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A Consciência

Histórica Africana
Babacar Mbaye Diop
Doudou Dieng
(Org.)
Babacar Mbaye Diop é doutorado em
Estética e Filosofia da Arte pela Universi-
dade de Rouen, França. Os seus principais
interesses de investigação situam-se nos
campos das artes da África Negra, da di-
versidade cultural, dos conceitos de diás-
pora, identidade, globalização e conexões.
Professor de filosofia, ele é o fundador e
co-editor de Fikira-Africa Review. Babacar
Mbaye Diop ensina no Departamento de
Filosofia da Universidade Cheikh Anta
Diop. Em Fevereiro de 2013 foi nomeado
Director da Bienal de Dakar.

Doudou Dieng é doutorado em Filosofia


pela Universidade de Rouen, França. Com
uma ampla tese no campo da filosofia do
direito, Doudou Dieng tem desenvolvido
as suas actividades em torno deste campo
do conhecimento e área de interesse.
edições pedago
Colecção Reler África
Nota de Apresentação

Uma das lacunas do mercado editorial dos países de língua oficial


portuguesa é a ausência, em língua portuguesa, de obras de referência
de autores africanos e africanistas, que fizeram cátedra no domínio
dos chamados "estudos africanos" nas academias dos países anglófo-
nos e francófonos.
A Colecção Reler África pretende colmatar essa lacuna. Trata-se de
uma colecção especializada em temáticas africanas no domínio das
Ciências Sociais e Humanas. Ao inaugurar esta colecção, as Edições
Mulemba da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho
Neto (Luanda - Angola] e as Edições Pedago (Mangualde - Portugal)
pretendem criar um espaço de debate, alteridade e reflexão crítica
sobre o continente africano.
A colecção publicará obras, textos e artigos compilados de reconheci-
dos autores africanos e africanistas, que contribuam para a compreen-
são e a reinterpretação do continente africano.
Além de apresentar uma visão endógena (de dentro) do continente,
a colecção está aberta à comunidade científica internacional que tem o
continente africano como objecto da sua pesquisa.
Publicar e divulgar conhecimentos e saberes sobre África e provenien-
tes de África é, assim, um desafio que a colecção abraça, contribuindo
para a construção de uma nova epistemologia e uma nova hermenêu-
tica dos estudos africanos no espaço lusófono, livre de estereótipos e
de um olhar folclórico e exótico. Ao abraçar esse desafio, a colecção
pretende ser uma galeria de conhecimentos e saberes de África e
sobre África, que interpele os leitores e investigadores especializados
a reler África para compreendê-la e reinterpretá-la.

Luanda, 19 de Agosto de 2012.

Victor Kajibanga
(Coordenador da Colecção Reler África)
Copyright © 2008, L'Harmattan

Título Original: La conscience historique africaine

© desta edição

Edições Mulemba da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto


Título: A Consciência Histórica Africana
Organização: Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng
Colecção: Reler África
Coordenador da Colecção: Victor Kajibanga
Tradução: Narrativa Traçada
Revisão do Texto: Susana Ramos
Design e Paginação: Márcia Pires
Impressão e Acabamento: Cafilesa, Soluções Gráficas
ISBN: 9 7 8 - 9 8 9 - 8 6 5 5 - 4 8 - 6
Depósito Legal: 3 8 2 3 6 6 / 1 4

Outubro de 2 0 1 4

A presente publicação é uma coedição das Edições Mulemba da Faculdade de Ciên-


cias Sociais da Universidade Agostinho Neto, Luanda, Angola e das Edições Pedago,
Portugal.

Nenhuma parte desta publicação pode ser transmitida ou reproduzida por qualquer
meio ou forma sem a autorização prévia dos editores. Todos os direitos desta edição
reservados por

EDIÇÕES MULEMBA
Faculdade de Ciências Sociais da
Universidade Agostinho Neto
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A Consciência
Histórica Africana
Babacar Mbaye Diop
Doudou Dieng
(Org.)

jZiü-
edições pedago
Em homenagem ao 50.s aniversário da publicação da obra de Cheikh
Anta Diop: Nations nègres et culture - 5 e 6 de Abril de 2 0 0 5 na Univer-
sidade de Rouen.
Os nossos mais sinceros agradecimentos:
- à Universidade de Rouen, ao CROUS da Alta Normandia, à UFR de
Letras e Ciências Humanas e à Associação dos Estudantes Senegale-
ses em Rouen pelo seu apoio na organização do colóquio;
- a Mamadou DIALLO, Professor da ENSEPT da universidade Cheikh
Anta Diop de Dakar, pela revisão e correcção minuciosas do manuscrito;
- a todos aqueles que, de algum modo, contribuíram para a conclusão
deste trabalho. Manifestamos-lhes aqui a nossa profunda gratidão.
índice
Discurso de abertura do colóquio 15
pelo Presidente da A. S. E. R.

Prefácio: Falsificação da história 19

I.
A África e o Ocidente 23.83

A ruptura da consciência histórica africana: 25.45


o principal obstáculo para o renascimento africano
Bwemba Bong

Introdução 25
1. A consciência histórica da Africa Negra e n q u a n t o 25
b a s e da resistência do povo n e g r o
2. As fragilidades e os defeitos da s o c i e d a d e africana 31
3. As lições que a África Negra deve extrair da história 40

A Guerra do Biafra: desinformação e manipulação dos média? 47.58


Análise de quatro diários importantes: Le Monde, Le Figaro.
La Croix e L'Humanité
Momar Mbaye

Introdução 47
1. As c a u s a s 48
1.1. As causas passadas e imediatas 48
1.2. As causas estratégicas e económicas 49
1.3. As causas religiosas 50
2. H o r r o r e s e responsabilidades 51
2.1. O horror absoluto 51
2.2. A responsabilidade das grandes potências e das opiniões públicas 52
2.3. As responsabilidades dos líderes africanos e de Lagos 53
3. Soluções e papel da F r a n ç a 53
3.1. As soluções 54
3.1.1. Socorrer o corajoso povo biafrense 54
3.1.2. Repensar a federação 55
3.2. Paris e o conflito 55
3.2.1. Uma política louvável 55
3.2.2. Uma acusação indevida 56
Conclusão 57
Francês/Línguas Africanas: colonização linguística 59.83
ontem e hoje, aqui e ali
Bernard Zongo

Introdução 59
1. Linguística africanista e ideologia glotofágica 60
1.1. Período colonial: a chegada às colónias 61
ou a linguística "pragmática"
1.2. Período moderno: triunfo do formalismo e missão civilizadora a partir 64
de 1 9 4 5
1.3. A sociolinguística e as suas torpezas: os anos 6 0 67
1.4. A partir dos anos 7 0 : instituições francófonas ao serviço 68
da expansão do francês
2. Política linguística francesa e línguas minoritárias: 73
ideologia do p a r a d o x o
2.1. As línguas africanas em França e a política linguística francesa 74
2.1.1. As línguas de imigração em França 74
2.1.2. A política linguística francesa 75
2.1.3. A legitimidade da estratificação etnolinguística e normas 76
2.2. A concepção ideológica do bilinguismo: o relatório Bénisti 78
Conclusão 82
Referências Bibliográficas 83

íí.
As origens egípcias da civilização africana 85.164

Cheikh Anta Diop: o homem e a obra 87.110


Cheikh M'Backé Diop

Introdução 87
1. O c o n t e x t o histórico e ideológico no início do século XX 87
2. A resistência africana e a r e s t a u r a ç ã o da consciência histórica 92
3. A obra histórica e egiptológica de Cheikh Anta Diop 94
3.1. A reconstituição científica do passado da África 94
3.2. As principais temáticas desenvolvidas por Cheikh Anta Diop 97
3.3. A fecundidade da obra: contributo metodológico e acervo do colóquio 103
do Cairo
4. A c o n t i n u a ç ã o da obra histórica e egiptológica 106
4.1. O período da investigação solitária: 1 9 4 6 - 1 9 7 0 106
4.2. Théophile Obenga encontra Cheikh Anta Diop 106
4.3. A Escola africana de egiptologia 107
5. O Renascimento da África e a edificação de u m a civilização 109
planetária
Estado das investigações acerca das semelhanças entre a arte m . 124
Egípcia Antiga e a da África Negra
Babacar Mbaye Diop

Introdução m
1. O estilo africano e a essência da a r t e egípcia 111
2. Alguns e x e m p l o s de s e m e l h a n ç a e n t r e objectos africanos e objectos 114
egípcios
3. Será e s t a s e m e l h a n ç a identitária ou u m a simples analogia? 120
Referências Bibliográficas 123

Estado das investigações acerca da Antiguidade Africana 125.141


Babacar Sall

Introdução 125
1. Generalidades e p r o b l e m á t i c a 126
2. A d o c u m e n t a ç ã o 127
2.1. As fontes textuais 128
2.2. As fontes arqueológicas 129
3. P a n o r a m a 130
Conclusão 140

Egipto Antigo e África Negra: alguns factores novos que 143.157


esclarecem as suas relações
Aboubacry Moussa Lam

Introdução 143
1. O d e b a t e 143
2. A a m o s t r a 146
3. Novos factores 149
3.1. As partes do corpo 149
3.2. A água 150
3.3. A agricultura 151
3.4. Pigmeu e anão 152
3.5. O hipopótamo e o cavalo 154
4. E s c l a r e c i m e n t o das t r a d i ç õ e s 155
Conclusão 156

"Afrocentricidade": polémica em torno de um conceito 159.164


Doudou Dieng

1. O p e n s a m e n t o africano na história do p e n s a m e n t o 159


2. Posicionamento do conceito: dúvida e inteligibilidade metodológicas 163
III.
o contributo da comunidade negra e do Egipto 165.214
para a civilização

A história das ciências e das técnicas na África negra 167.183


Jean Paul Mbelek

Introdução 167
1. A África, b e r ç o da h u m a n i d a d e 170
2. A África, b e r ç o da escrita 172
3. A África inventa o z e r o 173
4. A multiplicação e a divisão egípcias 175
5. A sobrevivência das t r a d i ç õ e s erudita e criativa africanas 176
6. Apêndice: A multiplicação e a divisão egípcias 181
6.1. A multiplicação egípcia 181
6.2. A divisão egípcia 182
6.3. A demonstração 182

Contributo das cosmogonias dogons para a problemática da 185.193


"origem" da civilização: a necessidade do trágico no seio da
divindade
Cheikh MoctarBâ

Introdução 185
1. O que justifica a revolta de Ogo? 185
2. A n e c e s s i d a d e do "roubo do fogo" 187
3. A Civilização c o m o c o n s e q ü ê n c i a do "trágico" 190
Referências Bibliográficas 193

O Egipto na obra de Platão 195.214


Théophile Obenga

1. Platão e s t u d o u no Egipto 197


2. O Egipto na obra de Platão 200
3. Platão egipcianiza as palavras a o invés de as grecizar 201
4. O que r e p r e s e n t a o Egipto p a r a Platão? 202
4.1. O Egipto é o país da mais Alta Antigüidade 203
4.2. O Egipto é o berço da escrita e das ciências 204
4.3. O Egipto enquanto modelo de organização artística e intelectual 205
4.4. O Egipto enquanto detentor da melhor pedagogia para ensinar as 208
matemáticas às crianças
5. Plutarco, conciliador da teologia dos Egípcios c o m a filosofia de 210
Platão

Resumos 215.220
Discurso de abertura do colóquio
pelo Presidente da A. S. E. R.

Senhor Presidente da Universidade,


Senhora le Doyen da Faculdade de Letras e Ciências Humanas,
Caros intervenientes,
Senhoras e Senhores, Caros convidados,

Permitam-me antes de mais falar-vos brevemente da nossa associa-


ção. Criada em 1987 (há já 18 anos!), a ASER^ representa uma das
primeiras associações de estudantes estrangeiros em Rouen. Esta
rege-se pela lei de Julho de 1 9 0 1 e pelo decreto de 16 de Agosto de
1901. Tem por objectivo desenvolver a solidariedade no seio dos estu-
dantes Senegaleses por um lado, e entre os estudantes Senegaleses e
todas as outras nacionalidades existentes no campus, por outro lado,
e isto através de encontros desportivos, de debates, de conferências,
de excursões e de manifestações culturais. A ASER procura, de igual
modo, promover a cultura africana.
Há três anos, aqui mesmo, nesta Casa da Universidade, prestámos
homenagem a Senghor. Retomando o escritor Senegalês Boubacar
Boris Diop:

O Senegal não ganha nada em dar a impressão de colocar Senghor contra


Cheikh Anta ou vice-versa. Considero que Senghor, ainda que se lhe possa
apontar o que quer que seja, fez alguma coisa. E tudo aquilo que se possa fazer
para lhe prestar homenagem é merecido. Porém, simultaneamente, seria con-
denável decidir que alguém como Cheikh Anta Diop, isto é, a outra parte de
nós próprios, não merece que alguma coisa lhe seja consagrada.

Assim, encontramo-nos hoje reunidos para celebrar o SO.^ aniversário


do surgimento da grande obra de Cheikh Anta Diop: Nations nègres et
Culture. Inicialmente, este trabalho, publicado em 1954 e que demonstra
a origem africana da civilização do Egipto antigo, estava destinado a
ser defendido na Sorbonne, com vista à obtenção do doutoramento em

1. Associação dos Estudantes Senegaleses em Rouen

Discurso de abertura do colóquio pelo Presidente da A. S. E. R.


letras, mas nenhum júri pôde ser constituído. Com 50 anos de distân-
cia, torna-se evidente que os temas desenvolvidos neste livro são actu-
almente discutidos enquanto verdades científicas. Para Cheikh Anta
Diop,

O regresso ao Egipto antigo em todos os domínios representa a condição


necessária para reconciliar as civilizações africanas com a história. [...], um
olharem direcção ao Egipto desempenhará, na cultura africana (...) a mesma
função que as antigüidades greco-latinas na cultura ocidental.

Seria, deste modo, um contacto dinâmico, moderno, acrescenta o au-


tor, com a antigüidade egípcia que permitiria aos Africanos descobrir
progressivamente mais o seu parentesco íntimo com a ravina mãe do
Nilo.
O seu ensinamento acerca dos fundamentos de uma civilização afri-
cana moderna, acerca dos princípios da constituição de uma federa-
ção de Estados democráticos, bem como da identidade cultural entre
o Egipto e a África Negra, sobre a unidade lingüística nesta última e a
sua teoria em física nuclear mereceriam, neste sentido, um colóquio
acerca do percurso excepcional do Homem.
Gostaria de agradecer e felicitar o comitê de organização e o seu
representante, Babacar Mbaye DIOP. Estes podem orgulhar-se do seu
trabalho, tendo em conta que os seus esforços não foram vãos. Apenas
onze meses lhes eram concedidos para reagrupar Théophile Obenga,
Moussa Lam, Babacar Sall, Bwemba Bong, Jean-Paul Mbelek, Cheikh
Mbacké Diop. Aqueles concretizaram, em tempo recorde, uma verda-
deira proeza.
Gostaria, igualmente, de manifestar a minha mais profunda gratidão,
por um lado à Universidade de Rouen e ao CROUS da Alta Normandia,
que financiaram inteiramente este colóquio, por outro lado, à Facul-
dade de Letras e das Ciências Humanas, que não poupou esforços com
vista ao sucesso desta manifestação, e, por último, a todos aqueles que
contribuíram de algum modo para transformar este projecto num êxi-
to tão significativo.
Entretanto, enquanto aguardamos os debates que, certamente, serão
de elevado nível científico, permitam-me que diga simplesmente,
"Aksilèn d jam"^. Dieureungèn dieuP.

Rouen, 5 de Abril de 2 0 0 5
Samba Kandji, Presidente da ASER

2. Sejam benvindos! (Em wolof, língua nacional do Senegal],


3. Muito obrigada pela Vossa atenção. Idem.

16 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


"O espírito científico proíbe-nos de ter uma opinião acerca das
questões que não compreendemos, acerca de questões que não
conseguimos formular claramente."

Bachelard
Prefácio:
Falsificação da história

A era do continente "sem história" terminou desde a pubUcação, em


1954, de Nations nègres et culture. Ao recusar a leitura hegeliana da
história humana, Cheikh Anta Diop, o historiador africano mais con-
siderado^ do século XX, dedicou-se ao restabelecimento, nesta obra,
da consciência histórica africana. Trata-se, por um lado, de "adquirir
uma consciência cada vez mais aguda da profundidade histórica do
mundo tal como o viveu", e, por outro lado e correlativamente, de "ad-
quirir uma consciência que participe na história, que faça história"^.
A acreditar nos Ocidentais, o Egipto faz parte do Oriente. Ora, segun-
do Cheikh Anta Diop, foi através de uma falsificação da história que
aqueles conseguiram classificar o Egipto no Oriente, e afirmar que o
primeiro representa um acidente geográfico em África. O Egipto não é
o Oriente, é a África.
Todas as testemunhas oculares do Egipto antigo afirmam convicta-
mente que os Egípcios eram Negros. Heródoto, que visitou o Egipto no
século V a.C., indica-nos que os antigos Egípcios "têm a pele negra e o
cabelo crespo"^ Diodoro da Sicília escreve: "Os Etíopes afirmam que
os Egípcios são uma das suas colônias que foi levada para o Egipto por
Osíris"''. Estrabão, na sua Géographie, indica-nos também que os Egíp-
cios, os Etíopes e os Cólquidas pertencem à mesma raça^
Todos estes testemuhos não poderiam ser falsos, tendo em conta que
se trata de testemunhos oculares. Porém, como explicar o facto de os
antigos Egípcios terem sido Negros? Eis a justificação: após a desseca-
ção do Saara, cerca de 7 0 0 0 a.C., os últimos Negros que ali habitavam
teriam abandonado aquele local para emigrar em direcção ao Alto Nilo,
exceptuando, talvez, alguns ilhéus perdidos no meio do continente.

1. Não se trata aqui de nos prostrarmos perante a obra de Clieildi Anta Diop, tal como acontece-
ria com um livro de orações. Temos plena consciência de que nem tudo é uniforme nos seus
trabalhos: existem certamente aspectos que não conseguiu desenvolver até ao fim. Pretendemos
apenas homenagear o homem da ciência, celebrar a sua produção intelectual permanecendo fiel
ao seu pensamento.
2. Obenga, Théophile, 1996, p. 359.
3. Heródoto, Livro II, p. 104.
4. Histoire universelle, livro 3, p. 341, trad. Abbé Terrasson, Paris, 1758.
5. Livro I, capítulo 3, p. 10.

Prefácio: Falsificação da história 19


quer por terem emigrado em direcção ao sul, quer por se terem dirigi-
do para o norte. Esta civilização dita egípcia actualmente desenvolver-
-se-á durante muito tempo neste berço primitivo. Com o declínio do
Egipto, os Negros tiveram novamente oportunidade de se expandir
progressivamente no interior do continente, de formar núcleos que
se tornariam posteriormente em centros de civilização continental
[cf. Cheikh Anta Diop, 1954]. Todas as lendas e tradições, recolhidas
em África, fazem provir os Negros do Leste, do lado do vale do Nilo. É,
deste modo, que na África ocidental, as lendas dogon, iorubá, as fazem
provir do Leste; as dos Fang trazem-nas do Nordeste; no século XVlll,
os Fang ainda não tinham alcançado a costa Atlântica; as dos Bakouba
afirmam serem provenientes do Norte: é o caso dos Tútsis do Ruanda-
-Burundi (cf. Ibid.'). Os estudos etnográficos permitem-nos ficar mais
esclarecidos. Com efeito, a toponímia, a análise dos nomes totémicos
de clãs usados pelos Africanos, associada a uma análise lingüística
apropriada, permitiu a Cheikh Anta Diop demonstrar o parentesco
entre as línguas do Egipto antigo e as línguas negro-africanas. O au-
tor desenvolve, também, outros argumentos históricos, sociológicos,
geográficos, etc., que tendem a demonstrar as origens egípcias da civi-
lização africana.
Não nos parece exagerado insistir sobre o contributo do Egipto à
Grécia. O próprio Heródoto, depois de nos informar acerca do facto
de os antigos Egípcios serem Negros, demonstra através de uma "rara
honestidade (sabendo nós que o mesmo era Grego], que a Grécia
adoptou do Egipto todos os elementos da civilização, até mesmo o cul-
to dos Deuses, e que é o Egipto que representa o berço da civilização"
(Cheikh Anta Diop). O Egipto permanecerá, de facto, durante toda a
antigüidade, o lugar para o qual os povos mediterrânicos se deslocarão
em peregrinação para se saciar nas fontes de conhecimentos cientí-
ficos, religiosos, morais, sociais, etc. Os grandes eruditos Gregos, tais
como Platão, Aristóteles, Pitágoras, Tales, Sólon, Arquimedes, Eratóstenes,
foram instruir-se ao próprio Egipto (ver Théophile Obenga, pp. 212-
-230 da presente obra). O regresso ao Egipto antigo permitiria assim à
África descobrir cada vez mais o parentesco íntimo de todos os seus
habitantes com o vale do Nilo. É através desta constatação dinâmica
que todos os Africanos alcançarão a convicção profunda de que estes
templos, estas pirâmides, estas esculturas, estas matemáticas, esta me-
dicina, toda esta ciência, toda esta arte do Egipto antigo, são, de facto,
obra dos seus antepassados, e que, por isso, têm o direito e o dever de
se identificar totalmente com estas, do mesmo modo que os Europeus
se identificaram com a cultura greco-latina.

17 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


Seremos com certeza acusados de não tratar de um assunto actual,
para o qual não é necessário vasculhar demasiado o passado, de não
nos contentarmos com a análise dos problemas actuais da África.
Certamente, mas aqueles que levantam estas acusações ignoram com-
pletamente, tal como salienta de modo extremamente justo o Professor
A. Moussa Lam na sua introdução a De l'origine égyptienne des peuls,

... a lei da continuidade histórica; os problemas actuais mergulham profunda-


mente as suas raízes no passado mais longínquo, e alguns erros de aprecia-
ção ou de interpretação dosfactos actuais explicam-se pela ignorância ou
negligência desta verdade primeira.

Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng


Doutorandos em Filosofia/Universidade de Rouen

Prefácio: Falsificação da história 21


I.
A África e o Ocidente
A ruptura da consciência histórica
africana: o principal obstáculo para
o renascimento africano
Bwemba Bong^

Introdução
o factor dominante da realidade internacional consiste no facto de,
neutralizada por uma agressão ocidental multimilenar, a África Negra
entrar no IIF milênio num estado de fracasso sem precedentes na
História conhecida da Humanidade, sinal prenunciador da iminência
do caos. Com efeito, o povo negro permanece sempre exposto à lógica
mortífera do Ocidente, tal como a França o demonstrou no Ruanda,
em 1994, e mais recentemente, em Novembro de 2004, na Costa do
Marfim, com a i n t e r v e n ç ã o da sua p r e t e n s a c o o p e r a ç ã o franco-
-africana.
Para alêm disso, por forma a evitar ir de mal a pior, o nosso povo
deve apoderar-se deste instrumento de luta necessário que ê a consciên-
cia histórica.

1. A consciência histórica da África Negra en-


quanto base da resistência do povo negro
Sendo a mistificação histórica um dos meios privilegiados através
do qual se age sobre a consciência individual, de uma colectividade
ou de um povo de modo a dominá-lo, o Ocidente recorre à ideologia
da falsificação sob todos os aspectos, com vista a perpetuar a sua mão
invisível na África Negra, a fim de manter o povo negro na escrava-
tura, atê mesmo exterminá-lo, caso este não tome consciência das
ameaças que pairam sobre ele. Neste sentido, tudo aquilo que concerne

1. Historiador, membro do Círculo SAMORY.

A ruptura da consciência histórica africana: o principal obstáculo para o renascinnento africano . Bwemba Bong 25
ao verdadeiro passado da África Negra é encoberto. Nas bibliotecas
mais inacessíveis para os investigadores africanos dignos deste nome,
encontram-se testemunhos escondidos, recolhidos por missionários
acerca da historiografia da África Negra, enquanto que se fabricam fac-
tos reconhecidos desvalorizantes para a "raça" negra, com o objectivo
de a denegrir. Assim sucede com a civilização negra, cuja paternidade
se atribui geralmente ao "gênio semita" nomeadamente, grupo huma-
no acerca do qual se sabe que terá vivido no Egipto faraônico negro,
enquanto simples comunidade de trabalhadores imigrados, tal como
confirma a Bíblia, mesmo sendo conveniente opor o mais categórico
desacordo face à tese da pretensa "escravatura" dos Judeus no Egitpo:

Estabeleceram sobre ele (o povo judeu) chefes de trabalho forçado, com o objec-
tivo de oprimi-los nos seus fardos; e edificaram cidades como lugares de ar-
mazenagem a Faraó, a saber, Pitom e Ramsés. Mas, quanto mais os oprimiam,
tanto mais se multiplicavam e tanto mais se espalhavam, ainda que sentissem
um pavor mórbido por causa dos filhos de Israel. Por conseguinte, os Egípcios
fizeram osfilhos de Israel trabalhar como escravos sob a tirania. E tornaram-lhes a
vida amarga com dura escravidão no pilão em argila e em tijolos, e com toda
forma de servidão nos campos, onde eram usados como escravos dominados
pela tirania.^

Tal como salienta Ivan Van Sertima:

Quando o conde de Volney se viu perante a sombra da grande Esfinge, em


1783, e viu estas montanhas, criadas pela mão do homem, que se elevavam
no deserto, este ficou esclarecido e perturbado. Tinha atravessado a região
plana, pontuada por cabanas em palha e grandes tamareiras. Sobre o verde
resplandecente da terra, uma rede estreita de canais de irrigação. Era pos-
sível ver, na margem dos canais, homens esguios de tez negra ou escurecida,
a maior parte negróides, "de nariz curto e achatado, com uma boca larga... e
lábios carnudos"; com um movimento balançado e ritmado, erguiam os bal-
des de rega agarrados à picota. Tratava-se de Egípcios, que, pela tez e pelos
traços, eram semelhantes a muitos escravos do Império Francês. Como é que
as coisas podiam ter sido transtornadas a este ponto? Como é que o sentido da
história podia ter-se invertido tão violentamente?
O conde de Volney sentiu-se invadido por um estranho sentimento de culpa.
Era tão natural considerar os Negros enquanto "lenhadores e carregadores
de água". Quando é que esta maldição teria começado? "Quanto espanto
ressentimos, escreve o autor, ao reflectirmos sobre os Negros, actualmente

2. Êxodo, cap. 1, v. 11 a 14.

21 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


nossos escravos e objecto do nosso desprezo, a quem devemos as nossas artes,
as nossas ciências...".
Quinze anos mais tarde, Bonaparte dirigia uma expedição ao Egipto. Os sábios
que o acompanhavam ficaram igualmente impressionados e surpreendidos.
Concluíram, tal como os Gregos tinham feito mil anos antes, que uma raça
negra estava na origem da civilização egípcia.
Esta redescoberta do Egipto antigo pelos Europeus, bem como a revelação da
forte ascendência negro-africana de uma civilização à qual a Europa tanto
devia, causaram uma espécie de mal-estar; a mesma sobrevinha no momento
mais inoportuno e ameaçava dinamitar o mito da inferioridade inata dos
Negros, necessária para a boa consciência cristã de uma Europa que devia
a sua prosperidade à exploração massiva dos escravos negros. A África era
sistematicamente despovoada. Os seus impérios tinham sido destruídos, a sua
história enterrada, o seu desenvolvimento, paralelo ao de outras civilizações
do mundo, subitamente travado. Apenas alguns elementos antigos ou inaces-
síveis permaneceram intactos, para mais tarde dar origem a falsos testemunhos,
a partir dos quais se deliberou acerca da dimensão e da complexidade da sua
evolução.^

Os Ocidentais não ignoram o facto de a consciência histórica desem-


penhar um papel importante na libertação e elevação mental de um
povo que toma consciência do seu passado. Ao adquirir, deste modo,
um orgulho suficiente, torna-se difícil de manipular; por outro lado,
escolheram também apresentar a historiografia da África Negra de
acordo com uma visão totalmente desfavorável para o povo negro,
com o intuito de o levar à maleabilidade total. O filósofo alemão Hegel
foi um dos que mais se dedicou a este empreendimento:

A África não faz parte do mundo histórico, não manifesta nem movimento,
nem desenvolvimento, e aquilo que ali aconteceu, isto é, no norte, resulta do
mundo asiático e europeu... Aquilo que apreendemos, em suma, pelo nome de
África, é um mundo a-histórico não desenvolvido, inteiramente prisioneiro do
espírito natural e cujo lugar ainda se encontra no limiar da história univer-
sal*
E, no entanto, escreve Edem Kodjo,foi aqui, em África, que a história começou.
Longe de se tratar de uma firmação gratuita, esta asserção representa uma
realidade científica inegável que se constata ao sulcar o mundo em busca dos
vestígios das civilizações primeiras.^

3. Sertima, Ivan Van, Ils y étaient avant Christophe Colomb-, Flammarion, pp. 133 a 135.
4. Hegel, Friedrich, La Raison dans l'Histoire-, Ed. 1 0 / 1 8 , 1 9 8 2 , p. 269.
5. Kodjo, Edem, Et demain l'Afrique; Ed. Stocit, 1985, p. 309.

A ruptura da consciência histórica africana: o principal obstáculo para o renascinnento africano . Bwemba Bong 27
Porém, tal como refere Meinrad Hegba acerca do estudioso Cheikh
Anta Diop, que foi um dos primeiros investigadores a pôr em evidência
a origem negra do povo e da civilização do Egipto faraónico,

... quando Cheikh Anta Diop, homem de erudição enciclopédica, publicou a


sua famosa obra Nations nègres et culture, este foi atacado por todos os
lados, ridicularizado, vilipendiado, porque a sua visão da história ousava de-
safiar o esquema dogmático traçado, entre outros, por Hegel e Gobineau, e
que torna o homem negro naquele que nunca contribuiu para o património
da humanidade. Cheikh Anta Diop foi atacado não somente por historiadores
competentes, mas também por pequenos escritores e jornalistas europeus in-
capazes de ler Heródoto ou Diodoro da Sicília no texto, mas que se arrogavam
o direito de rejeitar desdenhosamente as crónicas egípcias destes historiadores
conscienciosos, ... levando o preconceito racista e a má fé ao ponto de recu-
sar o irrecusável, a saber, os traços negróides da Esfinge, por exemplo, ou o
carácter egípcio de tais figuras negras... que a ciência da falsificação e da ma-
nipulação não podia ainda assim classificar como falsas. Face à avalanche de
escárnios, insultos, humilhações desenfreadas contra o investigador senegalês,
quantos intelectuais africanos tiveram a coragem de o defender? Em nome
da história "científica" dos seus mestres, alguns chegaram a segui-los para
denunciar as "teses simplistas" de Cheikh Anta Diop.^

Meinrad Hegba prossegue:

Reteremos dos testemunhos concordantes e independentes de Heródoto, Dio-


doro da Sicília, Ibn Batouta, Volney, bem como dos monumentos históricos
extremamente explícitos, que homens de raça negra criaram e desenvolveram,
nos séculos passados, um elevado grau de civilização, numa época em que as
povoações e as tribos europeias ainda estavam fincadas na barbárie. A re-
viravolta espectacular das situações operadas desde então, não invalida de
modo algum os factos, mas debilitam os fundamentos da teoria arriscada
da evolução linear e irreversível das civilizações. Temos, evidentemente, que
admitir algumas regressões por vezes severas, rupturas de continuidade e
saltos. Restituída a estas pretensões moderadas, a tese defendida por nós já
representa um tema... de orgulho para os nossos povos.^

A ideologia dominante da África Negra é tão vigorosa nos Ociden-


tais, que estes chegam geralmente a acusar os Africanos de manter o
olhar virado para o passado, enquanto que eles próprios se empenham
em instituições responsáveis pela restauração histórica do seu país.

6. Hegba, Meinrad, "L'Homme Vit Aussi de Fierté" in Présence Africaine, 9 9 / 1 0 0 , 9. 21.


7. Hegba, Meinrad, op. cit., p. 39.

28 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


tal como o comprovam as escavações arqueológicas realizadas no Oci-
dente:

... uma necrópole merovíngia foi detectada durante o fim-de-semana pas-


cal em Rummusheim, perto de Mulhouse. Treze túmulos datando dos anos
680-750 foram descobertos a cerca de cinqüenta centímetros por baixo de
um campo de milho. Alguns guardavam objectos, tais como fivelas de cintos,
facas e potes.^

Tendo sido a historiografia da África Negra dita francófona, nome-


adamente, geralmente confiada a funcionários coloniais sem qualquer
formação na matéria, para não mencionar os seus preconceitos negró-
fobos, a conseqüência foi o freqüente surgimento de fragmentos de
antologia. Num artigo publicado em 1972, Henri Brunschwig escreve:

Os Negros não foram frustrados da sua História, porque estes nunca tiveram
História, nem sentiram a necessidade de ter uma... Os Negros só descobri-
ram o mundo enquanto escravos... Esta estranha passividade faz com que a
História da África Negra até ao século XIX seja não somente colonialista, mas
ainda epidérmica.'^

Ora, se os Áfricanos se obstinam em desviar a África Negra da sua


historiografia, é mais pelo receio daquilo que possam descobrir acerca
do seu passado: o medo da verdade que, pela sua essência, levaria a
tomar consciência da fraude e da mistificação, podendo e devendo a
descoberta da verdade - tanto quanto a tomada de consciência da in-
justiça provocar a revolta da consciência negra que se revelaria em
simultâneo com a verdade. Certamente, a memória histórica não pos-
sui um valor absoluto, mas participa, no entanto, no desenvolvimento
da consciência, mesmo que esta não seja a única razão que motive a
necessidade, no caso da África Negra por exemplo, de reapropriação
da sua história. Porque...

Todos estes factos da Pré-história devem ser relembrados aos homens da


actualidade, a fim de que o papel da África no desenvolvimento da civilização
seja enfatizado e o seu lugar reconhecido no progresso do gênero humano,
não só através da sua posição norte-oriental centrada no Nilo, mas também
na sua totalidade. A história consiste num todo e a natureza não concretiza
saltos. O gênio humano representa um conjunto. A partir da nebulosidade

8. Jornal La Nation de 12 de Abril de 1985, p. 16.


9. Brunschwig, Henri, "Histoire, Passé et Frustration en Afrique Noire", in Annales, n.® 5, 1962,
pp. 8 7 5 e 878.

A ruptura da consciência histórica africana: o principal obstáculo para o renascinnento africano . Bwemba Bong 29
inicial partiram as primfcias da civilização actual. E se as revoluções indus-
triais ou políticas se afiguram caóticas e surgidas do nada, estas são apenas o
ponto culminante da obra obscura iniciada há milénios.^^

Por conseguinte, a História não pode limitar-se a um estudo neutro


e insípido dos acontecimentos passados. O seu conhecimento e a sua
mestria são indispensáveis para a acção e para a vida, e não para
embelezar as bibliotecas; tem ainda muito menos por vocação sobre-
carregar a memória, tendo em conta que concerne o homem activo
que necessita de modelos anteriores e de iniciadores.
O Africano deve, neste sentido, escrutinar os vestígios do passado do
seu povo, com o propósito de suscitar assuntos históricos. Esta tomada
de posição constitui o sinal de uma fidelidade e de um real patriotismo.
Porque, na verdade, a história representa o bem do homem que olha
fielmente e com entusiasmo para as suas origens, para o mundo dos
seus antepassados. Partir de si para chegar a si é uma das variantes do
círculo que deve ser percorrido pelo pensamento histórico. É aquilo
que o saudoso presidente Kwame Nkrumah explicita:

O nosso renascimento africano insiste significativamente no modo de apre-


sentar a história. Deve escrever-se a nossa história enquanto a história da
nossa sociedade, não enquanto história de aventureiros europeus. A socie-
dade africana deve ser considerada como um reflexo de si própria, e os con-
tactos com os Europeus só devem constar sob o ângulo da experiência dos
Africanos, mesmo que tenham sido uma experiência mais importante do que
todas as outras. Por outras palavras, os contactos com os Europeus devem
ser narrados e julgados sob o ponto de vista da harmonia e do progresso
desta sociedade. Quando a história é exposta desta maneira, esta pode deixar
de ser uma narrativa... para se transformar no quadro do drama cada vez
mais trágico e do triunfo final da nossa sociedade. Então, a história da África
poderá guiar e inspirar a acção dos Africanos. A história africana pode, deste
modo, dar a conhecer a ideologia que deve dirigir e inspirar a reconstrução
africana.^^

Ao identificar-se com o gênio familiar do seu povo, o Africano adquire


uma dívida de reconhecimento perante o passado, fazendo com que a
destruição da noção ideológica e mítica da a-historicidade da África o
reconcilie de imediato com a sua natureza. E, ao decifrar o passado,
a linguagem misteriosa que apreende à partida revela-lhe a sua ver-
dadeira identidade. A história torna-se, assim, vital; ê revigorante e

10. Kodjo, Edem, op. cit., p. 38.


11. Nkrumah, Kwame, Le Consciencisme; Ed. Présence Africaine, 1976, pp. 80-81.

30 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


serve a vida. Por outro lado, o olhar retrospectivo do Africano deve
diferenciar-se da atitude do vendedor de antiguidades. Com efeito, se
este lança um olhar sobre o passado longínquo, que se torna subita-
mente próximo e vivo, é para dele extrair lições do declínio da brilhante
civilização que os seus antepassados construíram. Não é através deste
regresso ao passado que o mesmo poderá desvendar as taras da sua
sociedade, os erros cometidos pelos seus antepassados; aqueles que
estavam demasiado confiantes neste facto não souberam proteger-se
dos perigos exteriores.
Em suma, a atitude histórica é compatível com um ponto de vista
crítico: deve vasculhar as suas raízes, revelar as fragilidades que estão
na base da sociedade tradicional, não demonstrar complacência
perante um certo imobilismo latente desta sociedade. Se o Africano
tem conhecimento de que a tradição representa, por natureza, uma
fonte de verdade e uma norma de afirmação, o mesmo não deve igno-
rar que esta pode ser uma constante de inércia. Deste modo, deverá
desconfiar daqueles para quem unicamente a tradição ou o passado
possuem legitimidade, aqueles para quem a simples evocação deste
sistema de referência constitui uma ocasião para discursos adulatórios.

2. As fragilidades e os defeitos da sociedade


africana
A civilização primeira conhecida da humanidade germinou no vale
do Nilo. O Saara, em vias de dessecação, esvaziar-se-á de uma grande
parte do seu povo que partirá do centro da África ao Sul do Saara e
emigrará para a zona onde o Nilo Azul e o Nilo Branco confluem. Um
outro contingente deste Povo subirá em direcção ao mesmo vale do
Nilo para fundar a civilização egípcia, cujos vestígios continuam ainda
hoje a deslumbrar a humanidade:

Contrariamente a estes historiadores que, para satisfazer a sua visão etnocên-


trica do homem, se obstinam em construir, com base em vestígios arqueológi-
cos menos significativos da Mesopotâmia, uma anterioridade e uma primazia
de civilização que os factos e as descobertas recentes vêm hoje desmentir, é de
facto, segundo as fontes mais reconhecidas actualmente, no solo africano, que
a aurora da civilização se eleva}^

Todavia, mesmo se a África deve orgulhar-se dos vestígios da An-


tiguidade e da bela época dos seus grandes Impérios do X.s ao XV.^

12. Kodjo, Edem, op. cit, p. 40.

A ruptura da consciência histórica africana: o principal obstáculo para o renascinnento africano . Bwemba Bong 31
séculos, este regresso ao passado deve sobretudo ajudar o seu povo a
compreender o movimento dialéctico da história, através do qual a to-
talidade humana se constrói e desconstrói; com efeito, a um dado mo-
mento da sua história, os povos erigem poderosas civilizações que se
podem desmoronar depois de terem conhecido um esplendor notável:

As civilizações são certamente mortais, mas a sua morte tem causas e no que
concerne às civilizações passadas da África, devemos estudar os motivos do
seu desmoronamento por forma a melhor preparar os jovens Africanos relati-
vamente ao domínio do seu destino. No que diz respeito aos Estados africanos
da Antiguidade e aos impérios medievais, factores internos e causas externas
convergiram para precipitar o seu declínio, e, posteriormente, o seu desapa-
recimento. De entre os inúmeros factores internos figuram a organização in-
terna da sociedade, o sistema educativo e de transmissão dos conhecimentos
e as dificuldades de administração do território.^^

Estas causas internas constituem, ainda hoje, uma das fragilidades


da sociedade africana. Em particular devido ao sistema de castas que,
ainda que com tendência a desaparecer, não deixa de permanecer rela-
tivamente vigoroso na África ocidental, nomeadamente nas zonas sahe-
lianas. Este sistema tem por base a divisão do trabalho, que faz com que
cada função artesanal corresponda a funções sagradas, a vias iniciáti-
cas: unicamente a casta dos ferreiros deverá conhecer os mistérios do
fogo e da transformação da matéria; os artesãos da madeira, por sua
vez, são versados no fabrico dos objectos rituais e das máscaras devido
ao seu conhecimento dos segredos do mato e da vegetação. Devem eles
próprios cortar a madeira necessária para a sua obra; os fabricantes das
pirogas são iniciados nos segredos da água, por exemplo, e cada casta
conserva zelosamente os conhecimentos secretos que detém.
Torna-se evidente que este tipo de organização social favorece a es-
tagnação e impede as mudanças necessárias às alterações sociais, ou
seja, ao progresso. Esta contribuiu grandemente para o enfraqueci-
mento interno da África do passado, não tendo as diferentes castas
que compunham uma parte do mundo do trabalho aceitado divulgar o
conhecimento de que eram detentoras. Sistema do gosto pelo segredo
que, acrescido ao da educação então em vigor, acabaram por prejudi-
car a África, como refere Edem Kodjo:

Por outras palavras, prevalecia um sistema de educação e de transmissão de


conhecimentos isolados. Na verdade, as sociedades africanas eram submetidas
pelos grandes sacerdotes detentores do conhecimento. Verdadeiros mestres

13. Kodjo, Edem, op. cit, p. 41.

32 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


da sabedoria, estes possuíam o domínio da sociedade e constituíam uma casta
isolada que mantinha os seus conhecimentos e o seu savoir-faire zelosamente
afastados do povo. Organizadas em sociedades esotéricas, no seio das quais
o conhecimento só se transmitia por iniciação a uma ínfima minoria de indi-
víduos admitidos por cooptação rigorosamente programada, estes grandes
sacerdotes tinham interesse em manter o povo na ignorância a fim de refor-
çar o seu próprio poder. Deste modo, as massas populares não tinham, de
modo algum, acesso ao conhecimento que as poderia ter ajudado a domi-
nar o seu meio natural... Nestas condições, não é de estranhar que uma vez
liquidada a grande casta dos sacerdotes, detentora da sabedoria, da ciência
e da destreza técnica, as sociedades africanas se tenham visto subitamente
privadas de memória científica e técnica. De facto, o progresso científico e
técnico sempre foi resultado de uma acumulação de conhecimentos difusos
e conservados nas maiores camadas do povo... Por não terem seguido este
procedimento, as grandes civilizações africanas do passado desmoronaram-se,
por falta de renovação e de alargamento do seu pessoal científico e técnico,
frequentemente em resultado do desaparecimento súbito das suas classes
dirigentes, sob o golpe de invasões estrangeiras^*,

Na África antiga, muitos eruditos morreram sem ter partilhado a


mais pequena parcela dos seus conhecimentos. Os túmulos africanos
encontram-se, assim, cheios de sabedoria perdida para a eternidade.
Por outro lado, Ahmadou Hampaté Bâ afirmou em 1 9 7 6 :

Os depositários africanos tradicionais das artes, das ciências e das técnicas


antigas ainda existem. Porém, são pouco numerosos e, de um modo geral,
de idade bastante avançada. O tesouro dos conhecimentos, pacientemente
transmitido há milénios, pode ainda ser recolhido e salvo caso a isso nos
dediquemos atempadamente e aceitemos escutar atentamente as narrativas
dos antigos eruditos.^^

Neste sentido, cabe a cada geração de investigadores africanos ter


em conta este apelo, bem como o futuro do povo africano; a lei do
silêncio imposta pela iniciação exige ser rompida. Não para introduzir
os inimigos do nosso povo aos segredos científicos, que acentuaria o
seu domínio sobre nós e o mundo, mas para colocar a África Negra ao
abrigo de qualquer espécie de imperialismos estrangeiros que garan-
tiram a sua ruína. Ora, pelo facto de ter procurado transmitir conheci-
mentos ao historiador africano Youssef Tata Cissé, Wa de krina, grande

14. Id., op., cit., pp. 41-42.


15. In Courrier de IVNESCO, 1976, p. 17.

A ruptura da consciência histórica africana: o principal obstáculo para o renascinnento africano . Bwemba Bong 33
sacerdote depositário das tradições ocultas da antiga ciência egípcia,
de Thot e de Amon-ra, perdeu a vida.

E quando o rumor das suas revelações chegou aos ouvidos dos seus colegas,
Wa Kamissoko recebeu a visita dos representantes mais ilustres da função de
griot do Mandé. Estes ordenaram que se calasse. Aquele desobedeceu.^^

Viria a falecer pouco tempo mais tarde, vítima da Lei do silêncio que
proscreve qualquer colaboração dos sábios africanos da sua sociedade,
com base num mal-entendido repousando sobre a distância entre os
depositários dos conhecimentos ancestrais e os novos quadros forma-
dos na escola dos Brancos; nomeadamente no que concerne à concep-
ção do tempo. Com efeito, se para os Africanos formados na escola oci-
dental, tempo é dinheiro, e estes têm geralmente pressa em distinguir
a dissertação, obtendo o máximo de informações possível em tempo
recorde; para os sábios africanos, sendo a confiança a força motriz
de qualquer relação, uma tal agitação para penetrar nos segredos do
conhecimento representa uma grande contrariedade. Tal como afirma
Hampatá Bâ, só a confiança "fornece aquilo que nem a astúcia, nem a
força das armas vos pode proporcionar e aquele que não tem tempo a
perder, nada tem a fazer em África." Certamente, mas a perda de um
erudito da espécie de Kamissoko representa uma grande perda para o
nosso Povo; sobretudo se este não teve tempo de transmitir os conheci-
mentos necessários para a libertação da África e do povo negro.
A este respeito, Hampaté Bâ foi justo ao escrever que em África, "um
ancião que morre é uma biblioteca que se incendeia". Porém, ainda há
muito a fazer para transformar o modo de transmissão dos conheci-
mentos, que coloca em evidência a natureza particularmente aleatória
do sistema da oralidade.
Por outras palavras, para que o incêndio da biblioteca de Hampaté Bâ
seja deplorado, é ainda necessário que esta tenha inicialmente a linha
orientadora de entregar os seus segredos deixando as suas portas
abertas, a fim de que novas gerações de investigadores, da África e do
povo negro, possam aí saciar a sua sede de conhecimento, com vista a
contribuir para a construção do futuro do nosso povo.
A contrario, portanto, é necessário assumir a responsabilidade de
dizer aos sábios iniciados africanos que, impassíveis, continuam ainda
hoje a ver o nosso povo desagregar-se progressivamente a cada dia,
que uma biblioteca que queima cheia de pó, pelo facto de não ser
frequentada por força das suas portas encerradas, não realizou a sua

16. Afrique Asie, número citado.


17. Courrier de l'UNESCO, número citado.

34 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


função que consiste em ser o lugar primeiro de transmissão do conheci-
mento; que o excesso de gosto pelo segredo constitui sempre a consa-
gração da ignorância, bem como um grave perigo para um povo.
Outra das fragilidades da África Negra consiste no respeito demasi-
ado grande pela vida e pela natureza. Sob um determinado prisma, o
respeito pela vida representa uma força, tendo em conta que o mesmo
demonstra que o homem e a natureza são apenas um; que no univer-
so, cada objecto representa uma actualização da "palavra divina". Para
além disso, ao rejeitar a fragmentação dualista do mundo, porque o
homem está integrado no universo e porque o corpo não é a sombra
do espírito, a concepção africana da vida estabelece uma intimidade
entre a consciência e o mundo, entre a Natureza e Deus.
O pensamento africano oferece assim um monismo protector e um
humanismo divino. Por outro lado, o valor encontra-se carregado de
uma dimensão religiosa; está impregnado de sacralidade. A própria
vida é sagrada, uma vez que a mesma é um dom de Deus; esta não pode
ser, nem suprimida, nem tomada pelo homem. As banalidades das
religiões monoteístas ocidentais acerca do amor pelo próximo, como
imagem de si mesmo, só podem, assim, conduzir a grandes gargalha-
das naqueles que estão impregnados pela filosofia africana da vida,
filosofia segundo a qual o estrangeiro de passagem num país está sem-
pre na sua casa, ainda que em terra desconhecida, uma vez que este
pode ser a manifestação de um antepassado ou de um deus chegado
para testar o nosso grau de hospitalidade. Eis uma filosofia da vida
organizada em sistema comunitário, no qual triunfam os princípios
essenciais de solidariedade e de humanismo.
O pensamento africano, ignorando o individualismo, relaciona in-
timamente o indivíduo ao seu meio natural e humano; a simbiose
homem-natureza é perfeita:

Enquanto que o homem ocidental apenas soube instituir entre o homem e


a natureza, desde o Renascimento, relações de conquistadores, relações de
senhores a escravos, os Africanos dão provas, pelo contrário, de que o homem
e o mundo são apenas um, que toda a natureza representa um corpo e que
eu próprio tomo parte na interacção universal das forças da vida, a vida to-
tal dos homens, dos outros homens e das coisas. O sentimento da vida, é em
primeiro lugar esta comunhão permanente com um mundo vivo, animado,
significante, que pode ser decifrado como um rosto no qual se lêem directa-
mente a angústia, a cólera ou o amor e que não deu origem ao absurdo dualismo
da alma e do corpo. O homem, bem como o mundo no qual vive, é todo uma
alma e todo um corpo.^^

18. Garaudy, Roger, Appel aux vivants-, Ed. Seuil, p. 74.

A ruptura da consciência histórica africana: o principal obstáculo para o renascinnento africano . Bwemba Bong 35
Certamente, mas deve dizer-se, o respeito pela vida e pela nature-
za constituiu um obstáculo fundamental para o pensamento técnico,
tendo em conta que não permitiu ao pensamento científico africano já
existente nos templos e nos conventos, explorar e atingir o povo negro.
O revés do pensamento espiritual e humanista africano consiste assim
na sua incapacidade de se afastar do poder divino:

É pelo facto de o espírito africano ainda estar marcado por uma visão do
mundo e uma concepção da existência sempre dominadas pela idéia de uma
potência criadora transcendental, imanente, coexistente a todas as coisas, a
qualquer idéia, a qualquer acção, que o mesmo permaneceu hostil a qualquer
processo de violação e de conquista brutal da natureza exigido por aquilo
que designamos comumente por desenvolvimento. Uma tal visão filosófica do
Africano limita a sua capacidade de investigação e de criação a um universo
não dominado, reduzido ao seu espírito de inciativa, ao seu gosto pelo risco e
pela aventura, logo que se trate de romper a harmonia primordial para orga-
nizar esta vasta reviravolta social que é o desenvolvimento.^'^

Para se compreender até que ponto a mentalidade africana resul-


tante desta concepção do mundo e desta filosofia da existência consti-
tuiu um factor negativo, basta compará-la à idéia que se tem acerca
da natureza na Europa do século XVII. De facto, na obra de Galileu,
publicada em 1 6 3 2 e intitulada Les Dialogues sur les Deux Principaux
Systèmes du Monde, a natureza, deusa universal, foi interpretada con-
sequentemente como uma simples máquina.
Defronte, a organização da cidade antiga grega enquanto fundamen-
to cultural do Ocidente, dá uma idéia da atitude do homem ocidental
face ao estrangeiro: cada cidade, para lá do seu espaço urbano, com-
preendia divisões territoriais ou aldeias que cercavam o aglomerado.
As primeiras eram propriedade de homens ricos, e ali viviam
freqüentemente escravos e eventualmente estrangeiros. Qualquer
estrangeiro fora da sua cidade podia ser mantido na escravatura ou
condenado à morte. Nem mesmo as casas se podiam tocar. No interior
da Cidade existia a mesma injustiça: nem todos os habitantes eram ci-
dadãos; os escravos não possuíam qualquer direito. E quando alguns
estrangeiros eram autorizados a trabalhar, estes só podiam, no máximo,
transportar armas. O pensamento dos Gregos antigos face aos es-
trangeiros constitui uma das conseqüências directas de um individu-
alismo exacerbado, na medida em que o Outro, não é considerado nem
como um irmão, nem como um semelhante, o que faz com este seja
expulso da esfera dos homens. Uma filosofia para a qual aquilo que

19. Kodjo, Edem, op. cit., p. 93.

36 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


conta, sou EU, sendo outrém um estrangeiro, este não possui qualquer
direito. Desde os Gregos, antepassados dos Ocidentais, a Natureza era
aquilo que a ciência contemplava. Ali se decobria uma ordem, pelo
facto de constituir um modelo e uma satisfação estética da inteligên-
cia. É este o motivo pelo qual a arte, incapaz de imitar a originalidade
da natureza, tinha por objectivo reproduzi-la de modo servil, procu-
rando pelo menos arremedá-la. Durante a mesma época, os homens
das ciências dedicavam-se à tarefa de conhecer os seus princípios, não
em laboratórios, mas através da reflexão acerca da essência das coisas.
Só os artesãos, os escravos e todos aqueles que aceitavam dedicar-se
a actividades consideradas vis e indignas de um homem livre é que
se dedicavam à técnica. Com efeito, do Vil- ao XVI^ século, mesmo se
os artesãos e os engenheiros ocidentais permanecem, apesar de tudo,
no exterior desta grande corrente intelectual posta em prática pelas
potências árabes, as universidades europeias ensinam o pensamento
científico e filosófico árabe, ele próprio inspirado em larga medida no
Egipto faraônico. Em 1632, Galileu, ao solicitar aos engenheiros que
descobrissem o verdadeiro sistema do mundo, atribui-lhes dignidade:

O engenheiro conquista a dignidade do sábio, porque a arte de fabricar trans-


formou-se no protótipo da ciência. O que comporta um nova definição do
conhecimento, que já não ê contemplação, mas utilização, uma nova atitude
do homem face à Natureza. Este deixa de observá-la como uma criança
observa a sua mãe, enquanto um modelo; pretende conquistá-la, tornar-se
seu senhor e detentor.^"

Deixando a Natureza de representar um mistério para ele, o homem


ocidental deixava de adoptar perante aquela a atitude da criança que
escuta: este interrogava-a e levava-a a responder-lhe:

O homem vai acostumar-se aos sacrilégios de Prometeu e de ícaro; já não


teme ser fulminado pelos deuses. Descartes, Galileu, Gassandi, e todos os seus
discípulos menores consideram doravante evidente que, conhecer éfabricar, e
que a Natureza nada mais faz a não ser realizar em grande aquilo que apenas
podemos reunir em detalhe e à nossa escala, graças ao engenho dos nossos
técnicos... Não somente já não se receia a ira divina devido a este rapto da
Natureza, mas acredita-se também que Deus nos deu a missão de trabalhar
à sua imagem, de construir o mundo no nosso pensamento, tal como ele o
criou ao oferecer-lhe as suas leis. O físico da Idade Média voltava-se para Deus
descobrindo as suas intenções, as finalidades da Natureza, o físico mecanista
volta-se para Deus penetrando o próprio segredo do engenheiro divino.

20. Lenoble, Robert, Histoire de l'Idée de nature; Ed. Albin Michel, 1969, p. 312.

A ruptura da consciência histórica africana: o principal obstáculo para o renascinnento africano . Bwemba Bong 37
colocando-se no seu lugar para compreender, juntamente com ele, o modo
como o mundo foi criado.

A Natureza tornou-se, deste modo, uma máquina para o sábio de-


positário do segredo divino. O Grande Livro da Natureza estava escrito
em linguagem matemática. Galileu, que o escreveu, viria a influenciar
a sua época. Já não se ouvia a Natureza, usava-se a mesma:

A partir dos anos 1620, sábios e filósofos, qualquer que fosse a sua corrente de
pensamento,... todos, apesar de todas as divergências de Escola e das polémi-
cas frequentemente entusiásticas, concordam em afirmar que a Natureza
constitui uma máquina e que a ciência representa a técnica de exploração
desta máquina.^^

A Natureza, tal como se observa, dessacralizava-se na mentalidade


ocidental. Nesta parte do mundo, o homem assumia o objectivo de a
dominar e de, a partir dela, usufruir de um bem-estar inexprimível,
tendo ambos sido feitos para se harmonizar na consertação do domínio
de uma pela outra. Aquilo que é de salientar neste Ocidente, que já se
auto-atribui a missão de dominar o mundo, é que apesar destas cor-
rentes mecanista e cientista que abalavam a sociedade, a religião e o
saber não eram incompatíveis. A visão religiosa acomodava-se à crise
intelectual, tanto mais facilmente que, para um Descartes, por exem-
plo, sendo Deus o abonador da Verdade, um ateu não se podia tornar
matemático, ou seja, compreender a Natureza é o mesmo que viver
feliz. A ciência adquiria, assim, um novo estatuto. O homem europeu
não estava preocupado com as suas descobertas, uma vez que estava
convencido de que Deus tinha dado ao homem o poder de dominação
sobre a Natureza, mas que somente o pecado que, retirando-lhe este
estatuto, tinha travado o desígnio divino. Daí o homem europeu ter de
adquirir o domínio das coisas do mundo para concretizar a vontade
divina. Prometeu, filho de Jápeto e irmão de Atlas, transformado em
tenente de Deus, já não teme os seus raios:

A verdadeira ciência, que nos permite, de algum modo, compreender a obra


criadora e nos encaminha a penetrar no segredo divino, torna-se assim, por
acréscimo, num meio de louvar o criador; edificar uma ciência verdadeira é,
tal como repete frequentemente, trabalhar para a causa de Deus. Por fim, a
lei da caridade impõe-nos o auxílio ao trabalho dos homens, bem como o seu
alívio através da invenção de máquinas.^^

21. Lenoble, Robert, Ibid., p. 313.


22. Ibid., p. 315,
23. Lenoble, Robert, op. cit, p. 321.

38 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


Em suma, existe aqui o confronto de duas atitudes religiosas: uma,
africana que, decifrando a Natureza enquanto a marca de Deus, vive
em simbiose com esta; a outra, ocidental que, considerando que o de-
ver do homem que pretende ser fiel a Deus, consiste na escravização
da natureza pelo homem. Cada uma destas atitudes tem o seu reverso:
hoje, no Ocidente, perante os estragos causados pela Ciência e pelos
seus derivados, procura-se voltar a uma reconciliação do Homem com
a sua Natureza:

Deve então conceber-se a esfera antropo-sociológica, não somente na sua


especificidade irredutível, não somente na sua dimensão biológica, mas tam-
bém na sua dimensão física e cósmica... Deve então reencontrar-se a Nature-
za para encontrar a nossa Natureza, tal como tinham sentido os românticos,
autênticos guardiãos da complexidade durante o século da grande simplifi-
cação... A Natureza da Natureza está na Natureza. O nosso desvio, relativa-
mente à Natureza, é animado pela Natureza da Natureza.^'^

Claramente, Edgar Morin pretende afirmar que o Ocidente acreditou


durante muito tempo que o homem podia destruir a Natureza impune-
mente. Ora, este aperecebe-se doravante que ele próprio diminuiu o
seu espaço vital, uma vez que este último participa na vida universal.
Por outras palavras, depois de ter fundamentado a sua sabedoria na
lógica da exclusão, a saber que, se eu tivesse razão, estaríeis errado, a
vida sobre a morte, preto ou branco, bem ou mal, acontece por vezes,
ao homem ocidental, perceber que a realidade é hoje mais complexa.

Ora, a biologia mostra-nos que não existe oposição tão vincada na natureza.
Qualquer relação ou equilíbrio baseia-se no pluralismo, na diversidade, na
causa mútua. Não existe lógica de exclusão ou de oposição, mas uma lógica
de associação ou de complementaridade.'^^

O povo negro ganharia caso considerasse esta reviravolta da ciência


contra o homem. Todavia, este pacto estabelecido pelo homem afri-
cano entra a vida e a Natureza não deve, de modo algum, constituir um
obstáculo à sua liberdade, portanto, à sua sobrevivência.

A África, envolvida com a sua sobrevivência, deve poder meditar nas lições da
História. Deve poder abordar a hora da reflexão e, indo para lá da sua visão
filosófica, tão rica pelo seu humanismo e pela sua harmonia, conceber as vias
e os meios do renascimento através de uma abordagem renovada do facto

24. Morin, Edgar, La Vie de la Vie-, Ed. Seuil, pp. 373-374.


25. Rosnay, Joël de, Le Microcosme; Ed. Seuil, p. 254.

A ruptura da consciência histórica africana: o principal obstáculo para o renascinnento africano . Bwemba Bong 39
científico que lhe assegura o progresso, respeitando simultaneamente a sua
cultura}^

3. As lições que a África Negra deve extrair da


história
Algumas causas internas à África que contribuem para o seu en-
fraquecimento, bem como o do seu povo, acabam de ser revistas. Estas
não são, infelizmente, as únicas. Outros factores diferentes, nomeada-
mente a ética que se opõe à acumulação de riquezas, a exclusão da pro-
moção social, a crença mítica de que os ricos não são abençoados por
Deus, a socialização do indivíduo que não contribuiu para o desenvolvi-
mento de uma massa de desfavorecidos, necessária para a revolta que
teria conduzido à Revolução, as relações familiares particularmente
alargadas e protectoras, geradoras de uma certa indolência, e que con-
tribui geralmente, quer para gerar, quer para alimentar os comporta-
mentos e os actos etnicistas extremamente perigosos para a África Negra,
representam tantos pólos de inércia, os quais devem desaparecer
urgentemente. Para além destes factores, note-se também "os efeitos da
demonstração", a necessidade de aparecer, que origina despesas sump-
tuosas durante as cerimónias fúnebres, por exemplo, práticas correntes
da concepção que os Africanos têm da morte, que não representa o fim
da vida, mas sim uma passagem para uma outra forma de vida.
Torna-se evidente que esta visão da morte, bem como a do casamen-
to e do baptizado, representam obstáculos pesados nos nossos países
devido, entre outras coisas, às dívidas que a família é frequentemente
levada a contrair para responder àquilo que se dirá. Esta corrida à
demonstração desenfreada da opulência enganosa é, por outro lado,
intensificada por aventureiros ao serviço do Ocidente que ocupam o
poder artificial na África Negra, e que se entregam a demonstrações
ostentatórias de riquezas, de resto adquiridas.
A estas causas externas acresce a situação internacional da África
Negra que, há praticamente dois mil e quinhentos anos, sofreu um de-
clínio que não pára de se agravar. Com efeito, o Egipto negro, cujas rique-
zas nunca tinham deixado de ser cobiçadas pelos povos estrangeiros,
era, há milénios antes de Cristo, alvo de vários ataques, entre os quais
um, de origem asiático, teve lugar sob a VIF dinastia. Porém, a pior
pressão exercida sobre o país negro foi nomeadamente a das hordes
Hicsos, bárbaros de origem asiática. O sacerdote egípcio, Manethon,
refere:

26. Kodjo, Edem, op. cit, pp. 86-87.

40 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


Sob o reinado de Timaios, a ira divina assolou o Egipto; sem se saber porquê;
contra qualquer expectativa, homens de uma raça desconhecida, provenientes
do Oriente, ousaram invadir o país, apoderaram-se dele sem combate, tomaram
chefes como prisioneiros, incendiaram as aldeias selvaticamente, saquearam os
templos dos deuses e maltrataram duramente os habitantes, degolaram uns e
reduziram outros a escravos com as suas mulheres e crianças.

Foi deste modo que, durante perto de dois séculos, de 1 7 8 0 a


1580 a.C., o Egipto foi submetido ao domínio obscurantista dos Hicsos. A
libertação do país só chegará em 1580, do Sul, da realeza de Tebas, pelo
rei Kamósis e o seu sucessor Amósis 1, que travaram uma verdadeira
guerra de libertação para conseguir expulsar estas hordas estrangei-
ras do Egipto. Edouard Schure, que se dedica a esta época, escreve:

Cerca do ano 2000 a.C., o Egipto atravessa a crise mais temível que um povo
possa atravessar: a da invasão estrangeira e de uma semi-conquista... Con-
duzida pelos reis pastores chamados Hicsos, esta invasão estendeu-se sobre
o Delta e o Médio Egipto. Os reis cismáticos traziam com eles uma civilização
corrompida, a languidez jónica, o luxo da Ásia, os costumes do harém, uma
idolatria grosseira. A existência nacional do Egipto estava comprometida, a
sua intelectualidade em perigo, a sua missão universal ameaçada.^'^

As hordas bárbaras que não deixarão, contudo, de se basear no Egip-


to, enfraquecerão o Médio Império até serem escorraçadas do país, que
atravessará, no entanto, apenas um curto período de prosperidade alter-
nado com pequenos ataques externos imediatamente reprimidos. To-
davia, a morte de Ramsés II em 1 2 0 5 reavivou os ataques estrangeiros
contra o Egipto. Nomeadamente os dos povos do mar, de origem indo-
-europeia que, contrariamente aos Hicsos, não conseguirão ocupar o
Egipto, ainda que este se encontre num período de anarquia cada vez
maior; esta anarquia levará Ramsés 111 a integrar, no exército egípcio,
militares estrangeiros contratados enquanto estrangeiros auxiliares
sob o nome de Kehek, ao lado da armada nacional propriamente dita:
"Veremos que são os elementos estrangeiros, que nada relacionava
sentimentalmente à terra do Egipto, que provocarão a deliquescência
dos costumes políticos a partir de Psamético"^®, escreve Cheikh Anta
Diop, que prossegue:

... O exército egípcio desnacionaliza-se. Acaba por ser essencialmente uma

27. Schure, Edouard, Les Grands Initiés-, Ed. Livre de Poche, p. 165.
28. Diop, Cheilch Anta, Antériorité des Civilisations Nègres. Mythe ou Vérité Historique?; Ed.
Présence Africaine, 1967, pp. 169 e 171.

A ruptura da consciência histórica africana: o principal obstáculo para o renascinnento africano . Bwemba Bong 41
armada de mercenários livres ou semi-servis comandados pelos seus chefes na-
cionais; só o alto comando e alguns destacamentos de arqueiros permanecerão
egicpios... O processo atingirá o seu ponto culminante sob os usurpadores
líbios da XXVI- dinastia, mais precisamente sob Psamético. É então que
os elementos nacionais de uma das guarnições da armada egípcia acanto-
nada em Daphne, em Mocéa e na Ilha deAbu recusaram obedecer ao "rei" es-
trangeiro e partiram para oferecer os seus serviços ao rei de Cuche, do Sudão
Nubiano; trata-se da expedição dosAutomolos de que fala Heródoto..P

Apesar de tudo, estes ataques estrangeiros esgotaram o Egipto, que


foi progressivamente enfraquecendo, sem jamais voltar a reencontrar
o seu esplendor, nem mesmo os seus territórios do Médio-Oriente,
para mais tarde se desmoronar completamente sob os ataques suces-
sivos dos invasores Assírios, Persas, Gregos e, por último. Romanos.
Esta presença física de uma autoridade estrangeira nas terras do Egip-
to provocará grandes êxodos de Africanos que emigrarão em direcção
ao Centro da África, ao Oeste, ao Sul, e que vão constituir uma parte
do povoamento actual da África, cujos grandes Impérios (Gana, Mali,
Songhai, Monomotapa, etc.) vão, por sua vez, sofrer estas invasões
estrangeiras para finalmente se desmoronar, nomeadamente sob os
ataques dos Almorávidas. Em 1706, Gana, a capital, desintegrar-se-á:

Os Almorávidas tinham manifestado uma crueldade excepcional aquando da


tomada do Gana: os bens eram pilhados, os habitantes massacrados. Após
esta interrupção de 10 anos, o Gana será ainda atacado pelos vassalos Sossos,
mas conseguirá manter-se até ã investida da capital por Soundiata Keita, em
1240.^°

Segundo Wa Kamissoko, Soundiata Keita, que vai atribuir ao Mali todo


o seu poder, levará a cabo uma guerra implacável contra os vassalos
Sossos, a fim de acabar com a escravatura e com o comércio de negros
que estes cortesãos, antepassados espirituais dos actuais presidentes
africanos autoproclamados, praticavam com os Árabes. Porém, o Império
do Mali será anexado pelo Império do Songhai que, durante a batalha
de Tondibi, será destruído por Marroquinos equipados com armas de
fogo e conduzidos pelo eunuco espanhol Djader Pacha. Na África Cen-
tral, os reinos do Kongo, Lunda, Luba e Kuba foram desintegrados sob
os ataques Europeus. As agressões contra a África Negra terão, por fim,
como ponto alto as razias negreiras transatlânticas que se prolongarão
durante quatro séculos, e que levarão cerca de 4 0 0 milhões de Africanos:

29. Diop, Cheikh Anta, Ibid.


30. Diop, Cheikh Anta, L'Afrique Noire Précoloniale: Ed. Présence Africaine, p. 71.

42 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


o tráfico, esta tragédia de múltiplas facetas, continuará a ser o empreendi-
mento mais significativo de escravização e de degradação do homem. Esta
agressão cruel, na qual praticamente todas as nações europeias participa-
ram... desorganizou a sociedade africana no seu mais profundo âmago. Ao
liquidar os Estados constituídos, ao destruir as bases morais das sociedades
estabelecidas, ao saquear as estruturas de produção intectual e material e ao
deportar os recursos humanos mais vigorosos e mais brilhantes, o tráfico deixou
marcas indeléveis na consciência e na vida social dos povos africanos^^,

escreve Edem Kodjo.


Foram estas diversas invasões que provocaram a desestruturação
da sociedade, que se manifestará pela fuga desordenada das popula-
ções aterrorizadas. É deste modo que os Estados outrora constituídos,
apenas terão doravante uma existência efêmera, face à implementa-
ção do desenvolvimento de reinos de agentes negreiros, à ascen-
são ao poder e ao triunfo de toda a espécie de criminosos arrivistas
totalmente corrompidos, colocados e mantidos no poder através das
armas dos países estrangeiros, tal como acontece hoje com a matilha
de presidentes-grandes-timoneiros-pais-da-nação, peritos em qualquer
categoria de fraude eleitoral e outras trapaças ou vigarices reveladas.
O povo negro deve, por conseguinte, ter consciência de que as in-
vasões que fragilizaram a África Negra, que permitiram a sua ocupação
pelos povos estrangeiros, bem como a deportação esclavagista de cen-
tenas de milhões de Africanos, só foram possíveis devido a numero-
sos factores, entre os quais o facto de os construtores de impérios, os
grandes chefes cercados por toda a parte, terem de combater simulta-
neamente em duas frentes: contra os invasores árabes e ocidentais. No
plano africano, esta estratégia de deslocação da África Negra forçou,
no seu tempo, El Hadj Omar e Ahmadou Bamba a enfrentar a revolta
fula, enquanto combatiam os Franceses. Samory [antigo rei na actual
Guiné), por seu turno, cerca de 1890, estava em guerra contra os Fran-
ceses, ao mesmo tempo que se defendia contra Tieba, rei de Sikasso
(Mali); Behanzi (Benim), escorraçado do trono, viu o seu irmão Agon-
glo ser proclamado rei pelo sanguinário capitão Dodds; o Mohro-Naba
(actual Burkina Faso), enfraquecido pelos bandos Zerma provenientes
da região de Niamey, não conseguiu fazer face durante muito tempo à
barbárie da expedição francesa de 1896. No Tchade, as guerras con-
tínuas que se travavam entre os quatro Estados do Kanem-Bornou,
do Baguirmi, do Ouaddai e do Darfur, prestaram grandes serviços ao
invasor francês, que se instalou impiedosamente nesta região, e que
continua até hoje, tal como nas suas restantes possessões africanas.

31. Kodjo, Edem, op. cit., p. 96.

A ruptura da consciência histórica africana: o principal obstáculo para o renascinnento africano . Bwemba Bong 43
a manipular a seu bel-prazer. Esta filosofia política é expressa por
Lyautey^^ que declara sem rodeios:

... a acção política é de longe a mais importante; esta extrai o seu maior vigor
do conhecimento do país e dos seus habitantes Se existem tradições e cos-
tumes a respeitar, existem também ódios e rivalidades que é necessário
desemaranhar e utilizar em nosso proveito, opondo-as umas às outras, apoi-
ando-nos sobre umas, para melhor vencer as outras.^^

Por conseguinte, torna-se imperativo, para o povo negro em geral


e para a África Negra em particular, meditar tanto na história do seu
passado, como na do seu presente. As divisões suscitadas pelos desen-
tendimentos e pelas rivalidades são e serão sempre exploradas pelos
interesses estrangeiros à África Negra e ao povo negro. As traições e as
ganâncias, que gangrenam a África Negra, são frequentemente devidas
à falta de patriotismo de um grande número de Africanos, consequên-
cia da ruptura da sua consciência histórica. Foram estas dificuldades
que fizeram sombrear a África Negra, pelo erro passado de reis de-
masiado confiantes no estrangeiro, e hoje de arruaceiros de colarinho
branco, sedentos de poder, fonte de estipêndios de toda a espécie. A
desunião da África Negra, no presente e no futuro, não prejudicará so-
mente o continente subsaariano, mas arrastá-lo-á para o caos inevitável,
caso o povo negro, principalmente a sua juventude, não se manifeste
através de um sobressalto salutar; porque o povo negro deve saber que
a renúncia a qualquer desejo de independência representa também o
indício de uma traição: "A lealdade a uma potência estrangeira, mesmo
amiga, nunca adquiriu outros ares que não o de uma alta traição". Para
além disso,

as elites africanas devem convencer-se que os seus países não podem continuar
a ser o prolongamento das grandes potências e a amizade, se não mesmo
a cooperação, que se podem estabelecer devem ser exclusivas a qualquer de-
pendência, a qualquer submissão ou servilismo?'^

Os países estrangeiros que colocaram e mantêm actualmente, no


poder da África Negra, déspotas cujo um dos objectivos consiste em
perdurar o máximo de temppo possível a fim de provocar o maior
número de estragos possível para a África Negra, são estes mesmos

32. P. Lyautey é citado por P. Guillaume in Le Monde Colonial. Ver também P. Lyautey, L'Empire
Colonial Français-, Ed. de France, 1931.
33. Kodjo, Edem, op. cit.. p. 109.
34. Kodjo, Edem, op. cit., p. 111.

4 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


que, há menos de um século, praticavam as razias esclavagistas que
continuam a sangrar a África e toda a raça negra. Aqueles nunca foram,
e nunca serão amigos do povo negro. Esquecer isto seria não somente
cometer um erro grave, mas uma opção de suicídio. O povo africano
deve mobilizar-se para concretizar urgentemente a sua unidade políti-
ca, única garantia do futuro do povo negro.

A ruptura da consciência histórica africana: o principal obstáculo para o renascinnento africano . Bwemba Bong 40
A guerra do Biafra: desinformação e
manipulação dos média? Análise de
quatro diários importantes: Le Monde,
Le Figaro, La Croix e L'Humanité
Momar Mhaye^

Introdução
Sete anos após a sua independência, a Nigéria entrou numa fase de
evolução política de rara violência. Em menos de seis meses, atraves-
sou dois golpes de estado sangrentos e caiu, em 1967, numa terrível
guerra civil. A tragédia fez, em dois anos e meio, mais de dois milhões
de mortos. Provocou também uma viva indignação internacional e mo-
bilizou os média do mundo inteiro. A imprensa francesa não esteve,
portanto, isenta na cobertura de um acontecimento de tão grande im-
portância.
Para além disso, era fácil considerar-se devidamente informado a
partir do momento em que se mergulhava na imprensa daquela época.
Só que estas certezas foram abaladas por duas publicações. Rémy Bou-
tet, na terrível guerra do Biafra (1992], estigmatizava uma manipula-
ção dos média do hexágono através de agentes pro-biafrenses. Tal as-
serção foi confirmada numa obra ainda mais recente. De facto, Stephan
Smith e Antoine Glaser retomaram, em 2005, na sua obra Pourquoi la
France a perdu l'Afrique?, os propósitos do antigo chefe do SDCE, Mau-
rice Robert, que afirmava ter influenciado os média franceses para
despertar um sentimento de compaixão e de proximidade com o povo
biafrense junto da opinião pública. Para quem se interessa pela im-
prensa do hexágono nas suas relações com o continente negro, tais
revelações não podiam, evidentemente, provocar indiferença. Decidi-
mos então, por forma a adquirir uma visão clara, olhar atentamente
para o tratamento desta guerra nos quatro periódicos nacionais de
tendência e de obediência diversas. Procuraremos, deste modo, analisar

1. Doutorando da Universidade de Rouen, departamento de História/GRHIS

A guerra do Biafra: desinformação e manipulação dos média? Análise de quatro diários importantes... . Momar Mbaye A7
sucessivamente o lugar ocupado por tal acontecimento nas tentativas
de explicação do conflito, os temas privilegiados, bem como as aborda-
gens e as posturas adoptadas aqui e ali.

1. As causas
Os diários e semanários franceses que cobriram o conflito biafrense
não ignoram um factor primordial. O Estado africano, cujas operações
são o palco, é muito pouco conhecido pelos seus leitores. Por muito
que seja uma das mais povoadas e mais ricas do continente africano,
a Nigéria não dispõe, de todo, da celebridade da Costa do Marfim. A
sua pertença ao mundo anglófono é uma das suas razões. Por outro
lado, referir acontecimentos que ali se sucedem requere, por parte da
maioria dos jornalistas, muita pedagogia; daí a profusão dos artigos
que se empenharam em explicar os motivos do conflito. As causas con-
sideradas são, como é evidente, variadas consoante se considere um
ou outro jornal.

1.1. As causas passadas e imediatas

Num artigo do La Croix, datado de 19/9/1968, com o título mais


evocador relativamente às causas do conflito, Yves-Guy Berges con-
sidera que a velha rivalidade entre os Igbos do sudeste e os Hausas
do norte tinham atingido o seu paroxismo. E este estado de coisas
conduziu inevitavelmente ao rebentamento do conflito. Ao mesmo
tempo que reconhece esta velha oposição, o diário da rua dos Italianos
[Le Monde) considera também, no que concerne ao desencadeamento
da guerra, os erros dos homens políticos nigerianos dos inícios da in-
dependência. Segundo o especiaUsta da casa, Philippe Decraene, as
ambições e os erros do general Ojukwu, chefe da rebelião, têm muita
responsabilidade no rebentamento da guerra. Do mesmo modo, este
rotula o general Ironsi, efémero chefe de Estado de Janeiro a Julho de
1966. Este último, relembra o autor, para evitar surgir como o presi-
dente unicamente do povo Igbo, de onde é originário, aproximou-se
dos oficiais Hausa dos seus arredores, semeando simultaneamente os
germes da vingança nordista; acto este que não era negligenciável en-
tre os itinerantes do separatismo. Percebe-se assim, de acordo com es-
tas primeiras explicações, a extensão das oposições étnicas na Nigéria.
Um tribalismo factor de divisões representa igualmente um elemen-
to altamente inflamável. Esta chamada de atenção foi prontamente

48 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


retomada por quase todos os jornais. Todavia, o Le Monde apresenta
um contributo histórico.
Na sua publicação de 14/01/1970, isto é, no momento da reedição
biafrense, Decraene, sem dúvida para alertar os beligerantes para
uma maior responsabilidade, volta de modo significativo à evolução
histórica do país, do domínio inglês ao putsch de 1966. Este fornece os
detalhes acerca do modo como os britânicos exacerbaram as divisões
étnicas ao prestar mais consideração ao norte. Do mesmo modo, tam-
bém não esquece os primeiros líderes políticos cujas formações eram
apenas caixas de ressonância da sua região de origem.
Porém, poderemos de facto afirmar que a guerra do Biafra se ex-
plica pela excerbação do ódio entre Igbos e Hausas? Com efeito, são
numerosos os países africanos atravessados por esta linha de partilha
entre o Sahel e a floresta. E, no entanto, só um país é que conheceu
a guerra civil. Assim, não teria havido outros factores agravantes? É,
de resto, a opinião de L'Humanité. Às afirmações do diário de extrema
esquerda, a tendência em ver o tribalismo em todos os conflitos afri-
canos resulta de um velho reflexo colonial. R. Lambotte conclui que
mesmo caso a oposição étnica exista, esta permanece insuficiente. Os
desafios econômicos ocupam uma posição preponderante. A riqueza
petrolífera do Biafra levou os capitalistas a incentivar Ojokwu à rebelião.
Reconhece-se aqui a posição de um jornal de opinião profundamente
anticapitalista. Porém, o órgão do PCF não foi o único a intrometer-se
noutras causas.

1.2. As causas estratégicas e económicas

Le Monde, à semelhança dos jornais de direita, toma em considera-


ção tais motivações. Decraene, num artigo de 23/11/1967 consagra à
análise das causas um capítulo intitulado: um odor a petróleo. Encon-
tramos aproximadamente o mesmo título no La Croix de 13/01/1970:
o petróleo responsável O periódico fundado por Beuve-Mery considera
que o general Ojukwu deliberou a sua rebelião porque este media a
prosperidade do seu território em ouro negro, e estava convencido do
apoio das grandes companhias petrolíferas. O diário católico abunda
no mesmo sentido e aproveita para escarnecer a política das grandes
empresas, cuja busca pelo lucro ultrapassou as considerações huma-
nas. Quanto ao Fígaro, este acresce preocupações estratégicas aos
motivos económicos. Deste modo, Jean-François Chauvel [Fígaro de
18/11/1967) compara o Biafra ao Congo. Este considera que o con-
flito ultrapassa o mero âmbito africano. Neste território, trava-se uma

A guerra do Biafra: desinformação e manipulação dos média? Análise de quatro diários importantes... . Momar Mbaye A7
luta de influências entre britânicos e soviéticos para adquirir a explo-
ração dos recursos férteis do sudeste nigeriano, conclui o autor Aliás,
o jornal desenvolve de modo considerável a posição soviética, que con-
sidera dominada pela velha política árabe. A URSS apoiaria o governo
federal, tendo em conta que este é representante dos muçulmanos do
norte face aos cristãos do sul. Penetra-se, deste modo, plenamente nas
causas religiosas.

1.3. As causas religiosas

Não é, segundo nos parece, de todo surpreendente que um jornal de


obediência religiosa seja o porta-voz desta posição. Sigamos, sobre-
tudo, os propósitos de Yves-Guy Berges:

... os Igbos e os Hausas não têm nada em comum, nem a língua, nem a religião,
nem o clima.... No norte, os Hausas, 29 milhões, muçulmanos convictos, man-
tidos durante a idade média por um sistema feudal alimentado pelos emires....
No Leste, oslgbos, 12 milhões, cristãos, curiosos, abertos a tudo, confiantes - e
mesmo orgulhosos - e impregnados sem complexo pela civilização britânica
[La Croix, 11/09/1968].

O referido diário é ainda mais explícito. Na sua manchete do mesmo


dia, coloca em evidência um soldado biafrense ferido e não hesita em
inserir um cliché de um soldado biafrense: o documento "ilustra clara-
mente o perfil de guerra da religião desta luta terrível". O Le Monde,
não sendo tão categórico, converge em alguns aspectos no mesmo
sentido. Assim se vê Decraene, na sua tentativa de explicar a falta de
apoio ao Biafra por alguns dirigentes africanos, sublevar o móbil reli-
gioso no seu comportamento. Os países do Magrebe, sustenta o autor,
exceptuando a Tunísia, são anti-Biafra por solidariedade muçulmana.
Do mesmo modo, alguns líderes da África Negra adoptam a mesma
postura para agradar às suas populações fortemente islamizadas; tal é
o caso de Senghor Tese sujeita a revisão, uma vez que o autor negligen-
cia as causas frequentemente avançadas, certas ou erradas, por estes
dirigentes: o respeito rigoroso das fronteiras herdadas da colonização
(carta da OUA]. Este contenta-se, de certo modo, com um processo de
intenção. Temos também o direito de questionar se a evocação das
causas religiosas não se enquadrará numa lógica especial: despertar
as consciências ocidentais face ao drama.

50 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


2. Horrores e responsabilidades
Com mais de dois milhões de vítimas, esta guerra foi mais mortífera
do que a do Vietname e claramente mais sangrenta do que a do Próxi-
mo-Oriente. Foi um horror indescritível que a imprensa, no entanto, se
esforçou por colorir.

2.1. O horror absoluto

Uma série de reportagens efectuadas no campo de batalha pelo


especialista da casa do diário da rua dos Italianos faz um grande plano
sobre a inomável situação do Biafra. Sigamos antes Decraene:

... o capacidade normal deste conjunto hospitalar é de vinte e quatro camas,


e existem actualmente oitocentos pacientes auferidos, entre os quais alguns
estão imobilizados há três meses... urinas, excrementos, pus, medicamentos,
compõem odores mefíticos que lembram o de um estábulo sobreaquecido.
Mas existe algo de mais amargo e mais violento nestes odores, que o olfacto de
um ocidental dificilmente suportaria... E mais adiante, pode ainda ler-se: existem
velhos que expiram, porque é necessário salvar os mais jovens. Indivíduos
extremamente feridos no rosto, para os quais não se dispõe de nenhuma pró-
tese; tal como estes três soldados com os maxilares inferiores triturados, onde
uma cabaça ocupa o lugar do queixo... homens estilhaçados sem olhos, sem
nariz, sem pernas, mulheres que vão morrer porque já não há plasma nem
sangue para fazer transfusões. (Le Monde, 7/05/1969)

E o artigo produzido três dia mais tarde sobre a grande miséria das
populações civis é do mesmo nível. Coloca em evidência uma enorme
penúria alimentar, para além da falta de medicamentos. Esta situação
provoca um aumento exponencial da taxa de mortalidade no Biafra.
Este jornal não foi o único a enfatizar a extrema pobreza das popu-
lações biafrenses; o órgão católico também não, de resto. Para além
destes textos, este diário distingue-se sobretudo pela imagem. Deste
modo, na manchete de 14/02/1969, observam-se crianças com uma
magreza indescritível a vir recolher a alimentação distribuída por
organizações humanitárias. Segundo a mesma ordem de ideias, um
grande título em primeira página de 13/01/1970: o final dramático
do Biafra, acompanha uma insuportável foto de criança macilenta com
o seguinte comentário: "no olhar desta criança, toda a miséria dos
famintos". Esta propensão para mostrar o horror mais absoluto par-
ticipa em dois princípios: em primeiro lugar o de designar os vários

A guerra do Biafra: desinformação e manipulação dos média? Análise de quatro diários importantes... . Momar Mbaye A7
responsáveis por esta hecatombe; depois, despertar as consciências
amolecidas do Ocidente.

2.2. A responsabilidade das grandes potências e das


opiniões publicas

As grandes potências e as organizações internacionais, devido à sua


inépcia e à sua participação mais ou menos activa neste conflito, são
em primeiro lugar as responsáveis pelo terrível confronto. Este parece
ser o estado de espírito de numerosos jornais.
O La Croix, depois da derrota do Biafra, salienta em letras grandes
o título: guerra na Nigéria e responsabilidades internacionais
( 1 3 / 0 1 / 1 9 7 0 ) . Neste artigo, Lucien Gussard estigmatiza o mutismo
das potências. Este admite que as considerações políticas e económi-
cas orientaram o silêncio das nações poderosas. Mas à falta de cuida-
do destes países, devem acrescentar-se, conclui o autor, as carências
da organização internacional. Aliás, desde dia 7/08/1967, ou s e j a ,
p o u c o t e m p o d e p o i s do i n í c i o das h o s t i l i d a d e s , um é d i t o do
Le Monde fazia emergir o isolamento do Biafra na cena internacional.
A este isolamento, acresce o naufrágio. E o jornal apela, para fazer
face à situação, a uma reacção rápida que acabe com os erros, em
todo o caso partilhados pelos beligerantes, mas também e sobretu-
do, à necessidade de forçar as duas potências negociantes de armas
na Nigéria, a Grã-Bretanha e a URSS, a cancelar as suas entregas. O
diário de extrema esquerda abunda certamente no mesmo sentido,
ao criticar a obra dos grandes países, mas o seu propósito visa o in-
verso dos outros. Este acusa abertamente a implicação francesa na
duração e na crueldade da guerra.
Outro factor é frequentemente lembrado como sendo parte respon-
sável pelo naufrágio: a indiferença das opiniões ocidentais. São inúmeros,
de facto, os jornalistas que denunciam o silêncio egoísta no massacre
das populações biafrenses. Porém, as justificações apresentadas para
este distanciamento variam de um diário para o outro. Para o La Croix
de 16/09/1968, as opiniões ocidentais, em particular francesas, não
estão preocupadas com os infortúnios biafrenses devido aos média,
por um lado, e a homens políticos, por outro lado. Os primeiros desin-
teressaram-se pela Nigéria pelo facto de a leitura ideológica actual não
ser ali aplicável. Quanto aos políticos, estes permanecem tragicamente
enterrados numa abordagem da África completamente falseada.
François Debré (Le Monde, 13/01/1970) considera que o abandono
das opiniões ocidentais, defensoras dos direitos do homem e dos povos

46 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


em dispor de si próprios, contribuiu grandemente para a desmoraliza-
ção dos biafrenses, motivo final da derrota. Outros responsáveis foram
igualmente designados: estes são, entre outros, os líderes africanos e
o governo nigeriano.

2.3. As responsabilidades dos líderes africanos e de


Lagos

Desde o início, foram vários aqueles que viram uma repetição do


Katanga na secessão biafrense. Este conflito fratricida emergente no
Congo marcou profundamente as consciências africanas da época. E
o irredentismo dos igbos parece confundir-se com o de Tschombé, o
que explica a denúncia quase unânime por parte dos líderes africanos.
No Le Monde de 19/09/1968, o antigo director do centro CHEAAM
[Centre des Hautes Études Asiatiques etAfricaines Modernes) sublinha a
grande prudência dos presidentes africanos. Estes estariam, segundo
os jornalistas, tão aterrorizados com a idéia de assistir a uma revolta
desta natureza nos seus países, que adoptaram uma postura inflexível.
No entanto, diários como o La Croix consideram que ao adoptar esta
postura e, sobretudo, ao incitar a OUA e a ONU a proceder do mesmo
modo, os homens dos Estados africanos ficaram profundamente com-
prometidos com aquilo que designam doravante de genocídio.
Outro dos responsáveis é o governo de Lagos. Por várias vezes, este
apresenta-se sob uma aparência intransigente. Aliás, o título do Le
Monde a 19/08/1968 não esteve com rodeios no que concerne ao fra-
casso das negociações de Adis-Abeba. A mesma acusação é levantada
pelo La Croix, relativamente ao fracasso, aquando da cimeira da OUA,
em Setembro de 1968, em Argel. Deste modo. Lagos aparece muitas
vezes como um violento agressor, cujo objectivo principal não consiste,
de todo, em negociar, mas sim em levar o Biafra a cair, sem qualquer
outro procedimento. Porém, em vários artigos, dois factores primordi-
ais retornam a este conflito: a solução a adoptar e o papel do hexágono.

3. Soluções e papel da França


Durante todo o conflito e até à sua finalização, os jornalistas não
deixaram de esboçar soluções para a sua resolução. Estas foram, de
um modo geral, a favor do povo biafrense. Todavia, uma vez a derrota
consumada, foi um apelo à indulgência e à responsabilidade que foi
frequentemente dirigido ao governo federal.

A guerra do Biafra: desinformação e manipulação dos média? Análise de quatro diários importantes... . Momar Mbaye A7
3.1. As soluções

As razões geralmente invocadas para fornecer apoio à secessão


prendem-se com aquilo que os média consideraram como a bravura e
a determinação dos insurgentes.

3.1.1. Socorrer o corajoso povo biafrense

Em meados do ano de 1968, o país biafrense foi reduzido drasti-


camente, daí a alcunha que lhe é associada. Assiste-se, desde logo, à
produção de uma série de artigos exaltando a resistência do povo igbo,
a sua organização e sobretudo a ajuda substancial de que necessita:
Jacques Madole [cf Le Monde, 30/06/1968), numa tribuna intitulada
pelo Biafra, procura levar o povo francês a tomar consiência da ago-
nia de um povo seriamente necessitado de apoio. E, uma semana mais
tarde, Philippe Decraene, num texto com um título mais do que ilustra-
tivo: um para quatro, mencionava a grande determinação dos seces-
sionistas face à esmagadora superioridade militar dos federais. O Le
Figaro precipita-se no jogo com um artigo abertamente complacente.
Este apela ao auxílio de um povo corajoso certamente em aflição, mas
resistindo com todas as suas forças para conservar aquilo que lhe é
mais caro - a sua liberdade e a sua independência. O seu retrato do
general Ojukwu, representado de acordo com os traços de um homem
íntegro, discreto e escolhido pelo imenso povo biafrense para conduzi-
-lo à autodeterminação, participa desta lógica. Aliás, a apresentação do
antigo governador de Estado do sudeste pelo Le Monde, a VijQXIVòlÇi,
após a derrota, dá a conhecer um nacionalista, certamente ambicioso,
mas rigoroso e íntegro. Porém, somos tentados a afirmar que é o
jornal católico que fornece claramente as causas do apoio. Nas suas
edições de 11 e 12/09/1968, sob a autoria de Yves-Guy Berges, o La
Croix apela abertamente ao Ocidente para que participe na secessão,
uma vez que os igbos são os estandartes dos valores do Ocidente na Ni-
géria. Abandonar o Biafra seria equivalente a renegar os seus próprios
princípios. As numerosas reportagens do Le Monde, que admiram o gê-
nio extraordinário e a organização estatal do Biafra, participam neste
apelo [cf. Le Monde, 10/09/1968 e 08/05/1969).
No final do conflito, as preocupações foram outras. Doravante, já não
se trata de definir um novo funcionamento da federação nigeriana.

54 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


3.1.2. Repensar a federação

Na verdade, desde 1967, alguns artigos chamam a atenção para a


inadequação da guerra no que concerne ao regulamento das tensões
internas. No último capítulo da sua série de reportagens consagradas à
Nigéria, Philippe Decraene (cf. Le Monde, 23/11/1967] apela ao privilégio
da voz da razão. O autor preconiza uma partilha de esforços nos dois
campos. O Biafra deve, segundo lhe parece, renunciar ao separatismo
e favorecer a promoção de um homem menos marcado pela revolta, tal
como o Dr. Okpara, antigo primeiro-ministro de Estado do sudeste. Do
lado governamental, muita paciência deve ser posta em prática para
integrar os secessionistas. Em suma, as etnias minoritárias deveriam
ter mais representação para evitar a tripolarização étnica, vector das
realidades pronunciadas.
No La Croix de 15/01/1970, Antoine Wenger retorna à problemática
da unidade. Este considera que é necessário operar uma reformula-
ção da estrutura tradicional, uma vez que o país, tal como está, ainda
contém os germes intrínsecos do conflito. A sua observação dirige-se
também aos Africanos que consideravam que a guerra era apenas re-
sultado de manipulações imperialistas. Segundo a mesma ordem de
ideias, Jacques Madole, num artigo intitulado: para os vencidos, con-
traria o velho hábito da história que tende frequentemente a condenar
os vencidos. Este pretende que o sacrifício dos Igbos possa abrir os
olhos à comunidade humana e fazer com que as causas da revolta
sejam apagadas definitivamente.

3.2. Paris e o conflito

3.2.1. Uma política louvável

À semelhança das grandes potências mundiais, o papel da França


nesta crise biafrense terá mobilizado numerosos artigos. Estes, na sua
maioria, criticaram severamente a implicação da Inglaterra e da URSS,
cujo apoio ao poder central esteve na origem de catástrofes inauditas
no Biafra. Esta valorização das responsabilidades britânica e soviética
justifica-se pela necessidade de magnificar a acção da França. Esta foi,
segundo numerosos especialistas dos diários considerados, orienta-
da por meras preocupações humanitárias. Tal acontece no artigo de
•Pierre Limagne, no La Croix de 13/01/1970, segundo o qual o conflito
revelou os costumes políticos dos grandes países, cuja actuação per-
manece interessada e profundamente marcada pela cultura colonial.

A guerra do Biafra: desinformação e manipulação dos média? Análise de quatro diários importantes... . Momar Mbaye A7
E o jornalista considera que a França, que dispõe de uma reputação
excepcional no mundo inteiro, se distinguiu pela j u s t i ç a da sua
actuação, aliás, altamente apreciada no Biafra. Este ângulo de análise
é partilhado por Fhilippe Decraene no Le Monde de 1 3 / 0 9 / 1 9 6 8 . Este
demonstra, no seu documento, que a determinação francesa para aju-
dar o Biafra provém simplesmente de preocupações humanitárias e
diplomáticas. Isto porque, p e r a n t e o m á r t i r do Biafra, Paris não
podia permanecer insensível. Para além disso, a determinação dos
insurgentes é prova real do seu apego à liberdade e ao direito à auto-
determinação que Paris não poderia negligenciar. O jornalista afasta
prontamente as acusações errôneas de Lagos relativamente à defesa
de alguns interesses franceses. O mesmo demonstra, por forma a fun-
damentar o seu propósito, a extrema fragilidade dos investimentos
franceses na Nigéria.

3.2.2. Uma acusação indevida

Imediatamente após o ressurgimento da rebelião, o presidente


nigeriano, o general Gowon, decidiu punir alguns países pela sua par-
ticipação no auxílio prestado ã região em causa. Esta decisão de Lagos
acusa abertamente Paris de ter sido um dos principais conspiradores
do Biafra, e por conseguinte, o grande responsável pelo sangue der-
ramado em solo nigeriano. Situação pouco prestigiante para o país
dos "direitos do homem", que se vê asssim considerado equivalente a
outros países com reputação pouco invejável: Portugal, África do Sul e
Rodésia.
O jornal de extrema esquerda retoma, por sua vez, esta acusação
demonstrando a agitação dos franceses relativamente ao Gabão,
bastião do hexágono por excelência. Contudo, os outros jornais da
praça não fizeram eco à análise de I'Humanité. Consideram antes que
a acusação nigeriana é totalmente infundada. Deste modo, Le Figaro
afirma que uma tal decisão por parte do governo nigeriano encerra
objectivos muito pouco louváveis. Thierry Desjardins, num artigo do
1 5 / 0 1 / 1 9 7 0 do Figaro, considera que a exclusão da França se justi-
fica pelo desejo de Lagos em operar uma pacificação desejavelmente
sem testemunhas. O mesmo jornal persiste no mesmo sentido. E An-
dré Fossard, respondendo à acusação de colisão de Paris lançada por
um jornalista inglês imediatamente a seguir à guerra, considera que se
a França é culpada, não é de modo algum pelo facto de ter financiado
esta guerra, mas sobretudo por ter seguido posições irresponsáveis de
governos trabalhista e socialista que deixaram o massacre prolongar-se

56 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


em nome de princípios não declarados. Esta defesa do papel da França
emerge também no Le Monde de 16/01/1970, sob a autoria de JVIichel
Tatu:o jornalista insurge-se contra a acusação dirigida à França. Segun-
do este, os motivos evocados pelos Nigerianos são demasiado frágeis.
Porque não somente Paris jamais se entregou a dotar massivamente o
Biafra com armas, algo de resto confirmado pelo general Ojukwu, mas
também o seu reconhecimento nunca foi oficial. E a sua actuação ja-
mais foi mais do que humanitária. Ter-se-á constatado, nesta reflexão
acerca dos diários em torno do papel da França, que são inúmeros os
parâmetros a ter em conta. O contexto de guerra fria da época con-
tribui de algum modo para as conclusões do l'Humanité. A defesa
da pátria manchada e a velha rivalidade anglo-saxónica constituíram
motivações que não são negligenciáveis relativamente à compreensão
das observações do Le Monde e do Le Figaro.

Conclusão
No final desta análise, muitos factores são de salientar no que con-
cerne à cobertura dos acontecimentos nigerianos pelos diários tidos
em consideração. A larga implicação do Le Monde e do La Croix cor-
responde àquilo que deve ser salientado em primeiro lugar A multi-
plicidade de artigos consagrados ao acontecimento e a diversidade
de jornalistas que se dedicaram ao problema tornam públicas a sua
verdadeira preocupação. O Le Monde cumpre o seu papel de diário de
referência pela diversidade das suas temáticas e o seu objectivo de dar
cobertura ao mundo inteiro. Jornal de obediência religiosa, profunda-
mente agarrada às questões humanitárias, o La Croix não podia, por
força de alguns vestígios religiosos aplicáveis ao conflito, permanecer
indiferente ao drama. Quanto aos dois jornais de opinião que são o
Figaro e l'Humanité, estes foram sem dúvida influenciados pelas suas
respectivas ideologias. Fundamentalmente ancorada por detrás da
União Soviética e abertamente anticapitalista, o l'Humanité adoptou
frequentemente uma perspectiva de análise bastante interessante. Por
motivos quase similares, o Le Figaro, porta-estandarte da bandeira
do conservadorismo francês, apoio decisivo do governo federal, nem
sempre foi de uma sinceridade irrepreensível.
Para além disso, podemos também concluir a presente reflexão, a
propósito de uma eventual manipulação da imprensa francesa por
agentes pro-biafrenses, afirmar que os jornais mantiveram mais ou
menos a sua linha editorial tradicional. Mesmo que, de um modo geral,
o destino desastroso do Biafra tenha sido partilhado, não podemos

A guerra do Biafra: desinformação e manipulação dos média? Análise de quatro diários importantes... . Momar Mbaye A7
afirmar que se tenha tratado realmente de uma manipulação ou de uma
distorção proveninente de não se sabe que serviço secreto. Porque Le
Monde procurou de várias formas dar a entender o seu propósito.
Aquilo que se deve reter, definitivamente, é a ausência de distancia-
mento mais ou menos observada em praticamente todos os jornais,
o que se explica através de antolhos petrificados sobre o mundo e a
África e dos quais se demarcaram muito pouco.

Referências Bibliográficas
Os Jornais:
La Croix-, 0 6 / 0 8 / 1 9 6 8 ; 1 0 / 0 9 / 1 9 6 8 ; 1 1 / 0 9 / 1 9 6 8 ; 1 2 / 0 9 / 1 9 6 8 ; 1 9 / 0 9 / 1 9 6 8 ;
13/01/1970; 15/01/1970.
LeFigaro-, 18/11/1967; 09/09/1968; 13/01/1970; 14/01/1970; 15/01/1970.
L'Humanité-. 1 6 / 0 8 / 1 9 6 8 ; 1 3 / 0 1 / 1 9 7 0 ; 1 4 / 0 1 / 1 9 7 0 ; 1 6 / 0 1 / 1 9 7 0 .
Le Monde: 18/11/1967; 10/06/1968; 07/07/1968; 02/08/1968; 19/08/1968;
21/08/1968; 19/09/1968; 08/05/1969; 09/05/1969; 13/01/1970; 16/01/1970;
20/01/1970; 14/11^970.

As obras:
Boutet, R. ( 1 9 9 2 ] . "L'effroyable g u e r r e du Biafra" in Revue Afrique contemporaine-, vol.
n.2 14, Paris.
Glaser, A. e Smith, S. ( 2 0 0 5 ) . Comment la France a perdu l'Afrique. Paris: ed. Calmann-
-Lévy.
Sitbon, M. ( 1 9 9 8 ) . "Le Biafra oublié" in Un génocide sur la conscience-, Paris, pp. 4 0 - 4 8 .
Verschave, F-X. ( 1 9 9 9 ) . La France Afrique. Le plus long scandale de la république. Paris:
ed. Stock.

58 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


Francês/línguas africanas: colonização
linguística ontem e hoje, aqui e ali
Bernard Zongo'

Introdução
o título da comunicação pode suscitar, a alguns, um certo travo a vin-
gança ou sugerir, a outros, um eco de "dejà-entendu" devido à evidên-
cia deste termo historicamente situado e consensualmente conotado:
"colonização". Porém, é forçoso reconhecer-se, com Cheikh Anta Diop,
que a restauração da consciência histórica do homem negro, na sua
dimensão linguística no que nos concerne, constitui uma luta perma-
nente de tal modo os esforços são numerosos e persistentes, de tal
modo as instâncias de dominação jamais incorrem em falta de imagi-
nação para preservar o seu estatuto. E é precisamente a ligação que
necessitaremos estabelecer, entre a ideologia reivindicativa e reabilita-
dora do egiptólogo africano e o objectivo dos propósitos que terei em
consideração.
O meu colega Cheikh M'Backé Diop^ relembrava ontem, justa-
mente, o modo como os pseudo-científicos ou pseudo-humanistas
(Voltaire, Hegel, Gobineau, Bruhl, Hume], desde cedo, mas particu-
larmente no século XIX, se aplicaram a legitimar, no plano moral e
filosófico, a inferioridade intelectual decretada do Negro, e travestiram
os dados científicos para colocá-los ao serviço de uma ideologia de
submissão/dominação do negro; atrever-me-ia a dizer do homem
negro, mas para tal era necessário que o seu estatuto fosse reconhe-
cido. O âmbito da linguística não escapou a este trabalho de alienação,
de rejeição, de negação conceptualizada por linguistas e outros
pedagogos da escola africanista francesa, apoiada e incentivada por

1. Doutorado em Letras, Professor certificado em letras modernas, responsável de curso na Uni-


versidade de Rouen.
2. Cf. pp. 9 0 - 1 1 6 da presente obra.

Francês/línguas africanas: colonização linguística ontem e hoje, aqui e ali . BernardZongo 59


instituições nomeadas, como por diversão, de francófonas. Segundo
este ponto de vista, podemos afirmar que o conceito de francofonia é,
sem dúvida, a forma mais conseguida, devido à eficácia da sua acção,
bem como à subtileza das suas estratégias, da dominação colonialista,
cujas marcas ainda permanecem visíveis, por um lado, nas denomi-
nações frequentemente utilizadas pelos próprios Africanos: dialectos,
patoás vs línguas e, por outro lado, no estatuto dominante do francês
na África Negra francófona: língua oficial, língua de ensino, língua
da administração, língua do êxito profissional, etc. A minha intenção
consiste em demonstrar com que meios, com que estratégias, a antiga
potência colonial continuou a exercer a sua prevalência, a sua opera-
ção de alienação no âmbito linguístico, tanto em França como em Áfri-
ca, tanto ontem como hoje.
Para tal, contentar-me-ei com dois eixos no quadro restrito deste
colóquio, tendo em conta que, se existe um domínio a explorar - os es-
tudantes em linguística não terão escassez de temas de tese, tal como
lembrava o meu colega historiador Bwemba Bong^ - trata-se do da
colonização linguística levada a cabo pela escola africanista francesa:
1) linguística africanista e ideologia glotofágica, 2) política linguística
francesa e línguas minoritárias: ideologia do paradoxo.

1. Linguística africanista e ideologia glotofágica


Calvet [1974: 31) define aglotofagia nos seguintes termos: "as línguas
dos outros [mas por detrás das línguas visam-se as culturas, as comu-
nidades] existem apenas enquanto provas da superioridade das nossas,
vivem apenas negativamente, fósseis de um estádio volvido da nossa
própria evolução". Contextualizando esta definição no âmbito das rela-
ções francês/línguas africanas, o autor de Linguistique et colonialisme:
petit traité de glottophagie, precisa a propósito do termo glotófago: "O
primeiro antropófago veio da Europa, devorou o colonizado. E, no plano
particular que nos concerne, devorou as suas línguas". Veremos, de fac-
to, que toda a linguística africanista francesa carrega os germes de uma
ideologia glotofágica. Primeiramente em filigrana, disfarçada de missão
civilizadora, depois de maneira autoritária através deste conceito am-
bíguo de francofonia. A língua francesa foi imposta em detrimento da-
quilo que, num primeiro momento, foi designado de "dialectos e patoás",
e por força das circunstâncias, "línguas africanas". Isto porque, por detrás
das línguas, cujo estatuto científico se pretendeu negar, escondiam-se e
continuam a esconder-se as culturas e as comunidades que as praticam.

3. Cf. pp. 2 0 - 4 4 presente obra.

54 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


Por um questão de clareza da análise, passarei a descrever o processo
de glotofagia das línguas africanas pelo(s) francês/Franceses, adop-
tando um ponto de vista diacrónico, por forma a interrogar as balizas
mais significativas da história linguística africanista. Deste modo, é
possível distinguir quatro grandes períodos: 1] o período colonial e a
linguística "pragmática", segundo a expressão de Vincke ( 1 9 8 8 ) ; 2) o
período moderno (a partir de 1 9 4 5 ) ou o triunfo do formalismo e da
missão civilizadora; 3) os anos 60 ou a sociolinguística e as suas torpe-
zas; 4 ) por último, a partir dos anos 70 ou a diversão das instituições
francófonas.
No decorrer de todos estes períodos, as marcas da colonização lin-
guística surgirão sob diversas formas: a denominação linguística e a
redução das línguas africanas, a orientação temática da investigação
e as produções editoriais ocupadas pelos investigadores franceses, a
exclusão dos Africanos da investigação e das instâncias institucionais
de decisão, o estatuto e o corpus das línguas africanas, a hegemonia do
francês nas esferas da vida pública e a exclusão das línguas africanas
como ferramentas de educação e de desenvolvimento.

1.1. Período colonial: a chegada às colónias ou a lin-


guística "pragmática"

Podemos, a priori, ficar impressionados, no plano do corpus, pela


imensa riqueza de produções realizadas acerca daquilo que convinha
chamar de dialectos ou patoás africanos nesta época. Esta abundância
justifica-se pelo facto de "a preocupação dos primeiros africanistas,
viajantes, administradores, etnólogos, linguistas, consistir em reper-
toriar as populações habitando nos territórios que atravessavam e si-
multaneamente as línguas que falavam" (Thomas e Béhaghel, 1 9 8 0 :
23). Porém, as intenções que presidiam estas inciativas e a qualidade
dos escrevedores escondiam, no plano do estatuto, uma iniciativa
ideológica que se pode resumir à fórmula seguinte; "poder comuni-
car para melhor dominar". Note-se também que alguns destes inves-
tigadores de circunstância sem formação linguística avançavam o seu
prognóstico vital ou respondiam a injunções civilizadoras ou religiosas.
Os escrevedores e linguistas vão investir as grandes esferas geográfi-
cas que formam o puzzle do domínio imperial francês. Assim, a África
Ocidental é dominada pelos textos de Faidherbe ( 1 8 6 4 - 1 8 8 2 ) : vocabu-
laires et notes grammaticales du peul, du wolof, du sénère et du soninké),
de Gaden ( 1 9 0 8 - 1 9 3 5 : peul, baguirmien), de Cremer ( 1 9 1 9 - 1 9 2 4 : es-
quisses grammaticales et dictionnaire de peul, kassena et de manianka),

Francês/línguas africanas: colonização linguística ontem ehoje,aquie ali . BernardZongo 55


de Labouret ( 1 9 3 4 : description du manding). Acrescentar-se-ão outros
nomes: Tastevin, Abiven, Bazin, Delaforge, Senghor, Tauxier, Cheron,
Griaule, Leiris, Alexandre, Froger, Vieillard. A África Central, ainda que
abordada tardiamente, também conheceu o seu batalhão de linguis-
tas e de escrevedores: Gaudefroy Demombynes [vocabulaires et notes
sur les langues oubanguiennes, nilo-sahariennes et tchadiques), Bruel
( 1 9 1 0 : langue des Pygmées de la Sanga), Calloc'h ( 1 9 1 1 : vocabulaires
et esquisses grammaticales du ngbaka, du gbanzili, du mozombo et du
gbea], Tisserand ( 1 9 3 1 : dictionnaires des langues banda, grammaire
du banda "comum", dictionnaire sango véhiculaire), Eboué ( 1 9 3 3 : vo-
cabulaires de langues oubanguiennes). Na África Equatorial, reteremos
essencialmente os trabalhos de Eboué, de Gaudefroy-Combines, de
Lebeuf e de Mouchet. Porquê enumerar tantos nomes? Todos estes es-
critores partilham um objectivo comum: colocar os seus trabalhos ao
serviço da doutrina ideológica da época, isto é, a dominação e a explo-
ração. E é ao examinar o seu estatuto que descobrimos a finalidade dos
trabalhos descritivos das línguas africanas.
Podemos distinguir duas categorias de escrevedores. Primeira-
mente, os missionários e os administradores. Apesar de desprovidos
de formação linguística no que concerne à maior parte de entre eles,
estes realizaram contudo numerosas obras sobre as línguas africanas,
tal como vimos. As intenções eram evidentes e não necessitam de ser
mais explicitadas. A evangelização das populações devia passar por
uma aprendizagem e pelo domínio dos "dialectos" locais. A este respei-
to, estou aturdido (no sentido etimológico de ser atingido pelo trovão)
com o discurso de alguns intelectuais franco-borgonheses que pare-
cem prestar homenagem às capacidades inauditas destes pais brancos
que podiam aprender as línguas africanas em alguns meses, enquanto
que estes "blacks", depois de tantos anos em França apenas falam de-
sarticuladamente o francês. Estes intelectuais poderiam interrogar-se
sobre o nível de competência alcançado por esta aprendizagem acelerada
das línguas africanas, e melhor acerca das intenções desta iniciativa.
Relembramos, no que concerne aos mais antigos de entre nós, as mis-
sas pronunciadas em línguas africanas pelos padres brancos e os es-
forços sobre-humanos consentidos pelos fiéis aficanos, não sem uma
certa indulgência, para ouvir a mensagem evangélica.
A administração colonial, por sua vez, precisava de conhecer melhor
os meios de comunicação das populações para um maior rendimento
das explorações. E quando a escola francesa foi instalada nas colónias,
o objectivo não era, longe disso, formar as elites na perspectiva de uma
hipotética autogestão ulterior, mas sim implementar uma reserva de
onde sairiam coortes de intérpretes. As descrições linguísticas também não

62 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


tinham por objectivo valorizar ou proteger as línguas africanas. A ex-
periência de Jean Dard é suficiente para demonstrá-lo. Este foi o inicia-
dor da escola francesa na África Negra francófona, mais precisamente
em Saint-Louis, no Senegal. Foi em 1817. O seu ensino baseava-se nas
línguas nacionais e propunha, assim, uma pedagogia bilingue wolof-
-francês. Esta experiência de valorização das línguas africanas viria a
ser suprimida pelas autoridades coloniais e Jean Dard enviado para
a metrópole. Motivo: segundo o antigo inspector-geral Charton, a su-
pressão do método bilingue justifica-se porque "as colónias da África
Negra não possuem, como na Indochina e na Argélia, uma língua de
civilização, inspiradora de cultura e de educação. A África Negra é um
caos linguístico" (citado por H. Nacuzon Sall - no capítulo 2 da sua
tese). Os intelectuais e escritores africanos formados na escola colonial
servem, com frequência, de garantia à ideologia colonialista para apre-
goar os benefícios da colonização. Na verdade, estes Africanos vence-
ram em primeiro lugar pelo seu trabalho, pela sua inteligência e pela
sua capacidade de se adaptar aos constrangimentos coloniais. Quantos
destes autores foram reconhecidos pelas instituições literárias france-
sas? Muito poucos. Não foi Sembène Ousmane suspeito de plágio na
publicação do seu romance Les Bouts de bois de Dieu? Quantos escri-
tores africanos foram reconhecidos como incapazes de ter escrito os
seus próprios textos? Estes são numerosos.
Os linguistas "de formação", quanto a eles, segundo Thomas e Béhagel
( 1 9 8 0 : 1 4 ) encontravam em África uma terra virgem para confortar as
teorias da gramática comparada, então em expansão na Europa (teo-
ria das línguas indo-europeias). É o caso de Delafosse ( 1 8 9 4 - 1 9 2 9 ) ,
autor de notes et esquisses grammaticales de plusieurs langues (agni,
wolof, ewe, sara), mas sobretudo autor de uma vasta comparação das
línguas kwa, que culminará com a obra: Esquisse générale des langues
d'Afrique. Citaremos também Homburger, que prosseguiu o trabalho de
Delafosse com um alargamento da comparação das línguas oeste-afri-
canas ao bantu, e às línguas nilóticas para concluir a hipótese seguinte:
o parentesco do conjunto das línguas africanas, cuja origem se situa
no domínio drávida, por intermédio do egípcio. Esta hipótese que nos
leva a Cheikh Anta Diop e a Théophile Obenga, jamais será, de certa
forma, retomada pelos linguistas africanistas franceses. Relembro que
Homburger, uma vez que o seu nome não o indica, é um alemão de
formação anglo-saxónica.
Porém, estes linguistas formados segundo a gramática tradicional -
a da norma - não dispõem de um verdadeiro método para efectuar
descrições científicas de novas falas. É assim, por exemplo, que con-
trariamente aos seus colegas alemães ou ingleses de formação filológica.

Francês/línguas africanas: colonização linguística ontem e hoje, aqui e ali . BernardZongo 63


ou até mesmo contrariamente aos linguistas franceses da Ásia, os lin-
guistas franceses da África Negra estabeleceram descrições das lín-
guas africanas ocultando os tons (aspecto, sem dúvida, de mais difícil
acesso). Ora, sabemos por um lado, que uma grande parte das falas
africanas são falas de tons, por outro lado porque estes tons constituem
traços distintivos que não podem ser negligenciados. Exemplo signifi-
cativo em língua more: segundo a colocação dos modelos tonais, o
lexema "saaga" muda de sentido: sáagá "a chuva", sáagà "uma vassou-
ra", sãagá "negoceia (imperativo)", saagá "acaricia-o" (Zongo, 2 0 0 4 ) .
Desta forma, no total, e para esta primeira vaga de ecrevedores e
colectores de circunstância, podemos afirmar com Kazadi (1991), que
as descrições linguísticas "visavam antes de mais facilitar a comuni-
cação, para conhecer os povos a civilizar". O período que se segue uti-
lizará outros métodos, mas para as mesmas finalidades de glotofagia.

1.2. Período moderno: triunfo do formalismo e missão


civilizadora a partir de 1 9 4 5

Este período apresenta uma dupla característica relativamente à


precedente: os investigadores, desta vez, são linguistas confirmados
e o contexto científico está dominado pelo formalismo em linguística.
É a época da recolha sistemática dos materiais linguísticos, da sua
descrição e da sua classificação em famílias de línguas.
Para ter sucesso nestes três projectos ambiciosos, vários organis-
mos especializados franceses que integram estudos africanistas, bem
como cargos de ensino e de investigações serão criados, sempre com
o mesmo ponto comum: a quase ausência de linguistas africanos nos
grupos de investigação e nas publicações. Entre os organismos espe-
cializados, podemos citar o Instituto Francês da África Negra (IFAN -
1 9 3 8 - 1 9 6 5 ) , cujo promotor foi Théodor Monod. O Instituto de Estudos
Centro-Áfricanos (lEC), o ORSTOM (Organismo da investigação cientí-
fica e técnica de Ultramar). A estes institutos acrescem ligações com o
CNRS. A partir de 1965, assiste-se a uma mudança de perspectiva. É
a sistematização e a planificação da investigação via CNRS (RCP 1 2 1
Investigação cooperativa por programa - ER 74 Equipa de investiga-
ção - GR 32 Grupo de investigação - departamento África do LP 3 - 1 2 1
Laboratório Próprio) e o ORSTOM (Centro de estudos das tradições
orais; Centro de Estudos Africanos da EHESS: V. Gõrõg-Karady; línguas
da África Central: JMC Thomas; línguas da África de Leste: J. Tubiana;
ER 2 4 6 estudo das línguas e literaturas do Sudão e do Sahel ocidentais:
PF Lacroix e G. Calame-Griaule.)

58 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


Os trabalhos são confrontados com problemas de metodologia de
descrição e de análise das línguas de tradição oral. Isto não impede
que os investigadores continuem o seu empreedimento. Estando os
organismos criados, só faltava espalharem-se pelo continente (sem
dúvida assinalado em 1 8 8 5 ) em zonas de especialidades para impor
uma visão unívoca das línguas africanas:
- Senegal: no âmbito da Acção Temática Programada (G. Ducos),
cobertura lingüística e toponímia;
- África Central: Instituto nacional das Ciências humanas e a Univer-
sidade do Tchade: Jean-Pierre Caprile - i4t/as Pratique do Tchad-,
- Costa do Marfim: no âmbito do Instituto de Lingüística Aplicada.

Os trabalhos de inventários e de atlas culminarão no estabelecimento


de três grandes famílias de línguas, inspiradas nas quatro famílias de
línguas descritas por Greenberg ( 1 9 6 4 ) : Família I: congo-kordofani-
ana (nigero-congolesas, mandé, gur-voltaico, kwa, benue-congolesas,
andamawa-ubangui; Família II: nilo-saariana songhai, saariana, maba,
chari-Nilo, etc. Família III: afro-asiática (cuchitica, tchádica, etc.).
As sucessivas investigações apenas levarão à rejeição desta classifi-
cação que foi, no entanto, a base de referência para a descrição e para o
ensino das línguas africanas na escola africanista francesa. Diki-Kidiri
(2000), retomando a classificação quase consensual das línguas afri-
canas, descreve quatro grandes famílias de línguas:
1. a família das línguas Nigero-Congolesas;
2. a família das línguas Oeste-Atlântico;
3. a família das línguas Afro-Asiáticas;
4. a família das línguas Khoisan.

Obenga (1993), baseando-se nos dados adquiridos da egiptologia,


estabeleceu a classificação sem dúvida mais cientificamente funda-
mentada. Este distingue três grandes famílias: o negro-egípcio, o
berbere, o khoisan. Mas esta classificação não somente foi ignorada
pelos lingüistas do Norte, como também foi criticada, reposta em cau-
sa, considerada sem interesse científico - supostamente pelo facto de
o autor não ter tido em conta os trabalhos ocidentais.
Neste ponto, os signos da dominação lingüística, da colonização pura
e simplesmente, apresentam-se sob os seguites aspectos:

O ensino das línguas africanas nas universidades e institutos de inves-


tigação é garantido por africanistas franceses.
Criação de unidades curriculares de "línguas africanas"
- na Escola Nacional das Línguas Orientais Vivas (ENLOV): o fula;

Francês/línguas africanas: colonização linguística ontem e hoje, aqui e ali . BernardZongo 65


- a partir de 1960, o ensino das línguas bantus é assegurado por
Pierre Alexandre no INALCO (Paris III], o fula por P-F. Lacroix, o hau-
sa por Claude Gouffe. As línguas mandé são ensinadas por M. Houis,
Director de estudos na EPHE, etc.

A direcção dos trabalhos e das teses é assegurada igualmente por


Franceses
Pierre Alexandre (professor, INALCO, Paris III], Pierre Bance (pro-
fessor, Lyon II], Fernand Bentolila (MdC, Paris V], Luc Bouquiaux
(Mestre de investigação, CNRS], Guy Bourquin (professor, Nancy II],
Geneviève Calame-Griaule (Director de investigação, CNRS], Gaston
Canu (professor. Paris VII], Louise Dabène (professora, Grenoble III),
René Etiemble (professor honorário, Sorbonne Nouvelle, Paris III).
Frédéric François (professor. Paris V), Gabriel Manessy (professor,
Nice], André Martinet (professor honorário. Paris V], etc.
Todos estes professores, instrutores, mestres de investigação fran-
ceses asseguraram a formação de várias gerações de linguistas e socio-
linguistas africanos e franceses, mas com base em que conhecimentos
reais das línguas africanas, se não as dos trabalhos descritivos e clas-
sificativos arbitrários que, mais tarde, várias investigações levadas a
cabo pelos próprios Africanos viriam a pôr em causa?! Assistiremos
posteriormente à vingança dos linguistas africanos, aquando da cria-
ção dos famosos centros de linguística aplicada e das Mesas-Redondas
destes mesmos centros. Porém, o outro aspecto da colonização lin-
guística reenvia para o combate editorial.
Combate editorial: o exemplo das Bibiografias da SELAF (Sociedade
de estudos linguísticos e antropológicos de França).
É surpreendente o facto de não se ver quase nenhum nome africano
surgir nas publicações da SELAF de 1967 a 1980, quando o nome dos
linguistas franceses formados durante o mesmo período, pelos mes-
mos professores, predominam nas listas de publicação. Terão aqueles
sido menos produtivos que os seus congéneres franceses? Estamos em
posição de duvidar.
Porém, a que lógica respondia este gosto pela descrição das línguas
africanas por parte dos linguistas franceses? A resposta é a seguinte:
"descrever línguas em risco de extinção segundo a filosofoa civiliza-
dora colonial" - Relembremos o objectivo primeiro da ENLOV (futuro
INALCO) nesta época:

... destinava-se a familiarizar, com algumas línguas africanas de grande exten-


são (lingala, swahili, bambara), futuros falantes destas línguas (administra-
dores, militares, missionários, etc.) que tivessem de se deslocar para a África

66 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


Negra e ali permanecer para as suas actividades [...] [Thomas e Béhagel,
1980: 56).

Torna-se evidente que as finalidades da investigação linguística estão


relacionadas com a ideologia colonial de dominação, e não respondem
em nada ã preocupação de preservar ou valorizar as línguas africanas.
Paralelamente às descrições das línguas e dos dialectos africanos,
a escola africanista francesa também se preocupou, adaptando-se ao
contexto científico geral, com outro aspecto da linguística: a dialéctica
do francês em África. Trata-se do início da era da sociolinguística.

1.3. A sociolinguística e as suas torpezas: os anos 60

Os anos sessenta foram marcados, no plano científico, pela fragiliza-


ção do formalismo, bem como pela emergência da linguística contras-
tiva, favorecida pelo desenvolvimento da psicolinguística por um lado,
e, por outro lado, pela necessidade de uma melhor implementação do
francês face às línguas africanas, doravante consideradas como obs-
táculos à aprendizagem do francês. Foi deste modo que, a partir dos
anos 60, foram criados centros de linguística aplicada. Entramos as-
sim na era das interferências linguísticas. Mesmo se as denominações
variam segundo os países e as universidades (o CLAD em Dakar, 1963;
o ILA no Abidjan, 1966; o CELTA em Kinshasa, 1971), o objectivo era
o mesmo, tal como relembra Kazadi ( 1 9 9 1 : 158): tratava-se de levar a
cabo "análises contrastivas" ao serviço da "necessidade de explicar e
de corrigir os "erros" através da especificação das dificuldades encon-
tradas pelo locutor de língua diferente, em situação de aprendizagem".
Os temas de investigação definidos, bem como as publicações que as
sustentam e propagam, confirmam esta orientação:
- Os temas: análises contrastivas francês/línguas africanas, situa-
ções de uso das línguas, expansão das línguas, políticas e práticas
linguísticas, dificuldades de aprendizagem da língua-alvo, etc.
- publicações. Calvet, 1964, Le français parlé, étude phonétique, in-
terférences du phonétisme wolofi Thiriet, 1964, .4 travers quelques ca-
hiers d'orthographes d'élèves peuls) Thiriet, 1965, Le français écrit de
quelques élèves Bambara/Mali] Calvet e Dumont, 1967, Interférences
du wolof dans le français des élèves sénégalais. Uma publicação em-
blemática que ilustra a submissão das línguas africanas às regras e à
omnipotência do francês é, indubitavelmente, o livro de Jean-Pierre
Makouta-Mboukou: Le français en Afrique noire.

Francês/línguas africanas: colonização linguística ontem e hoje, aqui e ali . BernardZongo 67


Eu próprio demonstrei - na minha tese de DEA em primeiro lugar,
depois por ocasião de outros artigos, e mais recentemente em 2004-
-2005, numa pequena obra intitulada Perles d'étudiants, que não en-
controu editor até ao momento - até que ponto esta hipótese interferen-
cial era falsa na medida em que os famosos erros só eram explicados
através da invocação do substrato linguístico africano dos alunos, ao
passo que o francês, devido às suas próprias contradições gramaticais
e lexicais, constitui uma fonte de interferências já não interlinguísti-
cas, mas intralinguísticas.
O próprio princípio de oposição entre o francês e as línguas africanas
revela a diferença de estatuto entre estas duas entidades linguísticas
(no plano geopolítico encontramos o mesmo princípio de subordina-
ção: cimeira França/África) que terão consequências dramáticas para
as línguas africanas e para os seus locutores. A língua-alvo, aquela que
deve ser atingida, dominada, é de facto o francês, ainda que se tenha de
renegar a língua materna, agora considerada como um obstáculo para
a aprendizagem do francês. Sabemos até que ponto o francês usufrui
de um imenso prestígio nas sociedades africanas francófonas pelo
facto de ser visto, e através dele a escola, como único e exclusivo as-
censor social, como único e exclusivo meio de triunfar na vida profis-
sional. Neste sentido, a instituição escolar, regida pelo seu corpo de
inspectores franceses, recorrerá a todos os meios para convencer os
Africanos da inutilidade das suas línguas e da necessidade de aprender
e de dominar um francês que a própria maioria da população hexago-
nal ignora (o francês literário), mesmo tendo que passar por humilha-
ções (anedota do símbolo) e correcções corporais. Deste ponto de vis-
ta, Bretões e Alsacianos identificar-se-ão com o tratamento infligido
aos pequenos Africanos.
Um outro aspecto da ideologia glotofágica da França pode ser anali-
sado através do tratamento reservado aos linguistas africanos no âm-
bito das instituições estabelecidas por este conceito ambíguo que é a
francofonia, isto, a partir dos anos 70.

1.4. A partir dos anos 70: instituições francófonas ao


serviço da expansão do francês

Anos faustos, sem dúvida, para a França que procurará relançar o de-
safio da francofonia através da criação de um número impressionante
de instituições. Anos de frustração para os Africanos, que esperavam
encontrar neste quadro institucional, segundo a profecia de Senghor,
"um lugar para dar e receber" e que afinal se contentarão em constatar

68 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


a sua impotência face a uma máquina criada para dominar ainda mais.
Note-se que a francofonia carrega os germes da sua ambição domi-
nadora e glotofágica desde a sua criação por Onésime Reclus
[ 1 8 3 7 - 1 9 1 6 , nascido em Orthez, no seio de uma família protestante
de Béarn, cujo pai era pastor). Reclus forja o termo por volta de 1880,
no âmbito da sua reflexão acerca do destino colonial francês e afirma
de modo emblemático: logo que uma língua tenha "coagulado" um
povo, todos os elementos "raciais" desse povo subordinam-se a esta
língua. Foi neste sentido que se afirmou que a língua faz o povo [língua
gentemfacít-Redus, 1917). As instituições francófonas, mas também
aqueles que são designados de "pais fundadores" [Bourguiba, Diori,
mas sobretudo Senghor, o homem da "commonwealth à francesa") da
francofonia adoptarão esta ideologia do francês "língua universal" para
alguns, "língua do pensamento lógico" para outros. Porém, insistire-
mos apenas nas instituições: AUPELF, ACCT, CILF [Conselho interna-
cional da língua francesa), UREF. Segundo Maurice Étienne Beutler
[Secretário geral da AUPELF) e o Professor Michel Guillou [Delegado
geral da UREF) em 1988, estas instituições respondem à "importância
cada vez mais crescente da procura geral em matéria de conhecimento
do francês, do estudo das suas normas locais em contexto multilin-
guístico, de abordagens e aplicações pedagógicas necessárias para o
seu ensino". Resta saber de onde provém esta procura!
Duas posições glotopolíticas antagonistas confrontam-se nestas
instituições: por um lado, a preocupação com um enraizamento melhor,
com uma maior difusão do francês em África, apoiada pelos decisores
e linguistas do Norte; por outro lado, a preocupação em colocar no
centro das investigações as línguas africanas, simultaneamente en-
quanto ferramentas para o desenvolvimento económico e educativo
apoiado, como é evidente, pelos linguistas africanos, quando estes
eram convidados a tomar parte nas reuniões internacionais. Os segun-
dos, desprovidos de meios económicos e poder de decisão, tiveram de
obedecer aos primeiros. Esta dominação é visível a vários níveis.
A AUPELF - Associação das universidades parcial ou inteiramente
de língua francesa - foi criada em 1961, em Montreal, sob instigação
de activistas quebequenses, com o objectivo de desenvolver o relacio-
namento e a informação entre as universidades francófonas, promover
o diálogo das culturas e os estudos franceses, a pedagogia universi-
tária e a educação permanente.
Veremos que as acções levadas a cabo sob o patronato da AUPELF
se afastam dos objectivos mencionados, e não têm outra finalidade
que não seja estudar os meios para uma melhor dominação dos países
francófonos do Sul.

Francês/línguas africanas: colonização linguística ontem e hoje, aqui e ali . Bernard Zongo 69
Primeiramente, as mesas-redondas dos centros, departamen-
tos e institutos de linguística aplicada da África Negra, organizados
sob a égide da AUPELF, visavam, supostamente, constituir pontos de
"reaproximação dos linguistas africanos da sua organização, para a
promoção das investigações sociolinguísticas, bem como para a
formação de uma visão comum, nos linguistas, da problemática das
línguas em África."
No entanto, estes encontros revelarão as verdaderias intenções do
papel desempenhado por esta instituição, tal como Kazadi [ 1 9 9 1 : 1 6 2 )
demonstra, pelo menos durante as três primeiras mesas-redondas:
"Os trabalhos das três mesas-redondas sucessivas - que se afiguravam
cada vez mais como um Clube aos olhos dos Africanos - só diziam
respeito ao francês e só reuniam, no solo africano, linguistas do Norte".
Portanto, eis aqui os Africanos excluídos de um debate que concerne,
não somente ao francês e às línguas africanas, mas que tem lugar no
solo africano. Paradoxo significativo.
Os Africanos serão convidados para as mesas-redondas a partir da
IV- sessão, no momento em que a França constata, graças a inquéri-
tos, a diminuição do nível dos conhecimentos de francês nos alunos
africanos. A escola à francesa toma então consciência da necessidade
de um ensino das línguas africanas ao longo dos primeiros anos de es-
colaridade, a fim de preparar terreno para uma melhor aprendizagem
do francês. Deste modo, mais de um século posteriormente, a insti-
tuição escolar francesa aceita hipoteticamente a validade do método
pedagógico que Jean Dard tinha implementado a partir de 1817, em
Dakar: aprender o francês baseando-se nos conhecimentos adquiridos
da língua materna. Em todo o caso, mesmo que as línguas africanas
tivessem de ser ensinadas, esta instrução apenas teria um objectivo:
tornar os pequenos cérebros africanos disponíveis para melhor domi-
nar o francês.
Porém, podemos também demonstrar a intenção dominadora das
acções da AUPELF examinando os temas de investigação propostos à
margem destas famosas mesas-redondas, bem como os trabalhos re-
sultantes. Contentar-me-ei com o famoso projecto de elaboração de
um dicionário do francês da África, outro dos avatares do processo
glotofágico da escola linguística francesa. O projecto desenvolve-se
em três momentos: inventário das particularidades lexicais por país,
agregação dos inventários e concretização, no seio da equipa IFA, sob o
título: Inventaire des particularités lexicales du/rançais en Afrique noire
(paradoxo dos trabalhos intermédios e o título definitivo "francês da
África Negra" vs "francês na África Negra"), projecto de realização de
um Dictionnaire universel francophone. Os trabalhos da equipa IFA
(inventários regionais e resultado final).

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


- A equipa que trabalhou no projecto é essencialmente composta
por linguistas franceses; pelo menos, é aquilo que mostra a lista
dos redactores no documento final publicado. O projecto é apoiado
por instituições francesas ou belgas: ACCT, LASLA (Laboratório de
Análise Estatística das Línguas Antigas], Ministério da Educação
nacional da Bélgica, Secretariado de Estado para a Cooperação da
Bélgica, etc.
- As publicações intermediárias por país são assinadas por linguistas
franceses, enquanto que a lista dos "colaboradores" salienta nomes
de linguistas africanos. Ademais, estas investigações são levadas a
cabo no seio de universidades africanas:
Laurent Duponchel: Dictionnaire du français de Côte d'Ivoire (1975).
Suzanne Lafage: Dictionnaires des particularités lexicales du français
au Togo et au Dahomey (1975).
Jean-Pierra Caprile: Premier inventaire des particularités lexicales du
français parlé au Tchad (1978).
Jacques Blondé, Pierre Dumont, Dominique Gontier: Particularités
lexicales du français au Sénégal (1979).
Ambroise Queffelec: Dictionnaire des particularités du Niger (1978).

- Se seguirmos os autores de L'Inventaire des particularités lexicales


d'Afrique noire, esta obra teria por objectivo contribuir para apre-
ender melhor "os problemas de plurilinguismo e de contacto entre
as línguas". Porém, ninguém levantou a questão da utilidade destas
investigações para os principais interessados, os Africanos, nem do
ponto de vista educativo, e muito menos económico. Na verdade,
as investigações levadas a cabo no âmbito da IFA respondiam a um
fenómeno de moda, a um contexto científico dominante: a análise
dos dialectos regionais em França, uma iniciativa lançada por Pierre
Guiraud aquando da reunião da AUPELF em Montreal, em 1967. Este
tinha sugerido a ideia de criar um "centro de investigações para o
estudo dos dialectos franceses (em França e no exterior desta)",
durante o colóquio de Nice, em 1968, no seio do Centro de estudos
das relações interétnicas (transformado no IDERIC, em 1 9 7 8 ) . Os
Africanos acabarão por reforçar a sua posição relativamente a todos
estes projectos, que, afinal, lhes diziam respeito directamente.
- O ponto de vista dos linguistas africanos.

Foi, em primeiro lugar, nas 4.^ a 5.- mesas-redondas dos Centros de


linguística aplicada a propósito, por um lado, do projecto IFA e, por
outro lado, da colocação entre parênteses das línguas nacionais, bem
como dos seus papéis na educação e no desenvolvimento.

Francês/línguas africanas: colonização linguística ontem e hoje, aqui e ali . Bernard Zongo 71
A 4.2 mesa-redonda que teve lugar em Dakar de 14 a 17 de Março de
1 9 7 9 acerca do tema: "Esclarecer a problemática da introdução das
línguas nacionais, quer na escola, quer na vida social" vê uma partici-
pação massiva dos linguistas africanos que começam a contestar a na-
tureza e os objectivos perseguidos pelas mesas-redondas. A 5.-, que
teve lugar em Yaoundé, em 1982, acerca do tema "Desenvolvimento de
uma reflexão sistemática acerca da utilização das línguas nacionais na
vida nacional", esteve perto de ser, segundo Kazadi, "a Mesa-Redonda
de ruptura, a da morte do pai". Com efeito, os linguistas africanos en-
contravam-se no dever de contestar a pertinência e a qualidade dos
trabalhos daqueles mesmo que tinham sido, alguns anos antes, os
seus orientadores de tese. Os linguistas africanos consideravam, justa-
mente, que estas mesas-redondas não consagravam nem espaço, nem
meios suficientes às línguas africanas.
Com perseverança e atrevimento, estes conseguiram obter a imple-
mentação de um programa intitulado PELA: Programa para o Ensino
das Línguas Africanas. Os linguistas franceses exigiram uma mudança
no conteúdo deste anacronismo, e passou-se de "Ensino das línguas
africanas" para "Ensino das línguas em África". Era já um sinal prenun-
ciador do fracasso de um tal projecto, que não parecia servir a causa
do francês. O objectivo assumido pelos linguistas e professores africa-
nos no PELA não correspondia às expectativas das instituições francó-
fonas e linguistas franceses, a saber: "levar os seus países à integração
total das línguas africanas, enquanto matéria e veículo de aprendiza-
gem, nos sistemas educativos". De forma totalmente desleal, aquando
do colóquio do CILF, Daniel Latin (responsável pela missão na AUPELF
- divisão regional de Dakar] afirmava "sete anos depois da criação do
PELA, os seus trabalhos nunca ultrapassaram o plano da reflexão
esclarecida acerca dos objectivos que o mesmo tinha fixado".
A verdade encontra-se noutro lado. Não somente este projecto tinha
atingido um nível de organização extremamente avançado: criação
de estruturas - DIDACT = didáctica das línguas nacionais, ANADIL =
Ateliês nacionais de didáctica das línguas, SIR = estágios inter-africanos
relativos para a formação de formadores em línguas africanas, TYPO
= tipologia permitindo elaborar uma grelha de avaliação dos manuais
escolares a partir das experiências didácticas levadas a cabo nos dife-
rentes países - mas, para além disso, os linguistas africanos tinham-no
inscrito numa filosofia geral: a reabilitação das línguas nacionais.
A verdadeira causa do fracasso do projecto PELA é esta, tal como
escreve Kazadi ( 1 9 9 1 : 163]:

... não dispondo de meios próprios, a instância desejada pelos linguistas


africanos terá visto a sua acção bloqueada pelas reticências da ACCT em

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


endossar aquilo que esta considerava como uma criação da AUPELF, e pela
desconfiança desta última, que não tinha deixado de ver ali uma certa ameaça.

Estas duas causas foram, como é evidente, reforçadas pelo facto de


o comité de coordenação do PELA ser composto unicamente por
linguistas africanos.
O golpe final, que dizia respeito às pretensões dos linguistas africa-
nos em integrar as suas línguas no sistema educativo, chegará com a
criação, em 1988, da UREF (Universidade de Recursos de Expressão
Francesa). Com efeito, o programa implementado em 1 9 8 9 nem se-
quer menciona as línguas africanas.
Relativamente ao projecto IFA, os linguistas africanos não deixaram,
durante as 4.- e 5.- mesas-redondas dos centros linguísticos, de expri-
mir as suas preocupações, bem como a sua recusa em aderir a um
projecto cuja utilidade não apreendiam, do qual são excluídos, e, so-
bretudo, um projecto cuja finalidade consistiria em tratá-los enquanto
filhos crescidos da francofonia, aqueles a quem se reconhece simpati-
camente uma certa linguagem infantil, uma espécie de oficialização do
"negrinho". Para a maioria dos linguistas africanos e alguns franceses,
os particularismos extraídos no contexto africano devem simples-
mente integrar o Trésor général de la langue française. Le Dictionaire
Bordas du français vivant procedeu desta forma ao integrar belgicis-
mos, helvetismos e outros canadianismos. Por que motivo é que os
africanismos seriam objecto de um inventário particular?
Porém, tal como se esperava, os Africanos podiam continuar a protestar;
não somente o IFA publicou o seu Inventaire des particularités lexicales
d'Afrique noire, como, em 1991, o projecto IFA atingia o seu objectivo
derradeiro com a publicação do Dictionnaire universel francophone.
Um Dictionnaire universel francophone, destinado, tal como é indicado
na introdução, aos "alunos francófonos da África Negra", enquanto
ferramenta linguística e enciclopédica "cultural e pedagogicamente
adaptado às suas necessidades".
Esta política de glotofagia e de colonização levada a cabo em África
e na universidade francesa, terá repercussões na política linguística
francesa das línguas minoritárias em França.

2. Política linguística francesa e línguas minori-


tárias: ideologia do paradoxo
A política linguística francesa perante as línguas minoritárias presen-
tes no território francês constitui a continuidade do desprezo sempre

Francês/línguas africanas: colonização linguística ontem e hoje, aqui e ali . Bernard Zongo 73
manifesto face às línguas africanas. Porém, confrontada com as reivin-
dicações dos defensores das línguas regionais francesas, esta política
vê-se forçada a desenvolver um compromisso que é nada mais do que
uma política do paradoxo. Como estigmatizar as línguas de imigração,
defendendo simultaneamente as línguas regionais, quando a consti-
tuição apenas reconhece o francês enquanto língua oficial e única da
nação? Analisaremos primeiramente a natureza das relações entre a
política linguística francesa e as línguas aficanas, antes de demonstrar
que a rejeição das línguas africanas passa igualmente por uma con-
cepção ideológica do bilinguismo francês/línguas africanas através do
relatório preliminar Bénisti.

2.1. As línguas africanas em França e a política linguísti-


ca francesa

2 . 1 . 1 . As línguas de i m i g r a ç ã o e m F r a n ç a

Segundo as estimativas do INSEE, a França, em 1 9 9 0 , contava com


uma população total de cinquenta e cinco milhões de habitantes. Prati-
camente não existem dados completos e detalhados acerca das línguas
estrangeiras utilizadas em França, bem como acerca das característi-
cas das comunidades locutoras destas línguas. As únicas informações
de que podemos dispor são aquelas que são fornecidas - de modo par-
cial - pelos centros de alfabetização. Na sua remessa de Fevereiro de
2 0 0 2 [online), a revista Population etSociétés, estudando "A dinâmica
das línguas em França ao longo do século XX", estabelece uma lista
no mínimo parcelar das "línguas de imigração". De facto, apenas são
citadas - no que concerne às línguas africanas - o fula, o wolof, o serer,
as línguas bantus, às quais se acresce uma categoria globalizante: "outras
línguas de África". Podemos atrever-nos, por forma a coincidir em
certa medida com a realidade, a afirmar que existem, no mínimo, tan-
tas línguas quanto nacionalidades; mesmo sabendo, para além disso,
que nem todos os locutores arabófonos, por exemplo, falam o mesmo
árabe. Segundo Heredia-Deprez ( 1 9 9 4 ) , as principais línguas mater-
nas faladas pelos imigrantes são: os árabes dialectais, o português, o
espanhol, o italiano, os berberes, o bambara, o sarakolé, o turco e o
servo-croata (P. 4 1 ) . Como é que, do ponto de vista político, a França
gere a sua diversidade, para não dizer o seu multilinguismo?

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


2 . 1 . 2 . A política linguística f r a n c e s a

Bourhis ( 1 9 9 4 b ] descreve dois níveis de elaboração das políticas


linguísticas: um nível implícito quando estas são "resultado das lutas
de poder entre os grupos de forte e fraca vitalidade etnolinguística"
(veremos o caso dos bairros de Belleville e de Barbès], um nível ex-
plícito quando estas políticas linguísticas resultam de decisões insti-
tucionais que tendem a legislar sobre o "estatuto relativo das línguas
num dado território". O mesmo autor identifica três formas de política
linguística que os grupos dominantes são susceptíveis de impor aos
grupos dominados; estas formas situam-se numa linha que vai do
"pluralismo" à "ideologia etnista", passando pelas "ideologias cívica
e assimilacionista". Indiscutivelmente, podemos afirmar com Calvet
( 1 9 9 4 : 2 5 9 ] que "a França é, no plano linguístico, fortemente assimila-
dora". Dois ou três factos para justificar este ponto de vista.
Evoca-se frequentemente a instauração dos ELCO (Ensino das lín-
guas e culturas de origem] como uma vontade política de abertura da
sociedade francesa às línguas e culturas estrangeiras, bem como a
expressão de uma certa tolerância cultural. Ora, nada disto é verdade.
Com efeito, segundo Varro ( 1 9 9 7 ] , a implementação dos programas
ELCO só tinha uma finalidade: a "prevenção contra o bilinguismo, dis-
farçado de considerações evocando os seus possíveis efeitos nefastos
para o desenvolvimento psicológico, cognitivo, etc."
Esta tese foi retomada recentemente ( 2 0 0 4 ] por uma das comissões
parlamentares presidida por Jacques Alain. Voltarei a este assunto
posteriormente. O pressuposto assimilacionista transparece clara-
mente. Depois, a Constituição afirma, no seu artigo 2, que "O Francês é
a língua da República" ( 1 9 9 2 ] .
Por último, a Carta europeia das línguas regionais e/ou minoritárias
conduziu a França a operar escolhas políticas que excluem as línguas
das populações migrantes da paisagem nacional. Cerquiglini ( 1 9 9 9 ] ,
no seu relatório Les langues de la France, entregue ao Ministério da Edu-
cação Nacional, da Investigação e da Tecnologia, bem como à Ministra
da Cultura e da Comunicação, fornece as grandes directivas da política
linguística francesa através de uma reformulação terminológica.
O relatório define a expressão "línguas regionais ou minoritárias"
como as línguas "tradicionalmente praticadas no território de um Es-
tado que constituem um número quantitativamente inferior ao resto
da população do Estado; e diferentes da(s] língua(s] oficial(ais] deste
Estado". O relatório acrescenta que o objecto da Carta consiste em
"reconhecer unicamente as línguas faladas pelos cidadãos do país, dis-
tintas dos idiomas da imigração". Notar-se-á, no entanto, que apesar

Francês/línguas africanas: colonização linguística ontem e hoje, aqui e ali . Bernard Zongo 75
do facto de, em França, a língua oficial ser o francês, o sentimento de
fidelidade para com a língua ancestral permanece forte na população
imigrada. Algumas investigações acerca da transmissão das línguas
ancestrais demonstram-no [De Heredia-Deprez, 1 9 7 6 ; Deprez, 1 9 9 4 ;
Leconte, 1 9 9 8 ; Akinci, 2 0 0 3 ) . Outros estudos parecem demonstrar o
contrário e falam em "erosão das línguas", quer regionais, quer mi-
grantes, e de "progressão do francês na transmissão familiar". Segundo
Calvet ( 1 9 9 4 : 257), o estudo realizado pelo INSEE e pelo INED em 1 9 9 2
dá a entender que "a unificação linguística da França prosseguirá de
modo contínuo apesar das numerosas línguas importadas pela imigra-
ção e dos movimentos de defesa das línguas regionais". Simon ( 1 9 9 7 ) ,
explorando os dados deste inquérito, inscreve-se na mesma óptica.
Esta cultura de exclusão linguística, confortada por aquilo que acaba
de ser referido e que alimenta a consciência colectiva linguística, terá
uma incidência sobre a legitimidade da estratificação etnolinguística
geral - em detrimento dos grupos etnolinguísticos minoritários - , bem
como sobre as normas de uso linguístico.

2 . 1 . 3 . A legitimidade da e s t r a t i f i c a ç ã o etnolinguística e n o r m a s

Quando um país pratica uma política assimilacionista, "o uso da lín-


gua minioritária em público por minorias linguísticas pode dar lugar
a comentários desfavoráveis por parte dos interlocutores da língua
dominante" [Bouhris, Lepicq e Sachdev, 2 0 0 0 , online).
É partindo destas tomadas de posição, destes julgamentos, destes co-
mentários epilinguísticos acerca das línguas das comunidades minori-
tárias, que se deve inferir as normas que regem os usos linguísticos.
Assim, para compreender por que motivo sujeitos linguísticos utilizam
uma ou outra língua, uma ou outra variedade de língua, em situações
de tipo diglóssico, por exemplo, é necessário ter-se uma ideia [não ne-
cessariamente que se domine) das normas sociais em vigor, que regem
ou autorizam o uso das línguas ou das variedades presentes de acordo
com as s i t u a ç õ e s . Segundo Gumperz [ 1 9 8 2 : 3 3 ) , de facto, numa
perspectiva etnográfica,

"(...) as regras linguísticas e as normas sociais podem ser vistas como limita-
ções que se exercem sob a forma e conteúdo da mensagem". Para além disso,
podemos ter por base o postulado de Ross (1979), segundo o qual "a relação
entre a língua e a identidade de grupo varia em função das múltiplas formas e
dos diferentes níveis de desenvolvimento dessa identidade" [citado por Hamers
e Blanc, 1983:212).

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


Convém avaliar a relação entre política linguística, vitalidade etnolin-
guística e legitimidade da estratificção etnolinguística. Se nos reme-
termos à taxinomia proposta por Ross para designar os diferentes mo-
dos de identidade colectiva - comunal, minoritária, étnica e nacional - ,
podemos dizer que as comunidades estrangeiras que vivem em solo
francês, e particularmente em Paris, mantêm um tipo de identidade
colectiva de tipo "minoritário". Este tipo caracteriza uma comunidade
étnica que, não somente é privada de qualquer poder de decisão acerca
do seu próprio futuro, como ainda se vê limitada pela comunidade domi-
nante no sentido de restringir o uso da sua língua a alguns domínios
(família, religião, relações entre pares, etc.), excluindo domínios im-
portantes como a economia, a administração, e a educação (ver o trata-
mento reservado ao bilinguismo por alguns professores: Varro, 1997).
Relativamente aos estrangeiros que vêm para França e que se
reconstituem em comunidades - falamos nomeadamente de lares
senegaleses, malianos, portugueses, turcos, de bairros chineses, etc. -,
se aprenderem o francês - os operários, por exemplo - é antes de mais
por motivos p u r a m e n t e funcionais, para não dizer profissionais.
É também o que Noyau subhnha ( 1 9 7 6 : 4 5 ) :

... os trabalhadores, a pequeníssima minoria que frequenta cursos [...], tiveram


de criar um sistema de socorro para compreender e fazer-se compreender em
francês nos aspectos mais indispensáveis da sua existência, sem a interven-
ção de qualquer instituição de educação.

Era o caso em 1976, é o caso ainda hoje com o acréscimo do apoio


das instituições públicas. Um dos dois pólos do dispositivo do FAS41
na "sua nova organização das formações linguísticas financiadas",
implementada a partir de 1 9 9 5 e relembrada por Pellé-Guetta ( 1 9 9 7 :
147) é clara:

... proceder a um posicionamento preciso das pessoas que desejam ingressar


nos estágios, quer no que diz respeito ao seu nível de competência em francês,
como relativamente ao ponto em que estes se encontram no seu projecto pes-
soal de inserção, afim de garantir o bom acompanhamento dos estagiários
(sublinhado pelo autor).

Este quadro global permite ter uma ideia daquilo que pode repre-
sentar um âmbito de troca informal tal como a rua, as lojas, as mer-
cearias, onde grupos de pessoas de pertença étnica se encontram e se
exprimem, de modo geral, na(s) sua(s) língua(s) étnica(s). De Heredia-
-Deprez ( 1 9 7 6 ) refere que os e s t r a n g e i r o s são i m e d i a t a m e n t e

Francês/línguas africanas: colonização linguística ontem e hoje, aqui e ali . Bernard Zongo 77
detectados, rotulados como "estrangeiros", certamente muito mais
pela sua língua, ou pelo modo como estes se expressam em francês, do
que pela cor da sua pele, e isto, por qualquer pessoa em contacto com
os trabalhadores imigrados ou com a sua família, no âmbito do trabalho,
da escola, ou por simples convivência num bairro, no autocarro, de
férias, ou em qualquer outro lugar Por conseguinte, um tal ambiente
afigura-se como um lugar de manifestação ideal de alguns aspectos
[utilização sistemática da língua étnica] da vitalidade etnolinguística
das diferentes comunidades linguísticas.
Mas este contexto ideal de liberdade de expressão das identidades
linguísticas não parece convir aos políticos franceses. Foi deste modo
que se chegou ã amálgama entre algumas populações consideradas
indesejáveis [os imigrantes africanos] e as suas línguas, consideradas
como geradoras de patologias, e por conseguinte de delinquência: é a
concepção à francesa do bilinguismo - pelo menos no que concerne os
poderes públicos.

2.2. A concepção ideológica do bilinguismo: o relatório


Bénisti

o relatório preliminar da comissão "Prevenção" do grupo de estudos


parlamentares acerca da segurança interna entregue a Dominique de
Villepin em 2 0 0 4 pelo seu presidente, Jacques Alain Bénisti, deputado
do Val-de-Marne em 2004, ilustra perfeitamente a política linguística
francesa face às línguas da imigração, mais concretamente africana.
A concepção que os parlamentares possuem do bilinguismo escapa a
qualquer lógica científica e pode apenas responder a uma lógica ide-
ológica de glotofagia.
A hipótese de partida é a seguinte: as crianças de origem estrangeira
são delinquentes pelo facto de continuarem a praticar "a linguagem
patoá do país em casa". Convencidos do bom fundamento de tal cál-
culo, os parlamentares elaboram aquilo que designam por "Curva evo-
lutiva de um jovem que, ao longo dos anos, se afasta do "bom caminho"
para se entregar à delinquência".
A curva segue um movimento ascendente estabelecendo uma rela-
ção sistémica entre a idade e a natureza da delinquência. A variável
explicativa permanece a mesma: o uso das línguas de origem.

O a 3 anos: primeiros anos sem problemas;


4 a 6 anos: dificuldades da língua + comportamento indisciplinado;
7 a 9 anos: acentuação dos problemas da feixa 4-6 anos + marginalização

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


escolar + demissão ou falta de controlo da educação dos pais + falta
de actividades pré ou pós-escolares;
10 a 12 anos: agravamento dos problemas da faixa 7-9 anos + violên-
cia na escola, repetição do ano lectivo + início dos pequenos furtos +
conflitos parentais acentuados e desenvolvimento da marginalização;
13 a 15 anos: entrada na delinquência com pequenos assaltos. Início
do consumo de drogas leves + faltas frequentes às aulas + permanên-
cia da falta de actividade pré ou pós-escolares;
16 a 18 anos: consumo de drogas duras + assaltos + vida nocturna e
utilização de armas brancas;
19 a 23 anos: ingresso na grande delinquência + tráfico de drogas,
roubos à mão armada.

Só podemos ficar surpreendidos com o simplismo de tal esquema.


Este salienta, primeiramente, o desconhecimento das problemáticas
do bilinguismo no que concerne aos membros da comissão parlamen-
tar Tendo todas as universidades trabalhado sobre a aquisição da lin-
guagem ou o bilinguismo partilham as mesmas conclusões que Martin
Beaudoi ( 1 9 9 8 ) relembra: com a idade de cinco anos, a criança apren-
deu o conjunto da sua língua materna; a maior parte das aprendiza-
gens são feitas entre o nascimento e os três anos. Estas observações
demonstram o carácter arbitrário das faixas de idade retidas pelos
parlamentares. Com efeito, se são as línguas ancestrais que são postas
em causa, então a sua interdição deveria intervir à nascença da crian-
ça. Por outras palavras, a proibição de se falar a sua língua de origem
deveria afectar todos os estrangeiros adultos que vivem em família.
Com a devida cortesia, permito-me relembrar aos senhores parlamen-
tares as diferentes etapas da aquisição da linguagem nas crianças:
1. O estádio pré-linguístico divide-se em duas etapas: a etapa da
tagarelice (de 4 ou 6 a 12 meses) e a etapa da primeira palavra (4 ou
6 a 12 ou 18 meses);
2. o estádio holofrástico (18 aos 24 meses), a criança exprime-se por
palavras isoladas;
3. o estádio sintáctico (de 2 aos 5 anos) é o período em que se adquire
a sintaxe;
4. o estádio avançado (mais de 5 anos) é o período em que a criança
adquire as funções mais delicadas da linguagem.

Aquilo que surpreende, de igual modo, neste esquema, é o seu carácter


sistémico. Todos os jovens de origem estrangeira, que conservaram as
suas línguas de origem, seguem irremediável e fatalmente este pro-
cesso da delinquência. Perguntamo-nos através de que milagre é que

Francês/línguas africanas: colonização linguística ontem e hoje, aqui e ali . Bernard Zongo 79
ainda existem crianças bilingues de origem africana em liberdade. A
vacina para lutar contra este gene da delinquência inoculado nas cri-
anças bilingues africanas desde a sua nascença existe. Os Senhores
parlamentares encontraram-no: as famílias de origem estrangeira
"deverão esforçar-se para falar o Francês nos seus lares para habituar
as crianças a ter apenas esta língua para se expressar" (p.9). Os vestí-
gios colonialistas estão apenas desvendados. Na época de Jean Dard
(1817), o antigo inspector-geral Charton justificava a supressão do
ensino bilingue francês-wolof no Senegal nos termos seguintes: "as
colónias da África Negra não possuem, tal como na Indochina ou em
Argel, uma língua de civilização, inspiradora de cultura e de educação"
(citado por Nacuzon Sali, 1996).
Esta obrigação para os pais de proibirem aos seus filhos o uso das
línguas de origem apresenta-se como uma obra de salubridade mental.
Com efeito, a criança bilingue é considerada como uma doente mental
que deve ser tratada: "Um contacto directo com o jovem deverá ser
instaurado a bem ou a mal com uma pessoa formada para este efeito,
por forma a tratá-lo ou dar-lhe a escolher um outro caminho que não
seja aquele que ela está a tomar" (p.8).
M. Bénisti, previdente, e os seus pseudo-linguistas parlamentares,
consideram a gestão destas crianças doentes desde tenra infância,
isto é, no momento em que se manifestam "as premícias de desvios"
(de 1 a 3 anos): "Acompanhamentos sanitários e medicais regulares
devem ser operados nas estruturas de guarda da pequena infância
para detectar e tomar conta, desde a idade mais tenra, aqueles que
manifestem perturbações comportamentais" (p.9).
Deverá entender-se, por perturbações comportamentais, a fase de
ajustamento que o bilingue opera a partir de um determinado estádio
de aprendizagem ou de aquisição bilingue ao dar a impressão de mis-
turar as duas línguas presentes. Efectivamente, trata-se simplesmente
de estratégias de linguagem e não de dificuldades de aprendizagem-
-aquisição. Acerca desta questão, permito-me reenviar o leitor para a
minha obra: Le parler ordinaire multilingue à Paris - ville et alternance
codique (L'Harmattan, 2004).
Quais serão os actores solicitados para pôr em prática esta política
de prevenção da delinquência? Todo um batalhão de pessoas: "priori-
tariamente, como é evidente, os pais mas também as equipas educa-
tivas, os profissionais sociais e medicais" (P.8). Cada um, no seu nível,
deverá velar pelo bom funcionamento do dispositivo através de comu-
nicações e de denúncias. Se, apesar dos esforços dos poderes públi-
cos para salvar estes doentes mentais que são as crianças bilingues, os
pais oferecerem resistência, outros meios mais coercivos serão con-
siderados por forma a levá-los à obediência:

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


[...] as mães participarão e comprometer-se-ão. Mas se estas sentirem, em
certos casos, reticências por parte dos pais, que exigem frequentemente a lin-
guagem patoá do país em casa, aquelas serão dissuadidas de fazê-lo. Será
então necessário empreender outro tipo de acções visando o pai por forma a
incitá-lo nesta direcção.

Todos os ingredientes de um regime vichysta estão reunidos: os


delatores, limitações cuja natureza é abandonada à livre apreciação
das autoridades, a estigmatização das línguas (trata-se da questão do
"patoá"). Dito isto, não teremos rigorosamente em conta o facto de o Sr.
Bénisti utilizar a palavra "patoá"! Este nada sabe acerca da linguística.
Numa entrevista concedida pelo deputado à Afrik.com, na Terça-feira,
a 15 de Março de 2005, este último falou de "gambara" antes que o
jornalista rectificasse para "bambara".
Eis aqui, para terminar, uma visão geral das acções levadas a cabo
relativamente ao encontro da criança e dos seus pais para cada faixa
etária:
Entre 1 e 3 anos: as reuniões financiadas pelo FAZ devem permitir
sensibilizar as mães; em caso de oposição do pai, "Deve então recor-
rer-se a acções direccionadas para o pai no sentido de incitá-lo nesta
direcção" (p. 9).
Entre 4 e 6 anos: "O professor deverá então falar com os pais para
que, em casa, a única língua falada seja o francês. Caso haja persistên-
cia, a instrutora deverá transmiti-lo a um terapeuta da fala para que a
criança recupere imediatamente os meios de expressão e de lingua-
gem indispensáveis para a sua evolução escolar e social" (p. 10).
Entre 7 e 9 anos: "Aulas de instrução cívica (luta contra o incivismo,
respeito pelo outro, vida em comunidade, instituições...) deverão ser
obrigatórias durante toda a escolaridade primária. Estas aulas poderão
ser efectuadas quer pelo instrutor ou instrutora, quer por um profes-
sor especializado" (pp. 10-11).
Entre 10 e 12 anos: "Se os factos de delinquência no exterior do am-
biente escolar se acentuarem, a colocação do adolescente será irrever-
sível e será objecto de um procedimento diligenciado por um juiz da
infância. Uma comissão responsável pela tomada de decisão poderá
ser implementada, a fim de deliberar acerca do futuro e do acompanha-
mento do jovem" (p. 11).
Entre 13 e 15 anos: "O jovem deverá abandonar o meio escolar tradi-
cional e ingressar no ramo de aprendizagem de uma profissão imedi-
atamente após o final da escola primária" (p. 11).
Para além dos 16 anos: "centros de delinquência adaptados aos
maiores de 16 anos deverão ser implementados com educadores

Francês/línguas africanas: colonização linguística ontem e hoje, aqui e ali . Bernard Zongo 75
profissionais. Uma parte dos centros deverá incluir espaços de desin-
toxicação e de pós-tratamento para os jovens toxicómanos. Uma ver-
tente de formação para um trabalho manual deverá igualmente ser
considerada para preparar a saída deste último, bem como uma fase
de reintegração na sociedade com acompanhamento e submissão a
exame que deverá ser concretizada" (p. 12).
No seu todo, t o r n a - s e visível que a política linguística francesa,
perante as línguas de imigração, manifesta, em grande medida, mais
opções ideológicas glotofágicas, do que uma abordagem científica acer-
ca do modo de gestão da paisagem linguística. Caso contrário, como
compreender que neste ponto da investigação acerca do bilinguismo
e da bilingualidade, os parlamentares não tenham tido o reflexo de
solicitar o contributo de linguistas ou de sociolinguistas que, no en-
tanto, enchem as universidades francesas? Esta questão teria algum
valor caso a resposta que a mesma invoca não inscrevesse a política
linguística francesa numa continuidade ideológica: a dominação.

Conclusão
As relações entre o francês e as línguas africanas, desde sempre,
foram continuamente marcadas por uma estratégia glotofágica do
primeiro em detrimento das segundas. O período colonial permitiu
instalar os fundamentos de uma dominação linguística, cultural, e, por
conseguinte, mental, que nunca foi desmentida. Acreditou-se que as
independências anunciavam o fim do francês e, concomitantemente,
o desenvolvimento das línguas africanas ao serviço da educação e do
desenvolvimento. Foi uma ilusão. Dotadas de meios financeiros impor-
tantes, as instituições ditas francófonas permitiram à França continuar
a impor a sua língua em detrimento das línguas africanas. Em França,
tal como vimos, as línguas africanas são consideradas como geradoras
de patologias nas crianças bilingues. Este foi o alvo de ataque escolhido
por alguns parlamentares para desacreditar as línguas africanas, isto,
para prosseguir a obra de alienação cultural dos imigrantes africa-
nos. Todavia, a esperança permanece vigorosa, quer em África, com a
multiplicação, num certo número de países, de escolas bilingues, quer
em França, a acreditar na manifestação pela sociedade civil e alguns
universitários com a publicação do relatório Bénisti. Sendo qualquer
língua portadora de cultura, a sobrevivência das culturas africanas em
França está intrinsecamente ligada à transmissão no seio das famílias,
ou por via do ensino destas línguas. Por que motivo é que os Africanos
aceitariam que as línguas regionais sobrevivessem sobre as cinzas das
línguas africanas?

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


Referências Bibliográficas
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Francês/línguasafricanas:colonização linguística ontem e hoje, aqui e ali . Bernard Zongo 83


II.
As origens egípcias
da civilização africana
Cheikh Anta Diop: o homem e a obra
Cheikh M'Backé Diop'

Introdução
Propomo-nos, aqui, fornecer uma visão geral da obra de Cheikh Anta
Diop. Depois de ter relembrado o contexto histórico e ideológico no
qual Cheikh Anta Diop levou a cabo as suas investigações, levantamos
alguns dos traços essenciais da sua obra histórica. De seguida, abor-
daremos a continuação desta obra, no âmbito da história e da egipto-
logia, para concluir na importância crucial dos trabalhos do intelectual
no processo de recuperação da África e de edificação de uma civiliza-
ção planetária.

1. O contexto histórico e ideológico no início do


século XX
Cheikh Anta Diop nasce, no início dos anos 1920, no Senegal. Esta
região do extremo Oeste da África Negra fez parte dos grandes Estados
africanos pré-coloniais, tal como os Impérios do Gana e do Mali\ No
século XIX, sob Napoleão III, esta foi em grande parte conquistada e
integrada ao Império colonial francês por Faidherbe^.
De 15 de Novembro de 1 8 8 4 a 26 de Fevereiro de 1885, em Berlim,
uma "conferência" acerca da África tinha reunido os países europeus.

*. Doutor em .ciências, co-editor da Revista Ankh, Revista de Egitpologia e das Civilizações afri-
canas.
1. Cf. Histoire Générale de l'Afrique; vol. Ill: UAfrique du V//® au Xi^ siècle e volume IV: VAfrique du
Xlie au XVie siècle, Paris, UNESCO/NEA, 1 9 9 0 , 1 9 8 5 .
2. De 1 8 5 4 a 1865, Louis Léon César Faidherbe ( 1 8 1 8 - 1 8 8 9 ) tinha sido afectado na Argélia e na
Guadalupe antes de ser enviado para o Senegal.

Cheikh Anta Diop; ohometne a obra . Cheikh M'Backé Diop 87


bem como os Estados-Unidos. Este encontro culminou na assinatura
de Acto de Berlim, que levou à "partilha de África" entre seis potências
europeias, a Inglaterra, a França, a Bélgica, a Alemanha, Portugal e a
Espanha^. Em vésperas da 1.® Guerra Mundial, a quase totalidade da
África é constituída por colônias governadas pelos Europeus.
Esta situação resulta dos acontecimentos que se desenrolaram no
mundo desde o século XVI, marcados pelo mercantilismo europeu e
a superioridade técnica e militar crescente da Europa. Esta impõe, ao
mesmo tempo que a sua dominação, as suas idéias acerca da humani-
dade, a sua origem e a sua evolução. Paralelamente, e juntando-se ao
que é praticado pelos Árabes, na África subsaariana, o tráfico de es-
cravos Negros é concebido, institucionalizado e racionalmente orga-
nizado pelos Europeus. Conseqüências: a desagregação dos Estados e
da sociedade em todos os sectores da vida, a diminuição da população
atingindo vários milhares de habitantes^ a destruição humana mais
massiva e mais prolongada que o mundo jamais tenha conhecido.
O pavoroso Código Negro, promulgado por Luís XIV em 1685 (a res-
peito do qual Montesquieu ( 1 6 8 9 - 1 7 5 5 ] , o autor de De Vesprit des
Ms, não se pronuncia] regulamenta a escravatura nas Antilhas e na
Guiana^ No momento em que a Europa empreende, no século XIX, a
conquista do interior da África, esta já se encontra extremamente
fragilizada pelos múltiplos efeitos destruidores directos e indirectos
do sistema de tráfico de seres humanos negros que se desenvolveu du-
rante quatro séculos.
A dominação colonial, que assume nas suas duas fases sucessivas, a
conquista militar do continente africano e a exploração/pilhagem dos
seus recursos mineiros e agrícolas, é eminentemente mortífera, e de
igual modo marcada por atrocidades, por genocídios massivos®. Entre
1 8 6 0 e 1930, algumas estimativas demonstram que o volume rema-
nescente da população da África subsaariana ainda diminuiu de um

3. Histoire Générale de l'Afrique, Vol. VU, UAfríque sous ia domination coloniale, 1880-1935, Paris,
UNESCO/NEA, 1987.
4. Cf. J. E. Inikori in Histoire Générale de l'Afrique, "La Traite négrière du XV^ au XIX^ siècle".
Études et Documents 2, Paris, UNESCO, 1979, 1985, pp. 64-97 e Histoire Générale de l'Afrique,
vol. VII; L. M. Diop-Maes, Afrique noire: Démographie, sol et Histoire, Paris, Présence Africaine/
Khepera, 1995. 0 autor estabelece que a população da África subsaariana no século XVl situava-
-se na ordem dos 6 0 0 milhões de habitantes.
5. Cf. Louis Sala-Molins, Le Code Noire ou le calvaire de Canaan, Paris, Presses Universitaires de
France, 1987.
6. ]. E. Inikori in Histoire Générale de l'Afrique, "La Traite négrière du XV® au XIX^ siècle", Études et
Documents 2, Paris, UNESCO, 1 9 7 9 , 1 9 8 5 , pp. 64-97 e Histoire Générale de l'Afrique, vol. VII; L. M.
Diop-Maes, Afrique noire: Démographie, sol et Histoire, Paris, Présence Africaine/Khepera, 1995;
A, Hochschild, Les fantômes du roi Léopold - Un holocauste oublié, Paris, Belfond, 1998: Rosa
Amélia Plumelle-Uribe, La férocité blanche - Des non-blancs aux non-aryens, génocides occultés
de 1492 à nos jours, Paris, Albin Michel, 2001.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


terço, passando aproximadamente de 2 0 0 milhões para 130 milhões
de pessoas^
Frantz Fanon escreve:

... o ocupante instala a sua dominação, afirma massivamente a sua superiori-


dade. O grupo social, subjugado militar e economicamente, é desumanizado
através de um método polidimensional. Exploração, torturas, razias, racismo,
liquidações colectivas, opressão racional encontram-se ligados a níveis dife-
rentes para, literalmente, tornar o autóctone num objecto entre as mãos da
nação ocupante. Este homem objecto, sem meios de existir, sem razão de ser,
é destruído no mais profundo da sua substância...'^.

A dominação da África não é de natureza exclusivamente militar,


política e econômica. De modo a ser plenamente eficaz e aceite por
todas as camadas da sociedade europeia, esta dominação, bem como
os meios da sua execução devem ser justificados, legitimados no plano
moral, filosófico, religioso''. Assim, alguns pensadores europeus decre-
tam a inferioridade intelectual do Negro. Estes têm por nome: Voltaire
[1694-1778), Cuvier (1769-1832), Gobineau ( 1 8 1 6 - 1 8 8 2 ) e Lévy-Bruhl
( 1 8 5 7 - 1 9 3 9 ) em França, Hume ( 1 7 1 1 - 1 7 7 6 ) na Inglaterra, Kant
( 1 7 2 4 - 1 8 0 4 ) eHegel ( 1 7 7 0 - 1 8 3 1 ) na Alemanha".
Estes afirmam que o Negro não possui a capacidade de raciocinar, de
criar. A iniciativa de se organizar em entidades sociopolíticas estrutu-
radas, policiadas, em Estados só pode ter uma origem exterior". É
deste modo que a grande cidade do Zimbabwe, descoberta no Sul do
rio Zambeze, não é certamente a obra dos próprios autóctones africa-
nos e se torna a do rei Salomão no país de Ofirl Webber Ndoro, profes-
sor de museografia e de gestão do patrimônio cultural da Universi-
dade do Zimbabwe, precisa que esta negação das realizações africanas
do Zimbabwe perdurou na Rodésia até uma época recente, apesar dos
resultados incontestáveis da investigação arqueológica^^:

7. Cf. Daniel Noin, 1999, La population de l'Afrique subsaharienne, Edições da UNESCO, pp. 19-24.
8. Fanon, Franz, "Racisme et Culture" in /4ctes du 1 er Congrès International des Écrivains et Artistes
Noirs, Paris, Sorbonne, 19-22 de Setembro de 1956, Présence Africaine, n^^ especial, pp. 122-131;
0 projecto da Unesco; "La Route de l'esclave", lançado em 1994.
9. Cf Rosa Amélia Plumelle-Uribe, La férocité Manche - Des non-blancs aux non-aryens, génocides
occultés de 1492 à nos jours, Paris, Albin Michel, 2001.
10. Cf T. Obenga, Cheikh Anta Diop, Volney et le Sphinx, Paris, Présence Africaine/Khepera, 1996;
Les derniers remparts de l'Africanisme, Revue Présence Africaine, n.s 157, l.s semestre 1998, pp.
47 a 65.
11. Inclusive Léo Frobenius que descreveu as civilizações africanas, nomeadamente a do povo
lorubá do Benim, desenvolve, na sua obra Mythologie de lAtlantide, a tese da sua origem grega
(Paris, Payot, 1949, pp. 10-34, por exemplo}.
12. Ndoro, Webber, "Zimbabwe, cité africaine", in Pour la Science, n.^ 243, Janeiro de 1998,
pp. 74-79.

Cheikh Anta Diop; ohometne a obra . Cheikh M'Backé Diop 89


Apesar destes trabalhos, a maior parte dos colonos europeus na Rodésia ne-
gam a evidência. De 1965 até à independência, em 1980, a Frente Rodésia,
partido fundado por lan Smith e que defende o apartheid, censura todas as
obras e documentos que descrevem o Zimbabwe; os arqueólogos que defen-
dem a origem africana do Zimbabwe são presos e expulsos; os Africanos que
apoiam posições semelhantes perdem o seu trabalho; as populações locais já
não têm o direito de celebrar cerimônias rituais naquele local; mesmo as visi-
tas ao local são interditadas.

Sob a pluma destes ideólogos, o Negro torna-se um ser dominado


por comportamentos totalmente singulares que não deixarão de ser
representados através de caricaturas":

Existe, por um lado, uma cultura [europeia] à qual se reconhecem qualidades


de dinamismo, de desenvolvimento, de profundidade. Uma cultura em movi-
mento, em perpétua renovação. Defronte, encontram-se características, curio-
sidades, coisas, nunca uma estrutura.

É deste modo que se forma uma verdadeira teoria racista, elaborada


por uma intelectualidade europeia que visa, particularmente, posicio-
nar o Negro no fundo da escala do seu sistema de hierarquização das
raças e no topo da qual o homem Branco é colocado. O Negro é negado
enquanto ser humano por inteiro, este é "coisificado" segundo a ex-
pressão de Aimé Césaire. Desta concepção racialmente hierarquizante
da humanidade resulta que a África Negra não pode e não deve possuir
uma história, que não pode constituir "um campo histórico inteligível",
para retomar os termos do historiador britânico Arnold Toynbee", que
não pôde criar nenhuma civilização. É este o motivo pelo qual o Egipto
antigo, brilhante civilização da Antigüidade, é agora literalmente ar-
rancado à África Negra, ao universo negro-africano, para ser arbitrari-
amente relacionado geográfica, antropológica e culturalmente à Ásia
Ocidental e ao mundo mediterrânico (Médio-Oriente). A intelectuali-
dade europeia exibe "uma erudição feroz" para cometer este acto de
falsificação da história da humanidade":

Com a ajuda do imperialismo, tornava-se cada vez mais "inadmissível" con-


tinuar a aceitar a tese até agora evidente de um Egipto negro. O surgimen-
to da Egiptologia será então caracterizado pela necessidade de destruir a

13. Fanon, Franz, "Racisme et Culture", in Actes du 1er Congrès International des Écrivains et
Artistes Noirs, Paris, Sorbonne, 19-22 de Setembro de 1956, Présence Africaine, n.^ especial,
pp. 122-131.
14. Toynbee, Arnold, L'Histoire-, Paris-Bruxelas, Elsevier Séquoia, 1978.
15. Diop, Cheikh Anta, Nations nègres et Culture-, Paris, Présence Africaine, 1954, 1979, p. 62.

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qualquer custo, e em todos os espíritos, a memória de um Egipto negro, do
modo mais completo.

"Inadmissível" é efectivamente a palavra utilizada, na sua obra Égypte


ancienne^^, por Champollion-Figeac [ 1 7 7 8 - 1 8 6 7 , a não confundir com
o seu irmão Jean-François Champollion, designado de Champollion-le-
-Jeune ( 1 7 9 0 - 1 8 3 2 ) , o decifrador dos hieróglifos) para procurar in-
validar a conclusão, apesar de tudo fundada, do historiador Constantin-
-François de Chasseboeuf [ 1 7 5 7 - 1 8 2 0 ) , mais conhecido pelo nome de
Volney, professor de história na Escola Normal Superior de Paris, no
seu Voyage en Syrie et en Égypte pendant les années 1783,1784 & 1785,
conclusão segundo a qual os antigos Egípcios eram Negros":

... quando, tendo ido visitar a Esfinge, o seu aspecto me forneceu a palavra
do enigma. Ao observar esta cabeça caracteristicamente negra em todos os
seus traços, lembrava-me desta passagem notável de Heródoto, na qual este
afirma: No que me concerne, considero que os Cólquidas são uma colónia dos
Egípcios, porque, tal como eles, possuem uma tez negra e os cabelos crespos, o
que significa que os antigos Egípcios eram verdadeiros Negros da espécie de
todos os naturais da África [...] Que tema de meditação [...] pensar-se que esta
raça de homens negros, hoje nosso escravo e objecto do nosso desprezo é este
mesmo a quem devemos as nossas artes, as nossas ciências, até mesmo o uso
da palavra; imaginar, enfim, que foi no meio destes povos que se dizem mais
amigos da liberdade e da humanidade, que se sancionou a mais bárbara das
escravaturas e levantado a questão de saber se, de facto, os homens negros
possuem uma inteligência da mesma espécie que a dos homens brancosi

Estas linhas de Volney de nada servirão; a visão de uma África


a-histórica [sem história, sem passado) e atemporal [fora do tempo,
imutável), cujos habitantes, os Negros, nunca foram responsáveis, por
definição, pela menor invenção, por um único factor da civilização, im-
põe-se doravante enquanto corrente de pensamento dominante nos
discursos, nos textos e enraiza-se profundamente nas consciências.
Tais são a ideologia, a imagem da África, a falsificação histórica que
serão doravante transmitidas, ensinadas pela intelectualidade ociden-
tal, de geração em geração, no seio das instituições mais oficiais, das
mais modestas às mais prestigiadas, da escola à universidade; estas
serão amplamente veiculadas através de todos os meios de expressão:

16. Figeac, Champollion, Égypte ancienne; Paris, ed. Didot, 1839, pp. 26-27; citado por Cheilíh
Anta Diop em Nations nègres et Culture, 4.^ edição, 1979, p. 69.
17. Volney, M. C. P., Voyage en Syrie et en Égypte pendant les années 1783,1784 &1785; vol. I, Paris,
1787, pp. 74-77.

Cheikh Anta Diop; ohometne a obra . Cheikh M'Backé Diop 91


romances, pinturas, bandas desenhadas, publicidades^®, e mais tarde
no cinema...
Zoos humanos exibirão na Europa e nos Estados Unidos os povos
não-brancos^^.

2. A resistência africana e a restauração da


consciência histórica
Os Africanos desenvolveram, no conjunto do continente e no exte-
rior deste, diferentes formas de resistência e de lutas de libertação
(guerra, guerrilha, resistência passiva, terra incendiada, revoltas,
resistência intelectual, espiritual...) face à agressão militar, política,
económica, cultural e psicológica estrangeira. As figuras emblemáti-
cas desta resistência e destas lutas, homens e mulheres, são: a rainha
N'Zinga ( 1 5 9 0 - 1 6 6 3 ) , Toussaint Louverture ( 1 7 4 3 - 1 8 0 3 ) , Louis Delgrès
( 1 7 6 6 - 1 8 0 2 ) , Sojourner Truth (1797-1883)2°, Béhanzin ( 1 8 4 4 - 1 9 0 6 )
e os Amazonas, Samory ( 1 8 3 0 - 1 9 0 0 ) , Lat Dior ( 1 8 4 2 - 1 8 8 6 ) , le Mahdi
( 1 8 4 4 - 1 8 8 5 ) , a rainha Ranavalona 111 ( 1 8 6 2 - 1 9 1 7 ) , para citar apenas
algumas de entre tantas outras conhecidas ou ainda desconhecidas.
Lara^^ relembra que foi:

A resistência dos Negros à ocupação francesa do Haiti, a partir da segunda


metade do século XVI até à guerra levada a cabo por Toussaint Louverture,
de 1790 a 1803, que permitiu ao Haiti ver-se livre do regime colonial através
das armas.

Pessoas simples, algumas personalidades como Condorcet^^ ( 1 7 4 3 -


- 1 7 9 4 ) , associações e agrupamentos variados na Europa e nos Estados
Unidos da América ergueram-se contra as exacções de que os Negros
eram vítimas. Mas estes nunca estiveram à altura de se opor verdadei-
ramente aos governos, exércitos, milícias, redes, empresas comerciais
e industriais, bancos, associações diversas de objectivos falsamente

18. Pascal Blanchard, Éric Deroo, Gilles Manceron, Le Paris Noir, Paris, Harzan, 2001.
19. Nicolas Bancel, Pascal Blanchard, Gilles Boetsch, Éric Deroo, Sandrine Lemaire (obra colec-
tiva). Zoos humains, de la Vénus hottentote auc reality shows, Paris, éditions La découverte, 2002.
20. Robin D. G. Kelly, Earl Lewis, A history of African Americans, Oxford, Nova lorque, Oxford Uni-
versity Press, 2000, p. 199-201, Molefi Kete Asante, Historical Atlas of African Americans, Nova
lorque, Macmillan Publishing Company, 1991, p. 71.
21. Lara, Oruno D., "La Traite négrière du XVe au XlXe siècle", in Histoire Générale de l'Afrique,
Études et Documents 2, Paris, UNESCO, 1979, 1985, pp. 1 1 1 - 1 2 4 e Histoire Générale de l'Afrique,
vol VIL
22. Badinter, Élisabeth e Badinter, Robert, Condorcet- Un intellectuel en politique-, Paris, Fayard,
1998, pp. 171-175.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


humanitários ou rehgiosos, missões científicas exploradoras, etc., que
conjugaram os seus esforços para se apropriar da África, submeter ou
massacrar os seus habitantes.
A proclamação da abolição da escravatura, no século XIX, a emergên-
cia do conceito ideológico de missão civilizadora da Europa face ao
mundo não Branco, representam a charneira entre dois períodos
consecutivos de uma economia mundial dominada pelas potências
ocidentais que balançam na era industrial. Ao sistema do comércio
transatlântico de Negros reduzidos à escravatura [comércio desig-
nado de "triangular" - Europa, África, América), substitui-se a domi-
nação colonial da África, a apropriação do seu solo, do seu subsolo,
do seu espaço marítimo e, mais tarde, aéreo pela Europa. Para além
disso, a abolição oficial da escravatura não foi, de modo algum, acom-
panhada de uma revisão institucional das teorias racistas, mas pelo
contrário, estas foram sabiamente ajustadas, reforçadas por argumen-
tos apresentados como cientificamente fundados: ilustram-no a teo-
ria do poligenismo desenvolvida pelo naturalista de origem suíça
Louis Agassiz [ 1 8 0 7 - 1 8 7 3 ] , discípulo de Cuvier, e o médico ameri-
cano Samuel George Morton, bem como a obra Types ofMankind dos
Americanos Josiah Nott e George Gliddon, publicada em 1 8 5 4 " .
A constatação de Aimê Césaire em Discours sur le colonialisme é
inequívoca: "E afirmo que da colonização à civilização a distância é
infinita; que de todas as expedições coloniais acumuladas, de todos
os estatutos coloniais elaborados, de todas as circulares ministeriais
expedidas, não se conseguiria um único valor humano^'^.
Os poucos traços salientes da natureza do sistema de dominação
da África pela Europa, que acabam de ser evocados, mostram em que
contexto de violência extrema, física, mental e de obscurantismo ide-
ológico Cheikh Anta Diop empreende as suas investigações. Através de
uma investigação científica metódica, mergulhando no passado mais
longínquo do homem, este vai restituir a existência, a anterioridade
e a riqueza das civilizações negro-africanas, colocando desde logo em
causa os próprios fundamentos da cultura ocidental relativos à génese
e à evolução da humanidade.
Uma das grandes finalidades deste trabalho imenso e revolucionário
consiste também na restauração da consciência histórica africana, isto
é, a consciência de possuir uma história. Théophile Obenga explicita
aquilo que implica o conceito de consciência histórica:

23. Cf. Stephen Jay Gould, La Mal-Mesure de IHorrtme, Paris, Ed. Odile Jacob, nova edição, 1997,
capítulo 1.
24. Césaire, Aimé, Discours sur le Colonialisme-, Paris, Présence Africaine, 1955, p. 10.

Cheikh Anta Diop; o hometn e a obra . Cheikh M'Backé Diop 93


A tomada de consciência da história representa um acto duplo: (a) adquirir
uma consciência cada vez mais aguda da profundidade histórica do mun-
do tal como o viveu"; (b) e, por outro lado, correlativamente, de adquirir
uma consciência que participe na história, que faça história. A consciência
histórica pertence à ordem do acordar, da possibilidade de escolha, isto é,
em suma, da própria ordem da liberdade. Os "acidentes" da história [tráfico
de Negros, colonização, traumatismos económicos, políticos, culturais, psi-
cológicos) tornaram o povo africano amnésico: a memória histórica colectiva do
povo africano foi atingida de modo profundo. Cheikh Anta Diop empreen-
deu um trabalho fundamental para a restauração da consciência histórica
africana..

3. A obra histórica e egiptológica de Cheikh


Anta Diop
É deste modo que Cheikh Anta Diop se dedica, desde os seus estudos
secundários em Dakar e em St. Louis no Senegal, a munir-se de uma
formação mutlidisciplinar em ciências humanas e em ciências exactas,
alimentada por leituras extremamente numerosas e variadas.
Se o autor adquire um domínio notável da cultura europeia, este não
deixa de estar profundamente enraizado na sua própria cultura. O seu
perfeito conhecimento do wolof, a sua língua materna, revelar-se-á uma
das principais chaves que lhe abrirá as portas da civilização faraônica.
Por outro lado, o ensino corânico familiariza-o com o mundo árabe
e muçulmano. A partir dos conhecimentos acumulados e assimilados
acerca das culturas africana, árabe e muçulmano e europeia, Cheikh
Anta Diop elabora contribuições primordiais em diferentes domínios.

3.1. A reconstituição científica do passado da África

No momento em que Cheikh Anta Diop empreende as suas primeiras


investigações históricas (anos 40), a África Negra não constitui "um
campo histórico inteligível", para retomar a expressão do historiador
britânico Arnold Toynbee. É sintomático que ainda em inícios dos anos
60, no número de Outubro de 1 9 5 9 do Correio da UNESCO, o histo-
riador anglo-saxão Basile Davidson introduza o seu assunto acerca da
Découverte de l'Afrique com a questão: "Será o Negro um homem sem
passado?".

25. Obenga, Théophile, Cheikh Anta Diop, Volney et le Sphinx; Paris, Présence Africaine/Khepera,
1996, p. 359.

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Tal como vimos anteriormente, o estudo da África era abordado, an-
tes de Cheikh Ánta Diop, com um preconceito racial. O autor refuta a
noção de raça no sentido da ideologia ocidental. Com efeito, a noção de
raça tal como é conceptualizada pelos filósofos, pelos antropólogos e
pelos etnólogos ocidentais, na sua grande maioria, desde o Século das
Luzes, estabelece correlações entre o tipo físico (que os especialistas
denominam/endt/po: cor da pele, tipo de cabelo, prognatismo, etc.) e
as capacidades intelectuais dos indivíduos^®. Branco tornou-se sinóni-
mo de inteligência, de racionalidade, de criatividade; Negro, sinónimo
de bestialidade, de preguiça, de emotividade. Desta concepção acerca
da comunidade humana resulta a existência de uma hierarquia entre
as diferentes raças.
A etnologia e a antropologia ocidentais apreendem as sociedades
africanas através deste recorte vertical da humanidade. Num tal en-
quadramento de pensamento, um Negro jamais criou qualquer civili-
zação, ou ainda nunca foi autor de qualquer descoberta ou inovação.
Isto explica o "nascimento do mito do Negro"^'' e a noção de "verda-
deiro Negro"^^, uma espécie de ferramenta metodológica concebida
por especialistas ocidentais para estudar a história dos povos afri-
canos, a fim de jamais entrar em contradição com a sua própria con-
cepção hierarquizante da raça: "Os antropólogos inventaram a noção
engenhosa, cómoda, fictícia do "verdadeiro Negro" que lhes permite
considerar, necessariamente, todos os verdadeiros Negros como falsos
Negros, aproximando-se de modo mais ou menos significativo de uma
espécie de arquétipo de Platão, sem nunca atingi-lo"^®.
A "mecânica" do mito do Negro/verdadeiro Negro funciona do modo
seguinte:
- qualquer factor de civilização conhecido em qualquer parte do
continente africano é obra de um não-Negro.
- todo o povo Negro responsável por uma civilização é de facto um
povo Branco, ainda que se trate de um povo Branco com pele negra!
Tal é o caso dos Egípcios, dos Núbios e de todos os outros Negros-
-Africanos responsáveis pelas construções antigas do Zimbabwe, pela
arquitectura sudanesa de Djenné e de Tombuctu, pelo implúvio
iorubá, etc. O Estudo da sociedade Baoulé por Maurice Delafosse,

26. Obenga, Théophile, Cheikh Anta Diop, Volney et le Sphinx; Paris, Présence Africaine/Khepera,
1996; Liauzu, Claude, La société française face au racisme - De la Révolution à nos Jours; Paris,
Editions Complexe, 1999; Schnapper, Dominique e Allemand, Sylvain, Questionner le racisme;
Paris, Gallimard Education, 2000.
27. Diop, Cheil<h Anta, Nations nègres et Culture, op. cit., 4.^ edição, p. 49.
28. Vercoutter, Jean, L'Égypte et la Vallée du Nil; Paris, PUF, Nouvelle Clio - L'Histoire et ses
problèmes, 1992, p. 39.
29. Diop, Cheil<h Anta, Antériorité des civilisations nègres - Mythe ou vérité historique?; Paris,
Présence Africaine, 1 9 6 7 , 1 9 9 3 , p. 24.

Cheikh Anta Diop; o hometn e a obra . Cheikh M'Backé Diop 95


no seu artigo "Sur des traces probables de civilisation égyptienne et
d'hommes de race blanche à la Côte d'lvoire"^", e as considerações de
Félix Dubois acerca da civilização Songhai, na sua obra Tombouctou
Ia Mystérieuese, publicada em 1897, representam ilustrações típicas
do mito do Negro manifestas nas Études africaines. No primeiro caso,
só os Brancos (impossíveis de encontrar) conseguiram trazer
os elementos da civilização aos Negros Baoulés, e no segundo, os
Sudaneses, autores das obras arquitecturais das cidades da Nigéria,
Djenné, Tombuctu,... ainda que de pele e cabelos encrespados, estes
não são Negros. Neste contexto de obscurantismo e de racismo, o
contributo determinante de Cheikh Anta Diop é o seguinte:
- recusar qualquer correlação entre a cor da pele (a aparência física
de um modo geral, ou fenótipo) e as capacidades intelectuais;
- recusar qualquer hierarquia racial: as diferentes raças humanas
possuem as mesmas aptidões intelectuais;
- recusar as caricaturas raciais e considerar as grandes famílias hu-
manas, Negros, Brancos, Amarelos, na sua respectiva variedade de
tipos físicos;
- afirmar a origem monogenética africana da espécie humana: a hu-
manidade é una na sua diversidade^^

Em Nations nègres et culture, em 1954, Cheikh Anta Diop escreve


a propósito da civilização egípcia^^: "[...] a civilização que [o Negro]
reclama poderia ter sido criada por qualquer outra raça humana - na
medida em que se possa falar de uma raça - que tivesse sido colocada
num berço tão favorável, tão único".
Portanto, Cheikh Anta Diop não inverteu a concepção hegeliana ou
ocidental do ser humano, mas afirma antes que se a realidade humana
apresenta, de modo evidente, uma variedade de tipos físicos diferen-
tes, designados, ã falta de melhor, através do termo de raças, estas de-
vem ser todas colocadas no mesmo plano. Segundo o autor, a noção
de hierarquia racial representa um absurdo científico que, justamente,
combateu, e que, aliás, é confirmada através dos dados científicos
actuais.
Na sua obra Cheikh Anta Diop, Volney et le Sphinx, Théophile Obenga
demonstra em que consiste a originalidade e a novidade da problemáti-
ca histórica africana iniciada e desenvolvida por Cheikh Anta Diop^^:

30. ^Anthropologie, vol. 11, Paris, 1900.


31. Diop, Cheikh Anta, "L'unité d'origine de l'espèce humaine", in Actes du colloque d'Athènes:
Racisme science et pseudo-science: Paris, UNESCO, col. Actuel, 1982, pp. 137-141.
32. Diop, Cheikh Anta, Nations nègres et culture, op. cit., 4.^ éd., p. 401.
33. Obenga, Théophile, Cheikh Anta Diop, Volney et le Sphinx: Paris, Présence Africaine/Khepera,
1996.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


Ao recusar o esquema hegeliano da leitura da história humana, Cheikh Anta
Diop dedicou-se, por conseguinte, a elaborar, pela primeria vez na África
Negra, uma inteligibilidade capaz de dar conta da evolução dos povos negros
africanos, no tempo e no espaço [...] Nasceu uma nova ordem na compreensão
do factor cultural e histórico africano. Os diferentes povos africanos são povos
"históricos" com o seu Estado: o Egipto, a Núbia, o Gana, o Mali, o Zimbabwe,
o Congo, o Benim, etc., a sua arte, a sua ciência. Mais ainda, estes diferen-
tes povos históricos africanos concretizam-se, na verdade, enquanto factores
substanciais da unidade cultural africana.

Nations nègres et culture - De VAntiquité nègre égyptienne aux


problèmes culturels de 1'Afrique d'aujourd'hui - que Cheikh Anta Diop
pubhca nas Edições Présence Africaine criadas por Alioune Diop é
o hvro fundador de uma escrita científica da história da África. A re-
constituição crítica do passado da África torna-se possível graças à
introdução do tempo histórico e da unidade cultural. A restauração da
consciência histórica africana torna-se então, por sua vez, possível.

3.2. As principais temáticas desenvolvidas por Cheikh


Anta Diop

As temáticas apresentadas na obra de Cheikh Anta Diop podem ser


reagrupadas em quatro grandes categorias:

a. A origem do homem e as suas migrações. Entre as questões


tratadas: a antiguidade do homem em África, o processo de diferencia-
ção biológica da humanidade, o processo de semitização, a emergên-
cia dos Berberes na história, a identificação das grandes correntes mi-
gratórias e a formação das etnias africanas. A análise dos resultados
da paleoantropologia humana e da arqueologia já adquiridas e dis-
poníveis permite a Cheikh Anta Diop, a partir de 1962^^ propor uma
síntese coerente acerca da evolução da humanidade na qual surgem
três ideias principais:
- os Africanos são os habitantes autóctones da África e não são "in-
vasores" provenientes da Ásia ou de outro lugar;
- os primeiros Homo Sapiens eram Negros e a área de extensão do
substrato negro da humanidade actual expandia-se efectivamente
para além do continente africano, na Ásia e na Europa;
- os outros grandes grupos "raciais", Brancos e Amarelos provêm

34. Diop, Cheikh Anta, "Histoire primitive de 1'Humanité: Évolution du monde noir", Bulletin de
l'IFAN, T. XXIV, série B, n^ 3 - 4 , 1 9 6 2 , p. 449.

Cheikh Anta Diop: o homem e a obra . Cheikh M'Backé Diop loi


do homo sapiens negro africano, através de um processo de diferen-
ciação dos fenótipos relacionados com as diferentes condições geo-
climáticas, processo este que a ciência esclarecerá um dia.

Trata-se, portanto, da tese da origem monogenética africana do


homem moderno [homo sapiens sapiens] que Cheikh Anta Diop apoia.
Na época, a teoria policêntrica ou multiregional [enunciada em 1 9 4 5 )
reúne um grande número de especialistas^^. Esta estipula uma diferen-
ciação racial que remontaria aos Homo erectus, tendo vivido respec-
tivamente na África, na Ásia e na Europa. Esta teoria possui ainda hoje
os seus defensores.
Monogénese e poligénese da humanidade são debatidas em 1 9 6 9
no âmbito de um colóquio organizado pela UNESCO acerca do sur-
gimento do homem moderno^^ Após o seu artigo de 1962, o autor
consagrará vários desenvolvimentos a esta questão, quer em artigos
como "L' Apparition de I'Homo sapiens"^'' [1970), quer nas suas obras:
Antériorité des civilisations nègres [ 1 9 6 7 ) e Civilisation ou Barba-
rie [ 1 9 8 1 ) . Este retorna em particular ao processo de povoamento
da Terra e de diferenciação racial. Assim, o homem negro chegado
à Europa teria progressivamente perdido a sua pigmentação com a
adaptação a um clima caracterizado por períodos de glaciação que
perduraram durante vários milhares de anos [o último durou 20 0 0 0
anos, de 3 0 0 0 a 10 000). Os "Brancos" e os "Amarelos" seriam prove-
nientes de populações de homo sapiens sapiens africanas que teriam
emigrado para fora do continente através do Estreito de Gibraltar e/ou
da Sicília, e/ou do istmo de Suez, há várias dezenas de milhares de
anos. A diferenciação racial representa assim um fenômeno recente à
escala da evolução da Terra e da humanidade. A hipótese monogené-
tica dá conta da unidade da espécie humana actual através da sua apa-
rente diversidade: o que significa que todas as populações humanas
apresentam as mesmas aptidões intelectuais.
Os restantes temas tratados relativos a este eixo de investigação são
os seguintes:
- o processo de semitização, isto é, o processo de formação dos povos
semitas, analisado enquanto fenômeno de contacto e de mestiçagem
entre populações melanodermes e leucodermes em região próxima-
-orientaF®.

35. Barriel, Véronique - "L'origine génétique de l'iiomme moderne", in Dossier Pour la Science, Les
origines de l'humanité; Janeiro de 1999, pp. 92-98.
36. Diop, Cheikh Anta, "L'Apparition de l'Homo sapiens", in Bulletin de l'IFAN; T. XXXII, série B, n.-
3 , 1 9 7 0 , pp. 623-641.
37. Diop, Cheikh Anta, op. cit.
38. Diop, Cheikh Anta - Antériorité desc ivilisations nègres - mythe ou vérité historique?, op. cit.,

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


- o surgimento dos Berberes, que Cheikh Anta Diop identifica com
os descendentes dos Povos do Mar que chegaram massivamente a
África cerca de 1 2 0 0 Os documentos egípcios referem batalhas
contra estes povos provenientes do Norte sob os reinados dos faraós
Merneptah e Ramsés III.
- as movimentações de populações no perímetro mediterrânico e nas
terras interiores da Europa consequentes à formidável explosão da
ilha de Santorini nas Cidades [Mar Mediterrâneo), cerca de 1 4 2 0 an-
tes da nossa era. Cheikh Anta Diop estabelece também aproximações
esclarecedoras entre esta explosão e algumas passagens da Bíblia,
bem como das mitologias e lendas gregas''^.
- a identificação das grandes correntes migratórias e a formação das
etnias africanas. O autor introduz o seu estudo intitulado "Pour une
méthodologie de Tétude des migrations'"^^ nos termos seguintes:

A presente exposição situa-se no plano metodológico. O etno-historiador evi-


ta, na maior parte do tempo, aplicar a sua teoria a um caso concreto tomado
como exemplo de estudo e contenta-se em emitir ideias gerais.
Gostaríamos de contribuir para colmatar esta lacuna demonstrando de que
modo, na ausência de informações arqueológicas e de documentos escritos,
é possível, em alguns casos privilegiados, recorrer aos factores linguísticos,
étnicos ("etnónimos" e topónimos) e sociopolíticos para alcançar uma quase
certeza na restituição do passado africano.
Trata-se de demonstrar que, durante uma dada época relativamente recen-
te, uma migração, proveniente das margens do lago Albert e das colinas da
Núbia (região habitada pelos Nuer, Shiliuk, Dinka, etc.], teria atingido o Senegal
infiltrando-se no corredor situado entre o 10.- e o 20.- paralelos acima do
Equador, enquanto que uma outra migração, proveniente da mesma região
dos Grandes Lagos, teria prosseguido o curso do Zaire [Congo] até à sua foz,
para se expandir ao longo da costa, sem poder ladear esta para além dos
Camarões e do Delta do Níger. Os povos do golfo do Benim, da Nigéria do Sul
ao sul da Costa do Marfim (lho, Iorubá, Oyo, Ewe, Akan, Agni, Baoulé, etc.]
pertenceriam a uma migração anterior às duas precedentes e igualmente

p. 189-193. Parenté génétique de l'égyptien pharaonique et des langues négro-africaines (Dakar,


IFAN-NEA, 1977, pp. XXXIX-XXXVII.
39. Diop, Ciieikii Anta, "La formation du rameau berbère", in Histoire générale de l'Afrique, Études
et Documents, Libya Antiqua, Colóquio organizado pela UNESCO de 16 a 18 de Janeiro de 1984,
Paris, Unesco, pp. 77-81.
40. Diop, Ciieikh Anta, Civilisation ou Barbarie-, Paris, Présence Africaine, 1981, pp. 208-209.
41. Diop, Ciieikh Anta - "Pour une méthodologie de l'étude des migrations", in Histoire générale
de l'Afrique: Études et Documents 6, "Ethnonymes et toponymes africains" (1978), UNESCO, 1984,
p. 97-121, e numa primeira versão sob o título: "Introduction à l'étude des migrations en Afrique
entrale et ocidentale - Identification du berceau nilotique du peuple sénégalais", in Bulletin de
l'IFAN, série B, T. XXXV, n.a 4 , 1 9 7 3 , pp. 769-792.

Cheikh Anta Diop: o homem e a obra . Cheikh M'Backé Diop loi


originária de leste. No entanto, estes teriam sofrido o choque destas últimas
vagas, o que terá provocado movimentos secundários de população, de leste
para oeste, ao longo da costa atlântica, tal como parecem comprovar a uni-
dade cultural desta região, a diferença de tipos físicos e de nomes clânicos
comparados aos do Sahel, no norte.
— As relações entre a África Negra e as Américas antes de Cristóvão Colombo
(1492]«.

b. O parentesco Egipto antigo/África Negra. Este é analisado sob


todos os aspectos: o povoamento do Vale do Nilo, a génese da civiliza-
ção egitpo-nubiana, o parentesco linguístico e cultural, as estruturas
sociopolíticas, etc.
Não se trata aqui de expor toda a argumentação técnica multidisci-
plinar desenvolvida por Cheikh Anta Diop a fim de demonstrar que
o Egipto faraónico é negro-africano, tanto no plano cultural, como no
plano étnico. Convém simplesmente relembrar, de modo muito su-
cinto, a natureza desta argumentação declinada, aqui, segundo quatro
registos: cultural, sociológico, antropológico e histórico.

Os a r g u m e n t o s de o r d e m cultural englobam a cultura material e


resultam dos estudos comparativos entre o Egipto antigo e a África
subsaariana, em particular nos domínios:
da linguística, onde se comparam as línguas negro-africanas moder-
nas e a língua egípcia (faraónica e copta], no plano da gramática (mor-
fologia e sintaxe), do vocabulário (lexicologia), das correspondências
fonéticas.
Da arquitectura, que se interessa pelos monumentos erigidos no
antigo Egipto, na Núbia, na Etiópia, no Mali e no Zimbabwe.
Do artesanato, que oferece múltiplos objectos da vida quotidiana
ao investigador: apoios de cabeça, pentes, peças de vestuário tecidas,
sandálias, vassouras, cabaças decoradas.
Dos instrumentos musicais, tais como as harpas que encontramos no
Egipto e na África Central.
Da tecnologia, ilustrada pelas técnicas metalúrgicas que permitem
recolher e fundir os metais a fim de fabricar ferramentas e objectos di-
versos. As próprias ferramentas, como a enxada, também são estudadas
(concepção, tipo de utilização, sentido simbólico associado, termos que
os designam) comparativamente no Vale do Nilo e no Oeste da África.
Da escrita. A África Negra contemporânea conservou sistemas de
escrita de tipo hieroglífico (escritas Vai, Bamoun, Nsibidi, etc.) que se
aproximam da escrita hieroglífica egípcia.

42. Diop, Cheikh Anta, Afrique noire précoloniale e Antiquité africaine par l'image, op. cit.

100 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


Da arte, onde são apreendidas simultaneamente as esculturas dos
artistas do Egipto faraônico, do Benim, da Nigéria, do país Massai, etc.

Os a r g u m e n t o s de o r d e m sociológica colocam em evidência tra-


ços comuns às sociedades do Egipto antigo e da África subsaariana.
Concernem particularmente:
O matriarcado, que caracteriza uma sociedade organizada em torno
da mulher.
O totemismo, que associa de modo complexo um determinado ani-
mal (por exemplo, o falcão, o grou coroado, o crocodilo, o gato...) a um
indivíduo ou grupo de indivíduos e que dá lugar a um culto.
A etnonímia, isto é, o estudo dos nomes de grupos humanos da África
actual que ainda conservam vários nomes comprovados no Egipto an-
tigo: Atoum, Antef, Sek, Meri, Kara, Bara, Bari, Raka, Sem Sar, Kaba, Keti,
Amenti, Mamara, Konare, Sankale, Sangare, Sarikare, etc.
A realeza e os seus atributos, tal como o uraeus, que figura respec-
tivamente nos penteados reais do Faraó e do Oni d'Ife.
A religião, que faz surgir, por exemplo, uma réplica do panteão egipto-
-núbio no Benim, no Togo e na Nigéria nos povos Fon, Ewé e Iorubá.
O sistema de transmissão de saber que apresenta, no antigo Egipto
e na África saheliana, uma característica essencial comum: a trans-
missão da sabedoria iniciática, etc.

Os a r g u m e n t o s de o r d e m a n t r o p o l ó g i c a provêm, de igual modo,


de domínios variados:
O estudo dos textos egípcios hieroglíficos fornece os termos através
dos quais os habitantes do antigo Egipto se designavam a si próprios
como Negros.
A análise dos textos dos historiadores e filósofos gregos e latinos per-
mite extrair numerosos testemunhos acerca do fenótipo dos antigos
Egípcios. Por exemplo, Heródoto ( 4 8 0 ? - 4 2 5 a.C.), designado Pai da
História, grande viajante e testemunha ocular escreve:

Manifestamente, de facto, os Coiquídios são de raça Egípcia; mas alguns Egíp-


cios disseram-me que, no que lhes dizia respeito, os Coiquídios eram descen-
dentes dos soldados de Sesóstris. Eu mesmo tinha conjecturado isto, de acordo
com dois indícios: em primeiro lugar, o facto de terem a pele negra e os ca-
belos crespos (na verdade, isto não prova nada, uma vez que existem ainda
outros povos nesta situação); depois, e com mais significância, pelo facto de,
únicos entre os homens, os Coiquídios, os Egípcios e os Etíopes praticarem a
circuncisão desde a sua origem^^

43. Heródoto, Livro H, 104.

Cheikh Anta Diop: o h o m e m e a obra . Cheikh M'Backé Diop loi


o estudo da Bíblia, das tradições judaica e muçulmana que conser-
vam a memória da descendência de Cham, antepassado bíblico dos
Negros: em particular Kush [Cuxe) e Misraím (o Egipto).
A iconografia (esculturas e pinturas) abundante que cobre todos os
períodos da pré-história e da história egípcias.
A antropologia física e a biologia molecular, com o estudo de medições
osteológicas de esqueletos, o estudo dos grupos sangüíneos e da pig-
mentação da pele das múmias (a melanina, corpo químico responsável
pela cor da pele, conserva-se no tempo e não deve ser confundida com
os produtos de mumificação como o betume) ... revelam o parentesco
dos antigos Egípcios com as populações negro-africanas, etc.

Os a r g u m e n t o s d e o r d e m histórica que fundamentam a anterio-


ridade do Alto Egipto em relação ao Baixo Egipto: a origem da civili-
zação egípcia que falta investigar em África, em direcção ao Sul, e não
ao Norte, nos países do Próximo-Oriente asiático. Esta argumentação
baseia-se: no estudo dos textos hieroglíficos egípcios, que mostra, por
exemplo, que o Egípcio se orientava em relação ao Sul, ou seja, a di-
recção da terra de origem dos seus antepassados que tinham, ao longo
dos tempos, voltado a subir o curso do Nilo "divinizado". E, com efeito,
para o Egípcio, o sol erguia-se sobre a sua esquerda e punha-se à sua
direita.
A tradição histórica referida, por exemplo, por Diodoro da Sicília
(cerca de 9 0 - 2 0 a.C.):

... os Etíopes*'^ afirmam que os Egícpios são uma das suas colônias que foi
levada para o Egipto por Osíris. Estes pretendem até que este país era apenas,
no início, um mar, mas que o Nilo, tendo arrastado muito limo da Etiópia,
tinha acabado por preenchê-lo, formando uma parte do continente..

A geofísica e as datações de amostras geológicas, com o auxílio de


métodos físico-químicos como a do Carbono 14, podem permitir
estabelecer em que época é que a emergência do Delta do Nilo se pro-
duziu, bem como confirmar ou anular as informações recolhidas a este
respeito por Heródoto e Diodoro da Sicília junto dos Egípcios e dos
Etíopes.
A arqueologia, com as escavações levadas a cabo no Alto Egipto e no
Sudão, que colocam em evidência a origem meridional da civilização
egípcia.

44, Etíopes no seio dos Gregos Antigos, ou seja, os Negros Africanos.


45. Diodoro da Sicília, Histoire Universelle; Livro 3, p. 341, trad. de l'abbé Terrasson, Paris, 1758,
citado por C. A. Diop em Nations nègres et culture, op. cit., 1954.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


c. A investigação acerca da evolução das sociedades. Vários desen-
volvimentos importantes são consagrados à génese das formas antigas
de organização social encontradas nas áreas geográficas meridional
(África) e setentrional (Europa), à emergência do Estado, à formação
e à organização dos Estados africanos após a queda do Egipto, à carac-
terização das estruturas políticas e sociais africanas e europeias antes
do período colonial, bem como à sua respectiva evolução, aos modos
de produção, às condições socio-históricas e culturais que presidiram
a Renascença europeia.

d. O contributo da África para a civilização. Este contributo é


restituído em vários domínios: a metalurgia, a escrita, as ciências
(matemáticas, astronomia, medicina ...), as artes e a arquitectura, as
letras, a filosofia, as religiões classificadas (judaísmo, cristianismo,
islamismo), etc.
O conjunto destas grandes problemáticas define, de modo claro e
coerente, um enquadramento, eixos e um programa de trabalho.

3.3. A fecundidade da obra: contributo metodológico


e acervo do colóquio do Cairo

Para extrair a África do paradigma a-histórico e etnográfico no qual


antropólogos e africanistas a tinham confinado, Cheikh Anta Diop
adopta uma metodologia de investigação que se baseia em estudos
diacrónicos, no comparatisme crítico, na pluridisciplinaridade: arque-
ologia, linguística, etnonímia/toponímia, sociologia, ciências exactas,
etc. Graças a uma abordagem simultaneamente analítica e sintética,
foi possível para o autor devolver os acontecimentos históricos, soci-
ológicos, linguísticos, culturais do continente africano, a sua coerên-
cia e a sua inteligibilidade. A nova metodologia em matéria de história
africana, preconizada e empreendida por Cheikh Anta Diop nos seus
trabalhos, encontra-se exposta na sua obra Antériorité des civilisations
nègres - mythe ou vérité historique? [op. cit., pp. 1 9 5 - 2 1 4 ) .
Tratando-se do Egipto antigo então analisado no seu contexto negro-
-africano, Cheikh Anta Diop escreve'''^:

Partindo da ideia segundo a qual o Egipto antigo fazia parte do universo


negro, era necessário verificá-la em todos os domínios possíveis, racial ou
antropológico, linguístico, sociológico, filosófico, histórico, etc. Caso a ideia

46. Diop, CheikJi Anta, Antériorité des civilisations nègres - mythe ou vérité historique?; Paris,
Présence Africaine, 1967, p. 275.

CheikhAntaDiop. o h o m e m e a o b r a . Cheikh M'Backé Diop 103


de partida seja exacta, o estudo de cada um destes diferentes domínios deverá
conduzir à esfera correspondente do universo negro africano. O conjunto des-
tas conclusões formará um feixe defactos concordantes que eliminarão o caso
fortuito. Aqui reside a prova da nossa hipótese de partida. Um método dife-
rente apenas teria conduzido a uma verificação parcial que nada provaria.
Era necessário ser exaustivo.

Em 1970, a UNESCO solicita Cheikh Anta Diop no sentido de este


se tornar membro do Comité científico internacional para a redacção
de uma Histoire générale de l'Afrique. A sua exigência de objectividade
leva-o a colocar três condições prévias à redacção dos capítulos con-
sagrados à história antiga da África. As duas primeiras consistem no
agendamento de um colóquio internacional, organizado pela UNESCO,
reunindo investigadores de reputação mundial para, por um lado,
tratar da origem dos antigos Egípcios e, por outro lado, fazer o ponto
da situação acerca da decifração da escrita meroítica. Com efeito, uma
confrontação dos trabalhos de especialistas do mundo inteiro afigurava-
-se-lhe indispensável para fazer progredir a ciência histórica. A ter-
ceira condição prévia concerne à realização de uma cobertura aérea da
África, a fim de restituir as antigas vias de comunicação do continente.
Foi deste modo que teve lugar, no Cairo, de 28 de Janeiro a 3 de Fe-
vereiro de 1974, organizado pela UNESCO no âmbito da Redacção de
Histoire générale de l'Afrique, o colóquio intitulado: "Le peuplement de
l'Égypte ancienne et le déchiffrement de l'écriture méroïtique".
Este colóquio reuniu uma vintena de especialistas pertencentes aos
seguintes países: Egipto, Sudão, Alemanha, EUA, Suécia, Canadá, Fin-
lândia, Malta, França, Congo e Senegal. A contribuição muito construti-
va dos investigadores africanos, quer no plano metodológico, quer ao
nível da quantidade de factos apresentados e instruídos, foi reconhe-
cida pelos participantes e anotada no relatório do colóquio, nomeada-
mente no âmbito da lingüística'^^:

"Um amplo acordo foi estabelecido entre os participantes." Os elementos


apresentados pelos professores Diop e Obenga foram considerados extrema-
mente construtivos (...) De modo mais alargado, o professor Sauneron salien-
tou o interesse do método proposto pelo professor Obenga depois do professor
Diop. Estando o Egipto colocado num ponto de convergência de influências
externas, é normal que alguns empréstimos tenham sido feitos a línguas es-
trangeiras; mas trata-se de algumas centenas de raízes semíticas em relação
a vários milhares de palavras. O egípcio não pode ser isolado do seu contexto

47. Cf. Histoire générale de l'Afrique, Paris, Afrique/Stock/Unesco, 1980, pp. 795-823.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


africano e o semítico não dá conta da sua emergência; torna-se, portanto,
legítimo encontrar-lhe parentes ou primos em África.

Tratando-se da cultura egípcia:

O professor Vercoutter declarou que, segundo ele, o Egipto era africano na sua
escrita, na sua cultura e na sua maneira de pensar O professor Leclant re-
conheceu esta mesma característica africana no temperamento e na maneira
de pensar dos Egípcios.

Na sua conclusão geral, o relatório indica que:

A minuciosa preparação das comunicações dos professores Cheikh Anta Diop


e Obenga nem sempre teve, apesar das precisões contidas no documento
de trabalho preparatório enviado pela UNESCO, uma contrapartida igual.
Consequentemente, surgiu um verdadeiro desequilíbrio nas discussões.

No final do colóquio do Cairo, Cheikh Anta Diop faz votos no sentido


de uma reorientação dos estudos egiptólogos que deve ser acompanhada
por um diálogo com os investigadores africanos'^®:

Este colóquio pode ser considerado como uma viragem que permitiu à egipto-
logia reconciliar-se com a África e reencontrar a sua fecundidade. [...] O diálo-
go científico no plano internacional está instaurado e podemos esperar que
o mesmo não seja rompido. Na sequência dos debates, alguns participantes
não deixaram de expressar a sua vontade no sentido de reorientar os seus
trabalhos voltados para a África, bem como de intensificar a sua colaboração
com os investigadores africanos.

O facto de o Egipto antigo ser tratado no âmbito da Histoire générale


de l'Afrique, bem como a redacção por Cheikh Anta Diop no Volume
II do capítulo I intitulado "L'origine des anciens Égyptiens'"'^ consti-
tui dois exemplos das recaídas directas do colóquio de egiptologia do
Cairo. A Histoire générale de l'Afrique, editada pela UNESCO, está hoje
completa e disponível; esta comporta oito volumes progressivamente
traduzidos am várias línguas, entre as quais o suaíli e o hausa.
Desde 1974, as descobertas arquelógicas, as análises linguísticas, os
estudos genéticos, o exame da cultura material, o estudo da filosofia,
etc. vêm apenas confirmar cada vez mais as grandes orientações de
investigação recomendadas pelo Colóquio do Cairo.

48. Le Soleil, na 1128Janeiro de 1974.


49. Cf. Histoire générale de l'Afrique, op. cit., pp. 39-72.

Cheikh Anta Diop: o homem e a obra . Cheikh M'Backé Diop loi


4. A continuação da obra histórica e egiptológica
No âmbito da egiptologia, por exemplo, uma comunidade de egitpólo-
gos africanos existe doravante. Esta constituiu-se segundo as etapas
abaixo identificadas.

4.1. O período da investigação solitária: 1 9 4 6 - 1 9 7 0

Até ao início dos anos 1970, Cheikh Anta Diop prosseguiu, numa
completa solidão intelectual, as suas investigações acerca do paren-
tesco existente entre o antigo Egipto e o resto da África Negra inicia-
das há mais de vinte anos. Um veto opôs-se de modo implacável para
que continuasse a leccionar na Universidade de Dakar. Daqui resultam
duas consequências imediatas: a impossibilidade de orientar e de for-
mar jovens gerações de historiadores e egiptólogos africanos, e a de
proceder à renovação completa dos "Estudos africanos", quer a nível
do conteúdo de ensino (integração das antiguidades egipto-núbias,
etc.], quer no dos critérios de competência.

4.2. Théophile Obenga encontra Cheikh Anta Diop

No início dos anos 60, Théophile Obenga descobre o livro Nations


nègres et culture, de Cheikh Anta Diop. Este, já está formado em filoso-
fia e domina o grego antigo, bem como o latim. Orienta-se decisiva-
mente para a egiptologia e para a linguística. Segue os ensinamentos
de grandes nomes da linguística histórica, como Henri Frei na Universi-
dade de Genebra e Émile Benveniste no Colégio de França, em Paris. Os
primeiros resultados das pesquisas de Théophile Obenga em história e
em linguística surgem em artigos desde 1969. Foi em 1 9 7 3 que o autor
publicou, nas edições Présence Africaine, a sua primeria grande obra,
UAfrique dans l'Antiquité - Egypte pharaonique/Afrique Noire.
0 leitor encontrará ali, entre outros, capítulos fundamentais consa-
grados à comparação da língua egípcia antiga com línguas negro-afri-
canas contemporâneas, bem como com os textos antigos do continente
africano. Cheikh Anta Diop já não está sozinho. Este tem conhecimen-
to disso e exprime a esperança, no seu prefácio ao livro de Théophile
Obenga, de ver constituir-se, a curto prazo, uma equipa de investiga-
dores africanos:

E indispensável criar uma equipa de investigadores africanos em que todas


as disciplinas estejam representadas. É deste modo que se colocará, o mais

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


eficazmente possível, o pensamento científico ao serviço da África, com a res-
salva da seguinte condição prévia: Possam estes compreender que ao domínio
dos conhecimentos se deve acrescentar a eficácia da organização por forma
a que se possa manter

O colóquio do Cairo [1974), evocado previamente, consolida a co-


laboração entre os dois homens para a reescrita da história da África e,
por conseguinte, da humanidade, sobre bases estritamente objectivas.
Os resultados do colóquio do Cairo provocam fissuras no dispositivo
de isolamento erguido em torno de Cheikh Anta Diop. A tecnicidade
do debate científico desvenda, a cada dia que passa, a incompetência
africanista que se refugia de modo insalubre, no processo de intenção,
no desprezo, na ironia, na calúnia, na insinuação maldosa. É o conjunto
desta "crítica" africanista, eminentemente ideológica, que Théophile
Obenga analisa em diferentes textos^". Ao longo dos anos, alguns
Africanos comprometeram-se resolutamente na via da egiptologia,
deparando-se em simultâneo com a hostilidade do meio universitário,
nomeadamente em França, onde o estudo do Egipto antigo, no seu âm-
bito natural negro-africano, é considerado "politicamente incorrecto".

4.3. A Escola africana de egiptologia

Em 1981, Cheikh Anta Diop é finalmente nomeado professor de


história associado na Faculdade de Letras e Ciências Humanas em Da-
kar, ou seja, vinte e um anos após o seu Doutoramento. Será professor
de mestrado, de DEA e orientará teses até ao seu desaparecimento em
1986. Desde então, uma escola africana de egiptologia foi progressi-
vamente constituída. Convém sublinhar, aqui, toda a importância que
reveste o conhecimento do interior do universo negro-africano,
particularmente a língua, a cultura material, as concepções filosóficas,
religiosas e sociopolíticas. Cheikh Anta Diop escrevia, em 1 9 6 7 :

[E] os estudos africanos só sairão do círculo vicioso no qual se movem, para


reencontrar todo o seu sentido e a sua fecundidade, caso se orientem em di-
recção ao Vale do Nilo. Reciprocamente, a egiptologia só sairá da sua escle-
rose secular, do hermetismo dos textos, no dia em que tiver a coragem de fazer

50. Obenga, Théophile, Cheikh Anta Diop, Volney et le Sphinx-, Paris, Présence Africaine/Khepera,
1996, cap. 2, pp. 27-44; "Um comentário acerca das reflexões de M. Luc Bouquiaux", Ankh,
4 / 5 , 1995-1996, pp. 317-346; "Les derniers remparts de lAfricanisme", Présence Africaine, n.^
157, semestre de 1998, pp. 47-65; Le sens de la lutte contre l'africanisme eurocentriste; Paris,
Khepera/L'Harmattan, 2001.

Cheikh Anta Diop: o homem e a obra . Cheikh M'Backé Diop loi


explodir a válvula que a isola, doutrinalmente, da fonte vivificante que repre-
senta, para ela, o mundo negro.^^

Referem-se, deste modo, os próprios critérios que um verdadeiro


especialista da África antiga deve satisfazer. Théophile Obenga, autor
de numerosos trabalhos em egitpologia, linguística, história, filosofia
(cf. http://www.ankhonline.com], depois de ter leccionado egiptolo-
gia na Universidade de Brazzaville, prosseguiu a sua actividade de in-
vestigador e de professor nos Estados Unidos. Actualmente, lecciona
e leva a cabo as suas investigações nos EUA, na Universidade de São
Francisco. Na Universidade Cheikh Anta Diop de Dakar, o revezamento
é hoje assegurado pelos egiptólogos Aboubacry Moussa Lam e Baba-
car Sail (cf. http://www.ankhonline.com], que publicaram trabalhos
consagrados relativamente ao estudo das relações estreitas e muti-
formes que unem a Núbia, o Egipto e o resto da África Negra, no tempo
e no espaço^^. Solicitados por numerosos clubes, círculos de estudos,
associações como as Générations Cheikh Anta Diop do Burkina Faso, do
Níger, do Mali, do Senegal... os egiptólogos africanos garantem igual-
mente uma vulgarização acerca da história antiga da África através de
conferências, seminários, exposições organizadas em África, nos EUA,
nas Caraíbas, na Europa.
As grandes orientações de trabalho da escola africana de egitpologia
recobrem as temáticas desenvolvidas por Cheikh Anta Diop, relembra-
das previamente, bem como as recomendações do colóquio de Egitpo-
logia do Cairo. Os resultados mais recentes das investigações linguísti-
cas e culturais, de uma maniera geral acerca da civilização faraónica,
aliados aos das investigações arqueológicas e genéticas, ilustram a
pertinência científica do enquadramento de trabalho negro-africano,
o carácter eminentemente fecundo do paradigma africano. A revista
ANKH, Revue d'égyptologie et des civilisations africaines, tem justa-
mente por vocação publicar tais resultados. ANKH significa a "Vida"
em língua egípcia faraónica. Criada em 1992, a mesma é dirigida pelo
professor Théophile Obenga, os colaboradores da ANKH (cf http://
www.ankhonline.com) são investigadores de diversos países, marca
da sua abertura internacional. Ali encontraremos, para além dos estu-
dos consagrados à Antiguidade egipto-núbia (linguística, cultura mate-
rial, filosofia, religião, arqueologia,...], sínteses acerca da África em geral,
uma secção de ciências exactas (física, matemáticas, informática...) e
uma rubrica bibliográfica. Paralelamente, toda uma série de obras

51. Antériorité des civilisations nègres - mythe ou vérité historique?, op. cit., p. 12.
52. Lam, A. M., De l'origine égypcienne des Peuls: Paris, Présence Africaine/Khepera, 1993, B. Sail,
Les racines éthiopiennes de l'Égypte ancienne; Paris, LHarmattan/Khepera, 1999.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


traduz a riqueza da investigação egiptológica africana (cf. http://wmv.
ankhonline.com). Esta produção intelectual de alto nível é enriquecida
a cada ano com novos estudos e, entre outras coisas, constitui a base
incontornável de um ensino renovado acerca da África antiga.

5. O Renascimento da África e a edificação de


uma civilização planetária
Os Africanos do continente e a diáspora encontram-se, doravante,
edificados sobre o período da sua história, que precede os quatro
séculos do tráfico esclavagista atlântico e de ocupação colonial, até
às épocas mais recuadas. A obra de Cheikh Anta Diop mostra a ne-
cessidade, para a África, de um regresso ao Egipto antigo em todos os
domínios: o das ciências, da arte, da literatura, do direito... A diligên-
cia histórica, longe de ser concebida como um olhar virado para si ou
como uma simples deleitação do passado, permite a Cheikh Anta Diop
definir o âmbito de reflexão apropriado para colocar, em termos ra-
cionais e operatórios, o conjunto dos problemas culturais, educativos,
institucionais, políticos, económicos, científicos, técnicos, industriais,
etc., com os quais os Africanos se confrontam actualmente e para pro-
por soluções.
Cheikh Anta Diop trata todas as principais questões levantadas pela
edificação de uma África moderna: domínio dos sistemas educativo,
cívico e político, com a introdução e utilização das línguas nacionais a to-
dos os níveis da vida pública; o equipamento energético do continente;
o desenvolvimento da investigação fundamental; a representação das
mulheres nas instituições políticas; a segurança; a construção de um
Estado federal democrático, etc. A criação, por Cheikh Anta Diop, do
laboratório de datação através do radiocarbono, que o mesmo dirige
até ao seu desaparecimento, é significativo de toda a importância acor-
dada ao "enraizamento das ciências em África". A obra de Cheikh Anta
Diop apresenta-se, assim, como o próprio pedestal de um verdadeiro
renascimento da África. Segundo o autor, a humanidade deve romper
definitivamente com o racismo, os genocídios e as diferentes formas
de escravatura. A finalidade consiste no triunfo da civilização sobre a
barbárie. Cheikh Anta Diop anseia pela era que veria todas as nações
do mundo unir as suas mãos "para construir a civilização planetária
ao invés de permanecer na barbárie" [Civilisation ou Barbarie, 1981).

Todos nós aspiramos ao triunfo da noção de espécie humana nos espíritos e


nas consciências, de modo a que a história particular de uma ou outra raça se

Cheikh Anta Diop: o homem e a obra . Cheikh M'Backé Diop loi


desvaneça perante a do homem, pura e simplesmente. Só teremos, então, que
descrever em termos gerais, que deixarão de ter em conta as singularidades
acidentais doravante desinteressantes, as etapas significativas da conquista
da civilização pelo homem, por toda a espécie humana. A idade da pedra es-
culpida e da conquista do fogo, o neolítico e a descoberta da agricultura, a
idade dos metais, a descoberta da escrita, etc., já só serão descritos enquan-
to instantes emocionantes das relações dialécticas do homem e da Natureza
alcançadas de modo incessantemente vitorioso pelo homem.

A concretização de tal projecto supõe:


- a denúncia da falsificação moderna da história:

A consciência do homem moderno só pode realmente progredir caso a mes-


ma seja convencida a reconhecer explicitamente os erros de interpretações
científicas, mesmo no âmbito delicado da História, a voltar a estas classifica-
ções, a denunciar as frustrações de patrimónios. Esta ilude-se ao pretender
basear as suas construções morais na mais monstruosa falsificação de que a
humanidade jamais foi culpada, e pedindo simultaneamente às vítimas para
esquecer de modo a progredir melhor.^^

- a reafirmação da unidade biológica da espécie humana, funda-


mento de uma nova educação que recusa qualquer desigualdade
e hierarquização raciais^'^: "... Portanto, o problema consiste em re-
educar a nossa percepção do ser humano, para que esta se afaste
da aparência racial e se polarize sobre o humano, livre de quaisquer
coordenadas étnicas".

53. Diop, Ciieil<h Anta, Antériorité des civilisations nègres - myhte ou vérité historique?, Paris,
Présence Africaine, p. 12.
54. Diop, Cheilcli Anta, "L'Unité d'origine de l'espèce humaine", in Actes du colloque d'Athènes:
Racisme science et pseudo-science; Paris, UNESCO, col. Actuel, 1982, pp. 137-141.

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Estado das investigações acerca
das semelhanças entre a arte egípcia
antiga e a da África negra

Babacar Mbaye Diop'

Introdução
Pode parecer surpreendente falar em semelhança entre a arte do
Egipto antigo e a da África Negra. Porém, são inúmeros os investi-
gadores egiptólogos que consideram que todos os aspectos da vida
cultural da África Negra remetem para o Egipto antigo. Segundo eles,
muitos dos traços da civilização egípcia antiga não podem, de facto, ser
compreendidos caso se desconheçam as características das culturas
da África Negra\ A arte africana e a arte egípcia não estão, deste modo,
tão longe uma da outra quanto se poderia crer; e, em muitos casos, tra-
ta-se de duas componentes de uma mesma realidade artística original
que o tempo e a história fragmentaram em duas entidades.
Na presente análise, examinaremos em primeiro lugar o estilo afri-
cano na sua relação com a arte egípcia; passaremos, de seguida, a uma
breve revisão do estado das investigações acerca das semelhanças en-
tre as duas formas de arte. E para acabar com qualquer malentendido,
demonstraremos, por fim, que esta semelhança poderia de facto ser
uma identidade. Por outras palavras, a existência de um mesmo es-
quema aqui e ali no mesmo contexto pode supor uma origem única.

1. O estilo africano e a essência da arte egípcia


Ainda que fazendo parte da África do ponto de vista puramente
geográfico, o Egipto é frequentemente associado, erradamente, ao

*. Doutorando em filosofia, Universidade de Rouen/ERAC.


1. Cf. Encyclopédie de 1'art; La Pochothèque, Librairie Générale Française, 1991.

Estado das investigações acerca das semelhanças entre a arte egipcia antiga e a da África negra . Babacar Mbaye Diop iii
mundo cultural médio-orlental. Em 1917, Apollinaire já tinha mostra-
do que as artes africanas possuem um "indubitável parentesco com
a estética egípcia da qual derivam". Léo Frobenius, em 1933, na sua
Histoire de Ia civilisation africaine, compara as características da arte
africana com as do Egipto e observa que a fórmula da África Negra
define a própria essência da civilização egípcia. O autor fornece as
características africanas nos termos seguintes:

... os tecidos têm um drapeado mais rígido, as jóias mais ricas são sóbrias, as
armas são simples e não se afastam da sua função [...], as esculturas possuem
Unhas ásperas e severas, [..f Tudo comporta um objectivo preciso, penetran-
te, austero, tectónico. [..f Eis o carácter do estilo africano, [..f Manifesta-se
nos gestos de todos os povos Negros, tanto quanto nas suas artes plásticas,
manifesta-se nas suas danças como nas suas máscaras, no seu sentido reli-
gioso como nos seus modos de existência, nas suas formas de Estado e nos seus
destinos dos povos. Vive nas suas fábulas, contos de fadas, nas suas lendas, nos
seus mitos. Dito isto, se compararmos estas características com as do Egipto,
não se torna evidente que a fórmula da África Negra define também a es-
sência desta civilização particular? Não se exprime o Egipto pré-islâmico de
igual modo, num estilo áspero, severo, reflectido, directo egrave? (p. 20-21J.

Quando Henri Matisse descobre uma máscara africana em Paris, esta


lembra-lhe, afirma o autor, "uma cabeça de pórfiro vermelho das anti-
guidades egípcias do Louvre". Segundo o escultor Jacques Lipchitz, é a
arte egípcia que revela a arte africana^
Em Nations nègres et Culture, Cheikh Anta Diop indica que depois de
ter reproduzido uma série de monumentos representando as diferentes
camadas sociais da população egípcia, incluindo sobretudo os faraós,
intercala tipos de raça negra para que a proximidade ou a diferença
étnica se torne mais deslumbrante. O autor repara, curiosamente, ao
aproximar esta série de figuras, que a arte egípcia é frequentemente
mais africana que a própria arte africana. Nos monumentos, os Egíp-
cios representaram-se com penteados artificiais idênticos às que se
ostentam por todo o lado na África Negra, e acerca das quais falare-
mos aquando da sua análise das cenas da Paleta de Narmer (cf Nations
nègres et Culture, p. 134).
Nas suas Réflexions sur l'art funéraire Kota^, Gérard Delorme, referin-
do-se à origem da arte Kota, demonstra que para encontrar objectos
que evoquem, de perto ou de longe, "estas formas", "esta estilização".

2. A este respeito, ver Marine Degli e IVlarie Mausze, Arts premiers. Le temps de Ia reconnaissance-,
Gallimard, 2000.
3. In Arts dAfrique Noire, n.s 123.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


da arte Kota, seria necessário remontar até ao Egipto antigo para reen-
contrar representações que oferecessem alguns "ares de família". Sem
acreditar totalmente nas teses de Cheikh Anta Diop, aquele confirma
o importante contributo dos povos negros para a civilização egípcia
antiga e não deixa de evidenciar as semelhanças bastante claras entre
certas figuras kota e as representações de cabeças de faraós: com os
seus penteados laterais amplamente desenvolvidos. Torna-se tentador
encontrar um ar "faraônico" nestes objectos.
Exceptuando as semelhanças de aspecto morfológico entre as figu-
ras de relicário kota e as cabeças faraônicas, Gérard Delorme aponta
também para uma outra analogia, aquela que consiste em cobrir a
representação do defunto com um revestimento metálico: o ouro nas
estátuas e nos sarcófagos dos faraós, o cobre sobre as representações
dos grandes dignitários dos clãs kota. Em ambos os casos, o metal obli-
tera completamente a cor inicial do sujeito e atribui-lhe uma aparência
irreal. Esta convergência dos modos de expressão, a saber, o revesti-
mento com um metal brilhante, transformando assim a sua aparência
real, sobre um qualquer suporte, é simultaneamente pouco freqüente
e estranha. Outros investigadores, tais como R. R Briault, apontaram
igualmente para a "similitude evidente entre a arte Bantu e o Egipto
antigo". Serão estas analogias puramente fortuitas? Segundo Raponda-
-Walker, mesmo se, a priori, nada parece aproximar estas duas civiliza-
ções, aparentemente afastadas em simultâneo no tempo e no espaço, e
se não existe, actualmente, nenhum esboço de provas relativamente a
estas relações, mesmo longínquas, entre os Kota e a civilização egípcia,
a questão mereceria ser aprofundada.
Margaret Trowell, na sua obra Classical african scuipture (1964),
estabeleceu paralelos entre as esculturas africana e egípcia, para
demonstrar as relações entre a arte do Egipto antigo e a da África Negra^
Sabemos também que os diferentes reis-divindades da África ociden-
tal e oriental têm a sua origem no Egipto antigo^. Segundo a mesma
ordem de idéias. Paul Bohannan ( 1 9 6 4 ) exprime-se do modo seguinte:

Só é possível compreender bem a religião egípcia referindo a religião afri-


cana; muitos outros aspectos da história e da política egípcias são esclareci-
dos pela etnologia africana. Outrora, era cuidadosamente lembrado que to-
das estas estruturas sociais e culturais tinham sido inventadas no Egipto, de
onde se tinham expandido pelo resto da África. Sabemos hoje que se tratava
de uma simplificação: o Egipto era fundamentalmente uma cultura africana,
modificada por contributos da cultura asiática'^.

4. Classical african sculpture; Londres, 2.^ ed., 1964, pp. 51, 52, 53, 62 e 68.
5. A este respeito, ver P. A. Talbot, The peoples of southern Nigeria; Londres, 1926.
6. Africa and Africans; Garden City, Nova Iorque, 1964, pp. 81-82.

Estado das investigações acerca das semelhanças entre a arte egipcia antiga e a da África negra . Babacar Mbaye Diop iii
A arte do Egipto pré-dinástico a p r e s e n t a principalmente carac-
terísticas africanas. A dos períodos seguintes

... apresenta todas as características de um estilo egípcio evoluído, ao mesmo


tempo que conserva da época pré-dinástica a rigidez da forma, a pose frontal,
a ausência de expressão do rosto e de qualquer indicação clara da idade do
indivíduo: todos estes traços são de facto característicos da maior parte da
escultura africana'^.

Sabemos também que devido às suas funções, estas estátuas egíp-


cias são idênticas às imagens de antepassados provenientes de várias
regiões da África: estas são depositárias de uma força sobrenatural, ofe-
recendo em particular uma morada eterna para a essência espiritual do
homem figurado. Para os Egípcios, a arte é "um assunto prático", cujo
objectivo consiste em assegurar, através de meios mágicos, a eternidade
da pessoa representada. As figuras funerárias são completadas por um
ritual mágico destinado a certificar-se que as mesmas tinham absorvido
o espírito do defunto. Este ritual era efectuado sobre uma escultura que
era uma reprodução idealizada do modelo, sendo a reprodução da figu-
ra humana, mais perceptiva do que visual; tal como Frank Willet afirma:
"a escultura egípcia pertence claramente ao mundo africano"®. Deste
modo, a arte egípcia é mais do que uma fonte de influência sobre a arte
africana; trata-se de uma manifestação local de uma tradição africana
muito corrente. O aspecto africano do espírito egípcio explica-se através
de uma característica da sua cultura. É esta semelhança da cultura egíp-
cia e a da África Negra ou, de modo ainda mais profundo, esta similitude
de construção espiritual que faz com que a cultura egípcia não seja mais
do que o brilho do espírito do Africano, que passaremos agora a abordar
através de alguns exemplos de produção artística.

2. Alguns exemplos de semelhança entre objec-


tos africanos e objectos egípcios
a ) A a r t e das t r a n ç a s : na paleta de pedra do rei Narmer'', as per-
sonagens da face A até aos vencidos da cena inferior que estão em

7. WiJlet, Frank, LArt afrícain [1971]: trad, do inglês por Catherine Ter-Sarkissian, nova edição,
1994, p. 110.
8./bid., p. 112.
9. Descoberta em 1 8 9 8 pelo arqueólogo J. E. Quibell, a paleta de Narmer provém do templo de
Hieracômpolis, uma antiga cidade do Alto-Egipto que foi a capital dos primeiros faraós.
Os egiptólogos concordam em datá-la por volta de 3 1 5 0 antes da nossa era e é atribuída ao rei
pré-dinástico Narmer. É conservada pelo museu do Cairo.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


fuga, como a vítima que vai ser imolada, possuem cabelos artificiais,
por camadas, tal como ainda se observa na África Negra; um penteado
desta natureza, ostentado pelas mulheres jovens designava-se djmbi
nos Wolofs do Senegal; ligeiramente modificado, e usado por mulheres
casadas, este transforma-se no djéré, que desapareceu no Senegal no
início do século XX. Nos homens, o Islão levou ao desaparecimento
deste costume recentemente. Já só se encontram penteados semelhantes
nos Serer, não islamizados até à circuncisão, e nos Fulas: uma das for-
mas especiais destes penteados nestas populações é chamada Ndjum-
bal. No Egipto antigo, o Rei protodinástico Tera Neter usa os cabelos
penteados com tranças. Este tipo de arranjo entrançado é, mais tarde,
observado em numerosas populações Egipto-núbias (escribas, faraós,
artesãos...]. Maspero indica-nos a propósito do faraó Sekenenré que:
"larvas de necróforos deixaram centenas de cascos nas tranças e nas
dobras dos b r a ç o s " " . Este estilo de penteado entrançado existe em
todo o resto da África Negra depois da Antigüidade Egipto-núbia, quer
em populações Oeste-africanas como os Fulas, os Mandigas, os Dogons,
os Wolofs os Akans, os lorubás, os Mangbetues os Fangs da África Cen-
tral. Existe também nas populações do Leste, como nos Massais até aos
nossos dias, tanto nos homens como nas mulheres.

b) Uma t o u c a egípcia que se e n c o n t r a e m q u a l q u e r p a r t e da


África: Permaneçamos na paleta de pedra do rei Narmer. É visível que
os cabelos do rei e do servo estão escondidos pelas suas toucas; o uso
de uma tal peruca era corrente em todas as classes da sociedade egíp-
cia. A touca do rei continua a ser aquela que é usada por todos os cir-
cuncidados do Senegal, ainda que a sua utilização tenda a desaparecer
sob a influência do Islão. Esta é feita unindo duas elipses de tecido
branco, exceptuando uma extremidade por onde passa a cabeça; uma
armação em bambu, que dá a forma da coroa do faraó do Alto-Egipto.
No seu artigo acerca da semelhança dos penteados entre o Egipto
antigo e a África Negra, Moussa Lam demonstra que as formas gerais
de alguns toucados são muito próximas. O laara das línguas fulas é um
arranjo em algodão [originalmente] com forma cónica no topo, e cuja
abertura se une à forma oval do rosto, com dois prolongamentos laterais
que cobrem as orelhas e se reúnem por baixo do queixo por intermé-
dio de dois fios que o portador ata para evitar a queda do chapéu. Este
era o penteado dos circuncidados, dos guerreiros e dos caçadores.
Encontra-se um arranjo semelhante nos Dogons. Marcel Griaule pu-
blicou, aliás, em Dieu d'eau, fotografias destes toucados usados pelos

10. "Les momies royales de Deir El-Bahari", Maspero, MMAF, L fascículo 4, 1889, p. 772, citado
por Aboubacry Moussa Lam em L'affaire des momies royales, Khepera/Présence Africaine, 2000.

Estado das investigações acerca das semelhanças entre a arte egipcia antiga e a da África negra . Babacar Mbaye Diop iii
Dogons. Estes eram muito próximos do némès egípcio (R. M. A. Bedaux,
1 9 8 0 , pp. 9 - 2 3 ) : podiam ser utilizados de modo diferente e apresenta-
vam até, talvez, múltiplas variedades [M. Griaule, Dieu d'eau). O némès
egípcio também não era uniforme; existiam inúmeras variedades. Este
arranjo com três extremidades fechadas {nemsa) é, de facto, aquela
que mais se aproxima do laara, ou do boné dogon, do mbaxana njuli
dos wolof, mesmo que tenhamos de reconhecer que aquele era muito
mais complexo do que estes últimos, com as suas dobras astuciosas e
o seu corte particular, de acordo com aquilo que nos é possível julgar
através das representações que chegaram até nós através dos monu-
mentos egípcios.
A maior parte dos reis de Ifé são representados ostentando um diade-
ma ornado no centro de um emblema análogo ao Uraeus egípcio. A
deusa iorubá, Odudua, representada por uma mulher amamentando
o seu filho, possui uma coroa real formando uma tiara alta de estilo
egípcio".
As semelhanças entre as coroas egípcias e africanas têm a ver tam-
bém com a cor dos penteados. O branco e o amarelo seriam ambos
simbólicos da realeza egípcia. Em África, também encontramos as
duas cores. No Benim, o vermelho e o branco são efectivamente as
cores da realeza.
Nos falantes fulas da região do Senegal, até um passado recente, os
chefes tradicionais de cantão ou de província, usavam por toucado
um penteado simples e alongado com um vermelho escarlate. Nos
vizinhos do Kayor, a coroa ancestral era "formada por um turbante
"ornado" de escarlate". Deste modo, t a m b é m aqui a presença do ver-
melho é incontestável. Nos Bambara, "o vermelho era outrora reser-
vado unicamente ao rei", segundo Dominique Zahan^^. Nos Dogons,
um objecto particular do Hogon que exprime a origem do seu poder
é o boné vermelho.
Em matéria de coroa, tal como se verifica, o simbolismo das cores
entre o Egipto antigo e a África Negra é o mesmo.

c ) A c a b e c e i r a egípcia e o a p o i o de c a b e ç a africano: o explorador


francês F. Cailliaud, falando da sua viagem ao Sudão, descreve em 1 8 2 6
uma cabeceira sudanesa que se assemelha exactamente àquelas que
este tinha "visto por baixo da cabeça das múmias nos túmulos de Tebas,
bem como nas pinturas destes mesmos túmulos"". Para Cailliaud, não
existe lugar para dúvidas: estes objectos, que os Sudaneses do início

11. Cf. "Les couleurs chez les Bambara du Soudan Français", Notes Africaines, n.^" 3 , 1 9 5 1 .
12. Citado por A. Moussa Lam in Afrique-Histoire, n.^ 9, p. 53.
13. Cf. Histoire universelle de l'art; vol. III, p. 55.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


do século XIX utilizavam, eram os mesmos que já tinham sido atesta-
dos na antiga civilização egípcia. Uma cabeceira, tal como Moussa Lam
descreve, é "um objecto de mobiliário, freqüentemente em madeira e
incluindo, na sua forma mais geral, um cabide, um suporte e uma base,
que os antigos Egípcios e algumas populações da África Negra actual,
utilizavam ou ainda utilizam, como apoio para a c a b e ç a " " .
A cabeceira africana actual representa uma continuidade, quer na
sua forma, quer na sua utilização, da do Egipto faraônico. Moussa Lam
refere que a sua semelhança é surpreendente sob qualquer ponto de
vista. Segundo o autor, no que diz respeito ao plano da forma geral,
a cabeceira africana actual nada tem de diferente relativamente à do
Egipto antigo: apresenta-se, de igual modo, no seu aspecto mais geral,
com os três elementos que aquele distingue nos exemplares egípcios
[cabide, suporte e base). A cabeceira é conhecida em todo o continente,
exceptuando a zona norte que corresponde à África branca. Esta serve
de apoio de cabeça e tem por função preservar o penteado dos Egípcios
e assegurar a integridade corporal de um defunto permitindo-lhe res-
suscitar. Estes dois modos de utilização são atestados em quase toda a
parte da África. Não desapareceu completamente do seu antigo berço.
É deste modo que ainda o encontramos, no sul do Egipto, na região
de Assuão, nas Bicharines. É utilizado na Etiópia, principalmente na
Abissínia e no Harar, nos Gallas e nos Turkanas; na Somália, no Quê-
nia, na Zâmbia, em Moçambique, em Angola, no Zimbabwe, no Congo,
mas também na Centráfrica e nos Camarões. Verifica-se igualmente a
presença da cabeceira do lado da África ocidental: no Benim, onde um
exemplar é conservado no Museu do Homem; no Gana, no Mali com os
Dogons e, por fim, nos Bassaris do Senegal Oriental.

d) O m r d o s Egípcios ou a e n x a d a dos Africanos: O mr é um utensí-


lio agrícola que se apresenta sob duas formas: um modelo grande, com
um cabo suficientemente comprido para ser manipulado na posição
em pé e um modelo pequeno, cujo cabo curto supõe uma certa cur-
vatura do utilizador. Moussa Lam, no seu artigo acerca deste objecto
(revista Ankh n.- 2, 1 9 9 3 , pp. 1 9 - 2 7 ) , mostra que utensíHos análo-
gos, simultaneamente nas suas formas e nos seus modos de utiliza-
ção, se encontram nos Haal Pulaar da região do rio do Senegal e nos
Mandigues de Casamança. Nos Haal Pulaar, existe, afirma o autor, o
njinndaangu e o jaio que se assemelham respectivamente, salvo raros
pormenores, às duas versões do mr egípcio. Nos Mandingas, também
existem dois modelos: um grande e um pequeno, que são manipulados

14. Lam, Moussa, idem, p. 53.

Estado das investigações acerca das semelhanças entre a arte egipcia antiga e a da África negra . Babacar Mbaye Diop iii
nas mesmas condições e que possuem as mesmas funções que as duas
formas do mr egípcio.

e ) Bastões, m a ç a s e c e p t r o s do Egipto e da África: Num estudo


consagrado aos "Bastões, maças e ceptros do Egipto e da África Negra",
Moussa Lam fornece alguns exemplares destes objectos escolhidos
pela pertinência das suas semelhanças. A comparação dos factos in-
cide sobre os termos designando estes objectos, a sua forma, o seu
modo de utilização, o seu atributo simbólico:
- Os bastões: Segundo o autor, os termos populares pu/aar permitem,
em inúmeros casos, compreender melhor o significado simbólico e/
ou prático dos bastões egípcios. Este inicia a sua comparação pelo
modelo mais simples, ou seja, o bastão recto e sem qualquer decora-
ção ecpecial. No Egipto, este modelo é representado pelo mdw, que
se caracteriza por uma certa dissimetria das extremidades: aquela
que corresponde àquilo que seria o topo do bastão é visivelmente
mais largo e ligeiramente arredondado; a outra é mais fina e apre-
senta um corte mais regular. O mdw pode ser mais ou menos compri-
do. Nos fulas da região do rio do Senegal, Moussa Lam distinguiu um
modelo equivalente: ? ooldu, um bastão largo e pesado, cujas duas
extremidades são tratadas do mesmo modo que as do mdw egípcio.
Os famosos bastões sobre os quais os anciãos do Fuuta (Senegal] se
apoiam, os bastões aforquilhados dos egípcios (Museu do Cairo] e o
bastão aforquilhado do Hogon identificam-se ao mdw. O tratamento
das extremidades é o mesmo.

Todos estes detalhes demonstram que o aspecto geral dos bastões


era o mesmo para os dos Egípcios e dos Africanos.
- j4s maças: Conhece-se perfeitamente a maça egípcia, de cabeça
piriforme com a qual o faraó massacra ritualmente os seus inimigos.
J. Maes estabeleceu inúmeras semelhanças entre, por exemplo, o nps
egípcio e o yatagan das populações da bacia do Zaire. Este afirma,
de facto, que o Museu do Congo possui cerca de uma centena de ob-
jectos que podem ser classificados na categoria dos quebra-cabeças.
Moussa Lam precisa que os exemplares n.- 27 e, em menor grau, o
n." 3 1 atribuído por J. Maes se parecem mais com a maça piriforme
dos antigos Egípcios. A maça dos Bihe, sem contestação, é extrema-
mente parecida com a famosa arma de parada das memórias egíp-
cias e não existe qualquer ambigüidade a este nível. No Egipto, de
igual modo, a implicação deste tipo de maça nas acções guerreiras
não deixa margem para dúvidas. As semelhanças são, portanto, reais;
são-no também no que diz respeito aos ceptros de autoridade.
- 0 5 ceptros de autoridade: no plano da apresentação externa, a
maça dos Klokos representada por J. Maes, no seu artigo "Les sabres
et massues des populations du Congo Belge"^^ é muito semelhante ao
protótipo egípcio. O tratamento da parte superior dos dois objectos é
praticamente o mesmo. No Egipto faraônico, o ceptro de autoridade
é por excelência heka. Este apresenta-se com um báculo, cuja base
e extremidade se curvam bruscamente para o exterior. Existiam, ao
que parece, duas versões do heka: um modelo de grande dimensão,
sem dúvida feito para servir de apoio ao faraó em posição de marcha
e um modelo de proporções mais modestas para a posição sentada
ou estática. Em África, o heka pode ser comparado ao ceptro do Ayo
dos Kurumbas, apesar de uma diferença notável ao nível do báculo
entre as duas insígnias reais. De facto, o báculo do ceptro do Ayo é
totalmente fechado, enquanto que que o do heka egípcio não. Este é,
reconhece Moussa Lam, um detalhe que pode levar os mais cépticos
a duvidar. A aproximação mais decisiva surge do Hogon dos Dogons
do Mali. O bastão com cabo desta personagem que, tal como o faraó
egípcio, era simultaneamente chefe religioso e político, é muito próxi-
mo do heka egípcio. Tal como a extremidade do modelo egípcio, o do
báculo do Hogon possui uma curvatura para o exterior.

Moussa Lam analisou dois antigos bastões burkinabé conservados


no museu do IFAN em Dakar. Se o historiador Senegalês insiste nestes
dois bastões, é do ponto de vista do tratamento do topo; estes são os
exemplares da África Negra mais próximos do ceptro w^as egípcio de
que temos conhecimento.

f ) A a r q u i t e c t u r a : a forma arquitectural dos monumentos erigidos


no antigo Egipto assemelha-se à dos monumentos erguidos na Núbia,
na Etiópia, no Mali, no Zimbabwe: a pirâmide escalonada de Meidum
no Egipto apresenta várias semelhanças com a do túmulo de Askia no
Mali.

g) I n s t r u m e n t o s d e música, tais como as harpas egípcias que tam-


bém se encontram na África Central (no Gabão}.

A nossa análise das relações entre a arte africana e a arte egípcia ter-
mina aqui. Não nos é possível expor detalhadamente todos os objec-
tos semelhantes. As similitudes entre as duas formas de arte já foram
reveladas, e de modo mais desenvolvido, por vozes mais proeminentes
do que a nossa. Acrescentaremos apenas que a relação entre a arte

15. Cf. in Revue Générale de la Colonie belge, Bruxelas, 1923, figura 28.

Estado das investigações acerca das semelhanças entre a arte egipcia antiga e a da África negra . Babacar Mbaye Diop iii
africana e a arte egípcia não é uma relação de analogia e que as
semelhanças entre vários objectos não podem ser consequência de
um mero acaso. É este o motivo pelo qual propomos agora fornecer as
linhas directrizes para evitar os mal-entendidos que surgem da am-
biguidade dos conceitos de similitude e de analogia. O mais importante,
para nós, é de mostrar que esta semelhança resulta de uma identidade
comum. Um trabalho filosófico, muito mais detalhado do que o nosso
actual propósito, que definisse estes conceitos, seria metodologi-
camente útil nas relações entre a arte africana e a arte egípcia: este
permitiria demonstrar a profunda unidade cultural e artística entre o
Egipto antigo e a África Negra. Por outras palavras, tais investigações
em matéria artística alcançariam conclusões inteiramente renovadas,
relativas à natureza da arte africana e da arte egícpia. É a este trabalho
conceptual, que não é o do historiador nem do antropólogo, que convi-
damos os filósofos africanos.

3. Será esta semelhança identitária ou uma


simples analogia?
Á diversidade e a profundidade das semelhanças que acabámos de
constatar entre a arte egípcia e a arte africana actual perturbam várias
certezas e convidam a uma investigação aprofundada acerca da unidade
cultural egipto-africana. Resta, agora, saber se esta proximidade repre-
senta uma simples analogia ou se se trata, de facto, de uma identidade.
É necessário esclarecer aqui este ponto de vista, a fim de afastar
qualquer ambiguidade na análise destes diferentes conceitos. A iden-
tidade pode aqui significar, quer uma identidade essencial de um
objecto a si próprio através de figuras que o mesmo é susceptível de
revestir, quer a semelhança de dois objectos de exacta reprodução de
forma e tamanho, ou de duas propriedades conceptuais que impli-
cam, para objectos diversificados, uma relação com o verdadeiro. Com
base nestas semelhanças, como estabelecer linearmente as relações
que podem existir entre a criação artística do Egipto antigo e a da
África Negra? Como saber se os cabelos artificiais, por camadas, das
personagens da face A da paleta de pedra do rei Narmer são idênti-
cas ao djmbi ou ao djéré em alguns Wolofs, ou ao Ndjumbal dos Fulas do
Senegal? O que é que nos permite identificar com toda a segurança a
cabeceira dos Egícpios na África Negra? Existe aqui todo um trabalho
multidisciplinar extremamente importante a fazer, que concerne si-
multaneamente à arqueologia, à história, à filosofia, à antropologia e
à linguística.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


Por mais surpreendente que possa parecer, deve "apenas" conhecer-
-se teoricamente as condições, necessárias e suficientes, de inclusão de
um objecto na classe das tranças ou das cabeceiras. O mesmo consiste
em saber traçar a linha de demarcação entre aquilo que é uma trança
ou uma cabeceira, e aquilo que não o é. O historiador da arte, de boa
fé e não sendo ideologicamente motivado, que afirma que as tranças
em forma de camadas, na África Negra actual, são as mesmas tranças
que foram apontadas na cabeça do rei Narmer, não ignora o que é uma
trança, isto é, onde começa e onde acaba este gênero de tranças. Isto
porque, como é que o mesmo poderia identificar um gênero de trança,
caso este não soubesse reconhecer o termo geral que ocupa o lugar
central em qualquer julgamento de identidade?
Na medida em que este sabe o que é uma cabeceira, torna-se imedi-
atamente capaz de designar a priorí um princípio de diferenciação a
propósito das cabeceiras: sabe não somente diferenciar uma cabeceira
da outra, mas também uma trança de outra. Portanto, se o historia-
dor sustenta que o apoio de cabeça dos Africanos é o mesmo objecto
que o da cabeceira egípcia, é porque a existência desta cabeceira deve
ser uma "existência continuada". Saber o que é uma cabeceira, é saber,
em princípio, em virtude de que factor qualquer cabeceira pode per-
manecer idêntica a si própria: "um julgamento de identidade, e con-
sequentemente um enunciado de identificação, a propósito de uma
coisa não exige nada mais, nada menos, do que o domínio completo do
conceito dessa coisa"". Evidentemente, a identidade revela essencial-
mente duas coisas: ou a unicidade atribuída a vários objectos primei-
ramente apreendidos, criados ou nomeados de maneira diferente (tra-
ta-se da identidade numérica), ou a particularidade de vários objectos
possuírem as mesmas propriedades, salvo a de serem confundidos no
espaço ou no tempo (trata-se da identidade dita específica ou qualita-
tiva).
A identidade aplicada a um objecto ou a um ser que é "um e o mesmo"
é conhecida como identidade numérica. Quando se trata de indivíduos,
fala-se em identidade pessoal. O indivíduo é este ou aquele, por força
de uma certa permanência do ser, física e socialmente identificável.
Mas esta identidade concreta pode dar lugar a uma análise abstracta;
uma análise que coloca em evidência uma identidade específica ou
qualitativa entre duas realidades. Ganhando em complexidade, o con-
ceito de identidade encontra então o seu verdadeiro peso filosófico, na
medida em que a perda de uma certa univocidade imediata o trans-
porta para linguagens mais elaboradas da analogia. Ora, a identidade
não é uma analogia.

16. Grand dictionnaire de la philosophie, dir. Michel Blay, Larousse, 2003.

Estado das investigações acerca das semelhanças entre a arte egipcia antiga e a da África negra . Babacar Mbaye Diop iii
A semelhança consiste numa relação entre dois elementos que per-
mite estabelecer um certo grau de identidade relativamente a uma ou
várias propriedades. Esta relação é obviamente reflexiva e simétrica,
porém, é possível contestar a sua transitividade e, por conseguinte, o
facto de se tratar de uma relação de equivalência. A proximidade entre
a arte egípcia antiga e a arte africana é uma identidade, uma vez que
a identidade designa a relação que dois ou vários objectos apresen-
tam entre si, e que possuem uma similitude perfeita. Do latim idem, o
mesmo, a identidade é aquilo que não difere em mais nada; que apre-
senta, com alguma coisa, uma perfeita semelhança. O ceptro egípcio é
idêntico ao bastão africano, porque ambos reúnem várias dimensões
que estão relacionadas; a permanência através do tempo, que aliás não
afasta a mudança, e a unicidade absoluta do objecto. Os gêmeos verda-
deiros são de facto dois, não apreendem exactamente a mesma coisa
no mesmo momento, são diferentes um do outro. A cabeceira egípcia é
idêntica ao apoio de cabeça africano no sentido em que mantêm entre
si uma relação de continuidade e de permanência, através da varia-
ção das suas condições de existência e dos seus estados, ou da relação
que faz com que estes dois objectos, diferentes sob múltiplos aspec-
tos, sejam no entanto semelhantes e mesmo equivalentes do ponto
de vista de tal relação. Deste modo, termos reconhecidos enquanto
distintos não podem ser designados de idênticos, sem que a relação
em causa, sob pena de se extinguir, jamais possa anular esta diferença
que a mesma articula no interior de uma linguagem. Resta mencio-
nar os dois aspectos que este sentido é susceptível de revestir, e que
se apreende melhor através de um exemplo: "Estes dois objectos são
idênticos", ou "temos o mesmo objecto", pode significar a identidade
material e a total contemporaneidade dos escultores ou do objecto, ou
ainda uma assimilação na distância que se baseia numa equivalência
qualitativa. Esta semelhança não pode, portanto, constituir uma ana-
logia. Quando dois objectos são parecidos, impõe-se uma identifica-
ção parcial ou total ao nosso espírito. Enquanto que numa analogia,
a relação de correspondência não se impõe de imediato; esta neces-
sita de uma reflexão ou de uma análise mais aprofundada. Ali mesmo
onde a identidade implica, assim, dois objectos de reflexão idênticos, a
analogia necessita de uma semelhança entre dois ou mais objectos de
reflexão essencialmente diferentes. Se admitirmos que foram as mes-
mas populações negras do Egipto antigo que povoaram toda a África
sul-saariana, não é de estranhar que objectos do Egipto antigo possam
ser encontrados na África Negra.
A semelhança extrema entre os objectos de arte egípcios e negro-
-africanos actuais, não deixa margem para qualquer dúvida acerca

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


da sua origem comum. Apenas contactos directos e contínuos podem
explicar a profundidade das semelhanças constatadas. O facto de a
mesma forma artística estar espalhada e de se encontrar sempre no
mesmo contexto significa que existiu uma origem única que se difun-
diu. Na maior parte dos casos, existe a conservação do mesmo material
e do verdadeiro sentido.
Alguns traços comuns podem emergir em culturas sem qualquer
relação umas com as outras. Mas nos casos em que a forma, o significa-
do e a função das produções artísticas são semelhantes em sociedades
que mantiveram trocas na época em causa, poder-se-á deduzir justa-
mente a existência de uma continuidade. A semelhança idêntica entre
os objectos de arte egípcia e os da arte africana situa-os no seio da
dialéctica do mesmo e do outro, no pólo do semelhante. Por outras pa-
lavras, o facto de um objecto do Egipto antigo poder ser encontrado na
África Negra actual, dá-lhe a possibilidade de ser Outro. Este vive num
encontro incontornável da alteridade. O Além e o Aqui encontram-se
lado a lado. Neste sentido, pode existir um Diferente no Mesmo, um
Além no Aqui e, inversamente, um Mesmo no Diferente e um Aqui no
Além.

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lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


Estado das investgações acerca
da antiguidade africana

Babacar Salh

Introdução
A história é uma ciência e uma disciphna. Esta não se caracteriza
pelo seu objecto, método e campo de estudos ou de investigações. A
confusão entre estas duas categorias está, provavelmente, na origem
da falsa definição que reduz a História ao estudo do passado. Esta
definição parece-nos falsa porque o passado, enquanto noção, consiste
num julgamento de valor. Partamos da dicotomia clássica que dis-
tingue a história "em si" e a história "por si".
A história "em si" remete para o conjunto das vias e meios através dos
quais uma sociedade assegurou, através do tempo, a sua produção e
reprodução sociais. A história "por si" refere-se, por sua vez, ao estudo
das fases e dos modos através dos quais uma sociedade assegurou as
mesmas através do tempo. Desta distinção resulta que toda a sociedade
possui uma história "em si". A questão de poder estudar esta história,
de torná-la numa história "por si", coloca um problema de meios, de
técnicas de investigação, de mentalidade. Segundo esta perspectiva,
a história é uma ciência recente e distingue-se, em vários aspectos,
da narrativa que pode ser assimilada à forma primitiva do discurso
histórico. A outra questão que se coloca, então, consiste em saber se se
deve falar de história africana ou de história das sociedades africanas.
Preferimos falar em história das sociedades africanas, na medida em
que a expressão história africana nos parece corresponder ao estudo
das especificidades das sociedades africanas. Ora, do mesmo modo,
como não existe química africana, não poderia existir uma história
africana particular, mas História das sociedades aíricanas. Esta percepção

1. Professor de História, Egiptólogo, Universidade Cheikh Anta Diop de Dakar.

Estado das investgações acerca da antiguidade africana . Babacar Sali 125


permite evitar um dos problemas dos estudos históricos que consiste
em proceder a divisões geográficas das questões históricas.
Por conseguinte, remeter-nos-emos ao estudo histórico das socie-
dades africanas, permanecendo no segmento temporal designado de
Antiguidade. A referência geográfica é apenas um pretexto para testar
as técnicas operatórias da ciência conhecida como História. Torna-se
necessário relembrar os termos de outro debate, o de saber, se são ne-
cessários historiadores de um período ou historiadores de uma insti-
tuição. Enquanto produto da primeira tradição, é de acordo com esta
primeira óptica que hoje me vou situar.

1. Generalidades e problemática
Poderei surpreender alguns, desde o início do nosso presente en-
contro, ao afirmar que continuamos sem saber de onde provém o
termo África. De entre as hipóteses introduzidas no primeiro volume
de VHistoire générale de VAfrique^, editado sob a égide da UNESCO,
nenhuma é objecto de acordo entre os Historiadores. É contudo aceite
que nos antigos textos gregos, o termo Lihuè/Libia designava, em alguns
dos seus usos, o continente que designamos hoje de África. Precisemos
de imediato que a história das sociedades africanas durante a An-
tiguidade resume-se essencialmente ao Vale do Nilo. Isto não repre-
senta um particularidade já que a história das sociedades europeias
do mesmo segmento temporal também se reduz à Grécia e a Roma, da
época micénica à queda de Roma. Mas poderíamos colocar a questão
de saber se existe uma antiguidade em África. Formulemos a questão
de outro modo. Será possível realizar uma análise histórica acerca do
período antigo em África? Segundo Cheikh Anta Diop, uma das razões
que o tinham levado a escrever Nations nègres et culture era a seguinte:

Enquanto que o europeu pode remontar o curso da sua história até à anti-
guidade greco-romana e às estepes eurasiáticas, o Africano que, através das
obras ocidentais, procura recuar no seu passado histórico, até à fundação do
Gana (século 111 a.C. ou século III). Para além disso, estas obras indicam-lhe
uma profunda obscuridade. O que faziam os seus antepassados no continente
desde a Pré-história?^

Ao redigir e ao publicar a obra supracitada, Cheikh Anta Diop fun-


dava, não a história "por si" das sociedades africanas, mas a história

2. Edição de 1980, p. 21.

3. Diop, Ciieilíli Anta, Nations nègres et culture; prefácio, p. 27 da edição de 1979.

126 Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng AConsciência Histórica Africana


antiga das ditas sociedades. Por conseguinte, contribuía com uma
inovação major, ao fornecer àquilo que designávamos ou designamos
por história africana, como que uma nova profundidade. O autor
concentra-se no facto de a África, no estado actual da investigação,
emergir como o continente
- onde a humanidade surgiu;
- onde se elaborou o primeiro sucesso cultural da humanidade, a
saber, o Egipto dos faraós;
- onde, pela primeira vez, as mulheres, a saber as candaces de Cuche,
exerceram o poder enquanto soberanas.

Cheikh Ánta Diop é, de modo praticamente incontestável, o funda-


dor da Escola africana de História, não somente da história das socie-
dades africanas, mas pura e simplesmente da história. Note-se que o
conhecimento que detemos acerca das vias e dos meios, das fases e
dos modos através dos quais uma sociedade assegurou a sua produção
e reprodução sociais coloca problemas, interpelações, ambições, mas
também sonhos e utopias daqueles que elaboram uma página de
história, bem como da sociedade ou do grupo social para os quais os
mesmos elaboram uma página de história. Os problemas levantados
pelos trabalhos de Cheikh Anta Diop e daqueles que se situam na sua
esteira provêm, segundo nos parece, do facto de, em alguns meios, não
ser possível que os Negros em geral, os Negros Africanos em particular,
colonizados, alienados, excluídos de entre os intervenientes no futuro
da humanidade, empreenderem a escrita e a história das suas socie-
dades e a história da humanidade. Ora, não somente Cheikh Anta Diop
revelava os desafios do discurso histórico, mas lembrava também que
já não era possível que a história das sociedades africanas fosse
elaborada por não-Africanos, uma vez que, segundo um provérbio
muito conhecido, aquilo que se faz por vós e sem vós, será feito contra
vós. Desde então, a análise histórica das sociedades africanas, partindo
de critérios classificatórios extraídos das problemáticas endógenas,
fez grandes passos. Passaremos a elaborar, no decorrer do presente
encontro, o panorama destes conhecimentos. Porém, tendo em conta
que uma das características de um discurso que se quer histórico re-
side na apresentação, por muito breve que esta seja, da documentação,
pronunciemo-nos acerca desta de modo sumário.

2. A documentação
A história, afirmava Mare Bloch, é a ciência dos vestígios. Actual-
mente, uma página da história antiga das sociedades africanas começa

Estado das investgações acerca da antiguidade africana . Babacar Sali 127


na Núbia-Sudão, esta região que os autores gregos antigos designavam
de Etiópia. Foi neste local que Diodoro situou o surgimento do homem.
É neste local que paleontólogos e geneticistas, apesar das suas di-
vergências, situam os lares de emergência dos hominídeos mais an-
tigos. Foi neste lugar que se comprovaram, segundo as escavações do
instituto de estudos orientais da universidade de Chicago, os lares de
constituição das formas primitivas do Estado''. Durante muito tempo,
estudada enquanto apêndice do campo arqueológico egípcio, a Núbia-
-Sudão acabou por ser integrada e considerada como a matriz deste
mesmo campo. Trata-se apenas de um justo regresso àquilo que, se-
gundo os sábios gregos, retomando uma tradição dos antigos Egípcios,
representava a terra onde os deuses tinham reinado antes de confiar
o poder aos homens e subir aos céus. Prova deste estado de coisas, os
congressos de Nubiologia, de investigações das especificidades, foram-
-se atenuando, tendo o último colóquio sido o de Chantilly em 1975.
Um breve olhar em torno dos recursos da história das sociedades afri-
canas na Antiguidade estabeleceria a tipologia seguinte:

2.1. As fontes textuais

Nesta rúbrica, e de acordo com uma abordagem regressiva, começare-


mos pelos textos gregos antigos. Um recenseamento antigo tinha sido
feito pelo R. P. E. Mveng^ Apesar da sua riqueza em informações, es-
tes apresentam a falha de ser tardios, de misturar, por vezes e nem
sempre, mitos, lendas e narrativas. No entanto, estes constituem uma
boa base para estabelecer um primeiro panorama da Antiguidade na
África mediterrânica e nilótica. A sua utilização pode revelar-se muito
pertinente para entrever o povoamento, naquela época, das costas oci-
dental e oriental da África®. A desconstrução destes discursos revela,
em parte, o seu fundamento egípcio. Estes textos egípcios, segundo um
recenseamento antigo, foram editados por K. Sethe. Estes constituem a
incontornável série dos Urkunden^.

4. Cf. William, B., "The Qostul incense burner and the case for a nubian origin of ancient egyptian
kingship", in Egypt in Africa; ed. Celenko, Th., Indianapolis museum of art, 1996, pp. 95-97; Id.,
"Forebears of Menes in Nubia", in /. N. E. S., 1987; Scott Macleod, "The Nile's other Kingdom", in
Time, Setembro de 1997.
5. Cf. Les sources grecques de l'histoire négro-africaine de Homère jusqu'à Strabon; 1972.
6. Cf. Berthelot, A., VAfrique centrale et occidentale; ce qu'en ont connu les anciens; 1926.
7. Cf. Urkunden des Alten Reiches; Obersetzung zu den Heftem 1-4 der Urkunden IV, 1 9 1 4 e 1984;
Urkunden der ägyptischen Altertums, IV, Urkunden der 18. Dynastie, Leipzig, 1930; Urkunden der
ägyptischen Altertums, VU, Urkundem des Mittleren Reiches, 1935.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


À tradução inglesa elaborada por J. H. Breasted® em 1926, veio juntar-
-se a de A. Roccati'' que, infelizmente, só considera os textos de cariz
histórico relacionados unicamente com o Antigo império, isto é, com
o terceiro milénio a.C. Ao lado de Religiöse Url<unden de H. Grapow
(Leipzig, 1 9 1 5 - 1 9 1 7 ] , de The egyptian coffin texts, estabelecido, entre
outros autores, por Buck A. ( 1 9 3 5 - 1 9 4 7 ] , do The booi< of the Dead: the
chapters of coming forth by Day, pubhcado por Budge, E. A. W. (1898],
dispomos, sempre em relação ao Egipto, da recolha de A. Barucq e
F. Daumas intitulado Hymnes et prières de l'Égypte ancienne ( 1 9 8 2 ] ,
Há muito tempo que G. Lefebvre publicou em versão francesa os Ro-
mans et Contes égyptiens de 1'époque pharaonique. Mais recentemente,
Cl. Lalouette forneceu novas traduções de alguns textos".
Os textos meroíticos, ainda que incompreendidos, acabam de ser
objecto de publicação por J. Leclant. No que concerne a África mediter-
rânica a oeste das bacias do Vale do Nilo, para além dos textos gregos
e latinos, dispomos de recolhas de textos púnicos deixados pelos
Cartagineses" e o Catálogo do museu Alaoui au Bardo estabelecido
por Du Coudray et a///. Lembremo-nos que ao nível das fontes textuais,
o Vale do Nilo é privilegiado, quer em matéria de recursos internos,
quer de fontes externas.

2.2. As fontes arqueológicas

Neste domínio, é impossível repertoriar aqui as referências, de tal


modo estas são numerosas, variadas diversificadas. A sua particu-
laridade, a sua dificuldade, por assim dizer, reside na sua dispersão
através das bibliotecas e centros de investigação. O acesso a estas
supõe meios de que o investigador africano raramente pode dispor.
Neste registo, será necessário distinguir as informações provenientes
das escavações das que resultam de simples prospecções.
De uma maneira geral, a arqueologia em África, exceptuando o baixo
e médio Vale do Nilo, fez passos de gigante no que concerne aos perío-
dos ditos pré-históricos e modernos. Permaneçamos, contudo, na
antiguidade, já que é sobre este período que o nosso encontro in-
cide. Exceptuando o Vale do Nilo e a margem meridional do Mar
Mediterrâneo, não existe quase nada em matéria de xilografia e de
numismática. No planalto saariano, nos períodos correspondentes às

8. Cf. Ancient Records os Egypt.


9. La Littérature historique sous l'Ancien empire égyptien, 1982.
10. Cf Textes sacrés et textes profanes de l'ancienne Égypte, 1984.
11. Cf Corpus inscriptionum semiticorum, 1881.

Estado das investgações acerca da antiguidade africana . Babacar Sali 129


épocas pré-dinásticas e dinásticas, os quadros rupestres constituem
verdadeiros livros de imagens, vestígios daquilo que foram as vias e os
meios, as fases e os modos através dos quais várias populações garan-
tiram as bases da sua produção e reprodução sociais. O mesmo será
dizer que em matéria de antiguidade em África, as regiões nilóticas,
submediterrânica e saariana, são privilegiadas. Indicámos anteriormente
que não se tratava de uma especificidade, já que a mesma constatação
vale para a Europa e para a Ásia. Á situação já era a mesma na Ánti-
guidade, uma vez que a escola grega clássica de estudos africanos só
levou a cabo análises e descrições nestas regiões.
Alguns historiadores africanistas procuraram e ainda procuram re-
duzir as passagens dos textos gregos antigos relativos à África a lendas
e mitos. Salientemos que esta atitude não tem qualquer consistência,
na medida em que são as mesmas fontes que servem de fundamen-
tos à reconstituição das civilizações da Europa antiga. Tudo isto para
dizer que aquilo que Heródoto apresenta acerca da África não passa
de mitos e lendas, aquilo que a mesma fonte afirma acerca da Grécia
são também mitos e lendas. Ora, os Africanistas em causa não deixam
de tirar esta conclusão. Para além disso, o estudo da história das
sociedades africanas na antiguidade recorre de modo pertinente aos
resultados da paleobotânica e da paleoclimatologia. Quanto à antropo-
logia, muitas vezes agitada para negar as análises de inúmeros histo-
riadores, africanos em particular, esta necessita em primeiro lugar de
um mínimo de concordância acerca dos seus critérios de classificação.
Remetemos para a entrevista de Jean Coppans no jornal de vulgariza-
ção Histoire, n.^ 293, de Dezembro de 2 0 0 4 .

3. Panorama
Voltemos a repetir Quando se fala da Antigüidade em África, os es-
píritos voltam-se em primeiro lugar para o Vale do Nilo. Aqui, foram
constituídos os Estados egípcio, cuchita e aksumita. O Egipto repre-
senta o conjunto das terras situadas no norte da primeira catarata e
que o Nilo inunda com as suas cheias. A sua emergência no final do quarto
milênio resultou de três revoluções. O Egipto, pouco antes de - 3 0 0 0 :
1) a unificação territorial e política. Isto traduziu-se por um en-
genhoso sistema hidráulico construído com diques de protecção, ca-
nais de irrigação e bacias de retenção das águas. Este sistema, para
além de permitir o domínio do rio, oferecia às populações estabeleci-
das na planície aluvial, a possibilidade de proceder a uma utilização
racional e judiciosa das potencialidades de que o Nilo era vector

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


2) a elaboração de um sistema de escrita com duas variantes. A vari-
ante dos hieróglifos utilizava imagens convencionais de elementos
dos reinos divino, humano, animal, vegetal e mineral. Caracteres sagra-
dos, estes serviam para redigir os textos religiosos, os acontecimen-
tos e os gestos das divindades entre as quais o faraó e pessoas rela-
cionadas com a corte. A variante hierática, constituída por caracteres
extremamente estilizados, servia para redigir os textos profanos,
como os tratados de matemática, os documentos contabilísticos, etc.
3) a constituição de uma monarquia forte de direito divino encar-
nada pelo faraó, e assistida por uma burocracia pletórica, mas efici-
ente e eficaz, constituída pelos escribas. Estes dados de base são vi-
síveis nos vasos dos períodos que precedem a emergência do Estado
monárquico. Encontram menções fugazes nos Textes des pyramides e
em alguns textos gregos antigos.

A sua constituição foi um lento e complexo processo do qual é pos-


sível apreendermos as primeiras manifestações no final do quarto
milênio. Entre 3 6 0 0 e 3 3 0 0 a.C., existiu uma unificação cultural do
vale. O processo partiu de Nagada, um local do Alto Egipto. Heródoto
tinha chamado a atenção para o facto de a região onde teve lugar a
etnogénese dos antigos Egípcios corresponder ao Alto Egipto. Mais
tarde, em conseqüência de uma pressão demográfica, os antigos Egíp-
cios espalharam-se até ao Delta (Heródoto, II, 15).
Esta dupla unificação era animada por um poder monárquico
constituído no espaço, contendo as localidades de Tinis, de Abidos e
de Hieracômpolis. Aqui, nesta data, surgem os primeiros hieróglifos.
As escavações de Günter Dreyer no cemitério U de Abidos, do túmulo
U-j em particular, revelaram a existência, na época, de uma socie-
dade hierarquizada, cheia de desigualdades, que conhecia o arma-
zenamento, traduzido pela presença de vasos com fundo pontiagudo
com ou sem elementos de preensão. Esta pressão demográfica terá
provocado o desenvolvimento da cultura dos cereais e o comércio de
longa distância em direcção à Núbia e às costas siro-palestinianas. Foi
deste modo que se constituiu um grupo social que se pode caracteri-
zar como aristocracia, cujas riquezas encontramos nos túmulos. Os
homens que estiveram na base destas mudanças eram os herdeiros
de uma tradição cujos vestígios mais antigos são comprovados numa
área que se estende dos Grandes Lagos ao Quênia actual. Trata-se da
civilização dos pescadores de Gamble's cave, de Early-Khartoum e de
Es-shaheinab. As paletas pintadas em forma de peixe, os harpões far-
pados, as goivas e as cabeças de maça encontrados no Egipto, em par-
ticular no Faium, foram inventados nas cat-fish caves do Sudão. Aqui,

Estado das investgações acerca da antiguidade africana . Babacar Sali 131


tudo começou na época correspondente ao Tardiglaciar na Europa.
Durante este período que se estendeu desde cerca de 2 1 0 0 0 a 1 5 0 0 0
B. R, o Saara tinha sido esvaziado do essencial das suas populações^l A
área que se viria a tornar o território do reino do Egipto era lamacenta,
infesta, inospitaleira em conseqüência da captura do Atbara pelo Nilo,
isto, desde 2 5 0 0 0 B. R A alta Núbia e o Sudão nilótico setentrional,
com um biótopo sahelo-sudanês, registava uma rarefacção de caça.
As populações voltavam-se para a exploração dos recursos haliêuticos".
A partir de 1 5 0 0 0 B. R, assiste-se a um recuo, do sul para o norte,
do deserto do Tardiglaciar. Assim, caçadores e pescadores viriam a
acompanhar o percurso do deserto. Se os instrumentos dos caçadores
não chegaram até nós, foi pelo facto de estes últimos não terem cria-
do um lar. Para além das armaduras, os pescadores traziam com eles
a cerâmica que tinham inventado para ferver moluscos. Este tipo de
cerâmica núbio-sudanesa deu origem à cerâmica das classes P e B do
Egipto pré-dinástico. Ao ocupar a planície aluvial do baixo Nilo, isto
é, aquele que se viria a transformar no território do reino do Egipto,
estas comunidades de pescadores constituíam ali entidades políticas
de tipo clânico. Estas desenvolvem, naquele local, aquilo que designa-
mos de culturas pré e proto-dinásticas entre as quais a Badaríana, a
Amratiana ou Naqada 1, a Gerzeana ou Naqada 11 e a Semaniense ou
Naqada III. Cerca de -3500, enquanto que no Saara, a cultura dita
bovídea estava no seu auge, graças ao regresso da humidade do Plu-
vial IP'', assiste-se a uma unificação cultural do baixo Vale do Nilo. Era
a obra da monarquia constituída em Hieracômpolis e em Abidos. Esta
monarquia, cujos soberanos só reinaram numa porção do Egipto e cu-
jos nomes não chegaram até nós, representa no jargão egiptológico, a
dinastia "O". Perante os efeitos devastadores das cheias do Nilo, estas
comunidades viriam a empreender grandes trabalhos de construção
de diques de protecção, de canais de irrigação e de bacias de reten-
ção das águas. A direcção destas obras necessitou da instituição de um
órgão de coordenação.
Assim surgem os primeiros funcionários chamados "Os nomeados
para a vigilância do nilómetro". É deste modo que emerge o Estado
egípcio na sua fase balbuciante. Surgiu numa época em que um clã,
tecnologicamente forte, se apoderou de toda esta organização para se
impor a todas as comunidades do Vale baixo do Nilo, criando assim o
reino unificado do Egipto. A tradição reteve que o homem que esteve
na base desta iniciativa foi Narmer, identificado ao Menés ou Meni dos

12. Cf. Gabriel Camps, Les civilisations préhistoriques de l'Afrique du Nord et du Sahara, 1974.
13. Cf. As escavações de F. Wendorf da SIVIU de Dallas.
14. Cf. Cornevin M., L'archéologie africaine à la lumière des découvertes récentes, 1993.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


textos gregos antigos". Este reino que se tranformou num império no
início dos século XVI a.C., criou a ciência, as artes e a literatura. Perante
Unamon, que tinha ido buscar madeira ao actual Líbano, um príncipe
de Biblos reconhece que "Amon fundou todos os países; fundou-os,
mas fundou antes de qualquer outro, o país do Egipto de onde vens.
E, foi do Egipto que nasceu a sabedoria [a ciência e a filosofia] para
alcançar o meu próprio país^®.
O papel civilizador do Egipto foi reconhecido logo na Antigüidade.
Prova disso é o facto de Alexandre o Grande, um Grego formado no ra-
cionalismo de Aristóteles, ter de afrontar o deserto para ir para o oásis
saariano de Siwah, com o intuito de solicitar a Amon que aceitasse ser
o seu pai e confiar-lhe o governo do mundo." As vias e os meios, as
fases e os modos através dos quais os antigos Egípcios, garantiram, ao
longo de cerca de quatro milênios, a sua produção e reprodução soci-
ais são amplamente descritos e comentados nas obras. Poupar-me-ei e
poupar-vos-ei retornar ao assunto durante este encontro.
Para além de ter fornecido ao Egipto os homens e as culturas a partir
dos quais este se tornou no florão da antigüidade, o espaço núbio-
-sudanês foi vital para o país dos faraós. Era este que fornecia, entre
outros produtos, o incenso. Ora, o que seria do Egipto sem este produ-
to que era suposto despertar os deuses? Com efeito, a cada manhã,
quando os primeiros raios de sol surgiam no horizonte, no Santo dos
Santos de cada templo, o sacerdote concluía a fumigação, através do
incenso, da estátua da divindade que se revelava então do seu torpor.
No mesmo instante, no frontão do templo, o friso dos babuínos sau-
dava o sol, vitorioso pelas forças hostis que tinha combatido, durante
a noite, na penumbra da Douât. O Egipto era um dos países onde se
sacrificava muito em honra dos deuses. Ora, tal como Heródoto salien-
tava, este país não constitui um grande território de criação, devido à
exiguidade do terreno que nunca ultrapassou 30 0 0 0 Km2i®.
A Núbia-Sudão nilótica era, desde o oitavo milênio, uma terra de cri-
ação de animais. A arte rupestre representa a ilustração mais perfeita
deste facto. Sob a IV® dinastia, o faraó Snefru regressava de uma expe-
dição a estas regiões com cerca de 2 0 0 0 0 0 cabeças de gado. Esta zona,
a Núbia-Sudão, não era uma espaço inorgânico. Alguns "exploradores"
egípcios que a tinham percorrido no terceiro milênio tinham mencio-
nado a presença de entidades políticas que, se não tinham atingido a

15. Cf. Derchain Ph., "Ménès, le roi quelqu'un", in Rde 18,1966, pp. 31-36.
16. Cf. Gustave Lefebvre, Romans et contes égyptiens de l'époque pharaonique, 1976.
17. Leclant, J., "PerAfricae sitientia, témoignages des sources classiques sur les pistes menant à
l'oasis d'Ammon", in B. I. F. A. 0.
18. Leclant, J., "Les "empires" et l'impérialisme de l'Égypte pharaonique", in Duverger M., Le con-
cept d'empire, 1980.

Estado das investgações acerca da antiguidade africana . Babacar Sali 133


forma monárquica do Estado, não deixavam de constituir entidades
políticas bem estruturadas. Sob a VI- dinastia, alguns funcionários
egípcios como Ouni, Herkouf, Pepinakht, etc., referem os Estados de
Irthet, Wawat, Setou e sobretudo Vam^'^. A natureza dos produtos que
este Estado fornecia ao Egipto (menciona-se a madeira de ébano, o
óleo-hékénou, as sementes-sat, o marfim, peles de cervo e de pigmeu]
permite demonstrar que o seu território se alargava até à confluência
do Nilo Azul e o do Nilo Branco. Derrota das teses neo-hegelianas de
uma África no sul do Saara fechada sobre si própria, excluída das cor-
rentes históricas.
Os Núbio-sudaneses, designados Néhésiyou pelos antigos Egípcios e
pelos Etíopes nos textos gregos antigos, estavam presentes no Egip-
to antes e durante toda a história do Egipto faraônico. Domésticos e
pastores, estes asseguravam o policiamento dos faraós desde o Antigo
império.^" As representações que possuímos destes Núbio-Sudaneses,
tal como o túmulo de um certo Ankhtify em Moalla, anulam as teorias
fantasiosas que procuraram e ainda procuram estabelecer distinções
raciais entre Egípcios e Núbio-Sudaneses na antigüidade. A riqueza
do espaço núbio-sudanês atraiu rapidamente o Egipto, cuja opção ex-
pansionista para o sul originou um processo federativo dos Estados
situados no sul do seu território. Deste modo viria a surgir, no início
do segundo milênio a.C., o reino de Kush. Constituído na planície do
Dongola, com Kerma por capital, Kush viria a expandir-se, absorvendo
a planície do Byuda, com Napata como centro principal. Mais tarde,
alargar-se-á à planície do Butana dominada por Meroé. Primeiramente
reino independente, de - 2 0 0 0 a -1560, Kush foi depois uma colônia do
Egipto, de - 1 5 6 0 a 1085. Nesta data, em resultado da crise que reinava
no Egipto, Kush alcançava a sua independência. Iniciou um processo
de restruturação e, em meados do século Vlll a.C., empreendeu a con-
quista do Egipto que dominou até - 663. Expulsos do Egipto pelos As-
sírios, os Kushitas voltavam-se para Napata, e para Meroé, onde per-
petuavam a tradição faraônica em toda a sua pureza. Inovadores, estes
elaboravam uma escrita que os egiptólogos designam como Meroítica.
Em Amon, substituem Apedemak como divindade da monarquia e,
qual cereja no topo do bolo, iniciam uma dinâmica política graças à
qual algumas mulheres acedem à monarquia enquanto soberanas: são
as candaces. Enquanto que, cerca de -30, o Egipto, em conseqüência da
conquista romana, não passava de uma simples província de Estado

19. Cf. Sall, B., "Herkouf et le pays de Yam", in ANKH, 4 / 5 , 1995-1996; Id., "Géopolitique de la
Nubie-soudan pré-koushite", in Mélanges d'archéologie, d'histoire et de littérature offerts au doyen
Oumar Kane, Dakar, P. U. D., 2000, pp. 47-60.
20. Cf Valbelle D., Les neufs arcs L'Égyptien et les étrangers, de la préhistoire à la conquête
d'Alexandre, 1990.

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cujo centro estava situado no exterior do continente, os Kushitas con-
tinuavam a viver a herança dos faraós. É por volta de meados do século
IV a.C. que o reino de Kush desaparece, desestruturado pelo reino de
Aksum, sob a direcção de Ezana, que as fontes apresentam como um
poderoso soberano cristão.
No exterior do Vale do Nilo, o que sabemos das populações africanas
e dos seus modos de vida durante a antigüidade? Do ponto de vista
textual, o vazio é total. Certamente, os textos gregos antigos mencionam
a existência de comunidades etíopes. Estrabão refere que existiram
tempos em que todas as terras do Sul que se expandiam em direcção
ao Oceano eram designadas de Etiópia (Estrabão, I, 2, 27). Este pre-
tendia, muito provavelmente, afirmar que eram habitadas por comu-
nidades etíopes. Não há dúvida que estes propósitos diziam respeito a
tudo aquilo que designamos hoje por África.
Da análise de outras passagens, podemos deduzir que na época do
geógrafo, existiam populações em África que não eram Etíopes. Este
dado já tinha sido expresso por Heródoto. Segundo este último, a África
a oeste das bacias do Vale do Nilo era habitada, no seu tempo (século V
a.C.) por quatro grupos humanos. O autor escreve:

... o que ainda tenho para dizer acerca desta região [a África saariana, sahe-
liana, sudanesa, etc.] é que quatro raças a ocupam..., sendo duas destas raças
autóctones. Uns [os Líbios] habitando o Norte da Líbia, os outros [Etíopes], o
Sul, sendo os Fenícios e os Gregos emigrantes^^.

Se algumas das comunidades que formavam eram compostas por


agricultores, outros eram nômadas, entenda-se, criadores. Heródoto
menciona grandes negociadores Etíopes que praticavam o comércio
mudo com os Cartagineses (Heródoto, IV, 196). O essencial do conhe-
cimento que possuímos acerca destas regiões provém da arqueologia
e dos resultados da paleoclimatologia. Ora, segundo Moses I. Finley, a
arqueologia não pode dar conta nem das relações de propriedade e
de produção, nem dos sistemas de repartição de bens ou da economia
política^l
O autor considera que durante o Tardiglaciar, um imenso deserto co-
bria toda a metade norte da África, até às latitudes da actual Nigéria.^^
Na época, nas zonas hoje equatoriais e tropicais húmidas, predomi-
navam a caça e a pesca. Com o recuo do deserto do Tardiglaciar, estas

21. Heródoto, IV, 197.


22. Cf. "Archaeology and history", in Daedalus, 100, 1971, pp. 168-186.
23. Cf. Rognon P., Biographie d'un désert, Paris, Pion, 1989; id., "Une extension des déserts (Sahara
et Moyen Orient] au Tardiglaciaire (18 000- 10 000 B.P)", in R. G. P. G. D., 1980, pp. 4 1 3 - 4 2 8 .

Estado das investgações acerca da antiguidade africana . Babacar Sali 135


comunidades iriam voltar a invadir o planalto saariano, agora verde-
jante com o regresso da humidade do Pluvial II e da transgressão
lacustre^"*.
Estes Negros transportaram, para o planalto saariano, instrumentos
entre os quais o parafuso de Ounan (local do actual Mali), que ocupa
um lugar primordial enquanto expressão desta invasão da metade
setentrional da África por populações cuja cultura se elaborou na
África equatorial. Aqui, antes do Neolítico, tinham florescido culturas
ditas epipaleolíticas como o Tshitolien em que as armas de arremesso
tinham substituído as armas de mão^^. O que dizer se não que o arco
tinha sido inventado^®. Desde o oitavo milénio, estas comunidades de
caçadores e pescadores dedicaram-se à criação, à semelhança dos
pescadores da África oriental que tinham, para além disso, inventado
a olaria. No VIII- milénio, em redor do Tibesti e do Air, assiste-se ao
surgimento da idade pastoral".
Deste modo, foi no coração da África que surgiu aquilo que, no Saara,
viria a tornar-se na cultura bovídea. Esta é comprovada pelas pinturas
rupestres, cujos recenseamentos constituem numerosos corpus^''. No
Tassili, esta atingiu o seu apogeu no quarto milénio a.C. O seu declínio
terá começado em meados do terceiro milénio a.C. em consequência
do processo de acentuação da desertificação, a qual teve efeitos no
Egipto, onde deu origem a uma crise de adaptação. Nesta data, o país
dos faraós assistia ao estabelecimento das piores condições climáticas
no seu solo, relacionadas com a desertificação do Saara^^. Este factor
veio juntar-se às lutas políticas que se tinham exacerbado sob a sexta
dinastia e que favoreceram o desmoronamento do período menfítico,
aquela que tinha assistido ao levantamento das pirâmides. Os autores
desta cultura dita bovídea eram Negros provenientes dos alto e médio
Vale do Nilo. Os sábios da Grécia estavam conscientes disto. Estrabão
refere, com base no texto perdido de Éforo e que se intitulava Europa,
que segundo uma tradição que tinha lugar em Tartessos, tinham sido
Etíopes a invadir o planalto saariano até ao Atlas. Dali, alguns ter-se-
-iam deslocado para a costa, mas a maior parte permaneceu para trás
(Estrabão, I, 2, 26). Os esqueletos encontrados no Saara, em particular

24. Cf. Quezell P. e Martinez G., "Le dernier inter-pluvial au Sahara central", in Libyca, 6-7, 1958;
Servant M., Séquences continentales et variations climatiques. Evolution du bassin du Tchad au
Cénozoïque supérieur, 0. R. S. T. 0. M./Paris VI, 1983.
25. Hugot, J., Préhistoire de l'Afrique, 1970.
26. Cf. Huard, R e Leclant, J., La culture des chasseurs du Nil et do Sahara, 1982.
27. Cf Roset J. P., "Céramique et Néolithisation en Afrique saharienne", in Guilaine J. editor, les
premiers paysans du monde. Naissance des agricultures; Paris, Errance, 2000, pp. 261-290.
28. Cf. entre outros autores, H. Breuii, H. Lhote, R. Mauny, etc.
29. Cf. Bell, B., "The dark ages in ancient history. I: the firste dark age in Egypt", in A / A., 7 5 , 1 9 7 1 ,
pp. 1-26.

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em Amekni, no Hoggar, apresentam todas as características dos
esqueletos dos Negros. Evidentemente, a maior parte dos au-
tores preferem qualificá-los de negróides, termo de fraca consistência
científica. Para levar a cabo um estudo acerca das relações entre os
autores do Bovídeano do Egipto pré-dinástico e dinástico, podemos
começar por ler os textos de T. Gostynski^".
Mas, voltemos ao Vale do Nilo. Devido à cobiça egípcia, à qual já alu-
dimos, sabemos um pouco mais acerca das populações e dos modos
de vida dos médio e alto Vale do Nilo. As inscrições biográficas de fun-
cionários do Antigo império indicam-nos que, no sul do Egipto, exis-
tiam entidades políticas entre as quais Wawat, Sétou, Irthet e Yam que
foram, nesta época, protagonistas do Egipto. Entre estas biografias, a
mais célebre é a de Herkouf. Este executivo tinha levado a cabo quatro
expedições ao país de Yam. Os produtos que trazia destas terras longín-
quas eram constituídos por madeira de ébano, óleo, marfim, peles de
animais e sementes. Estes últimos demonstram que a economia yamita
era, simultaneamente, agrária [sementes) e florestal [ébano). Entre
Yam e o Egipto, estendiam-se os territórios de Wawat, Sétou e Irthet.
A sua economia era predominantemente pastoral. Estes Estados esta-
beleceram, em primeiro lugar, relações cordiais com o faraó. Depois,
em conseqüência da política expansionista do Egipto, estas relações
deterioraram-se para se tornar conflituosas. Deste modo, ao regressar
da sua segunda expedição a Yam, Herkouf tinha sido feito prisioneiro
pelo príncipe de Sétou e Irthet então confederados. No final da quarta
expedição, Herkouf trazia um pigmeu. Sendo o habitat dos pigmeus,
ramo da humanidade específico do mundo negro, a zona florestal,
concluiu-se, entre outras coisas, que na época os caravaneiros egípcios
freqüentavam a região do Bahr-el-ghazaI, tendo em conta que é nesta
região que cobre o sudoeste do actual Sudão e o nordeste da Centrá-
frica que se situam os pigmeus mais setentrionais. A tese hegeliana de
uma África no sul do Saara virada para si própria, excluída das corren-
tes históricas, não possui, deste modo, qualquer fundamento. No início
do segundo milênio a.C., as terras nilóticas e subnilóticas que se estendem
da primeira catarata no Norte até à confluência dos dois Nilos iam ser
unificadas numa única entidade política conhecida por reino de Kush.
Durante toda a primeira metade do segundo milênio, o Egipto conten-
tava-se em subjugar este Estado. Os textos que nos informam acerca
deste estado de coisas são os textos de feitiçaria^\

30. "La Libye antique et ses relations avec l'Égypte", in Lexikon der Ägyptologie, L 1 , 1 9 7 2 , colunas
67-69.
31. Cf. Posener, G., "Die Achtungstexte", in Lexikon der Ägyptologie, 1,1,1972, colunas 67-69.

Estado das investgações acerca da antiguidade africana . Babacar Sali 137


No decorrer da segunda metade do segundo milênio a.C., Kush foi
conquistado pelo Egipto que o submeteu à aculturação. A crise egípcia,
designada por Terceiro período intermédio ( 1 0 8 5 - 7 5 0 a.C.), permitiu
a Kush recuperar a sua independência. A aristocracia, extremamente
egipcianizada, levou a cabo a restruturação do reino. Cerca de 750 a.C.,
o processo estava concluído. Os soberanos empreenderam a conquista
do Egipto, então nas mãos dos dinastas ditos líbios, isto é, dos Egíp-
cios cujos ascendentes eram provenientes do Saara. Os episódios da
conquista do Egipto pelo soberano kushita nomeado Peye encontram-
-se relatados num célebre documento. Trata-se da esteia da vitória de
Peye [cf, Grimai, N., La stèle triomphale de Pi(ankh)y au musée du Caire
[]. E. 48862 e 47086-47089), 1981].
A ocupação do Egipto foi de curta duração já que em 6 6 3 a.C., os
Assírios expulsavam os Kushitas e instalavam no trono uma dinastia
fantoche, a dos Psamético. Esta, com o apoio de mercenários gregos,
conseguiu assegurar a sua autonomia em relação à corte de Nínive.
Mais tarde, foi varrida pelos Persas. Após a sua expulsão do Egipto, os
Kushitas instalavam-se em Napata. Naquele lugar, estes viriam a per-
petuar a civilização operando transformações progressivas. A partir
do século terceiro a.C., o Egipto, administrado pelos Gregos, voltava-se
cada vez mais para o Mediterrâneo. Em Kush, cujos centros nevrálgi-
cos se tinham deslocado mais para o sul, existiu um processo de rup-
tura, nunca concluído, com o modelo egípcio. Criou-se ali uma escrita
ainda não decifrada. A Amon, substitui-se Apedemak enquanto chefe
do panteão local. Ademais, inovação primordial, as mulheres acediam
ao poder; estas eram as candaces. Apesar das rupturas, a par do seu
nome teóforo formado a partir do de Amon, as candaces veiculavam
na sua consciência a ortodoxia de Amon. É por volta de 3 4 0 / 3 6 0 que
este segundo grande reino negro-africano, depois do Egipto, foi con-
quistado pelo soberano axumita Ezana. Na sua lápide em Ghèze, Kush
encontra-se transcrito Kasu.
Se existem alguns indícios que permitem fundamentar a tese da
existência de relações entre o país dos faraós e o limite da actual zona
equatorial e florestal, apenas alguns fragmentos de indícios induzem
contactos indirectos entre o Egipto e a África ocidental não saariana.
Com efeito, algumas sementes de plantas, cujo centro de domestica-
ção se supõe pertencer à África ocidental, foram atestadas no Egipto
dinástico. Entre elas, existe o Cajanus cajan ou cajan, das índias, ou
a ervilha de Angola. As suas sementes são comprovadas nos túmulos
da XII® dinastia. Ora, parece estar assegurado o facto de esta planta
ter sido domesticada na África subsaariana onde ainda existe a espé-
cie selvagem. Existe também a vigna unguiculata ou vigna baoulensis

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


[niébé em wolof, uma das línguas principais do Senegal). Semeada no
oeste da África, esta foi detectada nos complexos arqueológicos data-
dos da V^ dinastia.
Quanto ao ricinus communius ou ricínio comum, igualmente criado
na África ocidental, este é comprovado no Egipto, em contextos pré-
-dinásticos^^. A existência de tais relações em épocas tão recuadas
supõe a da rede rodoviária. Também neste caso existem alguns peque-
nos indícios. A sul da terceira catarata, encontra-se o lugar de Kerma.
Examinado no início do século por G. Reisner, e durante estes últimos
anos por Ch. Bonnet do Instituto de Genebra, este local parece ter sido
o centro de um poderoso reino que foi o antepassado de Kush.
A pista conhecida por Sikkat el-Meheila conduzia a Kerma, prove-
niente de Meroé através da planície de Boutana via Napata, através
de Bayuda. Era também o terminal da pista do wadi el-Melek ou wadi
el-Milk, que ligava o coração da planície de Dongola comandada por
Kerma, a Darfur e a Cordofão, e ainda mais além, na curva do Niger.
Terá sido através desta pista que vigna unguiculata e ricinus commu-
nis terão transitado para chegar ao Egipto via Núbia. Na biografia de
Herkouf, na qual se relata uma guerra entre o soberano de Yam e popu-
lações do Saara, o soberano yamita afirma que, indo combater estas
populações chamadas témékhou, teve de se dirigir até ao horizonte
ocidental do céu. Quereria este dizer até ao Darfur-Cordofão ou até
ao coração da África ocidental, terra de domesticação dos produtos
supracitados? A esta questão, não existe, actualmente, qualquer res-
posta textual ou arqueológica. Dos oásis de Dakhleh e de Khargeh, às
latitudes do alto Egipto, a cerca de 4 0 0 km do Vale do Nilo, algumas
pistas partiam também em direcção ao Darfur e à curva do Niger. No
Saara subnúbio, alguns ramaldes destacados destas pistas dirigiam-
-se em direcção ao vale. Ali, onde se encontra o local de Selima, que
representava um nó das vias terrestres indo ou voltando dos oásis do
Saara subegípcio por Bir tarfawi/ Birsahara e a depressão do tchade.
Deste modo, é possível ter uma idéia, devido à cobiça egípcia, das
populações da África subnilótica, bem como do seu gênero de vida
na Antigüidade.
Mais uma vista de olhos em direcção ao oeste. Tratando-se do Saa-
ra, sabemos através das fontes gregas que houve tempos em que este
fervilhava com vida. Que reconstituição poderemos tentar para com-
preender tais propósitos? Aqui, é a arte rupestre e os resultados da
paleoclimatologia que servem de base. Tudo parece ter começado no
final do árido do Tardiglaciar.

32. Cf. Blench R., "Connections between Egypt and subsaharan Africa: the evidence of cultivated
plants", in Davies W. V., Egypt and Africa: Nubia from Prehistory to Islam, 1993, pp. 54-56.

Estado das investgações acerca da antiguidade africana . Babacar Sali 139


Das latitudes da actual Nigéria, dos alto e médio vale do Nilo, algumas
populações, seguindo o rasto do recuo do deserto do sul para o norte,
povoavam o planalto saariano. A primeira vaga foi a dos caçadores.
Estes foram os autores das gravuras rupestres. A idéia segundo a qual
se tratava de caçadores deduz-se pelo facto de as silhuetas animais que
dominam os seus quadros serem aquelas com que um povoamento de
caçadores se alimentam. É inútil procurar lares, tendo em conta que
o caçador não acampa num único lugar durante longos períodos para
deixar vestígios indeléveis da sua ocupação do solo. Depois dos caça-
dores chegam os pescadores. A sua presença no Saara está ilustrada
pelas redes e outros utensílios de pesca, que Henri Lhote encontrou no
Tassili. Estes foram o ramo saariano da cultura dos pescadores que se
expandiu, a partir do X^ milênio, da região dos Grandes Lagos ao Quê-
nia, e cujo apogeu se situou no VIP milênio a.C. Estes pescadores, cuja
cultura foi transplantada para o Egipto, deixaram acampamentos céle-
bres no Sudão. Os mais citados são Khartoum e Es-Shaheinab. Foram
eles que inventaram as maças para quebrar a cabeça dos batráquios e
a cerâmica para ferver moluscos. Desde cedo, começaram a criar ani-
mais para "melhorar" a sua alimentação.
Depois dos pescadores, chegam os autores da cultura dita bovídea.
Estes deixaram pinturas rupestres dominadas por silhuetas de
bovídeos. A sua cultura formou-se numa área que se estendia desde a
Etiópia actual até ao Tibesti. Autores do verdadeiro neolítico do Saara,
os bovideanos tiveram de abandonar a região quando, cerca de 2 5 0 0
a 2 0 0 0 a.C., o planalto sofreu o processo de drenagem que está na ori-
gem do actual deserto. O que terá existido no sul do Saara e a oeste
do vale do Nilo? Este é domínio da nossa ignorância. Abordamos aqui
a evocação de domínios pouco e/ou insuficientemente estudados da
evolução das sociedades africanas durante a antigüidade.

Conclusão
Por muito grandes que tenham sido os passos efectuados no estudo
e na compreensão da evolução das sociedades africanas no segmento
temporal designado por Antiguidade, estes são ainda insuficientes.
Primeiramente, pelo facto de imensas regiões ainda serem terra
incognita. Os historiadores africanos especializados na antiguidade
constituem apenas um frágil cenáculo. As suas condições de existên-
cia não somente os isolam, em certa medida, uns dos outros, mas fa-
zem também com que se encontrem ausentes de alguns encontros. Em
Africa, as políticas de investigação são quase inexistentes, sobretudo

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


em matéria de ciências sociais. Todos os dirigentes reconiiecem, nos
seus discursos, o seu carácter vital. Toda a gente está de acordo acerca
do facto de a orientação, ou reorientação, do nosso futuro estar em
parte subordinada ao conhecimento daquele que foi o nosso itinerário.
Porém, as prioridades parecem situar-se noutro lado. Confirma-se,
contudo, tal como Diodoro da Sicilia tinha sugerido, que o Egipto anti-
go foi apenas a forma monárquica do Estado que, enquanto categoria,
teve origem na Núbia. Os túmulos das populações criadoras da cultura
designada como pertencente ao grupo-A, as de Siali e de Qostul, na
baixa Núbia, forneceram as provas. A imagem de um homem adorando
um serekh, por cima do qual se encontra um falcão vergado, é atestada
num sinete descoberto em Siali. A decoração do incensário descober-
to em Qostul, obra do grupo-A, mostra uma procissão de três barcas
dirigindo-se para a fachada de um palácio. Encontramos, na barca do
meio, o falcão em cima de um serekhg associado a um homem enfeitado
com aquilo que se transformará na coroa branca do Alto Egipto. Este
último possui, entre as suas mãos, um flagellum, outra insígnia dos
tempos dinásticos no Egipto.
Procurámos demonstrar, noutras circunstâncias, que os criadores da
civilização do Egipto estavam relacionados com o universo da cultura
dos pescadores nascido numa área que se alargava desde os Grandes
Lagos até ao Quênia. Ora, entre os elementos da decoração do incen-
sário de Qostul encontramos, para além das barcas, o peixe siluro,
hieróglifo que entra na grafia do nome de Narmer, bem como os arpões
farpados. Existe também a imagem de uma leoa. Trata-se, muito pro-
vavelmente, de uma representação de Sekmet, que surge nos textos
como uma núbia, também designada "A Longínqua".
O hieróglifo transcrito ta-séti, isto é, a Núbia, está igualmente com-
provado no selo de Siali. Ora, estes dois documentos, segundo as
análises de Keith C. Seele e de Bruce Williams, estão datados de cerca
de três gerações antes de Narmer, o fundador, não da monarquia, mas
do Estado unificado do reino do Egipto. Tal é, portanto, o panorama su-
cinto das investigações acerca das sociedades africanas no segmento
temporal denominado Antigüidade.

Estado das investgações acerca da antiguidade africana . Babacar Sali 141


Egipto antigo e África negra:
alguns factores novos que esclarecem
as suas relações

A. Moussa Lam^

Introdução
As relações entre o Egipto antigo e a África Negra foram e continu-
am a ser um importante tema de debate no seio das escolas de egip-
tologia ocidental e de Dakar. A primeira dedicou-se antes de mais a
isolar a civilização egípcia antes de aceitar, por fim, voltar a colocá-la
no seu contexto africano; a segunda sempre defendeu a tese de uma
profunda unidade cultural e racial entre o Egipto e a África Negra.
Alguns factores novos, resultantes das investigações levadas a cabo
por egiptólogos negro-africanos (continente e diáspora] permitem
hoje confirmar a existência da unidade egipto-africana, cujo berço
mais fecundo é de facto o Egipto antigo. Este berço foi deslocado
apenas com o enfraquecimento e com a queda do poder faraônico,
dando assim origem a vagas migratórias em direcção ao interior do
continente.
No presente texto, apresentamos algumas das nossas decobertas
pessoais, entre as quais a exploração permite dar novos passos na di-
recção indicada, desde 1 9 5 4 , pelo grande Africano Cheikh Anta Diop.

1. 0 debate
Tal como relembrámos na introdução, as relações entre o Egipto
antigo e a África Negra fazem parte destas questões de egiptologia
mais entusiasticamente discutidas: um dos pais da egiptologia, Gaston
Maspero ( 1 8 4 6 - 1 9 1 6 ] , não hesitou em absolver os antigos Egípcios e

1. Professor de história, egiptólogo, universidade Cheikh Anta Diop de Dakar.

Egipto antigo e África negra: alguns factores novos que esclarecem as suas relações . A. Moussa Lam 143
torná-los em invasores provenientes do exterior da Áfrical Segundo
Claire Lalouette, estes eram mestiços de Africanos e de Semitas, mas
os últimos teriam sido dominantes e vindo da Ásia a partir do quarto
milênio^
Com Jean Leclant, o debate transpõe um passo muito importante.
Este autor reconhece, de facto, que para compreender culturalmente
o Egipto antigo, é necessário olhar para o lado das civilizações negro-
-africanas; mas atenção, existe uma coisa que não se deve perder de
vista: os antigos Egípcios não eram Negros, porque "os Egípcios da
época faraônica jamais se consideraram eles próprios como Negros";
daí, portanto, a necessidade de separar raça e civilização. Para Leclant,
as semelhanças entre o Egipto antigo e a África Negra forjaram-se no
Saara. Eis o motivo pelo qual o autor rejeita resolutamente a idéia de
migrações saídas do Egipto em direccção a outras partes do continente,
fazendo troça com um humor feroz da propensão dos Africanos negros
em procurar para si raízes egípcias a fim de rectificar alguns erros da
história colonial. É de acordo com esta perspectiva que o acadêmico
afirma que o facto de todo o mundo querer aproximar-se do Egipto con-
siste na prova da falta de seriedade das teses avançadas, isto porque,
no seu espírito, uma tal eventualidade nem sequer é possível. No que
concerne às aproximações lingüísticas avançadas pelos especialistas
africanos, o autor considera que se deve escolher o copta e não o an-
tigo egípcio, tendo em conta que o primeiro possui a vantagem de ser
vocalizado. Em suma, Leclant não quer ouvir falar de um berço nilótico
egipto-africano e menos ainda de migrações partindo do Egipto'^.
Maurizio Damiano-Appia foi aquele que teve a coragem de reconhecer
as manipulações feitas pelos seus a n t e c e s s o r e s em torno de uma
pretensa "Raça Dinástica" branca e mesopotâmica, a fim de excluir
os Africanos da gênese da civilização egípcia. Apesar disso, este con-
sidera que os Egípcios eram uma raça à parte, feita a partir de uma
"síntese mágica" implicando grupos provenientes dos quatro pontos
cardinais que se encontraram no Egipto. É este o motivo pelo qual o
autor rejeita aqueles que pretendem que os Egípcios eram Brancos
e os que afirmam que eram, pelo contrário, Negros. Damiano-Appia
afirma vigorosamente que "a diferença não dava lugar nem à crítica,
nem à discriminação. A diferença era ignorada e todos os cidadãos

2. Histoire ancienne des peuples de l'Orient, Paris, Hacliette, 1912, pp. 16-17; Les momies royales de
Deir el-Bahart, Mémoires de la Mission Archéologique Française, I, 4, Paris, E. Leroux, 1889; ver
também Lam A. M., L'affaire des momies royales, Paris, Présence Africaine, 2000.
3. Lalouette, C., L'art et la vie dans l'Égypte pharaonique; Paris, Fayard, 1992, pp. 13-14.
4. J. Leclant escreveu bastante acerca das relações entre o Egipto e o resto da África, porém,
dois textos poderiam resumir o seu ponto de vista: "Afrika", Lexiíion der Ägyptologie, I, 1, 1972 e
"Egypte pharaonique et Afrique", Institut de France, n.s 1 0 , 1 9 8 0 .

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


eram iguais desde que cumprissem as regras do Estado"^ Assim, de
Maspero a Damiano-Appia, o Egípcio passa do Branco mais puro ao
mestiço mais perfeito e ter-se-ia separado definitivamente do Africa-
no (termo utilizado pelos especialistas ocidentais para permanecer na
imprecisão) no Saara devido à desertificação.
Perante tais teses existem, como é evidente, as de Cheikh Anta Diop
que poderiam resumir-se do seguinte modo: depois da desertificação
do Saara, as populações negras retrocederam maioritariamente para
o Vale do Nilo, onde viveram até à queda do poder faraónico, período
durante o qual começaram a dispersar através de vagas migratórias
sucessivas no interior do continente®. É este o motivo pelo qual o au-
tor de Nations nègres et culture afirma existir uma profunda unidade
cultural entre Egípcios antigos e Negro-Africanos. Certamente, Cheikh
Anta Diop utiliza uma argumentação variada por forma a sustentar o
seu ponto de vista; porém, citaremos em particular as tradições que
o autor convoca para demonstrar que as populações negro-africanas
nunca esqueceram as suas origens nilóticas; este é todo o sentido que
o autor, indubitavelmente, atribuía ao seu artigo magistral redigido em
1973, e intitulado "Introduction ã Tétude des migrations en Afrique
centrale et occidentale: identification du berceau nilotique du peuple
sénégalais"^.
Instala-se, deste modo, o debate em torno das relações entre Egíp-
cios antigos e Negro-Africanos. A contribuição que se vai seguir
dedicar-se-á a demonstrar que a tese defendida pelos Ocidentais é
dificilmente conciliável com os dados que pudemos recolher ao longo
dos primeiros anos de investigação. Partimos de um léxico comparado
entre o egípcio antigo e as línguas negro-africanas do Oeste da Afri-
ca: fula (essencialmente), wolof, serer, soninquê, bambara, dogon; a
constatação que se impõe é que as similitudes verificadas, bem como
as suas múltiplas implicações, confirmam inteiramente a perspectiva
defendida por Cheikh Anta Diop e chegam até a pôr em causa algumas
leituras e interpretações da língua egípcia que quase dois séculos de
egiptologia ocidental tinham acabado por impor, Uma perspectiva
desta natureza confirma justamente a pertinência de um dos pontos
de consenso do colóquio do Cairo de 1974, que concluía que o semítico
não dava conta do egípcio antigo e que era, portanto, legítimo voltar-se
para a Africa Negra para a compreensão e vocalização desta língua.

5. Ver L'Égypte ancienne. Dictionnaire encyclopédique de l'ancienne Egypte et des civilisations nu-
biennes, Paris, Grûnd, 1999, p. 107.
5. Ver, entre outras, L'Afrique noire précoloniale, Paris, Présence Africaine, 1 9 6 0 , 1 9 8 7 , p. 202; Les
fondements économiques et culturels d'un État fédéral d'Afrique noire, Paris, Présence Africaine,
1 9 6 0 , 1 9 7 4 , p. 12.
7. BIFAN, série B, T. XXXV, n.a 4 , 1 9 7 3 , pp. 769-792.

Egipto antigo e África negra: alguns factores novos que esclarecem as suas relações . A. Moussa Lam 143
2. A amostra
A amostra que escolhemos diz respeito a termos relativos às partes
do corpo, à água, à agricultura, ao anão, ao pigmeu, ao hipopótamo e
ao cavalo. Utilizámos, essencialmente, o An Egyptian Hieroglyphic Dic-
tionnary, de E. A. W. Budge para a parte egípcia; para a parte africana,
salvo indicação contrária, a língua escolhida foi o fula/fulfulde. Eis os
diferentes quadros:

AS PARTES DO CORPO
EGÍPCIO ANTIGO LÍNGUAS AFRICANAS
irt: olho; irt bint. 0 olho m a u -yiitere: olho [fula)
Copta: eiat; eiep boone: - yiiretee (irt): aquilo com 0 qual se
iC^ 0 olho m a u vê, isto é, 0 olho
-yiyata-. aquilo que vê
-yiitere bonnde-. 0 olho m a u
•Ç» hn face, rosto - hoore: cabeça (fula); opõe-se a
1 Copta: xo teppere: calcanhar
- xoox: caroço (de u m fruto) em wolof
- xoox-. cabeça em serer; nestas duas
línguas, 0 x pronuncia-se como 0
francês kh
\\ hry. que está por cima - huuri-. que cobre, que está por cima
<rr>i. i (fula)
- seebde: ser inteligente (fula);
1 í^ palavra por palavra: ser pontiagudo

spd Hr: ser inteligente;


palavra por palavra: ser pontiagudo
da cabeça. .
0 determinante j\ confirma-o

Copta: sbte
wpw hr. excluir - woppu hoore-. excluir; palavra por
palavra: abandonar u m a cabeça; a
expressão fula hoore haa teppere-.

a }f da cabeça aos pés confirma que a


expressão se refere de facto à cabeça

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


TERMOS RELATIVOS À ÁGUA
EGÍPCIO ANTIGO LÍNGUAS AFRICANAS
n: eau - m e s m o símbolo e m e s m o sentido nos
D o g o n s [cf. Dieu d'eau, p. 203, fig. 1, 6.)

ynam: nome de - Yenoam-. cidade da Palestina;


jr 0 : uma cidade a leitura de está confirmada

UltZZc HsAmw. leite


- kosam-, leite (fula); de haos--. ordenhar
« n ó HsAmw/HsA-. leite

PI HsAw: leitefs]
- kose/koce: leites [fula]

0 0 0 Nnww

w/nwwmw\ águas do N o u n - Nomma-, água, mas igualmente os


primeiros seres humanos engendrados
Ç) nww/nwwmw: idem por A m m a (deus supremo dos
D o g o n s ) e a sua mulher
- muno: gênios do rio (soninquê)
(m fò
' ^ ^j) nww/nwwmw: idem - munu: gênio do rio [fula]

Mf^ffXi», / l

dy: vale, lago? - ji: água (soninquê)

- di: água [dogon]


- 0 fula ndiyam remete para a leitura
de diyam>ndiyam e o determi-
nante seria então unicamente J, L

[| <rrr> 'f"- rio - il: inundar (fula]


- Ilo: nome de pessoa, palavra por
palavra: cheia
rn ,
- ilam: cheia, inundação (fula]

itrw aA-, 0 Nilo; - Ho: 0 antepassado dos Fulas que


palavra por palavra: lhes trouxe as vacas; estas são,
a grande água; supostamente, de igual modo
[ ] em grego provenientes da água

krty. gruta de - 0 rio de Korotoumou, que seria o Nilo


il onde sai o Nilo segundo as tradições dos [Mandeus?];
<r>\\® deste modo, Korotoumou poderia derivar
de *qrty m w

Egipto antigo e África negra: alguns factores novos que esclarecem as suas relações . A. Moussa Lam 143
AGRICULTURA
EGÍPCIO ANTIGO LÍNGUAS AFRICANAS

rmn-. meia-vara [ou pertica] - leemnu; arpentável; recolocação do


(2,5 m) meio-aruro braço na posição da arpentagem
- remnu: cultivável [aqui em matéria
de superfície]

^ ^ A "j 0 rmnyt: exploração - remnata; aquilo que faz cultivar


- leeman: arpentagem em benefício de
- laman: senhor das terras nos Serer e
nos Wolof do Senegal
- lamini: território de sucessão nos
Mandingas

^ Datf. Estado, domínio, - jattv. terra ocupada por tempo pro-


^ propriedade fundiária longado, feudo, A combinação de 9íHt
e @ não deixa qualquer dúvida acerca
do grau de artificialização do meio

mr. enxada - rem--. cultivar

mr. amarrar em conjunto, - A grande enxada designa-se tonngu;


5 entravar amarrar, entravar; assim, 0 nome
remete para 0 m o d o de fabrico do
objecto

PIGMEU OU ANÃO?
EGÍPCIO ANTIGO LÍNGUAS AFRICANAS
nmw. anão, p i g m e u - ndaama-, atarracado [fula e vv^olof)

-p « s gjjgfj^ pigmeu - idem


1 ^
dAn^: anão, pigmeu - dinaa: atarracado [fula]

\ s - denkii: compactado, atarracado; re-


lembra 0 amárico denk\ anão, pigmeu
- tunngune-. anão [wolof]
dAg/dAg Hr?-. anão, pigmeu; - duuguuro: atarracado [fula]
^ ^ ^ a 2.- leitura é sugerida pelo
fula duuuguuro

~ ® /^j dyrgA: anão - duuguuro-. atarracado

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


o HIPOPÓTAMO E O CAVALO
EGÍPCIO ANTIGO LÍNGUAS AFRICANAS
- Diba: nome honrado do hipopótamo,
(f p í hipopótamo
mas também de u m clã tendo por
totem 0 hipopótamo, nos Haai-pulaar
en no Senegal
cfrr^ Ji^ ^ rf^w: hipopótamo

' k |f hAbw: hipopótamo - ngabu: hipopótamo (fula]


à J Ã J JT'

- gabv. hipopótamos (plural)


t f Q ' ' '
^ «d

[jíiQ ss: cavalo - si\ cavalo (soninquê)


í 1 'v) - Siisee-. cavaleiro, de si: cavalo.

11 cavalo É 0 nome do clã real no antigo Gana

Partindo das partes do corpo e culminando com nome do cavalo,


fomos progressivamente surpreendidos tendo em conta que a inter-
pretação dos termos escolhidos forneceu esclarecimentos acerca do
debate resumido anteriormente, esclarecimentos estes que não espe-
rávamos conquistar.

3. Novos factores
3.1. As partes do corpo

No que diz respeito ao olho e às expressões que lhe são associadas,


a confrontação do egípcio (incluindo o copta) com o fula permite a
emergência de factores simultaneamente curiosos e interessantes:
Yiitere (o olho, em fula), corresponde "àquilo com que se vê" (yiire-
tee); o paralelismo é quase perfeito com irt e eiat. O olho mau, conhe-
cido nos antigos Egípcios, mas também nos Fulas, dizia-se irt bint/eiep
boone aqui e yiitere bonnde ali. O copta boone valida de facto o para-
lelismo bin(t)/bone (fula) e bom (wolof): "mal", "aquilo que é mau",
etc. Porém, aquilo que se torna interessante aqui, é que a subtileza das
correspondências exclui uma separação entre Egípcios antigos e Fulas
e Wolofs desde o Saara pré-histórico. Com efeito, o copta só surge no
segundo século a.C. Mais ainda, o paralelismo surpreendente irt bint/
yiitere bonnde mostra que não existe a necessidade de se passar pelo
copta para uma comparação válida entre o egípcio antigo e as línguas

Egipto antigo e África negra: alguns factores novos que esclarecem as suas relações . A. Moussa Lam 143
negro-africanas; o copta pode, no máximo, servir de instrumento de
controlo.
Depois do olho, a série que gira em t o r n o da cabeça confirma a
profundidade e a subtileza das semelhanças entre o egípcio antigo e
as línguas negro-africanas:
Aqui, as línguas africanas (fula, wolof, serer] demonstram que o sen-
tido que os egiptólogos ocidentais atribuíram a hr [face, rosto) deve
ser completado por uma outra acepção: cabeça. De facto, o fula hoore
designa efectivamente o conjunto da cabeça e as expressões seeháe e
woppu hoore remetem indubitavelmente para a cabeça, uma vez que
a sede da inteligência é a cabeça e o cálculo dos indivíduos é feito por
cabeça. Os termos serer e wolof vêm confirmar que é efectivamente a
cabeça que está em causa, e o copta xo e o fula hoore mostram clara-
mente a todos os apoiantes da tese, segundo a qual é necessário passar
pelo copta para a vocalização dos hieróglifos, que aquela está longe de
ser confirmada através dos factos de que se dispõe.

3.2. A água

o símbolo hieroglífico que designa a água está presente nos Dogons


e possui o mesmo sentido e o mesmo simbolismo. Não esqueçamos
aqui que Amma, o deus supremo dos Dogons, representa o deus da
água [título da grande obra de Mareei Griaule) e possui igualmente
o mesmo avatar que o deus Amon dos Egípcios, a saber, o carneiro.
Porém, este não é o aspecto que mais nos interessa de momento.
Aquilo que nos interessa aqui é a questão de saber se o grupo ^ é
unicamente determinante, tal como consideram os egiptólogos ociden-
tais, ou se era por vezes lido. O n o m e hieroglífico da cidade pales-
tiniana de Yenoam® já mostra que, neste caso preciso, o grupo era de
facto lido. A designação do leite em pulaar, kosam, deixa supor que nas
duas grafias egípcias correspondentes o grupo era lido.
A terceira grafia que representa um plural e que corresponde ao fula
kose/kocce (plural) remete-nos para a hipótese de que caso tenha sido
o plural a ser visado pelo escriba, o grupo ~ poderia ser um simples
determinante, ou mesmo desaparecer em proveito das marcas do plu-
ral. No caso da segunda grafia, o grupo ~ , ao mesmo tempo que era
lido, serviria igualmente de determinante. Segundo o nosso conheci-
mento, tal eventualidade não foi prevista pelos especialistas da escrita
egípcia.

8. Ver Gardiner A. H., Egyptian Grammar, Sign-list, N (35].

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


Seguindo a mesma ordem de idéias, o termo dogon Nommo, que
designa simultaneamente a água primordial e o primeiro par hu-
mano engendrado por Amma e pela sua mulher, leva-nos e rever as
leituras propostas pelos egiptólogos ocidentais, de entre as quais
nenhuma menciona nwwmw, muito próximo de Nommo. Se tal su-
cede, na primeira grafia, adoptaria a função de complemento
fonético e de determinante, tal como na segunda grafia do exemplo
precedente ( í\'t~ ) . Nos dois útlimos casos, é evidente que os
bons são determinantes " e .
A grafia que corresponde a ji e di em soninquê e em dogon
mostra que ~ é de facto um determinante mas o fula ndiyam/diyam
mostra de igual modo que neste caso o determinante é m . Aqui, torna-
-se evidente o modo através do qual, a partir da herança egípcia, cada
língua negro-africana escolheu a sua via.
As duas grafias seguintes comparadas ao fula confirmam a hipótese
segundo a qual o grupo ~ poderia ser um simples determinante, de-
terminante e complemento fonético ou simplesmente complemento
fonético. A penúltima expressão y ^^^ ? ~ ^ itrw aA que resultou no
grego íláç, íXoç remete-nos de modo evidente para o 11o dos Fulas.
Supõe-se que esta personagem tenha trazido as vacas a estes pastores.
Estes mesmos Fulas afirmam que as vacas provieram da água. Ora, lio
em fula significa simplesmente "a cheia". Torna-se, portanto, claro que
as duas teses que coabitam nos Fulas quanto à origem dos bovídeos
não são contraditórias. A forma grega permite-nos compreender que
os Fulas adoptaram simplesmente o nome do Nilo, tal como outro
grupo, o dos Mandigas adoptou uma outra designação do Nilo, Koro-
toumou^°, muito provavelmente *qrty mw. Mas são os Soninquês que
designam o Niger de Isaa Beer, "A Grande Água", que retiveram a mes-
ma manifestação do Nilo que os Fulas; estes são novos indícios acerca
da origem nilótica destas duas populações oeste-africanas e que são
deste modo revelados.

3.3. A agricultura

A agricultura consiste numa actividade extremamente importante


nas sociedades humanas, sobretudo antes da revolução industrial.
A ocupação do espaço agrário e a sua gestão representavam grandes
desafios para estas sociedades. Segundo as tabelas, ao que parece, os

9. Ver Luft, U., in Studia Aegyptiaca, XIV, pp. 406-407.


10. É aquilo que demonstra uma intervenção de Cissé Y. T. in^lctes du colloque de Bamako. Histoire
et tradition orale, fundação SCOA, 1975, p. 34.

Egipto antigo e África negra: alguns factores novos que esclarecem as suas relações . A. Moussa Lam 143
antigos Egípcios e Oeste-Africanos terão incontestavelmente vivido
num mesmo meio-ambiente e partilhado o mesmo tipo de gestão do
espaço agrário. Tudo se organiza em torno da exploração agrícola de-
limitada depois da agrimensura {rmn/leemnu/leemari). A esta primei-
ra correspondência acrescem outras séries que giram em torno do
território de linhagem, bem como do senhor da terra. É sempre em
torno da ocupação do espaço que a sociedade se organiza. Deste modo,
o egípcio DAtt, "Estado", "domínnio", "propriedade fundiária", remete
para o fula jatti, "terra ocupada por longo prazo e valorizada", "feudo".
Para além disso, neste caso, a combinação desm e de t> demonstra
que nos encontramos muito provavelmente no Vale do Nilo e que o
grau de artificialização do meio é extremamente elevado. Os sím-
bolos m e ^ fornecem uma pista muito interessante em torno do
campo do Lébé (que tem 80 x 80 quadrados de um côvado] e da in-
venção da agricultura por Osíris (equivalente ao Lébé dos Egípcios].
Deste modo, aquilo que os egiptólogos ocidentais terão até aqui apre-
endido como uma estilização de canais de irrigação, poderia de facto
simbolizar o campo primordial, tal como nos Dogons"; o que levanta,
uma vez mais, a questão da tese da separação saariana dos Africanos
e dos Egípcios. Todos os factos supracitados, em conjunto, demonstram
claramente que o Vale do Nilo é incontornável, mesmo se alguns per-
sistem em contorná-lo de modo a escapar à inevitável conclusão: a de
uma unidade cultural e racial egipto-africana tendo por crisol o Vale
do Nilo. O mr egípcio, utensílio multifuncional mas antes de mais agrí-
cola, conduz ao fula rem- (cultivar), mas um outro paralelismo emerge
através de tonngu (amarrar, entravar), que, por sua vez, remete de
modo evidente para a técnica de fabrico da ferramenta^^. Aqui está
uma outra prova da profundidade do parentesco egitpo-africano.

3.4. Pigmeu e anão

Os egiptólogos encontram-se divididos acerca do sentido dos termos


nmw e dng^^. Para H. Junker, o termo ndg designa o anão", enquanto
que para W. R. Dawson, o mesmo designaria, na verdade, o pigmeu e

11. Ver Griaule, M., Dieu d'eau. Entretiens avec Ogotemmêli, Paris, Fayard, 1966, p. 41; ver igual-
mente Griaule, M. e Dieterlen G., Le renard pâle, Paris Institut d'ethnologie, 1991, p. 501 e fig.
190, p. 502.
12. Ver Lam, A. M., "Un outil agricole à travers le temps et l'espace", in Le Sahara ou la vallée du
Nil?, Dakar, IFAN/Khepera, 1994, pp. 33-41.
13. Ver a exposição do debate em De l'origine égyptienne des Peuls, Paris, Présence Africaine,
1993, pp. 240-245.
14. Gîza V. Die Mastaba des 'Snb (Seneb) und die umliegenden Gräber, Wien, Akademie der Wis-
senschaften, 1941, p. 7.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


nmw visaria o a n ã o " . Jean Vercoutter refere o anão e não o pigmeu
num artigo do Lexikon". No Dictionnaire de Ia civilisation égyptienne,
Serge Sauneron já tinha tendência em traduzir dng para pigmeu". Em
Histoire Générale de l'Afrique, A. H. Zayed e J. Dévissé, ao mesmo tempo
que optam por anão para dng, alertam para a confusão entre anão e
pigmeu". Mas então, como estabelecer a diferença entre os dois? Para
além dos nomes só por si distintos, Dawson insiste no facto de o na-
nismo se dever a uma patologia designada acondroplasia e no facto de
a presença dos anãos no Egipto ser uma realidade^®. Qual o contributo
das línguas negro-africanas para este debate? Os respectivos paralelos
de nmw e de ndg, ndaama, dinaa, denkii, denk remetem todos para a
pequenez. Trata-se também do mesmo caso em relação ao termo fula
duuguuro (com metátese) que poderia corresponder ao egípcio dyrgA.
No entanto, o wolof tunngunee (com metátese), que poderia ser
aproximado de dng, designa de facto o anão. Se tal for o caso, dng
poderia ter simultaneamente designado o anão e o pigmeu em egíp-
cio antigo, apesar da existência de nmw/ para anão. O mesmo deter-
minativo para os dois termos reforça o preconceito de confusão que
prevalecia nos Egípcios. Se o anão é diferente do pigmeu, antigos
Egípcios e Negro-Africanos modernos preferiram, mesmo estando
conscientes disso, dar maior importância àquilo que os unia: a sua
pequenez. Mesmo supondo que o dng seja um pigmeu, tal como de-
fendem vigorosamente Dawson e os seus partidários, os determinati-
vos que acompanham dng e dyrgA permitem supor que o pigmeu em
causa não era um pigmeu vulgar. Com efeito, o hórus sobre o balu-
arte e a personagem divina apontam sobretudo para uma personagem
que pertence à categoria dos deuses. O fula duuguuro (atarracado)
leva-nos a acreditar que o mesmo surpreendia essencialmente pela
sua pequenez. É neste ponto que o esoterismo fula nos vem socor-
rer Em De l'origine égyptienne des Peuls, desenvolvemos longamente
a importância do gênio anão (tal como refere Marguerite Dupire^°]
nos assuntos pastoris^^ Sabemos que Geno, o deus supremo dos Fulas,
tinha feito de Kummel (note-se o diminutivo para marcar a pequenez
da personagem] o guardião dos seus rebanhos; por outras palavras,
Kuumel/Kuumeen estava relacionado com os animais, nomeadamente

15. "Pygmies and Dwarfs in Ancient Egypt", The Journal of Egyptian Archaeology, 2 4 , 1 9 3 8 , p. 185.
16. Lexikon, I, 1973, col. 340; porém, opta finalmente pelo pigmeu: l'Egypte et la vallée du Nil,
Paris, PUF, 1992, pp. 304, 334.
17. Sub verbo "Pygmées", p. 235, col. b e c .
18. II. Afrique ancienne, Paris Jeune Afrique/Unesco, 1980, 1984, p. 150.
19. Dawson, W. R., ibid.
20. Organisation sociale des Peuls, Étude d'ethnographie comparée, Paris, Pion, 1970, p. 371.
21. Ver pp. 244-246.

Egipto antigo e África negra: alguns factores novos que esclarecem as suas relações . A. Moussa Lam 143
domésticos e principalmente os bovídeos. Isto leva-nos forçosamente
a relembrar a função do anão nas cerimônias fúnebres do Ápis e os
títulos pastoris do anão Seneb^^. Se temos conhecimento que os pig-
meus nunca foram criadores, parece-nos difícil, nestas condições, es-
tabelecer uma relação entre o Kuumel dos Fulas e do dng com o Ápis
dos pigmeus, sobretudo sabendo que existiram anões com títulos pas-
toris. Dng e nmw remetem indubitavelmente, em vários casos, para
personagens dotadas de poderes mágico-religiosos, mesmo aceitando
que alguns dos seus congêneres fossem seres comuns. Em todo o caso,
em toda a África, a crença na existência de anões ou de pigmeus dota-
dos de poderes era um factor corrente^^ não excluindo a crença de que
existiam também anões e pigmeus comuns. Toda a dificuldade residia
na identificação sem erros das personagens.
Para concluir, a flutuação da terminologia consagrada pela língua
egípcia e as línguas negro-africanas estava muito provavelmente rela-
cionada com esta dificuldade. Neste sentido, o livro de Luc de Heush
intitulado Le roi de Kongo et les monstres sacrés^'^ é extremamente
interessante uma vez que confirma a flutuação da terminologia, mas
também a importância dos anões e dos pigmeus para os detentores
do poder.

3.5. O hipopótamo e o cavalo

As duas designações para hipopótamo em egípcio passaram para o


fula. A mais corrente, ngabu, encontra-se igualmente em outras lín-
guas negro-africanas através de ngubú, ngub, ngubi, gabu, gub, gup,
gupi, guvu, gufu^^. No entanto, segundo Gilbert Ngom, este termo não
se encontra anotado em copta^®; trata-se também do mesmo caso rela-
tivamente ao famoso nome do Nilo japy (HapyJ. Aqui está mais uma
prova de que o copta não é absolutamente indispensável para uma boa
comparação entre o egípcio antigo e as línguas negro-africanas, tal
como parecem indicar os críticos de um egiptólogo célebre.
Existiam talvez hipopótamos no Saara antes da desertificação, mas
este nome comum ao egípcio antigo e às línguas negro-africanas situa-
-nos mais nas margens do Nilo do que em qualquer outro lado e fornece

22. Junker, H., ibid., p. 16.


23. É o caso nos Wolofs que acreditam que o Kuus, um anão ou pigmeu, pode ajudar a tornar rico.
24. Paris, Gallimard, 2000. 0 autor utiliza quase sem distinção os dois termos e entende por
"monstros sagrados", os anões/pigmeus e os albinos.
25. Ngom, G., "La parenté génétique entre l'égyptien pharaonique et les langues négro-africaines
modernes. L'exemple du dua\a", Ankh, n.s 2, Abril, 1993, pp. 28-83.
26. Ibid., p. 59.
um índice - entre muitos outros - acerca da necessidade de uma etapa
nilótica, posterior à do Saara, no percurso histórico das relações egipto-
-africanas. Porém, o hipopótamo tinha uma outra designação em egíp-
cio antigo: dbi, dbw. Este nome tornou-se hoje Diba nas margens do
rio Senegal e designa o nome de honra do próprio hipopótamo, bem
como o de um clã de pescadores que tem este animal por totem. As
técnicas de pesca do paquiderme permaneceram igualmente pratica-
mente imutáveis: basta olhar para a pintura egípcia e para as cenas
de pesca ao hipopótamo nas margens do Senegal e do Niger para nos
convencermos.
As relações estreitas entre os Díba e o hipopótamo fornecem uma
pista de investigação muito interessante acerca da formação dos clãs e
a escolha dos totems desde o Egipto antigo. O abutre e a serpente dos
faraós, igualmente presentes nos Soninquês, que não escondem a sua
origem egípcia, contribuem para reforçar esta conclusão. E é precisa-
mente o nome do cavalo que nos permite explorar a pista soninquê.
O cavalo era designado em egípcio e si em soninquês. Se sabemos
que Siise, o nome do clã real que conduziu a migração do Egipto ao
Uagadu, significa "cavaleiro" [formado a partir de si), possuímos uma
prova quase incontestável da jornada nilótica dos Soninquês antes da
fundação do Uagadu, mesmo sem ter em conta outros factores muito
importantes.

4. Esclarecimento das tradições


Os factos anteriormente enumerados são por si só suficientes para
concluir o debate acerca das relações entre antigos Egípcios e Negro-
-Africanos. Estes deixam emergir uma profunda unidade cultural
que se forjou e fortificou no Vale do Nilo, tal como Cheikh Anta Diop
sempre sustentou; e as tradições africanas vêm todas confirmar uma
perspectiva desta natureza: os Fula situam de facto o seu país mítico,
anteriormente à dispersão no Vale do Nilo, entre Habasi e Misra^^ e as
sementes do nenúfar dos antepassados viriam igualmente do Egipto^®.
Segundo Félix Dubois^'', os Songhais afirmam provir do Egipto. Quan-
to aos Mandigas, estes situam a origem do seu sistema judiciário no
Egipto^". Para os Soninquê, o Egipto é igualmente o país de origem dos

27. Ver Ba A. H., Njeddo Dewat. Mère de Ia calamité. Conte initiatique peul, Abidjan, Les Nouvelles
Editions Africaines, 1985, p. 18; ver também Lam A. M., "L'origine des Peul: les principales thèses
confrontées aux traditions africaines et à régyptologie",/ln/i/!, n.°sl2/13, 2003-2004, pp. 100-101.
28. Ba A. H., ibid., notas anexas, n^ 6, p. 141-142.
29. Ver Dubois, F., Tombouctou la mystérieuse, Paris, Flammarion, 1897, p. 108.
30. Kamissoko, W., in colóquio de Bamako, p. 33.

Egipto antigo e Áfricanegra:alguns factores novos que esclarecem as suas relações . A. Moussa Lam 143
fundadores do Uagadu; é o que demonstram claramente as tradições
de Yerere, bem como a que foi facultada a Oumar Kane por Sammba
Jali Jabaate, tradicionalista da aldeia senegalesa de Sooriingo^^ No en-
tanto, torna-se forçoso reconhecer que é o Waalo-waalo Yoro BooU Jaw
que fornece a contribuição mais notável acerca da questão de saber se
Egípcios e Africanos se separaram no Saara: "i4s seis migrações prove-
nientes do Egipto às quais a Senegâmbia deve o seu povoamento^^" não
deixam qualquer dúvida acerca do local da separação.
Se praticamente todos os Negros da África afirmam ser provenien-
tes do Egipto, o que poderiam ser os Egípcios a não ser Negros? Aqui
também os factos demonstram que os Egípcios sempre se considera-
ram como Negros e foram considerados enquanto tal pelos seus con-
temporâneos: e M r f ! e f , que remete para os Negros do Egipto o
seu habitat, bem como a reconhecida tabela das raças do túmulo de
Ramsés 111, não deixam margem para dúvidas acerca do facto de os
Egípcios se considerarem como Negros.
O testemunho de Heródoto, que afirmou que aqueles tinham a pele
negra e os cabelos crespos^^ bem como o de Diodoro da Sicília, que os
tornou numa colônia de Etíopes que se foi instalar no Egipto^^ con-
firmam a sua pertença à raça negra. Porém, aqui também é a desven-
tura do antepassado dos Soninquês que nos mostra que os Egípcios
da Época Baixa, apesar da sua mestiçagem, salientavam ainda a sua
negritude. Com efeito, a tradição soninquês mostra-nos que os descen-
dentes de Dinna não podiam tornar-se chefes em Assuão, pelo facto
de serem mestiçados. Subentende-se o destino pouco invejável dos
Brancos. Aqueles que ousaram afirmar que os Egípcios eram Brancos
devem, certamente, sofrer secretamente a derrota!!!

Conclusão
Os poucos factos aqui apresentados demonstram que não é de modo
algum necessário lançar-se numa argumentação complexa para de-
sempatar os protagonistas do debate em torno das relações egipto-
-africanas. No plano estritamente científico, as tradições africanas,
pela sua relação decisiva, permitem actualmente encerrar o debate e
classificar melhor a civilização egípcia; porém, não somos ingênuos ao

31. Kane, O., Le Fuuta-Tooro des Satígi aux Almaami, tese para o Doutoramento em Letras, Dakar,
1986, T. III, pp. 962-971.
32. In Delafosse M. e Caden H., Chroniques du Foûta sénégalais, Paris, E. Leroux, 1913, pp. 123-
131.
33. Heródoto, Histoires, II, 104.
34. Diodoro da Sicilia, Bibhothèque Historique, III, 3, 3.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


ponto de acreditar que tal sucederá em breve, tendo em conta que as
motivações que animam alguns estão longe de ser puramente científi-
cas. Por outras palavras, a ideologia que tanto prejudicou a África e os
Africanos ainda vai, infelizmente, perdurar por mais tempo.

Egipto antigo e África negra: alguns factores novos que esclarecem as suas relações . A. Moussa Lam 143
"Afrocentricidade":
polêmica em torno de um conceito

Doudou Dieng^

1. 0 pensamento africano na história do pensa-


mento
o Egipto faraônico, primeira grande civilização da humanidade, é
o local onde os intelectuais negros devem dessedentar-se, a fim de
elaborar um futuro cultural melhor, longe dos pitorescos africanistas
e eurocentristas. 0 pensamento africano representa o conjunto da
produção filosófica dos Africanos, ou ainda, tal como afirma Hebga,
o estudo crítico-reflexivo que incinde preferencialmente sobre todos
os questionamentos que assombram a consciência africana contem-
porânea.
Ao invés de um eterno debate sem conteúdo científico entre eu-
rofilosofias e etnofilosofias, trata-se hoje de determinar um quadro
conceptual, a partir do qual se sistematize o conjunto desta produção
científica e filosófica africana.
Segundo o Pr. Obenga, na sua introdução a La Philosophie africaine
de Ia période pharaonique, a filosofia africana segue cronologicamente
quatro períodos concomitantes à história geral do continente:
1. o período egípcio faraônico desde o antigo Império, com os textos
das pirâmides - 2 7 8 0 - 2 2 6 0 antes da nossa era;
2. os filósofos e pensadores da Alexandria, de Cirene, de Cartago e de
Hipona (6 séculos durante os quais a escola desempenha uma fun-
ção importante no desenvolvimento do pensamento grego];
3. a filosofia magrebina com Ibn Badjadja, autor do tratado da alma,
Ibn Battuta o geógrafo, Ibn Khaldún historiador e filósofo;
4. as escolas filosóficas medievais de Tombuctu, Gao, Djenné, berço

1. Doutorando em Filosofia, Universidade de Rouen/CERCLA.

"Afrocentricidade": polêmica em torno de um conceito . Doudou Dieng 159


da cultura negro-muçulmana no tempo dos grandes Impérios suda-
neses (Gao, Mali, Songhai],

Por último, a filosofia africana moderna e contemporânea encarnada,


nomeadamente, por várias correntes de pensamento; mas, nesta breve
chamada de atenção que nos propusemos elaborar, e no que concerne
ao nosso tema de reflexão acerca da afrocentricidade, é importante ter
em conta as fontes, se não mesmo a tradição do pensamento africano,
ou seja, da filosofia egípcia faraônica a partir dos seus próprios textos.
Para além dos textos, o autor da filosofia faraônica apresenta uma ini-
ciativa original no sentido em que nos encontramos doravante perante
uma filosofia não-conformista à lógica de Aristóteles ou de Heidegger
que, note-se, tinha deixado de afirmar que a filosofia é grega pelo facto
de falar grego.
Com Obenga, encontramo-nos face às fontes de uma filosofia rela-
tiva ao período faraônico que mostra de que modo os antigos Egípcios
eram organizados na sua maneira de pensar. A referência conceptual
consta na cosmogonia com que nos deparamos de seguida um pouco
por toda a parte em África, nomeadamente nos luba do Zaire, e que
demonstra de que modo é que o ser veio à vida a partir do nome
inicial, o nun. É este o motivo pelo qual Hegba refere que quando se
fala de filosofia, é necessário ter em conta toda a história da filosofia
africana, desde que esta história não tenha início com o filósofo afri-
cano Guillaume Amo, e menos ainda com a filosofia bantu de Tempels
e todo o debate que se seguiu. É necessário, de igual modo, ir para além
do milagre grego, do qual Hegel, entre outros, se tornou o porta-voz
recorrendo, tal como afirma claramente Cheikh Anta Diop, à falsifica-
ção da história, Deve recuar-se até ao período faraônico, bem como
ao conjunto dos egiptólogos de boa fé que nos ajudam a decifrar a lin-
guagem metódica dos hieróglifos. É por isso que tudo aquilo que foi
escrito neste sentido acerca da filosofia africana deve ser tomado em
consideração. Um pensamento africano através dos textos, aqui está a
única base da nossa investigação filosófica. Seria intelectual e moral-
mente desonesto ignorá-los refugiando-se no pensamento moderno,
álibi de gentes complexadas que reproduzem, à sua maneira, o ma-
niqueísmo levy-bruhliano do pensamento pré-lógico e do pensamento
lógico. Isto não faz sentido. Porque tal como refere Cheikh Anta Diop,
no capítulo 7 de Nations nègres et culture, os Etíopes em primeiro lugar,
os Egípcios depois, segundo o testemunho de vários anciãos, criaram
e elevaram a um grau extraordinário de desenvolvimento todos os
elementos da civilização, enquanto que os outros povos estavam mer-
gulhados na barbárie.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


É necessário procurar a explicação. E tal como afirma Cheikh Anta
Diop,

... a existência será tão fácil no Vale do Nilo, verdadeiro fluxo de vida entre
dois desertos, que o Egípcio terá tendência a acreditar que os benefícios da
natureza lhe caem do céu. Para além disso, aquele acabará por idolatrar este
sob a forma de um Ser, Criador todo-poderoso de tudo o que existe e distri-
buidor de bens. O seu materialismo primitivo - isto é, o seu vitalismo - será
doravante um materialismo transposto para o céu, um materialismo, se é que
se pode dizer, metafísico (p. 396).

Assim se apresenta a história da filosofia africana no seu contexto.


Foi este que lhe permitiu, por um lado, desempenhar no pensamento
africano o mesmo papel que as civilizações greco-latinas no pensamento
ocidental e, por outro lado, o papel civilizador do Egipto devido à sua
expansão cultural.
O Vale do Nilo, verdadeira intersecção de matéria cinzenta, terá rece-
bido a jornada do mundo grego, o que é revelado por Obenga: o Egipto
faraónico é reconhecido pelos próprios gregos como uma das origens
imediatas do seu progresso cultural e filosófico.
Sob um outro prisma, Hebga refere que sem se preocupar mini-
mamente com a diferenciação e a impermeabilidade dos géneros nas
disciplinas intelectuais, Platão, visando apenas tornar a sua reflexão o
mais clara possível, recorre a todas as fontes do seu vasto repertório:
mitologia, teologia, ética, geometria, aritmética, etc. Não existe "filosofia
de Platão" no exterior das possibilidades colocadas à sua disposição
pelo seu meio cultural, e este meio, sabemo-lo efectivamente, não é
universal. Este é grego com relações de dependência perante instru-
tores egípcios, cujos sábios e filósofos gregos reconhecem espontanea-
mente ter recebido lições. O autor conclui que a filosofia de Platão, que
representa um modelo rigoroso e profundo, constitui uma filosofia, e
de modo algum a filosofia. Esta é grega, o que significa que está cul-
turalmente situada pelos seus conteúdos. O desafio é enorme num con-
texto de determinação histórica do pensamento africano na história
do pensamento. Não somente os textos filosóficos da época faraónica
sustentam a comparação com textos bem mais recentes do pensamento
ocidental, mas Obenga demonstra também, para além disso e tal como
muitos outros antes dele, já o referimos, que os primeiros filósofos
estudaram no Egipto.
Este refere incessantemente o carácter da filosofia faraónica, bem
como o parentesco conceptual entre esta e o resto da África Negra.
Há vários milénios antes da nossa era, o pensamento africano move-se

"Afrocentricidade": polêmica em torno de um conceito . Doudou Dieng 161


numa cosmogonia, uma antropologia e uma moral codificadas que era
necessário decifrar através da iniciação ao rigor do método dialécti-
co, e cujos ensinamentos se encontram nas tradições negro-africanas
contemporâneas. Se acreditarmos em Hegel, para quem o espírito
universal só avança e encontra o seu conceito através do engano na
contradição dos acontecimentos históricos, continuamos a perguntar-
-nos, a menos que este tenha sido animado por outras intenções, de
que modo é que o mesmo conseguiu, logicamente falando, ficar num
impasse em torno de conceitos já estabelecidos por uma rica e brilhante
civilização intelectual africana.
O Egipto antigo, à luz daquilo que acabámos de afirmar, é este Egipto
faraônico dos textos originais, autênticos, reafirmemo-lo, que falam de
si próprios e por si próprios e para nós enquanto tradições, tal como
salienta Cheikh Anta Diop, doravante emaranhado, em jeito de uma
herança assumida para a nossa prática filosófica contemporânea. Isto
é necessário.
Esta noção de herança, cara ao Pr. Cheikh Anta Diop, constituirá a
base teórica e científica de um regresso às fontes que permite apre-
ender o presente de modo a antecipar o futuro.Trata-se de um apelo à
consciência de si para uma construção de uma nova África; é como que
através de uma palavra de ordem que o autor anuncia, em Civilisation
ou barbarie, uma vez que afirma:

... para nós, o regresso ao Egipto em todos os domínios representa a condição


necessária para reconciliar as civilizações africanas com a história, de modo
a poder construir um corpo de ciências humanas modernas, para renovar a
cultura africana. Longe de se tratar de uma deleitação do passado, um olhar
em direcção ao Egipto antigo representa a melhor maneira de conceber e de
construir o nosso futuro cultural (p. 12).

Segundo o Pr. Cheikh Anta Diop, reconstituir a nossa relação com o


passado é justamente simplificar esta relação, isto é, deixar-nos con-
vencer de uma vez por todas que a África não foi apenas este conti-
nente sem "história" que só terá sido capaz de se integrar na história
universal a reboque de terceiros. Este é o sentido do desafio da consciên-
cia histórica que coloca a problemática da formulação do nosso tema
acerca da afrocentricidade.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


2. Posicionamento do conceito: dúvida e inteli-
gibilidade metodológicas
A afrocentricidade constitui a nova linguagem do afrocentrismo que
nasceu com Cheikh Anta Diop e toda esta geração de universitários,
nomeadamente o Pr. Obenga, que se interessaram, tal como acabámos
de salientar, por esta ligação entre o Egitpo antigo e a Africa. A luz do
conjunto da produção intelectual egípcia e da expansão que sucedeu,
podemos afirmar que este questionamento não é novo; aquilo que
é recente, é a linguagem, o termo "afrocentricidade" que, tal como
os Departamentos de Estudos Africanos evocam nas grandes univer-
sidades americanas, sob a direcção dos Professores Asanté e Obenga
entre tantos outros, está longe de representar a antítese do eurocen-
trismo; visa antes mostrar que existem outros pontos de vista, entre
os quais o dos Africanos do continente e de toda a diáspora, acerca de
todas as perguntas que agitam actualmente, não somente a Africa, mas
também toda a humanidade. Visa, portanto, tornar o conhecimento
num instrumento de luta e de libertação social, cultural, económica
da África.
Este conhecimento, é o movimento do conceito mais conhecido sob a
designação de afrocentrismo. Para lá dos ataques ideológicos e políti-
cos, trata-se de um momento importante da história intelectual. Ape-
sar da diversidade de algumas teses afrocentristas, trata-se, segundo a
lógica da continuidade de Cheikh Anta Diop, de estabelecer a verdade
empírica de algumas destas teses mais preciosas que valorizam as
experiências científicas e tecnológicas africanas. Para lá de qualquer
polémica proveniente tanto dos intelectuais africanos "de serviço",
quanto dos Africanistas eurocentristas do ocidente, trata-se de apre-
sentar a história africana tal como ela sempre foi, ou seja, de modo
positivo, científico e objectivo.
O objectivo consiste em pôr termo àquilo que o Pr Mamoussé Diagne
chama "a esteira dos outros" para construir um corpus escolar africa-
no no qual o Egipto antigo, devido àquilo que produziu durante vários
milénios, seria o ponto de referência cultural, e já não a Grécia antiga.
Trata-se de lutar contra o esquecimento, porque

Quanto mais tempo a cultura ou as culturas africanas ignorarem o Egipto,


que é a primeira manifestação cultural neste continente, mais difícil se tor-
nará edificar um corpo de ciência humana. Não se trata de inventar um pas-
sado mais ou menos glorioso como se acredita frequentemente. Seria fútil e
sem qualquer interesse. Se toda a África pretende entrar de novo no seu eu
cultural, esta não poderá evitar reatar com o Egipto em todos os domínios.

"Afrocentricidade": polêmica em torno de um conceito . Doudou Dieng 163


Quer se trate da investigação linguistica, da história das ciências, da religião,
da investigação arquitectural, da música, da dança, da medicina, de todos os
âmbitos da actividade humana, as primeiras civilizações remetem-nos para o
Vale do Nilo, e só reatando com a cultura deste vale é que poderemos edificar
um corpo de ciência humana. Este é o desafio, é necessário compreendê-lo.

A história da África já não se situa, portanto, ao nível das tribos; esta


é continental. Temos quase vontade de dizer que, finalmente, a história
do pensamento africano é uma história lógica dos negros africanos que
deve ser apreendida à escala mundial na modernidade conceptual.

Referências Bibliográficas
Diop, C. A. (1979). Nations nègres et culture (1954). Paris, Présence Africaine.
Diop, C. A. (1981). Civilisations ou barbarie. Anthropologie sans complaisance. Paris:
Présence Africaine.
Hebga, M. (1982). "Éloge de l'ethnophilosophie", in Présence Africaine, n.a 123.
Hegel, W. F. (2005). La raison dans l'histoire-, Bilbiothèques 10/18.
Hountondji, P. (1977). Sur la philosophie Africaine, critique de l'ethnophilosophie.
Paris: Maspero.
Obenga, T. (1990). La philosophie africaine de la période pharaonique. Paris: Éditions
L'Harmattan.
Obenga, T. (2001). Le sens de la lutte contre l'africanisme eurocentriste. Paris: L'Harmattan.
Towa, M. (1979). L'idée d'une philosophie négro-africaine. Yaoundé: Éditions CLE.
Towa, M. (1971). Essai sur la problématique philosophique dans l'Afrique actuelle.
Yaoundé: Éditions CLE.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


III.
o contributo
da comunidade negra e do
Egipto para a civilização
A história das ciências e das técnicas
na África negra

Jean-Paul Mbelek '

... Durante muito tempo, inúmeros compatriotas acreditaram poder fazer


a economia de um conhecimento aprofundado da sociedade africana e da
África sob todos os seus aspectos: passado, línguas, etnias, potencial energé-
tico, matérias primas, etc. Para além disso, as conclusões às quais se chega são
frequentemente de uma banalidade lamentável, quando as mesmas não estão
pura e simplesmente erradas.^

Introdução
Na citação prévia, retirada da introdução da sua obra Les fondements
économiques et culturels d'un état fédéral d'Afrique noire, é corn conhe-
cimento de causa que Cheikh Anta Diop nos convida a aprofundar o
nosso conhecimento das sociedades africanas sob todos os seus as-
pectos, a fim de alcançar conclusões justas e pertinentes. Com efeito,
qualquer pessoa imprudente, pode ser desfavoravelmente atraiçoada
acerca destes temas, em particular no que concerne as ciências e téc-
nicas na África Negra.
A este respeito, na introdução do seu artigo "L'observation de l'étoile
Sirius par les Dogons", publicado nos 10/11 da revista Ankh,
o astrofísico Jean-marc Bonnet-Bidaud do serviço de astrofísica do
comissariado para a energia atómica (CEA] de Saclay chama a nossa
atenção nos seguintes termos:

*. Doutor em ciências.
1. Diop, Clieilíh Anta, Les fondements économiques et culturels d'un état fédéral d'Afrique noire;
Paris, Présence Africaine, 1974, p. 5.

A história das ciências e das técnicas na África negra . Jean-Paul Mbelelc 167
Cientificamente, a África é deserto. Ao consultar as melhores obras de história
das ciências, em lado nenhum encontrareis referências a um científico afri-
cano, a uma descoberta, ou simplesmente a um feito científico africano.
Isto faz parte da cegueira constante da Europa ocidental, com os seus saté-
lites culturais do continente norte-americano, e da sua obstinação em negar
qualquer outro contributo científico que não seja proveniente da cultura
clássica grega. Esquecendo de passagem partes inteiras de conhecimentos,
o da Ásia, da América latina ou reapropriando-se deles de modo descarado
(tal como a imprensa inventada na China por Bi Sheng em 1050 reaparece
atribuída a Gutenberg no século XV, e é deste modo que ainda hoje se ensina
a história desta descoberta fundamental). A história científica do mundo é
assim reescrita à custa de uma mentira cultural constante. Para a África, os
poucos textos ou fragmentos arqueológicos revelados tornaram ainda mais
difícU esta falsificação.
Só trabalhos pluridisciplinares de vanguarda, tais como o de Cheikh Anta Diop
(análogo ã enorme tarefa realizada por Joseph Needham para a China) é que
contribuíram para retirar o continente africano do esquecimento científico.

Efectivamente, em primeiro lugar céptico, tal como nos podemos


sentir perante informações inabituais ou surpreendentes, Jean-Marc
Bonnet-Bidaud deu-se ao trabalho de aprofundar os seus conhecimen-
tos acerca da astronomia dogon. Assim, uma missão conjunta^ CNRS-
-CEA, conduzida no Mali de 27 de Julho a 8 de Agosto de 1 9 9 8 efectuou
a viagem em país Dogon. No local, J. M. Bonnet-Bidaud pôde levar a
cabo medidas astronômicas e observar o nascer helíaco de Sirius no
mesmo local explorado pelos astrônomos dogons.
As anotações da posição das rochas para a mira do sol e de Sirius são
de facto convincentes. Os conhecimentos astronômicos dos dogons
apresentados por Mareei Griaule e Germaine Dieterlen não são fabu-
lações (cf a conclusão de J. M. Bonnet-Bidaud, Ankh, n.^^ 10/11, pp.
155-156]. Esta tendência em ignorar consciente ou involuntariamente
os contributos africanos toca também o Egipto antigo. Assim, consecu-
tivamente, a Mesopotâmia, a Grécia, a índia e a China serão respectiva-
mente acreditadas da invenção da escrita, da ciência e da filosofia, do
zero e do papel. Mesmo a invenção das artes matemáticas é atribuída
aos gregos, quando até mesmo os antigos gregos atribuíam a invenção
destas artes aos antigos egípcios. Tratando-se da arte, eis aquilo que o
decifrador dos hieróglifos e primeiro professor de egiptologia no colé-
gio de França afirma:

2. Missão "Étude du système de pensée et des connaissances astronomiques des Dogons" consti-
tuída por Jean-Marc Bonnet-Bidaud, os etnólogos Germaine Dieterlen e Jean Rouch, o realizador
Jérôme Blumberg, os informadores dogons Diamguno Dolo, Anagali Dolo, Pangalé Dolo e Ibrahim
Guindo.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


Aqui está uma das mil e uma provas demonstrativas contra a opinião daqueles
que se obstinariam ainda a supor que a arte egípcia teria ganho alguma per-
feição com o estabelecimento dos Gregos no Egipto.
Volto a repeti-lo: a arte egípcia deve apenas a si tudo aquilo que produziu de
grandioso, de puro e de belo, por muito que isso desagrade aos intelectuais
que constroem para si uma religião ao acreditar firmemente na geração es-
pontânea das artes na Grécia; é evidente para mim, bem como para todos
aqueles que observaram bem o Egipto ou que possuem um conhecimento real
dos monumentos egípcios existentes na Europa, que as artes começaram na
Grécia através de uma imitação servil das artes do Egipto, muito mais avan-
çadas do que aquilo que se acredita vulgarmente, na época em que as colónias
estiveram em contacto com os selvagens habitantes do Ático ou do Peloponeso.
O velho Egipto ensinou as artes à Grécia, esta deu-lhes o desenvolvimento
mais sublime; porém, sem o Egipto, a Grécia não se teria provavelmente
transformado na terra clássica das belas-artes. Eis a minha inteira profissão
de fé acerca desta grande questão. Traço estas linhas praticamente defronte
de alguns baixos-relevos que os Egípcios executaram, com a maior delicadeza
de trabalho, 1700 anos antes da era cristã. O que faziam então os Gregos...?^

Sim, será necessário inventar e impor, custe o que custar, o "mila-


gre grego" para esperar falsamente colmatar um tal desfasamento no
imaginário colectivo do mundo ocidental. Ora, basta relembrar que o
homem nasceu em África e que o Egipto é uma terra do continente
africano. Enquanto tal, o Egipto antigo é herdeiro da mais longa ex-
periência humana na terra e beneficiária de todos os bens do homem
em terra africana. Desde a invenção do pensamento simbólico, há
80 0 0 0 anos (os artefactos das grutas de Biombos^ testemunham esta
antiguidade), passando pela invenção dos números há 37 0 0 0 anos
(ossos de Lebombo^) e a invenção das matemáticas há 25 0 0 0 anos
(ossos de Ishango®), todas as escavações arqueológicas convergem
para atestar a anterioridade da África.
A precedência do processo de hominização na África de leste é pura
e simplesmente suficiente para não nos surpreendermos com a ante-
rioridade das ciências e técnicas em África. Certamente, o contrário
teria sido possível mas, convenhamos, não deixaria de ser tão sur-
preendente, uma vez que não seria óbvio e necessitaria de algumas

3. 0 Egipto de Jean-François Cliampoliion, lettres&journaus de voyage ( 1 8 2 8 - 1 8 2 9 ) , fotogra-


fias de Hervé Champollion ( 1 9 8 8 - 1 9 8 9 ) e prefácio de Christiane Ziegler, criação de Jean-Paul
Mengès, Paris, 1990, p. 304.
4. Henshilwood, C. S. et ai, Journal of Archaeological Science, 2001, 28, 421.
5. Bogoshi, J., Naidoo, K. e Webb J., "The oldest mathematical artefact". Math Gazette 71, 1987,
n.°M58, 294.
6. De Heinzelin, J., Scientific American, 1962, 2 0 6 , 1 0 5 .

A história das ciências e das técnicas na África negra . Jean-Paul Mbelelc 169
explicações suplementares. De seguida, trata-se portanto, para mim,
de restabelecer algumas verdades e, de igual modo, procurar mostrar
onde se encontra o fundo cultural africano. Acerca deste último ponto,
podemos notar que, de um modo geral, o Africano não manifesta um
grande embaraço em reconhecer o contributo que lhe provém do
exterior. Trata-se, sobretudo, de um enriquecimento para ele e este
orgulha-se em mostrá-lo.
Porém, nem sempre é o caso dos ocidentais que têm sobretudo
tendência a ocultar os contributos que lhes chegam de fora. Todavia,
podemos também notar que depois de inúmeros tumultos, a nível
humano, os pontos de vista de uns e de outros devem sempre acabar
por convergir para que, finalmente, a paz se instale entre os povos.
Portanto, restabelecer estas verdades representa um contributo para
a identidade africana, quer seja a do continente ou a da diáspora e,
neste sentido, acredito que também seja uma contribuição ao nível da
historiografia mundial. Isto porque a humanidade, é necessário não
esquecer, é apenas uma.

1. A África, berço da humanidade


Em primeiro lugar, a África é particular neste planeta, pelo facto de
ser o continente de origem do homem. Encontramos ali todas as espé-
cies humanas que a terra pôde produzir. Desde as espécies mais anti-
gas que ousamos apenas chamar de humanas, às espécies hominídeas,
em particular Toumai, encontrado no Tchade e datado de seis a sete
milhões de anos^.
A descoberta de Toumai é da maior importância para a paleontolo-
gia humana, tendo em conta que com este crâneo fóssil, começamos a
aproximar-nos do antepassado comum aos grandes macacos. Desde
estas espécies antigas até aos homens de hoje, é possível seguir, sem
interrupção, a evolução do homem e dos seus antepassados em África
e em mais nenhum outro lado no mundo. Fala-se no homem, no gênero
homo, quando se pode associar umas destas espécies ao fabrico das
ferramentas. Isto quer dizer que nos apercebemos perfeitamente que
a inteligência é funcional. O primeiro homem, homo habilis, nasceu em
África. O primeiro homem a sair de África, é o homo erectus, há cerca
de um milhão e quinhentos mil anos. É necessário saber que durante

7. Cf. Michel Brunei, Franck Guy, David Pilbeam, Hassane Taisso Mackaye, Andossa Likius, Djim-
doumalbaye Ahounta etal, (2002}, Nature, 418, pp. 145-151. Patrick Vignaud, Philippe Duringer,
Hassane Taisso Mackaye, Andossa Likius et al, (2002}, Nature, 418, pp. 152-155. Link para a
fotografia do crâneo de Toumai (Bernard Wood, 2002, Nature 418, pp. 133-135}.
http://www.nature.com/nature/journal/v418/n6894/fig_tab/418133a_Fl.html.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


sete a oito milhões de anos, só existem factos humanos, mesmo muito
antigos, em África. Noutros locais, existe vida animal e vegetal, mas
não existe nada que se assemelhe de perto ou de longe a um ser hu-
mano. O processo de hominização só se desenvolveu durante vários
milhões de anos em África.
Podemos comparar este longo período pré-histórico à parte históri-
ca da humanidade, cuja duração atinge apenas dez mil anos. Deste
modo, para toda a humanidade, a realidade africana é a mais antiga do
planeta. O homem moderno ou homo sapiens sapiens, isto é, o homem
que sobreviveu no planeta terra até ao momento, representa a última
variante do gênero homo. Os fósseis mais antigos de homem moderno
foram descobertos na Etiópia, no Quênia e na África do Sul.
O homo sapiens idaltu, descoberto em Herto, perto de Adis-Abeba,
encontra-se datado de cento e sessenta mil anos, enquanto que a nova
datação do crâneo fóssil Omo 1 (descoberto em 1 9 6 7 em Kibish por
Richard Leakey) é agora datado precisamente de cento e noventa e
cinco mil anos, mais ou menos cinco mil anos®. Trata-se dos antepas-
sados de todos os homens que povoam a terra actualmente e, quais-
quer que sejam as suas cores, negro, branco, amarelo ou vermelho.
Estas diferenças de cores e todas as outras características raciais são
apenas resultados de diferenciações que resultam da adaptação a no-
vas condições geoclimáticas. Assim, chegado da África para a Europa
através do Próximo-Oriente há cerca de aproximadamente quarenta
mil anos, o homo sapiens sapiens vai adaptar-se às novas condições
geoclimáticas, entre as quais a glaciação do Würm que vai durar cerca
de vinte mil anos.
O homem moderno vai assim adaptar-se ao modificar parcialmente
a sua morfologia e a sua cor. A explicação corrente para esta mudança
de cor está baseada no facto de o dia ser menos luminoso na Europa
do que em África. Deste modo, ainda que a pigmentação através da
melanina represente uma protecção eficaz em África, contra o podero-
so fluxo dos raios ultravioletas, a despigmentação será sobretudo fa-
vorável na Europa para facilitar a síntese da vitamina D necessária ao
desenvolvimento das crianças (a vitamina D desempenha uma função
essencial na regulamentação do metabolismo do cálcio e do fósforo;
aquela é derivada do colesterol sob a acção da luz solar. Com efeito,
sabemos que as crianças africanas nascidas na Europa têm por vezes
problemas de raquitismo (falta de calcificação ao nível das zonas de
crescimento dos ossos e que provoca malformações ósseas] quando

8. Cf. Ian McDougall, Francis H. Brown e John G. Fleagle, Stratigraphic placement and age of modern
humans from Kibish, Ethiopia, 2005, Nature 433, pp. 733-736.
http://ma.prehistoire.free.fr/omo_l.htm.

A história das ciências e das técnicas na África negra . Jean-Paul Mbelelc 171
não se lhes administra, desde a idade de dois até aos dezoito meses,
uma dose suficiente de vitamina D. Portanto, o factor humano é afri-
cano à partida.
Não existe qualquer conotação nacionalista ao afirmar isto, e é um acaso
que a Áírica seja o único berço da humanidade. Porém, graças a esta ori-
gem monogenética, os homens estão todos unidos quaisquer que sejam
as suas origens actuais. Podemos, igualmente, salientar que o continente
africano ocupa uma posição particular no plano geográfico. De facto,
devido à imensidão do Oceano Pacífico, o melhor modo de apresentar os
continentes num mapa, de modo a que ocupem a maior superfície
possível em detrimento dos oceanos, consiste em colocar a África no
centro do mapa (cf o mapa do mundo nas informações televisivas].
É também um factor geofísico porque, quando se pretende reconsti-
tuir o super continente denominado Gondwana composto pela Aus-
trália, pela índia, pela Arábia, pela América do Sul, pela África e pelo
Antárctico (até mesmo, numa determinada época, a Flórida e uma par-
te do sudoeste da Europa] e tendo existido há seiscentos e cinqüenta
milhões de anos - a cento e trinta milhões de anos disto - alcança-se
o resultado através dos estudos do paleomagnetismo e graças ao facto
de a África não se ter movimentado muito durante todo este período.

2. A África, berço da escrita


Acerca destes assuntos, tal como de tantos outros, os manuais esco-
lares estão frequentemente muito atrasados em relação aos resultados
já alcançados pelos investigadores. Deste modo, a escrita nasceu de
facto em África^. Trata-se de uma invenção africana do neolítico. Desde
a publicação dos resultados das escavações levadas a cabo em Abidos,
no túmulo do rei Escorpião, por Günter Dreyer e pela sua equipa^", sa-
bemos agora que há aproximadamente seis mil e quatrocentos anos a
escrita hieroglífica já estava constituída e era utilizada pelos Egípcios
com as mesmas regras e os mesmos valores de ideograma, de fono-
grama ou de determinativo que conhecemos hoje. Ora, os documentos
mesopotâmicos mais antigos que remontam a menos de cinco mil e
quatrocentos mil anos, e que são frequentemente exibidos enquanto
prova da origem da escrita, são apenas extractos numéricos, ou seja,
meras anotações de números.

9. Cf. T. Obenga, "Africa, the craddle of writing, 1999-2000,4fi/i/i, n.o^ 8 / 9 , pp. 86-95.
10. Dreyer, Günter, "Recent Discoveries at Abydos Cemetery U", in Edwin C. M. van den Brinlc (edi-
tor], The Nile Delta in Transition: 4th-3rd miilenium B.C., The Israel Exploration Society, tel Aviv,
1992, pp. 293-299.
http://wviiw.dainst.org/index_51_en.html.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


Porém, o atestado mais antigo da anotação de números é uma série
de vinte e nove cortes gravados sobre um perónio de babuíno data-
do de trinta e sete mil anos, descoberto na África do Sul nos montes
Lebombo, na fronteira com a Suazilândia. Considerando as datações,
não existe, portanto, nenhuma comparação sustentável entre a África
e o Próximo-Oriente nestas épocas recuadas da história humana. As
matemáticas também nasceram em África. O interesse em sublinhar
esta origem africana deve-se também ao facto de permanecermos
estritamente no terreno científico. Com efeito, afirmar que os gregos
inventaram as ciências constitui uma asserção que é na realidade falsa
já que obriga à invocação de um "milagre grego". Mas, se no lugar da
Grécia falarmos da África, não existe de todo a necessidade de invocar
qualquer milagre, tendo em conta que a longa duração da pré-história
ã proto-história permite então uma progressão lenta e gradual.
Assim, durante um tempo tão prolongado, o Africano teve tempo para
encontrar ou realizar coisas favoráveis à melhoria das suas condições
de existência. Na Europa, o tempo que separa a pré-história da proto-
-história é muito mais reduzido. Portanto, face a esta falta de tempo,
postula-se o milagre grego. No entanto, este não é um dado científico.
Os gregos, por exemplo, não inventaram a sua escrita. Esta foi-lhes
trazida completamente elaborada pelos fenícios, cananeus da Bíblia e
cortesãos dos antigos Egípcios.
Os nomes de letras gergas, alpha, beta e gamma são apenas reminis-
cências respectivamente de aleph, beth e gimmel da escrita fenícia. Em
contrapartida, a escrita dos antigos Egípcios é uma invenção autóctone
e autónoma e, enquanto tal, possui uma longa história. Deste modo,
entre a invenção dos hieróglifos e a do hierático [hieróglifos simplifi-
cados utilizados para os textos matemáticos em papiro], decorreram
cerca de mil anos. Do mesmo modo, decorreram aproximadamente
outros mil anos entre a invenção do hierático e a do demótico [escrita
cursiva].

3. A África inventa o zero


Outra das verdades a restabelecer diz respeito ao zero [a palavra
francesa deriva do italiano do século XV, zefiro, por seu turno derivado
do árabe sifr que significa "o vazio"]. Aprendi na escola francesa que o
zero (valor e número] consiste numa invenção indiana introduzida na
Europa via Espanha pelos Árabes, por volta do século oitavo da nossa
era; os outros povos não conheciam o número zero. Esta invenção
devia ostentar a marca do gênio, tendo em conta que se trata de uma

A história das ciências e das técnicas na África negra . Jean-Paul Mbelelc 173
subtileza do espírito que consiste em significar, através de um símbo-
lo, precisamente o zero, ali onde seríamos tentados a deixar um vazio
devido ao ausência do objecto de discussão. Ao invés de afirmar que
não existe nada, diz-se que existe zero. Deste modo, torna-se o nada
em alguma coisa de muito mais operacional (em francês, um nada sig-
nifica alguma coisa). Enunciado desta maneira, o procedimento parece
miraculoso.
Todavia, se perguntarmos aos índios a quando remonta a invenção
do zero {shunya em sânscrito, significando nya "o vazio"), a data não
irá para além do quinto século antes da nossa era. Com efeito, o zero
é uma invenção africana conhecida no Egipto antigo sob a designa-
ção de neferou (literalmente "a beleza" ou ainda "a ausência de alguma
coisa") desde, pelo menos, o segundo milénio antes da nossa era. Não
somente os antigos Egípcios possuíam um símbolo para o zero, tal
como surge claramente no papiro Boulaq a propósito de contas de um
templo", mas também conheciam o zero sob todas as formas da sua
utilização para além do uso do símbolo (o hieróglifo néfèr, o mesmo
que surge nos nomes Néfèrtari ou Néfèrtiti) para anotá-lo". Em arqui-
tectura, orientavam-se através de inscrições com o nível zero (èm tèp
èn néféroú), o nível acima do zero {hèr néférou) e o nível abaixo (khèr
néféroú).
Num levantamento do muro da pirâmide de Menkauré antigo Im-
pério, 2 6 0 0 antes da era cristã) apresentado por G. Reisner em 1 9 3 1 " ,
lê-se o quinto e o sexto nível abaixo do zero, respectivamente cinco
côvados reais abaixo de zero [méhé sérésou khèr néférou).
Sendo o côvado real [méhé) a unidade de medida, as medidas
precedentes têm por valores respectivos menos 5 (ou seja, -5 em
anotação simbólica) e menos seis (ou seja, -6, em anotação simbólica).
O zero, pensado desta forma como nível de referência, dá directamente
acesso ao cálculo algébrico com os números positivos e negativos. Por
conseguinte, mesmo a invenção dos números relativos é atribuível
aos antigos Egípcios. Com efeito, quando se atribui uma determinada
quantidade acima de zero, esta corresponde àquilo que se designa de

11. Lumpkin, B., "Mathematics Used in Egyptian Construction and Bookkeeping", in The Mathemati-
cal Intelligencer, voL 24, n^ 2, 2002, 20-25.
12. Scharff, A., Ein Rechnungsbuch des Königlichen Hofes aus der 13. Dynastie [Papyrus Boulaq Nr
18], Zeitschrift für Ägyptische Sprache und Altertumskunde Vol. 57, 1992, pp. 58-59; Faulkner,
Raymond 0., A Concise Dictionary of Middle Egyptian, Griffith Institute, Oxford, 1978, p. 266, 351.
13. Arnold, D.„ Building in Egypt, Pharaonic Stone Masonry; Nova lorque, Oxford University Press,
1991, p.l7; Reisner, George A., Mycerinus, the Temples of the Third Pyramid at Giza; Cambridge, Har-
vard University Press, 1931, pp. 76-77. Lumpkin, B., "Mathematics Used in Egyptian Construction
and Bookkeeping", in The Mathematical Intelligencer, vol. 24, n® 2, 2002, 20-25. Beatrice Lumpkin,
and African-American Contributions to Mathematics, http://wvvwi.pps.kl2.or.us./depts-c/mc-me/
be-af-ma-pdf.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


valor absoluto nas aulas de matemáticas elementares, enquanto que
simbolicamente, se substitui as expressões "acima de zero" e "abaixo
de zero" respectivamente pelo sinal mais [anotado +) e pelo sinal me-
nos [anotado Do ponto de vista pedagógico, tendo em conta estes
dados históricos, somos levados a reavaliar os métodos de modo a fa-
cilitar o ensino das matemáticas às crianças. De facto, podemos pensar
que todos os primeiros trabalhos que o homem fez são baseados em
métodos cuja explicação é a mais simples. Assim, a melhor forma que
encontrei para explicar a uma criança de cinco anos como resolver,
por exemplo, a operação + 2 - 3 consiste em dizer-lhe que, partindo
do rés-de-chão, subi dois andares e voltei a descer três. A criança com-
preende este modo de formulação à egípcia e pode mesmo concluir
que me encontro no primeiro subsolo. A partir daqui, a resposta em
anotação algébrica que é, portanto, -1, pode ser clara e simplesmente
explicada à criança de cinco anos sem abstracção inútil a este nível,
para um primeiro contacto com a álgebra.

4. A multiplicação e a divisão egípcias


A multiplicação e a divisão egípcias são fundadas na duplicação e
na adição. Neste sentido, o calculador pode fazer a economia do conhe-
cimento das tabuadas de multiplicação. O método posto em prática
baseia-se num teorema simples de demonstrar. De uma maneira geral,
as matemáticas egípcias não são empíricas, contrariamente ao que
alguns gostam de afirmar - quer sejam egiptólogos que não possuem
uma formação sólida em matemática, quer sejam matemáticos que
não sabem ler os hieróglifos ou o hierático.
A quando remonta a utilização destas duplicações? O estudo do osso
de Ishango" apresenta uma resposta clara a esta questão. O local de
Ishango, próximo das fontes mais meridionais do Nilo, encontra-se nas
margens do rio Semliki, a cerca de quinze quilômetros a sul do equa-
dor. Para além disso, está provado que a população de pescadores do
alto Vale do Nilo é originária da região dos grandes lagos africanos^^
Trata-se de uma confirmação de Heródoto de Halicarnasso, quando
este indica que os Egípcios são apenas uma colônia (isto é, uma fracção
da população autóctone] de Etíopes (a Etiópia dos antigos gregos designa
o Sudão actual] que Osíris dirigiu para o Egipto, seguindo o curso do
Nilo. Ademais, facto notável que não se deve, certamente, ao acaso,

14. Cf. ). P. Mbelek, "Le déchiffrement de l'os d'Isahango", in Ankh, n."^ 12-13, 2 0 0 3 - 2 0 0 4 , pp. 118-
-137: http://www.math.buffalo.edu/mad/Ancient-Africa/ishango.html.
15. pp. 108-117.

A história das ciências e das técnicas na África negra . Jean-Paul Mbelelc 175
tendo em conta aquilo que foi dito anteriormente, o número "1" forma
a ponta de um harpão e o hieróglifo do harpão, intervém na escrita de
"um" em egípcio antigo. Por último, a decifração do osso de Ishango
mostra que a África está na origem da invenção das artes matemáticas.
Esta herança do passado antigo da África equatorial no Egipto, Aristóteles
vem confirmá-lo quando refere "também o Egipto foi considerado
enquanto berço das artes matemáticas".

5. A sobrevivência das tradições erudita e cria-


tiva africanas
Esta tradição inventiva perdurou na África Negra e na diáspora, mes-
mo durante o período dos tráficos negreiros árabe e europeu, apesar
da importância das destruições de toda a espécie sucedidas por estas
empresas criminosas. Com efeito, a longa tradição científica africana
que remonta à mais alta pré-história e à antiguidade permitiu a sobre-
vivência, segundo as épocas^®, de alguns ilhéus mais ou menos estru-
turados da prática científica^^. Assim se apresentam as capacidades de
navegação em alto mar dos suaílis que ainda hoje se perpetuam desde
o século X; a prova está nos botes das costas do Quénia e da Tanzânia,
a presença de porcelana chinesa antiga^®, bem como a beleza arqui-
tectónica e o conforto das casas (em tijolos duros, feitos a partir de
um material extraído do fundo do mar e que endurece ao ar livre] das
antigas cidades suaílis, hoje invadidas pelas florestas como Gedi".
O mesmo acontece com os conhecimentos astronómicos precisos
dos dogons^", em particular com o sistema de Sirius, com a forma
elíptica da órbita de Sirius B à volta de Sirius A que se encontra num
dos lares (é a primeira lei de Kepler, enunciada no século XV], o valor
de cinquenta anos para o período de Sirius B em torno da sua órbita

16. Les civilisations de l'Afrique, texto de Henri Moniot e ilustrações de Christian Mander, Caster-
man, 1987; cf. o primeiro e segundo mapas da obra: ao comparar os mapas da segunda página da
capa (tamanho e multiplicidade de reinos africanos nos séculos XVI-XVIII] e da página seguinte
(tamanho e multiplicidade dos reinos africanos nos séculos XVI-XVIII), reparamos que os grandes
reinos iniciais se fragmentaram dando origem a inúmeros pequenos reinados de tamanho muito
mais reduzido. Com efeito, desde o século XV, o tráfico de escravos europeu assola toda a África
Negra destruindo e desestruturando todos os estados e sociedades negro-africanos.
17. Sertima, Ivan Van (editor). Blacks in Science ancient and modem, Transaction Books, New
Brunswick e Londres, 1991. Charles S. Finch 111, The Star of Deep Beginnings, the genesis ofafrican
science and technology, Khenty Inc, 1998.
18. Les civilisations de l'Afrique, texto de Henri Moniot e ilustração de Christian Maucler, Casterman,
1987, pp. 28-29.
19. Cf. as fotos da placa 1 7 , 1 8 e 19 inseridas entre as páginas 140-141 da referência [11].
20. Bonnet-Bidaud, Jean-Marc, "L'observation de l'étoile Sirius par les Dogons", in Ankh, n.o^ 10-11,
2002, pp. 144-163.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


(isto em relação com a celebração do Sigui a cada sessenta anos: 60
= 50 + 10), a compacidade e a extrema densidade de Sirius B que é
composta por uma matéria especial desconhecida na terra e que os
dogons denominam "sagala". Os dogons associam a Sirius A, o "spdt"
dos antigos Egípcios e estrela mais brilhante do céu durante a noite,
dois outros companheiros de Sirius B e Sirius C (ambos invisíveis a
olho nu], conhecidos há pelo menos setecentos anos (Sirius B, que é
uma anã branca cujo astro invisível a olho nu só foi conhecido no oci-
dente após a sua observação ao telescópio, por Alvan Graham Clark,
em 1862]. Por outro lado, os africanos que foram deportados para a
América não chegaram de mãos vazias. Ainda assim, existiam adultos
entre eles que já tinham vivido em África e que, portanto, já tinham
recebido uma formação e em particular uma iniciação. Deste modo,
estes já tinham um background, o fundo cultural africano consigo. Isto
servir-lhes-á quando se encontrarem nos quilombos; recorrerão a
estes conhecimentos que já tinham adquirido. Citemos^^:
1] Os sábios da Universidade de Sankoré em Tombuctu (a mesquita
de Sankoré foi construída no início do século XIV], entre os quais o
mais célebre de entre eles, Ahmed Baba, deportado para Marrocos.
Presta-se-lhe hoje homenagem atribuindo o seu nome à biblioteca
criada em Tombuctu e onde se procura conservar os manuscritos
malianos até aqui preservados de geração em geração por particula-
res. Contam-se cerca de 80 000, de entre os quais alguns remontam
ao século IX.
2] O matemático fula do Katsina (província do norte da Nigéria], Mu-
hammad ibn Muhammad al Fulani al Kishnawi, que descobriu em
primeiro lugar a estrutura de grupo das rotações do plano um sé-
culo antes de Évariste Galois, e o aplicou para estabelecer teoremas
importantes acerca dos quadrados mágicos de qualquer modelo de
classificação. O manuscrito de Muhammad ibn Muhammad al Fulani
al Kishnawi intitulado Traité de 1'utilisation magique des lettres de
Valphabet, foi publicado no Cairo em 1732. Uma cópia de cada uma
das páginas 1-20, 9 1 - 1 0 0 , 1 3 1 - 1 4 0 e 1 7 1 - 1 7 9 foi conservada na
biblioteca da School of Oriental and African Studies da Universidade
de Londres. Na sua ohra Africa counts, Numbers and Patterns^^, Clau-
dia Zaslavsky apresentou a reprodução da página 92, bem como uma
página de quadrados mágicos, extraídos do tratado de Muhammad
ibn Muhammad.

21. Sertima, Ivan Van (editor), Blacks in Science ancient and modem; Transaction Boolis, New
Brunswick e Londres, 1991. Antoine, Yves, Inventeurs et savants noirs; L'Harmattan, Paris, 2004.
22. Zaslavsky, Claudia, UAfrique compte' Nombres, formes et démarches danas la culture africaine;
Éditions du hoix, Argenteuil, 1995, cap. 12, pp. 137-151 e cap. 25, pp. 273-279.

A história das ciências e das técnicas na África negra . Jean-Paul Mbelelc 177
3) Alguns inventores afro-americanos célebres do século XIX e do
início do século XX: Garrett Augustus iVlorgan^^ o inventor dos produ-
tos para alisar o cabelo (1909), da máscara de gás^'* ( 1 9 1 2 ) e do
s e m á f o r o " ( 1 9 2 3 ) vendido à General Electric Company por 4 0
000$ americanos da época^^ ou seja, cerca de 4 0 0 000$ americanos
actuais^^. Granville T. Woods^®, um dos maiores inventores da sua
época, detentor de mais de uma centena de diplomas de invenção,
inventor do sistema eléctrico do trolley bus^'^ ( 1 8 8 7 ) e, sobretudo, do
terceiro carríF" (patenteado em 1 9 0 1 e vendido à General Electric
Company no mesmo ano) ainda em uso actualmente em todos os
metros do mundo. É o primeiro a apresentar as melhorias necessárias
ao telefone primitivo de Graham Bell (ou daquele que seria o seu
verdadeiro inventor, Antonio Meucci) resolvendo os problemas de
adaptação das impedâncias acústicas e eléctricas (transmissão sem
distorção do som das vibrações do ar provocadas pela palavra em
corrente eléctrica e reciprocamente, com o máximo de potência) e in-
ventando o multiplexagem^^ ( 1 8 8 7 ) . O aperfeiçoamento do telefone,
que baptizou de telegrafonia^^, não somente permitia transmitir os
sons de modo claramente audível entre postos imóveis, mas também
entre postos móveis e imóveis (este diploma foi comprado pela com-
panhia Bell). Para além disso, isto permitia também a transmissão
das imagens. Granville T. Woods é um inventor de génio. Woods, que
alguns baptizaram o "Edison negro" (porém, teriam ousado bapti-
zar também Edison de "Woods branco"?), venceu por duas vezes
perante os tribunais contrar Edison que tinha tentado contestar a

23. Nascido a 4 de Março de 1877 em Paris (Kentucky) - falecido a 27 de Julho de 1963 em Cleve-
land (Ohio}. Ver J. P. Mbelek, Garrett Morgan, un grand inventeur du XXème siècle [1999-20Q0y, Ankh,
n.s 12-13, pp. 188-205. Le génie inventif, Ed. Time Life, Amesterdâo, 1991 [adaptação francesa de
Inventive Genius, Time-Life Books B. V., 1991, p. 40.
24. Patenteado em 1914, diploma US 1 1 1 3 675.
25. Diploma US 1 4 7 5 024.
26. Kathy L. Hendershot, Jennifer Ross-Tyler e Beverly M. Gordon, A Study of African-American
Inventors 1754-1950; 1998. http://www.coe.ohiostate.edu/beverlygordon/gordon/courses/B63/
henross.html.
27. http://www.swissamerica.com/article.php?=ll-2004/200411150247f.txt
http://cafehayek.typepad.eom/hayek/2004/08.
28. Nascido a 23 de Abril de 1 8 5 6 em Colombus [Ohio] - falecido a 30 de Janeiro de 1910, ver
J. P. Mbelek, Garrett Morgan, un grand inventeur du XXème siècle, 1999-2000, Ankh, n® 12-13,
pp. 188-205. Science illustrée, n.2 9, Setembro de 1996 [8.e ano), p. 61.
http://web.mit.edu/invent/iow/woods.html
http://www.inventions.org/culture/african/gtwoods.html
http:/www.heartlandscience.org/energy/pdf/energy.pdf
http://www.columbusinfobase.org/RickWoods/Brochure%20RW.pdf
29. Diploma US 385 034.
30. Diploma US 667 110.
31. Diploma US 373 383.
32. Diploma US 315 368.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


sua prioridade sobre duas das suas invenções, e também numa outra
ocasião contra outro inventor de nome Phelps. Finalmente, Edison,
que sabia vergar-se perante o génio, propôs a Woods integrar a sua
empresa ocupando um cargo importante e muito lucrativo relati-
vo ao departamento de engenharia. De modo extremamente lúcido,
Granville T. Woods preferiu declinar esta proposta e manter a sua
independência.
O engenheiro Elijah Mac Coy^^ inventor do dispositivo para lubrifi-
car um motor em funcionamento^'^ (1872), cujo nome passou para
a língua inglesa na expressão «the real Mac Goy» para significar o
original que funciona perfeitamente. E entre estes inventores, exis-
tiam mulheres^^ entre as quais: Sarah Goode, cuja invenção da cama
e do armário-escrivaninha dobrávreis^'" ( 1 4 de Julho de 1 8 8 5 ) está
relacionada com a sua história enquanto afro-americana nascida es-
crava na América em 1850. O mesmo sucede com a sua congénere
afro-americana Sarah B o o n e " que, em 1892, inventou a tábua de
passar a ferro (prancha estreita, coberta com estofamento e com
suportes de pés dobráveis). Há quase noventa anos, Madeline M.
Turner inventava o primeiro espremedor de fruta industrial^®
que, desde então, sofreu apenas ligeiras alterações. Esta tradição
da invenção feminina afro-americana ainda se perpetua através de

33. Nascido a 2 de Maio de 1844 em Colchester (Ontário, Canadá) - falecido a 10 de Outubro de


1929. Ver J. P. Mbelek, Garrett Morgan, un grand inventeur du XXème siècle (1999-2000), Ankh, n.2
12-13, pp. 1 8 8 - 2 0 5 . Richard Platt, Les grandes découvetes de la science: col. Grands Horizons,
Nathan, 2 0 0 4 (adaptação francesa de: Richard Platt, Eurêka! Great inventors and their brilliant
brainwaves: Kinfisher Publications Pic, Londres, 2003, pp. 78-79.
34. Diploma US 129 843.
35. MOUSSA, Farag - "Women Inventors Honored by World Intellectual Property Organization
(WIPO)", Genebra, 1991. Este relatório consiste numa compilação de mulheres homenageadas pela
WIPO pelos seus projectos inovadores, sem esquecer as contribuições das mulheres de África e da
sua diaspora; cf.
http://www.lapl.org/resources/guides/affmingenuity.html. Otha Richard Sullivan e Jim Haskins
(editor geral), Black Stars: African American Women Scientists and Inventors, John Wiley&Sons
Inc., Nova Iorque, 2002; cf.
http://eu.wiley.eom/WileyTitle/productCd-047138707X, descCd-tableOfContents.html. A história
reteve o nome de Ellen F. Eglin como inventora de um secador de roupa nos anos 80, mesmo não
tendo registado uma patente e tendo vendido a sua invenção por 18$; cf.
http://www.stsci.edu/stsci/service/wsf/current/inventions.html. Susan Davis Herring, "Women
in the history of technology - women inventors (apresentado à sociedade das mulheres engenhei-
ras a 4 de Março de 1999, em Huntsville, no âmbito do mês da história das mulheres), http://wviíw.
uah.edu/colleges/liberal/womensstudies/inventorhtml.
36. Diploma US 322 117.
37. Diploma US 473 653,
http://inventors.about.com/library/inventors/blboone.htm
http://inventors.about.com/library/inventors/blboone2.htm.
38. Diploma US 1 1 8 0 9 5 9 de 25 de Abril de 1916. Autumn Stanley, Mothers and Daughters od Inven-
tion, Rutgers University Press, 1995, p. 54.
http://www.csupomona.edu/~plin/inventors/turnenhtml,
http;//vwirw.csupomona.edu/~plin/inventors/images/turner_fruitpress_big.jpg.

A história das ciências e das técnicas na África negra . Jean-Paul Mbelelc 179
Bessie Virginia Blount [nome de casada, Griffin), terapeuta em me-
dicina física que inventou um dispositivo que permite aos amputa-
dos alimentarem-se sozinhos^' [não tendo encontrado apoio junto
da administração dos veteranos U. S., cedeu a sua patente ao governo
francês em 1952; "uma mulher negra pode inventar qualquer coisa
em benefício da humanidade", afirma esta), e hoje da oftalmologis-
ta Patricia E. Barth, inventora do laser phaco [a raiz grega "phaco"
significa cristalino) em 1988'*°. Note-se que terá sido necessário,
em 1858, a emergência de uma lei cruel, proveniente de um certo
Jeremiah Sullivan Black para proibir os negros de registar patentes
por invenção''^ Ainda hoje, os Africanos contribuem para a paleon-
tologia humana''^: existem especialistas quenianos, entre os quais
Kamoya Kimeu, Peter Nzube e Bernard Ngeneo, e etíopes, entre os
quais Yohannes Haile-Selassie, Gen Suwa e A. Amzaye, todos eles
investigadores e descobridores de fósseis de renome internacional.
Do mesmo modo, o descobridor [descoberta publicada em 2 0 0 1 ) de
Toumai, Ahounta Djimdoumalbaye, então estudante e actual doutor
em ciências, bem como o descobridor do homo sapiens idaltu, o pro-
fessor Berhane Asfaw [descoberta publicada em 2 0 0 3 ) .
4) Prémios Nobel e prémio Nobel alternativo: São, sobretudo, bons
exemplos para os jovens que deveriam orientar-se para as ciências
que são extremamente úteis para a humanidade, não sendo nenhu-
ma ciência por essência estranha à África, tal como salientámos mais
acima.
a) Sir William Arthur Lewis [nobilitado pela rainha de Inglaterra),
prémio Nobel da economia, em 1979'^^.
b) Alfred Day Hershey, prémio Nobel de fisiologia e medicina, em
1969, para a compreensão da duplicação dos vírus e a estrutura dos
seus códigos''^. A experiência que levou a cabo em 1952 com a sua

39. Diploma US 2 550 554,


http://www.inventors.about.com/library/inventors/blblount.htm,
http://vww.inventors.about.com/libraiy/inventors/blblount2.htm.
40. Diploma US 4 744 360,
http://www.inventors.about.com/libraiy/inventors/blPatricia_Bath.htm.
41. Robert C. Hayden, Black Americans in the field of Science and Invention; cf. referencia[10],
p. 216.
Norman 0. Forness, 1980, The Master, the Slave, and the Patent Laws, A Vignette of the 1850's;
Cf. http://www.huarchivesnet.howard.edu/featarFornessl.htm.
42. http://wvw.sciencepress.qc.ca/archives/2003/cap0809031.html,
http://talkorigins.org/faqs/homs/specimen.html,
http://palaeo.gly.bris.ac.uk/Palaeofiles/Lagerstatten/lkturkana/impdishomo,html,
http://vww.rci.rutgers.edu/~kffs/HTML/koobi/famous.html,
http://wvw.archaeologyinfo.com/erl470.htm
http://australopitheque.ifrance.com/page_vierge_l.htm
43. http://nobelprize.org/economics/laureates/1979/lewis-autobio.html.
44. http://nobelprize.org/medicine/laureates/1969/hershey-bio.html.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


estudante, Martha Chase, permitiu confortar a hipótese segundo a
qual o ADN (mais do que as proteínas] era o transmissor da informa-
ção genética. A experiência de Hershey-Chase é também a primeira
a utilizar o acompanhamento das moléculas por radioactividade no
corpo humano.
c] Aklilu Lemma, "prémio Nobel alternativo" (Right Livelihood Award],
em 1989, com o seu compatriota etíope. Dr. Legesse Wolde-Yohannes'^^
"por ter descoberto um agente natural capaz de matar os moluscos
e ter apurado um método baseando-se na participação de massas
populares para utilizar este agente na luta contra os caracóis
vectores do parasita da esquistossomose (bilharzíase]".

6. Apêndice: A multiplicação e a divisão egípcias


A duplicação está na base da multiplicação e da divisão egípcias. Ora,
tal como observámos anteriormente, o atestado mais antigo do uso
da duplicação para as necessidades do cálculo remonta à prática das
matemáticas revelada pelos ossos de Ishango.

6.1. A multiplicação egípcia

A multiplicação egípcia resume-se a duas duplicações (a única tabua-


da de 2] e adições, e o mesmo sucede para a divisão. Por exemplo, se
calcularmos P = 1 9 . 1 3 . Colocamos a operação do modo seguinte,
o 1| 19
2| 38
o 4| 76
o 8|152

A soma dos números apontados na coluna da esquerda é igual a 13,


o multiplicando. A coluna da direita corresponde às duplicações de 19,
o multiplicador. Ao fazer a soma dos múltiplos de 19 em relação aos
números apontados à esquerda, obtemos o resultado P = 19 + 76 +
152 = 247.

45. http://chora.virtualave.net/lema4.htm,
http://www.akilulemma.com/11632.html?*session*id*key*=session*id*val*

A história das ciências e das técnicas na África negra . Jean-Paul Mbelelc 181
6.2. A divisão egípcia

Eis um exmplo para a divisão egípcia: se calcularmos R = 184/8.


Torna-se evidente que a questão colocada se resume em procurar
o número R a multiplicar por 8 para obter 184. Deste modo, torna-
-se claro que a divisão se resume à mutliplicação de um multiplica-
dor conhecido, neste caso 8, por um multiplicando desconhecido, R.
Procede-se, então, da mesma maneira que para a multplicação. Assim,
contrariamente aos nossos hábitos actuais relacionados com o uso dos
logaritmos, a divisão resume-se também à adição e não ã subtracção.
Quanta economia de reflexão e de métodos, não é?
Colocamos a operação do modo que se segue,
l|8.e
2|16.2
4|32.5
8|64.e
16|128.5

A soma dos números apontados na coluna da direita [ao invés da


coluna de esquerda, como acontece para a mutliplicação) é efectiva-
mente igual a 184, o dividendo. Ao fazer a soma dos múltiplos de dois
em relação aos númeors apontados na coluna da direita, obtemos o
resultado R = 1 + 2 + 4 + 16 = 23.
A divisão com o restante efectua-se do mesmo modo, mas em vez de
introduzir números decimais, os Egípcios utilizavam uma sucessão de
fracções irredutíveis.

6.3. A demonstração

Se considerarmos efectuar o produto P = m. M, em que M representa


o multiplicador e m o multiplicando,
a) Decompõe-se o multiplicando seguindo as suas potências de 2, ou
seja:

m = S cn. 2n, em que os cn adoptam um e outro valores O ou 1; n = 0,1, 2,...

o que implica P = S cn. (M. 2n),


e significa que, enquanto que o multiplicador M é escrito com base
dez, o multiplicando m é, no que lhe concerne, escrito com base dois.
Deste modo, a multiplicação egípcia implica a utilização simultânea da
base dez e da base dois.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


b) Reconhecemos, no interior do parêntesis, as duphcações sucessi-
vas do multipHcador M, cuja soma acima descrita resulta no produto
R Vemos que a marca praticada pelos egípcios tem em conta uni-
camente o facto de as duplicações que correspondem a cn = 1 con-
tribuírem para a soma que resulta no produto P. As duplicações que
correspondem a cn = O não contribuem para a soma que resulta no
produto P, não se encontram assinaladas, daí a ausência de anotação
nestes casos.

A história das ciências e das técnicas na África negra . Jean-Paul Mbelelc 183
Contributo das cosmogonias dogon
para a problemática da "origem" da
civilização: a necessidade do trágico
no seio da divindade
Cheikh Moctar Bâ'

Introdução
o homem sempre colocou a questão de saber qual a origem da civili-
zação e de que modo se foi progressivamente diferenciando dos outros
seres. Partindo da idéia que existe uma fase cosmogónica da existência
marcada pelo predomínio da divindade, propomo-nos aqui verificar
de que modo ê que os Dogons conseguem justificar a origem da civili-
zação através da tragédia. A análise da cosmogonia Dogon revela a pre-
sença do trágico no seio da divindade. Deste modo, trata-se de partir de
uma abordagem da situação cosmogónica, na qual a revolta de Ogo teve
lugar, a fim de analisar o sentido trágico da idéia de "roubo" e acabar por
conceber a justificação da emergência trágica da civilização.

1. 0 que justifica a revolta de Ogo?


Durante o desenvolvimento do processo cosmogónico Dogon, trata-se
da criação dos "antepassados Nommo" por Amma, bem como da atri-
buição de uma tarefa a cada um deles que coincidem com a expressão
do trágico como ruptura ou rebelião divina. O Deus criador Amma
criou quatro gêmeos: o "Nommo die" (Grande Nommo com assento
junto de Amma), o "Nommo Titiyane" (segundo Nommo mensageiro ou
adjunto do primeiro, guardião dos seus princípios espirituais e execu-
tor das suas obras), o "Nommo" (Nommo do lago que descerá ã terra
em conseqüência do sacrifício de que foi vítima), e o "Nommo ana-
gonno ou Ogo" (quarto Nommo).

1. Doutor em filosofia, Universidade de Rennes 1, UPRES 1270, Filosofia das Normas.

Contributo das cosmogonias dogon para a problemática da "origem" da civilização . Ci^eikh Moctar Bà 185
Porém, sendo estes Nommo constituídos por um princípio mascu-
lino, Amma decide criar gêmeas para eles, de modo a favorecer a
multiplicação dos seres. Assim fará, tal como previsto, para os três
primeiros Nommos, cada um na sua vez e seguindo a ordem da sua
criação. Tendo os três primeiros visto a sua gêmea, Amma dedica-se
à criação da futura gêmea de Ogo. No entanto, este está impaciente
e receia não ver a sua. Não conseguindo agüentar mais a sua solidão,
torna-se ciumento. Cansado de esperar pela conclusão do processo de
criação da sua gêmea, Ogo revolta-se contra o criador e perturba ime-
diatamente toda a obra de Amma; daí o advento do trágico enquanto
ruptura e separação, querela no seio da divindade.
Ogo revolta-se contra Amma. A sua angústia e a sua ansiedade
fazem com que não possa esperar a duração de "60 períodos" previs-
tos por Amma para a criação dos gêmeos dos nommo anagonno. Por
conseguinte, salientam Griaule e Dieterlen, "considerando-se priva-
do, este "irritava" Amma mostrando-se irrequieto"^. Todavia, Amma,
tem como que um pressentimento desta situação de revolta que pre-
tende evitar e procura reconfortar Ogo dizendo-lhe "que receberia a
sua gêmea no momento do seu nascimento, da sua retirada do seio"l
Porém, isto não é recebido de modo favorável, porque "Ogo não acredi-
tara nele", exigindo a sua gêmea imediatamente. A revolta tornou-se
então inevitável na medida em que "Ogo começou a procurar, sem
esperar pelas realizações de Amma""*. Entrega-se a actos que pertur-
bam Amma e medita no sentido de encontrar aquilo que lhe falta, bem
como satisfazer o ciúme perante os seus irmãos. É deste modo que
Ogo tenta surpreender Amma na sua busca, procurando apoderar-se
da sua obra. Segundo os co-autores de Renard Pâle, "insatisfeito, Ogo,
transtornando todas as regras, actuou com a intenção de surpreender
os segredos do universo em formação"^. A atitude de Ogo representa
um acto de desordem cosmogónica. Este abala a gestação da ordem
do mundo desviando-se para outro caminho, distinto daquele que era
previsto por Amma, relativamente às saídas das suas criaturas Nommo.
Em busca da sua gêmea,

Ogo, deixando de poder aproximar-se da placenta escaldante, o sol, aproximou-


se da vítima e apoderou-se das suas quatro almas de sexo que se colocaram
no seu prepúcio; procurou também apoderar-se do seu sêmen, cuja parcela

2. Le renard pâle, II, p. 175.


3. Ibid.
4. Ibid
5. Ibid., p. 176.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


conseguiu apanhar com a sua boca; depois, fugiu seguindo a linha de sangue
do sacrifício."^

No entanto, como Amma tinha confiado ao nommo Titiyane a guarda


dos novos elementos, "este, sem esperar as ordens de Amma, procurou
detê-lo; não obteve sucesso, mas conseguiu apanhar, com a sua boca,
a extremidade do sexo de Ogo que corta, circuncidando-o com os seus
dentes"^. Ogo não sai impune desta tentativa, tendo em conta que se vê
privado de uma parte essencial de si próprio.
A circuncisão representa um acto de punição e, por conseguinte, do
roubo que marca simultaneamente a perda dos princípios espirituais
de Ogo. É deste modo que é definitivamente separado da sua gêmea.
A mutilação de Ogo, através da extracção do seu prepúcio, consiste na
erradicação da placenta. Ogo transformou-se em raposa, perdeu a sua
feminilidade e é definitivamente entregue a uma personalidade mas-
culina.
Toda esta fase cosmogónica consagrada ã rebelião de Ogo constitui o
fim, a etapa última do processo de criação. Griaule e Dieterlen sublinham
que "esta ausência de movimento marcava o fim dos périplos celestes
de Ogo, a sua fixação definitiva na Terra. Testemunhava, por outro lado,
que a «criação tinha terminado»"®. O trágico é, portanto, necessário
para o processo de formação do universo no seu todo. Com efeito, to-
das as coisas que os homens virão a fazer na terra, entre as quais as
sementeiras, a forja, a agricultura, entre outras, foram primeiramente
testadas por Ogo aquando dos seus périplos. Assim, "solitário, incom-
pleto e sempre revoltado, mas activo, este será no entanto um agente
necessário para o desenvolvimento da vida sobre a Terra"'. E a sua
figura permanece à disposição dos homens que se servirão dele para
conhecer ou informar-se acerca do futuro.

2. A necessidade do "roubo do fogo"


Na cosmogonia dogon, o roubo é obra do nommo anagonno e áoferra-
dor mítico. De facto, descontente por não ter visto a sua gêmea, depois
dos três primeiros nommos terem recebido as suas, o quarto nommo
revoltou-se por impaciência contra o desejo e os votos de Amma, o
Deus criador. Foi assim que procurou várias tentativas para manifestar

6. Ibid., p. 244.
7. Ibid., p. 245.
8. Ibid., p. 263.
9.Ibid

Contributo das cosmogonias dogon para a problemática da "origem" da civilização . Ci^eikh Moctar Bà 187
a sua aflição. Tendo começado por procurar o segredo da criação, ten-
tativa esta que Amma contorna alterando a posição dos elementos,
aquele acaba por arrancar uma parte da placenta que Amma trans-
forma em sol. A atitude de Ogo não fica impune na continuação do
processo cosmogónico. Assim, em resultado do roubo de Ogo, Amma
introduz a mortalidade como conseqüência do acto trágico. Griaule e
Dieterlen sublinham que

... os homens foram criados por Amma imortais, tal como eram originalmente
os nommo anagonno retirados do seu seio. Porém, os erros da Raposa, a
impureza comunicada à terra pelos seus actos, provocam uma série de desor-
dens que culminam na emergência da morte.^°

A morte encontra assim a sua origem num acto trágico. Esta torna-se
possível e efectiva do lado do autor e de todos aqueles que aprovei-
tam o acto trágico. Torna-se testemunha do acto de impureza. Todavia,
note-se que o primeiro acto de roubo de Ogo está relacionado com as
sementes de Amma, que acaba por semear na Terra, a sua mãe. Porém,
Amma decide purificar esta última sacrificando um nommo. Este sacrifí-
cio representa uma preparação da expansão do universo e das forças
que virão a constituí-lo.
A condenação à morte do nommo é sucedida pela sua ressurreição. É
esta última que favorece a descida dos homens à terra. O acto de roubo
também está na origem da criação do homem, tendo em conta que é
a partir do nommo sacrificado para este efeito, e depois ressuscitado,
que este último nasce. O Deus Amma criou o homem a partir da ma-
téria de placenta do nommo ressuscitado. Ao pôr termo à androginia
inicial, este acto consagra a separação definitiva entre os sexos mascu-
lino e feminino. Este novo momento é aquele que acompanha a descida
dos seres criados por Amma à terra. Tendo este último transformado o
resto da placenta em sol escaldante, Ogo, impossibilitado de se aproxi-
mar dele, decide mais uma vez enganar Amma. Porém, o seu acto é ime-
diatamente punido pelo nommo titiyane que, avisado pela sua gêmea,
procede à sua circuncisão arrancando-lhe o prepúcio. Uma conseqüên-
cia fundamental do roubo e da circuncisão, enquanto punição, consiste
em ter permitido a descida definitiva dos seres à terra. Assim, termina
o momento da existência nos céus ou a existência divina marcada pela
terceira e última descida de Ogo. Este, fixando-se definitivamente na
terra, acaba com os seus périplos celestes e transforma-se em Raposa.
O roubo representa, portanto, o estádio último de um processo ao mes-
mo tempo que a condição do advento de outro momento.

10. Op. c/t, p. 379.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


o acto de Ogo, através do sacrifício que suscitou, declara a separa-
ção definitiva dos homens com os Deuses: uns fixando-se na terra,
enquanto que os outros permanecem nos céus. Deste modo, a figura
de Ogo dá conta da coexistência necessária da ordem e da desordem,
mas também da necessidade do sofrimento e da dor. Dever-se-á então
afirmar que os homens devem a vida na terra ao preço do sofrimento
de Ogo que, inconscientemente, altera o plano divino através dos seus
périplos celestes?
A vida terrestre pode começar com a reprodução dos seres e a uti-
lização do fogo, cujo detentor é o Ferreiro divino criado a partir do
nommo sacrificado. O ferreiro como detentor do fogo desempenha um
papel fundamental no processo da civilização dos homens. Ogotem-
mêli sublinha que "o ferrador foi roubar com a sua vara de ladrão.
Foi na extremidade desta vara que o fogo começou. Foi isto que o fer-
rador deu ao mundo"". Esta idéia é previamente atestada na "sexta
jornada" dos "Encontros com Ogotemmêli" nos termos seguintes: "O
antepassado introduziu-se no ateliê dos grandes Nommo que são os
ferreiros do céu e roubou um pedaço de sol sob forma de brasa e de
ferro incandescente"^^. O facto de ele se introduzir neste recinto dos
"ferradores do céu" e roubar-lhes o fogo é simultaneamente um acto
de rebelião e um compromisso. É através deste roubo do fogo que o
ferrador introduz o universo numa nova fase. Ao descer à terra com o
fogo que entrega aos homens, o ferreiro marca os primórdios da civili-
zação humana. Ogotemmêli refere que "ao ter contacto com o sol, o an-
tepassado estava pronto para a sua obra civilizadora"". A importância
da função do ferreiro no processo civilizacional está relacionado com
aquilo que as técnicas trazem de necessário para a vida. E, segundo Gri-
aule e Dieterlen, "estas técnicas - nomeadamente a agricultura - terão
todas um valor reparador das desordens provocadas por Ogo; estas
contribuirão para a organização e para o desenvolvimento das socie-
dades humanas"^''. Tal é o fundamento da civilização enquanto acto de
demarcação ou de diferenciação do homem com os outros seres. É com
o fogo que os homens criam os materiais que lhes permitem suprir as
suas necessidades. O ferreiro é consagrado como portador da civiliza-
ção. Melhor ainda, Ogotemmêli menciona que "o seu papel era, aliás,
sobretudo de técnico e eram necessários outros ensinamentos"^^. O
ferreiro transforma-se então no Herói civilizador dos Dogons ao en-
tregar-lhes o fogo precioso e a ferramenta indispensável para a sua

11. Griaule, Marcel, Dieu d'eau, "vingt-neuvième journée", p. 183.


12. p. 38.
13. Griaule, op. cit., p. 41.
14. Le Renard Pâle., p. 233.
15. Op.cit, p. 41.

Contributo das cosmogonias dogon para a problemática da "origem" da civilização . Ci^eikh Moctar Bà 189
sobrevivência, bem como para o fabrico ou para a concepção de técnicas
apropriadas às suas condições existenciais. Os co-autores de Renard
Pâle afirmam que "o ferreiro ocupa um lugar à parte, porém eminente, na
sociedade. Considerado enquanto herói civilizador mítico, este desem-
penha uma função importante na iniciação"". Por conseguinte, é com
base no trabalho do fogo, a partir do qual nascem outras profissões,
que podemos considerar que nos Dogons, o Antepassado ferreiro pos-
sui o m e s m o estatuto civilizador que Prometeu, na mitologia grega.
E já que o ferreiro representa a forma ressuscitada do Nommo do lago,
e que este último é gêmeo de Ogo, existe, de certa maneira, possibili-
dade de identificação e de aproximação destes dois seres.

3. A Civilização como consequência do "trágico"


Contrariamente a uma tese defendida por Roger Bastide em Le sacré
sauvage, que consiste em fazer da civilização um dom nos Africanos
nestes termos; "a civilização não é, portanto, considerada pelos oci-
dentais tal como ela é, por exemplo, pelos Africanos, como um dom dos
deuses, mas, pelo contrário, como a conquista dos homens enquanto
revoltados contra os d e u s e s " " , consideramos que esta é fruto de todo
um processo marcado por uma série de dialécticas e de oposições
complementares. Assim, trata-se de uma constante das cosmogonias o
facto de a civilização ser resultado de uma luta ou de uma rebelião no
seio da divindade encarnada, por exemplo, na cosmogonia grega por
Prometeu, e na Dogon por Ogo, e mais precisamente o Ferreiro Mítico
que, roubando o fogo, torna o acto definitivo. E neste enquadramento
preciso, damo-nos conta de que não existe, de todo, a mão de um deus
estendida aos homens para lhes dar a civilização. É também, segundo
nos parece, algo tendencioso apreender a relação do Africano com a
divindade de modo religiosamente exíguo^®. O advento da civilização
efectua-se no âmbito de uma actividade do homem e não devido a uma
oferta divina. Por conseguinte, trata-se de sociedades que não podem
ser consideradas como "arcaicas" se tivermos em conta a chamada de
atenção de Jean Cazeneuve relativa ao uso desta palavra. Este, ao pro-
curar outro critério que não a escrita - ou mais funcional do que esta
- na distinção das civilizações históricas, propõe um regresso ao "sentido

16. Ibid., p. 23.


17. Ibid., p. 165.
18. Isto é, sob o ângulo de uma relação directa e unilateral indo de Deus para os homens e na qual
estes últimos desempenham apenas o papel de receptáculo ou destinatários passivos. A não ser
que a apreensão se situe na óptica de uma religião revelada, e nesta aquela revista um carácter
mais ou menos universal.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


da história", considerando que "os povos arcaicos são aqueles que
ainda não tomaram consciência da sua inserção no devir histórico"".
Ora, a consciência histórica não pode ser maior do que todo este
caminho percorrido que permite a efectividade da civilização através
da qual os povos assinam definitivamente a sua inscrição no "devir
histórico". Ademais, aquilo que mais chama a nossa atenção na ma-
neira de considerar o sentido da história consiste em deduzir que

... poderíamos então definir as sociedades arcaicas como aquelas que não es-
tão integradas na história de modo prometeico, para retomar uma expressão
de M. Gurvitch, isto é, aquelas que não possuem a "consciência de intervenção
activa e eficaz da liberdade humana"^"

Se a tomada de consciência do sentido da história deve ser tida em


conta com a relação ao grau de intervenção do homem no curso da
história, as cosmogonias que analisámos atestam a presença desta
através da atitude civilizadora como resultado da rebelião. Sob este
prisma, o estudo das cosmogonias dá conta de uma possibilidade de
refutar conclusões da etnologia negadora ou da etnografia que se baseiam
no critério da escrita para hierarquizar as civilizações. Isto, sobretudo
pelo facto de se ter uma acepção prometeica da presença de heróis
civilizadores, que desempenham um papel assimilável ao de Prometeu
na civilização grega.
Para além disso, uma outra chamada de atenção de importância
capital consiste no facto de o fogo não resultar de uma criação ou
invenção do homem. Não se trata de o homem ter inventado o fogo
a partir das suas próprias potencialidades criadoras, mas este é-lhe
oferecido por um ser que, na maior parte das vezes, se encontra no
exterior da condição humana. Na sua análise do "fogo simbólico e
tradicional" Robert-Jacques Thibaud sublinha este aspecto nos termos
seguintes: "Com efeito, o fogo não foi inventado, de tentativa em ten-
tativa, de progresso em progresso. Este proveio do exterior, tanto do
céu como debaixo da terra, mas para lá da vontade humana"^^
Deste modo, o homem torna-se possessor de uma ferramenta pre-
ciosa que utiliza em função das suas necessidades existenciais, mesmo
não o tendo criado. De facto, quer num caso como no outro das repre-
sentações cosmogónicas consideradas, é um gigante, um herói divino
que, exclusivamente, se encontra apto a entregar o fogo aos humanos.

19. Cazeneuve, Jean, La mentalité archaïque, p. 92.


20. Gurvitch, G., "Continuité et descontinuité en histoire et en sociologie", in Anales Janeiro-Março
de 1957, p. 79.
21. Mythologies & Symboles, "Le feu traditionnel et symbolique", p. 3, in http://perso.wanadoo.fr/
mythologie/textes/messages_sphinx/feu.htm.

Contributo das cosmogonias dogon para a problemática da "origem" da civilização . Ci^eikh Moctar Bà 191
Thibaut afirma mais adiante que "é evidente, aliás, que o maior mito
do fogo diz respeito a um ladrão de fogo da natureza dos deuses, um
Titã, isto é, um ser imortal que só se apodera dele para oferecê-lo aos
homens que dele necessitam para viver".
Relembremos que o homem, não detendo qualquer privilégio sobre os
outros seres, neste momento da cosmogonia, não pode senão regozi-
jar-se. Isto porque, sem que outro ser tivesse tido o desejo de trans-
gredir a ordem divina, submetendo-se a qualquer tipo de punição, o
homem não poderia usufruir de meios que lhe permitissem aceder
àquilo que, outrora, fazia parte do privilégio dos deuses. A possessão
do fogo efectua-se sempre num sacrilégio ou numa actividade heróica.
O ladrão de fogo só pode pertencer à raça dos deuses que possuem
o privilégio de se aproximarem dele. Neste sentido, será necessário
referir que são os deuses que se "traem" a si próprios pela honra e pelo
interesse dos homens?
Os maiores mitos do fogo dizem respeito a um ladrão que possuiu,
ele próprio, o estatuto de imortal, mas que inaugura a imortalidade
enquanto conseqüência do seu acto, e como sinal de diferenciação fun-
damental do homem e dos deuses. Note-se também que não se trata
de uma transgressão pelo orgulho ou pelo poder - ainda que à partida
seja o cenário que se apresenta - que consiste na finalidade do acto.
Trata-se, sobretudo, de uma passagem obrigatória, um gesto libertador
que assegura um progresso indispensável, bem como uma separação
iminente dos homens e dos deuses com o intuito de favorecer a existên-
cia dos primeiros na terra; sem este acontecimento, a humanidade não
tem origem tendo em conta que a separação é necessária para a criação
do mundo dos homens, onde este se torna autônomo e encontra uma
certa consciência existencial inscrita no tempo. Isto não pode suceder
sem incomodar os deuses, que outrora eram únicos numa plenitude
existencial. Nos Dogons, o nommo titiyane ocupa-se da sanção infligida
à figura do trágico. Todavia, as punições aplicadas aos humanos e ao
seu herói pelos Deuses-Senhores do Mundo são sempre sinônimas de
manifestação de esperança e de poder^^ para a humanidade.
Nas teorias cosmogónicas Dogons, a civilização emerge a partir de
uma espécie de frustração original. E tal vai no mesmo sentido que os
propósitos de Leroi-Gourhan, a saber que "a atmosfera de maldição na
qual, para a maior parte das civilizações, começa a história do artesão
do fogo é apenas reflexo de uma frustração intuitivamente apreendida
desde os primórdios"^^ Existe como que a presença no homem desta
forma de negatividade, e que o mesmo só pode purgar através da rebelião

22. No sentido de passagem de um momento para o outro.


23. Cf. Le geste et la parole: technique et langage, p. 249.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


ou pelo sacrifício que lhe concede o seu utensílio de perfeição que é o
fogo. Esta frustração é simultaneamente aquilo que introduz o mun-
do numa série de movimentos ou de alternâncias positivas. E isto, na
medida em que a quase totalidade das civilizações reconhece que a
civilização se paga caro e se arranca, ou, em alternativa, resulta de um
combate no qual os heróis civilizadores se inscrevem. Será que a civi-
lização consiste, para o homem, num acto de pura liberdade que lhe
permite tomar as suas distâncias em relação aos deuses e inscrever-se
numa trajectória existencial, na qual, por sua vez, procura tornar-se
senhor da natureza, que adapta em seu benefício e manipula em fun-
ção das suas necessidades?
Definitivamente, podemos afirmar que a constância do trágico na
formação do mundo é constatada nas cosmogonias Dogons. Todavia,
deve salientar-se que o trágico se concretiza com frequência numa
dualidade, mas possuindo simultaneamente a característica de ser o
princípio de separação e de união dos seres. E estas duas funções, o
trágico desempenha-as em função do momento em que surge e das
figuras que utiliza para a sua expressão, de modo a impor-se como
necessário à cosmogonia, quer para pôr termo a um momento, quer
com o intuito de manter um estado de coisas, ou até mesmo para es-
tabelecer uma qualquer ordem divina. Foi deste modo que os Dogons
implementaram uma reflexão acerca da origem trágica da Civiliza-
ção, respondendo ao mesmo tempo à questão de saber de que modos
obtivemos este bem por excelência e este sinal de diferenciação do
Homem com os outros seres.

Referências Bibliográficas
Griaule, M. (1966]. Dieu d'eau, "Entretiens avec Ogotemmêli". Paris: Fayard.
Griaule, M. [s/d]. "L'image du monde au Soudan", in Journal de la Société des Africanistes,
Paris, TXIX, pp. 81-88.
Griaule, M. & Dieterlen, G. (1991). Le Renard pâle, Institut d'ethnologie.
Griaule, M. & Dieterlen, G. [1950). " U m système soudanais de Sirius", In Journal de la
Société des Africanistes, Paris, T. XX, pp. 273-294.
Thomas, L-V. & Luneau, R. (1975). La terre africaine et ses religions: traditions et
changements. Paris: Payot.
Leroi-Gourhan, A. (1964]. Le Geste et la Parole. Technique et Langage. Paris: Albin Michel.

Contributo das cosmogonias dogon para a problemática da "origem" da civilização . Ci^eikh Moctar Bà 193
o Egipto na obra de Platão

Théophile Obengœ

o contexto histórico e cultural da emergência da filosofia na Grécia é


raramente descrito, com objectividade e amplitude de visão, pelos au-
tores contemporâneos. Ora, na antigüidade, os próprios sábios Gregos
não ousavam falar em "milagre grego", porque, para eles, a filosofia
tinha originalmente surgido no estrangeiro: na Pérsia, na Caldeia, na
índia, no Egipto. Nenhum erudito grego defendeu o contrário.
No que concerne às relações entre a Grécia e o Egipto no plano da
filosofia e das ciências (geometria, astronomia), o papel civilizador do
Vale do Nilo foi preponderante com os Pré-socráticos.
1. Tales de Mileto, o fundador da escola jónica, estudou no Egipto, sob a
direcção dos sacerdotes, os seus únicos instrutores ao longo da sua vida;
2. Sólon de Atenas, o legislador ateniense, foi aluno do velho sacer-
dote Sonquis de Sais;
3. Pitágoras de Samos, o fundador da escola deSamos (escola Itálica),
passou perto de 22 anos no Egipto para prosseguir os seus estudos,
em Mênfis, em Tebas, e sobretudo em Heliópolis junto do sacerdote
egípcio Oinouphis (Enuphis, Ounouphis);
4. Xenófanes de Cólofon, o fundador da escola da Eleia por volta de
535 antes da nossa era, foi para o Egipto onde apelou aos Egípcios
para que não prestassem culto a uma multidão de divindades; expri-
miu de igual modo a sua surpresa ao ver os Egípcios bater no peito
ao longo das cerimônias religiosas públicas, em particular durante
as festas em honra de Osíris;
5. Anaxágoras de Clazómenas visitou igualmente o Egipto, na espe-
rança de aprender Junto deles (dos sacerdotes egípcios) a teologia e
uma ciência da natureza mais exacta;

1. Professor de História na Universidade de São Francisco [EUA).

o Egipto na obra de Platão . Théophile Obenga 195


6. Ferécides de Siro também esteve no Egipto para aprender a teolo-
gia e as ciências;
7. Demócrito de Abdera teve por instrutor Pammenes de Mênfis;
8. Eudoxo de Cnido, astrónomo e matemático, teve por mestre egíp-
cio o sacerdote Khnouphis de Mênfis.

Não há motivos para pôr em causa, pura e simplesmente, por via de


uma atitude subjectiva inconfessada, todas estas viagens de estudo
dos Gregos ao Vale do Nilo. Estes são, para a crítica histórica serena,
factos históricos apresentados pelos próprios sábios gregos: Heródoto
de Halicarnasso [cerca de 4 8 4 - 4 2 0 antes da nossa era], Isôcrates de
Atenas [ 4 3 6 - 3 3 8 antes da nossa era], Diodoro da Sicília [1.^ século
antes da nossa era], Estrabão da Amaseia [cerca de 58 antes da nossa
era - entre 21 - 25 da nossa era], Plutarco da Queroneia [por volta de
50 - cerca de 125 da nossa era], Diógenes Laércio na Sicília [século
III da nossa era], Porfírio de Tiro [ 2 3 4 - cerca de 3 0 5 da nossa era],
Jâmblico de Cálcis [cerca de 2 5 0 - 3 3 0 da nossa era].
Geograficamente, a filosofia grega nasceu na Ásia Menor, nas cidades
como Mileto [Tales, Anaximandro, Anaximenes], Cólofon [Xenófanes],
Clazómenas [Anaxágora], Éfeso [Heráclito], Cnide [Eudoxo]. A Ásia
Menor era o nome que os antigos [Gregos, Latinos] davam à parte oci-
dental da Ásia do sul do Mar Negro. É, de facto, a Grécia da Ásia, esta
franja de ilhas [Cos, Samos, Chios, Lesbos, etc.] e terras povoadas na
Antiguidade de cidades gregas na costa oriental do mar Egeu [Cnide,
Halicarnasso, Mileto, Éfeso, Cólofon, Clazómenas, Mitilene, Pérgamo,
Cízico, etc.], que representa historicamente o berço imediato da filoso-
fia e das ciências gregas.
Desconhecem-se filósofos gregos no período do desenvolvimento da
civilização micénica, cerca de 1 6 0 0 antes da nossa era. Muito menos
aquando das invasões dóricas, por volta de 1 2 0 0 antes da nossa era.
A escrita minóica conhecida por Linear B em Creta, cerca de 1 5 0 0 antes
da nossa era, não revelou textos filosóficos, científicos. As primeiras
inscrições conhecidas em alfabeto linear fenício surgem por volta
de 1 1 0 0 antes da nossa era. Os fenícios divulgam o seu alfabeto con-
sonântico, através do Mediterrâneo, cerca de 9 0 0 antes da nossa era.
E é por volta de 800 a.C. que os Gregos adoptam o alfabeto fenício, que se
encontra assim na origem de todos os alfabetos greco-latinos. Os Gregos
adoptam, deste modo, a escrita fenícia no século VII antes da nossa era
e completam-na através da junção de signos representando as vogais.
Outro factor histórico: a expansão grega em direcção ao Oriente e ao
Ocidente aconteceu do século VII ao século VI antes da nossa era.
E é justamente após a sua jornada de estudo no Egipto que Tales funda

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


a primeiríssima escola de filosofia grega, em Mileto, na Ásia Menor.
Tales foi um astrônomo, geómetro e um físico de grande renome; nas
matemáticas, um teorema ostenta o seu nome. Ora, este primeiro filó-
sofo grego ultrapassado por um grande sábio teve por instrutores
apenas sacerdotes egípcios: Este instruiu-se no Egipto sob a direcção
dos sacerdotes, afirma a tradição histórica constituída pelos próprios
Gregos na Antigüidade.
Platão também estudou no Egipto, mais precisamente em Heliópolis,
junto de um sacerdote egípcio Sekhnupis, e em Mênfis, junto do sacer-
dote Khnupis [Khnoupis], que também instruiu Eudoxo de Cnide.

1. Platão estudou no Egipto


O argumento para negar a realidade da viagem de estudo de Platão
ao Egipto é o seguinte: os primeiros testemunhos relativos a uma tal
viagem são posteriores em vários séculos à morte de Platão, e, portan-
to, pouco convincentes. Assim seja. Deixemos de lado Diodoro da Sicí-
lia, autor de uma Bibliothèque historique, elaborada entre 60 e 30 antes
da nossa era, onde se trata da questão da jornada de estudo de Platão
ao Egipto [Bibl. hist., 1,96,2). Deixemos ainda de lado, como é evidente,
Cícero, que também relata a viagem de Platão ao Egipto: De Republica
(I, 10, 16), elaborada em 54 - 51 antes da nossa era, e De Finibus (V,
28, 87), escrita em 45 antes da nossa era. Ora, Platão viveu de 4 2 7 a
347 antes da nossa era. Assim, a "erudição" contemporânea "esconde"
um testemunho decisivo devido a um contemporâneo de Platão, e que
para além disso foi ele próprio discípulo do filósofo ateniense.
Eis o testemunho que, pura e simplesmente, se afasta com freqüên-
cia, talvez pelo facto de ser demasiado incômodo [para a consciência
histórica de quem?):

Com a idade de vinte e oito anos, segundo Hermódoro, ele (Platão) partiu
para Mégara, para ir ter com EucUdes, acompanhado por outros alunos de
Sócrates (morto desde então). Depois, este (ainda Platão) foi para drene,
para junto de Teodoro o matemático, e dali partiu para Itália, para junto de
Filolau e Eurito, ambos pitagóricos, depois para o Egipto, para junto dos pro-
fetas. (...). Platão tinha também intenção de ir ao encontro dos Magos, mas as
guerras que destruíam a Ásia levaram-no a renunciar ao seu destino. Regres-
sado a Atenas, Viveu na Academia'^.

2. Laércio, D., Platon-, liv. III, 6.

o Egipto na obra de Platão . Théophile Obenga 195


Este texto é decisivo, tendo em conta a qualidade do seu autor. Her-
módoro é, de facto, a fonte principal de Diógenes Laércio neste ponto
preciso relativo à viagem de estudo de Platão ao Vale do Nilo. Trata-
-se de uma nota de Hermódoro que Diógenes Laércio consulta. Ora,
Hermódoro de Siracusa era um dos membros activos da Academia de
Platão: tinha vivido naquele local pelo menos durante os seis últimos
anos do Mestre. Deu aulas enquanto professor especializado. Hermó-
doro de Siracusa escreveu, acerca da doutrina de Platão, uma obra que
continha inúmeros detalhes biográficos extraídos da melhor fonte. As
informações que emanam deste discípulo directo de Platão não são,
portanto, posteriores em vários séculos à morte do Mestre, e os his-
toriadores têm razão em considerá-las como informações da melhor
qualidade.
Luciano Canfora escreveu a propósito do testemunho directo de
Hermódoro: "Não existe qualquer motivo para duvidar da informação
deste singular discípulo siracusano de Platão, capaz de divulgar pela
sua própria iniciativa, textos do mestre"^
Este factor capital representado pela viagem de Platão ao Egipto,
para junto dos sacerdotes deste país baseia-se, por conseguinte, em
documentos contemporâneos de Platão, emanando dos seus próprios
discípulos directos, que estabeleceram deste modo a sólida tradição
da jornada de estudo do filósofo grego ao Egipto. Diodoro da Sicilia,
Cícero, etc., retomam apenas esta tradição estabelecida durante a vida
de Platão pelos seus discípulos.
No que concerne a Euclides - não se trata, como é evidente, do
matemático que viveu por volta de 3 0 0 antes da nossa era, mas sim de
Euclides de Mégara [ 4 5 0 - 3 8 0 antes da nossa era) - , discípulo de
Parménides e de Sócrates, fundador da escola erística [arte da contro-
vérsia) de Mégara, cidade grega, istmo de Corinto, próspero nos sécu-
los Vil e VI antes da nossa era.
Cirene, antiga cidade grega da África do Norte, fundada pelos Dóri-
cos em 6 3 0 antes da nossa era, era a capital da Cirenaica [região do
nordeste da Líbia): esta cidade foi, na época da sua prosperidade, até
3 0 0 antes da nossa era, um grande centro intelectual e artístico. A es-
cola filosófica cirenaica foi fundada no século IV antes da nossa era por
Aristipo de Cirene, antigo discípulo de Sócrates.
Filolau de Crotona [cidade de Itália, residência de Pitágoras), célebre
pitagórico, viveu por volta de 4 7 0 antes da nossa era: Platão teve de

3. Canfora, L., Histoire de ta tittérature grecque d'Homère à Aristote; Paris, Éditions Desjonquères,
1994, pp. 552-553; edição original italiana, Roma - Bari, 1986, Col. La Mesure des Choses, dirigida
por Pierre Béhar

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


se informar a respeito de Harmonie (o mesmo e o outro) junto deste
Pitagórico.
Vejamos agora a cronologia que não é menos importante:
- 7 de Maio de 427, nascimento de Platão [segundo Diógenes Laér-
cio);
- aos vinte anos, portanto, em 407, torna-se discípulo de Sócrates
[cerca de 4 7 0 - 3 9 9 antes da nossa era);
- aos vinte e oito anos, portanto, em 399, à morte de Sócrates, aquele
viaja, para completar os seus estudos, para Mégara, Cirene, em Itália
[Crotona), e por fim para o Egipto [Mênfis e Heliópolis);
- em 387 antes da nossa era, Platão regressa a Atenas e funda aylca-
demia, com a idade de quarenta anos, depois de doze anos de viagens
de estudo. Esta escola filosófica fundada por Platão nos jardins
vizinhos de Atenas durou do século IV ao século I antes da nossa era.

Os dirigentes desta escola, depois do próprio Platão, foram os


seguintes filósofos gregos:
Espeusipo, sobrinho de Platão, dirigiu a Academia entre 3 4 7 e 339
antes da nossa era - foi o primeiro, nesta escola, a considerar as rela-
ções das ciências e a marcar a sua independência;
Xenócrates da Calcedónia [cerca de 4 0 0 - 3 1 4 antes da nossa era)
dirigiu a Academia entre 3 3 9 e 314; esforçou-se por reconciliar as
doutrinas de Platão com o pitagorismo. Calcedónia é uma cidade da
Ásia Menor, no Bósforo, face a Bizâncio;
Polemon de Atenas dirigiu a escola entre 3 1 1 e 2 7 0 antes da nossa
era, sucedendo assim a Xenócrates;
Crates de Stenas dirigiu a Academia de 2 7 0 a 2 6 5 antes da nossa
era; foi querido de Polemon, segundo uma tradição apresentada por
Diógenes Laércio; Crantor de Solis [cidade da Sicília, região situada no
sul da Turquia da Ásia, juntamente com outras cidades mais conheci-
das como Adana e Tarso, pátria de São Paulo), aluno de Xenócrates e
condiscípulo de Polemon;
Arcesilau de Pitane, na Eólia [ 3 1 6 - cerca de 2 4 1 antes da nossa era):
foi primeiramente discípulo do matemático Autólico, seu compatriota
[Eólia ou Eólida, antiga região do sudoeste da Ásia Menor, foi também
a pátria da poesia lírica graças a Alceu e Safo), antes de ir para Atenas
onde foi aluno do músico Xanthos de Atenas, seguindo depois as lições
de Teofrasto, nascido na ilha de Lesbos [por volta de 372 - cerca de
287 antes da nossa era), antes de ir para a Academia, para junto de
Crantor por quem era querido;
Bion de Boristene na Cítia [antiga região da Rússia meridional, habitada
pelos citas, tribos semi-nómadas autóctones iranianas estabelecidas

o Egipto na obra de Platão . Théophile Obenga 195


entre o Danúbio e o Don, no século VIII antes da nossa era; os Citas
desapareceram no século II antes da nossa era];
Lácides de Cirene sucedeu a Arcesilau na direcção da Academia em
2 4 0 antes da nossa era, durante vinte e seis anos, ou seja, até 2 1 4 a.C.;
Carnéades de Cirene (cerca de 2 1 5 - 129 antes da nossa era]. Foi
discípulo de Acadêmico Hegésino, mas também do Estóico Diógenes;
Clitómaco de Cartago sucedeu a Carnéades na Academia por volta
de 129 antes da nossa era. Tinha vindo para Atenas com a idade de
quarenta anos.
Os Acadêmicos vinham, portanto, um pouco de toda a parte: de Atenas
da Ásia Menor (Calcedónia], da Sicília, da Eólida, da Cítia, da Cirenaica,
de Cartago. A Academia não era uma escola virada para si própria.
De resto, o próprio Platão tinha empreendido, antes da fundação da
Academia, viagens de estudo a Mégara [Istmo de Corinto], a Cirene,
A Crótona, a Heliópolis no Egipto. A jornada estudiosa de Platão ao
Egipto marcou consideravelmente a sua obra.

2. O Egipto na obra de Platão


De entre os Diálogos de Platão, vinte e oito chegaram até nós, e trata-
-se talvez da totalidade da obra platônica. Em perto de doze Diálogos,
Platão evoca o Egipto, de modo abundante, diversificado. A proporção
é enorme, ou seja, 4 2 % da obra total conhecida de Platão. O Egipto é,
de facto, evocado pelo autor nas obras redigidas entre 390 e 3 8 5 antes
da nossa era, tal como Gorgias, Eutidemo, Menexeno; nas obras escritas
entre 3 8 5 e 3 7 0 antes da nossa era como Fédon, a República, a Fedra, e
nas obras redigidas entre 370 e 347 antes da nossa era como Política,
Timeu, Críton, Filebo e as Leis. Mesmo em Epinómide, o Egipto é evocado.
Torna-se difícil afirmar que Platão se refere assim ao Egipto, de
modo tão significativo, devido a "memórias literárias", isto é, em con-
seqüência da leitura das obras de Homero [que viveu cerca de 8 5 0 an-
tes da nossa era], de Heródoto (cerca de 4 8 4 - 4 2 0 antes da nossa era]
que visitou o Egipto pouco depois de 4 4 9 antes da nossa era, de Tucí-
dides (cerca de 4 7 0 - 4 0 0 antes da nossa era], de Aristófanes (cerca
de 4 4 5 - 3 8 6 antes da nossa era] que parodia algumas descrições de
Heródoto acerca do Egipto em Os Pássaros (comédia representada
em 4 1 4 antes da nossa era], e que forja igualmente em y4s Tesmofo-
riantes a Helena de Euripides apresentada em 412, e cujas aventuras
se situam no Egitpo; podemos também pensar no Busiris de Isôcrates
( 4 3 6 - 3 3 8 antes da nossa era], elaborada por volta de 3 8 5 a.C.: nesta
obra, Isôcrates faz o louvor ao Egipto, isto é ao país, "colocado no lugar

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


mais belo do universo" (§ 11-14); da divisão do corpo social em grupos
funcionais, o clérigo, as profissões, os guerreiros C§ 1 5 - 2 0 ) ; da or-
ganização artística e intelectual, a saber que a medicina e a filosofia
nasceram no Egipto (§ 21-23); por fim, o culto dos deuses que mere-
cem ser louvados e admirados" (§ 24-29).
Existem acontecimentos evocados por Platão que não se encontram,
de facto, em nenhum destes autores anteriores, por exemplo, o preço
da viagem de Atenas para o Egipto que é de dois dracmas [Gorgias,
5 1 1 d ) ; o mito de Teuth (Thot), inventor da escrita e das ciências
[Fedra, 274, co - 275b; Filebo, 18b); o carácter sagrado da música egíp-
cia [Leis, VII, 7 9 9 a-b); o ensino das matemáticas no Egipto segundo
uma metodologia extremamente agradável e eficaz [Leis, VII, 8 1 9 b-c),
etc. Platão deve ter conhecido por si próprio factos tão característi-
cos. O seu conhecimento do Egipto é de um observador directo, de
uma testemunha ocular. Como é que Platão poderia escrever que os
Egípcios sabiam ensinar às suas crianças as matemáticas como se se
tratasse de um jogo, caso o filósofo grego não tivesse constatado o fac-
to por si próprio no Vale do Nilo? De que modo é que Platão poderia
falar acerca da criação de peixes nas margens do Nilo [Política, 2 6 4 b-c)
se não tivesse observado o facto por si mesmo? O autor escreve: "No
Egipto, um rei não pode reinar se não possuir a dignidade sacerdotal"
[Política, 2 9 0 d). Nenhum autor grego antes de Platão é tão explícito
quanto o filósofo ateniense: Faraó era, de facto, o primeiro elemen-
to do alto clero egípcio. Platão apreendeu, portanto, esta hierarquia
claramente. Na verdade, é por delegação do rei que os sacerdotes cum-
prem o seu ofício nos diversos santuários.
Nos doze Diálogos em causa, Platão mostra que tinha um conhe-
cimento extremamente variado do Egipto: a geometria, a história, a
religião, a organização política e social, as artes e a educação, os cos-
tumes, as múmias, as criações de peixes na margem do Nilo, a pureza
do céu do Egipto que explica o desenvolvimento da astronomia neste
país, etc., tudo isto é amplamente desenvolvido por Platão, por vezes
com uma certeza pertinente no julgamento. Um conhecimento tal
revela claramente que Platão permaneceu durante muito tempo no
Egipto, talvez durante três anos, se não mais.

3. Platão egipcianiza as palavras ao invés de as


grecizar
Platão retém quase sempre a fonética egípcia das palavras em vez de
grecizar os termos egípcios. Assim, a sua ortografia é completamente

o Egipto na obra de Platão . Théophile Obenga 195


estrangeira, "exótica", em relação à fonética grega. Esta constatação já
é grandemente reveladora por si só. Temos de facto: Sais ortografada
por Platão Sais, corresponde ao egípcio S3w, Saou; Neith ortografado
por Platão Neith corresponde no Egipto a Nt, deusa egípcia designada
pelo Gregos de Atena: "Para os desta cidade (a grande cidade de Sais),
a deusa fundadora tem por nome egípcio Nieth e, em grego, pronun-
ciada Athénã"^
Theuth de Platão eqüivale a Dhwty, Djhouty, em egípcio, e em copta
[egípcio vocalizado) Thoout, Thõt, Thaut, o inventor e protector divino
das artes, das leis, das ciências exactas no Egipto antigo: o deus egíp-
cio, mestre das artes e da sabedoria, era assimilado a Hermes pelos
Gregos. Quando Platão faz alusão a produtos egípcios, retém evidente-
mente a palavra "exótica": o pássaro ibis (palavra claramente egípcia),
o óleo kiki [Timeu, 60 a) corresponde ao egípcio k3k3, fyky, kiki em
copta, com o sentido de "ricínio" e de óleo de "ricínio"^
Torna-se evidente que o nome da deusa ísis provém claramente do
egípcio Ist, copta Esse, Esi.
O Thamous de Platão, rei que reinava em todo o Egipto, cuja capi-
tal era Tebas, cidade do deus supremo Amon {Fedra, 21A d), remete
certamente para Thoutmosis, Thoutmès, em egípcio Dhwty-ms, "Thot
nasceu" ou "Nascido de Thot", nome de quatro reis da XVIII® dinastia
que fizeram precisamente a glória de Tebas e de Amon de Karnak. Em
Fedra, Platão fala da seguinte série: Naucratis e Tebas, Theuth e Amon,
o rei Thamous, não esquecendo o pássaro sagrado ibis. E no Timeu,
temos esta outra série: Sais, Neith, o rei Amasis, os sacerdotes de Sais.
As Leis evocam ísis e o Filebo e ainda Theuth. Estas séries são gran-
demente instrutivas por si só e revelam um conhecimento directo do
Egipto por Platão. Um conhecimento dos lugares, dos deuses, dos ho-
mens e dos símbolos egípcios (ibis).

4. O que representa o Egipto para Platão?


o discurso egípcio de Platão era considerado por contar a verdade.
Qual verdade? Leiamos, então, os textos atentamente.

4. Platão, Timée, 21 e.
5. Ver de igual modo Heródoto, II, 94. Por último, Diodoro da Sicília, I, 34: Eles (os Egípcios) recor-
rem, para manter a luz das suas lâmpadas, a um licor gorduroso extraído de uma planta designada
por eles de kiki, em vez de óleo.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


4.1. o Egipto é o país da mais alta Antigüidade

No Egipto, tudo era escrito em templos desde a antigüidade. A


memória humana é, por conseguinte, longa na margem do Nilo sal-
vador E é com razão que Platão considera o Egipto como a reserva
arqueológica de um discurso completo acerca da História universal.
Encontrando-se ao abrigo dos cataclismos que destroem periodica-
mente o gênero humano [o fogo, a água, etc.), o Egipto transformou-se
no berço da civilização, e a escrita é de uso particularmente antigo.
Precisamente, relativamente às "coisas do passado", um sacerdote
bastante idoso de Sais viria a dizer a Sólon, cuja memória histórica
remontava tão pouco no tempo: Sólon, Sólon, vós, Gregos, sois sempre
crianças (aei, paídés, este); velho, um Grego não o é®, o que significa que
os Gregos, mantidos jovens na sua alma, não possuem qualquer conhe-
cimento encoberto pelo tempo.
Em contrapartida, o Egipto conservou um número considerável de
informações acerca das coisas do passado de todos os povos:

Assim, tudo aquilo que aconteceu, prossegue o velho sacerdote egípcio, quer
convosco (os Gregos), aqui ou em qualquer outro lugar, que tenhamos tido
conhecimento por ouvir dizer, se, por uma ou outra razão, se trata de algu-
mas coisas belas, grandiosas ou que apresentam qualquer outra diferença,
tudo isto foi, desde a Antigüidade, aqui colocado por escrito e conservado nos
templos''.

Assim, o Egipto funciona na obra platônica, quer queiramos ou não,


como a terra de mais longa duração e como lugar eleito da memória
mais arquivada do mundo. De Sólon a Platão, o Egipto era, deste modo,
apreendido pelos Gregos enquanto berço da civilização, guardiã da
memória dos povos. O velho sacerdote informador de Sólon que de-
via ter então por volta de trinta anos refere-se a textos, a documentos
escritos, contemporâneos da fundação da cidade de Sais: estes datam
de mil anos [Timeu, 32 e). O velho sábio de Sais conhece estes textos
de cor No entanto, está totalmente disposto a explicar a Sólon, numa
outra ocasião, durante o tempo livre, com os textos na mão, o passado
histórico dos Gregos que não possuem memórias de um tempo huma-
no muito recuado. A tradição oral egípcia pode assim ser, a qualquer
momento, controlada através dos textos escritos, dos registos arquiva-
dos. A palavra e a escrita, a rememoração por intermédio da escrita, a
verdadeira memória que se exprime directamente através da palavra.

5. Platão, Timée, 22 b.
7. Platão, Ibid., 23 a.

o Egipto na obra de Platão . Théophile Obenga 195


quantas maravilhas deviam fascinar os Gregos que se deslocavam ao
Egipto, como Sólon, para obter conhecimentos.

4.2. O Egipto é o berço da escrita e das ciências

Em Fedra, Sócrates explica precisamente a Fedra que o verdadeiro


(tò aléthês, "a verdade") são os Antigos que o conhecem. O verdadeiro
descobre-se questionando as tradições constituídas da antigüidade.
E Sócrates manifesta-se pronto para encontrar qualquer coisa de ver-
dadeiro que ouviu dos antigos [tõn protérõn). Impaciente, Fedra pede,
então, a Sócrates que lhe conte aquilo que declara ter ouvido dos
Antigos: Sócrates:

Bem! Ouvi [éJ<ousa) que, do lado de Náucratis no Egipto, existe uma das an-
tigas divindades daquele lugar, aquela cujo emblema sagrado é um pássaro
que aqueles designam, sabe-lo bem, o ibis; o nome desta divindade é Theuth.
Foi ele que, portanto, em primeiro lugar (prõton), descobriu a ciência do
número (arithmón), o cálculo (logismòn), a geometria (geõmetríanj, a astro-
nomia (astronomian) e ainda o tric-trac (petteías), os dados [kubeias), e, por
último sobretudo, a escrita (grámmataf.

Sócrates assegura ter ouvido dos Antigos (que conhecem a verdade)


esta narrativa que pertence à tradição grega constituída. Sócrates
apresenta deste modo a Fedra uma tradição grega da antigüidade.
Qualquer tradição, grega ou outra, vale o que vale. Esta, grega, reto-
mada por Sócrates para contá-la a Fedra, consiste no facto de o deus
egípcio Theuth, cujo emblema sagrado é o pássaro ibis, é o inventor
do número, do cálculo, da geometria, do tric-trac, dos dados (e outros
jogos de sociedade), da escrita. A tradição grega, extremamente antiga,
ã qual Sócrates se refere, não atribui estas descobertas aos deuses da
Caldeia, muito menos aos do próprio país grego.
O ibis é efectivamente o pássaro sagrado do Egipto, de corpo branco,
com uma cabeça e uma cauda negras. O deus imaterial Thot (Theut)
encarnava-se nele. Precisamente, no Egipto, este Thot, deus lunar em
forma de ibis, reinava sobre a escrita, a separação das linguagens, a
analística, as leis, os escribas e os mágicos, o cálculo (a geometria),
o calendário (a astronomia). Thot reinava qualquer operação intelec-
tual, enquanto inventor da civilização escrita.
O Theuth platônico junta-se ao Thot egípcio no essencial. Este deus
deu ao Egitpo mais saber, mais memória, mais ciência. Para além disso.

8. Platão, Fedra, 2 7 4 c-d.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


é o grande mestre das técnicas, herói cultural e civihzador. Os Gregos
antigos tornaram o deus egípcio no benfeitor de toda a humanidade.
O primeiro, descobriu, para os homens, a ciência do número, o cálculo,
a geometria, a astronomia, os jogos de sociedade, a escrita. Theut, que
encontramos em Filebo [18 b], é obviamente o Thot egípcio, o inventor
divinizado das artes, das ciências, das leis, da escrita. Isto, Sócrates ou-
viu-o dos antigos Gregos; e reproduz facilmente a Fedra uma tradição
oral [akoé) da antigüidade grega: "Estou próximo de contar uma
tradição que retenho dos antigos: akoén ge échõ légein tõn protérõn"
(Fedra, 2 7 4 c],
Para os Gregos anteriores ao nascimento de Sócrates, não existia
qualquer dúvida possível: o Egipto era efectivamente, aos seus olhos,
o berço das ciências e das técnicas. Sócrates não está de todo trauma-
tizado ao divulgar esta antiga tradição grega a Fedra. Torna-se eviden-
te que Platão não é o inventor deste "Mito de Teuth": trata-se, com este
"mito", de uma tradição grega muito antiga. Tradição viva retomada
por Sócrates para Fedra, e, por último, escrita por Platão.

4.3. O Egipto enquanto modelo de organização artísti-


ca e intelectual

Na história das nações e das constituições, só o Egipto, segundo


Platão, é que soube legislar, conveniente e eficientemente, a questão
educativa, a formação ética e cultural da juventude:

- Clínias: O Egipto? Qual é então, segundo a lei, a legislação acerca


deste ponto?
- O Ateniense: Só o enunciado maravilhar-vos-á [thãuma kai akõusai).
Considero, há já muito tempo, de facto (pálai gàr dêpote), que eles
aprenderam esta verdade que agora formulamos (tá nún): a saber
que são as belas figuras e as belas melodias [kalà mèn schemata, kalà
dè, mélé) que a juventude das cidades deve praticar; eles (Egípcios)
fixaram-lhes a determinação e a natureza, mais tarde, expuseram os
modelos nos templos; estes modelos, não era permitido aos pintores,
nem a ninguém que tivesse produzido formas ou que quer que fosse
deste gênero, afastar-se delas para inovar ou ainda imaginar outras
que diferissem daquilo que as regras nacionais (tà pátria) tinham es-
tabelecido; e ainda agora isto lhes é proibido, quer nesta matéria (das
representações figurativas), querem qualquer arte musical (oudè nún
éksestin, oúte en toútois en mousiké sumpásê^.

9. Platão, Lois, IL 656 d. Cf. Pierre-Maxime Schuhl, Platon et l'art de son temps (arts plastiques), Paris,

o Egipto na obra de Platão . Théophile Obenga 195


Deste modo, segundo Platão, qualquer reprodução artística, escul-
tural, pictórica, musical, coreográfica, etc. estava sujeita, no Egipto,
desde a mais alta Antiguidade, a um cânone nacional imutável gra-
ças a uma regulamentação rigorosa, limitadora. A produção artística
era controlada nos templos pelos sacerdotes. Assim codificada, a arte
pode, deste modo, desempenhar a sua elevada função social e moral, e
o seu papel pedagógico insubstituível.
Tal é a excepção cultural que o Egipto representa para Platão: este
país é o único em que a arte se encontra legislada, "canónica". Estas são
"belas figuras" [kalà mélé] que devem inspirar a "prática" e os "hábitos"
dos jovens das cidades. Relativamente à questão dos "modelos", simulta-
neamente figurativos e melódicos, esta também se encontra devida-
mente regulamentada: os "modelos" inspiradores são "encomenda-
dos" e "expostos" nos templos, nos edifícios sagrados (as bibliotecas
dos templos). Neste sentido, é proibido aos pintores ou a qualquer
outro especialista das figuras, inovar o que quer que seja, revolucio-
nar [kainotomeín], ou imaginar [epinoeírí), de modo fantasioso, outras
formas, outras figuras, contrárias aos cânones ancestrais [tà pátria).
Platão afirma que esta tradição ainda perdura.
O filósofo foi, sem dúvida, o primeiro egiptólogo a ter discernido
claramente os traços principais e tradicionais da arte egípcia: esque-
matismo e grafismo, hieratismo e conservadorismo, tradicionalismo
e milenarismo, cunho ontológico [dimensão sagrada) e função educa-
tiva. Esta legislação da arte egípcia implica, por conseguinte, um poder
da sociedade e do Estado sobre as criações artísticas. O resultado con-
siste na reprodução milenar das mesmas formas, segundo os mesmos
cânones e a mesma técnica:

Através de um exame atento, prossegue o Ateniense, verificarás que, neste


país (o Egipto), as pinturas ou as esculturas remontam a milénios; - e quando
digo milénios, não se trata de um modo de falar, é a realidade; estas não são
nem mais feias, nem mais belas do que as actuais, e implementaram uma
técnica idêntica^°.

Platão constata simplesmente um facto que considera admirável: a


antiguidade da arte egípcia, a sua regulamentação. Torna-se, portanto,
algo incorrecto afirmar, com a leitura deste texto platónico, que o
autor das Leis tinha gostos arcaicos em música e em poesia. Platão
considera simplesmente "extraordinário" [thaumaston), tal como Clínias

PUF, edição de 1952, p. XV: Platão (...) mostra-se partidário de uma arte hierática, imutável como
aquela que tinha admirado nas obras dos templos no Vale do Nilo.
10. Platão, Leis, II, 6 5 6 e - 657 a.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


de resto, o facto de a arte ter uma função jurídica e política no Egipto
há vários milênios.
Assim, o filósofo recebe da arte egípcia uma mensagem importante:
a arte será moral e social, ou não [uma condenação implícita da arte
pela arte]; a arte apenas será moral e social se reproduzir modelos,
se colocar em movimento as virtudes, em suma, se for a imagem das
Idéias. E, de facto, no Egipto antigo, a arte obedecia ao cânone nacio-
nal da maât, príncipe cósmico que explica o arcaísmo, o moralismo
e o tradicionalismo da arte egípcia, arte comprometida e áulica, se
necessário. Neste ponto, a egiptologia moderna não se encontra mais
avançada do que no tempo de Platão:

A arte egípcia apresenta, no quadrante da história, este carácter único de se


prolongar ao longo de quatro milênios, numa inegável continuidade. Deve-o
à unidade do território do Egipto, ao equilíbrio dos seus constituintes físicos,
à função da religião e, nesta, à função real. (...JArte equilibrada entre a gran-
deza e o humano, elaborada de acordo com um sentido extremamente seguro
das linhas, arte comprometida e áulica, assim se apresenta a arte egípcia^^.

Esta arte hierática e rigorosa que exigiu amplamente a meditação


de Platão tinha estabelecido, desde a origem da civilização egípcia,
as suas próprias "convenções" segundo a maât, os procedimentos da
quadrícula e da implementação do quadriculado, a geometrização do
corpo humano, o hieratismo das atitudes, o maravilhoso despojo das
técnicas, a figuração em relevo, a pureza das linhas arquitecturais, tudo
isto não exclui a evolução mas é evidente que estas qualidades eternas
da arte egípcia deviam-se quer à organização política, quer à religiosa
e social do mundo faraônico. Eis aquilo que fascinava Platão, o filósofo
das Idéias eternas e imutáveis. Deste modo, o aspecto "transcendente"
da arte egípcia não escapou a Platão. A regulamentação da música con-
siste num facto real e digno de interesse. Torna-se, portanto, possível
legislar esta matéria, tal como os Egípcios o fizeram. Terá sido obra
de um deus ou de algo divino, do mesmo modo que no Egipto, os ares
conservados durante todo este tempo são obra de ísis^^.
Platão abandona o controlo da produção artística aos filósofos-
-governantes [República, X, 607, b-608b), bem como aos guardiãos das
leis, que agem sempre de modo a fazer prevalecer a razão, o noüs [Leis,
VII, 7 9 9 b]; porém, no Egipto, os sacerdotes também eram filósofos
e guardiãos das leis: estes tinham de agir de acordo com os precei-
tos da maât, a verdade, a justiça, a ordem, a virtude suprema, o bem

11. Du Bourguet, R, L'art égyptien; Paris, Desclée de Brouwer, 1973, p. 14. Sublinhado no texto.
12. Platão, Leis, 657 a-b.

o Egipto na obra de Platão . Théophile Obenga 195


soberano. A arte coreográfica e musical egípcia era regulamentada e
sacralizada no âmbito de um calendário em que cada celebração en-
contrava o seu lugar. Não existe melhor técnica, melhor organização,
melhor indústria do que aquela que é usada pelos Egípcios:

Clínias: A que técnica te referes?


O Ateniense: Consagrar qualquer dança e qualquer música [toü katijierõsai
pãsan men orchésin, panta de melé); regulamentar em primeiro lugar as
festas (tas heortas), encomendar antecipadamente, para todo o ano (eis ton
eniauton), quais as festas que deveremos celebrar, em que épocas, em honra
de que deuses ou filhos de deuses; depois, que hino deverá ser cantado ao
sacrificar aos deuses e através de que danças honraremos tal sacrifício; regu-
lamentação que será confiada a alguns, porém, uma vez concretizada, todos
os cidadãos, tendo sacrificado em comum às Moiras e a todas as outras divin-
dades terão de consagrar, através de libações, cada hino a um dos deuses ou
demônios sucessivamente^^.

Platão celebra assim, uma vez mais, a regulamentação estreita da


arte egípcia. O calendário das artes era estabelecido em função das
celebrações dos deuses. O carácter religioso das artes é evidente.
Neste problema estético-ético, "dançar bem", "cantar bem", Platão,
tendo meditado acerca das realidades egípcias, escolhe o partido do
rigor e da conservação, contra a inovação e o charme que conduzem
facilmente à libertinagem, ao prazer e ao vício. Os métodos educati-
vos egípcios alimentaram a politologia platônica. Trata-se aqui de um
problema importante, subterrâneo às Leis.

4.5. O Egipto enquanto detentor da melhor pedagogia


para ensinar as matemáticas às crianças

Isôcrates, em Busiris, obra elaborada por volta de 3 8 5 antes da nossa


era, ensina-nos que os jovens no Egipto se ocupam do "estudo dos
astros, do cálculo e da g e o m e t r i a " " . No entanto, é Platão, nas Leis, obra
composta entre 3 7 0 e 3 4 7 antes da nossa era, que manifesta maior
interesse pela pedagogia egípcia das matemáticas.
O método é primordial para o filósofo. A ignorância, afirma, mesmo
total e profunda, em qualquer matéria que seja, não é nem perigosa,
nem tão grandemente funesta: "Bem mais lamentável, pelo contrário, é
o facto de se ter aprendido muito e ter conhecido muito, sem qualquer

13. Ibid., 799 a-b.


14. Isôcrates, Busiris (XI}, 23.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


método"^^. Aprender e saber sem método, é o mesmo que ter uma
cabeça bem preenchida, mas não necessariamente bem construída,
referirá, por seu turno, muito mais tarde, o sábio Montaigne. Precisa-
mente, o método egípcio recebe o consentimento total de Platão. As
matemáticas são ensinadas às crianças como se de um jogo se tratasse:
"Em primeiro lugar, para o cálculo, inventaram-se métodos para bene-
fício das crianças que não sabem nada, de modo a instruí-las, e em que
jogo e prazer se misturam"^®.

São, por exemplo, frutas ou coroas para partilhar em inúmeros lotes, mais
ou menos grandes, de maneira a obter sempre o mesmo número no total;
são também, no boxe e na luta, a alternância e a sucessão segundo a regra
destes jogos, daquele que permacerá sentado e daqueles que formarão pares.
Do mesmo modo, sempre através do jogo, os instrutores misturam taças de
ouro, de cobre, de prata e de outras matérias em lotes. Ao adaptar a um jogo,
tal como referi, a prática das operações matemáticas indispensáveis, tornam
aptos aqueles a quem ensinam, quer para regulamentar um acampamento,
como para dirigir um exército e organizar uma expedição militar, quer ainda
para administrar uma casa, e, de qualquer modo, tornam-nos mais capazes
de serem autônomos, e transformam-nos em pessoas muito mais conscien-
tes.''

Depois disto, os mestres egípcios dirigiam as suas aulas para as


medidas, comprimentos, larguras, profundidades (Platão, Leis, Vil,
8 1 9 d], Platão estava particularmente atento ao ensino da ciência dos
números porque, precisamente, esta ciência leva à contemplação do
Inteligível. Devido à sua permanência, à sua grande duração temporal,
à sua memória milenar bem arquivada, à sua legislação artística, aos
seus métodos pedagógicos dos mais aprazíveis, o Egipto aparentava-se,
para Platão, ao Inteligível. Trata-se de referir, no fundo, todo o paren-
tesco "íntimo", entre o pensamento egípcio e o pensamento platônico.
Nenhuma fórmula do gênero "Egipto de Platão" ou "Egipto segundo
Platão", etc., poderia "camuflar" o facto de a filosofia de Platão remeter
constantemente para o Egipto, quando se trata da escrita, da origem
da civilização, da história universal, da memória filosófica e histórica
da humanidade, da conservação de factos imemoriais, da filosofia da
arte, da educação do cidadão na criança, etc. Não é possível apagar o
Egipto da obra platônica. Existe uma idéia do Egipto em Platão, que fez
a viagem ao Vale do Nilo, - viagem de estudo que eruditos de primeiro

15. Ibid., 8 1 9 a.
16. Ibid., 8 1 9 b.
17. Ibid., 819.

o Egipto na obra de Platão . Théophile Obenga 195


plano não negam, como Gomperz (Les penseurs de Ia Grèce, vol. II),
Robin [La pensée grecque), Martin Bernal {Black Athena, 1987). Já na
antigüidade, Plutarco tinha procurado conciliar a filosofia platônica
com a filosofia egípcia, sendo esta a origem histórica e cultural da
primeira, em inúmeros aspectos importantes.

5. Plutarco, conciliador da teologia dos Egíp-


cios com a filosofia de Platão
Plutarco compreendeu, de uma maneira geral, que para os Egípcios
a origem e a composição do mundo são resultado de um misto de duas
forças contrárias, mas cuja maior prevalece. O mundo possui um corpo
e uma alma: "Nesta alma do mundo, no que concerne ã inteligência e
à razão, Osíris é o guia e senhor soberano de tudo aquilo que se faz
com excelência"^®. Tudo aquilo que está regulamentado no universo
decorre, portanto, de Osíris e este manifesta-o, por isso, sob uma
forma sensível".
Seth (Tifão), pelo contrário, representa tudo aquilo que existe na
alma do mundo de apaixonante, de subversivo, de irrazoável e de im-
pulsivo, e tudo aquilo que se encontra de perecível e de nocivo no cor-
po do universo^". O mito egípcio de Osíris e de Seth constitui, aos olhos
de Plutarco, na explicação histórica da doutrina de Platão: "E Platão,
ainda que exprimindo-se freqüentemente de modo obscuro e velado,
nomeia um destes princípios contrários "O Memo" (Identidade), e o
outro "O Outro" (Diferença)^!.
Plutarco faz alusão, como é evidente, ao Timeu, 35 a. A essência indi-
visível é a alma do mundo, enquanto que a essência divisível ê o corpo
do universo. Mas Platão ê mais explícito nas Leis:

Porém, nas suas Leis, obra escrita por ele numa idade mais avançada e na
qual, ao invés de se exprimir de modo enigmático e simbólico, este serve-se
das palavras adequadas, afirma que o mundo não é posto em movimento por
uma única alma, mas talvez por um grande número, e no mínimo certamente
por duas. [...). Admite ainda uma terceira natureza intermediária, que não
é privada nem de alma, nem de razão, nem de movimento que lhe seja in-
trínseco, tal como alguns consideraram, mas que, ao mesmo tempo que de-
pende das outras duas, tende seguir o melhor, aquele que deseja e que busca^^.

18. Plutarco, ísis e Osíris, 371 a.


19. Ibid., 371 b,
20. Ibid., 371 b.
21. Ibid., 3 7 0 f.
22./Wd., 3 7 0 - 3 7 1 a.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


Com efeito, nas Leis, 8 9 6 d sq., Platão fala efectivamente de duas
almas, uma boa e outra má, que terão ambas participado na formação
do mundo; porém, acrescenta [Leis, 9 0 4 e] de imediato que o demiurgo
implementou tudo para que o bem vencesse o mal.
O comentário de Plutarco não está errado. De facto, nesta passagem
das Leis, Platão diz que no mundo apresentado, a razão pela qual se ex-
plica o movimento no universo deve-se apenas à idéia de um primeiro
pirncípio motor. Este princípio, Platão designa-o de alma, e declara-o
anterior à matéria, isto é, a tudo aquilo que participa no movimento
do universo, sem que ele próprio se mova. Portanto, acima de todas as
almas manifestadas nas coisas, existe uma alma soberana inteligente e
benfeitora. A prática da sabedoria (filosofia] consiste, por conseguinte,
em livrar-nos de tudo aquilo que é sensível, material, bruto, e que nos
entrava, de modo a elevar-nos até ã inteligência. O homem ocupa o
meio entre a alma do mundo e a matéria. Segundo Plutarco, este dis-
curso platônico provém directamente da escola teológica egípcia: "É
aquilo que demonstrará a seqüência do nosso discurso que se pren-
derá especialmente a conciliar a teologia dos Egípcios com esta filoso-
fia (de Platão]"23.
Isto justifica-se historicamente já que Platão permaneceu no Egipto
para estudar junto dos sacerdotes deste país.^'' Tal é o ponto principal.
No seguimento [tá epiontd) do tratado [toü logou), Plutarco procura
dar a conhecer, indicar claramente [déloõ), o mais possível [malista),
que esta filosofia de Platão relativa à origem do mundo é exactamente
a mesma coisa que as crenças religiosas dos Egípcios: Platão apropriou-
-se [sun oikeioomai oúmaí], de certa maneira, da teologia egípcia, mais
concretamente da explicação egípcia do universo segundo o mito de
Osíris e de Seth. Plutarco está convisto disso, e procura demonstrar o
mesmo no seguimento do seu discurso, do seu tratado.
Plutarco identifica a alma de Osíris com a inteligência divina. O seu
corpo é Hórus, o mundo sensível, ou a matéria perecível ordenada
pela inteligência eterna. Este corpo é desmembrado por Seth; mas
ísis reúne os seus pedaços e volta a reconstituí-lo para uma nova vida.
Osíris é simultaneamente ele próprio e Hórus: sob estas duas formas,
possui a faculdade de se reproduzir eternamente, e escapa à acção de
Seth, princípio de destruição. Seth deixou os membros de Osíris aos
bocados e dispersou-os; ísis, mulher e irmã da vítima, reúne-os e dá-
-Ihes vida; este novo nascimento adopta o nome de Hórus, e o combate
contra o princípio do mal prossegue-se. Hórus é a imagem sensível do

23. Ibid., 3 7 1 a .
24. Ibid., 3 5 4 e: os mais esclarecidos [oi sophõtatoí] dos Gregos [tõn Hellénõn) estudaram no
Egipto: Sólon, Tales, Platão, Eudoxo, Pitágoras.

o Egipto na obra de Platão . Théophile Obenga 195


mundo engendrado por ísis. Plutarco precisa: "ísis é, assim, a natureza
considerada como mulher e apta a receber qualquer geração. É neste
sentido que Platão a nomeia de "Ama" e "Aquela que tudo contém"".
ísis é a Mãe universal, o Receptáculo cósmico; a Razão divina con-
duziu-a a receber todas as espécies de formas e aparências. Plutarco
tem razão: Platão nomeia ísis, a deusa-mãe egípcia personificando a
alma universal, "Ama", "Receptáculo", o suporte de qualquer nascimen-
to" (Platão, Timeu, 4 9 a, 50 d, 51 a).
Por que motivo é que Platão nomearia ísis deste modo se não exis-
tisse qualquer relação entre a sua filosofia e a do Egipto?
Assim, Plutarco resume o essencial do mito de Osíris: "A natureza
mais perfeita e mais divina é composta por três princípios que são: a
inteligência (Osíris), a matéria (ísis), e o produto da sua união (Hórus),
ou seja, o mundo organizado"^®. Prossegue de imediato:

Platão tem por hábito designar a inteligência sob os nomes de idéia, de modelo,
de pai; a matéria, sob os de mãe, de ama, de base e de assento da geração, e o
resultado da sua união, denomina-o de descendente e engendrado^''.

Aos olhos de Plutarco, que faz deste modo uma exegese da filosofia
da criação platônica, o filósofo ateniense não inovou verdadeiramente:
de um modo geral, retoma o esquema e a explicação dos filósofos egíp-
cios, inventores do mito de Osíris (ver Platão, Timeu, 50 c-d). Esta na-
tureza perfeita e divina pode ser representada figurativamente pelo
triângulo rectângulo em que o ângulo direito representa o masculino
(Osíris), a base do triângulo, o princípio feminino (ísis), e a hipotenusa,
o produto dos dois (Hórus). Aqui, mais uma vez, a influência egípcia é
notável no pensamento de Platão, tal como se esforça por demonstrar,
novamente, Plutarco que escreve:

Afigura-se provável que os Egípcios tenham considerado o triângulo rectân-


gulo como o mais belo dos triângulos, e foi sobretudo com esta figura que
compararam a natureza do universo. Platão, aliás, parece tê-lo usado para
representar, na sua República, o casamento sob forma geométrica'-^.

No excerto bastante obscuro da República, 5 4 6 b c, aqui em causa,


Platão pretende de facto designar um número que deveria represen-
tar o grandioso ano humano e que, segundo o filósofo, deveria exercer

25. Ibid., 372 e.


26. Ibid., 373 e.
27. Ibid., 373 f.
28. Ibid

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


uma influência nos casamentos e nos nascimentos. Plutarco insiste no
facto de Platão designar ísis de base e de receptáculo [Timeu, 52 d - 53
a]. Aqui está a sua explicação. Os Egípcios nomeiam ísis, quer Mout,
quer Athyri e Méthyer:

O primeiro destes nomes, afirma (os Egípcios], significa "mãe"; o segundo,


"habitação terrestre de Hórus" (no mesmo sentido que Platão designa ísis de
sede e de receptáculo da geração), e o terceiro é composto por duas palavras
que significam "plano" e "causa". A matéria do mundo é, de facto, plena, e
prende-se com uma boa causa, pior e soberanamente ordenada^'^.

O conhecimento da língua egípcia por Plutarco é aqui excelente. Com


efeito, em egípcio, mwt significa de facto: "mãe"; Athyri é a deusa
Hathor, hwt-hr, em egípcio, cujo nome significa de facto "habitação
de Hórus", isto é, o seio dos espaços celestiais: ísis assimilou todas as
atribuições de Hathor, deusa do amor e da fecundidade, à medida que
se ouvia a religião de Osíris. Méthyer é um qualificativo que significa
toda a plenitude de [mh-hr, "estar cheia de"), que Neith [Mf, Nt) tam-
bém usava em Sais (Neith é, por vezes, evocada no mito de Osíris).
O próprio nome de ísis é escrito em egípcio com um hieróglifo que
representa um assento.
Os mitos, tal como o de Osíris ou do nascimento de Eros no Ban-
quete ( 2 0 3 b), não devem, portanto, ser considerados por si só, pura
e simplesmente; pelo contrário, deve ver-se em cada um deles aquilo
que provém do pensamento. Assim,

... estes nomes diversos e estes ritos servem de símbolos, uns mais obscuros,
outros mais resplandecentes, àqueles que se dedicam aos estudos sagrados, e
conduzem-nos, não sem algum perigo, à inteligência das coisas divinas. (...).
Eis o motivo pelo qual é necessário, em particular nestas questões, ter em
conta a razão, secundada pela filosofia, enquanto iniciadora e orientadora, a
fim de admitir apenas as reflexões sãs acerca da interpretação dos ritos e das
doutrinas^".

Esta passagem importante de Plutarco contém uma metodologia


sempre útil, sempre actual. O autor é aqui um rigoroso comparatista
da filosofia platônica nas suas relações com as doutrinas egípcias. Em
quase todas as suas obras, Platão compara freqüentemente a aquisição
da filosofia (ciência, sabedoria) à virtude santa das iniciações, cujo
objectivo último é a união com Deus, com a Inteligência suprema. Por

29. Ibid., 3 7 4 b.
30. Ibid., 3 7 8 a-b.

o Egipto na obra de Platão . Théophile Obenga 195


exemplo, no Banquete (210 a] e em Fedra ( 2 4 9 c, 2 5 0 a], Platão esta-
belece um paralelismo estreito entre o método filosófico e a virtude
iniciática. A filosofia epóptica (contemplativa] representa a parte últi-
ma da filosofia. Neste caso, a visão do Ser é apenas inteligência, luz,
santidade.
O fim supremo da filosofia consiste nesta fusão com o Ser primei-
ro, simples e imaterial. Ora, os Egípcios, nas suas práticas religiosas,
sobretudo nas suas purificações e nos seus regimes (sexuais, alimen-
tares, sanitários, intelectuais, etc.) não visaram menos a sabedoria, a
santidade, isto é, o objectivo supremo da filosofia. Estes chegavam a
queimar perfumes sagrados (o kyphi composto por seis espécies de
substâncias e preparado segundo as fórmulas indicadas nos livros sa-
grados], para que o corpo, doravante envolto no estado do ar transfor-
mado, doce e agradavelmente tocado pelas emanações e as virtudes
aromáticas, pudesse entregar-se ao sono e adquirir assim uma dis-
posição evocadora: "A faculdade imaginativa da alma, a sua aptidão
para receber sonhos tornam-se polidas como um espelho"^\
Em suma, o Egipto desempenhou um papel significativo no pensa-
mento de Platão: perto de 4 2 % dos seus Discursos concernem directa e
amplamente ao Egipto, país da mais alta Antiguidade, berço da escrita
e das ciências, modelo de organização artística, intelectual e pedagógi-
ca. E Plutarco, desde a própria Antiguidade, dedicou-se a ler as Leis, a
República, o Banquete e, sobretudo, o Timeu e Fedra, precisando aquilo
que, segundo ele, era devido ao Egipto. Esta conciliação tentada por
Plutarco entre a filosofia platónica e o pensamento egípcio é por si só
digna do mais elevado interesse histórico e filosófico.

3 1 . / è ; d . , 3 8 4 a.

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


Resumos

B w e m b a Bong, historiador, membro, do Círculo SAMORY


A r u p t u r a da c o n s c i ê n c i a histórica do povo negro: o o b s t á c u l o
principal do r e n a s c i m e n t o africano

Ainda que reconhecidas como "Crimes contra a Humanidade" pela


Lei francesa n- 2 0 0 1 - 4 3 4 de 2 1 de Maio de 2 0 0 1 , conhecida por Lei
Taubira-Delannon, e pela Conferência Mundial das Nações Unidas
contra o racismo em 2 0 0 1 , as razias negreiras transatlânticas, conhe-
cidas por Tráfico de Negros, continuam sem usufruir da mesma aten-
ção por parte da "Comunidade Internacional", que os outros "Crimes
contra a Humanidade", de que outros povos foram vítimas; pior, a
falsificação original deste genocídio do Povo Africano continua a man-
ter-se inatacável no pensamento internacional dominante.

M o m a r Mbaye, doutorando em história na Universidade de Rouen/


GRHIS
A g u e r r a do Biafra: d e s i n f o r m a ç ã o e m a n i p u l a ç ã o dos m é d i a ?
Análise de q u a t r o g r a n d e s diários: Le Monde, Le Figaro, La Croix
e L'Humanité.

A História da guerra do Biafra permanece por escrever, as palavras


são do jornalista Michel Litbon. Este conflito que, de facto, ensangüentou
a Nigéria de 1 9 6 7 a 1 9 7 0 ainda encerra numerosas zonas obscuras. Os
poucos textos que lhe dizem respeito empenharam-se, na maior parte
das vezes, a desvendar ali o resultado de lutas de influência das grandes
nações em terra africana. Para além disso, a cobertura mediática é mui-
tas vezes descrita como distorcida e até mesmo tendenciosa. Todavia,
uma análise aprofundada da imprensa da época [sobretudo francesa),
de obediência diversa, revela uma situação muito mais complexa de
abordar. Do L'Humanité ao La Croix, passando pelo Le Monde e Le Figaro,
os diários apresentaram a guerra na sua honra mais absoluta, sem

o Egipto na obra de Platão . Théophile Obenga 195


esquecer as causas e as responsabilidades. Se, de um modo geral, os
artigos foram pouco críticos para com os secessionistas, não podemos
concluir de modo peremptório a favor de um partido de modo abso-
luto. No máximo, podemos observar (exceptuando L'Humanité) uma
tendência em magnificar o papel de Paris em relação à irresponsabili-
dade de Londres e o mutismo da comunidade internacional face a um
drama tão aterrador.

B e r n a r d Zongo, Doutor em letras. Universidade de Rouen


Francês/línguas africanas: a colonização linguística ontem e
hoje, aqui e ali

Esta comunicação procura interrogar três aspectos da investigação


africanista no âmbito da linguística: descrição das línguas africanas,
do francês dito de "África", dos contactos francês/línguas africanas.
Inscrita numa perspectiva diacrónica, esta tem por objectivo pôr em
evidência as pretensões hegemonistas e fagocitárias da "antiga" potên-
cia colonial, reconhecendo ao mesmo tempo a dívida que a África deve
aos esforços de alguns investigadores franceses de ontem e de hoje na
(sobre)vivência de inúmeras destas línguas. Deste modo, interessar-
-nos-emos em primeiro lugar pelos descritores das línguas africanas
(estatuto científico, intenções, valor heurístico dos trabalhos) da época
colonial aos nossos dias, passando por algumas datas-chave (as duas
guerras mundiais, as independências, 1965, juntamente, por fim, com
a criação de unidades de investigação dignas deste nome via o CNRS e
a ORSTOM). Abordaremos, de seguida, o mito do francês dito de África
(elaboração de léxicos "especializados" ou o paradigma manessiano
"norma endógena" vs "norma exógena", confrontando-o com dados
linguísticos e metadiscursivos hexagonais. Veremos, por último, que
relações mantêm as línguas africanas face ao francês simultaneamente
do ponto de vista do "estatuto", do "corpus" (Chaudenson), e do dis-
curso epilinguístico, tanto na África como em França.

Cheikh M'Backé Diop, Doutor em ciências


Cheikh Anta Diop: O homem e a obra

Na sua primeira obra, Nations nègres et culture, publicada em 1954,


Cheikh Anta Diop coloca em causa as idéias admitidas relativamente à
gênese e à evolução da humanidade. Ali, demonstra em particular que

lo:, Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng A Consciência Histórica Africana


o Egipto antigo, os seus habitantes e a brilhante civilização que elabo-
raram nas margens do Nilo, pertencem ao mundo negro-africano. O
objectivo do exposto consiste em ilustrar a fecundidade da obra deste
sábio africano. Restituiremos, em primeiro lugar, o contexto histórico
e ideológico no qual Cheikh Anta Diop produziu os seus primeiros
trabalhos. De seguida, evocaremos a sua formação intelectual. Numa
terceira parte, demonstraremos, através de alguns exemplos, de que
modo é que os resultados mais recentes da investigação, nomeada-
mente nos domínios da pré-história e da história da África, reforçam
simultaneamente a pertinência científica dos grandes eixos da inves-
tigação histórica definidos em Nations nègres et culture, bem como os
principais resultados dos trabalhos do investigador Em suma, é toda a
actualidade da obra de Cheikh Anta Diop que será sublinhada.

B a b a c a r Sail, professor de história, egiptólogo, Universidade de


Dakar, Senegal
Estado das investigações acerca da Antigüidade africana

No prefácio de Nations nègres et culture, Cheikh Anta Diop afirma


que o seu objectivo consistia em permitir a qualquer Africano poder
remontar a história da África desde os tempos mais longínquos.
Cinqüenta anos após a publicação deste texto, a expressão Antigüidade
africana transformou-se num conceito operatório. O que sabemos nós
hoje daquilo que foi a vida das sociedades que viveram em África du-
rante o segmento temporal denominado Antigüidade? A primeira coi-
sa a notar é o nível desigual dos conhecimentos segundo as regiões. O
Vale do Nilo representa o local melhor estudado pelo facto de conter
um maior número de vestígios. A documentação, quer textual, quer
arqueológica é relativamente abundante naquele local. Relativamente
às outras regiões, a arqueologia permite a obtenção de algumas infor-
mações acerca do povoamento, dos gêneros de vida e dos contactos.
***

Babacar Mbaye DIOP, doutorando em filosofia na Universidade de


Rouen/ERAC
Estado das investigações acerca das semelhanças entre a arte
do Egipto antigo e a da África Negra

As relações entre a arte do Egipto antigo e a da África Negra são, até


ao momento, bastante desconhecidas e pouquíssimos autores falaram

o Egipto na obra de Platão . Théophile Obenga 195


delas. O propósito desta comunicação consiste em estudar e demonstrar,
através de exemplos de alguns objectos, a sua proximidade tomando,
como é evidente, as devidas precauções de modo a permanecer num
terreno científico. Em 1917, Appolinaire mostrará que as artes afri-
canas possuem um "indubitável parentesco com a estética egípcia da
qual derivam". Léo Frobenius, em 1933, na sua Histoire de Ia civilisa-
tion africaine, compara as características da arte africana com as do
Egipto e percebe que a fórmula da África Negra define a própria essên-
cia da civilização egípcia. Outros investigadores, tais como A. R.M.A.
Bedaux, Raponda-Walker, o R R Briault, A. Moussa Lam, descrevem a
semelhança surpreendente entre objectos de arte africana e do Egipto
antigo. Tais semelhanças excluem, segundo estes autores, qualquer
acaso e explicar-se-iam não somente devido à origem saariana de uns
e de outros, mas também por uma vida comum no Vale do Nilo.

Doudou Dieng, doutorando em Filosofia na Universidade de Rouen/


CERCLA
"Afrocentricidade": polêmica em torno de um conceito

A afrocentricidade é a referência conceptual que encarna os valores


africanos e preconiza o regresso às origens para melhor tornar inteli-
gível o pensamento dos "negros", incluindo outro modelo de estudos
africanos que inclua a África no seu todo, mas também, os Africanos-
-Caribenhos, bem como os Afro-Americanos. Mesmo se a centricidade
coloca um problema, neste sentido em que se trata de uma reacção
à apropriação euro-americana de qualquer forma de conhecimento,
é necessário compreender-se o seu movimento arqueológico que faz
com que tenha surgido com Cheikh Anta Diop e uma geração de uni-
versitários que se interessaram pela relação entre o Egipto e a África.
Este questionamento não é novo, para falar como C. Boyce Davis; o que
é novo e levanta toda uma polêmica é o termo de afrocentricidade e
todas as tentativas de torná-la numa teoria.

A. Moussa Lam, professor de história na U.C.A.D. de Dakar


O Egipto antigo e a África Negra: alguns factos novos que escla-
recem o debate em torno das suas relações

As relações entre o Egipto antigo e a África Negra foram um grande


tema de debate entre as escolas de egiptologia ocidental e de Dakar.
A primeira empenhou-se, inicialmente, em isolar a civilização egípcia
antes de aceitar, por último, que era necessário voltar a colocá-la no
seu contexto africano; a segunda defendeu sempre a tese de uma pro-
funda unidade cultural e racial entre o Egipto e a África Negra. Alguns
factores novos, resultantes de investigações levadas a cabo por egip-
tólogos negro-africanos [provenientes do continente ou da sua diáspo-
ra), permitem actualmente confirmar a existência da unidade egipto-
-africana [defendida constantemente por Cheikh Anta Diop], cujo berço
mais importante ê, de facto, o Egipto antigo. Este berço perdurou até
à queda do poder faraônico, dispersando, de seguida, populações e
traços culturais por toda a África.

Jean Paul Mbelek, doutor em física


A história das ciências e das técnicas na África Negra

Comentarei documentos que comprovam a invenção das ciências


matemáticas e da tecnologia em África desde os primeiros homens até
ao advento do Egipto antigo. Depois, apresentarei, de modo sucinto,
algumas figuras eruditas, bem como algumas invenções africanas do
continente e da sua diáspora desde os primórdios até aos nossos dias.

Cheikh Moctar Bâ, doutorando em filosofia, UPRES 1 2 7 0 filosofia


das normas, Universidae de Rennes 1.
Contributo das osmogonias Dogon para a problemática da "ori-
gem" da Civilização: a necessidade do trágico no seio da divin-
dade

As questões relativas à origem das civilizações humanas são objecto


de muitas controvérsias na história das Idéias. Um dos maiores enig-
mas do homem consiste em encontrar uma resposta à pergunta escal-
dante de saber qual é a origem da Civilização e de que modo o homem
se diferenciou progressivamente dos outros seres. A esta preocupação,
os Dogons trouxeram uma solução filsófica convincente que consiste
em inscrever a civilização no processo geral da existência, fazendo do
resultado uma luta no seio da divindade, o estádio último da rebelião
Ogo. É deste modo que nos encarregamos, neste trabalho, de analisar o
modo como as cosmogonias Dogon abrem a possibilidade de inscrever
o trágico enquanto necessário para a continuidade do processo exis-
tencial.
Théophile Obenga, professor na Universidade da Califórnia em São
Francisco
O Egipto na obra de Platão

I. O mundo grego, autocentrado com freqüência chauvinista, não


vivia, no entanto, isolado. Estava em contacto permanente com os
"Bárbaros", isto é, os povos vizinhos não-gregos, através da cultura e,
sobretudo, através da língua. Curiosos, empreendedores, guerreiros, os
Gregos viajavam muito e para longe: Pérsia, Bálcãs, Armênia, Anatólia,
mesmo até à índia, à Itália meridional, ã Sicília ou África setentrional.
II. Todos os biógrafos e doxógrafos, contemporâneos ou não, no
entanto sem excepção, atestam que Tales, Pitágoras, Eudoxo, Platão,
Aristóteles, etc., estiveram no Egipto. Nada de "chocante" ou de "anor-
mal" nisto, a este respeito, para os Gregos. Heródoto, grande pesqui-
sador, visitou o Egipto, de Heliópolis a Tebas, interrogando sacerdotes
e eruditos, deslocando-se ao mercado, analisando costumes, templos
e monumentos. Náucratis no Delta, era uma fundação grega. O Egipto
era bastante familiar aos Gregos da Ásia e da Europa: turistas, comer-
ciantes, mercenários, estudantes, etc., deslocam-se até lá via marítima.
Se o Egitpo seduzia tanto os Helenos, não se tratava de uma "mira-
gem" ilusória. De resto, Walter Burkett e Martin Bernal, por exemplo,
abalaram radicalmente as visões da helenomania, provenientes de
Hegel, a propósito das "raízes" da civilização grega.
III. Por conseguinte, existe um contexto histórico e cultural do Egipto
na obra de Platão onde factos, dados, informações de primeira mão,
podem ser identificadas, em todos os grandes diálogos platônicos:
origem da escrita, invenção das matemáticas, dos jogos de sociedade,
pedagogia egípcia, realeza e sacerdócio, história antiga da humani-
dade, deuses e deusas do panteão egípcio, etc. Platão disserta admi-
ravelmente acerca da Arte faraônica, que qualifica de "divina". Quantas
outras informações verídicas! Torna-se ainda mais belo no próprio
texto grego.
Biblioteca de Ciências Sociais e Humanas:
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Pelos Meandros da Etnia. Etnias, tribalismo e Estado em África


Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo [ISBN: 9 7 8 - 9 8 9 - 8 6 5 5 - 3 2 - 5 ]

A Longa Marcha da Modernidade Africana. Saberes, intelectuais, democracia


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na Antiguidade Clássica
Cheikh Anta Diop [ISBN: 9 7 8 - 9 8 9 - 8 6 5 5 - 4 7 - 9 ]

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Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng [ISBN: 9 7 8 - 9 8 9 - 8 6 5 5 - 4 8 - 6 ]
ú l t i m a s o b r a s n e s t a Colecção:

Pelos Meandros da Etnia. Etnias, tribalismo


e Estado em África
Jean-Loup Amselle e Elikia M'Bokolo

A Longa Marcha da Modernidade Africana.


Saberes, intelectuais, democracia
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Tradição Africana e Racionalidade Moderna


Elungu P. E. A.

O Despertar Filosófico em África


Elungu P. E. A.

Cheikh Anta Diop ou a honra de pensar


Jean-Marc Ela

A Unidade Cultural da África Negra. Esferas


do Patriarcado e do Matriarcado na Antiguidade
Clássica
Cheikh Anta Diop

A Consciência Histórica Africana


Babacar Mbaye Diop e Doudou Dieng
De 5 a 6 de Abril de 2 0 0 5 teve lugar, na Universidade de
Rouen, um colóquio em homenagem do 50.2 aniversário
da publicação da grande obra de Cheikh Anta Diop:
Nations nègres et culture.
O seu ensinamento acerca dos fundamentos de uma civili-
zação africana moderna, dos princípios da constituição de
uma federação de Estados democráticos africanos, bem
como acerca da identidade cultural entre o Egipto e a Áfri-
ca Negra, e da unidade lingüística na segunda, mereceram
um colóquio em torno do percurso excepcional de uma
das personalidades científicas mais inquietantes da África
contemporânea.

Temas muito prezados por Cheikh Anta Diop, tal como a


África e o Ocidente [Capítulo I), as raízes egípcias da civili-
zação africana [Capítulo 11) e o contributo da comunidade
negra e do Egipto para a civilização [Capítulo III) constituem
as diferentes partes desta obra.

"Os poucos factos aqui apresentados demonstram


que não é de modo algum necessário lançar-se numa
argumentação complexa para desempatar os
protagonistas do debate em torno das relações
egipto-africanas. No plano estritamente científico, as
tradições africanas, pela sua relação decisiva, permitem
actualmente encerrar o debate e classificar melhor a
civilização egípcia; porém, não somos ingênuos ao ponto
de acreditar que tal sucederá em breve, tendo em conta
que as motivações que animam alguns estão longe de ser
puramente científicas. Por outras palavras, a ideologia
que tanto prejudicou a África e os Africanos ainda vai,
infelizmente, perdurar por mais tempo."

A. Moussa Lam
Universidade Cheikh Anta Diop, Dakar

apoio;

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