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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

IZABEL HADDAD MARQUES MASSARA

Uma verdadeira mulher e seu extravio:


figuras da feminilidade em Lacan

Belo Horizonte
2014
IZABEL HADDAD MARQUES MASSARA

Uma verdadeira mulher e seu extravio:


figuras da feminilidade em Lacan

Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação


em Psicologia da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal de
Minas Gerais como parte dos requisitos para a
obtenção do grau de Doutor em Psicologia.

Área de concentração: Estudos Psicanalíticos

Linha de pesquisa: Conceitos Fundamentais em


Psicanálise; Investigações no campo clínico e
cultural.

Orientador: Prof. Dr. Jeferson Machado Pinto.

Belo Horizonte
2014
150
Massara, Izabel Haddad Marques
M414u
2014 Uma verdadeira mulher e seu extravio [manuscrito] : figuras
da feminilidade em Lacan / Izabel Haddad Marques Massara. -
2014.
270 f. : il.
Orientador: Jeferson Machado Pinto.

Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais,


Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas..

1.Psicologia – Teses. 2. Psicanálise - Teses . 3.Feminilidade


–Teses. 4.Mulheres – Teses. I.Pinto, Jeferson Machado . II.
Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas. III. Título.
AGRADECIMENTOS

A escrita desta tese se extraviou muitas vezes, nos encontros e desencontros


contingentes desses quatro anos. Desejo agradecer a algumas pessoas especiais, que estiveram
comigo ao longo deste percurso. Algumas delas participaram diretamente da confecção deste
escrito, outras o fizeram de forma indireta.
À minha filha, Stella, impressão do meu traço, doce detalhe do feminino, encarnação
do meu desejo mais genuíno de encontro com a feminilidade.
Ao meu marido, Guigo, por ter vivido comigo intensamente o desejo que fez germinar
o grão de amor sonhado, gerado e parido com as delícias e angústias desta escrita, nosso Petit
Pois, Stella. E também por ter estado desde sempre ao meu lado, nos tempos árduos desta
escrita infinita sobre a feminilidade.
Ao meu pai, Adelino, por ter imprimido em mim, antes mesmo que eu o soubesse, a
marca indelével do desejo de que um dia eu me tornasse uma doutora. Herdei esse desejo e o
fiz meu.
À minha mãe, Kétibe, que me transmitiu corporalmente algo da feminilidade, através
do eco de seu canto, e de cuja voz a minha é um nítido desdobramento.
Ao meu irmão, João, por partilhar comigo a mesma matriz, pai e mãe, e por reavivar
em minha memória, muitas vezes sem saber, os elos perdidos das lembranças encobridoras de
nossa infância.
À Regina Massara, por todos esses dez anos de leveza, e por ter cuidado de Stella por
horas a fio, bordando de delicadezas os nossos dias, enquanto eu, aflita, escutava seus
balbucios e chorinhos de longe, sem poder tirar os olhos das mulheres de Lacan.
Ao Carlos Alberto, pela paz que me transmite através de seu silêncio, pelo olhar de
cuidado para comigo e com Stella, e por ter cedido tantas vezes sua casa para que eu pudesse
estudar.
Ao Oscar Cirino, por ter me amparado nos descaminhos do inconsciente e por me dar
a medida justa da generosidade mesmo e, contudo, como analista.
A Ana Holk, por acolher meu desejo de refazer, mais uma vez, a caminhada pelo meu
continente negro.
A Ana Portugal, por me ajudar a lapidar minha escuta clínica.
À minha amiga Fabíola Valle, pela doçura de sua presença, por me apaziguar a alma, e
por me transmitir sempre uma paz imensa.
À minha amiga Letícia Ferreti, pela amizade e pelas conversas infinitas.
À minha amiga Cristina Vaz, pela lealdade e delicadeza de todos esses anos.
À minha amiga Belkis Pandiá, por me guiar nos segredos da feminilidade e me ajudar
a aceitar a nudez e solidão do encontro com a mulher.
À minha amiga Françoise Chausson, pelo incentivo e pela amizade de tantos anos.
Às minhas fiéis secretárias, Aparecida e Aureni, dois anjos que me ajudaram na labuta
monótona dos dias, enquanto eu escrevia esta tese.
Ao Jeferson, meu grande amigo, que viveu comigo, pela escrita, a irrupção desse real
inefável que é a vida, a morte e a mulher. Stella veio trazer o encantamento e o desejo que
animou meus dias e Ciça se foi, deixando um furo no lugar do coração e também no texto da
nossa vida.
Aos meus mais queridos amigos Carol Pavan, Fernanda Almada, Mariana Paz, Débora
de Castro, Junia Lara, Mariana Vidigal, Maxleila Reis, Frederico, Douglas Junior, Ariana,
Loren e Mônica, por todas as conversas, chocolates, cafés e desejos compartilhados.
Agradeço imensamente a Bárbara Guatimosim, Nestor Vaz, Flávia Drummond,
Cláudia Pedrosa, Nádia Rodrigues, Vera Valadares, Vanda Pignataro, Izabel Azzi, Júnia
Cardoso e Miriam Passos, pela disponibilidade de escutar minha apresentação sobre o texto
desta tese antes da defesa. E, ainda, por todas as discussões e descobertas que fizemos juntos
em nossos encontros para discutir o texto e a prática psicanalítica.
Ao meu professor Augustin de Tugny, que, mesmo sem saber, ajudou-me a sublimar,
através de suas histórias sobre a arte, a monotonia e a crueza do trabalho cotidiano com os
conceitos da psicanálise.
À Cecília Lana, doce surpresa nesse fim de escrita, cujo desejo de saber mais sobre
meu trabalho a respeito da feminilidade me comoveu a ponto de eu acreditar que ela teria um
olhar privilegiado para rever e respeitar o estilo e os extravios dessa escrita.
À Cleonice Paes Barreto, pela disponibilidade e presteza na confecção do resumo em
francês.
À UFMG, que, desde que aqui cheguei, aos cinco anos de idade, quando a floresta
ainda não era cercada por arames e as nuvens se faziam como um véu frio cobrindo os
paralelepípedos pela manhã, sempre foi o lugar do desejo de saber.
À Capes, por ter me concedido a bolsa de estudos para sustentar esta pesquisa durante
esses quatro anos.
LISTA DE FIGURAS

1. Figura 1: Quadro da tábua da sexuação........................................................................ 222


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................................... 12

1.1 - Objetivos ................................................................................................................................... 12

1.2 - A feminilidade de Freud a Lacan .............................................................................................. 13

1.3 - Metodologia .............................................................................................................................. 16

2. O EXTRAVIO DAS VERDADEIRAS MULHERES .................................................................. 23

2.1 - As verdadeiras mulheres ........................................................................................................... 23

2.2 - Uma figura de mulher ............................................................................................................... 31

2.3 - Sobre o termo extravio .............................................................................................................. 35

3. UMA MULHER E SEU EXTRAVIO POR CLÉRAMBAULT.................................................. 52

3.1 - Marie D.: uma paixão pela seda ................................................................................................ 54

3.2 - Fetichismo: um gozo erótico pelos tecidos ............................................................................... 56

3.3 - Soi-même: uma análise psicanalítica......................................................................................... 64

3.4 - Non-lieu: um precursor do não-todo ......................................................................................... 67

4. DESVIOS PULSIONAIS DA SEXUALIDADE FEMININA EM FREUD ............................... 70

4.1 - A histérica-mulher: uma lacuna na psiquê ................................................................................ 75

4.2 - A inveja do pênis: os destinos pulsionais no complexo de castração ....................................... 79

4.3 - A primazia do falo: os desvios pulsionais no complexo de Édipo............................................ 82

4.4 - A feminilidade como enigma: a relação pré-edipiana com a mãe ............................................ 90

5. FIGURAS CLÍNICAS DA FEMINILIDADE EM FREUD PELA LEITURA DE LACAN.... 97

5.1 - Irma: um corpo sem simbolização no sonho freudiano ............................................................ 99

5.2 - Dora: uma carne negociada pelo pai ....................................................................................... 114

5.3 - A Jovem Homossexual: um dejeto que cai da cadeia significante.......................................... 138

6. FIGURAS LITERÁRIAS DA FEMINILIDADE EM LACAN ................................................ 152

6.1 - Antígona: a encarnação do desejo criminoso de Jocasta ........................................................ 153


6.2 - Ysé: o aniquilamento em nome da Outra de si mesma ........................................................... 170

6.3 - Medéia: o infanticídio e a morte da Mãe ................................................................................ 181

6.4 - Madeleine: a incineração das cartas e a morte da Dama ......................................................... 190

7. FIGURAS LÓGICAS DA FEMINILIDADE EM LACAN ....................................................... 197

7.1 - A Rainha: uma fantasia masculina de difamação ................................................................... 200

7.2 - A Letra: um efeito de feminização.......................................................................................... 213

7.3 - O Não-todo: um gozo fora do campo simbólico ..................................................................... 220

7.4 - A Mística: um arrebatamento em nome de Deus .................................................................... 225

8. CONCLUSÃO ............................................................................................................................... 240

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................ 259

10. APÊNDICE .................................................................................................................................. 266

10.1 - Apêndice A: Quadro esquemático da bibliografia de referência em Clérambault, Freud e


Lacan para cada figura da feminilidade .......................................................................................... 266
“A pele evoca uma carícia ativa sobre aquilo que a modela: a seda acaricia com
suavidade uniforme uma epiderme que sente, sobretudo, tornar-se passiva,
depois ela revela, por assim dizer, um nervosismo nos seus amarfanhados e nos
seus gritos. Prestar-se-ia melhor, assim, talvez, à voluptuosidade feminina. A
mulher, ao manipular a seda, continua sozinha em espírito”. (Clérambault,
1908/2009, p. 73).

“Isso é tudo o que tinha a lhes dizer sobre a feminilidade. Certamente é


incompleto e fragmentário, nem sempre parece amigável. Mas não esqueçam
que retratamos a mulher na medida em que seu ser é determinado por sua
função sexual. Tal influência vai muito longe, é verdade, mas não perdemos de
vista que uma mulher também há de ser um indivíduo humano em outros
aspectos”. (Freud, 1933/2010, p. 293).

“O que eu lhes disse – que não existe relação sexual – se há um ponto em que
isso se afirma na análise, e tranquilamente é que a Mulher, não sabemos o que é
isso. Ela é desconhecida no lugar – a não ser, por representações. Desde
sempre, nunca foi conhecida senão desse modo. Se a psicanálise destaca alguma
coisa , é que, só a conhecemos por um ou mais representantes da representação.
É realmente o caso de valorizar a formulação dessa expressão, introduzida por
Freud a propósito do recalcamento. Não se trata, por ora, de saber se as
mulheres são recalcadas, mas de saber se a Mulher como tal o é, e por que não,
nela própria, é claro. (...) Se em sua essência a Mulher é alguma coisa, disso
nada sabemos, ela é tão recalcada para a mulher quanto para o homem, (...) o
representante de sua representação está perdido. Não se sabe o que é a
Mulher”. (Lacan, 1968-69/2008, p. 220).
Para duas mulheres: minha filha, Stella, e minha mãe, Kétibe, meus desdobramentos do feminino.
RESUMO

Massara, I. H. M. (2014). Uma verdadeira mulher e seu extravio: figuras da feminilidade em


Lacan. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal
de Minas Gerais, Belo Horizonte.

Esta tese visa à investigação do tema da feminilidade em Jacques Lacan. Para proceder a essa
análise, lançamos mão de uma única proposição em que o autor parece revelar sua intuição
sobre o que viria a formalizar como o desdobramento da mulher em relação à mediação
fálica: “Nas verdadeiras mulheres há sempre algo meio extraviado” (Lacan, 1957-58/1999, p.
202). Essa expressão surge n'O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente, fruto da
conclusão a que o psicanalista chega a partir de seus estudos do texto de Freud sobre o Édipo
feminino. O extravio pulsional de uma verdadeira mulher é o efeito do declínio da vivência
edípica e das vicissitudes do complexo de castração para a sexualidade feminina. Lacan
sugere que, em relação aos destinos pulsionais femininos, haverá sempre um elemento arredio
à amarração significante que, por esse motivo, desgarra-se da cifragem do gozo pelo campo
simbólico, extraviando-se. Ao longo de sua obra, essa proposição ressurge com diversas
roupagens, reafirmando a tese de que nem tudo o que há de pulsional na mulher pode ser
drenado pelo falo. No final de seu ensino, esse elemento pulsional extraviado presente na
sexualidade feminina será formalizado por meio do conceito de não-todo, função que
inscreverá o gozo feminino e seu campo inominável. A partir da proposição lacaniana de que
a mulher não existe − o que existe são somente mulheres − estudaremos, uma a uma, nove
figuras femininas presentes no ensino de Lacan e uma figura feminina analisada pelo
psiquiatra Clérambault. Uma verdadeira mulher surge da irrupção contingente do elemento
pulsional extraviado do simbólico. Em suma, objetivamos apresentar a suposição sobre a
verdadeira mulher e seu extravio como crivo de leitura para descrever as seguintes figuras de
mulher: Dora, Irma, a Jovem Homossexual, Antígona, Medéia, Ysé, Madeleine, a Rainha, a
Mística e Marie D.

Palavras-chave: verdadeira mulher; extravio; gozo; feminilidade; figura.


ABSTRACT

Massara, I. H. M. (2014). The true woman and her mislaid: figure … femininity in Lacan.
Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte.

This thesis aims to investigate femininity’s theme in Jacques Lacan. In order to do so, we take
on examination one sole proposition that reveals what would be formalized, in
psychoanalysis, as the unfolding of women related to phallic mediation. “On true women
there are always something mislaid”, said Lacan in 1958. This quote, found in his Seminary 5:
the unconscious formations, comes as the result of Lacan’s studies on Freud’s clinical texts,
Dora, Irma and The Young Homosexual. The drive’s mislaid of a true woman is the effect of
the Oedipus’s experiencial decline and of the destiny’s of castration complex related to
feminine sexuality. Lacan suggests that in this field, there will be always some element not
incorporated to language and not articulated by the symbolic, during the course of the
relations between the drives and the significant. This particular element is that what, on
feminine sexuality, he calls the “mislaid”. Into Lacan’s works, this proposition is re-stated in
different forms that have in common the psychoanalyst’s conviction that the phallic norm
cannot absorb all the drive’s reality of feminine sexuality. In his late works, Lacan aim’s to
formalize femininity’s mislaid using the concept of pas-tout (something like “not-all”) and
establishes that the female’s drives satisfaction is somehow impossible to be translated in
words. From these late theory’s, Lacan would say as well that the “The woman do not exists”,
there are only women. Here we will study, one by one, ten female figures that were object of
Lacan’s interests, into different periods of his elaborations of femininity’s sexuality (1950 to
1970). The “mislaid” will be the concept that opens an epistemic and aesthetical research
about lacanian approaches to: Dora, Irma, The Young Homosexual, Antigone, Medea, Ysé,
Madelaine, The Queen, The Mystic and Marie D.

Key-Words: true woman; mislaid; jouissance; femininity; figure.


RESUMÉ

Massara, I. H. M. (2014). Une vraie femme et ton égarement: figures de la féminité chez
Lacan. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal
de Minas Gerais, Belo Horizonte.

Cette thèse prétend conduire une investigation sur la féminité chez Jacques Lacan. Pour
procéder à cette analyse, nous utilisons une seule proposition dans laquelle l’auteur semble
révéler son intuition sur ce qu’il viendrait à formaliser sur le déroulement de la femme par
rapport à la médiation phallique. « Une vraie féminité a toujours un peu aussi une dimension
d’alibi. Les vraies femmes, ça a toujours quelque chose d’un peu égaré.’ (Lacan, 1958/1998,
p. 33). Cette expression surgit dans Le Séminaire, livre 5 : les formations de l’inconscient,
résultat de la conclusion à laquelle aboutit le psychanalyste, à partir de ses études du texte de
Freud sur l’Oedipe féminin. Le déroulement pulsionnel d’une vraie femme est l’effet du
déclin du vécu oedipique et des vicissitudes du complexe de castration pour la sexualité
féminine. Lacan suggère que par rapport aux destins pulsionnels féminins il y aura toujours
un élément farouche à l’enchaînement signifiant qui s’éloigne ainsi du chiffrement de la
jouissance vers le champ symbolique, tout en s’égarant. Tout le long de son oeuvre cette
proposition ressurgit de manières diverses, en réaffirmant la thèse selon laquelle pas tout ce
qu’il y a de pulsionnel chez la femme peut être drainé par le phallus. À la fin de son
enseignement, cet élément pulsionnel égaré présent dans la sexualité féminine sera formalisé
au moyen du concept de pas-tout, fonction qui inscrira la jouissance féminine et son champ
innommable. À partir de la proposition lacanienne, selon laquelle la femme n’existe pas – il
n’existe que des femmes – nous étudierons une à une les neuf figures présentes dans
l’enseignement de Lacan et une figure féminine analysée par le psychiatre Clérambault. Une
vraie femme surgit de l’irruption contingente de l’élément pulsionnel comme crible de lecture
pour décrire les figures de femmes suivantes : Dora, Irma, la Jeune homosexuelle, Antigone,
Médée, Ysé, Madeleine, la Reine, la Mystique et Marie D.

Mots-clés: vraie femme; égarement; jouissance; féminité; figure.


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1. INTRODUÇÃO

1.1 - Objetivos

O objetivo principal desta pesquisa é compreender o tema da feminilidade no percurso do


pensamento de Jacques Lacan, utilizando como crivo de leitura uma proposição do próprio
autor acerca do assunto. Trata-se da expressão proferida pelo psicanalista no final dos anos
1950: “Nas verdadeiras mulheres há sempre algo meio extraviado” (Lacan, 1957-1958/1999,
p. 202) ou, no original: “Les vrais femmes, ça a toujours quelque chose d’un peu égaré”
(Lacan, 1957-1958/1998, p. 33). Na tradução livre que fizemos do francês, a frase aparece um
pouco diferente, embora conserve o mesmo sentido: “As verdadeiras mulheres têm sempre
alguma coisa um pouco extraviada”.
Essa expressão, eleita como chave de leitura para a pesquisa, será confrontada com o
relato de uma figura feminina analisada pelo psiquiatra Gaëtan de Clérambault em 1908, a
paciente Marie D., e outros nove relatos de figuras femininas escolhidas ao longo de três
décadas de ensino lacaniano, entre os anos de 1957/1958 e 1972/1973: Irma, Dora, a Jovem
Homossexual, Antígona, Ysé, Madeleine, Medéia, a Rainha e a Mística. Trata-se de
conjecturar em que medida podemos chamar essas figuras femininas de ‘verdadeiras
mulheres’ e qual o possível extravio de cada uma delas em relação ao Édipo, ao falo ou ao
campo simbólico. Analisaremos as consequências do complexo de Édipo e do complexo de
castração para a sexualidade feminina e, a partir daí, recolheremos os efeitos dessas operações
para descrever o que se produz para além da metáfora paterna, numa extra-via suplementar,
no caso da mulher. Ao fazê-lo, pretendemos, em última instância, avaliar quais seriam os
efeitos da proposição sobre o extravio para o desenvolvimento do tema da feminilidade em
Lacan.
Nossa hipótese é de que, nas mulheres chamadas de verdadeiras, por exibirem algo além
da metáfora que institui o falo como estruturante do inconsciente, há sempre um elemento
extraviado, não circunscrito pelo simbólico, que sobrevive à passagem pelo Édipo. A posição
feminina contemplaria esse extravio, já que o falo não drena tudo o que há de pulsional em
uma mulher. Nossa aposta é de que a melhor maneira de apreender esse movimento é
13

apontando, se possível, em cada uma das figuras do feminino, qual seria o elemento arredio à
amarração simbólica. Sendo assim, a feminilidade só poderia ser circunscrita − e a mulher só
poderia existir − através de uma meia verdade, que se traduziria nesse elemento extraviado da
pulsão que não é sempre o mesmo, mas que se apresenta como um índice singular que reflete
o gozo de cada uma.

1.2 - A feminilidade de Freud a Lacan

Sigmund Freud escreve pela primeira vez sobre o mecanismo do recalque no psiquismo
das mulheres no famoso “Rascunho K: As neuroses de defesa (Um conto de fadas para o
Natal)” (1896/1980), ao se referir aos processos e causalidades implicados na formação de
sintomas histéricos. O pai da psicanálise afirma que a doença histérica apresentava como base
constitutiva da neurose uma espécie de processo inconsciente originário muito específico que
ele nomeou de ‘lacuna na memória’. A lacuna se produziria devido a uma experiência de
susto, de desprazer, que é o incidente primário que forma o umbigo do recalque. A existência
de ‘representações irreconciliáveis’, ‘a manifestação de susto’, com a irrupção posterior da
‘lacuna’, antes mesmo dos sintomas histéricos fazerem sua irrupção, seriam os fenômenos
primitivos que dariam início à neurose.
O inconsciente da mulher histérica se estruturaria em torno desse ponto cego, revelando
que a sexualidade feminina contém um elemento pulsional arredio à transcrição estrutural do
sistema psíquico, ou seja, que a histeria seria uma manifestação desse elemento do psiquismo
e do próprio arcabouço corporal que não é regido pelo primado do falo. Algo permanece fora
da função sexual, não subvertido pela libido. O esquema freudiano mostrou que a experiência
histérica se configura por um encadeamento de representações que se erguem em torno desse
campo em branco. A lacuna é um núcleo que se separa da articulação significante da qual o
sujeito emerge como efeito simbólico, após ter passado pelo Édipo e pelo complexo de
castração. Esse elemento inassimilável, umbigo do esquema freudiano, é o próprio núcleo do
sujeito que o simbólico não alcança, arredio à transcrição, contudo sensível ao movimento
pulsional. Ao redor desse núcleo irrepresentável e sem tradução, constituir-se-ia o psiquismo
das histéricas. Sabe-se que nem todas as mulheres são histéricas, embora Freud tenha
14

afirmado que essa neurose é muito mais prevalente nas representantes do sexo feminino
devido à forma e à época de irrupção da cena traumática.
Freud continua a análise da sexualidade feminina em diversos textos posteriores, dentre
eles: “Sobre as teorias sexuais das crianças” (1908), “A organização genital infantil: uma
interpolação na teoria da sexualidade” (1923), “A dissolução do complexo de Édipo” (1924),
“Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica” (1924-1925), “Sexualidade
Feminina” (1931) e “Feminilidade” (1932-1933). Após trinta anos de pesquisa sobre a alma
feminina, trajeto que se estende dos primeiros textos sobre a histeria até “Análise terminável e
interminável” (1937), ele conclui sobre a natureza inassimilável da feminilidade. Acrescenta
que ela era repudiada por homens e mulheres, pois encarnava “o grande enigma do sexo”
(Freud, 1937/1980, p. 287). Após analisar os casos clássicos de suas primeiras pacientes
histéricas, − Dora, Irma, a Jovem Homossexual e tantas outras − Freud conclui sobre as
repercussões psíquicas da passagem da menina pelo complexo de Édipo e pela castração.
Haveria, por parte das mulheres, um desejo muito arcaico e inconfundível: “o desejo da
mulher por um pênis” (Freud, 1937/1980, p. 286). O psicanalista admitia que o repúdio à
feminilidade e o premente desejo por um pênis eram elementos do campo psíquico que
atravessavam os estratos psicológicos até chegar às profundezas, ou seja, a um campo
biológico subjacente. O desenvolvimento sexual feminino seria marcado por uma série de
desdobramentos pulsionais, em contraste com a simplicidade do destino pulsional nos
homens.
Freud havia se deparado com apenas três possibilidades para o destino pulsional de uma
mulher, a partir da inveja do pênis: a histeria, a homossexualidade e a feminilidade
verdadeira. Apenas essa terceira via conduziria a uma “definitiva configuração feminina
normal” (Freud, 1931/2010, p. 379). Para Freud, uma menina poderia ou não se tornar uma
mulher. Uma mulher de verdade seria aquela cuja castração a incitaria a se voltar para o amor
de um homem, inicialmente o pai. Em resumo, ao se ver privada do pênis, a menina poderia
esperar pelo falo faltoso até uma idade curiosamente tardia. Apenas um homem viria a dar a
ela esse pênis, simbolizado na forma de um filho. A terceira saída freudiana rumo à
feminilidade normal é, portanto, a maternidade.
No texto “Significação do falo” (1958), Lacan reafirma a prevalência do complexo de
castração como o pilar sobre o qual se ergue o devir sexual de ambos os sexos. “O complexo
de castração tem uma função de nó: na estruturação dos sintomas, numa regulação do
desenvolvimento, ou seja, a instalação no sujeito de uma posição inconsciente na qual ele não
poderia se identificar com o tipo ideal de seu sexo” (Lacan, 1958/1998, p. 692). Lacan retoma
15

a tese de Freud, mas deixa claro que não é do pênis que se trata, mas do falo, que é um
significante que tem seu lugar no discurso. O falocentrismo do inconsciente está colocado de
Freud a Lacan.
Depois das teses dos textos “Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina”
(1960) e “Significação do falo” (1958), Lacan faz suas proposições mais inovadoras em “O
aturdito” (1972) e n'O Seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973). As conclusões tiradas a
partir da descrição dos destinos psíquicos e sexuais de uma mulher na teoria freudiana
desembocaram no tema da feminilidade como uma figura maior daquilo que Lacan chamou
de não-todo. Na teoria da castração, a resposta que a estrutura inconsciente elabora não pode
dizer o que é a mulher. Mas Lacan vai nos dizer que A mulher não existe, enquanto pensada
pela estrutura edípica. O que existe são as mulheres, uma a uma, e suas saídas particulares
para lidar com a falta que a referência ao falo traz para a inscrição da sexualidade na mulher.
Dizê-las não-todas é reafirmar que existe um gozo feminino não ordenado pela castração.
Jacques Lacan reavaliou os casos clínicos das pacientes de Freud e, ao estudar as fases
pelas quais a criança precisa passar até sair do Édipo, − frustração, privação e castração −
concluiu que, para compreender o desenvolvimento psíquico feminino, seria preciso partir do
fato de que o falo ordena, no nível simbólico, a diferença e as relações entre os sexos.
Contudo, a inscrição da mulher nessa dialética do desejo sexuado e na relação com esse gozo
fálico que ela também tem, produz efeitos subjetivos em relação a esse seu Outro gozo,
suplementar, e propriamente feminino. Em resumo, é a partir dessas elucubrações que Lacan
lança a proposição que analisaremos nesta pesquisa (“Nas verdadeiras mulheres há sempre
algo de extraviado”), bem como uma outra, semelhante à primeira: “toda verdadeira
feminilidade teria sempre um toque de uma dimensão de álibi”1 (Lacan, 1957-1958, p.202).
Para ele, a verdade e seu álibi seriam consequências diretas da relação suplementar que
uma mulher estabelece com o falo. Os destinos femininos possíveis se descortinariam a partir
e em relação ao falo, esse significante que produz a falta em relação à linguagem em todos os
seres falantes. Em relação a essa falta, a mulher teria como opção ser o falo, já que ela não o
possui. “É a ausência do pênis que faz dela o falo” (Lacan, 1960/1998, p. 840). A mulher será,
então, convocada a responder na relação sexuada como objeto. A falta se converteria num

1
“Et cela aussi vous indique em quoi ce qu’on appelle une féminité, une vraie féminité a toujours un peu aussi
une dimensions d’alibi. Les vraies femmes, ça a toujours quelques chose d’un peu égaré (Lacan, 1957-58/1999,
p. 33).
16

efeito que positivaria sua posição sempre em relação a um outro que, nesse caso, é um
homem. Nesse sentido, a mulher será, para o homem, objeto de fantasia, sua verdade, seu
sintoma. Todas essas saídas, assim como as apontadas por Freud, definem a mulher como um
ser diante do Outro, e não em relação a si mesma.
Nos anos 1970, Lacan formaliza a posição feminina não-toda ligada ao significante
fálico. O operador não-todo, formalizado no Seminário mais, ainda, inclui o elemento real
presente no gozo feminino em uma operação lógica que mostra que uma mulher tem um gozo
que se situa fora da linguagem. Ao propor que nem tudo o que há de pulsional na mulher pode
ser drenado pelo falo, Lacan apresenta mais um desdobramento da natureza irrepresentável da
sexualidade feminina.

1.3 - Metodologia

Com relação à metodologia, é preciso explicitar, em primeiro lugar, que não pretendemos
analisar aqui as manifestações da feminilidade pelo diagnóstico clínico de mulheres, ou seja,
não faremos uma análise psicopatológica dos casos estudados. Trata-se, como já foi
explicitado acima, de uma análise da ocorrência das figuras do feminino na obra lacaniana, a
partir da proposição sobre o extravio de uma verdadeira mulher.
Dentre as inúmeras figuras de mulheres que Lacan cita em sua obra, escolhemos analisar
aquelas que estavam presentes também na produção de Freud e/ou que haviam sido
comentadas posteriormente por autores contemporâneos. Dessa forma, cada uma das figuras
de Lacan analisadas aqui possui pelo menos três textos de base para consulta bibliográfica: o
de Freud, o de Lacan, e um terceiro, de autoria de algum psicanalista ou autor da literatura
que tenha se debruçado sobre o tema. A exceção a esse método é a análise da figura de Marie
D., que será tratada segundo os textos psiquiátricos escritos por Clérambault.
Nossa seleção inclui textos em que Lacan aborda casos clínicos de pacientes de Freud,
artigos em que ele analisa personagens da mitologia ou da literatura e textos nos quais
formaliza a posição e o gozo, femininos, a fim de localizar uma mulher diante da referência
17

ao falo. Assim, dentre as figuras femininas que fazem parte do recorte desta pesquisa,
encontram-se tanto mulheres reais quanto personagens fictícias e figuras da lógica lacaniana2.
A escolha que fizemos de analisar figuras do feminino exigiu que nos debruçássemos
sobre o tema da feminilidade em três momentos distintos da obra lacaniana: num primeiro
tempo, em que Lacan se mostra bem freudiano e discute o caso das pacientes de Freud em
relação às elaborações sobre o Édipo e a castração; num segundo tempo, em que ele propõe
tratar o feminino através das figuras mitológicas e de seu gozo transgressor e trágico; e num
terceiro momento, no qual Lacan formaliza a questão do gozo que excede o falo através de
figurações lógicas: a letra e o operador não-todo.
Na década de 1950, o estudo feito por Lacan dos casos clínicos analisados por Freud pelo
viés da estrutura edípica procura definir as consequências psíquicas e as repercussões da
passagem pelo complexo de castração e de Édipo para compreender a sexualidade feminina.
A escolha por Irma, Dora e a Jovem Homossexual segue essa motivação, a saber, investigar
os efeitos clínicos da amarração edípica e as consequências desse fato para o desenvolvimento
pulsional na menina.
Ainda na passagem dos anos 1950 para os anos 1960, pinçamos outras quatro figuras
importantes na leitura lacaniana: Medéia, Antígona, Ysé e Madeleine. Todas elas surgem num
momento em que Lacan começa a introduzir um elemento novo para analisar a clínica
psicanalítica. Os conceitos de das Ding (1959-1960), de objeto a (1962-1963) e de Real
(1955-1956) aparecem para demonstrar como a sexualidade feminina não poderá mais ser
apreendida completamente pelo simbólico, mas contará com a presença de um elemento que
escapa à cadeia significante. Embora o simbólico se erga em torno de das Ding e o objeto a se
desgarre em parte da cadeia significante, ainda assim, eles serão o testemunho de um
elemento irrepresentável dentro da própria estrutura de linguagem.
Nos anos 1970, recolhemos as figuras da Rainha, presente no “Seminário sobre 'A carta
roubada'”, dos Escritos, e em “Lição sobre Lituraterra”, texto do Seminário, livro 18; e a
figura da Mística, Santa Teresa de Ávila, da literatura religiosa no Seminário mais, ainda. A
mulher não encarnará mais a personagem da heroína trágica, capaz de um ato implacável e
mortal, mas formalizará um impasse em relação ao real da sexualidade. As figuras lógicas da
mulher como letra e como não-toda revelam esse momento da obra de Lacan em que se

2
Para maiores detalhes sobre a bibliografia consultada em cada caso, ver quadro esquemático na seção
Apêndice.
18

considera que o elemento que não se pode simbolizar está contemplado no seio da linguagem.
Ou seja, a letra e o operador não-todo são formalizações de um impasse que marca o encontro
do Real com o simbólico.
Por fim, ainda é preciso dizer que mesmo um método que pareça eficiente encontra
contingências que podem desviar o rumo das análises. Nesse sentido, o leitor encontrará
diferenças significativas na forma como os temas do extravio e da verdade surgem em cada
uma das figuras estudadas. Nos casos de Medéia, Antígona, Madeleine, Ysé e mesmo da
Jovem Homossexual, por exemplo, encontramos um extravio radical, ou seja, uma ruptura
com as amarras simbólicas que as conectava à cadeia significante, o que as conduz a um
campo que surge de uma ruptura radical em relação à linguagem. Nessas leituras, vimos a
presença de mulheres que têm posições inflexíveis. Já no caso de Dora e da análise do caso de
Irma pelo sonho de Freud, deparamo-nos com um extravio mais comedido. Não há, aí, um
desgarramento radical, mas apenas um desvio em relação ao Édipo e ao que o saber analítico
poderia descrever. Nos casos de Santa Teresa e da Rainha, já estamos diante de uma
formalização do extravio. Ou seja, não há uma ruptura, mas uma logificação dessa forma da
mulher existir diante da linguagem, entre saber e gozo como letra, e não-toda ligada ao falo,
como no caso da Mística e, de certa forma, de todas as outras.
Foi possível prosseguir com a ferramenta escolhida para abordar tal tema até o fim da
escrita, embora em alguns momentos tenhamos nos deparado com dificuldades em relação à
teoria freudiana sobre a feminilidade e à própria sistematização do tema em Lacan. Em Freud,
não foi possível perceber esse elemento de extravio senão como deslocamentos pulsionais
dentro do desenvolvimento da sexualidade feminina.
A dissecação da proposição lacaniana sobre o extravio de uma verdadeira mulher consiste
em um estudo histórico-sistemático. A mesma frase de Lacan, proferida em 1957/58, será
testada para analisar figuras do feminino que aparecem na teoria lacaniana entre os anos de
1957 e 1973, isto é, do Seminário, livro 2 até o Seminário, livro 20. Além disso, serão
analisados alguns textos dos Seminários, livros 2 e 3, como “O sonho da injeção de Irma”
(1955) e “A questão histérica” (1956), que são anteriores à data da expressão sobre o extravio.
A análise das figuras femininas ao longo de quase três décadas do ensino de Lacan exige
um percurso metodológico duplo: latitudinal e sincrônico, 3 para a investigação em si da

3
A diacronia é o estudo de um tema ou conceito ao longo do tempo, em torno de sua evolução na obra. Já o
estudo sincrônico, é a análise do conceito no contexto em que ele aparece.
19

proposição sobre o extravio; e longitudinal e diacrônico, na medida em que aplicaremos a


mesma expressão lacaniana a cada uma das figuras de mulher escolhidas. Assim, apesar de a
frase estar inserida no primeiro Lacan, não perderemos sua dimensão histórica, pois ela será
revisitada sempre que estivermos analisando cada uma das figuras.
Nesse percurso, ao serem analisadas pelo crivo da frase, cada uma delas nos revelará o
testemunho de sua verdade, enquanto figuras do feminino. Contudo, devemos nos resguardar
da seguinte pretensão: não é possível revelar toda a verdade sobre essas mulheres.
Discutiremos cada uma dessas figuras sabendo que “há algo, o gozo, de que não é possível
dizer se a mulher pode dizer alguma coisa” (Lacan, 1972-73/1985, p. 119). Algo será
revelado, mas, por outro lado, existe um elemento qualquer, desgarrado, que escapa à
formalização, elemento que se sedimenta como um resto da operação de escrita, e desta
escrita especificamente.
A opção metodológica por um estudo ao mesmo tempo sincrônico e diacrônico nos
pareceu a única forma de circunscrever as figuras escolhidas não como a edificação de uma
posição fixa para a mulher, como lugar de uma verdade dada e estabelecida, fundadora de um
campo necessário e universal, mas como possibilidade de interpelar a verdade como um
semi-dizer.
Se a verdadeira mulher de fato existisse e se pudéssemos estabelecer sua essência, não
precisaríamos produzir uma tese para discutir cada uma das figuras que surgem na teoria
lacaniana, uma vez que elas já estariam fixadas em uma verdade absoluta e em um único
destino pulsional possível para o feminino. Logo, enquanto representação da verdade não-
toda do psiquismo, essas figuras existem marcadas por esse elemento pulsional extraviado
que pode surgir no desenrolar do desenvolvimento das relações de cada uma delas com o
campo do desejo e do Outro. Elas ilustrarão, através desse índice fora do simbólico, como, a
partir da via fálica, uma mulher pode, contingencialmente, se deslocar para Outro lugar,
localizado fora do campo demarcado pelo falo.
A repetição de alguns significantes que acompanharam a teoria lacaniana sobre a mulher,
ao longo dos anos, nos forneceu uma pista. Elementos que julgamos importantes se repetem
em momentos distintos, revelando certa ‘essência’ (Lacan, 1972-73/1985, p. 98) da mulher.
Mesmo concluindo que cada uma das figuras deveria ser contada ‘uma a uma’, caso a caso,
para seguir a própria recomendação do autor na compreensão da posição feminina, ainda
assim, para chegar a uma sistematização do tema, foi preciso partir da formalização, em cada
mulher, de uma única verdade, compartilhada por todas, a saber: que uma mulher é sempre
uma meia verdade e que seu destino pulsional pode contingencialmente revelar, no seio do
20

destino pulsional, esse elemento de extravio. A forma como esse índice do extravio surge é
que guarda uma particularidade na história de cada uma, residindo, aí, a singularidade de cada
caso analisado.
No ano de 1958, após averiguar as teses de Freud sobre o complexo de castração para a
mulher, Lacan pressente a existência de um elemento pulsional extraviado na existência
daquelas que ele nomeia de verdadeiras mulheres. Acreditamos que essa não era uma
expressão ingênua, já que o psicanalista a apresenta somente depois de ter analisado uma
vasta literatura freudiana de casos clínicos de histeria e de homossexualidade, como Dora,
Irma, Elizabeth Von R., a Jovem e outros. Além disso, o psicanalista francês acrescenta que
sua conclusão sobre o extravio era uma sugestão para que pudéssemos compreender o curso
do desenvolvimento da sexualidade feminina nas mulheres. No mesmo parágrafo, ele alia a
frase a uma outra, que também está diretamente ligada ao nosso tema e que já reproduzimos
acima: “uma verdadeira feminilidade tem sempre um toque de uma dimensão de álibi”
(Lacan, 1957-58/1999, 202). Ambas as expressões lançam mão de termos que serão
revisitados pela teoria durante muito tempo até o final do ensino de Lacan, como os temas da
verdade, do extravio e o próprio termo mulher.
Em relação ao tema da verdade, ficará claro para o leitor que utilizaremos o conceito em
sua definição n'O Seminário, livro 20: mais ainda, a saber, que a mulher é uma meia-verdade,
por se localizar numa posição não-toda sujeita ao falo. Nesse sentido, são todas verdadeiras
mulheres, porque encarnam o meio dizer entre o gozo que podem extrair da linguagem e um
Outro gozo sobre o qual ‘não soltam uma palavra’. Em todas elas, o encontro com o elemento
extraviado e contingente inaugura o momento de certo silêncio, em que prevalecem os gestos
suplementares, os odores de femina, as tentativas de suicídio, os infanticídios, os encontros
com Deus, a queima de uma correspondência de amor. Esse elemento que se extravia da
cadeia simbólica poderá ser demonstrado e localizado numa segunda via, contingente, que se
desdobra a partir de uma via fálica e necessária.
Vejamos como se estruturará nossa discussão nesta tese. O primeiro capítulo cumpre o
objetivo de situar o leitor em relação ao momento em que surge a proposição de Lacan sobre
o extravio das verdadeiras mulheres e às intenções do psicanalista ao utilizá-la naquele
momento. Os termos extravio, verdade, mulher e figura serão analisados a partir da teoria
psicanalítica, para que seja possível extrair um caminho para compreender as figuras de
mulher.
O segundo capítulo explicita nosso encontro com o texto do psiquiatra Gaëtan Gatian de
Clérambault, A paixão erótica da mulher pelos tecidos (1908), de onde podemos recolher
21

uma das formas de apresentação do extravio feminino no discurso psiquiátrico. Analisaremos


o caso de Marie D., paciente de Clérambault, a fim de demonstrar como o desregramento
pulsional dessa mulher, supostamente histérica, pode ser lido por meio da proposição
lacaniana sobre o extravio.
O terceiro capítulo revisita alguns textos de Freud, entre eles o “Rascunho K: As
neuroses de defesa (Um conto de fadas para o Natal)” (1896/1980), e os principais textos da
obra que versam sobre o tema da feminilidade: “Sobre as teorias sexuais das crianças” (1908),
“A organização genital infantil” (1923), “A dissolução do complexo de Édipo” (1924),
“Feminilidade” (1932-1933), “Sexualidade feminina” (1931). Será feita uma breve análise de
alguns elementos importantes, apontados pela teoria freudiana, que revelam de onde podem
ter partido os princípios da proposição de Lacan sobre o elemento extraviado da sexualidade
feminina. Ou seja, pretendemos mostrar que o pai da psicanálise já havia pressentido, em suas
análises sobre a mulher, a existência do elemento arredio à simbolização, causa dos diversos
desdobramentos e desvios que a teoria sofreu ao tentar compreender a mulher pelo crivo do
Édipo e do Complexo de castração.
O quarto capítulo da tese apresenta as três primeiras figuras femininas de mulheres,
pacientes de Freud, que aparecem nos comentários de Lacan nos Seminários livro 2, livro 3,
livro 4: Irma, Dora e a Jovem Homossexual. Irma será apresentada a partir do “Sonho da
injeção de Irma”, por se tratar de uma representação onírica inaugural da psicanálise. Nesse
texto, é possível vislumbrar a maneira como o desejo de Freud não se engana em relação à
mulher e aos desvios de sua sexualidade. A figura da mulher encarnada por Irma, surge para
Freud em seus devaneios como um ‘continente negro’, impossível de contornar, senão por
meio de fórmulas enigmáticas. Percebe-se que Freud já tinha a intenção de desvelar a verdade
sobre a mulher, embora o próprio sonho aponte para a impossibilidade de fazê-lo por meio do
saber. No caso Dora, Lacan faz uma análise da estrutura histérica e das repercussões psíquicas
da passagem da menina pelo Édipo. Além disso, ele descreve a forma como Dora se posiciona
frente ao próprio corpo e ao desejo sexual e as formas como o amor e a identificação
respondem aos desvios que se produzem no encontro com o Outro. No caso da Jovem
Homossexual, Lacan também analisa a maneira como uma mulher pode se desviar do curso
normativo do Édipo freudiano, tomando uma posição masculina na qual podemos localizar,
na cena da tentativa de suicídio empreendida pela moça, um elemento claramente extraviado.
No quinto capítulo, apresentamos algumas figuras do final da década de 1950 e início da
década de 1960. A primeira delas é Antígona, heroína trágica de Sófocles. Através dela,
revemos a forma como Lacan apresenta o ato de uma mulher que age de forma radical e
22

extraviada para responder a uma falta de lugar que encontra no centro da estrutura da pólis e
da linguagem. A sexta figura é Ysé, a heroína trágica contemporânea de Paul Claudel. Ysé
também apresenta uma forma muito disrruptiva de resposta diante da própria vida e da cadeia
simbólica à sua volta. Ela abandona todas as insígnias fálicas − filhos, marido, casamento −
em troca de um encontro com a própria morte. A sétima figura é Medéia, a heroína da
tragédia de Eurípides. Medéia revela, num ato cruel, como uma mulher pode abrir mão da
própria descendência de filhos em nome de uma ligação visceral e extraviada com um
homem. A oitava figura é Madeleine, esposa do escritor Andre Gide, que também reage de
forma violenta a uma decepção amorosa: queima todas as correspondências de amor e
aniquila o lugar da Dama que ela mesma representava na fantasia de seu amante, para vingar
uma suposta traição.
O sexto e último capítulo apresenta a nona e a décima figuras femininas: a mulher
enquanto Letra e como Não-toda4. Analisaremos a história da Rainha, do conto de Edgar
Allan Poe, e de Santa Teresa de Ávila para demonstrar como essas duas figuras femininas
formalizam uma posição específica da mulher perante a linguagem. As duas personagens
ocupam um lugar próprio em relação à estrutura na qual estão inseridas. Atingem,
contingencialmente, um outro lugar que se extravia do falo, em direção a uma feminização,
no caso da Rainha, e em direção ao nome de Deus, no caso de Teresa de Ávila. Após analisar
a posição feminina em detrimento da metáfora paterna e da estrutura de linguagem, Lacan
conclui, nos anos 1970, que sua posição formaliza um impasse em relação ao Real. A mulher
tem sempre um elemento extraviado em relação ao simbólico, embora esteja ancorada pela lei
da castração.

4
Optamos por grafar as expressões Letra e Não-toda em maiúsculas sempre que estivermos nos referindo às
figuras do feminino.
23

2. O EXTRAVIO DAS VERDADEIRAS MULHERES

2.1 - As verdadeiras mulheres

“A mulher é a verdade é por isso que só podemos semi dizê-la” (Lacan, 1972-
1973/1985, p. 141).

Neste tópico, analisaremos dois dos termos que aparecem na proposição lacaniana acerca
do extravio: as palavras verdadeira e mulher. A palavra verdadeira parece sugerir algum
elemento em relação à forma da sexualidade feminina se apresentar genuinamente; o termo
mulher é uma maneira de predicar aqueles sujeitos que nasceram anatomicamente do sexo
feminino. Contudo, é preciso tomar cuidado quando falamos em verdadeiras mulheres como
se de fato existisse um conjunto universal desse tipo de mulher. Ao qualificar as mulheres
como verdadeiras, Lacan estava se referindo a uma característica muito particular, que
configura um destino pulsional para a menina, após a passagem pelo Édipo.
Os termos citados têm uma ligação direta com as conclusões a que o psicanalista chega
ao revisitar o Édipo freudiano e a teoria da castração, bem como seus efeitos para uma
mulher. Haverá momentos em que esses dois termos, verdadeira e mulher, estarão
diretamente ligados às teorizações sobre a sexualidade feminina em seus desdobramentos
dentro da teoria do significante, já que “o homem, uma mulher, (...) não são nada mais do que
significantes” (Lacan, 1972-73/1985, p. 45). É no bojo das leituras que Lacan faz sobre Freud,
acompanhando o psicanalista vienense em relação à idéia de que o complexo de Édipo e o
significante do falo eram fundantes para o sujeito, que virá sua sugestão sobre esse traço
essencialmente feminino do extravio e sua ligação com a verdade.
A fim de interpelarmos a figura da mulher em Lacan, partiremos de dois termos
importantes para a obra desse autor: verdade, palavra que ganha um estatuto de conceito ao
longo do desenvolvimento teórico de Lacan, e o termo extravio, utilizado como elemento não
conceitual, mas bastante ilustrativo em relação à questão que se pretende abordar. A verdade
e o extravio são termos que testemunham o fato de a mulher ser um sujeito não-todo tomado
pela linguagem.
24

Vislumbramos a relação da mulher com a verdade em muitos momentos da obra de


Lacan. Entretanto, em relação à nossa tese, os mais relevantes estão n'O Seminário, livro 5: as
formações do inconsciente e n'O Seminário, livro 20: mais ainda. A proposição dos anos
1970 de que a mulher é um semi-dizer da verdade é a formalização da ideia, lançada nos anos
1950, de que a mulher de verdade é aquela que se extravia do simbólico. Não pretendemos
fazer um estudo sobre o conceito de verdade, pois isso produziria outra tese. Além disso, em
1958, Lacan não utiliza a expressão verdadeira mulher para desenvolver o conceito de
verdade, e sim para dizer da mulher, sujeito do sexo feminino, e, mais tarde, em 1972-73, para
descrever uma posição feminina que interpela a verdade, em relação ao gozo que se extrai da
linguagem.
A que verdade Lacan se refere ao dizer que em toda mulher de verdade há sempre um
extravio? Faremos alguns apontamentos sobre a relação da mulher com a verdade, para que
seja possível delimitar porquê esse movimento de extraviar-se está diretamente
correlacionado à verdadeira mulher. Nessa proposição, Lacan praticamente nos apresenta uma
forma de existência da posição feminina, ao se referir ao que se passa na relação da mulher
com o significante fálico e com a linguagem, pois é a partir dessas referências que ela é
nomeada de verdadeira e de extraviada.
Sabemos que, no final dos anos 1950, Lacan finaliza a leitura de alguns casos clínicos de
mulheres atendidas por Freud, como Irma, Dora, a Jovem Homossexual e Elizabeth Von R.
Depois disso, n'O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente, Lacan conclui que há
uma consequência irredutível para a menina depois de entrar no jogo de identificações
proposto pelas relações edípicas, e é então que ele formula que “nas verdadeiras mulheres, há
sempre algo de extraviado” (Lacan, 1957-58/1999, p. 202). Após analisar o caso de cada uma
das pacientes de Freud, Lacan traçou, a partir das referências ao complexo de castração, um
fio teórico sobre a sexualidade feminina, e as formas como uma mulher pode processar a
relação com o par parental e sair desse enlace como portadora de uma posição histérica,
homossexual ou como dona de uma “definitiva configuração feminina normal” (Freud,
1931/2010, p. 379), posição em que a mulher e a mãe se equivalem, como sugeriu Freud.
O uso do termo mulher na proposição lacaniana e no título desta tese requer algumas
considerações. No ano em que utilizou o termo, Lacan se referia aos sujeitos do sexo
feminino. Os casos tratados por ele, até então, eram de pacientes cuja anatomia era feminina.
O psicanalista francês estava ciente de que a configuração anatômica não poderia resolver a
posição sexuada de um sujeito e, portanto, que a denominação mulher era precária, mas, ainda
25

assim, optou por utilizá-la em seu ensino, alegando que não haveria outro modo de nomear o
que pretendia demonstrar em relação ao caso clínico de suas pacientes.
Não foi uma simples escolha de Lacan − e tampouco nossa − o uso do termo mulher.
Essa palavra vem cumprir sua função significante nos escritos que versam sobre cada uma das
figuras femininas que iremos analisar nesta tese. Como Lacan mesmo define no Seminário 20,
quando descreve as posições do sujeito diante do gozo fálico: “abreviarei, chamando-os
homem e mulher” (Lacan, 1972-1973/1985, p. 87).
Freud chama Dora, Irma e a Jovem Homossexual de mulheres, enquanto Lacan reforça
que Antígona, Medéia e Ysé são também mulheres. Nesses casos, o uso do termo mulher
pode vir a colocar em discussão o lugar anatômico, mas o que mais nos importa é a posição
que cada uma delas ocupa em relação ao falo. Portanto, perguntar se “o extravio de uma
verdadeira mulher” pode ser encontrado em um homem não nos acrescenta nada de novo,
pois já sabemos a resposta. Acredita-se que um homem pode ter algo de extraviado, sendo,
assim, conduzido à posição de mulher. Entretanto, nosso interesse é compreender o uso do
termo mulher no que diz respeito ao extravio que existe nas figuras que Lacan nomeia de
mulheres. Logo, sabemos que esse extravio é essencialmente prevalente naqueles que, diante
do falo, se desviam para um outro lugar, não simbolizável.
Em alguns textos dos Escritos, como “Significação do falo” (1960) e “Diretrizes para um
congresso sobre a sexualidade feminina” (1958), e em outros subtítulos do Seminário, livro 5:
as formações do inconsciente (1958), como “A metáfora paterna” e “A menina e o falo”,
Lacan conclui que a relação com o significante do falo “é de interpretação especialmente
espinhosa na mulher e em relação à mulher” (Lacan, 1958/1998, p. 693). Lança, então, uma
segunda proposição, no desdobramento de sua primeira hipótese, ao concluir a leitura dos
casos clínicos de Freud: “Isso explica porque uma feminilidade, uma feminilidade verdadeira
tem sempre o toque de uma dimensão de álibi. Nas verdadeiras mulheres há sempre algo de
meio extraviado. Essa é uma sugestão que lhes faço unicamente para ressaltar a dimensão
concreta desse desenvolvimento” (Lacan, 1957-58/1999, p. 202, grifos nossos). Conclui-se
que a passagem da menina pelo Édipo pode produzir esse elemento que se extravia da
estrutura proposta. Diante de uma falta do significante do que viria a ser a mulher, pode-se
desviar do falo em alguma medida, como efeito do desgarramento feminino em relação ao
simbólico.
A passagem pelo complexo de castração e o desenrolar do complexo de Édipo
configuram o modo como uma menina se localiza em relação ao gozo, diante da incidência
inconsciente do significante fálico. Mas, entre esses caminhos, que podem se produzir como
26

um extravio do que seria A mulher, percebe-se um estranhamento em relação à ordem


simbólica, em que o falo é o significante por excelência. Mesmo quando Lacan chama a
mulher de “verdadeira mulher”, como se estivesse sugerindo uma essência para o ser
feminino, ele indica seu extravio em relação ao significante do falo. Desde 1958, A verdadeira
mulher parece não existir, pois sempre que, por contingência, ela surge, há algo nela que se
desgarra, ficando sem simbolização. Pode haver, nas histéricas, nas homossexuais e naquelas
que, para Freud, tornavam-se “mulheres de verdade” (1933), um elemento desse extravio.
Nossa hipótese é de que a arquitetura pulsional do sujeito feminino contém esse elemento
extraviado, já que só podemos chegar a reconhecer uma mulher quando algo nela ultrapassa o
falo.
Lacan lança mão de alguns termos teoricamente muito importantes para confeccionar a
expressão sobre o extravio. É preciso averiguar ao que exatamente Lacan estava se referindo
quando diz que esse elemento que excede o simbólico aparece nas mulheres de verdade.
Lacan raramente usa a expressão verdadeiras mulheres e, quando o faz, é para caracterizar
três figuras femininas especificamente: Medéia, Madeleine e Ysé. O psicanalista diz
explicitamente que elas são verdadeiras porque, quando abandonadas ou contrariadas,
colocam fim a elementos simbólicos preciosos para o desejo de seus homens. Vejam que o
extravio e o tema da verdade estão relacionados à ligação com o parceiro, com a lei e com a
cadeia simbólica em questão. Além de destruir algo simbolicamente importante para seus
parceiros, elas também aniquilam algo de si, pois o homem lhes serve de conector em relação
à função fálica. Elas abandonam essa conexão e se extraviam para um lugar que parece
sugerir uma ausência completa da operação da função fálica. Gide vê todas as suas
correspondências de juventude serem queimadas por Madeleine, sua esposa, assim como
Jasão assiste aos filhos serem assassinados pela mulher e, ainda, Ysé põe fim à própria vida
em nome do nada.
Nesses três casos, a verdadeira mulher chega às últimas consequências para responder, de
forma cruel, ao abandono de seus homens ou a uma simples ausência de ligação com as
insígnias fálicas. Para elas, a descendência através dos filhos e dos escritos autobiográficos
contidos nas cartas não valem mais que um simples significante. É com desdém que se livram
desses elementos simbólicos que, justamente, inseriam-nas no circuito do desejo como mãe,
nos casos de Medéia e Ysé, ou como mulher do amor cortês, no caso de Madeleine. Lacan
coloca dois lugares possíveis para a mulher existir falicamente: a mãe e a Dama do amor
cortês. Entretanto, é com essa medida fálica que as verdadeiras mulheres parecem romper.
27

Apesar da proposição lacaniana sugerir que a verdadeira mulher é aquela rompe com o
simbólico, ao se dirigir rumo ao pior, nossa hipótese é de que a referência fálica está sempre
em jogo nesses atos desmedidos. Embora uma primeira leitura sugira que as verdadeiras
mulheres estão sempre numa posição toda fora do simbólico, ou seja, sem nenhuma relação
com o falo, veremos, em cada uma delas, seu desdobramento entre significante fálico e
significante que falta ao Outro, entre uma pura essência e uma pura ausência. Nenhuma delas
rompe completamente com a medida fálica, e nem se extravia totalmente do simbólico. Essa
tese tem como hipótese a ideia de que a marca da verdadeira mulher está no fato de sua forma
de existir perante o falo contemplar esses dois lugares distintos, dentro e fora a linguagem.
Por exemplo: Medéia, Ysé e Madeleine estão inseridas na cadeia simbólica e, a partir dessa
inserção, vão além, sem, contudo, perder a dimensão do lugar que ocupam aí, já que é em
função do que possuíam que se rebelam.
Lacan se refere a Ysé, personagem principal de uma das trilogias da fábula dos
Confôntaine, de Paul Claudel, para falar sobre a mulher verdadeira. Diz que Claudel constrói
uma personagem bem feita, uma figura de mulher. Devemos ressaltar a importância dos
termos personagem e figura, pois eles nos ajudam a entender, por outro lado, o uso do termo
verdadeira. Lacan se depara com a impossibilidade de nomear o que seria A mulher,
“verdadeira mulher” ou a “definitiva configuração feminina normal” (Freud, 1931/2010, p.
379), como Freud sugeriu. Por isso, ele se refere a Ysé como uma “verdadeira mulher”, pois a
própria expressão contempla o mal entendido que está subentendido nessa noção de verdade.
A mulher, enquanto um personagem, é marcada por uma série de simbolismos e significantes
que lhe conferem a qualidade de “verdadeira”. Por outro lado, por contemplar esse extravio
em relação ao simbólico, e ocupar um lugar não-todo referido ao falo, participa de uma meia-
verdade. Digamos que ela é um semblante que não engana, pois sabe que nem o simbólico,
nem o imaginário podem contornar o que há de real na sexualidade feminina.
Se ele as chama de ‘verdadeiras’, presumimos que poderia já haver aí uma intuição de
que a mulher só pode encarnar a figura da verdade enquanto um semi-dizer. A confirmação de
que a expressão lacaniana “verdadeira mulher” já contemplava um lugar fora do simbólico
vem em 1960, quando Lacan afirma que nem tudo o que há de pulsional na mulher é drenado
pela medida fálica. Isso significa que a mulher é verdadeira na medida em que mostra esse
lugar não-todo da verdade.
N'O Seminário, livro 20: mais ainda (1972-73), Lacan formaliza essa posição,
concluindo que a mulher é a verdade. A verdade que se procura com a mulher, a verdade que
se confessa com ela diz respeito ao gozo: “A mulher é a verdade. E é por isso que só podemos
28

semi-dizê-la” (Lacan, 1972-73/1985, p. 141). Mais uma vez, essa indicação leva a acreditar
que, ao tornar a letra de gozo de cada uma dessas mulheres representada em uma figura, pode-
se dizer que elas são não-todas. Não há, nos escritos dessa tese, a pretensão de arrancar de
cada uma delas um testemunho completo sobre a verdade de seu gozo, mas de perceber esses
limites entre o que pode ser escrito e o que não se simboliza. Veremos que, ao acompanhar
Antígona, Medéia, Ysé, a Rainha ou até mesmo a Mística, chegamos a um limite teórico
intransponível que impede a significação por completo dos atos e sintomas de cada uma delas.
Nesse sentido a mulher é o nome do impasse teórico.
N'O Seminário 5, Lacan produz um dos primeiros aforismas sobre a mulher, interpelando
sua natureza em relação à verdade e a um dado elemento de extravio do qual não sabemos
muita coisa, pois não há referências anteriores a esse termo na obra. A proposição recolhida
nos anos 1950 está inserida no contexto próprio ao Seminário, no qual o psicanalista faz
elaborações sobre as consequências da passagem da menina pelo complexo de Édipo e pela
castração. A “verdadeira mulher” foi assim foi nomeada devido à singularidade de sua relação
com a estrutura simbólica. Nessa época, Lacan ainda não fazia nenhuma menção à distinção
entre saber e verdade, nem entre saber e gozo, mas admite que uma mulher de verdade se
desgarra da proposição modelar da função que o Édipo exerce sobre a sexualidade, deixando
restos sem simbolização.
Em 1957-1958, a figura feminina orienta-se no sentido de ser uma “verdadeira mulher
extraviada” simplesmente porque, assim como Freud, Lacan releu os casos das pacientes do
psicanalista vienense pelo viés do campo simbólico, demonstrável pelo Édipo. Entretanto, a
mulher se desviava da proposta freudiana para o Édipo masculino porque não era possível ler
a sexualidade feminina através do registro do falo. A expressão não teria maiores
consequências nessa época, mas seria revisitada anos depois, quando Lacan possa concluiria e
formalizaria a relação da mulher com a verdade, enquanto intermediada pelo gozo e por um
elemento que se desdobra em relação ao simbólico.
Ao longo de seu ensino, a relação da mulher com a verdade aparece algumas vezes nos
Seminários e nos Escritos. No Seminário, livro 10: a angústia, ao formular a relação do
sujeito com a angústia de castração, Lacan propõe que “A mulher no conjunto é muito mais
real, muito mais verdadeira” (Lacan, 1962-63/2005, p. 211) que o homem pelo fato de que
sabe a dimensão daquilo com o que lida no desejo. É aquilo que ela não possui que constitui,
a princípio, o objeto de seu desejo e, por isso, ela é mais real. Essa proposição surge na esteira
da proposição de 1958, quando Lacan afirma que a mulher tem um álibi para procurar o falo
no pai, já que ela nunca o possuiu. A figura dessa mulher mais real e verdadeira do que o
29

homem só se extravia em relação à estrutura do desejo por buscar o que lhe falta e encontrar a
encarnação dessa mesma falta do significante da mulher onde deveria encontrar uma resposta
final. Seu gozo se apresenta envolto em sua própria contiguidade.
No Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse do semblante, a posição da mulher
também está ligada ao tema da verdade: “Para o homem, nessa relação, a mulher é,
precisamente, a hora da verdade” (Lacan, 1971/2009, p. 33). Lacan acrescenta que ela é a
hora da verdade para um homem, na medida em que pontua a equivalência entre o gozo e o
semblante, o que a distancia da relação que o homem mantém com esses mesmos elementos.
Ela demonstra o que há de semblante na relação entre os sexos, pois, sendo esse Outro da
relação, sabe melhor que ninguém o que se mostra como disjuntivo no gozo e no semblante.
Ela é a presença desse algo que ela sabe: que gozo e semblante se equivalem na dimensão do
discurso, mas que são distintos no teste que a mulher representa para seu homem. Ela é a hora
da verdade porque faz o homem deparar-se com a ausência da relação sexual.
No texto “Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina”, publicado nos
Escritos, a sexualidade feminina surge “como um esforço de um gozo envolto em sua própria
contiguidade (da qual toda circuncisão talvez indique a ruptura simbólica)” (Lacan,
1960/1998, p. 744). Para a mulher, o gozo se apresenta de forma desdobrada, dividido em
parte pela referência ao falo e em parte reportado a um lugar fora da linguagem. Entretanto,
esse gozo envolto num movimento contíguo é a parte do gozo da mulher fora do simbólico,
suplementar, e não complementar. Nesse sentido, a perspectiva da sexualidade feminina
permite estabelecer a instância de um gozo não significantizado, extraviado. Do lado dessa
posição feminina extraviada, as mulheres podem estar muito mais próximas do real do que do
simbólico.
No Seminário 20, mais ainda, Lacan (1972-73) barra o A quando propõe a posição da
mulher nas fórmulas da sexuação. Nesse Seminário, a mulher não poderá ser escrita sem
barrar o A, pois não há o A, artigo universal para designá-la. Ele ainda acrescenta que não
existe mulher alguma que não esteja excluída da natureza das coisas, ou seja, da natureza das
palavras, já que ela pode estar extraviada e excluída da linguagem. “Que quer a mulher?
Sendo a mulher a equivalente da verdade?” (Lacan, 1972-73/1985, p. 141). Sendo a
equivalente da verdade, a mulher pontua essa ausência da relação sexual, pois, se o
significante do que vem a ser A mulher falta, é necessariamente porque, na relação com a
linguagem, ela obtém uma resposta sempre faltosa.
Vislumbramos em algumas figuras femininas descritas por Lacan essa operação
empreendida no seio da sexualidade feminina entre falo e ausência. Veremos como Ysé, por
30

exemplo, possui tudo o que uma mulher precisa para ser feliz − filhos, marido, casa − e, ainda
assim, algo lhe falta, algo não contempla seu gozo. Também Medéia, uma vez casada com
Jasão, teve um lar, filhos e uma terra que a acolheu, mas que põe tudo a perder por uma
vingança. Essas mulheres, como verdades, estruturas de ficção, mostram como o semblante
fálico pode ser descartado em razão do gozo que as acomete. A sexualidade feminina liga-se a
esse elemento pulsional que ultrapassa a representação que ela pode vir a possuir na cadeia
simbólica.
No artigo “Mulheres e semblantes”(2010), o psicanalista J. A. Miller lê a ideia de Lacan
sobre as verdadeiras mulheres como a distância que uma mulher pode manter da posição de
mãe. Ele acredita que algo do gozo feminino ligado à sexualidade da mulher ultrapassa o que
há, nela, de mãe. Segundo Lacan, a veracidade que a mulher ocupa na posição de mãe
escancara a ambiguidade de sua relação com o falo, pois, se esse significante se presta muito
bem a responder como objeto no lugar onde o desejo está em jogo, sua relação com algo
primitivo e real não lhe reassegura uma saída. A mãe demonstra essa ambiguidade porque,
embora Freud tenha acreditado que o filho lhe serviria como falo, é exatamente porque seus
anseios não se esgotam nesse objeto que ela também poderá se extraviar, como fez Medéia.
No subtítulo “A menina e o falo” (1958), no Seminário 5, Lacan não se esquiva de expor
ao leitor as contradições e dificuldades com as quais nos deparamos na prática da clínica
feminina. Ele apresenta o ponto chave do impasse em relação à sexualidade feminina quando
aborda a referência ao falo, pois é o falo enquanto significante que dá a razão do desejo
(Lacan, 1958/1998, p. 700). Trata-se de analisar mais profundamente a dificuldade encontrada
por Freud em relação à fase fálica na mulher, ou, mais precisamente, “a posição fálica”
(Lacan, 1957-58/1999, p. 280). Nesse texto, coloca-se em questão a relação do sujeito com o
desejo, com o Outro e seus significantes, para que a função do falo seja localizada na dialética
do desejo para a mulher. A conclusão a que Lacan chega sobre o extravio de uma mulher está
diretamente ligada às consequências da fase fálica para a menina.
A ideia de que a feminilidade tem uma dimensão de álibi parte do pressuposto de que
buscar pelo falo ou por algum objeto que o substitua é legítimo no caso da mulher, já que ela
não o possui. Se uma mulher não tem o objeto que, de saída, lhe falta, não há nada mais
compreensível do que os desvios que se produzem no curso de seu desenvolvimento em razão
dessa falta e em consequência dessa busca. Se, por um lado, o complexo de castração põe
termo ao Édipo do menino, para a menina, inicia-se aí uma busca eterna para contornar essa
falta. Os extravios ocorrem no momento em que, ao se deparar com a castração, a menina se
debate para achar uma solução para sua sexualidade.
31

Acompanharemos, agora, o modo como o autor avança em seu ensino para tentar
relacionar a figura da mulher com a verdade, até formalizar que a mulher e a verdade são não-
todas sujeitas ao falo. “Sempre digo a verdade: não-toda, porque dizê-la toda não se consegue.
Dizê-la toda é impossível. Materialmente: faltam palavras. É por esse impossível inclusive
que a verdade tem a ver com o real” (Lacan, 1973/2003, p. 508).
A mulher está em posição de questionar os semblantes, enquanto relacionada ao conceito
de verdade, pois a verdade tem sua estrutura de ficção, que é distinta do lugar do saber. Nesse,
ela será sempre um semi-dizer, extraviada em relação ao testemunho que pode dar de seu
gozo que não está todo inscrito pelo simbólico, pois está sempre, segundo Lacan, “un peu
égaré” (Lacan 1957-58/1998, p. 33).

2.2 - Uma figura de mulher

“Uma coisa pictórica é, do ponto de vista do sonho, uma coisa passível de ser
representada” (Freud, 1900/1999, p. 323.)

A ideia de abordar a mulher através do tema da figura nos pareceu um bom método, já
que a figurabilidade foi um termo empregado por Freud (1900) na Interpretação dos Sonhos
para designar a maneira como o inconsciente confere uma forma capturável a determinado
conteúdo, a fim de exibi-lo na linguagem onírica. Nesse sentido, Freud desenvolveu uma arte
da interpretação que consistia em extrair (darstellen) do minério bruto das associações o
metal puro dos pensamentos recalcados. Freud acreditava que o feminino era o recalcado. “A
função repressora, portanto, seria sempre um impulso pulsional masculino, e o recalcado, um
impulso feminino” (Freud, 1919/1980, p. 250). Nesse ponto, Freud buscava mais do que a
figuração do feminino, mas a representação da mulher como se ela existisse de fato e só não
emergisse em decorrência da força do recalcamento.
A operação de figurabilidade torna certos conteúdos apreensíveis sensorialmente, na
forma de imagens acústicas, olfativas, gustativas e, acima de tudo, visuais. A darstellen5 é “a
constituição originária e inicial das imagens” (Hanns, 1996, p. 398). Nesse sentido, o termo é

5
Poderíamos traduzir darstellen como: figurar, tornar visualizável.
32

muito diferente de vorstellen6, que pressupõe a evocação de ideias a partir de imagens já


constituídas.
O termo vorstellung guarda uma relação direta com a esfera pulsional. As vorstellungen
estão interligadas a uma extensa malha de ideias e imagens e podem estar investidas de afetos
e energia. “Ao ligar-se a uma vorstellung é que a pulsão se faz representar” (Hanns, 1996, p.
399). Nesse sentido, ela é a representação máxima do elemento pulsional na esfera
consciente. Contudo, essa não é uma forma possível de apreensão para as figuras femininas,
pois não há representação possível para figurar o feminino na esfera simbólica. Nesse sentido,
algo desse gozo feminino ligado ao elemento pulsional não poderia ser representado nem
mesmo por meio da vorstellungen.
Abordar cada uma das mulheres como figuras é uma estratégia para apreender nosso
objeto, já que o tema da figurabilidade revela também esse movimento de construção
primordial do objeto por vias sensórias, ou seja, “todas as sensações podem ser convocadas”
(Hanns, 1996, p. 384). As figuras de mulher se encaminham para o mesmo destino da
encenação produzida pelas figuras presentes no sonho: as imagens oníricas apresentam um
movimento próprio, que vai além da simples representação, engendrando também algo da
satisfação do desejo. As imagens produzidas através da figurabilidade não são
“representações-representantes, da coisa, mas são a configuração (a forma, a imagem
presentificada e apreensível) da coisa” (Hanns, 1996, p. 385).
Em 1900, Freud anuncia a autarquia absoluta do sonho e a presença marcante da imagem
na arquitetura onírica. É daí que surge o conceito de figurabilidade. Há, no sonho, uma
projeção de imagens, ou seja, de figuras dramatizadas, que são fruto dos trabalhos de
deslocamento e condensação do sonho. Freud utiliza muitas metáforas teatrais quando se
refere à “encenação da figurabilidade – a Outra cena” (Kaufmann, 1996, p. 737) existente nos
sonhos. Ele intui que alguns conteúdos do sonho podem ser transcritos, tornando-se
manifestos, embora outros elementos permaneçam como um umbigo na narrativa. Exemplo
disso será dado no Capítulo V desta tese, no sonho da injeção de Irma: a cena da garganta
aberta da mulher, umbigo do sonho freudiano, que apontava para o enigma da sexualidade
feminina no desdobramento da fórmula da trimetilamina.
Além dos processos de condensação e deslocamento próprios do processo onírico, pode
ocorrer um segundo tempo do deslocamento, que consiste em uma operação em que os

6
Vorstellen pode ser traduzido como: mostrar, exibir.
33

conteúdos sofrem uma modificação, atingindo sua forma verbal, deslocando-se até chegar a
outras formas verbais, mais permeáveis à figurabilidade. No capítulo VI de A Interpretação
dos Sonhos (1900), Freud descreve o trabalho onírico como um conjunto de condições que o
sonho impõe para transformar os pensamentos oníricos no material dos traços de memória,
visuais e auditivos que serão figurados pelo sonho. A experiência do sonhar é um roteiro
ortográfico; mais que um filme, ele é esquemático e fragmentado. O mecanismo da
figurabilidade não faz mais do que transformar algo abstrato em um pensamento concreto e,
por isso mesmo, mais figurável. A exigência de figurabilidade faz com que ocorram
deslizamentos significantes contínuos até que se encontre uma forma verbal que se preste à
figuração do que se quer evocar.

A discussão precedente levou-nos enfim à descoberta de um fator cuja participação na transformação dos
pensamentos do sonho no conteúdo onírico não deve ser subestimada: a saber, a consideração à
representabilidade no material psíquico peculiar que os sonhos utilizam – ou seja, na sua maior parte, a
representabilidade (darstellung) em imagens visuais. Dentre os vários pensamentos acessórios ligados aos
pensamentos oníricos essenciais, dá-se preferência àqueles que admitem representação visual: e o trabalho
do sonho não se furta a esse esforço de remodelar pensamentos inadaptáveis numa nova forma verbal –
contanto que esse processo facilite a representação e desse modo alivie a pressão psicológica causada pela
constrição da ação de pensar. (Freud, 1900/1999, p. 340).

Em resumo, uma expressão insípida e abstrata dos pensamentos oníricos ou de uma


cadeia de associações é substituída por uma expressão pictórica e concreta. Para Freud há
uma vantagem grande nesse tipo de operação, pois um elemento pictórico é do ponto de vista
do sonho, algo passível de ser figurado. Nesse caso, essa forma de apreender uma expressão
abstrata em forma de uma imagem é muito mais rica do que se ela tivesse no sonho ganhado
apenas uma forma conceitual.
O termo representação significa, aqui, dar configuração ou dar forma a algo ainda sem
forma. A palavra figurar ou representar é traduzida no alemão para Darstellung. Esse termo é
usado com diversos significados: “explicar, descrever, apresentar, expor, representar, mostrar,
significar, caracterizar, constituir” (Hanns, 1996, p. 376).
Utilizar o termo figura para qualificar as personagens femininas em Lacan, como foi dito
acima, nos parece interessante do ponto de vista metodológico, já que a ideia da figuração
sempre predispõe o movimento duplo de dar forma capturável e de mostrar o objeto que se
pretende apreender. Há todo um trabalho de criação, de tecelagem em torno da constituição
do objeto e, num segundo tempo, a exibição da imagem que foi constituída.
34

Freud fornece um exemplo simples de um tipo de figuração que surge no sonho


inicialmente como um pensamento abstrato e que, depois, transforma-se em uma figura. Há
uma figuração silenciosa que é um tipo de regressão à matéria prima do sonho, ou seja, à
imagem anterior às palavras:

A sonhadora se viu descendo sobre paliçadas, segurando um ramo florido na mão. Em conexão com essa
imagem ela pensou no anjo segurando um buquê de lírios nos quadros da Anunciação – o nome dela era Maria
- e nas meninas de túnicas brancas andando nas procissões de Corpus Christi, quando as ruas são
decoradas com ramos verdes. Assim, o ramo florido do sonho aludia, sem dúvida alguma, à inocência sexual.
(Freud, 1900/1999, p. 316).

A figura se coloca em encenação; ela é o próprio diretor cênico que atende a uma dupla
exigência entre algo que não encontra representação e naquele elemento que pode ser
figurado. Nesse sentido, Lacan situa de forma pontual a dificuldade da posição feminina em
“Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina” em um desdobramento
localizado entre “uma pura ausência e uma pura sensibilidade” (Lacan, 1960/1998, p. 742). A
expressão presente nos Escritos nos fornece mais uma forma de metaforizar essa espécie de
extravio da figura feminina, que atende a dois campos: ao possível de figurar, enquanto
próprio à castração, e ao impossível de representar presente no elemento pulsional que escapa
ao significante. Entre a pura ausência, que representa a castração e a pura sensibilidade, essa
presença do gozo, diz-se dessa representação impossível da mulher que pode vir a apresentar
essa espécie de extravio que queremos demonstrar como sendo uma qualidade feminina.
Através do método da figurabilidade, é possível tornar visíveis as imagens de mulheres
criadas por Lacan. Trata-se de colocar em forma de imagens algo que ainda está sem contorno
nítido e depois expor a alguém, a um outro. Implica tratar essas figuras de mulheres ao ponto
de torná-las minimamente apreensíveis na dimensão da linguagem, embora sempre escape
algo nesse processo de construção desse objeto a ser apresentado.
A figura, figurabilidade, não é somente uma representação como o é a Vorstellung, termo
que supõe uma substituição possível entre o que é pulsional e o que se apresenta como
representação, no caso o significante. A figura pressupõe algo a mais, ausência e presença,
estando, segundo o dicionário de Henri Kaufmam, em perpétua transformação, mutação e
metamorfose. A figura possui como característica uma plasticidade que não é a mesma em
relação ao significante. Os processos de condensação e deslocamento só fazem sentido no
fundo dessa plasticidade, dessa mudança perpétua. Há um valor dinâmico no processo de
35

figurabilidade. É essa forma de operar com o objeto que nos permitiu lançar mão dessa
designação para encenar as figuras de mulheres neste trabalho.
Já é sabido que a figura não se resume apenas a uma simbolização ou conceituação de
algo. A figurabilidade é um conceito que contribui para o objetivo principal dessa tese por
contemplar a dimensão do movimento, de ausência e presença, pois está em perpétua
transfiguração. A plasticidade do termo figura demonstra todos os impasses que encontramos
em relação a esse tema que se apresenta como um limite à representação.
A figuração como Darstellung é o que procura dar forma capturável e visualizável, no
sentido de constituir primeiramente uma forma para depois expô-la. Ou seja, é pela figuração
que se faz a mediação entre aquilo que ainda se encontra em estado inapreensível e sua
constituição em uma forma. O sentido de Darstellung deixa entrever que algum elemento é
colocado em linguagem apreensível e se dirige ao Outro para explicar e exprimir um
conteúdo. Não há apenas, como no caso da Vorstellung, uma ação de mostrar, invocar,
combinar algo que já habita a dimensão das coisas apreensíveis e representáveis. O termo
Darstellung localiza uma operação que trata de constituir, de produzir uma imagem que ainda
não existe. É da ordem de uma criação.
Nesse sentido, lançar mão da figurabilidade da mulher na obra lacaniana é um método de
tratar o material latente e talvez pulsional sobre a sexualidade feminina de forma a produzir
uma imagem, não sem, contudo, deixar entrever pela própria formulação de cada figura como
cada uma desses destinos pulsionais femininos apresentados se extravia do campo simbólico
em direção a alguma coisa que não se pode representar. O material sobre a mulher será
colocado na dimensão de uma linguagem sensorialmente apreensível. Nesse sentido, como
diria Freud, o trabalho da tese é “refundir o pensamento duro e quebradiço” (Freud, 1900)
sobre o continente negro ou sobre as trevas invioladas do feminino, indicando, assim, uma
forma de figurar minimamente a mulher.

2.3 - Sobre o termo extravio

“Nas verdadeiras mulheres há sempre algo de meio extraviado” (Lacan, 1957-


58/1999, p. 202).
36

Os textos lacanianos sobre os casos clínicos de Freud serão contemplados aqui para
compreender a maneira como a menina passa pelo complexo de castração e, mais
especificamente, pela fase fálica. Nesse sentido, procederemos ao estudo do caso Dora e do
caso da Jovem Homossexual no capítulo V da tese. A partir daí, teremos as repercussões e
conseqüências da fase fálica e do declínio do complexo para a sexualidade feminina. Na
abertura dos trabalhos do Seminário 5, em novembro de 1957, Lacan afirma que levantará
questões sobre a função do significante do falo para o desenvolvimento sexual das mulheres.
Lacan aplicará sistematicamente a idéia do significante às teorias clínicas, submetendo-as
à prova. Apoiando-se nessa tese, o psicanalista levará às últimas consequências a
combinatória do simbólico, em detrimento do que pode significar para o sujeito o imaginário
da castração. A estrutura prevalece como referência e, embora ele retome a teoria da fantasia
pelo imaginário, ela também será emoldurada pelo simbólico, sendo analisada através do
significante. Logo, a própria noção de fantasia será reconhecida como um elemento
significante. “A fantasia inconsciente é desde sempre dominada, estruturada pelas condições
do significante” (Lacan, 1957-58/1999, p. 263).
No final dos anos 1950, Lacan apresenta a verdadeira mulher como extraviada em relação
ao Édipo e à função do pai. A própria teoria do significante e a inserção da menina na
linguagem pela via fálica fazem com que uma mulher exista enquanto ser sexuado de uma
forma bem diferente do homem. Desde Freud, vê-se que o Édipo produz o homem, mas não a
mulher. “É somente por esse ângulo que a mulher aparece na lógica freudiana – um
representante inadequado, de lado, o falo, e em seguida a negação de que ela o tenha” (Lacan,
1968-69/2008, p.). Essa frase surge em Lacan anos depois para reafirmar essa ideia de que há
um impasse no Édipo feminino. São essas distinções que Lacan mostrará dentro das
elaborações sobre a passagem da menina pelas fases que vão do amor à mãe até a suposta
identificação com o pai. Vejamos as consequências que o psicanalista extrai sobre a
sexualidade feminina em sua relação com as figura da mãe e do pai, para descrever isso que
se mostra extraviado na mulher, escapando à simbolização proposta pelo Édipo.
Segundo Lacan, o complexo de castração cumpre uma função normativa e estruturante na
construção das relações do sujeito com a realidade, sendo o instrumento pelo qual um sujeito
assume seu sexo. “O complexo de castração inconsciente tem uma função de nó, na
estruturação dos sintomas, numa regulação do desenvolvimento no sujeito de uma posição
inconsciente sem a qual ele não poderia identificar-se com o tipo ideal de seu sexo” (Lacan,
1958/1999, p. 692).
37

Esse é um fato que persiste, ainda assim, dentro de certa ambiguidade, embora haja uma
objetividade da estrutura e das consequências da linguagem para todo sujeito. Lacan
acrescenta que a existência do complexo edípico não justifica sua existência com nenhuma
finalidade social. O que acontece é que todo sujeito se introduz nessa relação pelo complexo
de castração, o que revelaria uma ligação direta ao corpo. Freud chegou a sugerir um
desconcerto não contingente na sexualidade humana sendo irredutíveis as seqüelas que
resultam Penisneid no inconsciente da mulher. O Édipo como caminho de integração da
posição heterossexual típica é, segundo Lacan, supostamente muito mais simples para a
mulher, mesmo que esse Édipo traga por si mesmo todos os tipos de complicações até mesmo
de impasses no desenvolvimento da sexualidade feminina (Lacan, 1957-58/ 1999, p. 207).
O complexo de castração é o centro desse processo psíquico, em relação ao qual se
relacionam uma série de acontecimentos que podem permanecer mal discernidos para ambos
os sexos. Essa questão é insolúvel por qualquer redução a dados biológicos e a simples
necessidade do “mito subjacente à estruturação do complexo de Édipo demonstra claramente
isso” (Lacan 1958/1999, p. 693). A relação do sujeito com o falo desconsidera a diferença
anatômica entre os sexos e, por essa razão, essa questão permanece, segundo Lacan,
“espinhosa na mulher e em relação à mulher” (Lacan 1958/1999, p. 693).
A fase fálica se apresentará problemática em relação ao desenvolvimento sexual
feminino. Lacan lista três dessas questões: a menina se considera privada do falo e castrada
por alguém que é sua mãe e, depois, seu pai; a mãe é primordialmente provida do falo, ela é
uma mãe fálica para ambos os sexos e a significação da castração só adquire alcance eficiente
na formação de sintomas a partir da descoberta da castração da mãe. Ou seja, todos esses
efeitos estão diretamente ligados ao fato de a mulher ser imaginariamente privada desse falo.
No Seminário 5, no subtítulo “A metáfora paterna” (1957-58), Lacan aborda a estrutura
simbólica e incidência do Édipo como normatizante: “a metáfora paterna concerne à função
do pai, como se diria em termos de relações inter-humanas” (Lacan, 1957-58/1999, p. 166), já
que o pai tem um lugar central no processo de desenvolvimento psíquico. O inconsciente
revela ao sujeito sua posição na trama edípica, através do lugar da lei que interdita o desejo da
criança pela mãe. Esse desejo é reprimido, recalcado, mas continua a produzir seus efeitos
num momento posterior. No caso das meninas, acredita Freud, o desejo pela mãe não é
recalcado inteiramente, pois a função paterna não significantiza por inteiro a sexualidade
feminina, permanecendo sempre um resto da relação pulsional com a mãe. Nesse sentido, a
mulher demonstra o caráter paradoxal, desviante, errático e excentrado da sexualidade
feminina em relação ao significante do falo: “o falo é um significante, um significante cuja
38

função na economia psíquica intra-subjetiva da análise levanta quem sabe o véu daquela que
ele mantinha envolta em mistérios” (Lacan 1958/1999, p. 693).
A lei simbólica introduzida pelo pai se conjuga à essa outra operação que se passa em
relação ao corpo e à maturação genital. Por um lado, produz-se um salto no desenvolvimento
do sujeito, comportando uma maturação biológica; por outro, existe o complexo de Édipo e a
assunção da sexualidade, o que faz com que o homem assuma um tipo viril e a mulher
“assuma certo tipo feminino, se reconheça como mulher, identifique-se com suas funções de
mulher”7 (Lacan, 1957-58/1999, p. 171). A mulher se reconhece enquanto tal diante de um
corpo anatômico e de suas funções simbólicas.
A virilidade e a feminização são termos que traduzem a essência dos efeitos da passagem
pelo Édipo. São elementos correlatos à função do Ideal do eu e à relação com a introdução do
pai, na ligação especular da criança com a mãe. O sujeito se constitui pelas identificações com
o outro e com a forma com que concebe essa lei. É nesse ponto que começam a surgir
questões sobre a forma como uma mulher encontra o caminho para a feminilidade, pois ela
concebe a lei e a ligação com o primeiro outro, a mãe, de forma muito singular. “Aí se assina
a conjunção do desejo, dado que o significante fálico é sua marca, com a ameaça ou a
nostalgia da falta-a-ter” (Lacan, 1958/1998, p. 701). É a lei introduzida pelo pai na sequência
e em relação à castração da mãe que produz as questões em relação à sexualidade feminina.
A principal função do pai no complexo de Édipo é interditar essa mãe. “Esse é o
fundamento e o princípio do complexo, é nesse instante que o pai liga-se à lei primordial da
proibição do incesto” (Lacan, 1957-58/1999, p. 174). Ele estará encarregado de fazer valer
essa proibição, não só com sua presença, mas através de efeitos indiretos sobre o inconsciente
da criança, os quais estão diretamente relacionados à ameaça de castração. Apesar de a
castração estar ligada à articulação simbólica da proibição do incesto, ela se manifesta para os
neuróticos no plano imaginário. Para uma menina, “a ameaça de castração está ligada à
agressão imaginária. É uma retaliação” (Lacan, 1957-58/1999, p. 175), pois ela a apreende
como uma punição que deflagra consequências psíquicas duradouras como, por exemplo, o
encaminhamento de seu amor ao pai, e o que Freud havia descrito como “um desejo
apuradamente feminino” (Freud, 1933/2010, p. 285) de possuir também um pênis.

7
Essa discussão se baseia claramente na releitura que Lacan faz da obra de Freud, e mostra aspectos da cultura
da época. Podemos ver isso pela expressão ‘funções de mulher’.
39

Lacan (1957-58) sustenta que existe uma questão espinhosa em relação à maneira como
Freud introduziu a questão delicada do “Édipo invertido8” (Lacan, 1957-58/1999, p. 176).
Trata-se do papel sempre cambiante e desconcertante desempenhado pelo amor e pela
identificação com o pai. “É ele que proporciona o termino do Complexo de Édipo, seu
declínio numa dialética que se mantém muito ambígua do amor e da identificação como
enraizada no amor” (Lacan, 1957-58/1999, p. 175). Essa inversão que conduz a menina ao pai
se produz sobre uma dialética ambígua, entre amor e identificação, em relação à figura do
progenitor. A identificação está enraizada no amor, fazendo com que esses termos sejam
absolutamente indissociáveis.
No texto freudiano de 1924, “Sobre a dissolução do Complexo de Édipo”, Lacan aponta
para a explicação que Freud nos dá sobre o mecanismo de identificação como a solução do
Édipo. É na medida em que o pai é amado que o sujeito se identifica a ele e encontra uma
resposta final para sua posição sexuada. Essa operação acontece com a composição do
recalque e com uma aquisição do pai como Ideal do eu. Essa figura será introjetada pela
criança, que se transforma, agora, no próprio pai. O menino poderá, se tudo correr bem,
tornar-se um pequeno macho e “na puberdade ele terá seu pênis prontinho e com o
certificado” (Lacan, 1957-58/1999, p. 176). Na relação que se estabelece no Édipo invertido,
trata-se de se fazer amar pelo pai e se colocar numa posição apassivada. Nesse caso, conclui-
se que “fazer-se amar pelo pai consiste em passar, primeiramente, para a categoria de mulher”
(Lacan, 1957-58/1999, p. 177). Essa posição passiva de objeto de amor do outro faz com que
Freud defina o que ele chamou de um “repúdio à feminilidade”. Esse repúdio em ocupar uma
posição apassivada acontece tanto com o homem como com a mulher.
O pai é o operador da proibição e, como consequência lógica desse fato, interdita ao
menino o uso de seu pênis em relação à mãe. Ele o castra e priva o filho da posse dessa
mulher, “intervindo de forma real no que concerne a uma ameaça imaginária” (Lacan, 1957-
58/1999, p. 178). Num segundo tempo, há uma frustração: o pai é o detentor de um direito;
ele não é personagem real, mas simbólico, que intervém frustrando a criança no plano
imaginário concernente ao objeto real, que é a mãe. No terceiro tempo, o pai intervém na
articulação com o complexo de Édipo e, agora, faz-se preferir no lugar da mãe, inaugurando a
função do Ideal do eu que sela o final do Édipo com a identificação.

8
O Édipo invertido, segundo Lacan, é a operação que se passa entre a menina e o pai.
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“A questão do complexo de Édipo invertido e de sua função se estabelece nesse nível”


(Lacan, 1957-58/1999, p. 179). O pai se torna, por sua força ou fraqueza, um objeto preferível
à mãe. A identificação final se dá a partir dessa preferência. É a partir do estabelecimento do
pai como Ideal do eu que se estabelece para a menina a ideia de que ela não tem o falo. A
saída edípica que Lacan chama de normativizadora para a menina leva à conclusão de que não
se tem o falo. As posições de identificação e manifestação de amor para com os progenitores
fazem com que se precipite uma diferença cabal entre meninos e meninas. É aí está calcada a
ideia do extravio da menina em relação ao processo edípico, pois essa é sua singularidade em
relação a operação simbólica. Ela não pode se identificar ao pai para se tornar uma mulher.
Logo, pela lógica das identificações, ela teria um movimento a mais a empreender, já que
precisaria entrar na função fálica e se identificar ao pai, mas não totalmente, pois também
precisará retomar a identificação com a mãe, transformando o pai em objeto de desejo.
Acontece que, em determinado momento, o pai trata de ser o preferido como objeto no
lugar da mãe, podendo surgir, aí, para ambos os sexos, uma identificação com esse homem.
Impõe-se, daí em diante, uma diferença marcante entre as meninas e os meninos em relação à
operação de identificação e ao complexo de castração. No final das contas, acredita-se que
não é nada difícil para uma menina preferir o pai nessa troca, já que ele é o portador do falo
que falta à mãe e a ela própria: “É na medida em que o pai se torna o ideal do eu que se
produz na menina o reconhecimento de que ela não tem o falo” (Lacan, 1957-58/1999, p.
179). Esse encaminhamento da menina para o pai é a saída normativa do Édipo na mulher,
pois ela se reconhece privada de um objeto que realmente não tem.
Ao se dirigir ao pai, a menina admite a privação e se conforma em parte com isso, mas
resta, ainda, o que Freud nomeia de Penisneid e Lacan de “um amargo na boca” (Lacan,
1957-58/1999, p. 179), já que a inveja produz consequências psíquicas amplas e duradouras.
O pai é uma metáfora, o elemento simbólico, o significante que substitui o primeiro
significante introduzido por uma simbolização primária produzida pela mãe. Entretanto,
segundo a tese de Lacan, para a menina, esse elemento não funciona de forma tão eficaz; seu
deslocamento para o pai não conduz a uma introjeção da função do pai como Ideal do eu
como acontece com o menino. O significante paterno tem uma função bem específica para a
menina, mas não produz uma resposta ou uma inteira simbolização da sexualidade feminina.
Em “Os três tempos do Édipo”, Lacan (1957-58) discorre sobre a metáfora paterna, a
função do pai como símbolo ou significante colocado no lugar da mãe e suas repercussões
para a vida psíquica da menina. O bebê se pergunta 'o que quer essa mulher?’ e percebe a
importância do objeto que está mais além dela, o falo. O significante fálico entra nessa
41

relação como um elemento ternário. Ou seja, a criança revela depender da simbolização do


desejo dessa mulher que é a mãe e, só depois, é que se dá a entrada do pai. A partir dessa
simbolização, o bebê desvincula-se da dependência em relação ao objeto materno e algo se
produz, sendo subjetivado num nível primitivo: “Essa subjetivação consiste simplesmente em
instaurar a mãe, como aquele ser primordial que pode ou não estar presente” (Lacan, 1957-
58/1999, p. 188). A partir da simbolização do desejo dessa mulher, podem surgir uma série de
complicações, na medida em que o desejo da criança é o desejo do desejo da mãe.
A criança entende que sua progenitora pode desejar outros objetos no plano imaginário. É
assim que, através da presença e ausência da mãe, a criança antecipa a satisfação dos seus
próprios desejos pelo esboço do movimento do outro. Para além da mãe, há o objeto que entra
na estrutura simbólica, o falo, mas, ainda assim, a progenitora está inserida nessa cadeia da
qual depende para acessar o objeto de seu desejo. O falo se faz necessário pelas vias,
simbólica e metafórica, nesse lugar privilegiado da ordem simbólica, como a posição do
significante paterno. “Aí, se assinala a conjunção do desejo, dado que o significante fálico é
sua marca, com a ameaça ou a nostalgia da falta-a- ser” (Lacan, 1958/1998, p. 701).
O desejo da mãe comporta um para além que só pode ser atingido se mediado pela
posição do pai na ordem simbólica. Esse homem, como aquele que priva a mãe do objeto de
seu desejo, desempenha um papel essencial em qualquer neurose e em todo o desenrolar do
complexo de Édipo. O sujeito se posiciona em relação ao fato de a mãe não possuir o falo, já
que ela é privada do objeto simbólico. “É bastante claro que o pai não castra a mãe de uma
coisa que ela não tem. Para que fique postulado que ela não o tem, é preciso que isso já esteja
projetado no plano simbólico como símbolo” (Lacan, 1957-58/1999, p. 191). Ela é castrada
pelo pai porque a criança a vê como fálica. Quando a menina se depara com a castração da
mãe e das mulheres de forma geral, ela busca satisfazer seu maior desejo de possuir também
um pênis. “Assim, é no plano da privação da mãe que, num dado momento da evolução do
Édipo, coloca-se para o sujeito a questão de aceitar, de registrar, de simbolizar ele mesmo, de
dar valor à significação dessa privação” (Lacan, 1957-58/1999, p. 191).
Na passagem pelo Complexo de Édipo, o sujeito precisa encontrar a privação da mãe no
real, o que exige a simbolização prévia de alguma coisa que ela não tem. Esse é o ponto
nodal, essencial do Édipo (Lacan, 1957-58/1999, p. 191). Acontece que, para a menina, a
simbolização dessa privação precisa sair do plano puramente imaginário, que é a forma como
ela apreende seu corpo e o da mãe, e passar a um segundo tempo, de uma captura simbólica.
Há um momento anterior em que o pai castra a mãe, privando-a de seu objeto. A criança
precisa ultrapassar esse ponto nodal, aceitando a privação na mulher. Nesse caso, o sujeito
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precisa fazer uma escolha no plano imaginário: “a questão que se coloca é ser ou não ser, to
be or not to be, o falo” (Lacan, 1957-58/1999, p. 192). O sujeito é tão passivo quanto ativo
em relação a essa questão, pois sua escolha é parcial, já que não há como dominar o simbólico
em que se insere sua posição sexuada. Exatamente por não possuir um pênis, a menina
descobre que pode sê-lo. Ambos os sexos precisam passar pelo complexo de castração, o que
lhes impõe sempre uma questão em relação à posição sexuada.

Digamos que essas relações giram em torno de um ser e de um ter que, por se reportarem a um significante,
o falo, têm o efeito contrário de, por um lado, dar realidade ao sujeito nesse significante e, por outro,
irrealizar as relações a serem significantizadas. (Lacan, 1957-58/1999, p. 701).

A questão de ter ou não ter é regida pelo complexo de castração, o que supõe que, para se
ter o falo, é preciso ter passado por um momento em que não se tem. Assumir a castração é o
primeiro passo para a assunção do fato de se ter o falo. Esse momento precisa ser transposto,
assim como é necessário que o pai intervenha em algum momento de forma efetiva. A menina
reconhece a privação e, a partir dessa constatação, parte para o encontro com o falo, que será
dado ou encontrado no pai. Daí se desenrola o que Freud acreditava ser, paradoxalmente, a
posição feminina e passiva diante do progenitor − posição um tanto quanto ambígua, pois, no
momento em que o psicanalista afirma que ela se torna uma pequena mulher, é nesse exato
momento em que a menina vai buscar o falo dado pelo pai.
O sujeito aceita ou nega a castração para ocupar o lugar de ser o falo da mãe. No passo
seguinte, a função do pai, esse homem real e revestido de um símbolo, faz sua aparição.
Surge, então, a questão maior em relação à escolha do sujeito: ter ou não, imaginariamente, a
posse do falo.

Esse pai não é necessário para dizer ao menino que ele não pode fazer uso de seu instrumento, exibi-lo e
oferecê-lo a mãe, pois ela mesma o faz no momento em que a criança ainda está num momento muito
próximo a uma identificação imaginária ao falo. A mãe é perfeitamente capaz de demonstrar ao filho o
quanto é insuficiente o que ele lhe oferece (Lacan, 1957-58/1999, p. 193).

Entretanto, não podemos afirmar que tudo se passa da mesma forma na transmissão dessa
mensagem da mãe para a filha, já que ambas são castradas e privadas do falo. A relação que a
menina estabelece com esse significante fornece o sentido da proposição de Lacan sobre o
extravio, quando ele estabelece um desvio para a posição feminina em relação ao simbólico.
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Como vimos, no primeiro tempo do Édipo, a criança busca ser ou não ser o objeto do
desejo materno. Ela se identifica especularmente com um outro diferente de seu ego, com o
objeto distinto, com o qual ela procura se parecer e que satisfaz a mãe. “Essa é a etapa fálica
primitiva, aquela em que a metáfora paterna age por si, uma vez que a primazia do falo já está
instaurada no mundo pela existência do símbolo do discurso da lei” (Lacan, 1957-58/1999, p.
198). A menina também está profundamente identificada com essa posição de falo para a
mãe. Num primeiro tempo, o pai aparece velado ou ainda não aparece, mas isso não impede
que ele exista, já que existe a linguagem. A questão do falo já está colocada em relação à mãe
e a criança precisa situar isso em seu devido lugar. Só num segundo tempo é que as coisas
mudam e o pai surge para mostrar como a mãe não se basta.
No segundo tempo, o pai aparece no plano imaginário como privador da mãe, o que quer
dizer que a demanda endereçada ao Outro chega a outra instância, a da lei. Lacan chama esse
estágio de nodal ou negativo, momento em que a criança se desvincula de sua identificação e
se liga a uma lei devido ao fato de que a mãe é dependente de um objeto que não apenas é o
objeto de seu desejo, mas é um objeto que o Outro tem ou não tem.

A estreita ligação desse remeter a mãe a uma lei que não é a dela, mas de um Outro, como fato de o objeto
de seu desejo ser soberanamente possuído na realidade por esse mesmo outro, a cuja lei ela remete, fornece
a chave da relação do Édipo” (Lacan, 1957-58/1999, p. 199).

O que é decisivo aqui é a palavra do pai, real e potente, que deve servir de lei para a mãe.
Lacan formula algumas questões em relação a essa incidência da lei paterna, que será
introjetada pela menina. Seguindo as conclusões de Freud a esse respeito, afirma que, no caso
da menina, a passagem da identificação à introjeção de uma lei não ocorre de forma completa
e definitiva. “O desfecho do complexo de Édipo é diferente na mulher” (Lacan, 1957-
58/1999, p. 202). Para a mulher, a terceira etapa do declínio do Édipo é bem mais simples,
pois ela vai em busca daquele que tem o que a mãe não pode lhe dar por ser uma mulher
como ela. “É nessa medida que o terceiro tempo do complexo de Édipo pode ser transposto,
isto é, a etapa da identificação na qual se trata de o menino se identificar com o pai como
possuidor do pênis, e de a menina reconhecer o homem como aquele que o possui” (Lacan,
1957-58/1999, p. 175). A menina precisa empreender um passo a mais: fazer com que o pai
passe de objeto de identificação a objeto de desejo. Nesse sentido, há um retorno às
identificações com a mãe.
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A terceira etapa é conclusiva porque dela depende a saída do Édipo. O pai, que aparece
mediado pela palavra da mãe, pode oferecer o falo, pois ocupa o lugar de portador ou suporte
da lei; a posse ou não do falo pela mãe depende da posição do pai. Nesse terceiro tempo, é
preciso que o pai mantenha sua promessa, podendo recusar esse objeto, mas deixando muito
claro que o tem com ele. Logo, o pai intervém no terceiro tempo como aquele que tem e que
produz a falta na mãe, não sendo mais o privador onipotente, mas o potente, no sentido
genital da palavra. A castração passa ao registro real, produzindo uma privação na mãe e no
filho.
É no curso dessas três etapas do Édipo que a menina poderá se desviar, ou melhor, se
extraviar em relação a essa função desempenhada pelo significante fálico e pela função do
pai. Com a identificação ao pai potente, através do Ideal do eu, o Édipo declina para o
menino. “A metáfora paterna desempenha nisso um papel que é exatamente o que poderíamos
esperar de uma metáfora, leva à instituição de alguma coisa que é da ordem do significante,
que fica guardada de reserva e cuja significação se desenvolverá mais tarde”. (Lacan, 1957-
58/1999, p. 201). O menino lançará mão dessa reserva que obtém do Édipo para se identificar
mais tarde com um tipo viril. Nesse sentido, Lacan nos diz que o homem é sua própria
metáfora.
A menina mantém alguma reserva significante, pois vai buscar o objeto do qual está
privada no pai, mas não se satisfaz com o que encontra, já que a sexualidade feminina não
obtém aí a resolução de seus impasses. A proposição lacaniana de que algo se extravia nas
mulheres de verdade se relaciona aos acontecimentos dessa fase. A menina descobre, através
da castração, que não tem o falo e, por isso, precisa passar pelo complexo para transformar-se
em mulher. No declínio do Édipo, ela não precisa necessariamente se identificar com o pai,
nem guardar “esse título de direito à virilidade” (Lacan, 1957-58/1999, p. 202). Embora a
identificação seja uma saída possível, a menina sabe onde está o falo almejado e como ir
buscá-lo no pai. “Isso explica porque uma feminilidade, uma feminilidade verdadeira tem
sempre o toque de uma dimensão de álibi. Nas verdadeiras mulheres há sempre algo de meio
extraviado” (Lacan, 1957-58/1999, p. 202, grifos nossos). A falta do falo forja um álibi para a
menina, pois, desde sempre, ela só vai até o pai ou ao homem para obter o que lhe falta. Freud
vai longe ao nos mostrar como a importância do falo se produz também no centro da dialética
feminina.
É impossível deduzir a função do falo na constituição do sujeito e em sua posição
sexuada, se não tratarmos esse significante como “o significante fundamental pelo qual o
desejo do sujeito tem que se fazer reconhecer como tal, quer se trate do homem, quer se trate
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da mulher” (Lacan, 1957-58/1999, p. 285). Entretanto, o paradoxo com o qual a psicanálise se


depara quando elabora as teses a respeito da sexualidade feminina está posto na afirmação
freudiana, relida por Lacan da seguinte forma: “O que mostra minha experiência é que
também na mulher, e não apenas no homem, o falo está no centro” (Lacan, 1957-58/1999, p.
285). De forma geral, a introdução do sujeito na dialética que lhe permite assumir seu lugar e,
mesmo, uma posição na transmissão dos tipos humanos que lhe permitirá, por sua vez, tornar-
se um homem ou uma mulher, realiza-se devido à existência do falo enquanto “o significante
do poder, o centro, e também aquilo graças ao qual a virilidade poderá ser assumida” (Lacan,
1957-58/1999, p. 285).
A proposição de que o falo está no centro da dialética subjetiva para a mulher lança um
problema. No caso do homem, é possível compreender a relação com o falo, e com o acesso
que ele tem à qualidade de homem, por meio do complexo de castração. Mas Freud se vê
diante de um paradoxo, já que, para a mulher, a fase fálica também se apresenta como
possibilidade, por estar no centro de onde se parte para encontrar sua posição sexuada. A
menina inicialmente se vê provida, assim como a mãe, de um falo, e passa pela fase fálica
como o menino, mas é irremediavelmente privada, por questões estruturais, de fazer uso desse
falo da forma como o homem o faz.
Após a fase fálica, “é preciso que intervenha alguma coisa mais complexa no caso dela
do que no do menino para que ela reconheça sua posição feminina” (Lacan, 1957-58/1999, p.
286). Na menina, a saída da fase fálica é gerada por uma decepção que produz um desvio
natural que faz com que o complexo de Édipo lhe conceda o acesso ao pênis que lhe falta,
“por intermédio da apreensão do pênis do varão” (Lacan, 1957-58/1999, p. 287). A menina
precisa mais do que uma referência fálica para chegar à posição feminina, e essa alguma coisa
a mais de que ela precisa anuncia uma questão que corrobora nossa tese sobre o extravio: o
algo a mais pode ser simbolizado por meio do extravio em relação ao falo. Lacan aponta para
essa constatação quando afirma que toda verdadeira mulher tem algo de desgarrado.
A questão que se apresenta desde o início como irredutível para uma mulher é a seguinte:
a posição feminina não pode se sustentar por coisa alguma, já que esse reconhecimento se faz
pela via de um significante qualquer que falta a ela. Nem mesmo a vagina, que poderia
substituir a função do pênis para a mulher, é reconhecida enquanto sexo. O que fica sem
significação é a vagina enquanto sexo inscrito na significação fálica, mas não sua existência
enquanto órgão biológico. Entretanto, não é possível, por toda sorte de razões, localizar a
evolução da sexualidade feminina no nível biológico. É preciso redirecionar as perguntas a
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uma dimensão simbólica para chegar ao ponto em que Lacan (1972-73) conclui a
especificidade da posição da mulher e o que há nela de não simbolizável.
Freud vislumbra, na decepção da menina diante da falta do pênis, a mola da entrada da
mesma em uma posição feminina. A saída da fase fálica, que a encaminha para a posição
feminina, é um mecanismo natural, que acontece no momento em que o complexo de Édipo
desempenha seu papel normativo, cedendo à menina o pênis que lhe falta na fantasia e que o
pai irá lhe prover. Esse pênis, no entanto, é buscado “no varão, quer ela o descubra em algum
companheiro, quer o situe ou o descubra igualmente no pai” (Lacan, 1957-58/1999, p. 287).
Não é preciso que ela tenha o órgão, mas que o Outro tenha, e que ela possa ir buscá-lo
alhures. Veremos como, no caso de algumas de nossas figuras femininas, há essa relação
direta com o significante fálico no homem, o que culmina num extravio. Medéia e Ysé são
exemplos importantes de mulheres que põem tudo a perder, quando, por um motivo qualquer,
não encontram mais na figura dos homens a conexão com o significante fálico que respondia
a seus desejos.
O desapontamento e a desilusão em relação à fase fálica e fantasística que leva aos
desvios introduz a menina no Édipo. O Penisneid revela-se como operador de articulação
essencial da entrada da mulher na dialética edipiana, pois esse elemento leva a menina a uma
posição feminina. Entretanto, ele mesmo ocupa posições ambíguas, pois Lacan assinala que o
Penisneid apresenta-se sob três modalidades distintas, desde a entrada até a saída do
complexo de Édipo, tal como Freud o articulou em torno da fase fálica feminina.
No sentido fantasístico, o Penisneid “é o anseio, o desejo guardado por muito tempo, às
vezes conservado por toda a vida, de que o clitóris seja um pênis” (Lacan, 1957-58/1999, p.
288). Logo, essa fantasia feminina é, para Freud, irredutível, se se mantém em um primeiro
plano psíquico no desenvolvimento da mulher. Há uma segunda forma de existência do
Penisneid: quando o pênis desejado é o pênis do próprio pai. Nesse caso, o pênis real está no
corpo do pai e é lá que deve ser buscado pela menina. No entanto, “ela é frustrado nisso tanto
pela proibição edipiana quanto em razão da impossibilidade fisiológica” (Lacan, 1957-
58/1999, p. 288). Existe uma terceira forma de manifestação do Penisneid, que corresponde
ao momento em que a menina sonha em ter um filho do pai, ou seja, “possuir aquele pênis sob
uma forma simbólica” (Lacan, 1957-58/1999, p. 288).
Há três formas de a menina se relacionar com a falta do objeto fálico. Há a frustração
imaginária, em relação a um objeto real, o que ocorre quando a menina anseia obter o pênis
do pai. A privação é uma operação real que se refere a um objeto simbólico e que acontece
quando a mulher espera ter um filho do pai e isso não acontece. É a título de privação que o
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desejo de ter um filho do pai intervém nesse momento evolutivo. A castração se apresenta
quando o objeto imaginário é simbolicamente amputado da menina: a fantasia de ter um pênis
cai por terra quando ela descobre que a mãe também não o tem.
A castração feminina produz seus efeitos quando a menina renuncia àquilo que
conservara a título de esperança − a fantasia de que seu clitóris pudesse se tornar algo tão
importante como o pênis − e se lança em direção ao pai. É nesse momento que a menina
encontra o que é o correspondente estrutural da castração no menino e se desloca para a figura
do pai, a fim de obter o que deseja. Na verdade, há uma simetria entre a menina e o menino,
pois o significante do falo intervém efetivamente numa relação fantasística, na medida em que
essa relação assume um valor de “significante privilegiado na relação edipiana da menina”
(Lacan, 1957-58/1999, p. 291). É no nível da experiência primitiva que o falo entra em cena
na dialética significante.
Freud nos diz que a ligação da menina com a fase fálica se ancora não só na influência
que a falta do pênis tem sobre seu desenvolvimento, mas em um elemento pulsional que, no
caso da mulher, não representa sua posição feminina. A assunção da feminilidade produz-se a
partir de uma libido que é “por natureza ativa” (Lacan, 1957-58/1999, p. 295) e masculina
(Lacan, 1958/1998, p. 703). Chega-se a uma posição feminina e passiva em relação ao pai,
pela frustração que faz brotar do sujeito feminino uma demanda dirigida a ele de que lhe seja
dado algo que realize seu desejo. A menina espera que o pai lhe ampare de forma simbólica
com um filho ou um pênis, significando seu sexo, mas esbarra em outro desapontamento.
Todas as dificuldades que decorrem da entrada da menina na fase fálica existem porque,
antes de ser uma menina, ela é um sujeito cujo desejo só poderá ser significado a partir dessa
libido de natureza masculina. “O falo é tomado numa certa função subjetiva que precisa
desempenhar um papel de significante” (Lacan, 1957-58/ 1999, p. 299). Entretanto, não há o
significante da mulher, mas, assim como o homem, ela tem de se inscrever no mundo do
significante.
O falo está implicado na economia subjetiva da menina, mas é por meio da distância que
surge na relação com essa via fálica que surgem os extravios femininos. Enquanto o menino
sai do complexo de Édipo pelo temor da castração, a menina inaugura sua entrada no Édipo
nesse exato momento. Freud acrescenta, a esse respeito, que não se sabe ao certo se algumas
mulheres saem dessa fase. Para ele, haveria mulheres que permaneceriam eternamente ligadas
à mãe ou a um Édipo irresoluto com o progenitor. Como pensar a posição da menina, se ela
não produz um Ideal do Eu pela introjeção do pai, nem consegue reconhecer o significante da
feminilidade na relação com a mãe? As histéricas interpelam sua feminilidade a partir de uma
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identificação com a posição masculina. Encarnam o papel de homem para poder reconhecer a
mulher no lugar da Outra. Eis aí uma forma de extravio. As homossexuais fazem questão em
relação ao amor devido à frustração da demanda de obter um pênis do pai.
No caso do complexo de masculinidade na mulher, essa tipificação sexual dada pelo
efeito da passagem pela fase fálica e produzida por uma identificação com o pai, estabelece-se
numa relação desviada. Essa vicissitude do complexo de masculinidade já aponta para os
desvios que a mulher pode empreender em relação ao elemento fálico que está em jogo desde
o início. No complexo masculino, a constituição do falo implica numa existência imaginária,
e não real. Vemos que, em diversas fases do desenvolvimento dessa relação, o sujeito
feminino pode sustentar a posse desse pênis, contrariamente a tudo, e mesmo sabendo que não
o possui. Esse é o caso da Jovem Homossexual, como veremos detalhadamente em um dos
subtítulos seguinte. Ela possui o pênis como imagem, mas trata-se no Édipo de receber o
pênis como real. A frustração da demanda dirigida ao pai, que, como detentor do pênis,
intervém no terceiro tempo, é o âmago da privação da menina, já que ela é desalojada da
condição ideal na qual ela e a mãe se satisfaziam anteriormente. É a partir da privação que
ocorre a virada, a mutação que faz com que o que era amor possa se transformar em
identificação, no caso da menina. A identificação com o pai constitui para a menina, ao
mesmo tempo, um problema e um mistério, como diz Lacan.
Quando a menina assume a identificação com o pai, tomando dele elementos da
masculinidade, ela se transforma nesse pai, mas continua não respondendo à pergunta sobre a
feminilidade. Quando identificada ao pai, ostentará o que Lacan chama de significante do
outro, as insígnias da masculinidade (Lacan, 1957-58/1999, p. 315), os semblantes do falo. O
desejo agora se mostra viril, e é ostentado e empregado em relação àquele que assume o lugar
ocupado pela mãe na evolução primitiva do Édipo.
No início, o desejo da menina se orientava para o pai como um “desejo apaixonado, um
apelo propriamente feminino, extremamente próximo de uma posição genital passiva. Fica
muito claro que já não é o mesmo desejo que está presente depois da transformação” (Lacan,
1957-58/1999, p. 307). Depois que ela sofre a decepção em relação ao falo que não pode
obter do pai, há uma transformação de um desejo tipicamente feminino para uma
identificação a uma posição viril. Quando identificada a esse lugar masculino, a menina se
desloca da posição supostamente feminina para outro campo. Entretanto, essa passagem
permanece obscura, porque não há nenhuma outra forma de uma mulher existir no plano das
identificações, senão por meio de certos símbolos viris.
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Quando a menina se identifica com o pai, ela traz à tona o passado das relações
extremante complexas que até então moldaram, desde a origem, suas relações com a mãe: as
frustrações, as decepções e a relação agressiva em sua forma mais original. A mulher
reivindica as insígnias da masculinidade, mantendo sua ligação com os objetos nesse mesmo
modelo. Uma das consequências dessa identificação com o pai é que “na medida em que a
mulher se identifica com o pai, ela dirige ao marido todas as censuras que fazia a sua mãe”
(Lacan, 1957-58/1999, p. 316). Lacan afirma que, assim como acontece com o sol e com a
morte, também não se pode olhar fixamente para o complexo de castração da mulher. Mais
uma vez, o ser de uma mulher precisa ser abordado de forma oblíqua.
A menina estabelece uma relação entre a percepção da castração no corpo da mãe e a
frustração de não ter recebido o pênis que ansiava. Em razão disso, ela recrimina a mãe. Esse
rancor soma-se às frustrações anteriores − ter sido trocada por um irmão, ter sido amamentada
por pouco tempo − e “é desse modo que se apresenta inicialmente na menina, como insiste
Freud, o complexo de castração” (Lacan, 1957-58/1999, p. 362).
Quando a menina se depara com a privação do objeto almejado, instala-se uma crise, pois
surge um impasse e também um momento de decisão: “ou o sujeito renuncia a seu objeto, isto
é, o pai, ou renuncia a seu instinto, identificando-se com o pai” (Lacan, 1957-58/1999, p.
362). Nesse ponto, o psicanalista apresenta duas saídas para a menina no complexo de Édipo,
ambas apontam para o elemento extraviado: ou se identifica com o pai, renunciando a seu
instinto feminino que a conduziu até ele, ou renuncia ao pai e busca esse significante que lhe
falta, além desse homem uma vez desejado.
A mulher encontra seu lugar em relação ao desejo do Outro ao se identificar com o objeto
desejado. “A mulher encontra-se presa num dilema insolúvel, em torno do qual é preciso
colocar todas as manifestações típicas de sua feminilidade, neuróticas ou não” (Lacan, 1957-
58/1999, p. 362). Ao buscar uma satisfação, ela encontra, primeiro, o pênis do homem e,
depois, o filho. Ela só pode encontrar uma satisfação tão intrínseca, tão exigente quanto à
necessidade do falo por vias ou extravias substitutivas. O filho e o pênis são para a mulher
como substitutos, fetiches: “São essas as vias pelas quais a mulher se aproxima do que é seu
instinto e sua satisfação natural” (Lacan, 1957-58/1999, p. 363). Lacan chega a mostrar que a
satisfação do “instinto feminino” é pela via de uma substituição fálica, mas já formula a
hipótese da existência de uma outra via que se abre para o seu gozo fora do falo. A partir daí
mulher surgirá como um ser envolto numa dialética muito sutil, entre falo e ausência.
É quanto a tudo o que está na linha de seu desejo que a mulher se vê ligada à exigência
implicada na função do falo: a de ser de forma variável esse objeto, que é o próprio signo do
50

que é desejado, “por mais Verdrangt (recalque) que possa ser a função do falo é justamente a
ela que correspondem as manifestações do que é considerado feminilidade” (Lacan, 1957-
58/1999, p. 363). O sujeito se exibe como objeto do desejo do Outro e se identifica de
maneira latente e secreta com o falo, sendo o significante do desejo. Paradoxalmente, em
Freud e em Lacan, o que é visto como feminino é a relação que a mulher estabelece com a
falta desse significante fálico.
Pelo simples fato de se propor a ocupar o lugar de objeto do desejo, identificando-se de
maneira latente e secreta ao falo, o significante do desejo do Outro, a mulher situa seu ser de
sujeito “para além do que podemos chamar de mascarada feminina, já que, afinal, tudo o que
ela mostra de sua feminilidade está ligado precisamente a essa identificação profunda com o
significante fálico, que é o que está mais ligado a sua feminilidade” (Lacan, 1957-58/1999, p.
363). A mascarada também é uma forma da mulher se relacionar com o falo, embora seja
nessa posição que ela rejeite uma parcela da feminilidade. Mas mesmo quando procura ocupar
um lugar para além da máscara ou das insígnias fálicas ela está intimamente ligada ao falo
porque ele é sua baliza.
O caminho de uma mulher em direção à relação com o desejo do Outro só apresenta a ela
uma possibilidade: atingir sua satisfação por uma via substitutiva (Lacan, 1957-58/1999, p.
363). Em outras palavras, para Lacan, o pênis simbólico se acha no interior do campo de seu
desejo. É na medida em que no campo de seu desejo a mulher precisa ser o falo que ela
experimenta a Verwerfung da identificação subjetiva. Seu desejo aparece num outro plano,
conduzindo-a a uma profunda estranheza em relação àquilo mediante o qual ela tem de
parecer, já que é ela este, desde sempre, privada desse falo. Ou seja, entre o que ela é, e o que
parece ser, há uma disjunção. Ser o falo em vez de ter o falo, também é uma maneira de
enfrentar essa relação que ela estabelece desde sempre com esse significante.
No Seminário 5: as formações do inconsciente, Lacan utiliza a expressão Verwerfung
para falar da Mulher, introduzindo em relação a um termo da psicose, a foraclusão do
significante d’A mulher, e não do nome do pai. É a primeira vez que aparece essa proposição
Verwerfung d’ Mulher, foraclusão da identificação subjetiva da mulher, aquela que se
produz em S(de A barrado). Ou seja, em relação ao falo, há uma ausência que se produz, o
que vem a corroborar a hipótese de que é em relação a esse significante que surgem formas
diversas de aparição do extravio, já que não há o significante d’A Mulher.
A questão do desenvolvimento da mulher e de sua relação com o registro do simbólico é
um ponto sensível da teoria analítica, diz Lacan. O lugar até onde o psicanalista nos levou, ou
seja, a identificação da menina com as insígnias do pai ou com os significantes do outro, faz
51

essa mulher encarnar posições diversas, deslocando-se ao longo da obra em forma de figuras:
histérica, homossexual, mãe, heroína. A identificação com os significantes do pai, por outro
lado, não faz de uma mulher um homem. Aí reside o problema maior: mesmo que a mulher se
fixe numa posição fálica, a sexualidade feminina comporta uma natureza extraviada e
desdobrada em relação à divisão entre desejo e gozo. É essa a conclusão a que Lacan chega
em 1972-73, n'O Seminário, livro 20: mais, ainda, ao formalizar o operador não-todo.
52

3. UMA MULHER E SEU EXTRAVIO POR CLÉRAMBAULT

“Esse tipo de fetichismo era uma expressão bem menos elaborada, certamente
bem menos adoradora, do tipo de amor feminino” (Clérambault, 1908/2002, p.
110).

Quando Jacques Lacan propôs que “nas verdadeiras mulheres, há sempre algo meio
extraviado”, sua frase reverberou como um dejá vu, pois certamente já havíamos nos
deparado com algo que parecia refletir a mesma hipótese na leitura dos textos escritos pelo
psiquiatra Gaëtan Gatian de Clérambault, professor e mestre de Lacan. Em suas análises
psiquiátricas, Clérambault (1908) diagnosticou suas pacientes como portadoras de uma série
de desregramentos passionais e de desvios próprios de uma estrutura que ele nomeou de um
“temperamento feminino e, consequentemente, muito mais frequente nas mulheres do que nos
homens” (Clérambault, 1908/2009, p. 263). Havia, ali, a intuição de que algum elemento
feminino se mostrava extraviado.
O desejo que inicialmente nos conduziu a escrever alguns artigos 9 sobre o Dr.
Clérambault acabou nos levando, em um segundo tempo, a reconhecer, entre alguns casos de
suas jovens pacientes francesas, uma forma muito particular de posição da mulher diante da
lei e do gozo que denunciava uma espécie de desvio ou extravio, no sentido de produzir
sempre um estranhamento em relação ao discurso médico da época.
Há alguns anos, na época da escrita de minha dissertação de mestrado10, deparei-me com
um livro de curiosidades ímpares, “Passion érotique des étoffes chez la femme” (1908), no
qual Clérambault descrevia, com um encantamento indisfarçável, as façanhas e “perversões”
de quatro mulheres, as quais ele nomeava de “falsas fetichistas” ou “fetichistas assexuadas”
(Clérambault, 2009, p. 258). O relato detalhado de quatro casos psiquiátricos de parisienses
de meia idade que viviam na virada do século XIX, estava descrito nos Prontuários
Psiquiátricos da Enfermaria de Alienados da delegacia de polícia da cidade.

9
Massara, I. H. M. Sobre mulheres e tecidos. Revista Estudos Lacanianos, 2008.
Massara, I. H. M. Clérambault: o gozo feminino. Psicologia USP, 2010.
Massara, I. H. M. Uma perversão feminina. Anais do Colóquio Internacional Crimes delitos e Transgressões,
2012.
10
O título da dissertação é A função do véu no bordejamento da questão feminina na psicanálise.
53

O psiquiatra francês, famoso pela descoberta de uma doença que ganhou o nome de
Síndrome de Clérambault, mais conhecida como erotomania, analisou o caso dessas pacientes
que, dentre muitos sintomas, como cleptomania e masturbação compulsiva, alimentavam uma
curiosa paixão por tecidos.

Nossas doentes, em suma, apresentam uma hiperestesia ao contato da seda, com repercussão sexual. O
gosto do contato em si mesmo e o conhecimento de sua repercussão voluptuosa datam, em duas delas, da
infância ou da juventude. A procura de prazer sexual por esse contato especial superou as relações normais
(Clérambault, 1908/2009, p. 254).

Clérambault passou trinta anos de sua vida na enfermaria psiquiátrica dessa delegacia,
atendendo às ladras de seda, às prostitutas, aos vagabundos e aos delirantes que vagavam pela
Cidade-Luz.
As cleptomaníacas tornaram-se o alvo de sua maior curiosidade, pois, além de
apresentarem um quadro sintomatológico impossível de ser circunscrito pela linguagem
psiquiátrica da época, vertiam uma paixão pelos tecidos da qual Clérambault compartilhava11.
Todas elas eram arrebatadas pelo frescor, pela imagem e pelos barulhos que a seda produzia
ao ser esfregada contra o próprio corpo e, mais especificamente, à região vaginal. “Somente a
masturbação não me dá grande prazer, mas eu a completo pensando no brilho e no barulho da
seda” (Clérambault, 1908/2009, p. 279). Eram presas pela polícia da cidade porque, antes da
masturbação, que executavam em público, roubavam retalhos de sedas nas lojas de Paris.
Tornaram-se a prova viva do desregramento psíquico e sexual e da marginalidade em que se
mantinha a sexualidade das mulheres nessa sociedade.

O contato da seda é muito superior à visão, mas o atrito da seda é ainda superior. Ele excita, você fica
molhada. Para mim, nenhum gozo sexual se iguala a esse. Mas o gozo é grande de verdade quando eu
roubo. Roubar seda é delicioso. Comprá-la nunca me daria o mesmo prazer. A seda me atrai, a das fitas,
das saias, dos corseletes. (Clérambault, 1908/2009, p. 249).

11
Clérambault era também apaixonado pelo estudo dos drapeados árabes. Chegou a se formar em Belas Artes e
foi professor de História do drapeado.
54

Após as detenções, essas pacientes eram encaminhadas à delegacia onde Clérambault


trabalhava e, posteriormente, eram conduzidas ao manicômio mais próximo, de onde saíam,
meses mais tarde, para cometer novos furtos.
Esse desregramento pulsional das mulheres, vislumbrado nas entrelinhas dos relatos das
pacientes de Clérambault, pode ser pressentido como uma espécie de desmedida ou excesso
próprio de uma perversão. “Nossas três doentes apresentam, além de uma perversão
específica que acabamos de descrever, diversas síndromes mais ou menos claras”
(Clérambault, 1908/2009, p. 263). O rigor e a minúcia técnica desse exímio clínico não foram
capazes de circunscrever plenamente esses tantos elementos disruptivos da sexualidade
feminina, embora ele tenha feito muitos esforços para tal. No livro escrito pelo médico em
1908, A paixão erótica das mulheres pelos tecidos, percebe-se com clareza como as histéricas
deixavam transparecer, em seus relatos e na clínica florida de seus sintomas, o que se tornou,
desde sempre, irrepresentável para os discursos científicos da psiquiatria, da medicina e
posteriormente da psicanálise: o extravio de um elemento presente na sexualidade feminina.
“Em nossas três doentes, não encontramos nada igual: elas se masturbam com a seda, sem
mais devaneios, como um gourmet solitário que saboreia um vinho delicado” (Clérambault,
1908/2009, p. 256).

3.1 - Marie D.: uma paixão pela seda

“Casei-me para ter um bonito vestido de seda preta. Depois do casamento,


ainda punha vestidos nas bonecas. Ainda gosto disso. A seda tem um fru-fru, um
cri-cri que me dão prazer” (Clérambault, 1908/2009, p. 278).

O relato do caso de Marie D., uma mulher de meia idade que apresentava uma espécie de
‘fetichismo reduzido’ 12 , foi originalmente publicado nos “Arquivos de Antropologia
Criminal”, em 1908, ao lado de outros três casos semelhantes, que posteriormente foram
compilados por Clérambault em A paixão erótica da mulheres pelos tecidos. Nessa
55

publicação, o médico apresenta uma análise sobre essa espécie de paixão tipicamente
feminina pelas sedas. O termo paixão, utilizado no título, já sugere um típico desregramento
do afeto. A amoralidade, a delinqüência e os desvios morais (Clérambault, 1908/2009, p.
277), como nomeava a psiquiatria, ou os excessos sexuais, podiam ser encontrados também
em casos de homens. Entretanto, foi diante do caso dessas mulheres que a medicina se calou
porque não sabia ao certo com o que estava lidando. Os sintomas eram sempre contraditórios
e não se conseguia estabelecer uma conexão lógica entre eles para enfim descrever uma
doença ou um tipo clínico. “Essas pacientes eram curtas séries na multidão dos casos
disparatados, contingentes e individuais” (Clérambault, 1908/2009, p. 275). É muito
interessante pensar como Clérambault localiza essas mulheres no lugar de uma contingência,
assim como Lacan futuramente fará.
Nascida e criada no interior da França, Marie apresentava uma história familiar
complicada: o pai era alcoólatra e se suicidara, assim como a mãe, quando ela era ainda uma
criança. A moça relatou ao médico que se dedicava com frequência à masturbação, solitária
ou recíproca, quando tinha a idade de sete a oito anos. Sobre essa primitiva compulsão,
lembrava que, quando criança, aos quatro ou cinco anos, costumava entregar-se ao onanismo
solitário e compulsivo, deflagrado depois de uma pitoresca cena na qual brincava de
cavalinho sobre uma cadeira de sua casa: “Eu brincava de papai e mamãe com outra menina
sobre as cadeiras” (Clérambault, 1908/2009, p. 278). Com as pernas abertas sobre a cadeira, a
menina fazia roçar a região genital no tecido do estofo e foi assim que obteve
contingencialmente seu primeiro orgasmo. Nessa cena, ela havia se dado conta de sentir uma
sensação estranha tomar seu corpo, o que parecia ser um primeiro gozo sexual, obtido por
meio da masturbação direta da região genital em contato com o tecido da cadeira. Algo
contingente fixou o prazer às sensações produzidas pelo tecido.
Alimentar por alguns anos essa paixão secreta pela seda fez com que Marie se deparasse
com sérios problemas, já que passou a roubar compulsivamente pedaços de seda nas lojas de
tecidos para se masturbar. “Diversas vezes roubou lojas de departamento. Sua ficha traz 26
condenações” (Clérambault, 1908/2009, p. 279). Entretanto, suas atuações não se
completavam com o roubo, mas se estendiam para um ato suplementar: ela se exibia,
masturbando-se com o tecido em plena loja. Com uma tesoura em punho, entrava nas
importantes lojas de tecidos de Paris e recortava, sem muito cuidado, uma longa nesga de
seda, com a destreza de uma costureira acostumada a tecer vestidos para as mulheres da alta
sociedade parisiense. Pouco tempo depois, com um ar de triunfo e já com o pedaço de tecido
nas mãos, recolhia-se num canto qualquer da loja, onde podia ser entrevista, e, sem pudor, de
56

forma a exibir-se ao olhar alheio, entregava-se à masturbação, lançando mão do corte da seda
que acabara de tomar da banca de tecidos mais próxima. “No final de 1904, entrou em uma
loja de departamento tomada por um verdadeiro impulso. (...) Segurando a ponta do vestido,
me masturbei em plena loja, perto do elevador, onde atingi o gozo máximo” (Clérambault,
1908/2009, p. 279). Depois de experimentar um gozo arrebatador, como ela mesma
descreveu, foi surpreendida pela polícia da cidade. Os guardas e os clientes da loja se
deparavam com uma cena protagonizada por Marie, que incluía a seda e o rastro deixado pelo
tecido, que se estendia da banca de tecidos até o meio das pernas da moça.
Além do hábito de roubar em lojas, Marie relata que nutria um vício pelo álcool. Aos 18
anos, quando ainda morava no interior, tivera um namorado alcoólatra, que furtava sob sua
influência. Ela mesma começou seus furtos nessa época, pegando roupas de cama nas lojas, o
que resultou em sua primeira condenação. Depois disso, iniciou outro relacionamento com
uma colega, também alcoolista e ladra. Ambas viviam se embriagando e roubando, até que
Marie foi presa pela segunda vez. Ela se embriagava com vinho, conhaque e éter, e executava
os roubos quando estava em estado de entorpecimento. “A ideia de beber éter veio-lhe quando
estava empregada como doméstica na casa de um farmacêutico, ao vê-lo administrar éter aos
indivíduos bêbados” (Clérambault, 1908/2009, p. 278). Os furtos pareciam estar sempre
associados ao alcoolismo. O rebaixamento da consciência causado por esse hábito fazia com
que algum elemento sexual pudesse vir à tona, sem o obstáculo da repressão.
A Srta. M. casou-se aos 26 anos, mas, aos 49, época de sua chegada à Enfermaria
Especial, em 1905, já era viúva. Mesmo casada, entregava-se todos os dias à masturbação,
pois as relações sexuais normais não lhe proporcionavam nenhum gozo. Viveu maritalmente
com vários homens, sem contar a relação intermitente que manteve com o marido. Quando se
mudou para Paris, lembra-se de ter vivido com um marinheiro, em 1888, e, depois, com outro
homem sobre o qual relata: “Ele me espancava, ainda gosto dele [...] mas ele não quer mais
falar comigo. Quando me espancava, sentia às vezes um gozo verdadeiro” (Clérambault,
1908/2009, p. 278).

3.2 - Fetichismo: um gozo erótico pelos tecidos

“Os autores clássicos unanimamente dizem que o fetichismo não foi ainda
observado nas mulheres, essa asserção seria inexata se fosse preciso ligar
nossos casos ao fetichismo e se não o ligarmos a ele seu lugar não é mais
assinalado em nenhum local” (Clérambault, 1908/2009, p. 75).
57

A Srta. Marie D. conta que, desde que se casou, sentia uma fixação forte pelas sedas.
“Casei-me para ter um bonito vestido de seda preta. Depois do casamento, ainda punha
vestidos nas bonecas. Ainda gosto disso. A seda tem um frou frou, um cri cri que me dá
prazer” (Clérambault, 1908/2009, p. 278). A forma com a qual a paciente descreve os
barulhos da seda apontam certamente, segundo uma análise psicanalítica, para um gozo que,
nesse caso, parece desgarrar-se do simbólico. Mesmo que se queira atribuir à seda a qualidade
de um fetiche, ela é adorada por si só, e não pelo que evoca no caso dos fetichistas homens,
ou seja, uma pessoa, uma mulher. “O fetiche para a mulher é apenas um fragmento de
matéria, não é uma personalidade” (Clérambault, 1908/2009, p. 281).
Os fetichistas verdadeiros encontram no fetiche características associadas ao corpo da
mulher, e não apreciam o objeto somente pelo que ele é, mas, na maioria das vezes, pelo que
ele representa. A ideia de que as sensações em relação à seda não podem ser descritas nem
colocadas em palavras exatas é o que nos leva a acreditar que um elemento de gozo se
desgarra do simbólico e faz sua aparição fora da simbolização. “A seda acaricia com
suavidade uniforme uma epiderme que se sente sobretudo tornar-se passiva; depois ela revela,
por assim dizer, um nervosismo em suas quebras e seus gritos. Talvez assim se prestasse
melhor à volúpia feminina” (Clérambault, 1908/2009, p. 274).
Em 1901, Marie passou a viver perto de Paris com um trabalhador muito mais jovem que
ela. Nessa época, voltou a se embriagar com frequência. Apesar de ter tido uma série de
relacionamentos, relata sua falta de desejo pelos homens: “Não suporto os homens. Antes de
mais nada, eles são todos parecidos e, depois, agora tenho uma barrigona” (Clérambault,
1908/2009, p. 278). Sua frigidez confessa era mais um dos sintomas prevalentes no quadro
clínico.
Muitas vezes, ao comparecer ao Tribunal, Marie se recusava a responder sobre os
motivos que a levavam a furtar, pois isso a fazia se sentir desconfortável. Em outros
momentos, “confessava suas taras com precisão e mesmo com uma segurança mórbida”
(Clérambault, 1908/2009, p. 280). Na época, a conduta sexual da paciente se mostrava
inadequada, o que ainda se somava à aura de enigma que a sexualidade feminina já
representava para os homens e a medicina daquele tempo. As predileções sexuais por objetos
do vestuário eram encontradas apenas nos fetichistas homens, descritos no livro Psicopatia
sexuais: as histórias de caso (2001), o manual de doenças sexuais de Krafft-Ebing.
Um dos relatos da paciente nos pareceu muito ilustrativo para definir um tipo de paixão
feminina que, na conduta desregrada da paciente, saltou aos olhos de Clérambault. No final de
58

1904, Marie entrou em uma grande loja de departamento, “possuída”, diz ela, por um
verdadeiro impulso. Segue o relato do que se passou nesse dia:

Acabara de tomar éter quando passei pela porta; além disso, havia oito dias não fazia outra coisa senão me
embebedar e praticamente não comia mais. Na seção de seda, fiquei fascinada por um vestido de seda azul
claro: ele se mantinha ereto. Uma seda que não se mantém rígida não me diz nada. Ele tinha uma renda por
baixo. Eu peguei esse vestido de criança, deslizei sob a minha saia, dentro de um grande bolso e, segurando
a ponta do vestido, me masturbei em plena loja, perto do elevador, e dentro do mesmo, onde eu atingi o
gozo máximo. Nesses momentos, minha cabeça incha, meu rosto se torna vermelho, as têmporas pulsam,
não posso mais gozar senão dessa forma. Depois disso, às vezes, eu levo o objeto comigo, às vezes eu o
deixo por lá. No momento em que me surpreenderam, ele estava comigo, cheguei a dar um pontapé nele
(Clérambault, 1908/2002, p. 105).

Há alguns elementos curiosos no relato da paciente. O primeiro deles é o fato de a seda


precisar ser rígida, qualidade prevalentemente desejada. “Aqui, a seda não apenas deve roçar
com delicadeza a epiderme, é preciso ainda que ela tenha corpo” (Clérambault, 1908/2009, p.
282). O segundo é a forma como M. é tomada por um gozo que a arrebata, deixando-a alheia
a si mesma, em plena loja. O terceiro elemento é a ação paradoxal de deixar o objeto roubado
na loja. “Após o uso, o fetiche perde todo o interesse” (Clérambault, 1908/2009, p. 280). Esse
estado de coisas só nos leva a pensar que a relação com a seda tinha um significado, oculto e
inconsciente, e que era parte importante de uma formação de compromisso que mantinha
algum elemento recalcado que não podia atingir a consciência, mas produzia seus efeitos em
forma de sintomas. O roubo, o exibicionismo e a masturbação eram elementos combinados de
uma mesma cena dirigida ao outro.
A paciente acrescenta que a masturbação em si, ou seja, sem o tecido, não lhe causava
prazer, mas que ela a completava pensando no brilho ou no ruído da seda. Algumas vezes, no
momento em que se masturbava, confessou que pensava em homens, ainda que os homens em
si não lhe causassem nenhuma sensação, pelo contrário. A seda era o objeto adorado
sexualmente por suas propriedades intrínsecas: seu brilho e seu ruído eram verdadeiros
afrodisíacos para ela. O tecido é o elemento chave da fantasia e deflagrador do gozo sexual.
Ao se masturbar, ela esfrega a seda na região vaginal e, para completar o cenário da fantasia,
é preciso pensar na seda como se ela representasse um verdadeiro corpo, com qualidades
sexualmente atrativas. Na verdade, a seda não possuía características que remetiam a um
homem, nem muito menos a uma mulher, mas seu corpo representava o próprio amante. “A
mulher procuraria, além da maciez superficial, um tipo de energia interna que lembra o
59

músculo ou qualquer outra tensão” (Clérambault, 1908/2009, p. 284). O quadro é pitoresco,


pois, além do objeto estar presente na cena, ele ainda invade a fantasia através de devaneios.
Os psiquiatras acreditavam que a paciente tinha uma conduta amoral, pois parecia ter
desenvolvido uma hipomoralidade afetiva, não manifestando nenhum pesar ou
arrependimento por seus roubos impulsivos. “Eles simplesmente não deveriam expor suas
sedas, assim eu não pegaria nada” (Clérambault, 1908/2009, p. 279). Essa suposta presença,
na cena histérica, do que Freud descreveu, nos Estudos sobre a histeria, como a belle
indiference parece encontrar um lugar nesse relato. Paradoxalmente, em alguns momentos, M.
parecia não ter mais nenhuma vergonha e contava suas “taras” com precisão e, mesmo, com
uma segurança mórbida que, posteriormente, chocou os médicos do manicômio.
Segundo as análises de Clérambault, suas crises de histeria e sua aptidão para a hipnose
foram clinicamente constatadas pelos médicos que a atenderam no manicômio. Nessa época, a
hipnose era o método utilizado pela psiquiatria para tratar a histeria, embora Marie pareça não
ter se beneficiado desse tipo de tratamento. Pouco tempo depois, Freud também havia
concluído com seus estudos a ineficiência da hipnose para a cura da neurose histérica13. Os
vários médicos que a atenderam fizeram o mesmo diagnóstico e descreveram seu quadro
clínico da seguinte maneira: “Histeria, precocidade sexual, frigidez confessa, delírio do
tocar14, paixão pela seda, amoralidade, delinquência, impulsos cleptomaníacos” (Clérambault,
1908/2009, p. 276).
No hospício de Saint-Anne, outro médico acrescentou às características acima descritas a
menção dipsomania15. Devemos acrescentar que, desde o dia em que se internou pela primeira
vez, Marie foi examinada por quatro médicos além de Clérambault e, também, por um perito
que trabalhava junto ao Tribunal. Eles analisaram e destacaram suas diversas “taras”,
concluindo que ela apresentava um quadro compatível com o fetichismo masculino
verdadeiro. Essa conclusão precipitada seria reavaliada mais tarde por Clérambault, que
definiu seu quadro como um fetichismo inespecífico.

13
Vale lembrar que, enquanto, na França, Clérambault atendia suas pacientes pseudo-fetichistas, em Viena, logo
após voltar da Salpêtriére, Freud estava atendendo as histéricas e já usava a técnica da associação livre. Isso nos
parece um paradoxo, pois a análise de Clérambault não parece levar em conta os estudos que Freud já estava
desenvolvendo há algum tempo. Contudo, sabemos que as teorias freudianas foram rejeitadas no meio médico
por muito tempo.
14
O delírio do tocar seria configurado como uma perversão tátil.
15
Impulso ininterrupto e irresistível de ingerir bebidas alcoólicas.
60

A sintomatologia era muito rica e a associação de muitos elementos que compunham a


história clínica, como cleptomania, fetichismo, histeria, frigidez, alcoolismo, dipsomania e
delírio do tocar, pareciam turvar o quadro mais do que esclarecê-lo, já que tamanha
proliferação sintomática fazia com que o caso de Marie se tornasse impuro e cheio de
contradições. Diz-se impuro, pois os elementos psíquicos presentes não puderam ser
remetidos por completo a nenhuma categoria psiquiátrica que já havia sido reconhecida e
catalogada por essa teoria científica. Logo, o caso permaneceu na ordem do indecidível até o
fim.
O falso ‘fetichismo’, nessa doente, como em outras mulheres, desenvolveu-se sobre um
fundo de frigidez sexual, segundo o relato dos médicos, o que produzia mais um contraste que
mereceria uma análise mais apurada. O instinto sexual nessa frígida desenvolveu-se
precocemente e a masturbação tornou-se um hábito, apesar de ela se sentir indiferente às
relações sexuais. “Entregava-se todos os dias à masturbação. As relações sexuais normais não
lhe proporcionavam nenhum prazer” (Clérambault, 1908/2009, p. 278). A análise de
Clérambault (1908) concluiu que a precocidade e a frigidez, associadas à masturbação,
produziam uma “tríade paradoxal”, que não podia estar associada ao fetichismo verdadeiro.
Pelo menos duas das outras pacientes apresentavam esse mesmo quadro.
Os sintomas referentes ao quadro de falso fetichismo surgiram cedo e a doente, ainda
uma criança, já tinha consciência de sua paixão arrebatadora pela seda16. Quando menina,
Marie tinha uma ligação forte com as sedas e com a própria masturbação, de modo que,
talvez, em razão do encontro contingente desses dois elementos, ela havia encontrado a
posteriori uma maneira muito curiosa de ligar a compulsão pelo onanismo à paixão pela seda.
Talvez a sensação de um orgasmo sentido em tenra idade, ao esfregar a região genital numa
cadeira de tecido, tenha fixado o destino das tendências, nesse caso. “Eu brincava de papai e
mamãe com uma menina sobre as cadeiras” (Clérambault, 1908/2009, p. 278). O encontro,
sempre traumático, com a sexualidade havia sido, de certa forma, contornado ou simbolizado
com aquilo que psiquicamente e materialmente estava à sua disposição, ou seja, a seda17.

16
O professor de Clérambault, o Dr. Garnier, com frequência observava que os primeiros indícios das
perversões sexuais, principalmente no fetichismo, quase sempre remontavam a uma cena da tenra infância.
17
O fato de duas das pacientes de Clérambault serem costureiras, e uma terceira ter uma irmã que também
costurava não nos parece um mero acaso. O trato com os tecidos faziam parte do cenário familiar e eram muito
próximos a uma tarefa que Freud reconheceu como ‘estritamente feminina’: a de trançar e tecer. Isso se torna
ainda mais significativo em um cenário que havia sido tomado pelo discurso da Moda.
61

A paciente abandonou o ato sexual devido à indiferença em relação aos homens,


permanecendo uma “grande masturbadora” (Clérambault, 1908/2002, p. 280). Ela afirmava
que, no momento do onanismo, somente a imagem da seda aparecia em seu espírito, nunca a
de um homem. O retalho de seda, ou mesmo somente a imagem, era a condição prevalente
para o gozo ser deflagrado. O afeto que vertia pelo tecido superava a relação com o outro
sexo. Embora esse dado pareça tipicamente fetichista, ainda havia muitas dúvidas em relação
ao diagnóstico.
Existia uma relação curiosa entre o domínio da seda como objeto encontrado na realidade
e sua representação na mente: quando a seda, presente e real, propiciava o orgasmo, ela podia
desaparecer do pensamento, pelo menos enquanto imagem visual. Ali, uma imagem de
homem aparece, mas não é mais do que um deslocamento, “ela vem complicar como que por
fantasia um estado de alma já completo” (Clérambault, 1908/2009, p. 281). Clérambault relata
que a imagem do homem que surge na hora do ato masturbatório vinha dificultar a análise do
caso, pois Marie pensava na seda e só depois de atingir o orgasmo como um deslocamento da
fantasia que se fixara nas propriedades táteis da seda, podia pensar no homem. Isso de fato
não acontece no caso dos homens fetichistas, pois, neles, o processo da fantasia era “muito
mais frequente, mais intenso e muito mais eficaz” (Clérambault, 1908/2009, p. 280).
Segundo Clérambault (1908), não se pode dizer que a emoção do roubo era, nesta doente,
uma condição necessária ou mesmo coadjuvante do gozo. Ela cometeu com frequência
‘roubos banais’, que não justificam uma maior atenção aos furtos, o que nos leva, mais uma
vez, a pensar que o roubo da seda era, na verdade, somente um álibi.
Depois de amassar e sujar a seda, ao esfregá-la na genitália, descartava-a como um objeto
enxovalhado que não servia mais aos seus propósitos de gozo. O menor sinal de uso e
impureza degradava o tecido, a tal ponto que era impossível usá-lo novamente. Esse detalhe
não teria relevância alguma se não estivesse associado à importância que a paciente conferia
às qualidades da seda em si: era exigido que o retalho fosse bem passado, de seda pura, e que
tivesse cores escuras. Ou seja, deveria ser o mais puro e imaculado possível; a seda precisava
ser simbolicamente virgem. Após o uso, ela perdia todo o valor, pois a fantasia associada
sustentava o lugar de um objeto idealizado. Inicialmente, a seda era cultuada, mas, logo
depois, degradada ao ser tomada como objeto sexual. Nesse caso, a seda está sendo falicizada
pela paciente, e não fetichizada, como os homens fazem com um detalhe do corpo da mulher.
A seda poderia representar, inconscientemente, o lugar dela própria como mulher quando
procurada sexualmente por um homem. Assim como o tecido é arrebatado das bancas, Marie
62

também era tomada pelo marido, a contragosto. Talvez tenhamos aqui uma identificação
inconsciente ao próprio lugar do objeto18.
Para o homem, o objeto de fetiche é conservado após o uso (Clérambault, 1908/2009, p.
262). Desfazer-se do objeto tão adorado, como faziam as pacientes de Clérambault, era algo
paradoxal, incompreensível, e que raramente acontecia em casos de fetichismo. Para essas
mulheres, a seda perdia totalmente o interesse após o uso e era jogada fora. Durante o ato da
masturbação, o objeto não era manejado com raiva, com o intuito de posse sobre a seda, nem
enriquecido com visões intensas, contrariamente ao que se passa com os objetos que servem
aos fetichistas masculinos.
Estes dados resultaram em uma única conclusão: o ‘fetiche’ é, para a mulher, apenas um
fragmento de matéria. É importante frisar que o tecido era completamente objetalizado pelas
pacientes. Ela não substituía de forma alguma o corpo do homem. Os homens fetichistas, ao
contrário, objetalizam a parceira amorosa com a prerrogativa de poder ligá-la ao objeto
fetiche, que consiste, na verdade, num prolongamento do corpo da mulher. Passa-se da
degradação do todo ao detalhe do corpo. A mulher é reduzida a uma parte do corpo que,
tornando-se um fetiche, busca, segundo a teoria freudiana, elidir a castração da mãe. O objeto
encarna a função de um instrumento que serve aos propósitos de gozo. Nunca é adorado por si
só, mas precisa lembrar ou estar associado ao corpo da mulher. No caso das pacientes de
Clérambault, a seda é como um talismã19, um objeto cultuado enquanto causa do desejo que
levaria a mulher ao gozo.
Devido ao fato de Marie pensar e desejar algumas mulheres em sonhos, os médicos
aventaram a hipótese de uma suposta homossexualidade. Entretanto, a homossexualidade
feminina não tem forçosamente ligação com o fetichismo. Pelo menos uma das mulheres
‘fetichistas’ era homossexual e, no entanto, ao se masturbar com a seda, não tinha evocação
de formas femininas. O gozo evocava homens, se é que evocava algo. Todo o relato é ainda

18
Poderíamos proceder a uma análise a partir da psicanálise sobre o fetichismo, mas seria uma digressão longa
demais para os propósitos desse subtítulo. Entretanto, no texto “Diretrizes para um congresso sobre a
sexualidade feminina”, Lacan esclarece a tese sobre a inexistência do fetichismo na mulher, dizendo que: “O
estudo do quadro da perversão na mulher abre um outro viés. Tendo-se levado muito longe a demonstração,
quanto a maioria das perversões masculinas de que seu motivo imaginário é o desejo de preservar o pênis da
mãe, a ausência na mulher do fetichismo que representa desse desejo o caso quase manifesto permite desconfiar
de um outro destino desse desejo nas perversões que ela apresenta. Pois supor que a própria mulher assume o
papel do fetiche é apenas introduzir a questão da diferença em sua posição quanto ao desejo e o objeto” (Lacan,
1960, p. 745).
19
O talismã foi analisado por Clérambault (1908) como uma categoria em que objeto fetiche representava para o
sujeito algo muito precioso.
63

mais interessante quando se percebe que se trata de um gozo inteiramente clitoridiano, ou


seja, “o mais neutro possível” (Clérambault, 1908/2002, p. 110). A explicação residia talvez
no fato de que esse tipo de fetichismo era “uma expressão bem menos elaborada, certamente
bem menos adoradora, do tipo de amor feminino” (Clérambault, 1908/2002, p. 110). A
masturbação, com igual ardor, comporta menos um devaneio ideal do que a
homossexualidade masculina. Ou seja, nas mulheres, a estrutura psíquica aparece marcada por
uma inconsistência digna de nota. A mulher, que, nesses casos, supõe-se fetichista, parece não
levar o fetiche tão a sério, como fazem os homens. Elas não fetichizam a seda, mas falicizam
o objeto-tecido.
Através da encenação com a seda, fisgam os homens, misturando-se ao tecido,
produzindo um “esconde-mostra” por trás do véu sobreposto entre o olhar e o objeto do
fetiche masculino. Nesse caso, as partes do corpo da mulher são o objeto do fetiche, e o tecido
ajuda a compor uma cena perfeita para a fantasia voyerista. Os homens observam a mulher
por detrás do véu. Ou seja, parece que essas pacientes se deram conta, claramente, de que os
homens as observavam, ainda mais quando se tratava de uma conduta tão absurda.
Existe um dado curioso entre os elementos que compõem o cenário desses casos: o fato
de a seda ser rígida. “A seda não apenas deve roçar, com delicadeza, a epiderme; é preciso
ainda que ela tenha corpo” (Clérambault, 1908/2002, p. 110). Devemos observar que Marie
procurava algumas características importantes no tecido, dentre elas, a aparência de rigidez. A
seda do vestido devia possuir firmeza, qualidade que ela venerava, sobretudo, em um retalho.
“Gosto de seda que fica em pé sozinha” (Clérambault, 1908/2002, p. 109). Marie preferia,
inclusive, as sedas negras20, exatamente porque, nessa cor, a característica procurada estava
mais presente do que em outras cores.
Esse dado, de que a seda deveria ter um corpo e aparência de rigidez, apesar de
inesperado, nos parece, no final das contas, muito surpreendente e contundente para
diferenciar tais manifestações nos homens e nas mulheres. Se o homem fetichista procura
matérias indumentárias dotadas principalmente da maciez, prevalecendo, nos relatos clínicos,

20
Talvez, nessa época, as costureiras já soubessem que, numa cartela de cores, a cor preta e as nuances que
apresentam maior pigmentação possuem a propriedade de parecerem mais encorpadas. A gramatura do tecido,
que é o peso encontrado em um metro quadrado de pano, é maior nos tecidos escuros, pois estes permanecem
mais tempo submetidos a altas temperaturas no momento do tingimento e, por isso, tornam-se, como elas diziam,
“mais encorpados”.
64

sobretudo os fetiches por veludo, pelúcia e peles, em contrapartida, as “fetichistas”21 mulheres


sempre procuraram exclusivamente a seda. Todas testemunham amar o ruído e o caráter
quebradiço do tecido. Nessas qualidades, talvez encontrassem não apenas a característica de
um delicado nervosismo, mas também um dos signos da firmeza própria de um corpo
enrijecido. Assim, enquanto o homem procura e exige do tecido maciez e leveza, conjunto de
características bem femininas, a mulher procuraria, além da suavidade superficial, um tipo de
energia interna que lembra um músculo em movimento ou qualquer outra tensão parecida
com um corpo em trabalho.
Uma coincidência tão constante é digna de observação, pois a histeria predispõe a
fenômenos sinestésicos e muitos outros citados, como a frigidez, por exemplo. Ou seja, a
atração pelas propriedades tácteis da seda, e mesmo a fricção do tecido na região vaginal, são
elementos que podem ter sido superestimados pelas características presentes no quadro de
histeria, devido à prevalência da sinestesia22.
Os sintomas que os médicos chamavam de amoralidade e delinquência banal foram
encontrados em pelo menos dois dos outros casos. A toxicomania, a aptofilia23 e cleptomania
eram, segundo eles, a marca de uma “imperfeição da vontade”, segundo os psiquiatras uma
espécie de fraqueza do espírito causada pela degenerescência mental. O fato dos períodos de
toxicomania terem coincidido com os roubos pode nos levar à conclusão de que a
subembriaguez etílica teria favorecido o impulso cleptomaníaco. Mas, segundo os médicos,
esse fato é um fenômeno banal.

3.3 - Soi-même: uma análise psicanalítica

“A seda acaricia com suavidade uniforme uma epiderme que se sente,


sobretudo, tornar-se passiva; depois ela revela, por assim dizer, um nervosismo
em suas quebras e seus gritos. Talvez assim se prestasse melhor à volúpia
feminina” (Clérambault, 1908/2009, p. 274).

21
Grafamos o termo fetichista entre aspas porque, tanto na psicanálise quanto na psiquiatria, não existe a
categoria do fetichismo como estrutura clínica aplicada à sexualidade feminina.
22
A sinestesia é um fenômeno psíquico que se exerce com a intermedição do Sistema Simpático por um
mecanismo semelhante à excitação que produzem certos odores.
23
A aptofilia é um termo genérico aplicável a todas as parafilias caracterizadas pelo fato de o prazer sensual
depender de maneira fundamental do canal sensorial tátil.
65

A tentativa de fazer uma retomada do caso de Marie e das outras pacientes pelo crivo da
perversão foi uma estratégia usada por Clérambault para encaixar o caso dessas mulheres em
uma categoria nosográfica já conhecida pela psiquiatria. Assim como Freud fez inicialmente,
quando tentou pensar o Édipo da menina como uma inversão das posições tomadas pelo
menino, Clérambault também partiu do modelo masculino. Entretanto, foi exatamente por
esse caminho que essas mulheres se extraviaram das vias diagnósticas usuais. Mesmo
apresentando um apego sexual a um objeto inanimado que parecia tomar o lugar de um
parceiro sexual, não se encontrava, ali, uma verdadeira estrutura fetichista.
Em primeiro lugar, a análise feita por Clérambault pelo viés psiquiátrico confirma que o
fetichista homem mantém uma ligação muito particular com o objeto fetiche, porque
emoldura a relação com esse elemento através de uma série de elucubrações imaginativas.
Além disso, a ligação com o fetiche não é mais do que um elo que se estabelece em relação a
uma mulher, pois o objeto tem sempre algumas qualidades que evocam a parceira amorosa. Já
a partir da teoria freudiana, os homens fetichistas dotam a parceira de um pênis como uma
forma de compensar a castração. No caso da relação de Marie com a seda, não havia, como
ela diz, fantasias associadas a nenhum homem, nem mesmo uma ligação com eles. Por outro
lado, a masturbação com a seda configurava um uso apenas fálico e não fetichista, pois,
através do manuseio do tecido, não pretendia dotar a si mesma de um pênis imaginário, mas
obter um gozo masturbatório e autístico. A seda era o objeto que apresentava a castração tanto
do homem como da própria mulher, pois eles eram preteridos e elas, impossibilitadas de
chegar sozinhas ao orgasmo.
O segundo ponto a ser ressaltado consiste exatamente em uma outra especificidade do
caso, pois a ligação com a seda nos parecia mais amparada numa relação imaginária do que
numa determinação estrutural, como é o caso do fetichismo verdadeiro das perversões. A seda
era o elemento que viria arrematar a cena histérica. Marie e suas colegas ladras de seda
sabiam bem o que fazer com esse objeto, pois era através dele que o olhar dos homens podia
ser capturado. Esse é um elemento a ser inserido no próprio discurso psiquiátrico, pois a
clínica que se intitulava “clínica do olhar” privilegiava a dimensão escópica muito mais do
que a escuta do paciente. Clérambault mesmo era considerado um exímio observador e um
minucioso detalhista.
Um terceiro ponto que nos chamou a atenção está relacionado ao contexto e ao discurso
da época. No mesmo momento em que os loucos, as prostitutas e os desviados eram presos
pela polícia parisiense, e as histéricas, como Marie, eram enclausuradas nos hospícios, numa
66

estratégia de saneamento social, Paris fervilhava como o epicentro da Moda. A alta costura
francesa experimentava, nos primeiros anos do século XX, um de seus triunfantes momentos,
ao entrar em cena como uma das vedetes da Exposição Mundial. No ano de 1900, o Pavillon
de l’Élegance (Seeling, 2000, p. 15) da primeira Feira de Moda de Paris revelou novos
modelos de vestidos e uma variedade de tecidos leves e flexíveis, anunciando a maneira
inovadora como as mulheres iriam se vestir dali em diante.
Compondo o cenário do encontro entre médico e paciente, Paris foi animada por uma
dicotomia entre um passado vitoriano, cheio de pudores, e um presente fervilhante, tomado
pela arte impressionista. A virada do século trouxe consigo um divisor de águas em vários
setores da vida social. A Moda, fenômeno que refle as novas formas de viver e de pensar,
acompanhou a flexibilidade que se viu naqueles anos. Até que tivesse início o processo de
liberação do próprio corpo feminino através das tendências da Moda, os vestidos seguiam
uma única linha: eram como uma prisão e, neles, as mulheres estariam encerradas em suas
camisas de força, assim como as supostas loucas assistidas pelo olhar austero e atento dos
médicos nas sessões clínicas de apresentação de pacientes histéricas nos hospitais
psiquiátricos. Esboçou-se, a partir de então, um vestido de linhas simples e estreitas cujo
tecido, leve e macio, caía sobre os ombros até os pés. O novo corte foi chamado de La
Vague24, pois deslizava em torno do corpo suavemente. O vestido da reforma25, imortal e
etéreo, apenas contornava o que a ele se sobrepunha. Assim, sob a leveza da seda, escondia-se
uma mulher mais livre, substituindo a figura de espartilho dos anos que passaram.
Há um último ponto digno de nota. Achamos importante analisar os desdobramentos do
significante seda na língua francesa, uma vez que o termo soie foi proferido tantas vezes nos
relatos das pacientes de Clérambault. Para um psicanalista, essa palavra, repetida muitas
vezes, não passaria despercebida. Tratava-se, com certeza, de um deslizamento significante
que sofreu um deslocamento ou uma condensação. Esse fino e eletrizante fio, talismã do
tempo da Belle Époque francesa, paixão natural das mulheres que se ocupavam em tecer uma
imagem nova, decompõe-se, na língua francesa, em uma homofonia com dois outros termos
na língua: soit e soi, que significam, respectivamente, seja e si. Ao ouvir soie, podemos
também pensar em soi-même, “si mesma” ou, mesmo, soit, “seja”, verbo ser/existir, no

24
O estilista Paul Poiret cria no início do século XX o vestido La vague, que era um corte de linhas simples com
saia cortada abaixo do peito e que caía até os pés. (Seeling, 2000)
25
O vestido da reforma era também chamado de vestido artístico. Ela era uma túnica solta, com silhueta
desprovida de curvas.
67

subjuntivo. A ligação pode parecer irrelevante e, como Freud diria, “estaremos sem apoio se o
leitor acreditar que essa hipótese é fantasiosa”. Tratava-se de fato de um uso muito especial
do termo, já que talvez ele se desdobre, na língua francesa, em outras palavras importantes.
La soie, a seda vestiu com palavras a mulher do novo século e, entre símbolos e signos, os
vestidos de seda representaram uma nova versão da feminilidade.

3.4 - Non-lieu: um precursor do não-todo

Os casos das ladras de seda poderiam somar-se aos infinitos relatos sobre as doenças
histéricas encontrados na clínica médica da época. No entanto, Clérambault havia percebido
que existia, ali, algo a mais. Essa “cristalização menos nítida do tipo clínico” (Clérambault,
1908/2009, p. 261) talvez tenha revelado a ele o que Freud e Lacan nomearam,
respectivamente, de um “continente negro” e um “extravio”. Fato é que, cinquenta anos antes
de Lacan concluir algo sobre o desdobramento do gozo feminino e sobre o extravio das
mulheres, Clérambault já havia se deparado com essa questão, embora não houvesse
ferramentas suficientes para teorizá-la.
A inadequação desses casos a qualquer categoria nosográfica é a prova de que nem o
discurso cientificista da psiquiatria da época, nem mesmo um médico com o olhar
privilegiado como Clérambault puderam circunscrever uma faceta muito particular da
sexualidade das mulheres. “Insistimos pouco a respeito da presença da histeria em nossas
doentes, porque tal característica não parece absolutamente necessária para a constituição da
síndrome” (Clérambault, 1908/2009, p. 261). Esse fato se repete no texto freudiano, em que o
psicanalista reconhece que nunca foi possível descrever com maiores minúcias a sexualidade
feminina, pois havia uma pré-história em relação à ligação da menina com a mãe que turvava
o período do Édipo. A recomendação do psicanalista vienense era de que deveríamos esperar
pelo socorro da ciência, pelo alívio sublimatório da poesia ou por nossa própria experiência,
se quiséssemos mesmo saber sobre o desenvolvimento sexual e psíquico da mulher (Freud,
1933/1980, p. 139).
Não é fruto do mero acaso vislumbrar a existência de um mesmo gozo − fugidio e
marcado por limites muito tênues − nas pacientes de Freud, nas personagens mitológicas
descritas por Lacan e nas pacientes de Clérambault. Todas elas deixaram entrever, cada uma à
68

sua maneira, o que Lacan nomeou “um extravio” em relação à estrutura simbólica que
engendra o arcabouço teórico tanto da psicanálise quanto da psiquiatria. A sexualidade
feminina sempre permaneceu, desde o advento da psicanálise, como elemento que
impulsionou e, ao mesmo tempo, que produziu obstáculo ao saber, exatamente em razão desse
elemento pulsional arredio às amarrações propostas pelo Édipo.
Ao nos determos atentamente às anotações de Clérambault nos prontuários de suas
pacientes, foi possível detectar a repetição de alguns significantes muito próprios ao discurso
jurídico e psiquiátrico da época. Um desses termos chamou nossa atenção especificamente,
pois pareceu estar envolto por uma teia invisível que conectava no tempo a teoria de
Clérambault sobre a sexualidade feminina e as elaborações lacanianas sobre a mulher. Trata-
se do termo non-lieu26 (Clérambault, 1908/2002, p. 440), encontrado em todos os casos das
ladras de seda e utilizado para significar e nomear literalmente a negativa do lugar para a
sexualidade feminina.
A escolha do termo non-lieu era uma espécie de ponto final, de basta, que colocava termo
ao suplício do delegado e do psiquiatra encarregados do caso. Depois de transitar durante
anos entre delegacia e manicômio, as pacientes viam seus casos serem arquivados por falta de
provas e eram classificadas com essa expressão, non-lieu. Por fim, voltavam às ruas e às suas
recidivas, pois nem as leis, nem as normas da nosografia psiquiátrica haviam encontrado uma
nomeação para suas paixões, senão esse curioso termo que traduz de forma nítida a falta do
nome. Ao mesmo tempo em que possuíam sintomas típicos de uma histeria, também
apresentavam uma paixão fetichista atípica por sedas, descrita pela psiquiatria apenas em
casos de homens. Curiosamente, o enquadramento para essa patologia era ditado pela
nomenclatura jurídica, tomada de empréstimo do discurso da lei. Psiquiatria e Direito
trabalhavam juntos a fim de sanear a cidade de Paris e conter os excessos e perversões sexuais
de seus moradores.
O significante non-lieu preserva em si a partícula negativa. Há um não lugar que se extrai
do cerne mesmo do lugar. Assim como o termo lógico lacaniano não-todo, o termo non-lieu
significa que existe um lugar no todo: o não-lugar. Ambas as expressões dão a entender que
há uma forma de negar em parte o todo, o discurso, as leis e a própria teoria. Esse termo

26
O termo non-lieu foi retirado dos prontuários dos Arquivos de Antropologia Criminal de medicina legal e
patologia. É um termo do Direito Penal francês utilizado para designar um crime que não pode ser julgado por
falta de provas. Nessas situações, não há como dar encaminhamento ao caso e ele é então arquivado.
69

significa muito para nossos escritos, porque Clérambault o utilizou para descrever um lugar
muito específico localizado à margem do discurso. As ladras de seda permaneceram não
somente marginais em relação à nomenclatura psiquiátrica, mas também em relação ao
discurso penal francês. Seria também o não-todo esse lugar à margem ou extraviado da
posição fálica?
Tecer uma conexão entre o que Lacan formalizou da posição feminina em 1972-73
através do operador lógico não-todo e o termo usado por Clérambault, non-lieu, é uma forma
de questionar a elaboração teórica tecida por esses dois autores sobre a sexualidade feminina,
pois são dois discursos diferentes que se debruçaram sobre o mesmo impasse. A questão é
colocada porque a natureza da sexualidade feminina mostra-se em parte refratária a esses
discursos e às ferramentas simbólicas disponíveis para lidar com as dúvidas suscitadas.
Sentimo-nos autorizados a fazer essa conexão, pois Lacan confessou nutrir por Clérambault
uma admiração ímpar e, além disso, acreditava que ele era seu “único mestre”. Será possível
ignorar a hipótese de que o psicanalista havia lançado mão das elaborações de Clérambault
sobre essas mulheres para também escrever suas teorias sobre a feminilidade? A conclusão
lacaniana de que a mulher tem um gozo não-todo fálico não viria da mesma intuição de
Clérambault quando ele definiu os casos das mulheres como non-lieu?
O não-todo é uma categoria lógica criada por Lacan nos anos 1970 com o objetivo de
formalizar a posição da mulher e de seu gozo em relação à linguagem, mediante a incidência
da referência fálica para os dois sexos. Ele havia conseguido descrever com esse operador a
forma como uma mulher se inscreve no complexo de Édipo e no complexo de castração: uma
forma não-toda submetida ao falo, não-toda fálica. Uma mulher é castrada porque está
marcada pela linguagem, mas, a partir desse lugar, algo de sua sexualidade escapa ao falo e se
desvia para um outro lugar. O operador não-todo é a formalização da união entre dois lugares
distintos ocupados pela posição da mulher dentro e fora da linguagem.
Por outro lado, o termo non-lieu demonstra como Clérambault encontrou uma maneira
muito permeável aos estudos e discursos da época de dar lugar à falta de lugar da qual
padeciam as mulheres daquele tempo. Se, por um lado, o caso clínico foi descrito a partir de
uma patologia masculina catalogada, o fetichismo verdadeiro, foi exatamente por participar
dessa categoria de forma a questioná-la ou de forma não-toda que as pacientes foram
nomeadas como sujeitos sem lugar no discurso psiquiátrico e jurídico. Na análise da história
clínica de Marie, é possível perceber o momento em que um elemento se extravia do lugar em
que os médicos procuravam encontrá-la, ou seja, exatamente ao lado dos casos de fetichistas
típicos.
70

4. DESVIOS PULSIONAIS DA SEXUALIDADE FEMININA EM FREUD

“E, além disso, tudo quanto há de ser visto à superfície já foi exaurido, o que
resta tem de ser lenta e penosamente arrastado para cima desde as
profundezas” (Freud, 1925/1980, p. 310).

Os escritos freudianos apresentam algumas passagens que fazem alusão à hipótese


lacaniana do extravio da mulher. Apesar de Freud não utilizar o termo extravio, podemos
recolher, em sua obra, alusões à flexibilidade do destino pulsional em uma mulher, quando ele
observa, por exemplo, a frouxidão do laço que a menina mantém com a lei paterna. A partir
da referência lacaniana ao extravio feminino, retomaremos o texto freudiano, a fim de buscar
os rastros dessa proposição nas referências diretas de Freud à feminilidade. O extravio, que
mais tarde aparecerá na obra lacaniana como um desdobramento da mulher entre gozo fálico e
gozo Outro, é o sucedâneo do que, em Freud, aparece como uma série de deslocamentos da
sexualidade feminina como efeito da passagem pelo Édipo.
Nossa proposta para este capítulo é encontrar, em Freud, vestígios dos desvios que uma
menina realiza na relação com os objetos de amor e identificação, no movimento da pulsão e
nos processos de fixação nas zonas erógenas. Trata-se de tentar localizar, em Freud, o
elemento que escapa à via edípica e que Lacan reconhecerá como extravio, uma vez que a
menina atravessa o Édipo, mas nem tudo de sua sexualidade será explicado por essa estrutura.
A leitura freudiana do material sobre a sexualidade feminina foi orientada pela
observação das consequências da passagem da mulher pelo complexo de Édipo e de
castração. Para Freud, a constituição sexual não dependia apenas de questões subjetivas, mas
também biológicas, referentes à anatomia dos organismos sexuados. Freud acreditava que a
primeira distinção que os seres humanos faziam ao se deparar com o semelhante dizia respeito
ao sexo anatômico. O elemento psíquico incidiria sobre a constatação visual anatômica que,
por sua vez, não definiria uma via inequívoca em relação ao posicionamento sexual de um
sujeito. Nascer anatomicamente como menina nunca foi, segundo Freud, uma prerrogativa
para se tornar uma mulher. Pelo contrário, o caminho da menina até a “feminilidade
normativa” seria um longo e penoso processo em relação ao tornar-se mulher. Em outras
palavras, Freud descobriu que o inconsciente não reconhecia a anatomia como fator decisivo
para a identidade sexual.
No entanto, sua teoria psicológica fundou-se numa base predeterminada pela ausência ou
pela presença do pênis no corpo e pelas consequências disso para o psiquismo. A menina
71

passaria longos anos de sua existência despendendo uma quantidade enorme de energia para
digerir o fato de que nasceu sem o órgão peniano.
A descoberta freudiana em relação à teoria das pulsões parciais, em 1905, ancorou-se na
ideia de uma perversão polimorfa originária, presente em todo ser humano, o que significa
que não haveria determinação da pulsão genital no inconsciente. A menina e o menino
construiriam teorias sobre a relação entre os sexos lançando mão do que lhes conferiam
inconscientemente essas fixações parciais, embora elas em nada lhes indicassem sobre o que é
ser um homem ou o que é ser uma mulher.
Inicialmente, todo sujeito padeceria de um despedaçamento da imagem do corpo, que se
fragmentaria nas chamadas pulsões parciais: oral, anal, escópica. Desde esse momento
primitivo, o sujeito estaria submetido a uma pré-maturação e à falta de um instinto para
direcioná-lo ao seu parceiro sexual. A pulsão genital só se unificaria sob o primado do falo
em um momento posterior, depois da passagem pela castração e pelo complexo de Édipo. É
exatamente ao estudar a fase fálica, quando as pulsões se uniriam na forma genital do pênis e
do clitóris, que Freud começa a se questionar sobre a diferença psíquica entre os sexos, pois,
nessa fase, o menino desenvolve o temor de perder seu órgão e a menina, a inveja por não
possuí-lo.
A pesquisa de Freud parte, assim, de uma pergunta simples: como um ser de disposições
bissexuais, e não direcionadas pelo instinto, torna-se homem ou mulher e escolhe seu objeto
sexual? Como, a partir das pulsões parciais e de uma escolha inicialmente narcísica, apoiada
sobre o próprio corpo, o sujeito se dirige ao objeto de amor? Se a anatomia não basta para
compreender a maneira com que o psiquismo apreende a sexualidade, isto é, se a fêmea não
constitui a mulher, como a linguagem funciona para recobrir as diferenças anatômicas e
transformá-las numa apreensão psíquica, a ponto de o sujeito se enxergar ou como possuidor
do falo ou como castrado?
É a orientação desse desejo sexuado a partir da vivência edípica que torna possível
explicar, em Freud, o desenvolvimento da sexualidade feminina e suas saídas identificatórias.
Freud conclui que o menino precisa abrir mão do gozo incestuoso pela mãe para encontrar seu
objeto sexual. Já no caso da menina, essa máxima não pode ser aplicada. É possível,
inclusive, que a menina nunca se separe completamente da mãe. O complexo de Édipo traça o
caminho para o homem, mas não aponta para a menina como se tornar uma mulher. Freud já
dizia que uma menina é, inicialmente, um menino. Ser mulher aparece como um devir, e não
como algo dado pela natureza. O Édipo fornece ao menino uma identificação com o pai e
define que a relação com a mãe precisa ser abandonada. Há uma baliza para o desejo do
72

homem. Já a menina, vê-se obrigada a desviar-se por caminhos não evidentes, ou seja, para
uma identificação com o pai, detentor do pênis, devido à falta de repostas para sua
sexualidade feminina. Ela vai ao encontro do pai com a esperança de encontrar nele um pênis,
seja na forma do órgão ou na forma de um filho.
A menina precisa passar por certos desvios no complexo de Édipo e de castração, até que
seu amadurecimento psíquico a transforme em mulher. Nesse processo, fica evidente uma
sobreposição de fases do desenvolvimento, pois a mulher nunca abandona completamente as
fases anteriores da sexualidade. A ligação da menina com seus objetos de amor, suas zonas
erógenas ou a forma de satisfação da pulsão são a prova de que ela precisa consentir com
muitos desvios até chegar a uma “feminilidade normativa”, segundo descreve Freud.
Os desvios da mulher em relação à medida fálica ficam subentendidos nos escritos
freudianos em algumas passagens, como: “Estamos preparados para descobrir, não um fator
único, mas um grande número deles operando juntos para o mesmo fim” (Freud, 1931/1980,
p. 266). Esses fatores que operam de forma contígua no desenvolvimento psíquico da menina
demonstram como Freud percebeu que a forma de existência da sexualidade feminina
guardava muitas peculiaridades, como os desvios da pulsão, vicissitudes próprias da vida
psíquica e de seu desenvolvimento sexual. O próprio Freud chega a afirmar que a menina
deveria abandonar em parte a sexualidade fálica e masturbatória, mas que não podia perdê-la
completamente, pois era imprescindível conservar essa identificação viril como um índice
próprio da sexualidade feminina: “Vocês percebem que uma onda de desenvolvimento assim,
que remove a atividade fálica aplaina o terreno para a feminilidade. Se nisso não se perder
muita coisa mediante a repressão essa feminilidade poderá ser normal” (Freud, 1933/2010, p.
284).
Dentre as saídas possíveis apontadas por Freud como resoluções do complexo de
castração, podemos apontar três. A primeira está demonstrada pela escolha do objeto de amor
pela menina. Essa escolha se dirige tanto ao objeto cunhado na pré-história do complexo de
Édipo, a mãe, como àquele que ganha importância no segundo tempo do Édipo, o pai. Há,
portanto, duas vias do amor para a menina: a via primária, dirigida à mãe, e um desvio
secundário, direcionado ao pai. O segundo passo, rumo à resolução do complexo de castração,
consiste na transferência da importância do clitóris para a vagina. Por fim, o terceiro e último
desvio é vislumbrado na operação pulsional que aciona fins passivos, redirecionando a
sexualidade feminina para a finalidade ativa da pulsão. Analisaremos mais detidamente essas
ocorrências nos tópicos seguintes.
73

Em 1908, em “Teorias sexuais das crianças”, Freud afirma que suas observações sobre as
teorias sexuais só valiam para descrever o desenvolvimento sexual masculino, e que a análise
da sexualidade das mulheres ficaria para um escrito futuro. Em 1916, no texto “Alguns tipos
de caráter”, o psicanalista sugere que a inveja do pênis causava na menina um dano a seu
narcisismo, levando-a ao ressentimento para com a mãe. Novamente, muitíssimo mais tarde,
em “Análise leiga”, texto de 1926, ele acrescenta: “sabemos menos sobre a vida sexual das
meninas que sobre a dos meninos. Mas não precisamos nos envergonhar dessa distinção;
afinal de contas, a vida sexual das mulheres adultas constitui um ‘continente negro’ para a
psicologia” (Freud, 1926/1980, p. 212). A citação na epígrafe que abre este capítulo nos
fornece uma direção com relação ao método de Freud para apreender a sexualidade feminina:
“arrastar das profundezas”, já que, até então, suas formulações teóricas sobre o inconsciente
não haviam lhe ajudado a desvendar a mulher. A constatação de que a vida sexual da mesma
se mostrava obscura era a prova de que a sexualidade feminina não se estruturava da mesma
maneira que a sexualidade masculina.
Entre a publicação da Interpretação dos Sonhos, em 1900, e a análise do caso Dora, em
1905, Freud não se interessou por pesquisar especificamente a sexualidade feminina e, por
isso, não fez muitos avanços com relação a esse tema. O pai da psicanálise esperou quinze
anos para publicar um material clínico importante sobre as mulheres. Em 1915, escreveu “Um
caso de paranóia que contradiz a teoria psicanalítica da doença” e teorizou sobre as fantasias
originárias e o complexo materno na menina. Nesse texto, Freud descreve seu encontro com
um caso particular, que contrariava o que havia sido descrito até então como típico da
paranóia. Freud observa que a patologia da paciente surgia de alguns desvios. Levando em
conta todas as idiossincrasias da clínica feminina, nesse momento, o psicanalista percebe que
o desenvolvimento da sexualidade feminina se desviava das descrições pretensamente
universais.
Em 1920, no texto sobre a Jovem Homossexual, Freud se deparou com um caso de
homossexualismo feminino e se deu conta da difícil relação da mulher com a figura paterna.
Até então, o complexo de masculinidade não havia sido descrito. Em 1919, no texto “Uma
criança é espancada”, surgem os estudos das fantasias de espancamento, que se relacionavam
exclusivamente com o desenvolvimento sexual infantil das meninas. Nesse momento, há
claros indícios de que Freud estava muito insatisfeito com suas antigas afirmações sobre uma
possível analogia entre a vida psíquica e sexual nas mulheres e nos homens. A perspectiva de
existir um paralelo completo entre os dois sexos cairia por terra dentro de alguns anos, e
Freud descobriria a complexidade da psicologia feminina. Em 1923, ele começava a
74

compreender que não poderia descrever a fase fálica, o Édipo e a castração para a menina da
mesma forma que para o menino. Enquanto os representantes do sexo masculino mantinham o
investimento sexual em um único órgão, o pênis, possuíam um único objeto de amor, a mãe, e
um único objeto de identificação, o pai, para a menina, esses elementos se revelariam numa
relação de contiguidade, e não de exclusão. Ou seja, essas escolhas de objeto, fases e fixações
se mesclavam, sem se excluir. Era essa a mesma tese que Freud sustentava em relação a
bissexualidade ser uma característica mais prevalente nas mulheres.
Uma nova tese sobre a feminilidade foi lançada no texto “Dissolução do complexo de
Édipo”, de 1924. Posteriormente, essa tese é revisitada com os acréscimos trazidos nos artigos
“Sexualidade Feminina”, de 1931 na “Conferência XXXIII”, “Feminilidade” de 1932-33, e no
capítulo VII do póstumo “Esboço de Psicanálise”, de 1940.
Na primeira edição dos Três ensaios, Freud (1905/1980) sustentou que, nas meninas, o
clitóris seria o órgão sexual principal e que, em conformidade com tal fato, a sexualidade
feminina teria um caráter inteiramente masculino. A sexualidade feminina precisaria passar
por uma onda de repressão ou submeter-se a um desvio para que o clitóris cedesse lugar à
vagina como principal órgão sexual e para que, então, a masculinidade cedesse lugar à
feminilidade. A ideia de Lacan sobre um extravio feminino em relação ao Édipo parecia já
estar apontada em todos esses elementos. Freud reduzia sua hipótese sobre o desvio a duas
principais modificações que conduziriam à passagem de uma fase a outra do Édipo. Uma
delas se daria na esfera do afeto, que se transferiria da mãe para o pai, e a outra na esfera da
fixação corporal, que passaria do clitóris para a vagina. Ou seja: a teoria freudiana exigia da
menina uma dupla mudança para que ela pudesse chegar ao Édipo normal: uma em relação ao
órgão sexual e uma segunda em relação ao seu objeto de amor.
A seguir, procederemos à revisão de um texto muito relevante para a compreensão dos
processos psíquicos da mulher: o “Rascunho K: As neuroses de defesa (Um conto de fadas
para o Natal)” (1896/1980). Depois, retomaremos as ideias dos principais textos freudianos
sobre a feminilidade: “As Teorias sexuais das crianças” (1908), “A organização genital das
crianças” (1923), “Dissolução do complexo de Édipo” (1924), “As consequências psíquicas
da distinção anatômica entre os sexos”, “Feminilidade” (1933) e “Sobre a sexualidade
feminina” (1931).
75

4.1 - A histérica-mulher: uma lacuna na psiquê

“Eis aí uma forma de demarcar no discurso aquilo que constitui a realidade do


sexo feminino: é o que vai se manifestar como furo no discurso, como lacuna no
tecido significante” (André, 1998, p. 60).

No final do ano de 1895, Freud se ocupava com o problema da relação entre neurologia e
psicologia. Esses estudos culminaram na produção das teorias lançadas no Projeto para uma
psicologia científica. Enquanto editava o Projeto, Freud redigia a Carta 39. No mesmo dia em
que remeteu essa carta ao amigo Fliess, Freud escreveu também o “Rascunho K” (1896),
inicialmente publicado no texto “As Neuropsicoses de defesa” (1894), texto que trata de
temas clínicos, especificamente o da etiologia diferencial das neuroses de defesa.
Acreditamos que uma breve análise do “Rascunho K” possa nos ajudar na compreensão
da sexualidade feminina, pois esse texto mostra que certos elementos irrepresentáveis da
neurose apareceram em análises de casos de histeria, ainda na pré-história dos estudos
freudianos. Nesse Rascunho, Freud conclui que suas pacientes apresentavam uma neurose de
defesa do tipo histérico e que padeciam de uma “lacuna psíquica” (Freud, 1896/1980, p. 249),
ou seja, de um elemento que não podia ser transcrito pela estrutura inconsciente. Freud
reconheceu um umbigo incognoscível para o qual convergia toda a cadeia representativa no
psiquismo. A estrutura inconsciente se organizava em torno dessa lacuna, lugar radicalmente
impenetrável na psiquê feminina. No livro O que quer uma mulher?, Serge André afirma:
“Eis aí uma forma de demarcar no discurso aquilo que constitui a realidade do sexo feminino:
é o que vai se manifestar como furo no discurso, como lacuna no tecido significante” (André,
1998, p. 60).
No “Rascunho K”, encontramos termos preciosos − os quais Freud não volta a utilizar
posteriormente em sua obra − que designam elementos que não podem ser representados pela
linguagem. A “lacuna”, “o susto”, “a ideia irreconciliável” e “a representação limite” são
todos termos empregados em 1896 para descrever elementos da neurose histérica e dizer de
sua relação com o que havia de não cognoscível na sexualidade feminina. Acreditamos que
esses conceitos nos remetem ao que Lacan chamou de extravio feminino e de um gozo não
todo cifrado pela linguagem.
No “Rascunho K”, o psicanalista vienense traça a comparação entre histeria, neurose
obsessiva e paranóia, descrevendo essas doenças como “aberrações patológicas de estados
afetivos psíquicos normais, de conflito (histeria), de autocensura (neurose obsessiva), de
76

mortificação (paranóia), de luto (amência alucinatória aguda)” (Freud, 1896/1980, p. 241).


Em todas elas, era preciso que existissem causas precipitantes que fossem de natureza sexual
e que ocorressem durante o período anterior à maturidade genital.
Nas elaborações sobre a neurose histérica, aparecem, pela primeira vez, elementos
importantes para o estudo posterior da sexualidade feminina. Foi rastreando certos modos de
operar da sexualidade na neurose histérica que Freud produziu sua teoria a respeito da
sexualidade geral e diferenciou o desenvolvimento de um homem e de uma mulher, na
passagem pela castração. O desencadeamento de um tipo específico de neurose estaria
diretamente ligado ao período em que esse distúrbio aconteceria.
A histeria seria produzida por uma experiência primária de passividade diante de uma
vivência de excitação sexual que geraria uma sensação de desprazer. “A passividade sexual
natural das mulheres explica o fato de elas serem mais propensas à histeria” (Freud,
1896/1980, p. 248). Uma segunda condição para a ocorrência da histeria seria a vivência da
experiência de desprazer em idade muito precoce. De outro modo, produzir-se-ia uma neurose
obsessiva. Essa seria a razão, segundo Freud, para encontramos nos homens a substituição da
histeria pela neurose obsessiva, ou uma combinação desses dois tipos de neuroses.
Em 1896, Freud afirma que a histeria teria início com a subjugação do ego, pois, na
experiência primária de desprazer, a produção de tensão seria tão grande que o ego não
resistiria. Não se produziria, nesse momento, nenhum sintoma psíquico, mas haveria uma
descarga de energia na forma de uma expressão exagerada de excitação. Esse primeiro estágio
é qualificado de “histeria de susto” (Freud, 1896/1980, p. 249). O sintoma primário se
configuraria como uma ocorrência de susto: algo contingente irrompe para o sujeito, sem que
ele possa controlar ou prever. O susto é acompanhado pela produção de uma “lacuna
psíquica”. Ou seja: primeiro irromperia “a histeria do susto”; logo depois, haveria uma
descarga de excitação e, como tentativa do organismo de reparar ou proteger-se dessa tensão,
surgiria uma lacuna no psiquismo. A lacuna seria, portanto, uma estratégia do aparelho
psíquico para se proteger, uma espécie de véu sobreposto a essa primeira experiência
traumática. Haveria uma subjugação histérica do ego no momento em que uma parte da
lembrança não é recalcada, mas desaparece do aparelho psíquico. A atuação conjunta de uma
defesa contra a descarga de excitação e o excesso de sexualidade impedem a tradução em
palavras (Freud, 1896/1980, p. 250).
O recalcamento e a formação de sintomas defensivos só apareceriam posteriormente, em
conexão com a lembrança traumática. Daí em diante, a defesa, a subjugação e a formação de
77

sintomas irromperiam. É nesse momento que apareceriam os ataques histéricos, uma descarga
possível para o aumento da excitação do aparelho psíquico que é sentido como desprazer.
Segundo Serge André (1998), existe uma forma de demarcar no discurso aquilo que
constitui a realidade do sexo feminino: é o elemento que irá se manifestar como um furo no
discurso. O que se manifesta como uma lacuna inserida na cadeia simbólica nada mais é do
que a ausência de uma representação no seio da sexualidade feminina: “uma manifestação de
susto, com uma lacuna no psiquismo” (Freud, 1896/1980, p. 249). Apesar da lacuna ser um
elemento muito específico da arquitetura histérica, ela nos dá uma indicação com relação a
esse elemento não simbolizável que reaparecerá nos casos de Freud e mesmo na releitura de
Lacan.
A lacuna, ausência do representante da palavra, e o susto são anteriores ao sintoma
histérico. Somente a posteriori, no retorno do recalcado, o sujeito histérico é remetido a uma
representação que o localizará diante disso que ficou irrepresentável. O significante, essa
representação da palavra, delimita um furo, um limite à própria representação num momento
posterior. Assim, uma mulher representará o furo com a borda produzida pela linguagem. “O
recalcamento não se realiza por uma formação de uma ideia poderosa demais, mas sim por
um reforço de uma representação-limite que, a partir de então, vai representar, nas operações
mentais, a lembrança recalcada” (Freud, 1896/1980, p. 249). A palavra que constituirá a
representação irreconciliável é escolhida pelo psiquismo do sujeito por estar à beira desse furo
que ele delimita, já que o furo, diferentemente da representação, não pode ser recalcado, nem
sexualizado pela linguagem. No caso Dora, veremos como persiste em seus sonhos uma
pergunta sobre a representação impossível da vagina e de uma feminilidade corporal que não
encontra um significante para existir.
O elemento sexual não pode ser representado por completo, nem transcrito em forma de
palavras. O aparelho psíquico, por sua vez, não absorve a lacuna que se forma aí. A alavanca
para que esse processo se desencadeie é exatamente a falta de uma representação que recubra
a dimensão sexual, no momento em que ela se manifesta para a mulher. A representação que
evoca essa lacuna é eliminada, deixando pelo menos duas brechas no sistema simbólico
inconsciente: uma de origem e outra que se associa à primeira. O elemento que aparece para
resolver essa lacuna estará sempre em defasagem em relação ao elemento traumático na
eclosão da sexualidade.
A falta de representação para o elemento sexual e traumático aciona o representante da
palavra que, ao ser recalcado, inaugura no inconsciente uma cadeia simbólica. De acordo com
Freud (1896), tão importante quanto isso é considerar a atração que o recalcado original
78

exerce sobre tudo com o que consegue estabelecer conexão. “Quando o evento traumático
encontra uma saída para si mesmo através de uma manifestação motora, é esta que se torna a
ideia limítrofe e o primeiro símbolo do material recalcado” (Freud, 1896/1980, p. 249). Os
elementos em conexão com o recalcado se unem a ele no inconsciente. Acreditamos que há,
em Lacan, ecos desse elemento irrepresentável da sexualidade feminina. O que ele nomeia de
extravio seria exatamente esse elemento que se produz como um desvio do simbólico.
É no mínimo curioso que a descoberta da lacuna e da representação limite não tenham
sido abordadas posteriormente nos estudos que Freud fez sobre a genealogia da histeria. Esse
esquecimento indica algo com o que mais tarde ele terá que se deparar: “a presença de um
elemento real fora do conhecimento, porque fora do significante, no cerne do recalcamento
significante que determina os sintomas – quer dizer, a insistência do real por detrás da
problemática simbólico-imaginária da castração” (André, 1998, p. 62). Lacan relê os casos de
Freud e conclui que, em todos eles, há um elemento que fica à margem da representação dada
pelo Édipo.
É surpreendente como Freud conseguiu seguir seus estudos sobre a sexualidade feminina
sem abordar essas descobertas nos Estudos sobre a histeria (1893/1895) e em “A etiologia da
Histeria”(1896). Entretanto, ao longo do estudo dos casos clássicos, − Dora, Irma e a Jovem
Homossexual − ele aborda a vertente do irrepresentável através do tema do mutismo, da carne
assexuada ou da ausência de representação para o órgão sexual feminino. Esse elemento
irrepresentável reaparece, por exemplo, no texto “O tema dos três escrínios” (1913), para
localizar a mulher como aquela que “mostra ao homem que ele também faz parte da natureza
e, portanto, acha se sujeito a imutável lei da morte” (Freud,1813/1980, p. 375). Ao longo dos
anos, Freud desenvolve muito mais a vertente da sexualidade que pode ser representada pelo
primado do falo do que essa outra vertente, que privilegia uma ausência de simbolização no
cerne da sexualidade feminina.
Freud já havia anunciado a presença de um elemento que não estaria submetido ao
registro da linguagem e nem ao processo de recalque, mas acreditamos que, em razão da
dificuldade de construir uma teoria sobre esse elemento impermeável ao mecanismo do
recalque e mesmo da própria transcrição inconsciente, ele abandonou essas elaborações e
seguiu no caminho da escrita do Projeto para uma psicologia científica.
79

4.2 - A inveja do pênis: os destinos pulsionais no complexo de castração

“Tudo isso parece mostrar que existe uma dose de verdade na teoria sexual
infantil de que as mulheres possuem, como os homens, um pênis” (Freud,
1908/1980, p. 221).

A primeira menção explícita de Freud ao complexo de castração data do texto de 1908,


“Sobre as teorias sexuais infantis”. O material aí exposto é, sem dúvida, atribuído às
descobertas que Freud empreendeu na análise do Pequeno Hans. As ideias da fertilização pela
boca, do nascimento dos bebês pelo ânus, das relações sexuais dos pais como sádicas e da
posse do pênis por ambos os sexos são apenas algumas das fantasias listadas por Freud nesse
texto. As conclusões freudianas acerca das teorias infantis se basearam em observações do
que as crianças pensavam, diziam e faziam com relação ao sexual; do que os neuróticos
adultos se lembravam e relatavam em análise a respeito de suas deduções e conclusões sobre
a sexualidade na infância; e também de suas lembranças inconscientes traduzidas em material
consciente pela análise.
A noção que envolve implicações mais extensas relaciona-se à importância do pênis para
ambos os sexos, já que, na fase fálica, a menina sente inveja do menino por não possuir um
pênis e o menino vive às voltas com a fantasia de que a mulher também possui o órgão fálico
ou que um dia o terá.
Não é difícil perceber que o corpo da mãe ocupa um lugar privilegiado nas teorias
sexuais das crianças. Essa não é uma constatação puramente empírica, mas uma determinação
psíquica, que faz com que a sexualidade da mulher seja, desde sempre, alvo de elucubrações.
O fato de a origem da vida estar ligada diretamente ao corpo e à sexualidade da mulher
constitui marca indelével para o desenvolvimento de meninos e meninas. Queremos ressaltar
que a ideia das crianças de que a mãe também tem um pênis, e a posterior constatação de que
ela é castrada contrasta-se radicalmente com a ideia de que ela tem poder para gerar uma vida
dentro de seu ventre. A menina e o menino irão se debruçar por muito tempo sobre esse
quadro que lhes parece absolutamente contraditório: a mulher, inicialmente poderosa e fálica,
torna-se castrada “de uma hora para outra”.
No início do texto, Freud adverte o leitor de que “em consequência de circunstâncias
desfavoráveis de natureza interna e externa, as observações que se seguem aplicam-se
principalmente ao desenvolvimento sexual de apenas um sexo – o masculino” (Freud,
1908/1980, p. 215). Isto é, já de saída, o psicanalista afirma que o processo correspondente no
80

caso das mulheres envolvia circunstâncias que dificultavam seu esclarecimento. O


desenvolvimento sexual da menina, até aqui entendido como similar ao do menino, fazia-se
perceber pela importância dada a um diminuto órgão que produzia consequências no
desenvolvimento psíquico e sexual feminino, “situado no interior da vulva feminina, um
órgão homólogo ao pênis” (Freud, 1908/1980, p. 220), o clitóris.
É interessante pensar que o psicanalista tenha reconhecido que essa espécie de “pênis
genuíno”, o clitóris, conferia à atividade sexual da menina um caráter masculino e que era
exatamente por essa razão que seu desenvolvimento sexual se tornava mais complicado. Por
constituir-se como um pequeno pênis excitável, conferindo à sexualidade da menina um
caráter masculino, seria necessário uma “vaga de repressão” nos anos da puberdade para que
esse elemento sexual ativo desaparecesse e, como consequência disso, “surgisse à mulher”
(Freud, 1908/1980, p. 220). Nesse ponto, Freud fornece um trilho sobre o qual a sexualidade
feminina deveria seguir para atingir a verdadeira feminilidade.
Segundo Freud, caso persistisse na mulher um obstinado apego à excitabilidade do
clitóris, a função sexual poderia apresentar-se reduzida − algumas mulheres poderiam, por
exemplo, permanecer anestesiadas no coito. “Tudo isso parece mostrar que existe uma dose
de verdade na teoria sexual infantil de que as mulheres possuem, como os homens, um pênis”
(Freud, 1908/1980, p. 221). Pois bem, o clitóris tem a função do pênis e disso não se tinha
dúvida alguma naquela época. Mas é importante lembrar que a hipótese teórica da
equivalência entre o clitóris feminino e o pênis masculino parte de uma fantasia masculina
sobre a castração feminina. Freud analisa a sexualidade feminina partindo do ponto de vista
da fantasia dos homens.
As elaborações freudianas se sustentavam na ideia de que o pênis acompanha a vida
mental das crianças, ligando-se inconscientemente a um “ato violento, de esmagar ou romper
qualquer coisa, a abrir um buraco em algum lugar” (Freud, 1908/1980, p. 221). É interessante
notar a relação entre essa afirmação de Freud sobre o órgão masculino e a violência, o
sadismo e o furo. No momento em que descobrem que esse instrumento de fazer furos, o
pênis, penetra na vagina e faz surgir os bebês, as crianças interrompem suas investigações e
deixam o corpo da mãe permanecer velado por um pudor inconsciente qualquer. Freud
acredita que a impossibilidade masculina de descobrir a vagina origina-se da fantasia muito
prevalente de que a mãe também possui um pênis. Por outro lado, se o furo está do lado da
mãe, e é ela que recebe no coito o pênis, talvez o pavor esteja exatamente relacionado à
descoberta de que a vagina, com seu buraco obscuro, pode engolir o pênis.
81

A fantasia do nascimento do bebê pelo ânus também está ligada ao corpo da mulher. O
desconhecimento do fato de que a mãe possui uma vagina para expelir o bebê que cresce em
seu ventre leva as crianças a formularem a hipótese de que ela o faz através do ânus, como
numa evacuação. Freud diz que “era lógico que a criança negasse às mulheres o doloroso
privilégio de dar a luz aos bebês” (Freud, 1908/1980, p. 221). É interessante pensar na ideia
de que a criança, muito cedo, teria que negar esse privilegio à mãe e pensar em uma forma de
também tornar o homem capaz de parir um bebê. O homem só poderia dar a luz a uma criança
e fazer jus à sua potência criadora, assim como a mulher, se houvesse o nascimento pelo ânus,
igualando os dois sexos em relação a esse privilégio da natureza.
Na teoria formulada pelas crianças sobre o coito dos pais, o corpo da mãe seria tomado
violentamente pelo pai, que a machucaria no ato sexual. A prova imaginária dessa relação
sádica aparece quando a mãe, uma suposta mulher histérica, recua ou repugna o abraço do
marido. A criança tem, nesse momento, a prova de que a mãe se defende da aproximação
sexual em razão disso ser um sinal de violência. Mais uma vez, a mulher é vista como passiva
e assujeitada à atividade sexual masculina. Além dessas fantasias, Freud fala sobre algumas
teorias predominantemente femininas, como a crença na concepção através do beijo, isto é, a
ideia de que a criança seria gerada na boca da mãe, pelo beijo do homem.
Chamamos a atenção para um fato curioso em relação à ligação das elucubrações infantis
com as fantasias das meninas. No início do artigo, Freud afirma que a análise das teorias
sexuais levará em conta apenas um sexo, o masculino. No entanto, além de citar a fantasia da
concepção dos bebês através do beijo como prevalentemente feminina, ele ainda cita outras
três teorias recolhidas de casos clínicos de meninas.
Dentre as quatro fantasias sexuais que Freud menciona nesse texto, três delas são
formuladas por meninas. No fim do artigo, o psicanalista recorre aos escritos de Marcel
Prévost, autor de Letres de femme, romance que contém divertidas histórias onde se
descrevem as fantasias de meninas sobre as teorias sexuais. É no mínimo intrigante que o pai
da psicanálise tenha recorrido a esse romance para citar as impressões das meninas, quando a
promessa do texto era abordar apenas o exemplar do sexo masculino.
Esse fato curioso ou, digamos, esse ato falho de Freud, aponta para sua insistência em
falar sobre a mulher através dos homens, ignorando que a sexualidade feminina talvez tenha
sido, desde o início, a fonte maior de material clínico, seja pelo fato de as meninas falarem
mais sobre seus afetos, ou pelo fato, denegado por ele, de a mulher revelar mais do que ele
quisesse saber. Como disse Lacan, no Seminário 20: mais, ainda, a questão não se localizava
82

no fato de não se poder saber sobre o que quer uma mulher, mas em não querer saber nada
sobre seu gozo.

4.3 - A primazia do falo: os desvios pulsionais no complexo de Édipo

“O que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas
uma primazia do falo” (Freud, 1923/1980, p. 180).

Na década de 1920, Freud publicou três textos − “A organização genital infantil” (1923),
“A Dissolução do complexo de Édipo” (1924) e “Algumas consequências psíquicas da
distinção anatômica entre os sexos” (1925) − nos quais ele discute as consequências da
distinção anatômica e do complexo edípico para a menina. Em 1923, quando publicou “A
organização genital infantil”, Freud já havia tomado posições bem diferentes do texto de
1908, localizando o falo, e não o pênis, como central para a teoria da castração e como
condição para definir o Édipo em ambos os sexos: “O que está presente, portanto, não é uma
primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo” (Freud, 1923/1980, p. 180). Essa
descoberta traria muitos efeitos para a teorização sobre o desenvolvimento da sexualidade
feminina, já que a mulher também se estruturava segundo o referente fálico.
A ligação do falo com o órgão sexual masculino se produz a partir do momento em que
crianças de ambos os sexos percebem que o pênis apresenta-se faltoso na menina, ou
susceptível de vir a faltar no menino. Essa falta estará associada à castração, e é em relação a
ela que o menino e a menina irão se posicionar daí em diante. Contudo, até 1923, a teoria
freudiana ainda não havia chegado a nenhuma resposta satisfatória em relação ao
desenvolvimento da sexualidade na menina: “Os processos correspondentes na menina não
conhecemos” (Freud, 1923/1980, p. 180).
A análise da fase fálica e da importância do falo para o menino não possuía ainda uma
contrapartida clara na sexualidade feminina, já que Freud sustentava sua crença de que não
era possível reconhecer a presença da vagina como órgão sexual, e sim a ausência do pênis. A
mulher permaneceria por um longo período alheia a esse saber sobre a vagina, reconhecendo
somente o prazer clitoridiano. A tese de que a sexualidade da mulher era idêntica à
sexualidade masculina fez com que Freud perdesse de vista, durante muito tempo, as
diferenças impostas pelo desenvolvimento da sexualidade feminina, já que pensar a mulher
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somente referenciada ao pênis e, depois, ao falo, trazia impasses para a compreensão de seu
desenvolvimento sexual. Não era possível reconhecer algo próprio da sexualidade da menina,
já que ela era vista como o avesso da sexualidade masculina em relação à troca do objeto de
amor e ao processo de identificação com o pai.
Nos textos que virão algum tempo depois, “Feminilidade” (1932/33) e “Sexualidade
feminina” (1931), reconhecerá, enfim, que a sexualidade da mulher não é simplesmente o
inverso da sexualidade do homem, mas sim produzida a partir de uma série de desvios
empreendidos em função da sexualidade fálica.
Segundo Freud, no estágio da organização pré-genital sádico-anal, ainda não existiria
diferenciação sexual. É apenas no estágio seguinte, da organização genital infantil, que a
referência fálica ao pênis, presente ou faltoso, será revelada a meninos e meninas. A tese
freudiana sobre a sexualidade era antitética, já que ou o sujeito ou possuía um órgão genital
masculino ou era castrado. A masculinidade combinava a atividade e posse do pênis, e a
feminilidade correspondia à posição de objeto e à passividade. A vagina era agora valorizada
como lugar de abrigo do pênis, ingressando na herança do útero (Freud, 1923/1980, p. 184).
Ela passou a ser descrita como local receptor do pênis, mas não reconhecida como o órgão
sexual feminino. Nesse momento, a feminilidade era vista por Freud como um porvir que só
poderia ser atingido pelas mulheres a partir de uma série de desvios próprios do
desenvolvimento de sua sexualidade.
No artigo “A Dissolução do complexo de Édipo” (1924), a teoria não muda muito. Freud
(1924/1980) continua afirmando a impossibilidade de dizer como se daria a sexualidade no
caso da menina: “Nos tornamos mais claramente cônscios do que antes de que o
desenvolvimento sexual de uma criança avança até determinada fase, na qual o órgão genital
já assumiu o papel principal. Esse órgão genital é apenas o masculino, ou mais corretamente o
pênis, o genital feminino permaneceu irrevelado” (Freud, 1924/1980, p. 218). O pênis seria o
único órgão reconhecido pelo inconsciente. Logo, a menina precisaria buscar no corpo do
homem o que lhe faltava, como forma de adquirir um objeto que a fizesse se reconhecer como
possuidora do falo.
No texto de 1924, Freud reafirma que o material teórico sobre a menina era “obscuro e
cheio de lacunas” (Freud, 1924/1980, p. 221). Ao usar novamente o termo lacuna, que ele
havia reconhecido no “Rascunho K” como um termo importante para explicar a gênese da
histeria, Freud (1924/1980) parece reafirmar sua tese sobre o elemento irrepresentável próprio
do feminino. É esse elemento que desviará o curso da sexualidade feminina dos moldes
estabelecidos pelo Édipo masculino, pois a estrutura edípica não será suficiente para explicar
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a natureza da pulsão na mulher. Ainda então, mesmo diante desse elemento arredio à
simbolização, Freud insiste na pergunta: “Como se realiza o desenvolvimento correspondente
na menina?” (Freud, 1924/1980, p. 222).
Se, no caso do menino, o complexo de Édipo vem abaixo pela ameaça de castração, no
caso das meninas, é nesse exato momento que o desenvolvimento sexual apresenta seu
primeiro desvio, inaugurado na relação edípica com a mãe. A menina precisará identificar-se
com a mãe e tornar-se “aquilo que seu pai ama acima de tudo o mais” (Freud, 1924/1980, p.
223). A menininha se tornaria uma mulherzinha ao tentar ocupar o lugar da mãe em relação
ao amor do pai. Identificada com a mulher, que é a mãe, tornaria as coisas resolvidas.
Acontece que, nesse redirecionamento da pulsão sexual da mãe ao pai, pode ocorrer o que
Lacan chama de, um extravio. Na maioria dos casos, as saídas da mulher são muito diferentes
do que Freud nomeava de Édipo normativo.
Freud (1924/1980) acreditava que a distinção morfológica estava fadada a encontrar sua
expressão em diferenças no desenvolvimento psíquico, o que marcava algumas peculiaridades
da vida psíquica da mulher. “A anatomia é o destino, para variar um dito de Napoleão”
(Freud, 1924/1980, p. 222). Agora, Freud já estava convencido de que o complexo de
castração, a organização fálica e o Édipo eram completamente diferentes na menina, pois
acontecem em fases sobrepostas, como se a mulher estivesse sempre diante de uma direção
dupla ou de uma impossibilidade de síntese entre as posições tomadas no desenvolvimento
psicossexual. Na mulher, a fase fálica pode nunca ser completamente extinta e continuar a
produzir consequências ao longo da vida.
Segundo o psicanalista, a diferença anatômica, para o menino, conduz-se de maneira
irresoluta: ele não consegue ter certeza de nada, procura respostas para a falta do pênis no
corpo da mãe ou da irmã e não se cansa de pensar sobre isso, ameaçado imaginariamente em
sua própria integridade corporal. Para a menina, não há dúvida nenhuma: “ela viu aquilo, sabe
que não o tem e quer tê-lo” (Freud, 1924/1980, p. 224). A menina, a partir dessa constatação,
vê-se resignada na tarefa de obter também a posse do pênis.
Quando o menino vê a falta no corpo da mãe, instaura-se um momento infinito de
compreender. Para a menininha, esse momento não passa do tempo antecipado de concluir.
Por isso, o menino resolve seu Édipo com a mãe e sai desse estado para preservar
narcisicamente seu órgão sexual ameaçado, enquanto a menina entra no complexo de cabeça
em busca do ansiado pênis que pode ser dado pelo pai, sem perspectivas de sair tão cedo
dessa posição.
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A diferença entre as atitudes da menina e do menino é resultado psíquico da descoberta


da diferença anatômica e do apoio que essa percepção visual fornece aos mecanismos de
pensamento e às fantasias das crianças nessa fase. A entrada na linguagem produz efeitos de
significantização da falta. No caso do menino, a anatomia feminina dá a perceber um furo
sobre o qual o menino precisa colocar algo, mas que não pode ser pensado sem o conceito da
falta. A ameaça de castração, sentida por ele ao ver que a menina não tem ou perdeu o pênis,
assume seu valor fundamental, pois fornece à teoria as elaborações sobre a falta. O próprio
conceito de falo provém dessa teorização. O representante fálico recobre seu sexo e fornece
ao menino o ponto de referência ao exercício de seu pensamento. A metáfora do pai funciona
para ele muito bem. É a descoberta da possibilidade da castração, tal como provada pela visão
dos órgãos sexuais femininos, que impõe ao menino a transformação de seu complexo de
Édipo e conduz à criação do seu superego.
Entretanto, mesmo que o menino possua no corpo um correlato real do falo e que sua
anatomia lhe socorra com uma representação imaginária que lhe serve como ponto de
ancoragem, o pênis não passará de uma imagem. Cedo ou tarde, ele precisará produzir algo no
nível simbólico em relação a esse órgão. Em contrapartida, ao nomear de castração o que é da
ordem de um furo no corpo da mulher, ele exclui a existência da vagina como sexo feminino e
a reconhece como lugar em que o pênis está ausente. A forma fetichista de amor nos homens
e a dificuldade da menina de se haver com seu destino anatômico estão relacionadas à
maneira como ambos vivenciam a castração.
A menina encontra na constatação da presença do órgão no corpo do menino a certeza de
que lhe falta alguma coisa e de que precisa fazer algo a respeito dessa evidência incontestável
e visível: “Percebe que se saiu mal” (Freud, 1924/1980, p. 223). Ela se apóia sobre o que a
anatomia masculina oferece como signo e acredita que, no futuro, poderá obter um pênis
como o homem. Essa evidência anatômica, que produz uma série de efeitos imaginários, não
é mais consistente para a menina do que a ausência encontrada pelo menino no corpo da
mulher. Freud acredita, nessa época, que o Édipo da menina é muito mais simples que o do
pequeno portador do pênis: “em minha experiência, raramente ela vai além de assumir o lugar
da mãe e adotar uma atitude feminina para com o pai” (Freud, 1924/1980, p. 223). Essa
afirmação parece contradizer as elaborações sobre o difícil caminho da menina até uma
posição feminina, e sobre os desvios que ela precisará empreender para chegar a esse lugar.
Resta saber se a dificuldade da menina de tomar o pai como objeto e se identificar com a mãe
como mulher geraria essa série de desvios em relação ao Édipo natural, produzindo uma
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prova empírica de que uma verdadeira mulher tem sempre algo de extraviado devido aos
restos da ligação de amor com a mãe.
O encontro com o signo da presença, encarnada pelo pênis do menino, é, para a menina,
uma tela, um véu que oculta sua própria falta, pois, se o menino tem, há uma esperança de que
ela também possa um dia vir a ter. Essa fantasia encobre, de certa forma, a constatação da
castração absoluta e irremediável da mulher. A menina reconhece sua castração e a
superioridade do homem, mas se rebela contra esse estado indesejável de coisas. Tanto que,
inicialmente, ela parece não estender essa inferência sobre si própria para outras mulheres
adultas, encarando-as como fálicas e possuidoras de grandes e completos órgãos genitais
masculinos.
No momento em que se deparam com a falta, o menino e a menina significam esse fato
de formas distintas. Enquanto o menino insere a falta de significante do sexo da menina no
simbólico, transformando esse furo em falta, a menina aborda o sexo oposto imaginariamente,
acreditando que o pênis é o signo de uma identidade sexual da qual ela não tem acesso. Se o
complexo de castração se apresenta tão distinto nos dois sexos, também o Édipo se
manifestará de forma assimétrica. “Dá-se, assim, a diferença essencial de que a menina aceita
a castração como um fato consumado, ao passo que o menino tem a possibilidade de sua
ocorrência” (Freud, 1924/1980, p. 223). Resta saber se a menina realmente aceita a castração
como um fato consumado, ou sublima esse desejo apuradamente feminino ao deslocar seu
anseio pelo pênis ao pai, do pai ao filho, do filho ao amor de um homem?
A vivência real da castração no corpo exclui, para a menina, o temor de ser castrada,
diferença crucial em relação ao menino. Até aqui, Freud acreditava que o Édipo feminino era
bem mais simples que o do menino, pois a menina precisaria apenas assumir o lugar da mãe e
adotar a atitude feminina para com o pai. Entretanto, a castração não é tolerada sem uma
compensação, que passa a ser o desejo de obter um filho do pai. Como esse desejo jamais se
realizará, o Édipo é gradativamente abandonado pela menina, mas persiste a ligação com a
mãe, que a privou do falo.
A mulher está sempre reportada a um resto das operações pulsionais, já que não pode
abandonar o desejo de ter o falo em forma de um filho ou de um pênis, mas também não deve
se aferrar completamente numa posição fálica. A menina deve manter a identificação com a
mãe, se posicionar passivamente diante do pai, mas não pode, por outro lado, inibir
completamente a corrente ativa, presente na sexualidade fálica. O desvio que ela precisa fazer
em relação à masculinidade precisa ser feito de uma forma que possa preservar parte dessa
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tendência. Ou seja, os desvios que a menina empreende em sua vida pulsional são
absolutamente necessários e constitutivos da sexualidade feminina.
Em 1925, Freud escreve “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre
os sexos”, artigo no qual apresenta uma primeira reavaliação de suas opiniões sobre o
desenvolvimento psicológico das mulheres. Esse artigo contém os germes dos elementos que
serão abordados em dois estudos posteriores: “Sexualidade feminina” (1931) e
“Feminilidade” (1933).
Freud já havia descoberto que meninas e meninos possuíam componentes passivos e
ativos para com os progenitores, mas, em 1925, ele reconhece que “na menina, o complexo de
Édipo levantava, sobretudo, um problema a mais” (Freud, 1925/1980, p. 312). Como é que a
menina abandonaria seu primeiro objeto de amor, a mãe, e se direcionaria para o pai? Para
responder a essa pergunta, era preciso lançar luz sobre a pré-história edípica feminina.
Freud acreditava que o complexo de Édipo era “uma formação secundária” (Freud,
1925/1980, p. 313), pois, antes disso, a criança do sexo feminino já possuía uma intensa
relação com a mãe. Era sobretudo essa fase de amor à mãe que se mantinha obscura no
desenvolvimento da menina.
Na primeira fase fálica, as meninas vêem o pênis de um irmão ou companheiro de
brincadeiras e, então, comparam com seu órgão pequeno e imperceptível. É aí que elas “caem
vítimas da inveja do pênis” (Freud, 1925/1980, p. 313). O menino vê o sexo de uma menina,
rejeita ou ignora que haja ali uma falta, demonstra irresolução ou falta de interesse pelo fato.
Somente mais tarde essa observação se torna importante para ele, constituindo a ameaça de
castração. Desenvolverá no futuro, “horror à criatura mutilada ou desprezo triunfante por ela”
(Freud, 1925/1980, p. 314).
Nesse exato momento, desenvolve-se uma ramificação ou então talvez uma extra-via para
o complexo de masculinidade nas mulheres, podendo gerar problemas em relação ao
“desenvolvimento regular no sentido da feminilidade” (Freud, 1925/1980, p. 314). A menina
que se aferra a uma posição masculina pode ter atitudes estranhas e inexplicáveis, quadro que
pode evoluir para uma psicose. De acordo com Freud, a menina recusa o fato de ser castrada e
é compelida a se comportar como se fosse um homem.
A histérica e a homossexual são mulheres extraviadas e não o deixam de ser por causa de
suas fixações. Ou seja, a mulher mítica de uma feminilidade normativa não existe. Freud
nunca nos apresentou um exemplar dessa espécie em seus casos clínicos. A ideia lacaniana de
que a mulher não existe pode ser perfeitamente sustentada pelo fato de que uma mulher de
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verdade não é aquela que chega a uma feminilidade completa e verdadeira, mas sim a que,
através de uma série de desvios, localiza-se marginalmente em relação ao Édipo.
A ferida narcísica, que surge da percepção da ausência do pênis, tem desdobramentos na
vida psíquica da menina. Na mulher que se deu conta dessa falta muito cedo, desenvolve-se
primeiramente um sentimento de inferioridade. Quando a menina passa da fase em que tenta
explicar porque lhe falta o pênis como uma resposta à punição dirigida a sua pessoa, desloca-
se para a compreensão de que isso é uma característica universal das mulheres. Partilha, desde
então, do desprezo pelo sexo feminino e, ao sustentar essa opinião, porta-se como um homem.
A inveja do pênis pode se deslocar também para outro lugar no psiquismo feminino: o ciúme,
traço que, como observou Freud, desempenha um papel maior na vida feminina do que
masculina.
Um elemento importante da fase fálica na menina é a fantasia de que um menino, seu
rival, estaria sendo espancado pelo pai. Há uma rigidez própria da fantasia das meninas que se
mostra na ideia fixa do espancamento de uma criança do sexo masculino, como, por exemplo,
um irmão. Freud também interpreta essa fantasia de espancamento como um deslocamento da
vontade de ser acariciada no próprio corpo, mais especificamente no clitóris, o que denuncia
“uma confissão de masturbação” (Freud, 1925/1980, p. 316). A ideia inicial de que ‘meu pai
bate numa criança, meu pai a ama’ se confunde com a ideia de que ‘o meu pai me bate, logo
ele me ama também’. Freud correlaciona toda essas vicissitudes fantasmáticas da vida
psíquica da menina com o complexo de castração e a relação da fase fálica com a importância
do clitóris.
Devido à inveja do pênis, a menina afrouxa a relação afetuosa com a mãe e dela se afasta,
já que a culpa de tê-la trazido ao mundo, “insuficientemente aparelhada” (Freud, 1925/1980,
p. 316) é somente da mãe. A menina percebe que não tem o órgão fálico e começa a
demonstrar ciúmes por outra criança, pois acredita que a mãe gosta mais desse rival do que
dela. Essa criança, que passa a ser o personagem principal de sua fantasia de espancamento e
amor, torna-se o primeiro objeto da fantasia que culmina em masturbação. A inveja do pênis
se transforma em ciúmes de um terceiro.
O último, mais importante e mais surpreendente efeito da inveja do pênis é o abandono
da masturbação pela menina, fato que não pode ser explicado somente pela censura imposta
pelos cuidadores da criança. A masturbação, segundo Freud, é uma prática mais distante da
natureza das mulheres do que da dos homens. Seria, portanto, uma atividade essencialmente
masculina e, por esse motivo, sua eliminação constituiria a precondição necessária para o
desenvolvimento da feminilidade. O abandono da masturbação aconteceria somente devido a
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um sentimento de humilhação ligado a inveja do pênis. A descoberta de que seu pequeno


clitóris não pode competir com o pênis dos meninos leva a menina a abandonar essa atividade
tipicamente masculina e, então, encaminhar-se “para novas linhas que conduzem ao
desenvolvimento da feminilidade” (Freud, 1925/1980, p. 318). O abandono do impulso que
leva à masturbação seria um precursor da onda de repressão que, na puberdade, extinguirá
grande quantidade da sexualidade masculina da menina, a fim de dar espaço ao
desenvolvimento da sua feminilidade. Na verdade, existe uma questão dúbia em relação às
elaborações que Freud faz sobre a fase fálica já que por um lado, ele diz que a menina precisa
abandonar essa atividade para conduzir-se ao desenvolvimento da feminilidade, e por outro,
afirma que ela não pode jamais se desviar completamente desse lugar.
É interessante notar que Freud não afirma que toda a sexualidade masculina será
abandonada, e sim que grande parte dela se extinguirá. Portanto, há uma pista de que a mulher
se desviará da sexualidade fálica e masturbatória, mas também se manterá ligada a ela,
conservando as duas correntes em sua vida sexual. Anos mais tarde, a partir da leitura do
texto freudiano, Lacan determinará essas duas correntes como as duas formas de gozo: fálico
e não-todo fálico. O desvio será empreendido em relação à referência fálica, mas, ao lado
desta via, produzir-se-á uma extravia não toda drenada pelo falo, bem característica da
sexualidade feminina. É preciso reconhecer, como fez Lacan, que a sexualidade fálica faz
parte do desenvolvimento de uma mulher e que seu Outro gozo pode ser atingido ou não. O
fato relevante é que a sexualidade fálica pode estar parasitada por esse gozo não simbolizado
que está numa extravia, à margem do falo.
O próximo passo do desenvolvimento feminino é ligar-se ao pai no complexo de Édipo.
A menina passa a adorar a figura paterna e desenvolve um ciúme da mãe. “A menina
transforma-se em uma pequena mulher” (Freud, 1925/1980, p. 318). Há uma dúvida que
permanece na teoria freudiana com relação ao momento do reconhecimento da vagina como
órgão sexual. Freud parece apontar para o reconhecimento de um único caso clínico em que
as sensações corporais apontavam para “um despertar prematuro do aparelho genital
feminino”, como se a vagina, órgão ‘virtual’, nunca pudesse tomar seu lugar no psiquismo
feminino devido aos restos de uma sexualidade fálica e prevalente.
Em resumo, pode-se dizer que, nas meninas, o complexo de Édipo é visto como uma
formação secundária que não anula, mas se sobrepõe ao pré-Édipo com a mãe. O complexo
de castração prepara e precede o Édipo, sendo pelo reconhecimento de uma falta que a
menina segue adiante. Contudo, é ao mesmo tempo em razão dessa mesma falta que ela pode
permanecer identificada ao pai e se tornar um ‘pequeno homem’.
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Freud havia formulado a tese de que o complexo de Édipo do menino “não é


simplesmente reprimido, é literalmente feito em pedaços pelo choque da castração ameaçada”
(Freud, 1925/1980, p. 319). O menino reprime as exigências sexuais e o superego se produz
como herdeiro do Édipo, encarnando um interessante objetivo para a formação da cultura,
pois “é uma vitória da raça sobre o indivíduo” (Freud, 1925/1980, p. 319). O sujeito abre mão
de seu desejo incestuoso pela mãe e aceita a lei paterna, introjetando-a, completamente.
No caso das meninas, falta um motivo forte para a demolição do Édipo. A castração já
fez seus efeitos de forma completa, conduzindo-as a um enamoramento pelo pai. “Esse
complexo pode ser lentamente abandonado mediante a repressão ou seus efeitos podem existir
com bastante ênfase na vida mental normal das mulheres” (Freud, 1925/1980, p. 319). Ou
seja, tudo levaria a crer que a feminilidade contemplaria a convivência das correntes feminina
e masculina. “Todos os indivíduos humanos, em resultado de sua disposição bissexual e da
herança cruzada, combinam em si características tanto masculinas quanto femininas” (Freud,
1925/1980, p. 319). Entretanto, Freud não se cansa de afirmar que essas duas correntes são
muito mais perceptíveis na mulher.

4.4 - A feminilidade como enigma: a relação pré-edipiana com a mãe

“De todo modo a expressão libido feminina carece de qualquer justificativa.


Além disso, temos a impressão que maior coação é aplicada à libido quando ela
é pressionada para o serviço da função feminina” (Freud, 1933/2010, p. 289.)

No texto de 1931, “A Sexualidade feminina”, Freud examina o elemento pulsional ativo


no amor da menina pela mãe e constata que não é possível eliminar a vertente fálica na
mulher, sob a pena de que ela abandone completamente sua sexualidade. O desvio efetuado
pela menina em relação à referência fálica fica evidente nessas elaborações, já que ela precisa
lançar mão da referência masculina para se localizar em uma “definitiva configuração
feminina normal” (Freud, 1931/2010, p. 379). Em Freud, sexualidade fálica é, ao mesmo
tempo, condição e empecilho para chegar à verdadeira feminilidade.
Se, no caso da menina, o primeiro objeto de amor é a mãe, como voltar-se para o pai, mas
manter a identificação com a progenitora? Como a menina poderia conviver com essa
dualidade, entre amor e identificação pela mãe e pelo pai, em sua escolha de objeto? E, ainda,
um segundo desafio: como poderia resolver a convivência, em sua vida sexual, de duas zonas
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erógenas, o clitóris e a vagina? “Há muito tempo compreendemos que o desenvolvimento da


sexualidade feminina é complicado pelo fato de a menina ter a tarefa de abandonar o que
originalmente constitui sua principal zona genital - o clitóris - em favor de outra, a vagina”
(Freud, 1931/2010, p. 380). Freud chega à conclusão de que a menina não abandona, mas
mantém as duas correntes em convivência em sua vida psíquica.
Freud analisa dois tipos de mulheres: as que possuem uma forte ligação com o pai e,
apesar disso, mantêm a posição fálica e ativa com relação à mãe; e as que não se voltavam
para o pai, mas permanecem detidas no laço original com a mãe. Freud salienta que as
mulheres do primeiro tipo − que preservam ligações com o pai e com a mãe − nem por isso
são neuróticas. O psicanalista observou que, nessas mulheres, a ligação intensa com o pai era
posterior a uma também intensa ligação com a mãe, ligação essa construída de maneira “rica e
multificada”. A presença desse laço com a mãe se fazia notar durante toda a vida de uma
mulher.
Ao longo do tempo, Freud percebe que a ligação ativa com a mãe não era mantida
unicamente nas mulheres que se fixavam na relação com a mãe. Em certa medida, isso
acontecia com todas elas. “Nossa compreensão interna dessa fase primitiva, pré-edipiana nas
meninas chega como uma surpresa, tal como a descoberta em outro campo da civilização
mino-micênica por detrás da civilização da Grécia” (Freud, 1931/2010, p. 260). Esse é o
reconhecimento de que uma verdadeira mulher possui restos dessas relações mesmo em seu
desenvolvimento normal. Parece que Freud está indicando aí a presença de uma outra
satisfação, não redutível à satisfação fálica.
Por trás do deslocamento que a menina empreende em direção ao pai, pré-existiria um
tempo de ligação com a mãe, tão esmaecido e obscuro que era como se houvesse ali algo que
sucumbiu a uma repressão especialmente inexorável. A fase de amor ao pai muitas vezes seria
um refúgio a essa difícil relação com a mãe. Freud chega a acreditar que a etiologia da histeria
estaria diretamente ligada à fase de ligação com a mãe, por essa ser uma etapa da neurose
“caracteristicamente feminina” (Freud, 1931/2010, p. 261). Aí está mais uma das ilustrações
do desvio feminino no Édipo, o qual parece ser a única forma da menina passar por esse
complexo.
Em “A Sexualidade feminina”, Freud chega à outra elaboração que ilustra mais uma das
condições possíveis para os desvios da mulher. “A bissexualidade presente conforme
acreditamos na disposição inata dos seres humanos vem para o primeiro plano muito mais
claramente nas mulheres do que nos homens” (Freud, 1931/2010, p. 262). Freud afirma que a
mulher teria dois órgãos sexuais, a vagina e o clitóris, enquanto o homem possui somente um.
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Mesmo que a vagina tenha sido por muito tempo considerada “virtualmente inexistente”
(Freud, 1931/2010, p. 262), é possível que, nesses primeiros anos, os impulsos vaginais
estivessem presentes. A ideia de um desvio do clitóris à vagina pode ser apreendida das
elaborações freudianas: “Sua vida sexual é regularmente dividida em duas fases, a primeira
das quais possui um caráter masculino, ao passo que apenas a segunda é especificamente
feminina” (Freud, 1931/2010, p. 262). Freud sabia que essa fase de transição só poderia ser
testemunhada na menina e nada análogo poderia ser confirmado no menino.
Para Freud, o fato de “o clitóris, com seu caráter viril, continuar a funcionar na vida
sexual feminina posterior” (Freud, 1931/2010, p. 262) era, inicialmente, um complicador
teórico para compreender os destinos pulsionais da menina. Entretanto, em textos futuros, ele
admite que, sem essa quota da sexualidade masculina, a menina corria o risco de abandonar
toda a sua sexualidade.
Freud não foi capaz de precisar, nesse momento, em que condições e em que medida a
menina opera seu desvio em relação ao Édipo. Essa mudança poderia ocorrer de forma radical
ou incompleta. A mulher não se transformaria a partir de uma síntese entre as correntes
passivas e ativas, femininas e masculinas, mas esses elementos se revezariam e conviveriam
em seu psiquismo e em sua vida sexual, em função da contingência que regula o tornar-se
mulher em Freud. Segundo o psicanalista vienense a menina encontra uma saída na
maternidade sendo por essa via que ela resolve seu eterno desejo pelo pênis. Nesse sentido,
existiria A mulher.
O Édipo feminino pode tomar três caminhos distintos. A primeira saída é o abandono da
atividade fálica e, com isso, de parte considerável ou de toda a sexualidade. O abandono da
sexualidade masculina pela menina poderia levá-la a uma “recusa geral à sexualidade” e à
histeria. A segunda saída conduz a menina a se aferrar a uma posição masculina e à crença de
que ela é um homem e que possuirá, sem dúvida, um pênis no futuro próximo. Essa saída a
localizaria no complexo de masculinidade. Apenas a terceira saída conduziria à feminilidade
“normal”, que seria a maternidade. Nesse caso, a menina tomaria o pai como objeto de amor
e, então, encontraria o caminho para a sexualidade feminina. Fica evidente que, para as
mulheres, o complexo de Édipo é o resultado de um desenvolvimento bastante complicado
porque a sexualidade fálica é sempre uma pedra no caminho da menina. “Não é destruído,
mas criado pela influência da castração, na verdade com muita frequência de modo algum é
superado pela mulher” (Freud, 1931/2010, p. 264).
Freud reconhece, assim, o caráter contingencial que há na passagem pelas etapas do
desenvolvimento psíquico feminino: “Mesmo o momento em que a descoberta da castração é
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efetuada, varia, e uma série de outros fatores parece ser inconstante e depender do acaso”
(Freud, 1931/2010, p. 266). O tornar-se mulher seria uma contingência, e não um caminho
necessário para toda menina.
No texto “Sexualidade feminina”, Freud retoma o problema de a sexualidade feminina se
ancorar “na existência de tendências libidinais com fins passivos”. No caso da relação entre
mãe e filha, a mistura entre passividade e atividade é interessante porque a menina tende a
repetir ativamente o que foi feito com ela pela mãe. Para dominar os eventos externos,
reproduz uma reação que sofreu passivamente, mas, agora, com efeito ativo sobre a cena do
mundo. O brincar da menina com uma boneca, por exemplo, “é realizado para servir ao fim
de suplementar uma experiência passiva como um comportamento ativo” (Freud, 1931/2010,
p. 271). De fato, grande parte das experiências sexuais que uma criança tem com a mãe são
naturalmente passivas − quando, por exemplo, o bebê é amamentado, alimentado, lavado e
vestido. Se, por um lado, essas experiências de passividade se conservam, por outro, a menina
tende a se tornar ativa, executado com sucesso o que antes era tarefa da mãe. A menina ensaia
certa atividade em relação à mãe, pois, segundo Freud, há uma “revolta inequívoca contra a
passividade e uma preferência pelo papel ativo” (Freud, 1931/2010, p. 271). Na primitiva
ligação com a mãe, a passividade é tolerada, mas a menina logo começa a se esforçar para sair
dessa posição.
A ligação à mãe está muito relacionada à masturbação e à fase fálica. “A mãe
inevitavelmente inicia a filha na fase fálica” (Freud, 1931/2010, p. 274), pois cuida de sua
higiene e, com isso, desperta fortes sensações genitais. “O afastamento da mãe constitui um
passo importante no curso do desenvolvimento de uma menina, trata-se de algo a mais do que
uma simples mudança de objeto” (Freud, 1931/2010, p. 274). A menina precisa aceitar uma
quota de passividade para se desvincular da mãe e ligar-se ao pai como objeto do amor.
Descontente com seu clitóris e com o diminuto gozo que ela pensa obter com ele, a menina
renuncia à masturbação e afasta-se da mãe. Assim, renuncia também, por outro lado, à
sexualidade ativa. Trata-se de um rebaixamento dos impulsos ativos e de uma ascensão dos
impulsos passivos.
Entretanto, mesmo que a menina ligue-se ao pai com a ajuda de moções passivas e que a
feminilidade encontre apoio (Freud, 1931/2010), “quando a menina reprime sua
masculinidade prévia, uma parte considerável de suas tendências sexuais em geral fica
também permanentemente danificada” (Freud, 1931/2010, p. 275).
Percebe-se, nas entrelinhas das elaborações freudianas, que, se por um lado, renunciar à
atividade e à masturbação provoca um desapontamento, permanecer na posição ativa também
94

provoca certa forma de frustração em relação ao prazer obtido com o pequeno pênis. A
menina está numa situação difícil de resolver: deve renunciar à atividade masculina, mas não
completamente. Se as tendências ativas foram afetadas pela frustração, as passivas também
não lhe trouxeram grandes ganhos. Para chegar a uma sexualidade satisfatória, seria preciso
manter uma quota de sexualidade fálica e outra cota de finalidades passivas e femininas. “O
caminho para o desenvolvimento da feminilidade está agora aberto à menina até onde não se
ache restrito pelos remanescentes da ligação pré-edipiana à mãe” (Freud, 1931/2010, p. 275).
Nesse caso, a menina estaria sujeita a desvios essenciais em seu desenvolvimento, pois
precisaria manter duas correntes aparentemente opostas funcionando ao mesmo tempo.
Freud reconhece que o complexo de Édipo “com muita frequência, de modo algum é
superado pela mulher” (Freud, 1931/2010, p. 264). As relações afetivas da mulher se
constroem como uma sobreposição da relação com seus progenitores. “O relacionamento dela
com a mãe foi original, tendo a ligação com o pai sido construída sobre ele” (Freud,
1931/2010, p. 265). Essa sobreposição de fases e de objetos de amor demonstram claramente
como o estudo da vida psíquica adulta das mulheres aponta para um desdobramento de sua
posição e de seu gozo, mais do que de uma antítese entre dois elementos.
Ao perceber a dualidade do destino pulsional na mulher em contraste com uma
orientação masculina da natureza da pulsão, Freud afirma que é indiferente que exista no
corpo uma única, duas ou um número incontornável de substâncias sexuais excitantes. O que
importa para a psicanálise é que a libido é única, masculina, mas seus objetivos ou
modalidades de satisfação são ativos e passivos. É essa antítese que procuramos pesquisar,
pois ela persiste em Lacan e traz repercussões relevantes para a teorização sobre a sexualidade
feminina. Como acontece a posição feminina para uma mulher diante da natureza fálica da
libido se é a partir dessa libido masculina que a mulher produz seus desvios?
No texto “Feminilidade” (1932-33), Freud apresenta seus últimos apontamentos em
relação ao desenvolvimento da sexualidade feminina. O psicanalista questiona a constatação
da existência de dois sexos a partir da observação visual da anatomia, alegando que há
inegáveis sinais de bissexualidade na espécie humana: “O indivíduo não seria homem ou
mulher, mas sempre as duas coisas, apenas um tanto mais de uma que da outra” (Freud,
1933/2010, p. 265). A proporção entre masculinidade e feminilidade estaria misturada nos
seres humanos, sujeita a variações consideráveis. “O que constitui a masculinidade ou a
feminilidade é uma característica desconhecida, que a anatomia não pode apreender” (Freud,
1933/2010, p. 266).
95

Além de afirmar que não se poderia reduzir feminino e masculino à anatomia, Freud
acreditava que a distinção entre os sexos tampouco seria definida pela passividade ou
atividade. No caso de uma mãe amamentando seu bebê, por exemplo, há dois polos: um
passivo, quando ela se entrega passivamente ao sugar do bebê, e outro ativo, quando ela
mesma oferece o seio à criança. Freud definia a feminilidade como uma posição sexual
“psicologicamente caracterizada pela preferência por metas passivas”, o que não é o mesmo
que ser passivo. Em muitas situações, é preciso uma boa dose de atividade para alcançar uma
meta passiva.
Em “Feminilidade”, um dos textos da Conferência XXXIII (1933), Freud se lança à
tarefa de “investigar como a mulher vem a ser, como se desenvolve a partir da criança
inatamente bissexual” (Freud, 1933/2010, p. 269), já que a psicanálise não se aventura a
descrever o que é a mulher, pois isso seria “uma tarefa impossível”. É possível perceber que
Freud possuía uma hipótese de fundo biológico ao dar início aos estudos do feminino, pois
suas investigações giram em torno de uma questão em relação à constituição física e sua
função. Ele acredita que o ajuste entre função e constituição era um tema problemático em
relação à constituição dos seres humanos. Nascer com órgãos sexuais femininos não equivalia
exatamente a nascer na posição feminina. Essa era a maior questão.
As mudanças decisivas para que uma criança bissexual se tornasse uma mulher eram
realizadas antes da puberdade, em tenra infância e essa era uma evidência de que, para a
garota pequena, evoluir até que se tornasse uma mulher adulta “é mais difícil e complicado,
pois abrange duas tarefas mais, para as quais não há contrapartida na evolução do menino”
(Freud, 1933/2010, p. 270).
É sabido que não é possível compreender o desenvolvimento sexual da menina sem
analisar o conteúdo da fase pré-edípica com a mãe, pois esse período guarda “fixações e
predisposições” (Freud, 1933/2010, p. 272) que são marcas relevantes para a vida pulsional
feminina. Nessa relação, a menina sustenta ligações libidinais de diversos tipos com sua
primeira sedutora, dirigindo seus desejos sexuais, nas fases, oral, anal e fálica à figura
materna. Mesclados, estariam em jogo impulsos ativos e passivos, femininos e masculinos.
Há um extremo interesse de Freud em descortinar o modo como uma menina se desliga
da figura materna e se volta para o pai. A relação afetuosa da menina com sua progenitora
termina em hostilidade, afirma o psicanalista. Uma parte desse ódio é superado, “enquanto
outra parte persiste” (Freud, 1933/2010, p. 276). Ao acompanhar o raciocínio freudiano sobre
o desenvolvimento da sexualidade feminina, parece evidente que, no desenvolvimento da
96

sexualidade feminina, nada é definitivo, nem definido, sempre há um resto arcaico da relação
com a mãe que não foi simbolizada.
A maior fonte de hostilidade da criança para com a mãe vem da proibição materna de que
a criança “se ocupe prazerosamente com os genitais”, algo em que a própria mãe havia
iniciado a criança, com seus cuidados higiênicos. A sedução inicial da mãe em relação a seu
corpo, acompanhada da proibição da masturbação, do ciúme de outro bebê, da fantasia de que
a mãe é desatenta e dos desapontamentos amorosos para com ela, afastam a menina dessa
primitiva ligação.
Freud acreditava que o que levaria as mulheres à análise era seu desejo de obter, enfim, o
pênis ansiado por tanto tempo. Entretanto, o que elas poderiam esperar da análise era apenas
“uma modificação sublimada desse desejo reprimido por um pênis” (Freud, 1933/2010, p.
280).
Como uma menina, ancorada nessa inveja do pênis e ressentida com a mãe e com o pai,
que não foram capazes de lhe socorrer em sua falta constitutiva, poderia fruir de uma
sexualidade fálica e clitoridiana, mas ao mesmo tempo, deslocar-se em direção a outro tipo de
satisfação, mais feminina, a vaginal? A partir de que ancoragem poderia ela manter uma
identificação com sua mãe, castrada como ela, e o amor ao pai, sem identificar-se
completamente à uma posição masculina ou fálica?
Ao reler a teoria freudiana sobre a feminilidade, Lacan concluiu que uma verdadeira
mulher passaria pelo Édipo sem que necessariamente as identificações fálicas provenientes
desse período pudessem servir para determinar sua sexualidade. A problemática toda em
relação à sexualidade feminina estaria no fato de que o complexo de Édipo e o complexo de
castração não conduzem a menina a uma saída necessária em relação à posição feminina. É
por meio dos descaminhos e desvios próprios dessa fase que se encontra a ideia de que a
mulher tem elementos que se extraviam da estrutura proposta. Os redirecionamentos da
arquitetura pulsional ativa para uma finalidade passiva encontram, na mulher, muitas nuances,
o que faz da sexualidade feminina um campo rico, enigmático e de profundo interesse para a
psicanálise, embora “a psicologia não solucione o enigma da feminilidade” (Freud,
1933/2010, p. 268).
97

5. FIGURAS CLÍNICAS DA FEMINILIDADE EM FREUD PELA LEITURA DE


LACAN

“O que é um órgão feminino?” (Lacan, 1955-56/1985, p. 197).

No início de seu ensino, Lacan retoma os casos clínicos de Freud, a fim de compreender a
distinção entre a maneira como meninos e meninas passam pelo Édipo e a forma de apreensão
da metáfora paterna para ambos os sexos. Até o Seminário, livro 5: as formações do
inconsciente, Lacan comenta alguns casos clínicos de pacientes atendidas por Freud, as quais
chamaremos, aqui, de figuras do feminino dos anos 1950: Dora, Irma e a Jovem
Homossexual. É depois de estudar esses três relatos que Lacan escreve a proposição que
analisamos nesta tese: “Nas verdadeiras mulheres há sempre algo meio extraviado” (Lacan,
1957-58/1999, p. 202).
A expressão revela que, diante da função do pai, “uma verdadeira mulher” pode
extraviar-se na passagem pelo Édipo, seja numa posição homossexual, histérica, ou numa
saída pelo gozo místico ou pela transgressão trágica. As coisas se passam dessa forma porque
a importância do falo se produz também no “centro da dialética feminina” (Lacan, 1957-
58/1999, p. 286). Essa importância central da função fálica coloca para a mulher um
paradoxo, já que ela não tem acesso ao significante da mulher pelo complexo de castração.
Segundo Lacan, é sempre preciso que intervenha “alguma coisa a mais” (Lacan, 1957-
58/1999, p. 286), para que a menina se reconheça numa posição feminina.
A histeria e a homossexualidade são duas saídas possíveis apontadas por Freud para a
sexualidade feminina. No entanto, Lacan entende que, por mais que a menina encontre uma
dessas saídas, isso não significa que ela não vá passar por esse extravio que transcende a
função edípica. A regulação da sexualidade por meio de uma referência simbólica encontra na
mulher um outro caminho, já que por ela não se definir pelo plano das identificações, o desvio
em relação ao Édipo pode surgir contingencialmente.
Na histeria, a mulher toma uma posição fálica e masculina em relação ao Outro, no
sentido de garantir duas vertentes do desejo: primeiro, que ele se mantenha insatisfeito e,
segundo, que A mulher exista como A Outra que sabe o segredo da feminilidade. A
identificação com uma posição masculina do desejo é o nó do sintoma histérico, e é através
desse álibi que a histérica interpela sua sexualidade, procurando evitar a angústia decorrente
da constatação da castração do pai. Todos os sintomas histéricos giram em torno da questão
98

da falta de um significante que é procurado no Outro. Logo, o sintoma se resume em


reivindicar a posse do falo, demandando o encontro com a completude no Outro.
Vejamos o exemplo de Dora, que se extravia porque erige o feminino como um ideal
encarnado na figura de outra mulher e, a partir de então, deseja saber o segredo da
feminilidade através de um homem, o qual escolhe a dedo. Ao procurar em outra mulher o
que é o segredo da feminilidade, Dora se dirige ao S(de A barrado), o elemento fora do
simbólico. Esse encontro com o significante que não existe configura uma forma de extravio
porque dirigir-se a outra mulher é também encontrar-se com o lugar dessa falta do
significante. Nesse encontro com A Outra, Dora se depara com a falta irremediável presente
em toda mulher.
Já a Jovem Homossexual, assume uma posição viril diante de outra mulher, mostrando ao
pai como é dar o que não se tem a uma mulher que também não o tem. Ela abandona todos os
homens em nome do amor à mãe e prepara o terreno para realizar a missão de enfrentar o pai
no próprio campo de seu desejo. A Jovem se coloca na posição de dar algo de maneira
gratuita a uma mulher com a qual não tem de fato uma relação sexual. Na verdade, por detrás
do que ela dá, existe tudo o que lhe falta. Como sujeito, ela se sacrifica para além daquilo que
tem. Mais um detalhe importante desse caso é o ato suicida que denota uma satisfação
paradoxal, entre punição e desejo. A Jovem se extravia do campo simbólico, pois não vê
nenhuma forma de mediação pela palavra para sustentar seu desejo por uma mulher, sem o
reconhecimento do pai. Ela produz uma passagem ao ato aí onde se pode vislumbrar mais
uma forma de aparição desse extravio feminino.
Tanto Dora quanto a Jovem Homossexual se desviam do campo simbólico, já que a
sexualidade feminina não encontra no Édipo uma saída para nomear A mulher. O extravio de
cada uma delas é sua forma de dizer de uma meia verdade. Não se tem notícia de que Freud
tenha nos presenteado com um caso em que o complexo de Édipo tenha se passado de
maneira normativa e absoluta a ponto de produzir um’A mulher. É digno de nota ressaltar que,
diante da inexistência da feminilidade verdadeira, Freud nomeou cada uma de suas pacientes
com nomes fictícios para produzir as figuras de mulher. Todas elas encarnam, pelos nomes
inventados pela pena de Freud, uma estrutura de ficção. Veremos, agora, mais detidamente,
além do caso de Dora e da Jovem o sonho de Freud com Irma que também era uma de suas
pacientes.
99

5.1 - Irma: um corpo sem simbolização no sonho freudiano

“O abismo do órgão feminino de onde sai toda a vida e também a imagem da


morte onde tudo vem terminar” (Lacan, 1954-55/1985, p. 197).
“Tive a sensação de que a interpretação dessa parte do sonho não foi
suficientemente desenvolvida para possibilitar o entendimento de todo o seu
sentido oculto. Se tivesse prosseguido com em minha comparação entre as três
mulheres ela me teria levado muito longe. Existe pelo menos um ponto em todo o
sonho no qual ele se torna insondável – um umbigo por assim dizer, que é seu
ponto de contato com o desconhecido” (Freud, 1900/1999, p. 125).

Irma foi paciente de Freud e sua história foi descrita nos Estudos sobre a histeria (1893)
como o caso clínico da Srta. Emma. Não é nosso objetivo analisar especificamente o
tratamento da paciente, mas demonstrar qual poderia ser o elemento de extravio do desejo
freudiano em relação à Sra. Irma-Emma27. O sonho da injeção de Irma pode ser considerado
inaugural para a história da psicanálise, pois, a partir dele, Freud não só desviará o rumo de
sua teoria, como também se deparará, pela primeira vez, com o mistério da feminilidade.
O psicanalista sonha com Irma e, nesse sonho, seu desejo inconsciente arquiteta o enredo
onírico de forma a suspender o sentido exatamente quando ele tenta nomear ou simbolizar um
elemento do corpo e da sexualidade feminina. Diferentes personagens de mulheres se
revezam e se confundem com figuras femininas importantes na vida de Freud, como sua
esposa Martha e sua filha Mathilde.
Irma pode ser considerada uma verdadeira mulher, pois é ela que representa diante do
sonho de Freud esse corpo que se extravia pelo desejo desse homem. Podemos perceber, na
construção do famoso “Sonho da Injeção de Irma” (1900), como a figura dessa mulher
conduz o psicanalista vienense ao insondável da sexualidade feminina. Na narrativa do sonho,
quando Freud faz um esforço de apreender o que se passa com Irma, no momento em que a
moça abre a garganta, algo se extravia dentro da estrutura de linguagem produzida pelo
sonhador. Freud, então, angustia-se. Ele não pode responder, nem simbolizar o que vê, a não
ser com uma fórmula de letras enigmáticas.
Parece que a intuição freudiana vislumbrou muito cedo o elemento irrepresentável da
sexualidade feminina. Segundo Lacan, haveria um laço associativo entre a cena assustadora

27
Irma e Emma são exatamente a mesma mulher.
100

da carne informe no fundo da garganta de Irma e a fórmula da trimetilamina, que emerge


posteriormente no sonho. A fórmula seria uma tentativa de produzir uma transcrição
significante onde não haveria simbolização possível para a mulher. A ausência de inscrição
simbólica da sexualidade feminina vem a ser justamente o dado traumático que o dispositivo
analítico recolhe no nível da experiência clínica.
No Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud, Lacan faz uma leitura importante de “O
sonho da injeção de Irma”. Tanto os estudos freudianos sobre a interpretação de sonhos
quanto o artigo lacaniano sobre Irma, flertam com o tema da feminilidade. A psicanálise não
era uma ciência com pretensões de produzir um saber sobre o sentido do sexual. Foi ao longo
da escrita teórica da psicanálise que Freud se deparou inesperadamente com o impasse teórico
que a sexualidade feminina localizava, pois ele não se deixava resolver completamente pelo
Édipo. Isso aparece de forma mais clara nos relatos dos casos clínicos. Há sempre um enigma,
uma suspensão de sentido, algo que não pode ser completamente simbolizado pelas
interpretações freudianas.
Esse é um sonho inaugural, pois ali acontece a descoberta freudiana sobre o desejo
inconsciente e a análise dos processos psíquicos na forma como eles estariam presentes na
teoria da doença histérica e do desenvolvimento da feminilidade de forma geral. Nessa época,
Freud havia encontrado uma homologia estrutural entre neurose histérica e a elaboração dos
sonhos. “A chave da histeria se encontra realmente incluída no sonho” (Freud, 1889/1980, p.
142). Era a partir dos processos inconscientes, da estrutura de funcionamento da metáfora e da
metonímia e do processo primário e secundário, acionados na produção onírica, que os
sintomas histéricos também se desenrolavam.
O “Sonho da Injeção de Irma” acontece num momento crucial: é quando Freud toma um
caminho teórico distinto do que vinha percorrendo até 1895. Até então, ele vinha sendo
influenciado pelas teorias de seu mestre, o Dr. Fliess, que explicava as questões das
diferenças psíquicas e sexuais entre os sexos a partir do conceito de bilateralidade e das
estruturas nasais. Ao afastar-se dessa tese, Freud dá um passo rumo à abordagem dos
mecanismos da realização do desejo, implicado-se em seus próprios sonhos e na investigação
da estrutura da doença histérica.
O sonho com Irma, sua ex-paciente, o primeiro submetido a uma investigação
pormenorizada dos elementos oníricos pelo clínico de Viena, foi importantíssimo para a teoria
da psicanálise, já que pela primeira vez ele tinha acesso ao próprio saber, o que foi nomeado
mais tarde como uma “inteligência inconsciente” (André, 1998, p. 46). Freud estava no rastro
101

das pistas que comprovariam a existência de um aparelho psíquico cuja engrenagem ele seria
capaz de descrever a partir de um ‘projeto sobre a psicologia científica’.
Lacan releu o texto de Freud sobre esse sonho e o analisou no Seminário 2, procurando
ater-se ao sentido das concepções do psicanalista acerca do aparelho psíquico e de como ele
desenvolveu sua teoria, a fim de manter uma coerência interna de seus preceitos. Entretanto, é
nesse percurso que vislumbramos a dificuldade única e constante a que respondia o progresso
do pensamento freudiano, já que, desde o início, suas formulações em relação ao tema da
feminilidade andaram lado a lado com a teoria do inconsciente.
Decifrado de modo único, como a realização de um desejo, “O sonho da injeção” foi
descrito na época em que o psicanalista estava às voltas com as consequências da descoberta
do sentido sexual e do conflito fundamental que levavam um paciente à neurose. Freud
acreditava que, quando o elemento central implicado na verdade do conflito se manifestava
em forma de sintomas histéricos, por exemplo, bastava propor uma interpretação sobre a
causa de tal sintoma ao sujeito, que o aceitava ou não, e então era possível ao analista esperar
as consequências dessa revelação para o tratamento e cura da neurose. Vale lembrar que,
nessa época, Freud vivia às voltas com questões em relação ao tratamento da histeria e à
formulação de hipóteses que seriam duramente questionadas pelo saber médico de sua época.
A personagem principal do sonho era Irma, nome fictício de Emma Ekstein, amiga da
família, que chegou para uma primeira consulta com o Dr. Freud apresentando uma série de
sintomas histéricos. Irma não era ninguém menos do que a famosa paciente que Freud havia
encaminhado a Fliess para uma cirurgia nos cornetos nasais. Devido de seu tratamento
analítico, por causa também das resistências da própria paciente, Freud havia dito a ela que
não se considerava mais responsável pelo encaminhamento de seu caso clínico. Irma recusou
a ‘solução’ apresentada pelo psicanalista para seus conflitos e interrompeu sua análise
abruptamente. No sonho, Freud se desculpa pelo insucesso do tratamento, deixando a
responsabilidade toda nas mãos da paciente.
A primeira passagem do sonho freudiano analisada por Lacan no Seminário, livro 2 diz
respeito às formações crespas esbranquiçadas encontradas no fundo da garganta da paciente, o
que fazia alusão à fórmula de uma substância, a trimetilamina, e à relação de Freud com
Fliess. Willian Fliess havia criado uma teoria delirante sobre a relação entre o nariz, seus
humores e o órgão sexual feminino. Freud sabia que, para além do corpo orgânico de suas
pacientes, havia um inconsciente que se manifestava pelos sintomas e, por isso, nessa época,
as ideias de Fliess lhe pareceram pouco consistentes.
102

Na verdade, sabe-se que o sonho de Freud revelou uma relação direta com um
acontecimento vivido entre ele, Irma e Fliess, algum tempo antes. Em uma correspondência
inédita entre os dois, que ocorreu nos meses de março a abril de 1895, Freud havia
efetivamente pedido o parecer do amigo, a fim de verificar se Irma não havia contraído algum
problema de ordem orgânica no nariz. “Fliess veio especialmente de Berlim, examinou a
paciente, sugeriu uma operação e, a pedido de Freud, realizou-a ele mesmo” (André, 1998, p.
48).
Depois dessa intervenção cirúrgica, a paciente iniciou um quadro de sangramento nasal e
dores intensas. Preocupado, Freud pediu que um otorrino de Viena examinasse a moça e
descobriu-se que Fliess havia, “num ato falho cirúrgico” (André, 1998, p. 48), esquecido na
narina da paciente uma gaze de cinquenta centímetros embebida em iodo. Depois disso, a
paciente foi operada diversas vezes e sofreu hemorragias que a deixaram em estado crítico.
Esse fato acabou por fragilizar a ligação de Freud com seu tutor.
A resposta de Fliess ao problema de Irma afinava-se com sua teoria de que o órgão nasal
era formado por estruturas que correspondiam exatamente aos órgãos sexuais femininos e
masculinos, além de ser o canal de escoamento da famosa toxina sexual descoberta por ele, a
trimetilamina. A relação do nariz com a sexualidade feminina era parte de um delírio
meticulosamente construído pelo homem a quem Freud confiou suas teses durante anos. A
análise imaginária da sexualidade fez com que Fliess perdesse de vista a forma com que a
energia sexual ou pulsional se manifestava para a sexualidade feminina.
Não é segredo que a cura de Irma era uma aspiração para Freud, por se tratar de uma
amiga íntima da família. Por isso mesmo, ele se achava em dificuldades com ela, já que a
moça havia melhorado bastante de sua angustia histérica, mas, contudo, mantinha alguns
sintomas somáticos, como uma propensão a vômitos. Entretanto, o fato de cuidar de alguém
tão próximo havia lhe causado muitas recriminações por parte dos colegas. A culpa
deflagrada pelo desfecho desse tratamento e o desejo de descobrir algo surpreendente sobre a
cura das neuroses fizeram Freud caminhar para a decifração do desejo implicado nos sonhos.
Ao analisar o artigo freudiano, Lacan resgata e analisa o vocábulo lösung, em português
solução, utilizado por Freud no relato do sonho. Segundo Lacan, esse seria um significante
importante na trama da história. A palavra, tanto em alemão quanto em francês, revela uma
ambiguidade: ao mesmo tempo em que designa a substância que se injeta a partir de uma
seringa, uma solução, designa também a resolução de um conflito. É nesse ponto que, ao
tentar encontrar uma ‘solução’ para os conflitos da paciente, Freud, sem êxito, depara-se com
algumas dúvidas em relação ao encaminhamento e tratamento das neuroses.
103

O sonho, segundo Freud, havia sido deflagrado por uma cena vivida por ele na mesma
noite em que se sentou em sua biblioteca para escrever sobre o caso de Irma. Naquele dia,
mais cedo, o jovem clínico encontrara um amigo próximo, Otto, médico da família de Irma,
que fora visitar a moça em sua casa de campo. Ávido por obter notícias de sua antiga
paciente, Freud quis saber mais sobre o estado de Irma. Otto lhe disse que ela não andava
muito bem, pois alguns sintomas haviam permanecido mesmo depois do tratamento
psicológico. Essa frase soou como uma reprovação: era como se ele não tivesse conseguido
tratar a paciente. Segundo Lacan, a reprimenda que produz o gatilho para o sonho aparece em
um momento em que Freud já estava se questionando sobre os fundamentos de sua prática
clínica.
Freud lembrou-se que havia fantasiado que Otto parecia não acreditar na eficácia do
tratamento psicológico aplicado na paciente e concluiu que foi em consequência da sensação
de desaprovação que, nessa mesma noite, redigiu um manuscrito minucioso para a apreciação
de um amigo, relatando o andamento do tratamento interrompido, para se justificar de
quaisquer consequências que poderiam vir a produzir um questionamento futuro sobre sua
conduta. Horas depois, ao se deitar, Freud sonhou com Irma, uma festa e alguns amigos. O
sonho foi, nitidamente, uma tentativa de simbolizar a sensação de fracasso e culpa que o
abateu depois de sua conversa com Otto na noite anterior. Os elementos do sonho eram a
prova do desejo do psicanalista de “se descartar de sua responsabilidade no fracasso do
tratamento de Irma” (Lacan, 1954-55/1985, p. 196).
A técnica de análise inconsciente enfatizava a busca de uma mensagem latente que
pudesse revelar um significado oculto. A importância do sonho está implicada no desejo em
jogo na relação com os processos inconscientes, ou seja, “é a busca da palavra, o
enfrentamento direto com a realidade secreta do sonho, a busca da significação como tal”
(Lacan, 1954-55/1985, p. 203). O enfrentamento com a realidade secreta do sonho conduz
Freud a uma conclusão: no interior da busca por significação, há sempre um ponto cego.
Mesmo que se tenha o objetivo de encontrar a solução da questão, através do desvendamento
de seu significado inconsciente, um resto permaneceria inassimilável. Vejamos, abaixo, o
relato do sonho na íntegra, da maneira como ele aparece na Interpretação dos sonhos (1900),
para que possamos analisar, posteriormente, as questões sobre o feminino que rondavam o
inconsciente freudiano nessa época:

Um grande salão - numerosos convidados a quem recebemos - entre eles estava Irma. No mesmo instante,
puxei-a de lado, como que para responder à sua carta e repreendê-la por não haver ainda aceito a minha
‘solução’. Disse-lhe: ‘Se você ainda sente dores, é realmente apenas por sua culpa’. Respondeu ela: ‘Ah! se
104

o senhor pudesse imaginar as dores que sinto agora na garganta, no estômago e no abdômen - isto está me
sufocando’. Fiquei amedrontado e olhei para ela. Parecia pálida e inchada. Pensei comigo mesmo que,
afinal de contas, devia estar deixando de perceber algum distúrbio orgânico. Levei-a até a janela e
examinei-lhe a garganta. Ela deu mostras de resistências, como fazem as mulheres que usam dentaduras
postiças. Pensei comigo mesmo que não havia necessidade dela fazer aquilo. Em seguida, ela abriu a boca
como devia e, no lado direito, descobri uma grande placa branca; em outro lugar, vi extensas crostas cinza-
esbranquiçadas sobre extraordinárias estruturas recurvadas, que tinham evidentemente por modelo os ossos
turbinados do nariz. - Chamei depressa o doutor M., ele repetiu o exame e o confirmou [...]. O doutor M.
tem uma aparência muito diferente da habitual, ele está muito pálido, claudicava e tinha o queixo
escanhoado [...]. Meu amigo Otto estava agora também de pé ao lado dela, e meu amigo Leopoldo a
auscultava através do corpete e dizia ”ela tem uma área surda, embaixo, à esquerda”. Indicou também que
parte da pele do ombro esquerdo estava infiltrada. (Notei isso, tal como ele fizera, apesar do vestido.)[...] M
disse: ‘Não há duvida de que é uma infecção, mas não tem importância: sobreviverá à disenteria e a toxina
será eliminada’. Tivemos também pronta consciência da origem da infecção. Não muito antes, quando ela
não estava se sentindo bem, meu amigo Otto aplicara uma injeção de um preparado de propil, propilos..
ácido propiônico... trimetilamina (e eu vi diante de mim a fórmula desse preparado impressa em negrito)...
Injeções como essas não deveriam ser aplicadas de forma tão impensada. [...]. E provavelmente a seringa
não estava limpa. (Freud, 1900/1980, p. 122).

Freud dá início ao seu devaneio noturno descrevendo uma cena ampla, em que se
reconhece participando de uma festa. Ele mesmo conclui, na autoanálise que faz de seu
sonho, que, naquele ano, Irma estaria em sua casa de campo em Bellevue, com a família, e
receberia amigos para o aniversário de sua mulher, Martha. Logo depois dessa cena, o campo
visual se contrai e ele se depara com Irma, a paciente, que confessa sofrer com dores pelo
corpo. Ele a puxa para um canto e a repreende por não ter-lhe escutado, recusando a solução
que lhe apresentara na época de seu tratamento, visando à remissão de seus sintomas. A
evolução de sua doença neurótica era culpa de sua resistência ao tratamento, reafirmou o
psicanalista, a ela. A paciente então respondeu a essas repreensões, e continuou insistindo que
lhe doíam, abdômen, garganta, estômago, e que isso a sufocava.
Freud se preocupou muito com a ideia do sufocamento e, logo, concluiu que poderia ter
deixado de notar algum sintoma orgânico na paciente. Levou-a para um canto do salão, a fim
de fazer um exame clínico ali mesmo na janela da casa. A moça resistiu ao exame clínico e ao
olhar de Freud. Abriu a boca, não sem dificuldade, como se estivesse reticente. Lacan analisa
a cena e conclui que a reação da moça era uma “resistência do tipo feminina” (Lacan, 1954-
55/ 1985, p. 197). A resistência da mulher mostra-se como uma barreira ao olhar escrutinador
do psicanalista. Entretanto, o grande desafio parecia vir do inconsciente de Freud que queria
dar, a todo custo, uma interpretação completa ao que via.
105

No sonho freudiano, a sexualidade feminina permanece inacessível. Freud localiza uma


relação muito próxima entre a recusa sexual de uma mulher e a dificuldade da paciente para
abrir a boca. O orifício oral, segundo ele, era um correlato da vagina e o pudor em relação a
essa parte do corpo equivaleria à recusa das mesmas à relação sexual. Abrir a boca para falar
sobre a sexualidade podia ser algo muito penoso para as mulheres daquela época. Para
produzir uma teoria que contava com relatos de análise sobre a sexualidade, Freud enfrentou
principalmente esse obstáculo. Apesar de as mulheres serem sua principal fonte de material
clínico, tudo o que veio a ser dito ou confessado em análise precisou, segundo ele, ser
arrastado das profundezas até a superfície.
Na época, Irma havia se negado a continuar o tratamento. Mais uma vez, a mulher
silencia algo que Freud tenta enxergar no fundo de sua garganta, de seu corpo, onde se vê
“um espetáculo medonho” (Lacan, 1954-55/1985, p. 197). A cena de horror, vista no interior
da garganta da paciente, mostrava estruturas estranhas e obscuras sobre as quais Freud nada
podia saber. Quando a paciente por fim abre a boca, Freud se depara com um uma imagem
aterrorizante: uma grande placa branca e crostas acinzentadas, que têm a aparência interna dos
mesmos cornetos nasais que, segundo a teoria flisseana, estavam relacionados à sexualidade.
A estrutura branca entrevista no fundo da garganta de Irma talvez possa demonstrar um
deslocamento significante: as estruturas disformes da garganta, que parecia inflamada,
aproximam-se ao fato real da infecção causada pela gaze encontrada no nariz da paciente.
Sabemos que esse incidente quase colocou fim à carreira de Freud como psicanalista e que ele
havia se culpado muito por ter confiado em Fliess tão cegamente. A angústia deflagrada por
esse incidente surge reconfigurada no sonho.
A estrutura branca relacionava-se, ainda, a outra coisa: nessa época, Freud fora
recriminado por receitar o uso de cocaína e de outras substâncias, como o sulfonal, para
alguns pacientes. Ele próprio estava preocupado com sua saúde, pois usava cocaína para
reduzir inchaços nasais. Além disso, um de seus pacientes desenvolvera uma necrose no nariz
devido ao uso da substância, e um de seus amigos havia falecido precocemente pelo uso
indevido da substância. O uso da cocaína terminou com um saldo negativo, já que sua
administração se mostrou tóxica e capaz de produzir uma adição especialmente perigosa.

As placas nos cornetos me fizeram recordar uma preocupação que tive sobre o meu próprio estado de
saúde. Vinha fazendo uso frequente de cocaína naquela ocasião, a fim de reduzir algumas incômodas
inchações nasais, e ouvira, alguns dias antes, que uma de minhas pacientes que seguira meu exemplo
desenvolvera extensa necrose da membrana mucosa nasal. Havia sido o primeiro a recomendar o emprego
106

de cocaína, em 1885, e essa recomendação trouxera sérias reprovações contra mim. O uso indevido daquela
droga apressara a morte de um caro amigo meu. (Freud, 1900/1980, p. 120).

Voltemos à relação de Freud com a figura feminina no sonho. O desmembramento da


pessoa de Irma em outras mulheres merece nossa atenção, pois diante da falta de
representação da sexualidade feminina, é essa personagem onírica que se desdobra em outras
três mulheres. Lacan percebe que, por trás de Irma, existe Martha, esposa de Freud, Mathilde,
sua filha e ainda uma amiga de Irma, por quem o psicanalista tinha uma grande estima.
O Dr. M havia examinado recentemente essa amiga de Irma e concluíra, na época, que a
moça tinha falsas membranas diftéricas. Freud, que assistira ao exame, pensara que essa
amiga, atraente e bonita, seria uma paciente melhor que Irma, por ser mais inteligente.
Entretanto, ela também não lhe diria tudo, pois se mostrava muito reservada e pouco falaria
de sua vida. Assim, essa amiga de Irma ressurge no sonho como mais uma mulher que
poderia resistir a seu saber.
Em outra associação, ao pensar sobre a dificuldade de Irma de abrir a boca, Freud se
lembrou de quando se deparou com o pudor de sua própria esposa ao ser examinada por um
médico. Concluíra que, no sonho, não se tratava do receio de abrir a boca, mas de abrir as
pernas: “Os males do ventre me recordam uma ocasião em que percebi claramente seu pudor”
(Freud, 1900/1980, p. 131). Por qualquer motivo que não foi mencionado, Freud assinala em
uma nota de rodapé que Martha estava zangada naquele dia e que ele havia pensado que
também ela deveria ser uma doente difícil, pois se apresentava reticente em se entregar aos
seus cuidados.
“Se Freud analisasse seus comportamentos, suas repostas, suas emoções, sua
transferência, a cada instante do diálogo com Irma, ele veria igualmente que por detrás de
Irma se acha sua mulher” (Lacan, 1954-55/1985, p. 197). Martha estava grávida do primeiro
filho de Freud nessa época e sabe-se que ele nutria por ela “um apego não só familiar, mas
conjugal, altamente idealizado” (Lacan, 1954-55/ 1985, p. 196). A boca que não se abre e o
órgão feminino que se fecha em torno de seu próprio enigma são postos em equivalência para
ilustrar a dificuldade de revelar a natureza da sexualidade feminina pela análise clínica do
corpo orgânico. A técnica do uso da palavra como tratamento esbarraria em mais uma barreira
imposta pelo mutismo da mulher. As três mulheres que se desdobram a partir da imagem de
Irma resistem a Freud: “Porque elas nada lhe dizem, se recusam a se deixar examinar por ele,
porque aderiram para sempre ao mutismo da morte” (André, 1998, p. 55).
107

“Em suma, é num leque que vai desde o interesse profissional, o mais puramente
orientado, até todas as formas de miragem imaginária que se apresenta aqui a mulher e se
situa a relação com Irma” (Lacan, 1954-55/1985, p. 197). Lacan afirma que a abundância de
entrecruzamentos da figura de várias mulheres e o simbolismo da boca que se abre com
dificuldade evocaram, nesse ponto, que o sonho vai se inscrever no desconhecido, no ‘umbigo
do sonho’ há algo inominável e sem simbolização para o sonhador. A forma como o feminino
é apresentado nesse sonho formaliza para Freud uma questão sem solução até o momento:
como representar o irrepresentável encarnado pela sexualidade feminina?
A figura da paciente desdobrando-se em três outras personagens apresenta um
deslocamento significante produzido pela falta mesma de simbolização: “Por detrás do trio
místico, digo místico, porque agora conhecemos seu sentido. As três mulheres, as três irmãs,
os três cofrinhos, Freud de lá pra cá nos demonstrou seu sentido. O último termo é pura e
simplesmente a morte” (Lacan, 1954-1955/1985, p. 200). Lacan analisa a relação que Freud
teceu em torno do tema do feminino, desde esse sonho, até o último de seus artigos,
concluindo que a figura da mulher esteve ligada ao tema da vida, da criação e ao mesmo
tempo da morte. “O tema dos três escrínios” (1913) é um texto importante, pois nele Freud
analisa três figuras mitológicas, Átropo, Láquesis e Cloto que demonstram toda a importância
da mulher em relação ao destino dos homens e à sua ligação com uma fantasia de amor e
morte.
Na última parte do “Sonho da Injeção de Irma”, Freud se depara com uma
preocupação: havia evidências de uma infiltração no ombro esquerdo da paciente, devido a
uma injeção ministrada indevidamente. O elemento que trás a cena as membranas difterias
que se vêem no fundo da garganta, como já citamos a pouco, levam a duas outras cenas
vivenciadas por Freud. A primeira é um episódio acontecido dois anos antes, em que sua filha
Mathilde quase morreu quando esteve doente, e a outra, vivida com uma paciente cujo nome
também era Mathilde, que havia falecido intoxicada, depois que ele mesmo havia ministrado
a substância sulfonal. Freud esclarece na interpretação que faz de seu sonho: “uma Mathilde
por outra”. Uma linhagem de mulheres se reveza na trama de significações do sonho para que
o desejo de Freud possa ser satisfeito. No caso das ‘Mathildes’, ele se angustia diante dos
possíveis equívocos que podem acontecer na condução de um caso clínico e mesmo a
possibilidade de sua prescrição ter levado a paciente à morte.

O sonho continua e, no momento em que Freud se depara com o fundo da garganta de


Irma, surge sua maior angustia. Esse fato leva a um desdobramento, em que o sonhador
108

convida três colegas para ajudá-lo diante do enigma com o qual ele se depara no fundo do
corpo feminino. Daí em diante, convoca as figuras masculinas, que já faziam parte de seu
círculo de amizades, para socorrê-lo, depois de constatar que havia lhe passado despercebida
uma doença orgânica da paciente. O Dr. M, Leopold e Otto são os três amigos que
apareceram no sonho. Lacan descreve que esse “trio de palhaços estabelecem em torno de
Irminha um diálogo descosturado” (Lacan, 1954-55/1985, p. 199). Esse fato demonstra a
impossibilidade do saber médico responder do lugar de um simples conhecimento científico
sobre a sexualidade feminina.

No sonho, o Dr. M, o primeiro a ser solicitado, responde a Freud: “Não há dúvida, é


uma infecção, mas não há de ser nada. Sobrevirá uma disenteria e o veneno será eliminado”
(Freud, 1900/2010, p. 128). A análise freudiana posterior anuncia que o Dr. M parece ser
Breuer, o amigo que, no passado, havia ajudado Freud a escrever Estudos sobre a histeria
(1895). Reconhece que ele havia dado papéis ridículos aos amigos no sonho e acreditava que
ter colocado palavras tolas na boca do Dr. M não era mais do que seu desprezo por ele não ter
reconhecido a histeria como uma doença psíquica. Nessa época, Freud precisou romper com
muitos de seus contemporâneos, inclusive com Fliess, pois sua teoria sobre a sexualidade iria
tomar um rumo muito diferente dos paradigmas estabelecidos pela medicina.

O amigo Otto foi requisitado para aplicar uma injeção de trimetilamina em Irma e,
nesse ponto do sonho, revelou-se que a seringa dessa aplicação não estava limpa o suficiente,
por isso havia causado uma infecção na paciente. Lembrou-se que ao conversar com Otto, no
dia anterior ao sonho, havia lhe contado que, em uma viagem de férias, tinha sido solicitado
para aplicar injeções em uma paciente que se hospedara próximo ao local em que ele estava
de férias com a família. Havia claramente uma conexão entre fatos reais e o relato do sonho.

Na continuação da interpretação do sonho por Lacan, o sonhador se refaz da culpa e


outros personagens assumem o fracasso do tratamento de Irma; é assim que Freud reconhece
os eventos do sonho. Lacan interpreta que o psicanalista lança a culpa em todos os
personagens menos em si mesmo: Irma recusou sua solução, o amigo Otto lhe aplicou uma
injeção impura e o amigo M. (Breuer) havia se tornado um médico ignorante que não podia
contribuir em nada na elucidação da doença da paciente. Pálido, queixo escanhoado,
claudicante ao andar, o amigo que antes era seu mestre havia se tornado a encarnação da
fragilidade e da impotência. Para resumir, nenhum deles poderia ajudá-lo, pois se tratava de
uma ignorância compartilhada sobre a questão feminina. Somente o sonhador poderia
109

prosseguir com o desejo de descobrir algo sobre a sexualidade feminina. Através deste desejo,
levado a cabo por mais de 30 anos, Freud produziu um saber sobre o inconsciente e inventou
a teoria da psicanálise.

Além dessas três figuras de ‘bufões’ que giram em torno do problema do sonho, há
uma quarta que surge de forma velada nas entrelinhas da fórmula da trimetilamina: “Wilhelm
Fliess que havia de fato comunicado a Freud certo número de ideias sobre a química do
processo sexual, especialmente esta: dentre os produtos do metabolismo sexual figuraria a
trimetilamina” (André, 1998, p. 47). Ao apelar aos seus colegas médicos, Freud mantém sua
crença de que o saber científico da medicina poderia ainda lhe garantir alguma resposta onde
ele de fato acreditou ter falhado. Ideia que se desfaz por si só com o desenrolar do sonho.

O sonho sustenta que no momento da perda de palavras justas para descrever o fundo
do corpo feminino, a estrutura de linguagem inconsciente se mostrou capaz de responder ao
sonhador na forma de um enigma. As letras da fórmula química fazem alusão a uma solução
em forma de códigos, e não de frases ou palavras. O enigma feminino não poderia ser
encarnado de outra forma senão pela materialidade da letra, essas cifras de um gozo
enigmático que não pode ser decifrado sem deixar um resto. Esse gozo parece estar muito
mais do lado de Freud, já que é ele que produz o sonho. Nesse sentido, o extravio da figura de
Irma surge através desse anteparo que é o desejo de Freud em descortinar A mulher.

É no lugar do enigma formalizado em signos como letras que Freud se sustenta para
contradizer a perspectiva de que havia apenas uma abordagem organológica para o que ele
havia pressentido nos sintomas de Irma. Em face de algo que acomete o corpo, o sujeito,
objeto de sua própria cena, se sustenta e reafirma no sonho a existência do inconsciente.
Freud responde a Fliess com esse sonho, e se lança numa busca sobre o feminino a partir dai:
“um sujeito confrontado com o horror que inspira a descoberta do sexo feminino” (André,
1998, p. 54). É interessante pensar que, desde esse sonho, a forma de abordagem do destino
pulsional feminino, não-todo cifrado pela linguagem, já apontava uma saída: a letra como
forma de marcar o que havia de Real no gozo feminino. Esse elemento fora do simbólico, ou
seja, extraviado, surge dentro da simbologia do sonho.

Freud produz algumas relações entre o saber médico e sua falta. A seringa suja do
sonho não era nada mais do que uma alusão à gaze embebida de iodo que provocou a infecção
de Irma.
110

Quanto o seringa suja, ela só pode significar uma coisa; é o saber que Freud na transferência supõe em
Fliess que se verifica impuro enquanto que Freud como ele mesmo observa no seu comentário do
sonho, é sempre extremamente atento a limpeza da seringa, à pureza de seu método terapêutico. (André,
1998, p. 49).

As teses imaginárias de Fliess poderiam por um fim na credibilidade da teoria


freudiana, que tempos depois, foi escrita em moldes de um Projeto para uma psicologia
científica, baseada em observações e não em especulações. Freud estava disposto a levar suas
hipóteses adiante, mesmo sabendo que não podia mais contar com a experiência médica de
seus colegas mais próximos que no sonho surgem como figuras, completamente degradadas.

No sonho, aparecem três questões que atormentavam Freud: a sua transferência com
Fliess, seu suposto saber ameaçado pelo fracasso da cirurgia feita em Irma, e suas questões
em relação à feminilidade. Freud se dirigia a Fliess nessa época com uma única pergunta; “O
que é a feminilidade?” (André, 1998, p. 51). O sonho só vem coroar suas inquietações de
forma transparente. Em outro sonho, descrito na Interpretação dos sonhos, é Freud mesmo
que conclui, depois de uma série de encadeamentos, de significados e inversões que
explicitam e resumem sua busca naquela época: “pode se resumir tudo isso por cherchez la
femme!” (Freud, 1900/1980, p. 320). O sonho inaugural com Irma, além de ter firmado
algumas bases para a interpretação dos mecanismos existentes nos desejos inconscientes, foi
também importantíssimo para reconhecer a angustia e o desafio que o tema da feminilidade
despertava em Freud. O extravio dessa figura passa por essa interpelação sobre o desejo do
analista que era Freud e o indecifrável do gozo do corpo de uma mulher.

Os elementos do sonho com Irma foram se organizando em torno deste enigma


central: o que é uma mulher? É ao redor dessa boca, que se abre e se fecha para animar as
elucubrações e a curiosidade dos homens: “O que se descobre quando Irma abre a boca?”
(André, 1998, p. 51). Descobre-se a falta de simbolização para o gozo feminino ou esse
elemento que se extravia da estrutura simbólica. A mulher fala, mas não solta uma só palavra
sobre o seu gozo, aquele que parece alheio à linguagem. Existe um elemento pulsional
extraviado relacionado à sexualidade feminina que não pode ser decifrado.

Como diz Lacan, “o sonho que Freud faz é enquanto sonho integrado ao processo da
descoberta. É assim que ele assume um duplo sentido” (Lacan, 1954-55/1985, p. 207). O
111

sonho revela que a boca aberta, seja ela parte anatômica, carne pura, ou palavra, procura por
uma interpretação, já que diante do abismo da garganta da mulher, que vai ser uma das
primeiras de uma série de pacientes histéricas, Freud se vê impelido a desvendar um enigma.
O fundo da garganta de Irma, esse elemento inassimilável do sonho, abre-se como um horror,
apontando um caminho para a investigação da feminilidade que não estava localizada no
corpo orgânico, como Fliess havia proposto, mas num outro campo.

A partir desses fios condutores serão apontados alguns veios para estudar o feminino em
Freud: a realidade do órgão feminino e o horror diante da constatação dessa diferença para
ambos os sexos; as três mulheres que aparecem para Freud, cuja figura maior é a mudez, o
silêncio da morte; e o terceiro tema, o umbigo do sonho, o que não pode ser reconhecido na
feminilidade, porque existe somente enquanto ausência.

A boca aberta passa por todas as significações e equivalências possíveis com o órgão
sexual feminino: “Eis aí uma descoberta horrível, a carne que jamais se vê, o fundo das
coisas, o avesso da face, do rosto, os secretados por excelência, a carne da qual tudo sai, até
mesmo o íntimo do mistério, a carne, que sua própria forma é algo que provoca angústia”
(Lacan, 1954-55/1985, p. 197). A forma do furo, do abismo que se abre diante dos olhos de
Freud, já produzia uma questão em relação ao mistério feminino alojado no corpo. Mesmo
com todo o aparato simbólico no qual ele se sustentava para descrever a garganta de Irma,
Freud revelou com seu sonho o que chamamos, partindo da afirmação de Lacan, de um
elemento extraviado presente na mulher.

Freud chega ao auge de sua precisão de saber, de ver, mas da mulher, no fundo do corpo
de uma mulher, ele vê nada mais do que um mistério insondável. Essa imagem no sonho
revela como a carne e o corpo se mostram, não mais como imagens adornadas e erotizadas
pelo próprio sintoma, mas como imagens do Real. O que não pode ser cifrado pelo gozo
sexual permanecia mudo: “O abismo do órgão feminino de onde sai toda a vida (...) e também
a imagem da morte onde tudo vem terminar” (Lacan, 1954-55/1985, p. 197). A figura maior
da feminilidade era, desde sempre, muito ambígua para Freud, representava ao mesmo tempo
a mãe e a morte, a possibilidade de revelação através da fala e o mutismo no interior mesmo
dessa cadeia de significantes.

Freud não interrompe seu sonho quando se depara com esse furo do saber sobre o
feminino. Pelo contrário: continua dormindo e aciona outros mecanismos inconscientes para
alimentar seus devaneios. Diante do inassimilável, ele não recua, mas substitui a si mesmo no
112

sonho por seus três amigos, que se revezam para explicar o enigma da mulher. Para Lacan, há
uma “decomposição imaginária”, um “desabrochamento das diferentes identificações do ego”
na figura dos amigos médicos convocados. A fragmentação da identidade de Freud demonstra
“o discurso dos múltiplos egos” (Lacan, 1954-55/1985, p. 213). A presença desses amigos,
cujas falas são desconexas e sem sentido, é a prova de que Freud já havia percebido a
impossibilidade do discurso médico de responder inteiramente sobre o sintoma.

A seguir, surgem as letras da fórmula da trimetilamina, e com elas, uma resposta


simbólica para o impasse, mas em forma de imagem. Lacan comenta essa saída do sonhador:
“não há outra palavra, outra solução para seu problema que não a palavra” (Lacan, 1955-
54/1985, p. 197). Na leitura que Lacan faz do sonho freudiano, vislumbramos como sua teoria
se estruturava sobre o tema da linguagem. O simbólico viria em socorro dos homens, para
tentar bordejar de alguma forma o gozo da mulher. Entretanto, as letras são figuras, e não
somente palavras, pois englobam também o elemento pulsional em jogo. Vejamos como o
tema da letra será mais tarde definido por Lacan como litoral entre saber e gozo. Não seria
essa resposta que o inconsciente freudiano havia produzido, intuído que a linguagem não seria
de todo capaz de capturar a mulher? Somente a letra, na forma de fórmulas, demonstraria esse
elemento extraviado do simbólico, distinguindo o que está no limite entre simbólico e real.

A palavra que Irma não disse e que Freud precisou revelar na interpretação de seu sonho
é aquela que se estabelece no limite do furo do saber da psicanálise. Ou seja, a forma como o
inconsciente se revela só pode ser apreendida pela borda feita pela linguagem em torno de um
furo que advém no seio do sistema simbólico. Dessa forma, depois de se deparar com as
mesmas dificuldades que Freud para descrever a mulher, Lacan dá lugar a esse inominável do
gozo feminino através dos matemas e fórmulas que são também letras, e não somente
significantes. Esse sonho presentifica o momento em que Freud inventa uma forma não só de
decifração pela psicanálise, mas um modo da psicanálise funcionar em ato pela palavra. A
forma com que algo se anuncia é a própria maneira de tratar a questão. Nesse caso,
anunciava-se já nesse tempo que o feminino seria algo não-todo tratado pelo simbólico,
extraviado do falo.

A partir da interpretação do sonho freudiano, só foi possível elaborar uma composição


simbólica-imaginária. O próprio processo de decifração produz um resto inassimilável, o
umbigo do sonho, que se sedimenta do próprio processo, como, por exemplo, é o caso das
placas da garganta de Irma. A figura feminina que aqui é nomeada de Irma estava relacionada
113

à morte, à mudez e à falta de um significante para designar o gozo da mulher e das mulheres
com as quais Freud se depara no relato dessa narrativa onírica.

No “Sonho da injeção de Irma”, Lacan aponta que há um elemento da cena que atravessa
o umbigo do próprio sonho estruturando-se sobre um resto inassimilável. Quando Freud
escuta, “então ela abriu bem a boca” havia acontecido que antes ela não queria abri-la, por
nada. Isso nos remete ao limite imposto pelo silêncio que nada diz sobre o gozo e a angustia
em não saber o que fazer quando as mulheres abrem a boca para falar sobre o sexual. O esse
buraco, mesmo quando se mostra, permanece insondável.

O que o sonho freudiano apresenta não é apenas o valor dessas manifestações


inconscientes, mas “o enfrentamento direto com a realidade secreta do sonho, a busca da
significação como tal” (Lacan, 1954-55/1985, p. 203). A procura pela palavra, na tentativa de
dar sentido ao sonho, revela-se original, com diria Lacan, “não há outra palavra – chave do
sonho a não ser a própria natureza do simbólico” (Lacan, 1954-55/1985, p. 203). Entretanto, é
nessa natureza do simbólico que se encontra uma falta. É através de uma cena em que se
revezam três imagens de mulher e vários amigos bufões que Freud se depara com a ausência
das palavras para dizer o feminino.

A fenomenologia do sonho de Freud o leva pela primeira vez a distinguir uma imagem
aterradora, angustiante, a saber, o abismo do órgão feminino:

Nessa cabeça de medusa, na revelação deste algo de inominável, o fundo dessa garganta, cuja fórmula
complexa, insinuável, faz dela tanto o objeto primitivo por excelência, o abismo do órgão feminino, de
onde sai toda a vida, quanto o vórtice da boca, onde tudo é tragado, como ainda a imagem da morte onde
tudo vem se acabar, já que em relação com a doença de sua filha, que poderia ter sido mortal, a morte da
doente que ele perdeu numa época contígua a da doença de sua filha, ele a considerou como sendo não sei
que retaliação do destino por sua negligencia profissional (LACAN, 1954-55/1985, p. 208).

Segundo Lacan, o aparecimento dessa imagem angustiante é a “revelação do real”,


daquilo que há de menos penetrável, sem nenhuma mediação possível, “algo diante do que
todas as palavras estancam e todas as categorias fracassam, o objeto de angustia por
excelência” (Lacan, 1954-55/1985, p. 209). O objeto de angústia é o furo encontrado na
sexualidade feminina, buraco que remete o homem à castração, mas que, ao mesmo tempo,
114

deixa a teoria no limite de produzir suas respostas em relação a um corpo que representa esse
Outro em relação ao discurso.

A produção onírica de Freud, segundo Lacan, mostra que, diante da mulher de boca
aberta, os homens não podem dizer grande coisa, a não ser palavras desconexas. Era a
presença cabal do furo no saber da psicanálise, produzido em consequência da
impossibilidade de dizer tudo sobre o corpo feminino ou sobre o gozo inscrito nele. “Todo
sonho comporta pelo menos um lugar onde ele é impenetrável, como um umbigo” (Freud,
1901/1980, p. 119). Freud constatava que, no interior do corpo de uma mulher, assim como
no centro de um sonho, existiria um elemento irredutível e não simbolizável. Seu desejo de
saber e de acessar o sexual encontrava, agora, um obstáculo. A insondável garganta de Irma
era somente a constatação desse elemento enigmático que se tornou, mais tarde, o “continente
negro” freudiano. Lacan sugeriu, ao estudar os casos freudianos, que há sempre um extravio
nas verdadeiras mulheres, porque elas demonstram que não se pode saber tudo sobre a
sexualidade feminina.

5.2 - Dora: uma carne negociada pelo pai

“O que diz Dora através de sua neurose? Que diz a histérica-mulher? Sua
questão é a seguinte: O que é ser uma mulher?”. (Lacan, 1955-56/1988, p. 200).

No Seminário, Livro 3: as psicoses (1955-56/1988), Lacan continua trabalhando as


questões da linguagem e da constituição de todo sujeito a partir do significante. Segundo
certos elementos do estruturalismo, ele propõe uma forma como o significante, esse operador
chave para a teoria psicanalítica, responde à questão da sexuação para os seres falantes.
Homens ou mulheres precisam produzir uma simbolização do corpo para recobrir o
imaginário corporal e contornar a anatomia com a palavra. É certo que o homem precisa
recuar de uma identificação com o corpo anatômico para escolher sua posição sexuada, pois
ele não se reduz à anatomia. Para a mulher, essa apreensão corporal se mostra especialmente
complicada, exatamente pela forma como ela se posiciona diante do significante do falo. As
115

histéricas demonstram, através da formação de sintomas, como a apreensão do corpo é


complicada para a mulher.

A sexualidade feminina apresenta um caráter problemático em relação à identificação


simbólica, o que vem situar a mulher histérica em relação a uma única pergunta: o que é ser
uma mulher? Para ilustrar essa questão, Lacan buscou, em mais de um caso clínico de Freud,
elementos para demonstrar como uma mulher pode inscrever seu corpo na relação conjugada
entre a ordem simbólica e a imaginária, na passagem pelo Édipo. Existiria uma hiância no
recobrimento de seu ser pelo simbólico e, por isso, ele permaneceria mais permeável ao
campo imaginário. Em alguns casos de neurose histérica, a problemática em relação à
identificação sexuada e a apreensão imaginária da arquitetura do corpo se apresentam muito
bem ilustradas. É o caso de Dora, uma das primeiras pacientes de Freud.

Em 189928, ao escrever o caso Dora, Freud demonstra de forma contundente a maneira


como algumas mulheres produzem uma questão essencialmente feminina em relação ao
complexo de Édipo e ao caminho percorrido para contornar a castração. As identificações de
Dora com sua amiga, a Sra. K. somam-se ao seu desejo insatisfeito e à característica da
bissexualidade e apontam para a pergunta maior em relação à problemática da posição da
mulher diante de sua sexualização no caso da histeria: o que é ser uma mulher?

No relato clínico publicado em 1905, sob o título “Fragmento da análise de um caso de


histeria”, Dora deixa clara sua ambivalência diante da própria sexualidade. Ficam evidentes
os apuros em que Freud se mete por não levar em consideração elementos importantes da
sexualidade feminina no caso de Dora. Vejamos o relato da história clínica.

Aos 18 anos, Dora foi levada por seu pai a uma consulta com o Dr. Sigmund Freud,
devido à presença de diversos sintomas orgânicos. O relato clínico da doença de Dora foi feito
por seu pai, um “homem de atividade e talentos bastante incomuns” (Freud, 1905/1980, p.
17). A moça era muito ligada ao progenitor, pois, desde os seis anos de idade, enfrentava uma
série de doenças orgânicas e era tida como uma garota de grande fragilidade física. O pai de
Dora já havia consultado com Freud anos antes, pelo motivo de uma doença vascular. O
sucesso no tratamento prescrito pelo neurologista fez com que o homem decidisse levar a
filha para uma consulta, quatro anos depois, quando ela havia se tornado neurótica.

28
O tratamento de Dora foi interrompido em dezembro de 1899, mas só foi publicado por Freud em 1905.
116

As particularidades da própria constelação familiar levaram a filha a apegar-se muito ao


pai, por quem Dora sentia um orgulho imenso. Tratava a própria mãe muito mal e nutria uma
rivalidade com o irmão mais velho. Aos oito anos, Dora apresentou um distúrbio
diagnosticado como nervoso: uma crise de dispnéia crônica. Aos doze anos, desenvolveu uma
enxaqueca unilateral, associada a crises de tosse compulsiva. As dores de cabeça tornaram-se
brandas, mas a “tussis nervosa” (Freud, 1905/1980, p. 20) continuou até os 18 anos.

Ao receber a paciente em seu consultório, Freud constatou que, à tosse, seguia-se a um


sintoma de perda da voz. Dora cresceu com esses sintomas e, por isso, tornou-se uma jovem
que abandonava todos os tratamentos e debochava dos esforços dos médicos para curá-la.
Nessa época, a moça morava com os pais em Viena. “A melancolia e uma alteração de caráter
tinham se tornado agora os principais traços de sua doença” (Freud, 1905/1980, p. 21). Dora
chegou a escrever uma carta em que se despedia de seus pais, alegando não suportar mais as
condições em que vivia. Depois disso, apresentou perda de consciência e, em seguida,
amnésia. Foi então que seu pai levou-a até Freud.

De início, Freud considerou o caso como irrelevante para ser escrito e publicado na
literatura psicanalítica, por se tratar de uma “petite hysterie” (Freud, 1905/1980, p. 22).
Graças à sagacidade do pai da moça, Freud não precisou procurar pontos de contato entre as
circunstâncias da vida da paciente e sua doença psíquica. O ponto de incômodo para ambos,
pai e filha, logo apareceu na fala do progenitor. Relatou que sua família havia feito uma
amizade muito íntima com um casal de Viena, Herr K. e Frau K. e que essa relação havia
trazido problemas para todos, inclusive para Dora. A Sra. K. cuidava do pai de Dora quando
ele adoecia e o Sr. K., por sua vez, vivia bastante próximo da Jovem, dando-lhe muitos
presentes, embora ninguém na família visse mal algum na relação entre eles.

Foi em uma das viagens que Dora e sua família fizeram com os K. que ocorreu o
incidente que levou o pai da moça a desconfiar da relação entre a proximidade com o Sr. K. e
o incômodo da filha. Dora, que iria ficar na casa do casal K. por mais dias, precipitou-se para
ir embora com o pai, antes do tempo previsto. Ao ser questionada sobre o motivo que a teria
levado a antecipar a volta a Viena, ela diz que “Herr K. tivera a audácia de lhe fazer uma
proposta amorosa enquanto andavam pelo lago” (Freud, 1905/1980, p. 23).

O Sr. K. foi chamado pelo pai e pelo tio da moça para esclarecer o incidente. K. negou
veemente que tivesse qualquer liberdade dessa ordem com Dora e disse ainda que a Sra. K.
havia percebido que ela vivia lendo livros sobre assuntos sexuais e que tais leituras deviam tê-
117

la simplesmente “excitado demais e ela imaginara toda a cena que descrevera” (Freud,
1905/1980, p. 24). O pai conclui que a depressão e a irritabilidade da filha tiveram início
depois desse incidente, quando a própria Dora insistiu para que ele rompesse relações com o
casal K. e, particularmente, com a Sra. K., a quem adorava até antes desse incidente.

Nesse momento do relato clínico, o pai confessa a Freud sua ligação amorosa com a
senhora K. e diz que não poderia, de forma alguma, deixá-la, pois eles se sentiam infelizes
nos respectivos casamentos e se proporcionavam conforto através dessa relação
extraconjugal. Depois da recusa do pai em abandonar a Sra. K., a moça desenvolvera um
comportamento insuportável, chegando a ameaças de suicídio. Diante de uma situação limite,
o pai decidiu levá-la a Freud. Inicialmente, o psicanalista suspendeu o julgamento a respeito
do estado real em que as coisas se passaram com Dora e analisou as propostas amorosas feitas
pelo Sr. K. a ela como uma simples fantasia. Entretanto, a cena havia sido a causa de um
trauma psíquico indispensável ao aparecimento do distúrbio histérico, dado que não poderia
ser negligenciado. Era um fato que a sedução, real ou não, tinha produzido muitas questões
para a moça.

Depois de alguns encontros com Freud, Dora contou um episódio que acontecera antes da
cena no lago e que havia lhe causado fortes emoções. Posteriormente, Freud acreditaria que
esse poderia ser o incidente deflagrador do trauma. Quando Dora tinha 14 anos, Herr K.
combinara com sua esposa e com Dora de irem juntos a um festival. Contudo, quando a moça
chegou ao local acertado para se encontrarem os três, percebeu que ele estava sozinho; a
esposa havia ficado em casa. Nesse dia, ele havia trancado a porta de seu escritório, dirigido-
se até Dora, agarrado-a e, subitamente, dado-lhe um beijo. Ela conta que se livrou da
investida e, logo após o beijo, sentiu uma sensação de repugnância. Nunca relatara esse
episódio a não ser em análise, mas já se recusara a participar de um passeio com o casal K.
sem dar maiores explicações em razão desse incidente.

Freud analisou que Dora deveria ter sentido, no momento do beijo, uma excitação sexual
e que, em contrapartida, seu comportamento posterior, era completamente histérico. Ao invés
de prazer, ela se viu tomada por um sentimento de repugnância. “Eu sem dúvida consideraria
histérica uma pessoa na qual uma ocasião para excitação sexual despertasse sensações que
fossem preponderantemente ou exclusivamente desagradáveis” (Freud, 1905/1980, p. 26),
explica Freud, em suas elaborações sobre o sentimento de repulsa, muito presente em quadros
histéricos.
118

O incidente ocorrido com Dora produzira uma ‘inversão do afeto’ e um ‘deslocamento da


sensação’ devido à recusa da excitação, comportamento muito comum em casos de histeria.
Ao invés da sensação genital normal de prazer, a paciente fora tomada por um sentimento
desagradável, que a impediu de satisfazer seus desejos amorosos pelo Sr. K. Depois desse
acontecimento, relatou a Freud que havia desenvolvido três sintomas: aversão aos alimentos,
sensação de pressão na parte superior do corpo, como se estivesse ainda sendo abraçada pelo
Sr. K., e aversão à visão de uma cena muito curiosa: avistar um homem que estivesse
conversando animada ou ternamente com uma mulher. Freud deduziu que ela havia recalcado
o fato de ter experimentado contra seu corpo o órgão sexual ereto do senhor K. e, por isso,
deslocara psiquicamente a sensação real que havia sido provocada pelo pênis para a pressão
que dizia sentir no tórax.

Os sintomas de Dora poderiam estar relacionados também à relação de seu pai com a Sra.
K. Os dois mantinham uma relação muito próxima. Frau K. ganhava presentes do pai de Dora
com frequência e se encontrava com ele em viagens e passeios em que sempre conseguiam se
manter a sós. Quando o pai sentia-se mal, conseguia encontrar uma maneira de viajar para a
cidade onde morava a Sra. K. De lá, mandava cartas felizes para casa. A filha, muito
perspicaz e ciumenta, havia se certificado, ao ligar os fatos, que o pai se encontrava com sua
amante nessas viagens. Logo, nessa mesma época, começou a tratar o pai mal, criticando suas
atitudes e dizendo que ele era insincero e egoísta.

A questão que mais atormentava Dora era imaginar que o pai havia feito um acordo de
cavalheiros com o Sr. K., a fim de que ele não importunasse sua relação com a Sra. K.,
deixando o mesmo também livre para cortejar a filha. Dora sentia que era entregue a esse
homem como um “objeto de troca” (Freud, 1905/1980, p. 32). O Sr. K. poderia passear com
ela, dar-lhe flores e estar disponível todo o tempo, sem que o pai colocasse esse
comportamento à prova: “Ela estava certa ao pensar que seu pai não desejava considerar
detidamente o comportamento de Herr K. em relação à filha com medo de ser perturbado em
seu próprio caso amoroso com Frau K.” (Freud, 1905/1980, p. 33). Entretanto, o que Freud
percebera era que a moça, sem tomar consciência disso, protegia os encontros do pai com a
Sra. K., ainda que o repreendesse veementemente. Quando sabia que o pai estava na casa da
Sra. K., a sós com ela, Dora não ia até lá; mantinha-se afastada da casa, cuidando dos filhos
do Sr. K.
119

As crises de tosse e a perda da voz faziam Freud acreditar que algum elemento
inconsciente estaria ligado à ausência desse homem que Dora tanto amava, o Sr. K. A relação
entre suas ausências e o aparecimento dos sintomas da moça foi cogitada porque os sintomas
da moça desapareciam quando o Sr. K. retornava de suas viagens e retornavam com toda
força com sua partida: “Sua doença era, portanto, uma demonstração de amor por K.” (Freud,
1905/1980, p. 37). Ela adoecia na falta do homem amado e recobrava as forças quando ele
retornava de suas viagens. Era como se Dora estivesse guardando suas palavras somente para
o amante.

A afonia e a frequente facilidade com que se colocava a escrever quando estava sem fala
levaram Freud a concluir o seguinte: “Quando o homem que ela amava estava ausente, ela
renunciava à fala, a palavra perdia o valor, já que ela não podia falar com ele” (Freud,
1905/1980, p. 37). A escrita, nesse caso, ganhava relevância, já que, quando o Sr. K. viajava,
Dora só podia se corresponder com ele por cartas e postais. Ao mesmo tempo, a doença da
moça parecia uma forma de perturbar a ligação do pai com a Sra. K. Ao cair doente, ela
levaria o pai, culpado, a fazer o que queria: afastar-se de sua amizade com a mulher de Herr
K. Sua tosse também podia ser relacionada, segundo Freud, à ideia de que o pai, sendo
impotente, só poderia obter satisfação sexual com a Sra. K. por meio da felação. A relação
tecida, inconscientemente, entre as relações sexuais e a região oral havia produzido em Dora
as conversões, erotizando o órgão oral à imagem de sua fantasia sexual. Depois que Freud
propôs a ela essa associação, a tosse espasmódica, as cócegas e a irritabilidade na garganta
sumiram.

Dora colocava-se entre o pai e a Sr. K. como uma mulher ciumenta, comportando-se
exatamente como a mãe, ao demonstrar suas críticas ferozes ao progenitor. A tosse e os
problemas na garganta levaram a moça a ocupar imaginariamente o posto daquela que se
relacionava sexualmente com o pai, ou seja, a Sra. K. Os sintomas ligados à região oral se
desenvolveram tomando como modelo a fantasia que ela alimentava sobre o que seu pai fazia
a sós com essa mulher: “Ela estava se identificando com a mulher que seu pai uma vez amara
e com a mulher que ele amava agora” (Freud, 1905/1980, p. 53), ou seja, com a própria mãe
e, ao mesmo tempo, com a amante do pai.

A sequência prevalente de pensamentos de Dora em relação à ligação entre a Sra. K. e


seu pai ocultara até então sua afeição: “Quando, numa mulher ou moça histérica, a libido
sexual que é dirigida para os homens é energicamente suprimida, verificar-se-á regularmente
120

que a libido que é dirigida para as mulheres torna-se indiretamente reforçada e, mesmo, até
certo ponto, consciente” (Freud, 1905/1980, p. 58). Freud alegava um deslocamento da libido
para um objeto homossexual, desvio próprio operado pela doença histérica. Nessa época, ele
ainda não havia atentado para o fato de que, na histeria, a imagem da outra mulher, como um
Ideal, era prevalente na fantasia daquelas que buscavam saber o que era ser uma mulher. A
proposição de Lacan sobre o extravio de uma mulher pode estar presente na forma com que
esse desvio do afeto se apresenta em direção à figura de uma outra. Ou seja, esse extravio
pode ser apreendido no fato de Dora interpelar o próprio desejo através de um desvio do
elemento sexual que não se apresenta diretamente, mas por uma espécie de procuração. A
outra mulher entra no lugar de um suporte para seu desejo.

Freud havia percebido que, embora Dora se comportasse de maneira inconsciente,


elogiava a Sra. K., dizendo que ela tinha um “adorável corpo alvo” (Freud, 1905/1980, p. 59).
Dizia também que amava os presentes que recebia do pai, pois eles eram escolhidos pela Sra.
K. Para Freud, a corrente prevalente de pensamentos de Dora dizia respeito à relação do pai
com Frau K. e escondiam duas outras: uma consciente, o amor por Herr K, e outra
inconsciente, o amor pela Sra. K. Ele concluiu que a raiva dirigida ao pai era nada mais, nada
menos que o ciúme de sua amante, a Sra. K., por quem Dora também era apaixonada. Freud
acreditava que as correntes de ciúmes homossexuais eram comuns na vida erótica
inconsciente das moças histéricas. Entretanto, para a época, admitir isso era demasiadamente
insuportável. Vejamos a análise do caso por Lacan.

Lacan pinça alguns temas importantes na escrita de Freud sobre o caso Dora: o amor
homossexual da moça pela Sra. K., a quem ela direcionava seus ciúmes inconscientes; o amor
por seu próprio pai, resquícios da fase edípica; a atração sexual recalcada pelo Sr. K.; e a
importância do elemento oral que havia sobrevivido das fantasias sexuais infantis. Em todos
esses elementos, o extravio de Dora se mostra presente. Ele aparece diretamente relacionado à
forma como ela se desvia de uma posição feminina diante do Édipo para se identificar com o
Sr. K., a fim de apreender o que é uma mulher.

A relação de Dora com a Sra. K. é o primeiro tema importante no caso. Em análise


posterior, Freud atribui o fracasso do tratamento de Dora em razão de ele não ter sido capaz
de reconhecer a importância crucial do ‘amor homossexual’ de sua paciente pela Sra. K. Nos
Escritos, em “Intervenções sobre a transferência” (1951), Lacan analisa a relação obscura
entre essas duas personagens, cujo mecanismo escapara a Freud, a fim de demonstrar como a
121

Outra mulher é uma figura de extrema importância na análise do caso. A relação de Dora com
a Sra. K. faz aparecer o extravio na histeria: uma mulher pode passar pelo Édipo esquivando-
se de seu desejo por um homem, e a partir dessa recusa, dirigir-se a uma mulher idealizada,
para compreender o próprio desejo.

A relação apaixonada de Dora pela Sra. K. oferece o “valor real do objeto que é a Sra. K.
para ela. Ou seja, não o de um indivíduo, mas o de um mistério, o mistério de sua própria
feminilidade, quer dizer de sua feminilidade corporal” (Lacan, 1951/1998, p. 220). Dora
supõe que a Sra. K tinha um saber sobre a feminilidade que ela mesma não detinha. E, mais
que isso, acredita que esse saber inalcançável está diretamente ligado ao enigma de seu corpo
feminino e de seu órgão sexual. Nesse ponto da análise do caso, nossa hipótese parece ainda
mais reforçada, pois Dora busca na Sra. K. não apenas as insígnias fálicas de uma
feminilidade modelar, mas o mistério, o irrepresentável do corpo feminino naquilo que ele
mantém como segredo.

Lacan afirma que, na cena do lago, quando Dora esbofeteia o Sr. K., depois de sua
investida amorosa, a frase dita por ele em relação a sua própria mulher é relevante, pois traz
grandes repercussões para a doença histérica da moça. Nessa ocasião, K. diz: “Minha mulher
não significa nada para mim” (Lacan, 1955-56/1988, p. 195). Segundo o psicanalista francês,
a equação dessa frase desliza para outro significado, pois a Sra. K. é mais importante para
Dora do que Herr K. É por isso que ela se precipita com violência para cima dele,
esbofeteando-o: por não aceitar ter ouvido do homem que ama que ele é indiferente à mulher
que possui, já que essa mulher também é, por outro lado, alvo de sua admiração e de seu
amor. Dora se faria a seguinte pergunta: “Se ela nada é para você, o que você é, então, para
mim?”. Ou seja, quando a figura dessa outra mulher, que sabe algo sobre o feminino, é
destituída aos olhos da moça, o Sr. K. também se desmantela em seu imaginário, pois ele é
somente um conector para que ela chegue até o mistério que não ousa abordar diretamente. A
relação amorosa entre ela, o Sr. K, seu pai e a Sra. K estaria intacta, contanto que os dois
triângulos amorosos se mantivessem sempre coesos.

A frase do Sr. K. provoca uma catástrofe em relação à identificação histérica de Dora


com a amante do pai. A identificação com a Sra. K. apresenta uma polaridade clara: por um
lado, ao amar a Sra. K., − como o fizeram o Sr. K. e, também, seu próprio pai − Dora
alimenta uma identificação masculina; por outro, ao se colocar no lugar da Sra. K. para ser
amada por seu pai e pelo Sr. K., ela alimenta uma identificação feminina. Entretanto, a Sra. K.
122

é amada por dois homens que deixam a desejar: um marido ausente e um amante impotente.
A função fálica que poderia funcionar através da figura desses homens falha em responder ao
feminino. Nem a função paterna, nem a via do amor conseguem circunscrever o que é da
ordem pulsional em Dora. Ela permanece sem repostas à questão feminina, já que lançar mão
do homem como anteparo para abordar uma outra mulher e sua própria sexualidade não lhe
responde muita coisa.

Logo depois da cena do lago, quando o Sr. K. destitui seu amor pela Sra. K., Dora
desenvolve uma gravidez psicológica, associada a uma nefralgia transitória na face. A
sensação de dor facial de ordem histérica seria, segundo Freud, um deslocamento e em
decorrência da bofetada que ela mesma havia dado no Sr. K.. Dora passa a sentir
projetivamente as consequências do bofetão que desferiu no amado.

Além da relação de Dora com o pai e com o casal K., Lacan também sublinhará a
importância da ligação afetiva da paciente com um irmão mais novo, as impressões infantis
de Dora em relação a seus pais e sua própria feminilidade. O irmão representava o modelo
fálico que ela queria ter sido quando pequena. Dora lembrava-se de uma cena infantil que
revelava claramente a forma como suas relações objetais se desenvolveram com esse irmão:
“Dora provavelmente infans sentada no chão, num canto, chupando o seu polegar esquerdo,
enquanto puxava ao mesmo tempo com sua mão direita a orelha de irmão, um ano e meio
mais velho do que ela” (Lacan, 1951/1998, p. 220). A conclusão a que Freud chega é de que
Dora teria sido uma “chupadora inveterada”. Seu próprio pai relatara isso na consulta,
acrescentando que havia feito de tudo para livrá-la desse mau hábito, sem êxito.

Segundo Lacan, essa cena infantil fornece a “matriz imaginária em que vieram desaguar
todas as situações que Dora desenvolveu em sua vida dos automatismos de repetição. Por aí,
podemos tirar a medida do que significa para ela a mulher e o homem” (Lacan, 1951/1998, p.
220). O dedo se interpõe entre ela e o irmão, entre a mulher e o homem, funcionando como
um terceiro termo. “A mulher é o objeto impossível de se destacar de um primitivo desejo
oral e onde, no entanto, é preciso que ela aprenda a reconhecer sua própria natureza genital”
(Lacan, 1951/1998, p. 220). A função da pulsão oral é a base para compreender o caso, pois é
preciso deslocar a erogeneidade oral e infantil para a genitalização do órgão sexual adulto.
Para Freud, a mulher precisaria abandonar a compulsão oral para reconhecer o órgão sexual
feminino numa espécie de deslocamento. Lacan o acompanha nesse ponto, quando diz que a
mulher é o objeto impossível de se destacar de um primitivo desejo oral, como se simbolizar a
123

vagina por completo fosse da ordem da ‘impossibilidade’. É preciso que ela chegue à vagina,
mas há sempre um resto da pulsão oral, ligada à relação primitiva com a mãe, que permanece
impossível de ser completamente simbolizada. Esse elemento é mais um fator que leva Lacan
a concluir sobre o extravio feminino no Édipo, pois os restos das operações pulsionais com a
mãe ainda fazem efeitos para a menina.

Freud extrai duas conclusões acerca da relação de Dora com o irmão: a primeira é a de
que ela se identifica com ele, em sua posição masculina; a segunda é a de que ela mantém
com ele uma relação sexualizada, construída sobre um gozo do tipo oral. Na cena em que ela
se vê chupando o dedo e mexendo na orelha do irmão, ela se identifica tanto com uma menina
que seduz o irmão, ao acariciar-lhe uma parte do corpo, quanto com um homenzinho que
chupa o dedo da menina que ela é, gozando com essa parte dela mesma como um objeto oral.
A figura de Dora mostra a dupla orientação da mulher em relação à sexualidade.

Há uma segunda cena a ser analisada. Sempre que Dora se via diante de uma relação
afetuosa entre um casal, sentia um apelo da pulsão oral que desencadeava tosses, afonias e
uma curiosa sensação de sentir o cheiro de fumo. Talvez esses sintomas e sua fixação oral
estariam submetidos à ideia ou à fantasia de uma cena de felação ou de cunilingus
protagonizada pela senhora K. e seu pai. Essa fantasia se apresentava com uma “dupla
polaridade da identificação onde se posta a histérica para interrogar a feminilidade” (André,
1998, p. 149). A mulher está dividida por seu gozo, pois uma parte dele é simbolizada pela
linguagem e outra permanece ligada ao real. Percebe-se uma dimensão de mais além do
objeto da fantasia, no caso da mulher. Lacan desenvolverá essa ideia ao propor que a mulher é
o suporte do homem na fantasia, mas também o Outro absoluto nessa relação. Ela também se
extravia em relação ao lugar em que a fantasia masculina pretende encerrá-la. Ou seja, quando
o Sr. K procura por Dora sexualmente, é aí que ela se extravia.

Em “Intervenções sobre a transferência” (1951), quando Lacan comenta o texto freudiano


sobre Dora, ele se embasa na ideia, cara a Freud, de que Dora não teria outra saída a não ser
aceitar-se enquanto objeto do desejo masculino do Sr. K. “Mas esta homenagem, cuja
potência salutar Freud entrevê para Dora, só poderia ser aceita por ela como manifestação do
desejo, se ela aceitasse a si mesma como objeto do desejo” (Lacan, 1951/1998, p. 222). É
exatamente quando se vê no lugar de objeto do desejo de um homem que ela se desorienta.
Para a histérica, é insuportável ocupar esse lugar, pois é isso o que ela mais teme.
124

A histérica se extravia ao ser interpelada sobre o lugar da mulher na fantasia masculina.


Ela deseja o lugar de única para um homem, mas se desvia quando é tomada aí. É interessante
pensar que Dora sente repulsa quando é desejada pelo Sr. K, mas é através de uma
identificação com sua posição masculina que ela pretende compreender a feminilidade da Sra.
K. O fenômeno da repulsa está relacionado a esse ponto em que o corpo da histérica fica sem
o privilégio da cifragem do falo e se transforma numa pura carne dessexualizada. Se o
caminho de Dora era aceitar-se como esse objeto de troca entre seu pai e o Sr. K, é a isso que
ela se recusa, é isso que de fato a repugna. É na luta que empreende contra essa posição que
está sua idolatria pela Sra. K., pois ela é a figura de mulher que consente em ser objeto de
desejo para esses dois homens. Nesse ponto está o verdadeiro momento em que algo se
encontra não simbolizável, já que ela se transforma numa carne negociada.

Na fantasia de Dora, essa mulher conhece a forma de ser um objeto dos homens, sem
reduzir-se a esse lugar. Vislumbramos, mais uma vez, os desvios que Dora precisa fazer para
interrogar sua própria feminilidade, já que não suporta a posição de objeto, mas aceita bem
esse papel na Sra. K. É como se ela tivesse sempre uma posição extraviada, no sentido de não
abordar o desejo pela via mais curta, mas sempre por uma espécie de procuração ou de
identificação com a Outra mulher. Desejar ser o objeto de um homem através da imagem da
Sra. K ou compreender a feminilidade através da fórmula que o desejo do homem lhe oferece
já configura uma forma muito particular de extravio.

É por extraviar-se na busca da feminilidade que a histérica é colocada no lugar de


responder como uma posição homossexual. Contudo, Serge André mostra que seria possível
dizer que há “uma homossexuação do desejo de Dora, ligada aos desvios das identificações
pelas quais ela precisa passar para interrogar sua própria feminilidade” (André, 1998, p. 150).
Essa homossexuação é uma forma de manifestação do extravio de um elemento da
sexualidade feminina na ligação da mulher com A outra, detentora do enigma da feminilidade.
Se o signo da feminilidade se mostra irrepresentável, a histérica acredita encontrar as provas
disso numa Outra mulher.

É exatamente porque, inicialmente, Dora se identifica com a posição masculina (seu


irmão, seu pai e o Sr K.), a fim de compreender a medida do desejo de um homem por uma
mulher, que ela se acha finalmente confrontada com ao enigma da Sra. K. Nesse processo, ela
se identifica com a Sra. K. e com a posição que ela ocupa diante do desejo de um homem, seu
pai. Reconhece também seu desejo de ser amada por um homem. “É essencialmente
125

importante que a Sra. K. continue a aparecer para Dora como aquilo que seu pai ama para
além dela própria, quer dizer, como o suplemento de feminilidade de que ela mesma se sente
em falta” (André, 1998, p. 151). Esse suplemento de feminilidade, procurado na Outra, é um
fato muito relevante para a tese sobre o extravio, pois, ao procurar por insígnias do feminino
na Outra, uma mulher pode se deparar novamente com o enigma, que Lacan nomeou de uma
feminilidade corporal.

A ligação de Dora com o Sr. K. exige que ele continue amando sua mulher, pois é a partir
daí que Dora pode ocupar a posição de um mais além do objeto de amor desse homem.
Enquanto for possível vislumbrar o mais além dela própria, na miragem dessa figura de
mulher, o suplemento de feminilidade que ela representa em relação ao Sr. K. estará
preservado. É numa relação de espelhamento com a Sra. K que Dora se vê. Esse suplemento
do feminino que aparece na figura da outra fornece o tom de desvio para além da via das
relações edípicas com uma mãe rival ou com um pai impotente.

Freud percebe que Dora se identifica claramente à posição masculina na esfera do amor,
pois, assim como os homens, enxerga a Sra. K. em dois lugares distintos: ela é, ao mesmo
tempo, a mãe, intocável e respeitada, e também a prostituta, objeto sexual (André, 1998, p.
151). Dora quer descobrir o que é uma mulher através do desejo de um homem, mas encontra
na Sra. K essa ambigüidade: ela é objeto fálico da fantasia, e ao mesmo tempo, mistério de
uma feminilidade imaculada, encarnada no corpo da mãe. A mãe, como Lacan sugeriria anos
mais tarde, pode estar no lugar de das Ding, Outro absolutamente fora da significação.

Freud relata alguns sonhos relevantes para a análise do caso Dora. É importante relatar
dois desses sonhos para compreender a interpretação de Freud e, posteriormente, a análise que
Lacan faz sobre a teoria da feminilidade presente no caso. A moça dissera a Freud que um
sonho a acompanhava toda noite, repetindo-se sempre da mesma forma. O psicanalista
acreditou que ele se encaixava na análise do caso como um todo e propôs a ela algumas
interpretações. Eis os dois sonhos conforme a paciente relatou a Freud:

Uma casa estava em chamas. Meu pai encontrava-se de pé ao lado da minha cama e me despertou. Vesti-
me rapidamente, mamãe queria parar e salvar sua caixa de joias; mas papai disse: “recuso-me a deixar que
eu e meus dois filhos sejamos queimados por causa da sua caixa de joias”. Descemos apressadamente as
escadas, e logo que me encontrei fora da casa despertei. (Freud, 1905/1980, p. 61).
126

No fragmento do sonho que acabamos de citar, Dora representa a feminilidade através da


figura da caixa, objeto que esconde um segredo ou mantém um conteúdo não revelado ao
olhar. Mais do que o feminino como um suplemento, ela o percebe como algo recalcado. Esse
primeiro relato gira em torno de um objeto principal, que, segundo o psicanalista, representa o
órgão sexual feminino: ‘a caixa de joias’ era a figura da vagina, representada por um
deslocamento. É interessante pensar que, no sonho, a caixa de jóias é um objeto que pertence
à mãe, essa primeira mulher, no corpo da qual meninos e meninas percebem, em primeira
mão, a castração. O pai se encoleriza porque acredita ser absurda a ideia de retornar a casa
para salvar a caixa da mãe, já que isso significaria um grande risco de vida. A cena do sonho
revela que há uma sexualidade em nome da qual todos podem se queimar.

O sonho leva Dora a se lembrar de uma outra cena, essa real, em que o pai traz de
presente para a mãe de Dora brincos de pérola. A mãe recusa o presente, porque esperava por
uma pulseira, e diz ao marido que ele poderia dá-lo a outra mulher. Numa segunda cena, Dora
se lembra de haver ganhado recentemente uma caixa de joias do Sr. K. A caixa de jóias, esse
objeto que circula entre as mulheres é um significante dado em nome do amor e daquilo que
não se tem. A joia representa um dom; é a prova de que, na relação sexual, algo não se
cumpre.

O pai de Dora encarna o lugar do homem que oferece as joias no lugar da virilidade que
lhe falta. A mãe recusa o que a Sra. K. aceita de bom grado. Nesse sentido, Dora poderia
buscar o segredo de sua feminilidade na mãe fálica, que não aceita a impotência do marido.
Por outro lado, ela se identifica com a Sra. K., que aceita as falhas do pai.

Freud tenta convencê-la de que ela não só queria estar no lugar da mãe e receber as joias
do pai, como gostaria de dar “seu porta joias’’ ao Sr. K., o que sua mulher, a Sra. K., se
recusava a fazer. Ou seja, ele reforça para Dora sua hipótese de que a caixa de joias
representava o órgão sexual feminino. Segundo Serge André, Freud não percebe que a caixa
de joias é um objeto de troca valioso entre um homem e uma mulher. Esse elemento circula
entre os personagens dessa história como aquilo que pode ser dado e recusado. O que é
recusado por uma mulher pode, por outro lado, servir muito bem a outra. Além disso, “esse
elemento representa para Dora o enigma do dom entre homens e mulheres e, mais
precisamente, do dom enquanto sinal de amor” (André, 1998, p. 152). Logo, a questão maior
de Dora é compreender a feminilidade em sua relação com o amor. Ela não consegue
127

localizar-se diante de um homem, pois sequer sabe o que esse encontra em uma mulher para
que ela se torne a causa de seu desejo.

A caixa de joias também representa muito bem uma espécie de capricho feminino, já que
o pai diz que não se sujeitará ao perigo de ser queimado com os filhos para resgatar uma
simples caixa de joias. Diante de uma mulher, da mãe, um homem pode se mostrar impotente,
já que a mãe de Dora parecia uma mulher caprichosa e difícil. Nada mais figurativo do que
produzir uma metáfora sobre a figura da mãe que põe a vida dos filhos em risco, diante de
uma casa em chamas, por causa de uma simples caixa de jóias. Mais uma vez, revela-se na
cena do sonho a relação que permaneceu não simbolizada com a sexualidade da mãe. O Édipo
não drena todo esse gozo materno mortífero que pode matar e queimar como fogo. Os restos
dessa relação primitiva com a mãe, reenviam Dora do corpo enigmático materno, que não
responde sobre a feminilidade, ao corpo encantador da Sra. K.

A questão de Dora era saber como uma mulher poderia acolher o amor e o desejo de um
homem estando no lugar do objeto de seu desejo. Como poderia a Sra. K. se virar tão bem
com o que sua mãe recusava? Como poderia um pai impotente satisfazer os desejos da Sra.
K.? Dora se vê recebendo a caixa de joias do Sr. K., mas não sabe se se identifica com a Sra.
K. e a recebe como um dom desse homem ou se a recusa, como a mãe. Entre essas mulheres,
há uma dupla posição: aquela que rechaça o amor do homem, como a mãe, e a que o recebe,
como a Sra. K. Como se localizar diante de duas saídas tão diferentes?

Por outro lado, a vagina de uma mulher, figurada como uma caixa de joias, como Freud
sugere, pode vir a simbolizar no sonho de Dora um problema, e mais, uma verdadeira
catástrofe. Porque é por causa ‘da caixa’, ‘da vagina’ da mãe que a família corre um risco
tremendo de morrer queimada. O fogo queima a casa, assim como a sexualidade de uma
mulher pode abalar moralmente a família, em maior grau do que a impotência de um pai. O
fogo pode ser lido como signo de uma mulher erotizada, porque é a dona da caixa e também
aquela que diz não à impotência do marido, recusando-lhe também as jóias que esse lhe
compra. O elemento pulsional materno, figurado pelo sonho de Dora, se contrapõe às palavras
comedidas de um pai fraco e impotente, que recua diante do perigo do fogo.

O segundo sonho acontece algumas semanas após o primeiro, e é depois de discuti-lo em


análise que Dora interrompe seu tratamento com Freud. O psicanalista reconheceu que o fim
do tratamento se deu em razão de seus encaminhamentos e intervenções. Nos dois sonhos, a
figura da mãe é muito marcante, mas Freud sequer comenta esse elemento. É importante
128

acompanhar esse relato, pois a análise do sonho por Dora “completou um vazio em suas
lembranças e tornou possível uma compreensão profunda quanto à origem de um outro
sintoma” (Freud, 1905/1980, p. 191). Esse segundo relato ilustra, ainda mais para Dora, o
mistério que o corpo da Sra. K. encarna. O sonho foi relatado a Freud da seguinte forma:

Eu caminhava a esmo por uma cidade desconhecida. As ruas e praças me eram estranhas. Vi um
monumento em uma das praças. Cheguei então em uma casa onde eu morava, fui para meu quarto e lá
encontrei uma carta da Mamãe. Esta dizia que, como eu saíra de casa sem o conhecimento de meus pais,
ela não desejara escrever-me pra contar que Papai estava doente. ‘Agora ele está morto e, se você quiser,
pode voltar. Dirigi-me então para a estação e indaguei umas cem vezes: onde fica a estação? E sempre me
respondiam: A cinco minutos daqui’. Vi então uma floresta espessa à minha frente, e nela penetrei, lá
encontrando um homem a quem fiz a pergunta. Ele respondeu: ‘A duas horas e meia daqui’. Ele ofereceu-
se pra acompanhar-me. Mas recusei e continuei sozinha. Vi a estação à minha frente, mas não consegui
alcançá-la. Ao mesmo tempo, tive a mesma sensação e ansiedade que se experimenta nos sonhos quando
não se consegue mover. A seguir estava em casa. Devo ter viajado nesse meio tempo, mas nada me recordo
quanto a isso. Entrei no alojamento do porteiro, e perguntei por nosso apartamento. A criada abriu a porta e
respondeu que mamãe e os outros já estavam no cemitério. (Freud, 1905/1980, p. 92).

Destacaremos nesse caso os traços que assinalam, segundo Freud e Lacan, a maneira
como uma histérica aborda as questões concernentes à feminilidade. O sonho da moça e seu
passeio pela estação são tomados por Freud como a representação de sua questão com a
vagina. A palavra Vorhof, que significa vestíbulo, usada por Dora no relato do sonho, e a frase
que acompanha esse vocábulo − “ninfas visíveis ao fundo de um bosque denso” − não
deixaram dúvidas: “aqui estava uma geografia simbólica do sexo!” (Freud, 1905/1980, p. 96).
As palavras usadas por Dora, e o rebuscamento das imagens descritas, mostram a tentativa de
simbolizar com figuras e termos extraídos dos compêndios de anatomia o vazio de
significações que envolvem o órgão sexual feminino.

Ninfeácea e vestíbulo são termos técnicos que descrevem regiões muito específicas do
órgão sexual feminino. Daí sua conclusão de que tais termos só poderiam ser usados por
médicos ou por pessoas que curiosamente parecem consultar compêndios de anatomia.
Questionada em relação ao uso desses termos, Dora se lembra de uma outra cena do sonho
que havia sido suprimida. Ao chegar ao quarto, deparou-se com um grande livro sobre a
escrivaninha. Freud conclui que o livro era o recurso dos jovens cheios de curiosidade sexual
para aprender sobre o que não lhes era dito pelos pais. O pai morto do sonho seria mais uma
129

prova de que, com ele longe, ela poderia “ler esses livros e amar à vontade” (Freud,
1905/1980, p. 98).

Há uma cena no sonho em que Dora anda a esmo por uma cidade desconhecida. Ao falar
sobre essa cena, recorda-se de um episódio real que explicaria mais uma ligação do sonho
com a realidade. Quando visitou a cidade de Dresden, havia passeado sozinha por lá e se
detivera diante de um quadro da Madona Sistina, ficando “absorta, em muda admiração” por
horas diante da pintura. Quando Freud lhe perguntou o que a agradara tanto no quadro, não
encontrou resposta alguma e disse: “A madona” (Freud, 1905/1980, p. 93), ou seja, uma
imagem irretocável e idealizada de mulher. A mulher, com letra maiúscula, parece surgir na
ilustração ideal da mãe santa.

A figura da virgem é aquela que encarna o mistério absoluto feminino, por ter sido
engravidada sem a contribuição do homem e, por isso mesmo, está relacionada ao que há de
mais próximo de um gozo extremo e ilimitável. A figura de uma mãe que engravida sem a
presença do homem também nos remete a esse lugar não simbolizável, sem mediação
possível, mistério denso e profundo que é o corpo da mulher. No sonho, é a voz da
progenitora que diz a Dora que ela pode retornar à casa, já que o pai estava morto. O pai
morto e o pai impotente não fazem barra ao desejo dessa mulher que é a mãe, cuja figura é,
para Dora, impossível de simbolizar, assim como o fogo e a floresta.

Em outra cena do relato do sonho, a dificuldade e a angústia despertada diante da estação


são interpretadas por Freud como uma questão em relação à virgindade e a importância dada
por Dora a esse fato. “Sob a primeira situação do sonho, estaria ocultada a fantasia de
defloração, a fantasia de um homem procurando forçar a entrada dos órgãos genitais
femininos” (Freud, 1905/1980, p. 97). O desejo de Dora pelo Sr. K. havia sofrido uma série
de deslocamentos para que não pudesse vir à consciência, mantendo-se insatisfeito.
Entretanto, no sonho, ela formula o desejo de ser tomada por um homem, não sem resistência.
Acredita-se que a análise de Freud pode ser reafirmada por outro elemento, já que, no sonho,
Dora sai da casa dos pais, abandonando a cena edípica, para viver sua vida ou sua
sexualidade. Mas esbarra numa dificuldade de se mover e desbravar o enigma da sexualidade
feminina, que é o elemento com o qual de fato ela se depara quando encontra com o Sr K.
fora de casa, longe dos pais, na cena do lago e na cena primeira do escritório. Não há mais um
trilho a ser percorrido, nem mesmo as referências simbólicas da mãe e do pai podem
130

responder a ela como ser uma mulher. É nesse ponto de fracasso da identificação no Édipo
que ela se extravia.

Eis a questão que Dora tenta resolver nesses sonhos: sua posição como mulher perante
seu próprio corpo e perante o desejo de um homem. Diante da ideia de adentrar no mistério da
sexualidade feminina e descobrir sua sexualidade, ela não pode mais avançar. Nesse ponto do
sonho, surge uma lacuna, uma angústia. É então que a moça entra em casa e se dirige ao livro
do pai, lugar do saber, para descobrir algo sobre a sexualidade. “Essa construção mostra
claramente o mecanismo em dois tempos pelo qual o sujeito tenta preencher sexualizando a
lacuna da representação do feminino” (André, 1998, p. 153). É pela via do simbólico que
Dora procura uma forma de contornar essa lacuna, a mesma que aparece nos relatos
freudianos sobre a gênese da histeria no “Rascunho K”.

Por outro lado, a lacuna surge no momento em que ela vai retornar à casa dos pais. A
estação que a levaria novamente ao casal paterno está, segundo seu relato, dubiamente, a
cinco minutos ou a duas horas dali, como se ela estivesse, ao mesmo tempo, perto e longe
deles. Dora mostra a dificuldade de voltar para casa e, ao chegar lá, segue rumo ao livro que
lhe contará a história sexual, sem que o pai esteja ali para reprová-la. Estão todos no cemitério
enterrando o progenitor, enquanto ela lê no livro do mesmo algo sobre os temas sobre a
sexualidade feminina. Enquanto seu pai estava vivo, não foi possível desejar outro homem, o
que acontece somente quando ela está bem longe de casa. O lugar mais distante possível do
pai é simbolizado nesse desejo inconsciente de vê-lo morto. Ao voltar, é preciso que o
progenitor, em quem ela deposita todo o afeto do Édipo, esteja enterrado, para que ela possa
novamente pensar em sua sexualidade e em dirigir seu amor à outra figura masculina.

Dora lembra que, quando um primo havia adoecido de apendicite, ela havia recorrido aos
livros para pesquisar os sintomas em uma enciclopédia de medicina do pai. Ao folheá-la,
sentiu vontade de saber sobre outros temas, principalmente o parto e a gravidez,
intercorrências sofridas por um corpo feminino.

Nove meses depois da cena em que esbofeteia o Sr. K. no lago, iniciam os sintomas de
dores abdominais e uma curiosa falha da menstruação. Fica claro para Freud porque Dora
desenvolve seus sintomas histéricos somente meses após a cena. Era a tentativa de simular o
que aconteceria em um parto, caso tivesse engravidado do Sr. K. “A maioria dos sintomas
histéricos, ao atingirem o ponto culminante de seu desenvolvimento, representam uma
situação imaginária da vida sexual, como uma cena de relações sexuais, gravidez, parto,
131

puerpério.” (Freud, 1905/1980, p. 100). Os sintomas se relacionam aos momentos em que o


corpo se rende a uma posição não erotizada, mas ocupada por uma mulher enquanto carne
anatômica.

Depois da análise desse sonho, efetuada por Freud no setting analítico, Dora interrompe o
tratamento. O mestre castrado permaneceu no mesmo lugar de seu pai e havia sido deposto
juntamente com ele. O homem ou o saber fálico representado por eles não poderiam dar a ela
o que buscava compreender. Por isso, Dora enterra Freud junto com o pai. “A demanda de
Dora é uma demanda de saber, saber do corpo ou corpo do saber, o dicionário simboliza
bastante bem esse corpus, mas ao mesmo tempo uma recusa ao saber, já que nenhuma
simbolização seria jamais suficiente para nomear o centro vazio de sua fascinação, quer dizer,
o órgão genital feminino, censurado no sonho” (André, 1998, p. 154). O próprio saber é
obstáculo à simbolização da vagina e da sexualidade feminina, mas de toda forma, Freud não
soube deixar que ela formulasse sua questão em torno de si mesma, da figura polêmica de sua
mãe ou de seu próprio corpo. Os restos da relação edípica com a mãe eram completamente
ignorados nessa época.

A moça se depara com uma questão crucial acerca de seu sexo nos dois sonhos: o que é
ser uma mulher? Lacan acrescenta que, nos dois relatos, fica claro que, nas entrelinhas dessa
pergunta, encontra-se uma outra: “O que é um órgão feminino?” (Lacan, 1955-56/1988, p.
197). Havia uma questão relacionada ao imaginário corporal e à forma de se posicionar
simbolicamente como uma mulher, diante de seu próprio desejo por um homem. Nos dois
sonhos a ligação com o tema da morte mostra, sobretudo, como o impasse sobre a questão
com o corpo e com o órgão sexual produzem um silêncio sem representação.

O texto freudiano apresenta uma série de dissimetrias em relação ao complexo de Édipo


na menina e no menino, e essas diferenças contribuem para as distinções que incidem nos
planos, simbólico e imaginário. “Para a mulher, a realização de seu sexo não se faz no
complexo de Édipo de uma forma simétrica à do homem, não pela identificação com a mãe,
mas, ao contrário, pela identificação com o objeto paterno, o que lhe destina um desvio
suplementar” (Lacan, 1955-56/1988, p. 197). O desvio suplementar aponta para a nossa
hipótese de que mesmo e, sobretudo, em uma posição histérica, existe o predomínio desse
elemento extraviado, já que, ao encontrar todas as insígnias simbólicas que poderiam dizer a
ela como é ser uma mulher fálica, ela se extravia para um lugar mais além, já que o falo não
responde a sua questão.
132

Freud abandonou a concepção de que o destino pulsional na menina pudesse se


estabelecer a partir de uma simetria com o desenvolvimento do homem. Entretanto, sabemos
que por identificar-se com o pai, a mulher estabelece uma vantagem já que essa identificação
é perfeitamente acessível, em virtude de sua posição. O seja, por amá-lo, ela tem uma
facilidade muito grande de se deslocar do amor para uma identificação. Logo, a dificuldade
em ter acesso à identidade de seu próprio sexo é superada em certa medida dessa forma,
fiando-se no que a referência fálica lhe responde. Entretanto, embora Lacan acredite que
identificar-se com o pai é uma tarefa mais simples, a histérica só se identifica com essa
posição para, a partir daí, atingir um outro objetivo: interpelar a sexualidade feminina através
de outra mulher.

No subtítulo do Seminário 3, “A questão histérica: o que é uma mulher?”, Lacan


demonstra o caráter imaginário da função do eu, mostrando que a estrutura da neurose se
estabelece sobre as bases de uma questão que não se dá de forma simples para as mulheres.
Freud coloca o eu, e sua relação com o caráter fantasmático do objeto, como bases para essa
identificação sexuada. A escolha de objeto e a identificação podem sofrer alguns desvios no
processo psíquico e sexual feminino. Nesse caso, o Ideal do eu se estabelece como miragem, e
não como objetividade. Segundo Lacan, o eu é um ilusão forjada no Estádio do espelho, na
relação com o outro. No caso Dora, fica evidente que esse outro com o qual ela se identifica é
o pai, inicialmente descrito por Freud como uma figura inteligente, forte e perspicaz. Na
verdade, ele inicia a história clínica da moça contando sobre as qualidades de seu pai, que foi
quem a levou a análise. O pai freudiano é esse outro forte, idealizado e capaz de forjar um
Ideal do eu para o filho e a filha. Embora o pai de Dora demonstre suas fraquezas ao longo do
relato do caso.

Dora se pergunta quem ela é na relação com o outro. Acontece que Freud ficou muito
tempo preso na simetria que o neurótico estabelece com o objeto, que é ou um homem ou uma
mulher, pois não percebeu, segundo Lacan, a duplicidade que estaria implicada entre o sujeito
e seu objeto. “Ele se pergunta o que Dora deseja antes de se perguntar quem deseja em
Dora?” (Lacan, 1955-1956/1988, p. 200). É a partir da posição masculina do Sr K., com o
qual ela se identifica, que ela deseja.

Com isso, Freud determina que o eu de Dora é o Sr. K. Logo, identifica sua posição como
estritamente masculina. Percebe que o que acontece entre Dora, seu pai, o Sr. K. e a Sra. K. é
a relação do desejo de Dora que se dirige para a Sra. K. O ponto externo de identificação
133

imaginária onde ela situa seu eu para se reconhecer na função especular é o Sr. K., esse
homem que poderia lhe fornecer algo no nível simbólico. É, pois, por se identificar com ele,
que todos os seus sintomas adquirem um sentido definido, afirma Lacan. As afonias, a dor no
rosto, os sintomas de gravidez, todos passam pela figura desse homem.

Diante da presença e da ausência do Sr. K., Dora desenvolve uma afonia sintomática.
Freud analisa que se o seu objeto de identificação, esse homem, não está mais por perto, então
ela não precisa mais falar, reproduzindo sua ausência com a mudez. Queixa-se, mas continua
firme em sua identificação com o Sr. K., mantendo essa situação até o momento de uma
descompensação neurótica que subverte a cena: “Que diz Dora através de sua neurose? Que
diz a histérica-mulher? Sua questão é a seguinte: O que é ser uma mulher?” (Lacan, 1955-
1956/1988, p. 200). Vejamos que a questão com a mulher está presente mesmo quando a
interpelamos através da estrutura histérica. A neurose histérica apenas torna as questões
referentes à sexualidade feminina mais prementes e ilustrativas.

A sexualidade feminina, no caso da histeria, é norteada por uma dialética pulsional que se
dá entre os registros, imaginário e simbólico. A menina precisa identificar-se com a mãe e
amar o pai, mas Dora sabe muito bem que o desejo dessa mãe não pôde ser barrado, quanto
mais por um pai impotente. É em torno de uma identificação com um homem potente, o Sr.
K, que ela não só interpela a feminilidade na Sra. K, mas tenta fazer uma barreira ao gozo de
sua própria mãe. Isso fica claro quando, nos dois sonhos, ela traz o tema da possível morte do
pai e de toda a família pelo fogo, fazendo uma ligação direta com a carta e a caixa de jóias,
que são ambas objetos da mãe. É a figura materna que faz o pai temer a morte da família no
primeiro sonho e que, no segundo, anuncia a morte do progenitor, dizendo que Dora poderia
retornar à casa.

É por não haver de forma alguma um correspondente do falo do pai em outro lugar que a
menina, assim como o menino, encontra no complexo de castração um valor pivô na
realização de seu Édipo, pois o falo é um símbolo sem correspondente. O corpo da mulher
não pode responder com um órgão à altura desse símbolo, já que ele é um elemento sem
equivalência. Isso demonstra uma dissimetria que pode ser apreendida pela a forma diversa
com que o corpo é cifrado pelo significante na sexualidade feminina e masculina.

O complexo de Édipo atesta a prevalência da estrutura significante para que o sujeito


tenha acesso à realização subjetiva. A posição da menina no Édipo está perpassada
inicialmente por um elemento imaginário, que se relaciona diretamente a ideia de possuir um
134

pênis. Por isso, estão à sua disposição todos os elementos para que ela tenha uma experiência
da posição feminina direta e simétrica à masculina, como se elas se equivalessem. Há,
entretanto, um obstáculo na subjetivação sexual da posição feminina, pois existe de fato uma
falta simbólica do representante que lhe assegure que seu órgão sexual tenha também um
valor significante.

A menina precisa do corpo do outro para encontrar o seu sexo enquanto falta. “O sexo
feminino tem uma característica de ausência, de vazio, de buraco que faz com que aconteça
ser menos desejável que o sexo masculino no que ele tem de provocante e com que uma
dissimetria essencial apareça” (Lacan, 1955-56/1988, p. 202). A mulher tem, segundo Freud,
apenas um caminho: invejar e procurar pelo falo em outro lugar. Ela só se torna uma mulher
ao buscar essa realização fálica, conseqüência de sua inveja. Lacan reconhece essa busca de
toda mulher, mas diz que, a partir dessa procura, há sempre algo que se extravia. No caso de
Dora, há um problema a mais porque, enquanto Freud tenta a todo custo salvar o pai como
Ideal, ele aparece como castrado e frágil: vítima de uma série de doenças, descolamento de
retina, sífilis, impotência. Freud relacionava a histeria de Dora à impotência do pai em
fornecer à filha um símbolo fálico à altura.

Conclui-se que, ao entrar na histeria, ao bancar uma posição masculina, uma mulher pode
resolver algo de sua questão com a sexualidade, já que se produz aí uma estabilidade
particular, em virtude da saída talvez simplória que a estrutura histérica oferece. Há uma certa
comodidade em se identificar ao pai, já que na histeria esse tipo de identificação é comum
parece resolver algumas questões. A via mais curta para a pergunta “como é ser uma mulher”
é fazer-se de homem, acrescenta Lacan. A identificação com uma posição masculina acontece
como um ponto de ruptura, já que a estrutura edípica fica frouxa e mal estruturada.

A histeria aponta para dois elementos importantes que anunciam o extravio feminino: o
do desejo e o da pulsão não recalcada, não representada pelo falo. A posição histérica
interpela a castração, pois recusa-a, apontando para um mal estar em relação a um gozo que
só poderá ser inscrito em um impasse da formalização. Identificar-se com o pai é uma forma
de inscrever-se no simbólico. Entretanto, a histérica lida com esse desejo atingindo-o de
forma invertida, com o prazer da insatisfação. O gozo viria, dessa maneira, fazer sua irrupção
por meio de um desprazer que se apresenta a Freud como um elemento para além do princípio
do prazer, lançando a mulher num campo outro, irrepresentável.
135

É na relação com o pai e o casal K. que Dora encontra uma metáfora infinita em que se
coloca sob certo número de significantes dessa cadeia. O Sr. K. é sua metáfora, já que ela não
consegue dizer onde se localiza, nem para que serve o amor, sem esse anteparo. O sintoma de
gravidez não passa também de um elemento metafórico, pela crise e rompimento com o
homem que amava. Através da identificação com ele, Dora responde sobre o amor e sobre o
que ela é:

Em suma, é na medida em que Dora se interroga sobre o que é ser uma mulher que ela se exprime, como o
faz por seus sintomas. Esses sintomas são elementos significantes, mas na medida em que, sob eles, corre
um significado perpetuamente em movimento, que é a maneira em que Dora aí se implica. (Lacan, 1956-
57/1988, p. 149).

Dora reivindicou a atenção e o amor do pai quando percebeu que a Sra K. lhe arrebatara.
Entretanto, em um dado momento, não suportou mais fazer parte dessa equação. Freud
pergunta a ela, e Lacan traduz essa pergunta como: “Isso contra o que você se insurge aí,
como contra uma desordem, não é algo de que você mesma participou?” (Lacan, 1956-
57/1988, p. 140). Ela sustenta uma situação de maneira eficiente durante muito tempo,
mostra-se complacente com a posição singular em que protegia os encontros do pai com a
dama.

Freud percebe que ele insistiu muito com Dora em relação à relação amorosa que a ligava
ao Sr. K. e que a questão da moça estava voltada para sua relação com a Sra. K. Sua crise e
sua posição primitiva estavam relacionadas a esse objeto real do desejo de Dora: a Sra. K., o
seu modelo de mulher. Lacan analisa o caso dizendo que “a histérica ama por procuração”
quando se liga a um objeto homossexual e o aborda por identificação com alguém do outro
sexo, no caso o Sr. K. Dora se identifica com o personagem viril, já que os homens são para
ela “cristalizações possíveis de seu eu” (Lacan, 1956-57/1988, p. 141). É na medida em que
está ligada imaginariamente ao personagem do Sr. K. que se dirige também à Sra. K., por
meio de um desvio muito especial.

Lacan aponta para a importância do fato de o pai de Dora ser impotente, já que sua
função tem uma relação direta com a falta de objeto pela qual a menina ingressa no Édipo. Há
uma diferença grande, segundo ele, em buscar o significante fálico que responda pela
sexualidade em um pai impotente e em um pai potente. No caso Dora, a carência fálica do pai
136

atravessa todo o caso, como uma nota de fundo fundamental. Mesmo sabendo que ele não tem
nada para dar, é a ele que Dora se liga, de forma exemplar. O homem castrado, de quem ela
não recebe o dom viril, permanece presente desde a saída do Édipo em toda a sua série de
crises histéricas, claramente ligadas às manifestações de amor por ele. O pai aparece ferido e
doente, afetado em suas potências, mas não deixa de ser o centro de suas questões em relação
ao apelo ao falo. “O amor que ela tem pelo pai é então estritamente correlativo e coextensivo
a diminuição deste” (Lacan, 1956-57/1988, p. 142).

A conclusão a que se chega é que o que intervém na relação, que é demandado como
signo de amor, nunca passa de algo que só existe como signo e não como algo real que se
tem. Por isso, nessa ligação extrema com o pai: “não existe maior dom possível, maior signo
que o dom daquilo que não se tem” (Lacan, 1956-57/1988, p. 142). O sujeito precisa dar algo
de forma gratuita, na medida em que, por trás do que se dá, existe uma falta que o sujeito
sacrifica para além daquilo que tem. Dora compreende essa dimensão da falta através do pai e
não de sua mãe. É importante pensar nessa posição invertida no casal edipiano de Dora, pois
ela se identifica com uma posição viril, mas, ao mesmo tempo, sabe que o falo pode aparecer
pela castração do pai.

Dora estava sempre próxima do pai porque o amava pelo que ele não lhe dava. Essa é
uma situação primitiva que se mantém até o fim, diria Lacan. Agora resta saber como essa
situação pode ser superada, já que o pai se envolve com uma outra mulher que não é a mãe de
Dora. O que o pai ama na Sra. K.? É isso que a paciente se pergunta. A Sra. K. é amada para
além dela mesma, por isso Dora se apega a esse mistério em torno da feminilidade dessa
mulher.

É na medida em que a Sra. K. encarna a potência de um personagem que parece possuir


todos os signos do feminino que Dora vislumbra nela a representação da sua questão maior.
Quando o pai se dirige para essa mulher que está para além dela e da mãe, Dora se pergunta
como se localizar agora. “O que é amado em um ser está para além daquilo que ele é, a saber,
afinal de contas, o que lhe falta” (Lacan, 1956-57/1988, p. 144). A Sra. K parece dar o
testemunho de uma compreensão dessa ordem, porque lida com o pai de Dora com o que ele
não pode lhe dar.

Se a Sra. K faz sua retirada dessa ciranda, então Dora só é amada e desejada como objeto,
perdendo seu caráter de mais além da outra mulher, do suplemento da feminilidade da Outra.
O pai, então, não mais poderia amar nela o que está além da Sra. K. As mulheres da cena
137

perdem a conexão entre si, e ela se sente desamparada para enfrentar o desejo de um homem,
sem esse anteparo que apreende através da outra. Ela cai como objeto dessa operação, como
um simples objeto da fantasia e de troca entre os homens. É ai que se extravia da cadeia
simbólica que era mantida pelas relações presentes ali, como objeto não mais simbolizado.

Era nas trocas subentendidas entre esses dois homens que se produzia a aliança que
sustentava o equilíbrio psíquico de Dora. Lacan diz que o pai recebe uma mulher e deve ao
Sr. K. sua filha, recordando o livro de Claude Levi Strauss, e a tese sobre a mulher como
objeto das trocas nas estruturas elementares de parentesco. Nesses intercâmbios individuais,
submetida à lei dos homens, a mulher é “puro e simples objeto de troca, ela não é integrada
por nada ali” (Lacan, 1956-57/1988, p. 146). Dora se insurge contra essa troca pura que não
considera nada além de um ganho secundário. É quando esse semblante cai diante de seus
olhos, precipitado pela revelação do Sr. K, que ela então se vê como uma carne negociada,
como um corpo não erotizado.

O extravio principal de Dora pode ser localizado nessa série de desvios empreendidos
para chegar até uma resposta para a pergunta sobre o que é uma mulher ou como se localizar
diante da constatação final de que o pai não tem o falo reivindicado. Ao interpelar a
sexualidade feminina pela Sra. K., que representa para ela a Outra mulher, Dora se dirige a
uma busca dupla: pela mulher-falo que é a senhora K., mas, ao mesmo tempo, pela falta que
essa mulher também encarna, pelo S(de A barrado). Ao buscar a saída em outra mulher, ela se
desgarra, inevitavelmente. Eis o elemento que pode configurar o extravio de Dora: chegar à
mãe, à Sra. K e a si mesma por procurações e encontrar a falta do significante, onde se busca
uma resposta derradeira para a sexualidade feminina.

Dora se dirige a Freud para formular, em análise, uma pergunta em relação à sexualidade
feminina e ao corpo de uma mulher. Ao ser sondado sobre o mistério da sexualidade
feminina, Freud responde que ele só poderia se resumir em duas posições: naquela ocupada
pela mulher enquanto a mãe que recebe um filho do homem, ou na da mulher que se coloca
como objeto desejado pela fantasia masculina. Foi exatamente essa resposta que pôs fim à
análise, já que o que poderia ter levado Dora a continuar adiante com sua questão seria um
não saber, ou um saber não-todo universalizado pela referência ao falo. Freud respondeu
teoricamente à questão feminina, produzindo um sentido único e universal para todas as
mulheres. Mas Dora, como uma ‘possível verdadeira mulher’, extraviou-se exatamente diante
138

dessa medida fálica, dessa resposta pronta que não respondeu inteiramente à sua natureza
pulsional.

5.3 - A Jovem Homossexual: um dejeto que cai da cadeia significante

“A jovem se encontra desprovida de seus últimos recursos. Até ali, ela fora
bastante frustrada do que lhe deveria ser dado, a saber, o falo paterno, mas
encontra o meio de manter o desejo pela via da relação imaginária com a dama.
Uma vez que esta a rejeita, ela não pode sustentar coisa alguma. Naquele
momento ela se suicida" (Lacan, 1956-57/1988, p. 150).

Freud publicou o caso da Jovem Homossexual em 1920, no texto “A psicogênese de um


caso de homossexualidade feminina”. No Seminário, livro 4: as relações de objeto (1956-
1957), Lacan faz a releitura do caso e analisa as consequências psíquicas da passagem da
menina pelo complexo de Édipo e de castração por meio das operações de privação,
frustração e castração. A partir da relação que a Jovem estabeleceria com o casal parental e
com sua escolha homossexual, podemos traçar qual seria seu elemento de extravio.

A Jovem Homossexual ligava-se tão fortemente à figura do pai que Freud descreveu-a
como ocupando inicialmente uma posição feminina. No curso de seu desenvolvimento sexual,
quando ela já era uma moça, nasce um bebê na família, seu irmão. Esse fato leva a Jovem a
desviar-se da posição feminina e maternal que ocupava até então, tanto em relação ao pai,
quanto em relação a uma criança da qual cuidava, e a assumir uma posição masculina e de
rivalidade com o progenitor.

Freud ressalta que, apesar dos pais da moça pretenderem, com a psicanálise, reconduzir a
filha a um “estado normal de espírito”, ela era uma jovem absolutamente normal: não tinha
sintomas e não se queixava de absolutamente nenhum sofrimento na análise. Seus aparentes
desvios sexuais, e sua mudança brusca de posição diante do pai, estavam inseridos num
contexto em que não havia nada de psiquicamente anormal. Contudo, para a família e para
Freud, havia algo de inquietante em seus comportamentos.

Pouco tempo depois da apresentação do caso da Jovem Homossexual no Seminário, livro


4: as relações de objeto, Lacan afirma, já no Seminário, livro 5: as formações do
139

inconsciente, que “nas verdadeiras mulheres há sempre algo meio extraviado” e que, mesmo
que a função do Édipo lhes ofereça um caminho específico para o escoamento da sexualidade
feminina, algo nas mulheres se desvia, permanecendo sem simbolização. A Jovem é um
exemplar de uma verdadeira mulher, porque, mesmo desviando-se de uma posição edípica
esperada, ela o faz depois de haver se ligado fortemente ao pai. Passa pelo complexo e se
dirige ao pai de forma feminina, mas, por fim, parece não encontrar na relação com ele a saída
para seus impasses, o que produz um desvio curioso de seu interesse sexual para uma mulher.
Lacan faz a descrição do caso atendido por Freud, demonstrando articulações essenciais para
compreender o complexo de masculinidade na mulher. A análise lacaniana vai se encaminhar
para o estudo da fase fálica na menina e para a forma como a jovem resolve o impasse da
identificação com a figura paterna.

A Jovem era uma moça de 18 anos bastante bonita, inteligente e de classe social elevada.
Tornou-se objeto de preocupação para os pais, pois se enamorou de uma mulher dez anos
mais velha, uma “dama do mundo”, como eram chamadas as prostitutas na época. A família
entrou em conflito com a filha e a cólera do pai fez com que ela mantivesse a amizade com a
dama às escondidas. Encontravam-se na rua, anunciando o caso parcialmente para quem
quisesse percebê-lo. Mesmo mantendo o namoro com certa descrição, isso bastou para que o
pai soubesse de tudo. A mãe não se mostrava contra a relação, pois não levara a atitude da
filha tão a sério quanto o pai.

A propósito da convivência com um irmão mais velho, a paciente relatou que percebia,
com desconforto, a “diferença que fazia dela alguém que não tinha o objeto essencialmente
desejável, o objeto fálico” (Lacan, 1956-57/1995, p. 104). É em relação a esse pênis faltoso
que se estabelece a presença e a ausência supostas da ordem simbólica. Esse elemento
simbólico estaria inserido no campo da relação primitiva de privação de algum elemento no
corpo da mulher. A operação de privação equivaleria à perda real de um objeto simbólico, isto
é, ao encontro com a falta básica, primeira, aquela que o recalque primordial trata de subtrair,
sobrepondo novos significantes, sempre insuficientes para nomear o inominável dessa
carência primitiva.

A sexualidade feminina segue uma orientação diferente da masculina, considerando-se


que o Penisneid diz respeito a uma operação de privação, ou seja, a um não ter. É em relação
a esse real, como algo inteiramente distinto do imaginário, que se pode falar de privação. No
complexo de Édipo, a privação pode ser ilustrada pelo falicismo, ou seja, pela exigência de
140

falo que a menina faz aos pais. Lacan afirma que esse é o ponto principal de todo o jogo
imaginário no processo de conflito da Jovem Homossexual.

No decorrer de seu desenvolvimento sexual, é possível que a menina encontre substitutos


simbólicos para essa suposta ausência, já que “a menina se considera, nem que seja por um
momento, castrada, na acepção de privada de falo” (Lacan, 1956-57/1995, p. 28). Para as
mulheres, a ausência do falo equivaleria à privação de um elemento real que será inscrito no
simbólico. Uma vez partindo da constatação dessa falta, a mulher pode fabricar seu ser
sexuado pela via da inveja do pênis, sendo essa uma das possibilidades para o sujeito
feminino produzir uma resposta à falta. A Jovem Homossexual demonstra a ligação da mulher
com esse falo ausente, que não é encontrado junto ao pai. Uma das saídas possíveis para esse
impasse é a busca de resposta na relação homossexual.

Até a constatação da diferença em relação ao irmão, a Jovem jamais tinha sido neurótica.
Nada em sua história infantil justificava a atitude tão singular de se ocupar de repente de
cultuar um amor por uma mulher denegrida socialmente. Até que esse caso amoroso
eclodisse, a Jovem se orientava de forma ‘sexualmente normal’, segundo as teses freudianas
sobre o encaminhamento da sexualidade feminina no Édipo. Até os 14 anos, ela cuidava de
uma criança pela qual mantinha “uma simpática orientação da vocação feminina, a
maternidade” (Lacan, 1956-57/1995, p. 105). A saída pela via da maternidade era, segundo
Freud, a orientação para uma verdadeira feminilidade. “Se a mulher encontra na criança uma
satisfação, é muito precisamente na medida em que encontra algo que atenua mais ou menos
bem sua necessidade de falo, algo que a satura” (Lacan, 1956-57/1995, p. 71). A Jovem
Homossexual espera que o pai lhe dê um filho e chega a cuidar dessa criança real que
imaginariamente entrava no lugar daquilo que ela ansiava ganhar do pai.

Os textos freudianos estabelecem um roteiro para o estabelecimento da saída


homossexual. A menina se conduz, num primeiro tempo, para o pai, após abandonar a figura
da mãe de forma natural. Nesse sentido, só num segundo tempo é que ela retorna à fixação à
mãe, depois de ter sido frustrada na demanda dirigida ao pai. Quando ela se sente
impossibilitada de receber o que espera desse homem, revive o amor à mãe, fixando-se, então,
também num afeto pelas mulheres. É no momento em que a Jovem percebe que o pai não lhe
deu um bebê que ela se extravia para outra saída, agora não mais pela identificação com a
posição de mãe, mas para o amor pelas figuras que parecem representar uma posição materna.
“Os primeiros objetos de sua afeição, após o nascimento do irmão mais novo, haviam sido
141

realmente mães, mulheres entre trinta e cinco anos de idade” (Freud, 1920/1980, p. 195). A
presença implícita de um traço maternal era uma condição para atraí-la ao objeto amoroso. A
Jovem empreende um deslocamento que vai de uma posição de identificação com o
significante da maternidade para o amor pela mãe ou por mulheres que lembrem a mãe. Além
desse traço da maternidade, o objeto precisava apresentar outra característica, também
desejável pelo tipo de amor masculino: algum elemento depreciativo, como a má reputação
das prostitutas.

Lacan afirma, seguindo o raciocínio de Freud, que não se trata somente da falta do falo
para a menina, mas da pretensão de dar à mãe isso que lhe falta, exatamente como se ela fosse
também um menino. Ou seja, ela se engaja na posição masculina de ter o falo que precisa
oferecer à mãe e, depois, à dama. A Jovem retoma a ligação com a progenitora, depois de ter
passado pelo Édipo com o pai e sido frustrada por ele. Se a sexualidade da menina está ligada
à falta do falo, resta saber como a criança entende o fato de que sua mãe, uma vez onipotente
e fálica, não possui algo tão importante. Como dar à mãe esse objeto faltoso e que sempre
falta a ela mesma? A relação da criança feminina com a mãe faz com que seja fundamental a
entrada da referência fálica como significante, pois se trata de ver onde ela falta.

A frustração é a primeira operação que surge no encontro da criança com a mãe, numa
fase bastante primitiva: “A mãe é considerada um conjunto de impressões vividas pelo sujeito
em um período de desenvolvimento em que sua relação com o objeto real está centrada
habitualmente na imago, dita primordial, do seio materno” (Lacan, 1956-57/1995, p. 62). O
sujeito está em posição de desejar o seio, estabelecendo uma relação primitiva com o objeto.

A partir da frustração, pode-se ter acesso às fases oral, anal e fálica e localizar a
importância de uma anatomia imaginária no desenvolvimento das relações primitivas de um
sujeito. O agente da frustração é inicialmente a mãe, pois ela é o elemento presente e ausente,
diante do qual se estabelece a ordem simbólica. É na introdução do par de oposições que a
linguagem se apresenta. Nesse sentido, a mãe, que pode faltar, é agora um objeto simbólico.
Isso que é desejado, o falo, não faz referência a qualquer possibilidade de satisfação nem de
aquisição, pois a frustração é o domínio de uma exigência sem lei, desenfreada, localizada no
plano imaginário.
142

No caso do ato perverso29 da Jovem Homossexual, trata-se de pensar que o falo, como
significante, nunca estará ali onde realmente está: não está com o pai, nem com a mãe fálica.
Mesmo pensando pelo campo das identificações, o essencial é a relação que a Jovem
estabelece com esse terceiro elemento, enquanto localizado numa cadeia simbólica. É nesse
sentido que a etapa crucial do Édipo demonstra como, a partir da frustração primitiva, a
criança se engaja na dialética subjetiva para, de forma enganosa, satisfazer na mãe o que não
pode ser satisfeito, a saber, esse desejo insaciável “Esse desejo que não pode ser saciado trata-
se de enganá-lo” (Lacan, 1956-57/1995, p. 198). A Jovem Homossexual se engaja na
promessa de responder à falta feminina que não pode ser liquidada.

A Jovem declara, em análise, que não abandonaria suas pretensões e nem mesmo sua
escolha objetal homossexual, embora o pai não a aceitasse. Diz que faria de tudo para enganar
a família e continuar a manter o laço com a moça, por quem estava verdadeiramente
apaixonada. Foi por causa de um desenlace com esse objeto de amor tão venerado que a
jovem chegou até o consultório de Freud, depois de uma tentativa de suicídio malograda.

No percurso da história, um episódio mostrou-se relevante na compreensão do caso. Em


um dia de passeios pela rua, diante da janela de sua casa, a jovem foi surpreendida por seu
pai, que lançou um olhar de desaprovação para ela e para a dama, e saiu de cena, sem nem
mesmo se dirigir às duas. A dama perguntou quem era a pessoa em questão e a moça
respondeu que era seu pai, e que ele não parecia nada satisfeito. A dama, que não queria
complicar as relações com a família da jovem, disse, lacônica: ‘nesse caso, não nos veremos
mais’. “O pai passou por ela, na rua, de olhar furioso para ela e sua companheira, da qual
nessa época vinha tomando conhecimento. A dama encoleriza-se com isso e ordena à jovem
que deixasse ali mesmo e nunca mais a esperasse ou a ela se dirigisse: o caso tinha de
terminar ali.” (Freud, 1920/1980, p. 201). Esse fato precipita a próxima cena.

Ao escutar a dama dizer que não se veriam mais, em razão da desaprovação do pai, a
Jovem se jogou de uma das pontes da cidade de Viena. Apesar de ter se machucado e passado
semanas convalescente na cama, sobreviveu à queda. “Desesperada por haver dessa forma
perdido para sempre sua bem amada, quis pôr termo à sua própria vida” (Freud, 1920/1980, p.

29
Lacan qualifica o caso da Jovem como uma perversão imaginária (1956-57), já que o Outro começa a se
articular de uma forma imaginária. A moça se identifica com esse pai e se dirige à dama, mantendo a relação a
três: o pai imaginário, a dama e o falo.
143

201). Depois desse ato, percebeu que a dama passara a nutrir uma preocupação especial por
ela e que os pais passaram a não mais importuná-la.

A tentativa de suicídio foi um ato significativo para a análise freudiana, pois coroou a
crise psicológica da moça, embora já houvesse uma tensão instalada antes do momento da
tragédia. Uma moça com orientação sexual normal, diz Lacan, esboçaria o desejo de ter um
filho dado pelo pai, mas é nesse sentido que reconhecemos a crise originária que fez a moça
se voltar para o sentido oposto desse desejo, invertendo sua posição subjetiva. Seria possível
questionar se essa inversão da posição subjetiva inauguraria o que Lacan chama de extravio?

A decepção vivida em relação ao objeto de desejo traduziu-se por uma inversão de papel:
o sujeito se identificou com o bebê que não lhe foi dado pelo progenitor e se pôs a cair, diante
do olhar do mesmo. Haveria, nesse episódio, um elemento do extravio da mulher? A queda
localiza a questão da moça no plano de suas identificações e amores pela mãe e pelo pai. A
Jovem simplesmente adota uma posição de rivalidade com o pai, e, além disso, se joga da
ponte, dando a ele a chance de decifração simbólica de seu ato. Esse gesto radical produzira
uma metáfora, segundo Lacan, já que a Jovem se precipita como uma criança que cai num
parto.

A Jovem procurava uma saída simbólica através do amor cortês pela dama, mas, quando
menos se espera, extravia-se desse lugar. O amor cortês só poderia se sustentar enquanto
houvesse um triângulo entre ela, a dama e o pai. Ela só poderia amar a dama nessa revivência
da relação edípica, enquanto observada e reconhecida pelo pai. É por não poder mais ser vista
onde era queria ser localizada pelo pai que ela se precipita sobre o abismo da ponte.

A tentativa de suicídio, como se podia esperar, foi determinada por dois outros motivos, além do que ela
forneceu: a realização de uma punição (autopunição) e a realização de um desejo. Esse último significava a
consecução do próprio desejo que, quando frustrado, impelira-a ao homossexualismo: o desejo de ter um
filho do pai, pois agora ela caíra por culpa do pai. (Freud, 1920/1980, p. 201).

Lacan analisa a tentativa de suicídio como uma passagem ao ato, pois não acredita que
haja, ali, uma mostração nem para o pai, nem para a dama, mas o surgimento abrupto de si
como dejeto, esse objeto que se precipita na cena em que ela é rejeitada por seus objetos de
144

amor e identificação. Ela se extravia como esse elemento que se precipita da cadeia simbólica
que a mantinha, anteriormente, como sujeito da cena numa posição estabelecida.

Outro acontecimento na família havia contribuído para completar o cenário da crise que
se instalou. Por volta dos quinze anos, momento em que as moças se engajam na tarefa de
tomar posse de um filho real e não mais imaginário, a mãe da jovem teve um filho do pai. A
paciente ganhou um irmão na puberdade e nesse fato residia a chave do problema, já que foi
no momento em que a mãe ficou grávida que se operou a inversão de sua posição no Édipo. O
rancor para com o pai se instalou, e todas as outras cenas foram se passando como um
fenômeno reativo. “O mais importante a esse respeito foi a impressão causada pelo
nascimento de seu irmãozinho e, a partir disso, poderíamos inclinar-nos a classificar o caso
como de inversão posteriormente adquirida” (Freud, 1920/1980, p. 207).

Essa criança que chega está localizada no lugar do falo que falta a mãe e a ela mesma. O
bebê vem precipitar uma conclusão para Jovem, a “percepção de que à mãe, que está no limite
do simbólico e do real, falta também o falo” (Lacan, 1956-57/1995, p. 81). Ou seja, quando o
pai dá o falo em forma de filho à mãe, ela reconhece imediatamente que ela não é mais esse
falo da mãe, e que o pai também não lhe recompensará por essa falta.

A frustração com a qual ela se depara, não a leva a procurar um homem que possa lhe dar
um filho, mas a conduz a uma homossexualidade sublimada. O ressentimento pelo pai ter
dado um filho à mãe e não a ela, fê-la tomar um desvio na relação edípica. Abandona o amor
ao pai, identifica-se a ele e passa a amar as mulheres que guardam imaginariamente uma
relação com sua própria mãe. Além desse desvio em relação ao Édipo, a Jovem ainda produz
mais uma inversão: ao dedicar à dama um amor dessexualizado ela quer que o pai receba sua
mensagem de forma desviada. Quer que o pai saiba que ela pode dar a uma mulher o que ele
não lhe deu, mas nunca chega a atingir verdadeiramente uma satisfação direta com seu objeto.

Segundo Lacan, a tentativa de suicídio fora deflagrada pelo fato de que o filho imaginário
desejado pela Jovem teria sido dado à mãe. A precipitação de si mesma sobre a ponte foi,
segundo o psicanalista, objeto de uma satisfação simbólica. Quando ela se joga sob o olhar da
dama e do pai, não estava mais do que produzindo, de forma simbólica, o nascimento, a queda
de uma criança do canal do parto. Ao mesmo tempo, há uma exclusão de si na cena onde se
cruzam o olhar do pai e da dama sobre ela. O termo usado em alemão para ‘parto’ era, não
por coincidência, o mesmo usado para o ato de se jogar, cair, niederkommen, “posto abaixo”
(Lacan, 1956-57/1995, p. 106).
145

Freud conclui que, o afeto da Jovem em relação à dama orientava-se no sentido de um


amor cortês, já que a moça não tinha, propriamente falando, uma ligação homossexual com
ela, mas uma devoção, sem satisfação sexual: servir à dama era o objetivo maior. O mais
sagrado e o que se vê de mais elevado nesse encontro, diria Lacan, é o amor desinteressado. A
ligação entre elas se situava “no mais alto grau da relação amorosa simbolizada” (Lacan,
1956-57/1995, p. 109). Nesse sentido, a Jovem não se posiciona de forma completa em
relação à escolha do objeto, mas permanece de certa maneira dentro e fora desse lugar que
ocupa em relação ao casal parental. Ela ama uma mulher, mas não consuma esse amor;
rivaliza com o pai, mas não o contraria completamente, já que a aproximação com a dama é
apenas o elemento de uma cena.

Constatamos como ela busca uma substituição simbólica para a suposta falta que
permanece em relação ao que o pai não lhe deu. Primeiramente, ela se satisfazia, alimentando
esse sentimento sublimado de um amor cortês pela mulher amada. Entretanto, quando não é
possível mais sustentar essa cena que lhe conferia um lugar, a Jovem se extravia da pior
forma possível, quando se deixa cair, como um corpo mudo, que não conta mais com o campo
da palavra para negociar o impasse que se precipita na relação entre ela, o pai e a dama. É
como se ela se lançasse para fora do campo simbólico.

A Jovem se sentiu mais uma vez privada do objeto, assim como fora um dia frustrada em
relação ao pai. Lacan analisa a relação da Jovem com a dama não como uma
homossexualidade típica, mas como um tipo de devoção atípica, sem satisfação sexual. A
satisfação provinda dessa ligação com a mulher era obtida na simbolização do amor na forma
de falta. Assim como na cena da queda, ela busca uma satisfação no plano simbólico, pois é
exatamente aí que a falha se instaura. A procura por uma representação da sexualidade
feminina, através de uma posição masculina e fálica, produziu um extravio onde se esperava
outra posição. A falta de um significante que diga o que é ser uma mulher leva-a a produzir
uma série de desvios na relação com o pai, a mãe e o falo, a fim de encontrar uma saída
possível para seus impasses.

O fato de não possuir o falo e deparar-se com a frustração de não obtê-lo na relação com
o pai, faz com que a Jovem se empenhe na estratégia de mostrar a ele que, imaginariamente,
ela poderia muito bem ter a posse desse dom simbólico, já que se produz o mais com o
menos. Ou seja, ela se coloca na posição de uma mulher que tem pra dar a outra mulher o que
146

lhe falta. Para isso, a Jovem se restringe a um amor não consumado com a dama, pois só
assim conseguirá manter-se no lugar de quem tem o objeto.

O mais importante a ressaltar é o fato de que “o que é desejado está para além da mulher
amada” (Lacan, 1956-57/1995, p. 110). O amor que a moça dedica à dama está para além dela
mesma, já que se ancora somente no sentimento de devoção que Freud localiza no registro de
uma experiência própria da posição masculina. A forma de resolver o conflito foi dada pela
via da idealização própria do amor cortês, por uma fantasia em que o objeto ocupa o lugar do
falo. “O que é a mulher amada para além dela mesma? O que é, propriamente falando,
desejado na mulher amada é justamente aquilo que lhe falta. E o que lhe falta é esse objeto
primordial cujo equivalente o sujeito, o substituto imaginário iria encontrar na criança e ao
qual ele retorna” (Lacan, 1956-57/1995, p. 111). O que é buscado nessa mulher é o mesmo
que falta à própria Jovem, já que o pai foi incapaz de lhe dar. Nesse caso, fica evidente como
essa escolha homossexual foi desencadeada pela frustração diante do objeto fálico e da
percepção da própria castração da mãe. Percebe-se como, até aqui, Lacan encaminhou seus
estudos no campo do Édipo freudiano para descrever o que faltava à mulher. A saída da
Jovem está no lado do ter o falo que falta ao outro.

Quando a Jovem chega a Freud, já existe um elemento importante na sua vida. Ela
valorizava muito um objeto específico, que era a criança de quem cuidava e a quem estava
ligada por laços de afeição. Mostrava-se particularmente bem orientada aos olhos de todos, no
sentido por eles esperado, na vocação típica da mulher, ou seja, da maternidade. Entretanto,
em relação ao seu desejo, algo se inverteu, já que ela passou a se interessar por objetos
marcados pelo signo da feminilidade, mulheres em situação mais ou menos maternal. A saída
para a própria feminilidade foi buscada, por meio de um desvio, no amor por outra. Uma
mulher que não se deseja, mas que se ama como a uma mãe. Já que ela mesma não pode mais
ser mãe da criança do pai, resta encontrar mulheres que o sejam e que possam lhe oferecer,
por uma espécie de procuração, essas insígnias femininas.

A Jovem nutria uma paixão arrebatadora por essa mulher mais velha, de uma classe
social diferente da sua. Ela fará a corte à dama, como um cavalheiro faz a uma mulher, e sua
paixão se oferecerá sem exigências ou esperança de retribuição. O sentimento de afeição
aparecerá com o caráter de um dom. “Em suma, encontramos aí uma das formas mais
características da relação amorosa em sua forma de cultivo mais elevada” (Lacan, 1956-
57/1995, p. 123). Trata-se de uma forma de amor tipicamente masculina, que coloca a mulher
147

no lugar do objeto inatingível e, por isso, ideal; uma forma muito refinada de evitar a
castração e a ausência da relação sexual.

A Jovem Homossexual nos dá a dimensão da frase de Lacan em relação ao extravio de


uma verdadeira mulher. O primeiro ponto a ser pensado é que ela é uma verdadeira mulher na
medida em que opera um extravio em relação a sua posição sexuada, tomando um lugar
masculino. Ainda assim, continua sendo uma mulher, porque visa o amor do pai. O caso
mostra como uma menina pode passar todo o Édipo orientando-se numa posição feminina e,
mais tarde, quando irrompe a puberdade, lançar-se numa inversão.

O ponto crucial de extravio parece estar no rompimento com a medida simbólica, na cena
da tentativa de suicídio. Desvela-se, ali, “uma reação bastante excessiva que mostra a
qualquer interessado que ela tem algo a ver com uma paixão consumidora de força elementar”
(Freud, 1920/1980, p. 206). Apesar de ela ser uma moça saudável, e de a homossexualidade
se configurar como uma saída da encruzilhada do Édipo, o fato de ela ter tentado se matar
mostra como os desvios que uma mulher pode produzir em relação à medida fálica poderiam
levá-la ao pior.

Nos casos de Dora e da Jovem Homossexual, percebemos como se estrutura a


subjetividade de uma menina em relação às etapas do Édipo. Ambas demonstram como a
mulher pode sofrer um desvio em relação às operações com o objeto até chegar a uma posição
sexuada singular. Vimos que a construção da posição sexuada e da saída para a sexualidade
feminina está ligada à operações em relação ao objeto fálico.

A Jovem resolve sua questão em relação a essa falta pretendendo mostrar ao pai como é
amar uma mulher com o que não se tem. A conclusão a que se chega é que o que intervém na
relação, que é demandado como signo de amor, nunca passa de algo que só existe como signo
e não como algo real que se tem, como já dissemos: “não existe maior dom possível, maior
signo que o dom daquilo que não se tem” (Lacan, 1956-57/1995, p. 142). Mas essa dimensão
do dom só existe quando incide a lei, o dom é dado em troca de nada, diz Lacan. “O nada por
nada é o princípio da troca”. O sujeito precisa dar algo de forma gratuita, na medida em que
por trás do que se dá existe uma falta que o sujeito sacrifica para além daquilo que ele tem.

O sujeito feminino só pode entrar na dialética da ordem simbólica pelo dom, pois não tem
o objeto fálico. O órgão feminino não é negado, mas nunca lhe é dado entrar como tal no
estabelecimento da posição de desejo. “O desejo visa o falo na medida em que este deve ser
148

recebido como um dom” (Lacan, 1956-57/1995, p. 144). Para esse fim, é necessário que o
falo, ausente ou presente noutra parte, seja elevado ao nível do dom. É somente quando esse
objeto é elevado à dignidade de objeto de dom que ele pode entrar no circuito das trocas.
“Isso permanece, apesar de tudo, difícil de compreender e de difícil acesso para a menina”
(Lacan, 1956-57/1995, p. 126). Por isso, talvez, Lacan aponte para uma ‘perversão
imaginária’ da Jovem, pois ela sabe que não tem, mas, assim mesmo, banca uma potência
imaginária do falo. A satisfação lateral é essa forma de extravio que pretendemos descrever
na relação da Jovem Homossexual com as faltas que ela encontra na passagem pelo Édipo.

É no interior disso que a necessidade real, cuja existência Freud jamais sonhou em negar, ligada ao órgão
feminino, vai se encontrar tendo um lugar e se satisfazer lateralmente, mas ela nunca é observada
simbolicamente como algo que tenha um sentido, mas sempre essencialmente problemática em si mesma,
colocada à frente de certa superação simbólica. (Lacan, 1956-57/1995, p. 144).

Lacan afirma que essa ausência de simbolização do órgão feminino só se satisfaz


lateralmente. Dora e a Jovem Homossexual mostram os desvios da sexualidade feminina,
através de destinos que se satisfazem lateralmente, e que são procurados como uma saída para
simbolizar a posição da mulher diante dos impasses do Édipo. Esse extravio feminino é
demonstrado desde já por Lacan até desembocar na formalização dessa posição, no
desdobramento feminino dado pelas fórmulas da sexuação.

Dora e a Jovem Homossexual estão implicadas em situações e registros distintos, embora


ambas, ilustrem, cada uma a sua maneira, o extravio presente nas verdadeiras mulheres. No
inconsciente da Jovem Homossexual, há uma mensagem, feita como promessa pelo pai: você
terá um filho meu. Nesse caso, ela demonstra pela dama um amor desinteressado, o amor ao
nada, para ensinar ao pai como seu afeto é verdadeiro e como ele recusou dá-lo a ela. O
ressentimento pelo pai ter dado um filho real à mãe surge quando ela sente que o filho que
esperava que fosse seu está em outro lugar.

O que a moça demonstra aqui ao pai é como se pode amar alguém não apenas pelo que ele tem, mas
literalmente pelo que não tem, por este pênis simbólico que ela sabe muito bem que não vai encontrar na
dama, porque sabe muito bem onde ele se encontra, isto é, em seu pai, que este não é impotente. (Lacan,
1956-57/1995, p. 148).
149

A Jovem faz ver, por uma série de contrastes e alusões, como é amar e dar aquilo que não
se tem. Ela lida com a castração que ressurge na vinda do segundo irmão fazendo uma
mostração ressentida ao pai. Em vez de acatar à lei, fazendo um sintoma, como é o caso de
Dora, ela produz uma passagem ao ato, desliza desse significante que falta para dizer seu sexo
numa operação metonímica. Aceita a castração, já que a saída homossexual é uma dos
caminhos oferecidos pela passagem da mulher pelo Édipo, ou seja, insere-se na lei, mas,
mesmo assim, extravia-se em relação às respostas possíveis dentre as saídas simbólicas.

No Seminário: a angústia, Lacan (1962-63/2005) estabelece uma distinção entre o acting


out e a passagem ao ato, delimitando-os como conceitos distintos. O caso da Jovem
Homossexual foi caracterizado como uma “propensão a agir”, diante da angústia que aparece
quando ela se encontra numa cena em que o triângulo amoroso sustentado até então por ela, o
pai e a dama se desfaz. Lacan acrescenta que a angústia não engana, e a Jovem tira toda sua
certeza daí, pois chega ao limite do que pode ser dialetizado e simbolizado. A angústia escapa
ao jogo do significante e o sujeito se encontra com o real em jogo na cena em que o olhar do
pai não a reconhece onde ela gostaria de estar. Não há negociação e, por isso, ela se extravia e
se joga.

A queda da Jovem faz emergir esse objeto a que ela é diante do olhar do pai, esse dejeto.
A rejeição que ela encontra na repreensão do pai se reforça quando a própria dama a despreza.
Ela se deixa cair porque não poderá mais ser reconhecida por desejo algum. Rompe-se o
tecido simbólico de sua história, extraviando o lugar que ela ocupava no Édipo, entre o pai e a
mãe. Ela se joga sobre a ponte porque, ao atravessar a angústia que poderia conduzi-la do
gozo ao desejo, ela não consegue sustentar mais sua posição.

A cena do suicídio é entendida, por Freud, como um parto simbólico. A Jovem se joga
sobre a ponte da estrada de ferro quando é desprezada pelo pai e a dama dá o tom final do
conflito, dizendo que não quer mais vê-la.

Até ali ela fora bastante frustrada do que lhe deveria ser dado, a saber, o falo paterno, mas encontrara o
meio de manter o desejo pela via da relação imaginária com a dama. Uma vez que esta mulher a rejeita, ela
não pode sustentar coisa alguma. (Lacan, 1956-57/1995, p. 150).
150

A análise freudiana ressalta que o que tomba no ato de se jogar da ponte é esse falo
perdido ou recusado pelo pai. “A queda tem um valor de privação definitiva e também de
mímica de uma espécie de parto simbólico” (Lacan, 1956-57/1995, p. 150). Lacan também
entende que, ao deixar-se cair, ela forja um parto, como se ali pudesse parir o filho imaginário
do pai.

A passagem ao ato é um ato disruptivo em que não há mais negociação simbólica. A


Jovem se identifica com esse puro objeto excluído que cai da cadeia simbólica da qual
imaginava fazer parte. A queda não é dirigida a ninguém, mas simplesmente ressoa como um
ato que a conduz para fora de qualquer cena. Todo sujeito se constitui no lugar do Outro e
está marcado por sua relação com o significante. Nesse caso, o lugar que ela ocupava em
relação ao outro vacila. O irromper dessa cena é um flerte com a morte. Se, por um lado, ela
não podia mais ser o objeto do olhar do pai nem do amor da dama, vai sentir esse rompimento
como uma morte simbólica. O que ela faz é desdobrar essa morte no real, na passagem ao ato.

A cena em que não mais se reconhece pelo olhar do pai aparece como uma reedição do
que já havia vivido com a mãe, uma mulher bonita e sedutora que a tratava com desdém e a
diferenciava dos filhos homens. Freud chega a dizer que a tentativa de sair do campo do
desejo dos homens para se enamorar das mulheres também poderia ser uma forma de
preservar a mãe e não mais competir com ela. Desde o início de sua história, existem
elementos que restam incompreensíveis. O não reconhecimento da mãe, a ideia de que ela era
inferior aos irmãos por não ter um órgão sexual como o deles, a forma como a mãe a tratava
por competir com ela diante do olhar dos homens, tudo isso fez com que a Jovem se retirasse
do lugar feminino.

Freud abandona o tratamento da Jovem, sugerindo que ela procurasse uma psicanalista
mulher e, mais uma vez, assim como a mãe e o pai, a deixa cair como objeto rejeitado. Ao
invés de interpretar o desejo inconsciente da moça, o psicanalista se coloca em relação a ela
num eixo imaginário, encarnando o lugar da rivalidade com o pai. Se a passagem ao ato é
uma evitação da angústia que não engana, Freud não havia feito uma interpretação possível de
seus atos para que a paciente pudesse transpor esse lugar de puro dejeto por meio do desejo.

Aí está a diferença entre o que Lacan percebe como a neurose de Dora e o que chama de
perversão imaginária da Jovem Homossexual. Essa última faz da perda do falo uma
metonímia e se deixa cair como num parto. Sua queda é uma forma de destruir-se, é a prova
da ligação amorosa particularmente forte e estável com o pai. É pela homossexualidade que a
151

sexualidade feminina se faz para Freud de forma desviante do que deveria ser o destino
verdadeiramente feminino. Na leitura de Lacan, a posição da Jovem Homossexual surge
apenas como um subterfúgio, uma saída para a ausência do significante da sexualidade
feminina. Entretanto, a homossexual rivaliza com o homem, com a intenção de exaltar a
feminilidade, localizando-a em sua parceira para que dela possa participar somente por
procuração. Bancando o homem de uma mulher, a Jovem não aspira nada menos do que “o
acesso que leva a sexualidade feminina ao próprio desejo” (Lacan, 1958/1998, p. 744).
152

6. FIGURAS LITERÁRIAS DA FEMINILIDADE EM LACAN

Existem quatro figuras de mulheres na obra de Lacan que devem ser abordadas
conjuntamente, pois são, segundo o psicanalista, de fato o exemplo maior das “verdadeiras
mulheres”. Antígona, heroína da tragédia grega de Sóflocles, Madeleine, mulher do escritor
André Gide, Medéia, personagem da tragédia escrita por Eurípedes, e Ysé, a heroína trágica
de Paul Claudel. Todas são mulheres que possuem um elemento extraviado, cada uma à sua
maneira, pois se encaminham para um lugar em que rompem com os limites simbólicos.

Põem fim às insígnias fálicas que portam e que faziam delas um nome de mulher em sua
conexão com um homem. Abandonam o ter fálico e se encaminham para além da dimensão
da mascarada feminina30, em nome de um desapego radical. Nas três últimas a relação de
cada uma delas com o parceiro amoroso revela uma nomeação, a saber, Madeleine de Gide
que é o nome da esposa à qual o escritor endereça suas cartas de amor; Medéia que é a mulher
que se tornou mãe dos filhos de Jasão; e Ysé, a heroína de Paul Claudel, mulher de vários
nomes, conectada a três homens muito diferentes entre si.

As três mulheres se deparam com o impasse colocado pela relação da mulher com o
parceiro amoroso, e Antígona se vê capturado por uma lei maior, a qual precisa transpor. A
pergunta que se repete é: como se sustentar como mulher, quando, de certa forma, seus
parceiros não podem lhes responder sobre o gozo que irrompe delas mesmas? É no momento
em que esses homens se retiram – por causa de um novo amor, em nome do trabalho ou por
uma paixão endereçada à outra mulher – que elas se vêm tomadas por uma paixão aterradora
que as conduz a atos desmedidos. A saída que cada uma encontra rompe com a medida fálica,
porque aloja o ser dessas mulheres numa zona de indefinição simbólica que não pode ser

30
O conceito de mascarada foi criado por Joan Riviere (1929), e trabalhado por Lacan como uma posição de
gozo em que uma mulher, diante da angústia de castração, porta uma máscara fálica, rejeitando sua feminilidade,
que não parece, segundo o psicanalista, estar ligada ao uso fálico do véu: “Por mais paradoxal que possa parecer
essa formulação, dizemos que é para ser o falo, isto é, o significante do desejo do Outro, que a mulher vai
rejeitar uma parcela essencial da feminilidade, nomeadamente todos os seus atributos na mascarada. É pelo que
ela não é que ela pretende ser desejada, ao mesmo tempo que amada. Mas ela encontra o significante de seu
próprio desejo no corpo daquele a quem sua demanda de amor é endereçada". (Lacan, 1958/1998, p. 701).
153

transcrita pela linguagem: o suicídio de Ysé, a incineração das cartas por Madeleine, o
assassinato dos filhos por Medéia, a transgressão de uma lei por Antígona.

Lacan, em “O aturdido”, reafirma que as mulheres são ultrapassadas por seu gozo (Lacan,
1972/2003, p. 467). Elas estão dentro da medida fálica, mas podem se extraviar desse lugar,
contingencialmente, em algum momento por motivos diversos. As quatro figuras de
verdadeiras mulheres revelam esse impasse da posição feminina diante da medida fálica de
forma muito clara e radical. Fica evidente que o Édipo e as referências simbólicas podem não
drenar tudo que há de pulsional em jogo na sexualidade de uma mulher.

6.1 - Antígona: a encarnação do desejo criminoso de Jocasta

“Reflitam bem nisto – o que é o desejo de Antígona? Não deve ser ele o desejo
do Outro, e ligar-se ao desejo da mãe?” (Lacan, 1959-60/1988, p. 342).

“Em doloridos cuidados tocaste, no amargo sofrer paterno, em todo o passado


de nossas penas nos celebrados filhos de Lábdaco. Maldito leito de minha mãe,
unida a seu próprio filho, meu pai, nascido dessa mesma desdita mãe, dos quais
eu infausta, sou filha”. (Sófocles, 441 a. C./2010, p. 10).

A escolha por Antígona se deu, pois, dentre as figuras femininas lacanianas, ela parece
apresentar de forma radicalmente nítida, o que Lacan nomeou de um extravio da verdadeira
mulher. Essa mulher avança em direção a uma meta, na qual se apóia para enfim produzir
uma transgressão. A lei desafiada por ela parece apenas um meio para que se atinja o que
Lacan chama de um desejo puro. Analisaremos, no Seminário, livro 7: a ética da psicanálise
(1959-1960), o capítulo “A essência da tragédia, um comentário da Antígona de Sóflocles”,
no qual Lacan faz suas análises sobre essa mulher inflexível, cuja paixão cortante a conduz
para o que o psicanalista chamou de um desejo puro (Lacan, 1959-60/1988, p. 342), entre-
duas-mortes.

Na tragédia de Sófocles, cujo título é o próprio nome da protagonista principal da peça,


Antígona, surge como uma mulher inflexível, de gestos irredutíveis. Isso fica claro num
determinado ponto da trama, quando ela se extravia para uma zona fora do simbólico, a fim
de levar adiante seu desejo mais premente de enterrar o corpo do irmão morto. Numa leitura
154

mais detida do texto sofocleano revelar-se-á como essa heroína se desgarra das amarras
simbólicas a partir do não reconhecimento de suas intenções pelas leis reais. Vejamos porque
seu gesto, considerado por Lacan como ‘suplementar’, não foi reconhecido pelas leis da
cidade e, ainda, em que momento se confirma o que ele chama do extravio de uma verdadeira
mulher nessa figura feminina.

Lacan dedica algumas sessões do Seminário: a ética da psicanálise ao tema da pulsão de


morte e sua relação com um gozo para além do princípio do prazer, ao mesmo tempo em que
se refere ao bem e ao belo como barreiras que se interpõe ao horror do Real. O gozo
impossível só encontrará seu caminho pela via de um ato transgressor. É por meio desse
desregramento pulsional que Antígona vai nos mostrar como o gozo feminino pode atingir um
lugar além do campo demarcado pelo significante.

Ainda nesse mesmo Seminário, no capítulo “O gozo da transgressão”, Lacan afirma que,
se nesse lugar onde se pede uma garantia ao Outro, no sentido de uma lei articulada, não há
senão uma falta, o significante é o significante da morte. O signo de S(de A barrado) no grafo
está no lugar dessa resposta do significante que falta no Outro (Lacan, 1959-60/1988, p. 235).
É interessante pensar que, anos depois, no Seminário 20, esse será o campo do “gozo da
mulher” (Lacan, 1972-73/1985, p. 112). Antígona parece encontrar no lugar onde o Outro lhe
deixa sem repostas esse gozo transgressor. É em direção a uma zona fora do simbólico que ela
se lança.

Ao abordar esses temas, Lacan lança mão da figura da trágica heroína para apontar aquilo
que, na ordem da linguagem se extravia, no sentido de um gozo que transgride a medida
fálica. Nesse momento da obra, o gozo só pode ser atingido como algo para além do princípio
do prazer, como uma desmedida encarnada pelos atos dessa mulher implacável, que conduz a
si mesma à morte, amparada por um desejo puro e criminoso. É o que ela afirma: “Estou
morta e quero a morte” (Lacan, 1959-60/1988, p. 340).

Na figura de Antígona encontramos mais uma vez as ressonâncias da hipótese de Lacan


segundo a qual “nas verdadeiras mulheres há sempre algo de meio extraviado”, já que em
seus atos observamos essa forma da pulsão sem simbolização surgir e, dali, manifestar-se
então como pulsão de morte. (Lacan, 1959-60/1988, p. 340). Antígona parece ser uma mulher
que encontra a medida fálica estabelecida pelas leis da cidade onde vive, entretanto, em algum
ponto isso é transposto. A peça mostra a tragédia como um texto de contrastes, entre “uma
155

mulher sem partidários, sem exército e sem nada” (Shüler, 2009, p. 5) 31 e Creonte, o rei
tirano.

Na peça escrita por Sófocles em 441. a. C, uma tragédia anuncia-se desde o início. A
história começa com um diálogo entre Antígona e sua única irmã, Ismênia, sobre o desejo da
primeira de enterrar o irmão Polinice que havia sido morto por seu próprio irmão, Etéocles
que também havia falecido no mesmo combate pelas mãos de Polinice. “Não conheces o
decreto de Creonte sobre nossos irmãos? A um glorifica, a outro cobre de infâmia” (Sóflocles,
441 a. C/2009, p. 8). O rei decreta que um dos irmãos seja enterrado e o outro jogado às aves
famintas na planície, longe da cidade. É em torno desse fato, e contra a lei real que Antígona
se insurge, pois deseja sepultar dignamente seu irmão, Polinice. Seu objetivo era preservar,
através dos rituais fúnebres, a inserção do corpo morto, do nome da família e do nome do pai,
Édipo, na cultura e no discurso de Tebas.

Antígona revela à irmã suas intenções, queixas, réplicas e suas razões para dar ao corpo
do irmão Polinice o mesmo destino de Etéocles. Para Antígona, os rituais fúnebres eram mais
do que legítimos, já que lei alguma poderia fazer uma distinção entre dois homens que eram
iguais perante a lei dos deuses. Convida então a irmã para ajudá-la no funeral de Polinice.
“Quanto ao corpo de Polinice, infaustamente morto, ordenou aos cidadãos, comenta-se que
ninguém o guardasse em oca nem o pranteasse, abandonado sem lágrimas, sem exéquias,
doce tesouro de aves, que o espreitam famintas.” (Sóflocles, 441 a. C/2009, p. 30).

Segundo Lacan, na tragédia de Sófocles, Antígona faz uma escolha absoluta que não é
motivada por nenhum bem. Por esse motivo há um brilho na imagem e nos atos dessa mulher
que leva o espectador de sua história a se deparar com a raiz de nossa experiência com a
catarse. Diante da lei dos homens, a filha de Jocasta se mostra inflexível, dirigindo-se a um
campo frente ao qual sua irmã recua, na loucura de ultrapassar as próprias forças em sua luta
contra as normas da cidade. Ela nos traz a dimensão própria do desejo puro e da catarse que
se obtém através de seu ato “inquebrantável e intransponível” (Lacan, 1959-60/1988, p. 337).

31
Donaldo Shüler escreveu a apresentação da tragédia no livro indicado na referência da tese sob o nome de
Antígona de Sófocles.
156

Antígona nos faz, com efeito, ver o ponto de vista que define o desejo. Essa visada se dirige a uma imagem
que detém não sei que mistério até aqui não articulado (...) essa imagem está no centro da tragédia visto que
é a imagem fascinante da própria Antígona. Pois bem, sabemos que para além dos diálogos, para além da
família e da pátria, para além dos desenvolvimentos mortais é ela que nos fascina, em seu brilho
insuportável. Naquilo que ela tem que nos retém e ao mesmo tempo nos interdita, no sentido em que isso
nos intimida no que ela tem de desnorteante. (Lacan, 1959-60/1988, p. 300).

A catarse presente na tragédia relaciona-se na teoria de Freud ao conceito de ab-reação,


que, por sua vez, articula-se ao problema da descarga pulsional – descarga em ato, um
impulso motor do sujeito que se vê diante de uma “emoção que permaneceu suspensa”
(Lacan, 1959-60/1988, p. 296). Trata-se de um afeto ou um traumatismo que deixa no sujeito
algo em suspenso. Enquanto uma solução não for encontrada, no campo do que conhecemos
como simbólico, o sujeito permanece nesse estado de suspensão. Há um período de
insatisfação e tensão diante de um evento que remete o sujeito ao trauma, até que um acordo
possa ser feito com a realidade. O ato catártico vem responder como uma forma de
apaziguamento em relação a essa emoção represada.

Antígona produz a catarse do espectador que assiste à tragédia no momento em que


responde à lei fálica e impiedosa do rei com um ato ainda mais radical, apresentando-nos um
limite tênue entre a vida e a morte. “Age como te parece melhor; a esse eu enterrarei. Se ao
fazê-lo tiver que morrer, que bela morte será” (Sófocles, 441 a. C/2009, p. 11). Ao sugerir à
irmã que seguirá com seu plano, mesmo que isso a conduza à morte, Antígona nos atrai de
forma inarredável para o que queremos demonstrar como esse elemento de extravio de uma
verdadeira mulher. “É do lado dessa atração que devemos procurar o verdadeiro sentido, o
verdadeiro mistério – do lado dessa comoção que ela comporta, do lado das paixões
certamente” (Lacan, 1959-60/1988, p. 300).

Antígona revela como um elemento qualquer desse afeto em suspensão é purgado na


cena trágica. “A purgação é a eliminação de humores pecantes, com fins a um retorno ao
normal, uma descarga” (Lacan, 1959-60/1988, p. 297). Ao que parece, esse elemento
acompanha toda a saga da família dos Labdácias, desde o pai, Édipo, até a morte dos irmãos.
Além da purgação, há também uma ligação da catarse com a purificação. Na tragédia, produz-
se um espaço em que ocorre a cerimônia de purificação de um sujeito. É a filha de Édipo que
vai corporificar essa purgação, emprestando sua imagem à de um gozo que será sentido pelo
público que a observa agir. O que parece emergir em torno da figura central dessa mulher, que
157

arrebata a todos, é um brilho que surge de um belo gesto. Em determinado trecho da tragédia,
o Coro evoca o lugar dessa beleza: “entre dois campos simbolicamente diferenciados” (Lacan,
1959-60/1988, p. 301).

Esse campo é definido por Lacan como o de uma segunda morte, ponto no qual o próprio
ciclo das transformações naturais se aniquila, lugar limite, onde pela boca de todos os
personagens se ouvem “gemidos, comentários, debates, apelos em torno de Antígona,
condenada ao suplício: o de ser encerrada viva numa tumba” (Lacan, 1959-60/1988, p. 301).
O destino dessa mulher vai se confundir com esse lugar da morte certa, vivida de uma forma
antecipada. “Na travessia dessa zona que o raio do desejo se reflete e ao mesmo tempo se
retrai, chegando a nos dar esse efeito tão singular o mais profundo que é o efeito do belo no
desejo” (Lacan, 1959-60/1988, p. 302).

Em Antígona vê-se a essência da tragédia, demonstrada pela gravitação dos elementos


principais apresentados por Sófocles em torno dessa figura de mulher que encarna esse Outro
irrepresentável e absoluto, cujos atos não podem ser compreendidos. A tragédia tem como
meta a catarse, a purgação das paixões, do temor e da piedade. Nesse sentido, aponta o lugar
próprio do desejo na economia da Coisa freudiana, pois é pela via da catarse que se pode
vislumbrar o que está em jogo no desejo. “Antígona nos faz, com efeito, ver o ponto de vista
que define o desejo” (Lacan, 1959-60/1988, p. 300). A imagem dessa mulher, sustentando seu
desejo até a morte, nos detém e nos deixa perplexos diante do mistério que envolve seus atos
indomáveis.

Lacan nos faz ver que, para além da lei dos homens, da pátria, da moral e de toda ordem
simbólica que rodeava essa mulher, ela aparece para nós, como uma imagem alheia a tudo,
que fascina por seu “brilho insuportável”. Essa heroína possui algo que nos retém, interdita e
desnorteia, pois, na posição que encarna, há um elemento qualquer que nos deixa diante
daquilo que Lacan nomeia de ‘uma verdadeira mulher e seu extravio’. Mesmo em seu desejo,
levado às últimas consequências, por um motivo digno, há algo de inassimilável. É de dentro
da própria estrutura do desejo que ela revela ao espectador como uma mulher pode se
extraviar da lei que a contém.

Na tragédia de Antígona, essa ‘vítima terrivelmente voluntária’, o espectador é purgado e


purificado pela catarse através da piedade e do temor que sentimos por essa mulher. Ela
possui uma imagem fascinante, cujo brilho cegante nos intimida, já que produz a aparição de
um elemento disruptivo e desnorteante de nossa própria existência. Somos purgados por sua
158

imagem e pelos elementos imaginários que reconhecemos nas cenas que se desencadeiam.
Antígona é, entre todos os personagens, a figura central sobre a qual se edifica a purgação.
Sua beleza e fulgor são exaltados por ocuparem o lugar entre dois campos simbolicamente
diferenciados, como afirma Lacan. Entre a lei dos homens e a lei dos deuses ela é a figura ex-
tima, uma inclusão do lado de fora. É desse lugar que extraímos seu brilho. Antígona pode ser
entrevista no limite de dois campos distintos, na via de uma segunda morte. Nessa cena, não
basta morrer como corpo, mas é preciso que se morra enquanto significante. “Deixa-me, deixa
que minha loucura se afunde de horrores. Não padecerei com certeza, nada que não seja
morrer gloriosamente” (Sófocles, 441 a. C/2009, p. 14).

Ela será enterrada viva numa tumba, ou seja, será uma morta-viva em sua sepultura de
pedra. Antígona vai se encontrar com seu rochedo da castração que nada mais é do que o
padecimento de um sujeito que pressente, enfim, que não há mais negociação possível com o
mundo. Sua morte será vivida por todos como antecipada, pois a morte invadirá o domínio da
vida e a “vida invadirá a morte” (Lacan, 1959-60/1988, p. 301). É na travessia dessa zona
entre vida e morte que o rastro do desejo se constrói e, ao mesmo tempo, se retrai para nos
deixar presos ao efeito singular do belo, no desejo refletido pelo gesto de Antígona.

A comoção irrompe diante de um ato que não visa nenhum objeto e que não vislumbra
mais nenhum bem. Antígona recolhe do fado da família a maldição catastrófica que se lança
sobre ela e seus irmãos. O Coro, fazendo seu papel sobremaneira, mostra a comoção e os
efeitos do desejo puro de uma mulher que carrega a sina proferida pelo pai. “É em Colona que
Édipo lança sua maldição derradeira sobre seus filhos, aquela que engendra a sequência
catastrófica onde se inscreve Antígona” (Lacan, 1959-60/1988, p. 331). Além da sina
proferida pela palavra do pai, há também o que Lacan chama do desejo criminoso de Jocasta.

Lacan lança mão da tragédia de Antígona para pensar sobre esse ‘desejo puro’ 32 ,
orientando o leitor para que seja possível analisar o ato dessa mulher para além de um viés
moralista, já que ela nos reposiciona em relação à ética do desejo, para além de uma lei
propriamente dita. Na maior parte do tempo, o sujeito tende a produzir uma conciliação em
relação ao discurso que transmite uma lei. Entretanto, para Antígona, não há conciliação
possível; ter nascido é carregar um destino inexorável. “Aproxima-se ou não se aproxima de

32
O desejo puro é uma expressão utilizada por Lacan para descrever naquele momento de seu ensino (1959-60)
um desejo radical e mortífero.
159

Até, e quando se aproxima é em razão de algo que está ligado no caso a um começo, e a uma
cadeia a da desgraça da família dos Labdácidas” (Lacan, 1959-60/1988, p. 319). O texto da
tragédia mostra como a vida dessa mulher e de sua família é tomada por uma predestinação,
termo algumas vezes também traduzido por desgraça (Lacan, 1959-60/1988, p. 319).

A mensagem que a tragédia transmite é de que, por mais que possamos contar com o
significante, nem o desejo, nem o registro do simbólico, nenhum desses termos jamais poderá
servir de amuleto para compreender o que leva um sujeito a um desejo puro, um desejo de
nada. Diante da imagem de Antígona ficamos fascinados, mas qual é a questão para a qual o
espectador se volta nessa figura de mulher? O que há nessa imagem que arrebata a todos, já
que existe alguma coisa que está para além da mise-en-scène do espetáculo teatral? Nosso
arrebatamento reside no fato de que ela é movida não simplesmente pela vontade de defender
os direitos sagrados do morto e de sua família, mas é “levada por uma paixão” (Lacan, 1959-
60/1988, p. 308), uma paixão que desconhece a medida, um gozo aniquilador.

A partir de um determinado ponto da tragédia, Antígona se emudece e entra em ação.


Simplesmente não diz mais nada e, emitindo gemidos animalescos, realiza os ritos sagrados
sobre o corpo do irmão morto que jazia na planície, entregue aos animais carniceiros. “No
momento de seu ato, dita ao poeta essa imagem fascinante – uma primeira vez nas trevas ela
foi recobrir o corpo do irmão com uma fina camada de poeira que o cobre o suficiente para
que seja velado à vista” (Lacan, 1959-60/1988, p. 319). Os guardas da cidade que vigiavam o
corpo não puderam ver quem o havia sepultado, mas foram dizer ao rei que: “foi-se depois de
cobrir o cadáver com pó” (Sóflocles, 441 a. C/2009, p. 23).

Um detalhe muito curioso para nossa análise é o fato de Antígona não enterrar Polinice,
já que a lei de Creonte a proíbe de fazê-lo, mas, por outro lado, não deixar de sepultá-lo com
um gesto muito sutil, uma façanha própria de uma verdadeira mulher. A filha de Édipo
salpica uma fina película de terra seca sobre o cadáver do irmão morto. Não o enterra de fato,
mas o faz sumir sob a terra, como se corpo e chão fossem um só, parte da natureza. Com isso,
os bichos e os homens não podiam discernir onde estava o cadáver. No texto, lê-se sobre essa
espécie de enterro inacabado a céu aberto: “Ali não havia sinal de picareta nem terra
amontoada por enxada. O solo estava firme e seco, sem fenda, sem rastro de roda. O autor não
deixou vestígio. O corpo tinha sumido. Não que o tivessem sepultado.” (Sóflocles, 441 a. C/
2009, p. 23).
160

Essa passagem nos auxilia a compreender o que Lacan chama de uma bela ação em
Antígona. Ela não se coloca contra a lei, mas se posiciona, em parte, além da lei, com seu
ludíbrio, enganando os guardas e Creonte. Enterrar o irmão não era permitido, pois
configuraria uma ação contra a pátria. É nesse momento que ela dá outro destino ao corpo,
cobrindo-o com um véu de terra. Essa mulher inflexível dá contornos ao vazio como um
oleiro, tecendo, a maneira das mulheres, um sudário de terra para o irmão. Usa um artifício,
mui feminino, num belo ato, lançando um véu sobre o corpo morto, erguendo uma última bela
barreira diante do horror da morte. “Pois não poderia deixar ostentado na cara do mundo essa
podridão onde os cães e os pássaros vêm arrancar retalhos para levá-los.” (Lacan, 1959-
60/1988, p. 319).

É por meio desse gesto estético que ela engana o olhar dos homens que, por algum
tempo, não sabem bem o que está se passando. “Quando a primeira sentinela do dia nos
alertou, todos fomos tomados de aflitivo espanto. O corpo tinha sumido.” (Sóflocles, 441 a.
C/2009, p. 23). Eles se insurgem contra não se sabe quem, culpam uns aos outros, chegam a
confessar uma mea culpa ao rei Creonte, mas não imaginam quem foi o executor do ato
transgressor. Como diz o Coro, tamanha audácia só poderia vir de alguém que está tomado
pela febre da loucura, para ultrapassar os desígnios da lei. Ismene, ao perceber os atos da
irmã, Antígona, lhe diz “De fogo é teu coração em atos que me gelam. Se o pudesses, mas
amas o impossível!” (Sófocles, 441 a. C/2009, p. 13).

Creonte, tio de Antígona, queria infligir a Polinice o que Lacan chamou de uma segunda
morte, golpeando-o para além da morte carnal ao não permitir que fossem dados ao seu corpo,
reverências e sepultura dignas. Estando morto, negar ao homem o rito fúnebre, acolhedor da
alma, segundo a cultura, é matá-lo novamente, mas, sobretudo, simbolicamente. Antígona não
aceita a determinação de Creonte, já que, entre a lei dos deuses, não havia uma só linha
determinando que não se devesse enterrar um irmão. Ela então se rebela, não apenas em nome
da defesa dos direitos sagrados do morto e de sua família, mas de uma paixão que a conduz a
tornar-se, talvez, Outro para si mesma. Não mais se lamenta, mas vai além, à procura de uma
solução para sua aflição.

Antígona está certa de que nada pode coagi-la a abandonar os teus. Depois da morte dos
irmãos, os últimos homens da família, ela acredita verdadeiramente que algo se perdeu para
sempre, já que não há como gerar uma descendência dos mesmos, desgraçados, pai e mãe.
Édipo e Jocasta estão mortos, não há mais novos filhos. Ao longo da tragédia, Antígona falará
161

muito sobre os motivos de seu infortúnio. Embora tudo já tenha sido transposto – sua prisão,
seu desafio, sua condenação e até mesmo seu gemido – ela ainda explica seus atos ao se
encontrar à beira da morte: “Morrendo meu esposo, poderia ter outro, filhos, outro homem,
perdendo um, poderia dar-me, mais irmão visto que pai e mãe foram recolhidos à Morte,
jamais será possível que outro floresça.” (Sóflocles, 441 a. C/2009, p. 68).

Dessa maneira, seu ato repousa no fato de que ela tem um dever a cumprir em nome do
pai e do irmão, Polinice, pois o que lhes acometeu era fruto do pecado dos pais, que violaram
a lei consanguínea, gerando filhos marcados pela desgraça. Padecem todos, vítimas da
tragédia que assola a família desde a geração anterior. Ainda assim, Antígona age e chega a
procurar a própria morte, fazendo-se cumprir o destino trágico, o que nos parece um ato
desmesurado que tem como motivação um gozo transgressor.

Lacan faz uma reflexão em relação ao conceito de belo e sua ligação com o desejo,
afirmando que a função do belo é o caminho para a visada do desejo, já que ele localiza um
campo para além do princípio do bem. O efeito do belo transpõe uma linha invisível, porque
permanece, segundo Lacan, insensível ao ultraje. A escolha de Antígona vai além da vida,
pois nos parece absoluta e radical. Ai ele completa, “não se espantem se grande é o desvio,
pois é um desvio necessário” (Lacan, 1959-60/1988, p. 312). Se essa mulher realiza um ato
tão disruptivo, isso é a prova de que, para alcançar o seu desejo, ela deve ir além do que a
realidade discursiva e a lei dos homens lhe oferecem como saída.

Segundo Lacan, Aristóteles acreditava na piedade e no temor como vias para efetuar a
catarse das paixões através da tragédia. Assim, seria possível ver na ação de Antígona o
equilíbrio entre temor e piedade? O que se observa é que, em Antígona, não há como apoiar-
se em nenhum dado para manter a tese de Aristóteles sobre a purgação das paixões pelas
emoções. Nem Creonte, e menos ainda Antígona, conhecem esses sentimentos de piedade,
pois são destemidos e impiedosos. Por outro lado, é preciso que façamos uma distinção entre
Creonte e Antígona. Quando o primeiro é advertido por Tirésias, o cego adivinho, e depois
pelo Coro, de que havia cometido um erro brutal, ao impedir o sepultamento de Polinice pela
irmã, temerário de seus atos, ele volta atrás e tenta refazer sua decisão, pois prevê que sua
atitude tenha levado sua lei longe demais. Antígona, por sua vez, mostra-se irredutível até o
momento de seu encerramento na tumba de pedra. “É por isso que entre outras coisas ela é o
verdadeiro herói” (Lacan, 1959-60/1988, p. 312).
162

Creonte só aparece em um segundo plano, no lugar do homem que quer manter a lei até
as últimas consequências, em função do bem que acredita fazer a todos. Ele conduz a
comunidade para o bem da nação, mas comete um erro de julgamento quando não dá ouvidos
ao filho, ao Coro e ao cego Tirésias, antes que a tragédia estivesse concluída. Incorre no erro
de querer fazer valer uma lei sem limites, soberana, que transborda os limites impostos pelos
acontecimentos do momento. “Ele nem se dá conta de que transpõe esse famoso limite”
(Lacan, 1959-60/1988, p. 313). Legitima sua ação, negando sepultura a Polinice, porque, por
lei estabelecida por ele mesmo, não se poderia honrar igualmente os homens que defendem a
pátria e os que a atacam.

O rei age segundo uma lei universal, a lei fálica e masculina. Ele é o pai totêmico que
reina sobre os homens e, sobretudo, sobre as mulheres. Na tragédia, o bem não pode reinar
sobre tudo e todos sem que apareça um excesso de consequências fatais. Se o rei aparece
como um pai totêmico, sem limites, Antígona, por outro lado, se torna por algum momento A
mulher verdadeira, que não tem mais limites.

Nos atos de Antígona, vislumbra-se a Até33, “um limite que a vida humana não pode
transpor por muito tempo” (Lacan, 1959-60/1988, p. 318), e é para lá que essa mulher quer ir.
Ismênia, sua irmã, lembra-a de que são mulheres, de que não podem lutar contra os homens, e
de que somente uma loucura pode lhes conduzir para além desse limite. “Põe na cabeça isso,
mulheres somos, não podemos lutar com homens” (Sóflocles, 441 a. C/2009, p. 11). Esse
limite é o que nas tragédias nomeia-se de Até. Como nome próprio, a palavra Até nomeia a
deusa do infortúnio e da fatalidade. O substantivo até está, por sua vez, relacionado à uma
perturbação do espírito, abatido de vertigem e de loucura, ter o espírito desvairado, causar um
infortúnio. É o lugar desse desvario que Antígona irá encarnar.
Antígona é constituída pela história da família dos Labdácidas, pela própria cadeia
significante da qual advém, pelas estruturas elementares de seu parentesco, enfim, pela
maneira como quisermos localizá-la dentro do significante. Entretanto, se, para Lacan, a
mulher entra como um objeto de trocas entre essas estruturas de parentesco, Antígona escolhe
seguir outro caminho, ao se desgarrar desse lugar. Apesar de fazer jus ao nome do pai,

33
O termo tem o significado de flagelo enviado pelos deuses, cegueira do espírito, desvario, loucura, ruína,
infelicidade, peste.
163

sepultando o irmão, ela se extravia para além da tragédia familiar ao buscar de forma
inflexível a satisfação de seu desejo, levado às últimas consequências.

Ou a gente se aproxima ou não se aproxima da Até, e quando a gente se aproxima, é em razão de alguma
coisa que está ligada, na ocasião, a um começo e a uma cadeia, a da infelicidade da família dos Labdácidas.
Quando a gente começa a se aproximar disso, as coisas se encadeiam em cascata, e o que se encontra no
fundo do que se passa em todos os níveis dessa linhagem é, nos diz o texto, um mérimna, que é quase a
mesma palavra que mnéme. Mérimna é uma dessas palavras ambíguas entre o subjetivo e o objetivo, que
nos dão propriamente falando os termos da articulação significante. A mérimna dos Labdácidas é o que
empurra Antígona por sobre as fronteiras da Até. (Lacan, 1959-60/1988, p. 319).

A articulação significante – a mérimna – faz fronteira com a Até, esse campo vazio do
infortúnio de um sujeito no qual Antígona se extravia. No campo do Outro – que é, como
poderíamos entender aqui, a partir de Lacan, a mérimna na qual surge a heroína – encontra-se
o lugar vazio de Até. Nesse campo obscuro, ela se depara com a falta de um significante para
dar significação ao seu ser de mulher. Vejamos que, enquanto existia uma forma de inscrever
o nome da família pelo sepultamento do irmão, era possível para Antígona negociar e
preservar a si mesma como mais um elemento da cadeia significante. Contudo, quando esse
laço é rompido, e o corpo é posto novamente à mostra, vê-se que algo se desgarra e se
extravia. “Removemos todo o pó que cobria o corpo, expondo cuidadosamente o cadáver em
decomposição” (Sófocles, 441 a. C/2009, p. 33).

Eis do que se trata a tragédia: a problemática do desejo, apresentada por Lacan, e de seu
signo quando este se dirige para o S(de A barrado), lugar vazio, onde mais tarde se inscreve o
empuxo da mulher a um gozo fora do significante. Esse lugar é a resposta derradeira à
garantia pedida ao Outro, do sentido dessa lei, articulada o mais profundamente no
inconsciente, à lei do desejo. “Se nada mais há senão a falta (manque), o Outro se esvai, o
significante é o significante da morte” (Lacan, 1959-60/1988, p. 235). É entre a
impossibilidade de barrar o desejo radical e incestuoso de Jocasta, sua mãe, e o nome
fragilizado de Édipo, pai tornado filho pelo gozo sem lei da mãe, que Antígona encontra em
seu ato a própria morte. “Maldito leito de minha mãe, unida a seu próprio filho, meu pai,
nascido desta mesma desdita mãe, dos quais eu infausta sou filha” (Sóflocles, 441 a. C/2009,
p. 65).

Não se pode ultrapassar os limites da Até, nem tampouco permanecer para além deles,
mas é lá que Antígona quer buscar a razão de sua ética. Ela testemunha que já escolheu a
164

morte e quer repousar com o irmão no reino dos mortos, pois vive sobre a memória do drama
de Édipo, seu pai e de todas as desgraças que assolaram a família depois de seu primeiro
pecado. Depois que o pai se cega e, assim, perde o trono e os irmãos se matam mutuamente,
lutando por Tebas, Antígona se vê no limite de decidir como a história termina.

Os gestos dessa heroína são tão desmedidos e demonstram tanta frieza e crueldade que
ela parece não ter mais nada a perder. Seu desprezo sem limites e sua falta de temor pelo que
viria a lhe acontecer, testemunham o rompimento de sua ligação com a lei da cidade e de
Creonte, com a qual pretendia negociar anteriormente. Diferente da análise de Lacan, que não
vê nessa mulher nada mais do que a inflexibilidade, acreditamos que seu gesto de velar o
corpo do irmão sem, contudo, enterrá-lo mostrou-se uma estratégia muito feminina de
negociação com a lei. Entretanto, é num segundo tempo de inflexibilidade de seus atos,
aparentemente loucos, de entregar-se à morte em vida, que se delineia o contorno da
existência dessa verdadeira mulher.

Por outro lado, ao ser radicalmente contrariada, Antígona nos apresenta um ser
desumano, inflexível como seu pai havia sido: “Ela é omos, traduz-se isso como se pode, por
inflexível” (Lacan, 1959-60/1988, p. 319). O inflexível quer dizer algo de não civilizado, de
cru, de ligado à natureza. Ela age enlouquecidamente, como se estivesse mesmo “excluída
pela natureza das coisas que é a natureza das palavras” (Lacan, 1972-73/1985, p. 99), maneira
como Lacan descreve a mulher no Seminário: mais, ainda, anos mais tarde. Antígona indica-
nos, à maneira do significante, o que é uma presença cortante, e é a partir daí que ela vai se
desdobrar como Outra para todos. Ou seja, se por um lado ela é a encarnação do corte que se
pode produzir pelo discurso, por outro, é, a despeito do limite da linguagem, e, sobretudo, por
esse limite existir que ela terá a possibilidade de ir além e dar corpo ao seu extravio.

“Que Antígona saia deste modo dos limites humanos, o que isso quer dizer para nós é que
seu desejo visa precisamente isso – para além da Até” (Lacan, 1959-60/1988, p. 319). A Até,
como um destino desgraçado, é confrontada com o ato dessa mulher que transcende a posição
de todos os outros integrantes da família que pareciam, ao contrário dela, estar completamente
entregues a sua sina. A história da família dos Labdácias está ligada a uma cadeia, um curso
simbólico, no qual uma articulação significante ronda o destino de todos, encadeando todas as
coisas. Antígona não aceita esse destino e escolhe a morte. A filha de Jocasta encaminha-se
para a morte, pois seu desejo puro é também o desdobramento de uma forma de gozo sem
amarração simbólica. O desejo puro revela o alcance desse extravio que há nas verdadeiras
165

mulheres portadoras de um gozo envolto em sua própria contiguidade, alheio ao mundo


simbólico.

O belo gesto de Antígona consiste em cobrir o corpo do irmão com uma fina camada de
terra seca, a fim de que ele fosse velado à vista de todos, sem, no entanto, ser visto. Como
imagem do desejo, ela nos fascina porque deixa e não deixa ver, ao mesmo tempo, do que se
trata seu gesto. “Antígona fez, portanto, uma vez esse gesto. O que está para além de um certo
limite não deve ser visto” (Lacan, 1959-60/1988, p. 320). A morte é mitigada por essa mulher
tecelã que cria um véu, a última barreira antes do horror da finitude. Nessa passagem surge a
flexibilidade e o traço feminino de Antígona que não se curva passivamente diante da lei de
Creonte, mas, por outro lado, não contraria completamente as suas ordens. Ela permanece
entre dois lugares, aceitando que não deve enterrar o corpo do irmão, mas, ao mesmo tempo,
o mantém invisível na superfície mesmo.

No momento em que a natureza se enfurece e a catástrofe parece anunciar o fim do


mundo, Antígona se banha onde os homens parecem se afogar. “O disco do sol subiu até o
alto da abóboda celeste. O calor abrasava. Então de repente um vento tempestuoso ergueu um
vento de pó, flagelo celeste a devastar os campos” (Sófocles, 441 a. C/2009, p. 13). Ela surge
chorando sobre o corpo do irmão, soltando gemidos como um pássaro cujos filhotes
abandonaram o ninho. “Aparece a jovem com agudos gemidos, canto de ave desolada ao ver
vazio o ninho, despojado o berço, desaparecidos os filhotes” (Sófocles, 441 a.C/2009, p. 13).
O pássaro, diz Lacan, sempre evoca a metamorfose. Em Antígona trata-se de uma
transformação da figura de uma mulher comum desdobrando-se em um ser desumano, uma
Outra de si mesma.

A filha de Édipo torna-se uma presença cortante. Ela enfrenta os conselhos da irmã, as
ameaças do rei e a própria Até depois de perder o lastro da cadeia simbólica que a continha e
lhe dava uma nomeação enquanto filha e irmã. O Coro diz que por essa menina todos se vêem
apossados, já que ela deixa aparecer o desejo tornado visível pelo seu ato, sem piedade.

É no momento que Antígona sobe como mártir ao suplício para ser enterrada viva na
tumba de pedra que ela profere algumas palavras sobre seu gozo. Ela é uma mulher entre a
vida e a morte, tal é a imagem limite que aplaca o expectador. Entre saber e gozo, entre real e
simbólico, ela é a figura do extravio de uma verdadeira mulher.
166

A iluminação violenta, o clarão de beleza coincidem com o momento de franqueamento, de realização da


Até de Antígona (...). É por meio disso que se estabelece uma certa relação ao para-além do campo central,
mas igualmente o que nos impede de ver sua verdadeira natureza, o que nos ofusca. (Lacan, 1959-60/1988,
p. 341).

Ao ser emparedada nos limites da Até, a desgraça da família, ela se livra desse lugar
predestinado e vai além, ao produzir a própria morte, sem esperar pelo destino. No final da
tragédia, o Coro diz que ninguém mais deve ousar formular desejos, já que os mortais não têm
o direito de evitar as desgraças que o destino os reserva. Mas, é exatamente aí que a figura de
Antígona excede os limites. Ela é uma mulher extraviada, pois por meio de seu desejo se
sustenta para além dos limites da própria determinação trágica que recai sobre a família. “o
efeito da beleza é um efeito de cegamento, ainda ocorre algo para além dela que não pode ser
olhado. Antígona declarou por si mesma e desde sempre – estou morta. Trata-se justamente
de uma ilustração do instinto de morte” (Lacan, 1959-60/1988, p. 340).

A expressão ektos atas34 (Lacan, 1959-60/1988, p. 318), que significa a transposição de


um limite, o lado de fora, uma extravia, se refere em Antígona a esse ponto de
ultrapassamento onde está a personagem principal. É exatamente porque não está presa aos
limites da Até, ou seja, porque vai além dessa fronteira que “o herói da tragédia participa
sempre do isolamento, e está sempre fora dos limites, sempre num vôo, e por conseguinte,
arrancado para algum lado da estrutura” (Lacan, 1959-60/1988, p. 328). Nesse sentido,
embora Antígona esteja inserida numa cadeia significante, na história de uma família e na
linhagem dos descendentes, ela se desgarra de tudo.

Os heróis são levados a um extremo, são personagens situados num limite entre a vida e a
morte. Por esse motivo, ela vai buscar algo que transcende seu infortúnio e a sua Até, já que
não consegue fazer de outra forma. Pode-se dizer que ela está inserida e, ao mesmo tempo,
extraviada da lei que a contém, visto que seu desejo de enterrar o irmão se apóia numa ética
que deseja manter a inserção simbólica dos homens da família. Antígona leva a cabo o seu
desejo e se justifica, dizendo que era preciso dar um fim digno àquele homem que é seu
irmão. Ela sustenta esse ato – o que é elementar à função paterna – concedendo ao irmão os
rituais próprios do mundo simbólico. Ela quer preservar esse pai a qualquer custo, e só

34
Lado de fora, o que ocorre quando o limite da Até é transposto.
167

ultrapassa os limites desse campo quando uma lei particular e despótica surge encarnada na
figura de Creonte.

É na Até, que provém do campo do Outro, que Antígona se situa. “trata-se de transpor o
limite da Até. (...). É aquela que por seus desejos viola os limites da Até” (Lacan, 1959-
60/1988, p. 335). Quando se justifica a Creonte sobre o que fez, Antígona diz: “é assim
porque é assim” (Lacan, 1959-60/1988, p. 335), encarnando a alteridade absoluta, sem
possibilidade de dialética. Ela é a prova desse extravio mais radical. É interessante mostrar
que ela se fia num limite no qual se sente inatacável, pois nada pode fazer com que algum
mortal passe por cima das leis dos deuses, essa lei não escrita. “É com efeito da ordem da lei,
mas que não está desenvolvido em nenhuma cadeia significante, em nada” (Lacan, 1959-
60/1988, p. 337).

Ela acredita que a lei dos homens não é maior do que a lei dos deuses, e que nada pode
contrariar o seu desejo de enterrar o irmão, filho do mesmo pai criminoso, esse que é o único
herdeiro de mesma matriz.

Não se pode acabar com seus restos, esquecendo que o registro do ser daquele que pode ser situado por um
nome deve ser preservado pelo ato dos funerais. (...) por ele ser entregue aos cães e aos pássaros, e ir
terminar seu aparecimento na terra na impureza, que Antígona representa por sua posição esse limite
radical que para além de todos os conteúdos, de tudo o que Polinice pode fazer de bem e de mal, de tudo
que lhe pode ser infligido mantém o valor de seu ser. (Lacan, 1959-60/1988, p. 338).

Polinice é o desdobramento dela mesma. Por isso ela quer juntar-se a ele na morte e se
sente morta antes mesmo de morrer. Identifica-se com ele no índice trágico que a existência
de todos os filhos encerra. “Amada repousarei com ele, com meu amado, criminosamente
pura por mais tempo” (Sóflocles, 441 a. C/2009, p. 11). Ela não cede à lei da terra, pois está
regida por um lugar não-todo circunscrito por essa lei que também a contém. “Tu fizeste leis.
De maneira alguma fora Zeus que proclamou essas coisas para mim” (Lacan, 1959-60/1988,
p. 336). Ela vive sob a lei dos homens e sob a mesma linhagem dos Labdácias, mas algo nessa
mulher se coloca para além dos limites dessa Até que submete a todos como um destino
marcado por uma sina.
168

Há um caráter indelével no ser desse irmão em relação ao que ele é na relação com essa
família “esse irmão que tem comigo essa coisa de ter nascido da mesma matriz, e de estar
ligado ao mesmo pai, o pai criminoso” (Lacan, 1959-60/1988, p. 337) Ou seja, assim como
Antígona, Polinice é fruto do pecado do casal parental. Mesmo com o fluxo de
transformações, ela se fixa no significante que a detém diante de um desejo único e acima de
tudo “em uma posição inquebrantável, intransponível” (Lacan, 1959-60/1988, p. 337). O
horizonte ao qual Antígona se dirige está situado e determinado a partir da linguagem.
Contudo, para essa mulher, esse limite é somente um ponto de transposição.

Durante toda a história, Creonte se mantém em uma posição marcada e irredutível, mas
parece vacilar quando percebe que foi o causador de um erro. “Ele mesmo tendo-se fodido,
fez uma besteira. Harmatia, o erro, o engano” (Lacan, 1959-60/1988, p. 335). O que não se
passa com Antígona, pois pelo que nos parece ela está num lugar menos frágil do que ele. Sua
posição, em parte fora da linguagem, não negocia, já que se ergue sobre um campo para além
do falo. Há um caráter absolutamente extraviado em sua posição. “Longo é o caminho a
percorrer da paixão de Antígona” (Lacan, 1959-60/1988, p. 336). Ela é tomada por uma
paixão desenfreada que desconhece o limite.

Ela segue em direção à própria morte, sem conhecer a lei. No final da peça tece um longo
lamento, quando é conduzida à tumba de pedra onde permanecerá viva até morrer. No
entanto, nesse mesmo momento, Antígona já está entre a vida e a morte. Será trancafiada e
morrerá antes de morrer, pois não terá como ver e ser vista por ninguém “sem estar ainda
morta ela já esta riscada do mundo dos vivos” (Lacan, 1959-60/1988, p. 339). Nesse ponto,
vemos uma virada, pois ela se queixa, se lamenta sobre a vida que já está perdida, do lado de
fora da tumba. “Antígona vai queixar-se de partir sem tumba, sem que nenhum amigo chore
por ela. Ela evoca que não terá o leito conjugal, o laço do himeneu, que não terá filhos”
(Lacan, 1959-60/1988, p. 339). Como se estivesse arrependida, se desespera por não poder
mais lançar mão dessas soluções fálicas que são possibilidades para uma mulher: ser mulher
de um homem, ter um filho.

A fria Antígona só pode estar falando da vida da qual ela já se exclui. A vida para ela só é
abordável, só pode ser vivida e refletida a partir desse limite no qual ela já se perdeu. Só desse
lugar, além, é que ela pode vivê-la, sob a forma do que já está perdido. Ela é um objeto que
está fora e dentro da vida ao mesmo tempo. Quem mais poderia encarnar o lugar da ex-
timidade a não ser uma figura de mulher? Será que nosso arrebatamento por ela se ancora
169

nessa qualidade da mulher verdadeira de estar entre dois lugares, ao mesmo tempo, entre uma
pura ausência e uma pura essência?

A filha de Jocasta leva adiante esse lugar intransponível da Até quando encarna o desejo
puro que é o desejo de morte como tal. A respeito disso, Lacan faz um apontamento
importante quando diz que “reflitam bem nisto – o que é seu desejo? Não deve ser ele o
desejo do Outro, e ligar se ao desejo da mãe?” (Lacan, 1959-60/1988, p. 342). O desejo da
mãe é a origem de tudo, é o desejo fundador de toda a estrutura, a partir de onde a cadeia
significante se produz. Jocasta é, no seio do Édipo, o lugar de um desejo criminoso. Se
voltarmos à tragédia de Édipo Rei, saberemos que a mãe de Antígona dorme com o filho que,
de certa forma, perde a função de pai para tornar-se um simples irmão. Ismênia, Etéocles,
Polinice, Antígona e Édipo se transformam em filhos desse primitivo e radical desejo da
mulher.

O elemento mais singular e radical denominado por Lacan de a mãe como esse Outro
absoluto, volta a aparecer em Antígona. Os pais geram dois irmãos, um criminoso e outro
virtuoso, mas é a filha que assume o lugar do crime, já que escolhe ser a guardiã desse
extravio da mãe. “O desejo da mãe, o texto faz a ele alusão, é a origem de tudo. O desejo da
mãe é ao mesmo tempo, o desejo fundador, (...) é um desejo criminoso” (Lacan, 1959-
60/1988, p. 342). Ela faz o sacrifício de seu ser para manter viva essa figura desgarrada e
essencial que é a mãe para além da Até familiar. Antígona perpetua, eterniza o desejo
extraviado da mãe, rumo ao pior, ao seu próprio aniquilamento. “Não há ninguém para
assumir o crime e a validade do crime senão Antígona” (Lacan, 1959-60/1988, p. 342).

O papel de um extravio já anunciado por Lacan em toda verdadeira mulher é encarnado


por essa mulher, pois ela mostra como há uma zona em que a morte invade a vida, no sentido
do que Lacan chama de “uma segunda morte” (Lacan, 1959-60/1988, p. 344). Essa relação do
ser que leva a cabo o desejo puro, suspendendo tudo o que tem relação com o ciclo das
gerações, com a própria história, nos leva “a um nível mais radical do que tudo, dado que
como tal ele está suspenso à linguagem” (Lacan, 1959-60/1988, p. 344).

É por estar articulada a uma cadeia significante, ao pai, mas não completamente, que
Antígona pode se extraviar desse lugar. Ela tem uma relação com o significante, mas há
também o seu gozo, o que a leva para muito além disso tudo. A cadeia simbólica começou a
se articular antes mesmo dela ter nascido, nas gerações precedentes. Mas ela está
inexoravelmente ligada a esse desejo radical, encarnado pela função da matriz, a mãe. É em
170

função do pai que ela se agarra a ideia de enterrar o irmão, mas, é em nome da mãe que urra
sobre o corpo de Polinice, como se fosse a reedição do extravio de Jocasta. “Defrontar-me
com a morte não é tormento. Tormento seria se deixasse insepulto o morto que procede do
ventre de minha mãe”. (Sóflocles, 441 a. C./1999, p. 36).

6.2 - Ysé: o aniquilamento em nome da Outra de si mesma

"Em Partage de midi Claudel nos fez uma mulher, Ysé, que não ficou mal.
Aquela ali se parece muito com o que é a mulher" (Lacan, 1960-61/1992, p.
302).

“Compreenda de que raça eu sou, por ser louca, por ser a ruína e a morte”
(Claudel, 1905/1924, p.130).

No subtítulo anterior analisamos o papel de Antígona retomando seu ato no limite entre
simbólico e real, entre duas mortes. Nesse próximo item, analisaremos a figura de Ysé,
mulher de ato não menos trágico, personagem principal de uma versão contemporânea da
tragédia nas fábulas de Coûfontaine do escritor Paul Claudel.

Claudel foi um dramaturgo francês que esboçou em sua literatura alguns vícios morais e
religiosos de sua vida particular. No entanto, não nos deteremos em aspectos da obra
relacionados à sua autobiografia, mas, sim, à forma como ele descreveu seus personagens
femininos, especificamente aquele que queremos pesquisar: Ysé. Encontramos em sua
narrativa elementos importantes para apresentar o que Lacan sustentou como “aquela que se
parece muito com o que é uma mulher” (Lacan, 1960-1961/1992, p. 302). Em certa passagem
de uma de suas obras, Claudel conta como criou seus personagens e o que pensava a respeito
da mulher, que era não somente um ser cheio de mistérios para o homem, mas também para si
mesma. Apesar de a mulher estar contida no campo da cultura, há sempre uma possibilidade
de que um elemento qualquer se precipite e se extravie:

A mulher é antes de tudo alguém sobre quem pesa a exigência prática. Mas ela é também alguém em cuja
fronte está inscrita a palavra: Mistério. Ela é a possibilidade de alguma coisa desconhecida. Um ser secreto
e cheio de significações. Um ser secreto e ignorado por si mesma que postula, para sua realização, uma
intervenção exterior. [...] Para arrancar um homem de si mesmo até as raízes, para dar-lhe o gosto do outro,
171

este avarento, esse duro, esse egoísta, para fazê-lo preferir esse Outro que a si mesmo até a perdição do
corpo e da alma, só há um instrumento apropriado: a mulher. (Claudel, 1905/1924, p. 134).

Ysé é uma figura feminina que Lacan chama de “verdadeira mulher”. Ysé ganha corpo e
consistência a partir de sua nomeação como mulher de cada um dos parceiros que a escolhem
como um sintoma, uma verdade. Por outro lado, ela se extravia da conexão que tem com esses
parceiros e com o nome que eles lhe dão. Diz-se isso porque Ysé só se extravia negando o
papel de esposa, amante e mãe quando, de fato, é localizada nesses pontos fixos. É a partir de
uma nomeação simbólica e do encontro com o falo que ela então se dirige a outro lugar, ao
campo inominável de um desejo perigoso. Ela afirma que, ao permanecer sozinha, tendo
perdido essa conexão fálica com o homem com quem mantém um laço amoroso, se sente
ameaçada por uma espécie de desintegração, surge então o elemento de extravio, o qual ela
teme que venha à tona.

No caso de Ysé, ser uma verdadeira mulher é escolher, em um momento preciso, abrir
mão das insígnias fálicas e de todos os semblantes para reafirmar que esses bens não são
passíveis de conter sua solidão de mulher, e que algo de pulsional se mantém desligado, a
despeito de todas essas tentativas de laço com o mundo. Ela se extravia quando se vê sozinha,
longe do marido. Seus dizeres mostram que ela tinha medo do que podia acontecer caso o
marido a deixasse. Não receio de encontrar outro amor ou outro homem em sua solidão,
mesmo porque ela já os tinha, mas receio de se dar conta de que em si mesma havia Outra
mulher, alheia a ela mesma. Essa Outra, solitária, vivia nela mesma e se conduzia rumo ao
pior, lugar em que o desejo se apaga e abandona Ysé defrontada com um gozo sem
simbolização.

Mesmo que não pretendamos analisar todas as personagens da trilogia composta por três
peças teatrais – O refém, O pão duro e O pai humilhado –, citaremos brevemente as heroínas
de cada uma dessas tramas, uma vez que a descrição de Claudel tece uma verdadeira
mitologia do ser feminino. São mulheres cujas posições se diferenciam, mas, em todos os
casos, poderíamos defini-las como possuidoras de uma subjetividade na qual é possível
vislumbrar um elemento esquivo e não capturável. Há um elemento de extravio presente nas
mulheres da família de Ysé, em suas diferentes gerações.

Em O refém (1911), a heroína Sygne é levada a renunciar à sua própria identidade para
salvar o Papa, que teria sido sequestrado por Toussaint Telure. Sygne é uma heroína e está
172

ocupada com o dever de salvar esse homem sagrado que está no lugar de Deus. Ela não é
sacrificada por castigo divino, nem por uma penitência imposta por alguma falta por ela
cometida, mas, sim, por um sentimento que ela mesma se impõe ao se extraviar do caminho
do desejo para um campo indiferenciado do gozo. A heroína de O refém não é conduzida por
uma sina familiar transmitida pelo destino de seus ancestrais, como é o caso das personagens
da tragédia antiga, mas deve reparar o destino da família, com seu ato sacrificial, indo ao
encontro de seu próprio sofrimento. Na última cena, ela se coloca na frente do marido para
receber um tiro no lugar dele.

Em O pão duro, peça também escrita em 1918, a história da família de Ysé continua num
rearranjo edipiano. As personagens dessa trama são Toussaint Turelure, o pai e seu filho com
Sygne, Louis de Coûfontaine. A cena final trata de um parricídio, pois Louis mata o pai e
casa-se com Sichel, a amante de Toussaint. Há duas heroínas nesta peça, Lumîr e Sichel. No
início da história, Lumîr é amante do herói parricida e Sichel é com quem Louis se casa. Cada
uma delas tem um papel importante e muito diferente no destino das gerações. Sichel é uma
mulher comum, viúva de Toussaint e esposa de seu filho, Louis. Lumîr, ex-amante do filho,
renuncia ao amor do mesmo, em nome de uma causa política. Ela é a heroína trágica da peça,
renunciando ao amor, abandonando esse homem, em nome de um ideal.

Claudel refere-se à Lumîr como uma alma exilada. Seu desejo, de natureza extrema, a
conduz à morte, uma vez que se considerava predestinada a salvar a pátria com um ato de
sacrifício. É Lumîr que leva Louis a cometer o parricídio e à desgraça final: “essa
personificação da alma exilada que se encontra em todas as minhas personagens femininas e
desta vez nesse hussardo desenfreado, a polonesa Lumîr” (Claudel, 1905/1924, p. 143). Seu
papel é semelhante ao da heroína antiga já que ambas se sacrificam por um bem relacionado à
pátria ou à família. “Só em Lumîr apreende-se outra coisa e uma outra causa que não ela
mesma, à qual ela se dedica à sua maneira, como uma nova Antígona.” (Claudel, 1905/1924,
p. 144).

O ponto central da trilogia encerra-se com a cena do parricídio, assim como a primeira
obra dá a ver um excesso feminino na conduta sacrificial de Sygne. Na segunda peça, o
excesso permanece na conduta das personagens femininas. Esse elemento disruptivo nos atos
das mulheres foi denunciado por Claudel como uma conduta, sem controle e sem governo,
impulso irresistível que nada detém:
173

Eu supus seres em quem faltava o contrapeso, quero dizer, a inteligência de uma regra geral e exterior a
eles diante da qual seus gestos teriam que se desenvolver, segundo o sentido dessa música superior da qual
fala o texto de Eclesiastes [...]. Só há personagens incapazes de controlar, de governar, de qualificar, como
que por referência a uma partitura, o impulso essencial e surdo que faz o fundo de suas naturezas e que os
manobra um por um, para reuni-los, no fim, em um tipo de quadro sinistro e de parábola às avessas. (...) a
paixão exclusiva e fanática pela pátria que anima Lumîr [...] (Claudel, 1905/1924, p. 144).

Em O pai humilhado (1920), última peça da trilogia, Louis já é embaixador da França em


Roma e a história da geração dos Coûfontaine segue seu curso. Pensée, a heroína, filha de
Louis e Sichel, é uma mulher adulta no início da peça e a narrativa toda se desenvolve em
torno do seu amor por Orian, sobrinho do Papa. Pensée, cega de nascimento, tecerá um longo
protesto diante do sacrifício da vida, o qual sua avó Sygne apenas esboçara no início da
trilogia. Lutando pelo amor de Orian, ela tentará demovê-lo de sua posição de obediência ao
tio, o Papa.

A personagem do terceiro tempo da trilogia se localiza numa posição simétrica a da


personagem feminina do primeiro tempo. Lacan acredita que Pensée faz renascer o desejo ao
qual renunciou sua avó. O que veremos a seguir é que embora exista um desejo que remete
essas personagens à cadeia simbólica familiar, elas estão numa posição de certa forma
irredutível. Esse elemento transmitido por gerações entre as mulheres culmina no ato trágico
de Pensée, pois ela não protagonizará um final feliz. Ainda assim, sua posição na tragédia
ainda será a de uma mulher crucificada.

Qual é este desejo que renasce na terceira geração das mulheres e que enfim se realiza em
Pensée, a última heroína? Não podemos analisar o ato de Pensée reduzindo-o ao desejo por
um homem, pois, assim como a avó, ela permanecerá uma heroína trágica, ainda que não siga
um desejo por um bem social. Enquanto heroína trágica, ela é ainda “uma figura de mulher
divinizada para ser ainda aqui a mulher crucificada [...] Estamos em presença do objeto de um
desejo [...] que é um desejo que não tem mais, neste nível de despojamento, que a castração
para separá-lo, mas separá-lo radicalmente, de qualquer desejo natural.” (Lacan, 1959-
60/1992, p. 302). Lacan fala de um desejo que está num nível de despojamento absoluto, no
qual sobrevive uma paixão e que pode ou não ser resignificado pela castração. Esse desejo
absoluto que abandona os bens simbólicos em nome de uma causa que transcende o próprio
valor significante do bem é uma marca da mulher no lugar da heroína.
174

Na última cena, Pensée abraça uma cesta de flores, na qual se encontra o coração do
amante morto. Nesse instante, Claudel diz que ela sente a alma do amante penetrar na sua, em
uma fusão dos corpos. O amor e a morte estão juntos na última cena para mostrar que o
desejo dessa mulher é unir-se a esse homem no aniquilamento. O desejo feminino da heroína
chega a seu destino: unir-se e se perder no homem através da morte, ou levar o amor até a
morte.

Em todas as personagens de Claudel há um ato que se localiza entre o bem dizer do amor
e a anulação da morte. Para estas mulheres amar uma causa pode significar uma devastação,
uma perdição. Eis o que o texto mostra como um desejo feminino realizado para além do
limite da lei. Eis a visada das heroínas. Antígona, Medéia, Pensée, Sygne e Ysé são heroínas
da tragédia clássica e contemporânea que se inserem como mulheres numa cadeia geracional,
suportando as consequências da história simbólica. Entretanto, o ato de cada uma delas, e suas
palavras, segue em direção a uma ruptura com a tradição da linguagem que circula entre os
homens.

Pensée, assim como as outras personagens, permanece no lugar desse objeto misterioso,
posição que atrai e capta o desejo do Outro. O desejo do Outro, ou seja, desses homens que as
circundam, pois o desejo de cada uma é radical a ponto de não ser reconhecido como um
desejo limitado pela própria castração, a que todos os homens se submetem. Vê-se esse lugar
de uma alteridade radical também em Ysé. “É verdade que eu lhe ensinei de fato o que é ser
um outro? É verdade que lhe ensinei de fato sobre esse alguém que lhe arranca das raízes?”
(Claudel, 1905/1994, p. 134).

Em O Seminário, livro 8: a transferência, Lacan apontará Ysé como a verdadeira mulher


devido seu desligamento do mundo e do campo do outro. Vemos que ela possui um extravio
qualquer, que pode ser lido como mais um apontamento daquilo que a teoria formalizará
tardiamente como um desdobramento feminino diante do falo. A personagem exemplifica
como uma mulher pode transgredir os limites simbólicos, demonstrando sua tendência a se
desviar da norma significante para um lugar sem mediações. Dizer do ato das personagens
femininas na trilogia de Paul Claudel como algo fora do limite fálico é uma forma de mostrar
o extravio radical dessas mulheres. Nas fábulas dos Coûfontaine encontramos uma verdadeira
mitologia do feminino apontada por quatro personagens. Entre as heroínas da saga de Claudel
– Sygne, Lûmir, Pensée e Ysé – essa última é escolhida por Lacan como uma mulher em sua
inteireza, porque é aquela que produz um ato disruptivo; alheio ao amor, à felicidade, à pátria.
175

Essa mulher, lugar da alteridade radical, encarna esse ser opaco e misterioso, encontro com a
verdade.

Lacan em uma referência ao texto do escritor Paul Claudel, Partage de midi (1905),
analisa a estrutura do Édipo através da trama dessa história e da figura de Ysé. Segundo ele,
na construção dos personagens femininos ao longo de sua obra, Claudel não apresentou o que
de fato é a mulher e para onde seu desejo aponta, com exceção da obra em que se encontra
Ysé. Nesse conto, Ysé, a personagem principal, encarnaria A mulher.

Nas qualidades e nos atos de da heroína buscamos encontrar mais uma das figurações da
mulher sobre as quais nos fala Lacan. “Essa heroína de Claudel, essa mulher que ele promove
para nós, é a mulher de um certo desejo. Assim mesmo, façamos justiça em outra parte, em
Partage de midi Claudel nos fez uma mulher, Ysé. Aquela ali se parece muito com o que é a
mulher” (Lacan, 1959-60/1992, p. 302). Lacan anuncia o ponto de partida de sua tese ao
afirmar que Ysé se parece com o que é uma mulher, já que é construída sobre os pilares de um
certo ideal. Entretanto, deixa subentender que não há uma verdadeira mulher, pois mesmo
quando Ysé se encontra com tudo que pode ser o desejo feminino ela ainda se desgarra do
campo simbólico.

O texto de Claudel contempla quatro personagens: três homens e uma única mulher –
Ysé, mãe, esposa e a mulher que encarna, como cita Colette Soler em seu livro O que Lacan
dizia das mulheres: “O impossível” (Soler, 2005, p. 20). Três homens orbitam em torno dessa
figura: De Ciz, seu marido, um homem que tem uma relação obsessiva com o trabalho e que
pensa somente em ter e obter fortuna; Amalric, homem realista e ateu, seu primeiro encontro
amoroso malogrado que se intitula como ‘O homem’. E ainda um terceiro, Mesa, religioso
que se retirou do convívio dos homens para buscar Deus, mas encontrou no caminho essa
mulher, Ysé que não deixa de ser a face obscura desse mesmo Deus não castrado.

Ysé é uma mulher que tem casamento, marido e filhos. A posse de todos esses bens
poderia ser sua felicidade, no entanto, ela demonstra, ao longo de toda trama, que a felicidade
não é objeto de seu desejo. “Ahn? Ora se me apego a essa felicidade, seja o que for que você
chama assim, que eu seja outra!” (Soler, 2005, p. 20). A todo o momento, a heroína
desmascara os semblantes fálicos, afirmando que ter tudo que faria uma mulher feliz
simplesmente não a satisfaz. Ela tem a trágica intuição de que uma mulher é solitária em seu
gozo. A questão é que não sabe bem o que fazer com isso e acaba aniquilada por esse empuxo
mortífero.
176

A bela Ysé faz, então, um pedido ao marido enquanto ele se apronta para nova viagem de
trabalho, ocasião em que ficará sozinha com os filhos. “Não vá. Amor, não vá”. Ela suplica a
esse homem que não a deixe só, e, ao mesmo tempo, a presença do marido lhe confessa: “Não
confie muito em mim. Não sei, sinto em mim uma tentação. E peço que não me venha essa
tentação porque não convém” (Soler, 2005, p. 20). Enfim, nas entrelinhas, confessa ao marido
que não confia em si mesma, e espera que ele seja a proteção para esse elemento disruptivo
que ela vislumbra no cerne daquilo que é seu ser de mulher. Ela teme que na ausência do
marido, na falta desse referente fálico, haja um possível desdobramento que a leve a perder-se
de si mesma. Acredita que a presença do marido e dos amantes a socorre e a livra de algo do
que não convém se aproximar:

Afinal, eu sou mulher, não é tão complicado assim. De que precisa uma mulher senão de segurança, como a
abelha atarefada na colmeia, limpinha e bem fechada? E não esta liberdade assustadora! Acaso não me
entreguei? E queria pensar que agora estaria muito tranquila, que estava garantida, que sempre haveria
alguém comigo para me conduzir, um homem. (Soler, 2005, p. 20).

O texto insinua que essa mulher que passou a vida em seu próprio mundo, entregando-se
como objeto à fantasia de um homem, não pode e não deve ficar sozinha. Quando constata
que esses parceiros não lhe garantem nada e que ela está diante de uma liberdade assustadora,
seu próprio desejo é aniquilado em nome de um gozo muito mais radical. Nesse caso, a
tentação maior poderia ser um outro amor, um outro homem, já que Ysé trai o marido com
outros dois amantes. Mas essa leitura nos dá apenas uma ideia rasa do que é essa mulher e não
revela de forma alguma o desejo que está por trás de sua ligação com os homens. A felicidade
que a heroína obtém da relação com os filhos e através do desejo e do amor desses homens é
somente uma maneira de mitigar esse elemento assustador, o qual ela teme. Esse elemento
que surge no interior mesmo de seu ser e que é um dado dessa espécie de extravio, já que
excede em muito a relação que Ysé mantém com a referência fálica.

Os homens têm pouca importância para essa a personagem de Claudel e a prova disso
é que ela os trai, ignorando a medida fálica pela qual suplica. Ela pede ao marido que não a
deixe, mas sabe que sua presença é apenas uma forma de garantir um limite para si mesma,
diante da tentação maior que é ver-se arrebatada por um gozo sem limites. Colette Soler se
pergunta se a tentação de Ysé é um amor louco, tão total que anula tudo e aparenta-se com a
morte. O apelo aos três amantes por compreensão é um pedido de contenção dessa loucura
177

feminina: “Você sabe que sou uma pobre mulher e que, se me chamar de certa maneira pelo
meu nome, pelo seu nome, por um nome que você conheça e eu não o ouvir, há uma mulher
em mim que não poderá impedir-se de lhe responder” (Soler, 2005, p. 21).
Claudel tece uma série de diálogos de Ysé com cada um de seus três amantes em que
ela lhes diz que se vê como uma mulher que existe sozinha, esvaziada de si mesma. Ela
afirma que, pelo fato de, a cada momento, estar só, como um objeto possuído por cada um
deles, é preciso que ela os destrua para não se sentir mais devastada do que já se encontra por
esses amores. Trata-se da exaltação do amor até a morte.
No final do último ato, Ysé se depara com a morte, e esse entrelace do fim com o
amor nos impele, como afirma Soler, a ler Claudel com a chave da astúcia feminina. A
heroína pede aos três amantes que fiquem com ela, que não a deixem, que tenham atenção ao
que lhe falta, que a chamem por seu nome. No entanto, ela responderá como um Outro que
existe dentro dela mesma e que pode irromper a qualquer momento. Ysé acredita que cada um
dos parceiros amorosos poderia salvá-la de si mesma. Entretanto, quando se vê só com cada
um deles, sente que pode destruí-los, que há um impulso para a morte. Depois de entregar-se
a esses homens, matá-los seria a única forma de não mais ser importunada por esse empuxo
ao lugar de objeto. Ysé pressente que ser a mulher da fantasia de um homem não é uma saída
válida e que pode até ser um estorvo.
Percebemos que o desejo de Ysé de ser única para um homem se dirige até a exaltação
do amor ideal e total que levará ao aniquilamento dos amantes. Esse amor “total, tão absoluto
quanto irreparável, esvazia de substância os objetos mais diletos, mata qualquer diferença, e
se afirma sob a forma de um aniquilamento, de todos os objetos correlacionados à função
fálica, ou seja, com a falta” (Soler, 2005, p. 21). Ela se mistura de tal forma aos homens com
os quais se relaciona que, paradoxalmente, estando ao lado deles, não pode viver sem
enlouquecer. Precisa, então, aniquilar seu próprio ser para se ver livre desse laço
atormentador. A perda da ligação com a função fálica conduz Ysé ao extravio.
“Compreenda de que raça eu sou, por ser louca, por ser a ruína e a morte” (Soler,
2005, p. 21). Mais do que o apelo ao amor ou a busca do lugar de objeto de desejo do outro,
essa mulher se firma na busca de algo ainda mais radical, de uma tentação aniquiladora, por
excelência. O que quer Ysé, essa que Lacan chama de A mulher? Ela não ousa querer aquilo
que deseja em seu inconsciente, e, por isso, pede aos homens que a ajudem a se manter longe
das tentações de si mesma. Recorre ao marido para não ser arrebatada por uma paixão que
provém de seu próprio ser. Entretanto, tudo que lhe é dado por esses homens se desvanece, já
que ela parece ter um fascínio pelo abismo: esse elemento não representável de toda natureza
178

feminina, desumano e parente da morte. É para esse lugar, que Lacan nomeia nas tábuas de
S(de A barrado), que ela se dirige quando se precipita para a morte.
Ysé demonstra um desligamento em relação aos laços simbólicos com o marido, com
os filhos, com a própria vida: “Em nome de um anseio propriamente abissal, de uma vertigem
do absoluto, da qual o amor e a morte são apenas os nomes mais comuns e para os quais só o
nome de gozo não seria inoportuno” (Soler, 2005, p. 22). Esse gozo é o testemunho de que na
relação que uma mulher tem com as insígnias fálicas e com as referências simbólicas, há
sempre uma possibilidade de que um elemento pulsional venha a produzir um desdobramento
que parte de um desapego dos objetos rumo ao irrepresentável e a um lugar radicalmente
Outro.
Nessa peça, não são as traições de Ysé que mostram a marca radical da mulher. O que
soa obscuro e inapreensível é a forma como ela abre mão de todos os objetos que lhe possam
trazer a marca da função fálica, da falta, da castração, em prol dessa relação com um abismo
irremediável. “Esse traço de aniquilação quase sacrificial é a marca própria que designa o
limiar, a fronteira da parte ‘não’ do todo fálico, do não-todo, Outro absoluto” (Soler, 2005, p.
22). Esse traço de aniquilação sacrificial é o sinal da verdadeira mulher, pois designa o limite
tênue entre a castração, a cadeia significante de sua história e o lugar para onde ela é
arrebatada.
Colette Soler lembra que, ao citar a personagem do livro de Léon Bloy, A mulher
pobre, Lacan evoca também a figura de Ysé, porque ambas possuem a marca dessa espécie de
arrebatamento pelo nada. No romance da mulher pobre, a última frase do autor é cortante:
“Ela compreendeu até o que não está muito longe do sublime, que a mulher só existe de
verdade sob a condição de existir sem pão, sem pouso, sem amigos, sem marido e sem filhos”
(Soler, 2005, p. 22). A mulher de Léon Bloy é a figura que se separa da civilização e dos
laços com o outro para ser essa mulher de verdade.
A mulher pobre e Ysé têm em comum o desapego e o desenlace em relação aos bens
simbólicos. Entretanto, pergunta-se: por que chamar essa mulher de verdadeira mulher?
Acreditamos que, no final de seu ensino, Lacan reafirma como verdadeira a nomeação dessa
mulher que se desliga dos laços simbólicos. A diferença é que nos anos 70 surge a
formalização dessa figura que se desloca do significante a um lugar fora do falo, pelo
operador não-todo. O conceito de não- todo formaliza essa posição de gozo da mulher diante
do falo.
De fato, para Colette Soler, essa posição toda no não-todo teria a ver com um bem em
segundo grau, que não é causado pelo objeto a, (como o desejo amparado pela fantasia), mas
179

por um empuxo ao irrepresentável de S(de A barrado). “A diferença desse não-todo só se faz


reconhecer num processo subtrativo que é uma emancipação anuladora no sentido libidinal do
termo em relação a qualquer objeto” (Soler, 2005, p. 23). Vemos que a figura representada
por Ysé só é chamada por Lacan de a verdadeira mulher, pois não tem uma posição histérica
de esquiva, nem de uma ambivalência denegadora, mas uma posição que se basta, sem o
privilégio dos objetos.
Essa posição de aniquilamento que o autor reconhece em Ysé estaria relacionada ao
lugar que excede todas as medidas. Ou seja, se essa verdadeira mulher existisse, teria
ultrapassado a medida fálica e operado uma transposição do lado todo fálico para o lado todo
do não-todo. Mas seu extravio se configura exatamente por ela partir da via para uma
extravia, sem, contudo, abandonar a referência ao falo. Mas, se pensarmos sobre o que, nessa
época, Lacan chama de verdadeira mulher, veremos que Ysé talvez revele alguns aspectos do
que vem a ser essa posição no sentido de sua radicalidade. Segundo Lacan, Ysé se extravia
por não possuir todo o seu ser inscrito na linguagem. É por ter bens, marido e filhos que ela,
por outro lado, pode abrir mão de tudo isso. Seu extravio se produz quando essa personagem
se dá conta de que, ao renunciar a qualquer forma de simbolização de seu ser pela via fálica,
se dirige rumo a um lugar que ela mesma desconhece.
A personagem de Paul Claudel age de forma tão absoluta que parece desconhecer essa
“meia medida”, instaurando um ponto de ruptura, sem volta. Ysé trai todos os homens, mas
não é como se trocasse um objeto por outro, um homem por outro; antes, trai todos os objetos
que respondem à falta inscrita pela função fálica, em prol do abismo. Abandona tudo, mas não
sacrifica nada, pois, para ela, nada mais tem valor, senão o que ela encontra no gozo de um
amor absoluto pelo vazio. Assim, como o luto concentra toda a libido do sujeito, tornando-o
alheio ao mundo, seu amor a arrebata. Essa aniquilação tem sua lógica: o amor anula por um
tempo o efeito de castração, mais ainda quanto mais absoluto parece ser. Ele esvazia
correlativamente de valor os objetos que lhe são correspondentes. Nessa aniquilação, nesse
esvaziamento contínuo Ysé é fiel apenas a esse gozo de um amor ilimitável. É na busca pelo
nada, produzido pela falta do significante da mulher que ela encontra esse extravio que a
conduz à Outra de si mesma.
O extravio de Ysé está inscrito numa forma de existência que ultrapassa a função
fálica, já que algo nela acossa o horror e atinge a radicalidade do aniquilamento, mesmo
enquanto sujeito ancorado no desejo. Essa anulação tem como objetivo inscrever a marca de
uma verdadeira mulher, ainda que seja através de sua própria morte. Ysé busca um gozo
absoluto, uma completude somente possível pelo silêncio da morte. Ou seja, embora em
180

muitas de nossas figuras, a verdadeira mulher tenha um elemento extraviado, Ysé parece
deixar que esse elemento empurre tudo e leve consigo todos os objetos do desejo. É uma
forma de extravio radical, diferente do que vimos até aqui, por exemplo, em Dora.
O temor da personagem relaciona-se com a busca de um amor cujo apogeu é
encontrado na anulação de tudo que a cerca. O que Ysé procura, de forma desvairada, é um
amor que beira à morte e que anula a vida e as insígnias fálicas. O que se depreende da fala
dessa personagem é a glorificação de um amor cujo fim último seria a morte: “E eis que se
renuncia ao mesmo tempo ao passado e ao futuro. Mas o que nós desejamos não é criar, mas
destruir!” (Claudel, apud Soler, 2005, p. 21). A tentação de um amor tão total, tão absoluto
quanto irrespirável varre para longe não só o compromisso com o outro, mas esvazia de
substância tudo a sua volta.
Ysé é uma mulher ultrapassada por seu gozo e, apesar de contar com um homem ou
vários deles, ela está ultrapassada pelo que há de pulsional na sexualidade feminina. O gozo
que se produz pelo coito ou na fantasia da qual ela participa enquanto parceira de cada um
deles não a contém. “É também por isso que é como única que ela quer ser reconhecida pela
outra parte; isso é mais do que sabido” (Lacan, 1972/2003, p. 476). Sabemos que Ysé queria
ser chamada por um nome por cada um de seus parceiros para que, com cada um deles,
pudesse ser uma mulher única.
Em “O aturdito”, Lacan sustenta uma hipótese que parece explicitar a questão de Ysé:
“Mesmo que se satisfaça a exigência de amor, o gozo que se tem da mulher a divide, fazendo-
a parceira de sua solidão, enquanto a união permanece na soleira” (Lacan, 1972/2003, p. 467).
Todos os amantes de Ysé só lhe servem de conexão para um gozo Outro, não mediado pela
fantasia. Por outro lado, eles representam, cada um a sua maneira, a solidão com a qual Ysé se
depara. Nesse caso, uma solidão reeditada, já que a pluralidade dos parceiros só faz reafirmar
essa ausência da relação sexual.
Assim como nós, Claudel não tem uma ideia conclusiva da mulher e, mesmo suas
figurações que são a forma com a qual nos aproximamos dela, não encerram as possibilidades
do feminino. Nesse caso, atribuir-lhes um elemento constante é dizer que se há algo
semelhante entre elas, apesar de não formarem um conjunto, é que todas são, de alguma
forma, extraviadas, no sentido de que rompem com o registro simbólico em algum momento.
A peça de Paul Claudel é uma ficção sobre o amor e a impossibilidade de escrever a relação
sexual entre um homem e uma mulher, o que culminaria na morte. Nesse caso, é na figura
dessa mulher impossível e extraviada em que se reconhece o que seria a marca de uma
verdade da sexualidade feminina.
181

6.3 - Medéia: o infanticídio e a morte da Mãe

“É crua no seu jeito de ser; o íntimo da mente altiva horripila. Males


remordem-lhe a ânima, megaintumescida, antidelimitável” (Eurípides, 431
a.C/2010, p. 33).

“Quanto a mim, só, butim em solo bárbaro, sem urbe, rebaixada por Jasão, sem
mãe, sem um parente, sem... que a âncora soerga longe deste pesadelo. Mulher é
amedrontável, ruim de pugna, não suporta a visão da lança lúgubre, mas se
maculam a honra em sua cama, não há quem supere a sanha rubra”.
(Eurípedes, 431 a. C/2010, p. 47).

Nos Escritos, no texto “A juventude de Gide ou a letra e o desejo” (1958), Lacan escreve
poucas linhas sobre Medéia, a personagem da tragédia grega homônima, Medéia. Dessa
forma, para proceder à análise dessa figura, lançaremos mão de uma publicação da tragédia de
Eurípedes, recentemente traduzida para o português. No comentário de Lacan há uma ironia
que localiza Jasão, o marido da personagem num desconhecimento em relação à verdadeira
essência de sua mulher: “Pobre Jasão, que tendo partido para a conquista do tosão dourado da
felicidade, não reconhece Medéia” (Lacan, 1958/1998, p. 773). A heroína bárbara, estrangeira
não é reconhecida em sua inteireza de mulher, pois ele não poderia imaginar que Medéia iria
destruir o “mais precioso legado que destinava a posteridade”, seus próprios filhos.
Na epígrafe escolhida para iniciar o texto “Juventude de Gide” há um trecho da peça que
explica a ira feminina, com a qual vamos nos deparar, ao reconhecer em Medéia os signos da
“mulher de verdade”. No artigo “De mulheres e semblantes” (2012), Jacques-Alain Miller
tece um comentário sobre ela, ao se perguntar quais as implicações dessa nomeação para a
teoria lacaniana. O que seria uma verdadeira mulher? Para Lacan, a verdade de uma mulher se
localiza na distância subjetiva em relação à posição de mãe.
Ser mãe é uma saída para a feminilidade no sentido do ter, porque ela se faz existir como
A mãe que tem o falo, os filhos. Miller nos chama atenção para o fato de que não se trata de
construir o conceito ‘A verdadeira mulher’, porque essa mulher de fato não existe. Pode-se
dizer é que existe a verdadeira mulher, uma a uma, em ocasiões específicas, já que não é certo
de que uma mulher possa se manter nessa posição por muito tempo, tamanha a radicalidade
de seus atos. Para o psicanalista, só se vê a verdade de uma mulher quando a mãe não suturou
nela o buraco deixado pela relação com a castração. Entretanto, sabemos que a maternidade
182

não é uma saída para essa falta, e Medéia é um exemplo disso. Nesse sentido, ela abre mão do
ter fálico que os filhos poderiam lhe assegurar para ser uma mulher sem marido, sem filhos,
sem terra.
O extravio que vislumbramos em Medéia parece ser tão radical quanto o de Ysé ou o de
Antígona, porque ultrapassa o registro do ter para se fiar apenas no campo do ser, já que ela
mata os próprios filhos, em nome de uma vingança contra o marido infiel. Aniquilando a
própria descendência, a heroína comete um ato tão radical que ultrapassa o entendimento do
espectador, evocando um limite em que o simbólico encontra o real. Medéia nos apresenta a
dimensão de um desligamento que uma mulher pode empreender em relação às insígnias
fálicas que a sustentavam. Essa personagem é ultrapassada por um excesso transgressor
quando mata a prole, em nome de um desejo atroz, e se transforma na expressão mais fiel da
irrupção do campo do real no centro da sexualidade feminina.
A tragédia de Eurípedes, Medéia, nos apresenta alguns elementos que não devem ser
esquecidos, pois fornecem uma visão mais ampla da narrativa e dos fatos que antecedem a
cena trágica do assassinato dos filhos. Entre os gestos que antecedem o crime de Medéia,
percebemos seus lamentos, suas tentativas de compreender o lugar de uma mulher perante o
marido e como mãe, no seio da família. Ela tece longos diálogos com os outros personagens
para dizer de sua inadequação ao que havia sido estabelecido pelas leis da cidade para o
destino da mulher na sociedade.
O infanticídio é o ápice de um processo que se desenrola, com implacável violência,
desde o princípio, embora haja alguns momentos anteriores em que essa heroína trágica tenta
negociar outro destino para si e para os filhos, dentro mesmo das leis da cidade e das juras do
matrimônio. Entre o momento de se lamentar e a vingança final, há uma reviravolta, em que
ela passa de uma figura aplacada pela tristeza à uma mulher violenta e irascível.
Na tragédia de Eurípedes (431 a.C), a personagem Medéia havia feito tudo para que seu
homem conseguisse vencer todos os obstáculos impostos por seu pai para a conquista do
tosão dourado. Traíra o próprio pai, deixara sua terra natal, convencera as filhas de Pélias, tio
de Jasão, a matá-lo, esquartejara o irmão Apsirto. Por fim, após essa saga de atrocidades,
vivia em Corinto numa vida pacata, com o marido e os dois filhos. Toda essa série de mortes
fora cometida em nome de Jasão, pois o pai de Medéia havia proposto uma série de três
provas para que ele pudesse conquistar o velo de ouro. Desde o início da tragédia, Eurípides
deixa claro que Medéia era uma mulher que sempre concordava com Jasão. “Sempre solicita
com os daqui, jamais em discordância com o cônjuge” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 25). O
183

exemplo de mulher cordata e zelosa para com os cuidados da casa e do matrimônio. Ninguém
poderia dizer que ela seria capaz de um gesto tão radical para com seus próprios bens.
Num determinado ponto da peça, porém, algo muda radicalmente o destino de todos os
personagens da trama. O rumo dessa convivência pacata entre o casal se modifica
radicalmente após Jasão comunicar à Medéia que sairia de casa para desposar outra mulher:
“O amor adoece agora, instaura-se o conflito, pois Jasão deitou-se com a filha de Creon.
Rebaixa a própria esposa e os descendentes” (Eurípedes, 431 a. C/2010, p. 25). A ação de
Jasão é vista pela mulher como uma ofensa, um ultraje para com ela e o matrimônio. Após
esse desenlace com o marido, Medéia se desespera e começa a arquitetar sua vingança.
Os eventos que se seguirão são apenas a prova desse traço marginal que esteve presente
na saga de Medéia, desde sua saída da casa paterna, na época em que deixa tudo por Jasão, até
o ato final da tragédia. Vê-se que Eurípedes a descreve, desde sempre, como uma mulher
irascível e perigosa. Uma mulher sem lei, que só se ligava ao mundo pelo laço que estabelecia
com o amor de Jasão, na conexão com esse homem. Sem a jura do matrimônio, ela perderá os
laços com tudo ao seu redor, seu amor se transformará em ódio. “Seu corpo carpe, inane ela
se prostra, delonga o pranto grave, assim que sabe o quanto fora injustiçada” (Eurípides, 431
a.C/2010, p. 25).
O fato de Medéia ter abandonado a casa do pai é um elemento muito relevante para o
desenvolvimento da trama, pois seu ato final parece ligado diretamente ao infortúnio que a
desliga de seu pai e da inscrição da lei. No enredo da tragédia repete-se muitas vezes que por
ter primeiro cometido um crime contra o próprio progenitor, ao abandonar Colquida, sua terra
Natal, Medéia agora havia se tornado uma mulher mais desgraçada do que nunca, pois não
havia lugar que pudesse acolher seu sofrimento e solidão. “O olhar sucumbe à terra, nada a
faz erguê-lo, feito escarcéu marinho, (...) exceto quando regira o colo ensimesmado,
alvíssimo, em lamúrias pelo pai, pelo país natal, que atraiçoou por quem sem honra a tem
agora” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 25). A personagem havia cometido uma série de
atrocidades contra o pai, em nome do marido, e suas desgraças parecem ser justificadas pelo
efeito de um primeiro desenlace simbólico com o pai.
O valor da relação edípica fora completamente desvirtuado, e Medéia aprende, à duras
penas, o quanto custa renegar o sítio natal. Se tivesse em algum momento reconhecido a lei
paterna, teria para onde voltar e onde arrefecer sua ira. “Sem lar paterno onde ancore a dor”
(Eurípides, 431 a.C/2010, p. 63). A insistência nessa passagem sobre o abandono do pai e do
assassinato do irmão sugere que esse primeiro pecado conduz Medéia às demais desgraças
que se sucedem. Ela era um ser humano agitado por uma paixão indomável, entre a sede de
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vingança e o amor maternal: “sua psique circunspecta suporta mal a dor. Ela é terribilíssima,
ninguém que a enfrente, lograr o louro facilmente” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 25). Há uma
natureza fora da lei nessa personagem que, além do empuxo ao inefável, é uma mãe que não
se liga aos filhos: “Ao ver os filhos, tolda o cenho com desdém” (Eurípides, 431 a.C/2010, p.
25).
Medéia é uma personagem que revela a alteridade da posição feminina diante da polis,
dos homens, das leis, da maternidade. No enredo, a construção da condição feminina introduz
uma disparidade em relação à posição masculina, pois enquanto os homens guerreavam, à
mulher era destinada a vida no lar, devotada ao homem e aos filhos. Acontece que Medéia era
mais do que mulher, mãe e esposa, era a figura dessa alteridade absoluta que surge dentro da
própria polis. Sua posição instaura uma dicotomia entre a vida insuspeitada, dedicada ao lar, e
suas experiências como feiticeira, coroada com dons mágicos. “A via mais eficiente, para a
qual nasci sabendo, é capturá-los com veneno” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 59).
Medéia era uma estrangeira, o lugar desse Outro radical, mulher que vem de fora da
cidade, feiticeira passional, capaz de colocar as paixões acima de tudo, inclusive de seu
universo doméstico. “Se a conheço bem sua fúria só alivia se fulmina alguém” (Eurípides,
431 a.C/2010, p. 31), afirma a Nutriz. Essa ligação com o sobrenatural faz com que ela aja
com uma finalidade que vai além de sua própria existência e acima da vida de sua prole. É ela
que marca na tragédia o lugar da diferença do ser da mulher no interior da lei estabelecida: “É
crua no seu jeito de ser; o íntimo da mente altiva horripila. Males remordem-lhe a ânima,
megaintumescida, antidelimitável” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 33). Ela se mostra como uma
mulher que não conhece o limite, devido a uma fúria que toma conta de seu ser. Nesse
sentido, recusa todos os semblantes fornecidos pelo Outro, em nome de sua ira.
No início da trama, Eurípides apresenta Medéia abandonada a uma dor lancinante,
consumida em lágrimas, injuriada pelo marido ter desposado a filha do rei Creonte. “Tristeza!
Infeliz de mim! Pudera morrer” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 33). Até então, ela era vista
como uma mulher aviltada e humilhada pela conduta do marido: “Que eu morra, pois o ente
até então primeiro e único, tornou-se-me execrável: meu marido” (Eurípides, 431 a.C/2010 p.
45). Em determinado momento, no entanto, há uma reviravolta. Consumida pela ira,
pretendendo amaldiçoar e punir Jasão, com quem havia fugido no passado, decide sair da
depressão em que se encontrava e agir. Em nome dos Deuses e não mais do laço que até então
regeu sua conduta em relação ao marido, ela se eleva a uma posição que não está mais
circunscrita pelo simbólico.
185

Um dos personagens da tragédia nos adverte que Medéia tem um espírito perigoso e não
suportará o sofrimento sem retaliações. “Sugiro que entrem os dois garotos! Melhor mantê-los
longe da mater mestra, que os olhava a pouco taurivoraz, quem sabe com intento
inconfessável” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 31). Vê-se que Nutriz que cuida dos filhos de
Jasão, também alerta os meninos para que não se aproximem da mãe em delírio, pois sabe que
sua cólera não cessará antes que ela tenha feito algo de mal a eles, que são a réplica do pai. “Ó
prole odiosa, de uma mater mórbida, meritória de maus votos, pereça com o pai” (Eurípides,
431 a.C/2010, p. 35).
Em sua ira, após ter sido abandonada pelo marido, Medéia clama por Témis, a deusa da
justiça, patrona dos votos, guardiã dos juramentos. Com esse pedido deseja mais do que
nunca retomar de alguma forma os mandamentos que uniram Jasão a ela, pela lei dos votos
nupciais. “Medéia desgraçada e desprezada clama pelos juramentos, invoca as mãos que se
apertaram, esse penhor máximo”. (Eurípides, 431 a. C/2010, p. 39). O juntar-se as mãos era
parte do cerimonial da promessa de fidelidade que o esposo fazia à esposa diante dos deuses.
É curioso que diante de sua desgraça e da loucura que toma conta da personagem, ela tenha
inicialmente tentado recorrer a uma lei maior, para impedir que o marido a deixasse. Vejamos
que não é à uma lei da cidade, da polis que ela recorre, mas à lei dos deuses e à palavra que se
profere em nome do laço com um outro. No contexto da tragédia, a lei dos deuses se inscreve
num lugar muito diferente da lei da cidade. Sabe-se que Medéia renega o campo da lei e já
havia dado muitas provas disso ao abandonar o pai e matar o irmão. Desde sempre, ela fora
uma mulher extraviada em relação à mediação fálica dada pela lei universal dos homens.
A única coisa que confere existência à Medéia até então, possibilitando a ela um espaço
na polis era sua ligação com Jasão. O que se passa é que o marido, contingencialmente, se
torna para ela essa conexão com o que chamamos na psicanálise desse Outro para si mesma.
A partir dessa referência fálica – Jasão – algo se extravia e a conduz para um lugar sem
negociação. Medéia surge, a cada cena, com um “olhar de toura, feito leoa que mira o avanço
dos servos no pós-parto” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 41). Com a alma tomada pela desgraça,
ela se torna uma mulher implacável. Ao perder a promessa e as juras do marido, elementos
esses que a conectavam ao mundo dos homens, se vê em uma terra de ninguém, arrastada ao
terrível, ao desmedido.
Nessa passagem o autor da tragédia demonstra a tentativa de Medéia de rever aquilo que
assegurava sua relação com os laços do casamento. É importante assinalar que Medéia recorre
ao campo das juras diante de um deus que organiza o campo da palavra entre dois homens.
“Magna Têmis, Artemis augusta, notai o que padeço, eu que me vinculei com juras magnas a
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um horror de homem” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 39). No ápice de seu desespero ela pede
ajuda à deusa Têmis para que a ajudasse a retomar seu lugar de esposa junto a esse homem.
Tomada por um sentimento de aflição, ao se sentir injuriada pelo marido, Medéia ainda
tenta, sem sucesso, negociar uma saída melhor para si e para os filhos junto a Creonte, o rei
da cidade. “Sê suceptível, rei, ao meu pedido! Em exilo, mesmo assim eu te suplico. Deixa
que eu permaneça um dia só, a fim de organizar a minha partida e organizar um jeito de
manter meus filhos” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 55). Após essas tentativas, que parecem um
último desejo de mediação, ela se consome em ira e paixão, e começa a arquitetar uma série
de planos sórdidos para viabilizar sua vingança contra todos: Creonte, Jasão e sua amante e
seus próprios filhos.
Em um dado momento da trama, Medéia justifica suas intenções hediondas e cruéis e se
lamenta por ser mulher, uma “criatura mísera”, que não havia aprendido na casa paterna como
tratar o companheiro de leito, já que toda mulher quando se casa entra numa nova raça e numa
nova lei. “Na casa nova somos mânticas para intuir como servi-lo? Instruem-nos?” (Eurípides,
431 a.C/2010, p. 45). Nesse sentido, é curioso pensar como Eurípedes cria para a personagem
a figura de uma mulher ressentida em relação à sua condição de uma mulher que não foi
instruída como lidar com os homens.
Em seu monólogo, Medéia diz sofrer por ter estado enclausurada em casa com os
cuidados dos filhos ao invés de estar nos combates e na linha de batalha como os homens.
“Quando a vida em família o entedia, o homem encontra refúgio fora, com amigo ou alguém
de mesma idade. A nós, a fixação numa só alma” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 47). Ela evoca
a lei para deixar claro que se estivesse ao lado dos homens seria tratada de outra forma. Suas
palavras mostram sua indignação em ocupar o lugar dessa alteridade, com todas as
consequências da castração para uma mulher. “Sei bem que nossas sendas não se confluem,
dispõe de polis, elos de amizade, lar paternal, desfrutes na vivência, quanto a mim, só, butim
em solo bárbaro” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 47).
Em determinado momento da trama, Creonte pede a Medéia que saia do país, exilada,
levando os dois filhos. Ameaça expulsá-la para os confins da terra. Medéia ainda lhe pede,
clama para ficar mais um dia na terra que a reconhece. Afirma que se sentia ultrajada, sem
marido, raptada duma terra bárbara, sem mãe, irmão, nem parente para lhe acolher na
desgraça. “Sem urbe, rebaixada por Jasão, sem mãe, sem um parente” que poderiam fixá-la à
vida, à família e à cidade. Antes do ato final, os laços com o Outro vão se perdendo até que
ela se torne uma mulher solitária em seu gozo.
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Creonte explicita seu medo de que essa mulher irascível venha a cometer algum mal, pois
é astuta e conhecedora de muitos artifícios, tem fama de feiticeira e pode vir a fazer mal à sua
filha, desposada por Jasão. “Temo o dano, porque falsear palavras, que impingirás quem
sabe? - em minha filha. Motivos não me faltam para o medo, sabes como arruinar alguém.
Ameaças noivo e noiva, além de mim, segundo ouvi dizer” (Eurípedes, 431 a. C/2009, p. 49).
Medéia se mostra terrível, pobre, louca, seu espírito é perigoso. Reconhecemos algo de
extraviado em seus atos quando ela surge como uma “mãe em delírio”, e seus olhos bravos,
voltados para os filhos, vislumbram ali, o fim de sua cólera. Surge então uma figura
implacável, pois a alma foi mordida pela desgraça de um amor que chegou a seu termo. Diz
dos filhos que são malditos, pois são a réplica do pai.
A heroína se diz sozinha, sem irmão, pátria e ultrajada pelo marido, raptada de uma terra
bárbara, sem mãe, nem parente, perdida nessa desgraça. Ou seja, a perda dos laços simbólicos
com a família, a terra natal, a pátria e o casamento a levam a uma zona de desorientação e
mesmo de despersonificação que não encontra uma negociação possível. “Estou perdida, pois
daqui me exilam!” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 91). No reconhecimento desse Real que a
invade, surge um gozo ilimitado do feminino, um desejo puro, sem contenções. Essa
verdadeira mulher está para além dos limites da vida e da morte. Explorando uma zona
desconhecida, Medéia nos dá o melhor exemplo do que há de extravio numa verdadeira
mulher, já que sua pulsão está à deriva, desgarrada do campo simbólico.
Para Lacan, o mais importante na tragédia é a ideia de que Medéia é uma mulher que
aniquila a mãe em si mesma, por isso se porta como uma verdadeira mulher. A peça mostra
que, ao matar os filhos de Jasão, ela perde, sobretudo, sua posição de mãe e esse nome que
poderia inscrevê-la em relação aos filhos, quo matrem. Medéia destrói o nome da mãe, que
faz sua nomeação nas gerações, e golpeia Jasão no que ele tem de mais precioso. É nesse
ponto que ela se extravia para além do espaço cavado pelo simbólico. “Mato meus filhos e ai
de quem ficar na frente. Arraso o alcácer de Jasão, e sumo pela sanha fatal contra os meninos,
que mais amo no mundo, sob o crime que mais que nenhum outro agride o pio” (Eurípides,
431 a.C/2010, p. 99). A posição de Medéia faz uma diferenciação clara em relação à
verdadeira feminilidade para Freud.
A relação de Medéia com essa espécie de extravio que Lacan sugere existir em toda
verdadeira mulher pode ser vislumbrada na transgressão da lei, quando abandona o pai e sua
terra natal, mata o irmão e fere o marido no que ele tem de mais constitutivo, sua
descendência. É inquietante pensar que, sem pensar duas vezes, Medéia aniquila todas as
saídas identificatórias – seu lugar na família e no matrimônio – que asseguravam a ela um
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lugar no mundo simbólico, onde ela poderia se reconhecer como filha, irmã e mãe. Ser objeto
do desejo sexual de Jasão era o mais importante para ela. Embora, reconheça que, depois dos
filhos, nada lhe era mais caro, essa constatação não parece fazer mais sentido em determinado
ponto no qual ela chega.
No decorrer da tragédia, Jasão tenta convencê-la de que casar-se com a princesa Galuce,
filha do rei Creonte, não havia sido mais do que uma estratégia para proteger a família e os
filhos. “Põe na cabeça de uma vez por todas: não foi por outra que subi ao leito régio, mas por
querer salvar a ti e aos dois meninos, pai de irmãos dos filhos de agora, príncipes, bastiões do
alcácer” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 77). Desposar a rainha e produzir descentes era a melhor
maneira de dar irmãos legítimos do trono para seus filhos, protegendo-os de um futuro
miserável. Ele chega a dizer que não se enamorou de outra, mas que seu ato era
completamente calculado. “Desde que da terra dos Iolcos para aqui passei transpondo muitas
desgraças irreparáveis que solução podia achar mais acertada do que esta de desposar a filha
do rei sendo um exilado?” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 91).
Medéia não acredita nos motivos de Jasão e ignora seus pedidos de que se acalme. Em
vão ele lhe pede: “Por que não aprimoras tuas sabenças? Não trates com pesar o que dá lucro,
nem faças do infortúnio tua fortuna” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 77). Mas Medéia parece
tomada de tamanho desvario que não reconhece os motivos de Jasão. Dissimulada, o engana,
para poder manter-se por mais um dia na cidade, a fim de dar cabo a seus planos fatais.
Depois de convencer Creonte de que ficaria somente mais alguns dias na cidade, Medéia
executa seu crime em silêncio, com dolo e violência. Com ousadia e sem piedade, usará a
espada para matar seus próprios filhos. Ao pressentir essa loucura, que a torna Outro para ela
mesma, o Coro sentencia: “Lamento a tua dor, ó miseranda mãe! Matarás os meninos por
nódoa em teu nicho. Malogra a lei” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 115).
Essa mulher abandona tudo que é da ordem simbólica, não reconhece os semblantes do
Outro, desdenha da máscara fálica e vai rumo a um lugar para além da fronteira da lei paterna.
Nesse sentido, fere o pai duplamente, primeiro ao se colocar contra ele, e depois por trazer o
infortúnio ao marido. É a irrupção de um dos destinos do feminino no seio do ato trágico.
Medéia deixa entrever como a solidão é aqui a parceira de uma mulher. “Não te é familiar o
exílio? Desconhece o preço do vazio de amigos? Vislumbrei no automergulho a estupidez do
meu ressentimento” (Eurípides, 431 a.C/2010, p. 105).
A falta com que uma mulher está confrontada desde sempre na castração é reduplicada
pela figura de Medéia que Eurípedes constrói. Essa mulher está diante de um nível muito mais
radical da falta. Aliás, ela fabrica seu ser com a falta, pela ruptura com as balizas fálicas ao
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seu redor. Quando esse gozo feminino ilimitado irrompe, ela é uma mulher excluída do
universo das palavras. Não é por acaso que o tema do trágico é acionado por Lacan tendo
como personagem principal a mulher. Há um elemento qualquer que une a natureza desse
gozo feminino, sem limites, ao inexorável do gozo na tragédia.
O extravio de Medéia é muito claro, pois o que vemos se delinear nos atos dessa mulher
inflexível é um desvio radical. Ela se desloca sobre um trilho que vai de uma via conciliadora
e forjada pelo campo do ter – marido, filhos, uma casa – a um lugar desconhecido onde o ter
não tem mais nenhum valor. Lacan a chama de uma verdadeira mulher e faz uma analogia
entre o ato de Madeleine, de queimar as cartas-filhos de Gide, e o assassinato dos filhos de
Jasão por Medéia. Ela destrói o que lhe era um bem precioso e o que a inseria numa cadeia de
significações como mulher e mãe. Essa figura terrível da mulher revela essa dicotomia entre a
mulher conciliadora, que não tem limites para as concessões que pode fazer em nome de seu
homem, de seu corpo, sua alma, seus bens (Lacan, 1973/2003, p. 538) e seu desdobramento,
em uma segunda mulher, Outro para si mesma, que na conexão com esse mesmo homem ao
qual se dedicou, se transforma na mais sanguinária das mulheres. “O mais das vezes a mulher
é temerosa, covarde para a luta e fraca para as armas; se lesados os direitos do leito conjugal
ela se torna então de todas as criaturas a mais sanguinária” (Lacan, 1958/1998 p. 739). O
pênis do parceiro, esse objeto fálico que ela acredita que perdeu para outra mulher, lhe
designava o lugar de mulher.
Para concluir sobre o extravio de Medéia, lançamos mão de uma referência do texto
‘Significação do falo”, de 1958, mesma data do texto “Juventude de Gide”, quando Lacan se
refere à Medéia em uma única frase. Nesse artigo, o psicanalista faz uma análise da posição
da mulher como mascarada. Talvez a posição de medeia antes de colocar tudo a perder,
quando ela ainda representava tudo para seu marido flerte com essa posição da mascarada
fálica:

Por mais paradoxal que possa parecer (...) dizemos que é para ser o falo, isto é, o significante do desejo do
Outro, que a mulher vai rejeitar uma parcela essencial da feminilidade, nomeadamente, todos os seus
atributos na mascarada. É pelo que ela não é que ela pretende ser desejada, ao mesmo tempo que amada.
Mas ela encontra o significante de seu próprio desejo no corpo daquele a quem sua demanda de amor é
endereçada. Não convém esquecer que, sem duvida, o órgão que se reverte dessa função significante
adquire um valor de fetiche. (Lacan, 1958/1998, p. 701).
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6.4 - Madeleine: a incineração das cartas e a morte da Dama

“Até que ponto ela veio a se transformar no que Gide a fez ser, permanece
impenetrável, mas o único ato em que nos mostra claramente distinguir se disso
é o de uma mulher, de uma verdadeira mulher, em sua inteireza de mulher”
(Lacan, 1958/1998, p. 772).

“Eu tinha que fazer alguma coisa” (Lacan, 1958/1998, p. 772).

Na teoria lacaniana, a figura de Madeleine surge em um comentário de Lacan em seus


Escritos, especificamente no texto “Juventude de Gide ou a letra e o desejo”, de 1958. O texto
inicia-se com uma epígrafe que anuncia a forma como o psicanalista apresentará essa também
inquietante figura feminina. Há também uma análise da relação do escritor André Gide com
seus livros e sua escrita, que compõem uma vasta obra, que inclui suas memórias da
juventude e uma psicobiografia feita por Jean Delay, um psiquiatra iminente na época. Em
sua psicografia, A juventude de André Gide (1956), encontramos seus escritos íntimos, um
caderno de leituras mantido dos 20 aos 24 anos, notas pessoais sobre o título de trecho
inéditos do Diário, correspondências com sua mãe, e várias cartas inéditas. Contudo, nessa
compilação deve-se levar em conta um espaço vazio deixado pelas infinitas cartas de amor
que haviam sido trocadas com a Srta. Madeleine Rondeaux, prima que tornou-se,
posteriormente, sua esposa.
O recorte que mais nos interessa nesse texto é exatamente a relação de Gide com essa
mulher que, ao longo da vida, tornou-se o que ele mesmo chamou de um “único amor”
(Delay, 1956, p. 299). Afirmava que esse amor era uma espécie de encontro com o destino,
algo que decidira sua vida para sempre. Essas cartas que têm também o sentido de Letra,
como reforçado por Lacan numa nota de rodapé, eram uma espécie de testemunho e de
coroação desse amor ideal, mantido por muitos anos de maneira curiosa. No livro A porta
estreita, o autor rememora, não sem angústia, os sentimentos por Madeleine:

Aquele instante decidiu minha vida... ébrio de amor, de piedade, de uma indistinta mescla entusiasmo, de
abnegação, de virtude, eu apelava a Deus com todas as minhas forças, e me oferecia, não concebendo mais
outro objeto para a minha vida senão proteger aquela criança contra o medo, contra o mal e contra a vida.
(Delay, 1956, p. 299).
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Ele invoca a figura de Deus para dizer que, a partir daquele momento, o único objetivo de sua
vida era o de proteger aquela criança que na época tinha mais idade do que ele. A fantasia de
Gide em relação à sua prima Madeleine era a de que precisava salvá-la e protegê-la, como se
ela fosse ele mesmo, menino, na relação com sua própria mãe. Esse sentimento, que passa ao
largo de um desejo tipicamente masculino por uma mulher, tornada objeto da fantasia, vai
produzir os efeitos que levarão Madeleine a reagir mal, como “uma verdadeira mulher”,
segundo a afirmação de Lacan.
No texto “Juventude de Gide ou a letra e o desejo”, Lacan afirma que, no instante em
que Gide conhece a prima Madeleine, com 15 anos na época, ele descobre o amor em sua
condição de menino atormentado entre dois significantes: a morte do pai e um erotismo
masturbatório. “O menino Gide entre a morte e o erotismo masturbatório só tem do amor a
fala que protege e a que interdita: a morte levou com o seu pai aquela que humaniza o desejo.
Por isso é que o desejo fica, para ele, confinado no clandestino” (Lacan, 1958/1998, p. 754).
Gide era filho de uma mãe excessiva, que conjugou o amor ao dever e cuja voz dos
mandamentos e da ternura excessivas fez do filho um objeto da afeição invasiva. Algo muito
comum entre as mães de homossexuais, afirma Lacan. Não houve nessa mulher uma
localização do significante fálico, como deveria, para assegurar a função da metáfora paterna.
No confronto eterno com a figura dessa mulher na sua própria fantasia, o escritor produziu
uma série de sonhos, imagens e devaneios que eram a reedição da relação que havia tido com
ela no passado. Sempre lhe angustiara uma determinada cena em que uma figura de mulher
deixava cair o próprio véu, oferecendo ao espectador um buraco negro. Essa mesma mulher se
furtava ao seu abraço como um curso de areia (Lacan, 1958/1998, p. 765). A presença da
mulher como um enigma mal discernido iria indicar a forma, através da qual, Gide se ligaria a
sua mulher, Madeleine.
Lacan afirma (1958) que, no âmbito de sua história, no encontro com essa mãe, o
menino Gide sofre uma subtração simbólica, podendo apenas produzir uma abnegação do
gozo e o invólucro desse amor maternal. “O desejo deixou ali somente sua incidência
negativa para dar forma ao ideal de um anjo, que não poderia ser roçado por um contato
impuro” (Lacan, 1958/1998, p. 765). A relação com a mãe produziu uma divisão na esfera da
sexualidade: por um lado houve uma mortificação do significante fálico e, por outro, o falo
reaparece no lugar de um erotismo masturbatório, sem laço, confinado na clandestinidade.
O amor pela prima era “a evocação dos laços místicos de um amor cortês” (Lacan,
1958/1998, p. 765). O próprio Gide aproxima sua relação com Madeleine à união mística de
Dante com Beatriz. “De fato o sentimento de Gide por sua prima foi mesmo o cúmulo do
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amor, se amar é dar aquilo que não se tem, e se ele lhe deu a imortalidade” (Lacan,
1958/1998, p. 766). Esse casamento branco era a prova de que Madeleine representava para
ele um ideal de mulher.
Lacan afirma que o amor de Gide nasce no ponto em que a morte vem substituir o
objeto faltante. Há uma série de interpelações entre as figuras das mulheres que passam por
sua vida, as personagens de seus livros e a representação da morte. No momento em que vai
se casar com Madeleine, Gide escreve a um amigo dizendo que Madeleine era Morella,
personagem de um conto de Edgar Allan Poe: “Mulher do além”. Eis aí o criptograma da
posição do objeto amado em relação ao desejo. Há na fantasia de Gide uma duplicação da
figura feminina entre o campo do amor e da morte: “A segunda mãe, a do desejo, é mortífera,
e isso explica a facilidade com que a forma ingrata da primeira, a do amor, vem substituí-la
para se sobrepor, sem que se rompa o encanto, à da mulher ideal” (Lacan, 1958/1998, p. 766).
Sua tia, mulher alvo desse desejo violento, não deixou de ter eco na vida do jovem. No
livro A porta estreita Gide relata que, aos treze anos, no auge de seus inflamados tormentos,
sofrera uma sedução acintosa da tia. É nessa mulher “que o sujeito se descobre transmutado
como desejante”. (Lacan, 1958/1998, p. 765). É através da figura dessa tia que o menino,
numa virada, se torna o filho desejado. Com o pretexto de ajeitar sua roupa, ela passa a mão
em seu peito seduzindo-o:

Um dia naquele verão entro no salão e apanho um livro, ela estava ali, ela que habitualmente parecia que
não me via, me chama. Por que vais tão rápido? Te causo medo? Com o coração palpitante me aproximo,
me esforço em sorrir e lhe estendo a mão. Ela segura minha mão e com a outra me acaricia a face. Como
tua mãe te veste mal! Abre a camisa, me abraça com seu rosto perto do meu, e com uma das mãos me
acaricia o peito, por baixo da camisa e vai descendo a mão. Dei um salto tão brusco que os botões se
abriram. Corri para o jardim, o rosto incandescido, e lá, em uma pequena cisterna, lavei tudo o que ela
havia tocado (Delay, 1956, p. 297).

A cena de sedução com a tia traz efeitos no sentido de fixar para o menino uma
posição de gozo em relação ao outro, a saber, uma relação onde o amor permanece não
realizado. Por outro lado, “Madeleine quis o casamento casto” (Lacan, 1958/1998, p. 767).
Ela o quis, segundo Lacan, com base em fundamentos inconscientes, que se revelaram os
mais convenientes para deixar o impasse de André, em relação à sua sexualidade, no estado
em que estava. Lacan nos conta que a Sra. Rondeaux permaneceu durante muito tempo de seu
casamento com Gide fixada em seu amor pelo pai. Por isso lhe cabia muito bem o lugar da
intocada Dama cortês, o objeto sublimado.
193

Gide rejeitará o lugar de objeto do desejo feminino que ele havia sido para a tia e se
identificará com a posição dessa mulher diante dele próprio, na cena da sedução. Ele se
tornará um sedutor de menininhos como a tia. Com vinte anos ou pouco mais, Gide descobre
seus gostos pederastas que o reenviam ao evento traumático vivido com a tia, essa mulher do
desejo. Lacan acrescenta que o que deveria introduzir para ele o elemento do desejo feminino
se torna um trauma em razão da maneira como se produziu o enlace com a mãe e depois,
tardiamente, com a tia Mathilde. Entretanto, algo muda em relação ao amor mortificador da
mãe, ele então reconhece esse desejo do qual fora objeto e passa a desejar os meninos como
sua tia o havia desejado.
Madeleine surge no lugar dessa menina desprotegida, como a encarnação do sintoma
de Gide, sua verdade, no mesmo cenário da casa onde ele havia protagonizado o encontro
sedutor com a tia Mathilde. Ela faz permanecer essa espécie de amor não realizado quando
encarna, na sua relação com o desejo desse homem, mesmo que de forma inconsciente, um
casamento casto. Digamos que Madeleine manteve o impasse de Gide em relação ao sexo,
não oferecendo a ele uma reedição da figura da tia desejosa com a qual parecia. Pelo
contrário, Madeleine se furtava a qualquer “promoção mundana de forma gélida” e não
reanimava de forma alguma a cor do sexo para Gide (Lacan, 1958/1998, p. 766). A moça,
descrita como “fina, culta e bem dotada, mas sumamente reservada”, soube não ver o que
queria ignorar: a relação homossexual de Gide com os rapazes.
Entretanto, Gide e Madeleine faziam um par sintomático, pois como podemos dizer
com Lacan, “Até que ponto ela veio a se transformar naquilo que Gide a fez ser” ((Lacan,
1958/1998, p. 772). Durante muito tempo, a prima foi aquilo que ele queria ou fantasiava. Era
dessa forma que Gide mantinha uma profunda divisão na esfera amorosa, reservando esse
amor sublimado à prima e o erotismo aos rapazes.
Em meio a tantas fantasias em relação a essa mulher inatingível e perfeita há um
episódio que marca o casamento de Gide. Esse fato será comentado pela biografia de Jean
Delay e por Lacan, para descrever Madeleine como uma mulher, em sua ‘inteireza de
mulher’. A análise que o psicanalista faz para nos mostrar como Madeleine passa de um anjo
idealizado a uma mulher implacável, muito nos interessa, pois é o exemplo maior dessa
irrupção do extravio pulsional da mulher.
Ao se deparar com o fato de que Gide havia lhe traído com um amante, Madeleine,
num único gesto, queima todas as correspondências de amor que havia trocado com o marido,
essas que eram “o que ela possuía de mais precioso” (Lacan, 1958/1998, p. 772). A moça
“tola, de firmeza gélida”, que se furtava a qualquer aproximação, e que havia se transformado
194

em uma figura obscurecida pelo próprio marido, foi capaz de um ato que ninguém previa.
Incinerara as cartas, dizendo simplesmente que “tinha que fazer alguma coisa” (Lacan,
1958/1998, p. 772) contra a única traição intolerável, uma traição conjugal.
Eis o fato que nos conduz à Madeleine, essa figura de mulher inflexível e verdadeira
que surge em sua inteireza de mulher, quando se vê preterida. Lacan conclui que, o único ato
em que ela nos mostra distinguir-se de toda sua apatia até então “é o de uma mulher, de uma
verdadeira mulher, em sua inteireza de mulher” (Lacan, 1958/1998, p. 772). Ela queima as
cartas e toca num ponto nefrálgico do homem a quem se liga de forma radical. É interessante
pensar que o que Lacan nomeia de “inteireza de mulher”, é a figuração daquela que se
reconhece pelo sinal da ira, pela destruição da nomeação que a sustentava até então: o nome
de uma mulher cultuada pelo amor de um escritor conhecido. Nesse ponto do texto, Lacan faz
uma menção à figura de Medéia para dizer que Gide havia se enganado com relação à sua
mulher, assim como Jasão: “Pobre Jasão que tendo partido para a conquista do tosão dourado
da felicidade não reconhece Medéia” (Lacan, 1958/1998, p. 773). Gide havia transformado
Madeleine em algo que ele mesmo não podia mais reconhecer.
A inteireza de Madeleine surge quando ela destrói as cartas, já que com esse ato
irredutível, ela aniquila um nome que lhe servia para circunscrever seu próprio lugar na
relação amorosa, enquanto uma parceria fantasmática, cultuada pelo amor cortês. Ela põe fim
à sua nomeação, enquanto conectada a esse marido pela escrita de amor, para ser apenas uma
mulher desgarrada, tomada por um gozo envolto em sua própria contiguidade. Madeleine se
tornará esse Outro para si mesma, na conexão que estabelece com esse homem que toca, com
sua traição, num ponto de desarvoramento para sua doce esposa. Seu extravio surge nesse
ponto de desligamento de toda relação com o significante que o homem e o amor podem
representar para uma mulher, enquanto pranteada pelo amor sublime.
Em Madeleine e André Gide, Jean Schulumberger afirma que o escritor, ao saber da
queima das cartas de amor “geme como uma fêmea de primata ferida no ventre” (Lacan,
1958/1998, p. 772). É relevante mostrar que esse sofrimento excessivo produz um efeito
muito feminino que aparece quando Gide perde os escritos íntimos, que são o
“desdobramento de si mesmo” (Lacan, 1958/1998, p. 772). Ao ser furtado daquilo que era
“seu subjetivo” ou “seus filhos” (Lacan, 1958/1998, p. 772) como chamava as
correspondências, é imediatamente feminizado por essa perda inelutável. Gide é privado
daquilo que ele chamava do “legado precioso que destinava a posteridade” (Lacan,
1958/1998, p. 773). Esse homem irá sentir brutalmente o golpe desferido contra o que dizia
ser a correspondência mais bela que a humanidade poderia conhecer.
195

“A carta/letra assume o próprio lugar de onde o desejo se retirou” (Lacan, 1958/1998,


p. 773). A perda das cartas desfere um golpe em seu próprio ser, ou seja, no lugar do desejo,
no qual Madeleine estava inscrita como a mulher de um amor ideal. Esse ponto de ancoragem
fálica é aniquilado, deixando vir à tona o índice recalcado em sua fantasia daquela mulher
mortífera, dona de um desejo real, a tia Mathilde. Madeleine surge como a mulher tomada por
um gozo que se extravia. Em seu ato, ela não visava o ter fálico, mas o ser, esse que ela
construiu desprovido da posse desses escritos que não tinham cópia e por isso tornaram-se o
testemunho da divisão de um homem, feminizado por sua própria escrita de amor.
As cartas faziam a ligação da fantasia de Gide com a figura de Madeleine, logo, a
incineração das mesmas, oferece segundo Lacan “o lugar deixado deserto no âmago do ser
amado” (Lacan, 1958/1998, p. 774). Ali ele havia depositado sua alma, já que não havia o
double das cartas, a cópia. Para Gide, as missivas, tinham representação uma espécie de
objeto fetiche. Elas não podiam se desdobrar em outras, quando por um infortúnio foram
brutalmente perdidas. O fim dessa correspondência arranca Gide do lugar que ele havia criado
para si e para a esposa, através da escrita de amor. Madeleine parece conhecer muito bem esse
ponto de fragilidade, pois não hesita em ferir o marido, mesmo que com isso algo de si
mesma seja também aniquilado. Nesse sentido, além de se parecer com uma mulher de
verdade, também encarna o lugar da verdade desse homem, cuja subjetividade apanhada
desprevenida ela acolhe.
O lugar do fetiche que representava a escrita foi endereçado à Madeleine através das
cartas como uma forma de negar a castração. Por isso, o enorme sofrimento de Gide com sua
perda, já que elas se ofereciam como uma representação de seu ser, através da escrita,
desdobramento de si mesmo. As letras tinham a natureza desse objeto fetiche para o escritor,
assim como Madeleine ocupava o lugar da dama do amor cortês. Sabe-se que esse tipo de
amor faz o papel de suprir muito elegantemente a ausência da relação sexual, assim como, de
certa forma, o objeto fetiche o faz quando se ergue no lugar do pênis que falta à mãe.
Gide se feminiza por causa de uma perda produzida pela ação implacável de sua
mulher e pela destruição de um bem muito precioso. Uma verdadeira mulher para Lacan é
capaz de um ato inflexível. Ao descobrir a traição, não se esperava que ela pusesse fim a algo
tão precioso para ela mesma. As cartas lhe conferiam um nome, um lugar como mulher na
fantasia e no amor do marido. Parece-nos que, uma verdadeira mulher, nesse caso, se dirige
do lugar no qual possuía um nome, como mulher de Gide, ao lugar onde ela mesma produz
essa falta do significante no outro, o S (de A barrado). Ou seja, ela se dirige a esse lugar em
196

que não está mais limitada pela fantasia desse homem, nem mesmo dividida pelo significante
que a nomeava, lugar de um Outro gozo, sem mediação simbólica.
A partir desse caso vimos que Madeleine destrói de forma radical o que era um bem
para ela mesma. Mesmo que por algum tempo sua ira tenha sido aplacada pela vingança, o
fim das cartas, objetos valiosos que faziam o laço entre ela e seu homem, também a deixou
abandonada a um gozo solitário, aplacado do registro do ter. Em Madeleine, essa espécie de
extravio pode ser vislumbrado no aniquilamento das cartas de amor e na ruptura do
endereçamento de Gide a ela. Madeleine destrói o lugar e o nome de mulher na relação com a
referência fálica, encarnada por esse homem. Ela perde em parte a conexão com o mundo
simbólico que foi construído pela história desses escritos amorosos.
As cartas ocupavam o lugar do objeto da fantasia onde Gide teceu o laço com A
mulher, por ele idealizada. Logo, a perda desse objeto que representa o amálgama com o
outro, o desejo depurado e sublime, o faz perder a si mesmo. Segundo Lacan, a queixa do
amante se faz escrita nas últimas linhas de seu livro, Diário: “Que mais não oferece no lugar
ardente do coração, senão um furo” (Lacan, 1958/1998, p. 774). Essa frase explicita o
lamento do amante sobre esse lugar deixado deserto no âmago do ser amado pela falta daquilo
que o unia à sua verdade, à sua mulher, a seu sintoma. A conexão entre Madeleine e seus
escritos é clara, já que a letra de amor, a carta de amor, tinha encontrado na prima indefesa de
sua infância, o seu destino.
197

7. FIGURAS LÓGICAS DA FEMINILIDADE EM LACAN

Neste capítulo, veremos como duas figuras femininas são formalizadas a partir do aporte
dos conceitos lacanianos de letra e de não-todo. A mulher como Letra 35 (1956/1971) e a
mulher como Não-todo (1972/1973) circunscrevem a posição feminina de gozo diante do
significante fálico. Abordaremos, respectivamente, a Rainha, personagem principal do conto
comentado por Lacan nos Escritos, “A carta roubada”, de autoria de Edgar Allan Poe, e a
figura da Mística, Santa Teresa de Ávila, que é a personagem principal dos estudos lacanianos
sobre o gozo feminino no Seminário, livro 20: mais, ainda.
As questões levantadas por Lacan em “Significação do falo” (1958) e “Diretrizes para um
congresso sobre a sexualidade feminina” (1960) sobre a ideia freudiana de que o complexo de
castração teria uma função de nó e regularia a sexualidade feminina encontraram uma
resposta nos textos dos anos 1970, especificamente n'O Seminário, livro 20: mais, ainda.
Além disso, Lacan produziu teses inovadoras também em alguns textos dos Outros Escritos,
como “O aturdito” (1972), “Televisão” (1973) e “Radiofonia” (1970). Nesses textos, Lacan
formaliza e conclui que havia algo inassimilável na sexualidade feminina.
Em suma, a novidade do ensino de Lacan dos anos 1970 é a tentativa teórica de
apreender o campo do gozo como possível de ser escrito pela lógica da castração, embora não
todo articulado a ela. Lacan propõe que parte desse campo pulsional permaneceria fora do
simbólico, no real. O psicanalista lança mão de uma escritura lógica e matemática e, através
de fórmulas e letras, demonstra que existe um mais além da estrutura significante. A
formulação do operador Não-todo e do conceito de Letra são frutos dessas formalizações. São
maneiras de representar o gozo real da mulher em relação ao campo simbólico. A acepção
lacaniana do feminino expressa pela escrita do não-todo acabou sendo uma contribuição à
teoria freudiana, que não conseguiu explicar a ligação da mulher com o falo. “Que tudo gira
ao redor do gozo fálico, é precisamente o que dá testemunho à experiência analítica e
testemunho de que a mulher se define por uma posição que apontei com o não-todo no que se
refere ao gozo fálico” (Lacan, 1972-73/1985, p. 15).

35
Optamos por grafar os termos Não-todo e Letra em maiúscula em alguns lugares, pois são conceitos que
formalizam o extravio feminino.
198

Lacan reconhece que, embora o uso da estrutura lógica seja uma boa estratégia para
pensar o lugar do gozo, abordar o elemento que escapa à amarração simbólica não seria tarefa
simples. O próprio Freud já havia se complicado nessa empreitada. O fato de a teoria
freudiana ter considerado a libido como essencialmente masculina trouxe desdobramentos
teóricos importantes na medida em que todo o campo da sexualidade feminina foi ignorado.
Quando Lacan afirma que “a mulher não existe” (1972-73), está localizando-a no registro de
um gozo real. “De um lado, o gozo é marcado por esse furo que não lhe deixa outra via senão
a do gozo fálico. Do outro lado, será que algo pode ser atingido, que nos diria como aquilo
que é só falha, hiância, no gozo será realizado?” (Lacan, 1972-73/1985, p. 15).
Como falar das representantes da sexualidade feminina se, nesse sentido, a feminilidade
se orienta com relação a um gozo para além daquele que se agrupa pelo viés fálico? Há um
consentimento com a posição de alteridade que localizará a mulher como esse Outro para ela
mesma (Lacan, 1960/1998, p.741). A alteridade em relação a si mesma demonstra a
existência de um gozo submetido a uma satisfação pulsional fugidia e de difícil apreensão,
que nos coloca diante de um ser feminino que se vê “envolto em sua própria contiguidade”
(Lacan, 1960/1998, p. 744). Nesse sentido, o gozo contíguo nos leva a admitir que a
ancoragem no falo é, para a mulher, apenas contingente, e não necessária.
Por meio da criação do operador não-todo, Lacan concebe, nas fórmulas da sexuação, a
distinção do que seria, por um lado, o universal da função fálica, e, por outro, o singular do
feminino. Com base em dados clínicos, é possível afirmar que a aparência fálica é o
significante mestre que ordena a diferença entre os sexos no nível simbólico e também as
relações entre eles. A proporção sexual entre os sexos é da ordem do impossível, já que a
relação não se escreve. “Um homem procura uma mulher a título do que se situa pelo
discurso, pois, se o que aqui coloco é verdadeiro, isto é, que a mulher não é toda, há sempre
alguma coisa nela que escapa ao discurso” (Lacan, 1972-73/1985, p. 46). Há um desencontro
que faz com que a relação sexual fracasse. Do lado masculino, é possível inscrever o
universal. Aí, os objetos são passíveis de se repetirem, de serem predicados e exemplificados.
Do lado feminino, essa singularidade surge refratária à predicação, pois rompe com o
universal e toma cada mulher como exceção.
A formalização das fórmulas da sexuação é uma virada importante, pois introduz a
dimensão do ser, para além de uma análise amparada unicamente no registro fálico do ter ou
não ter, no qual o homem não é sem ter e a mulher é apenas sem ter. A ideia freudiana de
pensar a diferença sexual entre aqueles que têm e aqueles que não têm o falo é reformulada
por Lacan, o que culmina numa dialética sutil entre o ser e o ter. Surge a ideia do ser, para
199

além do ter fálico. “Esse ser sexuado das mulheres não-todas” (Lacan, 1972-73/1985, p. 19)
pode ser colocado em uma lista e contado, um a um.
As elaborações sobre o elemento pulsional fugidio, que Lacan chamará, no Seminário 20,
de gozo feminino, gozo da mulher, gozo Outro, ou aquele gozo sobre o qual uma mulher não
solta uma palavra (Lacan, 1973-72/1985, p. 82) presentificam a essência do Real, que passa a
ser uma categoria essencial nesse período do ensino lacaniano. Esse excedente pulsional que
não pode ser encerrado pela estrutura significante surge inscrito em algumas fórmulas, os
matemas, em forma de proposições. A primeira inscrição surge do lado da mulher, nas tábuas
da sexuação; nomeamos a figura feminina da mulher Não-toda de operador lógico. A escrita
desse operador encarna logicamente o gozo feminino que escapa ao simbólico, suplementar
ao campo fálico, e não complementar. A confecção do conceito de não-todo retira a mulher
do lugar de falta em relação ao significante fálico e a localiza como portadora de um gozo
ilimitado, que pode colonizar o falo e excedê-lo.

Esta função inédita na qual a negação cai sobre o quantificador a ser lido não-todo, isto quer dizer que,
quando um ser falante qualquer se alinha sob a bandeira das mulheres, isto se dá a partir de que se funda
por ser não todo a se situar na função fálica. Não há A mulher, pois, por sua essência, ela não é toda.
(Lacan, 1972-73/1985, p. 98).

Uma mulher se insere na lei da castração de forma não-toda, amparada pela


contingência, e não pelo universal. Essa proposição apresenta uma forma única de existência
para cada uma das mulheres, uma vez que, juntas, elas não poderiam formar um conjunto ou
produzir um universal. Nesse sentido, o não-todo é, “por essência” (Lacan, 1973-72/1985, p.
98), mais uma das figuras do feminino e carrega consigo a ideia de que a mulher está sujeita à
cadeia significante, mas pode se extraviar da mesma e encaminhar-se para um lugar fora do
limite imposto pelo falo.
A proposição da mulher como Letra designa um lugar topológico entre saber e gozo,
contemplando o Real. A carta/letra apresenta-se como mais um dos destinos pulsionais
femininos: “A mulher, essa que não existe, é justamente a letra – a letra como significante de
que não há Outro, S(de A barrado)” (Lacan, 1971/2009, p. 102). A noção é mais uma das
formas de abordar o que preexiste de real em relação ao simbólico, numa mesma estrutura. A
mulher que ocupa o lugar da carta/letra no conto de Edgar Allan Poe arrebata a todos com um
tipo muito especial de odor de feminina, de artifício. A Rainha mostra como a carta sempre
200

chega a seu destino, por estar na ordem significante, embora haja algo de outra ordem que se
mostra no efeito de feminização produzido em todos aqueles que se servem da carta.
A figura da Mística surge no Seminário mais, ainda para ilustrar o extravio particular
de Santa Teresa de Ávila, uma mulher que, por amor a Deus, atinge esse Outro gozo,
diríamos, feminino, ocupando o lugar da figura não-toda submetida ao falo. “A ideia de que
deve haver um gozo que esteja mais além. É isto que chamamos de místicos” (Lacan, 1973-
72/1985, p. 102).
Mostraremos como ambas as figuras formalizam o extravio feminino de forma lógica.
A mulher como Letra estaria localizada no litoral, entre simbólico e real, forjando um limite
entre dois campos que, aparentemente, seriam os mesmos, mas que, numa segunda visada,
apresentar-se-iam heterogêneos. A mulher como figura lógica não-toda ‘se desdobra em
relação a seu gozo’, apontando uma formalização possível do extravio que se dá entre a
medida imposta pela lógica fálica e a falta do significante no Outro. Nesses dois lugares
lógicos, encontramos a figura da Rainha ligada à Letra e a figura da Mística, Santa Teresa de
Ávila, e seu gozo não-todo, ligado ao falo.

7.1 - A Rainha: uma fantasia masculina de difamação

“Porque esse signo é o da mulher, uma vez que ela faz valer seu ser, fundando-o
fora da lei que continua contendo-a, por efeito das origens, em posição
significante, ou até de fetiche. Para estar à altura do poder desse signo [o da
mulher], basta manter-se imóvel à sombra dele, aí encontrando de quebra, como
a Rainha, o controle do não-agir” (Lacan, 1956/1998, p. 35).

“Na paixão ele achara a rainha generosa, digna de respeito e de amor” (Lacan,
1955/1987, p. 258).

Lacan analisa uma versão do conto36 The Purloined Letter, de Edgar Allan Poe, traduzida
pelo escritor Charles Baudelaire como “La lettre volée”. No comentário sobre o conto, Lacan

36
O conto A carta roubada é uma história policial sobre o mistério do furto de uma carta dos aposentos reais.
Tal carta, endereçada à Rainha, parecia esconder o segredo de uma relação extra-conjugal. O astuto Ministro D.
rouba a carta sob o olhar da Rainha, que nada pode fazer, pois teme que o marido possa surpreendê-la em
201

faz uso de um jogo de palavras em que letter, na língua inglesa, e lettre37, em francês, língua
original em que foi escrito o texto lacaniano, são traduzidos como letra, mas também como
carta. O psicanalista passa, então, a usar a expressão carta/letra.
O essencial do conto não é propriamente o drama que se desenrola em torno do roubo de
uma carta dos aposentos reais, fato que constitui apenas a cena “primitiva” da trama. O
principal é o trajeto que a carta percorre, circulando entre os personagens da história policial.
Quando a carta se perde, a Rainha mal havia terminado de lê-la. É por isso que se diz que a
carta desvia-se de seu destino final, extravia-se. Lacan propõe o termo “lettre en souffrance”
(Lacan, 1956/1998, p. 33, grifos do autor) para se referir à carta roubada, o que pode ser
traduzido como: uma carta em estado de espera, aguardando ser reclamada, desejada,
demandada. É assim, encarnando o lugar de um objeto desejado, que a epístola circula pelo
conto. Vejamos alguns detalhes da narrativa de Poe e das análises de Lacan.
Na primeira cena do conto, a Rainha, personagem ilustre e da mais alta estirpe, lê uma
carta, às escondidas. A entrada súbita do Rei nos aposentos reais coloca a Rainha em
embaraço. Não se sabe inicialmente o motivo do constrangimento, mas acredita-se que a
referida carta “poria em jogo nada menos do que a honra e a segurança da dama”. (Lacan,
1956/1998, p. 15). A aparição de um terceiro personagem, o Ministro D..., faz com que a
mulher se utilize de uma artimanha para encobrir o documento perigoso. Aproveitando da
desatenção do marido, deixa a carta sobre a mesa, “virada para baixo, com o sobrescrito para
cima” (Lacan, 1956/1998, p. 15). Ou seja, ela oculta o conteúdo da carta e deixa explícito que
a correspondência se endereçava a ela. Pelo desenrolar dos fatos, sabemos que não se trata de
uma carta escrita pelo Rei, e sim por um suposto amante.
A estratégia dissimulada da mulher escapa ao olhar do marido, mas não ao olhar do
Ministro, que pressente a tensão da dama e age. Diante do “desarvoramento da Rainha”
(Lacan, 1956/1998, p. 15), os olhos de lince do Ministro entendem que há, ali, um segredo.
Com desenvoltura, ele retira do bolso uma carta parecida com a que estava à sua vista e a
deposita sobre a mesa, a fim de efetuar a troca entre as duas correspondências e de se

situação embaraçosa. Posteriormente, a polícia é acionada pela Rainha para resgatar o documento
comprometedor. O fracasso da polícia leva a mulher a acionar o detetive Dupin para ir atrás da missiva na casa
do Ministro D. O Ministro deixara a carta bem à mostra, entre as pernas da lareira, para que, assim, sob os olhos
de todos, ninguém pudesse de fato vê-la. Dupin consegue recuperar a carta, após trocar o envelope por um fac-
símile e acrescentar nele um recado para o Ministro, nas entrelinhas da seguinte frase: “Um desígnio tão funesto,
se não é digno de Artrée, é digno de Thyeste”.
37
Na língua francesa, o termo lettre também é homófono à expressão l'être, que designa o ser.
202

apoderar da “carta embaraçante” (Lacan, 1956/1998, p. 15). A Rainha acompanha tudo, mas
nada pode fazer, pois seu ‘real cônjuge’ poderia perceber seus movimentos e perguntar sobre
a carta. Agora ela sabe quem está com a correspondência e, além disso, tem certeza de que o
roubo foi intencional. Lacan conclui que a carta falsa, deixada displicentemente pelo Ministro
no lugar da outra, é da alçada do significante, já que é preparada com antecedência para a
ocasião do encontro com a Rainha e configura-se como uma réplica perfeita da original.
A segunda cena, repetição da primeira, passa-se no gabinete da mansão do Ministro. O
Inspetor de polícia G..., incumbido pela Rainha da tarefa de recuperar a carta, faz uma busca
minuciosa na casa do Ministro, sem sucesso. O Inspetor G... acreditava que a carta deveria
estar sempre à mão do ladrão, pois, assim como uma arma, poderia ser usada a qualquer
momento para chantagear a Rainha. No entanto, é nesse momento da narrativa que
percebemos que a carta confere um poder ambíguo a seu detentor − poder esse que reside,
paradoxalmente, em não fazer uso de seu conteúdo.
Num segundo tempo, Dupin38 vai até a casa do Ministro e inspeciona astutamente o lugar
com óculos de lentes verdes para não ser notado. “O Ministro o recebe com uma displicência
ostensiva e frases afetando um tédio romântico” (Lacan, 1956/1998, p. 16). Dupin, a quem
esse fingimento não engana, percebe que um “bilhete esgarçado, que parece abandonado no
vão de um medíocre porta-cartas de cartolina, atraindo o olhar por um certo brilho falso, está
pendurando bem no meio do painel da lareira” (Lacan, 1956/1998, p. 16). Nesse momento,
ele já sabe que está diante do que procura. Ele descobre a carta porque algo importante lhe
salta aos olhos: o documento depositado na lareira possui detalhes muito diferentes da
descrição feita pelo chefe de polícia. Enquanto a carta endereçada à personagem real era
marcada por “um lacre grande e negro, com letra ousada e decidida” (Poe, 2003, p. 32), a
correspondência que estava entre as pernas da lareira era absolutamente diferente.
Dupin chega à conclusão de que nada fora encontrado no gabinete do Ministro porque o
objeto fora procurado “segundo métodos não aplicáveis à situação nem ao homem em
questão” (Poe, 2003, p. 21). Segundo Lacan, mesmo que a carta portasse a materialidade do
significante, acabaria por sofrer transformações nas mãos de cada um que a detivesse. Cada
portador produziria para a correspondência uma nova roupagem: uma escrita de mulher, um
novo remetente ou um novo envelope. Se a polícia examinou minuciosamente os aposentos
do Ministro, investigando todas as possibilidades de “explicação” do espaço, vasculhando-o a

38
Dupin é contratado por sua fama de homem de ação e de extrema astúcia detetivesca.
203

partir de uma lógica bem estruturada, ainda assim, não poderia encontrar a carta, uma vez que
ela habitava uma dimensão imaginária do espaço. Vemos aqui o contraste entre a circulação
simbólica da carta e sua inércia que, de alguma maneira, situa-a em outro plano. Lacan irá
apoiar-se na dimensão de “litoral” da “lettre”, no sentido de letra, região de encontro entre
dois campos heterogêneos, para formalizar o lugar da mulher como carta/letra.
Dupin se retira do gabinete do Ministro, deixando estrategicamente sua tabaqueira sobre
a mesa, a fim de voltar no dia seguinte com um fac-símile da carta e efetuar a troca.
Aproveitando-se de um incidente na rua envolvendo um tiro e um louco, cena que o próprio
detetive forjara para atrair a atenção do Ministro à janela, Dupin se apodera da carta e a
substitui por “um simulacro [semblant]” (Lacan, 1956/1998, p. 16) confeccionado por ele
próprio. Após a encenação, ele se retira cordialmente. O Ministro sequer suspeita que não tem
mais a carta consigo.
Há um elemento curioso na troca das cartas fac-símiles: a cada vez que um personagem
tenta se apoderar da epístola, ele é levado, como um artesão, a confeccionar um artifício, um
simulacro da carta, para ludibriar o olhar alheio. É interessante que personagens masculinos,
como Dupin e o Ministro, sejam tomados pelo desejo mui feminino de tecer um simulacro do
objeto que pretendem obter para enganar o outro. “Por estar em relação à carta na mesma
posição em que a rainha estava, numa posição essencialmente feminina” (Lacan, 1956/1987,
p. 253). Esse simples gesto de confeccionar uma vestimenta para a carta os localiza,
transitoriamente, ou talvez contingencialmente, em uma posição feminina. Confeccionar um
envelope que recubra o lugar vazio antes ocupado pela carta para ludibriar aquele que ficará
sem o objeto nos parece uma técnica muito feminina de encobrimento, de velamento39.
A carta/letra pode ser entendida como objeto em estado de espera porque passa pelas
mãos de todos, sem que ninguém saiba nada sobre seu conteúdo. O motivo da carta
permanece em estado de latência. Enquanto circula, cada um confere a ela seu próprio
sentido. O que mais interessa nas duas cenas do conto em que o objeto é subtraído é “a
maneira como os sujeitos se revezam em seus deslocamentos no decorrer de uma repetição
intersubjetiva” (Lacan, 1956/1998, p. 18). A lettre que espera, como “um imenso corpo de
mulher” (Lacan, 1956/1998, p. 40), desperta as fantasias e a relação dos homens com a falta e

39
Podemos fazer referência aqui à alegoria criada por Freud (1932-33) para dizer sobre a técnica de tessitura de
um véu, inventada pelas mulheres para velar a falta fálica. Ou mesmo a tese de Lacan (1959-60) de que o véu
velaria muito mais a falta do objeto do que a presença do mesmo.
204

com a presença do objeto, do significante. Resta-lhes a tentativa frustrada de desnudar esse


maiúsculo corpo feminino, sem saber que sua busca os transformará no próprio objeto da
cena. Em resumo, ao procurarem possuir a carta, − ou a mulher − os homens são arrebatados
por ela.
O conto de Edgar Allan Poe demonstra de maneira magistral a importância da ordem
simbólica, o que Lacan já havia capturado há algum tempo nos textos de Freud. A cadeia
significante constitui o sujeito e o localiza em uma história, determinando a função
fundamental que se produz no “percurso do significante” (Lacan, 1956/1998, p. 14). Embora
a função da letra enquanto significante seja o crivo de leitura da abordagem de Lacan em “O
seminário sobre 'A carta roubada”, a análise da Rainha, figura que revela o extravio feminino
e que o formaliza no campo da Letra, será feita a partir do enredo da trama e das pistas
deixadas por Poe.
Segundo Lacan, o conto de Poe dá prosseguimento a um curso de investigação sobre o
simbólico que encontra todo apoio na própria trama da história policial. A função da
carta/letra está em sua circulação, que produz efeitos subjetivos em quem a detém. A Rainha
esconde a carta do marido, da mesma forma que o Ministro camufla a carta de Dupin,
revirando o envelope sobre a mesa com o sobrescrito para cima. Por outro lado, os dois
personagens se veem enganados e roubados, o que denota o efeito significante de divisão do
sujeito.
Em alguns pontos do conto, é possível entrever mais claramente a posição feminina da
Rainha, que não coincide exatamente com o lugar da fantasia ou do significante, mas que
parece escapar à função simbólica que essa mulher de fato possui na trama. Os germes da
ideia da letra como elemento para além da função significante já podiam ser percebidos na
análise de Lacan do conto de Poe. Os indicativos de que a estrutura engendra suas próprias
impossibilidades já estavam presentes nos escritos de Lacan de 1956.

Tudo o que já está lá [em o “Seminário sobre ‘A Carta Roubada’”] está não somente peneirado e ligado,
mas feito dos significantes disponíveis para uma significação mais elaborada, aquela em suma, de um
ensino, o meu, que posso chamar de sem precedentes, sem outro precedente senão o próprio Freud –
justamente na medida em que ele define a vez anterior de tal maneira que é preciso ler a estrutura em suas
impossibilidades (Lacan, 1971/2009, p. 91).

Vejamos como a carta, em sua natureza de significante indivisível, chega a seu destino e
está sempre em seu lugar, mesmo quando não está. Nesse trajeto simbólico, não deixa de
produzir o efeito de feminização sobre os personagens que a detêm: a Rainha, o Ministro D...
205

e Dupin. O trio deixa entrever que um elemento qualquer da ordem do gozo produz um
desdobramento a partir da circulação significante. Contudo, a dimensão simbólica da carta
pode ser questionada, já que seus efeitos não podem ser reduzidos ao significante. A polícia
falha ao procurar pela carta a partir de um saber forjado pelos semblantes. Por outro lado,
Dupin, ao apostar no campo da carta/letra, consegue encontrá-la onde menos se espera.
Além desse ponto, é preciso marcar, ainda, o que cada personagem denota ao se calar e
não agir quando de posse da carta. Essa curiosa inércia que contamina os personagens
demonstra os limites do saber e dos semblantes quando afetados pelos efeitos de gozo da
carta/letra. Nesse sentido, de acordo com a análise que Lacan faz do conto em 1956, o lugar
da carta nos adverte de que a natureza da letra não pode ser reabsorvida pelo campo do
simbólico.
Os personagens do conto possuem diferentes olhares para a carta.

O primeiro é de um olhar que nada vê, é o Rei, é a polícia. O segundo, o de um olhar que vê que o primeiro
nada vê e se engana por ver encoberto o que ele oculta: é a Rainha e, depois, o Ministro. O terceiro é o que
vê desses dois olhares que eles deixam a descoberto o que é para esconder, para que disso se apodere quem
quiser: é o Ministro e, por fim, Dupin (Lacan, 1956/1998, p. 17).

O que nos interessa aqui, diz Lacan, é a forma como esses sujeitos se revezam em um
deslocamento significante, no decorrer de uma mesma repetição. A repetição se confirma no
modo de ação de cada um dos personagens, já que “o significante puro que é a carta roubada”
(Lacan, 1956/1998, p. 18) se desloca entre eles, fazendo peripécias. Entretanto, se Lacan vê aí
uma ação própria do significante de se deslocar e de encarnar sentidos múltiplos dependendo
do detentor da carta, é nesse mesmo lugar que vislumbramos como cada um deles se extravia
ao obter a missiva. Extraviam-se do lugar fálico e masculino, pois são feminizados e
obrigados a encarnar uma posição de mulher para confeccionar o véu que recobrirá algo do
olhar alheio. Resta saber se recobrem a falta ou a presença.
A fábula apresenta uma sucessão de enganos e desvios, a fim de preservar o sigilo do
qual depende a paz conjugal. Entretanto, para esconder esse objeto precioso, Poe sugere que
basta deixar o significante espalhado sobre a mesa com a face à mostra. Não escondê-lo é a
melhor forma de camuflá-lo. O fato é que, se há uma traição da Rainha, somos nós, leitores,
que extraímos o prazer de ver todos sendo ludibriados uns pelos outros (Lacan, 1956/1998, p.
19). Os homens se perdem em sua busca.
206

Segundo Lacan, o conteúdo da carta não é relevante. É, sobretudo, porque ninguém sabe
o assunto da carta que o conto se sustenta sobre um ponto de enigma, obscuro. É curioso que,
mesmo sem saber, todos imaginam que o conteúdo possui uma ligação direta com a
sexualidade da Rainha. “O que de mais famoso na história restou das mulheres é,
propriamente falando, o que delas se pode dizer de infamante” (Lacan, 1972-73/1985, p. 115).
Em resumo, a Rainha enfraquece o poder do rei ao fazer parecer que o trai com outro homem
e os homens se valem desse fato para acreditar no poder da carta.
Acreditamos que o conteúdo da carta pode não fazer tanta diferença para quem a detém.
Contudo, a fantasia que todos partilham e que se liga diretamente ao tema da mulher é o pano
de fundo de toda a trama. O poder ilusório conferido à posse da carta por cada um de seus
ladrões se relaciona à fantasia de que é possível deter o segredo sexual da Rainha. Se a
Rainha, que é a única que conhece o conteúdo da carta, esconde-a dos olhos dos homens, há
uma indicação clara de que existe algo a temer, mesmo que seja, como Lacan sugere, “a falta
do objeto”.
O famoso pudor das mulheres, muito discutido por Freud, vela alguma coisa da ordem da
vergonha de mostrar o que não se tem. Podemos nos perguntar se o índice da falta que a
Rainha tenta velar ao esconder a carta não seria exatamente aquele mesmo que demonstra que
ela, a despeito de ser uma Rainha, também é objeto de desejo de outro homem. Ou, ainda, se a
carta, representante dela mesma, não seria também o elemento mais íntimo de uma mulher,
um pedaço de seu próprio corpo, aquele dito não simbolizável pelo significante, o coração de
seu sexo, seu órgão, que agora passa de mãos em mãos, velado pelos envelopes que tentam
encobrir com um véu o conteúdo misterioso.
O tema da sexualidade feminina e a relação da dama com seu amante, o conde D..., são
encobertos pela confecção de alguns envelopes que, no decorrer da trama, degradam-se nas
mãos dos personagens, sem que seja preciso abri-los. Quando o envelope é resgatado por
Dupin, no gabinete do Ministro, ele já se encontra “esgarçado” (Lacan, 1956/1998, p. 16). O
enigma se mantém porque basta que um detalhe esteja relacionado à sexualidade feminina
para que se torne o ponto central do conto, o umbigo da carta, algo da ordem do
irrepresentável. É a simples menção ao elemento do corpo da Rainha ou ao exercício de sua
sexualidade que faz com que a carta se extravie.
O poder que a posse da carta confere a cada homem e a relação entre a carta e a posição
da Rainha diante do olhar dos homens são aspectos relevantes para nossa análise. As posições
da dama real e da carta/letra se confundem num único ponto: se, a cada vez que um homem
possui a carta/letra, há o exercício de um certo poder, o qual é perdido imediatamente depois
207

porque a carta feminiza quem a detém, fica evidente que ambas produzem uma divisão dos
homens em sua fantasia, já que eles não podem apreender a mulher completamente. A Rainha
como a carta/letra responde pelo lugar do objeto da fantasia de um homem, mas, ainda assim,
ocupa também o lugar desse S(A barrado), da ausência simbólica para designar o gozo da
mulher.
A carta chega ao seu destino porque, como significante, pode ser apreendida pela fantasia
masculina, mas, ao mesmo tempo, extravia-se quando, ao seguir seu destino significante,
feminiza a todos. Não é um detalhe que o segredo esteja ligado à vida erótica de uma mulher
e que todos os outros personagens do conto sejam do sexo masculino. Lacan nos conduz,
desde o início de sua apreciação sobre o conto, a ver ali uma ligação entre um homem, uma
mulher e o significante. A relação com a carta como significante localiza os personagens na
tábua da sexuação do conto, feminizados ou não, desdobrados por seu gozo.
Lacan fala sobre o jogo da verdade e sobre a forma como uma mulher, ao se ocultar,
oferece-se verdadeiramente aos homens. Trata-se de um jogo muito feminino de esconder a
verdade: “descubramos, pois, sua pista onde ela nos despista” (Lacan, 1956/1998, p. 24).
Como diz Dupin, o caso é tão claro e evidente que se mostra obscuro. Existe algo tão límpido
em jogo que fica difícil ver, ou seja, “há algo ofuscante no brilho da luz” e a sombra se serve
de reflexos para não largar sua presa (Lacan, 1956/1998, p. 35). A polícia procura em todos os
lugares, esquadrinhando e esgotando os espaços de busca, mas “a carta escapa” (Lacan,
1956/1998, p. 25). Como a mulher, ela se extravia da estrutura simbólica. É interessante notar
que a carta/letra escapa à procura da polícia, mesmo estando presente no campo que a contém.
Os homens elucubram nas ‘fendas ínfimas de mesquinhos abismos’, mas não a encontram.
A Rainha não pode levar a carta ao conhecimento de seu “mestre e senhor” (Lacan,
1956/1998, p. 31), o rei, sob o risco de perder sua reputação, pois o remetente da
correspondência é seu amante. A Rainha, que encarna o lugar da soberania, não pode acolher
acordos com os detentores da carta, pois isso implicaria em uma troca de favores. Entretanto,
“a posse da carta é impossível de validar publicamente como legítima” (Lacan, 1956/1998, p.
31). A mulher do Rei só pode manter o sigilo perante seu marido, o soberano, na
clandestinidade. Por um lado, a “batata quente” que a carta representava em suas mãos foi
passada à frente. Ela sabe que deixar que o Ministro roube o envelope é a única forma de
preservar seu segredo do marido, já que reconhece que todos esses homens não poderão fazer
uso do poder conferido pela carta. Ou seja, a Rainha sabe que o trunfo da carta reside em não
usá-la. “A ofensa à majestade faz se acompanhar nesse caso da mais alta traição” (Lacan,
1956/1998, p. 28).
208

Diz-se “quem a detém, e não quem a possui” (Lacan, 1956/1998, p. 32), pois a posse da
carta/letra não é menos contestável para sua destinatária do que para qualquer um em cujas
mãos possa cair. A carta sofre um desvio e tem um trajeto que lhe é próprio, traço que afirma
sua incidência de significante, já que ela deixa seu lugar para retornar a ele, circularmente.
Contudo, esse desvio pode também ser entendido como o extravio daqueles que da carta se
apoderam, já que eles se veem desdobrados por esse objeto precioso.
Lacan chega a afirmar que Freud descobriu, sem os aparatos da lingüística, que o
deslocamento significante “determina o sujeito, seus atos, seu destino, suas recusas e
cegueiras, seu sucesso e sorte, seus dons e sua posição social e que por bem ou mal segue-se o
rumo do significante” (Lacan, 1956/1998, p. 34). Nesse sentido, Lacan aponta para uma
diferença entre a posição feminina e a masculina com relação ao significante. Parece claro
que a Rainha, diferentemente de todos os outros personagens, não crê nesse semblante que é a
carta/letra. Ela, melhor que ninguém, sabe que a letra de amor chegará a seu destino, ou seja,
voltará para suas mãos, mesmo que prolongue seu trajeto por “um desvio lateral prévio”
(Lacan, 1956/1998, p. 33).
Todos os personagens masculinos têm a carta em mãos em algum momento da narrativa.
São os desvios da carta que regem a entrada de cada um dos homens que integram o ‘trio de
bufões’, para empregar a mesma expressão que Lacan usou ao se referir aos médicos amigos
de Freud no “Sonho da Injeção de Irma”40. A carta/letra, como um ‘imenso corpo de mulher’,
ocupa o lugar da Rainha e põe os homens a trabalhar em torno de algo impossível de ser
simbolizado. Resta a eles elucubrar, sem saber de fato o conteúdo.
A carta não é reclamada pela Rainha, que a possui por direito. Lacan conclui que “não
sendo ela reclamada [en souffrance] eles é que irão padecer” (Lacan, 1956/1998, p. 34). Os
homens é que se tornam reflexo da carta, pois é o sentido dela que os possui. Quando pensam
que detêm um poder qualquer, é a carta que os feminiza. Todos os personagens do conto têm
o que perder, o que de fato não parece ser o caso da Rainha. Ela não sai de sua posição de
aparente passividade. Quando os personagens tomam posse da carta − em francês, “tomar
posse” guarda o mesmo sentido que “cair em posse” − assim como um homem acredita que
tem a posse de uma mulher, é justamente aí que ela os possui, tornando-se sua verdade, seu

40
Dizemos 'trio de bufões' porque, se a leitura lacaniana encontra no trio de médicos do sonho de Freud uma
impossibilidade de responder ao que a sexualidade de Irma lhes trazia diante do corpo exposto ao saber, aqui
acontece exatamente a mesma coisa. Eles não sabem como abordar a suposta carta, que diz sobre a sexualidade
da Rainha.
209

sintoma. No “Seminário sobre ‘A carta roubada’”, o significante também está apontando


como uma referência simbólica para o feminino, mas é a partir do lugar conferido à carta e à
Rainha pela fantasia masculina que elas produzem suas sombras e o efeito de feminização.
Quando o Ministro ou Dupin estão diante da carta, que simboliza a presença da Rainha, algo
lhes escapa e se extravia.
Esse efeito de feminização pode ser encontrado em todos os personagens do conto. A
Rainha possui vários traços ou insígnias do que Lacan chama de posição essencialmente
feminina (Lacan, 1955-56/1991, p. 255). Além de fazer valer seu ser fora da lei ao trair o rei e
transgredir as leis do matrimônio, ela também demonstra o controle de não agir quando
surpreendida. Ainda em relação a seus gestos femininos: seu silêncio e o ato de esconder a
carta podem ser conectados às atitudes femininas de dissimulação, encobrimento e mesmo
pudor de revelar algo de sua sexualidade.

Porque esse signo é o da mulher uma vez que ela faz valer seu ser, fundando-o fora da lei que continua
contendo-a, por efeito das origens, em posição significante, ou até de fetiche. Para estar à altura do poder
desse signo [o da mulher], basta manter-se imóvel à sombra dele, aí encontrando de quebra, como a Rainha,
o controle do não-agir (Lacan, 1956/1998, p. 35).

A análise de Lacan da cena citada acima nos remete ao que Freud dizia sobre o elemento
pulsional e seu destino no campo do feminino: o fato de que haveria uma atividade em não
agir. Contudo, permanecer imóvel não é deixar de se inscrever pela linguagem, mas se
posicionar imaginariamente de forma feminina diante desse significante. Eis aí uma outra
maneira de atingir o alvo por metas passivas. Nesse sentido, entramos no campo daquilo que
Lacan chamou de símbolos e signos da mulher, algo abstraído do campo imaginário.
O efeito de feminização pode também ser percebido nos gestos do Ministro.
Primeiramente, com a astúcia de quem revira uma roupa pelo avesso, o Ministro vira a carta,
executando um gesto feminino de ludibrio (Lacan, 1956/1998, p. 35). Ele precisou operar
para deixar o lugar do sobrescrito livre para que, depois, ele mesmo o preenchesse com uma
“escrita feminina muito delicada” (Lacan, 1956/1998, p. 39) e fizesse, ainda, a impressão de
seu próprio sinete, cujas cores eram o vermelho da paixão e o negro de seus espelhos. Além
disso, o Ministro endereça a si mesmo uma carta que finge ser endereçada a uma mulher,
como se ele tivesse que se desviar inevitavelmente para essa posição de Outro dele mesmo.
Dupin relata que reconhece no gabinete do Ministro uma “aura de displicência que chega a
afetar uma aparência de languidez, a ostentação de um tédio próximo ao fastio em sua
210

palavras... o mais singular odor de feminina” (Lacan, 1956/1998, p. 35). Os instrumentos


musicais sobre a mesa, tudo parece arranjado para que o personagem, marcado por todos os
ditos com os traços da virilidade, exale um cheiro de mulher. O Ministro não é uma mulher,
mas faz-se parecer, exalando o odor da feminilidade. Ele arma um cenário para convencer seu
interlocutor com gestos calculados. O odor de feminina, signo da mulher, surge gestualmente
nas ações do Ministro. Em resumo, em consonância com a teorização do feminino nos anos
1950, vimos que os signos da mulher criam um parecer capaz de enganar o outro com a
mensagem de que há, ali, uma mulher.
Lacan frisa que a posição do Ministro, o herói da trama, é astuciosa, pois ele age como se
soubesse que a busca da polícia é sua defesa, e mais, que deve se valer de um engodo para
esconder a carta, deixando-a à mostra. Ele deixa o campo livre para a polícia procurar e usa
artifícios muito sutis como forma de defesa. “Ao entrar em jogo como aquele que esconde, é
do papel da Rainha que ele tem que se revestir, inclusive nos atributos da mulher e da sombra,
tão propícios ao ato de esconder” (Lacan, 1956/1998, p. 35). Os atributos da sombra e o ato
de esconder são imaginariamente vistos como signos da mulher.
A carta arrebata o Ministro, pois, para usá-la, ele não pode manter-se na inércia; ele
precisa atuar. Por outro lado, a carta o transforma cada vez mais na “imagem daquela que a
ofereceu à sua surpresa” (Lacan, 1956/1998, p. 38). A exemplo da Rainha, ele irá ceder a
carta à Dupin, numa surpresa semelhante. Assim como a Rainha o fez quando foi pega de
surpresa, lendo a carta em seu aposento, também o Ministro irá virar a carta com o sobrescrito
para cima.
É interessante notar que, ao produzir uma escrita feminina sobre a carta e endereçá-la a si
mesmo, como se fosse ele a receber as letras de amor de uma mulher, é o homem que se
coloca em posição de ser amado como objeto de amor. Nesse sentido, a carta/letra de amor
confeccionada pelo Ministro é uma ilusão forjada e endereçada a si mesmo. É por meio dessa
escrita amorosa que ele se feminiza.
O Ministro se vale de muitos artifícios para parecer despreocupado com a visita de
Dupin, mas Lacan conclui que isso não passa de um ‘falso quilate’. Todos os homens da
trama parecem lançar mão de estratégias de disfarce e dissimulação, como Dupin, que usa
óculos escuros para vasculhar o gabinete, sem que o Ministro possa ver o que ele procura. A
carta roubada se esparrama “qual um imenso corpo de mulher se esparrama no espaço do
gabinete do Ministro” (Lacan, 1956/1998, p. 40). Mas Dupin já esperava encontrar a carta
bem à vista de todos e, por isso, desnuda esse maiúsculo corpo, pois ela se oferece ao seu
olhar.
211

Dupin vai atrás da carta até onde “se abriga o que esse corpo é feito para esconder, num
belo miolo, para onde o olhar desliza” (Lacan, 1956/1998, p. 40). Ele olha para o envelope e
reconhece, ali, traços de um estranhamento qualquer, pois era paradoxalmente diferente do
que se esperava encontrar. Reconhece a carta porque algo nela se mostra contrário ao que se
esperava vir do Ministro. Ao invés de um envelope limpo e bem dobrado, próprio do
comportamento racional e obsessivo, encontra-se um papel enxovalhado e meio rasgado,
como se alguém tivesse tido a intenção de jogá-lo fora.
Após a busca pelo gabinete do Ministro, Dupin também não sai ileso do efeito
feminizante da carta/letra. Ele acha a carta onde outros não conseguiram encontrá-la. Ao
invés de esquadrinhar o gabinete do Ministro, como o fez a polícia, por uma varredura ou
esgotamento do espaço teórico, esse espaço que de fato a continha (Lacan, 1956/1998, p. 25),
Dupin faz diferente. Ele se utiliza de uma artimanha própria das mulheres, que conhecem os
segredos dos cofres e caixas41. Poe mostra a distinção entre a estratégia bem masculina de
esquadrinhar o espaço simbólico e procurar por toda a parte e a estratégia, talvez mais
feminina, de procurar o objeto no lugar mais óbvio.
Há mais um último dado relevante com relação a Dupin: ele parece exalar o mesmo odor
de feminina do Ministro quando, num ato passional, ou, como descreve Lacan, numa explosão
de paixão, é capaz de algo que não condiz com sua personalidade fria. Tomado “por uma
raiva de natureza manifestamente feminina” (Lacan, 1956/1998, p. 44), Dupin vê a carta no
gabinete do Ministro e arquiteta um desvio a mais para se apoderar dela. Não a leva embora
na hora em que a reconhece, mas retorna no dia seguinte com Outra42 carta em mãos. Ele não
perde a oportunidade de acrescentar-lhe uma perfídia a mais, diz Lacan. Dupin poderia se
apoderar da carta e sair da casa do Ministro sem deixar pistas, mas, assim como uma
verdadeira mulher o faria, precisa de um desvio suplementar. Dizemos uma mulher porque
Lacan aponta para esse gozo suplementar que se estende para além da linguagem, além do
campo significante. Dupin entra no lugar de restituir a tríade, que antes era posta pela Rainha
e pelo Ministro.
Se, por um lado, o inspetor de polícia, com toda a verdade das estratégias, situa-se no
registro masculino, por outro, o Ministro está no registro da mulher. Como diz Lacan, o

41
Freud, no texto "O tema dos três escrínios", fala sobre caixas e cofres como símbolos da mulher. No sonho de
Dora, ele interpreta que a caixa é o símbolo da vagina.
42
Outra aqui faz referência a essa Outra cena que remete o sujeito a algo da ordem pulsional.
212

Ministro, que enfrenta com desprezo a ira da Rainha, sofre a maldição do signo de que a
despojou, a ponto de precisar se metamorfosear também em mulher. O ser desse homem
encarna um signo de mulher porque, ao roubar a carta, o Ministro despoja a Rainha de seu
signo e recai sobre ele a maldição de ter que se tornar também feminino para conseguir
enganar.
Lacan conclui que a feminização pela carta/letra produz-se a partir de uma posse nefasta,
já que os personagens só podem se fiar na fantasia sobre a honra da Rainha, a quem desafiam.
Além disso, essa posse maldita se torna um problema, pois sustenta implicitamente a punição
para o crime que cometeram, ao roubar um documento dos aposentos dessa poderosa mulher.
A posse da carta os entorpece, já que dissipa o poder que eles acreditam possuir. A ilusória
detenção da carta nos remete ao objeto que o homem encontra quando interpela a mulher no
lugar de sua verdade. É aí que ele é preso na armadilha que o conduz a sua própria castração,
ao se deparar com a ausência de relação sexual.
Não fica claro porque o Ministro não faz uso do poder que tem em mãos, já que ele
poderia obter vantagens se apresentasse a carta ao Rei. Ele também poderia mover alguma
ação contra o autor da carta, mas tudo indica que se trata de outra coisa, ou seja, que a carta é
“signo de contradição e de escândalo” (Lacan, 1956/1998, p. 36). Há algo que impede o uso
da carta por todos os personagens. O poder da epístola é apenas potencial; não se pode lançar
mão dele para seus verdadeiros fins sem que ele, contudo, “desvaneça-se imediatamente”
(Lacan, 1956/1998, p. 36). A carta só serve como meio de poder pelas atribuições últimas do
significante puro: prolongar seu desvio para fazê-la chegar a quem pertence por direito,
através de uma passagem ‘suplementar’, de um extravio que é o efeito de desdobramento que
a carta produz.
É surpreendente essa análise de Lacan, pois, se a carta guarda seu potencial somente se
não for usada, corre-se o risco de que seu uso faça de seu portador um impotente. A castração
está implicada no exercício do poder conferido pela carta, como significante, aos homens que
a detêm. Nesse caso, é bem distinta a posição da Rainha diante desse objeto, já que ela não se
engana em relação a esse poder ilusório. Ela sabe que o uso da carta como significante é
limitado a uma certa dinâmica. O desvio da carta é prolongado e passa por caminhos
suplementares para, enfim, manter essa ereção significante o quanto puder. Essa definição
confirma o que queremos formalizar como a posição da mulher como a carta/letra, pois, no
encontro com o que é da ordem do significante, ela se extravia, segue uma via suplementar,
para além do poder conferido pelo falo. Não é do poder efetivo do significante que se trata,
mas do gozo que seu movimento produz.
213

O conto de Edgar Alain Poe começa e termina com a demonstração do fracasso da


relação sexual. A estratégia de dissimulação que a Rainha utiliza para enganar o marido e a
própria existência da carta/letra são provas de que a relação entre o casal rateia de alguma
forma. As últimas palavras do texto são os escritos de Dupin, cujo objetivo é encolerizar o
Ministro: “Destino tão funesto, se não é digno de Atreu é digno de Tiestes” (Lacan,
1956/1998, p. 16). Trata-se de uma referência à lenda dos irmãos Atreu e Tiestes, que
partilharam uma mesma mulher. A tragédia final ocorre porque Tiestes pretende, como
vingança, oferecer ao irmão um banquete, no qual seriam servidos os próprios filhos, frutos
da traição. Como se vê, o conto gira em torno de um ponto crucial, a sexualidade feminina,
que subjaz como pano de fundo do início ao fim da história. A sexualidade de uma mulher,
esse ponto obscuro, produz uma constelação significante que faz girar os homens e suas
elucubrações. A carta/letra, agora, ganhará um lastro a mais: além de sua função de se
deslocar como significante privilegiado entre os homens da trama, ela também produz um
efeito de feminização.

7.2 - A Letra: um efeito de feminização

“A mulher, insisto, essa que não existe, é justamente a letra − a letra como
significante de que não há Outro, S(de A barrado)”. (Lacan, 1971/2009, p. 102).

A relação entre o conceito de Letra e a noção de feminino pode nos ajudar a compreender
a tese sobre o extravio de uma verdadeira mulher. Há significativas distinções entre o
conceito de letra de “O Seminário sobre 'A Carta Roubada'” (1956) e de “Lição sobre
Lituraterra” (1971), de modo que podemos dizer que a figura da mulher como Letra será
formalizada de duas maneiras distintas: nos anos 1950, a mulher e a letra são significantes
coordenados por uma função de semblante; nos anos 1970, elas não são mais pensadas
somente pelo campo simbólico, mas ultrapassam esse limite para contemplar o elemento de
gozo em jogo. Se, em 1956, Lacan leu a letra pelo crivo do simbólico, no ano de 1971, ele não
tomou mais a estrutura como única base para compreender o desenvolvimento da pulsão na
sexualidade feminina. A letra surge, nesse momento, como litoral, fazendo limite entre dois
campos heterogêneos. O que está em jogo nos anos 1970 é um elemento pulsional da ordem
de uma memória de gozo; a noção de letra acolherá um gozo que irrompe dos semblantes. Em
214

suma, podemos dizer que a carta/letra, inicialmente entendida como efeito do significante
puro, passa a ser compreendida como a letra que feminiza, reportada ao elemento Real, ligado
ao gozo.
No final do ensino de Lacan, a figura feminina, assim como a letra, encarna a função de
uma “borda do furo no saber” (Lacan, 1971/2009, p. 109), já que ilustra como a letra possui
um efeito de feminização capaz de denotar um gozo que irrompe da própria cadeia
significante. A função da letra e a posição da mulher são comandadas por esse efeito da
linguagem que as contém, não sem convocar um Outro lugar, litorâneo, entre saber e verdade,
significante e gozo. A afinidade entre esses dois elementos nos leva a entender que a mulher,
assim como a letra, é uma das últimas figuras femininas do ensino de Lacan a apontar para o
que ele chamou de ‘um extravio’ em relação ao simbólico, já que suas posições excedem o
lugar do saber e interpelam o Real. Nesse sentido, será que podemos indagar, através da
figura da Rainha, qual seria o lugar do extravio ou mesmo do gozo que extrapola o falo?
No Seminário, livro 18, ao retomar a questão da letra em “Lição sobre Lituraterra”,
Lacan convoca “O Seminário sobre 'A Carta Roubada'” para reafirmar o efeito de
feminização que transporta a mulher para o lugar da carta/letra. Como um corpo de mulher, a
carta se desloca, envolvida por seu envelope significante, assim como acontece com o objeto
feminino, que se torna uma moeda de troca entre os homens na linhagem simbólica.
Entretanto, essa carta, que é um significante, ao desviar-se das mãos dos homens e feminizá-
los, revela como o extravio é um dos destinos possíveis da carta/letra.
Abordaremos a noção de letra em dois momentos do ensino e Lacan − 1956 e 1971 −
para reconhecer, a partir do que Lacan localiza como a borda que se ergue em torno do furo
no saber, o extravio feminino. É no lugar de bordejar o que quer que seja dessa falta,
reconhecida no interior do próprio campo do saber, que a carta/letra aparece como uma
consequência de a linguagem produzir também efeitos de feminização. Entendemos esse
efeito de feminização como uma consequência contingente da incidência do significante sobre
o sujeito. Nesse sentido, uma mulher pode se desdobrar entre um gozo que inscreve a
castração e um Outro gozo, feminino.
A premissa lacaniana de que o inconsciente é estruturado como linguagem é interrogada
anos mais tarde pelo próprio Lacan. A teoria do significante do falo como central para a
constituição de todo sujeito levará Lacan a concluir que, em relação à sexualidade feminina,
algo se dava de forma muito diferente: “Não há simbolização do sexo da mulher como tal”
(Lacan, 1955-56/1991, p. 201). Logo, Lacan relativiza a importância do campo simbólico na
apreensão da sexualidade feminina, pois percebe que algo escapa à nomeação da mulher. Fato
215

é que, anos depois, em 1971, ao apresentar a mulher como letra, ele reafirma que o objeto da
psicanálise escancara os limites da estrutura, na medida em que o inconsciente é alimentado
pela cadeia significante, mas produz lacunas em seu interior.
Pretendemos mostrar que, mesmo em “O Seminário sobre 'A Carta Roubada'”, Lacan dá
indícios de que a Rainha e a carta produzem o efeito de feminização que não pode ser
completamente explicado pelo falo. A noção do feminino ligado à letra viria a se formalizar
anos mais tarde, em “Lição sobre Lituraterra”, quando Lacan designa a letra como litoral
entre dois campos heterogêneos. A inscrição da letra entre dois territórios diferentes parece
formalizar o extravio do feminino, já que o texto se refere ao extravio da carta como um
destino frente aos que a detêm.
Há três pontos relevantes no conto de Poe que nos permitem compreender porque Lacan,
nos anos 1970, atribui à mulher a qualidade de letra e como essa posição formaliza o
elemento de extravio, formulado em 1950. São eles: o extravio da carta/letra, a ideia da
Rainha como portadora do signo da mulher e o efeito de feminização da carta/letra sobre os
que a detêm.
No Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante, Lacan desaloja a
carta/letra do lugar de significante puro e passa a interpelá-la a partir da teoria dos discursos,
que estabelece uma conexão entre a estrutura da linguagem e a inscrição da pulsão, em
particular, do gozo presente nas operações simbólicas. Esse gozo feminino está inscrito na
função da letra e mostra os limites entre dois campos que se encostam, mas não se
confundem: o simbólico e o Real. O litoral que a letra faz é também um limite, uma noção da
ordem do litoral, e não da fronteira, por demarcar territórios de natureza distinta. No conto de
Poe, o que mais se destaca é o efeito de ilusão que a carta produz em seus detentores, ou seja,
“o efeito de feminização” (Lacan, 1971/2009, p. 107).
Um dos aspectos que justifica o extravio de uma mulher na relação com o lugar da letra
pode ser vislumbrado no retorno de Lacan aos seus comentários sobre “O Seminário sobre 'A
Carta Roubada'”. É nessa virada teórica que ele não mais afirma que a letra é o significante,
mas um efeito do significante. O inconsciente que é um efeito de linguagem comanda essa
função da letra (Lacan, 1971/2009, p. 110). O extravio da mulher é também comandado pelo
significante, pois passa primeiramente pelo simbólico para depois se extraviar. No conto, há
uma articulação entre dois campos heterogêneos, o do simbólico, com seus efeitos de
significação, e o do real, mais afeito à inscrição do gozo que ultrapassa a referência fálica.
Seguindo o argumento de que a carta estaria no litoral entre o saber e o gozo, poderíamos
pensar na procura pela carta e no fato de ela ser encontrada onde menos se espera. Sabemos
216

que a polícia procura exaustivamente pela carta e, entretanto, não a encontra. Eis a maneira
como Lacan retoma esse espaço significante, que aloja e localiza um sujeito entre dois
significantes. Esse campo será repensado não mais como espaço necessário, mas contingente,
pois a carta não está onde deveria estar. Embora ela produza um efeito significante, “a
presença de uma ausência”, aparece algo de outra dimensão que não a simbólica. É por
romper um semblante que se evoca o gozo presente ali na circulação da carta entre os
personagens. Em outras palavras, como Lacan descreve, todos os sujeitos ali se vêem
divididos pelo conteúdo da carta, sobre o qual nada se sabe. “O sujeito é dividido pela
linguagem, mas um de seus registros pode satisfazer-se com referência à escrita, e o outro
com o exercício da fala” (Lacan, 1971/2009, p. 117).
Existe uma ligação direta com o tema do feminino, pois depois de uma tentativa de
esquadrinhamento do espaço teórico sobre o Édipo nos anos 1950, vislumbramos a mulher se
extraviar para um Outro lugar, para além da representação simbólica. “Trata-se, pois de tornar
sensível como a transmissão de uma carta/letra se relaciona com algo que é essencial,
fundamental na organização do discurso, seja ele qual for, isto é, com o gozo” (Lacan,
1971/2009, p. 121).
Os desvios que a carta sofre até chegar a seu destino produzem um efeito em quem a
detém, um efeito que Lacan chama de feminização (Lacan, 1971/2009, p. 107). Éric Laurent
comenta em “A Carta Roubada e o voo sobre a letra” (2010) que nem “os sentidos do conto,
nem os efeitos de significação ou o próprio relato, tudo o que se diz do conto, nada disso dá
conta da posição de gozo, do enigma da feminização induzida pela carta” (Laurent, 2010, p.
70). Isso faz com que ele distinga bem uma carta/letra do significante-mestre, pois ela apenas
o carrega em seu envelope, e a mensagem se transmite como um passe de mágica. A ideia de
uma carta que chega a seu destino, sem, contudo, fazer uso do seu conteúdo, mostra como Poe
aborda o significante desvelando o seu fracasso, o furo do discurso.
A letra, a carta é o litoral a ser fundado nesse literal, o que pode ser lido pelo simbólico.
Ela é uma inscrição entre dois registros, mas é diferente da fronteira, pois ela configura dois
territórios distintos. “Não é a letra propriamente o litoral? A borda do furo no saber que a
psicanálise designa justamente ao abordá-lo, não é isso que a letra desenha? (Lacan,
1971/2009, p. 109). A mulher no lugar da letra vem demonstrar exatamente que quando o
feminino é interpelado pela psicanálise produz-se um furo, uma lacuna nesse saber.
Entretanto, o inconsciente que é uma estrutura produzida por esse efeito da linguagem,
comanda a função da letra. A letra nos escritos de 1971 surge depois do significante, pois se
sedimenta a partir dele, arrancando do significante, da metáfora e da metonímia, uma forma
217

de inscrição da pulsão. “O que escrevi com a ajuda de letras sobre as formações do


inconsciente não autoriza a fazer da letra um significante, a lhe atribuir uma primazia em
relação ao significante” (Lacan, 1971/2009, p. 110). A letra é produzida como consequência
do significante e do fato de a linguagem habitar todo aquele que fala. O sujeito do
inconsciente é determinado por essa carta/letra que o alcança, apesar de não compreender
nada do seu sentido e de ser passível de sofrer todos os enganos que ela é susceptível de
produzir. Nesse sentido, dizer que uma carta, mesmo extraviada chega sempre a seu destino,
indica as vicissitudes do sujeito diante de um objeto do qual verdadeiramente ele não pode
apoderar-se. Isto, no entanto, não o impede de inventar modos de lidar com esse real que está
em jogo na presença da carta e da Rainha quando estas nos escapam.
Há um reflexo que permanece causa do escoamento significante e nesse lugar sedimenta-
se a letra. Entre centro e ausência, entre saber e gozo há o litoral que se torna literal, a letra. O
semblante e o significante se rompem e deles surge algo que se precipita em forma de letra.
Nessa ruptura e na consequente precipitação da letra dissipa-se um gozo: “Pois bem o que se
evoca do gozo ao romper um semblante é isso que no real se apresenta como ravinamento das
águas” (Lacan, 1971/2009, p. 114). Nesse caso, ele conclui que na escrita, a ruptura do
significante inscreve um elemento de real.
É possível perceber como a estrutura de ficção do conto localiza uma questão em relação
ao que se mostra e pode ser apreendido e o que se esconde na sombra. A luz que produz a
sombra pode ser interpelada a partir do tema da verdade. “Ora ainda que ela tivesse um efeito
eficaz no que criava opacidade, a luz como tal, projeta uma sombra, e é essa sombra que surte
efeito. É por isso que sempre temos de interrogar essa verdade ela mesma, na sua estrutura de
ficção” (Lacan, 1971/2009, p. 125). É preciso formular algumas questões com relação ao
conto. O que quer essa mulher, a Rainha? Qual é a verdade que ela revela em relação à sua
posição no conto e em relação ao Rei? Qual a natureza dessa carta que parece fazer ratear a
relação conjugal? Na trama é possível responder a essas perguntas partindo da ideia de que a
Rainha é uma verdadeira mulher, no sentido de que sua posição é enigmática e divide a todos
os personagens.
A Rainha é a mulher como cônjuge do rei e, nesse sentido, faz valer o seu ser fundando o
fora da lei que continua contendo-a por efeito das origens em posição de significante ou até de
fetiche.

Não é insignificante destacar a carta/letra numa certa relação da mulher com o que se inscreve na lei escrita
no contexto em que a coisa se situa pelo fato de ela ser na condição de Rainha a imagem da mulher como
218

cônjuge do rei. Aqui há alguma coisa impropriamente simbolizada tipicamente em torno da relação com o
sexual (Lacan, 1971/2009, p. 123).

Na relação da Rainha com o rei a carta/letra assume a função de mostrar essa estrutura de
ficção da verdade e a impossibilidade da relação sexual. De certa forma, o fato do segredo da
Rainha escapar aos homens faz com que ela se mantenha numa posição que nos interpela.
Segundo Lacan, “é somente a partir de ser uma mulher que ela pode instituir-se no que é
inscritível por não sê-lo, isto é, por permanecer hiante em relação ao que acontece com a
relação sexual” (Lacan, 1971/2009, p. 133).
Perante a ordem significante que a circulação da carta/letra institui todos ali permanecem
divididos, pois a missiva é um significante que representa o sujeito perante um outro
significante. Ou seja, ela representa a Rainha e sua sexualidade. O conteúdo da carta denota
exatamente que a mulher do rei tem algo a esconder em relação a sua vida sexual. Aí o sujeito
surge dividido entre dois significantes, tal como a Rainha que está entre aquilo que a carta
significa para ela como letra de amor de um amante e a sua relação com o marido, o rei. A
carta recebida por ela apresenta algo que excede sua posição simbólica, enquanto mulher do
rei. Sua posição apresenta a existência de um excesso que evoca numa outra dimensão o
clandestino (letter/litter) de uma memória de gozo.
O conto deixa ver que há ali um conteúdo latente e um manifesto. O latente se encontra
nas últimas frases da história quando Poe lança mão de um mito trágico para ilustrar um fim
para sua trama. Na lenda mitológica uma família é aniquilada, os filhos são mortos em nome
da traição de uma mulher, amada por dois irmãos. Vejamos que o conto termina com uma
cena trágica produzida em torno das relações de uma mulher com os homens e na constatação
do fracasso dessa empreitada. A figura da Rainha nos mostra um desdobramento importante,
que fica também subentendido. Se por um lado o rei a chama de Rainha, e assim ela é
nomeada pelas relações simbólicas, é de mulher que o amante, escritor da carta, a chama, ao
sobrescrever seu nome próprio no envelope.
A prova do desdobramento da mulher no lugar da letra é que ela se nomeia como Rainha
na ligação com o rei, mas por outro lado, se desdobra quando é renomeada pelos envelopes
confeccionados pelos outros personagens da trama. Nessa constante confecção do envelopes,
seu nome de mulher mostra-se inassimilável, já que cada um cria uma roupagem nova para
enganar o olhar do outro. Vejam que é no lugar de mulher que a Rainha se desdobra, pois
como objeto do amor clandestino de um homem as obrigações reais e políticas ficam
219

ameaçadas. A lei é transgredida e nesse sentido, a sexualidade feminina se mostra como um


dos problemas centrais do conto de Poe.
Ainda podemos nos perguntar em relação à interpelação do conto de Edgar Allan Poe se
a carta/letra não era uma analogia do que se apresentou para a clínica psicanalítica como o
órgão não simbolizado pelo inconsciente? Quando Lacan nos conta que a carta se encontrava
entre as pernas da lareira, ou quando ele nos diz que ela era um maiúsculo corpo de mulher,
há uma alusão direta ao corpo feminino ou ao órgão sexual:

Vejam! Entre as ombreiras [jambages] da lareira, eis o objeto ao alcance da mão, que o arrebatador só
precisa pegar… A questão de saber se ele a apanha sobre o abrigo, manteau, como traduz Baudelaire, ou
sob o abrigo da lareira [sous le manteau de la cheminée]. (Lacan, 1956/1998, p. 40).

Seria uma mera coincidência que o envelope tenha sido um objeto tão relevante no
conto? Essa dobradura de papel, um drapeado que faz a função de invaginar-se e esconder43
uma mensagem que revelará, talvez, segundo a fantasia dos personagens “as trevas invioladas
de um gozo feminino” (Lacan, 1960/1998, p. 737), do gozo da mulher que é a Rainha?
Além desse elemento que parece fazer alusão direta à sexualidade feminina, nossa
hipótese busca no efeito de feminização essa espécie de extravio que pode ser demonstrado
pelos efeitos produzidos nos personagens pela carta/letra, essa que é também o signo da
sexualidade da Rainha ou, mais do que isso, a metáfora do órgão sexual oferecido ao amante.
Sabe-se que o feminino pode se desdobrar para um campo sem simbolização e esse fato
parece surgir ali, sutilmente, em diversos momentos na forma de um excesso dos gestos dos
personagens.
Poderíamos destacar entre eles, a ira de Dupin, a languidez do Ministro e o
desarvoramento do Inspetor de polícia quando procura pelo detetive. Sabe-se que esses afetos
e estados de alma quando nomeados de femininos nos mostram a relação entre a posição da
mulher na cultura e não podem ser qualidades ligadas à natureza da mulher senão nesse
contexto imaginário, ou seja, em sua reação com o que é visto como signos da mulher.

43
É interessante lembrar que Freud faz uma curiosa interpretação sobre os objetos cuja simbologia no sonho
remetem à conteúdos preciosos e escondidos, a saber, as caixas e os cofres. “Se aquilo em que estamos
interessados fosse um sonho, ocorrer-nos-ia em seguida que os escrínios são também mulheres, símbolos do que
é essencial na mulher, e, portanto, da própria mulher - como arcas, cofres, caixas, cestos (Freud, 1913, p. 368).
220

Talvez possamos afirmar que há um extravio na posição da Rainha. Se o extravio é esse


desdobramento para um campo fora do simbólico, existe em jogo nos gestos dessa mulher
algo que nos certifica de que ela produz um enigma em torno de sua posição: desdobrada
entre a ideia que todos os personagens fazem dela e a obscuridade de seu desejo feminino
pelo amante. O fato de Lacan referir-se à mulher como letra, e dizer que há um efeito
feminizante da carta, pode nos levar a uma pergunta: a posição de enigma da Rainha, que
mantém “a simulação do controle de não agir” (Lacan, 1956/1998, p. 35), perante o perigo
que a carta poderia representar para sua reputação, não produz sobre o trio do conto, seus
súditos, uma divisão, uma feminização causada pela sombra enigmática do gozo extraviado
de uma mulher ? Em resumo, isso que não se explica sobre o gozo da mulher do rei, não
estaria encarnado nessa função do envelope que corre o conto envolvendo um enigma sobre a
mulher? Não o envelope ou a carta enquanto significante, mas como uma Letra que delimita
um campo desse gozo feminino que se extravia.

7.3 - O Não-todo: um gozo fora do campo simbólico

“A mulher se define por uma posição que apontei com o não-todo no que se
refere ao gozo fálico (Lacan, 1972-73/1985, p. 15).

Neste momento da tese, pretendemos tratar do conceito de não-todo para mostrar como
ele formaliza a especificidade da posição sexuada da mulher em relação ao gozo. Em 1971,
no Seminário: de um discurso que não fosse do semblante, Lacan escreve fórmulas que
lembram operações matemáticas para representar a função fálica e a forma como a mulher se
posiciona diante disso. É nesse contexto que Lacan introduz o conceito de não-todo para
definir e caracterizar a feminilidade. Em textos como “O aturdito” (1972), “Televisão” (1973)
e nos artigos do Seminário 20: mais, ainda (1972-1973) Lacan abordou a diferença entre os
sexos por um viés lógico, e não anatômico. As noções de gozo e verdade aparecem, então,
como possibilidades para delimitar o campo espinhoso da sexualidade feminina e um gozo
fora do simbólico.
221

Na versão francesa do Seminário, livro 20: mais ainda, Lacan utiliza o termo dédoubler
para especificar a “essência” 44 do gozo feminino. As edições francesa e espanhola do
Seminário, bem como o Índex Référentiel de Henry Krutzen, confirmam que Lacan utilizou a
palavra desdobrar para se referir ao gozo feminino nas tábuas da sexuação. No Seminário 20,
a frase de Lacan, no original, é : “Rien ne peut se dire de la femme. La femme a rapport à
S( ) et c'est en cela déjà qu'elle se dédouble, qu’elle n’est pas toute, puisque, d’autre part,
elle peut avoir rapport avec Ф” (Lacan, 1972-73/1975, p. 75). Na tradução em português, o
termo escolhido foi divisão. A mulher se divide. Entretanto, a tradução portuguesa não nos
parece fiel à forma como o gozo feminino é ilustrado no quadro das fórmulas da sexuação. O
desdobramento está inscrito nas tábuas da sexuação por duas setas que partem da posição
feminina (A barrado) em direção ao falo (Ф), e no sentido da falta do significante no Outro,
S(de A barrado).
O termo desdobramento do gozo delimita uma posição lógica para a feminilidade, já que
a mulher é duplamente tomada por seu gozo: por um gozo fálico e, ao mesmo tempo, por um
gozo Outro, para além do falo. Essa ideia já havia sido lançada anos antes, quando Lacan
teorizou sobre a contiguidade do gozo.
Lacan se refere ao desdobrar da mulher quando teoriza sobre seu encontro com o gozo
fálico. Essa é a formalização do extravio feminino que, ao se desdobrar em um gozo Outro,
revela o que há a mais nessa posição. O lugar desse Outro gozo representaria aquilo com o
que a mulher fundamentalmente teria relação (Lacan, 1972-73/1985, p. 98). Nessa operação,
que parece formalizar o extravio, a posição da mulher é marcada por um desdobramento entre
dois campos que se entrecruzam: “É assim que ela mostrará ser uma suplência desse não-todo
sobre o qual repousa o gozo da mulher. Para esse gozo que ela é não-toda, quer dizer que a
faz em algum lugar ausente de si mesma” (Lacan, 1972-73/1985, p. 49). Essa ausência de si
mesma da qual fala Lacan pode ser o efeito da operação de extravio, uma vez que é numa
Outra via, que excede as fronteiras do simbólico, que uma mulher pode se tornar Outro para
ela mesma.
O quadro abaixo mostra as fórmulas da sexuação e permite visualizar a escrita lógica do
elemento extraviado e sua formalização através do desdobramento feminino. Do lado direito

44
Sabemos que é preciso cautela ao usar o termo essência para descrever a sexualidade feminina. Contudo, é o
próprio Lacan quem emprega esse significante, ao se referir à mulher e à sua relação com o falo: “Não há A
mulher, pois, por sua essência, ela não é toda”. (Lacan, 1972-73/1985, p. 98, grifos nossos).
222

da tábua, vemos duas setas que partem de L e que indicam o mecanismo próprio da posição
feminina que Lacan chamou de “desdobrar-se”. Encontra-se, aí, a escritura da posição da
sexualidade feminina segundo a divisão do sujeito: tanto na relação direta com aquilo que, no
Outro, é um significante privilegiado, o significante fálico, quanto na relação direta com algo
de pulsional.

Figura 1: Quadro da tábua da sexuação.

Fonte: Lacan, 1972-1973/1985, p. 73.

Lacan apresenta a mulher como extraviada em relação ao falo em diversos momentos.


Veremos como se passa esse desdobramento, ou esse extravio, como efeito do encontro
contingente com o significante, com o pai, com o homem e com sua própria alteridade. O
extravio em relação a si mesma pode ser constatado em alguns momentos precisos;
apresentaremos dois deles a seguir.
Lacan sugere que a existência de uma mulher aparece sempre entre duas posições: “Entre
uma pura ausência e uma pura sensibilidade” (Lacan, 1960/1998, p. 742). Essa frase se
encontra nos Escritos e refere-se às elaborações do psicanalista no texto “Diretrizes para um
congresso sobre a sexualidade feminina”, quando ele afirma mais uma forma de
desdobramento, já que a mulher é um ser tomado “por uma dialética muito sutil” (Lacan,
1960/1998, p. 571). A existência de uma mulher, segundo Lacan, poderia se dar, portanto,
entre o pai morto, lugar encarnado por uma pura ausência, e o espaço de um gozo, lugar da
pura sensibilidade. Nesse sentido, a mulher ficaria dividida entre a castração e o campo da
pulsão.
Mesmo que haja a possibilidade de uma inscrição da sexualidade pela ordem simbólica, a
mulher pode se desviar. Como vimos, em 1958, Lacan sugere que o falo não drena tudo o que
há de pulsional na mulher. Podemos constatar a importância do efeito de desdobramento ou
223

de extravio para as teorizações sobre o feminino em alguns autores. Catherine Millot


apresenta, no livro Nobodaddy, uma explanação sobre esse desdobramento:

A vertente feminina, aquela que é não toda, L ( ) MULHER, está dividida em seu desejo, bem como em
seu gozo. Ela visa ao falo como atributo de seu parceiro, mas a outra direção de seu desejo se orienta em
direção ao S ( ), que pode ser lido aqui como a ausência de que ela goza. Assim, a mulher “se entrepõe”
de ser “entre centro e ausência” entre “o gozo fálico e o lugar vago do impossível gozo do Outro” que não é
menos gozo por ser gozo ausente. Pois é ali que ela encontra este outro gozo não fálico que constitui o gozo
suplementar que lhe cabe (Millot, 1989, p. 78).

Além da divisão própria de todo sujeito que habita a linguagem, a mulher também
contempla uma operação de desdobramento do gozo. Ela se extravia e se desdobra em relação
a seu gozo, pois existe, em certa medida, uma ausência que a localiza numa resposta ambígua,
entre o gozo possível sexualizado e fálico, e um Outro gozo suplementar, não simbolizado
pela linguagem. O livro O que quer uma mulher?, de Serge André, também traz algumas
elaborações sobre o extravio feminino, quando o autor aborda o trajeto da menina pelo Édipo
como desdobramento, e não como deslocamentos significantes:

Qualquer que seja o ângulo sob o qual se aborde o trajeto que a menina deve percorrer, do ponto de vista da
troca de objeto, ou da mudança de identificação, de zona genital ou de modo de gozo, chega-se sempre à
conclusão de que essas mudanças atuam menos como substituições do que como desdobramentos. (André,
1998, p. 187).

No livro, Variáveis do fim de análise, Colette Soler parece afirmar algo importante sobre
o extravio da mulher. É claro que a mulher participa de uma divisão própria do desejo, mas
existe para ela uma partição suplementar em relação ao gozo:

Quer dizer que há nas mulheres uma duplicação da divisão da falta de ser, ou antes, uma partição
suplementar. Podemos entender como uma partição interna, é dizer que a divisão própria do sujeito, entre
dois significantes, é acrescida, para as mulheres, da divisão entre dois gozos: o gozo fálico que ela também
divide sob formas diversas e o gozo Outro. (Soler, 1991, p. 5).

Os termos extravio e desdobramento, utilizados por Lacan em 1958 e em 1972-73,


respectivamente, demonstram, denominam, recobrem e metaforizam o que resta de
insondável também na própria teorização sobre a sexualidade feminina. Acreditamos que eles
são termos que inscrevem esse real feminino por um impasse da formalização, pois
224

demonstram que não há uma absorção completa do elemento que resta para a mulher como
inapreensível pela metáfora paterna.
O fato de a mulher se desdobrar ou se extraviar em relação à estrutura simbólica
oferecida pelo Édipo não é uma constatação recente. Desde Freud, reconhecíamos a posição
da mulher dividida entre duas zonas erógenas, dois objetos de amor, duas posições. Freud
descrevia um deslocamento de um lugar ao outro, demonstrando o desdobramento pulsional
que mantinha em contiguidade posições distintas.
Anos antes do Seminário mais, ainda, em O Seminário, livro 10: a angústia, Lacan
qualifica a mulher como um ser sujeito às particularidades de seu próprio gozo: “O desejo da
mulher é ditado pela questão, também para ela, de seu gozo. Que do gozo ela não apenas está
muito mais perto que o homem, mas duplamente dominada por ele, é o que a teoria analítica
nos diz desde sempre” (Lacan, 1962-63/2005, p. 289). Isto é, a posição feminina esteve
sempre dividida, não só pela questão do desejo, mas também em relação ao gozo, pelo qual a
mulher é duplamente dominada. A inexifstência do significante que diga o que é A mulher
produz diversas formas de extravio, como pudemos constatar ao longo dos casos e das figuras
apresentadas.
Até agora, falamos do extravio da mulher em relação a ela mesma, mas ainda existe outra
forma de se extraviar: no encontro com o homem. Como diria Lacan, “na dialética
falocêntrica, ela, a mulher, representa o Outro absoluto” (Lacan, 1960/1998, p. 741), porque
encarna uma alteridade tão radical que se torna sempre o Outro sexo, causando um efeito de
divisão em si mesma, bem como no homem. Ou seja, a mulher produz e recebe o efeito de sua
própria alteridade: “O homem serve aqui de conector para que a mulher se torne esse Outro
para ela mesma, como o é para ele” (Lacan, 1960/1998, p. 741). Quando Lacan fala sobre
esse outro que a mulher é para ela mesma e para o homem, ele está se referindo ao fato de ela
não estar completamente sujeita ao falo, e, por isso, ser sempre esse objeto que escapa à
ordem do significante, portadora de um gozo para além da linguagem, o gozo Outro.
Vimos o extravio operar no caso de Antígona e Ysé de forma radical, no flerte de ambas
com a morte. O extravio pode produzir desde operações como a histeria de Dora e a
homossexualidade da Jovem analisada por Freud, até movimentos mais radicais, que levam
uma mulher ao pior. Em todas essas mulheres, os dois gozos se conjugam: “O desejo da
mulher é ditado pela questão também para ela de seu gozo” (Lacan, 1962-1963/2005, p. 289).
Para detalhar essa forma de gozo que excede a estrutura fálica, vamos apresentar a figura de
Santa Teresa de Ávila.
225

7.4 - A Mística: um arrebatamento em nome de Deus

“A mística, é algo de sério, sobre o qual nos informam algumas pessoas, e mais
frequentemente as mulheres. Eles entreveem, eles experimentam a ideia de haver
um gozo que esteja mais além. É isso que chamamos, os místicos” (Lacan, 1972-
73/1985, p. 102).

No Seminário, livro 20: mais, ainda, Lacan tece um comentário sobre a figura da mística
– encarnada por Teresa de Ávila – para falar sobre o gozo que excede o falo e se aproxima do
que ele chama de um gozo Outro, feminino. A figura dessa mulher religiosa é exemplar para
ilustrar a questão pulsional feminina e a relação da mulher com o extravio que pode ser o
efeito do encontro da mulher com o falo ou com seus representantes.
Teresa de Ávila foi uma religiosa que parece ter encarnado para o discurso de seu tempo
o lugar de um arrebatamento místico experimentado por poucos devotos. Essa mulher foi
escolhida por Lacan para exemplificar o efeito que o gozo feminino pode produzir, tendo em
vista o desdobramento entre o discurso simbólico e religioso e o espaço localizado mais além
da linguagem, rumo ao arrebatamento que se produz no encontro sublime com o nome de
Deus. Essa mulher nos mostra um campo forjado por aquilo que Lacan chama de “uma
dialética sutil” entre uma pura ausência do pai morto e castrado, e uma pura sensibilidade,
espaço do gozo transcendente que se experimenta na ligação com o nome de Deus.
Conhecida como Santa Teresa de Ávila, Teresa de Jesus era espanhola. Nascida em 1515,
Teresa foi devota numa época em que a igreja católica sofria os efeitos do movimento da
Contra Reforma. Teresa fazia parte da ordem religiosa das Carmelitas e, segundo suas
memórias, tinha sido uma adolescente bela e sedutora que havia passado por diversas
tentações de ordem sexual, como uma mulher comum, até que o caminho da religião a
arrebatara de forma radical. Lacan chega a dizer que Teresa era um bom exemplo de mulher
sedutora: “o tipo de mulher voluptuosa e rude, cujo mais nobre exemplo nos é fornecido pela
figura de Santa Teresa D’Ávila” (Lacan, 1972-73/1985, p. 222).
Tornou-se muito conhecida entre os católicos devido à escrita de alguns livros
autobiográficos, entre eles, O livro da vida (1562) e Castelo interior (1577). Os escritos
tinham a função de transmissão de suas experiências místicas através de parcerias que criava
com leitores escolhidos para serem testemunhas de suas memórias religiosas. Entre essas
226

testemunhas silenciosas de sua escrita mística, Teresa havia escolhido São João da Cruz e
Pedro d’Alcântara. O lugar da testemunha sustentava para a religiosa o espaço da escrita
como transmissão de um saber que circula na ordem simbólica, na ordem do falo. Essa
mulher, como afirma Gerard Pommier, no livro A exceção feminina (1987), se resignava a
passar pelos homens para transmitir sua experiência. Haja vista que ela sempre procurou os
homens para se endereçar: “O feminino encontra sua expressão por alguém interposto. O
fascínio que representa seu gozo infinito exige uma transcrição” (Pommier, 1987, p. 73).
Na escultura que ilustra a capa do Seminário, mais ainda, Santa Teresa, “a mulher
voluptuosa”, parece gozar por debaixo das vestes que o escultor Gian Lorenzo Bernini 45
entalhou de forma magistral. Ali podemos ver o quanto a mística expõe um gozo cruelmente.
Na escultura de Bernini, a santa encontra um gozo no corpo, en corps. Partes do corpo de
Teresa aparecem, aqui e acolá, pelas bordas da veste, e se fazem notar nos limites da túnica
drapeada. A trama do tecido lhe empresta certa contenção do gozo, mas não é suficiente como
borda para circunscrevê-lo. Pedaços de carne saltam pelos limites do pano, como lascas de
mármore extirpadas, fatias de matéria extraviada do corpo da santa. Corpo esse fragmentado
do qual só vemos os detalhes: um pé, uma mão, alguns dedos retesados que escapam à
ancoragem simbólica do tecido.
No Seminário mais, ainda, Lacan concedeu um lugar de destaque à figura da mulher
mística para ilustrar a questão feminina. O gozo de Teresa seria a forma mais nítida de
mostrar o desligamento em relação ao falo e, nesse caso, a figura de Deus substitui o parceiro
amoroso em sua função de conector para que a mulher atinja esse Outro gozo. Portanto,
recorremos à Santa Teresa de Ávila para pensar a figura feminina na década de 70 e
demonstrar a ligação da mulher com esse campo fora da linguagem, campo nomeado por ela
de Deus: “É na medida em que seu gozo é radicalmente outro que a mulher tem mais relação
com Deus” (Lacan, 1973-72/1985, p. 111). É exatamente porque esse Outro gozo se localiza
fora dos muros da linguagem que Lacan procurou nos místicos o testemunho disso que se
parecia com o arrebatamento pulsional, sem significado.
O Seminário mais, ainda é dedicado à questão feminina e, mais precisamente, à forma

45
Gian Bernini foi um eminente artista do barroco italiano. Em 1644, foi convidado pela família Cornaro para
confeccionar uma peça de mármore com a representação do êxtase místico de Santa Teresa que ocuparia um
lugar central dentro do teatro da capela barroca de Cornaro, na igreja de Santa Maria da Vitória. Antes de
produzir a escultura, o artista leu as memórias escritas pela santa para esculpir exatamente o momento de seu
arrebatamento (Bernini, 2000, p. 65).
227

como o gozo feminino se apresenta na relação com a linguagem. A mulher experimenta um


gozo sobre o qual nada sabe (Lacan, 1973-72/1985, p. 103), ou seja, um gozo não passível de
simbolização pela palavra. No caso de Santa Teresa, vemos que a apreensão desse elemento
pulsional se apresenta em dois campos distintos, já que a figura da mística lida com a
presença dupla de um cristo morto e castrado e um Deus eterno e onipotente. O gozo
encontra-se no corpo de uma mulher que extrai de Deus a causa de seu arrebatamento,
experiência que causa estranheza no espectador. Bernini soube captar com agudeza esse
desregramento pulsional nas entrelinhas dos escritos deixados pela santa que testemunhavam
sua comunhão com o irrepresentável da figura de Deus.
O gozo dos místicos é um paroxismo dentro da própria igreja católica, todavia revela, no
cerne da economia pulsional de um sujeito, uma relação muito particular com a linguagem
religiosa e com a crença num ser supremo. A vida dos místicos é exemplo da verdade que o
cristianismo pretendia disseminar. “A experiência mística parece dizer respeito, sobretudo, às
mulheres e, sem dúvida, isso não é apenas porque a feminilidade pode encontrar ali uma
expressão que, nessa época, lhes era de outro modo negada” (Pommier, 1987, p. 75). O amor
que une a mística a Deus revela muito do gozo próprio do feminino que poderia ganhar outros
contornos como, por exemplo, o gozo na histeria. Além disso, esse gozo transcendente nos
revela algo a mais, algo que excede as fronteiras da linguagem nas quais o gozo fálico se
configura.
Segundo Julia Kristeva, em A paixão segundo Santa Teresa (2009), a ideia do sentimento
místico se traduz pelo amor absoluto por um pai ideal, sem faltas. Teresa ama o pai, porque
acredita ser amada por ele e, por ser amada, existe enquanto mulher de Deus. Para a mística, o
pai do Édipo conserva de forma deslocada o seu lugar na figura de um Deus deserotizado que
possibilita a palavra do amor (Kristeva, 2009, p. 2). A proximidade entre a mística e o gozo
feminino resulta da inacessibilidade a esse Pai divino. Para aceder à feminilidade, uma mulher
abandona a mãe e direciona seu afeto ao pai. Entretanto, esse homem é o representante da
castração, já que produz uma interdição ao gozo que ele mesmo evoca. Amá-lo traz um
dilema instransponível, pois o desejo sexual está direcionado a um homem que é sempre
inacessível. Pommier acrescenta que essa inacessibilidade permite precisar a articulação entre
gozo feminino e o élan místico. O amor ao pai, sublimado na figura de Deus, perde a
conotação sexual e se transforma num amor bem sucedido, e não mais proibido. A mulher se
livra da relação incestuosa com o pai e se liga ao significante Deus.
O sentimento divino que afeta os místicos explicita uma experiência que escapa à
linguagem e resiste à transmissão. Eles experimentam algo, mas não sabem dizer o que
228

sentem. “O laço místico, todavia, jamais foi suprimido da sociedade dos homens, e de sua
Igreja, por mais que tenha quase sempre permanecido marginal, suspeito e contestado”
(Pommier, 1987, p. 64). Na relação da mística com Deus apreendemos algo sobre a mulher e
o desregramento da sexualidade feminina, já que essa figura elucida como o gozo feminino
está para além do homem, escapa à sua medida, ainda que o falo permaneça sendo um objeto
de apoio, de onde um pai inacessível é desejado sem apelo sexual. Além disso, a mística nos
apresenta a relação marginal da mulher com a figura de Deus, já que revela – de maneira
exacerbada e erotizada – uma forma bem tolerada da sexualidade feminina manifestando-se
no seio do discurso religioso dessa época.
A idealização intensa de Deus produzida pela experiência mística não se mantém em
estado puro, mas numa posição extima, de exclusão interna, o que viria denunciar esse êx-tase
que ultrapassa o sujeito na relação com o divino. A mulher mística não cessa de re-sexualizar
essa idealização em sua crença: “o gozo feminino encerra um desespero, uma ausência
irremediável tão aguda que as palavras não podem situar” (Pommier, 1987, p. 72). A
excitação que alimenta a ideia da comunhão com Deus ultrapassa certos limites quantitativos
e acaba por erotizar a própria ideia. O amor extremo pelo pai idealizado, juntamente com a
ideia sexualizada da comunhão com o divino, produz uma violência pulsional sem freios, uma
espécie de arrebatamento. Em seu comentário sobre Teresa, Julia Kristeva afirma que a santa
teria um traço de uma perversão masoquista, por se infligir penitências que a conduziam a
uma fragilidade corporal intensa e a um adoecimento constante.
Pela crença inabalável, essa mulher se faz bater pelo pai amoroso, sustentando o
sacrifício em nome da humanidade como o cristo morto na cruz. O misticismo renova o laço
em que a fé é posta à prova numa relação de martírio em nome de Deus, devido a um
sofrimento intenso que é também fonte de júbilo. Por isso e por outros motivos, o gozo
místico permanece obscuro e incompreensível – por flertar com um afeto que se apresenta
paradoxalmente dividido entre dor e contentamento. Teresa descreve esse lançar-se para longe
de si mesma:

Acresce o desejo de maneira que a meu parecer a intensidade da dor tira alguma vezes os sentidos. Parecem
transes de morte, mas traz consigo um tão grande contentamento este padecer que não sei a que o
comparar. É duro martírio saboroso (...) embora seja do que lhe costuma dar mais prazer – logo parece
lança-lo para longe de si (Ávila, 1562/2010, p. 125).

A partir da teoria lacaniana e suas discussões sobre a feminilidade, podemos dizer que, na
229

medida em que não está toda ocupada com o gozo fálico, nem completamente causada pelo
objeto da fantasia de um homem, a mulher acessa esse gozo Outro através de parceiros como
um homem, outra mulher e o próprio Deus. Nesse caso, o que Lacan havia nomeado de um
extravio da mulher talvez possa ser exemplificado pela figura da mística, já que ela reedita o
enigma sobre a sexualidade feminina e a ligação da mulher com esse campo de um gozo no
Real.
A relação de Santa Teresa com a palavra nos mostra a existência de um gozo que excede
a linguagem, mas que é extraído de dentro dela mesma, “espécie de eternidade da palavra se
torna objeto principal do desejo” (Kristeva, 2009, p. 4). A confissão dos místicos, na forma de
testemunhos escritos e falados, é a prova de que experimentam algo precioso e de difícil
transmissão, pois se apóia em um nome que escapa às regras da linguagem. O élan místico se
sustenta na ideia de que não há pontos transmissíveis e somente o nome de Deus pode
responder por todas as sensações estranhas do corpo do religioso. “Deus é assim o nome de
empréstimo da ausência do Nome, recobre o furo dos símbolos liguajeiros, incapazes de se
definir por si mesmos” (Pommier, 1987, p. 65). Logo, a ausência de significante para a
mulher pode ser respondida por meio da forte ligação com o nome de Deus.
Além disso, é preciso ressaltar que, se o corpo da santa é tomado por um afeto que a
transforma em puro objeto do gozo de Deus, ao mesmo tempo, Teresa também se apresenta
como sujeito na cena em que se entrega como mulher a um homem não castrado. Teresa
mostra que existe uma lucidez própria na ligação com o divino. “O momento extático, o vazio
do Nome, o gozo ao qual ele se atira o corpo, estão unidos ao afluxo de vocabulários e sua
construção num amor racional” (Pommier, 1897, p. 65). Há uma descarga pulsional que
encontra lugar dentro mesmo do código católico.
Para ser compreendida, Teresa produz uma ficção em torno da relação com Deus, como
escreve no livro Caminho de perfeição (1566). Deus está além, mas também dentro dela, já
que em sua comunhão os dois são apenas um. Há uma polaridade entre arrebatamento e
lucidez no gozo que ela experimenta. Santa Teresa sabia bem o que estava fazendo dentro da
igreja. Percebemos isso na leitura de suas memórias, quando ela ressalta a ideologia que a
sustentava, dizendo que somente as mulheres poderiam ir contra a hierarquia da igreja.
Vemos nitidamente que, mesmo tendo sido uma das cervas de Deus, arrebatada por um
sentimento que a ultrapassava, Teresa foi uma figura polêmica dentro da instituição religiosa.
Segundo a leitura de Lacan, a santa experimenta um gozo do corpo decorrente da posição
feminina que pode ser alcançada, contingencialmente, no encontro com um elemento do
discurso. Entretanto, não chega até esse lugar sem um percurso. Teresa passa por toda
230

simbologia e imagem do que seria Deus para o discurso religioso até chegar a esse Outro
campo, por uma contingência. Se nada se sabe desse gozo Outro, Santa Teresa, por sua vez,
sabe muito bem falar de seu Deus e de sua crença no amor divino.
A possibilidade de algo do significante marcar o corpo está implicada nessa noção de
gozo descrita por Lacan. O corpo de Santa Teresa é bordejado também por algo do
significante que se materializa no discurso religioso e no nome de Deus. “Essa mostra de um
corpo martirizado descobre o gozo que o anima” (Pommier, 1987, p. 66). Entretanto, partindo
desse elemento significante, a santa alcança este Outro lugar, que não é mais solidário da
estrutura significante, já que se despe da própria ordem fálica em todos os seus pormenores,
abrindo mão do simbólico, em parte, para alcançar o que fica além da significação.
Esse sentimento ardente, pelo qual Teresa se vê capturada, não é somente algo que
queima a superfície do corpo, como ela relata, mas que a atravessa, perfurando,
fragmentando, dilacerando a alma. “É que parece que aquela pena – embora a sinta a alma – é
em companhia do corpo ambos parecem participar dela, mas não com o extremo do
desamparo desta” (Ávila, 1562/2010, p. 123). É desse ardor e desse atravessamento que a
santa nos fala quando busca descrever seu encontro com o divino. “A carne sofre porque
advém ao lugar de um vazio. Nome dos Nomes, furo que não é nome algum, Deus eleva a sua
altura um corpo talvez martirizado, mas que espera igualar-se a vacância divina na proporção
do seu sofrimento” (Pommier, 1987, p. 66).
Para ilustrar a lógica do não-todo no caso da mística, lançamos mão do termo arrebatamento
que supõe um êxtase – principal testemunho das místicas em relação a esse gozo aniquilador.
Na língua portuguesa, o arrebatamento significa: “Tirar com violência ou força, arrancar, levar,
depreender de um ímpeto, raptar, impelir, conduzir, encantar, enlevar, extasiar, levar à ira, à
cólera, conquistar, ganhar, provocar, suscitar, extasiar-se, encantar-se, maravilhar-se.
Transportar em êxtase místico, religioso” (Ferreira, 1999, p. 137). Em resumo, a maioria dos
sinônimos para o termo arrebatamento ou arrebatar no sentido místico revelam essa espécie de
excesso ligado a uma ação. A própria santa descreve o arrebatamento como uma espécie de voo
do espírito ou rapto. Curiosamente, ela usa a alegoria das nuvens que colhem os vapores da
terra para falar sobre essa sensação de elevação da alma.

Arrombamento ou rapto ou o que chamam voo de espírito ou arrebatamento. Digo que estes diferentes
nomes são tudo uma e mesma coisa e também se chama êxtase. O senhor colhe e levanta a alma (...) a
maneira como as nuvens colhem os vapores da terra. Assim Deus levanta a alma toda, eleva-a consigo
(Ávila, 1562/2010, p. 121).
231

O termo arrebatamento, que pode significar êxtase religioso, foi também descrito por
Jacques Alain Miller no seminário Os usos do lapso (1999) como um termo introduzido no final
do século XII para exprimir a ação de tirar à força, o que hoje significa raptar, remover. Miller
conclui que o arrebatamento é uma forma de êxtase no qual a alma se sente tomada por Deus,
como por força superior, à qual não se pode resistir. Eis o relato do momento exato desse
arrebatamento descrito por Santa Teresa no Livro da Vida (1562):

Nesta visão quis o Senhor que o visse assim: não era grande, mas pequeno, formoso em extremo, o rosto tão
incendiado que parecia dos anjos o mais sublime... Deve ser daqueles que se chamam de querubins, que os
nomes não nos dizem mas bem vejo que no Céu há tanta diferença de uns anjos a outros e destes outros a
outros , que não o saberia dizer. Via-lhes nas mãos um dardo de oiro comprido e, no fim da ponta de ferro,
me parecia que tinha um pouco de fogo. Pareciam-me meter-me esse pelo coração algumas vezes e que me
chegava às entranhas. Ao tira-lo dir-se-ia que as levava consigo e me deixava toda abrasada em grande amor
de Deus. Era tão intensa a dor que me fazia dar aqueles queixumes e tão excessiva a suavidade que me
causava está grandíssima dor que não se pode desejar que se tire nem a alma se contenta com menos que
com Deus. Não é dor corporal mas espiritual, embora o corpo não deixe de ter a sua parte e até muita. É um
requebro tão suave que tem entre si a alma e Deus, que suplica à Sua bondade o dê a gostar a quem pensar
que minto (Ávila, 1562/2010, p. 195).

O arrebatamento de Teresa é o testemunho de uma experiência da qual quase nada se sabe,


que aproxima essa mulher do gozo que as mulheres dizem experimentar, mas não podem
descrever. “Há um gozo dela, sobre o qual talvez ela mesma não saiba nada a não ser que o
experimenta – isso ela sabe” (Lacan, 1972-73/1985, p. 100). Lacan ainda acrescenta que elas
sabem quando isso lhes acontece, mas que não acontece a todas elas. O êxtase da santa surge
quando, numa fusão com a figura imaginada de Deus, ela se extravia para um Outro lugar, fora
do sentido, sem significações, em direção a um gozo que Lacan chama de “a mais” (Lacan,
1972-73/1985, p. 100). Esse extravio que, no caso da mística, é vislumbrado pela vivência do
êxtase, aparece nessa presença maciça do Outro enquanto total, alheio à castração. Nenhum pai
responde e o sofrimento do corpo é o eco dessa ausência. “O sofrimento é sua presença, gozo
do puro significante da ausência, em cujo fogo o corpo se submete à transverberação”
(Pommier, 1987, p. 66). A transverberação é o nome desse gozo mais além. O Nome de Deus é
um significante por excelência. Não apenas porque se define em relação a si mesmo, mas
também porque não remete a nada que se possa imaginar ou a nenhum ser que possa sucumbir à
castração.
232

Lacan denomina a experiência da santa de "jaculações místicas" (Lacan, 1972-73/1985, p.


103). Nesse sentimento o apagamento do eu aparece em uma suposta ausência do gozo fálico,
desaparecido depois da irrupção desse Outro gozo que nos coloca, segundo Lacan, na “via da ex-
istência” (Lacan, 1972-73/1985, p. 103). É por perder as referências, a exceção de Deus, que o
êxtase místico escapa ao saber. Em resumo, o apelo ao nome divino evoca o gozo sem limite da
mulher. A ex-istência é a figura desse abrasamento que transporta o ser para fora de si mesmo,
como se estivesse vivendo alheio à experiência que o contém. Lacan afirma que a face de Deus
suporta esse gozo feminino, sem barreiras, porque é nesse encontro que a mulher se dirige à falta
significante S(A barrado). “Parece que a alma não está em si, senão no telhado ou teto de si
mesma e de tudo quanto é criado, porque até acima da parte muito superior da alma, me parece
que ela está” (Ávila, 1562/2010, p. 124).

O casamento, a comunhão com o inesgotável nada de Deus não confunde apenas o corpo. Ele acarreta a perda
do Nome. Semelhante nisso à perda exigida pelo gozo da mulher, a união mística goza com esse apagamento
particular do corpo, que começa no próprio ponto em que o significante falta. (Pommier, 1987, p. 67).

Teresa experimenta um êxtase que é um sentir-se para além de. O estado que atinge é a
sensação de um gozo que se deixa despir por inteiro das amarras simbólicas, presentes em torno
da ideia de Deus. Entretanto, a figura desse todo poderoso é suportada pela cadeia significante de
um discurso e só faz sentido unir-se a Deus de forma arrebatada, porque sua ausência e sua
presença estão amparadas por uma série de qualidades sensíveis. Lacan diz que, nesse caso, é
apenas ‘suposto’ que o gozo fálico fica ausente. Acreditamos que para sustentar nossa hipótese
de que existe o extravio de um elemento de gozo em Santa Teresa, é preciso reconhecer,
sobretudo, que ela se sente para além de algo, porque há um anteparo, um limite imposto pela
própria linguagem. Se a santa goza para além da referência religiosa é porque, simbolicamente,
ela se liga a algum aspecto do discurso, o que lhe possibilita ir alhures.
Se existe um cenário no qual o gozo coloniza voluptuosamente toda a cena, revelando uma
forma de existência fora da esfera significante, no corpo, a presença marcante desses momentos
de arrebatamento nos testemunhos de Teresa, nos leva a pensar que ela retira sua paixão de uma
ideologia cristã. Desta forma, dali de onde só se avista transbordamento pulsional, pode advir
algo que barra esse desgarramento. Se a cena de arrebatamento é vista como ausência de relação
do sujeito com o significante do falo, podemos perguntar se essa ausência é completa.
O contraste da vivência mística se passa entre o corpo, en corps, e o discurso, ou seja, entre
o significante e a ausência de um nome para A mulher. No momento de seu êxtase a mística
233

parece gozar como mulher, eis a questão que denuncia esse elemento de extravio em relação ao
discurso religioso e à leitura que fazemos hoje dessa imagem de Bernine e dos livros de Santa
Teresa. Os escritos em que descreve seu sentimento diante de Deus são inegavelmente
envolvidos por uma aura sensual. As representações desse gozo místico, propostas pelos artistas
que leram as confissões de Santa Teresa, sublinham esse laço do sofrimento com uma espécie de
prazer paradoxal. Contudo, Lacan reforça que, embora haja uma tendência a associar a
experiência mística a uma questão sexual, não é disso que se trata. “O que se tentava no fim do
século passado, no tempo de Freud, o que eles procuravam (...) era carregar a mística para as
questões de foda. Se vocês olharem de perto, de modo algum não é isso” (Lacan, 1972-73/1985,
p. 103).
Lacan acrescenta: “É como para Santa Teresa – basta que vocês vão olhar em Roma a
estátua de Bernini para compreenderem logo que ela está gozando, não há dúvida. E do que é
que ela goza?” (Lacan, 1972-73/1985, p. 103). Não se sabe do que essa mulher goza, mas
trata-se de perceber como ela goza a partir do significante, desdobrando-se e estendendo essa
experiência com o corpo para além do que se oferece no simbólico. Nesse caso, todo o
discurso religioso e a própria instituição das Carmelitas, da qual ela fazia parte a ancoram no
regime significante. É somente através de toda trama simbólica que envolve o arrebatamento
religioso que Teresa obtém essa espécie de gozo feminino que a transporta para a via de um
extravio, de um mais além.

Meu Deus que me parece que Vos vejo e me vejo desta sorte! Oh regalo dos anjos, que toda eu quando Vos
vejo me quereria desfazer em amar-Vos!... É um sono das potências em que nem de todo se perdem nem
entendem como operam. O gosto, suavidade e deleite são sem comparação... é como alguém que está com a
vela na mão, por lhe faltar pouco para morrer da morte que deseja. Está gozando naquela agonia com o
maior deleite que se pode dizer... estar gozando de Deus... é um glorioso desatino, uma celestial loucura... e
é deleitosíssima maneira de a alma gozar (Ávila, 1562/2010, p. 96).

No livro Castelo interior (1577), Teresa descreve diversos caminhos que a conduziram a
um gozo que a atravessava. Cada um dos patamares que evoca para chegar ao gozo supremo
demonstra como ela está abrasada por um sentimento e à mercê do anjo e de sua flecha.
Teresa ultrapassa o mundo agitado do desejo e chega a uma serenidade sem igual. Por fim, se
vê identificada a esse Outro, em relação ao qual antes era só objeto. É nesse momento que a
mística é penetrada pela palavra de Deus, graças a uma passividade que exige resignação e
paciência. Essa aparente passividade é um ato e é isso que aqui distingue a mística de um
despedaçamento na psicose. Ela é ativamente passiva diante de Deus.
234

Santa Teresa foi escolhida por demonstrar de forma muito ilustrativa algo que ultrapassa
a fixação à castração e se extravia conduzindo algumas mulheres a um gozo suplementar.
Essa proximidade de Deus significa um apagamento do corpo e nesse caso a mística conjuga
gozo e aniquilamento. Esse gozo do corpo, não localizável em nenhum ponto específico,
encontra no amor a Deus uma forma de escoamento. O apelo à questão religiosa e ao nome de
Deus acontece porque a falta de um significante que localiza a mulher dá o tom desse vínculo
radical. É interessante notar que, mesmo tendo se esquivado da vida amorosa e do casamento,
Teresa de Ávila se deparou com uma erotização através de um gozo que não se localiza senão
através desse extravio, num lugar que se dirige a Deus ou a S(de A barrado). Ela atinge um
gozo por procuração, nessa conexão com o nome de um homem não castrado. Ao se encontrar
de fato com essa figura total, que pode ser ao mesmo tempo tudo e nada, algo nela se extravia.
A ideia de Deus transcende uma existência sensível, por isso a comunhão com seu nome
é uma união com o nada, com a presença maciça de uma ausência. Se por um lado, a ideia de
um Deus onipotente, onipresente e onisciente é carregada de um sentido muito pleno, por
outro, tudo é nada, Deus está em toda parte e em parte alguma. Lá onde Antígona acredita que
foi abandonada à própria sorte, nas palavras de Lacan, “pai porque me abandonaste”, Santa
Teresa encontra um homem que não falha. Sua alma parece obter um bem em segundo plano
quando, ao evocar esse amor a Deus, essa se desdobra para uma ausência, S(de A barrado).
Diversos aspectos fazem pensar nessa ligação entre a mística e o gozo da mulher, descrito
por Lacan como êxtimo. O gozo feminino, que transporta a mística para fora da via fálica, é
uma maneira de demonstrar a proposição que vem sendo interrogada em toda a tese sobre o
extravio de uma verdadeira mulher. Isso, pois a mística tem uma posição específica diante
desse Outro que permite a ela um acesso ao gozo feminino. “Resgatar tal relação permite
precisar através do mais além do sexo que implica a relação com deus, aquilo que o gozo da
mulher deve ao significante, até mesmo quando ela parece se afastar dele” (Pommier, 1987, p.
71). Santa Teresa se extravia porque experimenta um gozo do corpo ao se oferecer como
objeto dessa vacância de Deus.
É por meio do discurso religioso e pela ordem significante que representa que a santa vai
além do falo. “É na medida em que seu gozo é radicalmente Outro que a mulher tem mais
relação com Deus do que tudo que se pode dizer na especulação antiga” (Lacan, 1972-
73/1985, p. 111). Essa relação da mística com Deus, em que contempla essa beatitude de sua
própria dissolução carnal, introduz uma analogia ao gozo feminino, pois, por estar perdida na
fantasia de um homem ou no que ela imagina que Deus gostaria, encontra, na própria perda, o
gozo de um corpo que se torna estranho a ela mesma. É nesse sentido que, através da conexão
235

com Deus, ela se torna Outro para si mesma.


Se, por um lado, a religião faz um sentido, suprindo a ausência da relação sexual
simbolicamente e imaginariamente, é através da adoração de um Deus que não está
diretamente ligado à fé cristã, como afirma Lacan – pois se apresenta como um homem não
castrado – que Santa Teresa encontra uma passagem para o gozo Outro. A seta é dupla,
porque, por um lado, ela se liga a Deus que está no lugar desse significante que falta S(A
barrado) e, por outro, se liga ao discurso da religião, ao Ф.
Na entoação das preces e na comunhão com Deus, Teresa de Ávila lança mão dos
mantras religiosos para atingir um lugar além dos muros da própria linguagem. É importante
saber que ela se extravia através de um ponto no interior da linguagem para, de forma
contingente, alcançar esse Outro lugar. Teresa é uma mulher entre Jesus, o homem castrado e
humano, e Deus, aquele que encarna a face do gozo feminino. Há um desdobramento, ao qual
Lacan faz referência no Seminário 20 quando diz que, em relação a seu gozo, “ela se
desdobra” (1972-73/1985). É importante marcar esse lugar duplo, porque pode parecer que a
mística chega a um Outro gozo, sem, contudo, passar pela linguagem. Entretanto, “a
verdadeira mulher” é aquela que recolhe os efeitos de um extravio contingente nessa
ultrapassagem do limite da linguagem.
A figura da Mística, na face da mulher religiosa, revela o elemento pulsional extraviado
do falo, na direção do Outro gozo, esse que contempla a face de Deus, na afirmação de Lacan.
“Esse gozo que se experimenta e do qual nada se sabe, não é ele que nos coloca na via da ex-
istência? E porque não interpretar a face do Outro, a face de Deus como suportando o gozo
feminino? (Lacan, 1972-73/1985, p. 102). É curioso pensar que essa passagem guarda uma
relação com a proposição sobre o extravio, pois, ao usar a expressão “via da ex-istência”,
Lacan sugere que há uma existência que transcende a questão com o falo, assim como
também podemos pensar que o extra-vio é um lugar que conduz uma mulher a essa via da ex-
istência fora do significante.
As místicas como Teresa de Ávila estão do lado não-todo das fórmulas da sexuação,
porque experimentam um gozo para além do falo ao se dirigir para o Real, o S(de A barrado),
elemento que aponta para o furo presente na linguagem. “Esse gozo suplementar, estranho e
enigmático, tem na figura da mística um exemplo dessa vivência suplementar um gozo dela,
desse ela, que não existe e não significa nada. Há um gozo dela, sobre o qual talvez ela
mesma não saiba nada a não ser que o experimenta” (Lacan, 1972-73/1985, p. 100). Esse não
saber aponta para a existência do elemento de extravio próprio da mulher.
A mulher será arrancada pela via da linguagem de seu próprio eu e experimentará uma
236

ex-istência, um lugar fora do corpo, enquanto santa. O A é barrado por nós, é certo. Isto não quer dizer
que basta barrá-lo para que nada mais dele exista. Se com esse S( ) eu não designo outra coisa senão o gozo da
mulher é certamente porque é ali que eu aponto que Deus ainda não fez sua retirada. (Lacan, 1972-73/1985, p.
113).
Teresa está ligada a Deus porque há nessa relação uma dupla resposta: esse homem que
encarna a figura de Deus não decepciona, já que não é castrado; além disso, o amor da mística
é uma resposta à suplência da ausência da relação sexual. Quando se ama a alma não há sexo
na transação, esse é o efeito do amor, afirma Lacan. Parece que a santa produz no amor por
Deus uma transa sem sexo, já que esse pai permanece inacessível. Essa ligação com Deus é
plenamente bem sucedida, pois está além do sexo. “A proximidade entre a mística e o gozo
feminino resulta da inacessibilidade do pai” (Pommier, 1991, p. 71).
É por meio desse amor imaculado que Teresa perde seu nome de mulher e passa a ocupar
uma posição em que não é mais sujeito, mas objeto do amor divino. A ideia de abandonar os
bens fálicos e os prazeres carnais faz com que o sujeito místico seja conduzido a um universo
de interminável contentamento com a infinitude. A sensação de que se une a Deus não é nada
mais do que aquele sentimento que Freud descreve de união com o ilimitável, o “sentimento
oceânico”, uma sensação de infinito, de união com o todo, que conduz o sujeito a um gozo
que parece não contemplar a operação de castração no momento do êxtase. Por outro lado, as
purgações e os sacrifícios a que se submete são uma castração infligida ao corpo do desejo.
Esse Deus, escolhido por Teresa para ser um parceiro amoroso, faz sua função na
fantasia, pois ele é uma figura do amor, não conhece o ódio, como acreditam os cristãos. “De
sorte que podemos dizer que, quanto mais o homem se possa prestar para a mulher à confusão
com Deus quer dizer aquilo de que ela goza, menos ele odeia e menos ele é” (Lacan, 1972-
73/1985, p. 120). De certa forma, esse Deus é um esvaziamento, significante que perde a
função porque é um furo no discurso. A questão do amor está ligada ao saber, pois o cristão
transforma amor a Deus numa marca sublime da verdade. O gozo místico pode ser recortado
pela linguagem, embora seja sentido pelo corpo e, como tal, se coloque como indizível. O
corpo sofre esse vazio e o gozo que advém daí é a presença dessa ausência do significante. A
presença de Deus convoca o apagamento do sujeito e o êxtase se apresenta como uma mescla
entre contentamento e sofrimento. Evoca-se algo para além do verbo e faz-se com que essa
opacidade do corpo se veja ao mesmo tempo entre sacrifícios e júbilo. O nome de Deus como
resposta não é o lugar do nome do pai castrado da lei humana, mas de uma ausência maciça
que viria a se transformar numa presença total de respostas.
Não por acaso, no Seminário mais, ainda, Lacan fala sobre o amor e apresenta a forma
237

como esse sentimento vem em suplência da relação sexual que não existe. Através de seus
relatos, sabemos que, por influência de sua mãe, Santa Teresa lia os chamados livros da
Cavalaria. Nessas histórias, Teresa via-se aliada à figura masculina do cavaleiro, que
encarnava a perfeição, justamente com os valores do amor cortês. O cavaleiro era um homem
forte e destemido, capaz de dedicar um amor devotado a uma Dama escolhida. A história de
Teresa de Ávila no Livro da vida (1562) revela que ela descendia de uma família temente a
Deus, em contraste com a figura da mãe que se apegava às leituras proibidas da Ordem da
Cavalaria. “Porque com ter tanta a minha mãe como disse de bom não tomei muito, nem
quase nada, e o mal causou-me muito dano. Ela era afeiçoada a livros de cavalaria (Ávila,
1562/2010, p. 13). Teresa conta que, por influência da mãe, gastava horas do dia e da noite
em vão exercício de leituras proibidas. Escondida do pai, vivia embebida nesses romances em
que o amor entre um homem e uma mulher não era visto como uma virtude, mas como um
dano.
Em resumo, Teresa foi uma menina que se dividiu entre a lei do pai e os desejos secretos
da mãe. Na adolescência se volta para os livros de relatos de mártires religiosos e abandona os
romances. No lugar de se tornar a dama do amor de um cavaleiro, ela se transforma na mulher
de Deus. Segundo Lacan (1972-1973), o amor vem em suplência da ausência da relação
sexual, ao mesmo tempo em que, entre o homem e a mulher ele põe um certo Outro, que
“tinha mesmo o ar de ser o velho bom Deus de sempre” (Lacan, 1972-73/1985, p. 93). Não é
nenhuma surpresa que no lugar do encontro impossível e temido com um homem, a moça
tenha localizado a figura de Deus, com o qual gozava como se estivesse com um homem de
carne e osso.
A relação de Teresa de Ávila com Deus se torna tão intensa que ela empreende em nome
de sua fé maus tratos ao próprio corpo, sofrimentos e jejuns tão radicais que permanece
doente por muitos anos. Ela acreditava, segundo seus relatos autobiográficos, que todo esse
sofrimento poderia levá-la a Deus mais rapidamente. Essa aparente passividade mística
denuncia como Teresa se colocava como objeto do gozo de Deus para obter um ganho
secundário. “Assim nem se sabe dizer nem creio que o acreditará quem não houver passado
por isso porque não é comunicação para consolar senão para mostrar a razão que a alma tem
de se afligir por estar ausente do Bem que em Si possui todos os bens” (Ávila, 1562/2010, p.
124). O divino penetra nesse corpo que recebe as jaculações místicas, a fim de obter uma
salvação maior. É a sujeição que permite o acesso a esse Outro gozo, já que servir a Deus é
tomado como uma transgressão dos limites da dor e do desconforto. Todas essas penitências
levam Teresa a desmaios, vômitos, palpitações que a fazem aceder ao limite do corpo, a um
238

gozo descrito como um destino, uma loucura:

Prestes a ter a morte que deseja, fluindo naquela agonia com o maior prazer que se pode imaginar. Nesse
estado a alma não sabe o que fazer: se fala, se fica em silêncio, se ri ou se chora. È um glorioso desatino,
uma loucura celestial, onde se aprende a verdadeira sabedoria, sendo para a alma uma maneira deliciosa de
se regozijar. (Ávila, 1562/2010, p. 132).

No Seminário, livro 20: mais, ainda, Lacan reafirma essa ligação do gozo feminino com
algo a mais: “Creio no gozo da mulher, no que ele é a mais, com a condição de que esse a
mais vocês lhe coloquem um anteparo” (Lacan, 1972-73/1985, p. 103). Por mais que
acreditemos no gozo feminino e na relação de Santa Teresa com essa experiência, ainda assim
a recomendação de Lacan é clara: o gozo da mulher é a mais, mas é preciso que lhe
coloquemos um anteparo. Esse gozo que os místicos corporificam só existe se houver um
limite que é, em todo caso, o anteparo produzido pelo gozo fálico. Por isso, o operador não-
todo só é possível se houver a barra sobre a função do quantificador 'todo' e o elemento de
extravio só irrompe se houver uma ligação com o campo simbólico. Mas qual seria para Santa
Teresa ou para seu gozo, o anteparo? A partir de que anteparo se percebe o extravio que é
testemunhado como um gozo a mais, no corpo?
Apesar da crença de que o gozo Outro é sentido sem que o sujeito o possa descrever,
como se fosse impossível o testemunho simbólico de uma experiência que parece não receber
a barra do significante, acredita-se que mesmo nesses casos não há como prescindir dessa
presença fálica do desejo e da linguagem em alguma medida. É essa hipótese que sustenta a
idéia do extravio da mística, pois mesmo que o abrasamento divino pareça surgir de uma
abertura ilimitada ao gozo feminino, o testemunho dessa experiência em que o sujeito é seu
próprio corpo revela que há inegavelmente a presença de toda uma malha significante que
sustenta a experiência mística46.
A união mística é profundamente ditada por esse elemento pulsional disruptivo do

46
Nesse sentido, estamos sugerindo que a experiência mística de Teresa de Ávila estava amparada pelo contexto
em que ela viveu, ou seja, por todo o discurso religioso construído pelo movimento da Contra Reforma (1545).
Nesse período histórico, houve uma resposta da igreja católica ao protestantismo através do reavivamento dos
ritos, das missões e dos preceitos da igreja católica. No momento em que Santa Teresa descreve sua experiência
com Deus, a história da igreja estava sofrendo uma ruptura discursiva. Esse é um dado muito relevante para
nossa análise, pois a ideia de uma religião forte, cujos fiéis se entregavam de corpo e alma a seus martírios, em
nome de um Deus total, fazem da experiência mística de Teresa um ato político amparado e alimentado por toda
uma malha discursiva.
239

feminino, pois o ser que a evoca, Deus, vai conduzir a mulher a um encontro com o que lhe
falta. Nesse sentido, a mística irá erguer um Pai totêmico diante da ausência e da impotência
do pai castrado, “a mística situa a figura de Deus onde o pai castrado não responde, nessa
falha do simbólico. Ao abrigo do pai morto se espalha o sonho místico de um Outro gozo,
feminilidade verdadeira, na medida em que se desprende desse pai a quem se reúne”
(Pommier, 197l, p. 76). Entretanto, ao lado de Deus existem os escritos, o testemunho de uma
fé e a ligação com a ordem religiosa. Todos esses elementos mostram que a experiência
mística de Teresa é um dos destinos possíveis que uma mulher pode dar ao gozo feminino que
comporta esse elemento que se extravia.
240

8. CONCLUSÃO

“Se me fosse permitido dar-lhe uma imagem, eu a tomaria facilmente daquilo


que, na natureza, mais parece aproximar-se dessa redução às dimensões de
superfície que a escrita exige, - esse trabalho de texto que sai do ventre da
aranha, sua teia. Função verdadeiramente milagrosa, ao se ver, da superfície
mesma surgindo de um ponto opaco desse ser estranho, desenhar-se o traços
desses escritos, onde perceber os limites, os pontos de impasse, os becos sem
saída, que mostram o real acedendo ao simbólico.” (Lacan, 1972-73/1985, p.
126).

Sigmund Freud deixou um mistério a ser desvendado como resto de suas elaborações
sobre a sexualidade feminina: como uma menina, de natureza bissexual, atinge a verdadeira
feminilidade? Encontrou uma resposta que lhe parecia a saída universal para as mulheres: a
maternidade. Contudo, deixou claro seu embaraço com relação ao campo da feminilidade:
“Mais do que qualquer outro faz jus ao interesse. Através da história, as pessoas têm quebrado
a cabeça com o enigma da natureza da feminilidade” (Freud, 1932-33/1996, p. 114). Em um
de seus últimos textos ele sugeriu que a feminilidade era o grande enigma do sexo.
Lacan tentou responder à questão sobre os destinos pulsionais femininos na análise do
complexo de Édipo no ano de 1958, no Seminário: as formações do inconsciente. Dissertou
sobre as consequências psíquicas da castração para a mulher e propôs uma chave de leitura
para a feminilidade, a partir da interrogação sobre a relação da sexualidade feminina com o
falo: “Toda verdadeira feminilidade tem uma dimensão de álibi” e “Toda verdadeira mulher
tem algo de meio extraviado” (Lacan, 1957-58/1999, p. 202).
Os relatos teóricos das figuras femininas abordadas por Lacan ressaltam o fato de a
posição feminina contemplar um gozo para além do Édipo, para além do valor fálico. Lacan
apresenta como “essência” (1973-72) do feminino a irrupção de um elemento que se desgarra
do campo simbólico. Nos anos 1950, a pergunta sobre o Édipo é respondida com outra
questão: a mediação fálica drena tudo o que há de pulsional em uma mulher? Dora, Irma e a
Jovem Homossexual são testemunhas de que a resposta a essa pergunta é negativa. Há algo de
refratário à apreensão simbólica no gozo feminino.
Nas elaborações lacanianas dos anos 1960, o gozo não é atingido senão na forma de um
excesso. Há algo que permanece para além do princípio do prazer, em direção à morte e ao
aniquilamento. Ysé, Antígona, Medéia e Madeleine provam o empuxo em direção à
transgressão de um limite. Nos anos 1970, Lacan formaliza esse excedente pulsional por meio
241

de um operador lógico, o conceito de não-todo, que circunscreve o elemento feminino


extraviado em relação à lei da castração. O gozo é tomado como um suplemento à medida
fálica e a mulher passa a ocupar uma posição extima em relação à lei que a contém. As
figuras da mulher Não-toda e da mulher como Letra mostram como Lacan tentou formalizar
logicamente o gozo feminino por meio de matemas e letras, a fim de esclarecer que há todo
um campo, o da sexualidade feminina, que permanece em certo sentido em aberto. Logo,
contadas uma a uma, todas essas figuras apresentam-se como um semi-dizer da verdade, ou
seja, desdobradas entre um gozo ligado ao falo e um gozo Outro, não-todo.
O extravio pode ser localizado nos efeitos do encontro da mulher com a cadeia simbólica
e com as conseqüências da falta de um significante que lhe diga sobre sua posição sexuada. O
fato de a mulher não encontrar o representante da representação que produza sua identidade
faz com que ela se veja impelida a diversas saídas – desde a produção de um sintoma
histérico, passando por uma passagem ao ato, pelo aniquilamento completo de seus laços com
o Outro, até a morte. A verdadeira mulher, antes de ser aquela que encontra um caminho na
maternidade, é a que, na relação com o significante fálico, enquanto faltoso, extravia-se, em
certa medida.
A ideia de Lacan é clara: em toda verdadeira mulher, ou seja, nessa mulher que surge
contingencialmente, pode se precipitar um elemento pulsional que escapa à amarração do
Édipo e à apreensão da sexualidade pelo campo simbólico. Essa qualquer coisa extraviada diz
respeito a um índice, a um quantum da pulsão que não foi transcrita ou estruturada como
linguagem pela metáfora paterna. O extravio explicita algo que não pode ser transcrito através
da referência ao falo. Extraviar-se é um modo contingente de existência, um destino pulsional
possível para a mulher.
Se, segundo Freud, a libido é masculina, como abordar sua existência nas mulheres,
senão por um extravio ou por meio de um álibi? Lacan já havia insistido na dimensão de álibi
da feminilidade. Nesse sentido, a verdadeira feminilidade, se existisse, teria sempre, toujours,
que recorrer a um álibi, já que só poderia ser interpelada através do significante do falo. A
relação da mulher com o seu ser é, nesse sentido, sempre inassimilável.
Nesse sentido, a famosa questão histérica sobre ‘o que é a mulher’ concerne a cada uma
das mulheres que se pergunta sobre sua identidade, já que “o simbólico dá um forma na qual
se insere o sujeito no nível de seu ser. É a partir do significante que o sujeito se reconhece
sendo isso ou aquilo” (Lacan, 1955-56/1991, p. 204). Mas, se a passagem pelo que é o ser
feminino e a pergunta sobre o que quer uma mulher são pontos que toda mulher deve
vivenciar, é através do ultrapassamento dessa questão que se pode aceder à posição feminina,
242

ou melhor, às feminilidades.
Foi possível concluir que uma mulher não se realiza somente no registro do ter ou do ser
o falo, mas entre um e outro ou no parecer, em se fazer perceber com ares de mulher. Talvez a
verdadeira mulher, para Lacan, seja aquela que se desdobra entre a identificação ao falo e sua
ausência. Essa disjunção entre o ser e o parecer configura o que mais tarde Lacan chamará de
não-todo fálico, posição feminina dividida entre o desejo e o gozo.
É importante ressaltar que, apesar de utilizarmos a proposição lacaniana de 1958 sobre o
extravio da verdadeira mulher como crivo de leitura para analisar as figuras do feminino, a
frase foi utilizada a partir de sua reformulação nos anos 1970, acepção segundo a qual a
mulher e a verdade seriam um semi-dizer e o gozo feminino poderia ser caracterizado como
não-todo fálico. Um estudo da feminilidade sem o aporte teórico das teses lacanianas dos anos
1970 nos conduziria a um enigma, já que os textos dos anos 1950 só apontam, mas não
contemplam o campo do gozo e a integração do registro do real ao campo simbólico. Caso
tivéssemos feito nossa análise com os operadores conceituais daquela época, não haveria
lugar para a verdade como um semi-dizer, nem para a posição feminina como contingência,
embora Lacan já tivesse apontado para esse elemento arredio à amarração simbólica em
alguns textos dos Escritos. Nesse sentido, analisamos a proposição lacaniana sobre o extravio
tanto a partir de discussões que surgiram no momento de sua elaboração (1958) quanto a
partir dos efeitos e desdobramentos que se deram em um momento futuro do ensino de Lacan.
Primeiramente, empreendemos um retorno a Freud, a fim de descobrir os elementos de
suas teorias sobre a mulher que poderiam ter sugerido a Lacan a proposição sobre o extravio.
A partir dos primeiros textos freudianos sobre as neuropsicoses de defesa, especificamente o
“Rascunho K”, percebemos que Freud havia descoberto uma questão interessante sobre a
gênese da doença histérica na mulher: que havia um índice psíquico, efeito do trauma sexual,
não representável no cerne da neurose de histeria.
Depois da análise do elemento irrepresentável no texto de 1885, partimos para o estudo
de alguns artigos que versavam sobre a questão da sexualidade feminina, nos quais Freud
demonstrou o desenvolvimento sexual da menina e os efeitos psíquicos do complexo de
Édipo. Haveria uma espécie de desdobramento ou de deslocamentos pulsionais e subjetivos
femininos como efeito da inscrição edípica.
Lacan afirma que a mulher é ‘mais verdadeira e mais real’ por saber exatamente com o
que lida na castração, já que, para ela, essa falta é primária. Ela não encontra a verdadeira
feminilidade pelo Édipo, mas se extravia da verdade que poderíamos supor existir na função
dada pela fórmula edípica ou pela referência fálica. Como vimos através das figuras, suas
243

formas de existência negam que haja uma saída absoluta para a sexualidade feminina diante
da teoria que buscou, em seus primórdios, circunscrever a mulher dentro de um modelo
masculino. A exclusividade fálica nunca será uma saída para a feminilidade, embora imponha
uma lei que a contém, fazendo dela sempre um Outro, “esse não todo atestando a existência
de um sujeito a dizer não à função fálica” (Lacan, 1973/2003, p. 466).
O tema da verdade foi trabalhado a partir da ideia apresentada por Lacan no Seminário,
livro 20: mais, ainda. Sabemos que a elaboração sobre o conceito de verdade como um semi-
dizer surge apenas nos anos 1970 para localizar logicamente a posição da mulher diante do
gozo fálico. “A verdade, já é a mulher por não ser toda – não-toda a se dizer em todo caso”
(Lacan, 1973/2003, p. 538). Na psicanálise, a verdade não pode ser anunciada de forma direta,
mas por meio de desvios e de ficções variadas, como as que descrevemos no caso de cada
uma das mulheres analisadas aqui.
Lacan nos fala de mulheres verdadeiras quando cita Medéia, Antígona e Ysé. Contudo, é
preciso colocar uma questão em relação à ficção que se apresenta por meio das histórias
dessas mulheres. Em determinado momento da obra lacaniana, a mulher verdadeira é aquela
que abre mão de tudo em nome de algo que a desliga de toda a medida imposta pelo falo.
Entretanto, se admitíssemos que essa mulher existisse de fato, estaríamos edificando um lugar
para A mulher e, com isso, perderíamos o desenvolvimento da tese lacaniana dos anos 1970
sobre a relação da mulher com o semi-dizer. A aproximação entre a posição da mulher e a
verdade demonstra que, assim como a verdade, ela não pode ser dita de modo completo.
Conclui-se que é por ser não-toda sujeita ao simbólico que a mulher se extravia, pois ela “nos
indica ser a única ultrapassada por seu gozo” (Lacan, 1973/2003, p. 467).
Embora não tenha uma definição teórica claramente delineada, o termo extravio mostrou-
se relevante para a compreensão das hipóteses de Lacan sobre a feminilidade. O extravio ou o
desgarramento da mulher em relação à proposta simbólica do Édipo deixa entrever que um
elemento pulsional estaria irremediavelmente sem representação. Vimos também que as
mulheres não são totalmente extraviadas, pois elas são “não-todas, o que tem também como
consequência e pela mesma razão que tampouco nenhuma delas é toda” (Lacan, 1971/2003, p.
466).
É possível concluir que o extravio em jogo em cada uma das figuras analisadas é
singular. O que encontramos de extraviado em Dora, por exemplo, não se compara ao que
vislumbramos em Medéia. Nessa última, há um excesso, uma radicalidade em relação à
posição que uma mulher pode ocupar. Cada uma das figuras apresenta o encontro com uma
contingência, esse elemento que surge extraviado na sexualidade feminina. Não delimitamos
244

o extravio como maneira única de uma mulher existir. A sexualidade feminina é percebida
com roupagens muito diversas em todos esses casos em que parece surgir uma mulher. Todas
as figuras analisadas aqui mostram destinos pulsionais próprios que se definem no encontro
com um homem, com a maternidade, com os filhos ou com a ausência de uma representação
para o gozo.
A proposição lacaniana extrai da passagem da mulher pelo Édipo um dos efeitos que o
complexo de castração pode gerar na menina. Se de fato A verdadeira mulher não existe, cada
uma das mulheres revela a existência de um impasse na formalização da posição feminina: “A
questão é saber no que consiste o gozo feminino na medida em que ele não está todo ocupado
com o homem” (Lacan, 1972-73/1985, p. 118).
Durante muito tempo, para Lacan, a verdadeira mulher foi aquela que rompe com a
medida simbólica, dirigindo-se a uma zona perigosa, abrindo mão do que há em si, do lugar
de mãe, em função da mulher. Entretanto, a forma como ele vai construindo a posição
feminina resignifica a questão do extravio, mostrando que uma mulher pode, mesmo sem
estabelecer relação com a maternidade, desgarrar-se do simbólico e se dirigir a um lugar fora
da linguagem. “Quando digo que a mulher é não toda é que é por isso que não posso dizer a
mulher, é precisamente porque ponho em questão um gozo (...) que é da ordem do infinito”
(Lacan, 1972-73/1985, p. 140). Nesse sentido, o extravio da verdadeira mulher deixa entrever
como essas figuras femininas estabelecem uma ligação com o falo, mas, em algum momento,
podem se dirigir a um Outro campo, inassimilável.
A mulher pode se mostrar desgarrada da lei que, assim mesmo, a contém. No conto sobre
a carta roubada, por sofrer um desvio, a carta/letra – que é também a mulher – tem um trajeto
que lhe é próprio. Essa é a verdade de uma mulher quando ligada a esse elemento extraviado,
ou a esse lugar inassimilável: “A mulher é a verdade. É por isso que só podemos semi-dizê-
la” (Lacan, 1972-73/1985, p. 141).
Se, por um lado, pensamos que uma verdadeira mulher explora uma zona desconhecida,
ultrapassando as fronteiras do simbólico, por outro lado, há a constatação de que existe em
jogo o elemento fálico, a partir do qual se produz o extravio. Ou seja, não há o
ultrapassamento da barreira do simbólico se não houver o limite dado pelo significante. A
verdadeira mulher está inexoravelmente ligada à presença do significante como limite. Lacan
diz exatamente isso quando escreve sobre a mulher no lugar da letra. “Ela faz valer seu ser aí,
fundando-o fora da lei que continua contendo-a em posição de significante ou até de fetiche”
(Lacan, 1956/1998, p. 35). Mesmo vinte anos antes do Seminário, livro 20, Lacan anuncia
essa forma muito particular da mulher existir em função de uma lei que a inscreve, mas que
245

não a contém de todo.


Em todas as figuras que apresentamos, notamos não um extravio completo, como se a
mulher estivesse por completo no regime do não-todo. Como disse Lacan no Seminário 20,
ela pode estar à toda na função fálica, mas não de todo. No encontro com o falo, a mulher se
desdobra em duas formas de apreensão do gozo: um fálico e outro não-todo fálico. “A mulher
tem relação com S(A barrado), e já é nisso que ela se desdobra, que ela não é toda, pois, por
outro lado, ela pode ter relação com Φ” (Lacan, 1972-73/1985, p. 109).
Concluímos que o que há de verdadeiro em uma mulher não se mede somente pela
distância subjetiva que ela estabelece em relação à sua posição como mãe (ou como possível
mãe), mas em relação a esse elemento égaré, desgarrado, sem simbolização, presente na
sexualidade feminina. Existem exemplos entre as verdadeiras mulheres, como os de
Madeleine ou Antígona, em que a questão com a maternidade não está colocada e, ainda
assim, é possível vislumbrar o elemento arredio ao campo simbólico. A verdade se apresenta
como uma estrutura de ficção em jogo na relação da mulher com o falo e com esse Outro
gozo que ela desconhece.
A verdadeira mulher só pode ser dita uma a uma e, ainda assim, não é certo que cada uma
dessas figuras seja uma verdadeira mulher o tempo todo. Percebe-se que existe um ponto de
desgarramento e de extravio a partir de um fluxo significante. Antígona e Medéia, as figuras
da tragédia, mostram, no interior mesmo de seus excessos, todo um universo simbólico que
instaura uma série de significantes da tragédia. A Jovem homossexual e Dora passam pelo
complexo de Édipo, chegam a localizar-se diante do desejo dos pais, promovem
identificações com a figura paterna, mas, em determinado ponto, quando é preciso responder
à questão sobre a mulher, extraviam-se. Não conseguem simbolizar dentro do registro do falo
esse elemento pulsional sem produzir uma série de tensões e sintomas.
Essas figuras demonstram que há sempre uma fronteira ou um limite tênue que separa o
momento em que ainda há uma negociação qualquer com a referência simbólica e o momento
em que uma mulher, num redirecionamento da pulsão, reconhece-se como Outro de si mesma.
É nesse ponto de ruptura que uma mulher abre mão de seu bem mais valioso, põe fim à
própria prole ou à própria vida. Entretanto, esses atos, que parecem loucos, mostram, por
outro lado, que uma mulher é louca, mas não de todo. Seus excessos são exatamente medidos
em relação àquilo que se localiza na referência, nesse caso, o Édipo ou o campo simbólico.
Quando se abrem as vias do desejo para uma mulher em sua relação com a linguagem, há
sempre a constatação de que falta um significante no Outro, há uma ausência de resposta para
dizer sobre esse gozo feminino. O elemento desgarrado é o efeito da falta de resposta que uma
246

mulher encontra no Outro, nos filhos, no homem, no gozo fálico. As mulheres mostram
claramente como os semblantes são um engano, pois nada há de comparável com o real do
gozo, diria Lacan. O falo não recobre tudo: “a mulher insisto, essa que não existe, é
justamente a letra. A letra como significante de que não há Outro, S(de A barrado)” (Lacan,
1971/2009, p. 102). A letra que inscreve um litoral entre real e simbólico revela como a
mulher está no lugar de apontar o furo no saber implicado nesse S(de A barrado), no
significante que falta no Outro.
Entretanto, vimos que a mulher pode se conduzir do falo ao S(de A barrado), já que sua
posição foi descrita nas fórmulas da sexuação como a de um ser desdobrado entre um gozo
circunscrito pelo falo e um gozo extraviado em direção ao Real. Há um gozo feminino
envolto em sua própria contiguidade (Lacan, 1960/1998, p. 742). Essa contiguidade é uma das
maneiras de formalizar o desgarramento de um elemento que não pode ser algoritizado pelo
significante fálico, pois a cifragem do gozo imposta pelo Édipo nem sempre é − talvez nunca
seja − uma saída para a mulher. A lógica do não-todo coloca a mulher nessa relação com o
infinito, já que, ao se deparar com o extravio, ela desafia a função fálica. Entretanto, essa
função lhe serve como anteparo.
A primeira figura analisada foi Marie D., paciente de Clérambault. O médico psiquiatra
havia recebido a paciente no ambulatório da delegacia de Paris pelos motivos de furto de
tecidos e comportamento escandalizante. A tentativa do psiquiatra de incluir o caso da
paciente na categoria diagnóstica do fetichismo verdadeiro havia levantado uma série de
questões sobre os destinos da sexualidade feminina analisados pelo viés psiquiátrico.
Clérambault havia concluído que havia algo em Marie que impossibilitava sua descrição
pelas teorias psiquiátricas da época. No prontuário, ele havia incluído o caso na categoria que
chamou de non-lieu. A clínica florida de sintomas e sinais não descrevia a patologia da
paciente e, pelo contrário, trazia aos médicos mais dúvidas a cada nova análise. Extraímos
dessa impossibilidade de nomeação, desse desregramento sexual da paciente uma amostra da
presença pulsional extraviada no seio da ordem simbólica psiquiátrica.
A segunda figura escolhida surgiu, não por acaso, através da análise do famoso sonho de
Freud, O sonho da Injeção de Irma. Na interpretação desse devaneio, o psicanalista deixa
transparecer por meio de seu desejo inconsciente que, ao se encontrar com o corpo de Irma,
ou, mais especificamente, com sua garganta aberta, um elemento obscuro, disforme e sem
simbolização se precipita diante de seus olhos. Esse elemento que se destaca do desejo no
sonho freudiano marca o momento em que o sonhador tenta decifrar o que vê além do que seu
saber poderia prever. Ele pede que Irma abra a boca para que possa analisar o porquê de suas
247

tosses e de seu mal estar. A partir dessa garganta aberta, coberta por estruturas brancas
acinzentadas, surge o ponto de maior obscuridade e angústia do sonho.
O desejo de olhar o abismo desse continente negro47 coloca Freud diante da presença do
elemento irrepresentável da sexualidade feminina. O pedido para que a mulher falasse sobre
seus sintomas culmina em certo fracasso porque, entre palavra e corpo, Freud reconhece um
abismo intransponível. Será pela criação, no sonho, de uma fórmula de letras que diz respeito
a uma substância que é o signo de algo sexual que o sonhador resolverá o impasse da zona
indiferenciada que se precipita entre linguagem e corpo.
O umbigo do sonho é um elemento inapreensível, ligado ao corpo da sexualidade
feminina. Essa relação é crucial para compreender como a proposição lacaniana sobre o
extravio pode ser trazida como chave de leitura desse caso. O saber freudiano vislumbra no
sonho sobre Irma esse elemento de extravio diante da referência simbólica representada pelo
saber psicanalítico e pelo tratamento através da palavra. A comprovação de que só é possível
ler e interpretar o sonho até que o corpo de uma mulher se imponha como barreira ao saber
freudiano pode demonstrar a fronteira entre dois campos. O impossível de simbolizar não é
outra coisa senão a designação da presença da insistência pulsional no cerne da ordem
simbólica.
A garganta obscura da mulher, através da qual Freud acreditou poder obter suas
comprovações, mostrou-se como um obstáculo intransponível. “Essa revelação da cabeça da
Medusa” (Lacan, p. 1960-61/1992, p. 222). Na parte final do sonho, desaparece o trio de
homens, que são uma decomposição imaginária dos eus de Freud e, então, surge a fórmula da
trimetilamina, que é a derradeira palavra. É por meio da figuração desse termo em forma de
letras no sonho que há o encontro com a designação secreta do mistério do sujeito.
O elemento de extravio da mulher faz sua aparição através do desejo de Freud, que, em
sonho, produziu um furo ali onde o simbólico parecia responder a tudo, principalmente ao
corpo da mulher. A verdadeira mulher que Irma se tornou para o desejo de Freud, se extravia
em seu sonho porque não pode ser decifrada ou representada completamente pelo
inconsciente, a não ser na forma de letras que eram a encarnação do elemento sexual. O
desejo freudiano não simboliza A mulher e a deixa escapar como uma carne o umbigo do

47
No texto “A questão da análise leiga – conversações com uma pessoa imparcial” (1926), Freud (1926/1996)
conclui que: “a vida sexual das mulheres adultas é um ‘continente negro’ para a psicologia” (Freud, 1926/1996,
p. 205-206).
248

íntimo mistério.
A terceira figura é Dora, também paciente histérica de Freud. Dora apresenta com clareza
o que são os sintomas histéricos e as questões da mulher em relação aos impasses colocados
pela sexualidade feminina. Vemos essa mulher se debater em relação aos impasses colocados
pelo complexo de Édipo. É em razão da relação que Dora estabelece com o pai, exatamente
por ele ser um pai fragilizado por uma impotência sexual, que ela desenvolve suas
dificuldades em relação a seu próprio desejo por um homem.
A saída histérica e a dificuldade de abordar a sexualidade fazem de Dora uma
personagem capaz de produzir uma série de desvios para, enfim, obter uma resposta, ainda
assim, insatisfatória em relação à feminilidade. Isso que faz Dora repetir seus sintomas
também faz surgir um elemento fora da cadeia simbólica. Ela busca no Outro uma resposta
para o que é uma mulher, mas não se apazigua com o que encontra.
Dora nos mostra como a histérica lida com os efeitos sintomáticos do complexo de
castração quando entra num labirinto de identificações complexas com o Outro ou quando se
vê diante de seu objeto de desejo. Lacan nos diz que ela se vê confrontada com o objeto a,
que, para ela, é o Sr. K., pois ele é sua fantasia e é aí que está o suporte do desejo. Mas, como
histérica, Dora não se contenta com essa fantasia. “Ela visa algo melhor, ela visa o A. Visa o
Outro absoluto” (Lacan, 1960-61/1992, p.242). Ela encontra o Ф, signo do falo, em vários
substitutos, mas isso não responde por sua posição feminina.
O desejo inconsciente pelo Sr. K, a homossexualidade recalcada pela Sra. K, os
ressentimentos com o pai, a identificação com o irmão e o sonho em que Dora se pergunta
sobre sua própria vagina ilustram como a histérica deseja, por uma série de procurações,
encontrar A mulher através do Outro. Dora se socorre de duas figuras: uma Outra, a Sra. K,
que lhe diz o que é uma mulher; e um Outro, o Sr. K. Através da posição fálica desse homem,
ela interpela a feminilidade encarnada pela Sra. K, reproduzindo o triângulo edípico vivido
com os pais.
Dora pode ocupar o lugar de uma verdadeira mulher pois, em alguma medida, desvia-se
do campo simbólico quando é chamada a responder por seu desejo. Ela aborda o desejo por
um homem e a sexualidade feminina através de desvios que a conduzem aos sintomas
histéricos. Nesse sentido, seus sonhos são claros: ela não consegue simbolizar o órgão
vaginal. Esse lugar misterioso soma-se às zonas histeroerógenas e partes específicas do corpo
perdem a erotização e se transformam em uma carne dessexualizada. O horror da histérica é
se deparar com esse inominável no próprio corpo, reduzindo-se ao lugar de objeto. É isso que
ocorre com Dora quando ela relata a Freud que sente que seu pai a vende a outro homem. É
249

nesse ponto que ela se extravia, pois se reconhece no lugar de objeto.


O impasse surge muito claramente quando Dora produz uma série de sonhos que lhe
causam angústia em um ponto específico: quando ela se vê diante do mistério de seu órgão
sexual. A vagina permanece sendo esse lugar proibido, enquanto a sexualidade de uma
mulher adulta não é alcançada, senão com angústia. No momento em que ela deveria, como
diz Freud, sentir prazer com as investidas amorosas do Sr. K, sente repulsa. É uma maneira de
trazer para o corpo a questão que se coloca no fato de algo estar fora de simbolização, fora do
sexo, no campo do inominável.
Quando se vê livre para amar o Sr. K, na cena do lago em que ele lhe conta que sua
mulher não é nada para ele, Dora foge, não sem antes lhe dar uma bofetada no rosto. A
histérica troca sempre seu desejo por esse signo. Ela se identifica com esse drama do amor,
essa mitomania. É no seio desses desencontros amorosos que ela se esforça quanto a esse
Outro para reanimá-lo, reassegurá-lo, recompletá-lo. Vejam que ela é incapaz de abordar o
objeto de seu desejo pelas vias diretas que lhe conduziriam à satisfação amorosa. Além de não
suportar ser localizada como objeto de desejo desse homem, ela o aborda por meio de um
desvio, um subterfúgio. A sua pergunta maior em relação a “uma feminilidade corporal” não
será respondida, pois o mistério está colocado em relação a um gozo que não pode ser
drenado pelas saídas simbólicas oferecidas pelo Édipo ou por suas identificações e amores
pelo Sr. K e pela Sra. K.
Quando Lacan diz que há uma questão em relação ao padrão fálico que sustenta a fantasia,
reenviamos nossa pergunta sobre a posição fálica de Dora. Quando ela se identifica
imaginariamente com um padrão fálico da fantasia, consente com a falicização, mas é aí,
paradoxalmente, que adere à posição masculina e se faz de homem. Entretanto, embora Lacan
diga que se fazer de homem é a saída mais fácil para a menina, é ao ocupar essa posição que
Dora se equivoca sobre seu desejo, pois essa não é uma solução.
A quarta figura foi descrita a partir do caso da Jovem Homossexual, cuja análise Freud
abortou em razão das dificuldades encontradas ao longo do tratamento. É interessante
acompanhar que a Jovem passa pelo Édipo, cuida de um bebê como se fosse uma mãe, ama o
pai e espera dele um filho imaginário, como deveria fazer toda menina rumo à sexualidade
normativa ou à heterossexualidade. Até que, tardiamente, na época de sua adolescência, o pai
engravida novamente a mãe e é aí que algo se desestabiliza, no sentido de desorientar sua
libido ou de orientá-la para um passado muito primitivo relacionado à mãe.
Não há somente uma fixação indiscutivelmente forte da Jovem à figura do pai, mas uma
fixação anterior, à mãe. Há uma dupla polaridade do Édipo feminino que aparece claramente
250

no caso dessa paciente de Freud. A Dama, mesmo sendo um objeto degradado, é venerada,
pois substitui a figura materna. Lacan ressalta que essa mulher mais velha, era a mistura de
duas figuras: a mãe e o irmão da Jovem.
Há aí uma questão em relação a quem ou o quê a Jovem ama através da Dama. Ou seja, a
Dama concede a ela duas satisfações libidinais: à heterossexualidade, ligada ao irmão, e à
homossexualidade, ligada à mãe. O filho que o pai dá à mãe faz com que ela sinta despeito e
se afaste dos homens. Ela rejeita o amor pelo homem, o desejo do filho e o papel feminino
para se tornar um homem e amar a mãe. Qualquer decepção com o pai basta para reavivar o
amor pela mãe, já que essa relação se alimenta do narcisismo. Opera-se um cruzamento entre
amor e identificação. Após a decepção com o pai, ela se identifica com ele para voltar ao
amor primitivo pela mãe.
No momento em que esperava obter um filho-falo do pai, esse homem potente dá um
filho real à sua própria mãe. Há uma decepção irreparável em relação ao Outro paterno. Nesse
momento, como reação ao filho que surge na família, no lugar onde ela não o esperava, a
Jovem se enamora de uma Dama da sociedade, com quem inicia um relacionamento à
distância. A forma passiva como a Jovem entra no complexo de Édipo é diferente da maneira
como ela sai desse processo, escolhendo amar uma mulher. A frustração da Jovem em relação
ao falo que ela pensa que o pai lhe nega faz com que ela o exiba para a Dama. Essa investida
é para mostrar ao pai como é “dar o que não se tem a uma mulher”. Assim, a Jovem passa a
desfilar o amor aos olhos do pai. Se o pai lhe negara o falo, ela faria agora com que ele
aprendesse como é que se dava algo a uma mulher, mesmo sem possuí-lo.
Ao invés de abordar seu objeto de amor diretamente, ou seja, buscando um outro homem
ou uma relação possível que lhe desse, talvez, o filho ansiado, a Jovem se enamora de uma
figura que lembra a mãe, seu primeiro objeto de mulher fálica. A Dama é uma mulher bem
mais velha, com quem a Jovem mantém um amor cortês, esse que eleva o objeto ao lugar do
falo. No entanto, como não consegue estancar seu gozo com essa parceria, ela tenta o
suicídio. Quando o objeto está definitivamente perdido e esse nada em que ela se institui para
demonstrar ao pai como amar não tem mais razão de ser, a Jovem tenta o autoextermínio, ao
se joga de uma ponte da cidade. Esse seria o ápice de seu extravio.
Deixa-se cair como um objeto a, que se destaca da cadeia simbólica, como um resto, um
dejeto. O resto, o dejeto, é aquilo que escapa à apreensão simbólica, é o real do gozo que não
cede à falicização. A Jovem permanece identificada a esse resto do Outro, já que, diante do
olhar inquiridor do pai e do descaso da Dama, não tem mais a imagem de si, o falo poderoso,
refletido pelo desejo do Outro. Ou seja, não há recurso simbólico a partir do lugar de resto
251

para contornar a situação. Caindo da ponte, ela dá uma dupla direção à identificação e ao
amor pelo pai e pela mãe. Ao cair, dá a luz à criança que não obteve do pai e, ao mesmo
tempo, castiga-se pela reprovação do pai e da própria Dama. Freud vai mais longe e diz que,
ao tentar se matar, a moça também tenta matar a parte de si mesma que se identificava à mãe
e que deveria ter morrido ao dar a luz ao filho que ela tanto esperava do pai.
A Jovem parece se extraviar para o lugar de um gozo além da trama simbólica e
imaginária, pois ela é esse falo perdido na relação com o Outro. A forma de fazer valer seu
ser, por meio de uma passagem ao ato, mostra como uma mulher pode se extraviar do campo
localizado pelo simbólico quando menos se espera, de forma contingente. A Jovem se deixa
cair, vir à baixo, como um dejeto. Com esse ato, encontra uma maneira de encaminhar sua
mensagem ao pai. Lacan diz que o sujeito não cai enquanto significante, mas se precipita
como objeto a, como um corpo que se extravia na passagem ao ato. A tentativa de suicídio
ilustra como, no furo que se produz na relação com o pai e com a Dama, a Jovem inscreve
esse S(de A barrado), ou seja, a inexistência de um significante do sexo feminino.
A quinta figura é Antígona, heroína desumana da tragédia sofocleana. Antígona é uma
figura importante na demonstração da proposição lacaniana porque ilustra, de forma radical, o
extravio feminino e sua relação com o gozo transgressor. Ela ultrapassa a barreira do belo, ou
seja, sua imagem enquanto viva, e despoja-se de si para atingir o lugar de um corpo que será
enterrado vivo. Antes de morrer, entrega seu corpo à morte simbólica, despoja-se de si
própria.
No início da tragédia, Antígona se mostra inserida no universal da lei dos homens, já que
pretende enterrar o irmão segundo os ritos fúnebres. Fica claro para o leitor seu desejo ardente
de preservar a linhagem paterna, oferecendo ao irmão morto uma sepultura digna. Ela
justifica seu ato alegando que o irmão é fruto da mesma matriz, do mesmo pai e da mesma
mãe e que, portanto, mereceria ter um fim digno, pois a lei dos homens instituíra, desde
sempre, que um corpo mereceria ritos sagrados e uma sepultura. Em nome das aspirações de
irmã, desobedece à lei de Creonte. Por outro lado, não deixa de agir como uma “verdadeira
mulher”, no sentido de uma verdade que será dita não de forma nua e crua, mas com o véu de
um semi-dizer. Antígona vai atrás do corpo que jazia nas planícies à própria sorte e, com um
gesto muito sutil, dispõe uma camada de terra fina sobre o irmão. Essa verdadeira mulher tece
com as próprias mãos um véu sobre a morte, numa estratégia muito feminina de velar o horror
do real, da morte. Ela é a tecelã que ergue seu véu sobre o vazio.
Antígona é duramente punida por contrariar as leis da cidade e tentar dar uma sepultura
ao corpo do irmão e é condenada a ser enterrada viva numa tumba de pedra. No caminho até
252

lá, Antígona se lamenta por não poder ter tido filhos, marido e um casamento. Abre mão de
tudo o que poderia inseri-la no campo simbólico para se entregar a um gozo mortal. O gozo
transgressor da heroína trágica parece surgir de um lugar mais além, talvez dos restos da
ligação passional com seu primeiro Outro, a mãe.
Nas últimas páginas do comentário sobre Antígona, Lacan retoma a relação da heroína
com o desejo criminoso de Jocasta. Os efeitos do gozo da mãe ficam ainda mais evidentes
quando Antígona chora sobre o corpo do irmão, urrando como “um pássaro que vê arrancado
os filhos do ninho” e representando o lugar da mãe primitiva. Antígona perde a referência do
pai porque não lhe deixam enterrar o irmão e, em nome de um gozo criminoso e sem limites,
conduz-se à morada da morte, ao desejo puro.
O extravio que caracterizaria uma verdadeira mulher parece surgir em Antígona no ponto
obscuro do desejo da mãe, transmitido para a geração dos filhos. Antígona se revela como
resto inassimilável da relação com Jocasta. Seu desejo premente de enterrar o irmão se torna
tão radical que ela não mais se importa em perder a vida e ocupa o lugar radical da mãe.
Nesse sentido, o pecado de Jocasta faz de Antígona e de seus irmãos ao mesmo tempo filhos e
irmãos do próprio pai, Édipo. Ao dormir com a própria mãe, Édipo se torna filho do desejo
mortífero. A desgraça e o infortúnio recaem sobre todos ali, mas é Antígona que encarna o
golpe final.
A ideia de Lacan sobre o incesto é de que, quando a mãe incorpora seu próprio produto,
há um rompimento com o universo da linguagem, pois não há mais distância entre o filho e o
desejo da mãe. Antígona nasce fruto de um incesto, no seio da família dos Labdácias. Uma
vez fora da lei, surge o extravio, que a conduz a encarnar posteriormente o destino funesto da
mortificação, efeito da ausência da lei. Somos levados ao limite daquilo que Lacan chama da
segunda morte, ali onde a heroína encarna como nenhum outro o lugar da mãe extraviada.
A sexta figura feminina é Ysé, heroína da tragédia moderna de Paul Claudel. Lacan diz,
sobre Ysé, que “aquela ali se parece muito com o que é uma mulher” (Lacan, 1960-61/1992,
p. 302). Isso porque encarna a figura do Outro absoluto. A personagem é amada por três
homens, possui filhos e um casamento, mas, a certa altura da peça, mostra que nada disso a
faz feliz. Confessa que abriria mão de todas as insígnias fálicas que possui, pois sua felicidade
é atormentada por algo estranho que a invade quando está sozinha. Pede ao marido que não a
deixe só, pois pressente que poderia se perder; tem medo de algo de ausente a atormente. Ysé
vislumbra na solidão um Outro de si mesma, envolta em um gozo que a divide e a envolve em
sua própria contiguidade. Esse desregramento pulsional a invade de tal forma que ela acredita
estar se encaminhando em direção à morte.
253

Essa mulher de muitos amantes aniquila todos os objetos que respondem à falta inscrita
pela função fálica em prol de um extravio. Abandona tudo, mas não sacrifica nada, pois, para
ela, nada mais tem valor, senão um gozo sem limites. A aniquilação tem sua lógica: a
esplêndida Ysé nos faz ver um horizonte funesto com sua aspiração mortal que rompe com
todo o universo humano que apaga os homens que a amam em nome de um desejo abissal,
uma vertigem do absoluto. Seu extravio está em abrir mão de tudo o que poderia ser sua
riqueza, sua felicidade, seu ponto de basta, em nome da morte. Ysé procura o fim, o pior, e
nada a detém, nem os laços simbólicos com a família.
Em Ysé, o desdobramento natural da posição feminina entre pura sensibilidade e pura
ausência toma um destino trágico. A divisão do sujeito entre a pulsão, do lado feminino, e a
relação com o que no Outro é um significante privilegiado é rompida. Ela se desgarra de
todos os signos fálicos para buscar o aniquilamento, a própria morte. Com esse gesto, fabrica
seu ser pela privação e, nessa subtração do ter, põe a perder tudo à sua volta.
A sétima figura é Medéia, heroína da tragédia de Eurípides. Essa personagem, que Lacan
nomeia de “verdadeira mulher”, é outro exemplo de rompimento com a medida simbólica.
Medéia já havia dado sinais de que a lei paterna não contornara o que havia de pulsional em
sua ligação com Jasão. No passado, traíra o próprio pai, deixara sua terra natal, convencera as
filhas de Pélias, tio de Jasão, a matarem o pai, esquartejara o irmão e, enfim, depois dessa
saga de atrocidades, fora viver em Corinto uma vida pacata com o marido e dos dois filhos.
O rumo da pacata convivência entre Jasão e Medéia se extravia quando ele lhe diz que
sairia de casa para desposar outra mulher, a filha de Creonte. A ação de Jasão é vista pela
mulher como uma ofensa, um ultraje em relação às juras do matrimônio. Após o desenlace
com o marido, ela se vê tomada por um desespero sem tamanho. Mas a essa fase de tristeza e
devastação, segue-se uma reação inesperada: Medéia começa a arquitetar sua vingança. Mata
os próprios filhos, pois chega à conclusão de que essa era a perda mais radical que poderia
infligir contra o marido. Nesse sentido, rompe com todos os signos fálicos que a sustentavam:
a prole, a maternidade, o marido. Ao saber da traição, aniquila a própria descendência,
mostrando a face mais cruel da mulher que se torna Outro de si mesma através da conexão
com um homem. Sabe-se que, de certa forma, Medéia dependia desse significante para existir
enquanto mulher de um desejo e de um homem; ela se nomeava como mulher de Jasão. Para
Lacan, ela é uma verdadeira mulher porque se desfaz do que há de mais importante para seu
parceiro e para si mesma ao matar os próprios filhos. Com esse ato, não só desfere um golpe
fatal na geração vindoura, mas atinge o parceiro amoroso, destruindo seu nome de pai e a si
mesma como mãe. O gesto desmedido é um eco da sua indignação e de sua dor por ter
254

perdido um signo fálico muito caro a ela.


A oitava figura do feminino é Madeleine, mulher e prima do escritor Andre Gide. A Sra.
Madeleine parece ter sido arrebatada pelo amor de Gide no lugar da Dama do amor cortês.
Para além da ligação perversa desse homem com os meninos, o amor que Gide edifica em
nome da mulher enaltecida pelas cartas de amor parece ser seu maior bem. Nesse sentido, ao
endereçar-lhe suas letras, o escritor fez dela A mulher de verdade, esse Outro absoluto, a
Dama, aquela que domina. Sabemos que esse amor era sublimado, para além da carne, já que
o sexo não existia. Nesse sentido, Madeleine mantinha velado o real da impossibilidade da
relação sexual.
A Sra. Gide era uma boa pessoa, cordata e aceitava de bom grado ser a mulher exaltada
por um amor sublimado. Não havia concessões para o que ela era capaz de doar a esse
homem. Eis que, abruptamente, ao saber de uma traição do marido, ela se transforma nesse
Outro absoluto. Queima toda a correspondência amorosa trocada entre os dois, letras que,
segundo Gide, eram das mais belas que já existiram. O ato dessa verdadeira mulher foi algo
tão cruel que talvez ela tenha se transformado naquilo que Gide havia desejado: esse senhor,
essa Dama desumana (Lacan, 1959-60/1998). Ao ser traída pelo marido, ela aniquila não
somente as cartas que Gide lhe endereçara por toda a vida, mas a escrita onde ela mesma se
localizava e se nomeava como a mulher de um homem e de um amor.
Ao destruir os escritos que Gide considerava seus filhos-cartas, desdobramentos dele
mesmo, Madeleine destrói o lugar d’A mulher, do falo que ela representava para esse homem.
Nesse sentido, o extravio parece apontado para o ato cruel de aniquilar de forma irredutível
um objeto preciso, como as cartas de amor, que lhe conferiam, ao mesmo tempo, um nome e
um endereçamento na fantasia do marido. Ela não se importa em perder esse bem, nem a
conexão com esse homem, já que, para ela, tudo já estava perdido.
A nona figura analisada é a Rainha, do conto “A carta roubada”, de Edgar Alan Poe. A
carta/letra como átomo, elemento que se interpõe entre simbólico e real, traz a figura da
Rainha como mulher que está entre dois lugares distintos, mas que se esbarram: o campo
simbólico, da circulação significante, representado pela missiva; e o campo pulsional, dos
odores de feminina e do efeito de feminização que se desdobra entre os personagens da trama.
A figura da mulher como Letra nos revela, de maneira lógica, a formalização do extravio
feminino pelo literal entre saber e gozo. A carta/letra sofre vários desvios e chega a seu
destino como significante, mas, no trajeto, produz um gozo em cada um que dela se apropria,
um efeito feminizante.
Uma verdadeira carta, ou uma verdadeira mulher, podem extraviar-se desse lugar
255

circunscrito pelo campo simbólico, já que há algo da ordem pulsional que não pode ser
nomeado. O conto revela essa impossibilidade do encontro com o significante que nomeia o
gozo da Rainha, na medida em que a polícia não consegue encontrar a carta no espaço
simbólico do escritório.
É curioso pensar que a carta se encontra entre as pernas da lareira, figura metafórica da
mulher. No lugar onde há o enigma, surge o envelope enxovalhado pela circulação que o
conduziu às mãos de todos os homens do conto. Esse envelope, que curiosamente invagina-se
sobre a mensagem, oculta e misteriosa, e que remete à sexualidade da Rainha, vai parar
exatamente no lugar do fogo ou das trevas invioladas da lareira.
A Rainha, signo do desdobramento feminino, com suas estratégias de esconder,
dissimular e de não agir, deixa ver como é possível lançar mão do significante, sem, contudo,
fazer propriamente uso de seu significado. A carta feminiza e extravia a todos, pois só confere
poder a quem não faz uso de seu imenso corpo de mulher. O poder se dissipa caso o portador
realmente faça uso da carta. A Rainha, enquanto verdade e sintoma do Rei, revela que, na
conexão com o significante fálico, a mulher se extravia, assim como a carta, já que seu gozo
não está de todo ocupado com o falo real.
A letra feminiza porque produz um efeito de desamparo em cada um que a detém: Dupin
se vê enraivecido e vingativo como uma mulher; o ministro é capaz de produzir uma escrita
feminina no verso do envelope da carta, a fim de endereçá-la a si próprio como se fosse uma
mulher; o delegado se vê privado de algo, por não saber em que falhou sua estratégia de
escrutinar o ambiente simbólico da forma mais efetiva possível. Assim como a mulher pode
ser apreendida como o objeto da fantasia do homem, a carta também é a prova de que, se o
envelope formal que a envolve porta um significante, por outro lado, seu conteúdo engendra
um saber para além do campo simbólico. A carta e a mulher se extraviam em relação ao
simbólico porque tocam no literal e se dirigem para o campo do Real. O destino da carta está
inscrito num lugar necessário, mas a produção do efeito feminizante em cada um dos
personagens que dela se apoderam é contingente.
A última figura é Santa Teresa de Ávila, a mulher mística, figura do gozo Outro que
Lacan descreveu no Seminário, livro 20: mais, ainda como gozo vaginal, gozo da mulher,
gozo feminino e gozo do corpo para demonstrar, na metonímia dessa nomeação, a ausência de
representação na linguagem. Nesse lugar não-todo mediado pelo falo, a figura feminina
apresenta um desdobramento próprio da posição que a mulher ocupa nas fórmulas da
sexuação, entre gozo fálico e gozo Outro; uma parte dela ligada à pulsão e outra ao
significante primordial, que é o falo. Há uma posição de divisão em relação ao desejo e um
256

desdobramento em relação ao gozo.


Santa Teresa ocupa o lugar da mulher voluptuosa. Ela é a encarnação, no sentido amplo
do termo, do encontro com o transbordamento do gozo no corpo. Seu arrebatamento é um
duplo movimento em que há a expulsão do sujeito de seu eu, ao mesmo tempo em que aquele
que assiste a essa expulsão é ele mesmo contaminado. Ela se vê através da conexão com
Deus, ausente de si mesma. Nesse sentido, a Mística experimenta um arrebatamento pela ideia
desse homem não castrado.
Por um lado, há toda uma cadeia de simbolizações do Cristo morto, esse homem que,
segundo Lacan, representa o amante castrado ou o pai morto, que arrebata a adoração da
mulher. Por outro, existe Deus, o lugar de uma presença ausente, sem faltas. Santa Teresa
encontra um Outro gozo na ligação com o amor por esse homem, não castrado, o que a leva
ao encontro com a falta do significante S(de A barrado). Esse extravio, ou seja, essa relação
com um elemento fora da simbolização está inscrita pelo gozo feminino que ela extrai da
relação desdobrada com o campo simbólico da religião e da escrita de seus livros e a relação
insimbolizável com o êxtase ao qual a figura de Deus a conduz.
Essa falta de representação, esse furo no Outro que surge em cada umas de nossas
figuras, elemento que Lacan nomeia de S(de A barrado), procura definir a feminilidade como
a falta absoluta do inconsciente responder com sua estrutura. Uma mulher como Medéia,
Antígona, Dora e a Jovem Homossexual, quer encontrar uma resposta para esse inominável,
mas, no lugar desse significante faltoso, advêm os destinos e as saídas que pudemos recolher
no seio de cada uma dessas feminilidades. Onde o inconsciente ou a saída do pai lhes deixam
abandonadas, elas respondem com o que podem.
Dora, Irma e a Jovem Homossexual são figuras do início do ensino de Lacan, quando a
estrutura simbólica e o Édipo freudiano ainda eram o pilar para as construções e descobertas
teóricas. Madeleine, Ysé, Antígona e Medéia são figuras do final dos anos 1950 e início dos
anos 1960, quando o psicanalista formula as teses sobre o gozo transgressor que excederia o
simbólico de forma radical. A Rainha e a Mística demonstram a formalização do elemento
extraviado da posição feminina pela escrita de dois operadores, a letra e o não-todo. Se a letra
formaliza o literal entre dois campos distintos, o conceito de não-todo contempla o
desdobramento feminino entre um lugar desdobrado entre simbólico e real.
Para concluir, é preciso marcar que, nos últimos dias de escrita desta tese, deparamo-nos
com uma referência bibliográfica que nos pareceu bastante importante, pois certificou-nos de
que estivemos percorrendo boas pistas para analisar a expressão sobre o extravio da
verdadeira mulher. No livro Perspectivas do Seminário 5 de Lacan (1999), Jacques-Alain
257

Miller faz uma análise pormenorizada das teses e proposições do Seminário: as formações do
inconsciente.
Segundo Miller, esse Seminário foi escrito num ano de intensa produção intelectual de
Lacan. Nos anos 1957/1958, Lacan escreveu como nunca, produzindo “Juventude de Gide”,
“A significação do falo”, “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” e os textos
do Seminário 5. “É a produção, em um único ano, de todas as bases doutrinárias do que
chamamos ‘o lacanismo’, produzidas naquele ano” (Miller, 1999, p. 47). Miller ainda
acrescenta essa prodigiosa produção abalou a psicanálise de forma irrevogável.
Segundo Miller, Lacan distingue totalmente o terceiro tempo do Édipo feminino da
maternidade. “Não o situa em absoluto através da maternidade, mas através da verdadeira
mulher, aquela que sabe onde é preciso buscá-lo” (Miller, 1999, p. 51). Ou seja, aqui já é
possível perceber como a verdadeira mulher não se assemelha em nada ao que Freud chamou
de a feminilidade definitiva normal, que encontrava sua saída pela maternidade. “Lacan
mostra que essa desorientação deve-se justamente ao fato de que as mulheres não estão em
absoluto desorientadas, ou seja, que elas sabem onde ir buscá-lo. E é justamente porque existe
essa desorientação bastante determinada que se produz, por outro lado, o aspecto de extravio”
(Miller, 1999, p. 52). Miller acrescenta que, em “Televisão”, Lacan afirma que as mulheres
são loucas, mas não loucas-de-todo. Ou seja, o extravio é de fato algo essencial, que orienta a
forma da sexualidade feminina se estruturar. Na busca pelo que lhe falta e na esperança de
que isso esteja no pai, uma mulher se extravia, pois essa é a única forma da sexualidade
feminina se apresentar pelo crivo da linguagem.
Ao longo da análise das dez figuras analisadas, pudemos concluir que existem dez
mulheres, dez verdades e dez extravios, já que, no lugar dess’A mulher que não existe,
constatamos os desvios que nos conduziram a cada uma das figuras do feminino. Nesse
sentido, Marie, Dora, Irma, a Jovem Homossexual, Medéia, Antígona, Madeleine, Ysé, a
Rainha e a Mística existem com seus semblantes que, por sua vez, capturam algo do gozo.
Todas elas participam da tese de Lacan de que “não há mulher senão excluída da natureza das
coisas que é a natureza das palavras”, pois é nesse ponto que vemos surgir seus extravios, o
lugar de um gozo inassimilável, refratário às coordenadas do Nome-do-Pai.
O extraviar-se é esse movimento entre o gozo que se liga à castração e que, por uma
contingência, desvia-se para o S(de A barrado), lugar em que cada uma das mulheres encontra
a ausência do significante que as nomearia. Entretanto, mesmo extraviadas em relação ao
simbólico que também as contém, pudemos bordejar e nomear algo desse Outro gozo, que
inicialmente nos parecia impossível de contornar.
258

O conjunto desses extravios é indefinido, assim como a feminilidade se traveste de várias


roupagens. Assim, acreditamos que a verdadeira mulher pode emergir no extravio da carne
não simbolizável de Irma, nos sintomas histéricos de Dora, na passagem ao ato da Jovem
Homossexual, no caminho percorrido até o aniquilamento em Ysé, no infanticídio de Medéia,
na inflexibilidade de Antígona, na radicalidade de Madeleine, no desdobramento místico de
Santa Teresa ou na astúcia da Rainha do conto de Alain Poe.
Cada uma dessas figuras de mulher é um quadro do feminino que se pinta diante de nós
para demonstrar que a feminilidade só se apreende por meio de uma via que parte do
simbólico, mas o ultrapassa. Elas se localizam a partir de um elemento que se extravia do
simbólico, revelando que o feminino é particular, pois esse ponto a partir de onde elas se
desgarram do simbólico é contingente. Nem toda mulher se extravia, mas, quando há um
extravio, há uma mulher. O extravio seria um dos destinos pulsionais possíveis para o
feminino.
Embora em alguns momentos nossa escrita pareça ter apontado para uma saída para a
falta irremediável do significante d’A mulher, oferecendo um lugar único de nomeação para o
feminino, pelo crivo simbólico da proposição sobre o extravio, nosso principal objetivo foi
mostrar a forma negativa com que esse objeto, a feminilidade, a mulher, aparece na
psicanálise. A escrita é uma teia, uma tela, um vaso que bordeja o vazio que é a falta do
significante da mulher, já que há uma parcela de gozo impossível de sexualizar. Nesse
sentido, não procuramos dar uma resposta ao que há de irrepresentável em cada uma das
histórias das mulheres que estivemos analisando, mas demonstrar que, ao procurar por esse
significante ou por essa resposta, as figuras nos responderam por si mesmas, escapando de
dentro do seio de suas próprias teias com o fio de seu extravio.
O fato de a mulher não existir não impede que possamos encontrá-la em uma
contingência, num ato fugaz como o de Medéia, por exemplo, que é uma presença real
extrema desse elemento pulsional que se extravia. Nesse sentido, o que há de verdadeiro em
uma mulher é essa parte louca do todo, mas não louca de todo. Esse elemento que se encontra
contingencialmente extraviado não é algo que se constitui num estado estável ou necessário.
Essa verdadeira mulher se apreende num instante, num grito de horror, num salto sobre uma
ponte, na queima de uma correspondência amorosa de toda uma vida ou em uma banal
repulsa pelo objeto de amor. A verdadeira mulher não existe senão na condição de uma
contingência fugaz.
259

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS48

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10. APÊNDICE

10.1 - Apêndice A: Quadro esquemático da bibliografia de referência em Clérambault,


Freud e Lacan para cada figura da feminilidade

Figura do feminino Bibliografia consultada

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