem
fadados à incornpletude. Porém, ao contrário ela resignação. esta permanente insa-
tisfação é ativa e propulsora. É justamente por essa busca incansãvel da melhor obra
possível que o processo nunca finaliza. Ou seja. "o objeto 'acabado' pertence a ll111
processo inacabado":".
Essa luta infinda entre acabamento e inacabamento, essa sensação de urna obra
que sempre fracassa em se concluir. ele UHl processo esticado até o último dia de
apresentação. de 11111 estar sempre "em obras". remetem ao tipo de espetáculo-em-
processo que vívenciarnos no Teatro da Vertigem.
11laS a mantêm dentro de uma dinâmica relacional, que permite construir. ao mesmo
tC111pO. a si 111CSll1as e ao todo":". Parece-nos surpreendente como essa conceituação
poderia ser utilizada, quase sem nenhuma adaptação para definir o modo de criação
compartilhado que estamos tratando aqui.
Porém, C011'\O se organiza esse comum? Para o sociólogo italiano. o problema "não
é juntar indivíduos isolados, luas construir de maneira cooperativa formas e instru-
mentes comunitários c conduzir ela reconhecimento (ontológico) do comum":", Essa
afirmaçâo do "singular", do "subjetivo" - e não do "individuar' - dentro (~O "rnúltí-
plo", proporciona-nos urna chave bastante útil para pensar o processo colaborarívo.
Isto porque nele, quanto mais radicalizada estiver cada singularidade artística. mais
potente e eficiente ocorrerá o processo de criação.
Tal percepção fica reforçada quando. mais à frente. NCgIi acrescenta que o trabalho da
multidão é U111 produto das relações entre singularidades. e especialmente, em sua defi-
nição de multidão: "comunidade de diferenças I...] onde as singularidades são concebidas
COlHO produção de diferença. O COlllUI11 (na multidão] nunca é o idêntico. não é 'comuni-
dade..··l i . Ou seja. uma noção já bem distante daquela enunciada por Piscator, ao propor
urna "comunidade homogênea". Pois a homogeneidade ali revelava UI11 projeto de aparar
ou pacificar as diferenças, em nome da consolidação de urna ideologia e de UHl projeto
artístico único. Aqui. ao contrario. quer-se acirrar as diferenças, colocá-las em choque. C111
litígio. fazendo com que as singularidades produzam cada vez mais diferença. mais hcte-
rogeneidade.A singularidade, por sua vez. "é feita do conjunto e faz o conjunto":".
Baseados nessa abordagem poderíamos definir o processo colaborativo corno um
conjunto mulrifuncional de subjetividades que constroem simultaneamemc. a si
mesmas e ao todo, produzindo urna obra de natureza heterogênea, não-hicrarquixa-
da e multidisciplinar,
Daí pensarmos que a criação coletiva poderia ser vista COlHO a associação ele artis-
tas polivalentes, sem função definida, em contraposição ao processo colaborativo,
de caráter multifuncional. Pois. para este último, é fundamental a manuteução das
funções artísticas e o diálogo objetivado entre elas.
O sociólogo italiano vai ainda mais longe, concluindo que "o trabalho, hoje. para
ser criativo, deve ser 'comum', ou seja. produzido por redes de cooperação":", Essa
idéia de rede. de processos determinados por redes relacionais, vem também sendo
utilizada por vários outros pensadores. COlHO eixo paradigrnãtico para refletir sobre
a cultura e a arte contemporânea.
Cecília Almeida Salles, em sua obra mais recente, estuda os processos de criação
45 NI~GIU. 1\. Cinco Hções sobr~ o Irnl'élio. Rio de Janeiro: DP&A editora. 200]. pp. 14~.
46 lbid.• pp. 45-46.
47 lbid.. p.148.
48 lbid.. p. 159.
49 lbid.. p, 153.
89
justarnente a partir dessa visão reticular. O seu interesse central é "pensar a criação
COI110 rede de conexões. cuja densidade esta estreitamente ligada à multipücídade
das relações que a mantém. No caso do processo de coustrução de urna obra. pode-
1110S falar que, ao longo desse percurso. a rede ganha complexidade à medida que
novas relações vão sendo estabelecidas'?"
Baseada nas análises de André Parente - que vê na noção de rede a instauração
ele um "pensamento das relações" em contraposição a um "pensamento de essências"
- Sallcs vai apresentar as características fundamentais dos processos conrcmporãne-
os ele criação: "simultaneidade de ações. ausência de hierarquia, não linearidade e
intenso estabelecimento de nexos">'.
Aliás. a defesa da eliminação de hierarquias - e também da simultaneidade ele
ações - corno característica da cena atual. aparece na definição de Hans-Thies Leh-
rnann do teatro pós-dramático. Segundo ele.
50 SAI.tES. c. A. Redes da Criaçtio: COIlS111tÇt;O da Obr'C1 de arte. Vinhedo: Edírora Horizonte. 2006.
p.17.
51 Ibid.• p.17
52 l.EHMJ\NN. H.-T. °lhHro l)ós·dremuícico. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 143.
53 SALlES~ C. t\..~ op. cit., p. 34.
90
Ela invoca ainda Edgar Morin, nos seus estudos sobre complexidade, o qual defi-
ne as interações corno "ações recíprocas que modificam o comportamento ou a
natureza dos elementos envolvidos: supõem condições de encontro. agitação. tur-
bulência e tornam-se. em certas condições. inter-relações. associações. combina-
ções, comunicaçôes. etc.. ou seja, dão origem a fenômenos de organização">'. Um
pouco mais à frente. Morin conclui que "a realidade, no entanto, é feita de laços e
interações, e nosso conhecimento é incapaz de perceber o complexus - aquilo que é
tecido em conjunto" 55 •
Aliás, refletir sobre o processo colaborativo à luz elas teorias da complexidade
não deixa ele ser estimulante. Pois. é da natureza desse modo de criação se constituir
C0l110 processo complexo e multícomposto, repleto de ambivalências c plurivalên-
Após a discussão de caráter teórico realizada nos capítulos anteriores. julgamos im-
portante realizar U111 diálogo COIn casos concretos da prática teatral, no sentido de veri-
ficar procedimentos c dínãmicas relativas à pesquisa por nós empreendida. Escolhemos,
então. analisar três processos realizados pelo Teatro da Vertigem. que resultaram nos
espetáculos O Livro de J6 Apocalipse 1,11- que COlllpÕe111 a Tfilogia Bíblica - e BR-3.
y
Este processo de criação contou com a participação de Luís Alberto de Abreu, na drama-
turgia e dos atores Daníella Nefussi, Matheus Nachtergacle, Miriarn Rinakli. Sergio Srvíe-
ro, Siornnra Scnrõder e Vander\ei Bernardino. A assistência de direção foi feita por Marcos
Lobo. que havia trabalhado COl110 ator em O Paraíso P&."rdiclo. A ficha técnica completa. com
a descrição de todos os criadores e colaboradores, tanto deste processo como dos dois
outros que serão analisados a seguir, pode ser consultada nos anexos desta tese.
~ Luis Alberto de Abreu desejava. desde o início. que o seu trabalho em O lJ,,'ro de Já não
fosse uma "adaptação", mas sím uma "recriação" do texto bíblico. Por outro lado, a
direção não pretendia uma rccríação transfigurada da matriz original. corno cru Ha-
mlet-mdquinu ou Medcamaterial. de Iíeiner Müller. O resultado final parece ter ocupado
um lugar Intcrmcdíãrio entre esses dois pólos.
93
inicial era sempre referido. durante o processo, C01110 "o período da Hebrai-
ca", pois os ensaios ocorreram no Clube A Hebraica) (janeiro de 1994);
• Apresentação para o grupo da primeira versão do texto. seguido de sua
análise e discussão C01l1 a dramaturgia (fevereiro de "1994):
• Período de análise ativa: etapa de experimentação prática da peça, culmi-
nando na definição dos papéis (março-abril de 1994);
• Levantamento cênico do texto e produção de novas versões ela drarnatur-
gia (abril a outubro de 1994):
• Trabalho de aprofundamento das interpretações e ele esboço das marca-
ções (julho a outubro de 1994);
• Entrada no Hospital Urnberto Primo: ensaios de exploração elo espaço c
definição da trajetória do espetáculo (novembro de 1994);
• Finalização do trabalho de encenação: aprimoramento elo desenho gestual
e das marcações: refinamento da espacialização das cenas e ensaios de uti-
lização dos objetos hospitalares (dezembro de 1994 a janeiro de 1995);
• Abertura para o público. por meio da realização ele dois ensaios gerais e
urna pré-estréia (6 a 8 de fevereiro de 1995):
• Estréia do espetáculo (9 de fevereiro de 1995):
• Novo período de ensaio para a realização de modificações (fevereiro a abril
de 1995);
• Temporada de UI11 ano e sete meses, COll1 apresentações de quinta a do-
mingo e sessões duplas aos finais ele semana (até 08 ele setembro ele 1996).
94
4 in; w. O l-ivro ele Já, ele LuísAlberto tIr: ~~ln'(!u: mito e invenção dramática. 2000.
ANDt{ADE. W,
199 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Filosofia, Letras e
Cíências Humanas. Universidade de São Paulo. p. 164 {grifo nosso). É sintomático que.
um pouco mais à frente nessa mesma entrevista. Abreu reconheça que O Livrodt:Já "foi
um texto que construí de forma autônoma, embora participativa'' (p~ 1.66),
95
espetáculos da companhia,
No caderno de direção. aparecem algumas outras enunciações para os objetivos
pretendidos em relação à interpretação. definidos ern comum acordo com os atores:
Uestado de convalescença": "trabalhar no limite ou COIll situacões-Iimite insu portá-
veis": "sensação contínua de estar sob tortura ou sob pressão"; "lidar C0l11 o princípio
da energia e não com o da força"; "buscar um profundo estado de concentração física
e psicológica" e "transições abruptas da apatia à extrema violência. e vice-versa",
Outro elemento trabalhado com os intérpretes. decorrente do conceito de hibri-
dismo de gêneros proposto pela dramaturgia, foi o treinamento dos registros épico c
dramático. Corno O texto alternava e imbricava lodo o tempo esses dois regist r05, era
importnnte o domínio de cada um deles em separado e, principalmente. a passagem
- ás vezes, numa mesma frase - de U1l1 a outro". l-oram realizados, por exemplo, vários
exercícios de narração em primeira e terceira pessoa, ou ele um relato que se rransfor-
mava em vivência dramátíca. c vice-versa. O maior desafio para os atores constituía-se
justamente na alternância rápida entre esses dois registros, na medida em que a peça
esgarçava os limites entre narração, diálogo dramatico e rubrica.
Diferentemente elo processo anterior, houve a proposição de U111a dinâmica em
6 Rubens Brito denomínarã como "máscara tripla' ou "terceira mãscarn" esse procedimento
dramarúrgico desenvolvido por Abreu em O Lívro de Jó. cru que coexistem elerucruos
épicos c dramáticos. Segundo ele. citando o próprio dramaturgo numa entrevista. tal
mascara pretendia "essa coisa de juntar o personagem dramãtico C0111 o narrador que
narra a si próprio c sofre a ação da narração" [p.az}, Para Brito, a mascara tripla "resul-
ta do duplo investimento de mãscaras sobre o personagem que é. J\n1bas ~\S aplicações
têm o t0l11 épico por se tratar de ações narrativas. rvlas a resultante é dramática, pois
não existe o dísranciamento proposto por Brecht e sim urna aproximação do ator com
o personagem e deste COll1 a platéia. Em outras palavras, pode-se dizer que Abreu apli-
ca recursos épicos par..\ obter a identificação da platéia com os personagens que sua
cena apresenta, objetivando. C0111 isso. gerar a emoção" (P.148). In nnrro. S.J. R. Do« Peões
ao Rei: O li!atro lh,ico4Drmnâtico de Luís Alberto ele J\breu. 1999. 226 f. Tese (Doutorado eU1
Artes] - Escola de Comunicações c Artes, Universidade de São Paulo.
98
provisações c \vorkshops de cada urna das personagens do texto bíblico. Tal procedi-
meruo. além ele auxiliar a direção na definição dos papéis. estimulou o estudo con-
junto das personagens. Ao final desse período. o grupo constituiu urna visão mais
complexa c madura daquelas figuras. MeS1l10 após a distribuição dos papéis, cada
ator pôde contar com a contribuição trazida pelos seus companheiros - cada qual
revelando. acentuando ou propondo UJl1 ângulo diferente em relação às personagens
- o que proporcionou um ponto de partida multifacetado para o início do trabalho de
construção interpretaríva.
Esse processo marcou também a incursão do grupo nos procedimentos da pesqui-
sa de campo. Ela se constituiu COll10 instrumento auxiliar na elaboração das persona-
gens, em um momento mais avançado dos ensaios. Foram feitas visitas, - em geral
individuais -. a alas de doentes terminais, necrotérios. aulas de anatomia. Instituto
Médico-Legal (IML). entre outros. Diferentemente da regra utilizada nos espetáculos
posteriores. tais visitas não tinham a obrigação de se transformar em material cênico
a ser apresentado. podendo se restringir apenas à experiência vivcncial dos atores.
Em suma, nesse processo pudemos tratar de forma mais integral o trabalho do
ator, levando-o a UI11 ponto que não fora possível em O Paraíso Perdido. Não somente
o corpo e a voz - e o decorrente aprimoramento na expressão elo texto -, mas tam-
bérn o estado de presença. o jogo entre os intérpretes c a construção do desenho c da
trajetória das personagens. foram conquistas de uma abordagem mais rotalízante da
atuaçâo. Se. por um lado, houve um inequívoco amadurechneruo dos atores no IHa'
nejo de seu próprio instrumental. por outro, a direção conseguiu reservar e garantir
um tempo de ensaio satisfatório para a elaboração do trabalho interpretativo.
Uma das principais razões desta conquista foi o fato de a primeira versão' do texto
ler sido trazida logo 110 início elos ensaios. Por mais que a dramaturgia tenha sofrido
várias modificaçôcs ao longo do processo e que os atores tenham contribuído significa-
tívarnerue para as sucessivas recscrituras da peça. partiu-se, desde o início, ele UH'l mate-
ria} bem estruturado. O grupo obteve uma base textual mais sólida para alicerçar o tra-
balho das improvisações e a construção das personagens. Somado a isso havia a própria
narrativa bíblica que. por si só. j<Í apresentava uma história COIll começo. meio e fim.
Tal contexto pôde liberar. ainda que em parte, a direção e os atores para o desen-
volvirnento específico de suas áreas, Conrínuãvamos operando enquanto arores-dra-
maturgos ou encenador-drarnaturgo.. porém, não exclusiva ou preponderantemente
corno fora o caso de O Paraíso !)crdido. Contudo, não há corno negar que o processo de
construção do texto foi filais fechado que aquele do espetáculo anterior. O grau de in-
7 Na verdade. não exatamente a prirncim versão. pois o l~X[O foi reescrito cerca de [rés
vezes antes de ser apresentado aos atores. Até esse momento. o dialogo relativo à escri-
tura da peça Ocorreu apenas entre a dramaturgla e a direção.
99
terferência do grupo. seja pelo suporte da matriz mítica. seja pela estrutura e registro
textual fornecidos pela dramaturgia logo de início. foi. proporcionalmente, menor;
No âmbito da encenação. a escolha de um hospital para a apresentação do espetácu-
lo era urna idéia norteadora. Diferentemente da peça anterior. em que o espaço da igre-
ja surgiu COlHO possibilidade cênica somente após vários Il1eSeS de ensaio. em Já essa
escolha ocorreu poucos dias depois da definição do projeto. Tanto é que. na primeira
discussão C0l11 o grupo sobre a idéia da futura montagem, ambos os elementos - o tex-
to bíblico sapíencial e o espaço hospitalar - foram apresentados concomitantemente.
Em nossa concepção. a utilização de objetos hospitalares reais - macas, Gl1TOS de ex-
purgo, suporte para soro. etc. -. imantados COt11 a história pregressa de sua utilização. se
associava ao cheiro forte de fon1101 que impregnava o ambiente. acentuando - pela via
contrtiria, do cuidado e da assepsia - a relação C0111 a enfermidade e os seus sintomas,
Além disso. durante a apresentação do espetáculo. existia o fator ela proximidade,
Os atores. ao longo elas cenas, encontravam-se sempre muito perto da platéia. às vezes
estabelecendo contato físico direto C0111 ela - por exemplo, em eventuais toques ou
esbarrões. O corpo do ator se tornava algo concreto. literalmente palpável, o que inten-
sificava () caráter da presença. do aqui e do agora. Por outro lado. essa exígua distância
ator-espectador acentuava uma sensação incômoda, desconfortável, c até mesmo de
risco. Por exemplo. o público muitas vezes se sujava do "sangue" da personagem jó.
Essa relação direta e sem mediaçôes, tanto COll1 os atores quanto C01n o lugar e
os objetos de cena. provocou. por exemplo. urna longa negociação entre diretor c
ilurninador [Cuilhcrmc Bonfanri) para que este último não se utilizasse do recurso
de Iumaça no espetáculo. Por mais que tal recurso. além ele "esculpir" a luz, ajudasse
na criação de urna aunosfcra mais concentrada. ele acabaria por esconder. maquiar c
poet izar a crueza hospitalar,
Cont lido. equivocadamente. não conseguimos abrir mão do elemento-fumaça no
final ela peça. pois os refletores teatrais ficariam escancaradamente expostos. 'l~ll ex-
posição viria contra o conceito de luz desenhado até então, que deixava à mostra
apenas as fontes luminosas hospitalares - olhos cirúrgicos. negatoscópios, focos au-
xiliares. luminárias de fototerapia. etc. As outras fontes de luz. compostas por al-
guns poucos refletores tcarrais. encontravam-se escondidas no lado externo do pré-
dio. autis de janelas revestidas. e só eram utilizadas em momentos muito específicos
- por exemplo, em monólogos de Já com Deus.
Por outro lado. a fumaça no final do espetáculo sugeria - lnadvcrnclameute urnar
enfatizar este elemento ele precariedade e de pobreza. sem qualquer apelo a efeitos
tecnológicos ou a acabamentos técnicos de primeira qualidade.
Havia ainda o desejo de que a peça pudesse "chacoalhar" o espectador e retirá-lo
de sua catatonia. Tal conlO a personagem João. a platéia não deveria antever nem se
aterrorizar C0l11 o futuro, filas sim, ser capaz de olhar de novo. e sem letargia, o pre-
sente. Daí o caráter agressivo. indignado e pontiagudo da linguagem da encenação.
em que se buscava romper C0111 a anestesia do olhar por meio de um choque sinesté-
sico ele alta voltagem.
Esse componente de violência se consolidava pelo contraste ou contraposição de
elementos díspares - colocados lado a lado e sem transição. na mesma cena - bem
C01110 pela concretização. sem mediações. da brutalidade e selvageria. Neste último
caso. chegava-se a lançar 111ão, inclusive. de inserções do "real", COl110 na controverti-
da cena de sexo explícito.
Talvez coubesse Ul11 parêntese exemplificador, retirado da própria peça. A única
ocasião do espetáculo em que a platéia era convidada a interagir exptícíramente com
os atores era durante a cena de Talidomida do Brasil (urna deficiente física e mental).
no Ato do Juízo Final. quando lhe eram entregues ovos crus. Via de regra, imitando
a ação da personagem Anjo Poderoso, quase todos os espectadores jogavam os seus
ovos sobre a atriz Luciana Schwinden, intérprete ele Talidornida.
Exatamente nesse instante. em função elo ato de linchamento. operava-se urna in-
versão no jogo de violência proposto pela peça. De espectadores passivos das imagens
ele agressão e selvageria. o público se tornava. ele mesmo, agente delas. promovendo
c corroborando a brutalidade mostrada em cena. Conseqüentemente, por flagrar CIn
si mesma esse traço de violência, a platéia tornava-se cúmplice e consciente de sua
própria ação desumana e. de certa forma. era também julgada naquele tribunal.
O desejo último do projeto da encenação nunca foi () "choque pelo choque". mas
a descstabüízação dos sentidos e a recuperação da perspectiva crítica por parte da
platéia. capazes de provocar algum tipo de rc-sensíbilizacão ou de ativação ele possi-
bilidades transforrnadoras. O final do espetáculo colocava nas mãos do próprio ho-
mern-cidadão - e não de uma divindade - a capacidade de mudança do estado de coi-
sas. Daí il saída de todos - atores e público - de dentro do presídio para a rua. onde os
aplausos, no meio da calçada. ressoavam C0l110 urna "retornada" símbólica da cidade
pelos artistas e espectadores. Era COIllO se ganhãssemos novamente o espaço urbano.
corno se recuperássemos a dimensão pública e a confíguração coletiva da ãgora. O
tom pessimista da peça se revertia. então. numa ação positiva de reencontro COl11 a
pôlis e COIll o sentido de cidadania.
Contudo. iniciemos a discussão sobre o processo de I\J>ocCJlipsc "1,11. O seu plane-
Iamento partiu. antes de qualquer coisa. da identificação do que de melhor ocorreu
nos dois trabalhos anteriores. ao IlleSI110 tempo em que procurou evitar alguns dos
problemas previamente encontrados. Em certa medida, ele funcionou COlllO filtro
105
dos procedimentos de ensaio de O Paraíso Perdido e O Iívro de Jâ. Talvez, por isso. a
unânime percepção grupal de que ele tenha sido o 111a15 equilibrado de todos os pro-
cessos vividos até então.
De início, houve a divisão dos ensaios em duas grandes fases. A prímeira dedica-
da exclusivamente à escritura elo texto, e a segunda, ao levantamento das cenas. ao
trabalho de interpretação e à construção do espetáculo. Estabelecemos também UUl
pacto coletivo que. caso a dramaturgia resultante daquela primeira etapa não fosse
satisfatória, não nos obrigaríamos a passar à etapa seguinte e nem produziriamos
U111 espetáculo nela baseado.
trabalhar conjuntamente sem a presença dos outros integrantes. Por fim, deveriam
ainda ser resguardados os momentos em que o dramaturgo trabalhasse solitariamen-
te no desenvolvimento do texto.
Para tanto. foi idealizado o seguinte esquema de trabalho:
106
11 Tanto essa fase quanto :1 seguinte ocorreu nas dependências da Oficina Cultural Oswald
de Andrade, como parte do Projeto de Residêncía Artística do Teatro da Vertigem na-
quela oficina. O espetáculo foi todo atí criado. desde o Primeiro \Vork.shop ~llé o início
dos ensaios no Presídio do Hipódromo.
107
Tal conceito não estava definido a pnort, tendo sido encontrado - ou melhor, ten-
do emergido - durante a primeira fase dos ensaios. J\ partir de UIn registro que mis-
turava desequilíbrio emocional, ímprevisibilidade e desespero a UIll estado-Ilmite
de ser - que foi aparecendo. pouco a pouco. ern algumas improvisações ., e workshops
- buscamos um 110111e para defini-lo. Exatamente COl110 ocorrera C0l11 o termo "visce-
rnlidacle", em O Livro deJá, que nos soava desgastado demais. a palavra "insanidade"
era a que mais se aproximava ou traduzia o estado que almejávamos, Estava longe de
ser perfeita. mas funcionava como espécie de palavra-guia ou de termo-farol.
O grupo julgava importante ainda. a distinção desse conceito em relação ao de
·'loucura". O estado "insano" não era aquele dos doentes psiquiátricos, pois tal condi-
ção poderia justificar - e, portanto. reduzir- a dimensão exacerbada das personagens.
Segundo a atriz Miriarn Rinaldi, que participou do processo de criação. "mudanças
inesperadas de atitude. excentricidade, apatia, mutismo, obsessão e alternância de
humor foram algumas elas características que experímenramos na composição das
personagens e que nos remetiam a essa zona do insano"!". Ou seja. tratava-se de um
registro de interpretação fronteiriço. Iimite, transbordante e excessivo, mas que não
incorria na representação nem na encarnação da loucura.
Por outro lado. esboçava-se também o tipo de linguagem ou estilo que ,ul0 nos inte-
ressava. Sem que o soubéssemos antecipadamente. foi somente por meio elas propos-
las trazidas pelos atores que as ressalvas c os repúdios foram se tornando conscientes
e assumidos - especialmente por iniciativa da dramaturgia e ela direção. Por exemplo,
percebemos que o texto e o espetáculo não deveriam trabalhar em chave realista, ou
melhor, de realismo psicológico. J,} o realismo estranhado, fraturado por elementos
absurdos ou ilógicos. este sim, nos interessava. Além disso. descartamos a imagistica e
o bcsti.irio medieval, o humor televisivo à la Casscta e Planeta e a ficção científica e sua
estética futurológica. Por fim, queríamos também que o espetáculo escapasse do (0111
cínico. que nos parecia símplífícaclor c fácil para a abordagem dos ternas escolhidos.
Porém, retornando aos três workshops de construção do texto. houve a projeção.
para cada U111 deles. de que durassem de duas a três semanas. C0I11 cerca de seis horas
por dia de trabalho. Estabelecemos também algumas regras básicas ou princípios
condutores: nunca chegar atrasado; lidar COll1 o material temático sempre na pers-
pectiva do depoimento pessoal ou de urna visão crítica própria; não querer impres-
sionar o diretor ou o dramaturgo: não reprimir nenhuma proposta ou ponto de vista.
por mais tolo ou preconceituoso que tosse. sem 111Cdo de cair no trash. no clichê. no
óbvio e no senso-comum: ser sincero com você mesmo e com o outro; c. last but not
lt'lIst. não querer repetir o sucesso de O Livro ele já e nem a sua estética.
Em relação a esse último aspecto. tratava-se de UH1 pacto coletivo ela maior im-
portâncía. Por mais que O Paraíso Perdido tenha rendido prêmios e atraído atenção do
público e da crítica. o espetáculo posterior obteve repercussão ainda mais inesperada.
O grupo realizou temporada de um ano e sete meses na cidade de São Paulo. viajou
t'3. R\N,\l.Ol, M. () Ator do "{hlt'·O du \\'rlig\'m: o processo de oiuçiio de A})()ccdipse 1.} 1. 2005. Dis-
sertaç..âo {MeSlrado em 1\l"LCS) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São
Paulo. p. 103.
110
para várias capitais brasileiras, amealhou prêmios e foi alçado ao circuito de festivais
intcrnacio.nais. O lado perigoso de todas essas conquistas, contudo. para tiill grupo re-
lativ~nl1ente jovem e no seu segundo espetáculo. era o da acomodação precoce e o do
incbrhllnento pelo sucesso. Daí que. em UI11 elos primeiros encontros preparatórios.
foi reiterada, enfaticamente. a necessidade de esquecermos todas aquelas vitórias e
louros para que conseguíssemos nos aventurar ele novo. Era preciso que matássemos
O Lívro de Já a fi111 de que não nos domesticássemos.
Esse espírito de investigação de outras possibilidades ternáticas e estéticas, e de recu-
sa da repetição do modelo anterior, estimulou 11111 estado de entrega e de abertura nos
atores, que foi extremamente fértil. Os workshops foram marcados por U111 registro de
alta intensidade criativa, e por lllll ininterrupto hrllinstonn de cenas e proposições!', em
que o elemento da censura - e ela autocensura - parecia não existir. Além disso. por mais
que não se tratasse de urna estratégia pensada previamente, o fato de os três \\'orkshops
terem C01110 foco a construção da dramaturgia. liberava os atores e o enccnador para
experirncnraçôes mais descompromissadas. Era corno se quem estivesse na berlinda.
naquele momento, fosse o dramaturgo. desresponsabilizando os demais criadores da
tarefa de produzir bons resultados teatrais ou de formalizaçôes cênicas acabadas.
l~ importante ressalvar que o dramaturgo em Apocalipse 1 II - CO111 O ele resto. no
r
14 Miriam Rinaldi, em sua referida dissertação. chega a computar um total de mais de 5.10
cenas, apenas no período dos três \\'orbhops.
15 t\ dramaturgia c a direção tiveram várias discussões divergentes a esse respeito. pois
Fernando Bonassi tendta \.\ considerar a sua i.lti(\l{\(! de apropriação 0\\ de- reclaboraçào
do material proposto pelo grupo como não-autoral. algo próximo da atividade de co-
pidesquc ou de mera organização. t\ discordância dessa avaliação. enquanto diretor.
baseia-se no fato de ser possível identificar. no resultado tinir} do texto, cenas inteiras
e monólogos que foram produzidos inteiramente por ínícíauva do dramaturgo.
111
assumir (1 função ele dramaturgísta no Primeiro \Vorkshop c. após a sua saída. trouxe
Lucícnue Guedes para ocupar este lugar. Alérn ele ter colaborado intensamente nos
dois \\'orkslwps seguintes. a dramarurgista teve 1I1H papel imporumtc na construção do
espetáculo. especialmente por meio elos constantes diálogos COll1 o dramaturgo.
No que diz respeito à interferência da direção ao longo dessa primeira fase, ela
cumpriu um papel fomentador ou provocador da criação do dramaturgo e dos atores.
Seja por meio do diálogo 0\1 da contraposição. seja por meio da sugestão de est irnulos
concretos. o diretor foi mobilizando o fluxo da criação dentro do processo. Além dis-
so. ele funcionou C0l110 parceiro do dramaturgo na seleção e na organização do mate-
ria! produzido. Segundo Miriarn Rinaldi, ao avaliar a quantidade numericamente su-
perior de comentários da direção no Terceiro Workslwp em relação aos dois primeiros,
«a voz do diretor [aumentou] em número e grau, reflexo de um direcionamento mais
objetivo e seletivo dos materiais apresentados e reapresenrados, (Houve) também in-
dicações mais claras na pesquisa de interpretação e de criação das personagens"!".
Quanro à dist ribuição dos papéis. o processo se deu diferentemente de O Livro
ele Jô. Ali. pela pré-existência ele personagens advindas da matriz bíblica. houve um
período de Iívre-experímentação de cada urna delas. por parte dos atores. Já em 1\1JO-
16 R1N:\l.lll. M., O Ator do 'lt:atro da Vt:rligem: o processo de nia{(io de Apocalipse 1.11. p. 89.
112
criação elo espetáculo, Os encontros. a partir de agora. ocorreriam cinco vezes por
semana, C0111 cerca de seis horas diárias. Nessa 1:15(\ contudo. a presença do drama-
turgo se reduziria a urna vez por semana ou. em situações excepcionais. a apenas um
encontro a cada quinze dias.
Nesse dia UI)"' era apresentado a ele todo o material cênico desenvolvido até cn-
tão. o que não incluía apenas o levantamento do texto, ruas também novas ide ias ou
sugestões para a solução de problemas. Após o "corrido" das cenas, o grupo inteiro
discutia C01l1 o dramaturgo as questões. as dúvidas, as conquistas c as eventuais no-
vas necessidades. Nas apresentações realizadas a cada quinze dias, todos os outros
•
criadores envolvidos participavam ativamente. e suas experimentações - de luz, figu..
Tino, cenografia ou SOU1 - eram incorporadas aos "corridos".
Essa nova etapa. além dos exercícios jti mencionados - porém, executados em
outro contexto e almejando propósitos ligados ~1 encenação e à interpretaçâo - agre-
gava ainda outras dinâmicas, Dentre elas. poderíamos citar: análise ativa do texto;
experimentação da trajet ória das personagens [improvisações realizadas a partir do
percurso das personagens, privilegiando os eventuais tUllzíng points): esboço de mar-
cações e espacialização: trabalho com a palavra (série ele exercicios para exploração e
.\
apropriação do texto escrito); pesquisa de campo voltada para o universo elas perso-
nagens: e, por fim, ensaios individuais para aprofundamento do trabalho interpreta-
tivo (ensaios idealizados exclusivamente para as necessidades de UI11 ator específico.
C0l11 o objetivo de ajudá-lo a superar dificuldades particulares e de adensar a constru-
o diretor elo presídio para a participação dos detentos em Apocalipse "1,11. A última
.\
parte da oficina, então. se voltou para o trabalho específico de construção de perso-
nagem, de memorização do texto e de aprendizado ela marcação de algumas cenas da
peça. especialmente daquelas em que os detentos atuariam de forma coral.
lnfelizmente. às vésperas da estréia oficial do espetáculo. apesar de todos os esfor-
ços de negociação - caracterizados por inúmeras reuniões C0111 políticos e C01l1 fun-
cionários da Secretaria de Administração Penitenciária - foi definitivamente negada
a participação dos presos na temporada da peça. A frustração foi geral. pois tanto o
grupo se sentiu ludibriado pelos poderes públicos quanto os detentos viram ruir a
sua possibilidade de atuação artística no trabalho.
De qualquer forma. ainda que o espetáculo não tenha podido contar com 3 presen-
ça deles em cena. é inegável o quanto essa experiência, dentro de 111113 penitenciária
ativa. I11arCOll profundamente o processo de ensaio, e a nós artistas. Ternos a certeza
que Apocalipse 1,II não seria o 1l1CSI110 sem as contribuições. a convivência intensa e
o complexo diálogo com aqueles presidi ários. Ninguém do Vertigem saiu imune ou
indiferente a esta "descída aos infernos", bem C01110 um movimento transformador
também ocorreu naquele grupo de detentos.
Ironicamente, tivemos que esperar até o Festival Theater der "Velt 2.002. na Ale-
- - manha. para podermos atuar em um presídio ativo. E foi apenas também em outro
país, na Polônia. durante a participação no Festival Internacional Dialog-Wroclaw
(2003), que pudemos, finalmente, contar com a participação dos presidiários em-cena.
Somente aí. na cidade que abrigou o Teatro-Laboratório de Grotowski. o conceito orí-
ginal da encenação pôde se completar.
Outra atividade pedagógica. igualmeutc fundamental ao processo de construção
da peça, foi a realização de oficinas de criação C0l11 estudantes e csragiarios, durante a
residência artística do Teatro da Vertigem. na Oficina Cultural Oswald de Andrade. i\
idéia cent ral dessa iniciativa era abrir os ensaios do grupo para pessoas previamente se-
lecionadas, que acompanhariam o dia-a-dia do trabalho. Ao invés de U111 curso regular
de direção ou iluminação, o conjunto de "alunos" poderia ver de perto o trabalho do
diretor ou a criação da luz. vinculado ao desenvolvimento concreto de um espetáculo.
No nosso caso, em especial, os estagiários puderam contribuir direramente na feitura
da obra. trazendo suas visões, sugestões e críticas ao projeto. Tal, dinâmica se configu..
rou, pois. C0010 UI11 misto de processo pedagógico e assistência de criação.
A princípio. ficamos preocupados se esse acompanhamento por parte de pessoas
estranhas ao grupo não causaria algum tipo de constrangimento à criação. Até aque-
le momento nossos processos de ensaio haviam sido fechados. e víamos com descon-
fiança. num misto de desrespeito e dessacralização, a presença de "curiosos" dentro
da sala de trabalho. Contudo. para nossa surpresa. sucedeu o contrario.
Nos primeiros dias. claro. foi desconfortável a presença de observadores exter-
é
nos. Porém, movidos por esse desconforto de mão dupla. nós e eles f 011105 estudando
115
lnaneiras possíveis para que urna melhor integração ocorresse. No caso da oficina de
direção. os estagiários não apenas participavam dos ensaios. luas compartilhavam
do planejamento do cronograma da semana. discutiam problemas referentes à inter-
pretação. sugeriam encaminhamentos em reuniões de produção. e assim por diante.
Além disso. cada um deles fazia o acompanhamento individual de um ator, ajudan-
do-o e interferindo na construção de sua personagem, Desta forma, depois de algum
tcnlpo, eles passaram a construir a peça C0l11 o grupo e, de certa maneira. expuseram-
se aos lneS1110S riscos que nós.
Além do assistente de direção oficial (Marcos Bulhões). passei a contar C0111 sete
assistentes-est~igiários18C0111 os quais dividia o trabalho diariamente. Enquanto en-
saiava na sala principal urna determinada cena, acompanhado do estagiário que
havia ficado responsável por ela, o assistente e os outros estagiários se encontra-
vam, ao mesmo tempo, em salas contíguas, fazendo a análise. o levanramenro ou
o primeiro esboço de marcação das cenas subseqüentes - que, por sua vez, mais
tarde. passariam necessariamente por mim. Portanto. a cada segunda-feira, quando
nos reuníamos para estruturar o cronograma ela semana, fazíarnos o agendamento
ele trabalho para cada Ulll elos diretores envolvidos. de forma a contemplar essa di-
náutica rotativa de ensaio elas cenas.
Foi gratificante perceber que o processo colaborativo ficou muito mais "colabo-
rativo' COIll esse sistema artístico-pedagógico. As interferências na criação se multi-
plicaram, o que aumentou a complexidade do trabalho. deixando-o. apesar das difi-
culdades. mais polifõnico e provocativo. O mito elo artista isolado e misantropo, que
mantinha seu processo de criação trancado a sete chaves. encontrava-se relativizado.
t\ abertura dos ensaios. desde que realizada com critério. não comprometia o clesen-
volvimento da obra. Por outro lado. enquanto professor de teatro. tal dinâmica se
C0111prOVOU COlHO urna das experiências pedagógicas mais intensas e bem-sucedidas
J 9 R(~AlDl. M •• OAtor ele> 'll-ulro ela Vt:rligl'ru: () processo de L1"iaçclo de "lJOC(llipsl' 1.11. p. 1 Sf).
117
IV) é marcado por forte teatralísmo - a descida do Juiz. a Noiva na escada. a crucifica-
ção da Besta, a procissão do Anjo Poderoso e de ~el1s asseclas. o enforcamento do juiz,
entre outros. Ou seja, há a emergência e a coabitação de diferentes vetores estéticos.
Não é ele se estranhar que urna peça ancorada - tenultica e processualmente - na
cidade de São Paulo. cujos bairros e lugares serviram C01110 fonte de referência para
a construção da dramaturgia e da cena. não sofresse a influência dessa urbanidade
multífacerada, Corno imaginar que urna cidade marcada pela pluralidade e mistura
de traços arquitetônicos díspares não induzisse a uma equivalente justaposição de
estilos e linguagens. num espetáculo nela inspirado?
Além disso. a encenação deixou vir à tona. de forma mais integral e intensa do
que nos espetáculos anteriores. o hibridismo e a polifonia das diferentes vozes e vi-
sões artísticas do grupo. Apocalipse 1.11 conseguiu matertalízar, a contento, a natureza
impura e colaborativa do processo de origem. E nos fez perceber que a "unidade" da
encenação não se encontra, apenas. no resultado estético da obra. mas também, na
conformação e na linguagem do processo.
esforço de identificação das futuras metas artísticas e das vontades pessoais e coletivas,
.,
Entre. os tópicos levantados, apareceu fortemente o desejo de abandono ou suspensão
da temática religiosa. Ainda que se percebesse o quanto tal assunto não se encontrava
esgotado em nossas criações, havia urna recusa ou cansaço em relação a ele.
Enl função disso, cada integrante trouxe textos. peças ou idéias que gostaria de tratar
no próximo espetáculo. Após vãríos encontros de compartilhamento deste rnateríal -
boa parte dele. curiosamente. composta por monólogos -, não se conseguiu chegar a ne-
nhum denominador comum, Finalmenre, por não vislumbrar perspectivas de consenso
a curto prazo, apresentei ao grupo o embrião de um projeto, ainda confuso e nebuloso.
En1 decorrência da exposição fotográfica de Thomas Farkas. no Instituto Moreira Sal-
les (2002), em que eram apresentadas imagens de Brasília em construção - com seus tra-
ços arquitetônicos ainda pela metade, sujos de terra e desfigurados - ocorreu-me o desejo
de lançar mão deste material para a realização de um espetáculo, Acrescentou-se a isso
a lembrança de um projeto irrealizado. proposto pela Secretaria Municipal ele Cultura,
para que o grupo montasse urna peça na periferia da Zona NOIte. VIn bairro em especial,
naquele momento, chamou a atenção da companhia: Brasilândia. Desnecessário dizer
que, pela semelhança vocabular, a associação Brasília-Brasílànclia foi imediata.
Se o Vertigem saía de Apocalipse 1,11 exaurido da temática religiosa. por QUI ro lado..
tal espetáculo descortinou U111 universo de provocantes questões relativas à sociecla-
de brasileira. Foi inegrivel a mobilização do grupo em relação aos problemas nacio-
nais ali tratados. Talvez caiba reconhecer que, se Apocalipse. por um lade, marcou a
últ ima etapa de urna trilogia bfbHn.l, por outro, ele se configurou corno a primeira for-
malizacâo de urna futura t rilogia hrasildra. De alguma forma. BR-3 já se encontrava.
cmbrionariamcntc, dentro dele.
O passo seguinte na elaboração do novo projeto se deu ele forma eminentemente
lúdica. Movido pelo radical "brasü", o grupo perscrutou UHl atlas geográfico e eles-
cobriu. na extremidade do Acre, urna pequena cidade chamada Brasiléia, O círculo
havia se fechado. Na verdade. não um círculo, 1l1aS urna parábola. Esta era a figura
geométrica que unia. no traçado do mapa, aqueles três Brasis, cuja única associação
residia na mera coincidência vocabular.
Por outro lado. tal escolha cartográfica apontava para uma discussão de país, não
pejo viés geral e abstrato. mas ancorada em três lugares muito específicos e concre-
tos. Chamava a atenção. ainda. o fato de aquela parábola imaginária perfazer um
sentido centrípeto. do litoral rumo ao interior. Estava. enfim, esboçado o desenho do
projeto: o grupo faria UJl1<l viagem para o interior do país. até o limite de suas últi-
I11as fronteiras. e criaria urna peça a partir desta expedição-experiência.
Partiu-se, então. para a escolha da equipe de. criação. Diferentemente dos proces-
sos anteriores, o primeiro passo foi a busca do dramnturgísta. a fim de que ele pudes-
se auxiliar, desde logo. na escolha do escritor e nas primeiras abordagens teóricas do
projeto. Foram convidados a professora e pesquisadora Sílvia Fernandes e o diretor e
121
• Márcio Souza: conversa sobre seu livro Galvez, O Impemdor do Acre (15 ele
dezembro de 2003):
• Bernardo Carvalho: conversa sobre o processo de criação dos romances
Nove Noites e l\1ongâlia (20 de dezembro de 2003);
• Milton Hatourn: conversa sobre sua visão de Manaus e da região Norte.
além de discussão sobre seus dois romances, Relato dtJ um Cerro Oriente c
Dois Innãos (13 de janeiro de 2004);
• João das Neves: conversa sobre sua experiência C0111 tribos indígenas no
Acre (15 de janeiro de 2004);
• Bernardo Carvalho: segundo encontro com o escritor. destinado a apro-
fundar e esclarecer algumas questões de ordem artística. e a auxiliar o
grupo na tomada de decisão em relação à escolha elo dramaturgo (18 de
janeiro de 2004):
• Ferréz: conversa sobre seu trabalho sócio-cultural no Capão Redondo. bair-
ro da periferia ele São Paulo (24 de janeiro de 2004).
I
123
2J Estes l"nCOJ1rfOS ocorriam. via de regra. às segundas-feiras. das 20]WO às 23hoo. na Cas..l
N" 1. envolvendo todos os criadores e colaboradores do trabalho. Eles não eram abertos
no pÚblicD.
125
• "A ferina difícil: artes plásticas no Brasil". C0111 o crítico de arte Rodrigo
Naves (30 de abril);
• "Trem-fantasma; a modernidade na selva", com o pesquisador e crítico lite-
rário Francisco Foot Hardrnan (7 de maio):
• "Sociologia das religiões no Brasil". COIll o sociólogo Antônio Flávio Píeruc-
ci (14 de niaio):
• "Trãfico e crime organizado no Brasil", com o juiz e ex-secretário nacional
antidrogas Walter Maierovich (11 de junho).
::q Foi publicado um diário de viagem, na Folha Online, escrito pelo dramaturgista Ivan
Dehnaruo. no qual ele relata impressões pessoais c tece análises sobre sua expcriên-
cin durante o percurso. O endereço do site é:http://v~'\vwl.folha.uol.com.br/foJh'l/cspe
dal/2004/ceatrodavenígl·m/diario_dt'_viagem.slunl1
126
Chico Mendes. Visita ao "museu" do Sr. Antônio: dois galpões C0l11 todos os
tipos de vestígios, jornais. garrafas, rótulos e sucatas. colecionados há vários
anos por ele. Encontro com o irmão de Chico Mendes, no Sindicato dos Tra-
balhadores Rurais (21-22 de julho);
• Brasiléia: Visita à Rua da Goiaba e conversa com vários moradores antigos
da cidade. C01110 Dona Oceana, Seu Dadá e Seu Sebastião. Noite no Forró
da Cacilda. Visita ao Seringal BOIU Sucesso. Encontro COll1 ° historiador
Marcos Fernando. Encontro com o D1". Tufic, representante da comunidade
libanesa local. Encontro com íarnar Pinheiro, filha de Wilson Pinheiro. e
corn o líder seringueiro Osmarino Amâncio. Visita a Bpitacíotãndía. cidade
fronteiriça "rival" de Brasiléia e encontro C0111 Gislene Salvatierra. ACOll1-
panhamento da eleição para presidente do sindicato dos seringueiros de
Brasiléia e entrevista com integrantes elas duas chapas. Visita ao Centro
Cultural ele Brasiléia. Livre-investigação da cidade e encontro COll1 diversos
moradores (entre os quais. parteiras, benzedeiras. seringalistas. delegado
de polícia, radialista. prefeito. etc.), realizados individualmente ou em du-
plas (22 de julho a 01 de agosto);
• Assis Brasil: Visita à tríplice fronteira entre Brasil. Peru e Bolívia. Parti-
cipação na Festa de Congraçamento dos Povos. Estadia por dois dias, de
parte do grupo. na aldeia indígena dos jaminawa (24 elejulho);
Cll Cobija: Visita à cidade boliviana que faz fronteira C0l11 Brasiléia. Visita ao
Cristo Seringueiro, na Igreja Nuestra Scnora Del Pilar. Encontro C0111 a "Rai-
nha Mariana", urna louca de rua, na praça central ela cidade (27 de julho);
• Rio Branco: Encontro COll1 Gregório Filho, presidente ela Fundação Elias
Mansour, Primeira avaliação da viagem. Volta a São Paulo. (02-03 de agosto).
Brasilândia (dezembro).
I
129
• Primeiras visitas ele reconhecimento ao Rio Tietê. realizadas por cada área
de criação. isoladamente. COlHO também por todo o grupo junto. incluindo
aí os estagiários. Produção da segunda versão do texto, com rcclaboração
dos diálogos e da estrutura, ern função das sugestões levantadas após o cor-
rido do 111ês anterior (agosto):
• Trabalho de investigação c de apropriação cênica do Rio Tietê. por meio de
improvisações e workslwps. Esta etapa consistiu na busca da definiçâo do
percurso. do sentido da navegação e elo local específico para cada cena. Foi
realizado também um estudo ela duração dos deslocamentos e da logística
de transporte de atores e técnicos [setembro-outubro].
•
- --- DTÁLOGO COM O PUBUCO (NOVEMBRO DE 2005 A JUNHO DE 2006)
l
130
(~ importante relembrar que. apesar deste mapa ele percurso apresentar as eta-
pas de BR-3 numa seqüência cronológica, elas devem ser pensadas íntegradamentc,
como nós ou picos de urna rede, em constante e contínua contnminação. Em outras
\ palavras. elevemos ser capazes de interconectar esses pontos. de pensa-los enquanto
I
I
I
!
acontecimentos geminados. frutos, não apenas. de Ul11a lógica causal. O tempo da
criação artística não é linear. e segundo Saltes, "qualquer momento do processo é
simultaneamente gerado e gerador-r...), e a regressão e a progressão são infíniras":".
Do percurso apresentado. elegemos alguns aspectos que concernern - direta ou
I
J
indiretamente - fi condução do trabalho c ao Gll11pO de acão do encenador, Procura-
1
",
mos, também. apontar algumas crises e contradições. jél que elas se constituíram em
l
1 linhas de força motrizes na materialização da própria peça.
\ Um dos pontos mais problemáticos do processo referiu-se à relação entre os atores
1
\ c a dramaturgia, Urna parte disso. é claro. pode ser associada ao temperamento forte e
~
i
às vezes beligerante do dramaturgo c. por outro lado, às manifestações egóicas dos ato-
res em relação às suas personagens. Porém, é possível identíflcarmos outras causas
i igualmente significativas. Uma delas concerne nostalgia do processo de r\J1ocCllipse
1.;. à
i
por parte dos atores. Pela natureza do que nos propusemos naquele momento. além
1"j
I
j
do próprio modo C0I110 Fernando Bonnssí operava, os atores tiveram uma enorme
- - 1- - - -
t
i interferência na primeira fase de criação da peça. Corno j<.t descrito. não existiu nc-
Ii nhuma proposta a priolÍ por parte do dramaturgo, e o que se consolidou corno texto
.~
de Apocalipse fOÍ fruto direto dos três workshops iniciais.
Nesse sentido. a dramaturgia de Bonassi é explicitamente mais generosa em relação
às sugestões dos atores e suas necessidades. Ela consegue concretizar - e talvez mais
t uraclor, o que solicita do dramaturgo 41 prévia visão global da história. sob pena de o
enredo não lograr comunicação ou se plasmar de forma fltícida e claudicante.
Ali.is, nos dois encontros iniciais COIl1 Carvalho. ainda antes ela escolha de seu
nome COlHO escritor do projeto. houve urna única condição imposta por ele: escrever
uma história C0111 começo, meio e fim. Não lhe interessava. portanto. urna drama-
t urgia de fragmentos. composta por cenas autônomas e isoladas. e com personagens
que não cumprissem urna trajetória. Apesar de certas divergências e dúvidas, sur-
gidas nesses encontros. o grupo concordou C0I11 o pré-requisito narrativo e t01110U.
conjuntamente. a decisão de convidei-lo corno dramaturgo.
Talvez nâo tenha ocorrido a alguns atores, naquele momento, que a concordância
COU1 essa condição significaria deixar a cargo do escritor. em primeira instância, a
28 suvx. J\. :-.1. R. K. P{)~tim Ci!uim na Dramaturgia Bmsi"..'ird Contf.'JUlWnillt'll. p. 32. A propósito
da tensão entre dramaturgia c encenação. Rebouças atírmarti. na p. 116 desta disserta-
ç50. que "N'O 1.ívrodeJó percebe-se a existência de dois sistemas paralelos (texto c cena)
que às vezes apresentam POIl[OS de contato que colaboram para conduzir a narrativa
(como na metáfora do tempo) e outras vezes se contrapõem. tornando-se evidente a
justaposição ou contraposição dos dois sistemas (como na metáfora do espaço)".
132
•
Nós estamos na fase das improvisaçôcs r... I. Eu não agüento mais f...l. Para minha
estupefação. a minha trama inicia) se modifica pouco a pouco. e. freqüentemente.
para pior - sobretudo quando as improvisações são confiadas .1 algum dos trinta
jovens atores estagiários l...[, Eles me dizem que isto faz parte do processo. E que
sou eu quem deve se adaptar. I...} (~ difícil C0I1[rol<11" a minha expressão de frustra-
ção e de ódio. para não falar do meu desespero f...)-~I).
29 CJ\RV:\l.flO, U. "Jc hais lcs actcnrs". In: UlJt?mliun. 5 e 6 de março de 2005. p, <IS.
133
fetos ao longo dos ensaios. Talvez por sua pequena prática em dinâmicas ele criação
grupal, Carvalho demonstrou maior dificuldade tanto para lidar coru os hu':nores e
instabilidades dos outros criadores. quanto para assimilar o ininterrupto jorro propo-
sítívo elo processo. Diversas vezes. inclusive. em razão da ênfase com que defendia
seus pontos de vista, a sua convicção era interpretada corno rigidez ou intransigência.
Esse conjunto de aspectos acarretou. infelizmente. o crescente distanciamento entre
atores e escritor.
As rusgas e polêmicas advindas do embate desses dois pólos atravessaram todo
o processo. já desde a apresentação inicial do argumento. Nos IUOInen(OS de maior
acirramento do conflito, a encenação ocupava 11111 papel de mediação c de gerenciá-
mento da crise. Contudo. tal função apaziguadora teve lllll custo artístico - e pessoal
- alto. Muito do tempo destinado à criação foi subtraído para discussões do relacio-
narnento grupal, esfriamento dos ânimos ou intermináveis convencimentos sobre a
qualidade das proposições. Nunca antes essa figura de "diretor-bombeiro" havia sido
tão requisitada nos processos de trabalho do Vertigem.
Este teor polêmico, interno ao grupo, também ocorreu durante a recepção. A dra-
maturgia ele BR-3 foi muitas vezes atacada C01110 o "problema" do espetáculo. Curio-
samenre. essa avaliação negativa - a nosso ver, injusta - também recaiu sobre o texto
de l\l'ocnlípse 1.'1 L Tal reincidência crítica suscita UIll questionamento: em que medida,
no diálogo entre dramaturgia c encenação. determinadas opções cênicas acabam por
dificultar a leitura da dimensão textual? Se. por urn lado. na dinâmica colaborativa, é
absurdo dissociar essas duas instâncias. por outro. a encenação pode criar "obstáculos"
à compreensão. (01110 por exemplo, ao optar por UIH espaço não-convencional.
No caso de BR-3. a dramaturgia colocava um enorme desafio para a encenação, con-
cernente à comunicação - ou ü explicitação - de sua complexa narrativa. C:01110 fazer
com que a platéia pudesse acompanhar o cntrecho e as reviravoltas daquela saga bra-
sileira? Corno encenar urna peça-romance ou urna peça-filme? Talvez, U111(1 possível
solução fosse a da concentração do foco ou a da limpeza na Iinguagcm cênica. Contudo.
ao contrário. a encenação também ela se caracterizou por urna dimensâo épica. O re-
sultado.. então, nesse caso. foi marcado pela justaposição de transbordamentos cênicos
e narrativos. O que. de novo. nos faz questionar: tal conjugação - por seu caráter dupla-
mente excessivo - não provocaria ruídos de leitura para ambas as instâncias?
Por outro lado. a experiência cênico-fluvial do espetáculo não espelharia - e. portanto,
intensificaria - a viagem das personagens, no plano ficcional?Ou ainda, o périplo pelo Tietê
não agregaria UI11 fator de vivência ou de "realidade" para os espectadores. potencíalizando
~ e materializando - o caráter de epopéia da narrativa? Esses questionamentos suscitam
considerações controversas. pois as mesmas opções de direção podem, simultaneamente.
- e ,'IS vezes, dentro da mesma cena -. dificultar e contribuir para o fortalecimento de aspec-
tos da dramaturgia. Nesse sentido. sem pretender estabelecer um juizo definitivo sobre a
questão, cabe-nos. ao menos, apontar a existência de tal tensão no espetáculo BR~3.
134
Outro ponto passível de discussão refere-se à pesquisa teórica. Con10 ocorrera em OParaí-
.\
so Perdido, o grupo parece ter novamente se estendido em demasia na quantidade de leituras,
encontros e seminários. O problema, talvez, não resida no excesso de material teórico estu-
dado - diferentes e múltiplas informaçôes podem provocar os criadores de forma imprevi-
sível -. 111as. sim. na duração ou estruturação desta etapa dentro do processo. Por exemplo,
se ao invés de seis meses ininterruptos de 111H módulo de palestras e debates. houvesse a
alternância (0111 momentos práticos de criação, o aproveitamento das informações em sala
de ensaio e a sua incorporação à própria feitura da obra poderiam ter sido maximizados,
As oficinas em Brasilãndia significaram outro grande aprendizado nas intervenções
pedagógicas do grupo. Nunca antes tínhamos realizado, com tanto cuidado. o plane-
jamento e a aproximação a urna comunidade específica. Desde a escolha do que seria
desenvolvido até a orientação por parte de uma profissional especializada na área (lvia-
ria Lúcia Pupo}, a tentativa do grupo foi a de buscar um diálogo consistente e maduro
C0111 os moradores locais. Procurou-se fugir da lógica "oficlneira" - em geral associada
30 Segundo o relato de Márcio Medina. coordenador desta oficina. houve "um trabalho. em
murírão. com a comunidade local. de limpeza do terreno em torno da Cl~1 de Cultura.
Cada aluno 'adotou' uma pedra. que pintou de branco. desenhou (0111 carvão e depois fe7- a
sua pintura. Nessa última fase, pintamos exrcrnamcnrc a unidade e. com a participação de
grafiteiros locais, os alunos desenharam c pintaram imagens e mensagens sobre diversos
ternas levantados por eles. tais como cidadania. preservação da natureza, diferenças", in
H~RNI\NDES. S.~ I\umo. R. "{cntro du Vt!rtig~m - BR-3. São Paulo: Perspectrvalnnus», 2006. (>.98.
135
relativo a um outro. mas sempre ao próprio viajante. {...l O "estrangeiro" está sem-
prc j.i delineado - latente c invisível - nas brechas da nossa identklade. na trilha
aberta por nossa própria indeterminação."
Para além das "armadilhas" presentes em empreitadas desta natureza - COlHO a mera
conrernplaçâo turística ou o exrratívlsmo predador de informações - UI11 aspecto cen-
tral ele nossa experiência foi a realização de uma viagem coletiva. Dezoito pessoas viajan-
do juntas. durante cerca de trinta e cinco dias, rumo ao Brasil profundo. Esta vivência
cornunirária. este cruzamento cotidiano de impressões. este compartilhamento de inti-
midades - acordávamos juntos. tomávamos as refeições em horários semelhantes, divi-
diarnos os banheiros, víajávamos durante horas a fio. \.11'\\ ao lado do 0\,\\:1'0-. foi tecendo
uma base comum para o processo e a criação que se descortinavam nossa frente. à
Além disso, o foco inicial da pesquisa foi adquirindo novos contornos. Além de
Brasil~lndia. Brasília e Brasiléia, outras cidades ou pontos de parada no percurso. fo-
rarn ganhando irnportãncia. A experiência elas distâncias e dos trajetos de ligação
31 CARDOSO. s. "O olhar viajante (do ctnólogol't. In: NOVAE5. :\. (org.), O Olhm: São Paulo: Cia.
das Letras. 1988. p. 347·360.
136
também se afirmou corno terna nuclear. quase equivalente à das três localidades
escolhidas. BR-3. portanto, falaria de unlâ jornada e de um grupo de artistas-viajantes.
á luz da contaminação provocada pela vivência de determinados lugares. e dos deslo-
carnentos geográficos entre eles. O prefixo "brasil" não apenas unificava o percurso.
mas também Ilagrava tudo o que nele é separado. distinto e mal integrado.
Essa viagem coletiva foi tão marcante no processo que, de certa forma, ela vai de-
terminar o próprio suporte do espetáculo. O que é proposto aos espectadores, ao en-
trarem num barco e cruzarem 14 km de trecho urbano do rio Tietê, é justamente uma
experiência de deslocamento geográfico. de expedição pela cidade. nR-3 é uma "peça
de viagem" que espelhá o destocamento país adentro realizado pela companhia.
Quanto ao t ratarnento idealizado pela encenação para o terna da identidade nacio-
nal, pretendia-se passar ao largo de discursos patrióticos oficiais. O que interessava
ao grupo era a noção de identidades dinâmicas e móveis - ainda que essa mutabilida-
de ocorresse dentro de limites. sem se abrir indefinidamente. Refutava-se a idéia de
un111 identidade nacional rígida. por se tratar de U111 conceito, via de regra. utilizado
C0l110 mecanismo de manutenção do poder, ele controle sobre um grupo social. ou
ainda. COlHO estratégia de manipulação política.
Além disso. discutir "identidade brasileira" a partir dos três locais escolhidos ja
era. por si só. problemático. Brasilândia - ao contrário da Mooca, ou elo Bixiga - não é
um bairro C0l11 caracrerlstlcas identiuirias especialmente marcantes. Compõe, junto
C01l1 outras regiões periféricas da cidade. zanas urbanas COJU perfis assemelhados
de pobreza e exclusão. Brasília, ao contrário. apresenta traços arquitetônicos írnpa-
rcs. símbolos não só locais. ruas nacionais. Porém, trata-se de urna cidade construída
artitlcialmente. "ele cima para baixo", refém de urna identidade forjada de antemão.
Brasiléia, por sua vez, é cidade de fronteira, de passagem, de trânsito entre brasilei-
ros e bolivianos. Uma cidade em que se fala português e espanhol, e onde essas duas
nacionalidades COllVlVCJl1 e se estranham ao 111esIllO tempo.
Portanto, o projeto BR-3 tratava de três regiões onde a questão da identidade era
complexa e difícil de ser apreendida. pois ela se relativizava a todo tempo. Contudo.
essa zona do contraditório ou paradoxal, ern que a identidade é problema, crise ou
quase impossibilidade, pareceu constituir um lugar privilegiado e estimulante para
discutir a "brasilidade".
Foi-se encaminhando, então. para noções de identidade vinculadas a urna pers-
pectiva mais temporal do que geográfica, C01110 se se tratasse de um "vir-a-ser" ou de
"instantâneos de identidade", que se precipitam e evaporam a todo o momento. Nes-
se sentido. buscou-se materializar. no texto e na cena. identidades flutuantes. fluidas
e turvas, corno o próprio rio onde a peça se passaria.
Dai porque tal abordagem ficava potencializada pelo espaço cênico proposto pelo
encenador, Os espectadores, colocados longe da terra firme, balançando de um lado para
Outro dentro da ernbarcaçâo, vívenciaríam U111a instabilidade física real, reflexo de íden-
137
seitas místicas em Brasília (COll10 se esquecer elo "carnaval levado a sério" do Vale
do Arnanhecer?) e do Santo Daime no Acre. fez C01n que voltássemos atrás em nosso
acordo inicial. Não era possível tratar desses três lugares - e nem dos trajetos entre
eles - sem abordarmos o problema religioso. Daí porque a condução do processo - ao
invés de se pautar por inflexíveis decisões tornadas de antemão - deve permanecer
sempre permeável àquilo que dele emerge.
Contudo. é importante ressaltar que a encenação, em nenhum I110J11ento. se propôs
à reprodução fotográfica ou à realização de urn "tearro-documenrãrío" sobre aqueles
lugares. Além de tal perspectiva trair urna indlsfarçável arrogância cultural, ela contra-
ria o desejo de falarmos da nossa experiência em contato e001 tais localidades. COI110
traçar um retrato do Distrito Federal se não moramos ]~l? C0J110 documentar o Acre..
se não passamos mais do que dezoito dias nesse estado? E mesmo Brasilândia. apesar
de situada em São Paulo. nós só a "descobrimos", C0111 nosso olhar "estrangeiro", em
função do projeto. Além do que. nossa atuação no bairro - ainda que bastante superior
à dos outros dois lugares - se restringiu ao curto período de um ano.
Portanto, pretendíamos falar apenas de certa Brasilãndia. aquela que nos atraves-
sou e que contarnínou nossa sensibilidade e imaginaçâo. Isto é. a nossa Brasilândia,
moldada a partir da experiência concreta ela companhia naquela região. Não é à toa
que, no resultado final do espetáculo. este bairro paulistano marcou urna presença
maior do que a da capital federal ou a da cidade acreana. Foi C0l11 ele que. apesar da
curta duração, estabelecemos o diãlogo mais continuado e duradouro. Foi ali que cs-
tivemos mais vezes. que trabalhamos mais tempo, e que conseguimos, ainda que em
escala reduzida. transformar e sermos transformados pelo ambiente.
Entre os remas de improvisação e workshop utilizados ao longo do processo. alguns
dos quais em diálogo direto C0111 questões acima levantadas, poderíamos citar: "o que
é familiar e o que é estrangeiro": "virar de costas é o primeiro movimento de rejeição
do outro"; "a recusa de urna identidade que não é sua"; "passeio por Brasilândia de
olhos vendados"; "relação mãe-filho: a Brasilãndia que você não quer que seu filho
veja"; "Brasília imagínária": "Brasiléia imaginária". entre outros.
Em relação à interpretação. o conceito de identidade também funcionou rOIHO
•
elemento norreador, Foi em função dele que se optou pelo treinamento de masca-
ra. Partiu-se da técnica de máscara neutra - de acordo COll1 a estruturação formula-
da pelo pedagogo francês jacques Lecoq - passou-se pela meia-máscara. até que se
atingiu o treino COll1 máscara expressiva". Além das constantes trocas de identidade
propostas pela dramaturgia em relação às personagens. a encenação lançará mão do
uso de "máscaras de látex" e de "máscaras de fotos". Tais máscaras deveriam ser cons-
truídas a partir dos próprios rostos dos atores. com o máximo de rigor mimético e
):! Para o desenvolvimento deste treino. o bTfUPO contou com assessoria de Cuca Rolaffi
(mascara neutra) c de Daniela Biancardi e Luciana Viacava [máscara expressiva: antilise
do movimento e jogo da máscara),
139
naturalista possível, a fim ele materializar a discussão ídentitária proposta pela peça.
.\
Essa sobreposição estranhada ele caracteres iguais, em que o ator vestia UI11a máscara
que estampava a foto ou a imagem de seu próprio rosto, contribuía para colocar em
xeque ou em crise as percepções C0l11UnS sobre identidade. O naturalismo ela repro-
dução mimética das feições elos atores era friccionado pelo paroxismo de teatralidade
advindo elo recurso da máscara,
O elemento do risco físico também estava potencializado no espetáculo. Na verdade.
trata-se de UHl aspecto central no trabalho ele ator elo Vertigem. Interpretar ao ar livre, à
beira das marginais. em UI11 rio poluído ou sobre margens inclinadas. colocava os atores
em constante estado de perigo. Muitas das cenas ocorriam sobre embarcações leves. às
quais se tinha que entrar e sair C01l1 rapidez. ou permanecer em pé dentro delas, dizen-
do o texto sem se desequilibrar. É claro que o risco de urna queda dentro d'água, em tais
condições, era iminente. Outras cenas, em terra firme ou nas margens, não eram menos
perigosas. As bermas de concreto inclinadas. a presença de ratos c baratas. o risco de
contaminação pela sujeira acumulada e. ainda. a atitude agressiva dos motoristas nas
marginais ou dos transeuntes sobre as pontes - inconseqüentes a ponto de jogar pedras
nas embarcações -. tudo isso gerava 11111 estado ele alerta c preocupação. A interpretação.
em tal contexto. exigia o aguçamento máximo da sensibilidade. a obrigação irrevogável
de se estar no aqui e no agora", e o instinto de sobrevivência sempre à flor da pele.
Tais condicionantes. aliadas ao princípio autoral do trabalho do ator. utilização à
35 O grupo contou com ~l assessoria VOGll de Mônica Montcncgro, que já havia trabalha-
do COJll a companhia em "llOW!iI}s,: 1.11.
141
irnpeclit ivo. sob qualquer hipótese, de molharem os microfones e de falarem nos 1110-
mentes eU1 que não estivessern'em cena - a fim de evitar vazamentos de som.
Durante o processo de construção das personagens foi realizada. C0I110 elnjó e em
Apocalípse, uma pesquisa de campo específica. Os atores, de acordo COIU seus papéis.
visitaram igrejas evangélicas, salões de beleza e delegacias de polícia. além de se
encontraram C0l11 pessoas associadas ao trafico, adolescentes da FEBEivf. pilotos de
barco. policiais, etc. O ator Sergio Pardal. inclusive. em função da personagem "Bar-
queiro". chegou a realizar U111 curso de pilotagem de embarcações de pequeno porte,
prestou prova ele habilitação e adquiriu urna carteira de piloto.
Quanto ~l distribuição dos papéis. ela apresentou caráter UI11 pouco diferenciado
dos outros processos. Primeiramente. porque ao escrever o argumento, o drarnatur-
go já tinha em mente os atores que poderiam desempenhar as suas personagens.
Ainda que não tivesse caráter obrigatório - e nunca o dramaturgo impôs tais escolhas
ú direção - este era uru dado contextual difícil de ignorar. En1 segundo lugar. o fón..1111
que antecedeu o início elos ensaios trouxe à tona, por parte cios atores, desejos e desa-
fios interpretativos a serem enfrentados. Além disso. as improvisações do argumento
sugeriram novas possibilidades para essa relação ator-personagem, que vieram se
somar aos elementos acima levantados. C0l110 em Já. também houve urn período em
que os atores experimentaram todas as personagens. Ao final. pelo fato de a direção
ter conseguido conciliar os diferentes critérios apresentados. a distribuição das per-
sonagens n~10 provocou nenhuma grande polêmica ou insatisfação.
Infelizmente. o IneSI110 não pode ser dito em relação às etapas posteriores do pro-
cesso. A medida que o argumento ia se transformando no roteiro. as reclamações dos
atores - fI·UlO do dcsconteruamento C0I11 a dramaturgia - começaram a crescer.
Os problemas se íntcnsiticararu com a entrada dos estagiários de interpretação. De
forma semelhante a Apocclípse I, 11. houve esrágios de acornpanharnento em todas as
areas de criação. Porém, a experiência. dessa vez. foi mais acidentada. Por exemplo,
o estágio de direção sofreu C0t11 a imaturidade dos participantes e com a falta de um
maior comprometimento deles COJU o trabalho. Entretanto. é importante que se diga,
os poucos que ficaram até o finapr. apresentaram urn inegável empenho e dedicação.
O espeuiculo, inclusive, incorporou as estagiárias Suzana Aragão e Carol Pinzan em
seu quadro funcional, COl110 responsáveis pela assistência de direção de cena.
No caso do estágio de interpretação. o seu funcionamento e resultado foram ain-
da mais insatisfatórios. Entre as possíveis causas. poderíamos destacar: grande quan-
tidade de participantes (trinta e um atores). o que provocou UHl acentuado grau de
dispersão nos ensaios: forte competitívidade entre os estagiários, já que nem todos
poclerlam ser incorporados ao espetáculo; envolvímentos afetivos entre os intérpre-
]6 Os estagiários de Direção que acompanharam o processo "lté a SU"l útti ma etapa foram:
André Queiroz. Carol Pinzan, Marilia Risí c Suzana Aragão,
142
37 Luciana Scnwinüen retomará a BR-J dois meses antes da estréia. substituindo LI atriz Tel-
ma Vieira. impossibilitada de continuar no trabalho em razão de uma gravidez de risco,
143
prerrogativa moral, corno, por exemplo, as atrizes não poderem conversar COI11 os rua-
.\
rinheiros <.?U operários.
Após a construção do barco dos espectadores. denominado Almirante do Lago, a
situação melhorou um pouco. Foi. possível instalar um sistema provisório de 50111
- C0l11 o qual, por meio de microfone. o diretor conseguia se comunicar diretamente
com os atores -. além de se tornar factível a marcação das cenas no espaço de acordo
com o ângulo de visão que os espectadores teriam durante o espetáculo. Graças à
presença do Almirante do Lago. o grupo passou a contar com dois barcos de apoio, o
que auxiliava na realização dos ensaios simultâneos.
Porém, li 111 a situação traumática estava na iminência de irromper, Segundo a em-
presa proprietária" da embarcação principal. a navegação durante a peça poderia ser
realizada CIn qualquer sentido, tanto no fluxo quanto no coutraüuxo do rio. De acor-
do C0111 sua avaliação. O "potente" motor elo Almirante do Lago seria capaz ele parar o
barco em ré ou de fazer qualquer manobra complexa necessária. Esta informação, é
importante ressaltar. foi confirmada e reconürmada vãrías vezes.
TOll1<1n<1o COl110 baliza a diminuição do tempo ele duração do espetãculo. o grupo
optou pela navegação no sentido do fluxo do tio. pois ela pouparia vários minutos
de deslocamento, além de proporcionar urna passagem mais rápida de urna cena a
outra. De posse de todos esses dados. passamos várias semanas explorando e implan-
tando as cenas ela peça de acordo C0I11 essa orientação fluvial. Chegamos, inclusive. a
correr a peça inteira seguindo o sentido elo fluxo do rio. isto é. partindo da Ponte da
Anhangüera e desembarcando no Cebolão.
Contudo. quando o Almirante do Lago começou finalmente a navegar no Tietê. a
situação revelou-se completamente outra. Além da pouca velocidade e do 1110tor que
fundia e quebrava frcqúenternenre, o barco não conseguia ficar parado no fluxo do
rio. A empresa passou dias tentando. infruriferamentc, resolver a questão. Ao final.
reconhecendo a irreversibilidade do problema, comunicou ao grupo a necessidade de
inversão do sentido da peça no espaço.
O impacto de lal notícia causou \.\11"\ trauma no elenco. Vários atores - justificada-
mente - caíram aos prantos, pois viram todo o trabalho árduo de semanas ir, Iireral-
mente. por água abaixo. A realidade. nua e crua, era que teríamos que C0111eça)' do
zero novamente. Porém, não havia outra saída. Fomos obrigados a remarcar a peça
inteira. agora no contrafluxo, isto partindo do Cebolão e desembarcando na Pon-
é.
te da Anhangüera. Sem dúvida. este foi o pior momento no processo ele ocupação
espacial do Tietê.
Contudo. passado o trauma e a crise dele decorrente, descobrimos que, em ter-
11105 de possibilidades cênicas, o sentido do conrrafluxo era muito mais fecundo. Urna
vez mais, os limites à liberdade de criação mostraram-se inspiradores. Tal percepção
trouxe novo alento aos criadores. o que determínou que a remarcação espacial fosse
realizada em um tempo de ensaio proporcionalmente menor,
A encenação. por sua vez. logrou definir um conceito de utilização do espaço. As
cenas do texto situadas em Brasília seriam encenadas ao redor elos viadutos, onde o
aspecto de monumentalidade ficava evidenciado. Utilizamos. para tanto. o Cebolão, a
ponte da Cl7fM e o viaduto da Anhangüera. Já as cenas em Brasilândía ocorreriam em-
baixo de pontes. no sentido de acentuar o elemento de precariedade. Em função disso.
as encenamos sob a Ponte dos Remédios e sob a ponte Atílio Fontana. Por fim. aquelas
que se sítuavarn enl Brasíléía seriam apresentadas ao ar livre. nas margens e leito do rio.
reforçando o aspecto de "natureza" - salvo a cena do Seringal Egito, que demandava um
local fechado.
Um grande desafio para a encenação concernia à criação de focos de atenção num
ambiente In arcado pela dispersívidade". Além dos recursos de luz - via recorte do espaço
- e de som - via uso de microfones, que auxiliavam na compreensão do que era dito - a po-
sição do barco principal e a sua distância das margens era muito ímportante. Un1 posicio..
namcnto errado poderia comprometer a percepção visual. prejudicando a fruição da cena.
Além disso. o excesso de afastamento do barco alargava em demasia o campo de visão elo
espectador; o que desviava a atenção e "esfriava" a experiência. Daí os vários ensaios COIU
os marinheiros e capitães das embarcações. a fim de que eles compreendessem o rigor
exigido e dominassem tecnicamente <15 manobras, Fundamental também, nesse sentido.
foi o papel desempenhado por Eliana Monteiro. na coordenação da logística de cena.
Por fim. o feedlJack do público esteve mais organizado em Bl~-3 do que nos proces-
sos anteriores. A dramarurgista Silvia Fernandes elaborou UHl questionário que era
cn trcgue ao público no final ela peça. O f~110 de os espectadores retornarem juntos,
no mesmo ônibus. em direção ao Memorial da América Latina - ponto de partida c
chegada do espetáculo>. "obrigava-os" a despender um tempo "livre", antes da volta
às atividades cotidianas, Talvez, por essa razão. quase lodos os questionários eram
precnch idos cuídadosamcn te.
As perguntas destinadas ao público eram as seguintes:
•
1) Quais são as suas impressões sobre o espetáculo? 2) Qual é sua opinião sobre o
texto? Foi possível compreender a narrativa? Quais foram as passagens ern que
ela não ficou clara? 3) Qual é a sua opinião sobre a encenação? O que você achou
interessante e quais as cenas de que não gostou'? 4) Qual é a sua opinião sobre a
interpretação? Corno foi a experiência da voz microfonada dos atores? S} Você acha
a peça muito longa? 6) Você teve urna boa visibilidade do espetáculo?
39 Por exemplo. em jri, a dramaturgia tentava resolver tal problema por meio da utilização
do verso - qUI! apresenta uma estrutura sonora sintética - e do elemento épico, matcría-
lizado pela narração elahistória. que era constantemente retomada ao longo da peça,
146
1 l':\lU~YSON. J~ OS {'robkmas (la Eslt:tíca. São Paulo: Martins Fontes. 1989. p. 32.
2 Ibid.. p. 32.
148
A definição elo projeto é realizada por meio de discussões coletivas envolvendo to-
dos os integrantes fixos da companhia. Ceralmente ocorre a partir de urna dinâmica
que denominamos fórum", Nela, é feita a avaliação elo processo anterior e elo espetá-
CI
ao vivo - o grupo discute e elege aquele C0111 qUCI11 pretende trabalhar. Viemos in-
sist indo no termo "escritor". pois não há a obrigatoriedade de que o convidado seja
necessariamente UH1 dramaturgo profissional.
Após essa definição. caso seja necessário. parte-se para o convite aos outros co-
laboradores. Por mais que se busquem parcerias de longo prazo nas .;h·eas visuais e
musicais do espetáculo, ocorre ele um antigo colaborador não poder integrar o pro-
jeto naquele momento ou também do grupo querer estabelecer novos vínculos - em
geral decorrente de desgastes ou insatisfações ligados ao processo anterior.
Os procedimentos ele escolha são semelhantes aos da dramaturgia. A partir de
um leque de indicações apresentado pelos integrantes do grupo, entra-se em contato
C0111 o material produzido por esses artistas e, em alguns casos, recorre-se ainda a
leso Além disso. eles devem adotar uma postura de observadores ativos. interferindo.
questionando. duvidando. buscando inter-relações - mesmo sem se manifestar expli-
cirarnenre durante o alo da pesquisa",
É neccssãrio estar atento a algumas armadilhas - ainda que seja necessário cair
nelas para poder. então. desarmá-las. A primeira refere-se ao aspecto turístico. Tal
aspecto acaba por restringir a pesquisa de campo ao simples registro do inusitado
ou à observação superficial de paisagens humanas e geográficas. A troca e o diálogo
remam-se epidérmicos e a experiência se dilui no entretenimento.
O segundo problema é o risco do voyeurisrno. Por se tratar, em alguns casos. de
situações ou locais significativamente distanciados do universo do grupo. instaura-se
um fiísson ou uma curiosidade mórbida, às vezes COIU forte conotação sexual. Essa
possibilidade que se abre à pesquisa de campo, de penetrar em universos fechados
ou de compartilhar segredos inauditos cria Ut11 fascínio magnético e erotiza o olhar.
I~ claro que essa energia libidinosa pode ser útil em determinadas "aproxirnações",
o'cranclo encontros ele alta voltagem e estimulando interesses mútuos e comuns. A
~
questão é quando tais encontros reduzem-se apenas a jogos ele sedução camuflados,
a 111ecanisI110S de conquista. em que cada um quer mostrar unicamente o melhor de
si ou aparentar mais do que é. Daí, sob tais circunstâncias, a pesquisa adquire UHl
caráter artificial e mentiroso.
Mais pernicioso ainda é quando esse voyeurismo vem marcado por diferenças de
classe social. nível de educação ou poder aquisitivo. O "outro". nesse caso. t ransfor-
ma-se em "bicho de zoológico", ao qual se oferece uma ternura complacente c carido-
sa. i\ iurcracão com o "menos favorecido" passa a ser instrumento de alívio ela culpa
social ou elemento de 17wrkeUng de pretensas preocupações sociais. Na perspectiva
contrária - ou seja. do ponto de vista do "objeto de estudo" - o pesquisador se reduz
a manancial de recursos. a fonte de investimento e. até H1CS1l10. a bóia de salvação. O
grupo, então. se torna urna espécie de ÜNG. com o dever de alimentar, vestir. educar
ou fornecer oportunidades de trabalho.
Urna terceira armadilha diz respeito ao perigo da exploração c do extranvismo, Isto
é. a companhia coleta histórias. informações. elementos ele toda ordem, apropria..se
desse material bruto recolhido, transforma-o em peça teatral- ou apenas enverniza ou
enfeita a sua obra C0l11 ele - e não disponíbiliza nada em troca (é claro que o espetáculo
resultante dessa interação representa a principal "troca"; porém, muitas vezes. a comu-
nidade não é sequer convidada para assisti-lo). Quando muito. são oferecidas oficinas
internas entre eles. Para a an ..ilise completa desse conceito - retirado da metodologia
científica -. consultar o capítulo t , 1'1'. 15-17. in: SlLVA. 1\. C. t\ .. ,\ Gênese da Vt.'l1igem: o
1),.oce550 ek O·iaçiio ,k '0 Paraíso Perdido'.
152
o processo colaboratívo, por sua própria natureza, tem UIl1 caráter aberto. agrega-
dor e inclusivo. Esta dimensão que ocorre entre os criadores. no ãm bito intra-grupal,
ganha sentido e amplitude maior ao incorporar alunos, estagiários e outros observa-
dores externos durante o período de ensaios.
Mais do que apenas oferecer oficinas teatrais a possíveis interessados, procura-se
integrar os aprendizes e estagiários ao processo da criação. A idéia é que eles atuem
ativamente da feitura da obra, seja discutindo ou experimentando elementos que vc-
154
nharn sendo trabalhados pela companhia, seja "colocando a mão na massa" - através
da apresentação de cenas, da proposíção de workshops, da sugestão de idéias de luz,
S0111 , figurinos. etc. - seja, ainda. participando presencialmenrc no espetáculo final
- corno atores, operadores de 50111 ou luz, músicos, etc.
Ao invés ela idéia de "aprender para depois fazer", procura-se incorporar o apren-
dizado ao movimento turbulento e dinâmico do próprio criar. Nesse sentido, não
existem "professores" e "alunos", mas criadores - COIl1 maior. menor ou nenhuma
experiência - colocados juntos em situação de criação. Evideuternenre que os artis-
tas do grupo funcionam COlHO coordenadores ou orientadores de percurso. contudo.
sem a preocupação didãrlca de um curso formal.
Por exemplo, nas oficinas ou estâgios de direção que coordenamos. nunca houve
encontros sobre técnicas de direção ou teoria da encenação. Ao contrário, sentáva-
1110S juntos e planejãvamos o cronograma de trabalho da semana. discutíamos os
problemas internos ou as crises de processo e fazíamos U111 braillstonn de exercícios,
jogos e ternas de ímprovisação para serem aplicados nos ensaios. À medida que ocor-
ria o aumento da cumplicidade entre nós. tratávamos de ternas delicados ou espinho-
sos concernentes às outras áreas de criação e, inúmeras vezes, pedíamos auxílio ou
socorro aos estagiários para problemas difíceis de resolver.
Este papel do "professor em crise", hesitante, angustiado. do mestre frágil ou
fragílizado. é urn papel diflcil ele aceitar c de assumir - por ambos os lados. C0l110 a
pessoa que coordena o processo pode ficar sem rumo? C01110 se deixar orientar por
alguém transpassado pela dúvida? Esse exercício da fragilidade. esse cnfrcntamcnto
do saber falho e incompleto exigem uma maturidade tanto (lo "mestre" quanto elo
"aprendiz" difícil - c dolorida - de se atingir.
Contudo. se superado esse 111ilO do "protessor-sabc-tudo", ao invés da falência da
didática. ocorre a sua revitalizacâo. Todos aprendem e ensinam, sabem e erram. cxpe-
rimentam o prazer da descoberta conjunta e o terror da paralisia e da impotência. I~
preciso perceber as limitações - suas e do outro - para que novos conhecimentos se pro-
duzarn. Mais do que o fracasso da pedagogia ternos urna pedagogia do - e no - fracasso.
No nosso caso. o que ocorre, ao longo dos ensaios. é a imbricação do artístico no
pedagógico, e vice-versa. Um alimenta e é alimentado pelo outro. O que é diferente
de desnparcccrcm um no outro. de se tornarem a nleSl11Cl coisa. De novo. insistimos no
diálogo entre os campos, e não nas suas dissoluções. Portanto, as oficinas e os esui-
gios não são simplesmente tarefas a serem cumpridas nem se reduzem a contraparti-
das obrigarórias. Elas são outra forma de exercício do colaborativo e de ampliação da
sua prática. Expõem os "oficineiros" a um processo de criação em que as fraturas es-
tão expostas, Lançam os "aprendizes" na concretude do fazer artístico. não enquanto
observadores passivos, luas co 111o agentes de criação.
Além disso. conforme já rnenciouado, as oficinas também cumprem \.\111 papel de re-
torno ou devolução do grupo em relação a determinada comunidade. É importante, con-
155
tudo. a fim eleevitar problemas, que os conteúdos, a freqüência e os horários sejam acor-
dados através do diálogo entre as necessidades lõcais e os interesses ou possibilidades da
companhia. As aulas e os estágíos funcionam como UHl espaço de aprofundamento das
relações entre os artistas e os residentes/freqüentadores do local, estimulando o surgi-
mento ele material para a criação. Se. por um lado, através de tais atividades pedagógicas.
os artistas se inserem na comunidade e passam a exercer uma função dentro dela, por
outro, aquela paisagem geográfica e humana impregna a obra em gestação.
.~ StLVA. :\. C. A •• A G~nt:sc d{l V~rtig\.1n: o Processo de Críuçdode'O Pnrniso Perdido', pp, 84-86.
157
• exercita a reflexão crítica e conceitual C0111 respeito aos ternas, por meio
de U111a tornada de posição (aspecto crítico).
Além disso. o depoimento pessoal cumpre U1l1a dupla função no processo. É. por
um lado, insrrumento de investigação da pesquisa temática e. por outro. gerador de
material cênico bruto para a dramaturgia e o espetáculo. Na verdade. sob esse último
aspecto. o depoimento pessoal se torna o próprio fragmento cênico passível de reelabo-
ração. Ou seja. ele tanto é procedimento metodológico quanto resultado expressivo.
O depoimento pessoal é a base sobre a qual se constrói a criação. É em razão
dele que se consolida. por exemplo, o ator-autor. Ao invés ele ser apenas tradutor,
intérprete ou repetidor de falas alheias. o ator vai produzir o seu próprio discurso,
enunciar a sua visão de Inundo. ou seja. posicionar-se. Esse posicionamento é tanto
estético quanto ideológico. pertence tanto ao indivíduo-ator quanto ao cidadão-ator.
enraíza-se na vivência pessoal. mas também no contexto histórico-social em que ela
está inscrita, em suma, constrói urna formulação que imbrica arte e vida.
No processo colaborativo, portanto. o ator não apenas representa personagens. mas,
sobretudo. efetua um depoimenro artístico autoral. Sob este ângulo, ele se aproxima
da idéia de per:fi)t1rzer. que cria a partir da sua visão de mundo particular. trazendo para
a cena urna presentificação - ou reelaboraçâo - de sua própria história de vida.
Do ponto de vista estritamente interpretativo, a prática do depoimento pessoal.
por seu caráter confessional. vai estimular no ator U1l1 estado de abertura e despren-
diruento, provocando o que poderíamos chamar de dcsvehuncnto. Nesse sentido. o
depoimento pessoal se constit ui em ferramenta capaz de interferir nos mecanismos
de bloqueio do ator. estimulando a sinceridade c a entrega. Ele contribui também no
processo ele autoconhccimento do ator, imbricando prática artística e experiência de
vida. consciência da obra c consciência de si.
Segundo Mário Santana. em sua análise sobre o depoimento pessoal. a sua função é
5 SANTANA, ~f. J\ •.r\ Ctua t~ cl Atuaçl10 come; dt:[JDfmeUlo esr~lko do ntor Cliudm- nos t~Spl.'leicul{)~ ',\
CnIZCH1" elas CrieUl(flS' t' i\poculipst.' 1.LI·, ~003~ 197 f. Tese (Doutorado CU\ An~s) - Escola
de Comunicações e Artes. Universidade de São Pau [o. p. 154.
158
e críticas, os outros atores rarnbérn se contaminam por tal atitude. e um espírito co-
letivo de respelto ITIútuO, de parceria e de cumplicidade vai se consolidando.
Contudo, é importante ressaltar que. apesar do caráter de auto-exposição ineren-
te a essa abordagem, é o ator quem decide que material ou que memória de seu "baú
pessoal" ele pretende compartilhar com o grupo. Estabelece-se U111 pacto, inclusive.
de que ninguém deverá expor algo com que não se sinta apto a lidar ou que ainda não
esteja suficienrernente "trabalhado" no plano subjetivo. O limite entre desvelurnento
e terapia de grupo é tênue. com o agravante de que não possuímos capacitação pro-
fissional na área psicológica para coordenar - ou socorrer - tais desvios. E. sobretudo,
porque o nosso objetivo é. na origem e no final, a realização de UI11a obra artística.
Quanto ao diretor. ele cumpre urn papel importante no sentido ele estimular e
acirrar os pontos de vista ele cada integrante em relação ao projeto e de incitar os
atores a investigarem a si ll1CSl110S e a extensão dos seus limites. Ele eleve evitar a cen-
sura e o menosprezo a posicionamentos mais fnigeis ou confusos, a fim de não criar
urna atmosfera de intimidação.
Corno já dissemos, ser.i da intensificação deste 0111<11" individual que emergirá a
visão panorâmica do conjunto. A radicalização das singularidades abre espaço para
que os diferentes dialoguem . contraponham-se e. na seqüência. o conjunto se afirme.
O ator submisso, que não se posiciona - o que é diferente do ator neutro. já que a
neutralidade pode implicar num posicionamento -. é um entrave à polifonia grupal.
Pois é justamente do embate de múltiplos depoimentos pessoais que se construirá o
depoimento colet ivo.
algum estímulo temãtíco ou contexrual relativo ao projeto. Além disso, a fim de auxi-
liar na concentração. trabalha-se CQIn luz baixa e (0111 estímulos sonoros ou musicais,
Por exemplo. em Apocalipse 1,11. urna proposta lançada aos atores como 1110le do
exercício foi: "O mundo vai acabar em 24 horas. O que você faria nesse tempo que
lhe resta?". Tal proposição, realizada na primeira semana de ensaio. visava a colocar
os atores frente â possibilidade do "fim do mundo", aproximando-os das suas reações
159
dos clichês que. se reelaborados, poderiam ser úteis à discussão. Por exem-
plo, em Apocalipse 111, corno contraponto ao exercício de vivência acima
descrito, foi proposto aos atores que trouxessem todas as suas imagens de
fim de mundo e de destruição. da Bíblia às histórias em quadrinhos, sem
medo de caírem na obvícdade. A idéia era que "colocassem para fora". que
"gastassem" tudo aquilo que parece ter se impregnado e cristalizado no
seu imaginário;
o Improvisações ternãticas: realizadas C0l11 o propósito de mapear os ternas
e subtemas do projeto e. num segundo 1110111ento, aprofundar a discussão
dos recortes estabelecidos;
• Irnprovisaçôcs de personagens: importantes tanto no levantamento geral
ele possíveis personagens para a dramaturgia quanto. depois. para o me-
Ihor delineamento delas e de suas relações.
5.10 PERGUNTA/RESPOSTA
parar as suas respostas com a de outro companheiro, Não existem respostas certas
ou erradas para as perguntas propostas. As vezes. por exemplo, uma resposta que
aparentemente tenha se desviado da pergunta, pode suscitar conexões inesperadas.
Por outro lado. a resposta cênica a ser dada nâo tem a obrigação de "responder' nada.
Ela pode simplesmente se constituir em urna nova pergunta, lançada de volta para o
dramaturgo. o diretor OH os outros atores.
Além disso. é COll1Ul11 muitas elas questões não produzirem qualquer material de
interesse. Caso isso ocorra. - o que é normal e esperado -. o diretor pode optar por
reformular a pergunta ou propor U111a questão inteíramente nova.
também idéias. frases ou fragmentos ele texto para o dramaturgo, Tais contribuições,
é claro, podem ou não ser incorporadas à peça. A escrita automática, portanto, é urna
Improvisação redigida, realizada lndividualmente e à queima-roupa, COll1 U111 tempo
exíguo de duração. a partir de urna pergunta ou bordão. Por exemplo. em Apoccllipse
1;1 -1, alguns dos estímulos utilizados foram "Quem você julgaria e por quê?" ou "Eu
me arrependo de..:'. enquanto que em O Livro de Jó. "Eu acredito em..".
Esta dinámica aCOITe de maneira simples: distribui-se urna tolha em branco c 11111
lápis para os atores. fornece-se a pergunta ou bordão. e cada UH1 deles, sentado ou dei-
tado no chão, escreve o seu texto. de forma ininterrupta. O ator não eleve premeditar,
reescrever ou corrigir a gramãtica. a fim de que a escrita saia corno um fluxo, sem
pausa nem controle. Ele não eleve também se preocupar C0l11 clareza, lógica ou sentido.
nesse seu texto em erupção. Ao final de UIl1 curto tempo - não superior a dez minutos
- cada UI11 deles vem à frente e f~l1.. urna leitura simples, não-interpretada. daquilo que
escreveu. Depois que todos leram. os textos são recolhidos e entregues ao dramaturgo.
Esse tipo de prática aquece e estimula os intérpretes a se colocarem corno atores-
dramaturgos no trabalho.
5.12 WORKSHOP
um ou mais dias de antecedência. c que estimula a visão inclividuol de cada ator em re-
lação a um assunto ou problema, Apesar de concebido individualmente, ele pode in-
corporar outros atores no momento das apresentações. í: tUH dos eixos fundamemais
do processo colaborativo e coloca em evidência a função autoral do ator. Tanto corno
o ClUlOVílCCÍO ou o roteiro para o dramaturgo, ou a montagem e a ocupação espacial
pa ra o enccnador, () worksllOp é, para o ator, o seu espaço por excelência de criação e
posicionamento artístico.
•
O termo \VorksllOp, na verdade, tem pelo menos três significados distintos. O pri-
melro deles é aquele que nomeia um "curso intensivo". urna "oficina", 111n "seminá-
rio prático", A segunda acepção. de acordo C0111 a tradição anglo-americana, o define
corno U1l1 processo teatral de curta duração. em que se realiza o esboço de algo. que
poderá ou não ser desenvolvido posteriormente. É comum. tanto em companhias in-
dependentes (vVooster Croup: Mabou Mines, etc.) quanto em teatros que criam e pro-
duzern suas próprias peças (Royal Court Thcarre: New York Theater Workshop. etc),
existirem esses "balões de ensaio" de possíveis novos trabalhos para o repertório.
Às vezes, urna peça-em-processo ou urna produção embrioruiria pode ser desen-
volvida por meio de vários \vorkshops, separados por intervalos de tempo, até que se
163
decida por sua montagem oficial. O workshop. portanto. assume o caráter de teste. de
livre-exploração artística sem as pressões de produção. isto é~ torna-se um espaço de
"segurança e intimidade", corno definido por Schechner; Segundo o diretor e teórico
americano. o u,vorkshop é UlTI ternpojespaço protegido onde as relações intra-grupais
podem se desenvolver sem serem ameaçadas por agressões extra ou inter-grupais'";
Talvez. em decorrência dessa idéia de "livre-experimentação", o teI1l1O \vorkshop vai
ganhar ainda uma terceira conotação. Entramos em contato coru ela pela prática de
trabalho do grupo Boi Voador. dirigido por Ulisses Cruz. Nesse Importante grupo P;lU-
lista da década de 80. o workshop traduzia a idéia já mencionada de urna "quase-cena",
que era apresentada pelos atores durante o processo de montagem do espetáculo.
Uma pequena diferença entre esta prática e aquela realizada pelo Teatro da Verti-
gem repousa no fato de o Boi Voador - e de outros grupos da época - usar o workshop
principalmente COl peças prontas ou em adaptações. Ele era 11111 inst rumento desti-
nado. COTll maior ênfase. à encenação e ao levantamento do espeuiculo. No caso do
Vertigem. além de cumprir esse papel, o workshop tem importância fundamental na
criação e construção da dramaturgia.
É justamente no período de elaboração do texto que ocorre o maior número de
\vnrkshops. Evidentemente, eles servirão também à criação do espetáculo. porém, o
seu toco, nesse lTI0I11cnto. está colocado no Ievantamento de material para o roteiro
e na investigação de possíveis personagens. Na última fase dos ensaios. pouco após a
entrada..no espaço, a dinâmica de \VorksllOps deixa de existir.
(~uanto à sua mecânica de funcionamento, trabalhnmos sob determinados pará-
metros, pactuados pelo grupo inteiro. Todos os dias, ao final cio ensaio. o drnmarurgo
c o diretor - ou apenas este último - propõem um estimulo para ser trazido na forma
ele workshop no dia seguinte - ou no máximo dois dias depois, se assim deterrninado.
Esse estímulo pode ser urna palavra. urna frase. UIl1a imagem ou UHl fragmento ele
texto. No dia seguinte. todos os atores devem apresentar o seu \vorkshop. () qual tradu-
zírá a visão pessoal daquele ator em relação à proposição dada.
À medida que os ensaios vão se desenrolando, é comum algum dos atores não
querer apresentar o seu \\'orksholJ. Porém, em função elo pacto firmado, tal possibili-
dade não existe. Ou seja. ele deve elaborar alguma cena. seja no intervalo do cate ou
111eSlllO minutos antes de se apresentar. Este cotidiano de intensa profusão de cenas.
de incessante b1"aiustunn gera UI11 material heterogêneo e desigual. Por outro lado, po-
rém, esse caos criativo contínuo vai esgotando <15 idéias-prontas e abrindo o processo
para textos, imagens e soluções inesperadas.
Assim, a exaustão física grotowskiana parece, no processo colaborativo. ganhar
urna dimensão ligada fi exaustão de propostas - idéias. textos, imagens ou cenas - as
quais os atores devem produzir no calor da hora do ensaio ou nos workslrops trazidos
de casa. Contudo, essa exaustão não é aquela do cansaço, mas Si111. do esgotamento
- no sentido deleuzíano do termo", Isto é, não ocorre a extcnuação, a desertiflcação
artística. 111as sim, 1.1111 esgotar total de possibilidades que acaba provocando o apare-
cimente inesperado de novas idéias ou conformações.
Poder-se-ia perguntar aonde desemboca tanto material cênico e textual produzido
nos \Vorkshops e improvisações. Conforme apontamos em nossa dissertação", urna par-
te dessa produção. de fato. se perde; outra parte se materializa no corpo dos atores
- ainda que de forma não explícita. como, por exemplo, numa qualidade de presença
- e uma última parte. enfim, se concretiza em cena. Ou seja. nem tudo se perde. luas
também nem tudo se transforma.
É fundamental que os atores se sintam livres para trazer de casa. naquelas 24
horas de preparação, o que quer que seja. Não deve haver censura, nem recusa ele
nenhum impulso ou desejo que lhes ocorrer. Eles apresentam, então. U111 esboço de
cena ou uma improvisação estruturada, C111 que criaram e/ou selecionaram o texto
- se houver - as imagens, a música, os objetos, o espaço, a luz e os figurinos. Em
outras palavras, eles se exercitam enquanto atores-dramaturgos, atores-encenadores.
atores-cenógrafos e assim por diante - o que é diferente de se tornar ou élSSUI11Ír o
lugar do dramaturgo, do enccnador ou do cenógrafo.
Além disso. a qualidade plástica ou técnica relativa a essas áreas não é o que
vem em primeiro lugar. O que importa é a materialização de um conceito ou de um
ponto de vista. Apesar disso, na prática. alguns workshops revelam alto grau de ela...
boração estética.
Após as apresentações do dia. o grupo todo realiza uma discussão sobre () que roi
visto e. a partir desse fcedback. o diretor ou o dramaturgo pode solicitar a reelabo-
ração do material. O intuito é desenvolver melhor alguma idéia ou imagem cênica,
permitindo o aprofundamento do ator em relação às suas próprias visões. Não é inco-
mum, portanto, os atores apresentarem duas ou três versões de UI11 mesmo \vorkslwp
- às vezes até C0I11 acréscimos de texto propostos pela dramaturgia.
Apesar de o depoimento pessoal ser inerente a tudo o que ocorre cn1 sala de ensaio,
ele fica maximizado nos workshops. Isto, provavelmente, em decorrência da formaliza-
ção cênica por eles exigida. Em outros tipos ele improvisação, por exemplo, é C0l11U111 a
alternância de momentos de acirramento e de diluição deste depoimento, O worksltop.
ao contrário, exige urna síntese artística que estimula o ponto de vista individual.
7 Segundo Deleuze, no posfiicio às peças para televisão <te neck~u. eoth:l'\~do L'El1uisé.
·'0esgotado muito mais elo que o cansado. 1...1O cansado apenas esgotou a realiza-
é
ção. enquanto o esgotado esgota todo o possível. (...1apenas o esgotado pode esgotar
o possível. uma vez que ele renunciou ..1 toda necessidade. preferência. finalidade ou
signifícação". In: .H:CK~Tr. s. QUCld d uulrt.'s pit:ct:s lJOUI' In tckl'ision. Paris: Les Éditions de
Minuit. 1992, pp. S?-61 [trad. Alexandre de Oliveira Henz).
g SlLV..\ , ..\ . c. i\ •• 1\ CérH:S~ ,in \'t:t1igcrn:o Proresso clt: Criaçclo de '0 f'amíso {1adidu·. p. 98 e p.IS0.
165
Não elevemos nos esquecer, porém, que apesar de planejado solitariamente por
um ator, ele acaba congregando o grupo inteiro em sua execução. Na maior parte .
das vezes, esse ator-encenador convida os outros intérpretes a participarem de sua
proposta. Não há ensaio. tudo é combinado na hora e improvisado ali mesmo, No
entanto. seguindo as indicações de U111a estrutura dramatúrgica e cênica elaborada
previamente pelo ator-proponente.
Essa dínàmica prepositiva individual acaba fomentando. COU10 já vimos, um tipo
de clramaturgia monológica. Contudo. tal tendência pode ser revertida por meio da
firme interferência do dramaturgo durante a elaboração do texto. Ela também pode
ser atenuada pelo estímulo do encenador à realização de exercícios dialogados e de
UI11 maior número de improvisações coletivas,
Por fim, gostaríamos de apontar que. nu seqüência das atividades de UUl dia de
ensaio. o \vorkshop aparece corno a última dinâmica. sendo seguido apenas pela ava-
liação grupal do que foi desenvolvido naquele encontro. A idéia é de um encaminha-
mente que vri "aquecendo" criativamente os atores. Parte-se do treinamento direcio-
nado. de caráter mais físico, para urna instância mais subjetiva. materializada pelas
vivências. A seguir, vêm as improvisações - grupais, em duplas ou em trios; tcm.iti-
cas: de personagens: escrita automãtíca: pergunta/resposta, etc. - e somente então,
são apresentados os workshops. culminado o dia de trabalho. Portanto. resumindo. a
seqüência que geralmente é empregada nos ensaios é a seguinte:
Quais são os critérios que orientam a escolha do material, tendo ern vista a enor-
me quantidade de exercícios. improvisações e workshops realizados durante a fase
inicial elos ensaios? É neste momento que a existência de funções artísticas definidas
cumpre U111 papel fundamental.
166
l~ claro que tudo o que é produzido ao longo do processo vai sendo debatido. dia-
riarnente, por todos os integrantes. Essa dinâmica cotidiana de discussão estimula
o reconhecimento de zonas de interesse C011111n1 e, também, é lógico. das áreas de
conflito. Dai que, U111a parte das escolhas Ocorre organicamente, por rneío do diálogo
e da negociação. cabendo ao dramaturgo ou ao diretor apenas o papel de facilitar.
mapear ou organizar as distintas sugestões e opiniões. Ambos podem contribuir tarn-
bém para deixar explícito e assumido aquilo que agrupo deseja excluir da obra. ou
seja. funcionariam COl110 uma espécie de consciência da via negativa do trabalho.
Contudo. outra parte da seleção - seja pelo seu caráter 111(115 polêmico, duvidoso ou
delicado - é difícil de ser feita. Por exemplo, em razão do apego aos próprios depoimen-
t05 pessoais - atitude compreensível e justificável - os atores tendem a lutar pela perma-
nência ele um volume de material maior do que o desejável. Dai se tornar premente a
interferência incisiva. do dramaturgo e do diretor. em relação às escolhas a serem feitas.
Nessa etapa do processo. por exemplo, é necessária a transformação das idéias e
proposições cru um C€UIOVClccio. Portanto, o dramaturgo precisa chamar a rcsponsabili-
dade para si em relação a essa estruturação. Tarefa difícil, pois se parte de 1.1111 I110I11Cn-
lO em que tudo pode. marcado por vigorosa ebulição criativa, para a primeira tentativa
de roteirização. na qual deve imperar uma rigorosa e cuidadosa seleção. Desnecessário
dizer que, em geral, esse é o primeiro grande momento de crise no processo').
A tarefa da dramaturgia não se restringe apenas a apontar o que fica e o que sai.
mas também a identificar o material que carece ainda de maior desenvolvimento - o
que significa a necessidade de mais improvisações e workshops. Porém, o fator mais
determinante dessas escolhas é jusrarnenrc a própria cena. Isto é. aquilo que funciona
ou não. teatralmente. Deve-se evitar transformar essa etapa de seleção numa arena
argumentativa, na qual a esgrima verbal e a retórica discursiva tornam-se as principais
fontes de convencimento. Ao contrário. é a cena que deve nos dizer - e convencer - do
que. de todo o material levantado. deve permanecer ou ser eliminado. COll10 afirma
Luís Alberto de Abreu. a cena "é o fiel da balança c. CO111 o algo concreto e objetivo. é
hierarquicamente superior à idéia. imagem, ao projeto. às visões subjetivas"!",
à
9 Alonso Alegria. dramaturgo e diretor teatral peruano, identifica nessa etapa do ira-
balho um dos pontos mais problemáticos da criação coletiva. Segundo ele. ··é uma
miscelânea de coisas. tem muitas mãos nesse prato. (...) quem quiser trazer o seu. pode
trazer o seu, e como não é aceitável que um individuo diga em relação aos dez [emas
ou dez cenas apresentadas pelos dez integrantes do grupo. que diga para examinarmos
uma e abandonarmos as outras nove. isso é impossível. porque isso não é muito cole-
rivo. Corno não há urn diretor autorinlrío, não existe quem pOSS'l dizer isso co. então.
o que acontece? Opta-se por apresentar as cenas de todo inundo 0\1 aquelas em que
tenha havido um consenso. ao invés de - desnecessário dizer - colocarmo-nos todos
de acordo para escolher UIn único incidente, para examiná-lo com profundidade" {In:
CF.Sl'l:DI:S. F. G. (org.). fi 'lhuro LaliuotUm',;mllo de Crecuiôn COlt.'CtíviL. pp. 6~-65J.
io . \RRFoU. 1.....\ •• "Processo Colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência d~ cria-
ção", In: Cacfc.'J"IIos dll ECf. p. 38.
167
Abreu define cena "não como a unidade acabada. mas qualquer organização de
ações proposta por atores, diretores ou dramaturgos"!'. Portanto, a idéia é observar
atentamente o conjunto do material cênico produzido até ali - o qual, evidentemen-
te. apresenta uma qualidade precária e inacabada - e "perguntar" a ele ou encontrar
nele. as balizas do roteiro.
É importante ter ern mente que. além dos critérios gerais até aqui levantados.
cada obra vai demandar ou criar os seus próprios critérios de seleção. Ou seja. o pro-
cesso de elaboração do texto - e da cena - gera os seus parâmetros específicos ele es·
colha. Daí a necessidade de se estar atento 80 fluxo da criação e de desenvolver urna
capacidade de escuta que permita identificar tais parâmetros no seu nascedouro - ao
invés. simplesmente, de impor urna visão exógena e desconectada do processo.
5.14 CANOVACCIO
I t I\BRf.U~ I.. A.~ "Processo Colaborativo: relato e re.flCx.Õe5 sobre uma experiência de cria-
çâo", In: CCHknws da El.T. p. )8.
t2 lbid.. p_]8,
13 1hid., p. 38.
168
sendo criado em ensaio, É essa tensão entre voz individual e voz coletiva. marca - e
cicathz - elo processo colaborativo, que deverá moldar o corpo do canovl1ccio.
Na prática do Vertigem, costumamos também denominar esse primeiro roteiro-
geral corno "esqueleto" ou "varal de cenas". Além disso, já experimentamos esboçar
inicialmente um argumcnto - espécie de sinopse do trabalho. na qual. em UHl ou dois
parágrafos, são descritas as circunstâncias centrais e as trajetórias das personagens
- para só então haver a construção do canovaccio.
5.16 FEEDBACK
5.17 ROTEIRO
É freqüente o acirramento dos ânimos nessa etapa, já que de todas aquelas pos-
sibilidades infinitas de obras.iesboça-se a materialização de apenas umn. O ator. por
exemplo, não improvisa mais longos monólogos, devendo. ao contrário. memorizar
U1l1 conjunto reduzido de frases. Tudo começa a ser sintetizado e o grupo é obrigado
a encarar as resultantes de seu esforço. Além disso. esse é o 1110111ento em que ainda
cabe alguma grande modíflcação estrutural. Daí a presença de lUTI maior fôlego nos
embates e discussões.
Se. por todas <15 razões expostas, a dramnrurgia encontra-se na berlinda. sofreu-
do pressões de toda ordem, a encenação, por sua vez, está mais livre para realizar
experimentações. É o momento eru que são testadas possibilidades de estilos. de
linguagens. de espacíalízações e de atmosferas, Por não estar no foco elas atenções,
o diretor adquire um espaço privilegiado para testar as suas idéias e encaminhar os
seus decorrentes desdobramentos, O mesmo ocorre com os outros criadores. A cada
semana, nessa fase. figurinista. cenógrafo. iluminador e diretor musical utilizam o
"corrido" para experimentar as suas propostas. Isto cria 1.I111a ebulição artística, urna
efervescência teatral. que torna cada "corrido" um espetáculo fl parte.
Apesar da imbricação e ela simultaneidade de lodos os aspectos ela montagem, se-
ria oportuno relembrar o trajeto percorrido pela escritura dramatúrgica:
14 l(:.'lÜUliI.••\1_ o. La Píflalnll ,-ou lu CI"cClliân Acloml. Madrid: Editorial Fundamentos. zooo. p, 56.
173
trurnento para a descoberta das ações - instrumento este que se encontra ancorado
no esqueleto da peça - possibilitando aos intérpretes. a partir daí. a mcrnorizaçâo
do texto.
Segundo Bella Merlin. o objetivo central da Análise Ativa, além de retirar o ator
da passividade inerente às "leituras de mesa ", é fazê-lo encontrar a partitura das
ações físicas. Para tanto. realiza-se a seguinte seqüência:
1S MmUJN. H. Tiu: COUlpktt: Stauisldvsky Toolk:it. London: Nick lIern Books, 2007~ p. 197.
174
•
5.21 INVESTIGAÇÃO E APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO
t HQUJ\ISS, A.: VI [J.AR. M. S. Dici01Uhio llOUctiss dl. Ufl,~tlU Portugu~s{1. Rio de janeiro: Objetiv.. I.
2001. p, 140~.
z J=F.IUU~lR/', A. n, 11. Novo J\un:1io Século XXI: o didomÍJio tlulingulZ lJortu.f:,r'lu:sa 3. ed, Rio de Janeiro:
Nova Fronteira. 1999. PI>. 951-952.
3 IN BRUGGl:R. vV. Dicionârio d~ FilosoJia, São Paulo: Ediwra Herder, 19Gz. P.Z56.
180
6 (;mNSnURC. Jm,'ó. Du Cena t'Ul G:nu. São Paulo: Editora Perspectiva. ~OOl. p. ~6.
7 ()()RT.n, "Condição Sociológica da Encenação Teatral", pp. 97.98.
S PAVIS, P.l.u Misc en Scc:ne CC)JII.:mlWrdim:; or(~irl(.'5. lt'udauú'S, pcrsJ1L'ctin·s. Paris: Armand Co-
lin, :~007, p, r i.
182
9 l':\VfS. I). O T~tllro no Cmzmnc!lIto de CulLuras. São [~1l11o: Editora Perspectiva, aoos. pI" 2)·:!.7.
183
tícos ela arte perforrnática - vão orientar as sugeridas aproximações C0111 o campo
.\
teatral. Segundo Lehrnann, "é evidente que deve surgir urn campo de fronteira entre
performance e teatro à medida que o teatro se aproxima cada vez de urn aconteci-
mento e dos gestos de auto-representação do artista performático"!".
O caráter multídíscíplinar, de cruzamento de diferentes linguagens artísticas. tão
axial na performance, é também prática recorrente na encenação atual. que se alia.
cada vez mais. às artes plãstícas, à dança. à música e ao cinema, Porém, diferente-
mente do projeto wagncriano de síntese das artes em sua Gesamtkunst\verk. o encena-
dor contemporâneo coloca lado a lado essas diferentes linguagens artísticas. "presen-
tificando-as" autonomamente,
O corpo em risco. colocado em situaçâo-Iírnire, que não representa mais persona-
gens. mas utiliza sua autobiografia corno material cênico, é outro ponto em COTI1Ulll
desse diálogo. Corno analisa joseue Féral, o perjeJrlner recusa "totalmente a persona-
gem e [... 1 [põe] em cena o artista ele-mesmo, artista que se coloca corno um sujei-
to desejante e performante, n1"5 sujeito anônimo interpretando a ele mesmo ern
cena"!'. Ou ainda. na visão de Jorge Clusberg. "o perfonlIcr não 'alua' segundo o uso
C0111Unl do termo; [...) ele não faz algo que foi construído por outro alguém sem sua
ativa participação" 12. Ou seja, essa instauração da presença elo corpo e da pessoa do
próprio pCJfonner. não mediada por instâncias flccionais. que marcou a cisão entre
"representação" - associada ao teatro - e "apresentação' - elemento-base da perfor-
mance - será revista c rcarticulada pela encenação contemporânea,
Entre outros elementos, ela vai lançar mão da exposição nua e crua do corpo do
ator-pcrjormer. de sua ampliação imagética - ou de partes dele - por meio de recursos
tecnológicos. acentuando o elemento presencial - ou pondo em xeque a sua ausência
ou virtualidacle -. além de colocar em risco ou em perigo a integridade física dos pró-
prios amadores. Í~ inegável a matriz artaudiana e de experimentos C01110 os do Living
'I'hearer nessa busca de UH] teatro "vivo" e não-representado.
A questão do olhar de fora, da observação externa, função precípua do diretor,
também dialoga C0l11 a atitude do pefJonner. Féral, por exemplo, reitera esse caráter
ele não-imbricação na obra. pois o peffol1ncr "mantém sempre um direito do olhar. É
o olho. substituto da câmera que filma, (...1operando deslizamentos. superposições.
arnpliaçôcs em um espaço e sobre um corpo tornados os instrumentos de sua própria
exploração" n~ Ou ainda, na formulação de Glusberg. "o pCljhnncr atua corno um ob-
servador. Na realidade. ele observa sua própria produção. ocupando o duplo papel de
1 o I.EH~t."NN. II.-T. "ll'cHro p()s.{lramcíLico. São Paulo: Cosac Naify, 2007. p. 223.
1 t ':(~RA1 .• J. "Pcrformunce et théãrralité: le sujet démysrifié". In: f ÉRr\ t, J.: Sr\VON.\. J. I.•: \.V.·\LI'I:R.
E ...\. [dir.), 'nléiitTalit~, écJilw·(.' er míst." l'fI srêne, Qucbéc: Éditions Hurtubise HMII, 1985. p, 135.
12 CJ.USnERG, J. A Arte: clll Pelfonnafln:. São Paulo: Editora Perspectiva. 1987. p.73.
1] l·ÉR:\J.• op. cit.. p, 131 (grito do autor).
184
Apesar da ênfase para a atuação a perfOl1nmlCt! não é U111 teatro de ator. pois. [...] o
discurso da lJcifonnmrce é o discurso da mise en scêne. tornando o lJf?llonncr urna parte
e nunca o todo do espetáculo [mesmo que ele esteja sozinho em cena. a ilumlnação,
o S0111 etc. serão tão importantes quanto ele - ele poderá ser todo enquanto criador
111<15 não enquanto atuante) (...1O l'crfonnl?r, à medida que verticaliza lodo o proces-
so de criação teatral, concebendo e atuando. se aproxírna da pessoa descrita por
Appia em t\ Obra deArte Viva. que acumularia as funções de autor c cncenador,"
obra em que nem o texto, o ator ou a encenação têm carãrer epicêntrico. Ou seja, a
.,
resultante do espetáculo - corno no caso da performance - reflete urna alternância de
dorninâncias textuais, cênicas, interpretativas. etc. ao longo de sua apresentação.
Contudo. uma diferença pode ser encontrada na análise distintiva que Renato
Cohen faz entre happening - de caráter mais grupal - e performance - de natureza
preponderantemente pessoal. Nesta última,
1...] o trabalho passa a ser muito mais individual. É a expressão de UI11 artista que verti-
caliza todo seu processo. dando sua leitura de mundo, e a partir daí criando seu texto
(no sentido sígníco), seu roteiro e sua forma de atuação. O l'erfonncr vai se assemelhar
ao artista plástico. que cria sozinho sua obra de arte: t...( Por esse motivo vai ser mui-
to mais reduzido o trabalho de criação coletiva. Mesmo quando o artista (no caso,
UHl cncenador) trabalha em grupo (...1esse processo se <hi por 'colaboração' 0\.\ por
'direção', Essa relação I...) vai ser urna relação horizontal. de colaboracão.v
J~curioso que Cohen já utilize aqui a palavra "colaboração" para descrever urn
modo de criação horizontal que seria distinto daquele da criação coletiva. Ü claro que
o que ele tem em mente não é ainda a dinâmica ocorrida no processo colaborativo,
o que se evidencia no exemplo por ele apresentado: a parceria entre Robert Wilson e
Philip Class, na qual este último compõe. separada e independentemente, a música
para suas "óperas". A colaboração, nesse caso, se dei pela equivalência das diferentes
criações. isto é. pela não-subjugação da produção musical à vontade e ao discurso do
encenador, Ú na afirmação territorial de suas autonomias, e na justaposição não-dia-
logada de suas criações, que eles "colaboram".
O rcat ro contemporâneo, ao deixar aparente e evidenciado o seu processo de fa-
bricaçâo. também estabelece conexão COIU os aspectos de revelação de proccdirneu-
tos construtivos, presente na performance. Ela, segundo Péral, "se interessa por uma
ação em curso de produção mais do que COl um produto acabado":". O posicionamen-
lo perforrnativo do encenador, nessa medida, o condicíona menos para a realização
da obra perfeita.... deixando que o espetáculo apresente ern cena e eU1 ato O seu pró-
U
prio processo de feitura. Tal perspectiva se materializa tanto pela explicitação de ras-
tros do processo, pela não-rnaquiagem dos seus buracos. fissuras e fracassos. quanto
peja apresentação da obra corno 1.1111 constante e contínuo \Vork ín progress.
Por todas as aproximações acima levantadas e, ainda. tornando corno base a abor-
dagem de Féral-", segundo a qual ela prefere o uso do termo "teatro perforrnatívo"
mais de UI11 século. a função do encenador. Ao contrário ela perfomance, que não visa
ao estabeleclmento de um sentido geral ao discurso cênico ou à marerlalízação de
um ponto de vista sobre um determinado assunto ou texto, a encenação parece. por
natureza. convocada a essa composição ou articulação do sentido. Pavis busca ern Co-
peau a formulação clássica da noção de mise cn scêne: "ela é a 'totalidade do espetáculo
cênico que emana de um pensamento único. que o concebe, o regula e, no fundo, o
harmoniza":". Ainda que o espetáculo possa colocar em xeque um posicionamenro
ou deixar em aberto a amarração de um significado último, o imperativo da consti-
tuição ele unidade parece ser sempre urna espécie de teleologia da encenação.
Bernard Dort sustenta. porém, que essa "vontade de unificação (...] é somente
UHl fenômeno histórico":". Em outras palavras. é preciso se interrogar sobre essa
visão do teatro - e da encenação - corno arte unificada. A unidade artística da re-
presentação surge com o teatro realista. no final do século XIX. Tratava-se. ali. de
urna unidade não apenas visual ou cenográfica. mas também elo registro de inter-
pretação dos atores. Essa busca da unidade estilística e rítmica do espetáculo no
seu conjunto. de um eixo estético no discurso da encenação, da conformação de
um todo orgânico e harrnôníco. é o que veio a configurar a noção de ensemble, que
atravessará todo o século xx.
Contudo. em sua análise. Dort aponta para urna nova configuração relativa à en-
cenação:
6.3 ENCENAÇÁO-EM-PROCESSO
~9 COHHN. R, 'Wol"k in pmgn:ss' lICJ Cena Conh:ml'oninL'tl: nillçcio. enct.'mJçtin ~ recepção. São Paulo:
Edicora Perspectiva, 199&, p. 17. Cohen utiliza tanto o termo U'ork in progn:~s - jd conso-
lidado na literatura critica - quanto \\'()rk in processo visando, segundo ele. incorporar "as
noções de progresso temporal e processualidade" (Ibid.. p, XXVIII)
30 Ibid.• p. 45·
3t "Erro", corno bem define Cohen, "enquanto espaço do vivo. do novo. do não previa-
mente conhecido, \...1A inserção do elemento 'erro' corrobora. no universo artístico,
o princípio da incertezajindeterminação de Hcisenbcrg. que rompe (0111 o paradig-
ma do determinismo' (Ibid.. p. 97).
3~ ~UJ.AR. R. (org.], Criuç,io ~rn Processo: ensaios de CJÍL'iCCl genéticcl. p. t 9.
190
çôes, enfim, aos campos de força dos outros colaboradores. evitando cristalizações
prematuras. e duvidando sempre da forma acabada.
A encenação processual. é importante reiterar. não busca a fusão ou a união de
todas as contribuições artísticas. Ao contrário, ela estimula e garante a independên-
cia das partes. justapõe e friccioná diferentes sentidos ou percepções e coloca as múl-
tiplas e divergentes intensidades. em combate. Poderíamos pensar tal processo de
forma assemelhada àquela corn que Dort analisa a representação contemporânea
não-unificada. na qual
Evidcntemcnre que esse discurso cênico vlrá atravessado pelos discursos singula-
rcs de cada UH1 dos criadores. O diretor. então. teria justamente a função de agrupar
tais discursos. ou melhor, de colocá-los ern movimento. lado a lado. conectando as
subjetividades criadoras. 1\ escritura da obra, nesse contexto. se d<Í em regime de co-
criação. pelo confronto concomitante de distintas autorias. Cabe. pois. ao encenador,
estimular a enunciação do discurso por parte de cada um dos integrantes do grupo.
Contudo, o fomento a esse ponto de vista individual, a essa criação particular, não
deve colocar em risco a coesão grupal e o depoimento artístico coletivo. O diretor
precisa equilibrar - ou melhor, manter em tensão contínua - o "singular" e o "coleti-
vo". estimulando e dialogando ao máximo com o que cada criador oferece e, ao Ines-
mo tempo, socializando e colocando enl embate essas contribuições particulares.
A encenação no coletivo. portanto. é urna encenação híbrida. apoiada e1\1 multi-
vocalidades e em pluríperspectivísmos, na qual as hierarquias são precárias ou I11Ó-
veis, e vão se revezando ao longo do processo e na própria resultante da obra. cuja
natureza da construção é complexa. Essa hibridização. segundo Cohen, "resulta da
194
{...I é muito distinto di.) "colagem". que é uma construção de menor potência. Se
na colagem teatral agnlpam·se cenas por associação temática. irnagética e até por
número de personagens. na hibridização busca-se o unívoco nas diferenças. cadeias
de significação de um mesmo enunciado ou digladiaçôes de opostos pertinentes."
:J5 COIJnN, R•• '\-Vork tn J.lro~n.'s$· nu Ccun Conh'1Hpotl1nen: niariio. t'rlct'uuçélo t' r't'cc:pçiiu. p. 44.
36 Ibjd.~ p.az.
37 Observação rcatizada pela referida pesquisadora no contexto do Exame de Qualifica-
ção deste trabalho.
195
a criação elas imagens cênicas. dividindo com eles a autoria do texto espetacular.
Nessa abordagem criativa. portanto, o.ator se posicioná também C0l110 enccnador;
Não no sentido de disputar esta função COIll o diretor que foi oficialmente designa-
do para esse papel. No entanto. é inegável o seu exercício enquanto tal- ainda que
rernporaria ou provisoriamente. O workshop. por exemplo, é o território privilegia-
do deste ator-encenador,
O diretor. por mais que estimule o ator a trazer todo e qualquer tipo de proposição.
sem nada lhe censurar. funciona também COlHO um pólo crítico a lJostCfioli daquilo que
é levantado em sala de ensaio. Ao mesmo tempo em que necessita ser CÚ111pl1ce elo
"despudor" criativo do atuante. cabe-lhe analisar e selecionar o que é trazido nos en-
saios co111 urna reserva de distanciamento. Ele precisa. ainda, por UI11 lado. identificar
as dificuldades ou travas de cada um dos atores em relação à temática do projeto. ,\U-
xiliando-os na dissolução desses bloqueios. e simultaneamente, por outro lado. servir
corno barreira ou "bloqueio" para grande parte do material produzido.
No processo de montagem, essa ação elo diretor sobre os atores. e destes sobre
aquele, criam fricções e dobras. cujas eventuais contradições só vêm a fortalecer a
dinâmica dos ensaios. Ambos os pólos se motivam todo o tempo, não cabendo ao
encenado!" o papel - comumente a ele associado - de estimulador-mor;
Por fim, parafraseando Dort. talvez pudéssemos afirmar que a vocação da encenação.
hoje. não seja a de "figurar UHl texto ou de organizar UHl espetáculo, mas de ser urna
crítica em ato da significação. I...) Tanto quanto construção, a teatralidadc é interroga-
ção do sentido'?", 1\ encenação. portanto, apresentaria tanto um caráter sincstésico e de
instauração de experiência. quanto ele ativação do viés crítico e de autoquestionamento.
Encenar é também, nessa perspectiva. colocar em questão o próprio ato de encenar.
Seria possível ainda, examinar o âmbito ela encenação colaborauva à luz ele ou-
t ro inst rumcnral teórico, no caso, ele algumas referências extra-teatrais oriundas dos
estudos de complexidade e da filosofia. Por exemplo, parecem-nos iluminadoras as
pistas sugeridas por Steven Johnson ao estudar os SiSt CI11élS de auto-organização".
U
40 JOJlNSON. 5.• l:1JtL'rgblciu: ti (lim1micn cle rede em fonui.l;,Cls. (ó·c:l1ros. cideulcs r: softw"rc:s. p, 15·
.11 Ibid.• p, tOt •
•J2 Segundo johnson. "locul é o termo ideal para compreendermos o poder da lógica do
enxame. Vl~l\10S comportamentos emergentes em sistemas como os de colônias de for-
migas. onde os agentes indívlduals do sistema prestam atenção a seus vizinhos mais
próximos em vez de ficarem esperando por ordens superiores. Eles pensam localmen-
te c! agem localmente. mas sua ação coletiva produz comportamento global" lln: Ibid.•
I>. 5~. grifo do autor).
197
capacidade ele construção coletiva de regras C0111UnS ele ação. .'fa potência e a sobre-
vivência dos sistemas emergentes,
A princípio. a presença do diretor teatral parece não fazer qualquer sentido em
sistemas descentralizados - ou policêntricos ~ e que dispensam a interferência de urna
autoridade central - C01110 aqueles estudados por Johnson. Contudo, o encenador,
COlHO urna das linhas de força nessa rede dinâmica, poderia garantir a interconexão
elos elementos. a ação dos dispositivos criados coletivamente. a manutenção de um
permanente jeedback e, ainda, fomentar o caráter de experímentalisrno e de produção
ele novas experiências. Os processos de escritura cênica. em âmbito coletivo. podem,
portanto, se aproximar dos parâmetros de sistemas não-lineares. especialmente da-
qucles baseados na auto-organização, sem excluírem, com isso. a figura do diretor.
A filosofia pós-estruturalista de Deleuze e Cuattari - pensadores estes que produ-
ziram, sintomaticamente, eles também, urna obra eru estreita colaboração - também
nos fornece pistas fecundas para refletirmos a atuação do encenado!" colaborativo.
Em urna de suas obras mais importantes, eles afirmam:
Não chegar ao ponto eru que não se {\11. mais EU. luas ao ponto em que já não tem
qualquer importâncía dizer ou não dizer EU. Não SOlllOS mais nós mesmos. Cada
um reconhecerá os seus. Pomos ajudados. aspirados, multiplicados."
43 nt:J.EuZE, c.: GUXJT..\ RI. F. Mill)latô~: C(tpitalisuto e EsquizoJr,;n\cl. São Paulo: Eüitora 34. 1995.
voI. p_ J 1 (grifo dos autores),
1.
44 Ibid.. p. 8.
45 lbíd., p. 8.
•16 lbid., p. 15·
4? COHEN. \1•• '\iVork in progn:s$' nu CenaCmHcmpnnlnea: c11oçao. t·uccntlçüo e rt·J(l."PÇ(lO, p. ::J.
198
50 OHHUZE. c.: Gut\'rrARI, f. KaJkll; pOl" uma literalunl menor. Rio de janeiro: tmago Editora.
1977. p. 121-
Sl lJf.tEU7.E. C. Difcn:nçtl e R~pctiçtiCJ. 2 ed. rev, e atual. São Paulo: Craal, :wo6. p. ~6(l.
52 Ibid.• p, 261.
200
53 nf.\.~\l1.1;. c. L~~\'tl tio Sentido.• 1 ed. São Paulo: Editora Perspectiva. 2006. p. 105.
54 ZUL/\H. R. (org.], Cti(l~·(io em Processo: c:'llSClios tk Clít"iC(l gt:ne:tifU. p, 8] (gritl"J do ..L Uto r).
201
pelo autor é substituído pelas estratégias ele múltiplos sentidos em co-autoria COIll
seus integrantes", num entrelaçamento de "multiplicidades heterogêneas nU111 jogo
ele livres conexões'""
Se ainda é prematuro realizar tal afirmação. especialmente ao nos defrontarmos
com o complexo e diversificado fenômeno da encenação contemporânea. talvez
seja pertinente. ao menos, pensá-la no âmbito restrito das experiências dos coleti-
vos teatrais atuais.
55 IJJ\Rki:TO. n.: I'F.HJSSINOT1'(). Jl..." CUltUI&l da lmanõncía", in catálogo du C:X17o::içdo FItE ]002.
São Paulo, Paço das Artes, Imprensa Oficial do Estado, pp. 1.t-23.
202
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
·l
que ele atuasse. corno foi o caso de Evrêinov, Vakhtãngov ou Piscator. Além disso.
o desejo de configuração elo eflsclnble - objetivo perseguido pelo menos desde Mei-
ningen - também perpassara ambos os modelos, quer sejam compartilhados ou
hierarquizados.
COIl10 nosso intuito não foi realizar um mapeamento de cunho historiogrrifico,
defrontamo-nos, algumas décadas depois. nos anos 1960 e 1970. com outra expe..
riência utópico-comunitãria exemplar: a criação coletiva. 1:,1 modo de construção
teatral trará dificuldades no estudo e na avaliação do papel do diretor, em razão do
fato de terem existido diferentes formas de criação coletiva nesse período. tanto
no Brasil quanto no exterior e. conseqüentemente. distintas maneiras de atuação
do encenador dentro delas. O 1110do de funcíonamenro criativo em grupos C0l110
Théâtre du Solcil, Livíng Theatre. La Candelaria ou Pod Minoga espelham bem tal
diversidade.
Contudo, de certa forma a criação coletiva retomará as matrizes rolsto iauas,
simbolistas e de agitprop do início do século xx, acirrando-as ou mesclando-as de
acordo COll1 o projeto artístico e ideológico dos grupos. Por exemplo, o viés COll1U-
nirririo. de retorno à natureza e a urna vida I11enOS artificial - de inspiração tols-
toíana - se associarã ao elemento do "viver em comunidade", do vcgetarianisrno,
do culto ao natural. da ruptura elas amarras elo corpo e da sexualidade. presentes
em vários grupos teatrais de rendência telúrico-estética. Neles. buscava-se a reto-
mada da expressão do corpo. da interpretação mais "natural", do desnudamento
- metafórico e concreto - dos atuantes. remetendo à não-interpretação ou ao im-
brícamento arte-vida da performance. t~ interessante notar C01110 esses traços de
i nspi ração tolstoiana retornam COlll o movimento conrracultural caructcrfst ico da
época. 11111ito bem representado por coletivos teatrais t01110 o Living Theatre ou
o gru 1'0 TUCA.
A matriz simbolista c seu forte componente estético, de pesquisa de linguagem
e de reunião das artes. reaparecerão nos coletivos teatrais caracterizados pela pri-
mazia da plasticidade e pela ênfase no aspecto visual- e SU~l decorrente mistura ou
tránsito ele linguagens artísticas. Exemplos dessa tendência são o Pocl Minoga ou
•
o grupo Sonda. Não nos esqueçamos ainda que o campo ela polivalência art isrica e
dos vetores sínestésícos, tão caros a uma parcela significativa da criação coletiva,
também foram marca da corrente simbolisra.
Por fim, o caráter político, de conscientização e agitação, eixo da matriz do agit-
prop, encontrará reverberações no engajamento, na contestação social, no discurso
revolucionário e na militância comunista de grupos COIllO o San Francisco Mime
Troupe, o União e Olho Vivo ou o Núcleo Independente.
l~ claro que se trata. aqui. de tendências ou ênfases. e não de categorias rígidas
e fechadas. Prova disso é que alguns grupos transitarão ou amalgamarão essas
matrizes, em combinacões diferenciadas. nas suas práticas artísticas. É o caso do
204
sobre todos os setores da criação artística. o que inclui, portanto, a direção. A auto-
ria solitária do dramaturgo e o poder cenrralizaclor do diretor precisariam - no ârn-
bito de um projeto coletivista - ser abolidos. É claro que essa abolição das funções
encontra-se associada, também, ao desejo de supressão das fronteiras que separam
os diferentes campos artísticos.
Dai que exercer a função ele diretor de forma individualizada passa a se constí-
tuir em problema. i\ fim de resolvê-lo. oscila-se entre tentativas de climinaçâo desse
papel. seja por meio da direção coletiva. realizada por lodo o grupo conjunturuenrc.
ou por uma "comissão" de direção, seja pela aceitação de sua permanência, desde
que sub judice.
A direção. portanto, vive sob a égide de UH1 "mal-estar" de função. O papel do
diretor - e o atributo de sua autoria - não é assumido. isto é. lida-se ("0111 ele de
•
forma problernãtíca, Contudo, não raramente esse discurso de su pressão da função
diretiva esconde traços manipuladores por parte de lideranças dentro do grupo.
C0t110 dissemos. a dificuldade para analisar a atuação do encenado!" na criação
coletiva é decorrente dessas contradições. Houve companhías que aboliram o diretor
ou que o colocaram sob suspeita ou "em quarentena" - COIl10 foi o caso de alguns
trabalhos do Líving Theatre ou do Open Thearer; Houve outras, ao contrario, em que
LI coletivização das funções limitou-se à dramaturgia ou às demais áreas de criação.
ou foram se encaminhando de Ull1 modo "sem diretor" para outro, que compreendia
a sua presença. - em certa medida. o TEC exernplifica tal percurso.
De qualquer forma. independentemente dos modelos. o elemento da improvisa-
ção foi a principal ferramenta do diretor - nos casos, é claro, em que se manteve essa
função -. tanto na construção dos textos coletivos quanto na escritura cênica grupal.
Ainda que possamos identificar experíências que partiram de dramaturgia pré-
via. a base da criação coletiva - C01110 também do processo colaborativo - se susten-
ta na construção e escritura de novos textos - mesmo que sem palavras, baseando-
se apenas em gestos ou "expressão corporal". Na prática. porém. não era incomum
nesses grupos haver alguém - às vezes. o próprio diretor - que recolhia todo o
material das improvisaçôes e o alinhavava ou ordenava. Foi assim com [ulian Beck..
Ariane Mnouchkhine. Santiago Carcía. Hamilton Vaz Pereira e Mário Piaccut ini,
entre outros.
Nos anos 1990. já sob \.11n contexto em que a especialização não é vista mais
C0l110 vilã ou COlHO entrave à criação grupal, haverá a retornada de um projeto tea-
tral coletivista que mantém a figura do encenado]'. Trata-se, <:01110 vimos, do proces-
so colaborativo, fundado no diálogo entre funções previamente estabelecidas. Tal
prática delineou os rumos, os processos e a linguagem de alguns grupos brasileiros.
entre os quais. o Teatro da Vertigem.
O diretor, nesse modo de criação, não se encontra no epicentro ela cena nem é
um corpo estranho a ela. Por um lado. ele é um dos responsáveis - COll1 os outrõs
integrantes - pela efetivação da experiência coletiva c pela garantia elo cornpartt-
Ihamento da criação e, por outro. ele se constitui em voz autoral autônoma, em
diálogo com out ras vozes, igualmente autônomas. A sua função esra objet ivada e é
Iegttimada pelo grupo. desde o inicio elo trabalho.
Nem I11eSnlO a preponderância dessa função em algum 1110111cn todo processo é
vista corno "problema", na medida em que houve etapas no trabalho nas quais outros
criadores assumiram papel de destaque. Essa rotatividade de dorninãncias desarma a
lógica do autoritarismo, garantindo o P~lC{O de horizontalidade das funções.
1\ preexistência de UH1 projeto grupal ou COlllUI11 permite. também, que as au-
torias individuais pOSSa1l1 se constituir. sem colocar em risco a prática e o depoí-
mento coletivo. Na verdade, pelo contrário. o conjunto de criações individuais vai
conformando e embasando essa criação grupal, l~ na tensão permanente entre
esses dois pólos que a criação do encenador ocorrera. Ele nem impõe, cxogena-
mente, a sua concepção. nem se reduz a IBero organizador do marerlal produzido
pelo grupo. A sua autoria não é urn dado a priori, mas se materializa nesse espaço
dialógíco e de mútuas interferências. Trata-se de urna autoria que nasce contami-
nada e que coabita COIU outras autorias. A criação dela resultante tem, portanto.
urna au tonomia re lativa.
Procuramos mostrar, "de dentro", corno essa dinâmica eles-hierarquizada e in-
206
Ias críticas e fredback ao longo elo processo, e pelas intensas e dolorosas avaliações
.\
- os fóruns - realizadas entre UU1 espetácuío e outro.
A experiência cio Vertigem não apresenta apenas U1TI âmbito artístico e preces-
sual, 111<1S inclui urna dimensão pedagógica. Ela se estrutura como formação interna
dos próprios integrantes, e se abre. também, ao diálogo com artistas iniciantes.
estagiãríos. membros da comunidade ou simples interessados. Ela é responsável
tanto por uma formação no grupo quanto pela forrnaçâo do grupo. Aliás, cabe recor-
dar que o Vertigem foi criado corno UI11 grupo de estudos e, portanto. na raiz de sua
origem, encontramos tal matriz pedagógica.
Outro aspecto fundamental, claramente associado à imagem do grupo, refere-se à
apropriação de espaços públicos. Tais espaços. não destinados funcional e institucío-
nalmente à atividade teatral. travam UHl diálogo com 05 ternas e as questões propos-
tos pelos espetáculos. Suas diferentes arquiteturas funcionam corno um texto a ser
decifrado e reconstruído - ou reescrito - pela intervenção artística da companhia.
Busca-se a instauração de U111a cena imersiva. que aguça os sentidos, a emoção
e a razão dos espectadores. gerando não apenas utn exercício de observação - dis-
tancíado e mental - ruas, sobretudo, um campo de experiência. A sinestesia dos
espetáculos dialoga C0l11 a própria sinestesía do tecido urbano que lhes deu origem.
Paralelamente à ressignificação elo espaço para o espectador. ele é induzido a urna
perda de referências, de marcos de localização. sendo lançado numa situação la-
biríntica. Na verdade. tal desreferenciatização perceptiva não é apenas geográfica,
I11aS também temporal.
Essa cena processional e em estações faz C0I11 que o corpo do espectador seja
investido e comprometido na ação da peça. Ela exige. também. UJ11a relação íntima
e aproximada C0l11 os atores. o que determina um número reduzido de pessoas
na platéia. Tal proximidade e estado-de-presença fazem C0111 que o trabalho oscile,
constantemente. entre o físico mais carnal e o metafísico mais impalpáve! dos te-
mas tratados. Aliás, a temática flagra, também em si. outra oscilação: vai da abstra-
cão do sentimento religioso à concretude da sociedade brasileira atual,
A ocupação e a reativação destes espaços coletivos inauguram, também, rela-
ções inauditas entre o fíccional e o real. Em resumo, uma peça de ficção, ainda que
contaminada por elementos documentais, é colocada num espaço de realidade. O
objetivo, contudo. não é 11111 ernbaralhamento confuso e letárgico entre estas duas
esferas. luas sim a potencialização crítica do diálogo entre elas.
Além disso, a apropriação artística de edifícios institucionais e a ressignificação
de espaços públicos provocam uma interferência concreta na vida da pôlis. É ofere-
cida aos cidadãos a possibilidade de redcscobrirern a sua cidade. de recuperarem
locais esquecidos ou abandonados, de ocuparem lugares e trajetos até então inex-
piorados e. por fim, de reencontrarem a dimensão pública do próprio teatro. Em
São Paulo, os trabalhos do Vertigem delinearam uma linha de força centrífuga na
208
cartografia ela cidade. Partindo do centro histórico (Igreja Santa Ifigênia), o grupo
OCUl)OU um edifício no centro expandido, na região da Av. Paulista (Hospital Um-
berto Prímol; instalou-se, em seguida, no Brás, na Zona Leste (Presídio do Hipódro-
mo), e, por fím, realizou urna intervenção na marginal (Rio Tietê). A percepção dos
limites da cidade. portanto. foi se ampliando a cada novo espetáculo.
Para finalizar. caberia acrescentar que nos processos analisados houve, por um
lado. a busca constante de transformação dos próprios criadores, tanto no âmbito
pessoal quanto artístico, e por outro, a crença na possibilidade de afetar e transfor-
l11a1' o espectador por meio da ação teatral.
A luz das experiências do Vertigem, procuramos mapear os elementos-chave da
pesquisa prática que empreendemos há quinze anos. Nosso objetivo não foi o da
constituição de UI11 "manual de trabalho". até porque a natureza experimental e
cambiante dos processos impede fixações demasiado rígidas. Além disso.. há que se
tornar cuidado com urna super valorização de métodos e sistemas. Por exemplo, o
caráter anárquico de U111 grupo corno o Living Theatre, avesso a formalizações me-
todológícas, não o torna menos modelar e propagador de conhecirnentos do que o
Teatro Experimental de Calí e seu método de criação coletiva.
De qualquer forma. os processos de ensaio do Vertigem nos serviram de base
para refletir sobre o papel do diretor no processo colaborativo, O encenado}'. ali.
n~10 ocupa o lugar de centro gravitacional em torno do qual órbita toda a criação.
1\0 contrário. h;í a convivência e a simultaneidade de vários centros irradiadores. t~
corno se o diretor se deslocasse para o lado ou para as margens, não no sentido de
tornar marginal o seu trabalho. mas sim de investigar as fronteiras e os limites ele
sua função c. ao fazer isso. se destcrritorializar,
Se. por um lado. é prematuro falarmos de um novo paradigma para o trabalho
do enccnador, por outro, é evidente que seu papel tenha sofrido certo dcslocarncn-
to ou reconfiguração. O seu campo ele possibilidades e a sua forma de at uação ga-
nham aspectos particulares. O diretor, aqui, não tem o controle integral do processo
- e nem do espetáculo. Ocorre urna dinâmica de criação que não se encontra mais,
inteiramente. em suas mãos, pois há um transbordamento criativo que ultrapassa.
a própria direção, O diretor não é filais a "cabeça" do grupo, pois o grupo habita o
corpo inteiro do processo-obra, elos membros inferiores ao cérebro. do olho à mão,
dos ouvidos à língua.
Esse encenador colaborativo é. antes ele tudo, um encenador-facilitador, um en-
cenador-carulísador. um encenndor-enzimãtíco. Dai vem a idéia de lançar 11150 do
conceito de agenciamento para refletir esse campo de experiência ou esse territó-
rio paradoxal que é o processo compartühado de criação. Pois. de acordo com esse
conceito. o que está em jogo não são indivíduos ou subjetividades, 111aS sim singu-
Iarídadcs em Iuncíonamento. ou ainda. multiplicidades capazes de abrir mão da
unidade para comporem um sistema. O encenador "agenclador", nesse sentido, não
209
•
210
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Universidade de São Paulo.
SIl.VA, Antônio Carlos de Araújo. A Gênese da VC11igcm: o processo de criaçdo de 'o Pczrdíso
LIMA. Mariana. O PJ"OCCSSO Cokiborntivo no 1eatro (tendo como bast! (I pesquisa e rcalizc!ção do
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subsidiada pela Bolsa Virae de Artes.
ARTIGOS
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l~ngagé(s). fase, 7. pp. 201-209. 1997.
CATÃLOGO
2. O coletivo decide, com total independência, II sua composiçcio, sem outra preocllpaçc1o que
aquela de ml111tez- o nível ideológico do teatro e u suo eficácia politirn. O lnímero de c(Jlabo-
rndorcs do coletivo ndo é limit'ado. Os colaboradores podem ser recrutados por desiguclÇclo
da asst~mbléía. no caso clt' ser neccssâ ria UIna ~o](!bo,.açc1o espcciiica ,e ocasional. COlHO re.~ra
gernl. só se lJode pôr Ji nz a uma colabofaçüo soh II lwsc de um acordo aUligâvel) tendo como
resultado uma deôarllçüo comum e pública das partes envolvidas. Esta clcclanlçdo ndo (!pn:~
senturd jnmuis uni cnrriter dif(llnut6rio. As exclusões decididos (OH! rll a \'ontlulc do colabora-
dor exdnído só podem ser promulgadas por meio ele uma reunido do colc!U\'O COll\'ocada para
esse fitn, li qual devem cstnr presentes pelo menos dez membros do coletivo, sendo que uma
mai01ill mínima de 70% é necessária.
esre ser conciliâvt!l com o conceito de uma coletividade fundada sobre a camaradagem e sobre
uma ideologia comum cspccíJica. O Ileso do trabalho repousa fundamclltalmerll.e sobre os
ombros elos membros da comissão. O coletivo se retine ao menos uma vez por mtJs para OUVÜ-
e discutir o relatório de trubnlho das diferentes seções c, outro vez ainda, para ser infonllada
pela direçdo do '[eatro Pismror sobre as atividculcs e os projetos do teatro. J
o LIVRO DE JÓ
APOCALIPSE 1/71
BR-3
Sílvia Fernandes
ATORES CONVI DADOS Bruna Lessa (Patrícia. Ivan Delmanro
Pernas c Fiel da Tia Selma)
Bruno Batista (Edmílson. Pernas. Crente ASSISTi~NCIJ\ DE DIREÇ,\O Eliana Monteiro
da Igreja dos Mortos, Cão e Seringueiro)
Denise de Almeida (Sereia. Pernas. ASSISTBNCJ/\ DE DIREÇ,\O Dll CI:NA
Antônio Araújo