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A crítica ao Islão em São João Damasceno

MIGUEL CABEDO E VASCONCELOS


Faculdade de Teologia, UCP

INTRODUÇÃO

Enquadrado no contexto do Curso de Doutoramento em Teologia, o estudo que aqui


apresentamos procurará contextualizar e analisar a obra O Islão1 de São João Damasceno, que
integra o livro sobre as heresias, Liber de Haeresibus, de uma das suas obras maiores, Fons
Scientiae 2 . Numa época em que o panorama social, político e religioso sofria grandes
modificações, este escrito é, na realidade, o primeiro testemunho cristão que aborda aquela
doutrina que viria mais tarde a ser conhecida como Islão e, por isso, é o texto que marca o ritmo
da primeira etapa das relações cristiano-islâmicas, tendo exercido uma influência capital sobre
a linguagem, a tonalidade e o conteúdo da contenda Bizantina subsequente em relação ao Islão.
Na realidade, trata-se de uma primeira etapa que, como veremos, é algo controversa, polémica e
problemática, mas que é, apenas um primeiro momento de um diálogo que conta já com mais
de um milénio e que está longe de chegar ao seu termo.


1 Cf. Jo D. Haer., 101. Optamos por utilizar o título apresentado na edição de Raymond Le Coz em SC 383.
2 A única edição completa a que conseguimos ter acesso é a que está na edição das obras conhecidas de João
Damasceno de Jacques-Paul Migne (PG 94). A obra reúne três livros: Dialectica (PG 94, 518-577), De Haersibus
liber (PG 94, 578-789), e Expositio Fidei orthodoxae (PG 94, 790-1226).
I. O CONTEXTO POLÍTICO E RELIGIOSO DE JOÃO DAMASCENO

João Damasceno foi, como indica o nome pelo qual a história o consagrou, um cristão cujo
percurso eclesial se desenrolou primordialmente em Damasco, na Síria, então sob domínio
árabe. Sendo, por isso, oportuno estudarmos o contexto histórico e político de uma tal
conjuntura 3 , regressemos ao ano 610, em que desponta a peleja entre o rei da Pérsia e o
imperador de Bizâncio, quando os Persas, cuja religião era o Zoroastrismo, invadem a região da
Síria e da Palestina, perseguindo os cristãos fiéis a Bizâncio. Embora a vitória final tenha sido de
Bizâncio, a guerra e as perseguições enfraquecem ambas as potências, deixando o terreno aberto
à conquista islâmica que se havia de seguir.

No plano religioso, a situação era ainda mais frágil, e remonta aos concílios de Éfeso e
Calcedónia, que tinham originado três Igrejas diferentes, cada uma procurando eliminar as
facções rivais. Trata-se da Igreja calcedoniana, da Igreja monofisita, e da Igreja nestoriana.

A primeira é a Igreja oficial do Império Bizantino, na qual a querela sobre a pessoa de Jesus
regressara poucos anos antes, já não como monofisismo, mas como monotelismo. Introduzido
pelo imperador bizantino com a finalidade de reconciliar os diferentes partidos no Concílio de
Calcedónia, o monotelismo é uma doutrina que defende a dupla natureza de Cristo, como em
Calcedónia se afirma, mas a existência de apenas uma vontade. O resultado é, porém,
catastrófico: tido como heresia pelos calcedonianos, em vez de unir os cristãos, divide-os ainda
mais. Consequentemente, os calcedonianos, que, como Igreja do Império, tinham ficado do lado
dos vencedores, estão agora à margem do Império, e, embora maioritariamente de origem grega,
concentram-se primordialmente na região síria e palestina, ou seja, em redor dos patriarcas de
Antioquia e de Jerusalém.

A Igreja monofisita compõe-se dos partidários do monofisismo, derrotados em Calcedónia.


No entanto, desde o ano em que o Concílio teve lugar, em 451, até ao período da conquista
islâmica, os monofisitas forma contando com o apoio de alguns do imperadores bizantinos e
também, por conseguinte, de alguns patriarcas entronizados por influência imperador. É o caso
de Severo, Patriarca de Antioquia, que aderiu ao monofisismo com toda a hierarquia síria e
egípcia, entre os anos 512 e 518, fazendo desta a sua área primordial de influência, e do bispo Jacob
Bar Addai, aplidado Baradeu, sagrado bispo de Edessa, principal cidade da região influenciada
pelos monofisitas, em 543. Bar Addai desenvolverá um extenso trabalho no sentido de duplicar
a hierarquia da Calcedónia, pelo que a Igreja monofisita que daí resultou é também chamada
jacobita, tomando o nome deste seu grande estratega. Neste período, os jacobitas cunharão o


3 Neste ponto, seguiremos de perto a Introdução de Raymond Le Coz em SC 383, 23-40.



termo melquitas4 para designar os cristãos calcedonianos, a fim de desviar para estes últimos as
suspeitas dos conquistadores islâmicos.

A Igreja nestoriana, por sua vez, tem como partidários os herdeiros da doutrina nestoriana,
considerada herética no Concílio de Éfeso, em 431. Embora distinga enfaticamente, como
Calcedónia afirmará mais tarde, as duas naturezas na pessoa de Jesus Cristo, o nestorianismo –
que deve o seu nome ao Patriarca Nestório de Constantinopla – não aceita a união hipostática
dessas duas naturezas que em Éfeso se professa, sendo por isso condenada, perseguida, e levada
a refugiar-se em território persa, na Mesopotâmia, onde, pouco antes da conquista islâmica,
travam relações comerciais com as tribos árabes que se dirigiam àquela região para negociar com
o rei da Pérsia. Durante a ocupação da Síria pelos persas, que acima referimos, os nestorianos
participam activamente nos saques e pilhagens, e encorajam as perseguições contra os
calcedonianos e os jacobitas.

Em suma, no ano 632, quando a conquista islâmica da Síria e da Palestina tem o seu início, a
região está sob o domínio de um Império Bizantino esgotado pelas batalhas, e, no que toca à fé,
profundamente abalada por vários séculos de disputas cristológicas que levaram à formação de
três igrejas distintas e rivais. Paralelamente, no deserto da Síria, na Transjordânia, e a Sul do
actual Iraque encontram-se diversas tribos árabes nómadas, partidárias, por seu lado, das
distintas facções cristãs, mas de certo modo abertas à nova religião, para árabes e trazida também
por outros árabes, que conta igualmente com ensinamentos ligados à pessoa de Jesus, e que eles
percepcionam como uma nova versão do Cristianismo numa língua que é a sua, de um etnia que
era a sua, envolvida em costumes que eram também os seus. Assim, após a morte de Maomé,
rapidamente a fé islâmica se difundiu pela região, levando a que o Patriarca Sofrónio de
Jerusalém, calcedoniano, pouco tempo antes da sua morte, negociasse a rendição da cidade, em
636, com o califa Omar ibne Alcatabe, conseguindo o reconhecimento das liberdades civis e
religiosas dos cristãos em troca do pagamento de tributos anuais, no chamado Pacto de Omar.
Em Damasco, Mansour ibne Sarjun, avô de João Damasceno, ocupando sob o Imperador
Bizantino um cargo equiparável ao de governador da cidade, negociaria um pacto semelhante
com Khalid ibne al-Walid, este sob as ordens do mesmo Omar, e a conquista islâmica chega, em
638, a Antioquia e a Edessa, até toda a Síria se encontrar sob domínio árabe islâmico, em 642,
quando tanto Bizantinos como Persas se retiram de Alexandria.


4 O termo melquita vem de malka, que significa rei ou soberano, e tem o sentido pejorativo de “criados do
imperador”, uma vez que as resoluções tomadas em Calcedónia eram as mesmas do imperador Marciano,
monarca de Bizâncio entre 450 e 457, ano da sua morte. Cf. AZEVEDO, A., ed., Dicionário histórico de religiões,
2ª edição, Lexikon, Rio de Janeiro, 2012, 147.



A situação descrita – Império Bizantino enfraquecido, Igreja desintegrada, forte implantação
das populações árabes – explica uma boa parte das razões pelas quais, em menos de dez anos,
toda a região sucumbiu às tropas islâmicas. No entanto, os privilégios alcançados pelo Pacto de
Omar conferiram aos cristãos um estatuto especial no seio do califado árabe, o que perfaz uma
explicação complementar. É certo que uma tal liberdade religiosa e civil se devia a uma
necessidade de ordem económica e administrativa – o califado não dispunha de recursos nem
humanos nem materiais para se substituir às estruturas existentes –, mas uma tal tolerância não
se verificara no tempo da invasão persa acima descrita, nem viria a suceder quando os cruzados
cristãos regressassem à região alguns séculos mais tarde. Por outro lado, ainda que abrangidos
pelos acordos com o califado e outorgados com o estatuto de «protegidos», o peso do tributo a
que estavam sujeitos começou a fazer-se sentir e, por conseguinte, uma conversão ao islamismo
parecia gradualmente mais atractiva a quem queria escapar a esse esforço monetário.

No que toca especificamente a Damasco, o ano 661 traz uma mudança significativa. Com
efeito, é o ano em que no Califado, então liderado por Omar ibne Alcatabe e chamado Califado
Ortodoxo, se assiste a uma disputa dinástica, marcada pela chegada ao poder da dinastia Omíada
e do seu califa Moáuia I5, que instaura um regime hereditário de sucessão e transfere justamente
para Damasco a capital do Califado, que dentro de alguns anos se estenderá da fronteira com a
China ao Norte de África, abrangendo ainda a península Ibérica, até aos Pirenéus. Uma tal
extensão do Califado, em contraponto com o relativamente reduzido número de islâmicos,
obriga a que o território dominado seja necessariamente governado com recurso às elites das
populações conquistadas. Assim, na Síria, e concretamente em Damasco, não apenas a língua
local – o grego – se mantém, a par com o árabe, como os funcionários cristãos permanecem nos
seus postos, e a boa relação entre estes últimos e os membros do califado é encorajada, de tal
modo que se encontram testemunhos da amizade entre Moáuia e Sarjun ibne Mansour, o então
governador de Damasco, filho do anterior e já referido Mansour ibne Sarjun, e pai de João
Damasceno.

Embora islâmicos e cristãos tivessem já travado relação noutros ambientes, a novidade a que
se assiste em Damasco é que os islâmicos contactam pela primeira vez com uma sociedade cristã
erudita e letrada, e, por conseguinte, habituada a uma reflexão teológica desenvolvida e com
técnicas exegéticas elaboradas, que levavam a que as questões tratadas não fossem prerrogativa


5 A conjuntura islâmica está, neste período, também ela, dividida. Os líderes do Califado Ortodoxo são
destituídos, e os novos califas, a dinastia Omíada, chega ao poder. Os Omíadas autodenominam-se sunitas,
isto é, «os que suguem a tradição», e os Califas Ortodoxos destituídos são chamados «sunitas», que
literalmente significa «partidários». Com efeito, se os cristãos se encontram divididos por querelas
cristológicas, os islâmicos estão, também eles, separados por não chegarem a acordo sobre quem deva ser o
verdadeiro califa, isto é, o verdadeiro sucessor de Maomé.



de uns poucos iniciados, mas se estendessem a uma grande parcela da população cristã. Neste
contexto, o Islão, que começara a dar os primeiros passos de reflexão, encontra em Damasco a
possibilidade de colaborar com os cristãos no desenvolvimento do seu próprio edifício teológico,
colaboração que, de certo modo, se estende, pela porta do pensamento, a todas as áreas da vida
quotidiana.

A boa relação entre cristãos e islâmicos, porém, dura apenas alguns anos. Com Abdal
Malique, califa entre 685 e 705, o ambiente de colaboração começa a degradar-se, como resultado
das ainda frequentes guerras contra o Império Bizantino, junto das fronteiras estabelecidas, e o
peso tributário vai aumentando cada vez mais. Por seu lado, Ualide I (705-715), sucessor de Abdal,
procede a sucessivos massacres dos cristãos prisioneiros de guerra, força conversões ao Islão de
algumas tribos árabes jacobitas, e promove uma arabização na administração do Califado, com
o afastamento crescente dos cristãos dos cargos governativos. O califa Omar II, reinante de 717 a
720, deteriora ainda mais as relações islâmico-cristãs, exigindo aos cristãos o pagamento de um
tributo incomportável, expulsando-os de todas as suas funções administrativas, e chegando a
tomar medidas de humilhação pública, como a obrigação de envergar vestes identificativas e de
rezar em voz baixa, e a proibição da construção de novos lugares de culto cristãos.

Perante uma tal situação, a Igreja melquita, tomando consciência de que já não é realista
esperar pelo regresso do Império Bizantino à região, opta por uma colaboração algo submissa
aos novos governadores. E, a tudo isto, vem juntar-se a chamada Crise Iconoclasta, por influência
da tradição islâmica, que não aceita as imagens sagradas. Os melquitas em território sírio e sob
o domínio islâmico afastam-se ainda mais da autoridade do Imperador Bizantino, que é
iconoclasta, com a corajosa unanimidade dos Patriarcas de Jerusalém, Antioquia e Alexandria a
tomar partido em favor da veneração de imagens. Todavia, apesar de todos estes contratempos
e adversidades, com a Síria definitivamente conquistada e transformada em centro político do
mundo islâmico, assistindo-se a uma islamização progressiva das populações – embora
paradoxalmente refreada pelo próprio poder islâmico a fim de não perder excessivamente o
financiamento tributário –, verificando-se a quase total substituição da língua grega pelo árabe,
o século VIII é, para a Igreja melquita, o período mais fecundo da sua história em termos de
produção e pensamento teológico.

II. A CONTROVÉRSIA CRISTIANO-ISLÂMICA EM JOÃO DAMASCENO

O quadro político e religioso que acabámos de descrever é aquele em que se assiste à ascensão
intelectual e eclesial de João Damasceno, e notamos que, no que toca à crítica teológica do Islão,
o contexto em que surgiu e o ambiente em que se moveu foram factores determinantes para a



produção e difusão das obras referentes ao Islão, tanto a obra Disputatio Crhistiani et saraceni6,
que apenas referiremos ocasionalmente, como a obra em que nos focamos, O Islão, datada do
ano 743.

Este pequeno texto sobre a heresia dos Sarracenos está integrado no De haeresibus liber, o que,
de per si, é já um apontamento que merece ser aprofundado. Para João Damasceno, a fé eclesial
ortodoxa é vista como a única verdade e, por conseguinte, como o critério a partir do qual todas
as outras formas de culto, religiosidade, ensinamento ou prática devem ser avaliadas, de tal
modo que, nos casos em que alguma tradição professa algo que se afasta da fé bíblica, essa
mesma tradição é considerada herética. É, portanto, significativo que João recorra ao conceito
de «heresia» para se referir ao Islão, uma vez que, tal opção nos dá conta de que o Damasceno
não encarava os ensinamentos islâmicos como uma religião independente, como era o caso, por
exemplo, do Judaísmo, mas antes como um sistema doutrinário que competia com a fé ortodoxa
(calcedoniana) no interior de um contexto cristão. Na realidade, no ambiente de domínio
islâmico que o circundava, as crenças e tradições sustentadas pelo povo conquistador eram
apenas isso mesmo, assemelhando-se meramente a distorções das duas grandes religiões
presentes da região, o Judaísmo e Cristianismo. De facto, durante o século VIII, a religião que
viria a chamar-se islão estava ainda no seu processo formativo e as respectivas normas e
tradições, orais e escritas, encontravam-se longe do seu estado final. Aos olhos de João
Damasceno, efecivamente, o Islão era apenas uma mescla de crenças erróneas e distorcidas
advindas de interpretações erradas da tradição judaica e da tradição cristã. Noutras palavras,
uma heresia.

Em seguida, apresentamos uma possível sistematização 7 daqueles que considerámos os


traços fundamentais do assunto tratado pelo autor na sua obra.

1. Perspectiva histórica. Particularmente no início do escrito, mas de algum modo também


disperso por todo o tratado, João de Damasco opera uma abordagem histórica, expondo a sua
perspectiva sobre as origens da heresia dos ismaelitas e enumerando as diferentes designações
dadas aos islâmicos, embora se reconheça que certa etimologia é algo forçada.

2. O olhar sobre Maomé. Com efeito, logo depois dos parágrafos introdutórios, João vai dando
forma textual às suas considerações sobre o profeta Maomé, chamado «falso profeta». Com
efeito, o Damasceno acusa-o de conhecer apenas de um modo superficial o Antigo e o Novo
Testamentos e de ter desenvolvido a sua perspectiva sobre a pessoa de Jesus Cristo sob a
influência de um monge ariano. Na verdade, uma tal conexão entre Maomé e o Arianismo dá


6 Cf. Jo. D. Disp.
7 Cf. JANOSIK, D., John of Damascus: First Apologist to the Muslims, Pickwick Publications, Eugene OR, 2016, 90.



conta de que João capta adequadamente a principal objecção de Maomé ao cristianismo
calcedoniano, ou seja, a noção de consubstancialidade (homoousia) do Filho em relação ao Pai.
Os islamitas, de facto, argumentando que Deus não pode ter associados8, fazem de Jesus um ser
criado, não gerado, ao contrário da fé que se vai plasmando nos Concílios Ecuménicos dos
primeiros séculos, de Niceia a Calcedónia, e recusam a doutrina trinitária. É possível afirmar, na
linha de João Damasceno, que aquilo que viria a ser o Islão, já como religião independente ou,
pelo menos, como sistema estabilizado de crenças, se originou a partir do contacto do arianismo
com correntes semitas, algo que fortalece a ideia de considerar o Islão uma heresia cristã. Ainda
em redor deste tema, é feita uma outra acusação, a saber: Maomé difunde as suas escrituras9
sustentado no facto de que elas lhe foram reveladas durante o sono, como que descidas dos Céus,
muito embora não haja qualquer testemunhas fidedignas que o possam comprovar. Uma tal
pretensão estava, segundo o Damsaceno, em profundo contraste com a exigência dos costumes
e da jurisprudência de então, que requeriam a presença de testemunhas em actos tão menos
relevantes como o casamento e a aquisição de propriedades.

3. Os ensiamentos de Maomé sobre Cristo. Como desdobramento do ponto anterior, João aponta
o núcleo central da falsa crença sarracena, isto é, a representação de Deus a partir de um
monoteísmo estrito, que recusa qualquer multiplicidade ou distinção em Deus por considerar
associacionista essa doutrina. O Damasceno parece estar a referir-se à Sura 112 (Dizei: «Ele é
Allah, que é um, / Allah, o Eterno Refúgio, / Ele não gera, nem nasce, / Nem há diante d’Ele
qualquer equivalente), o que permite concluir que, em redor do ano 743, João tinha
efectivamente algum conhecimento directo das tradições corânicas, que utiliza, como neste caso,
para contrapor a doutrina sarracena à fé ortodoxa. Abordando esta acusação associacionista,
João Damasceno lidará com as três grandes objecções que os sarracenos têm face ao cristianismo
calcedoniano: a Trindade, a divindade de Jesus Cristo, e o mistério Pascal, ou seja, a fé na morte
de Jesus na Cruz e na sequente Ressurreição de entre os mortos. Com efeito, a impossibilidade
que o conteúdo da Sura 112 traz os Sarracenos gera estas três incompatibilidades em simultâneo:
se a doutrina da Trindade é considerada errónea por ser associacionista, então Cristo não pode
ter natureza divina, e não pode ter morrido na Cruz para perdoar os pecados, porque isso é algo
que está reservado a Deus. E, como é expectável, negar qualquer destas afirmações de fé é algo
incompatível com o Cristianismo ortodoxo. Quanto à narrativa islâmica que põe Jesus a negar a
sua divindade no momento da sua chegada ao Céu10, João limita-se a dizer que é algo absurdo e


8 O associacionismo – que, no texto que analisamos, corresponde a uma acusação dos islâmicos aos cristãos –
é uma doutrina que se afasta do monoteísmo, por associar ao Deus criador outras figuras divinas. Para os
islâmicos, o tratado clássico do cristianismo sobre a Trindade é visto como um mero associacionismo.
9 Note-se, porém, que a referência a estas escrituras pressupõe o reconhecimento da existência de algum tipo

de escritos que os islamitas preservavam e seguiam.


10 Cf. Jo. D. Haer., 101, 2.



risível, e não chega sequer a contrapor com os passos bíblicos apropriados. De modo semelhante
João contraria o carácter profético de Maomé, recorrendo à tradição bíblica e identificando nela
os requisitos divinos para que se seja profeta, mostrando como Maomé não preenche qualquer
desses requisitos, não podendo, por isso, ser com justiça chamado verdadeiro profeta.

4. Crítica aos ensinamentos de Maomé. Como resposta directa à acusação de associacionismo,


João designa a teologia islâmica como mutiladora de Deus, por «rasgar» a Trindade, uma vez que
se o Verbo e o Espírito são retirados de Deus, Ele torna-se um Deus menor, ou menor que Deus.
Com efeito, se houve um tempo em que Deus não tinha diante de si o seu Verbo (Jo 1, 111) e o seu
Espírito, então Deus estava incompleto. Do mesmo modo, se Deus tivesse, em determinado
momento, anexado a si o Verbo e o Espírito, então teria havido mudança no Imutável, uma vez
que a mudança é algo apenas admissível nas criaturas e não no Criador. Assim, argumenta São
João Damasceno, para preservar a fé de que Deus é o Criador, então é necessário afirmar-se que
o Verbo e Espírito estiveram desde sempre diante de Deus, como processões e, por conseguinte,
que o Verbo frui de um carácter eterno, não tem princípio nem fim, é gerado – lógica e não
cronologicamente – e não criado. Tendo em conta esta argumentação, que não é dirigida aos
islamitas mas a cristãos, podemos dizer que a finalidade a que o Damasceno se propõe é o
reafirmar da fé cristã aos próprios cristãos, noção suportada pelo facto de João não se demorar
em argumentações intrincadas nem persuasões elaboradas.

5. O conhecimento do Corão. João Damasceno faz referência directa a três suras corânicas e
também à sura da Camela, que não se encontra no texto final do Corão, embora seja ali referida,
ainda que indirectamente, e que João procura expor ao ridículo. Mas em termos corâncios, a
primeira referência directa é à sura 4, a sura da Mulher, em que João aborda a questão da
poligamia, consentida no mundo islâmico apenas para o homem, a quem é permitido desposar
até quatro mulheres, enquanto à mulher se consente apenas um marido. João, mais uma vez,
limita-se a referir esta permissão, na consciência de que basta uma referência a este tema para
descredibilizar o islamismo aos olhos de um cristão que leia este seu escrito, dada a imoralidade
que contém. A propósito do tema desta sura, João acusa Maomé de ter, em primeiro lugar,
cometido adultério, e só depois ter forjado uma legitimação em causa própria com a redacção da
Sura 4, bem como de proceder a outras coisas cuja grande imoralidade não permite que se
passem a escrito. Posteriormente, João Damasceno refere-se à sura da Mesa, sura 5, que é uma
das mais longas suras do Corão, fonte de grande número de matéria jurídica para as sociedades
islâmicas, bem como um dos passos corânicos em que se volta a afirmar, até de uma maneira
veemente, que as crenças cristãs primordiais, as três a que acima fazíamos referência, são


11 ho Lógos ên pròs tòn Théon.



erróneas. De modo semelhante, João menciona a sura 2, a sura da Vaca, mas também não faz
muito mais que uma referência à existência de tal escrito. Na realidade, é surpreendente que
João Damasceno quase não faça comentários a estes trechos, e essa surpresa faz que se levante a
hipótese de João não conhecer todo o texto destas suras. Com efeito, Yehuda Nevo afirma:

O texto de De Haersibus revela que João estava familiaraizado com muitas das tradições
árabes, e com parte – mas não a totalidade – do Corão. Na nossa opinião, (...) João conhecia
apenas as suras que parafraseou (sura 2 e 5), e algumas locuções que também se encontram
no Corão mas que provavelmente lhe são antecedentes. (...) Da nossa prte, o aspecto mais
interessante em João é que ele se refira ao material corânico como “livros” separados, não
como um só livro, e que apresente a história “A Camela de Deus” como um desses livros12.

É igualmente significativo que as suras com que João parece estar familiarizado pertençam
todas ao chamado período de Medina, isto é, ao conjunto de suras que teriam sido reveladas a
Maomé num período tardio da sua vida, enquanto habitava em Medina. E, de facto, assim parece
suceder, pese embora o facto de João ter vivido os primeiros quarenta anos da sua vida num
contexto islâmico. Uma explicação possível é a de que, tendo João redigido este escrito num
período tardio da sua vida, enquanto monge, não teria tido acesso, no interior do mosteiro, ao
texto corânico, e tenha podido apenas contar com a sua memória pessoal relativa às conversas e
discussões que tivera, muitos anos antes, com islamitas seus conhecidos.

6. As práticas dos Sarracenos. O tratado sobre a Heresia dos Ismaelitas encerra com um elenco
de costumes e práticas islâmicas, como a circuncisão, a recusa de observar o Sábado, de ser
baptizado, de beber qualquer espécie de vinho, de não se nutrir com determinados alimentos.

CONCLUSÃO

Em tom conclusivo, interessa sistematizar o que podemos dizer sobre o conhecimento que
São João Damasceno tinha sobre o Islão. Assim, devemos começar por dizer que João apresenta
o seu saber de uma forma ordenada e sistemática, com um domínio considerável da religião dos
islamitas, provavelmente acima do que conhecia a média dos árabes do seu tempo13, dominando
bem as suas fontes, estando a par dos ensinamentos mais centrais e dos conceitos mais nucleares
do Islão, particularmente daqueles que se relacionam, ainda que por oposição, com a doutrina
cristã, e estando familiarizado com a mentalidade islâmica.

Do mesmo modo, podemos afirmar que João Damasceno dominava a Cristologia islâmica e
a noção de profetismo aplicada pelo Islão do seu tempo a Maomé e que, embora o seu contributo


12 NEVO, Y., Crossroads to Islam, Prometheus Books, Nova Iorque NY, 2003, 238 (tradução livre a partir do inglês).
13 Cf. SAHAS, D., John of Damascus on Islam: The Heresy of Ishmaelites, Leiden-Brill, Waterloo, 1972, 95-96.



seja da ordem da controvérsia e da polémica e o seu tom não seja empático, João estava bem
informado relativamente ao Islão do seu tempo14.

Tais considerações parecem indicar que em meados do século VIII os escritos que haviam de
formar o Corão estavam ainda em processo de redação, colecção e edição no contexto de um
projecto para a execução de um livro que viria a ser a Escritura Sagrada da religião que
proximamente se viria a conhecer por Islão. Para João Damasceno, escrevendo por volta do ano
743, como acima já aludimos, a literatura sobre Maomé estava ainda incipiente, a religião era
ainda considerada uma heresia do contexto cristão, a doutrina era errónea, ou mesmo risível e
absurda.

Por fim, tendo em conta o que agora concluímos, se a percepção de João Damasceno é
acertada e o Corão estava a formar-se durante o século VIII, os escritos corânicos não podem
remontar directamente a Maomé, como pretende aquela tradição, uma vez que Maomé viveu
apenas nos séculos VI e VII e, por conseguinte, esta problemática ganha especial pertinência
para a teologia islâmica contemporânea.

ABREVIATURAS15

Disp. Disputatio Christiani et Saraceni

Haer. De Haersibus liber

Jo. D. João Damasceno

PG Patrologiae cursus completus (series Graeca)

SC Sources Chrétiennes


14 Cf. HOYLAND, R., Seeing Islam as others saw it, Darwin Press, Princeton NJ, 1997, 488.
15 Todas as abreviaturas estão listadas conforme LAMPE, G., ed., A Patristic Greek Lexicon, Clarendon Press,
Oxford, 1961.

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BIBLIOGRAFIA

Fontes

JOÃO DAMASCENO, De Haeresibus liber, in MIGNE, J.-P., ed., Joannis Damasceni, moachi et
presbyteri hierosolymitani. Opera omnia quae exstant, tomo I, Patrologiae cursos completus
(series Graeca), vol. 94, Migne, Paris, 1864, 578-780.

__________, De Haeresibus liber 101, in LE COZ, Raymond, ed., Jean Damascène. Écrits sur L’Islam,
Sources Chrétiennes, vol. 383, Cerf, Paris, 1992, 211-228.

__________, Disputatio Christiani et Saraceni, in LE COZ, Raymon, ed., Jean Damascène. Écrits sur
L’Islam, Sources Chrétiennes, vol. 383, Cerf, Paris, 1992, 229-252.

LE COZ, Raymon, ed., Jean Damascène. Écrits sur L’Islam, Sources Chrétiennes, vol. 383, Cerf,
Paris, 1992 [SC 383].

THE NOBLE QURAN, acedido on-line em quran.org.

Instrumentos de trabalho

AZEVEDO, A., ed., Dicionário histórico de religiões, 2ª edição, Lexikon, Rio de Janeiro, 2012

LAMPE, G., ed., A Patristic Greek Lexicon, Clarendon Press, Oxford, 1961.

Estudos

HOYLAND, R., Seeing Islam as others saw it, Darwin Press, Princeton NJ, 1997.

JANOSIK, D., John of Damascus: First Apologist to the Muslims, Pickwick Publications, Eugene OR,
2016.

NEVO, Y., Crossroads to Islam, Prometheus Books, Nova Iorque NY, 2003.

SAHAS, D., John of Damascus on Islam: The Heresy of Ishmaelites, Leiden-Brill, Waterloo, 1972.

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