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Como fazer um livro que trata de tudo – da formação dos filhos

ao cântico dos hinos, da pregação aos conflitos políticos – e


conseguir que isso transborde do glorioso evangelho? Nichols teve
êxito nisso. Alerta: as pessoas se esquecem de como o evangelho
realmente transforma vidas e, depois, assustam-se quando se
lembram disso ao lerem Lutero.
- D. Clair Davis, professor emérito de História da Igreja,
Seminário Teológico de Westminster, Filadélfia

Maravilhosa e interessante combinação de biografia, história e


teologia. Se você não sentir o pulsar da Reforma nestas páginas,
por favor, verifique sua pressão arterial!
- Sinclair Ferguson, autor, O Espírito Santo

Este atraente volume de Stephen Nichols merece ser lido na


íntegra. Como franco admirador de Lutero, espero que seja assim.
- J. I. Packer, professor de Teologia, Regent College

Nichols tem o dom de tornar simples um assunto complexo, sem


ser simplista.
- Michael A. Rogers, pastor, Igreja Presbiteriana de Westminster,
Lancaster, Pensilvânia

No momento em que celebramos o aniversário de 500 anos da


Reforma, devemos não apenas apreciar o modo profundo como
Deus usou Martinho Lutero, como também aprender com ele. O Dr.
Nichols nos dá uma visão de primeira linha da vida de Lutero.
Assim, ao observarmos esta obra, que tenhamos a mesma ousadia
e o mesmo compromisso em relação a toda a vida no evangelho.
- R. C. Sproul, fundador, Ministério Ligonier

É raro encontrarmos a rica combinação de precisão teológica e


paixão histórica escrita de uma forma tão acessível quanto temos
aqui no tratamento agradável do Dr. Nichols a respeito de Martinho
Lutero. Trata-se de uma maravilhosa introdução.
- Derek W. H. Thomas, professor de Teologia Sistemática e
Pastoral, Seminário Teológico Reformado, Atlanta

Aqueles que nada sabem sobre Lutero serão beneficiados por


esta introdução tão fácil de se ler, enquanto os que o conhecem
melhor testemunharão o entusiasmo contagiante de Nichols.
- Carl B. Trueman, professor de História da Igreja, Seminário
Teológico de Westminster, Filadélfia
Além as 95 teses: a vida, o pensamento e o legado de Martinho Lutero

traduzido do original em inglês


Beyond The 9 5 Theses
Martin Luther’s Life, Thought, and Lasting Legacy
Por Stephen J. Nichols
Copyright © 2016 Stephen J. Nichols

Publicado por P&R Publishing Company, P.O.


Box 817, Phillipsburg, New Jersey 08865-0817.

Copyright © 2017 Editora Fiel


Primeira edição em português: 2017

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Fiel da Missão Evangélica
Literária

PROIBIDA A REPRODUÇÃO DESTE LIVRO POR QUAISQUER MEIOS, SEM A


PERMISSÃO ESCRITA DOS EDITORES, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM
INDICAÇÃO DA FONTE.

Diretor: James Richard Denham III


Editor: Tiago J. Santos Filho
Tradutor: Elizabeth Gomes
Revisor: Shirley Lima
Diagramação: Rubner Durais
Capa: Rubner Durais
Ebook: Yuri Freire
ISBN: 978-85-8132-433-3
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
N622a Nichols, Stephen J.
Além das noventa e cinco teses : a vida, o pensamento
e o legado de Martinho Lutero / Stephen J. Nichols ;
[tradução: Elizabeth Gomes]. – São José dos Campos,
SP: Fiel, 2017.
2Mb ; ePUB

Tradução de: Beyond the ninety-five theses : Martin


Luther's life, thought, and lasting...
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-8132-433-3

1. Lutero, Martinho, 1483-1546. 2. Reformadores –


Alemanha - Biografia. 3. Biografia cristã - Alemanha
I.Título.
CDD: 922.4

Caixa Postal, 1601


CEP 12230-971
São José dos Campos-SP
PABX.: (12) 3919-9999
www.editorafiel.com.br
Para Benjamin Hunt Nichols,

que você possa crescer apreciando


e assumindo a rica herança da igreja de Cristo!
SUMÁRIO

Lista de Ilustrações
Prefácio
Agradecimentos
Introdução: O Legado de Martinho Lutero

Parte 1: Lutero, uma Vida


1. Os Primeiros Anos: 1483-1521
2. Os Últimos Anos: 1522-1546

Parte 2: Lutero, o Reformador


3. O Cerne do Problema: Entendendo a Teologia de Lutero
4. Nunca mais o Silêncio: Os Três Tratados
5. A Peça Central da Reforma: O cativeiro da vontade
6. Este é o Meu Corpo: Confissão sobre a Ceia do Senhor
7. Pragas, Príncipes e Camponeses: Escritos Éticos

Parte 3: Lutero, o Pastor


8. A Próxima Geração: Catecismo menor
9. Jantar com Lutero: “Conversa à Mesa”
10. Uma Nova Canção Começou: Os Hinos
11. As Marcas de uma Igreja Verdadeira: Sobre os concílios e a
igreja
12. O Pastor Relutante: Os Sermões

Parte 4: As 95 Teses de Lutero


13. As 95 Teses Comentadas: Discussão sobre o Poder e a Eficácia
das Indulgências

Breve Guia para os Livros de e sobre Martinho Lutero


Bibliografia
ILUSTRAÇÕES

1.1 Linha do Tempo: Primeiros Anos


1.2 O Lutero de Sete Cabeças (1529)
1.3 Página de Rosto do Exame de predestinação eterna, de Johann
von Staupitz (1517)
2.1 Linha do Tempo: Anos Derradeiros
2.2 Sansão Mata um Leão, Frontispício do Panfleto de Lutero em
Resposta aos Teólogos Católicos de Louvain
2.3 Martinho Lutero (1546)
3.1 Os Solas da Reforma
3.2 Página de Rosto de Comentário sobre Gálatas, de Lutero.
4.1 O Ano Decisivo de Lutero (1520)
4.2 Página de Rosto da Bula Papal Proferida por Leão X (1520)
5.1 Desidério Erasmo (1466-1536)
6.1 Principais Escritos sobre a Ceia do Senhor e Eventos
Relacionados
6.2 Ulrico Zuínglio (1484-1531)
7.1 Principais Escritos sobre Ética
7.2 Página de Rosto do Panfleto (1527)
8.1 Página de Rosto do Livro ABC para crianças, de Lutero
8.2 Frontispício da edição alemã do Catecismo menor, de Lutero
9.1 Noites no Lar de Lutero
10.1 “Castelo Forte é nosso Deus”
10.2 O Castelo de Wartburg
11.1 Marcas da Verdadeira Igreja
11.2 Culto Luterano de Adoração (por volta de 1550)
12.1 Ilustração de Lucas Cranach de Gênesis 22, da Tradução para
o Alemão da Bíblia por Lutero (1523)
PREFÁCIO

M
ARTINHO LUTERO saiu do Claustro Negro em
Wittenberg. Nesse prédio, ele e seus companheiros, todos
monges agostinianos, acadêmicos da universidade e
estudantes, ensinavam e aprendiam, comiam e bebiam, oravam e
dormiam. Foi ali que Martinho Lutero viveu. Também era ali que ele
escrevia. Ele cruzou o portão na direção oeste, guiado pela torre do
sino da igreja Schlosskirche, ou Igreja do Castelo, que se erguia
sobre a vila de Wittenberg. Lutero era capaz de fazer esse percurso
enquanto dormia. Um quilômetro à frente, ele chegou a seu destino.
Martinho Lutero passou o ano de 1517 em conflito. De fato, ele
estivera perturbado nos últimos 12 anos e, infelizmente, isso se
estendeu por muitos anos ainda. Em 1505, ele se viu em meio a
uma tempestade violenta, de raios e trovões, que ele concluiu ser o
juízo de Deus sobre a sua alma, e a forma de Deus aniquilá-lo. Sem
alternativa, Lutero tomou uma decisão. Ele entraria no monastério e
dedicaria sua vida a buscar piedade e paz com Deus – isso se Deus
poupasse sua vida daquela tempestade que ameaçava aniquilá-lo.
Desde então até 1517, os problemas de Lutero só aumentaram.
A paz parecia fugir dele. Ele tinha muita expectativa em relação à
igreja e, naquela época, só existia uma opção, a Igreja Católica
Romana, mas, ali, Lutero experimentava desilusão após desilusão.
Sua viagem a Roma, à Santa Sé, deixara-o totalmente esgotado.
Lá, Lutero começou a ouvir histórias de causar arrepios e
reviravoltas no estômago. Nas regiões vizinhas, vendiam-se
indulgências. A “Indulgência de Pedro”, como era chamada,
resultara de uma negociação feita entre Alberto, arcebispo de
Mainz, e o papa Leão X. De forma inédita, essas indulgências
ofereciam aos compradores passe livre para o céu. Também
ofereciam alívio do purgatório para os parentes que estavam ali
sofrendo. Bastava, para tanto, que se lançasse uma moeda no
cofre.
Naquele verão, Lutero conseguiu uma cópia da “Instrução
Sumária”. Esse documento, preparado por Alberto e seus teólogos,
dava instruções explícitas aos pregadores de vendas de
indulgências – a quem Lutero chamava de “mascates”. O
documento em si era bastante perturbador, pois zombava da lei da
igreja. E pior: os próprios membros da paróquia de Lutero, em
Wittenberg, estavam viajando para a região de Alberto e comprando
indulgências, em uma espiral descendente em suas vidas. Mas qual
incentivo eles tinham para agir de outro modo? Eles tinham sua
indulgência: uma passagem livre para sair da prisão.
Lutero sentia, de forma contundente, essa pressão. A indulgência
contava com o selo de aprovação do papa, mas estava claro que
não havia garantia alguma. A tensão interior de Lutero aumentava
enquanto ele assistia ao mal que estava sendo feito.
À medida que o outono se aproximava de Wittenberg, com o ar
se tornando cada vez mais frio e as folhas mudando de cor, Lutero
não podia mais ficar calado. Afinal, ele era doutor em Teologia
Sagrada. Era sacerdote. Era bem-treinado, e ocupava uma posição
que o obrigava a servir à igreja, mesmo que isso significasse
repreendê-la. Assim, ele encheu seu tinteiro, sentou-se à
escrivaninha e começou a trabalhar. Quando terminou de escrever,
tinha 95 argumentos e observações a respeito da venda de
indulgências. Então, preparou-se para um debate. E, naquele
mesmo dia, enviou uma carta a Alberto, arcebispo de Mainz. Lutero
planejava afixar à carta uma cópia de suas teses, de modo a
possibilitar que seus colegas acadêmicos de Wittenberg se
envolvessem no debate. Assim, ele levou sua cópia e um martelo e
dirigiu-se para o portão oeste, do lado de fora da igreja do castelo.
Quinhentos anos mais tarde, celebramos esse momento da
história, pois, efetivamente, esse ato se tornou história. O que
Lutero fez no último dia de outubro de 1517 deu início à Reforma
Protestante, impactando a igreja e a cultura por mais de cinco
séculos. Foi realmente um evento notável, executado por uma das
figuras mais empolgantes da história.
A afixação das 95 Teses no portal da igreja permanece como um
momento épico na vida de Lutero. Mas esse não é o único. Outros
momentos definidores viriam depois de 31 de outubro de 1517.
Muito mais coisas fluiriam da pena e do tinteiro de Lutero do que
somente as 95 teses.
Este livro oferece uma turnê orientada da vida de Martinho
Lutero, de seus escritos e pensamentos. Tem por objetivo não
apenas que valorizemos Lutero e seu legado, mas também que
encontremos a mesma confiança em Deus, o Castelo Forte, em sua
Palavra certeira e em Cristo e sua obra completa na cruz. Assim,
podemos olhar para trás e sentir gratidão pela vida e o legado de
Lutero.
Que nós também possamos olhar adiante! Se Cristo se demorar
em seu retorno e a igreja chegar ao ano de 2517, será que haverá
razão para celebrarmos nossos atos e nosso legado?
Nossa celebração do passado nos lembra da obrigação que
temos no presente de nosso compromisso em relação ao futuro.
Olhar para frente nos parece o melhor modo de celebrar o
aniversário de quinhentos anos da postagem das 95 teses de
Martinho Lutero.
AGRADECIMENTOS

S
OU GRATO aos amigos da editora P&R Publishing,
incluindo Bryce Craig, Amanda Martin e Ian Thompson.
Obrigado por seu apoio para esta nova edição. Também
sou grato aos meus colegas de Ligonier e da Faculdade Bíblica da
Reforma. Há muito tempo desejo voltar no tempo e ter apenas uma
refeição com Lutero. Trabalhar com R. C. Sproul está bem próximo
disso. Caleb Gorton, Anthony Salangsang, Megan Taylor, Emberlee
van Eyk e Jeanna Will, todos me ajudaram a chegar à reta final.
Sem o bondoso encorajamento de Chris Larson, esta nova edição
provavelmente não teria acontecido.
Lutero era, acima de tudo, um homem de família. Eu também sou
grato à minha família por seu amor sem limites. Obrigado.
INTRODUÇÃO
O Legado de Martinho Lutero

T
OMADO DE PURO PAVOR, ele fez um juramento à sua
santa padroeira. Desiludido, questionou as práticas da igreja
à qual dedicara sua vida. E, de modo resoluto, afixou uma
lista de protestos na porta da igreja. Com total satisfação, ele
abraçou a ideia libertadora de que a justiça de Deus é uma dádiva, e
não um merecimento. Em face de intensa batalha espiritual, ele
clamou por Deus, seu “castelo forte”, seu “baluarte que nunca falha”.
Esses são momentos decisivos na vida de Martinho Lutero. A
maioria – embora nem todos os cristãos – conhece esses momentos
decisivos. A maioria também sabe que, a cada movimento do
martelo na porta da igreja de Wittenberg, Lutero provocou a
Reforma Protestante. Porém, muito mais que isso, esses
acontecimentos também servem para formar nossas vidas, pois
encarnam a Reforma, estabelecendo o fundamento do
Protestantismo. Certo historiador comentou que qualquer vestígio do
Cristianismo na cultura ocidental se deve inteiramente a esse
homem, Martinho Lutero.
No entanto, apesar de Lutero ser bastante conhecido, para além
de alguns momentos significativos, boa parte de sua vida ainda
representa um mistério para a maior parte dos cristãos. Embora
seus escritos formem o berço do Protestantismo e articulem os
princípios essenciais da teologia reformada, ainda permanecem sem
ser lidos por muitas pessoas nos dias atuais. Essa falta de
conhecimento acerca da obra de Lutero é exatamente a razão para
este livro. Trata-se de uma tentativa de colocar seus descendentes
há muito perdidos em contato com seu legado, um convite para
dedicar algum tempo à mesa de Lutero, a fim de examinar sua vida
e ouvir suas ideias. Tais ideias, contudo, não são relíquias do
passado. Com certeza, seu pensamento inspirou toda uma geração
em seus próprios dias e também tem o poder de impactar a igreja
de hoje, acendendo, em nossa própria geração, uma busca
apaixonada por Deus e por sua verdade. São abundantes as
biografias sobre Lutero, e as obras especializadas a respeito de seu
pensamento enchem de livros muitas prateleiras. Seus próprios
escritos continuam a ser publicados séculos depois de sua morte.
Com toda a atenção dispensada a Lutero, pode-se perguntar o
porquê disso. Ou seja, o que demanda tanta atenção em Lutero?
O Legado de Lutero
O papel de Lutero como catalisador da Reforma é a principal razão
para tal interesse perene nele. Imagine um mundo sem o
Protestantismo. Se você fosse um jovem monge agostiniano nas
primeiras décadas do século XVI, não seria difícil imaginar. Para
Lutero, a realidade era um mundo sem o Protestantismo. Suas
escolhas eram claras: ou a Igreja Católica Romana ou o paganismo.
Como monge, claro, ele abraçava a primeira opção. Quando Lutero
morreu, em 1546, contudo, o mundo havia mudado de forma
significativa. Assim, entre o Catolicismo Romano e o paganismo,
agora havia uma ampla gama de escolhas, incluindo o Luteranismo,
o Anabatismo, a Igreja Reformada, o Anglicanismo e o
Presbiterianismo. Essas opções religiosas simplesmente não
existiam em 1517. Naquele ano, Lutero deu início a um mar de
mudanças e reformas que abalariam todo o mundo.
Antes do desafio de Lutero, no sentido de transformar a igreja,
diversas tentativas de reforma haviam ocorrido. Alguns movimentos,
como a Devotio Moderna (Nova Devoção), criticavam a apática
espiritualidade, como também a vasta riqueza da igreja. No entanto,
embora as objeções fossem profundas, o movimento não contava
com uma base teológica sólida para elaborar suas críticas. Outros
movimentos, ainda que mais teologicamente orientados, também
não tiveram êxito em reformar a igreja. Na Inglaterra, John Wycliffe
e, na Boêmia (a moderna República Checa), John Hus prepararam
desafios formidáveis, mas foram esmagados pelo poder de Roma.
Hus foi queimado em um poste e, embora Wycliffe tenha morrido de
causas naturais, a igreja o exumou e queimou seus ossos.
Contudo, ainda que esses reformadores da pré-Reforma não
tenham logrado uma mudança permanente, firmaram um importante
alicerce sobre o qual Lutero construiu. Na verdade, Lutero
reconheceu essas valiosas contribuições dos reformadores
anteriores à Reforma. De Wycliffe, Lutero reconheceu a importância
de se colocar a Bíblia nas mãos do povo em uma língua que todos
pudessem entender. De Hus, Lutero aprendeu a desafiar as
diversas práticas e funções da igreja que se opunham às Escrituras.
Da Devotio Moderna, Lutero entendeu também que a falta de vigor
espiritual da igreja deveria ser desafiada. No entanto, de uma forma
diferente em relação a esse movimento, ele sabia que tal desafio
teria de ser construído sobre um firme fundamento teológico. Na
verdade, ao debater com Erasmo sobre as questões da vontade e
do livre-arbítrio, Lutero destaca que a preocupação central para a
igreja é sempre teológica. Tirem a doutrina, Lutero argumenta, e não
se tem uma igreja.
Lutero se mostrava cético quanto ao entendimento teológico
básico da igreja desde meados de 1510, quando começou a
palestrar, em Wittenberg, a respeito dos Salmos, de Romanos,
Gálatas e Hebreus. Sua primeira restrição contra a igreja, contudo,
manifestou-se com a contemplação dos severos problemas
causados pelas indulgências. Claro, esse erro levou à publicação
das 95 teses em Wittenberg. Por meio desse evento, e também com
a recuperação da doutrina da justificação pela fé, sua posição
corajosa diante da igreja e do império na Dieta de Worms, bem
como sua incansável dedicação à edificação de uma igreja
alicerçada tão somente na Escritura, Lutero atuou como arquiteto da
Reforma. Seu trabalho em Wittenberg agitou as terras alemãs e
toda a Europa. Na época de sua morte, o Protestantismo e a nova
igreja evangélica estavam firmemente estabelecidos.
Mas Lutero não chama a atenção apenas por seu envolvimento
nos eventos da Reforma; ele também desempenhou importante
papel na formação das ideias reformadas. Talvez mais que qualquer
outra pessoa, Lutero moldou os pressupostos que definem o
Protestantismo. Os teólogos utilizam uma série de expressões
latinas que encerram esses conceitos. Conhecidas como os “Solas
da Reforma”, essas expressões incluem sola Scriptura, só a
Escritura; sola fide, somente a fé; sola gratia, somente pela graça;
solus Christus, somente Cristo; e soli Deo gloria, somente para a
glória de Deus. Todas essas ideias encontram raiz no pensamento
de Martinho Lutero. O fato de elas continuarem a definir o
Cristianismo é um testemunho duradouro da influência de Lutero.
Lutero chama a atenção também por sua personalidade
empolgante. “Dizem que a indiscrição”, Lutero comentou certa vez,
“é minha maior falha”. Em consequência disso, tanto seus escritos
como seus atos são recheados de humor pungente e vívido. Sua
personalidade marcante se estende às conversas e aos escritos.
Certamente, ler alguns trechos de suas “Conversas à mesa” fará
algumas pessoas ficarem ruborizadas. Além do mais, quando se
tratava de envolver seus inimigos, era raro Lutero mostrar um
linguajar contido. De alguma maneira, essas não são
necessariamente características positivas. Contudo, a atitude
transparente de Lutero e, por vezes, sua candura oferecem
numerosas historietas e vinhetas que, ainda hoje, continuam a
fascinar os leitores. Algumas vezes, as figuras históricas podem
parecer unidimensionais para as futuras gerações de leitores.
Costumamos reunir as facetas da pessoa por meio de diversos
relatos distintos, mas vemos o retrato pessoal um tanto ofuscado.
Esse não é o caso de Lutero. O retrato pessoal que surge de Lutero,
a despeito de seus pequenos pecados, é um tanto enternecedor.
Friedrich Nietzsche, luterano alemão, pelo menos em um
momento de sua vida declarou que somos “humanos, todos
humanos demais”. Tal sentimento também descreve Lutero.
Saudado pelo artista alemão Hans Holbein como o “Hércules
alemão”, Lutero parecia, para muitos, maior que a própria vida. Mas,
na realidade, embora ele tivesse pernas de ferro, seus pés eram de
barro. Talvez a maior falta de Lutero se reflita em sua atitude severa
contra os judeus em uma fase tardia de sua vida. Assim, em vez de
esconder essas falhas ou enfatizá-las ao extremo, somos bem-
servidos ao reconhecê-las. Apesar do retrato de Holbein, Lutero era
bastante humano. Isso não funciona como uma desculpa para seus
erros, mas nos lembra que, embora admiremos Lutero, também
devemos vê-lo como um pecador salvo pela graça.
Finalmente, o incansável compromisso de Lutero para com a
igreja lhe garante lugar de destaque na história. Ele demonstrou
surpreendente versatilidade, coragem nos momentos decisivos e
resistência para suportar a caminhada. É raro encontrarmos a
combinação de um visionário que também consegue implementar
sua visão. A vida de Lutero oferece um desses casos raros. Ele não
somente se posicionou de maneira ousada e apontou a direção
certa para a igreja, como também dedicou sua vida a conduzi-la
nesse caminho. Lutero trabalhou incansavelmente, muitas vezes
com grande sacrifício pessoal, para garantir que a igreja vicejasse
no período em que viveu e para além dele. Essas razões, ao lado de
outras, consubstanciam a atenção difundida que Lutero recebe. Nos
capítulos seguintes, continuaremos a examinar por que Lutero não
apenas recebe tanta atenção, como também as razões pelas quais
a merece.
Visão Panorâmica
Começamos nossa turnê de Martinho Lutero levando em conta sua
vida repleta de eventos. No Capítulo 1, traçamos os passos iniciais
de sua vida pela estrada até a Reforma Protestante. Com a
conclusão de seus estudos e após uma experiência traumática
durante uma tempestade, Lutero entra no monastério. Cerca de
doze anos depois, o papa o declara herege. Seguindo o confronto
decisivo na Dieta de Worms, Lutero entra em seu “exílio” no Castelo
de Wartburg. No Capítulo 2, prosseguimos com a narrativa de sua
vida, iniciando por sua volta a Wittenberg e terminando com as
últimas décadas de sua vida.
A Segunda Parte apresenta diversas discussões acerca de
Lutero, o Reformador. No Capítulo 3, oferecemos uma visão geral
de sua teologia. O capítulo seguinte envolve os Três Tratados,
textos fulcrais dos meses relativos ao outono de 1520. A obra
máxima de Lutero, O cativeiro da vontade, é o foco do Capítulo 5,
que aborda o que Lutero chamou de “ponto vital” da Reforma. Aqui,
exploramos esse texto crucial que desenvolve o entendimento de
Lutero sobre o livre-arbítrio e a soberania de Deus. No Capítulo 6,
examinamos a Ceia do Senhor e o papel que isso desempenhou na
Reforma. A Segunda Parte se encerra quando examinamos o
pensamento e os escritos de Lutero relativos à ética. Alguns
acontecimentos históricos fundamentais de seus dias, como a
Guerra dos Camponeses e a Peste em Wittenberg, ajudam-nos a
ver a aplicação do pensamento de Lutero.
Lutero devotou a maior parte de seus esforços à teologia e à
prática da igreja. Na Terceira Parte, continuamos nossa turnê da
vida e do pensamento de Lutero ao examinar suas contribuições à
vida da igreja. O Catecismo menor, assunto do Capítulo 7, perdura
como testemunho ao reconhecimento de Lutero acerca do papel da
igreja em treinar corretamente a próxima geração. O Capítulo 8
volta-se para um texto singular na história da igreja, as Conversas à
mesa de Lutero. Aqui, Lutero vivencia sua teologia de modo
transparente diante de sua família, seus colegas e alunos, enquanto
todos se reúnem em torno da mesa de jantar. Devido à sagacidade
tanto de Lutero como de alguns estudantes e escribas, podemos
“escutar” essas conversas.
Embora todos nós conheçamos o hino “Castelo Forte é Nosso
Deus”, de Lutero, talvez não estejamos familiarizados com o lugar
de destaque que a música desempenhava em sua vida. O Capítulo
10 oferece a oportunidade de ingressar nessa parte da experiência
de Lutero. No Capítulo 11, exploramos as ideias de Lutero sobre o
que é a “verdadeira igreja”, ao estudarmos um de seus textos
menos conhecidos, porém profundos, Sobre os concílios e a igreja.
Finalmente, Lutero deixou uma enorme quantidade de sermões.
Examinamos um sermão em especial, “Sobre como contemplar o
santo sofrimento de Cristo”, como representativo de seus
aproximadamente seis mil sermões.
Em suma, este livro apresenta tanto a vida como o pensamento
de Martinho Lutero. Não é nossa intenção dispensar um tratamento
exaustivo a qualquer um desses aspectos. De forma ideal, seria de
muita valia incluir muitos outros textos e assuntos para mostrar
Lutero em toda a sua genialidade. Mas, em termos práticos, isso
esgotaria igualmente a paciência do leitor e do escritor. A coleção
mais completa dos escritos de Lutero em língua inglesa totaliza 55
volumes e cobre apenas cerca de metade da sua obra. Assim,
escolhi os textos e assuntos que parecem cruciais ao pensamento
de Lutero. Portanto, este livro tem a intenção de familiarizá-lo com
Lutero, o que servirá como portal para uma melhor análise de sua
vida e de seu pensamento. A conclusão oferece algumas sugestões
e diretrizes para que se prossiga nessa jornada.
Após a morte de Lutero, seu grande amigo, o artista Lucas
Cranach, pintou um último retrato do reformador. Cranach captou
toda a vida e o propósito de Lutero nesse quadro de três painéis,
que foi instalado na Igreja do Castelo de Wittenberg. O painel direito
mostra Lutero no púlpito, proclamando a Palavra de Deus, enquanto
pastoreia fielmente seu rebanho. Com uma Bíblia aberta à sua
frente, ele se posta de pé, apontando para a congregação. À
esquerda, o painel mostra uma congregação reunida, escutando
atentamente o reformador. Cranach pintou a esposa de Lutero,
Katie, um filho e até mesmo sua filha Magdalena, que morrera
alguns anos antes, na congregação. Mas eles não estão olhando
diretamente para Lutero. O painel central mostra Cristo na cruz.
Tomados coletivamente, os três painéis expressam, de maneira
pungente, a paixão de Lutero ao apontar para que todos vissem
Cristo. Mais especificamente, quando olhamos para Lutero, ele nos
remete a todos para Cristo. É dessa forma que ofereço este livro,
que, embora aponte para Lutero, nos direciona a Cristo. Em última
instância, esse é o legado de Martinho Lutero.
M
ARTINHO LUTERO teve uma vida plena; assim, todo
biógrafo é desafiado quando se vê diante da questão do
que deixar de fora. Com apenas dois capítulos
especificamente dedicados à biografia, enfrentamos, de modo
especial, esse desafio. No entanto, procurei abordar os eventos
cruciais da vida de Lutero. Esses acontecimentos, examinados no
Capítulo 1, incluem momentos decisivos, como o juramento feito
durante a tempestade de trovões e raios que o enviou ao
monastério, a postagem das 95 teses, que o lançou ao centro da
atenção em 1517, e a descoberta da Reforma da justificação pela
fé, que “abriu os portais do paraíso” para ele, tornando-se a
mensagem fundamental para tudo que ele pregava. Esse capítulo
se encerra com a ousada posição de Lutero diante da Dieta de
Worms e, então, descreve seu “sequestro”.
No capítulo seguinte, retomamos o fio da história quando Lutero
retorna de seu exílio no Castelo de Wartburg. Os eventos que se
desenrolam nesses últimos anos incluem o casamento do ex-monge
com uma ex-freira, o estabelecimento da primeira casa pastoral da
era moderna, o encontro decisivo com o teólogo Ulrico Zuínglio, em
Marburg, e o compromisso incansável de estabelecer a recém-
formada igreja. Através do estudo dos acontecimentos de seus
primeiros anos, como também dos últimos, começamos a entender
por que Lutero figura com tamanha proeminência nas páginas da
história, e por que continua a fascinar os leitores cinco séculos
depois de sua morte.
Capítulo 1
OS PRIMEIROS ANOS
1483-1521

“Se ainda há sentido para a civilização cristã no Ocidente, esse


homem, Lutero, em não pouca medida merece tal crédito.”
ROLAND BAINTON

“Martinho Lutero, o Reformador, é uma das pessoas mais


extraordinárias da história e deixou uma impressão mais profunda de
sua presença no mundo moderno que qualquer outro, à exceção de
Colombo.”
RALPH WALDO EMERSON

E
M 1529, JOHANNES COCHLAEUS escreveu um folheto
atacando Martinho Lutero. Intitulado “Lutero de Sete
Cabeças”, colocava em destaque uma xilogravura na
página de rosto com a caricatura de Lutero como um indivíduo
perigosamente conflitante que, de acordo com o escritor,
representava uma grande risco para a igreja, em virtude de suas
diversas e contraditórias personalidades. Um retrato mostra Lutero
como um louco com abelhas sobrevoando sua cabeça. A
xilogravura final o mostra como Barrabás, deixando implícito que ele
era o próprio inimigo de Cristo.
O papa Leão X, que, inicialmente, via os disparates de Lutero
como nada mais que delírios de um alemão bêbado, passou a
apontar Lutero como arqui-inimigo da igreja, conseguindo reunir
tanto a igreja como o império contra o monge alemão. E, mesmo na
morte de Lutero, muitos questionavam qual teria sido seu verdadeiro
legado. Teria sido ele um instrumento de Deus? Ou uma ferramenta
na mão do diabo?
No entanto, um ponto no qual os estudiosos concordam é que o
mundo em que nasceu “Martin Luder”, em 10 de novembro de 1483,
era bem diferente daquele que ele deixou em 18 de fevereiro de
1546. As décadas em que viveu contiveram mudanças e
turbulências sem precedentes, e Martinho Lutero esteve no centro
de tudo isso. Porém, Lutero experimentou um início bastante
modesto para uma figura tão proeminente. Como escreveu em sua
fase madura: “Venho de uma família de camponeses”. E continuou:

Quem imaginaria que eu receberia um bacharelado e depois um


mestrado em Artes para, em seguida, abandonar minha boina marrom
de estudante para deixá-la para outros, a fim de me tornar monge,
obtendo para mim, então, tamanha vergonha que meu pai ficou
amargamente descontente; e que, a despeito de tudo isso, eu
incomodaria o papa e tomaria por esposa uma freira fugitiva? Quem
teria previsto isso para mim?

Figura 1.1 Linha do tempo: Primeiros Anos


1483 Nascido em 10 de novembro, em Eisleben
1492-98 Frequenta a escola em Mansfield, Magdeburg, e em Eisenach
1501- Frequenta a Universidade de Erfurt; recebe B.A. (1502), M.A. (1505)
05
1505 Faz um voto durante uma tempestade de trovões, em 2 de julho.
Entra no monastério
1507 É ordenado
1509 Recebe B.A. em Bíblia. Começa a lecionar em Erfurt sobre as artes
Figura 1.1 Linha do tempo: Primeiros Anos
1510 Faz uma peregrinação a Roma
1511 Entra no Claustro Negro, monastério agostiniano em Wittenberg
1512 Recebe doutorado em teologia. Designado para o corpo docente de
teologia em Wittenberg
1513-17 Leciona sobre Salmos, Romanos, Gálatas e Hebreus
1517 Posta as 95 teses na porta da igreja, em 31 de outubro
1518 Debate contra Cajetan em Augsburg
1518-19 Possível data para início da Reforma (ou 1515–16)
1519 Debates contra Eck em Leipzig
1520 Escreve Três Tratados
1520 Recebe a Bula Papal
1521 Aparece na Dieta de Worms no período de 16 a 18 de abril
1521 É colocado sob banimento imperial e condenado como herege fora
da lei em maio
1521 Vai para o “exílio”, no castelo de Wartburg
A Educação Inicial de Lutero
Poucos teriam previsto os desdobramentos da vida de Lutero,
especialmente seus pais. Hans e Margeret Luder mudaram-se de
Esleben, Alemanha, lugar onde Lutero nasceu e foi batizado, para
Mansfield, durante o primeiro ano de vida do filho. Em Mansfield,
Hans prosseguiu com seu trabalho como mineiro, supervisonando
dois fornos de fusão e provendo, cuidadosamente, a educação do
jovem Martinho. Assim, em vez de trabalhar na infância – a sina da
maior parte dos jovens camponeses –, Lutero frequentou a escola,
onde estudou latim, gramática elementar e o essencial da educação
religiosa: os Dez Mandamentos, a Oração do Senhor e os credos
infantis. A essa altura, ele escolheu a versão latinizada de seu
nome, Lutero, em vez da alemã, Luder.
Quando Lutero completou 14 anos, seus pais o enviaram para
continuar os estudos no monastério de Magdeburg. Esse
monastério estava sob a jurisdição da ordem da Irmandade da Vida
Comum, conhecida por sua piedade e por ter, entre seus membros,
Tomás de Kempis, autor do clássico devocional A imitação de
Cristo. Magdeburg era uma escola respeitada e, consequentemente,
muito cara. Os modestos proventos da família de Lutero mal davam
para pagar seu primeiro ano, razão pela qual, a exemplo de outros
estudantes camponeses, ele passou a mendigar na rua por seu pão.
“Panem propter Deum”, pão pelo amor de Deus, era a expressão
que, com frequência, saía da lingua de Lutero quando ele
mendigava pelas ruas de Magdeburg.
No ano seguinte, Lutero continuou com seus estudos em
Eisenach. Presumivelmente, Eisenach atraía Lutero por razões tanto
acadêmicas como financeiras. A mãe de Lutero tinha parentes por
perto que, sem dúvida, ofereciam algum alívio, como também
eventuais refeições. Mas foi uma senhora idosa da cidade que,
admirando a capacidade e a decisão de Lutero, cuidou dele de
maneira especial. No entanto, mesmo com essa ajuda, o período
que Lutero passou em Eisenach foi uma verdadeira batalha. A
despeito desse desafio, contudo, ele se superava nos estudos,
sendo o melhor da classe. Seus feitos lhe permitiram, assim, passar
para Erfurt, onde estudaria Direito, concretizando o sonho que seus
pais tinham para sua vida. Ao entrar numa profissão tão nobre, os
pais esperavam que ele escapasse da classe de agricultores e
trouxesse honra e status para o nome da família. Em Erfurt, ele
recebeu seu bacharelado em 1502, e seu mestrado, em 1505.
Ambos o preparariam para estudos futuros de Direito e um
doutorado em Jurisprudência.
Eu Serei um Monge
O estudo em Erfurt representou, em muitos aspectos, um ponto de
virada na vida de Lutero. Em sua caminhada diária, ele via uma
escultura que despertava sua atenção. A imagem mostrava Cristo
como juiz, com uma espada presa entre os dentes e o olhar
penetrante. Essa imagem, não somente nas interpretações
medievais de Cristo, assombrou Lutero durante muitos anos, na
medida em que ele contemplava sua própria culpa diante de Deus.
Uma palavra alemã específica nos ajuda a entender o verdadeiro
impacto dessa imagem sobre a vida de Lutero: anfechtung.
Traduzida como “crise” ou “luta”, no caso de Lutero se encaixaria
melhor como intensa luta espiritual e crise. Na verdade, é melhor
usar a palavra no plural, anfechtungen, pois, na realidade, é uma
série de crises espirituais que marca o início da vida de estudo de
Lutero.
Após completar o mestrado em Artes, em janeiro de 1505, Lutero
permaneceu em Erfurt para receber treinamento especializado em
Direito. Ele se superava no campo das leis e estava no caminho
certo para cumprir o desejo do pai. Em junho daquele ano, viajou
para casa em Mansfield. Na volta para Erfurt, Lutero foi pego em
violenta tempestade de trovões. Nesse momento, ele ficou
paralisado pela tempestade e atribuiu elevado significado espiritual
a ela, crendo que Deus havia soltado os trovões do céu para julgar
sua alma. Em total desespero, clamou a Santa Ana, padroeira dos
mineiros: “Ajudai-me Santa Ana, e eu me tornarei monge”. Isso
aconteceu em 2 de julho de 1505. Exatamente duas semanas mais
tarde, Lutero ofereceu uma festa a seus colegas, entregando a eles
seus livros de Direito e sua boina de mestre, e se retirou dos
estudos de doutorado. Na ocasião, Lutero disse-lhes que, no dia
seguinte, entraria para o monastério.

Lutero desejava obter a bênção do pai por trocar a boina de


mestre pela túnica de monge; essa bênção, porém, não veio. Como
se recorda Lutero: “Quando me tornei monge, meu pai quase ficou
louco. Estava muito aflito e recusava-se a me dar sua permissão”.
Mais tarde, em 1521, Lutero desculpou-se por haver desobedecido
aos pais em sua dedicatória de Sobre os votos monásticos, dirigido
a seu pai. Quinze anos antes desse livro, e apesar da recusa de
seus pais, Lutero entrara no monastério. Todos os candidatos eram
aceitos em experiência durante um ano. Durante esse período como
“noviço”, Lutero se lançou ao rigor da vida monástica e completou
esse ano de estágio. Tomou o hábito de monge em 1506, em uma
cerimônia que culminou com Lutero prostrando-se diante do abade.
De forma irônica, foi essa imagem, sobre a lápide, que cobriu o
túmulo do principal acusador do reformador Jan Hus. Nessa lápide,
estava a assombrosa imagem de Cristo como juiz. Seus pais não
atenderam ao convite para comparecer à cerimônia. Lutero
esperava que, com sua entrada no monastério, resolveria suas
crises espirituais. Mas, na realidade, elas só aumentaram. Um ano
após seu juramento a Santa Ana, Lutero foi abandonado por sua
família e também se sentia gravemente abandonado por Deus.
Anos mais tarde, Lutero refletiu sobre sua vida de monge: “Eu fui
monge por vinte anos. Eu me torturava com orações, jejuns,
guardando vigílias e congelando-me – só o frio já era suficiente para
me matar –, e infligia sobre mim tanta dor que jamais faria isso de
novo, mesmo que conseguisse”. Na verdade, Lutero cumpria seus
deveres com tamanho rigor que exclamou: “Se algum monge
chegasse ao céu simplesmente por ser monge, eu deveria tê-lo
alcançado. Todos os meus companheiros do monastério me
conheciam e podiam testificar isso”. Ele conclui suas lembranças
observando: “Se tivesse durado mais um pouco, eu teria me matado
de vigílias, orações, leituras e outros labores”. Mas ainda não havia
solução para suas crises espirituais.
No final da primeira década do século XVI, dois acontecimentos
impactaram profundamente o jovem monge, colocando-o em um
decurso que viria a revolucionar a igreja. Seu prior, ou superior, em
Erfurt muitas vezes expressara ao abade, Johann von Staupitz, sua
exasperação com o jovem Martinho Lutero. Staupitz, contudo,
embora confuso pelas lutas espirituais de Lutero, reconhecia a
capacidade intelectual e o futuro do jovem. Ordenou, assim, que
Lutero fosse transferido para o monastério de Wittenberg.
Poucos anos antes, Staupitz e outros haviam fundado a
Universidade de Wittenberg. Frederico, o Sábio, não poupara gastos
para tornar sua nova universidade rival das universidades já
estabelecidas que cobriam as terras alemãs e além delas. Ele
queria contar com o melhor e mais brilhante corpo docente, e
aprovava, de coração, a escolha de Lutero. O treinamento de
Lutero, contudo, não era em Bíblia e teologia; assim, antes de iniciar
sua carreira como professor de Bíblia e teologia, mais uma vez ele
se tornou estudante. Enquanto estudava em Wittenberg, ele dava
aulas de Artes e sobre Aristóteles. Assim, Staupitz esperava que a
ocupação mental com a academia abafasse as muitas lutas
interiores de Lutero. Mas ele estava errado.
Lutero começou a obter seu segundo conjunto de graduações,
recebendo outro bacharelado de Artes em Bíblia, em 1509. Na
ocasião, foi enviado de volta a Erfurt, na qualidade de professor.
Enquanto permaneceu ali, o monastério de Erfurt necessitou enviar
alguns documentos a Roma. Staupitz, então, viu esse pedido como
uma oportunidade para Lutero fazer a paz com Deus, acreditando
que a Cidade Santa lhe faria muito bem à alma. Assim, Lutero e
outro monge embarcaram em sua peregrinação a Roma em 1510,
percorrendo a mesma rota que milhares de monges, no passar dos
séculos da era medieval, haviam trilhado. Prevendo que depararia
com um paraíso espiritual, Lutero descobriu, em vez disso, algo
mais parecido com a “feira das vaidades” descrita por John Bunyan
em O peregrino. “Quando vi Roma pela primeira vez, joguei-me no
chão, ergui as mãos e disse: “Ave a ti, ó Santa Roma”, recorda ele.
Porém, essa impressão rapidamente se dissipou. Ele continua:
“Ninguém consegue imaginar a desonestidade, a horrível
pecaminosidade e a devassidão desenfreada de Roma”. Ao subir a
escadaria de Pôncio Pilatos, recitando o Pai-Nosso a cada degrau,
sua desilusão só fez aumentar. Ao chegar ao topo, ele exclamou:
“Quem sabe se isso é verdade?”.
A viagem a Roma não aquietou a tempestade que agitava a alma
de Lutero. Certa ocasião, após o seu retorno, Lutero se encontrou
com Staupitz no jardim do claustro de Wittenberg. Staupitz não
conseguia entender por que Lutero não compreendia o amor de
Deus por ele. “Amar a Deus?”, retrucou Lutero. “Não posso amar a
Deus; eu o odeio.” Staupitz não tinha solução para o jovem, exceto
mandar que ele fizesse um doutorado em Teologia. Novamente, ele
argumentou que o estudo dos pais da igreja e a tradição medieval
acabariam com sua luta com Deus. Em 1512, Lutero recebeu seu
doutorado, não em seu curso de Direito, que fora sua intenção
original, mas em Teologia, afiliando-se ao corpo docente daquela
disciplina em Wittenberg.
Acadêmico em Wittenberg
Na época, Lutero ainda não tinha consciência, mas essa prescrição
de mais estudos correspondia exatamente às suas necessidades,
embora não tenha dissipado, de imediato, as negras nuvens
espirituais. Na verdade, a vida ficaria até pior antes de melhorar.
Lutero se lançou nas palestras e no trabalho de doutorado,
começando com o livro de Pedro Lombardo: Quatro livros das
sentenças (1158). Esse tratamento sistemático e lógico da doutrina
servira como livro-texto de Teologia desde 1200 até os dias de
Lutero, estendendo-se para além deles. Tal obra tinha tamanha
influência que era preciso dominá-la inteiramente para se qualificar
ao grau de doutorado nas universidades medievais.
Algo na leitura que Lutero fizera de Lombardo chamou sua
atenção para Agostinho. Nas notas de rodapé de sua cópia de
Sentenças, Lutero rabiscou várias referências ao grande e antigo
pai da igreja. Enquanto voltava o foco para Agostinho, foi
imediatamente conduzido por ele até Paulo. As notas de Lutero nas
margens mostram também que esse aspirante a teólogo encontrava
dificuldades para conciliar o que lia em Paulo e Agostinho com
Lombardo e alguns ensinamentos da igreja na alta Idade Média e
em seus últimos anos. Especificamente as questões acerca da
vontade humana e do pecado deixavam Lutero perplexo. As notas
também mostravam que ele afirmava conceitos medievais católicos
sobre fé e salvação. Mas, já em 1512, Lutero começava a discordar
de Roma quanto a essas duas últimas questões.
As perguntas fervilharam lentamente até 1517, e suas
consequências foram experimentadas após Lutero haver afixado as
95 teses no portão de Wittenberg. Nos anos intermediários, ele
continuou com seu trabalho em Wittenberg, ensinando, pregando,
orando e, ainda assim, duvidando, sondando e questionando. Além
de suas palestras de Teologia extraídas das Sentenças de
Lombardo, ele preparava aulas sobre os Salmos (1513-1515),
depois Romanos, Gálatas e Hebreus (1515-1518). Nessas aulas,
Lutero refletia o humanismo do século XVI. Essa nova abordagem,
contudo, não deve ser confundida com o humanismo secular de
nossos dias. O humanismo expressava o espírito da Renascença,
enfatizando um retorno às culturas grega e romana. Era, de muitas
formas, um movimento reacionário contra as tradições medievais.
Tal abordagem, chamada de escolasticismo, ressaltava os pais
latinos mais recentes e o pensamento de Aristóteles. O
escolasticismo enfatizava os comentários medievais sobre
Aristóteles – e até mesmo os comentários sobre os comentários –, e
não, primariamente, seus escritos. Como os andaimes em volta de
um prédio, esses comentários bloqueavam a linha direta às fontes.
O humanismo propôs mover-se para além dos andaimes com o
seguinte grito de guerra: “Ad Fontes” (“para as fontes” ou “às
origens”). Nesse espírito, Lutero foi além dos andaimes que
obstruíam a Bíblia, partindo diretamente para o texto bíblico.
E, quando Lutero foi ao texto, continuou a encontrar dificuldade
para reconciliar a Escritura com o ensinamento da igreja. Em seu
trabalho sobre os Salmos, como outros exegetas ou intérpretes
medievais, ele aplicava boa parte do texto, especialmente os
elementos da majestade, a Cristo. Porém, diferente dos outros, ele
também aplicava os elementos de sofrimento e de servidão a Cristo.
Para Lutero, Cristo era visto tanto em sua majestade como em sua
humildade, em altura e em rebaixamento, como rei e como mendigo.
Mas, para os líderes da igreja romana, a eles somente o lado
majestoso de Cristo interessava.
Alguns anos mais tarde, essa diferença entre Lutero e a igreja
tornou-se ainda mais ampla, quando Lutero passou a articular sua
teologia como uma “teologia da cruz”, contra a “teologia da glória”.
Ele não apenas pensava sobre Cristo de um modo diferente de seus
contemporâneos, como também pensava diferente sobre pecado e
salvação, conforme evidenciado em seus escritos sobre Romanos,
Gálatas e Hebreus.
Seus pensamentos sobre pecado e salvação são examinados,
com mais detalhes, em outros capítulos; por ora, fazemos apenas
uma breve menção às suas ideias-chave, o que nos ajudará a
visualizar a progressão de seu pensamento. O primeiro conceito
envolve um entendimento do pecado que vai além dos pecados
individuais cometidos. Conforme Lutero entende Paulo, nosso
pecado é como a raiz de uma planta; assim como a raiz está no
cerne da planta e a permeia, também o pecado está em nossa vida.
Lutero usa a palavra latina para raiz, radix, como uma figura vívida
de nossa verdadeira natureza como pecadores de raiz. O resultado
desse entendimento é que o perdão e a redenção terão de ir além
dos pecados que cometemos como indivíduos e de tratar nossa
natureza como pecadores. Tal reconhecimento está em intenso
conflito com o sistema medieval penitencial e confissional, baseado
nos pecados individuais.
Quanto à salvação, a ideia-chave que Lutero começa a examinar
é de “justiça alheia”. Esse termo quer dizer simplesmente que a
justiça que Deus requer, na condição de nosso justo juiz, não pode
ser produzida por nós, porque somos pecadores desde a raiz. Essa
justiça tem de vir de fora de nós; em consequência, é alheia a nós, e
não inerente ou com origem em nós mesmos. Alguns anos seriam
necessários até que essas ideias chegassem a uma plena fruição
para Lutero, mas, já em 1516, seu pensamento estava se
direcionando ao grande princípio da Reforma de sola fide, ou da
justificação somente pela fé. Com tal entendimento, Lutero estava
se afastando de Roma.
As 95 teses
Durante esses anos, Lutero esteve no palco central de um dos
eventos mais significativos da história ocidental: a postagem das 95
teses no portão da igreja de Wittenberg, em 31 de outubro de 1517.
Em seu prefácio a tal documento, Lutero explicou seus motivos: “Por
amor à verdade e pelo desejo de trazê-la à luz, as seguintes
proposições serão discutidas em Wittenberg, sob a supervisão do
reverendo padre Martinho Lutero... [que] pede que aqueles que não
puderem estar presentes para debater conosco oralmente, façam-no
mais tarde, por carta”.
Lutero nunca conseguiu ter esse debate; as 95 teses, escritas
originalmente em latim, foram rapidamente traduzidas e distribuídas
por toda a Alemanha e além dela. Uma cópia chegou às mãos do
papa Leão X, que descartou o documento como nada mais que as
divagações de um alemão embriagado, o qual, ele acreditava,
pensaria de modo bem diferente quando estivesse sóbrio. A questão
das 95 Teses, uma série de curtas proposições apresentadas para
um argumento, concerne às indulgências e à venda específica de
indulgências pelo monge Tetzel. Tetzel estava em uma missão para
Alberto de Mainz. Alberto já havia excedido todos os limites da lei
canônica ao manter duas dioceses enquanto tentava tornar-se
arcebispo de Mainz. Leão X, papa naquela época, concedeu a
necessária dispensa papal, mas isso teve um preço. Leão X, da
família Médici, de Florença, era um mecenas apaixonado pelas
artes. Ao decidir que seu legado, a grande Capela Sistina da
Basílica de São Paulo, não teria paralelos, ele angariou a
assistência de artistas como Rafael, Dürer e Michelangelo. Esse
empenho, obviamente, custou muito caro e exauriu os cofres da
igreja. Em consequência, Alberto poderia ter seu arcebispado se
oferecesse dinheiro para essa empreitada.
A grande riqueza de Alberto consistia principalmente de grandes
propriedades de terra, e não de moeda, mas Tetzel inventou um
esquema para levantar os fundos necessários: as indulgências.
Mas, para entendermos as indulgências, temos de, em primeiro
lugar, conhecer o sistema de penitência para a igreja romana. A
penitência envolvia quatro passos: contrição, confissão, satisfação e
absolvição. A indulgência de Tetzel, que vinha com o selo de
aprovação de Leão X, solapava esse processo ao reduzir os
primeiros três passos para um só, bastante simples: a compra de
uma ficha de indulgência. Com a indulgência, Tetzel assegurava a
seus compradores a plena absolvição ou o “completo perdão de
todos os pecados”. Tetzel oferecia indulgências para as pessoas e
também para seus parentes mortos que estivessem sofrendo no
purgatório.
Suas indulgências encontraram um mercado pronto, mas
também um monge muito irado. Quando Lutero ouviu falar das
indulgências e da forma como os paroquianos de Wittenberg
viajavam a curta distância até Mainz para comprá-las, redigiu,
febrilmente, as 95 teses. Lutero tinha claramente em vista Tetzel
quando se referiu a “mascates das indulgências” e a “luxúria e
licensiosidade dos pregadores de indulgências”. Estava bastante
cônscio do motivo final de Tetzel e procurava expô-lo: “Os cristãos
devem aprender que, se o papa soubesse das exigências dos
pregadores de indulgências, preferiria que a igreja de São Pedro se
tornasse cinzas a ser construída com a pele, a carne e os ossos de
suas ovelhas”.
A Tese 53 explica ainda por que essa posição causava tantos
problemas para Lutero: “São os inimigos de Cristo e do papa que
mandam calar a Palavra de Deus em algumas igrejas, a fim de
pregar o perdão em outras”. A venda de indulgências amarrou as
mãos de Lutero. Como poderia pregar sobre boas obras e seguir a
Escritura se seus párocos podiam simplesmente mostrar seus
bilhetes de indulgências? Lutero argumentava principalmente contra
as indulgências com base no entendimento da igreja do que seria
penitência. Mais tarde, ele escreveu: “Certamente, eu imaginava
que, nesse aspecto, eu contaria com a proteção do papa, em cuja
confiabilidade eu me apoiava fortemente, pois, em seus decretos,
ele teria condenado a imoderação dos pregadores de indulgências”.
Lamentavelmente, Lutero nunca recebeu o apoio de Leão X; em
vez disso, esse ato iniciou, para Lutero, um caminho que o levaria
para bem longe de Roma. A essa altura e ao longo dos dois anos
seguintes, Lutero ainda desejava reformar a igreja por dentro, pois
não tinha a intenção de quebrar relações com ela. Porém, ao
desenvolver seu entendimento teológico, logo Lutero percebeu a
impossibilidade de prosseguir com essa abordagem.
A Descoberta da Reforma
Estudiosos de Lutero discordam quanto à data exata da conversão
do reformador. Sugere-se, em geral, que vai de 1513 a 1520. É mais
provável, contudo, que Lutero se tenha convertido em 1515-1516 ou
1518. A evidência em favor da data mais precoce apoia-se, em
grande parte, em alguns de seus comentários nas palestras sobre
Romanos. Evidências em prol do ano de 1518 incluem alguns de
seus comentários nas 95 Teses, que não são coerentes com a
justificação pela fé. Isso tem mais peso quando consideramos como
Lutero, em seus anos mais tardios, desgostou-se desses escritos,
em razão de seu conteúdo. Além disso, há ainda o próprio
testemunho de Lutero acerca de sua descoberta da Reforma,
registrado em 1545, no prefácio à edição latina de suas obras
coligidas, que aponta esta descoberta como tendo sido em de 1518.
Lutero relembra que isso se deu após proferir suas palestras sobre
Romanos, Gálatas e Hebreus, quando já estava em curso sua
segunda série de palestras sobre os Salmos, em 1518.
Enquanto se debate a data da conversão de Lutero, a natureza
em si dessa conversão permanece notável. Para Lutero, a
verdadeira fé significava enfrentar a justiça de Deus em Romanos
1.17, passagem em que Paulo exclama que “a justiça de Deus se
revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: ‘O justo viverá
pela fé’”. No entanto, embora Lutero refletisse sobre a justiça de
Deus, não a abraçou logo de início; pelo contrário, ele declara: “Eu
odiava o Deus justo que castiga os pecadores (...); assim, eu estava
furioso, com uma consciência feroz e perturbada”. Odiava a justiça
de Deus porque entendia que significava o que ele teria de alcançar.
Sua ruptura, com a solução de suas lutas espirituais de longa
duração, veio quando, “pela misericórdia de Deus”, ele finalmente
percebeu que a justiça a que Paulo se refere, requerida por Deus,
não é algo que tenhamos de merecer, mas algo que Cristo realizou
por nós. Assim, ele explica:

Ali comecei a entender que a justiça de Deus é aquela pela qual o justo
vive por um dom de Deus, ou seja, pela fé. Este é o significado: a
justiça de Deus é revelada pelo evangelho, ou seja, a justiça passiva
com que o Deus misericordioso nos justifica pela fé (...). Aqui eu senti
que nasci totalmente de novo e entrei pelas portas abertas no paraíso.

O resultado disso foi que Lutero trocou sua ira contra Deus por
amor. Ele escreveu: “Eu exaltava essa mais doce palavra com um
amor tão grande quanto era o ódio que eu tinha antes da expressão
‘justiça de Deus’”.
Lutero deixou de ver a justiça como ativa, algo que ele tinha de
fazer, para algo passivo, que Cristo realizara em seu lugar, adquirido
não por nossos méritos, mas somente pela fé. Nasceu, então, o
lema da Reforma – sola fide, somente a fé –, e Lutero nasceu de
novo.
Debates com Roma
O resultado de haver escrito as 95 Teses e de sua conversão foi que
Lutero recebeu uma convocação de Roma para explicar seu
comportamento. Mas, através da intercessão de Frederico, o Sábio,
ele não compareceu. Se tivesse ido, talvez jamais tivesse voltado;
assim, foi convocado a Augsburgo, em meados de outubro de 1518,
para debater com o cardeal Cajetan. Tratava-se, de fato, mais de
uma inquisição do que de um debate, e a reunião teve pouco
sucesso. As duas partes falavam além do outro. Lutero enfatizou a
autoridade da Escritura e a salvação pela fé. Nenhum desses
pontos era compreendido por Cajetan, muito menos lhe parecia
persuasivo. A intenção de Cajetan era forçar Lutero a se retratar
quanto aos seus escritos e às suas ideias, ou conseguir evidências
para condená-lo como herege. Embora estivesse claro para Cajetan
que Lutero era radical, ele se mostrou incapaz de extrair quaisquer
comentários claros do reformador que pudessem condená-lo como
herege. Lutero saiu da reunião incerto quanto ao que representaria
o próximo movimento da igreja; Cajetan saiu de lá sem uma
retratação ou uma prova de heresia.
Lutero encontrou um opositor muito maior em Leipzig, no debate
de 1519: Johann Eck, um teólogo que também era professor na
prestigiosa Universidade de Ingolstadt. Eck começara a escrever
contra Lutero assim que as primeiras cópias das 95 Teses surgiram
da impressora. Oficialmente, os debates se deram entre Eck e
Andreas Karlstadt, colega sênior de Teologia de Lutero, em
Wittenberg. Mas, na realidade, o debate se desenrolou entre Eck e
Lutero. Eck adotou uma estratégia de efeito: alinhou Lutero a
Wycliffe e Hus, ambos condenados como hereges. Lutero,
consequentemente, tornou-se culpado apenas por associação.
Porém, para Lutero, o debate ofereceu uma plataforma para a
exposição de sua doutrina sobre a autoridade da Escritura,
conhecida como sola Scriptura (somente a Escritura). O
compromisso de Lutero com a autoridade da Escritura acima da
autoridade dos pais da igreja, dos concílios e até mesmo do papa
ressoou durante todo o debate. A certa altura, Lutero chegou a
ponto de dizer que até mesmo um menino de escola, armado com o
texto, seria mais bem preparado do que o próprio papa.
Esse debate, diferente do que tivera com Cajetan, não deixou
margem à ambiguidade quanto ao resultado; Martinho Lutero estava
fora da conformidade em relação à igreja. Porém, ele ainda não fora
declarado herege. Mas Eck se esforçou diligentemente para esse
fim e, em 1520, obteve a bula papal que declarava oficialmente
Lutero como inimigo da igreja, inimigo dos apóstolos e inimigo do
próprio Cristo. Intitulada “Exsurge, Domine” (“Levanta, ó Senhor”), a
bula de Leão X, proclamada em 15 de junho de 1520, clamava pela
imediata detenção do “selvagem javali na vinha de Deus”. A Lutero,
o javali selvagem, não dava alternativa: ele tinha apenas sessenta
dias depois do recebimento da bula para se retratar. Se não o
fizesse, “sua memória [seria] completamente extirpada da
comunidade dos crentes em Cristo”. Seus livros seriam queimados,
e ele e seus seguidores, bem como seus apoiadores, seriam
tomados à força e enviados para Roma.
A bula papal chegou em um momento bem conturbado para
Lutero. Naquele outono, ele escrevera o que foi chamado
popularmente de Três Tratados. Esse trabalho, discutido em
detalhes no Capítulo 4, acentuou a quebra entre Lutero e a igreja.
Ele, contudo, encontrou tempo para responder por escrito à bula
papal: Sobre a Detestável Bula do Anticristo. Inicialmente, Lutero
gostava de Leão X. A certa altura da carta remetida ao papa em
1518, Lutero expressou pesar por Leão X ser o chefe da igreja,
dizendo: “Tu merecias ser papa em dias melhores”. Por volta de
1520, contudo, esse sentimento mudou, e Lutero se referia a Leão X
como o Anticristo. Quanto à bula papal, quando se passaram os
sessenta dias, Lutero a queimou publicamente em Wittenberg.
Quando o papa recebeu esse informe sobre Lutero, excomungou-o
e conclamou sua imediata entrega a Roma.
A Dieta de Worms
Nesse momento, o palco estava pronto para a luta final entre Lutero
e a igreja. E, mais uma vez, Frederico, o Sábio, interveio e evitou
que Lutero fosse levado para Roma. Em vez disso, ele deveria
apresentar-se perante a Dieta, o congresso Imperial em Worms, em
abril de 1521. Depois da afixação das 95 Teses, esse é o
acontecimento mais conhecido da vida de Lutero. Seu surgimento
em Worms alcançou proporções quase míticas. Carlos V, imperador
do Sacro Império Romano, supervisionava a Dieta.
Como notam muitos historiadores, o Sacro Império Romano não
era santo, nem romano, tampouco um grande império. Na verdade,
tratava-se de uma confederação solta cujo futuro era precário. Esse
era o primeiro encontro de Carlos V com os príncipes e
governadores da Alemanha, e ele não poderia ter planejado um
desafio mais complicado. Por um lado, ele era católico romano
convicto e tinha uma grande dívida para com a cúria romana. O
núncio papal, Alexandre, estava ali para garantir que os interesses
de Roma fossem protegidos. Por outro lado, Carlos V ascendera ao
trono, em grande parte, pela influência de Frederico, o Sábio,
protetor de Lutero.
Charles V estava em uma posição extremamente delicada;
Lutero, igualmente. Lutero chegara com as boas-vindas de herói em
Worms, armado para – e esperando por – um debate. Ele tinha a
Escritura a seu lado, tinha Agostinho a seu lado e tinha argumentos
que apelariam para seus compatriotas alemães também a seu lado.
Por que, arrazoou Lutero, deveríamos abdicar de nossa autoridade
local alemã de governar nossas terras e de praticar nossa religião
em prol do papa, em Roma?
Mas, em vez de se envolver em um debate, Lutero sofreu uma
inquisição. Chegada a hora de ele aparecer diante da Dieta, foram
feitas duas perguntas apenas: “Esses são teus escritos?” e “Tu te
retratarás?”. Lutero ficou atônito diante da assembleia. Como
poderiam esperar que ele se retratasse? Seus escritos continham as
palavras da Escritura, as palavras dos concílios e até mesmo
palavras dos papas. Ele não poderia simplesmente descartá-las.
Além do mais, Lutero quis saber o que exatamente em seus escritos
havia perturbado tanto Carlos V. Lutero estava disposto a admitir
que estava errado se isso fosse provado. Roma, porém, não estava
interessada em provar o equívoco de Lutero; os líderes queriam
apenas que ele fosse embora. Lutero pediu um dia para pensar no
assunto, e Carlos V anuiu. No dia seguinte, 18 de abril de 1521,
mais uma vez Lutero ficou de pé diante da Dieta de Worms. Mais
uma vez, pediu um debate e, mais uma vez, isso lhe foi negado.
Então, ele proferiu seu discurso famoso e sucinto, em que se lê na
íntegra:

Como vossa serena majestade e vossos senhorios buscam uma


resposta simples, eu a darei da seguinte forma, sem rodeios: A não ser
que eu seja convencido pelo testemunho das Escrituras ou por uma
razão bem clara, pois não confio no papa ou em concílios
isoladamente, já que é sabido que frequentemente eles têm errado e se
contradizem, estou atado às Escrituras que tenho citado, e minha
consciência é cativa da Palavra de Deus. Não posso me retratar de
nada, nem farei isso, já que não é seguro nem certo ir contra a
consciência. Não posso fazer de outro modo: aqui eu me firmo. Que
Deus me ajude, Amém!

Há controvérsia sobre se realmente Lutero teria proferido estas


famosas palavras: Aqui me firmo. A primeira versão impressa da
fala contém, como a última parte, as seguintes palavras: “Não posso
fazer de outro modo, aqui me firmo. Deus me ajude”, em alemão,
enquanto o material anterior é escrito em latim. Essas três palavras
não aparecem na transcrição da fala. Não existe controvérsia,
porém, acerca do resultado da fala de Lutero. Recusando-se a se
retratar, ele admitia ser culpado e selou sua condenação como
herege. Rapidamente, os nobres alemães o cercaram e conduziram
em segurança para fora do salão. Carlos V emitiu uma carta no dia
seguinte afirmando sua intenção de ver o “notório herege”
imediatamente punido. Porém, em primeiro lugar ele tinha de voltar
a atenção para outros assuntos. Finalmente, em maio, quando ficou
claro que os nobres alemães não entregariam Lutero às autoridades
papais, Carlos V o colocou sob banimento imperial. Lutero poderia
ser caçado e morto por qualquer pessoa – uma lei sob a qual ele
viveu pelo resto da vida. Além disso, qualquer um que protegesse
Lutero também cairia sob a mesma condenação. Frederico, o Sábio,
previra acertadamente o resultado de Worms. Ele planejou o
sequestro de Lutero e o levou a um de seus castelos. Frederico
certificou-se de que Lutero não soubesse para onde seria levado.
Por quase um ano, Lutero assumiu uma nova identidade: Junker
Jorg. Ele usou disfarces e, a certa altura, até mesmo vestiu-se de
mulher, para evitar ser descoberto, escondendo-se no castelo de
Frederico, na cumeeira de Wartburg. Esse monge, sozinho,
manteve-se firme contra toda a igreja e o império. As atividades de
Lutero, antes consideradas por Leão X apenas desvarios de um
alemão bêbado, agora ameaçavam a ascendência da igreja na
Alemanha e por toda a Europa.
O “exílio em Patmos”, como Lutero se referia a seu esconderijo
no castelo de Frederico, contudo, não estava isento de dificuldades.
Na verdade, nesses dias, Lutero enfrentou algumas das lutas
espirituais mais intensas de sua vida – ou anfechtungen, em alemão
–, as quais caracterizaram sua vida inicial. Seus atos não tinham
precedentes: ele havia desafiado a igreja e, agora, estava
condenado como seu inimigo, inimigo do evangelho e inimigo do
próprio Cristo. Durante essa intensa batalha espiritual em Wartburg,
relatam que Lutero teria jogado um tinteiro contra a parede quando
o diabo apareceu para atormentá-lo. Embora isso possa ser apenas
mito, sem dúvida Lutero estava sob ataque. Escrevendo a um
amigo, ele disse:

Nessa solidão lúdica, estou exposto a mil diabos. É muito mais fácil
lutar contra o diabo encarnado – ou seja, as pessoas – do que contra
os espíritos de iniquidade nos lugares celestiais. Muitas vezes eu caio,
mas a mão direita do Altíssimo me levanta novamente.

Os meses no castelo de Wartburg, de maio de 1521 até março de


1522, na verdade não foram muito recreativos. Nesse período,
Lutero produziu um imenso acervo literário, incluindo a tradução do
Novo Testamento grego para o alemão, em apenas quatro meses.
Além disso, Lutero redigiu inúmeros sermões para as igrejas da
Alemanha. Suas ideias teológicas revolucionaram o culto da igreja,
e os sacerdotes precisavam de uma direção para sua nova tarefa: a
pregação. Também manteve extensa correspondência. Na ausência
de Lutero, a igreja e a universidade de Wittenberg estavam sendo
ameaçadas por apoiadores excessivamente zelosos. A certa altura,
Lutero arriscou-se a ser pessoalmente ferido ao retornar a
Wittenberg por pouco mais de uma semana, mas rapidamente
retirou-se para seu esconderijo.
Alguns meses se passaram, e Lutero continuava a receber
notícias perturbadoras de Wittenberg. Chegara ao fim o exílio de
“Junker Jorg”, e Lutero retornou a Wittenberg. Durante a sua
ausência, o clima político havia mudado de forma significativa. Os
príncipes alemães e Carlos V estavam ocupados demais
contendendo com os turcos, que se aproximavam, e não podiam
dedicar recursos para procurar um monge teimoso. Lutero também
contava com o apoio de Frederico, o Sábio. Lutero ainda estava sob
interdição e permaneceria assim pelo resto da vida, mas estava
seguro em Wittenberg. Até 1521, Lutero havia feito mais do que
muitos realizam em toda a vida. Sem dúvida, a maioria dos eventos
conhecidos de sua vida provém desses primeiros anos. No entanto,
esses anos, por mais conturbados que tenham sido, nunca
encontrariam par com os acontecimentos que encheram os últimos
anos.
Capítulo 2
OS ÚLTIMOS ANOS
1522-1546

“Pois bem podeis acreditar-me, um de seus amigos: Martinho é bem


maior e mais admirável do que eu poderia sugerir através de palavras.
Sabeis como Alcibíades admirava Sócrates; eu admiro este homem de
modo totalmente distinto, ou seja, de modo cristão. Toda vez que
penso nele, ele me parece ainda maior!”
FILIPE MELÂNCTON

“Somos mendigos. Isso é verdade.”


MARTINHO LUTERO, 16 de fevereiro de 1546

E
M 6 DE MARÇO DE 1522, Lutero, ainda irreconhecível até
mesmo para seus amigos mais próximos, voltou a
Wittenberg. Seu rompimento com Roma fora irreparável e
definitivo. Agora, Lutero tinha de supervisionar o estabelecimento de
uma nova igreja, bem diferente de sua precursora. Claro, nem todos
os seus colegas e discípulos concordavam quanto a esse desafio.
Os excessos de Andreas Karlstadt e dos “profetas de Zwickau” – um
grupo de pastores de um vilarejo próximo, Zwickau, que
originalmente se associou a Lutero, trilhando, após, uma direção
mais fanática – ameaçavam desmontar a coalizão precária de
seguidores. Lutero havia enfrentado tanto o papa como o imperador,
mas será que conseguiria contrapor-se a seus amigos?
Figura 2.1 Linha do Tempo: Os Últimos Anos
1521- Permanece “em exílio” no castelo de Wartburg de maio de 1521 a
1522 março de 1522
1522 Retorna a Wittenberg
1523 Compõe seu primeiro hino, “Uma nova canção aqui terá início”
1523 Escreve Sobre autoridade temporal
1524 Publica seu primeiro hinário
1525 Guerra dos Camponeses
1525 Casa-se com Katherina von Bora em 13 de junho
1525 Escreve O cativeiro da vontade
1526 Escreve Missa alemã
1527 A peste ataca Wittenberg. A casa de Lutero é transformada em
hospital
1527 Compõe “Castelo forte é nosso Deus”
1529 Assiste ao Colóquio de Marburgo em 1-4 de outubro
1529 Escreve Catecismo menor
1530 Escreve Confissão de Augsburgo
1534 Publica a Bíblia completa em alemão
1537 Escreve Artigos de Smalcald
1539 Publica a primeira edição de Wittenberg, reunindo os escritos
coligidos
1545 Publica uma edição completa de escritos em latim, com o prefácio
contendo uma reflexão biográfica
1546 Prega seu último sermão em Wittenberg, em 17 de janeiro
1546 Morre em 18 de fevereiro, em Eisleben. É sepultado em Wittenberg

No entanto, os desafios que Lutero enfrentava na igreja eram


apenas parte desse quadro. Ele tinha de contender também com as
mudanças econômicas e políticas nas diversas terras alemãs. Os
camponeses alemães encontraram inspiração na vida e nos escritos
de Martinho Lutero. Assim, da mesma forma que Lutero ia se
livrando das algemas da igreja romana medieval, com sua teologia
opressora, os camponeses procuravam livrar-se da estrutura
econômica e política opressora do mundo político medieval.
O relacionamento tênue e complexo de Lutero com os
camponeses, bem como a revolta de 1525, serão discutidos em
detalhes mais adiante. A revolta revela, contudo, o impacto de longo
alcance das ações de Lutero, a começar pela postagem das 95
teses e culminando com sua posição diante de Worms. Toda a face
da Europa mudou; na verdade, nasceu o mundo moderno, com o
surgimento da nação-estado. Lutero não estava longe do centro
desses acontecimentos, desempenhando papel importante em
muitas dessas questões. Hans Holbein, famoso pintor alemão,
retratou Lutero como o “Hércules Alemão”, em 1523. A pintura
confirmava que, em seus dias, Lutero se elevava como uma figura
maior que a vida. Ele dedicou a maior parte dela, contudo, à igreja.
Junto com as reformas teológicas, vieram muitas reformas de longo
alcance na política e na prática da igreja. Lutero voltou sua atenção
ao culto na igreja e à relação entre o clero e o laicato, instituindo
inúmeras reformas, inclusive o canto congregacional, o uso do
alemão além do latim e uma nova ênfase para o sermão. Era
incansável em seu trabalho na igreja; ele dedicou seus esforços
ilimitados à pregação, à escrita e à administração. E, no meio de
tudo isso, casou-se.
O Casamento do Monge com a Freira
Entre suas reformas na prática eclesiástica, Lutero desafiou o
celibato dos sacerdotes e monges. Argumentou simplesmente que
isso não era bíblico. Lutero havia defendido essa posição desde os
anos 1510. Em 1521, ele publicou um argumento bastante completo
contra o voto do celibato, em uma obra denominada O julgamento
de Martinho Lutero sobre os votos monásticos. Nessa obra, Lutero
argumenta que os votos monásticos derivam “de um curso humano”,
ou seja, ensino de santos e da igreja que vão de encontro à
Escritura. Também defende que os votos são contrários à fé porque
fazem com que o foco seja uma abordagem da salvação orientada
pelas obras. Ao manter os votos, cria Lutero, os sacerdotes
tentavam ganhar o favor de Deus. Tal posição, claro, chega ao
cerne da teologia de Lutero e à sua ênfase na justificação somente
pela fé. Além disso, ele argumenta que os votos vão contra a
liberdade cristã, outro tema crucial de seu pensamento. Finalmente,
Lutero sustenta que o voto do celibato ataca a instituição do
casamento, ordenada por Deus, que ele expressa de maneira
inigualável:

Estes homens ousam blasfemar (...) onde está o desafio de que um


homem não pode servir a Deus no casamento? O que seria isso senão
argumentar que o casamento é perfídia, impiedade e apostasia
universal? Isso significa, ó Papa, tu servo de Satanás, que Abraão e
todos os patriarcas, Zacarias e Isabel não serviam a Deus?

Ele apoiava essa visão teórica realizando casamentos de padres


e ajudando freiras a fugirem dos conventos com grande risco
pessoal. Numa ocasião, ajudou 12 freiras a fugirem do convento de
Nimbschen, em Grimma. Lutero recrutou seu amigo, Leonard
Koppe, mercador de peixes em Torgau, para ajudá-lo. As freiras
fugiram em uma carroça cheia de barris usados para armazenar
arenque – sem dúvida, não foi a rota mais agradável para se viajar.
Algumas voltaram para suas casas, enquanto outras seguiram
Lutero até Wittenberg. Ele auxiliou todas a se casarem, à exceção
de uma, Katherina von Bora. Depois de algumas tentativas
frustradas como casamenteiro, ficou óbvio para a maioria dos
observadores, à exceção, obviamente, de Lutero, que talvez ela e o
reformador devessem casar-se. Lutero manifestou certa relutância;
não se importava em viver sob o banimento, mas hesitava em
colocar uma esposa e uma família em potencial no caminho do
perigo. Mas sua relutância não durou muito. O namoro de Katherina
e Martinho foi breve. Ele não acreditava em noivados longos: “Pela
demora, Aníbal perdeu Roma; pela demora, Esaú perdeu sua
primogenitura. Cristo disse: ‘Buscar-me-eis, e não me encontrareis’.
A Escritura, a experiência e toda a criação testificam que os dons de
Deus devem ser tomados prontamente”.
Lutero personalizou seu endosso ao casamento no clero
contraindo núpcias com Katherina von Bora em 13 de junho de
1525. Ao fazê-lo, disse: “Espero que todos os anjos riam e os diabos
chorem”. Lutero ofereceu muitas razões para seu casamento. Ele
devia netos a seus pais, arrazoou, e sentia prazer em desconcertar
os papistas. Ao convidar um amigo para seu casamento, Lutero
escreveu: “Os rumores sobre meu casamento estão corretos. Não
posso negar a meu pai a esperança de descendentes, e tive de
confirmar meu ensino em uma época em que tantos são tão
tímidos”. Mas não se casou por amor. No entanto, com o tempo, até
esse renitente e rude solteirão foi conquistado. Ele confessa: “Eu
não trocaria minha Katie por Paris ou toda a França, por Veneza ou
toda a Itália, pois Deus a deu a mim e deu-me a ela”. A certa altura,
em suas Conversas à mesa, ele escreve: “Não existe união mais
doce do que um bom casamento”. A união entre Martinho e Katie se
tornou mais forte com o passar dos anos e das provações que
enfrentaram juntos. Com frequência, Lutero expressava sua
dependência absoluta de Katie, a quem se referia afetuosamente
como “minha costela”.
Uma Perfeita Escola para o Caráter
O casamento com Katie apresentou a Lutero um novo desafio.
Como deveria ser a casa pastoral? Não havia modelos, nenhum
precedente, e assim a família Lutero foi pioneira em um novo
terreno ao criar uma casa pastoral. Lutero referia-se a seu lar como
“uma perfeita escola para o caráter”. Sua “escola” cresceu para seis
filhos do casal, bem como quatro órfãos de familiares deles que
perderam a vida durante a peste. Muitas outras crianças passavam
dias e noites no lar do casal Lutero. A fim de acomodar uma turma
tão grande, eles precisavam de uma casa grande, e Frederico, o
Sábio, previra isso ao dar generosamente ao casal Lutero, como
presente de casamento, o “Claustro Negro”. O mesmo monastério
que fora o lar de Lutero, o monge, desde 1509, servia agora de lar
para o pastor casado e a primeira casa pastoral da era moderna,
com aposentos amplos para se viver, de um lado, e salas de aula
grandes e pequenas do outro. Essa casa, agora chamada de
Lutherhalle, permanence como museu em honra de seu famoso
residente e da Reforma que ele gerou.
O lar de Lutero, com seus frequentes visitantes, deixava sua
família aberta para ser vista pelo público. Há ampla documentação
pública acerca das atividades de Lutero, revelando-o como uma
figura histórica de muitas matizes. Embora algumas figuras públicas
decepcionem em sua vida pessoal, não é esse o caso de Lutero. A
verdade é que, quando olhamos para sua vida privada, o quadro
que se apresenta é até mais enternecedor que o retrato público. Um
dos momentos mais ternos para a família Lutero veio com a morte
de sua filha Magdalena, aos 13 anos, em 20 de setembro de 1542,
depois de sofrer uma doença severa, mas rápida. Os Lutero já
haviam perdido uma filha antes, Elizabeth, que morrera aos 7
meses. Magdalena, ou “Pequena Lena”, como Lutero a chamava,
era a menina de seus olhos. Pouco antes de ela morrer, Lutero orou:
“Amo profundamente Magdalena. Mas, se for a tua vontade levá-la,
querido Deus, ficarei feliz em saber que ela está contigo”. Virou-se,
então, para sua filha e perguntou com ternura: “Minha pequena
Magdalena, minha filhinha, queres permanecer aqui comigo, teu
pai? Estás também disposta a ir para seu Pai no Céu?”. “Sim,
querido pai”, respondeu ela, “é conforme Deus quer”. Lutero disse-
lhe então: “Querida filha! O espírito está forte, mas a carne é fraca.
Se tua carne é tão forte, o que será então de teu espírito?”.
Lutero demonstrou também profundo respeito por sua esposa,
Katie, como se vê em muitos diálogos relatados em Conversas à
mesa. Ele considerava Katie sua igual e a envolvia em muitas
discussões teológicas, as quais seus colegas e alunos
simplesmente observavam. Além de uma mente arguta, Katie
gerenciava incansavelmente uma família sempre em crescimento,
como também as demandas do Claustro Negro e de outras
propriedades da família. Com o passar dos anos, tanto Frederico, o
Sábio, Eleitor da Saxônia, como seu sobrinho e sucessor, João
Frederico, doaram a Lutero muitas propriedades e presentes. Lutero
também era generoso em dar presentes e dinheiro sem hesitar, e
até mesmo os presentes que ele e Katie haviam ganhado no
casamento podiam ser passados adiante para alguém que tivesse
necessidade. Assim, rapidamente, Katie se deu conta de que, se
quisesse determinado item, precisava escondê-lo do marido.
Lutero deixou um legado de bom tamanho após sua morte, o que
conferia certa ironia à preocupação de seus pais depois de ter
abandonado uma carreira mais lucrativa, na área do Direito. Era
Katie quem gerenciava o dinheiro e as propriedades. Uma dessas
propriedades era a antiga casa dos Brisger em Wittenberg, que, na
época, era uma brauhaus, ou cervejaria. Essa bem-vinda vantagem
fornecia a bebida para as conversas à mesa. Em diversas ocasiões,
ao escrever à sua esposa enquanto estava em viagem, Lutero
mencionava como sentia falta de casa e de tomar a cerveja que
Katie fazia. Além disso, Lutero comprou uma fazenda em Zulsdorf
para a esposa, imóvel que ela visitara na infância e que pertencia ao
irmão de Katie. Essa fazenda oferecia um retiro perfeito para o casal
Lutero quando queriam afastar-se de Wittenberg. Também eram
donos de três jardins e de um pequeno lago de peixes, como
também de vários animais domésticos. Entre as propriedades,
fazendas, as visitas constantes, o trabalho na igreja, as palestras,
seus escritos e viagens, a família de Lutero permaneceu
extremamente atarefada. Lutero confessou, em mais de uma
ocasião, que era Katie quem mantinha conectadas todas essas
atividades.
Bíblia em Alemão
Retornando ao Lutero público, depois de seu casamento, em 1525,
ele continuou a aplicar seus esforços à igreja. Naquele outono,
escreveu sua obra-prima teológica: O cativeiro da vontade. Essa
obra, uma resposta à crítica de Erasmo quanto ao ponto de vista de
Lutero sobre doutrinas como o pecado original, a vontade e a
soberania de Deus, ainda é um dos textos essenciais da história da
igreja, lidando com a controvérsia de séculos em torno dessas
questões. Numerosos outros projetos também receberam sua
atenção, incluindo a tradução da Bíblia para o alemão. Iniciada
durante seu exílio em Wartburg, a Bíblia alemã ocupou os
pensamentos de Lutero durante boa parte de sua vida. Ele terminou
o Novo Testamento em 1522. Quando voltou a Wittenberg, fez
revisões contínuas e estabeleceu um comitê de tradução para o
Antigo Testamento. Traduzindo, ele mesmo, grandes porções,
supervisionando o trabalho da comissão de tradução e aprovando
essencialmente cada palavra, tudo isso resultou na publicação da
primeira tradução integral da Bíblia para o alemão, em 1534.
Mais de quinhentas xilogravuras feitas por Lucas Cranach, o
Velho e o Novo, como também por outros, ilustravam a primeira
edição completa da Bíblia. Essas ilustrações, típicas da arte da
Renascença, retratavam roupas e ambientes do século XVI para
mostrar as personagens e os acontecimentos bíblicos. Não eram
poucas que mostravam o papa e outros oficiais e práticas da igreja
romana como vilões. Uma vez publicada a Bíblia, Lutero e sua
comissão não pararam de trabalhar, continuando a revisar o texto.
Na verdade, Lutero continuou a se encontrar com a comissão até
um ano antes de sua morte. A Bíblia em alemão reflete seu
compromisso com o princípio reformado de sola Scriptura;
permanece como um legado de seu desejo de restaurar a
centralidade da Palavra para a igreja. Até os dias de hoje, a
tradução de Lutero é amplamente utilizada em sua terra natal. De
fato, muitos têm ressaltado que a escolha de palavras por Lutero,
desde os dialetos alemães até sua sintaxe, impactou profundamente
o desenvolvimento da gramática alemã moderna.
A Bíblia não foi o único livro que ele traduziu. Na infância, amava
ouvir as Fábulas, de Esopo. Na fase adulta, amava lê-las para as
crianças. Sua dívida para com essas fábulas pode ser observada
em sua frequente aplicação das personagens de animais aos seus
opositores na Igreja Romana. Como se pode imaginar, o asno era
claramente seu favorito. Lutero gostava tanto dessas histórias que
fez sua própria tradução para o alemão, as quais sobreviveram a
seu tradutor.
A alegria de Lutero quando ensinava as crianças, bem como
suas viagens, despertaram nele a necessidade de ensinar a crença
da igreja à geração seguinte. Durante essas viagens, ele se viu bem
consciente da falta de entendimento teológico e capacidade tanto do
clero como dos leigos. Em 1529, ele produziu o Catecismo maior e o
Catecismo menor, a fim de remediar essa deficiência urgente, sendo
o primeiro para o clero e o segundo para as crianças. Essas obras
testificam que Lutero era mais que um visionário, pois também se
dedicava às tarefas comuns necessárias para levar a igreja para
além de sua incubação até a maturidade. Isso também demonstra
que ele reconhecia a importância de preparar a próxima geração na
fé.
Impacto de Lutero
A obra de Lutero, em seus anos de maturidade, estendeu-se para
além dos limites da Alemanha, até a Europa em geral e para além
dela. Seus escritos tiveram profunda influência sobre um jovem
estudante em Paris, na Universidade de Montaigu, na década de
1520. Essa faculdade teológica recebera a incumbência de avaliar o
debate de Lutero com Eck em 1519, o que não se revelava tarefa
fácil. Lutero claramente expôs ideias melhores, mas ficar do lado
dele implicaria concordar com um herege. Finalmente, o corpo
docente declarou Eck como o vencedor. Nesse processo, contudo,
as ideias de Lutero foram apresentadas a um jovem estudante, João
Calvino. Calvino prosseguiu nessa caminhada, alcançando
conclusões semelhantes. No entanto, embora Calvino acabasse
concordando com Lutero, chegou às suas conclusões de maneira
independente. Alguns estudiosos de Calvino enxergam essa
conexão inicial com Lutero como algo bastante influente. No
entanto, esses dois reformadores nunca se encontraram, embora se
correspondessem com frequência e lessem as obras um do outro. A
influência de Lutero pode ser vista também nas reformas em
Zurique, no trabalho de Ulrico Zuínglio. Zuínglio e Lutero se
encontraram no Colóquio de Marburgo. Tal evento, discutido em
detalhes mais tarde, provou-se crucial não apenas no terreno
teológico, em 1529, mas também no terreno político. Filipe de
Hesse, que conclamou o colóquio (a reunião), queria uma frente
unificada entre os diversos partidos reformados. Seu desejo, porém,
não rendeu frutos, pois Lutero e Zuínglio discordavam quanto à
natureza da Ceia do Senhor.
Quando Lutero deixou Marburgo e teve início a década de 1530,
dedicou-se a escrever. Até 1537, Lutero passou de escritor a editor,
ao conduzir à imprensa a primeira daquelas que seriam as muitas
impressões de suas obras coligidas em alemão. Boa parte desses
escritos era composta por sermões e comentários. Primariamente,
esses escritos consistiam de notas de alunos tomadas enquanto ele
fazia palestras e pregava. Talvez seus comentários mais conhecidos
sejam os dos livros de Gálatas e Romanos. Foram esses os livros
que levaram Lutero a uma grande luta espiritual após o seu estudo.
Em algum momento, também levaram Lutero a resolvê-las. Certa
vez, Lutero se referiu à Epístola de Paulo aos Gálatas como “minha
Katherina von Bora – sou casado com ela” –, um elogio que se
estendia tanto a Gálatas como a Katie. Em seu prefácio, ele primeiro
admite que mal podia acreditar em como era falante em suas
palestras, acrescentando que o que encontrara em Gálatas era
central ao seu entendimento teológico: “A única doutrina que tenho
supremamente no coração é a da fé em Cristo, de quem, por meio
de quem e para quem todo o meu pensamento teológico flui para
frente e para trás, noite e dia”.
Seu comentário sobre Gálatas teve impacto profundo sobre
muitos. John Bunyan, o autor puritano de O peregrino, comentou
certa vez: “Prefiro este livro de Martinho Lutero sobre os Gálatas, à
exceção da Bíblia Sagrada, a todos os livros que tenho visto, como
o mais próprio para uma consciência ferida. Esse comentário
também teve influência sobre Charles Wesley. Wesley lia o prefácio
para mais dois homens, fazendo com que um deles, William
Holland, relembrasse: “Meu coração estava tão cheio de paz e amor
que irrompi em choro”. Em seu diário, Wesley rememora o impacto
pessoal que teve. Ele assinala que, após o grupo dispersar-se,
“passou algumas horas naquela noite em particular com Martinho
Lutero, o que foi uma grande bênção”. Quatro dias mais tarde,
Wesley se converteu. Três dias depois, seu irmão famoso, John
Wesley, foi impactado, de forma semelhante, pelo prefácio ao
comentário de Romanos, por Lutero. Wesley parou na rua
Aldersgate para escutar uma reunião dos Morávios. Ele declarou
que, após ouvir alguém ler o prefácio, sentiu seu coração
“estranhamente aquecido”. Tanto o comentário de Gálatas como o
de Romanos continuam a afetar seus leitores até os dias atuais.
Esses comentários eram originalmente palestras, e havia muitos
estudantes entre os quais Lutero podia escolher quem faria as
anotações. Só no período de 1541 a 1545, 2.928 estudantes
passaram pela Universidade de Wittenberg e ouviram Lutero dar
aulas no Claustro Negro. Um em cada dez estudantes era nascido
em outro país, o que quer dizer que Lutero influenciou um exército
em potencial de pastores e líderes bem treinados não somente na
Alemanha, mas também em todo o mundo. Um desses estudantes,
um italiano de nome Giordano Bruno, tornou Lutero e Wittenberg
memoráveis no seguinte poema:

Vieram de todos os povos e de todas as terras


Onde se buscavam cultura e Ordem:
vieram da Itália, da França e da Espanha;
os polacos, os eslavos, das planícies de Magyar;
Britânicos, escoceses e portugueses,
Dos mares do Norte, os escandinavos,
Sim, até mesmo dos Bálcãs,
Desde o mais longínquo Cáucaso, eles se congregam.
Da manhã à noite, do meio-dia até o poente,
Soldando justo o círculo do novo dia.

Muitos desses estudantes enfrentaram intensa perseguição


religiosa, e alguns morreram como mártires ao voltar à sua terra
natal. Giordano Bruno foi aprisionado pela Inquisição e morreu
queimado por causa de sua fé.
O Círculo Íntimo de Lutero
Lutero gozava da companhia de seus colegas em Wittenberg ao
educar os estudantes. Ele e seu colega mais velho, Andreas
Karlstadt, experimentaram, contudo, um relacionamento instável.
Karlstadt começou esse relacionamento como forte aliado. Quando,
a certa altura, passou a adotar medidas drásticas, como, por
exemplo, despedaçar estátuas e quebrar os vitrais de igrejas,
expressando ainda um ponto de vista anabatista, Lutero repreendeu
o colega mais velho. Por sua vez, Karlstadt atacou Lutero, chegando
a denunciá-lo publicamente. Em julho de 1525, Karlstadt,
literalmente fugindo para sobreviver, procurou refúgio junto a Lutero,
o qual o acolheu, o que constitui um tributo ao caráter do reformador
protestante.
Johannes Bugenhagen, outro colega, juntou-se à causa de
Lutero em 1520, quando leu o O cativeiro babilônico da igreja. No
ano seguinte, tornou-se colega de Lutero no corpo docente de
Wittenberg. Ele e Lutero compartilharam muitos deveres de
pregação na Igreja do castelo. Além disso, Bugenhagen
desempenhou papel-chave na equipe que traduziu o Antigo
Testamento. Outro amigo próximo, embora não fosse colega de
universidade, foi George Spalatin, com quem Lutero estudara Direito
em Erfurt. Seus caminhos se cruzaram novamente quando Spalatin,
agora advogado e sacerdote, serviu como secretário pessoal de
Frederico, o Sábio, Eleitor da Saxônia. Como bem podemos
imaginar, Spalatin veio ajudar Lutero em mais de uma ocasião.
Outro amigo e colega de pastorado em Wittenberg, Justas Jonas,
apoiava fielmente Lutero, dedicando muitas horas à sua mesa, e
compartilhava com ele a paixão por compor hinos. Jonas também foi
quem pregou no funeral de Lutero, em Wittenberg, no ano de 1546.
Entre seus amigos e colegas, porém, Filipe Melâncton se destaca
como o mais conhecido. Melâncton era excelente nas línguas, tendo
escrito uma gramática grega aos 20 anos. Ele chegou a Wittenberg
em 1518, a tempo de testemunhar os debates de Lutero com
Cajetan, e depois com Eck. Quando Melâncton chegou a Wittenberg
para lecionar línguas bíblicas, Lutero o fez passar para Teologia.
Bastante popular como palestrante, Lutero observou: “Suas classes
estão abarrotadas de estudantes”, e Melâncton cresceu em
proeminência no mesmo ritmo de Lutero. Durante o exílio de Lutero
no castelo de Wartburg, Melâncton publicou Loci Communes, uma
teologia sistemática que enfatizava as novas descobertas teológicas
de Lutero. Nutriram uma amizade que durou por toda a vida, embora
tivessem personalidades bem distintas. Certa vez, Lutero comentou
que Melâncton esfaqueava com agulhas e alfinetadas, enquanto ele
mesmo usava uma pesada lança. Melâncton era mais calmo e
gentil, uma química que às vezes se revelava eficiente, e, em certas
ocasiões, isso era bastante frustrante para Lutero.
Melâncton, que não estava sob interdição, foi à Dieta de Augsbug
em 1530, a fim de representar o ponto de vista de Lutero. Lutero
manteve contato estreito por correspondência a respeito dos
eventos que ali se desenrolaram. Carlos V havia conclamado a
Dieta na esperança de unificar os príncipes e governadores
alemães, e se firmar contra os “turcos” ou muçulmanos, que
buscavam tomar o poder. Ali fora em busca de unidade teológica.
Mas os príncipes alemães não se moveram da posição de Lutero.
Atribuíram a Melâncton a tarefa de redigir a versão final da
Confissão de Augsburgo, texto que Lutero aprovou na íntegra,
embora preferisse que alguns pontos fossem declarados com mais
veemência. Há alguma controvérsia sobre, em determinados
pontos, Melâncton haver alterado a linguagem no último instante,
mas o texto permanece como uma declaração de Lutero e da
doutrina luterana. Os Artigos de Smalcald, de 1537, representam a
confissão teológica do próprio Lutero. Esses dois textos, junto com o
Catecismo maior e o Catecismo menor, ambos de Lutero, além de
outros documentos compõem o Livro de Concórdia, de 1578,
confissão doutrinária da igreja luterana. Tanto os Artigos de
Smalcald como os Catecismos resumem a teologia de Lutero e
servem como legado confessional à igreja que leva seu nome.
Pernas de Ferro, Pés de Barro
Várias doenças perturbaram os anos mais tardios de Lutero. Com
frequência, ele atribuía suas doenças aos anos de tortura a que
sujeitara seu corpo enquanto era interno no monastério. Era raro,
porém, permitir que suas doenças o impedissem de trabalhar ou
tornar esse trabalho mais lento. Continuou escrevendo
prodigiosamente e viajando para visitar diversas igrejas. Lutero
sempre era procurado para pregar e emprestar sua perícia em
questões administrativas. Diversas vezes, em disputas, os partidos
dependiam dele para mediar uma solução. Esse aspecto do legado
de Lutero, menos conhecido por nós hoje em dia, revela que ele
consagrou sua vida não apenas a iniciar uma nova igreja, como
também a ver seu crescimento. Seu compromisso estendeu-se
longamente e permanece como extraordinário exemplo de alguém
que encontrou ousadia nos momentos cruciais e força para
perseverar nas tarefas comuns.
No entanto, um dos legados de Lutero desprovido de brilho é sua
atitude em relação aos judeus. Isso vem principalmente de sua obra
de 1543, intitulada Sobre os judeus e suas mentiras. Dizem os
críticos que esse texto revela o antissemitismo de Lutero e oferece
inspiração àqueles que cometeram as horrendas atrocidades contra
os judeus durante o Holocausto. Muitos dizem que a crítica de
Lutero acerca dos judeus não era racial, mas religiosa. Noutras
palavras, Lutero atacava os judeus com bastante veemência, do
mesmo modo que atacava os muçulmanos ou os papistas. Embora
essa ideia sirva para mitigar os comentários de Lutero, suas
declarações duras deixaram um infeliz legado, servindo para nos
lembrar que, embora Lutero tivesse pernas de ferro, tinha pés de
barro.
Em 1545, os primeiros volumes da edição latina de suas obras,
conhecida como a Edição de Wittenberg, começaram a aparecer.
Até 1546, Lutero escreveu a um colega pastor que se sentia “velho,
desgastado, lento, cansado, com frio e agora até mesmo caolho,
como quem sente que está morto há muito tempo e merece – assim
me parece – que lhe seja concedido descanso”. Naquele mesmo
dia, 18 de janeiro de 1546, ele pregou seu último sermão em
Wittenberg. Sem dúvida, tencionava gozar do descanso que tanto
almejava, mas foi chamado a Eisleben, a cidade em que nasceu,
para resolver uma disputa. No caminho, Lutero e sua equipe
encontraram mau tempo, e Lutero adoeceu gravemente. Por fim,
chegou a Eisleben, onde foi saudado como herói e escoltado pela
cidade por uma guarda de honra de nada menos que 113 soldados
a cavalo. Algum tempo depois, já recuperado de sua doença,
conseguiu fazer com que as partes em conflito chegassem a uma
solução e também pregou quatro sermões.
No entanto, quando estava prestes a deixar a cidade, sua doença
voltou com força total, impedindo-o de voltar para casa. Desde a sua
saída de Wittenberg, ele se correspondia com Katie, que escutara
rumores de que ele estava em seu leito de morte ou teria se
afogado num rio que havia transbordado. Lutero continuava a
assegurar a esposa que não precisava preocupar-se, pois ele tinha
um protetor, que “está numa manjedoura e segura o seio de uma
virgem, embora, ao mesmo tempo, esteja assentado à destra de
Deus Pai, Todo-poderoso. Portanto, esteja confiante”. Isso foi em 7
de fevereiro. Em 16 de fevereiro, a doença se agravou muito, e
Lutero sabia que estava prestes a morrer. Pediu papel e escreveu o
seguinte:

Ninguém pode entender Virgílio em suas Bucólicas, a não ser que


tenha sido pastor por cinco anos. Ninguém pode entender Virgílio em
suas Geórgicas, a não ser que tenha sido arador por cinco anos.
Ninguém pode entender Cícero em suas Epístolas, a não ser que tenha
vivido em um grande império por 25 anos. Não pense alguém que
tenha entendido suficientemente as Sagradas Escrituras, a não ser que
tenha governado as igrejas por cem anos para profetas como Elias e
Eliseu, João Batista, Cristo e os apóstolos. Não se aventure nessa
Eneida divina; rebaixe-se em reverência ante as suas pegadas. Somos
todos mendigos! Essa é a verdade.

Dois dias depois, tendo à sua vista a pia batismal em que fora
batizado, Martinho Lutero morreu. Finalmente, sua luta fora
concluída. Deus, que, no passado, causava terror à sua alma pelo
mero pensamento, agora era visto como quem o receberia de
braços abertos. Aqueles que se reuniram à sua volta no leito de
morte documentaram suas palavras finais. Pouco antes de morrer,
ele orou: “Agradeço-te, Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo,
porque tens revelado teu amado filho a mim, em quem pude crer,
pregar e confessar, e em quem confiei”. Em seguida, ele ofereceu
seu último “sermão”, que consistia em recitar João 3.16 e o Salmo
68.20. Neste último, lê-se: “Nosso Deus é um Deus de salvação; a
Deus, o Senhor, pertence escapar da morte”.
A notícia da morte de Lutero espalhou-se rapidamente. Quando
Melâncton, que lecionava na universidade, recebeu-a, interrompeu a
aula e disse: “Não foi o brilho humano que descobriu a doutrina do
perdão dos pecados e da fé no Filho de Deus, mas Deus que o
levantou diante de nossos olhos, que revelou essas verdades por
meio dele. Que guardemos querida a memória desse homem e da
doutrina do modo como ele a entregou a nós”. O corpo de Lutero foi
devolvido a Wittenberg, onde jaz enterrado, na igreja do castelo.
O legado de Lutero inclui a igreja que leva seu nome, como
também todos aqueles que se chamam protestantes. Muitas das
doutrinas e práticas que definem as diversas tradições protestantes
remontam suas raízes a Martinho Lutero. Além disso, ele deixou tão
amplo acervo de escritos que a tentativa de produzir uma edição
completa de todas as suas obras, que começou em 1883,
prossegue até hoje. A Weimar Ausgabe, ou edição, já conta com
cem volumes, e continua a crescer. A versão inglesa autorizada de
suas obras, uma tradução de seleções dessa edição, conhecida
simplesmente como Luther’s Works (Obras de Lutero), é composta
por 56 volumes. Essas obras incluem tratados, sermões,
comentários, cartas e muitos panfletos ou escritos menores. Com
frequência, Lutero expressava sua surpresa com o que Deus fizera
em sua vida. Ele também disse: “Preferia que todos os meus livros
desaparecessem e somente as Sagradas Escrituras fossem lidas”,
acrescentando: “Quem vai lê-los?”. Os escritos de Lutero têm
encontrado muitos leitores e, com frequência, esses leitores foram
auxiliados a entender melhor a Escritura por meio de seus escritos.
Avaliando Lutero
A certa altura, durante seu exílio no castelo de Wartburg, na
primavera de 1523, Lutero, necessitando de uma mudança no
cenário de seu refúgio, parou em uma hospedaria próxima. Ele
estava sentado sozinho, disfarçado de cavaleiro, à mesa, lendo uma
cópia em hebraico do Saltério. Dois estudantes suíços entraram, e
Lutero os convidou a se sentar à mesa com ele. No decorrer da
conversa, surgiu o assunto de Martinho Lutero. “Caro Senhor”, os
estudantes inquiriram esse aparente cavaleiro alemão: “Pode nos
dizer se Martinho Lutero está agora em Wittenberg ou onde poderia
estar?”. Lutero, respondendo apenas à primeira parte da pergunta,
assegurou-lhes: “Certamente Lutero não está em Wittenberg”. Em
seguida, ele lhes perguntou: “Bons homens, qual opinião o povo
suíço tem sobre Lutero?”. E eles responderam: “Meu senhor, como
em todo lugar, as opiniões variam. Existem alguns que não
conseguem louvá-lo suficientemente, agradecendo a Deus que, por
seu intermédio, tenha sido revelada a verdade, trazendo-se à luz os
erros; mas alguns, especialmente o clero, condenam-no como um
herege problemático”. Lutero, então, respondeu: “A não ser que eu
me engane, eles são papistas”.
À medida que aquela conversa evoluía, as suspeitas dos
estudantes foram aumentando em relação a esse cavaleiro que
conhecia tantas coisas. Quando viram o Saltério em hebraico, essas
suspeitas se acentuaram ainda mais. Mas foi somente quando
“Junker Jorg” saiu que o dono da estalagem informou que eles
haviam estado à mesa com o próprio proscrito. Sua conversa com
Lutero, mais tarde relatada, revela certa ironia. Lutero começou sua
busca por resolver suas lutas espirituais abraçado pela igreja e,
segundo entendia, abandonado por Deus. E resolveu essas lutas
abraçado por Deus e abandonado pela igreja. Embora isso tivesse
sido mais que suficiente para Lutero, ele também foi acolhido por
aqueles que eram gratos a Deus por usar esse monge para
recuperar o tesouro do evangelho. Isso, claro, não foi verdadeiro
apenas nos dias dele, pois ainda é assim, cinco séculos depois.
Nota sobre as Fontes
As biografias de Lutero, entre as muitas existentes, são discutidas
na conclusão. As fontes primárias quanto a detalhes e questões
biográficas se encontram em Luther’s Works, vv. 48-50: Letters I, II,
III (1963), obra editada em inglês por Gottfried G. Krodel. Também é
útil consultar Luther’s Works, v. 54: Table Talks (1967), editado,
também em inglês, por Theodore G. Tappert. De autoria de Oskar
Thulin, A Life of Luther (1966), na edição em língua inglesa, oferece
um relato cronológico completo, com extensas citações das fontes
primárias, incluindo os escritos de Lutero e de seus
contemporâneos, amigos e inimigos.
E
STA SEÇÃO EXAMINA os escritos que conduziram
diretamente à Reforma e continuam a impactar a teologia
protestante nos dias atuais. Começamos com uma visão
geral da teologia de Lutero. Lutero nunca escreveu uma teologia
sistemática, mas, no desenrolar de suas obras, surgem diversos
temas e ênfases principais.
Este capítulo expõe tais temas de maneira sistemática, a fim de
oferecer o quadro maior de seu pensamento. Em seguida, abordam-
se os Três Tratados, uma série de trabalhos escritos durante os
meses cruciais do outono de 1520. Aqui, Lutero vai muito além das
95 teses em sua crítica a Roma. Sua maior obra teológica, O
cativeiro da vontade, torna-se o foco do capítulo seguinte. Aqui,
seus pensamentos quanto às questões desafiadoras da soberania
de Deus e da vontade humana revelam-se diante de nós.
Pode parecer surpreendente para alguns que a questão que
impediu os reformadores da Alemanha, Lutero e companheiros, de
se unirem aos reformadores da Confederação Suíça, de Zuínglio e
seus seguidores, dizia respeito à Ceia do Senhor. O Capítulo 6
examina essa questão para entender por que pode tornar-se um
fator crucial. Finalmente, mesmo que não intencionalmente, a
reforma teológica de Lutero inspirou uma verdadeira revolução
social. Respondendo às questões que giram à sua volta, Lutero
desenvolveu ideias intrigantes em relação ao papel e ao dever do
cristão neste mundo. Todas essas obras impactaram profundamente
a primeira geração que as leu. Não são apenas textos oportunos.
Eles continuam compensando seus leitores e se firmam entre os
grandes clássicos da fé cristã.
Capítulo 3
O CERNE DO PROBLEMA:
Entendendo a Teologia de Lutero

“É muito difícil um homem crer que Deus seja gracioso com ele. O
coração humano não consegue conceber isso.”
MARTINHO LUTERO, 1531

C
ONFORME JÁ MENCIONAMOS, Lutero nunca escreveu
uma teologia sistemática. Sua teologia foi desenvolvida nas
trincheiras, quando ele foi lançado em conflitos e se
envolveu nas controvérsias de seus dias. Com certeza, de seu
trabalho, surgiu um sistema que revelava temas distintos e que
tomou sobre si uma estrutura própria, embora não tenha ocorrido
tudo de uma só vez, nem em um único lugar.
No entanto, navegar pelos contornos do labirinto da teologia de
Lutero sem uma estrutura ou direção é como explorar um imenso
sistema de cavernas sem um mapa. Eventualmente, é provável que
se consiga perceber a direção e provavelmente os locais pelo
caminho serão apreciados, mas um mapa teria facilitado em muito a
jornada. Ao começar a examinar Lutero como reformador, bem
como suas ideias e escritos, talvez seja útil, em primeiro lugar, olhar
um “mapa”, ou a visão geral de sua teologia.
Na primavera de 1509, Lutero chegou a Wittenberg e, dando
início à sua carreira como professor de Teologia e Bíblia, escreveu
uma carta a Johann Braun, sacerdote em Eisenach a quem muito
admirava. Na carta, Lutero expressa sua intenção ao ensinar e
escrever, frisando que desejava fundamentalmente seguir uma
teologia “que penetrasse no cerne do problema, no âmago do grão
de trigo, no tutano do osso”. É certo que ainda levaria algum tempo
para Lutero alcançar seu intento, mas sua metodologia singular,
dado o seu contexto histórico, evidencia-se claramente nessas
palavras. Não se contentando com a abordagem de seus colegas,
que consistia em recapitular o ensino da tradição de maneira
enciclopédica, Lutero ansiava abordar o assunto em profundidade,
chegar à sua essência, atingir o cerne do problema. Esse ponto de
partida radical levou a um modo radical de pensar que rapidamente
destacou Lutero de seus pares. Ao traçar o caminho desses
pensamentos, chegamos àquele mapa dr sua teologia. Nossa
jornada começa com o que pode ser o entendimento teológico mais
significativo de Lutero: a teologia da cruz.
Pecadores na Raiz
João Calvino, correformador com Lutero, vindo de Genebra, começa
sua obra monumental de teologia, A instituição da religião cristã,
com um dilema. Olhamos para Deus a fim de entender a
humanidade? Ou olhamos a humanidade a fim de entender a Deus?
Calvino fez ambas as coisas; Lutero tentou olhar para Deus. Porém,
quanto mais de perto ele olhava, mais horrorizado ficava. Não causa
admiração que, quando começou a estudar e ensinar Teologia com
determinação, Lutero se tenha sentido mais confortável ao olhar
para a humanidade e, mais especificamente, para si mesmo. Mas o
que ele encontrou o deixou desconcertado. No entanto, conforme
sabemos que é verdade, ninguém terá muito apreço pela gloriosa
obra da redenção sem primeiro encarar frontalmente a feia realidade
do pecado. Assim também foi com Lutero; no caminho para a
redenção de suas lutas, ele teve de parar naquilo que certamente
parecia um desvio, e enfrentar seu pecado.
Lutero passou a entender o pecado de modo radicalmente
distinto tanto de sua noção medieval como daquela que imperava no
começo do século XVI. Conforme já vimos, ele entendia o pecado
não só como os pecados cometidos pela pessoa, mas também
nossa própria natureza: somos pecadores de “raiz”. Essa nova
perspectiva oferece à consciência já sensível de Lutero ainda mais
um estopim, lançando-o mais fundo nessas anfechtungen, ou lutas
espirituais. Anos mais tarde, quando refletia sobre esse tempo,
Lutero escreveu: “Não aprendi a Teologia toda de uma vez; tive de
ponderar ainda mais profundamente sobre ela, e minha provação
espiritual me ajudou nisso”. Seus contemporâneos, porém,
preferiam falar de pecados, e não de pecado.
Lutero entendeu que o problema era muito mais profundo do que
somente aquilo que ele fazia, pois englobava quem ele era. Enfocar
somente os pecados servia para quantificá-los, levando também a
quantificar a graça. Isso conduziu ainda ao sistema de penitências,
reduzindo a graça ao nível de cancelamento do desmerecimento
dos pecados. Nos dias de Lutero, esse ponto de vista se
desenvolvera em um complexo sistema. Surgiu, na igreja católica, a
crença de que os santos acumularam mais graça do que
necessitavam, que isso lhes servia como uma fonte de tesouro. Os
que não tivessem vidas tão santas e precisassem de graça podiam
rezar para os santos pedindo essa graça “extra”.
Se, contudo, nosso problema fosse mais profundo do que
simplesmente os pecados que cometemos, então esse sistema de
créditos e débitos não chegaria a resolver a situação. Sem dúvida, o
entendimento que Lutero tinha do pecado como muito mais que o
problema de pecar explica sua insatisfação diante da prescrição da
teologia medieval. Também fica mais clara a razão pela qual ele
lutava tão intensamente e até mesmo se enfurecia contra Deus.
Dado o contexto de seu tempo, ele desconhecia qualquer remédio
para sua alma. Essa luta, inclusive, levou-o a procurar em outro
lugar distinto daquele que os teólogos da Idade Média procuravam.
Isso o impeliu diretamente para a Bíblia, de onde, então, foi
remetido para a cruz.
A Teologia da Cruz
As crises espirituais de Lutero tiveram fim quando ele chegou ao
cerne da questão, a teologia da cruz. O primeiro escrito de Lutero
sobre o assunto veio ao final de suas 95 teses. Ali, ele expressa:
“Ide embora todos os profetas que dizem ao povo de Cristo: ‘Paz,
paz’, quando não há paz! Benditos sejam todos os profetas que
dizem ao povo de Cristo: ‘Cruz, cruz’, e não há cruz!”. O contraste
poético de Lutero entre paz e cruz, Pax e Crux em latim, faz uma
crítica aos pregadores e vendedores de indulgências, por
oferecerem glória sem sofrimento, ou paz sem tratar os horrores do
pecado. Tal “paz” de fato é falsa e, consequentemente, deixa-nos
sem paz. Quem, contudo, prega a cruz reconhece o horror do
pecado.
Lutero desenvolveu essa ideia incipiente ainda mais em outro
conjunto de teses, ou argumentos, preparado para um debate em
Heidelberg, em 1518. Na Disputa de Heidelberg, ele escreve:
“Merece ser chamado de teólogo, contudo, aquele que compreende
as coisas manifestas de Deus, as visíveis e as invisíveis, vistas
através do sofrimento e da cruz. Um teólogo da glória chama o mal
de bem e o bem de mal. Um teólogo da cruz chama a coisa do que
ela realmente é”. Essas breves assertivas revelam muito sobre a
teologia de Lutero. Primeiro, ele contrasta a teologia da glória à
teologia da cruz. A teologia da glória representa dois elementos
inter-relacionados porém distintos. Inicialmente, enfoca a
capacidade humana. A fim de entendermos esse aspecto por
completo, temos de examinar alguns elementos da teologia
medieval. Desde os dias de Tomás de Aquino (1225-1274), o
consenso teológico pregava que a natureza humana não era
totalmente caída. Tal crença dizia respeito, em especial, ao uso da
razão, mas também à capacidade humana de alcançar justiça. Esse
ponto de vista dizia que a humanidade coopera com a graça de
Deus no ato da salvação, bem como no ato contínuo da
santificação. Além disso, a capacidade da razão traz implícito,
equivocadamente, o fato de que Deus pode ser conhecido pela
razão e pela especulação filosófica. Tal conceito teve grande apelo
para os teólogos medievais que vieram depois e também para os
contemporâneos de Lutero. Esse método de teologia é o segundo
elemento na designação de Lutero da teologia da glória.
A teologia da cruz, por sua vez, desmonta ambos os elementos
da teologia da glória. Inicialmente, trataremos do método de teologia
de Lutero. Antes disso, porém, precisamos rever o período
medieval. Os teólogos usavam dois termos contrastantes para
destacar como Deus pode ser conhecido: “o Deus escondido” e o
“Deus revelado”. Para Lutero, “o Deus escondido” ou, como em
latim, o Deus absconditus, refere-se ao Deus invisível, ao Deus
insondável que transcende o entendimento humano. O Deus
revelado, Deus revelatus, refere-se a Deus conforme ele tem
revelado a si mesmo e pode ser conhecido. Lutero chama isso de
teologia da cruz porque é precisamente na cruz que Deus se revela.
Essa dinâmica do Deus escondido e revelado reflete, de acordo com
Lutero, o modo como Deus se relaciona com seu povo.
Tal dinâmica é vista inicialmente no livro do Êxodo. Por um lado,
o texto de Êxodo nos confronta continuamente com a
inacessibilidade de Deus. Só Moisés podia encontrar-se com Deus
e, assim mesmo, só podia ver as costas do Criador quando ele
passava (Êx 33). Por outro lado, o texto ensina que Deus oferece
acesso a ele ao dizer a Moisés sobre o propiciatório, o lugar de
misericórdia: “Ali, virei a ti” (Êx 25.22). Curiosamente, a palavra
usada na tradução grega do Antigo Testamento, a Septuaginta, é a
mesma usada em Romanos 3.25, em geral traduzida como
propiciação, ou sacrifício de expiação. Em outras palavras, ligando
as passagens de Romanos e de Êxodo, Cristo é nosso propiciatório,
e é em Cristo, na cruz, que encontramos Deus. Conforme Lutero
proclama: “Deus quer ser ouvido por meio do Propiciador e, assim,
ele não escutará ninguém exceto por meio de Cristo (...) aqueles
que não buscam Deus ou o Senhor em Cristo não o encontrarão”.
Assim, quando nos encontramos com Cristo na cruz, Lutero
argumenta, isso deverá nos sacudir e fazer parar. Cristo é o Deus
do universo, que morre na cruz, suportando nossa vergonha e
carregando a penalidade de nosso pecado. A cruz não é o lugar no
qual Cristo deveria estar. Lutero acrescenta que é o único lugar no
qual nós deveríamos estar. No entanto, é ali que encontramos Cristo
e Deus. Conforme escreve Lutero:

Ora, não basta a ninguém e não lhe faz bem reconhecer Deus em
glória e majestade, a não ser que ele o reconheça na humildade e na
vergonha da cruz (...) Por essa razão, a verdadeira teologia e o
reconhecimento de Deus estão no Cristo crucificado (...) Deus é
encontrado somente no sofrimento e na cruz.

Com tal entendimento acerca da teologia da cruz, agora


podemos voltar ao primeiro elemento da teologia da glória, ou seja,
a capacidade humana de alcançar justiça.
À luz de Cristo na cruz, qualquer confiança na capacidade
humana torna-se uma total loucura. Qualquer tentativa de se
alcançar Deus por meio de especulação filosófica também se torna
fútil. Como observa Lutero ao se referir a 1 Coríntios 1, pela loucura
da cruz, “Deus destrói a sabedoria do sábio”. A teologia da glória
celebra as obras e o que a humanidade pode fazer; a teologia da
cruz celebra Cristo e o que somente ele pode fazer. A teologia da
cruz lança um baque esmagador aemuma vida que está consumida
pelo eu. Para entendermos esse aspecto do pensamento de Lutero,
temos de voltar ao seu entendimento acerca do pecado. Conforme
já mencionamos, a palavra latina radix, raiz, resume o entendimento
distinto de Lutero quanto ao pecado. Poderíamos acrescentar outra
palavra latina, incurvitas, “curvada para dentro”. Essa expressão
transmite a imagem de egoísmo, pois o eu é curvado para dentro. A
ironia dessa tendência é que aquilo que, na verdade, parece
promover o eu conduz à destruição do eu; nosso interesse por nós
mesmos traz junto nossa autodestruição. Lutero explica a
implicação disso ao fazer o seguinte comentário sobre o
ensinamento de Paulo sobre a carne pecaminosa em Romanos 8:

Ela tem prazer apenas em si mesma e usa todos os demais, até


mesmo Deus; busca seus próprios interesses e a si mesma em tudo:
crê que o homem, finalmente e em última instância, está preocupado
apenas consigo mesmo. Essa é a idolatria que determina tudo o que
ele faz, sente, realiza, pensa e fala. O bem só está no que é bom para
ele, e o mal só é o que é mau para ele.

A teologia da cruz se coloca contra essa perspectiva do eu.


Conforme o historiador Mark Noll observa: a cruz declara “o eterno
‘não’ de Deus à idolatria do eu”. A teologia da glória exalta o ser e,
na verdade, avança a curva para dentro. A teologia da cruz força a
pessoa a olhar para fora, para fora de si mesma, e, ao ver Cristo,
reconhecer sua necessidade verdadeira e desesperada. Essa
verdade nos faz lembrar de outra ironia: a de que quem perde sua
vida por amor de Cristo a encontrará (Mt 10.39).
A teologia da cruz não somente reconhece que é apenas Cristo,
mediante sua obra na cruz, que traz a reconciliação com Deus,
como também serve de suporte para a abordagem de Lutero para a
– e método da – teologia. Em uma seleção de Conversa à mesa
(1532), Lutero, ao discutir o Deus “escondido” e “revelado”, observa:
“Deus é visível por meio de sua Palavra e de sua obra. Sem a sua
Palavra e a sua obra, ninguém deverá buscá-lo. Esses teólogos [da
glória] desejaram apreender Deus mediante meras especulações e
não prestam atenção à Palavra”. Lutero, então, instrui seus
discípulos mais jovens que estão em volta da mesa: “Recomendo
que deixais de lado a especulação, e quero que essa regra seja
assumida depois de minha morte”. Em outra ocasião, ele encorajou
aqueles que desejavam ser pastores: “Preguem apenas isto: a
sabedoria da cruz”.
Solas da Reforma
Praticamente ao mesmo tempo que Lutero trabalhava em sua
teologia da cruz, também desenvolvia as solas (ou solae) da
Reforma. O vocábulo latino sola quer dizer simplesmente sozinho.
Quando Lutero o junta com uma série de palavras, mais uma vez se
destaca de seus contemporâneos. Primeiro, Lutero assevera sola
Scriptura (somente a Escritura), enfatizando que só a Escritura é a
autoridade da igreja. Em seguida, fala de sola fide e sola gratia,
destacando que a salvação se dá somente pela graça e somente
pela fé. Finalmente, Lutero afirma: solus Christus (somente Cristo),
apreendendo as palavras de Paulo que proclamam haver um só
mediador entre Deus e a humanidade (1 Tm 2.5).
Essas doutrinas englobam a riqueza da teologia reformada e seu
legado à igreja. Elas sinalizam um retorno à primazia da Escritura e
ao seu ensinamento a respeito de Deus, da humanidade e da
salvação. Continuam a ser a marca maior da teologia protestante,
expressando o coração de uma teologia ortodoxa. Tais doutrinas
também oferecem uma janela útil pela qual enxergamos os escritos
de Lutero. Conforme mencionamos em capítulos anteriores, Lutero
dedicou considerável esforço à tradução e à publicação da Bíblia em
alemão, testemunho a seu compromisso com a sola Scriptura.

Figura 3.1 Solas da Reforma


Sola Scriptura Escritura somente
Sola fide Fé somente
Sola gratia Graça somente
Solus Christus Somente Cristo
Soli Deo gloria Somente para a glória de Deus
A chegada de Lutero a essa doutrina resultou dos debates com
Cajetan e Eck. Antes, porém, Lutero dera aulas sobre a Escritura,
incluindo palestras sobre Salmos, Romanos, Gálatas e Hebreus. O
fato é que, antes desses debates, o texto bíblico não desempenhava
papel de destaque na teologia medieval. Assim, enquanto Lutero
disputava com Roma, a distinção entre o uso do texto bíblico por ele
e o uso que a igreja romana fazia ficou bem patente. A abordagem
romana tornava-se lei canônica, ou lei da igreja, mediante a
resposta católica a Lutero no Concílio de Trento (1545-1563).
De algumas formas, Trento, com seus decretos e artigos,
sinalizou uma vitória para Lutero, pois o concílio proscreveu os
vendedores de indulgências e instituiu uma rigorosa reforma política
e prática na igreja. Na essência, contudo, o Concílio de Trento
repreendeu Lutero e aqueles que seguiam seus ensinamentos tidos
como heréticos. A justificação pela fé recebeu muita atenção, como
também a doutrina da Escritura. Nesse último tópico, Trento
declarou que a frase “Escritura e Tradição” encerrava melhor a base
para a autoridade da igreja. Declarou ainda que a Vulgata, tradução
da Bíblia para o latim, seria o texto oficial para a disputa teológica.
Esse decreto desafiou diretamente o princípio de Lutero de sola
Scriptura. Ao ler o documento de Trento, seria melhor ver o “e” em
“Escritura e Tradição” como “Escritura conforme interpretada por
meio da Tradição”, enfatizando a autoridade da igreja e sua tutela
sobre o texto. Esse acréscimo expressa precisamente o problema
que Lutero tinha com a igreja romana. Para Lutero, a autoridade é
somente da Escritura. Temos de entender claramente o que Lutero
entende por essa doutrina. Ele não está dizendo que todo mundo
pode entender e interpretá-la sem ajuda. Ele vê a igreja,
especialmente sua de pregar a Palavra, como o meio tencionado
por Deus para nos capacitar a entender melhor a Escritura, e não
descarta a tradição, como alguns poderiam concluir do princípio de
sola Scriptura. Em vez disso, a história da interpretação dos textos
pode representar uma importante proteção para testar nossas
interpretações. Mais uma vez, sola Scriptura aborda a questão da
autoridade e nos lembra que somos nós que nos submetemos ao
texto, e não o texto que se submete a nós. Como atestam as
palavras de Lutero perto de sua morte, curvamo-nos diante da
Escritura.
Sola Scriptura significa também que a Bíblia permanece como o
único guia certo e necessário para a vida e a piedade. Lutero não
somente afirmou esse princípio, como também o vivenciou,
comprometendo-se a examinar as Escrituras diariamente. Ele foi tão
fiel à leitura da Bíblia que a lia por inteiro duas vezes ao ano. Certa
vez, comentou: “Se você imaginar a Bíblia como uma árvore
poderosa, e cada palavra como um pequeno galho, verá que tenho
sacudido cada um desses galhos porque quero saber o que são e o
que significam”.
Lutero, como fizera com sola Scriptura, também expressou seu
entendimento acerca da justificação somente pela fé, sola fide, bem
cedo em sua jornada. Em seu sermão de 1519, intitulado “Duas
espécies de justiça”, Lutero explica: “Pela fé em Cristo, portanto, a
justiça de Cristo torna-se nossa justiça e tudo que ele tem passa a
ser nosso; melhor, ele mesmo se torna nosso”. Lutero entendia
claramente que o tipo de justiça ou, de fato, a única justiça que
Deus deseja é algo alheio a nós. Conforme vimos no Capítulo 1,
essa “justiça alheia”, conforme Lutero a chama, não pode vir de
dentro de nós. Ele escreve, no prefácio ao comentário sobre
Gálatas, que “somos redimidos do pecado, da morte e do diabo, e
feitos participantes da vida eterna mediante o filho unigênito de
Deus, Jesus Cristo”. Ele também observa, mais adiante no
comentário, que, na justiça de Cristo, “nada operamos, e nada
rendemos a Deus, mas tão somente recebemos e permitimos que
outro, ou seja Deus, viva e trabalhe em nós”. Para Lutero, conforme
vimos no Capítulo 1, ao recordarmos sua conversão, essa justiça
recebe melhor descrição como “justiça passiva”, enfatizando que
“Cristo opera em nós, não por meio de nós mesmos e, com certeza,
não por nossas obras, que são menores que nós, mas pela ajuda de
outro, o unigênito Filho de Deus, Jesus Cristo”. Mais adiante, nesse
mesmo comentário, Lutero observa que “nada operamos e nada
damos a Deus, mas tão somente recebemos e permitimos que outro
opere em nós, ou seja, Deus”.
Em outro lugar, na Disputa de Heidelberg, Lutero claramente
distingue a doutrina da justificação somente pela fé da abordagem
orientada pelas obras de seus contemporâneos. Mais uma vez,
nesse ponto, como ocorre com sola Scriptura, temos de tomar
cuidado quanto à forma como entendemos Lutero. Talvez antevendo
eventual má interpretação, Lutero escreve que deseja “ter as
palavras ‘sem as obras’”, o que deve ser entendido da seguinte
maneira: “Não é que a pessoa justa nada faça, mas não são suas
obras que a tornam justa; sua justiça é que cria as obras”. Primeiro,
vem a justiça de Cristo, apreendida somente pela fé, que Lutero vê
como um dom de Deus, e, depois, “as obras se seguem”. Ele
enfatiza: “As obras nada contribuem para a justificação”. No entanto,
também insiste que, “como Cristo vive em nós pela fé, assim
também desperta em nós o desejo de realizar boas obras”.
Tal entendimento conduz a uma questão muito importante para
Lutero, sobre a relação entre lei e graça. Conquanto tenhamos a
tendência de enfatizar a teologia da cruz ou as doutrinas
representadas pelas solas da Reforma, Lutero talvez preferisse
enfatizar seu entendimento de lei e graça como sua contribuição
teológica permanente. Certa vez, ele escreveu: “Quase toda a
Escritura e o entendimento de toda a teologia dependem do
entendimento certo de lei e evangelho”.
Lutero, diferente dos demais reformadores, preferia falar de dois
usos da lei apenas. O primeiro trata da promoção de justiça cívica;
talvez nos seja preferível o termo moralidade. Isso relaciona a lei à
esfera política ou, como Lutero diria, ao “estado temporal”. Aqui, a
lei opera positivamente para promover a civilidade e preservar a
ordem da criação de Deus. O segundo uso da lei diz respeito ao
modo como nos remete para Cristo e declara corajosamente nossa
necessidade de sua justiça. Ele fala da lei nos acusando e
condenando, observando que sua tarefa específica “consiste em
reprovar o pecado e conduzir ao conhecimento do que seja o
pecado.”
Nos Artigos de Smalcald, de 1537, refere-se à principal função da
lei: “Tornar manifesto o pecado original, mostrando ao homem a
tamanha profundeza em que sua natureza caiu e como se tornou
corrupta”. Ele ainda compara a lei a um “raio de trovão por meio do
qual Deus, com um só golpe, destrói tanto os abertamente
pecadores como os falsos santos”. Isso mostra nossa incapacidade
de merecer o padrão de justiça de Deus, o que, ainda bem cedo e
com frequência, Lutero reconheceu em sua vida, e nossa total
necessidade da obra de Cristo.
Os demais reformadores também consideraram um terceiro uso
da lei, vendo-a como um guia para os cristãos no processo de
santificação. Lutero preferiu falar da lei como tendo sido cumprida
em Cristo, pois via o evangelho como um guia para se ter uma vida
cristã. A lei opera contra nós; o evangelho opera dentro de nós.
Conforme Lutero observa: “A Lei é a palavra de Moisés para nós,
enquanto o evangelho é a Palavra de Deus dentro de nós. O
primeiro permanece de fora e nos fala por meio de figuras e
sombras visíveis das coisas que ainda estão por vir, enquanto o
último vem de dentro e nos fala das coisas internas, espirituais e
verdadeiras”. Ele também expressa pensamentos similares na
Disputa de Heidelberg. Ali, ele declara: “A lei diz ‘faça assim’, e
nunca é feito. A graça diz: ‘Creia nisso’, e tudo já foi feito”.
Novamente, seria um erro pensar que Lutero endossava uma
abordagem libertária, ou antinomiana, à vida cristã. Lutero
simplesmente evita discutir a vida de obediência do cristão como de
obediência à lei.
Naturalmente, a noção de Lutero de sola fide e sola gratia conduz
à última das solas da Reforma: solus Christus. A doutrina da
justificação somente pela fé destaca que o único mediador entre
Deus e a humanidade pecaminosa é o Deus-Homem, Cristo (1 Tm
2.5). Por depender exageradamente – e abusar – dos sacramentos,
por uma confiança mal depositada na capacidade humana, e pela
ênfase na indispensabilidade da igreja romana, o fato de que
somente Cristo reconcilia a humanidade a Deus havia sido
obscurecido no passar dos séculos do período medieval.
Até os dias de Lutero, Cristo estava, em grande parte, impedido.
Lutero tirou o foco dessas outras questões e o voltou diretamente
para Cristo. Certa ocasião, ele comentou: “O centro é Cristo”. Tal
foco em Cristo permeia os escritos de Lutero. Em seu comentário
sobre Romanos 10.4, Lutero escreve: “Toda palavra na Bíblia
aponta para Cristo”. Não é surpresa que ele siga as implicações de
sua própria observação na pregação. Nesse sentido, a maioria de
seus sermões exalta a pessoa e a obra de Cristo. Veremos mais de
perto esse tema na pregação de Lutero quando examinarmos seu
sermão “Sobre os santos sofrimentos de Cristo”, no Capítulo 12.
Lutero e o Laicato
Uma discussão acerca da teologia de Lutero seria incompleta sem
destacar seu entendimento teológico quanto ao papel do laicato. As
reformas teológicas de Lutero também levaram à reforma da prática
e do sistema da igreja. Essas reformas impactaram várias áreas,
como pregação, música na igreja e relações entre igreja e Estado,
assuntos que abordaremos em outros capítulos. As reformas
também impactaram fortemente o laicato. Duas doutrinas surgem
aqui. Primeiro, a ideia de Lutero acerca do sacerdócio do crente
virou a mesa de séculos de uma disposição mental hierárquica que
depreciava os leigos, deixando-os, bem como a salvação, cativos da
ordem oficial da igreja. Ao contrário do ponto de vista católico
medieval, Lutero restaurou a visão expressa em 1 Pedro 2.5, que
afirma que todos os crentes constituem um “sacerdócio santo” e
“[oferecem] sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus por meio de
Jesus Cristo”. Como proclama Lutero: “Todo sapateiro pode ser
sacerdote de Deus!”. Esse sacerdócio concede acesso a Deus e à
sua graça.
Novamente, é necessário ter um entendimento cuidadoso aqui.
Lutero não aboliu o clero. De fato, ele se opôs veementemente aos
anabatistas nesse ponto específico. Mantinha a necessidade do
clero, e um clero bem culto, por sinal, bem como a hierarquia na
igreja. Rejeitava, contudo, qualquer esquema que estabelecesse
uma classe de sacerdotes como mantenedores de acesso
privilegiado e especial, relegando os demais crentes à condição de
cristãos de segunda classe.
A teologia católica medieval mantinha sete sacramentos, entre os
quais a ordenação. Lutero, contudo, rejeitava a ordenação como
sacramento, pois não encontrava nenhum ensinamento do
sacerdócio como sacramento na Escritura. Também rejeitava o fato
em si de ser chamado de sacramento. Como sacramento, a
ordenação estendia uma graça especial indisponível aos que
estivessem fora do clero. Lutero observou, em vez disso, de seu
modo singular, que só se pode tornar pregador quem “pode crer que
não foi feito nem um pouco melhor do que o laicato”. Tais palavras
vêm do significativo tratado de 1520, Do cativeiro babilônico da
igreja. Nessa obra, ele também escreve: “Que todos, portanto, que
se reconhecem como cristãos sejam assegurados disto: somos
todos igualmente sacerdotes”. Para Lutero, o ofício do sacerdócio
tinha a ver unicamente com a função da pessoa na igreja. Quanto
ao relacionamento ou à posição diante de Deus, Lutero proclamou o
sacerdócio universal de todos os crentes.
Além disso, Lutero tomou a palavra “vocação”, que significa
chamado, aplicando-a a todas as outras ocupações. Isso pode não
nos parecer significativo, mas, no contexto de seus dias, tem um
significado profundo. A palavra vocação se aplicava estritamente
aos que faziam os votos monásticos. Isso tinha implicação
semelhante ao ato de designar o sacerdócio como uma ordenança,
ao conceder status mais elevado àqueles que faziam os votos
monásticos do que aos que estavam fora do monastério. Isso ainda
deixava implícito que o trabalho fora do monastério seria inferior ao
chamado, de pouco ou nenhum significado espiritual.
Nesse contexto, a visão de Lutero, no sentido de aplicar a
palavra vocação a todas as ocupações, sinalizava uma perspectiva
inteiramente nova sobre o trabalho e a vida diária, ou sobre a
chamada “vida ordinária” ou comum. Todo o trabalho, e não apenas
as profissões eclesiásticas, podia ser realizado como ato de serviço
e adoração. Na verdade, esse conceito pode ser resumido por outro
sola: soli Deo gloria (glória somente a Deus). Tal crença ainda fazia
com que todo o trabalho, como tudo na vida, fosse visto como
dando glória a Deus. Por meio dessas ideias, tanto do sacerdócio do
crente como da vocação, Lutero garantiu novas e bem-vindas águas
para a igreja e para o laicato.
No entanto, essas contribuições teológicas, extraídas de diversas
partes de seus escritos, jamais foram vistas por Lutero como
invenção sua. Ele via a si mesmo como quem simplesmente declara
aquilo que está claro na Escritura para todos verem. “Eu nada fiz”,
disse ele certa vez. “A Palavra fez tudo.” Isso porque tais doutrinas,
por mais óbvias que estivessem no texto, se haviam tornado
opacas, e a luz da Palavra se tornara embaçada. Lutero talvez não
tivesse criado, mas realmente foi ele quem recuperou a fonte: tanto
a Escritura como as doutrinas, especialmente a teologia da cruz e a
doutrina da justificação somente pela fé.
Nos capítulos seguintes, vamos expor essas doutrinas e
examinar o papel que desempenharam na vida e no contexto de
Lutero, como também o impacto contínuo que têm para os leitores
de hoje. Essas doutrinas, fundamentadas na Palavra de Deus,
formam a base de nossa fé e desempenham papel decisivo em
nossa herança. Assim, ao examinarmos o contexto em que se
desenvolveram, somos capazes de obter melhor entendimento e
maior apreciação dessas verdades fundamentais. Dessa forma,
prosseguimos em nossa jornada pela vida e pelo pensamento de
Lutero com esses alvos em mente.
Nota sobre as Fontes
As obras sobre a teologia de Lutero serão tratadas em mais
detalhes na conclusão. Contudo, especialmente quatro trabalhos em
língua inglesa se revelam bastante úteis para o entendimento de
sua teologia. Esses trabalhos incluem, de Bernard Lohse, Martin
Luther’s Theology: Its Historical and Systematic Development
(1999); de Alister E. McGrath, Luther’s Theology of the Cross: Martin
Luther’s Theological Breakthrough (1985); De David C. Steinmetz,
Luther in Context (1995); e de Gerhard O. Forde, On Being a
Theologian of the Cross: Reflections on Luther’s Heidelberg
Disputation, 1518 (1997). Mais duas obras, também em inglês,
oferecem uma ampla variedade de escritos de Lutero sobre
Teologia: de Hugh Thomson Kerr, A Compend of Luther’s Theology
(1943), e de Timothy F. Lull, Martin Luther’s Basic Theological
Writings (1989).
Capítulo 4
NUNCA MAIS O SILÊNCIO:
os Três Tratados

“Todo mundo está cego e em grande escuridão; somente este homem


enxerga a verdade.”
JOHANNES BUGENHAGEN,
ao ler Do cativeiro babilônico da igreja

“P
ASSOU O TEMPO DO SILÊNCIO e chegou o tempo de
falar.” Assim escreve Martinho Lutero no prefácio de À
nobreza cristã da nação alemã, o primeiro dos três
escritos comumente conhecidos como os Três Tratados. Na
verdade, nos últimos anos ele estivera qualquer coisa, menos
calado. Começou a falar em 1517 e, até 1520, continuou a falar bem
alto. Esse ano de 1520 representou um divisor de águas para o
reformador. Antes, ele poderia ter retrocedido de seu desafio ao
papa, às indulgências e a toda a igreja católica romana. Na verdade,
os eventos ocorridos nos meses de outono lhe deram a
oportunidade de fazê-lo. Contudo, Lutero manteve-se firme em seu
curso. Em vez de recuar nesse período, ele fincou ainda mais fundo
a cunha entre ele e a igreja. E, até o final de 1520, o rompimento de
Lutero com a igreja estava quase concluído.
Depois de postar as 95 teses, Lutero se envolveu em guerras de
panfletos, como também em inúmeros debates com vários oficiais
da igreja. Sua atividade lhe rendeu uma bula papal, ou decreto, em
que ele foi condenado como herege. Ele respondeu, como só Lutero
podia fazer, queimando publicamente esse documento. Mas ele não
era apenas outro revolucionário rebelde. No palco histórico, sua
revolução era de ideias, em especial a ideia mais significativa de
todas: as concernentes à relação da humanidade com Deus. Assim,
além de queimar o decreto papal, ele tomou em mãos a pena e,
durante os meses de outono de 1520, escreveu três obras que se
destacam eminentemente em qualquer lista de escritos importantes
da Reforma. Estes incluem o já mencionado À nobreza cristã da
nação alemã, Do cativeiro babilônico da igreja e A liberdade do
cristão.
Derrubando as Paredes: À Nobreza Cristã
Conforme já mencionamos, o papa Leão X emitiu seu decreto contra
Lutero em 15 de junho de 1520, oferecendo-lhe duas opções: ou
retratar-se, ou recusar o abjuramento e ser declarado herege. O
prazo de Lutero era de sessenta dias a partir do recebimento do
decreto. Ele o recebeu em 10 de outubro e, no dia 10 de dezembro,
queimou-o. Mas, antes mesmo de receber a bula, ele já havia
redigido o primeiro dos Três Tratados, no final de agosto de 1520.
Em seguida, em outubro, veio Do cativeiro babilônico e, somente
então, em novembro, a terceira parte, A liberdade do cristão, foi
impressa.
No primeiro dos Três Tratados, Lutero apresenta a tarefa
essencial, mas bastante impopular, de derrubar as paredes erigidas
por Roma, as quais prendiam a nação alemã e seus habitantes. Ele
utiliza a imagem de paredes para impressionar seu auditório
primário, os príncipes e governantes da Alemanha, ou a “Nobreza
da Nação Alemã”, acerca do extraordinário poder que Roma
exercia, de forma ilegítima, sobre suas terras.
A primeira parede à qual Lutero se refere como “pura invenção”
aborda a distinção radical dentro da igreja medieval entre as
autoridades da igreja e o laicato. De acordo com esse ponto de
vista, o papa, os bispos, os sacerdotes e os monges pertenciam a
um “estado espiritual” mais elevado, enquanto os oficiais do Estado,
os artesãos, comerciantes, fazendeiros e camponeses – ou seja,
todas as outras pessoas – rastejavam pelo mais baixo “estado
temporal”. Noutras palavras, a distinção entre o clero e os leigos era
tão profunda que todos do laicato eram vistos como inferiores e,
certamente, menos espirituais do que os outros. Tamanha
disparidade revela muito sobre o mundo medieval nas vésperas da
Reforma.
A igreja tivera seu poder ampliado desde o começo do período
medieval. Em 800 d.C., o papa Leão III coroou Carlos Magno como
imperador do Sacro Império Romano. Esse fato é significativo por
diversas razões, mas, essencialmente, revela o poder do papado,
pois, com a coroação pelo papa, o Estado teria de se curvar diante
da igreja. Certamente, esse poder aumentou e diminuiu por todo o
período medieval, o que se devia, em grande parte, ao talento do
papa em diversos distintos. Mas uma coisa está clara: o poder
político estava sujeito ao poder da igreja. Além do poder político, é
possível constatar o poder espiritual que a igreja exercia. Os
sacramentos, que cobriam desde o berço até a sepultura – do
batismo à extrema-unção –, pertenciam exclusivamente à igreja e a
seus agentes. Em consequência, também a salvação só provinha da
igreja. Aqueles que estavam fora do chamado sacerdócio ou que
não eram bispos, monges ou pertencentes ao clero dependiam
totalmente da igreja e de seus agentes para a salvação.
Lutero propôs derrubar essa parede, enfatizando os vários
ensinamentos bíblicos sobre o corpo de Cristo e o sacerdócio dos
crentes. Somos todos membros de um só corpo, Lutero declarou,
conforme a posição de Paulo, “e todo membro tem um trabalho por
meio do qual serve ao próximo”. Esse equipamento dos santos não
se deve a nosso ofício ou cargo, mas ao fato de todos nós termos
“um só batismo, um só evangelho, uma só fé, e sermos todos
igualmente cristãos”. Lutero acrescenta que os papas e bispos
podem ungir, raspar a cabeça dos monges, ordenar e consagrar,
mas “jamais poderão tornar um homem cristão ou espiritual ao
fazerem isso”. E continua, de forma empolgante: “É possível tornar o
homem hipócrita, impostor ou estúpido, mas nunca cristão ou
espiritual”. Em vez disso, Lutero aponta para as palavras de Pedro,
que observa que somos todos, como cristãos, consagrados como
sacerdotes (1 Pedro 2.9).
Nesse sentido, Lutero claramente reconhece que diferentes
crentes atendem a diferentes funções dentro do corpo de Cristo. E
também enfatiza a necessidade de o clero guiar os crentes tanto no
entendimento bíblico como na vida cristã. Na verdade, quando o
movimento de Lutero teve início, ele criticou mordazmente aqueles
que, como Andreas Karlstadt, seu colega em Wittenberg, tentavam
abolir qualquer distinção. Ele defendia que “não há nenhuma
verdadeira diferença básica entre leigos e sacerdotes, príncipes e
bispos, religiosos e seculares, exceto no que concerne ao ofício e
ao trabalho, mas não por status”. Lutero ainda enxerga um papel
viável para o clero diferente do que pertence ao laicato. Mas, quanto
à posição ou ao status das pessoas, ou mesmo quanto à
capacidade de alguém levar uma vida que agrade a Deus, Lutero
propõe derrubar qualquer distinção entre eles.
A segunda parede figurativa trata da Escritura e do controle que
os “romanistas” exerciam sobre ela. Nesse ponto, Lutero ataca
diretamente a reivindicação de que somente o papa seria capaz de
interpretar, de forma correta, a Escritura para a igreja, como também
a afirmativa de que a igreja seria a guardiã dessa verdadeira
interpretação. Conforme Lutero observa:

Os romanistas querem ser os donos da Sagrada Escritura, embora


jamais tenham aprendido nada da Bíblia. Assumem para si a condição
de única autoridade e, desavergonhadamente, brincam com as
palavras diante de nossos olhos, tentando persuadir-nos de que o papa
não pode errar nas questões de fé.
Lutero explica como essas ideias nunca eram desafiadas,
notando que muitos, incluindo ele, nunca examinavam a Bíblia por
tempo suficiente para ver a falta de base do ponto de vista de
Roma. Quando Lutero passou a ler a Bíblia, deu-se conta do
engano e exclamou: “Eu não acredito que teria sido possível o diabo
fazer afirmativas tão estúpidas quanto Roma fez, e ainda conseguir
reunir seguidores para elas”. Lutero conclui que um ofício não é
detentor de autoridade; apenas o texto é.
A terceira parede simbólica é construída sobre a anterior e
declara que a autoridade papal é inquestionável, conceito também
conhecido como infalibilidade papal. Lutero, então, apela para o
efeito dominó: se as primeiras duas paredes caírem, essa também
deverá cair. Conforme observa: “A terceira parede cairá por si
mesma quando as duas primeiras tiverem caído”. A Escritura é
infalível, mas não o papa. Na verdade, ele nota, quando “o papa é
uma ofensa à cristandade”, então o primeiro que se mostrar capaz
deverá falar contra ele. Acrescenta que, “quando o papa age de
maneira contrária às Escrituras, é nosso dever colocar-nos ao lado
das Escrituras, reprová-lo e constrangê-lo”.
A Canção do Tolo de Lutero
Lutero enfatiza essas três paredes para enviar um chamado que
desperte os líderes da Alemanha. Segundo a visão do reformador,
esses líderes tinham uma obrigação ética e espiritual para com o
povo de suas terras. Na opinião de Lutero, o estado dos
acontecimentos havia atingido proporção crítica. E isso era
verdadeiro não só em relação às coisas espirituais, mas também
quanto aos aspectos sociais e políticos, conforme lembra aos
príncipes:

Alguns estimam que mais de trezentas mil moedas de ouro são levadas
todo ano da Alemanha para Roma. Esse dinheiro não atende a nenhum
uso ou propósito. Nada recebemos dele, exceto zombaria e desprezo.
E continuamos perguntando por que os príncipes e nobres, as cidades
e as dotações, a terra e o povo, todos vão empobrecendo. Devemos
nos surpreender com o fato de ainda termos o que comer!

Lutero conclui que a Roma papal é o centro “da avareza e da


roubalheira”. Ele diz que se assemelha a “um bordel acima de todos
os bordéis imagináveis”, lugar no qual “toda a desonestidade e toda
a vergonha podem parecer honra e glória”. Os príncipes, sustenta
Lutero, facilitam toda essa atividade ao não se posicionarem contra
Roma. No entanto, esse abuso econômico é apenas o começo, pois
a verdadeira farsa é a escuridão espiritual que não apenas paira
sobre Roma, como também engole a Alemanha. Depois de expor,
em detalhes, a situação contemporânea da Alemanha, Lutero,
então, propõe o que deve ser feito. Ele prefacia sua prescrição com
os seguintes comentários: “Ora, embora eu seja um homem bem
insignificante para fazer propostas que visem à melhora desse
terrível estado de coisas, entoarei minha canção de tolo até o fim,
dizendo, ao máximo e tão longe quanto me for possível, o que
poderia e deveria ser feito”. Assim, quando Lutero disse que
entoaria sua “canção de tolo até o fim”, não estava brincando, pois
expôs nada menos que 27 pontos aconselhando a nobreza alemã.
Ele abordou tudo, desde as práticas da igreja até a administração
das universidades. Também desafiou os príncipes em relação a
alguns interesses empresariais e práticas comerciais.
E, embora isso chegasse bem próximo de morder a mão de
quem o alimentava, Lutero não recuou nos pontos em que sua
convicção o levava a se posicionar firmemente. Uma área em
particular que preocupava Lutero envolvia o surgimento dos bancos
e das práticas de empréstimo. Ele escreveu: “O que realmente não
posso entender é como um homem com cem moedas de ouro pode
obter um lucro de vinte delas em um só ano. Nem entendo como um
homem com uma moeda de ouro consegue ganhar outra sem lavrar
a terra ou criar gado”. Ele passa, então, a revelar sua teoria
econômica: “Eu bem sei que seria, de longe, muito mais piedoso
desenvolver a agricultura e restringir o comércio”.
Assim, embora nem todos concordassem com sua teoria, o que
Lutero tentou fazer foi forçar a nobreza a pensar nas implicações de
suas práticas para os pobres e para o bem comum. Em última
análise, Lutero desejava que os nobres alemães reconhecessem
que ser cristão significa ser cristão nobre e desempenhar seu ofício
regido por princípios cristãos. Ele, então, concluiu esse rol de
recomendações para a nação alemã com uma curta oração: “Deus,
dai-nos uma mente cristã e concedei, em particular, à nobreza cristã
da nação alemã a verdadeira coragem espiritual para fazer o melhor
possível pela pobre igreja”.
Do cativeiro babilônico da igreja
O cântico de tolo de Lutero não acabou quando ele concluiu seu
discurso à nobreza alemã. Ele levou esse cântico consigo por
muitas décadas. Mas, nos poucos meses seguintes, Lutero
continuou a enfocar as questões mais urgentes que enfrentava. O
sacramentalismo prendia a atenção de Lutero na segunda parte dos
Três Tratados. A briga de Lutero com Roma teve início com sua
preocupação quanto ao abuso de um sacramento específico: o da
penitência.
Assim, a prática desse sacramento pela igreja trouxe uma crítica
mordaz de Lutero nas 95 teses. Ele continuou tentando restringir o
abuso desse e de outros sacramentos em vários sermões ao longo
dos anos de 1517-1519. No período em que escreveu Do cativeiro
babilônico da igreja, em 1520, lançou um ataque em larga escala.
Qualquer um que seja até mesmo vagamente conhecedor da
Escritura sabe que o termo “Babilônia” não é um elogio. Quando
Lutero junta isso com a palavra “cativeiro”, seu intento é ainda
menos ambíguo. Seu desafio à igreja incluía dois fatores principais.
Primeiro, reduzir o número dos sacramentos de sete para dois. E,
em seguida, reformular, de modo radical, os dois remanescentes.
Antes de iniciar sua crítica, ele nos mostra como seu
pensamento, desde os primeiros dias, alterou nesse aspecto . É
óbvio que, como monge, ele seguia a prática de sua igreja, mas logo
percebeu que essa prática não condizia com a Escritura. Ele faz
referência às 95 teses e ao trabalho que se seguiu imediatamente,
Explanações sobre as 95 teses, mas logo acrescenta um pedido de
desculpas a esse trabalho, não por ser crítico, mas por não ir longe
o suficiente. E escreve: “Agora me arrependo profundamente de ter
escrito aquele livreto”. Principalmente porque, na época, ele “ainda
se agarrava com poderosa superstição à tirania de Roma”, não
rejeitando totalmente as indulgências, mas só pedindo que fossem
reformadas. Mas sua mente havia mudado. E ele queria que isso
ficasse bem claro. Então, declarou em letras maiúsculas: “AS
INDULGÊNCIAS SÃO UM INSTRUMENTO PERVERSO DOS
BAJULADORES DE ROMA”.
No entanto, embora Lutero rejeitasse as indulgências, nunca
combateu a validade da penitência ou da confissão. Ora, seu tratado
não é muito claro nesse ponto. Sem dúvida, ali ele discute, em
detalhes, quão longe a prática da penitência se afastou do
ensinamento bíblico da confissão. Apesar disso, em sua abordagem
acerca da penitência, parece referir-se a ela como um sacramento
válido. E, no final desse tratado, escreve: “Portanto, falando
estritamente, existem apenas dois sacramentos na igreja de Deus: o
batismo e o pão”. Em seguida, refere-se à penitência como “nada
mais senão um caminho e um retorno ao batismo”. Mas, quando
escreve o Catecismo menor, em 1529, inclui uma seção sobre
confissão entre as seções sobre o batismo e a Ceia do Senhor.
Talvez consigamos esclarecer essa ambiguidade concluindo que
Lutero defende apenas dois sacramentos, o batismo e a comunhão,
enquanto também vê um lugar crucial e necessário para a
confissão. A ênfase de Lutero na confissão pode surpreender os
protestantes contemporâneos. Porém, antes de julgarmos Lutero
por seu entendimento acerca da confissão, é útil examinarmos o
que ele tencionava fazer. Voltaremos a isso no Capítulo 8, quando
da análise de seu pensamento maduro sobre o assunto no
Catecismo menor.
Entendendo os Sacramentos
Conforme já mencionamos, os dois sacramentos que Lutero
conservou passam a parecer bem diferentes em relação ao
esquema romano. Antes de começar a reformulá-los nas linhas do
ensino bíblico, primeiro ele discute uma perspectiva geral sobre os
sacramentos como uma introdução. Em seguida, retoma os
sacramentos, começando, como se refere na linguagem costumeira
do período medieval, com o sacramento do pão, passando, em
seguida, ao batismo e, após, à penitência. Lutero dedica a maior
parte do tempo para falar dos abusos desses sacramentos e
explicar como isso prejudica os leigos. Argumenta que a igreja, num
gesto de abuso de poder, manteve cativos esses sacramentos,
impedindo que o laicato recebesse essa bênção. Segue
examinando os quatro sacramentos do Catolicismo Romano que ele
rejeita como desprovidos de base da Escritura, tratando,
sucessivamente, a confirmação, a ordenação, o casamento e a
extrema-unção.
O papel fundamental e a natureza dos sacramentos permeiam
esse escrito. A igreja romana dizia que os sacramentos são, de fato,
muito mais que meros sinais, porque, em si mesmos, constituem
meios de graça. A igreja romana, no decorrer do tempo,
desenvolveu ainda a noção de que os sacramentos funcionam de
forma automática. A expressão latina para isso é ex opere operato,
significando, literalmente, que os sacramentos trabalham (operam)
pelo mero ato de sua operação. Isso perturbava Lutero, que via os
sacramentos como sinais que apontam para Cristo, a quem se
refere no início do tratado como o único e verdadeiro sacramento, e
à fé em Cristo. Ora, Lutero não chega à mesma conclusão que
Ulrico Zuínglio, que via os sacramentos, especialmente a Ceia do
Senhor, apenas como um memorial. Na verdade, Lutero e seus
seguidores romperam com Zuínglio e seus seguidores em relação a
essa mesma questão. O que Lutero enfatiza, e o que encontrou
ausente no ponto de vista romano, é “a palavra de divina promessa
no sacramento”. Ele explica o que quer dizer com isso ao escrever:
“Deus não trata, nem jamais tratou, o homem de outra maneira
senão pela palavra da promessa. Assim, não podemos tratar Deus
ou os outros senão pela fé na Palavra de sua promessa”.
Então, ele observa que o modelo bíblico revela como Deus
acrescenta um sinal à sua promessa. Por exemplo, na promessa
feita por Deus a Abraão em Gênesis 12.15, segue-se o sinal da
circuncisão em Gênesis 17. Assim também com a Ceia do Senhor,
pois também é um sinal da promessa. Ora, o sinal é importante,
mas não um fim em si mesmo. O que importa é aquilo para o qual o
sinal aponta – e mais que isso: a fé naquilo para que o sinal aponta.
Conforme Lutero conclui: “Assim, o único preparo digno e
observação própria é a fé, a fé através da qual cremos na Ceia do
Senhor, ou seja, na divina promessa”. Em vez de concordar com o
ponto de vista de Roma, no sentido de que os sacramentos
funcionariam automaticamente, Lutero anuncia que os sacramentos
só são efetivos quando exercitados pela fé. Mais uma vez, Lutero
deixa isso bem claro:

Como esse tratamento de Cristo [no sacramento] é o único remédio


contra os pecados, passados, presentes e futuros, se apenas vos
ativerdes a ele com fé inabalável e sem hesitação, crereis que aquilo
que as palavras do sacramento declaram foi concedido gratuitamente a
vós. Mas, se não crerdes nisso, jamais, em qualquer lugar, por
quaisquer obras ou esforços próprios, conseguireis encontrar paz de
consciência. Pois somente a fé significa paz de consciência, enquanto a
incredulidade significa apenas aflição de consciência.
A visão de Lutero acerca dos sacramentos revela a centralidade
da fé em sua teologia. Além disso, mostra quanto Roma se afastara
do ensinamento bíblico, obscurecendo o verdadeiro papel dos
sacramentos. Além dessa crítica fundamental ao abuso dos
sacramentos, Lutero também oferece outras numerosas críticas no
que diz respeito à prática de todos os sete. Por exemplo, o ponto de
vista romano sobre a Ceia do Senhor, de que a congregação só
participava do pão, enquanto somente o sacerdote tomava o cálice,
explica a referência a sacramento do pão na Idade Média. Aqui,
Lutero encontra um caso claro de a igreja impor sua autoridade e
sua prática no lugar da Escritura. Na verdade, essa acusação
perpassa o tratado e compõe a substância de seus argumentos
contra a validade dos outros quatro denominados sacramentos.
Lutero via que só o que foi divinamente instituído constitui um
sacramento. Lutero via um motivo de lucro por trás do sistema
sacramental da igreja medieval. A certa altura, ele observou que os
sacramentos haviam sido “transformados em mera mercadoria, um
mercado e um negócio para a obtenção de lucros”.
Lutero redigiu esse tratado em latim, evidência de que não via
como destinatários os do povo, mas os acadêmicos, e que
tencionava provocar um debate entre os estudiosos. E foi
exatamente isso que aconteceu. Aleander, o secretário papal que se
tornou inimigo de Lutero, rapidamente tentou refutá-lo, acusando-o
de blasfêmia. Ironicamente, outras autoridades da igreja romana ora
o suprimiam, ora o distribuíam amplamente: o primeiro ato, na
tentativa de manter essa heresia de se espalhar; o segundo,
tentando mostrar quanto Lutero era herético. Quando Erasmo o leu,
notou: “A quebra é irreparável”, reconhecendo a extensão das
diferenças entre Lutero e Roma. Henrique VIII, antes de romper com
Roma e estabelecer a Igreja Anglicana, mandou queimar esse livro
e redigiu uma longa crítica a respeito. O papa Leão X concedeu a
Henrique VIII o título de “Defensor da Fé” por seu ataque a Lutero –
um ato que, mais tarde, ao lidarem com o Henrique VIII dos anos
1530, provavelmente outros papas lastimaram profundamente. Nem
todas as respostas, contudo, foram negativas. Algumas pessoas,
como Johannes Bugenhagen, viram as palavras de Lutero como
bastante convincentes e se reuniram a ele em razão de seu
trabalho. A crítica de Lutero em relação à igreja no ano de 1520,
contudo, não acabara, e ainda haveria um episódio final.
O Poder da Fé: A liberdade do cristão
Lutero inicia o último e mais curto dos Três Tratados, A liberdade do
cristão, em novembro de 1520, com um paradoxo ao escrever: “Um
cristão é senhor de todos, perfeitamente livre, e não está sujeito a
ninguém. Um cristão é um servo perfeitamente submisso de todos,
sujeito a todos”. Imediatamente, ele admite a aparente contradição
dessas afirmativas, ressaltando que não fora ele quem inventara
esse paradoxo, o qual derivava do ensino de Paulo em 1 Coríntios
9.19. Lutero ainda encontra nesse paradoxo a chave para o
entendimento de toda a vida cristã. Isso porque, para ele, ser
simultaneamente livre e servo expressa o relacionamento certo
entre fé e obras.

Figura 4.1 O ano decisivo de Lutero (1520)


15 de junho O papa Leão X questiona a bula papal “Exsurge, Domine”
Agosto Ele escreve o discurso À nobreza cristã da nação alemã
Outubro Escreve Do cativeiro babilônico da igreja
Novembro Escreve A liberdade do cristão
Novembro Escreve Contra a detestável bula do anticristo
10 de dezembro Queima publicamente a bula papal

É claro que ele começa com a fé, ou liberdade cristã, apontando


que “uma só coisa é necessária para uma vida cristã com justiça e
liberdade. Essa única coisa é a santíssima Palavra de Deus, o
evangelho de Cristo”. Com uma referência nada velada à sua
situação atual, ele observa que “não existe pior desastre com o qual
a ira de Deus possa afligir o homem do que a fome por não ouvir
sua Palavra”. Porém, “não há maior misericórdia do que quando
Deus envia sua Palavra”. Lutero explica o que quer dizer com
Palavra de Deus, a qual, em uma referência a Romanos 1, resume
como “o evangelho de Deus no que diz respeito a seu Filho, que foi
feito em carne, sofreu, ressuscitou da morte e foi glorificado
mediante o Espírito que santifica. Pregar Cristo significa alimentar a
alma, torná-la justa, libertá-la e salvá-la”. Rapidamente, ele
acrescenta que a Palavra de Deus não pode ser recebida de outra
forma senão pela fé. “Essa fé”, continua ele, “não pode existir em
conexão com as obras”. Consequentemente, “deveria ser
preocupação de todo cristão deixar de lado a confiança nas obras e
aumentar somente a fé, e pela fé crescer no conhecimento, não das
obras, mas de Jesus Cristo” (1 Pe 5.10).
A fé, de acordo com Lutero, revela nossa própria necessidade
desenfreada. Mostra-nos quanto somos indignos da justiça de Deus,
quanto somos pecadores e quão incapazes somos de remediar a
própria situação. Aprendemos isso quando vemos que “toda a
Escritura de Deus é dividida em duas partes: mandamentos e
promessas”. Aprendemos pelos mandamentos “a reconhecer
[nossa] incapacidade (...), a sermos humilhados e reduzidos a
nada”. Mas as promessas de Deus, que “são santas, verdadeiras,
justas e livres, além de palavras pacíficas, cheias de bondade”, vêm
em nosso socorro. Em outras palavras, por meio das promessas,
aprendemos a depender totalmente da obra de Deus. Lutero
apresenta isso como o “primeiro poder da fé”. O “segundo poder” é
que a fé gera confiança, e a confiança, obediência. Lutero expressa
isso da seguinte forma: “O mais alto culto que atribuímos a ele é a
verdade, a justiça, e qualquer outra coisa deve ser atribuída àquele
em quem confiamos. Quando se age dessa forma, a alma consente
em fazer a sua vontade”. Tal confiança em Deus gera não somente
a obediência, mas também o descanso e o contentamento no plano
de Deus. Mais uma vez, Lutero observa que quem se agarra a Deus
pela fé “não duvida de que aquele que é verdadeiro, justo e sábio
fará, disporá e bem proverá todas as coisas”.
O terceiro poder da fé diz respeito à união da “alma com Cristo,
como a noiva se une ao noivo”. Essa união nos liberta do poder do
pecado, guarda-nos da morte e do inferno concedendo-nos a vida
eterna. Essa é a verdadeira liberdade, que vem somente pela fé.

Nesse contexto, Lutero levanta a questão do papel das obras.


Conquanto argumente que não realizamos as obras a fim de nos
tornar justos, sustenta que “devemos realizar obras livremente
somente para agradar a Deus”. Retornando ao segundo poder da fé,
a obediência aos mandamentos de Deus deriva naturalmente da
confiança em Deus. De modo semelhante, as obras são uma
resposta natural de gratidão pela obra que Deus realizou. E Lutero
deixa bem claro: “Portanto, não rejeitamos as boas obras; pelo
contrário, nós as estimamos e as ensinamos ao máximo”. Mas, para
Lutero, tanto a ordem como a natureza das obras devem ser
firmemente estabelecidas. Elas seguem a fé, e constituem uma
grata resposta daqueles que foram feitos justos pela fé – e não são
pré-requisito para a justiça.
Livre para Servir
Mais um papel das obras concerne ao serviço dos cristãos em
relação ao próximo. Conforme Lutero afirma: “Um homem não vive
somente para si nesse corpo mortal, trabalhando somente por si,
mas para todos os homens sobre a face da terra; ou seja, vive
somente pelo próximo, e não para si mesmo”. Lutero retorna, então,
ao paradoxo com que iniciou o tratado. Somos perfeitamente livres
em Cristo. De fato, Lutero diz que somos mais livres do que os reis.
No entanto, somos compelidos a servir ao nosso próximo. Em
outras palavras, servimos a todos porque somos livres. Lutero
enxerga essa servidão no exemplo de Cristo conforme oferecido por
Paulo em Filipenses 2. Cristo, o Deus-homem, detentor de todas as
riquezas do céu, tornou-se servo. Lutero estende essa analogia ao
cristão:

Assim, embora o cristão seja livre de todas as obras, deverá, nessa


liberdade, esvaziar-se de si mesmo, tomar sobre si a forma de servo,
assumir a forma de homem, encontrado na forma humana, e servir,
ajudar e, de todo modo, tratar o seu próximo conforme ele vê que Deus,
por meio de Cristo, o tratou e ainda trata.

Ironicamente, Lutero dedicou a versão latina dessa obra ao papa


Leão X. Talvez tenha feito isso em sinal de conciliação. Em sua
dedicatória, ele escreve que A liberdade do cristão é um pequeno
livro, mas, “a não ser que eu esteja enganado, contém a totalidade
da vida cristã de uma forma breve, desde que se apreenda seu
significado”. Esse pequeno livro, com seu curto paradoxo e sua
extensa discussão da fé, corresponde a muitos volumes sobre como
viver de forma cristã. Lutero nos ajuda, como faz em tantos de seus
escritos, a compreender a centralidade e a natureza da fé. Também
nos auxilia a ver o papel certo das obras em nossa vida. Essa – a
exemplo das outras duas obras que compreendem os Três Tratados
– provocou uma revolução nos dias de Lutero. Embora boa parte do
material se relacione diretamente à situação de Lutero,
especialmente os primeiros dois tratados, essas obras ainda têm
muito a oferecer aos cristãos contemporâneos que buscam
compreender como a Bíblia auxilia a enfrentar os desafios de hoje e
o que significa levar uma vida cristã.
Nota sobre as Fontes
Os Três Tratados podem ser encontrados, em língua inglesa, em
Luther’s Works: v. 44, The Christian in Society I, “To the Christian
Nobility of the German Nation” (1966), editado por James Atkinson,
pp. 115-217; v. 36, Word and Sacrament II, “The Babylonian
Captivity of the Church” (1959), editado por Abdel Ross Wentz, pp.
3-126; e v. 31, Career of the Reformer I, “The Freedom of the
Christian” (1957), editado por Harold J. Grimm, pp. 327-77. Cada
texto é acompanhado por uma introdução bem proveitosa. Essas
obras também foram publicadas em um único volume: Three
Treatises (1970).
Capítulo 5
A PEÇA CENTRAL DA REFORMA:
O Cativeiro da Vontade

“Não existe nada mais fácil do que pecar.”


MARTINHO LUTERO

C
ERTA VEZ, LUTERO COMENTOU que seus perseguidores
podiam queimar todos os seus livros, à exceção de dois.
Embora o papa tivesse entendido essa declaração de
forma literal, falhou ao deixar de cumprir o desejo de Lutero.
Felizmente, não precisamos nos contentar com apenas dois de seus
livros. Mas, se tivéssemos de fazê-lo, Lutero nos informa quais
deles deveríamos ler: Catecismo menor e O cativeiro da vontade.
O alcance dessas duas obras ilustra a supreendente habilidade
de Lutero. Catecismo menor, com sua clareza e economia de
palavras, apresenta uma declaração concisa do que é essencial na
prática e na doutrina cristã tanto para jovens como para idosos.
Compreensível, desafiador e, simultaneamente, provocante, esse
livro está entre os clássicos da literatura cristã. Há também O
cativeiro da vontade. Diferente da outra obra mais curta, Catecismo
menor, esse livro é um tratado que apresenta uma grande proeza
teológica. Nele, vemos a mente de Lutero mais aguda, enfrentando
o desafio teológico perene de abordar, de um lado, a relação entre a
liberdade humana e a responsabilidade, e, de outro, a soberania de
Deus. O tratamento perceptivo de Lutero dessa questão permite-nos
também colocar esse texto entre os clássicos da tradição cristã. Ele
conhecia a importância de ambos, Catecismo menor e O cativeiro
da vontade, não por tê-los escrito, mas pelas questões ali
abordadas. É provável que ele não tivesse a mais remota ideia de
que, séculos mais tarde, seus pensamentos ainda continuariam a
ajudar os cristãos em suas lutas.
A escolha de Lutero de O cativeiro da vontade faz sentido
quando compreendemos sua perspectiva acerca das questões
abordadas. Ele considerava os tópicos liberdade humana e
capacidade algo central na Reforma. Isso ficou bem claro quando
ele se envolveu com a obra de Desidério Erasmo, o grande
acadêmico grego que também foi seu contemporâneo. O cativeiro
da vontade apresenta, na verdade, uma resposta à obra de Erasmo
com título oposto, Livre-arbítrio (A liberdade da vontade). Erasmo
escreveu essa obra em resposta a alguns escritos e sermões mais
curtos de Lutero. Em consequência, quando lemos O cativeiro da
vontade, estamos assistindo a um debate entre dois dos mais
destacados intelectuais do século XVI. Para entendermos os
argumentos de Lutero nesse livro, primeiro precisamos ver Erasmo
e sua interação com Lutero. Nas páginas seguintes, trataremos do
debate entre Erasmo e Lutero. Também exploraremos as ideias de
Lutero nesse texto clássico, que J. I. Packer chamou de “mais
importante peça que veio da pena de Lutero”. O texto de Lutero,
contudo, não é simplesmente um tratado polêmico. Em outras
palavras, vai além de uma simples crítica a Erasmo, pois oferece
uma compreensão positiva e proveitosa.
Lutero e Erasmo
Desidério Erasmo de Rotterdam (1466-1536) representa o principal
acadêmico da Renascença. Extremamente culto, Erasmo foi
ordenado, mas nunca se desincumbiu dos deveres de sacerdote.
Em vez disso, dedicou sua vida à academia, mantendo uma posição
de prestígio na Universidade de Cambridge, na qualidade de
escritor. Também viajava com frequência por toda a Europa, e era
tido como o mais culto e sagaz escritor de sua época, gozando,
portanto, dos benefícios dessa reputação.
Erasmo ofereceu uma crítica mordaz e contínua da igreja em
duas frentes. Primeiro, sua obra clássica, escrita em 1509, O elogio
da loucura, oferece um retrato sarcástico e profundo de boa parte da
vida no século XVI, inclusive de vários acadêmicos que se julgavam
demasiadamente sérios. No entanto, ele reserva sua censura mais
aguda para o clero e sua muito difundida corrupção e até mesmo
ignorância. Em outras palavras, assim como Lutero, ele via a igreja
como necessitada de uma grande reforma.
A outra conhecida obra de Erasmo também repercute em Lutero.
Erasmo passou quase dez anos viajando e, em Cambridge, coligiu
diversos manuscritos gregos encontrados nos monastérios de toda
a Europa. Antes desses esforços, um texto grego do Novo
Testamento, extraído da rica tradição dos manuscritos,
simplesmente não existia. Ele publicou seu texto em 1516, na
Basileia. Aqui, vemos Erasmo entre os melhores acadêmicos
humanistas, pois foi além da tradução latina da Bíblia e, no espírito
do lema da Renascença, ad fontes (“às fontes”), partiu diretamente
para a origem, o Novo Testamento em grego.
Nesse contexto, tal evento, ao lado da insatisfação simultânea de
Lutero com a igreja, serviu como catalisador para a Reforma e sua
difusão. Lutero usou o texto de Erasmo em sua tradução da Bíblia
para o alemão; esse texto grego também serviu para a tradução da
Bíblia para a língua inglesa. Uma cópia desse texto caiu nas mãos
de Ulrico Zuínglio no mesmo ano em que foi publicado. Depois de
estudá-lo diligentemente, Zuínglio decidiu começar a pregar a Bíblia
em Zurique, em1520. Começou com Mateus 1.1 e, com o tempo,
lançou a cidade de Zurique na Reforma. O texto de Erasmo
provocou extraordinário impacto sobre a Reforma. Hoje em dia,
contudo, alguns estudiosos da crítica textual têm apontado falhas
pontuais em sua metodologia, pois, desde 1516, outros antigos
manuscritos foram descobertos, alterando a face da crítica textual.
Erasmo, contudo, foi o grande pioneiro no retorno ao texto original.
Essas duas questões, o foco no texto bíblico e a crítica da igreja,
encontraram cordial aprovação por parte de Lutero, inclusive
inspirando ainda mais sua obra. Os dois homens se encontraram,
pois Erasmo fazia visitas frequentes a Wittenberg. Contudo, ao
interagir com Erasmo, Lutero logo percebeu que, embora ambos
concordassem quanto à necessidade de uma reforma, discordavam
em relação à forma como essa reforma se daria e quão longe
deveria estender-se.
Lutero expressou sua admiração e preocupação no que diz
respeito a Erasmo numa carta enviada a Johann Lang. Numa
sentença, ele resume os pontos fortes e fracos de Erasmo: “Eu me
agrado porque ele expõe e ataca a ignorância dos monges e
sacerdotes, mas temo que ele não esteja promovendo Cristo e a
graça de Deus adequadamente”. Em outra ocasião, ele observa que
Erasmo “não conhece nada” acerca do evangelho. A certa altura,
Lutero declara: “Erasmo nunca tem nada a dizer sobre a
justificação”. E acrescenta: “Ele irritou e rebaixou o papado e agora
tira a cabeça da forca”.
Lutero, ao retirar seu apoio a Erasmo, fez com que esse homem
se distanciasse do reformador. Erasmo permaneceu na igreja
católica, embora seu compromisso nunca tenha ido muito além de
uma expressão nominal. Os dois homens tiveram extensa discussão
a respeito da questão da vontade. Mas essa discussão teológica
quanto ao livre-arbítrio começou muito antes de eles entrarem em
confronto e continua muito além de seu trabalho. Na verdade, pouco
depois do debate de Lutero com Erasmo, as questões foram
reformuladas sob as linhas da controvérsia arminiana e calvinista.
As raízes do debate também recuam aos primórdios da igreja, entre
Agostinho e os pelagianos. Conforme Erasmo observa nas primeiras
linhas de Sobre o livre-arbítrio: um discurso: “Entre as dificuldades,
e não são poucas as que surgem na Sagrada Escritura, não há
labirinto mais emaranhado do que o do ‘livre-arbítrio’, pois é um
assunto que há muito tem exercitado as mentes dos filósofos, como
também dos teólogos da antiguidade e os novos, em um grau
notável, embora, na minha opinião, tenha envolvido mais trabalho
do que frutos”. Erasmo nota, então, no prefácio do Discurso, que
Lutero tem “agitado violentamente” essa questão, e, ainda que
relutasse, sentia-se compelido a responder.
O Desafio de Erasmo
Erasmo ecoa a contenção de Pelágio sobre a doutrina do pecado
original. Pelágio, monge do final do século IV e início do século V,
aborrecia-se com o relaxamento moral que assolava a igreja de
seus dias. Ele via esse problema como proveniente direto do
ensinamento de Agostinho sobre o pecado original. Em suma, essa
doutrina, seguindo o ensino de Paulo em Romanos 5.12-21,
prescreve que a queda de Adão lançou toda a humanidade no
pecado. Em consequência, o pecado não está no ato de pecar, mas
na condição de ser pecador. Noutras palavras, devido à queda de
Adão, a pessoa é pecadora muito antes de pecar. Agostinho
entende a implicação de que ninguém busca o favor de Deus e de
que ninguém é absolutamente capaz de merecê-lo. Portanto, é
Deus quem nos escolhe, como Cristo declara à multidão reunida
para ouvir seu ensino em João 6.44: “Ninguém pode vir a mim se o
Pai, que me enviou, não o trouxer; e eu o ressuscitarei no último
dia”, ou conforme Cristo mais tarde fala aos discípulos em João
15.16: “Não fostes vós que escolhestes a mim; pelo contrário, eu
escolhi a vós outros”.
Pelágio via esse ensino e sua ênfase na incapacidade humana
como algo que não promovia a moralidade. Além disso, o ensino de
que Deus considera os seres humanos responsáveis pelo pecado
de Adão parece injusto até mesmo para o observador menos atento.
Pelágio, então, chega a uma conclusão diferente de Agostinho. Ele
vê Adão como simplesmente nosso exemplo e nada mais. Em
consequência, a capacidade da pessoa de merecer e de escolher o
favor de Deus permanece intacta.
De acordo com Pelágio, para que Deus seja justo, é preciso que
sejamos livres. A igreja rejeitou o pelagianismo, mas nunca por
inteiro. No começo dos anos 1500, Erasmo havia restaurado os
conceitos básicos pelagianos; Lutero assumiu o lado de Agostinho.
No entanto, antes que Erasmo redigisse seu desafio a Lutero, o
reformador já expressara suas ideias em diversos escritos. Erasmo,
então, vê um grande perigo na defesa de Lutero em relação ao
ponto de vista agostiniano. Na verdade, ele nota que promover tais
ideias “abre uma janela para a impiedade”. Em, seguida, Erasmo
desafia Lutero, ensinando que a Escritura e os pais da igreja haviam
promulgado a seguinte definição: “Por livre escolha neste lugar,
referimo-nos ao poder da vontade humana, com a qual o homem
pode aplicar-se às coisas que conduzem à salvação eterna, ou se
desviar delas”.
Erasmo cria que a queda impactou a vontade de modo negativo.
No entanto, a luz não é tão fraca que não possamos usá-la
corretamente. Ele também enfatiza a necessidade da graça de
Deus. Mas prefere falar da graça de Deus e da capacidade humana
cooperando para se alcançar a salvação. Asseverar tal cooperação
parece a Erasmo perfeitamente condizente com a Escritura e faz jus
à glória de Deus no ato da redenção. Ele escreve: “Eu pergunto qual
mérito um homem pode arrogar para si se tudo aquilo que ele, como
homem, é capaz de adquirir pela inteligência natural e pelo livre-
arbítrio, tudo isso ele deve àquele de quem recebeu tais poderes”.
Erasmo entendia que seu ponto de vista não ofendia a soberania e
a majestade de Deus. Lutero não tinha alternativa senão discordar
dele.
A Resposta de Lutero
Podemos lembrar que Lutero permaneceu ocupado nos meses de
verão e no outono de 1525. Casou-se em junho e enfrentou a
Guerra dos Camponeses, escrevendo extensamente sobre o
assunto. Tais questões retardaram uma típica resposta rápida ao
desafio de Erasmo. Devido a essa demora, a opinião popular
expressava que Lutero havia finalmente encontrado um rival à sua
altura. Lutero, contudo, explica essa demora na introdução e passa
a responder. Antes mesmo de concluir a introdução, ele oferece ao
leitor um resumo dessa resposta: “A clara evidência é que o livre-
arbítrio é pura ficção”.
Esse tratado de Lutero oferece uma resposta detalhada ao
argumento de Erasmo. Ele passa algum tempo fazendo referência
ao prefácio e à introdução de Erasmo, abordando questões
fundamentais e metodológicas antes mesmo de chegar ao assunto
que se lhe apresenta. A seção trazida no meio do livro continua a
focar nos argumentos de Erasmo. Já chegando ao final, Lutero se
desprende especificamente desses argumentos para tratar
diretamente do ensino de Paulo e de João sobre a questão.
Um dos pontos no argumento de Erasmo trata de nossa
capacidade de entender a Escritura. Ele sustenta que boa parte da
Escritura é obscura e de difícil compreensão. Em consequência,
devemos contentar-nos com seus ensinos básicos, evitando maior
aprofundamento. Ele aplica isso ao argumento que tem em mãos,
relegando à periferia a questão da vontade. Isso conduz a uma
resposta veemente por parte de Lutero. E, nesse processo, Lutero
expõe um entendimento bem distinto tanto da Escritura como da
doutrina.
Erasmo via a Escritura de um modo mais opaco que Lutero.
Erasmo comparava a Escritura à caverna mitológica de Coricos.
Quanto mais fundo se desce na caverna, “mais e mais escura ela se
torna”. Assim também ocorre com a Escritura. Quanto mais a
pessoa vasculha sua profundidade, menos aprecia a Deus, e Deus
se afasta ainda mais. Erasmo aplicava ainda essa abordagem como
método de teologia. Desejava contar com um centro de crença um
tanto definido, deixando o resto encoberto por um “silêncio místico”.
Erasmo incluía a questão da vontade nessa última categoria, o que
explica sua relutância em escrever a esse respeito.
Lutero, por sua vez, concorda com a existência de mistérios na fé
cristã. Mas traça sua linha em um local bem distinto. Assim, quando
chega às doutrinas cruciais que refletem grandes porções de
ensinamento bíblico, Lutero não aceita, como Erasmo, “discutir”. Em
vez disso, ele assevera. Tal afirmação, contudo, não se baseia em
bravata humana, mas na certeza da Palavra de Deus. “Estou
falando”, explica Lutero, “sobre afirmar as coisas que nos foram
transmitidas divinamente nas Sagradas Escrituras”. Tais doutrinas
são, para Lutero, a essência do Cristianismo. Conforme ele declara:
“Se retirar essas assertivas, será retirado o Cristianismo”. Lutero
explica ainda que “a matéria e o assunto das Escrituras são,
portanto, bem acessíveis, ainda que alguns textos sejam obscuros
devido à nossa ignorância acerca de seus termos”. Ele expressa a
acessibilidade da Escritura como uma doutrina tanto da clareza
interna como externa a ela. Por clareza externa, Lutero quer dizer,
em essência, que a Escritura, transmitida em linguagem humana
comum, usando costumes humanos comuns, pode ser lida e
compreendida. Quanto à clareza interna, isso envolve o ministério
do Espírito Santo de nos capacitar a entender a Escritura. Lutero
observa: “Quando falamos da clareza interna, ninguém percebe nem
mesmo um iota [nona letra do alfabeto grego] que está nas
Escrituras se não tiver o Espírito de Deus (...). Pois o Espírito é
necessário para o entendimento de toda a Escritura e de todas as
suas partes”.
Nesse sentido, Lutero rejeita a abordagem cética de Erasmo
quanto ao estabelecimento de limites e parâmetros ao ensino da
Escritura sobre a questão da vontade humana. Conforme Lutero
observa, “Erasmo considera a matéria do livre-arbítrio entre as
coisas inúteis e desnecessárias”, oferecendo, em vez disso, uma
lista de coisas que ele “considera suficientes para a religião cristã”.
Lutero observa que Erasmo deixa de mencionar Cristo nessa lista,
exclamando diretamente a Erasmo: “Tu pensas que a piedade cristã
pode existir sem Cristo, desde que Deus seja adorado com toda a
nossa força como sendo, por natureza, mais misericordioso!”.
A afirmação quanto ao livre-arbítrio permanece, de acordo com
Lutero, no cerne da questão. Ao prosseguir em sua resposta,
veremos o porquê disso. Nesse ponto de O cativeiro da vontade,
não era o ponto de vista de Erasmo acerca da livre escolha que
incomodava Lutero, mas o modo como Erasmo relegava essa
questão à periferia. Essa abordagem indiferente às questões
teológicas cruciais revela, mais uma vez, as diferenças
profundamente arraigadas entre o acadêmico humanista e o
reformador. Quando Erasmo desenvolve seu entendimento acerca
do livre-arbítrio, contudo, isso perturba profundamente Lutero, e ele
responde longamente nas demais páginas de O cativeiro da
vontade.
A Massa Pecadora
Lutero inicia sua principal seção do tratado com o ensino de Paulo
em Romanos 1. Aqui, Lutero entende que Paulo apresenta a
humanidade sob a ira de Deus e em terrível necessidade do
evangelho. Com isso, Lutero assinala: “Nessa passagem, Paulo
coloca todos os homens em uma única massa, e conclui que,
quanto à capacidade de fazer algo bom, são todos ímpios, maus e
ignorantes de justiça e fé”. Usando propositalmente o linguajar de
“única massa”, Lutero reflete uma interpretação similar dessa
passagem por Agostinho.
Agostinho entendia o argumento de Romanos como quem
apresenta a humanidade como uma “massa cheia de pecados”, ou
uma “massa pecaminosa”. Em outras palavras, toda a humanidade
se encontra condenada diante de Deus, unida à sua cabeça: Adão.
Dessa massa pecaminosa, Agostinho argumenta que Deus
escolheu outra massa de gente que seria unida ao segundo Adão,
Cristo. Tal entendimento reflete as doutrinas da imputação do
pecado, pois o ato de Adão é creditado à conta de toda a
humanidade, enquanto a imputação da justiça de Cristo, como ato
de obediência, é creditada na conta daqueles que nele creem.
Retornando a Lutero: “Essa massa da humanidade se encontra
sob a ira de Deus e o ignora”. Lutero revela, assim, a implicação
disso para a capacidade humana: “Isso significa que eles são, em si
mesmos, ignorantes e, sendo ignorantes da justiça da salvação,
certamente estão sob ira e condenação, das quais, em sua
ignorância, eles não conseguem nem tentam desvencilhar-se”. A
humanidade não é livre nem capaz, mas presa e incapaz. Tal
convicção também nos ajuda a entender Lutero quando ele fala
contra a liberdade. Ele não postula o determinismo. Na verdade,
Lutero é rápido em associar o livre-arbítrio ao que ele chama de
“vida aqui embaixo”.
Numa de suas passagens de “Conversas à mesa”, ele observa
que o livre-arbítrio “ordenha vacas e constrói casas”. Em O cativeiro
da vontade, Lutero define “livre-arbítrio” como a capacidade de nos
orientar para com Deus ou merecer sua obra em nossa vida. O livre-
arbítrio, portanto, tem a ver com capacidade, ou melhor, com
incapacidade. E a melhor alternativa para se entender essa
incapacidade vem das palavras de Paulo em Romanos 3.10-11,
quando ele cita o Salmo 14: “Não há um justo, nenhum sequer. Não
há quem entenda, não há quem busque a Deus”. Nesse contexto,
Lutero faz a Erasmo a seguinte pergunta penetrante: “Como
poderão esforçar-se pelo bem, quando são totalmente ignorantes de
Deus e não buscam nem se importam com ele?”. Além disso, Lutero
assevera que, por nós mesmos, nem mesmo teríamos consciência
de que somos pecadores. Ele entende que João 16.8 ensina que a
humanidade permanece ignorante não só de Cristo, mas também do
pecado, “até que o Espírito convencedor o revele”.
Ele conclui que a vontade é livre, ou seja, livre para pecar.
Diferente de Erasmo, Lutero não celebra essa característica
humana. Pelo contrário, ele vê que isso revela nosso desespero e
nossa carência. Assim, embora boa parte do argumento de Lutero
seja clara, até mesmo proferida de forma singular e inimitável, sua
conclusão resume, de maneira direta, seu argumento. Ele oferece
cinco razões pelas quais a posição de Erasmo falha. Primeiro,
aponta para a soberania de Deus, quando assinala:

Se cremos que é verdade que Deus conhece e predestina todas as


coisas, que ele não tem erros em sua presciência, nem pode ser
impedido em sua predestinação, e nada acontece senão aquilo que é
da sua vontade, então no testemunho da própria razão não pode haver
nenhum livre-arbítrio por parte do homem.

Sua segunda razão concerne a Satanás, o deus deste mundo.


Como ele está “sempre tramando e lutando contra o reino de Cristo
(...), não pode haver algo como livre escolha”.
Em terceiro lugar, ele nota que, “se cremos que o pecado original
nos estragou tanto que mesmo quem for dirigido pelo Espírito sente
grande dificuldade de lutar contra o bem, fica claro que, no homem
em que não há Espírito, não há nada que possa fazê-lo voltar-se
para o bem, mas somente para o mal”.
Sua quarta razão diz respeito à surpreendente obra de Deus. Ele
nota como os judeus, que buscavam vigorosamente a justiça,
“bateram de frente com a injustiça”. Os gentios, inversamente,
“buscavam a impiedade e alcançaram a justiça livre e
inesperadamente”.
Sua quinta razão concerne à cruz. Ele observa: “Se cremos que
Cristo redimiu os homens por meio de seu sangue, somos levados a
confessar que o homem estava inteiramente perdido”. Podemos
lembrar que Erasmo, seguindo Pelágio, dizia que a Queda não
extingue a capacidade humana de raciocínio. Esse último ponto
desafia tal noção. Também estabelece uma conexão do argumento
de Lutero em O cativeiro da vontade com seu tema central da
teologia da cruz. No final, Lutero se opunha veementemente a
Erasmo porque este promovia a “teologia da glória”, desprezando a
teologia da cruz. Em outras palavras, o ponto de vista de Erasmo
promove uma exaltação nada saudável do eu e de seu papel na
salvação, advindo de uma confiança mal depositada na capacidade
humana. Lutero nos lembra que a cruz é o “não” de Deus à
capacidade humana. Assim, mais uma vez, vemos a importância
dessa questão para Lutero, ou seja, como o entendimento da
natureza humana e da vontade se relaciona totalmente à
compreensão do que Cristo fez na cruz.
A Peça Central da Reforma
Lutero argumenta que a salvação era exclusivamente obra de Deus,
e que nada que façamos pode valer para ela. Também afirma a
necessidade da fé, entendida como dom de Deus. Assim, ele
enfatiza a incapacidade humana e a capacidade infinita de Deus ao
articular uma visão de salvação que reserva o louvor, a honra e a
glória, inteira e exclusivamente, a Deus. Talvez o único elemento de
Erasmo com que concordaríamos diz respeito à sua observação de
que o debate tende a promover mais labor do que frutos.
Como a obra de Lutero despertava a discussão não apenas em
seus dias, estendendo-se aos nossos dias, vemos uma daquelas
raras oportunidades de fruto e de luz, e não apenas de calor. O
cativeiro da vontade e o debate com Erasmo revelam muito sobre a
perspectiva de Lutero quanto à natureza da Reforma. A exemplo de
Erasmo, ele expressava profunda preocupação com os problemas
da política e a prática da igreja romana. Como Erasmo, ele também
enfatizava a necessidade do retorno ao texto bíblico, em oposição à
dependência da tradição da igreja. Contudo – e aqui está a
diferença crucial entre ambos –, para Lutero a raiz do problema com
Roma é teológica, especificamente a doutrina da justificação pela fé,
a qual, para o reformador, está intrinsecamente ligada ao
entendimento da teologia da cruz.
Nesse sentido, a fim de compreendermos corretamente essas
verdades, precisamos entender, igualmente de forma correta, a
humanidade. Assim, temos de abordar a questão da vontade. O
ponto de vista de Erasmo sobre o arbítrio, de acordo com Lutero,
rompe com a teologia da cruz de duas maneiras. Primeiro, deixa de
considerar a extensão da corrupção, do pecado e da iniquidade que
a cruz representa na humanidade. Em outras palavras, o fato de se
requerer a morte de Cristo na cruz para pagar por nossos pecados
revela a grande magnitude desses nossos pecados. Uma teologia
que deixe de reconhecer a total depravação humana, segundo a
visão de Lutero, faz pouco-caso da cruz. Segundo, a teologia da
cruz de Lutero se firma contra a capacidade humana; enquanto a
teologia da glória procura contribuir para a salvação da pessoa, a
teologia da cruz olha somente para Cristo, a fim de realizá-la.
O certo é que Lutero encerra seu tratado agradecendo a Erasmo
por desprezar tantas questões triviais, como papado, purgatório e
indulgências, mas abordar, em vez disso, a “questão sobre a qual
tudo o mais depende”, ou seja, a questão da vontade humana.
Assim, o debate com Erasmo ofereceu uma oportunidade para
examinar a peça central da Reforma e o “ponto vital” do
entendimento correto de como a pessoa se encontra justificada
diante de Deus. O tratado de Lutero estabelece dois pontos centrais.
Primeiro, a cruz anuncia tanto a pecaminosidade como a
incapacidade humana. Segundo, a cruz também enfatiza a
majestade e a graça de Deus. As ruminações de Lutero no dia
anterior à sua morte nos oferecem a conclusão possível a essas
duas proposições: “Somos pedintes. Essa é a verdade”.
Ao lermos O cativeiro da vontade, talvez não concordemos com
todos os seus argumentos, e admitamos que é difícil seguir alguns
pontos. Porém, seu foco permanece claro. Com cuidado, Lutero
enfatiza que precisamos articular um entendimento da salvação que
faça jus ao ensinamento bíblico envolvido, deixando que Deus seja
Deus. Certamente, remanescem algumas questões concernentes à
justiça de Deus e à responsabilidade humana, que provavelmente
falharemos em resolver de forma satisfatória, até mesmo com a
ajuda de Lutero. Mas seu pensamento quanto a esse tema crítico
nos ajuda a entender verdades fundamentais acerca dessa questão.
Em uma de suas passagens de Conversas à mesa, Lutero conclui:

O livre-arbítrio nos trouxe o pecado e a morte (...). Qualquer parte de


nós sofre corrupção. Assim, minha posição é a seguinte: qualquer um
que pense que, por conta do livre-arbítrio, pode fazer qualquer coisa
estará dizendo “não” a Cristo. Sempre assumi essa posição em meus
escritos, especialmente contra Erasmo, um dos homens mais cultos do
mundo. O fato é que me coloco, de forma resoluta, ao lado de minha
tese porque sei que é verdadeira. E me postarei ao seu lado ainda que
o mundo inteiro se oponha a ela. A verdade divina permanece de pé
(...). Vês, portanto, quão diferentes a fé e o livre-arbítrio realmente são.
O livre-arbítrio é igual a nada. A fé é igual a tudo que é bom.
Nota sobre as Fontes1
O cativeiro da vontade, uma das obras mais conhecidas de Lutero,
tem recebido numerosas reimpressões e ampla divulgação. O texto
todo, com uma proveitosa introdução, encontra-se, em língua
inglesa, em Luther’s Works, v. 33. O texto completo também está
disponível, em língua inglesa, junto com On the Freedom of the Will:
A Discourse, de Erasmo, em Luther and Erasmus: Free Will and
Salvation (1969), editado por E. Gordon Rupp e Philip S. Watson.
Esse texto também inclui uma proveitosa introdução. J. I. Packer e
O. R. Johnston produziram sua própria tradução para a língua
inglesa, com uma introdução completa que traça um painel da vida
de Lutero, o debate com Erasmo e os principais temas do tratado de
Lutero em The Bondage of the Will (O cativeiro da vontade) (1957).
Timothy F. Lull inclui a introdução, a seção final e a conclusão em
seu Martin Luther’s Basic Theological Writings (1989), pp. 173-226.
John Dillenberger oferece fragmentos do texto, também em língua
inglesa, em Martin Luther: Selections of his Writings (1962), pp. 166-
203.
1. N do E: A Editora Fiel publicou em português uma edição do livro de
Martinho Lutero “O cativeiro da vontade”, sob o título “Nascido Escravo”,
organizada por Clifford Pond.
Capítulo 6
ESTE É MEU CORPO
Confissão Concernente à Ceia do Senhor

“A Ceia do Senhor é dada como alimento e sustento diário, para que


nossa fé tenha refrigério e seja fortalecida, e não se enfraqueça na
luta, mas cresça e se fortaleça continuamente.”
MARTINHO LUTERO, 1529

F
ILIPE DE HESSE convocou um impressionante encontro de
teólogos em seu castelo de Marburgo, no começo de
outubro de 1529. Juntamente com outros príncipes e
governantes alemães, eles enfrentavam três inimigos: a França, do
Ocidente; as forças islâmicas ou “os turcos”, do Oriente; e o papa,
por toda parte. Os príncipes não podiam suportar essa divisão: suas
vidas e a sobrevivência de suas províncias exigiam uma frente unida
entre os movimentos reformistas dispersos, a fim de enfrentar esses
inimigos.
Lutero mostrava-se ambivalente quanto às questões políticas e
até mesmo totalmente adverso a elas. No entanto, não admitia
deixar escapar uma oportunidade para um bom debate teológico.
Isso, na verdade, era o que ele almejava, mas nunca conseguiu com
Roma. Um debate sério, com as melhores mentes enfrentando
questões em um ambiente aberto – Lutero sonhava com isso. Não
surpreende, portanto, que ele tenha aceitado o convite de Filipe
para fazer essa viagem até Marburgo.
Os teólogos das principais cidades que compunham a
confederação suíça estariam presentes: João Ecolampádio, cujo
nome em latim quer dizer “lâmpada da casa”, da Basileia; Martin
Bucer, um colaborador próximo de Calvino, de Estrasburgo; e Ulrico
Zuínglio, pai da reforma suíça, de Zurique.
Filipe, em cujo território ficava Marburgo, providenciou uma
guarda armada para garantir uma viagem segura e permitir que
Lutero comparecesse, apesar da proibição. Na verdade, o Colóquio
de Marburgo foi uma das poucas reuniões a que Lutero assistiu fora
da região de Frederico. Lutero foi acompanhado de Justas Jonas e
Filipe Melâncton como representantes de Wittenberg. Os outros
principados alemães foram representados por Andreas Osiander,
Stephen Agricola e Joannes Brentius. No entanto, as duas
personagens principais desse drama que se desenrolava eram
Lutero e Zuínglio. Embora Zuínglio chegasse às próprias conclusões
quanto aos erros de Roma, de uma forma independente do
pensamento de Lutero, nutria intensa admiração pelo reformador
alemão e aprendera muito com seus escritos.
O Colóquio, ou reunião formal, de Marburgo, durou quatro dias.
As partes discutiram 15 artigos, e todos concordaram em relação
aos primeiros 14. Mas surgiu forte discordância quanto ao último
artigo, que tratava da Ceia do Senhor. Lutero, junto com Melâncton
e os demais representantes alemães, assumiu a posição de que o
“é” em “Este é meu corpo” deveria ser entendido de forma literal.
Discordavam da posição católica, que dizia que eram os elementos,
sob o pronunciamento do sacerdote, que se transformavam
literalmente em corpo e sangue de Cristo. Lutero descartava esse
ponto de vista, entendendo-o como nada mais que um truque
mágico. Na verdade, a missa pode até mesmo ser a origem do
termo “hocus pocus”. Assim, a frase latina para “Este é meu corpo”
é Hoc est corpus meum. Um ouvinte iletrado medieval havia
alterado Hoc est corpus para hocus pocus, uma fórmula sem sentido
usada por mágicos quando, em suas apresentações, fazem truques
e transformam os objetos.
No entanto, embora discordasse do ponto de vista católico,
Lutero, mesmo assim, tomava essas palavras seriamente. Para ele,
era uma questão de se submeter ao texto. Não se tratava de uma
porção profética ou apocalíptica da Escritura com um sentido
figurado. Para ele, tratava-se, sim, de prosa direta, que, portanto,
devia ser entendida literalmente. Os teólogos e historiadores
frequentemente descrevem o ponto de vista de Lutero como
consubstanciação. Isso quer dizer que Cristo, em substância, está
com (do prefixo latino con) os elementos. Esse ponto de vista se
opõe ao ponto de vista católico denominado transubstanciação, em
que os elementos mudam do prefixo latino trans para o verdadeiro
corpo ou sangue de Cristo. O próprio Lutero nunca usou esse termo
para descrever seu ponto de vista. Assim, aparece, nos anos 1550,
como designativo de seu ponto de vista para aqueles que se
opunham a ele. A palavra consubstanciação reflete, pois, mais
especulação filosófica do que Lutero teria aceitado.
Conforme já vimos, Lutero tentava evitar tais constructos
filosóficos em sua teologia. Preferia rotular de “real presença”, ou
“unidade do sacramento”. Ele usava esse termo para designar que
Cristo está em, com e em volta dos elementos. Consequentemente,
aquele que comunga recebe o verdadeiro corpo e sangue de Cristo,
vertido por seus pecados. Zuínglio discordava disso; ele interpretava
o “é” como “representa”. Assim, entendia os elementos em sentido
memorial, como símbolos que apontam para a obra expiatória de
Cristo. Mas classificar o ponto de vista de Zuínglio acerca da
comunhão como apenas um memorial não reflete completamente
sua posição. A palavra crucial para Zuínglio é contemplação. Ele
escreveu que o comungante deveria contemplar o mistério da obra
redentora de Cristo de tal maneira que “pudesse agarrar a própria
coisa”. Não podia, contudo, seguir Lutero. Martin Bucer, por sua vez,
estava teologicamente hesitante. Não concordava com o ponto de
vista de Lutero nem se sentia confortável com o entendimento de
Zuínglio quanto à comunhão. Em suma, as partes não chegaram a
um acordo, e a esperança de Filipe em relação a uma frente unida
entre os reformadores desapareceu quando todos partiram de
Marburgo. Podemos nos perguntar por que o movimento da
Reforma na Europa se fragmentou no que diz respeito à Ceia do
Senhor e à curta frase: “Este é meu corpo”. A fim de entendermos a
resposta, contudo, é preciso examinarmos de perto os pensamentos
relevantes de Lutero.
O Contexto de Lutero: Tremedeira em sua Primeira Missa
Podemos nos lembrar do momento pungente no início da vida de
Lutero e de suas primeiras lutas espirituais, já descritas , quando ele
se colocou como sacerdote diante do altar para realizar sua primeira
missa. Ao declamar as palavras “A vós, Eterno, Vivo e Verdadeiro
Deus” com os joelhos trêmulos, Lutero mal conseguiu ficar de pé, e
se esforçou para que as palavras saíssem de sua boca. Essas
palavras, tão facilmente ditas por outros sacerdotes, provocavam
horror na alma de Lutero. Como lher seria possível aproximar-se
desse Deus? E o que ainda era mais difícil para ele: como
encontraria o perdão de um Deus assim, a quem ele já ofendera
com tanta violência? Ele encontrou a resposta no que, em tese, a
missa celebrava: a morte de Cristo na cruz. Pouco causava espanto,
assim, que a questão da Ceia do Senhor ocupasse tanto a atenção
de Lutero.
Entre os sacramentos, esse em especial era o que dominava seu
interesse. Muitas de suas primeiras obras, desde o tempo de 95
teses, até escrever Do cativeiro babilônico da igreja, abordam essa
questão de maneira polêmica contra Roma. E, mesmo quando o
rompimento de Lutero com Roma tornou-se definitivo, em 1521, ele
continuou a escrever sobre a Ceia do Senhor do mesmo modo.
Porém, ele deslocou o foco de Roma para os “fanáticos”, os
anabatistas e os zuiglianos, que, com frequência, abusavam dos
princípios da Reforma e tomavam ao extremo as ideias de Lutero.
Entre os anos de 1525-1529 especialmente, Lutero e Zuínglio se
envolveram em uma guerra de panfletos e livros. Essa “guerra”
culminou com o Colóquio de Marburgo. Mas a principal contribuição
de Lutero para todo esse debate veio somente em 1528, com a
publicação de Confissão concernente à Ceia de Cristo. Essa obra,
que veio após um ano tumultuado para Lutero, para sua família e
até mesmo para o vilarejo de Wittenberg, devido à doença e à
peste, oferece sua mais completa discussão acerca da questão.
Confissão Concernente à Ceia de Cristo
A obra de Lutero Confissão concernente à Ceia de Cristo visa
responder a livros de Zuínglio e João Ecolampádio. Na verdade,
Lutero divide o livro em três partes, dedicando a primeira a uma
elaborada crítica de seu ponto de vista . Ele aborda, primariamente,
a questão fundamental: Como interpretar o “é” em “Este é meu
corpo”? Claramente, Lutero reconhece o uso de metáforas na
Escritura. Mas ele acrescenta que “é” nunca é usado para
“representa”. Lutero acha que isso é verdadeiro até mesmo na
gramática comum, para além da literatura da Bíblia. Oferece, como
exemplo, a expressão “Os monges são fariseus”, para provar seu
ponto de vista. O melhor modo de entender esse dizer não é
interpretar seu significado como “os monges representam os
fariseus”. No lugar disso, os monges são “a nova essência” dos
fariseus. (Ele apela para o poeta romano Horácio, que diz que
usamos palavras antigas – nesse caso, os fariseus – para fabricar
um novo entendimento de palavras novas – nesse caso, os
monges.)
Lutero também vê uma aplicação mais ampla do entendimento
de Zuínglio de “é” como “significa”. Anteriormente, em “A adoração
do sacramento” (1523), ele escreve:

Se permitirmos que se pratique tamanha violência em uma passagem,


em que, sem nenhuma base na Escritura, uma pessoa possa dizer que
a palavra “é” quer dizer “significa”, então seria impossível deixar de
fazer isso em qualquer outra passagem.

E acrescenta que nada impediria alguém de dizer que a frase


“Cristo é Deus e homem” quer dizer “Cristo significa Deus e
homem”. Ora, é claro que Zuínglio refutaria essa implicação. Talvez
a lógica de Lutero não seja a mais estrita nesse argumento; porém,
demonstra por que Lutero via o assunto como essencial.
Retornando à Confissão concernente à Ceia de Cristo: Lutero,
em seguida, olha para os dizeres de Cristo para entender melhor o
uso da palavra “é”. Um bom exemplo disso está em João 15.1:
“Cristo é a verdadeira videira”. Ora, esse aparente uso de uma
metáfora parece favorecer o ponto de vista de Zuínglio. Mas Lutero
observa que isso corresponder a “Cristo significa a videira
verdadeira” não faz muito sentido. Ao perguntar retoricamente:
“Ouço corretamente que Cristo seria sinal ou símbolo da madeira da
videira?”, Lutero conclui: “Daí o texto nos compele irresistivelmente
a considerar “videira” como uma palavra nova, querendo dizer uma
nova e verdadeira videira, e não a videira do vinhedo”. Então, Lutero
aplica esse princípio às palavras de Cristo quanto a pão e cálice.
Consequentemente, de acordo com Lutero, os elementos não
representam Cristo; eles são a essência e a natureza do corpo de
Cristo que foi dado por nós na cruz. Tal entendimento não significa
que Cristo repita a expiação a cada comunhão.

Figura 6.1 Principais Escritos sobre a Ceia do Senhor e Acontecimentos


Relacionados
2 de Lutero celebra a primeira missa em sua ordenação
maio
de
1507
1519 Escreve O bendito sacramento do santo e o verdadeiro corpo e
sangue de Cristo
1520 Escreve Do cativeiro babilônico da igreja
15 dezembro A igreja de Wittenberg administra a Ceia do Senhor com
de 1521 “ambas as espécies” (pão e cálice) pela primeira vez
1522 Escreve Recebimento de ambas as espécies no sacramento
1526 Escreve O sacramento do corpo e do sangue de Cristo: contra
os fanáticos
1527 Escreve Este é meu Corpo
1528 Escreve Confissão concernente à Ceia de Cristo
1-4 de Ocorre o Colóquio de Marburgo
outubro de
1529

A questão da comunhão diz respeito à distribuição do perdão de


Deus, e não à sua realização . Lutero apresenta a questão da
seguinte forma: “Uma vez para sempre, Cristo mereceu e recebeu o
perdão dos pecados sobre a cruz; mas ele distribui esse perdão
onde quer que esteja”. Lutero acrescenta: ele está nos elementos.
Tal convicção distingue o ponto de vista de Lutero do catolicismo,
que vê a expiação repetida na missa, e a do zuinglianismo, que
retoma a visão dos sacramentos como uma distribuição da graça.
Por toda esta primeira parte do livro, Lutero resiste à tentação de
argumentar por meio de especulação filosófica. A tradição
escolástica, segundo a qual se desenvolveu a visão católica de
transubstanciação, lançava a discussão sobre noções sofisticadas
de substância. Lutero evitava essa abordagem por completo,
argumentando que chegara a seu ponto de vista com base na
promessa do sacramento. Com frequência, Zuínglio acusava Lutero
de basear seu ponto de vista em especulação filosófica. Não
surpreende que Lutero tenha devolvido a mesma acusação a
Zuínglio. Em última análise, contudo, Lutero reporta que qualquer
problema que surja devido à sua visão da “real presença”, ele não
podia resolver recorrendo à especulação filosófica. Em vez disso,
ele a aceitava pela fé, reconhecendo que a comunhão apresenta um
profundo mistério.
No início de 1525, Lutero escreveu, numa resposta a Andreas
Karlstadt e aos fanáticos: “Como Cristo é trazido ao pão, isso não
sei. Mas sei que a Palavra de Deus não pode mentir. E ela diz que o
corpo e o sangue de Cristo estão dentro do sacramento”.
Calvino não assistiu ao Colóquio de Marburgo, embora toda essa
discussão lhe interessasse muito. Na verdade, ele disse que queria
ter estado ali, pois defendia uma posição de mediação, às vezes
referida como ponto de vista de “presença espiritual”. Tal visão, de
acordo com Calvino, encerra a força tanto da posição de Lutero
como de Zuínglio, ao mesmo tempo que evita os perigos. Contudo,
Calvino concluiu que estava mais próximo da posição de Lutero do
que daquela adotada por Zuínglio.
Além do ponto de vista da “presença real”, também tem-se o
entendimento de Lutero do sacramento como um meio de graça.
Com isso, Lutero quis dizer que os sacramentos da Ceia do Senhor
e do batismo são outras formas do evangelho. Aparentemente, essa
visão parece conflitar com seu entendimento acerca da doutrina da
justificação e soa como se ele entendesse a salvação mais como
um processo do que como um acontecimento.
Talvez uma das declarações do artigo 15 do Colóquio de
Marburgo possa esclarecer essa questão. Lembramos que esse
artigo foi fonte de desentendimento entre Lutero e Zuínglio,
contendo seis declarações separadas. A última, sobre a real
presença de Cristo nos elementos, foi a que causou divisão. As
partes concordavam, no entanto, a respeito das primeiras cinco
declarações, que incluíam o seguinte: “Assim como o uso do
sacramento, que, assim como a Palavra de Deus Todo-poderoso, foi
dado e ordenado, a fim de as consciências fracas serem incitadas
pelo Espírito Santo à fé e ao amor”. Ao designar a Ceia do Senhor
como meio de graça, Lutero tenciona expressar a graciosa
condescendência de Deus em se tornar pecado por nós, realizado
na cruz e distribuído na comunhão.
Na Segunda Parte do livro, ele oferece uma exposição detalhada
de diversas passagens relacionadas à Ceia do Senhor. Lutero,
contudo, não oferece nada de original nessa seção; apenas retoma
essas passagens para confirmar sua interpretação de “Este é meu
corpo”, e consubstanciar seu entendimento da Ceia do Senhor.
Na parte final do livro, Lutero dedica um tempo significativo a
esclarecer seu ponto de vista, destacando-o de outras visões
opostas e sempre tentando evitar qualquer possível uso equivocado
de suas ideias. Lutero aprendeu uma ou duas coisas de suas
diversas danças teológicas, e aplica esse conhecimento à situação
que tem em mãos. Também usa a plataforma oferecida pela
controvérsia sobre comunhão para apresentar todo o seu sistema
de doutrina, incluindo o que ele afirmava e aquilo a que renunciava.
Em consequência, estas últimas páginas da Confissão concernente
à Ceia de Cristo tornam-se uma declaração concisa de sua doutrina.
Ele inicia a seção com as seguintes palavras: “Para que ninguém,
enquanto vivo ou após a minha morte, apele a mim ou use
erroneamente meus escritos para confirmar seus próprios erros,
como os fanáticos sacramentários e anabatistas já começam a
fazer, desejo, com este tratado, confessar minha fé diante de Deus e
de todo o mundo, ponto por ponto”. Assim, ele dedica menos
espaço à Ceia do Senhor, principalmente porque as primeiras duas
partes do tratado já haviam tratado a questão de forma bem
completa.
Uma Ocasião Solene
Lutero ofereceu uma declaração bem sucinta sobre a Ceia do
Senhor no Catecismo Menor. Numa série relativamente breve de
cinco perguntas e respostas, Lutero expõe, “de forma simples”, o
que o “chefe de família deve ensinar à sua casa”. Primeiro, ele
define a Ceia do Senhor, o “Sacramento do Altar”, como a que foi
instituída por Cristo. Em seguida, apresenta o ponto de vista da real
presença, explicando que a Ceia do Senhor “é o verdadeiro corpo e
sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, na forma de pão e vinho,
dados a comer a nós, cristãos”.
A segunda questão diz respeito ao ensinamento bíblico sobre a
Ceia do Senhor. Ao responder, ele oferece uma série de citações
dos relatos dos evangelhos sinóticos, como também o relato da
comunhão feito por Paulo (1 Co 11.23-25; Mt 26.26-28; Mc 14.22-
24; e Lc 22.19-20). Depois de estabelecer seu entendimento de – e
a base bíblica para – a Ceia do Senhor, Lutero explica a importância
do sacramento para a vida cristã nas outras três perguntas e
respostas.
A terceira pergunta é: “Qual é o benefício desse comer e desse
beber?”. A resposta reflete a visão de Lutero acerca do sacramento
como meio de graça. Ele afirma: “É-nos dito nas palavras ‘por vós’ e
‘para o perdão dos pecados’. Com essas palavras, o perdão dos
pecados, a vida e a salvação nos são dados no sacramento, pois,
onde houver perdão dos pecados, também haverá vida e salvação”.
Ele torna mais claro esse ponto na questão seguinte, cuja resposta
enfatiza que não são os elementos nem mesmo o ato de tomar os
elementos que “produzem tão grande efeito”, mas, conforme vimos,
a palavra da promessa e a fé no que essas palavras declaram.
Assim, a resposta professa: “Aquele que crê nessas palavras [‘por
vós’ e ‘para o perdão dos pecados’] tem o que elas dizem e
declaram: o perdão dos pecados”.
A pergunta e a resposta final sobre a Ceia do Senhor trata do
“preparo” e da injunção de Paulo quanto à necessidade de examinar
a si mesmo em 1 Corintios 11.27-29. Paulo se refere ao jejum como
uma “boa disciplina externa” que prepara a pessoa para a
comunhão, mas observa que aquele que é “verdadeiramente digno
e está bem preparado” é o que crê na promessa do sacramento.
Aquele que “não crê nestas palavras, ou duvida delas, é indigno e
despreparado, pois as palavras ‘para vós’ exigem corações
verdadeiramente crentes”.
No Catecismo maior, Lutero responde detalhadamente às
questões do autoexame e da dignidade pessoal . De fato, ele
aborda esse assunto de forma direta, levantando uma pergunta em
potencial ao escrever: “Mas, supondo que digas ‘E se eu me sentir
indigno?’”. Primeiro, ele se identifica com a pergunta, dizendo: “Essa
também é a minha tentação”. Após, passa a oferecer uma
perspectiva útil:

Só porque somos fracos e falhos, isso não significa que devamos nos
refrear. As pessoas com tais dúvidas têm de aprender que é da mais
elevada sabedoria entender que esse sacramento não depende de nós
sermos dignos (...). Viemos como homens pobres e miseráveis,
precisamente por sermos indignos. Assim, temos de ser compelidos a
vir à mesa da Ceia do Senhor por nossa própria necessidade, que
pende de nosso cerviz, e não sermos dissuadidos por isso.

Curiosamente, embora por razões bem distintas das de Lutero, a


Ceia do Senhor também se tornou ponto de controvérsia para
Jonathan Edwards. Uma disputa entre Edwards e sua congregação
em Northampton sobre a admissão à Ceia do Senhor levou à sua
demissão em 1750. No entanto, embora outras questões também
estivessem envolvidas – no caso de Edwards, a maior parte de
natureza política –, a comunhão foi o assunto sobre o qual ele foi
instado a sair.
Assim como o rompimento entre Lutero e Zuínglio, e também a
falha na construção de uma frente unida entre os reformadores
devido à comunhão, surpreenderam-nos, também a demissão de
Edwards, por essa mesma razão, pode causar-nos surpresa. Nossa
incapacidade de considerar os diferentes pontos de vista sobre a
comunhão como tão essenciais pode advir do modo como esse
sacramento (ou ordenança) foi posto à margem na igreja
contemporânea. Um rápido exame da história da igreja revela a
centralidade da Ceia do Senhor em quase todas as fases.
Retornando às páginas de Atos, vemos o papel igualmente de
destaque para esse sacramento desde o início da igreja.
Hoje em dia, a comunhão nem sempre quer dizer o que antes
significava – ou deveria significar. Para algumas pessoas, sem
dúvida essa ainda é uma ocasião solene, amada e reverenciada,
tida como componente essencial para se viver uma vida cristã. Para
outras, contudo, pode ter papel mais secundário; e, para outras
ainda, pode ser um ordenamento realizado de modo superficial, com
pouco entendimento acerca de sua verdadeira natureza e pouco
apreço por seu valor.
A visão de Lutero da Ceia do Senhor, mesmo não sendo aquela
compartilhada pela maioria dos evangélicos, mantém-se de pé como
corretivo às nossas imperfeições atuais. Talvez não concordemos
com o ponto de vista de presença real, e alguns ainda se esquivem
da discussão da Ceia do Senhor como meio de graça. Contudo, a
centralidade que Lutero confere a ela e à solenidade que a reveste
representa um desafio para nós na atualidade. Conforme ele nos
lembra em Catecismo Maior, a Ceia do Senhor é o alimento da alma
que nutre e fortalece o novo homem. Ele continua, oferecendo
palavras úteis para que contemplemos o significado e a importância
da Ceia do Senhor da próxima vez que os elementos da comunhão
forem distribuídos:

A Ceia do Senhor é dada como alimento diário e sustento para que


nossa fé se refrigere e se fortaleça, e não enfraqueça na luta, mas
cresça continuamente com mais força (...). O diabo é um inimigo
furioso; quando ele percebe que nós resistimos a ele e atacamos o
velho homem, e quando ele não consegue nos expulsar pela força,
mostra-se furtivo e sai de fininho por todos os lados, tentando toda a
espécie de trapaça, e não para até nos desgastar por completo, a fim
de que que renunciemos à nossa fé ou nos entreguemos inteiramente,
tornando-nos indiferentes e impacientes. Para tempos como esses, em
que o coração se sente deveras pressionado, o consolo da Ceia do
Senhor nos é dado para nos dar força renovada e refrigério.

A prática da Ceia do Senhor nas igrejas luteranas


contemporâneas bem atesta o ensino de Lutero quanto à solenidade
desse ordenamento. A Ceia do Senhor era, para ele, uma ocasião
séria que envolvia a morte de Cristo e a necessidade de se ter fé
nessa obra. A cada vez que Lutero participava desse sacramento,
encontrava-se com Deus na cruz, na medida em que Cristo paga
por seus pecados e assegura sua redenção do pecado, da morte e
do diabo. Aqui, tal qual a comida alimenta o corpo, ele encontrava
alimento para a alma e nutrição para levar uma vida cristã.
Nota sobre as Fontes
Como a Ceia do Senhor desempenhava papel de destaque no
pensamento de Lutero, tal assunto permeia seus escritos. Em língua
inglesa, os três volumes especificamente dedicados aos textos
essenciais sobre a questão estão em Luther’s Works, vv. 35 a 37,
Word and Sacrament I-III. Também na edição em inglês, Confession
Concerning Christ’s Supper aparece no volume 37, pp. 151-372,
junto com uma proveitosa introdução de Robert H. Fischer. Timothy
Lull traz numerosas seleções sobre essa questão, incluindo a
Terceira Parte de Confession Concerning Christ’s Supper em Martin
Luther’s Basic Theological Writings (1989), pp. 375-404.
Capítulo 7
PRAGAS, PRÍNCIPES E CAMPONESES
Escritos Éticos

“A piedade nada mais é do que servir a Deus. O serviço a Deus é, na


verdade, o serviço ao próximo.”
MARTINHO LUTERO, 1527

O
MUNDO POLÍTICO em que Lutero vivia era bem diferente
do mundo moderno. A Igreja e o Estado, ou império,
estavam tão mesclados que era difícil notar a diferença
entre eles. Desde 312 d.C. e a noticiada conversão de Constantino
na Batalha da Ponte Mulviana, a igreja vivia em popularidade
crescente, com status favorecido dentro do império.
Nos dias de Constantino, ele mantinha o poder. Um forte papado
ainda estava por emergir, e a igreja era governada, em sua maioria,
pelos bispos. No entanto, após o colapso do Império Romano um
século mais tarde, o ofício papal subiu primeiro em poder
eclesiástico e, depois, em poder político. Conforme já mencionamos,
a coroação de Carlos Magno pelo papa Leão III no dia de Natal de
800 d.C., significa a extensão do poder da igreja, pois Carlos Magno
recebeu a coroa das mãos do papa.
Essa forte relação da igreja com o Estado se afastou do ensino
de Agostinho sobre a questão em sua obra A cidade de Deus. Esse
livro mostrou-se, em grande parte, apologético à acusação de que
os cristãos haviam sido responsáveis pela derrocada do Império
Romano. Agostinho começou a escrever a obra em 413 d.C.
exatamente nesse sentido. Quando a terminou, em 426, ele havia
realizado muito mais. Entre os muitos assuntos abordados no livro,
está a distinção entre as duas cidades: a cidade terrestre, a Cidade
do Homem, e a cidade celeste, a Cidade de Deus. Ele via essas
duas cidades em conflito acirrado. É claro que a vencedora final
seria a Cidade de Deus. A aliança última do cristão também estava
ali. Veremos, de modo conciso, que, à medida que Lutero vai
assumindo esse modelo, talvez Agostinho tenha exagerado na
questão do desinteresse do cristão na cidade terrestre. No entanto,
ele estabeleceu limites bem nítidos entre essas duas cidades.
No passar dos séculos seguintes, porém, essas distinções
ficaram cada vez mais obscurecidas, até que, em determinado
momento, as duas cidades acabaram se fundindo. Os historiadores
se referem a essa dinâmica como a “síntese medieval”, ou
ajuntamento de toda a vida sob a esfera da igreja. Também é
conhecida como a Cristandade, e era o mundo no qual Lutero
nasceu. Assim, as ideias de Lutero, além de haverem mudado tanto
o mundo teológico como o eclesiástico, ajudaram a moldar uma
nova paisagem social e política.
Os Dois Reinos e os Três Estados
Lutero viria a admitir abertamente que o papado e a igreja haviam
excedido seus limites. Conforme vimos em seu Discurso à nobreza
alemã, Lutero questionava o poder da igreja romana sobre os
príncipes alemães. E, ao mesmo tempo que Lutero se ateve à
separação entre igreja e Estado, também se distanciou da ala
radical da Reforma. Os historiadores designam os diversos grupos
anabatistas como compreendendo a Reforma radical não por causa
de nosso entendimento do termo radical, mas por causa da palavra
latina radix, da qual provém o vocábulo “raiz”. Os reformadores
radicais queriam ir além de Lutero, Zuínglio e Calvino, chegando ao
cerne do problema: a fusão de igreja e Estado. Consequentemente,
eles defendiam a total separação entre igreja e Estado, uma marca
das tradições anabatistas que ainda está presente nos dias atuais.
Mas Lutero não via essa ideia como algo correto. Assim, ele abriu
seu próprio caminho e, nesse processo, desenvolveu a
compreensão de como relacionar essas duas esferas, a igreja e o
Estado.
Tomando a ideia por empréstimo de Agostinho, Lutero via as
duas cidades como dois reinos em conflito. Ele cria que o Reino de
Deus prevaleceria. Diferente, porém, de Agostinho e dos
reformadores radicais, Lutero via valor no reino terrestre. O cristão,
argumentava ele, é um cidadão de ambos os reinos, responsável
por cumprir suas leis, seguir seus costumes e participar das
atividades de cada um. Além do mais, a lei de Deus trata de ambos
os reinos. Lutero demonstra isso ao apelar para a essência da lei,
conforme resumida por Cristo. O primeiro grande mandamento,
amar a Deus de todo o coração, alma, mente e força, diz respeito ao
reino de Deus. O segundo, amar ao próximo, governa a vida do
cristão no reino terrestre (Lucas 10.27). O cristão também não deve
evitar o reino terrestre, pois foi criado por Deus. Na verdade, Lutero
se refere à Cidade dos Homens, de Agostinho, como o reino da
criação. Também prefere o termo “reino da redenção” à designação
“Cidade de Deus”.

Figura. 7.1 Principais Escritos Éticos


1519 “Um sermão sobre o estado do matrimônio”
1520 À nobreza cristã da nação alemã (Três Tratados)
1522 O estado do matrimônio
1523 Sobre a autoridade temporal: até que ponto é preciso
obedecer a ela
Abril de 1525 Advertência à paz baseada nos doze artigos dos camponeses
da Suábia
Maio de 1525 Contra os bandos de camponeses ladrões e assassinos
Julho de Uma carta aberta sobre o implacável livro contra os
1525 camponeses
1527 Se as pessoas devem fugir de uma peste mortal
1531 Advertência do Dr. Martinho Lutero a seu Querido Povo
Alemão

Esses dois reinos, o reino da criação e o reino da redenção,


funcionam em apartado e, certamente, o reino da redenção tem
prioridade máxima na vida do indivíduo. Porém, o cristão deve viver
como cidadão de ambos, e Lutero defende que Deus não nos deixa
sem instruções quanto ao modo de sermos bons cidadãos de
ambos os reinos. O resumo da lei é amar a Deus e amar ao próximo
– esse é um bom ponto para se começar. Porém, Lutero, como
tantos outros, vê isso como representando as chamadas duas
tábuas da lei. Em consequência, vê os primeiros cinco dos Dez
Mandamentos como regendo a relação da pessoa com Deus,
enquanto os outros cinco se destinam à relação da pessoa com seu
próximo (Êx. 20).
Segundo a visão de Lutero, Deus criou este mundo e nos colocou
nele por uma razão. Ele mandou que cuidássemos dele, e tem-nos
mostrado como quer que aqui vivamos. Na condição de cidadãos do
reino da redenção, porém, ainda permanecemos como cidadãos do
reino da criação. Vivemos como se estivéssemos com os pés nos
dois mundos.
Há outra camada no entendimento de Lutero quanto à relação do
cristão com a sociedade que aborda a noção dos três estados. Os
três estados refletem a ordem dada por Deus quanto à hierarquia no
mundo. Eles também governam nossas relações de diversas
naturezas no mundo, preservando o reino da criação. Aqui, Lutero
avança, proveitosamente, no pensamento de Agostinho quanto à
relação do cristão com o mundo. Seu ensino sobre os três estados
permeia todos os seus escritos. Talvez seu tratamento mais sucinto
se encontre em Confissão concernente à Ceia de Cristo (1528), em
que escreve: “As sagradas ordens e verdadeiras instituições
religiosas estabelecidas por Deus são estes três estados: o ofício do
sacerdote, o matrimônio e o governo civil”.
O primeiro estado, o “estado do sacerdócio”, obviamente engloba
aqueles que pregam a palavra e administram o sacramento. Lutero
vê esse ofício como ordenado por Deus a fim de promulgar o
evangelho, admoestar e instruir. O segundo estado concerne à
“esfera doméstica”, envolvendo não apenas esposos e esposas,
mas também pais e filhos, além de viúvas e pessoas solteiras. Aqui,
Lutero argumenta que “aqueles que governam sua casa com
sabedoria e criam os filhos para o serviço de Deus estão envolvidos,
em pura santidade, na obra santa e na ordem santa”. O uso da
palavra “ordem” faz uma critica contra o que Lutero se refere como a
“falsa instituição” do monasticismo e de suas ordens.
Finalmente, ele se refere ao “estado temporal”, que trata das
autoridades governantes e de seus assuntos. Explica que os
membros desse estado “estão todos envolvidos em pura santidade,
vivendo uma vida santa diante de Deus”. Em 1523, Lutero devotou
um tratado inteiro, Sobre a autoridade temporal: até que ponto deve-
se obedecer a ela, a esse estado. E acrescenta mais um estado:

Acima dessas três instituições e ordens, está a ordem comum de amor


cristão, em que servimos não apenas às três ordens, como também
servimos a toda pessoa carente em geral com toda a espécie de obras
benevolentes, tais como alimentar os famintos, dar bebida aos
sedentos, perdoar os inimigos, orar por todos os homens sobre a terra,
aqueles que sofrem toda espécie de mal sobre a terra etc. E todas
essas são chamadas de boas e santas obras.

Conforme explica, conquanto esses estados sejam “obras


santas”, elas não trazem salvação, nem necessariamente
concernem à salvação. E acrescenta: “Nenhuma dessas ordens é
meio de salvação. Só resta um caminho acima de todos eles: a fé
em Cristo Jesus. Ser santo e ser salvo são duas coisas distintas
(…). Mesmo os ímpios podem ter muitas coisas boas e santas, sem
que sejam salvos”.
Aqui, o pensamento de Lutero precisa de alguma explanação.
Diferenciar o que esses estados realizam do que a salvação faz
cabe sob medida na ideia de Lutero de dois reinos.
A salvação pertence ao reino da redenção, enquanto esses
estados pertencem ao reino da criação. O que, com frequência,
confunde-nos é o uso que Lutero faz da palavra “santa”.
Preferiríamos o termo moralidade. Mas o designativo de Lutero
acerca desses estados como santos, ainda que sejam terrestres e
não conduzam necessariamente à salvação, demonstra a
importância que ele dá à nossa vida no reino da criação.
Colocando juntos os dois reinos e os três estados, vemos o
conselho de Lutero para a vida no reino da criação. Primeiro, temos
de reconhecer que existe conflito entre esses dois reinos. Este
mundo, embora criado por Deus, está “cheio do diabo”. Segundo,
Lutero lembra que, a despeito do conflito, novamente tomando
emprestada uma frase de “Castelo Forte” “o reino de Deus é para
sempre”. Em outras palavras, o reino da redenção finalmente
triunfará. Até aqui, Lutero segue Agostinho. Acrescenta que também
somos cidadãos do reino da criação. Inicialmente, Deus criou esse
reino; segundo, Deus ordena que sejamos cidadãos responsáveis,
que, de alguma forma, valorizemos isso; e terceiro, devemos cuidar
de nosso próximo enquanto vivermos neste mundo. Finalmente,
Deus instituiu os três estados para preservar a criação.
Contrariamente a Agostinho, que via os dois reinos amplamente em
conflito, e contrariamente à visão medieval, que os confundia, Lutero
defendia que os cidadãos do reino da redenção deveriam dar uma
contribuição significativa ao reino da criação.
Nesse sentido, o entendimento de Lutero acerca dos dois reinos
e dos três estados oferece a base para sua ética social. Desse
fundamento, ele aborda numerosos dilemas éticos. Sua vida não foi
desprovida de oportunidades de colocar sua ética em prática. A
seguir, veremos duas questões específicas que puseram Lutero e
suas ideias à prova.
Primeiro, a peste não apenas atacou sua cidade, Wittenberg,
como também tirou a vida de seus parentes e amigos próximos.
Essa provação testou o compromisso de Lutero com o mandamento
de amar ao próximo.
Segundo, a Guerra dos Camponeses desafiou Lutero e seu
entendimento acerca da relação entre igreja e Estado e sua ética
social. Também ofereceu uma plataforma para ele tratar do
relacionamento com as autoridades temporais. Mais adiante,
examinaremos essas questões, a fim de melhor observar a ética de
Lutero e a forma como a colocava em prática.
A Peste
Lutero viveu plenamente sua ética, e o fez sob considerável risco
pessoal. Seu desafio ao estado das coisas como eram e sua
coragem de viver segundo suas convicções o puseram em
desacordo com aqueles que exerciam poder sobre ele. Sua
coragem o colocou sob o banimento, tendo sido declarado um fora
da lei. Além disso, Lutero e sua família viveram um período de
intensa revolta durante a Guerra dos Camponeses, assunto que
trataremos adiante. Lutero e sua família também suportaram grande
sacrifício pessoal e grandes riscos ao transformar sua casa e as
salas de aula do Claustro Negro em hospital durante a peste de
1527.
Esse ano foi excepcionalmente difícil para a família. Lutero teve
uma doença tão grave que não acreditava mais em sua
recuperação. O então único filho do casal, Hans, de apenas 1 ano,
também adoeceu gravemente. Enquanto isso, Katie estava grávida
do segundo filho, que nasceria em dezembro. Nesse ínterim, Lutero
ainda se ocupava de inúmeras controvérsias, incluindo aquela sobre
a comunhão com Zuínglio.
Em julho desse mesmo ano, a peste assolou Wittenberg. A vida
era tão difícil que João Frederico, sobrinho de Frederico, o Sábio,
que governou a Saxônia depois da morte de seu tio, em 1525,
ordenou que professores e alunos da universidade se mudassem
para a cidade de Jena. Martinho Lutero contestou essa ordem, no
que foi apoiado por outro membro do corpo docente, Johannes
Bugenhagen. Bugenhagen, exímio linguista e estudioso da Bíblia,
tornara-se seguidor de Lutero quando leu Do cativeiro babilônico da
igreja. Também atuou como principal membro do comitê de Lutero
para a tradução do Antigo Testamento. Manteve-se, por muito
tempo, como um dos apoiadores mais próximos e fiéis de Lutero e,
nessa época de crise, escolheu permanecer junto a seu mentor.
Nessa época, Bugenhagen também estava de luto por sua esposa,
que morrera vítima da praga. Lutero, além de ser doutor em
teologia, por algum tempo tentou atuar como médico, cuidando dos
doentes e moribundos de sua casa, até que a peste teve fim, mas
não sem antes levar dezoito vidas, muitas delas na própria
residência de Lutero. Finalmente, em novembro, a vida no vilarejo
de Wittenberg voltou ao normal. No entanto, os estudantes e o
corpo docente da universidade não retornaram antes de abril do ano
seguinte.
Enquanto a peste assolava Wittenberg, também devastava outras
cidades, incluindo Breslau. Um dos pastores de lá escreveu a Lutero
indagando se deveria fugir das cidades atingidas pela peste. Lutero
estava simplesmente ocupado demais para responder até
novembro. Assim, quando o fez, enviou uma carta aberta, que foi
amplamente distribuída, intitulada “Se as pessoas devem fugir de
uma peste mortal”. Na carta, Lutero oferece conselho razoável, mas
evita dar uma resposta simplista. Seus pensamentos revelam a
complexidade da questão. Ele começa dizendo que “algumas
pessoas têm a firme opinião de que não se deve fugir de uma praga
mortal. Em vez disso, como a morte é um castigo de Deus, temos
de nos submeter ao que ele manda sobre nós por nossos pecados
e, com uma fé verdadeira e firme, aguardar pacientemente pela
nossa punição”.
Lutero reconhece que essa posição evidencia uma “fé firme” e
“merece nossa recomendação”. Contudo, adverte contra essa
posição. Primeiro, ele observa que, embora alguns cristãos sejam
fortes, “muitos são fracos”. Assim, “não se pode simplesmente
colocar o mesmo fardo sobre todas as pessoas”. Segundo, à
medida que desenvolve esse ponto de vista, afirma que talvez não
represente inteiramente uma verdadeira vida de fé.
Assim, quando Lutero confronta a sabedoria convencional,
oferece sua resposta. Embora enfatize que o laicato, ou a gente
comum, possa, sim, fugir, não se mostra assim tão flexível quando
se trata de pastores e autoridades governamentais. Adverte que os
pastores “devem permanecer firmes diante do perigo da morte”.
“Pois, quando o povo está morrendo”, arrazoa ele, “é nesse
momento que mais necessita de um ministério espiritual que o
fortaleça e conforte sua consciências”. Acrescenta, porém, que, se
houver ministros suficientes para servir, eles podem concordar entre
si quanto a quem vai e quem fica. De forma semelhante, avisa que
“todos que exercem um ofício público, como prefeitos, juízes e
outros, têm a obrigação de permanecer”. Ele ressalta que
“abandonar toda uma comunidade cujo chamado [por Deus]
recebeu para governar e deixá-la sem autoridade ou governantes,
exposta a toda espécie de perigo, como incêndios, assassinatos,
levantes e todo desastre imaginável, é um grande pecado”. Lutero
aplica, de forma consistente, seu entendimento acerca do papel
atribuído por Deus quanto à necessidade de o governo manter a
ordem, especialmente em tempos de crise.
Outros grupos também estão atados pelo dever; Lutero conclui
que os servos não devem ir embora sem o consentimento de seus
senhores e, rapidamente, acrescenta que o inverso também é
verdade. Isso também vale para os pais em relação aos filhos, e
vice-versa. Lutero também admoesta para que cuidem dos órfãos.
Volta, então, ao dever que se tem para com o próximo. Amar o
próximo, como vimos, é a ética social fundamental de Lutero. Aqui
ele ressalta que apenas dizer isso, da boca para fora, não serve:
“Ninguém deve ousar abandonar o próximo até que existam outros
para cuidar dos doentes (...). Em casos tais, temos de respeitar as
palavras de Cristo: ‘Estive enfermo e não fostes me visitar’”. De
acordo com essa passagem, estamos ligados uns aos outros de tal
modo que ninguém pode abandonar o próximo em seu sofrimento.
Lutero volta a esse ponto mais adiante na mesma carta. Mas, a
essa altura, ele faz uma pausa para enfatizar que, se permanecer
um número suficiente de pessoas para cuidar dos doentes, então
aqueles que puderem deverão fugir. Ele observa que “devemos
sempre preservar a vida e evitar a morte”.
Lutero também defendia a abordagem do bom senso, em
oposição ao abuso da fé. Em vez de uma atitude altiva para com a
peste, Lutero recomendava: “Recorre à medicina; toma poções que
possam ajudar, fumiga tua casa, quintal e rua; evita pessoas e
lugares sempre que teu vizinho não tiver necessidade de tua
presença ou se já tiver se recuperado”. O próprio Lutero colocou sua
casa em quarentena depois de ela ter servido de hospital durante a
peste, só por cautela. O princípio subjacente, porém, é amar o
próximo. Para Lutero, isso não se aplicava apenas nos tempos
bons, mas também nas piores horas. Ele declarou: “Um homem que
não queira ajudar ou suportar os outros, só o fazendo se não puser
em risco a própria segurança ou propriedade, jamais ajudará seu
próximo”. E acrescenta: “A piedade nada mais é do que servir a
Deus. O serviço a Deus é, na verdade, o serviço ao nosso próximo”.
Lutero tentou viver segundo todos esses princípios, os quais ele
expressava publicamente. Tomava precauções, não abusando da fé,
mas também servia ao próximo com coragem e sob grande risco
pessoal.
Príncipes e Camponeses
A Guerra dos Camponeses também representou um desafio ético
para Lutero. Ele tinha uma relação complexa com os camponeses.
Desde a época em que as 95 teses foram traduzidas para o alemão
e circularam amplamente, os camponeses proclamaram Lutero
como herói. De início, ele aplaudiu e até mesmo encorajou seus
esforços na reforma política. Em consequência, quando falou com
veemência contra os excessos na Revolta dos Camponeses, eles
inicialmente expressaram uma confusão que rapidamente se
transformou em ira e animosidade.
Nos anos 1520, os camponeses alemães viviam sob o sistema
feudal, que, em geral, favorecia os ricos donos de terra à expensa
da classe mais pobre. Os proprietários de terras, que faziam as leis
e governavam, naturalmente instituíam leis e faziam regulamentos
que favoreciam sua própria agenda. Algumas vezes o sistema se
tornava opressivo e até mesmo cruel. Os camponeses tinham pouco
a seu favor, mas eram em grande número. Estimulados pelos
escritos de Lutero como as 95 teses e A liberdade do cristão, bem
como pelo desafio àquela estrutura eclesiástica opressiva, os
camponeses se inspiraram a desafiar a estrutura política e
econômica estabelecida desde o período medieval. Lutero,
entretanto, não aprovava a distorção de suas ideias para dar
substância à causa. Mas se identificava com os camponeses,
vendo-os como um grupo oprimido que era tratado de forma injusta.
Assim, aconselhou-os a buscarem as mudanças de maneira correta,
evitando violência, saques e matança. No entanto, de forma
bastante trágica, o movimento saiu de controle e fez exatamente o
que Lutero os advertira a não fazer, com resultados devastadores.
A primeira escaramuça da guerra veio em 1524, quando uma
condessa de perto da floresta negra deu ordem a seus camponeses,
bem no meio da temporada de colheita, de parar seu trabalho para
catar frutas para ela. Eles precisavam de sua colheita não só para
sua própria comida, como também para pagar as elevadas taxas
que eram cobradas deles pelo privilégio de lavrar as terras de seus
senhores. Não tardou e se formou um pequeno exército de
camponeses de pouco mais de mil homens, que se rebelaram.
Esses números cresceram e as rebeliões se tornaram corriqueiras.
Até a primavera de 1525, as insurreições atingiram a escala de uma
guerra. Os nobres, então, responderam com grande violência,
executando os líderes e matando milhares na Batalha de
Frankhausen, nos primeiros dias de maio de 1525.
Thomas Muenzer, originalmente adepto das ideias de Lutero e
pastor em Zwickau, era um dos principais líderes. Contudo, antes de
1520, ele se tornou fanático e anabatista, representando a principal
figura do grupo ao qual Lutero se referia como os “profetas de
Zwickau”. Ele advogava a “luz interna” em oposição à Bíblia como
fonte de revelação de Deus. Sua luz interior o informou de que
deveria matar os nobres impiedosos. Quando os camponeses foram
vencidos em Frankenhausen, ele foi decapitado. Lutero foi
testemunha desses acontecimentos, tentando intervir. Destinou três
escritos específicos aos eventos que se desenrolaram de abril a
julho de 1525.
No primeiro deles, “Admoestação à paz, baseada nos doze
artigos dos camponeses de Suábia”, ele criticou os príncipes e a
nobreza por sua insensibilidade, seus excessos e sua vaidade. Após
uma breve introdução, ele se dirige aos príncipes, declarando: “Não
temos ninguém sobre a face da terra para culpar por essa
desastrosa rebelião, com exceção de vós, príncipes e senhores”.
Ele os conclama a levar a sério a rebelião e considerar as
exigências dos camponeses como razoáveis. E exclama: “Esses
protestos são certos e justos, pois os governantes não receberam o
encargo de governar para explorar seus súditos em prol de seu
próprio lucro e vantagens; eles devem preocupar-se com o bem-
estar de seus súditos”. Lutero passa então a falar aos camponeses;
em essência, ele queria que fossem pacientes: “Sede cuidadosos
em tomar vossa causa com justiça e boa consciência”. Até mesmo
se refere a Muenzer, embora não cite seu nome, ao escrever:
“Cuidado com o que estais fazendo e não acrediteis em todos os
espíritos e pregadores”. Ainda lembra aos camponeses a injunção
bíblica de serem submissos. E termina o tratado prevendo os
resultados daquela guerra, ainda que desejasse evitá-los, e
advertindo: “Conforme vejo a situação, ambos os lados sofrerão
danos irreparáveis, e eu arriscaria minha vida e até mesmo morreria
se pudesse evitar que isso acontecesse”.
Lutero profetizou acertadamente; em resposta à derrota de maio,
os camponeses, que nunca conseguiram formar um exército
unificado, fizeram diversos ataques. Lutero ofereceu seu “Contra os
bandos de camponeses roubadores e assassinos” em julho do
mesmo ano. Ele se referiu à sua “intolerável rebeldia” como não
somente um pecado contra a humanidade, mas também uma
afronta a Deus. Devido ao derramamento de sangue e à pilhagem
provocados por certos camponeses, Lutero expressou que os
príncipes estavam certos ao responder com o uso da força. Porém,
seu conselho foi levado longe demais pelos príncipes, e sua
resposta se estendeu inclusive àqueles que eram totalmente
inocentes.
Em resposta a isso, em agosto Lutero escreveu um
pronunciamento final sobre o caso, intitulado “Uma carta aberta
sobre o severo livro contra os camponeses” . O “severo livro” fora
seu próprio ensaio redigido em julho. Lutero defendia suas ideias
tanto naquele livro como no primeiro, “Admoestação à Paz”.
Também condenou aqueles que abusavam de suas ideias ou
escondiam seus próprios excessos nelas. Ele ainda usou tais
acontecimentos para instruir ambos os lados a serem mais
conscientes em relação a um chamado mais elevado do que
aqueles consumidos por cuidados temporais: “Estamos agindo
como sempre agem os alemães loucos: nada sabemos sobre Deus,
e falamos sobre estas coisas como se Deus, que as faz e as
ordena, não existisse. Não temos a intenção de sofrer, mas de ser
nobres, pessoas que conseguem sentar-se em almofadas e agir de
acordo”.
Em cada um desses escritos, Lutero procurava deixar que Deus
e sua Palavra informassem acerca dessas questões. Descobriu que
os príncipes, ou qualquer autoridade, erram quando essa autoridade
é extrapolada em prol do lucro pessoal acima dos interesses do bem
comum. Ele também achava que os camponeses, ou qualquer um
que estivesse sob autoridade, precisavam submeter-se e conduzir
suas queixas de maneira correta e paciente. Nesses escritos,
entendemos também seus pensamentos a respeito dos conflitos,
assunto com o qual estava bastante familiarizado. Lutero não
procurava os conflitos; eles o seguiam em quase toda virada que
dava. Ele não teve apenas conflitos com o papa e a igreja, mas
também se encontrou no centro dos conflitos em 1525 e além deles.
Como com seu tratamento da peste, ele tentou responder voltando-
se aos princípios guiadores da Escritura.
Lutero sobre Ética
É improvável que a maioria de nós venha a enfrentar uma peste.
Poucos de nós serão “príncipes” e talvez jamais sejamos
testemunhas oculares de uma revolução. Mas isso não quer dizer
que os pensamentos de Lutero não sejam aplicáveis a nós. A peste
e o tumulto político dos anos 1520 e 1530 exigiram uma resposta de
Lutero e de seus contemporâneos. Lutero aplicava a boa teologia a
essas crises, e buscou fundamentar sua ética e seu entendimento
acerca de política e de filosofia social em bases bíblicas. Uma
notável qualidade da ética de Lutero é sua prontidão e abrangência.
Ao lermos seus escritos éticos, encontramos elementos que se
aplicam estritamente à sua situação na primeira metade do século
XVI. Encontramos também princípios que transcendem essa época.
Além disso, e talvez o mais surpreendente, a ética de Lutero ressoa
com autêntica simplicidade. Para Lutero, a essência de todas as leis
– humanas ou divinas – que governam nossa vida terrestre ou,
como ele prefere, o reino da criação consiste em amar o próximo.
Esse é um mandamento que, admite ele, oferece material suficiente
para cobrir toda uma vida.
Dois anos depois da peste, Lutero publicou Catecismo menor,
obra que contém as seguintes palavras: “Devemos temer e amar a
Deus, e não pôr em risco a vida de nosso próximo ou causar-lhe
qualquer dano; é preciso sempre ajudá-lo e ser seu companheiro
em todas as necessidades da vida”. De modo surpreendente, Lutero
não apenas escreveu essas palavras, como também as vivenciou.
Nota sobre as Fontes
Quatro volumes são dedicados a diversos escritos éticos de Lutero,
em língua inglesa, em Luther’s Works: os volumes 44 a 47 de The
Christian in Society I-IV. Timothy Lull inclui seleções dos escritos
éticos, com “Wheter One May Flee from a Deadly Plague” (Se as
pessoas devem fugir de uma peste mortal), em Martin Luther’s Basic
Theological Writings (1989), pp. 577-755. John Dillenberger, por sua
vez, cita, também em língua inglesa, Temporal Authority: To What
Extent It Should Be Obeyed in Martin Luther: Selections from His
Writings (1962), pp. 363-402.
A PRINCIPAL DEDICAÇÃO DE LUTERO ERA À IGREJA. Desde o
instante em que entrou no monastério até a sua morte – e em cada
período entre esses dois momentos –, Lutero pensava, escrevia a
respeito, pregava para a igreja e lutava por ela.
Nos próximos capítulos, examinamos apenas uma amostra das
contribuições de Lutero para a vida da igreja. Começamos com seus
esforços no sentido de preparar a próxima geração. Catecismo
menor, a ferramenta que, com frequência, o próprio Lutero usava
com seus filhos, permanece como um legado que perdura,
resumindo a preocupação de Lutero com o bem-estar teológico da
igreja muito tempo depois de sair de cena. Não eram raras as
ocasiões em que Lutero abria sua casa aos colegas e estudantes da
universidade. Essas reuniões em volta da mesa depois do jantar
revelam vislumbres sem precedentes do lado pessoal de Lutero.
Também mostram, na prática, o compromisso de Lutero com o
discipulado e a mentoria. Depois da teologia, sua principal paixão
era a música.
No Capítulo 10, observamos Lutero reunir suas duas paixões e
ensinar teologia por meio da música. De muitas formas, a prática do
culto e o papel da música nos cultos de nossas igrejas refletem o
legado de Lutero, pois suas reformas se estenderam a essa
atividade vital da igreja. A obra Sobre os concílios e a igreja, tema
do Capítulo 11, aborda a questão crucial das marcas da igreja
verdadeira. Lutero pregava cinco vezes por semana e nos deixou
cerca de seis mil manuscritos de sermões. Dentro desse imenso
corpo, examinaremos um sermão específico: “Contemplando o
Sofrimento de Cristo”. Esse sermão representa bem a sua pregação
e nos oferece um bom entendimento de como era a congregação de
Lutero na Igreja do Castelo.
Capítulo 8
A PRÓXIMA GERAÇÃO
Catecismo Menor

“Ainda não progredi além da instrução das crianças nos Dez


Mandamentos, o Credo e a Oração do Senhor. Ainda aprendo e oro
todos os dias com meu Hans e minha pequena Lena.”
MARTINHO LUTERO, 1531

M
ARTINHO LUTERO ERA VERDADEIRAMENTE um
pastor muito ocupado. Executava múltiplas tarefas,
incluindo escrever, pregar, ensinar e administrar. Toda
semana, ele escrevia numerosas e longas cartas ou trabalhava em
um de seus muitos tratados, pregava duas vezes aos domingos e,
em geral, mais três vezes durante a semana, lecionava diariamente
na universidade, orientava muitos estudantes e aconselhava um
bom número de pastores, igrejas e até mesmo príncipes novatos.
Além disso, Lutero cuidava de sua família sempre crescente.
Também experimentou a pressão das diversas controvérsias
resultantes de seu tempo e de seus esforços. No entanto, em meio
a toda essa atividade frenética, ele dedicava algumas horas ao
ensino, não só de seus próprios filhos, mas também das crianças de
Wittenberg.
Lutero tinha um intelecto incrível. A tradução que fez do Novo
Testamento grego para o alemão, em apenas três meses,
permanece como um claro testemunho à sua genialidade. Envolveu-
se em debates com as mais brilhantes mentes de seus dias. Muito
antes de sua notoriedade ter-se espalhado com a postagem das 95
teses, ele já se havia estabelecido claramente como um dos
acadêmicos mais promissores da Alemanha. Mas talvez a marca
mais óbvia de seu prodígio intelectual tenha sido o fato de ele
ensinar as verdades essenciais da fé cristã às crianças, de uma
forma que elas conseguiam entender.
Essa ênfase no ensino das crianças, que facilmente poderia ter
sido ofuscada por outras exigências, fazia todo o sentido para
Martinho Lutero. Para a igreja nascente, que logo ganhou seu nome,
e para todo o movimento protestante não apenas sobreviver, mas
também florescer, o ensinamento das crianças se tornou prioridade
absoluta e urgente. Lutero sabia disso, não somente por causa dos
exemplos históricos, mas também porque observava a situação que
se lhe apresentava.
Assim, durante todos os meses de outono e inverno de 1528 e
1529, ele viajou pelas novas congregações de toda a região. Ainda
era um fora da lei, e essa turnê não estava isenta de riscos. No
entanto, Lutero viajava para ver, por si mesmo, as condições em
que as igrejas se encontravam. Os resultados dessa inspeção
deixaram-no frustrado e decepcionado. Testemunhou condições
“deploráveis” e “infelizes”, observando: “As pessoas comuns,
especialmente aquelas que vivem no campo, não têm conhecimento
do ensino cristão e, infelizmente, muitos pastores são
incompetentes e se mostram inadequados ao ofício de ensinar”.
“Eles passaram a dominar a fina arte”, entoava Lutero, “do abuso da
liberdade”.
Toda essa situação perturbou profundamente Lutero. Ele, então,
passou a direcionar seu foco e suas preocupações sobre dois
grupos: o clero e as crianças. Ao retornar a Wittenberg, pediu
imediatamente a Melâncton e a outros de seu círculo de amigos e
colegas que produzissem material que lhe possibilitasse lidar com
essas deficiências e treinar os infantes. Assim, eles produziram
extenso material, mas apenas uma parte foi aprovada por Lutero.
Alguns textos, ele considerava nada mais que moralismo – uma
cura que, Lutero temia, seria pior que a doença. Mas percebeu que
quase tudo estava aquém de fazer o que ele considerava essencial:
a comunicação clara das verdades cruciais da Bíblia e da teologia
ortodoxa de uma geração a outra. Em outras palavras, ele desejava
imprimir uma tradição que perdurasse, no melhor sentido do termo.
A palavra inglesa para tradição tem origem no latim traditio, que
significa transferir, passar adiante ou entregar. Para Lutero, Paulo foi
quem melhor encerrou o sentido da palavra ao admoestar seu “filho
na fé”, Timóteo, a transmitir “a homens fiéis e também idôneos para
instruir outros” (2 Tm 2.2). Lutero entendia que essa era a única
forma de a igreja permanecer fiel ao evangelho e à teologia
ortodoxa. Era preciso ensinar –explícita, proposital e
programaticamente – o evangelho e a teologia ortodoxa, e fazer isso
em relação aos mais jovens.
Depois de esperar em vão, por algum tempo, que alguém
produzisse material com esse propósito, Lutero decidiu, ele mesmo,
fazê-lo, em 1529. O resultado foi o livro Catecismo menor. Por seu
próprio testemunho, conforme vimos, Lutero declarou que não se
importava que toda a sua obra fosse queimada e esquecida,
contanto que O cativeiro da vontade e Catecismo menor
sobrevivessem. Felizmente, seu desejo se realizou sem essa
condição. Sua obra sobreviveu, tem vicejado e ainda conta com
vasto público até hoje, quase quinhentos anos depois de ter sido
escrita.
No mesmo ano, Lutero também tratou os problemas do clero
inculto com a publicação intitulada Catecismo alemão. Essa obra,
que passou a ser chamada de Catecismo maior, segue a mesma
estrutura de sua correspondente, só que é muito mais extensa.
Catecismo menor não foi a única contribuição de Lutero à
literatura infantil. Conforme já mencionamos, ele também publicou
uma tradução em alemão das Fábulas de Esopo. Além disso, foi
autor de um alfabeto simples e de um livro voltado ao público
infantil. Porém, Catecismo menor permanece como seu verdadeiro
legado, valendo-lhe outra adição à já extensa lista de credenciais: a
de educador infantil.
Uma obra-prima teológica: para crianças
Catecismo menor é uma obra-prima, por ser, ao mesmo tempo,
abrangente e conciso. Atual em sua apresentação, estilo e
conteúdo, essa obra figura entre os clássicos da literatura
devocional e teológica. Consiste em uma breve exposição dos
elementos essenciais para entender a Deus, sua Palavra e sua obra
no mundo, contendo breves ensinamentos sobre os Dez
Mandamentos, o Credo Apostólico, a Oração do Senhor e os
sacramentos. Lutero expandiu o catecismo para edições
posteriores, a fim de incluir instruções sobre a oração e aquilo que
ele chama de “a mesa dos deveres”. Essas inserções bastante
concisas apresentam diversos ensinamentos da Bíblia sobre
pastores, autoridades seculares, maridos, esposas, pais, filhos,
trabalhadores e servos, mestres e viúvas, e concluem com uma
palavra a todos os cristãos em geral.
O catecismo de Lutero foi o primeiro dos muitos catecismos
produzidos durante a Reforma, incluindo o Catecismo de
Heidelberg, o Breve e o Completo catecismo de Westminster. A
exemplo desses, o catecismo de Lutero segue um modelo de
perguntas e respostas. A palavra catecismo quer dizer, literalmente,
soar e diz respeito ao ensinamento pelo falar. O método de
instrução da catequese enfatiza o envolvimento do mestre, do pai ou
da mãe com a criança. Também encoraja a memorização, pois as
perguntas e respostas são frequentemente repetidas. Essa
repetição e essa memorização representam um meio voltado a um
fim, pois as palavras do catecismo devem impactar tanto o
pensamento como a vida daquele que conhece as palavras.
Os catecismos não foram uma inovação de Lutero na prática da
igreja. A igreja medieval usava a instrução da catequese, até
mesmo estruturando os catecismos em função dos Dez
Mandamentos, da Oração do Senhor, do Credo Apostólico e dos
sacramentos. O que foi singular no catecismo de Lutero era tanto o
conteúdo como o público-alvo. Ao desenvolver sua exposição
acerca dos diversos elementos do catecismo, Lutero chegou a
conclusões surpreendentemente distintas daquelas do entendimento
medieval. Quanto ao seu público-alvo, os catecismos medievais
visavam principalmente aos adultos – e, ainda assim, apenas uns
poucos e limitados.
Lutero tinha como alvo um auditório totalmente novo – as
crianças – e esperava ainda que o catecismo fosse apreciado por
todos os membros da igreja, e não por apenas alguns poucos
selecionados. Na verdade, seu catecismo alcançou e continua a
alcançar um público muito amplo. E talvez seja a obra de Lutero
mais lida de todos os tempos. Faltam a esse livro os elementos
polêmicos que a discussão com outros pensadores trouxe a tantos
outros de seus escritos. Além disso, apresenta uma simplicidade e
uma clareza incomparáveis. No entanto, também guarda
similaridade com outros escritos seus. As principais ideias que ele
continuamente enfatizava pontuam todo o catecismo. A seguir,
examinaremos esses temas aprendendo com Lutero os
fundamentos da fé cristã.
Ética Cristã: os Dez Mandamentos
Certa ocasião, Lutero comentou: “Quem sabe distinguir bem o
evangelho da lei deveria dar graças a Deus, pois é um verdadeiro
teólogo”. No catecismo, Lutero chega bem perto de demonstrar que
atinge seus próprios critérios. A relação entre lei e evangelho recebe
extensivo tratamento de seu pensamento. Ele começa pela lei, o
Decálogo, que oferece um retrato claro tanto do pecado como da
graça. A lei, de acordo com Lutero, serve para nos convencer e
mostrar nosso pecado. Além disso, a lei acusa e até mesmo nos
tormenta e apavora. Contudo, no meio da lei, abunda a graça.
Um padrão definido emerge dessa seção do catecismo e se
mantém por todo o texto. Ele cita o mandamento, para, então,
perguntar: “O que isso quer dizer?” (“Was ist das?”). Admitimos que,
a essa pergunta repetida, faltam originalidade e variedade. Mas
qualquer qualidade que, eventualmente, falte na pergunta, ele
oferece na resposta. Quanto ao primeiro mandamento, “Não terás
outros deuses”, Lutero faz sua pergunta peculiar, “O que isso quer
dizer?”, e segue com a resposta: “Devemos temer, amar e confiar
em Deus sobre todas as coisas”.
Assim, essa tendência de extrair um ensinamento positivo de um
mandamento negativo repercute por toda a discussão dos Dez
Mandamentos. De fato, ele usa a primeira parte da resposta à
pergunta concernente ao primeiro mandamento, “Devemos temer e
amar a Deus”, para iniciar todas as outras respostas. Lutero está
guardando essas crianças (e nós) de ver os Dez Mandamentos
simplesmente como um código legal externo. Ele também evita o
moralismo, fundamentando a base e o motivo para obedecer aos
Dez Mandamentos em nada mais que uma expressão de grata
obediência a Deus. De acordo com Lutero, a relação do ser humano
com Deus fundamenta uma vida cristã de obediência. Considere,
por exemplo, sua resposta ao quinto mandamento, “Não matarás”,
como representativa dos outros mandamentos. Aqui, Lutero nos
informa que “devemos amar e temer a Deus, e não colocar em risco
a vida de nosso próximo, nem causar-lhe qualquer mal, mas sempre
ajudá-lo e ser seu amigo em todas as necessidades da vida”.
Seguindo seu ensinamento sobre ética social, ele apela para o
resumo de Cristo acerca da lei de amar a Deus e amar ao próximo
como um princípio norteador para tratar os demais mandamentos.
Guardar o mandamento de não tirar a vida de seu semelhante
provavelmente não se apresenta à maioria de nós como um desafio
muito grande. Mas é um grande desafio manter o espírito dessa lei
e, como Lutero dizia, ajudar e ser amigo de nosso próximo em todas
as necessidades da vida.
Voltando ao quarto mandamento, não devemos somente nos
refrear de desprezar nossos pais, como também “honrar, amar,
servir, obedecer a eles e estimá-los”. Não devemos apenas deixar
de dar falso testemunho, como requer o oitavo mandamento, mas
também defendê-lo, falar bem dele e interpretar com caridade tudo o
que ele faz”. E é dessa forma que Lutero transita pelos Dez
Mandamentos.
Depois de haver examinado cada um dos mandamentos, Lutero
conclui a primeira parte do catecismo com uma declaração resumida
que bem traduz essa conexão entre lei e graça:

Deus ameaça punir todos aqueles que transgridem esses


mandamentos. Devemos, portanto, temer a sua ira e não desobedecer
aos mandamentos. Por outro lado, ele promete graça e toda bênção
àqueles que os guardam. Portanto, devemos amá-lo, confiar nele e,
com alegria, fazer aquilo que ele mandou.
Doutrina Cristã: o Credo Apostólico
Usando as conhecidas palavras do Credo Apostólico, na segunda
parte do catecismo, Lutero explica as doutrinas básicas sobre as
pessoas e a obra da Trindade. Ao revelar o Credo, Lutero agrupa
frases separadas em torno dos três artigos de criação, redenção e
santificação. Essas três obras refletem o envolvimento específico
dos membros da Divindade: Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito
Santo. Começando com Deus como criador, Lutero faz uma
declaração ampla e aberta acerca do Credo: “Creio em Deus Pai
Todo-poderoso, criador do céu e da terra”, de uma forma concreta e
pessoal aos seus jovens ouvintes. Com certeza, isso quer dizer que
Deus criou todo o vasto universo, e tudo que nele há, apenas por
sua palavra. O que mais impressiona Lutero aqui não é tanto isso,
mas o fato de que “Deus me criou e também tudo o que existe”. Ele
ainda afirma que crê que Deus “me deu e ainda sustenta meu corpo
e minha alma, todos os membros e sentidos, minha razão e todas
as faculdades de minha mente, junto com alimento e vestuário,
moradia e lar, família e propriedade”. Deus também “me provê,
diária e abundantemente, com todas as necessidades da vida, me
protege de todo e qualquer perigo, e me preserva de todo o mal”.
Tudo isso atesta a “bondade e a misericórdia pura, paternal e divina
de Deus, sem que por isso haja merecimento de minha parte”.
Portanto, de acordo com Lutero, só existe uma única resposta
adequada a tudo isso: “Agradecer, louvar, servir e obedecer a ele”.
No segundo artigo sobre a redenção, Lutero suplementa as
palavras do Credo Apostólico em sua resposta usando as frases do
Credo Niceno. E, embora o Credo Apostólico mencione a divindade
de Cristo, referindo-se a ele como “nosso Senhor”, não faz isso com
a necessária ênfase. Podemos também inferir a humanidade de
Cristo de outras frases do credo, porém, mais uma vez, falta uma
declaração enfática acerca de sua humanidade. Lutero, tomando o
Credo Niceno, torna explícitos esses ensinamentos em sua
resposta, referindo-se a Cristo como ambos, o “verdadeiro Deus” e o
“verdadeiro homem”. O maior volume da resposta de Lutero, porém,
expõe a obra de Cristo de redenção em nosso favor. Tal obra, que
“me livrou de todos os meus pecados, da morte e do poder do
diabo”, capacita-me “a viver sob ele em seu reino” e também me
desafia a “servi-lo”.
Ao ler essa segunda parte de sua explanação do Credo
Apostólico, sobre a obra de Cristo na redenção, condizente com o
ensinamento do catecismo em relação aos Dez Mandamentos,
Lutero revela a conexão entre ética cristã e doutrina. Quando
Moisés apresenta os Dez Mandamentos em Êxodo 20, aponta,
inicialmente, para o acontecimento do êxodo e a libertação de Israel
da escravidão no Egito. Poderíamos interpretar isso no sentido de
que, em virtude do que Deus fez por nós, devemos obediência a ele.
Como Cristo nos redimiu, devemos viver por ele e servir a ele. A
doutrina conduz à ética. Richard Gaffin, professor do Seminário
Teológico de Westminster, expressa essa questão do seguinte
modo: os imperativos se baseiam nos indicativos. Explica que os
“imperativos” dos Dez Mandamentos ou os “imperativos” de se viver
uma vida cristã baseiam-se nos “indicativos”, ou seja, o que Deus
fez ao redimir Israel do Egito e o que ele faz ao nos redimir do
pecado.
Em seguida, Lutero volta sua atenção à obra do Espírito Santo e
à santificação do crente em seu último artigo. Seu entendimento das
frases finais do Credo Apostólico revela que o Espírito Santo nos
capacita a vir a Cristo. O Espírito não somente “me chamou por
meio do evangelho”, como também “alumiou-me com seus dons, e
me santificou e preservou na verdadeira fé”. Esse dom do Espírito
vai além de mim para toda a igreja, a qual ele também santifica e
preserva. Lutero termina cada uma dessas três seções com as
seguintes palavras: “Certamente, isso é verdadeiro”. Palavras
conhecidas, como as do Credo Apostólico, às vezes correm o risco
de se tornar expressão rotineira e impensada. As últimas palavras
de Lutero ao explanar o significado do Credo nos lembram a
importância final dessa doutrina para nossa vida.
A Prática Cristã: a Oração do Senhor, os Sacramentos e a Tábua
dos Deveres
Em seguida, Lutero trata da disciplina espiritual da oração olhando
para as palavras de Cristo. Ele vê a oração como parte essencial da
vida cristã simplesmente porque era mandado por Deus. Mas
também reconhece que é um meio necessário para se viver a vida
cristã. No Catecismo maior, ele explica como isso ocorre,
observando: “Nada é tão necessário quanto chamar a Deus
incessantemente e repetir em seu ouvido nossa oração para que ele
nos dê, preserve e aumente nossa fé e obediência”. A oração
também nos leva a refletir sobre nossas necessidades. Lutero
exorta:

Desde a mocidade, cada um de nós deve formar o hábito de orar


diariamente por todas as suas necessidades. Não o fazemos porque
Deus tem de ser lembrado de nossas necessidades, mas para nos
convencer acerca de nossa dependência em relação a ele.
Lutero também reconhece a oração como uma disciplina que
contém uma promessa. Conforme Lutero expressa no final da seção
do catecismo sobre a Oração do Senhor, o próprio Deus “ordenou
que orássemos assim e prometeu nos ouvir”. O reformador baseia
isso no primeiro pedido, “Pai nosso, que estás no céu”. Quando
indagado acerca do que isso significa, a resposta é: “Aqui Deus nos
encoraja a crer que realmente ele é nosso pai e que somos
verdadeiramente seus filhos, a fim de o abordarmos com coragem e
confiança na oração, assim como os filhos amados se aproximam
de seu pai querido”. Em consequência, oramos porque Deus nos
mandou fazê-lo, porque precisamos e porque podemos confiar em
que nossas orações serão ouvidas. Enquanto ele trabalha em cada
uma das frases dessa oração, às vezes acrescenta outra pergunta à
já conhecida “O que significa isso?”, indagando também: “Como se
faz isso?”. Nesse contexto, Lutero encontra na Oração do Senhor
um modelo perfeito, na medida em que suas várias petições nos
proveem da lembrança reiterada de “todas as necessidades que
continuamente nos afligem, cada qual tão grande que nos deveria
impelir a continuar orando por elas por toda a vida”.
Depois da Oração do Senhor, Lutero prossegue com seu
ensinamento acerca da prática cristã referente aos sacramentos.
Boa parte disso já foi dita a esse respeito nos capítulos anteriores.
Aninhada entre os escritos sobre “o sacramento do santo batismo” e
o “sacramento do Altar”, permanece a discussão sobre “confissão e
absolvição”, que merece ser aqui abordada. Quando vemos a
mesma pessoa, conhecida por trazer à luz a doutrina longamente
obscurecida do sacerdócio do crente, afirmando que “devemos dizer
ao confessor: ‘Querido Pastor, ouça, por favor, minha confissão e
declare perdoados os meus pecados’’, talvez fiquemos perplexos.
Portanto, vale a pena examinar os pensamentos de Lutero sobre o
tema.
Em primeiro lugar, observamos que Lutero não chama a
confissão de sacramento. Em seu tratado Sobre os concílios e a
igreja (1539), ele elenca confissão e absolvição, ali denominados
“poder das chaves”, como uma das sete marcas da verdadeira
igreja, mas, mesmo ali, ele não vê isso como um sacramento.
Segundo, Lutero desenvolve seu pensamento aqui de modo
totalmente diferente da visão romana. Inicialmente, ele destaca que
a confissão é, em última instância, a Deus, e que somente Deus
concede absolvição com base na obra de Cristo. Em terceiro lugar,
Lutero segue a instrução dada em Tiago 5.16: “Confessai, pois, os
vossos pecados uns aos outros e orai uns pelos outros”. Com essas
advertências em mente, podemos examinar suas instruções. Lutero
nos informa que,

diante de Deus, temos de reconhecer que somos culpados de toda


espécie de pecados, até mesmo aqueles dos quais não temos
consciência (...). Perante o confessor, porém, devemos confessar
somente aqueles pecados que conhecemos e que nos perturbam.

A fim de nos ajudar a ter maior consciência de nossos pecados,


Lutero nos compele a “refletir sobre nossa condição à luz dos Dez
Mandamentos”. Podemos lembrar que, quando Lutero considera os
Dez Mandamentos, com certeza revela muito mais do que uma lista
de coisas a fazer ou não fazer. A confissão do pecado deve ser
mantida. Porém, ele acrescenta: “Se alguém não sente que sua
consciência está pesada por esse ou outro pecado, não deve
preocupar-se, nem vasculhar ou inventar pecados, pois isso
transformaria a confissão em tortura”. Talvez ninguém conheça
melhor essa condição do que Lutero, pois sua experiência com a
confissão na época em que era monge pode ser caracterizada como
autêntica tortura. Mas, se essa confissão for feita ao pastor, ele deve
dizer: “Deus seja misericordioso contigo e fortaleça tua fé”. E, em
seguida, perguntar: “Tu crês que esse perdão é o perdão de Deus?”.
Uma vez que o confesso responda: “Sim, creio”, o pastor deve
replicar: “Seja feito a ti conforme tu crês”. Novamente, isso pode
soar estranho a nós, especialmente para aqueles que não são
luteranos, mas pode ser algo sobre o que pensar. Em seus
comentários finais sobre a confissão no catecismo, Lutero observa:
“O confessor conhecerá passagens adicionais das Escrituras com
as quais confortar e fortalecer a fé daqueles cuja consciência está
carregada ou aflita e duramente provada”. O que Lutero encoraja é
o aconselhamento pastoral em seu melhor aspecto, confrontando o
pecado com o consolo da Escritura. Embora talvez descartemos a
letra da lei de Lutero quanto à confissão, seguir o espírito da lei
sobre o assunto pode ajudar-nos.
Em edições posteriores do catecismo, Lutero acrescenta seções
que abordam as orações da manhã e do entardecer, bem como
aquelas que são feitas à mesa de refeição. Curiosamente, Lutero
recomenda uma oração de bênção antes da refeição e, logo após,
uma oração de ação de graças . Também acrescenta algumas
seções sobre a “Tábua dos Deveres”: Esses pontos derradeiros
consistem de “certas passagens das Escrituras, selecionadas para
diversos estados e condições dos homens, pelos quais eles possam
ser advertidos a cumprir com seus deveres”.
Valendo-se de seu conceito dos três estados, Lutero começa com
o estado sacerdotal e os deveres de bispos, pastores e pregadores.
Segue com instruções quanto aos deveres que os cristãos têm em
relação a seus pastores e mestres. Então, parte para o próximo
estado temporal, abordando os deveres dos governantes e de seus
súditos. Volta, então, à condição do matrimônio, exortando maridos,
esposas, pais e filhos, bem como trabalhadores, servos e mestres.
Finalmente, acrescenta seções sobre jovens, viúvas e cristãos em
geral. Em cada tábua de deveres, Lutero não oferece uma única
palavra com base na própria opinião. Ele simplesmente colige várias
passagens da Escritura, deixando que a Bíblia nos informe acerca
de nosso dever no que tange a nossos diversos papéis na vida.
Assim, o Catecismo menor, embora seja um texto curto, aproxima-
se de uma declaração completa da prática cristã.
A Próxima Geração
Perto do fim da vida, Lutero, em uma de suas Conversas à mesa,
alude à importância das escolas. E observa: “A juventude é o
berçário e o manancial da igreja. Quando estivermos mortos, onde
estarão aqueles que assumirão nosso lugar se agora não houver
escolas? As escolas são os preservadores da igreja”. Então,
acrescenta: “As criancinhas têm aprendido pelo menos a Oração do
Senhor e o Credo [Apostólico] nas escolas, e a igreja tem sido
preservada de maneira notável por meio dessas escolas”. Pela
instrução oferecida no catecismo, Lutero confia no futuro da igreja.
Em linguagem clara, Lutero discute textos básicos e elementos
básicos de ética cristã, doutrina e prática, a fim de assegurar que os
membros das gerações futuras saibam aquilo em que creem e a
diferença que essas crenças deve fazer em sua vida. De algumas
formas, o rico legado do protestantismo, crescendo e continuando a
ecoar o ensinamento de Lutero quase cinco séculos mais tarde,
permanece como um testemunho à concretização desse objetivo.
Sua tarefa de entregar os ensinamentos do evangelho e da teologia
ortodoxa à próxima geração também representa um desafio para
nós, que contemplamos não somente nossa situação presente, mas
também nosso legado para as gerações futuras. Conquanto o
método de Lutero de instrução catequética não esteja em voga hoje
em dia, permanece como uma ferramenta efetiva de ensino que
comunica as coisas essenciais da fé cristã. Lutero fez este desafio à
igreja de seus dias, desafio que merece ser ouvido em nossa
geração:

Não podemos perpetuar a doutrina cristã a não ser que treinemos o


povo que virá depois de nós e nos sucederá em nosso ofício e trabalho,
para que, por sua vez, eles criem seus filhos com sucesso. Assim, a
Palavra de Deus e a igreja cristã serão preservados. Portanto, que cada
chefe de casa relembre que é seu dever, por injunção e ordem de
Deus, ensinar e ter ensinado a seus filhos as coisas que eles devem
saber.

O próprio Lutero, diariamente, dedicava tempo não só aos


próprios filhos, como também às crianças de Wittenberg, a fim de
recapitular e explicar o catecismo. Em seu breve texto “Sobre a
ordem do culto público”, que examinaremos adiante, Lutero
encorajava os pais de Wittenberg a dedicar os domingos à tarde à
instrução do catecismo. Trata-se de uma prática sábia, que serve
não só para ensinar os jovens, como também relembra aos mais
velhos as mesmas verdades essenciais. Em uma das primeiras
passagens de Conversas à mesa, Lutero registra: “Embora eu seja
um grande doutor, ainda não progredi além da instrução das
crianças nos Dez Mandamentos, no Credo Apostólico e na Oração
do Senhor. Ainda estou aprendendo e orando estas palavras todo
dia com meu Hans e minha pequena Lena”.
Lutero também encoraja os pais a ensinarem aos filhos em um
sermão dedicado à exposição dos elementos do catecismo. Ele
tinha a intenção de que esses sermões transmitissem “os
fundamentos do conhecimento cristão”, e não apenas substituíssem
a instrução da catequese no lar. De fato, Lutero começa esses
sermões exortando os pais a levarem a sério a tarefa de ensinar
essas coisas às crianças. “Admoesto-vos, pais e mães”, proclama
ele, que, se “não ajudardes, nós faremos muito pouco com nossa
pregação, e se eu pregar o ano inteiro e a multidão vier somente
para olhar as paredes e janelas da igreja, não haverá vantagem
alguma”. Nas palavras do Catecismo menor, Lutero nos ensina o
essencial da fé cristã e recomenda como ensinar essas verdades à
próxima geração. A extensa lista de Lutero de profissões – teólogo,
acadêmico, pastor, músico e administrador de igreja – deve incluir
também educador infantil. Lutero, porém, veria essa última tarefa
como simplesmente a extensão de seu trabalho como pregador do
evangelho.
Nota sobre as Fontes
Tanto o Catecismo maior como o Catecismo menor se encontram,
em língua inglesa, nos exemplares de The Book of Concord, padrão
confissional do luteranismo. Timothy F. Lull inclui o Catecismo
menor, também na versão em inglês, em Martin Luther’s Basic
Theological Writings (1989), pp. 471-496.
Capítulo 9
JANTANDO COM LUTERO:
“Conversas à mesa”

“No primeiro dia de agosto,


ele se sentou à mesa após o café matinal e,
depois de alguma reflexão, escreveu com giz sobre a
mesa: ‘Substância e palavras – Filipe [Melâncton].
Palavras sem substância – Erasmo.
Substância sem palavras – Lutero’.
Logo após, o Mestre Filipe e o Mestre Basílio entraram
ali por acaso, e o primeiro disse que isso era verdadeiro
quanto a Erasmo, mas que fora atribuído demais a ele e
que ‘palavras’ também tinham de ser atribuídas a Lutero.”
CONVERSAS À MESA, relato de Anthony Lauterbach e
Jerome Weller, 1o de agosto de 1537

C
OMO PRESENTE DE CASAMENTO para o renomado
professor e seu pastor favorito, Frederico, o Sábio,
entregou as chaves do imponente Claustro Negro, o antigo
monastério agostiniano em Wittenberg, a Martinho Lutero. Lutero
entrara nessa casa como monge em 1508 e, exceto quando viajava,
ali viveu até a sua morte, em 1546. Era nesse local que ele escrevia,
dava palestras, preparava sermões, ensinava às crianças e, junto
com Katie, criou sua família. No centro do prédio, encontra-se uma
grande torre de relógio, a mesma torre na qual, conforme se
lembraria mais tarde, ele fez a descoberta da Reforma de
justificação pela fé. Um lado da casa continha seu escritório, os
quartos e as salas da família. O outro exibia um grande salão para
palestras e muitas salas de aula menores. Hoje, esse local é
conhecido como a Casa de Lutero, Lutherhalle, e permanece como
museu de Lutero e da Reforma gerada na torre.
A Casa de Lutero
Lutero entrou no Claustro Negro como um monge aflito, em meio a
uma igreja corrupta, lutando para ter paz com Deus. Saiu de lá
pastor casado com seis filhos, em meio a uma nova igreja
comprometida com o evangelho e descansando na obra de Cristo.
Katie mudou-se para o Claustro Negro em 13 de junho de 1525, em
sua noite de núpcias. Era uma casa enorme, provando-se muito
grande para gerenciar. Raramente, porém, a casa estava vazia. Os
Lutero tiveram seis filhos biológicos entre os anos 1526 a 1534.
Quatro mais, órfãos de parentes vítimas da peste, foram criados
dentro de suas paredes. Durante as pragas que atingiram
Wittenberg, o antigo monastério que se tornara lar e também
academia foi transformado ainda em hospital, sendo Martinho e
Katie os cuidadores, sob grande risco pessoal. Era um lugar no qual
dignitários, ministros e amigos viajantes se hospedavam, às vezes
por longos períodos. Servia também de pensionato para vários
estudantes. Lutero palestrava nos salões do outro lado da torre, e
ruminava suas ideias no escritório. Em volta da mesa da sala de
jantar, aconteciam algumas de suas melhores teologizações.
Ao entardecer, todos da grande casa, bem como os amigos que
vinham visitá-los, reuniam-se em torno da mesa para a refeição.
Depois do jantar, Lutero e sua família geralmente brindavam suas
visitas com música ao vivo antes de voltar para a mesa, a fim de se
ocupar de discussões teológicas que se estendiam até tarde da
noite. Katie, em mais de uma ocasião, brincou que seu marido
deveria cobrar pelas aulas ministradas nesses encontros. As
conversas eram tão envolventes que seus alunos faziam rodízio na
responsabilidade de anotá-las. Um visitante descreveu a impressão
dada pelo anfitrião sobre os que se sentavam à mesa:
“Costumávamos chamar sua conversação de condimentos da
refeição, porque nós os preferíamos a todas as especiarias e
comidas finas”.
Por hábito, os alunos de Lutero mantinham à mão cadernos e
penas para ir escrevendo à medida que o reformador falava.
Algumas vezes, Lutero até mesmo exortava o escriba: “Anote isso”,
enquanto fazia diversos pronunciamentos. Mas, essencialmente,
esses escritos eram particulares, refletindo o toma lá da cá da
discussão das questões em um ambiente informal. Esses
documentos das conversas foram coligidos e, inicialmente,
publicados em 1566, depois da morte do reformador. Por fim, em
meados do século XVIII, foram incorporados nas edições que
continham os volumes coligidos de seus escritos. Conhecidos como
Conversas à mesa (Tischreden, em alemão), esses textos são
singulares, a exemplo de seu autor, e oferecem percepções sem
precedentes, como também um retrato vivaz da vida e do
pensamento de Lutero.
Migalhas da Mesa de Lutero
A primeira publicação de Conversas à mesa surgiu como resultado
dos esforços de John Aurifaber, que atuou como secretário pessoal
de Lutero nos últimos anos de sua vida. Aurifaber também relatou
os eventos desses últimos dias e as últimas palavras de Lutero.
Diversos manuscritos, incluindo os das Conversas à mesa, também
foram para suas mãos. No prefácio da edição de 1566, Aurifaber
refere-se a esse rico tesouro de manuscritos de conversas. Ele
observa que “não poderia, em boa consciência, permitir que esse
tesouro das conversas de Lutero ao redor da mesa ficassem
ocultos”. Em consequência, deu publicidade delas a um auditório
mais amplo, com a esperança de “a igreja cristã, que pode ser
fortalecida por tal ensinamento, usá-lo como bênção, como migalhas
que caem da mesa de Lutero, e, com isso, satisfazer a fome e a
sede espiritual das almas dos homens”.
Assim, graças a esses escribas estudantes, compiladores de
manuscritos, bem como a John Aurifaber, podemos escutar essas
conversas e, séculos mais tarde, catar “migalhas da mesa de
Lutero”. Como uma coleção esparsa de conversas, as Conversas à
mesa não refletem uma obra sistemática ou estruturada. A
discussão vai desde comentários sobre o cachorrinho da família até
os discursos sobre a cristologia dos antigos pais da igreja. Em
muitas passagens, Lutero reflete sobre seus escritos e os principais
acontecimentos de sua vida. Essas reflexões ajudam os
historiadores e biógrafos a reunirem as peças do desenvolvimento
de seu pensamento. Assim, embora esses escritos não ofereçam
uma biografia completa, oferecem farto material para iluminar
períodos cruciais de sua vida.
Queremos tomar cuidado, no entanto, ao tentar usar as
Conversas à mesa para interpretar Lutero. Temos de lembrar que
essas conversações foram anotadas por estudantes e publicadas
depois da sua morte, o que significa que Lutero não poderia tê-las
“aprovado” da forma como foram registradas. Além disso, a obra
Conversas à mesa já foi usada para afirmar que Lutero seria
maníaco-depressivo, ou que seria mal-resolvido em sua relação
com os pais. Outros enxergam Lutero, devido à obra Conversas à
mesa, como obcecado pela própria saúde e fisiologia,
especialmente o intestino. Essa abordagem terapêutica ao
entendimento de Lutero se deve mais ao livro de Erik Erikson,
Young Man Luther (O jovem Lutero), um retrato altamente
psicologizado com base na psicanálise que Erikson faz de Lutero
em Conversas à mesa, e não em dados reais. Isso não quer dizer
que Lutero não tenha sofrido alguns surtos de depressão, pois, sim,
os teve. Também não quer dizer que ele nunca tenha feito referência
ao próprio intestino, pois também costumava fazer isso. Afirmamos
apenas que um retrato psicologizado de Lutero com base em
Conversas à mesa é uma péssima historiografia. Em vez de dar
crédito excessivo a essas abordagens, precisamos lembrar que
apenas uma pequena fração das conversas de Lutero foi
documentada, às vezes apenas algumas linhas que representam
uma conversa de uma noite inteira. O que foi escrito, conforme já
notamos, não foi pela pena do próprio Lutero. Em consequência, é
necessário ter uma abordagem cuidadosa da interpretação de
Lutero de Conversas à mesa. Porém, esse livro deve ser lido, pois
tal material oferece um vislumbre sem paralelo da vida de Lutero,
especialmente de sua vida privada. Aqui somos apresentados ao
Lutero por trás da persona pública, oportunidade rara no estudo das
figuras históricas em geral.
Conforme já mencionamos, a obra Conversas à mesa permeia
toda uma série de assuntos. Numerosas passagens relatam sua
interação com amigos e inimigos igualmente. Não surpreende que
esse material preencha muitas lacunas na documentação histórica.
Também tende a apresentar uma linguagem pitoresca. De fato, em
parte por conta da linguagem empregada em Conversas à mesa, os
editores expressaram certa relutância em incluir esse material nos
volumes coligidos dos escritos de Lutero. Não querendo dar mais
munição aos papistas e aos seus críticos, alguns de seus
apoiadores, até mesmo séculos após a sua morte, diziam que
Conversas à mesa era um trabalho engenhoso feito por
falsificadores. Com certeza, Conversas à mesa contém falas
cáusticas e linguagem vulgar. O próprio Lutero justifica tal linguagem
apelando para suas tristes circunstâncias. O margrave, ou príncipe,
Joaquim de Brandenburg, um dos muitos dignitários a se reunirem à
conversa em volta da mesa de Lutero, certa vez perguntou ao
reformador sobre seu linguajar rude. Lutero respondeu com uma
ilustração: “Posso cortar um galho de salgueiro com uma faca de
pão, mas, para cortar o carvalho duro, preciso de um machado e de
uma cunha, e, mesmo assim, mal consigo fendê-lo”.
As situações urgentes, defendia Lutero, requerem uma
linguagem incisiva. Nem toda a linguagem pitoresca de Lutero,
contudo, era vulgar. De fato, se fôssemos extrair todo o material
vulgar de Conversas à mesa, encheríamos apenas algumas das
centenas de páginas de texto. Seu humor e sua sagacidade, porém,
emprestam graça a todas as páginas. O sarcasmo e os comentários
jocosos rivalizam com o mais sofisticado humorista e, sem dúvida,
produziam discussões divertidas e memoráveis ao entardecer. Certa
vez, Lutero disse: “Amanhã terei de dar aula sobre a embriaguês de
Noé, portanto deverei beber bastante hoje à noite para falar dessa
maldade como quem a conhece por experiência própria”. Seu
humor, porém, geralmente assumia a forma de histórias que ou ele
mesmo inventava ou se divertia em enfeitar. Por exemplo, numa
discussão com Melâncton sobre o governo de Deus sobre o mundo,
ele conta a seguinte história:

Os italianos fizeram um arco para agradar ao imperador. De um lado,


estava escrito “Utrecht plantou”, porque fora o lugar de nascimento de
Adriano. Do outro lado, foi inscrito: “Louvain regou”, porque Adriano
havia estudado ali. No topo, estava escrito: “O imperador deu o
crescimento”, porque ele o havia tornado papa. Então, um menino
malvado veio e rabiscou embaixo do arco: “Aqui Deus nada fez!”.

Certa ocasião, ele diz: “Os jovens são tentados pelas moças, os
homens de trinta anos são tentados pelo ouro; quando têm quarenta
anos, são tentados por honra e glória, e aqueles que chegam aos
sessenta exclamam para si mesmos: ‘Que homem piedoso eu me
tornei!’”. As piadas curtas incluem dizeres de humor e proverbiais,
tais como: “Uma mentira é como uma bola de neve. Quanto mais
rola pelo chão, maior ela fica”.
Um bom número de diálogos de Conversas à mesa aborda
questões relacionadas a viver uma vida cristã. Lutero fala sobre
oração, estudo da Escritura e o papel do sofrimento, entre outros.
Naturalmente, controvérsias e questões a respeito de política e
prática da igreja também vêm à superfície nesses momentos ao
redor da mesa. Sobre esses tópicos, Lutero dá conselhos
semelhantes aos de um médico que prescreve receitas. Finalmente,
Conversas à mesa oferece uma visão sem paralelo à vida
doméstica de Lutero.
Katie emerge dessas páginas como uma das parceiras mais
frequentes de diálogo – com frequência, a ponto de os outros
visitantes simplesmente ficarem observando dois cônjuges
conversando a respeito de teologia depois do jantar. É claro que não
se tratava de um casal comum e, assim, as conversas não eram
sobre fatos corriqueiros. De fato, essas conversas, como tantos de
seus escritos, são clássicas e contêm tesouros de sabedoria
atemporal. Às vezes, conforme vimos, são recheadas de humor;
outras vezes, de sagacidade, mas sempre em um estilo envolvente.
Eis uma amostra do rico material encontrado em Conversas à mesa.
Uma Amostra do Cardápio
O lar de Lutero serve de matéria-prima a muitas menções. Ele usou
até mesmo o cão da família, Tolpel, como fonte para instrução. Um
secretário-estudante documentou o seguinte: “Quando acontecia de
o cachorrinho de Lutero estar à mesa, ele pedia um naco de carne
ao dono, e ficava vigiando seu mestre de boca aberta e olhos fixos.
Lutero, então, dizia: ‘Se eu pudesse orar do jeito que esse cachorro
vigia a carne! Todos os seus pensamentos se concentram nesse
pedaço de carne’”. Certa ocasião, Lutero simplesmente abandonou
a conversa para brincar com seu filho recém-nascido, Martin. O
estudante-secretário recordou: “Então ele brincou com o filho infante
e disse: ‘Ah, esta é a melhor das bênçãos de Deus’”. Lutero também
exclamou: “Sou rico. Meu Deus me deu uma freira e acrescentou
três crianças”. Em muitas passagens, Lutero reflete sobre seu
casamento com Katie. A certa altura, pensando tanto em seu
casamento como na morte de sua filha Elizabeth, quando ainda
bebê, expressa a doçura e a tristeza que essas relações humanas
trazem: “Não existe união mais doce do que em um bom
casamento. Nem há morte mais amarga do que aquela que separa
um casal casado. Somente a morte dos filhos se aproxima disso; e
quanto isso dói, pois eu mesmo já experimentei”.
Nem todas as referências à sua família tinha natureza séria. A
certa altura, ele brincava com sarcasmo: “Se eu quisesse uma
esposa mais obediente, teria de lavrá-la em pedra”. Também dirigiu
numerosos comentários jocosos a seus colegas e alunos. Numa
passagem, relembra seu conselho ao filho de seu publicador por
ocasião da noite de núpcias. Ele disse ao noivo que deveria ser
“senhor em sua casa”. Lutero, então, fez uma pausa e acrescentou:
“Sempre que sua esposa não estiver em casa!”. Quando estava
sério, exaltava as virtudes do casamento, como evidenciado no
seguinte comentário: “É uma grande bênção de Deus quando o
amor continua a florescer no casamento”. Também elogiava as
mulheres, como na seguinte passagem: “Imagina como seria o
mundo sem as mulheres. O lar, as cidades, a vida financeira e o
governo literalmente desapareceriam. Os homens não vivem sem as
mulheres. Mesmo que fosse possível aos homens gerarem filhos,
ainda assim, não poderiam fazê-lo sem as suas mulheres”.
Outros verbetes apresentam a perspectiva de Lutero sobre
numerosas questões teológicas. Em especial, os pensamentos de
Lutero sobre a tarefa e a natureza da teologia permeiam a obra
Conversas à mesa. Em uma discussão sobre como Deus pode ser
conhecido, ele declara: “[Deus] é visível em sua palavra e obra. À
parte de sua palavra e de sua obra, não se deve procurar por ele”.
Lutero afirma em outro lugar: “Eu tenho a palavra, e isso me basta”.
Cristo e sua obra de redenção servem como ponto focal da palavra
e da obra de Deus. Lutero expressa bem isso ao observar: “Vemos
que toda a história caminha em direção ao perdão dos pecados.
Tudo circula em torno do centro, e esse centro é Cristo”. Em outro
ponto, Lutero acrescenta: “Aqueles que não buscam Deus ou o
Senhor em Cristo não o encontrarão”. Lutero também relata sua
própria jornada como teólogo em uma passagem datada do outono
de 1532: “Não aprendi minha teologia toda de uma só vez. Tive de
ponderar mais profundamente, e minhas provações espirituais
[anfechtungen] me ajudaram nisso, pois não se aprende nada senão
pela prática”. E acrescenta: “É a maior dádiva de Deus ter um texto
bíblico e poder dizer: ‘Isso está certo. Eu sei disso’”.
As Reflexões de Lutero sobre sua Jornada de Vida
Talvez a percepção mais útil que se obtém em Conversas à mesa
trata das reflexões de Lutero a respeito de suas próprias lutas
espirituais e de sua peregrinação de Roma para o verdadeiro
evangelho. Nos primeiros meses de 1532, um dos alunos de Lutero
relatou o seguinte:

Satanás muitas vezes me dizia: “O que acontecerá se o teu ensino,


com o qual depuseste o papa, a missa e os monges, for falso?”. Com
frequência, ele me atacava tanto que eu suava em bicas. Finalmente,
respondi: “Vá falar com meu Deus, que nos ordenou que escutássemos
Cristo”. Cristo tem de fazer tudo.

Naturalmente, muitas dessas passagens, como é o caso aqui,


fazem referência ao papa. Para ele, esse antagonismo não era
apenas uma guerra de palavras. “Vós não entendeis”, Lutero nos diz
perto do final de 1542, “quantas trevas estavam sobre nós durante o
papado”. Por causa dessas trevas, Lutero entrou na luta e desafiou
todo o sistema papal. Ele o fez, conforme escreve, “após cuidadosa
reflexão e em estado mental bastante hostil”. É claro que isso
ocorreu depois do ano divisor de águas de 1517 e de seus
resultados. Antes disso, Lutero estava preso de intensa luta para
merecer a graça de Deus.
A passagem seguinte recorda sua vida como monge: “Eu tirava
um sábado de folga, ou me trancava na cela por até três dias sem
comer ou beber, até que tivesse feito as orações recomendadas.
Isso fazia minha cabeça rachar de dor e, em consequência, eu não
conseguia fechar os olhos por cinco noites seguidas, prostrado,
doente até a morte, até perder os sentidos”. Também se lembra
vividamente de sua primeira missa quando sacerdote: “Quando me
vi de pé diante do altar, tendo de fazer a consagração, fiquei tão
aterrorizado pelas palavras ‘ao Deus eterno, vivo e verdadeiro’ que
pensei em fugir do altar e disse ao meu prior: ‘Reverendo Padre,
temo que tenho de sair’. “Então, acrescenta: “Estava tão
aterrorizado com essas palavras! Já tinha alguns sinais de que
havia algo errado, mas Deus não me deu entendimento a esse
respeito até bem mais tarde”. O “mais tarde” chegou com o tempo,
pois Deus conduziu Lutero ao entendimento da doutrina da
justificação pela fé. A certa altura, Lutero disse: “O que seria mais
fácil para o homem dizer a Deus do que ‘Sou homem pecador, mas
tu és Deus justo’?” Porém, não admitimos e, em vez disso, “somos
nossos próprios algozes”.
Finalmente, ele aprendeu a deixar de se atormentar e descansar
na justiça de Cristo. Conforme ele diz: “Em suma, o artigo da
justificação por [pela obra de] Cristo resolve tudo”. Refletindo sobre
sua postagem das 95 teses na porta da igreja de Wittenberg, Lutero
exclama: “Deus sabe, eu jamais pensei em ir tão longe quanto fui.
Tive a intenção apenas de atacar as indulgências. Se qualquer um
tivesse dito, quando eu estava na Dieta de Worms: ‘Dentro de
alguns anos, você terá uma esposa e sua própria casa, eu não teria
acreditado”. Mas esse foi exatamente o caminho que Deus marcou
para Martinho Lutero. As passagens de Conversas à mesa
oferecem uma visão extraordinária das viradas e reviravoltas que
sua vida tomou.
Lutero e seus discípulos
Por muitas razões, Lutero se destaca mesmo entre outras
conhecidas figuras da história da igreja. Sem dúvida, uma boa razão
para sua proeminência seria sua personalidade magnética. As
passagens de Conversas à mesa refletem seu caráter singular e
afetuoso. Além disso, sua mesa raramente estava vazia, mais uma
prova de seu carisma e simpatia. Mas nem todo mundo pode ser
Lutero. O fluxo constante de hóspedes para o jantar seria bastante
para desanimar a maioria das pessoas. No entanto, como vemos no
exemplo dessas conversas à mesa de jantar, Lutero nos ensina que
as relações entre as pessoas têm grande importância. É aqui que
vemos a importância do discipulado para Lutero. Nas páginas de
Conversas à mesa, Lutero molda, de forma incipiente, o que hoje
em dia chamamos de “mentoria”. Quando os estudantes
completavam seus estudos em Wittenberg e retornavam aos seus
lares, em diversos lugares, iniciando seus ministérios ou suas
profissões, sem dúvida lembravam-se dessas conversas ao cair da
tarde, e eram mais que propensos a agradecer a Lutero por tê-los
convidado para a sua casa.
Provavelmente, deveríamos acrescentar que nem sempre Lutero
recebia visitas. Às vezes, quando ele sentia a pressão do volume de
seus escritos e de seu trabalho, simplesmente se trancava no
escritório. Conta-se que, certa vez, depois de se refugiar por três
dias no gabinete, Katie, frustrada com sua ausência, retirou as
dobradiças da porta. Assim mesmo, Lutero conseguia realizar muito,
inclusive dedicar algum tempo aos discípulos jovens e velhos.
Há mais uma virtude que Lutero nos ensina por meio das
Conversas à mesa. Ele cria que a teologia devia ser ensinada e
aprendida. Ele mesmo obteve seu doutorado em teologia e era
empregado principalmente como teólogo, dedicando tempo
significativo ao ensinamento sobre o assunto. As Conversas à mesa
permanecem como testemunho da crença de que a teologia deve
ser também vivida, e ele vivia plenamente, à vista de todos, sua
teologia. Embora fosse muito melhor se nós também fôssemos
visitas à sua mesa, pelo menos conseguimos ver e ouvir Lutero a
distância ao lermos Conversas à mesa. E, ao fazermos isso,
envolvemo-nos em um texto clássico que compensa a leitura.
Nota sobre as Fontes
Conversas à mesa, no original em inglês, Table Talks, não é uma
obra traduzida na íntegra. A edição padrão e mais completa, alemã,
contém três volumes de material. A edição padronizada em inglês,
Luther’s Works, consiste apenas de um volume. Esse volume
apresenta a coleção mais completa em inglês, organizando as
entradas em ordem cronológica. Cada conjunto de entradas escritas
por um secretário-estudante também contém uma introdução
proveitosa elaborada pelos tradutores e editores.
Capítulo 10
COMEÇA UMA NOVA CANÇÃO
Os Hinos

“Castelo forte é nosso Deus, espada e bom refúgio.”


MARTINHO LUTERO, 1527

“Depois da teologia, atribuo à música


a maior honra e o mais elevado lugar.”
MARTINHO LUTERO

U
M TEMA RECORRENTE neste livro é que Martinho Lutero
revolucionou não somente a teologia da igreja de seus
dias, como também a sua prática. O tratamento da música
na igreja por Lutero é um excelente exemplo. Além de seus muitos
outros dons, Lutero apresentava grande talento musical. Alguns de
seus amigos reportam que ele era melhor músico do que teólogo –
um comentário não tanto para depreciar sua capacidade teológica,
mas para elogiar sua habilidade musical. Durante sua vida, ele
compôs 38 hinos, e muitos deles ainda integram os hinários de hoje.
Além disso, ele compôs numerosos arranjos de antífonas medievais,
ou versos cantados. Para muitos de seus textos de hino, Lutero
também oferecia a melodia. Entre essas realizações musicais,
permanece o que se pode considerar o mais amado hino de todos
os tempos: “Castelo Forte é Nosso Deus”. Se sobrevivesse apenas
esse texto de todos os seus escritos, apenas por isso talvez ainda
recitássemos seu nome entre as figuras históricas que impactaram a
igreja. Cantar e fazer música foram atribuições relevantes na vida de
Lutero.
A música enchia o lar de Lutero e, pela primeira vez na história,
também fluía dos corações gratos dos paroquianos da Igreja do
Castelo de Wittenberg. Não eram incomuns as visitas no lar de
Lutero serem brindadas com um concerto pela família de Lutero
depois do jantar. Lutero frequentemente voltava-se para a música
como consolo para as correntes de conflito em turbilhão à sua volta.
Ele via a música, em especial, como desempenhando papel crucial
na vida da igreja. O laicato escutava os monges ou corais cantando
as antífonas durante a missa. É claro, essas eram cantadas em
latim e, assim, alguns escutavam sem entender uma palavra sequer.
Por causa do trabalho reformador de Lutero, porém, eles podiam
não somente ouvir palavras que compreendiam, mas podiam, eles
próprios, cantar. Essa inovação acentuou ainda mais o abismo entre
Lutero e Roma. No entanto, Lutero preferia ver o canto
congregacional não como uma inovação, mas como um retorno e
uma restauração da prática bíblica que tinha sido obscurecida com o
passar dos séculos. A música não era um mero realce ao culto da
igreja; ela desempenhava papel crucial, ao permitir que os redimidos
expressassem gratidão a Deus. Em uma peça inacabada intitulada
Concernente à música, Lutero escreve:

A música é dom e liberalidade de Deus, e não um dom dos homens.


Ela afasta o diabo e torna o povo feliz; induz-nos a esquecer toda ira,
incastidade, arrogância e todos os demais vícios. Depois da teologia,
atribuo à música o mais alto lugar e a mais elevada honra.
Outros elementos do culto também despertavam a atenção de
Lutero. Assim como aos leigos a música não era dada, a oração
também era dada, em sua maior parte, apenas ao clero e aos
monges. É certo que os leigos oravam. Mas a oração como ato de
serviço e culto era especialmente responsabilidade dos
profissionais, especialmente dos monges, que passavam a vida em
oração. Para a pessoa comum, a oração significava pouco mais que
recitar as palavras da Oração do Senhor na missa. Aqui também,
Lutero deixou uma marca significativa. Assim como apontou o
caminho para recuperar os artigos perdidos de teologia que
essencialmente definem o cristianismo, ele também liderou a
restauração de disciplinas e práticas tão essenciais para se ter uma
vida cristã. Este capítulo examina sua contribuição como músico e
compositor de hinos.
Lutero, o Músico
O prior e os monges do monastério agostiniano de Antuérpia, na
Holanda, apoiavam o ensinamento de Lutero e, consequentemente,
depois de 1521, caíram sob a mesma interdição que fora imposta ao
reformador na Dieta de Worms. Embora Frederico, o Sábio,
cuidasse de Lutero, esses monges não contavam com um protetor
desse porte. As tropas imperiais arrasaram o monastério e
aprisionaram os monges. Eles, então, foram forçados a se retratar
de sua posição em relação ao herege Lutero ou enfrentar a morte
queimados à estaca. A maioria se retratou, mas três deles não o
fizeram. Em 9 de julho de 1523, houve os primeiros martírios da
Reforma. Uma vez que essa notícia chegou ao conhecimento de
Lutero, ele tornou memorável esse testemunho de coragem e
reafirmou sua posição em favor da verdade em seu primeiro hino, o
primeiro da Reforma: “Um novo cântico aqui começará”.
Essencialmente uma balada, conta a história desse martírio em 12
estrofes. As estrofes do meio encerram bem essa balada:

Rasgadas as vestes do claustro,


Tiradas as suas consagrações;
Tudo isso os meninos estavam prontos a fazer,
Disseram com paciência o amém.
A Deus seu Pai, deram graças,
pois logo seriam resgatados
das zombarias de Satanás e de seus logros mascarados,
com os quais, revestido de falsidade,
ele tanto engana este mundo.
Então, o gracioso Deus lhes concedeu
Atravessar o limite do verdadeiro sacerdócio,
Ofertando-os a si mesmos,
e adentrando a ordem do próprio Cristo.
No ano seguinte e depois, Lutero compôs mais 23 hinos. Embora
essa balada fosse o primeiro hino de Lutero, sua afinidade com a
música se estendia aos primeiros anos de vida. Ele havia cantado
em corais durante seus primeiros anos na escola. Em Erfurt,
recebeu, junto com seus colegas de classe, instrução em teoria
musical. Seu instrumento preferido era o alaúde, que ele dominava
bem e para o qual fez numerosas composições. Ele teve uma
relação próxima com Johann Walther, o primeiro cantor protestante
e “pai da música da igreja luterana”, e Georg Rhau, antigo cantor e
editor em Wittenberg, ao quem também se atribui a primeira
publicação de música da Reforma. Walther lembra que Lutero “tinha
grande prazer no coral e também na música de solo ou em
uníssono, como também em partes. Passei muitas horas agradáveis
cantando com ele e, frequentemente, tinha a experiência de
testemunhar que parecia que ele não se cansava de cantar; além
disso, ele era capaz de conversar de forma bastante eloquente a
respeito de música”.
Lutero também admirava muito as – e foi influenciado pelas –
composições musicais de Josquin de Pres (ou Desprez),
considerado o primeiro grande compositor desde a Idade Média. Em
uma passagem de Conversas à mesa, Lutero observa: “Deus
pregou o evangelho através da música, como se pode ver em
Josquin, cujas composições todas fluem livre, terna e alegremente,
não sendo forçadas ou restritas por regras, e soam como o cântico
do tentilhão”. Josquin morreu no mesmo ano em que foi realizada a
Dieta de Worms, mas sua obra inspirou o reformador, que provou ter
mão para a composição musical. Uma descoberta do início do
século XX revela uma composição polifônica, entre outras, atribuída
a Lutero.
Lutero dizia até que a pessoa não deveria ser ordenada a não ser
que fosse treinada em música. Porém, sua visão da importância da
música não era compartilhada por seus contemporâneos. Zuínglio,
embora mais tarde se tivesse arrependido do incidente, chegou a
ser acusado de destruir órgãos e instrumentos musicais nas
catedrais de Zurique e da Suíça. Calvino, embora não tenha
destruído os instrumentos, descartou-os do culto na igreja,
argumentando que somente os Salmos deveriam ser cantados no
culto público.
Lutero, também defendia que se reformasse a abordagem
medieval da música e do culto público, mas desejava reforma, e não
deposição. Ele escreveu: “Não sou da opinião de que todas as artes
devam ser jogadas fora ou destruídas por causa do evangelho,
como alguns fanáticos protestam. Pelo contrário, eu gostaria de ver
todas as artes, especialmente a música, a serviço daquele que as
deu e as criou”. Em outra ocasião, ele acrescentou: “Deus tem seu
evangelho pregado também por meio da música”.
As reformas da música de Lutero começaram com o que a igreja
medieval havia legado, a missa romana. Ele a revolucionou e, em
1523, produziu “uma ordem de missa e comunhão para a Igreja em
Wittenberg”. Nas palavras iniciais desse panfleto, Lutero escreveu:
“Não é nem deverá ser nossa intenção abolir completamente o culto
litúrgico de Deus, mas tão somente purificar os atuais acréscimos
desgraçados que corromperam o que estava em uso”. Lutero,
portanto, remodelou a liturgia tradicional de um modo que condiz
com o “uso evangélico”. Ele manteve a maioria das músicas em
latim, acrescentando apenas alguns hinos alemães. Mas logo ficou
aparente para Lutero que seria necessária uma liturgia
completamente nova. Em 1524, Johann Walther passou quase um
mês colaborando com ele nesse projeto.
Em 29 de outubro de 1525, a congregação em Wittenberg teve
seu primeiro culto completo em alemão. A ordem do serviço foi
publicada no começo de 1526, como A missa alemã e, rapidamente,
tornou-se o padrão para as novas igrejas evangélicas por todas as
terras alemãs. Não devemos permitir, contudo, que a palavra
“missa” nos distraia, pois facilmente poderíamos substituí-la por
“liturgia”.
Lutero conclui o texto com sugestões para a ordem do culto e do
sermão, bem como para a letra e as composições musicais que
deveriam ser cantadas com os instrumentos. Suas palavras finais
recomendam cautela quanto ao uso de sua liturgia. Ele confia que a
liturgia não será abusada nem repetida de forma mecânica. Em vez
disso, ele espera que “sirva para a promoção da fé e do amor”.
Depois da pregação da Palavra, disse ele certa vez, é necessário ter
tempo suficiente para a congregação louvar a Deus e agradecer por
sua obra. Cantar, pensava ele, era o que melhor fazia isso. Assim,
ele dedicava boa parte do tempo ajudando a igreja a oferecer um
louvor digno a Deus. A seguir, tem-se uma abordagem do fruto de
seu trabalho, com o exame de alguns de seus hinos.
O Legado dos Hinos de Lutero
“Castelo Forte” claramente figura como o hino mais conhecido de
Lutero, se não o mais conhecido do Cristianismo. Foi escrito em
1527, e alguns o associam aos meses de exílio no Castelo de
Wartburg, após a Dieta de Worms. O esconderijo de Lutero, o
impressionante Castelo, empoleirado sobre a alta montanha que
olhava para a vila de Eisenach, ressoa com as palavras “castelo
forte”. Além disso, a linha que nos informa que, “embora este mundo
esteja cheio de Satanás ameaçando nos desmoronar, não
temeremos, pois a vontade de Deus é que sua verdade triunfará por
meio de nós”, claramente evoca a batalha espiritual travada por ele,
como também a vitória nos longos meses que passou no Castelo de
Wartburg. Mas esse hino não foi escrito ali, só vindo a aparecer
cinco anos mais tarde. O ano em que foi escrito, 1527, ofereceu a
Lutero muitas razões para olhar para Deus como um castelo forte,
um baluarte que jamais falhará.
A peste que atingiu a cidade de Wittenberg, conforme já vimos,
havia ceifado os seus. Lutero experimentou doença pessoal e ficou
assistindo, sem nada poder fazer, a seu filho ainda bebê, Hans, lutar
contra a doença. Aquele ano também marcou o décimo aniversário
da postagem das 95 teses por Lutero. Até esse ponto, ele havia
aprendido que, se confiasse apenas em sua própria força, a “luta
estaria perdida”. Em vez disso, ele aprendera a olhar para Cristo, “o
homem escolhido pelo próprio Deus”.
De muitas formas, esse hino encapsula a história da vida de
Lutero. Embora comece com Deus, o Castelo Forte, ele vai
rapidamente expressar a dor da vida, “os males mortais que
prevalecem”, e o poder do inimigo, que, “com fúria pertinaz e ânimo
cruel, nos persegue”. A primeira estrofe original termina em nota
sombria, falando ainda de Satanás: “Com fúria pertinaz, persegue
Satanás, com ânimo cruel, astuto e muito rebelde, igual não há na
terra”. O hino progride, então, a partir daí, estrofe por estrofe, até
atingir um crescendo de exaltação na vitória final. A segunda estrofe
encontra Lutero entendendo a chave para essa vitória, ao admitir
sua própria incapacidade e fragilidade, e olhar para aquele que é
capaz. “Sabeis quem é Jesus?”, Lutero indaga, “o que venceu na
cruz”. Ainda designa Cristo como Senhor dos Exércitos, Senhor dos
altos céus e o próprio Deus (em alemão, ele usa o designativo
Senhor Sabaós). Termina essa estrofe expressando confiança em
Cristo, que “triunfa na batalha”. Porém, antes de ganhar a batalha, a
terceira estrofe nos lembra que estamos em conflito neste mundo
“com demônios não contados”. Mesmo aqui, porém, sua esperança
permanece intacta, pois termina dizendo que suportamos a fúria do
diabo porque ele já está condenado por uma só palavra”. A estrofe
final no original exalta essa palavra, que permanece acima de todos
os poderes terrestres. Além disso, Deus também nos concede o
Espírito e os dons, a fim de nos libertar no dia final. Assim, ele
resolve:

Que percamos bens e família,


também esta vida mortal;
Podem matar o corpo,
mas a verdade de Deus permanecerá;
Seu reino é para sempre.

Figura 10.1 Castelo Forte é nosso Deus


Texto em alemão Texto em português (HNC # 155)

Ein feste Burg ist unser Gott, Castelo forte é nosso Deus,
ein guter Wehr und Waffen; Espada e bom escudo!
Er hilft uns frie aus aller Not, Com seu poder defende os seus
die uns jetzt hat betroffen. Em todo transe agudo.
Der alt bose Feind, Com fúria pertinaz
mit ernst ers jetzt meint; Persegue Satanás
gross Macht und viel List Com ânimo cruel!
sein grausam Rustung ist; Mui forte é o Deus fiel,
auf Erd ist nicht seins gleichen Igual não há na terra.

Precisaríamos procurar muito para encontrar um hinário que não


contenha “Castelo Forte é nosso Deus”. O mesmo não acontece
com os outros 37 hinos de Lutero. Seu conjunto de hinos reflete
uma variedade de tópicos. Escreveu hinos sobre os Dez
Mandamentos, o Credo Apostólico e a Oração do Senhor como
reforço para a instrução do catecismo. Outros hinos expressam
musicalmente as grandes doutrinas da fé. Muitos dos hinos, como
os Salmos, louvam a Deus por suas obras. “Caros Cristãos, um e
todos regozijai-vos”, o segundo hino de Lutero é um bom exemplo
disso. A primeira estrofe resume:

Caros cristãos, um e todos, regozijai-vos, com exultação saltai,


Unidos coração e voz, em santo enlevo cantai,
Proclamai as maravilhas que Deus tem feito,
Como sua destra ganhou a vitória,
que a ele custou mui alto preço.
Outros hinos também refletem os Salmos, relatando os gritos de
desespero de Davi. O terceiro hino de Lutero, “Das profundezas eu
clamo a ti”, fala bem a esse rogo. Esse hino rapidamente ficou
associado a um hino fúnebre, servindo até mesmo como um dos
hinos para o serviço funeral do próprio Lutero. Em suas palavras,
Lutero reflete o Salmo 130; a primeira estrofe expressa o sentimento
de desespero:

Das profundezas, eu clamo a ti, Senhor, ouve meu pranto;


Teu gracioso ouvido se inclina a mim, abre-se ao meu lamento,
Pois, se quisesses olhar o erro e o mal que aqui são feitos,
Quem, Senhor, permanecerá diante de ti?
O uso dos Salmos por Lutero antevê a estratégia do pai da
hinologia inglesa, Isaac Watts (1674-1748). Watts utilizou os Salmos
“cristianizando-os”. Seu trabalho de 1719, The Psalms of David
Imitated in the New Testament, explica isso ao completar o
pensamento dos Salmos, fazendo referências implícitas à vinda do
Messias e referências claras a Cristo e à sua obra. Lutero também,
ao seguir o modelo dos Salmos para alguns de seus hinos, enfoca
explicitamente Cristo. No prefácio ao primeiro hinário publicado de
suas obras, Lutero escreve: “Agora podemos nos jactar de que
Cristo é nosso louvor e cântico, dizendo com São Paulo, 1 Coríntios
2.2, que nada conhecemos ou cantamos, exceto Jesus Cristo,
nosso Salvador”. Esse hino não é uma exceção a essa nova ênfase.
Uma vez que Lutero expressa seu desespero, ele também confessa
sua esperança, não por mérito próprio, mas por causa da promessa
da Palavra de Deus:

Com ânsia espero o meu Senhor


Qual triste noite a aurora;
Porque meu Deus é Deus de amor
E o fraco revigora.
Diante do Guarda de Israel,
Deus sábio, justo, bom, fiel,
Minha alma ajoelha e adora.2

Ele oferece a quinta e última estrofe como lembrete para


descansarmos na obra de Cristo e na graça de Deus:3

Ó, como é forte em nós o mal!


Mas é mais forte a Graça;
Se a pena dura é fatal,
Frustrou-lhe Deus a ameaça.
Pois quer salvar o pecador
E para em segurança o pôr
O rumo em luz lhe traça.

Outros hinos bem retratam a facilidade de Lutero como poeta,


como também suas habilidades como artesão de palavras. Nessas
linhas, Lutero gostava muito de paradoxos. Muitas vezes ele repetia
este, atribuído a um monge do século X: “Dizemos ‘No meio da vida,
morremos’. Por outro lado, Deus diz: ‘Não, no meio da morte,
vivemos’”. Então, ele transforma essa aparente contradição em um
hino: “No meio da vida” (1524). Nele, Lutero observa que, enquanto
vivemos, estamos “no abraço da morte”, reconhecimento que visa
refletir nossa condição tanto física como espiritual. Mas, no meio
dessa morte, e, como acrescenta a terceira estrofe, em “meio às
dores do inferno”, podemos encontrar vida. Isso decorre do
paradoxo máximo de que a morte de Cristo nos dá vida. Por causa
do “sangue derramado e precioso” de Cristo, nós temos vida no
meio da morte:

No meio da morte, eis aberta para nós a garganta do inferno!


Quem nos livrará ilesos de tão terrível aflição?
Isso tu fazes, Senhor, somente tu...
No meio das dores do inferno, nossos pecados nos aborrecem.
Para onde fugiremos, onde nos aguarda o descanso?
Em ti, Senhor Cristo, em ti somente.

Esses temas de vida e morte, bem como nossa vitória sobre a


morte mediante a obra de Cristo, enchem as sete estrofes de “Cristo
Jesus jaz nas fortes amarras da Morte”, de 1524. Na primeira
estrofe, Lutero explica:
Cristo Jesus jazia nas fortes amarras da morte, entregue por nossas
ofensas;
Mas agora à destra de Deus ele está e nos traz a vida celeste;
Portanto, regozijemo-no e, mui gratos, a Deus cantemos,
Altos cantos de aleluia. Aleluia!

A segunda dessas sete estrofes de Lutero, que é tipicamente


editada e excluída pelos hinários modernos, relata por que Lutero
exclama “Aleluia!” ao ver a obra de Cristo:

Nenhum homem ainda venceu a morte, todos os filhos dos homens


eram incapazes; O pecado era responsável por isso, pois ninguém
estava isento de culpa; Assim a morte veio cedo, tomou sobre nós seu
poder; E nos prendeu a todos em seu reino.

A quarta estrofe, em geral a segunda nos hinários modernos,


demonstra como Cristo venceu a morte. Além disso, essa estrofe
continua a falar do paradoxo da vida e da morte:

Era estranha e temível luta quando a vida e a morte contenderam;


A vitória ficou com a vida, findando o reinado da morte;
A Santa Escritura o diz claramente, que a morte foi tragada por sua morte,
Seu aguilhão foi perdido para sempre. Aleluia!

As estrofes seguintes relatam como Cristo, cordeiro pascal,


entregou livremente sua vida para nos libertar da morte. Retornando
ao paradoxo, no meio de nossas vidas, existe a morte. No meio da
morte de Cristo, há vida, ou, como disse Lutero com tanta
eloquência: “Seu sangue em nossos umbrais está, a fé mostra isso
diante dos olhos da morte”. Não causa admiração que Lutero
termine cada uma das estrofes desse hino exclamando: “Aleluia!”.
O último hino de Lutero, escrito em 1543, resume bem seu
desejo abrangente ao escrever e cantar hinos, oferecendo louvores
a Deus. “Tu és três em unidade” é a versão alemã de um hino
tradicional vespertino (para o culto da noite), sendo o último registro
de sua produção de hinos. A curta estrofe final anuncia:

A Deus Pai, louvor seja derramado;


A Deus Filho, o único Senhor;
Ao Santo Espírito consolador;
Agora e para sempre, sem fim.

Entre “Uma nova canção aqui começará”, de 1523, e esse hino,


de 1543, Lutero compôs um total de 38 hinos. Também participou da
publicação de hinários. Ele e Johann Walther publicaram o primeiro
hinário alemão, Spiritual Hymn Booklet, Geistliche Gesangbuchlein
(Livreto de hinos espirituais), em 1524, em Wittenberg. A cada ano
depois disso, outro hinário era produzido. Esses hinários também
incluíam as obras de outros.
Tudo começou com Lutero, que efetivamente causou uma
explosão de escrita criativa de hinos. Foi como se seus primeiros
poucos hinos e a publicação do primeiro hinário, com apenas alguns
hinos, tivessem aberto as comportas. No prefácio do primeiro
hinário, Lutero explica: “Com a ajuda de outros, compilei vários
hinos, para que o santo evangelho, que até agora, pela graça de
Deus, surgiu renovado, seja alardeado e espalhado por toda a
terra”. Ele considerava a música uma extensão da pregação do
evangelho. De fato, ele se reconhecia capaz de realizar muito a
serviço da promoção do evangelho. Seus inimigos diziam: “Lutero
causou mais danos com seus cânticos do que com seus sermões”.
Ele escreveu no prefácio de outro hinário: “Perto da Palavra de
Deus, a música merece o mais alto louvor”.
Cantando com Entendimento os Hinos de Lutero
Vivendo cinco séculos depois de Lutero, talvez não entendamos
plenamente quanto devemos a ele e a outros, como Isaac Watts, pai
da hinódia inglesa, que seguiu a liderança de Lutero. Um livro útil
que se tornou padrão para a história da hinódia é de Harry Eskew e
Hugh McElrath: Sing with Understanding (Cantem com
Entendimento). Os autores expressam o propósito do livro na
introdução, observando que ele serve “para contribuir para um canto
congregacional mais significativo dos hinos”. Assim, neste capítulo,
esperamos não somente oferecer algum pano de fundo para os
hinos de Lutero, como também engendrar tanto um entendimento
como o apreço pela “contribuição de Lutero ao canto congregacional
de hinos”.
Lutero reformou totalmente as práticas medievais do culto e do
cântico na igreja. Tirou a liturgia de suas bases malformadas e a
colocou solidamente sobre a obra de Cristo. Escreveu hinos e peças
litúrgicas em linguagem comum, a fim de que os membros da
congregação de Wittenberg, assim como pessoas de toda a
Alemanha, pudessem “cantar com entendimento”. Embora talvez
não reconheçamos isso, ao nos levantarmos todo Dia do Senhor
para entoar louvores a Deus, devemos muito a Martinho Lutero.
Além disso, seus hinos, a exemplo de seus outros escritos,
suportaram a prova do tempo. Alguns deles há muito foram
removidos de nossos hinários, mas outros permanecem
proeminentes. Mas, em todos eles, encontramos palavras de
desafio e consolo, instrução e encorajamento. Seu legado de hinos
se estende para muito além de uma contribuição ao culto na Igreja
do Castelo de Wittenberg e, ainda hoje, continua ministrando para a
igreja.
Nota sobre as Fontes
Um tratamento compreensivo dos hinos de Lutero se encontra, em
língua inglesa, em Luther’s Works: v. 53, Liturgy and Hymns, Ulrich
S. Leupold. Aqui o leitor encontra uma discussão completa das
obras de Lutero sobre as missas em latim e alemão, bem como uma
breve introdução e as letras completas na tradução inglesa de todos
os 38 hinos de Lutero. Os hinários com maior número de hinos
compostos por Lutero são, naturalmente, aqueles que servem às
diversas igrejas luteranas. O Hymnal Companion to the Lutheran
Book of Worship (1981), de Marilyn K. Stulken, oferece tanto
discussões técnicas como históricas das contribuições de Lutero à
hinódia. Dois livros úteis sobre a hinódia em geral são, de Donald
Hustad, Jubilate! (1981), e, de Eskew e McElrath, Sing with
Understanding (1980).
2. No HE, corresponde à quarta estrofe. (Nota da Tradutora.)
3. No HE, é a terceira estrofe. (Nota da Tradutora.)
Capítulo 11
AS MARCAS DA VERDADEIRA IGREJA
Sobre os Concílios e a Igreja

“Podemos abrir mão de tudo, exceto da Palavra.”


MARTINHO LUTERO, 1523

E
M 5 DE OUTUBRO DE 1544, a igreja nova do castelo de
Torgau teve seu culto de dedicação. Leonard Koppe, o
mercador de peixe que, junto com Lutero, possibilitou a fuga
de 12 freiras do convento, vivia ali. Desde 1517, também funcionava
como um centro dos apoiadores de Lutero e uma fortaleza para
suas ideias. Agora, era a primeira cidade a construir uma igreja
evangélica ou luterana. Naturalmente, só uma pessoa seria a mais
adequada para pregar a mensagem de sua dedicação. Assim, após
algumas poucas palavras de saudação, Martinho Lutero declarou:
“O propósito desta Nova Casa é que nada mais aconteça nela
exceto que nosso Senhor fale conosco através de sua Santa
Palavra e nós respondamos a ele por meio de oração e louvor”.
Para Lutero, é nisso que consistem a missão e o propósito da igreja.
O Ingrediente que Faltava
Sempre que a igreja se reúne, escreveu Lutero, a Palavra de Deus
precisa ser pregada ou, então, os cristãos nem deveriam reunir-se.
Claramente em resposta à igreja medieval, que havia perdido a
Palavra de Deus, Lutero colocava a Palavra no coração de sua
prática e de sua vida. A Palavra de Deus era, para ele, a verdadeira
marca da igreja. De fato, em 1527 ele declarou: “A única marca
perpétua e infalível da igreja sempre foi a Palavra”.
Ao desenvolver sua doutrina da igreja, ele também expandiu sua
visão acerca das marcas da igreja. Tão cedo quanto 1520, ele
passou de enfatizar somente a Palavra como a marca para incluir os
dois sacramentos: batismo e Ceia do Senhor. Até 1539, em Sobre
os concílios e a igreja, expandiu a lista para incluir mais quatro
marcas. Em 1541, ele ampliou ainda mais essa lista, incluindo nada
menos que dez marcas que distinguem a verdadeira igreja. Não
fosse por sua morte em 1546, talvez sua lista aumentasse ainda
mais. Essa discussão sobre as marcas da verdadeira igreja era,
para Lutero, essencial. Em certo sentido, toda a sua briga com
Roma pode ser resumida pela única pergunta que ele levanta:
Como é a verdadeira igreja? Em seu ponto de vista, Roma se
desviara tanto da marca que não restava nenhum vestígio da
verdadeira igreja. Portanto, não seria possível reformá-la por dentro.
Foi preciso fazer uma quebra total e construir uma igreja totalmente
nova. Conquanto o coração da igreja estivesse morto, Lutero
encontrou muitas coisas na prática da igreja que mereciam ser
recuperadas e, por sua vez, ele instituiu em sua igreja.
No entanto, nem mesmo essas práticas foram tomadas por
empréstimo sem que houvesse sérias modificações. A discussão de
Lutero acerca da Ceia do Senhor, já tratada, demonstra exatamente
isso. Seu entendimento da confissão, que acabamos de ver no
capítulo anterior, em relação ao Catecismo menor, espelha como ele
transformava antigas práticas de modo a que refletissem melhor o
ensinamento bíblico. Dada a sua insistência no sacerdócio de todos
os crentes, o fato de ele tolerar a confissão dos pecados a um
sacerdote talvez nos surpreenda e confunda.
Olhando para seu entendimento acerca da confissão, porém,
vemos que Lutero e Roma estavam em mundos bem afastados.
Esse exemplo ilustra como Lutero adotou as práticas da igreja
medieval enquanto, simultaneamente, as reconstruiu para que
fossem um melhor retrato bíblico da igreja. E, além dessas práticas
tristemente abusivas, a igreja romana também havia perdido o
principal ingrediente, a pregação da Palavra, que obscureceu, se
não eliminou por completo, a doutrina da justificação pela fé. Assim,
uma vez restaurado o centro da igreja, havia muito trabalho a ser
feito quanto ao restante da estrutura. O legado de Lutero à igreja
inclui um material que visa não apenas reconstruir o centro, como
também a periferia. Não nos surpreende que seus escritos sobre a
igreja encham literalmente muitos volumes. Para nossos propósitos,
examinaremos principalmente duas obras, Concernente à ordem do
culto público (1523) e Sobre os concílios e a igreja (1539), para
ouvirmos a instrução de Lutero quanto à forma que a igreja deve ter
e o que deve fazer.
Reunião às Cinco da Manhã
O culto na igreja provê um lugar útil para começarmos. Lutero
apresentou muitas inovações nesses cultos. O canto
congregacional, a pregação, cantar em língua comum, em vez de
fazê-lo exclusivamente em latim, e a pregação da Palavra – todos
costumes que, hoje, são tidos como usuais – eram praticamente
desconhecidos até que Lutero os trouxesse para dentro da igreja.
Antes dele, alguns já haviam tentado instituir essas reformas. Por
exemplo, John Hus tornou o canto congregacional parte regular da
prática da igreja na Capela de Belém, em Praga. Porém, por causa
disso, foi condenado como herege e essa prática não durou muito.
Além disso, conforme Lutero viria a reconhecer, suas novas práticas
não eram realmente inovações, mas um retorno aos modelos
bíblicos. Devemos mencionar que, embora Lutero defendesse o uso
da língua comum no culto na igreja, não proibiu totalmente o uso do
latim. De fato, ele desejava que uma parte do culto incluísse grego e
hebraico. Embora Lutero quisesse implantar um culto
multilinguístico, não podia fazer isso. Também desejava que a igreja
se reunisse às quatro da manhã. Não conseguiu colocar em prática,
mas logrou convencer a congregação de Wittenberg a se reunir às
cinco da manhã. Aparentemente, levantar cedo era uma das poucas
práticas da vida do monastério que Lutero queria manter. Assim, ele
não somente prescreveu esse culto bem cedo pela manhã para os
domingos, como também queria que isso se tornasse uma prática
diária.
Aos domingos, ele marcava dois cultos: o primeiro às cinco da
manhã e o segundo, o “culto tardio”, às nove. Lutero advertiu as
famílias de Wittenberg a dedicarem as tardes do domingo ao
catecismo. Essas ideias são extraídas de seu breve texto de 1523,
Concernente à ordem do culto público. O culto da igreja que ele
delineia nesse texto retroage ao “início autêntico do cristianismo”.
Nos dias de Lutero, porém, o culto na igreja se corrompera. Ele
identifica três abusos específicos, incluindo, em primeiro lugar, o
silêncio da Palavra de Deus; em seguida, a introdução de lendas e
fábulas não cristãs no lugar da Palavra de Deus; e, finalmente, a
visão da missa como uma obra pela qual é possível merecer a graça
de Deus e ganhar a salvação. “A fim de corrigir esses abusos”,
propõe Lutero, “uma congregação jamais deve reunir-se sem a
pregação da Palavra de Deus e a oração”. Lutero propõe ainda que
a pregação da Palavra de Deus inclua a Bíblia inteira. De fato, ele
sugere que os diversos livros da Bíblia sejam apresentados até que
“a Bíblia inteira tenha sido lida”. Tudo isso, segundo ele, produz o
seguinte resultado: “Os cristãos serão, por treino diário, proficientes,
habilidosos e bem versados na Bíblia, pois é assim que os cristãos
autênticos eram formados em tempos antigos, e também podem ser
hoje”.
No desenrolar das direções para o culto, Lutero tem o cuidado de
evitar estabelecer uma programação dogmática. No entanto, sugere
que o culto comece com a pregação, ou com a leitura e a
interpretação da Bíblia. Acrescenta que isso deve durar cerca de
meia hora. Lutero não defende sermões extensos e enfadonhos.
Numa conversa à mesa sobre a pregação, ele brinca: “Quando não
tenho mais nada a dizer, paro de falar”. Depois disso, Lutero
recomenda: “A congregação deve unir-se em agradecimento a
Deus, a fim de louvá-lo e orar pelos frutos da Palavra”. Isso envolve
o cântico de salmos, hinos e antífonas – e cantos litúrgicos entoados
em forma de resposta. Todo o culto, observa Lutero, deve encerrar-
se em uma hora ou durar o tempo que parecer desejável; não
devemos sobrecarregar as almas ou cansá-las. “Esse era o caso
nos monastérios e conventos, onde as pessoas levavam as cargas
como se fossem mulas.”
A congregação deve reunir-se não apenas de manhã cedo, como
também ao entardecer. Lutero sugere que a ordem do culto para a
manhã seja também seguido à noite. Mais uma vez, ao prescrever
limites, ele evita estabelecer regras rígidas para uma ordem de
culto. Em vez disso, oferece uma abordagem flexível, “desde que a
Palavra de Deus receba plena predominância de elevar e reanimar
as almas para que elas não fiquem exauridas”. Além dos cultos de
manhã e ao entardecer, Lutero também sugere a opção de um culto
após o almoço.
Quando as pessoas vão à igreja três vezes ao dia, é preciso
perguntar se lhes sobra tempo para realizar outras coisas.
Precisamos lembrar, porém, que o modelo medieval incluía missa
diária e serviço vespertino. Além disso, temos de acrescentar que
Lutero esperava que nem todo mundo poderia frequentar todos
esses cultos. Finalmente, o reformador cria que as pessoas
deveriam frequentar “voluntariamente, e não com relutância, por
constrangimento ou para ganhar alguma recompensa, temporal ou
eterna, mas somente para a glória de Deus e o bem do próximo”.
Lutero esperava, porém, que toda a congregação se reunisse aos
domingos. Avisava ainda que preferia que a Ceia do Senhor fosse
administrada somente aos domingos, substituindo a missa diária
pela pregação da Palavra. Conforme observa: “Que tudo seja feito
para que a Palavra tenha livre curso, em vez da conversa fiada e de
ruídos sem sentido, os quais têm sido a regra até agora”. Ele
termina sua breve discussão com uma aplicação pitoresca da
história de Maria e Marta (Lucas 10). Dessa história, ele conclui que
“apenas uma coisa é necessária”, qual seja, “sentar-se aos pés de
Cristo e ouvir sua palavra diariamente. Essa é a melhor parte a
escolher, e jamais nos será tirada. É uma Palavra eterna. Todo o
resto vai passar, não importa quanto cuidado e quanta preocupação
isso dê a Marta”. Ao refletirmos sobre o conselho de Lutero quanto
ao culto da igreja, talvez decidamos não segui-lo, especialmente em
relação ao horário das reuniões, às cinco da manhã. Porém, sua
ênfase coerente e completa sobre a centralidade da Palavra será
bem recompensada se for seguida.

Figura 11.1 Marcas da Verdadeira Igreja


“A única marca perpétua e infalível da igreja sempre foi a Palavra.” Martinho
Lutero, 1527

1520 1539 1541


Sobre o papado Sobre os Concílios e a Contra Hanswurst
em Roma Igreja
1 A Palavra de 1 A Palavra de Deus 1 Ofício da pregação e Palavra
Deus de Deus
2 Batismo 2 Batismo 2 Batismo
3 A Ceia do 3 A Ceia do Senhor 3 A Ceia do Senhor
Senhor
4 O Poder das Chaves 4 O Poder das Chaves
5 Chamada e Ordenação 5 Credo Apostólico
de Pastores
6 Oração, Louvor e 6 Oração do Senhor
Gratidão a Deus
7 Suportar a Cruz e as 7 Honra às Autoridades
Lutas Espirituais Temporais
8 Em Louvor do Matrimônio
9 Sofrimento da Verdadeira
Igreja
10 Não Buscar Vingança
quando For Perseguido

Muitas coisas podem distrair a igreja em qualquer época; a igreja


de nossa era não é uma exceção. Como Lutero adverte: “Podemos
abrir mão de tudo, à exceção da palavra”. A Palavra não apenas é
central ao culto na igreja, como permanece como uma marca crucial
da verdadeira igreja. Essa discussão da verdadeira igreja ocupa boa
parte dos escritos de Lutero. Nas páginas seguintes, examinaremos
melhor seus pensamentos quanto a essa questão.
As Marcas da Verdadeira Igreja
Até 1539, poucas décadas se haviam passado desde que Lutero
lançara seu primeiro ataque contra a igreja. Ele continuava a
acreditar que o problema de Roma era, enfim, uma questão de
autoridade. Para Roma, a autoridade deriva da igreja como
intérprete e guardiã da Escritura. Os concílios e os papas – ou, em
outras palavras, a tradição – ofereciam uma direção para a igreja.
Para Lutero, contudo, a autoridade reside somente na Escritura
(sola Scriptura). Essa era a sua posição ao debater John Eck em
Leipzig, em 1519, e na Dieta de Worms, em 1521, e essa
permaneceu como a sua posição durante toda a vida. Vemos,
claramente, esse ponto em seu tratado Sobre os concílios e a igreja,
de 1539. Uma grande obra composta por três partes, esse volume
revela os problemas inerentes a simplesmente retornar aos pais da
igreja a fim de reformá-la. Também destaca Lutero mexendo com a
história da igreja enquanto discute os antigos concílios ecumênicos
e apresenta as marcas da verdadeira igreja. Na primeira parte,
Lutero enfrenta o desafio humanista de não começar uma igreja
totalmente nova, mas de simplesmente retornar à igreja de seus
primeiros pais. Lutero expressa o ponto atemporal humanista da
seguinte forma:

Existem (em minha opinião) diversas almas boas, piedosas, que


gostariam de ver a igreja reformada segundo o modelo dos mesmos
concílios e pais, pois também eles estão cônscios de que a presente
posição da igreja no papado é deploravelmente contrária (conforme é
evidente) aos modos dos concílios e dos papas.

Porém, ele conclui que essa abordagem não seria suficiente. Em


primeiro lugar, Lutero ressalta que os pais da igreja, como também
os concílios, discordam e não falam com uma só voz sobre muitas
questões. Segundo, e mais importante, ele nota que os próprios pais
apontavam, além de seus trabalhos, para a Escritura. Ora, sua
intenção não é ignorar o valioso ensinamento que se possa obter
pelo estudo dos pais da igreja e dos concílios; ele simplesmente
argumenta que a igreja precisa ir além, para as próprias Escrituras,
a fim de alcançar uma verdadeira reforma.
O apreço de Lutero pela história da igreja fica claro na segunda
parte do tratado, quando ele faz uma análise dos grandes concílios
da igreja, a começar pelo Concílio de Jerusalém, conforme relatado
em Atos 15, e terminando com o Concílio da Calcedônia, em 451.
Nesse ínterim, incluía Niceia (325), Constantinopla (381) e Éfeso
(431). Seu interesse pela história da igreja visava tanto ao
enriquecimento pessoal como à sua autopreservação. Nos primeiros
debates com Cajetan e Eck, como também nas diversas guerras de
panfletos, Lutero era acusado de estar no contrapasso da tradição
da igreja. Isso o levou a estudar a tradição, e ele descobriu, embora
seus opositores romanos nem sempre o admitissem, que, em
muitos aspectos, era ele quem estava caminhando conforme o
passo, enquanto os outros estavam fora da trilha. Lutero usou seu
conhecimento de história eclesiástica nessa obra para demonstrar
que os concílios protegiam a igreja das heresias cristológicas. Eles
não dependiam da própria autoridade, mas da autoridade da
Escritura.
Lutero volta, então, sua atenção à igreja na terceira parte do
tratado. Começa indagando o que significa a palavra igreja. Então,
responde, jogando com o significado da palavra em grego,
assembleia, ou seja, um povo chamado para fora. Ele observa que
os cristãos “são um povo com chamado especial, e, portanto, não
apenas ecclesia, ‘igreja’, ou ‘povo’, mas também sancta catholica
christiana, ou seja, ‘um povo cristão santo que crê em Cristo”. Aqui,
Lutero apela para as palavras do Credo apostólico: “Creio... na
santa igreja católica”, como também ao ensinamento de Agostinho
sobre as quatro marcas da verdadeira igreja, como sendo una,
santa, universal ou católica e apostólica. O ponto de vista de
Agostinho se desdobra, contudo, em uma questão. Ainda
permanecemos avaliando no que constitui a única igreja santa,
universal e apostólica. Lutero, talvez reconhecendo o que falta
nessa discussão de Agostinho acerca das marcas da verdadeira
igreja, oferece uma prova séptupla e decisiva para determinar se
dada igreja é, de fato, o povo santo de Deus.
A primeira marca, como poderíamos bem imaginar, concerne à
pregação da Palavra. Lutero vai além, exclamando: “Ora, onde quer
que virdes ou ouvirdes esta palavra sendo pregada, crida,
professada e vivida, não duvideis de que o verdadeiro ‘povo santo e
cristão’ esteja ali”. Essa “principal santa possessão” da igreja, Lutero
observa, “purga, sustém, nutre, fortalece e protege a igreja”. As
segunda e terceira marcas são os sacramentos do batismo e a Ceia
do Senhor, respectivamente. A quarta marca de Lutero pode fazer
com que pausemos quando ele expressa: “Em quarto lugar, o povo
santo de Deus, ou seja, os cristãos, são reconhecidos pelo ofício
das chaves exercido publicamente”.
Talvez isso nos soe demasiadamente católico. Mas é preciso
entender o que Lutero pretende com isso. Em primeiro lugar, não
está dizendo que o poder das chaves seja como aquilo que a igreja
romana entende como o poder do papa. “As chaves não pertencem
ao papa (pois ele mente)”, observa Lutero, “mas à igreja, ou seja, ao
povo de Deus”. Lutero, então, define as chaves como confissão e
absolvição do pecado, destacando: “Conforme Cristo decreta em
Mateus 18, se um cristão pecar, deverá ser repreendido; se ele não
se corrigir, deve ser preso no pecado e lançado fora. Se, contudo,
ele corrigir seus caminhos, deverá ser absolvido. Esse é o ofício das
chaves”.
Em relação à quinta, “a igreja é reconhecida externamente pelo
fato de que consagra ou chama os ministros, ou possui ofícios que
ela deverá administrar”. Lutero dedica muito tempo aqui criticando a
visão romana do clero, incluindo a questão do celibato. Ele conclui
que Roma havia ofuscado o ensinamento bíblico. Aqui ele também
contradiz certas tendências anabatistas ou fanáticas que queriam
eliminar totalmente o clero em uma reação contra Roma. Conforme
Lutero declara: “A igreja não pode ficar sem esses bispos, pastores,
pregadores ou sacerdotes; e, em contrapartida, esses não podem
existir sem a igreja”.
A sexta marca trata de “oração, louvor público e ações de graças
a Deus”. Ele expõe os diversos modos como essa marca se
manifesta:

Onde virdes e ouvirdes a Oração do Senhor orada e ensinada; ou os


Salmos ou outros cânticos espirituais cantados, de acordo com a
Palavra de Deus e a verdadeira fé; também o Credo [Apostólico], os
Dez Mandamentos e o catecismo usado publicamente, podeis estar
seguros de que um povo de Deus, santo e cristão, está presente.

A sétima e última marca da verdadeira igreja envolve o que


Lutero chamou de “a santa possessão da sagrada cruz”. Com isso,
ele quer dizer o reconhecimento de que o sofrimento faz parte da
vida cristã. Conforme ele escreve, os membros da verdadeira igreja
“têm de suportar todo infortúnio e perseguição, toda espécie de
provações e males vindos do diabo, do mundo e da carne”. Esse
sofrimento “mortifica o velho Adão, ensinando-lhe paciência,
humildade, mansidão, louvor e gratidão”. Ainda nos capacita a
“aprender a crer em Deus, confiar nele, amá-lo e colocar nele nossa
esperança”. Além do mais, o sofrimento permanece em forte
contraste ao papado e aos excessos de Roma.
Essas sete marcas são mais que uma prova decisiva; elas
servem também como alvo da igreja. Conforme Lutero nos desafia:
“Constantemente, estamos lutando para atingir o alvo, sob sua
redenção ou remissão dos pecados, até que nós também sejamos,
um dia, perfeitamente santos e não precisemos mais do perdão”.
Lutero dá aos cristãos que desejam ser um ajuntamento de povo
santo a igreja. Essas sete marcas representam bem o ensinamento
de que os cristãos não são apenas um povo santo, como também
um povo peculiar – povo que pode ir contra a natureza comum, que
se destaca por seu compromisso com princípios que não derivam do
que o cerca, mas da Palavra de Deus.
Lutero acrescenta mais várias marcas da verdadeira igreja em
um tratado de 1541, curiosamente intitulado: Contra Hanswurst. A
palavra alemã Hanswurst é uma figura carnavalesca ou um palhaço.
Inicialmente, essa palavra foi usada em sentido depreciativo
referindo-se à relação de Lutero com João Frederico, Eleitor da
Saxônia. O duque Henrique de Braunschweig/Wolfenbuttel,
comprometido com a posição católica e bem íntimo do imperador
Carlos V, opusera-se à Reforma e a Lutero desde o começo.
Contendia continuamente contra os outros governantes alemães em
favor das terras católicas. Em 1540, fez uma crítica a João
Frederico, na qual tentou em vão colocar João Frederico contra
Lutero ao acusar falsamente esse último de haver dito que o
primeiro era seu Hanswurst, ou seja, seu palhaço ou bobo da corte.
De início, Lutero relutou em dar uma resposta, dizendo: “Não creio
que esse sujeito valha uma sílaba de resposta”. No entanto, Lutero
deu-se conta da necessidade de dar uma resposta ao duque
Henrique. Então, escreveu uma longa critica, virando a mesa e
referindo-se ao duque Henrique como o verdadeiro Hanswurst.
Lutero dedica parte considerável desse trabalho a um ataque
implacável ao duque Henrique, apontando seus erros. Mas, então,
passa a usar a plataforma oferecida por essa exposição para
abordar, mais uma vez, um de seus principais temas: as marcas da
verdadeira igreja conforme demonstradas na Bíblia versus a então
atividade da Igreja de Roma. Lutero admite que a igreja católica de
seus dias veio da antiga e verdadeira igreja. Também reconhece
que conta com muitas das mesmas práticas que ele rotula como
marcas da verdadeira igreja, como batismo, Ceia do Senhor e
Credo. Então, ele entoa, do seu jeito inimitável: “Mas vós não sois
mais a igreja, ou membros da igreja, pois nessa santa igreja de
Deus estais construindo vossa própria igreja apóstata, bordel do
diabo, com prostituição sem limites, idolatria e inovações”. Aqui,
Lutero recorre à ironia ao fazer referência às práticas da igreja
católica, que, embora com séculos de idade, é como nova.
Seu designativo da igreja católica como prostíbulo, referência não
tão velada a Apocalipse 17, derrama-se sobre as páginas desse
tratado. Lutero também usa esse tratado para promover como deve
ser a verdadeira igreja. Assim, ele acrescenta mais três marcas:
honra às autoridades temporais, louvor ao matrimônio e não buscar
vingança por meio de perseguição. A primeira marca certamente se
deve ao contexto do comentário de Hanswurst pelo duque Henrique.
A segunda marca também pode ser incluída pelo contexto, pois
diziam que o duque Henrique assumiu uma amante, relato que se
revelou verdadeiro. A marca final deriva da situação histórica mais
ampla, pois os seguidores de Lutero continuaram experimentando
perseguição. Porém, ele ainda persiste em enfatizar a pregação da
penúltima marca da verdadeira igreja. “A igreja”, Lutero lembra,
“deve ensinar somente a Palavra de Deus”. Ele, então, aponta para
as características que tal ensinamento produz, ou seja, humildade e
reverência. E conclui: “O verdadeiro sinal da santa igreja sempre foi
a humildade e o temor na Palavra de Deus”.
Por meio dessa discussão das marcas da verdadeira igreja,
Lutero entrou em um debate histórico que, datando ainda de
Agostinho, prolonga-se até os dias atuais. No contexto da Reforma,
a insistência de Lutero na centralidade da Palavra foi seguida por
John Knox na Escócia e por João Calvino em Genebra. Calvino,
como Lutero, acrescentou os sacramentos em um total de duas
marcas. Knox acrescentou os sacramentos, mas via também a
disciplina eclesiástica como uma marca, criando uma lista de três
marcas da verdadeira igreja. Mais tarde, os puritanos da Nova
Inglaterra seguiram a ênfase de Lutero na centralidade da pregação
da Palavra. Eles construíam suas igrejas de modo que as pessoas,
ao entrarem, teriam imediatamente a atenção atraída para o púlpito.
Isso tinha o propósito de ressaltar a centralidade da pregação.
Retornando ao reformador e ao seu contexto: Lutero advertiu que
o problema de Roma não era que faltassem nela as verdadeiras
marcas, mas que a prática dessas marcas fora pervertida pelo
acréscimo das tradições humanas. Em consequência, ele lembra,
continuamente, à sua geração que deve manter a Escritura como o
cerne, enfatizando que isso valeria também para que as gerações
futuras não fossem vítimas da mesma tentação de desalojar a
pregação da Palavra. Seguindo o conselho de Lutero, ao olharmos
para a Escritura, vemos as mesmas palavras na admoestação de
Paulo ao jovem discípulo, Timóteo, em 2 Timóteo 4.2: “Prega a
Palavra”. Esse conselho é tão verdadeiro hoje quanto foi na geração
de Lutero.
Nota sobre as Fontes
Os escritos de Lutero que se voltam exclusivamente à natureza da
igreja e à sua prática são coligidos, em língua inglesa, em Luther’s
Works: vv. 39-41, Church and Ministry I–III. On the Pope in Rome se
encontra no volume 39, pp. 49-104; On the Councils and the
Church, no v. 41, pp. 3-178; e Against Hanswurst, no v. 41, pp. 179-
256. Uma introdução proveitosa de Eric W. Gritsch acompanha cada
um desses textos. Timothy F. Lull apresenta um bom número de
seleções relacionadas ao pensamento de Lutero sobre a igreja,
incluindo a parte III de On the Councils and the Church em Martin
Luther’s Basic Theological Writings (1989), pp. 414–575.
Capítulo 12
O PASTOR RELUTANTE
Os Sermões

“O mundo nos verá a nós, pregadores, como tolos e indignos, o que


abre a porta para Deus ser visto como justo, sábio e misericordioso.”
MARTINHO LUTERO

P
PERCEBEMOS QUE LUTERO era um prolixo escritor de
sermões ao considerar as estatísticas que se seguem.
Sobrevivem pouco mais de duzentos manuscritos de
sermões de Lutero relativos ao período de 1510 a 1522. Entre 1522
e 1546, vários estudiosos estimam que Lutero tenha pregado mais
de 5.800 sermões. Desses quase 6 mil sermões, manuscritos
inteiros, notas de estenógrafos e textos em rascunho, sobreviveram
cerca de 2 mil.
A edição Weimar das obras de Lutero, a edição alemã autoritativa
e mais completa, dedica 16 volumes exclusivamente aos sermões,
também acrescentando material de sermões em outros lugares da
edição. Em Conversas à mesa, Lutero explica como ele produzia
tantos sermões: “Com frequência, eu pregava quatro sermões em
um só dia. Durante toda a Quaresma, preguei dois sermões e dei
uma palestra a cada dia”. Ele foi chamado por muitos como um dos
melhores pregadores de todos os tempos. Embora alguns entendam
que essa designação é controversa, poucos duvidam de que ele,
ainda hoje, esteja entre os mais prolíficos pregadores da história.
Lutero fez muitos sermões na Igreja do Castelo em Wittenberg.
Além disso, pregou muitos mais em seu lar, o antigo Claustro Negro.
Quando viajava, sempre lhe pediam para pregar. Em sua última
viagem a Eisleben, ele pregou quatro vezes em apenas alguns dias,
a despeito da doença que tirou sua vida, poucos dias depois.
Primeiro, começou a pregar regularmente no Claustro Negro quando
foi nomeado subprior do monastério, em 1512. Talvez tenha
pregado antes desse tempo, durante seus anos no monastério de
Erfurt. A maioria dos estudiosos data seu primeiro sermão em 1510.
Logo após Lutero ter começado a pregar no Claustro Negro,
Frederico, o Sábio encorajou o conselho da cidade de Wittenberg a
designá-lo como sacerdote da paróquia para a Igreja do Castelo.
Lutero manteve essa posição oficialmente até 1522, quando, com
alegria, passou o título e as principais responsabilidades ao amigo,
Johannes Bugenhagen. Na prática, porém, Lutero continuou
pregando com bastante frequência, em geral três a cinco vezes por
semana.
Lutero tornou-se pastor com certa relutância. Ao refletir sobre seu
chamado para pregar, referiu-se ao chamado de Moisés. Lutero
menciona a relutância de Moisés, mas não com vistas a criticá-lo.
Na verdade, Lutero exclama: “Se eu estivesse na situação de
Moisés, teria contratado um advogado para registrar uma queixa
contra Deus”. Em outro lugar, ele acrescenta: “Deus teve de pedir a
Moisés seis vezes. Ele também me levou a essa posição da mesma
forma”. Ao olhar para trás, sobre seu tempo como ministro, porém,
Lutero confessa: “Quando penso naquele que me chamou, eu não
aceitaria o mundo inteiro para deixar de ter começado como
ministro”. Como pastor, ele entendia que deveria manter-se focado
em sua tarefa. Certa vez, definiu ministro como “alguém colocado na
igreja para a pregação da Palavra e a administração dos
sacramentos”. Para ele, pregar a Palavra significava pregar Cristo.
Mais adiante, examinamos mais de perto os pensamentos de Lutero
sobre o ministério pastoral e a tarefa da pregação. E, dos mais de 2
mil manuscritos de sermões, examinaremos apenas um sermão
representativo para ter uma ideia do que os residentes de
Wittenberg gozavam com regularidade.
Lutero e os pregadores e a pregação
Lutero e seus ouvintes nem sempre desfrutavam de uma relação
harmoniosa. Em um sermão de 1530, Lutero expressou sua
frustração pela indiferença que eles demonstravam por suas
exortações. Em seu linguajar típico, ele disse que continuar
pregando para eles na aparente indiferença em que se encontravam
“me irrita”. Sua frustração aumentou tanto naquele ano que se
recusou a pregar na igreja do Castelo por um bom tempo. Numa das
passagens de Conversas à mesa, ele observa que a maioria dos
ouvintes de sermões são epicurianos: gostam das pregações que os
ajudem a viver com facilidade, mas a pregação que os desafia nem
sempre é bem-vinda. Essas desilusões levaram Lutero a escrever:
“Se eu fosse escrever sobre os fardos da pregação conforme as
tenho conhecido e experimentado, assustaria a todos e os faria
desistir”.
No entanto, não era uma estrada inteiramente pedregosa.
Quando Lutero fez sua “greve” de pregação, logo ouviu muita gente
clamando para que retornasse e, então, mais uma vez, ele
ascendeu ao púlpito. Com frequência, Lutero refletia sobre a
natureza da pregação e dos pregadores. Pensava que os sermões
deveriam ser inteligíveis e suportáveis, com vistas ao auditório.
Muitas vezes advertiu contra pregações enfadonhas: “Não
atormentes teus ouvintes nem os mantenhas sentados na igreja
com o tédio de longos sermões. Pregações assim roubam o prazer
do púlpito”. No breve texto “Concernente à ordem do culto público”,
conforme vimos mais cedo, Lutero sugeria que o culto durasse
apenas uma hora, “e a pregação, a metade desse tempo, para “não
sobrecarregar as almas ou deixá-las exaustas”. Também instruía
seus alunos a “pregar sobre coisas adequadas para determinados
lugares e determinadas pessoas”. Ele lembra, jocoso, que certa vez
ouviu “um pregador fazendo uma exortação ao casamento para
umas senhoras idosas numa enfermaria”. Lutero também defendia
uma pregação espirituosa. Com frequência, ele revivia personagens
e histórias bíblicas para a congregação de Wittenberg e na
Lutherohalle.
O historiador Roland Bainton chama a atenção para um desses
sermões memoráveis sobre o nascimento de Cristo e o respectivo
texto: “Não havia lugar para eles na hospedaria”. Lutero provocava
seus ouvintes repreendendo os donos de hospedarias, como
também Belém em geral, por não reservarem um lugar para Cristo.
Seus ouvintes, sem dúvida, balançavam a cabeça, anuindo. Lutero
continuava: “Há muitos de vós que pensais: ‘Se eu estivesse ali!
Como eu teria atendido rapidamente para ajudar o Infante! Teria
lavado as suas fraldas’”. Então, desafiava: “Sim, vós teríeis. Dizeis
isso porque sabeis quão grande Cristo é, mas, se estivésseis lá
naquele tempo, não teríeis feito nada melhor do que o povo de
Belém”. Então, ilustrava na prática: “Tendes Cristo em vosso
próximo. Deveis servi-lo, pois o que fazeis ao próximo necessitado,
estais fazendo para o próprio Cristo”.
De modo similar, Lutero recontava a história de Gênesis 22 e a
ordem a Abraão para sacrificar Isaque. Notava que “Abraão foi
mandado por Deus a sacrificar o filho de sua velhice por milagre, a
semente pela qual ele seria pai de reis e de uma grande nação.
Abraão empalideceu. Não apenas perderia seu filho, como também
Deus parecia ser mentiroso”. Lutero continuava a história,
descrevendo vividamente os detalhes. Então, chegava ao clímax:

O pai ergueu o cutelo. O rapaz descobriu o pescoço. Se Deus tivesse


dormido por um só instante, o rapaz estaria morto. Eu não poderia ter
assistido. Não sou capaz de seguir isso em meus pensamentos. O
menino era como uma ovelha indo para o matadouro. Nunca na história
houve tamanha obediência como esta, a não ser em Cristo. Mas Deus
vigiava, como também todos os seus anjos. O pai levantou a faca, o
filho não estremeceu. O anjo clamou: “Abraão, Abraão!”. Eis como a
majestade divina está à mão na hora da morte. Dizemos: “No meio da
vida, morremos”. Deus responde: “Não, no meio da morte, vivemos”.

Em outra ocasião, ele usou uma ilustração que a maioria de seus


ouvintes podia entender:

Observe como a galinha cacarejando age naturalmente; quase


nenhuma outra criatura é tão ansiosa em relação a seus filhotes. Ela
muda a voz natural e assume uma voz lastimável de queixa; ela
procura, raspa e cacareja, chamando os pintinhos; quando encontra
qualquer coisa, ela mesma não come, mas deixa para os pequeninos;
com toda força, ela luta e reclama contra o urubu e abre suas asas,
disposta a deixar os pintinhos ficarem debaixo e por cima dela,
alegremente deixando-os ficar ali. Esse é um lindo retrato.

Em seguida, ele ilustra a intensa provisão e proteção em relação


à atividade de Cristo para com os crentes:
Assim é também com Cristo. Ele muda a voz para um tom sofrido,
suspira por nós e prega arrependimento, apontando a todos nossos
pecados e misérias, cava as Escrituras, chamando-nos para si,
permitindo-nos comer; ele espalha sobre nós suas asas com toda a sua
justiça, graça e merecimento, tomando-nos com amor sob sua
proteção.

Imagine o impacto dessa pregação. Certa vez, um estudante à


sua mesa perguntou-lhe qual era o segredo de uma boa pregação.
Lutero respondeu: “O primeiro mandamento: ‘Eu sou o Senhor, teu
Deus’. Deus é firme e não se curva aos ímpios; Deus é bondoso e
misericordioso para com os justos. Isso explica por que pregamos o
fogo do inferno aos orgulhosos e altivos, paraíso aos piedosos,
repreensão aos maus, conforto aos justos”. E continuou com uma
ilustração sagaz: “Temos diferentes ferramentas em nossas oficinas
de trabalho. Algumas facas cortam melhor do que outras”. Lutero
tinha aptidão para saber qual ferramenta deveria ser usada e
quando deveria usá-la. Além de revelar o segredo da boa pregação,
Lutero também delineou um método para a pregação efetiva:

Primeiro, é preciso levar o assunto para um foco claro. Segundo, deve-


se definir visualmente esse assunto, fazendo-o caminhar, para que os
homens vejam-no na prática. Terceiro, é preciso mostrar que tal
preocupação é escriturística, o que confere autoridade. Quarto, devem-
se dar exemplos que expliquem e fiquem gravados na mente sobre
aquilo que se está pregando. Quinto, é preciso torná-los estéticos pelo
uso de figuras e metáforas. Sexto, devem-se advertir os inconscientes,
despertar os sonolentos e sacudir os desobedientes.

Acima de tudo, Lutero ensinava que a pregação deve exaltar a


Palavra. “Um bom pregador”, observou certa vez, “investe tudo na
Palavra”. Conforme lembramos em capítulo anterior, Lutero defendia
a flexibilidade quando se tratava do culto da igreja em todos os
pontos, exceto em um: “Podemos abrir mão de tudo, exceto da
Palavra”. Para Lutero, a pregação da Palavra significava pregar
Cristo. De fato, Cristo não deve apenas marcar a pregação, como
também a vida do pregador. Conforme, certa vez, comentou: “Um
bom pregador precisa ter compromisso com isto: nada é mais
precioso para ele do que Cristo e a vida vindoura”. Ao ler os
sermões de Lutero, testemunhamos a pujante ênfase em Cristo, em
sua obra e em nossa resposta. Um dos sermões de Lutero
frequentemente mencionado, “Um Sermão sobre como Contemplar
os Santos Sofrimentos de Cristo”, encerra o tema de sua pregação.
Agora nos debruçamos sobre ele.
Contemplando os Sofrimentos de Cristo
Lutero pregou esse sermão em 1519, quando as tempestades da
controvérsia rugiam à sua volta. Essa data é contemporânea à
descoberta de Lutero da justificação pela fé. Esse sermão provou-se
extremamente popular em seus dias. De fato, nada menos do que
19 edições distintas de panfletos datam do ano em que Lutero o
pregou. Continuou a contar com amplo auditório e rico histórico de
publicação, tornando-o um dos sermões de Lutero mais publicados.
A primeira vez que Lutero o pregou foi na Sexta-Feira Santa e,
enquanto as edições publicadas circulavam pela Alemanha, sem
dúvida foi pregado por muitos outros ministros na mesma época do
ano. O sermão contém 17 pontos. Embora isso soe muito pesado,
cada um desses pontos consiste apenas de um parágrafo. Esses 17
parágrafos podem ser organizados em duas partes principais: as
primeiras tratam de como não contemplar os sofrimentos de Cristo,
quando Lutero apresenta “falsos pontos de vista”. Os demais
voltam-se, então, para “visões verdadeiras”, ou o modo correto de
se pensar nos sofrimentos de Cristo.
Em mãos menos capazes, um sermão sobre a morte de Cristo na
cruz poderia facilmente tornar-se um tratamento sensacionalista,
com vistas a um apelo emocional. Com certeza, Lutero retrata os
horrores da cruz, mas, no desenrolar do sermão, ele evoca uma
resposta da congregação que ressoa muito tempo após o término
do sermão. Ele envolve a pessoa por inteiro, expondo as
implicações do sofrimento de Cristo, não somente como um evento
do passado, mas como um fundamento para toda a vida cristã.
Chegando ao final do sermão, Lutero deseja que contemplemos os
sofrimentos de Cristo, não só quando escutamos ou lemos a esse
respeito séculos mais tarde, mas também ao passar por nosso dia,
nossa semana, toda a nossa vida. Lutero apresenta três maneiras
falsas de ver o sofrimento de Cristo.
Lutero começa: “Em primeiro lugar, algumas pessoas refletem
acerca dos sofrimentos de Cristo de modo a ficar zangados com os
judeus, cantando e lamentando o pobre Judas, e então se
satisfazem”. Infelizmente, Lutero nem sempre obedecia à sua
própria advertência para não ver a morte de Cristo dessa forma.
Conforme já vimos, o tratamento que dispensava aos judeus era,
algumas vezes, pouco desejável. Em 1519, porém, ele declara que
tal abordagem dos sofrimentos de Cristo perde completamente de
vista o ponto principal.
O segundo aspecto falso aborda a aparente prática de alguns, no
sentido de simplesmente meditar acerca dos sofrimentos de Cristo,
na esperança de conseguir evitar o sofrimento em sua própria vida.
Lutero explica que uma abordagem desse tipo vê os sofrimentos de
Cristo como um talismã que faz as pessoas “imaginarem que,
assim, se protegem dos perigos de água, fogo e espada, bem como
de todos os outros perigos. Dessa forma, o sofrimento de Cristo
deve agir neles como ausência de sofrimento”. Essas mesmas
pessoas acreditam falsamente que “pensar uma vez sobre os
sofrimentos de Cristo é melhor do que jejuar um ano inteiro ou rezar
o Saltério todos os dias”. Noutras palavras, contemplar o sofrimento
de Cristo na época da Páscoa satisfaz o dever espiritual da pessoa
por um ano.
Lutero relata essa abordagem puramente sentimental de Cristo e
de sua obra na cruz na terceira visão falsa. Segundo as palavras de
Lutero: “Uma terceira categoria simpatiza de tal modo com Cristo
que chora e lamenta por alguém tão inocente ter sofrido tanto”.
Lutero passa a repreender esse grupo por abuso da missa, achando
que “basta eles frequentarem a missa”. E retruca: “Que ajuda isso
será para ti, que Deus seja Deus, se ele não for Deus para ti?”.
Claramente, seu ponto é que uma abordagem desse tipo não
enxerga “o verdadeiro fruto” da paixão de Cristo. O nível de emoção
que esse grupo experimenta nunca vai além de sentir pena de
Cristo. Consequentemente, deixa de contemplar o verdadeiro
significado do sofrimento de Cristo. Lutero dedica apenas algumas
páginas a pensamentos sobre não considerar a obra de Cristo.
Dedica muito mais espaço a como vê-lo corretamente.
Terror e Consolo
Lutero, conforme sua predileção por paradoxos, ensina que a
contemplação correta dos sofrimentos de Cristo nos deixa
aterrorizados, ao mesmo tempo que consolados. Surge o terror
quando reconhecemos e confrontamos nosso próprio pecado; o
conforto vem quando descansamos em Cristo, vendo nosso pecado
expiado por ele. Ele desenvolve essa ideia ao considerar o modo
correto de contemplar o sofrimento de Cristo. Quando vamos para a
resposta certa, não nos esquivamos de ver a agonia de Cristo. É
Sexta-Feira Santa, não Domingo de Páscoa. Assim, ele inicia essa
seção declarando: “Eles meditam corretamente sobre a paixão de
Cristo, vendo-o de tal maneira que se aterrorizam, do fundo de seus
corações, diante dessa visão, e suas consciências mergulham em
desespero”. Lutero, contudo, pretende que esse terror se volte
contra nós, reconhecendo que foi nosso pecado que fez com que
Deus derramasse sua ira sobre seu Filho. E continua:

Esse sentimento de terror deve surgir para que vejas a severa ira e a
imutável severidade de Deus em relação ao pecado e aos pecadores,
em que ele não queria que seu único e amado Filho libertasse os
pecadores até que este tivesse pago o caríssimo resgate por eles.

Lutero acrescenta que, ao refletir sobre como “o Filho de Deus,


eterna sabedoria do Pai, sofre ele mesmo, com certeza ficarás
aterrorizado; quanto mais refletires, mais profunda será essa tua
impressão”. Ele torna específico e pessoal esse entendimento geral
acerca do pecado quando exorta o cristão a “crer profundamente e
jamais duvidar de que foste tu que mataste Cristo. Pois, com
certeza, nossos pecados assim o fizeram”. Lutero apela aqui para o
exemplo de Pedro em Atos 2.36-37, que “compungia os corações
dos judeus” ao proclamar que eles é que haviam crucificado Cristo.
Lutero deseja que seus ouvintes vejam além, ou seja, que a ira de
Deus derramada sobre Cristo também será derramada sobre os
pecadores, “que deixam o sofrimento de Cristo perder-se, sem
render frutos”. Ele demonstra vivazmente esse sofrimento: “Onde
um espinho traspassa Cristo, ali, na verdade, mais de mil espinhos
deveriam traspassar-te, eternamente e com mais dor ainda”.
Em toda essa seção do sermão, Lutero enfoca o terror para nos
impressionar com nosso pecado, do qual, ele acredita, nós nos
anestesiamos, e estamos inconscientes disso. Ele oferece a
seguinte ilustração:

Se um malfeitor fosse julgado por haver matado o filho de um príncipe


ou de um rei, e vós estivesses em segurança, cantando e brincando,
como se fosses inteiramente inocentes, até que alguém o tivesse
agarrado de maneira horrível e o convencesse de que vós facilitastes
para aquele malfeitor realizar o ato, então vós também estaríeis em
grandíssima dificuldade.

Lutero nos identifica com quem canta e brinca, anestesiados em


relação à nossa culpa. Além dessa ilustração, também apela para
um teólogo medieval que citava com frequência, Bernardo de
Claraval. Lutero comenta:

Bernardo estava tão aterrorizado com os sofrimentos de Cristo que


afirmou: “Eu imaginava estar seguro e nada sabia sobre o juízo eterno
passado a mim no céu, até que eu tivesse visto o eterno Filho de Deus,
que teve misericórdia de mim, deu um passo à frente e ofereceu a si
mesmo em meu favor nesse mesmo juízo. Ah, por isso não me faz bem
brincar ou achar-me seguro ainda”.
Lutero cita um hino muitas vezes atribuído a Bernardo, aquele
pelo qual ele é mais conhecido: “Ó Fronte Ensanguentada”.4 Esse
hino expressa as mesmas ideias que o sermão de Lutero. As
primeiras linhas da segunda estrofe encerram bem esse
pensamento: “O que tu, meu Senhor, sofreste foi para o lucro dos
pecadores; Minha era a transgressão, minha, mas tua era a dor
mortal”. Lutero toma grandes medidas para dizer de nossa
necessidade de nos aterrorizarmos a fim de que “alcancemos um
verdadeiro conhecimento” de nós mesmos. Até “buscarmos esse
conhecimento, os sofrimentos de Cristo não se revertem em nosso
verdadeiro benefício”. Lutero usa palavras fortes para aquele que
tem “coração tão duro que não esteja aterrorizado pelos sofrimentos
de Cristo”. Ele escreve que tal pessoa deveria “temer e tremer”,
porque, em algum ponto, ou agora ou na hora da morte, haverá
necessidade de prestar contas. As preocupações pastorais de
Lutero são maiores do que qualquer desejo de diminuir ou encobrir
os sofrimentos de Cristo ou a penalidade do pecado.
Antes de encerrar essa seção, que trata da resposta de terror, e
passar à questão do consolo, ele toca um acorde de esperança.
Primeiro, afirma que ver corretamente o sofrimento de Cristo “realiza
a sua obra verdadeira, natural e nobre, matando o velho Adão,
banindo toda luxúria, prazer e segurança que se possam obter das
outras criaturas”. Também nota que isso nos força a olhar para além
de nossa própria capacidade e “buscar e almejar a graça de Deus”.
Quando Lutero chega ao décimo segundo parágrafo, esse acorde
de esperança se torna plena sinfonia, e ele nos conduz da Sexta-
Feira da Paixão para o Domingo de Páscoa. Ele não nos deixa
chafurdando no pecado, mas nos leva a Cristo. Ele é arauto das
boas-novas: “Assim como o conhecimento de nossos pecados fluiu
de Cristo e nos tornamos conscientes deles, também devemos
derramá-los novamente sobre ele, e libertar nossa consciência”.
Firme em Cristo
Lutero explicou a infeliz consequência de deixar de fazê-lo, quando
observou: “Se não tomares este curso, e perderes a oportunidade
de acalmar teu coração, jamais conseguirás a paz, mas finalmente
te desesperarás pela dúvida”. “Mas”, diz ele, “quando vemos que
nossos pecados foram colocados em Cristo e ele triunfou sobre eles
mediante a sua ressurreição, e nós cremos nisso sem temor, os
pecados são mortos e se tornam nada”. Ao olharmos o Cristo
ressurreto, “não vemos nele pecado algum, ou seja, nenhum sinal
de pecado”.
Conforme Paulo ensina em Colossenses 2.14, Cristo pregou
nosso pecado à cruz, e o cancelou. Essa nova perspectiva sobre a
obra de Cristo traz uma nova perspectiva sobre Deus, tendo sua
bondade e seu amor como palco central. Por sua vez, isso produz
um novo motivo para servir: amor. Lutero expressa isso da seguinte
forma: “Assim teu coração será cheio de amor para com ele, e a
segurança de tua fé será fortalecida”. E acrescenta: “Quando teu
coração estiver firme em Cristo, então tu serás inimigo do pecado
pelo amor, e não por medo de castigo”.
Quando Lutero conclui seu sermão, explica que, a fim de
verdadeiramente vermos os sofrimentos de Cristo, necessitamos
viver à luz da cruz: “Os sofrimentos de Cristo devem ser também
exemplo para toda a nossa vida”. Ele diz a seus ouvintes não só que
o façam, como também mostra como fazê-lo, procedendo a uma
aplicação direta dos sofrimentos de Cristo para suas vidas. Ele faz
isso por meio de uma série de perguntas penetrantes:

O orgulho vos ataca? Eis como vosso Senhor foi aviltado e zombado
por assassinos. A incastidade e a lascívia, os pecados da carne, vos
atacam? Pensai em como foi amargo Cristo ter sua tenra carne
rasgada, lancetada e surrada repetidamente. O ódio e a inveja fazem
guerra contra vós, ou buscais vingança? Lembrai como Cristo, com
muitas lágrimas e choro, orou por seus inimigos. Se a tristeza ou as
dificuldades físicas ou espirituais vos afligem, fortalecei vosso coração
e dizei: “Por que eu não deveria então sofrer um pouco, já que meu
Senhor suou sangue no Jardim de Getsêmane devido a ansiedade e
tristeza?”.

Tal reconhecimento, diz-nos Lutero, é o modo como


“encontramos força e consolo em Cristo contra todo vício e
fraqueza. Essa é a observação correta da paixão de Cristo, e o fruto
de seu sofrimento”. “A paixão de Cristo”, conclui Lutero, “não deve
ser tratada com palavras e exibição, mas em nossas vidas e em
verdade”. Embora Lutero, nesse sermão, ressoe com profunda
emoção, também vai muito além de apenas despertar uma resposta
emotiva. Em vez disso, ele nos confronta com nosso pecado e suas
feias consequências. Também nos conforta com o bálsamo do
evangelho, exaltando a bondade e o amor de Deus. Finalmente,
desafia-nos a viver à luz da cruz, indo além de uma meditação de
Páscoa para todo o tempo de vida de gratidão e obediência.
Escolher apenas um sermão entre os milhares que Lutero pregou
representa um sério desafio. Esperamos que esse sermão provoque
o apetite para que se examinem outros. O legado de Lutero,
conforme vimos, permanece. Ele se superou como teólogo, tradutor,
músico e, entre outras coisas, também como pastor. Todo o volume
de seus sermões nos impressiona com o valor que atribuía à
pregação. Ao recuperar a centralidade da Escritura na igreja, ele
também recuperou a centralidade do sermão. Assim como Lutero foi
pioneiro em tantas das práticas de nossa igreja, também foi com sua
pregação, a qual se destaca como mais um legado que enriquece
nossa vida como protestantes, séculos após o pastor relutante,
Lutero, ter vivido.
Nota sobre as Fontes
Conforme já mencionado, os sermões de Lutero formam um
conjunto significativo de literatura. Nos volumes 51 e 52 da versão
inglesa Luther’s Works, encontram-se seus muitos sermões, embora
também apareçam em vários outros volumes. A obra – também em
língua inglesa – Complete Sermons by Martin Luther, de Baker
Books (2000), inclui uma edição publicada anteriormente dos
sermões de Lutero que inclui The Sermons of Martin Luther (1983) e
The House Postils (1996). Esse conjunto compreende a coleção
mais exaustiva dos sermões de Lutero em inglês. O volume 1.2
contém “A Sermon on How to Contemplate Christ’s Holy Sufferings”,
nas pp. 183-92. John Dillenberger oferece uma boa mostra dos
sermões de Lutero em Martin Luther: Selections of his Writings
(1962), 207-48. Timothy F. Lull compilou numerosos sermões,
incluindo o sermão sobre a contemplação dos sofrimentos de Cristo,
que ele intitulou “Meditação sobre a Paixão de Cristo”, em Martin
Luther’s Basic Theological Writings (1989), pp. 165-72.
4. Em salmos e hinos com músicas sacras – #108 –, passou a ser mais
comum a versão “Ó Cristo, Pão da Vida”. (Nota da Tradutora.)
A TRADIÇÃO CONTRA QUE, CERTA TARDE, MARTINHO
LUTERO andava pelas ruas de Wittenberg e encontrou um membro
de sua paróquia deitado, bêbado, na sarjeta. Quando Lutero o
repreendeu pela bebedeira, seu paroquiano remexeu algo no paletó.
Finalmente, a mão surgiu dali segurando um pedaço de papel.
Então, balançou diante do sacerdote, proclamando que o Irmão
Tetzel dera-lhe uma indulgência que oferecia “perdão completo de
todos os pecados – passados, presentes e futuros”. Essa
passagem, tal como mostrada no filme clássico de 1955, em preto e
branco, Martinho Lutero, pode ser difícil de verificar. Porém, ilustra o
dilema que um jovem sacerdote e teólogo de paróquia tinha de
enfrentar. Em resposta, Lutero retirou-se para seu gabinete,
escreveu uma lista de argumentos tratando do problema e, no dia
31 de outubro de 1517, afixou sua lista na porta da igreja de
Wittenberg. Isso foi há quinhentos anos.
Conquanto Lutero pretendesse que as 95 teses provocassem um
debate acadêmico entre teólogos, seus interesses e suas
motivações eram, em essência, pastorais. A venda de indulgências
obscurecia o evangelho e a cruz. Desviava os leigos da verdade.
Em seu “Sermão sobre Indulgências”, feito em 1518, Lutero
menciona os primeiros ataques às suas 95 teses. Diz que essa
“tagarelice não é um caso tão sério”. Mas acrescenta, de forma
característica: “Os que fazem isso são mentes obscurecidas, que
nunca sentiram nem o cheiro da Bíblia”. As 95 dão a base para a
ênfase da Reforma em sola Scriptura, que, por sua vez, leva a solus
Christus – ou seja, ao evangelho. É disso que a igreja necessita.
Lutero não imaginava o alcance que seu ato teria. Ao confrontar
a igreja católica romana medieval, ele desafiava uma das maiores
máquinas políticas e eclesiásticas que o mundo já viu. Sua ação no
último dia de outubro preparou o palco para um século de levantes
na Alemanha e por toda a Europa. De fato, as ações de Lutero
ainda ressoam hoje. Todos os que se chamam “protestantes”
remontam suas raízes a esse protesto nas 95 teses.
Martinho Lutero pretendia que esses argumentos, escritos em
latim, fossem direcionados aos acadêmicos da igreja, para que os
debatessem. Prefaciou os argumentos com o pedido de que
“aqueles que não puderem estar presentes para debater oralmente
conosco o façam por carta”. Tal debate, porém, nunca aconteceu.
Os argumentos, intitulados Disputa sobre o Poder e a Eficácia das
Indulgências, popularmente conhecidos como as 95 teses, foram
traduzidos para o alemão, impressos (a recém-desenvolvida
imprensa era importante para isso), e circularam rapidamente pelas
cidades e vilarejos da Alemanha. Mas esse era apenas o começo:
ao postar as 95 teses, o jovem monge agostiniano pôs em ação um
dos mais significativos acontecimentos da história ocidental: a
Reforma Protestante.
As 95 teses é um texto sobre o qual muitos já ouviram, a maioria
alude a ele, mas, na verdade, poucos leram. Porém, um texto tão
crucial merece ser lido amplamente. Os leitores de hoje talvez se
surpreendam com o fato de que seus argumentos carecem da
expressão cristalizada dos reformadores que vieram mais tarde:
“justificação somente pela fé”. Além disso, Lutero parte do princípio
de que seus leitores conhecem a teologia medieval e os eventos
das primeiras duas décadas do século XVI. Em consequência, esta
edição oferece algumas notas explicativas que ajudam os leitores a
percorrerem o texto. Assim, para contextualizar historicamente as 95
teses, começamos com uma breve olhada na vida de Martinho
Lutero e dos eventos ocorridos em 1517 e também próximos dessa
data.
Capítulo 13
AS 95 TESES COMENTADAS
Disputa sobre o poder e a eficácia das indulgências

E
mbora Martinho Lutero tivesse escrito as 95 teses
originalmente em latim, seguiram-se várias traduções
alemãs e reimpressões. As traduções subsequentes,
inclusive textos em português, têm sido impressas desde o século
XVI. Hoje, o documento é um dos mais destacados textos na
história da igreja ocidental. O texto que se segue – aqui traduzido
para o português – toma por base uma tradução livre para o inglês
por Adolph Spaeth, L. D. Reed e Henry Eyster Jacobs. Em certos
pontos, ofereço minha própria interpretação do texto deles, com
uma versão mais legível, embora tenha em mente, sempre,
preservar a intenção do original.
Por amor pela verdade e pelo desejo de trazê-la à luz, as
seguintes proposições serão discutidas em Wittenberg, sob a
supervisão do reverendo padre Martinho Lutero, mestre de Artes e
da Sagrada Teologia, e professor dessas disciplinas em Wittenberg.
Ele pede que aqueles que não puderem estar presentes para
debater oralmente conosco o façam por carta. Em Nome de Nosso
Senhor Jesus Cristo. Amém.

Lutero postou essas teses para provocar um debate. O prefácio


ressalta sua preocupação pastoral. Seu interesse principal era que a
verdade prevalecesse acima do erro.

1. Quando nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo disse “Arrependei-


vos”, tencionava que a vida inteira dos crentes deveria ser de
arrependimento.
1. A citação de Mateus 4.17 vem da Vulgata, tradução autoritativa em
latim. Em latim, lê-se: Penitentiam agite, que pode ser traduzido por
“Faze penitência”. Essa tradução, portanto, dá crédito ao sacramento
católico romano medieval da penitência. Em suas Explanações das 95
teses (1518), Lutero observa que, no grego, significa apenas
“Arrependei-vos”, como é traduzido na maior parte das versões da
Bíblia. Lutero argumenta que a penitência (ou meramente os atos
externos) não está de acordo com o ensinamento das Escrituras sobre
o perdão do pecado. O verdadeiro arrependimento, ou aquilo que Deus
requer, é mudança de coração seguida de uma vida de obediência. As
próximas três teses tratam da questão do arrependimento. Lutero deixa
seu ponto claro: a compra de indulgências não é, de modo algum,
equivalente ao arrependimento interno.

2. Essa palavra, “arrependimento”, não pode ser entendida como o


sacramento da penitência, ou o ato de confissão e satisfação
administrado pelos sacerdotes.

2. Em 1439, no Concílio de Florença, a Igreja Católica Romana


sancionou sete sacramentos: (1) batismo, (2) confirmação, (3)
sacerdócio ou ordenação, (4) a eucaristia ou Ceia do Senhor, (5)
casamento, (6) extrema-unção ou últimos ritos e (7) penitência ou
confissão. Lutero, junto com outros reformadores, reduz essa lista aos
dois sacramentos biblicamente sancionados: (1) Ceia do Senhor e (2)
batismo. O ponto de Lutero nessa tese e naquelas que se seguem é
que a prática corrente das indulgências é um abuso da doutrina da
penitência.

3. Contudo, isso não significa apenas arrependimento interior, pois


não existe arrependimento interior que não se manifeste
exteriormente por meio de diversas mortificações da carne.
3. Lutero enxerga a conexão entre a mudança interna de coração e a
vida externa de obediência, que caracteriza aqui, na linguagem de
Romanos 6-7, como a mortificação da carne. Em todos os seus
escritos, Lutero aborda essa mesma questão, usando a terminologia de
lei e evangelho. Em geral, ele é interpretado como quem enfatiza o
evangelho e deprecia a lei, especialmente depois da salvação. Sua
ênfase na vida de obediência aqui, porém, necessita ser considerada
nessa discussão.

4. A penalidade do pecado, portanto, continua enquanto o ódio do


eu, ou verdadeiro arrependimento interno, continuar, e perdura
até entrarmos no reino do céu.

4. Lutero destaca um ponto um tanto complexo que pode ser mal


compreendido. Em suas Explanações, ele esclarece o significado de
odiar a si mesmo: “A verdadeira tristeza tem de surgir da bondade e
das misericórdias de Deus, especialmente das feridas de Cristo, para
que o homem tenha, antes de tudo, o senso de sua própria ingratidão
em vista da bondade divina, odiando, portanto, a si mesmo e amando a
bondade de Deus. Então, as lágrimas fluirão e ele se odiará até o mais
profundo de seu coração, mas sem desespero. Ele odiará o pecado,
não devido ao castigo, mas por dar valor à bondade de Deus; e,
quando ele tiver percebido isso, será preservado do desespero e se
desprezará mais ardentemente, embora esteja cheio de alegria”.

5. O papa não quer remir, nem pode remir, quaisquer penas, exceto
aquelas que ele impôs ou por sua própria autoridade ou pela
autoridade dos cânones.

5. Lutero fala diretamente sobre a autoridade do papa de perdoar o


pecado e remeter o castigo para o purgatório. Nesse processo, Lutero
mostra que as indulgências de Tetzel são inválidas. A palavra cânones
se refere à lei canônica, o conjunto de leis que governa a Igreja Católica
Romana. Nos tempos de Lutero, os cânones englobariam diversos
decretos feitos pelos papas e concílios. Em 1520, Lutero queimou
publicamente o Corpus iurus canonici, ou Livro da Lei Canônica, junto
com a bula papal que o condenara como herege.

6. O papa não pode remir qualquer culpa, exceto declarar aquela


que foi remida por Deus ou por concordar com a obra de
remissão de Deus. Certamente, porém, o papa pode conceder
remissão nos casos reservados ao seu juízo. Se o seu direito de
conceder remissão nesses casos for desconsiderado, a culpa, na
íntegra, permanece sem ser perdoada.

6. A teologia medieval católica romana distinguia entre os conceitos de


culpa e penalidade pelo pecado. A culpa só podia ser remida ou
perdoada por Deus, enquanto a pena pelo pecado é paga ou nesta vida
ou no purgatório. Em tese, as indulgências serviam apenas para
satisfazer a penalidade pelo pecado. Os pregadores de indulgência,
porém, davam a impressão de que elas também satisfaziam a culpa do
pecado.

7. Deus a ninguém perdoa a dívida sem que, ao mesmo tempo, o


subordine, em sincera humildade, ao ministro, seu substituto.

7. Nessa época, Lutero defende a mediação de um sacerdote. À


medida que sua teologia vai-se desenvolvendo, ele passa a defender o
sacerdócio de todos os crentes.

8. Os cânones penitenciais são impostos somente sobre os vivos e,


de acordo com as mesmas ordenanças, nada deverá ser
imposto sobre os moribundos.

8. Lutero trata, nas teses 8-13, das práticas abusivas do sacramento da


penitência e de seu correlato, as indulgências. Os cânones penitenciais,
ou dogma de penitência da igreja, restringem penitência e perdão ao
castigo eterno. Tal mudança na prática da igreja é referenciada na tese
11.

9. Assim, o Espírito Santo, mediante o papa, é bondoso para


conosco, porque, em seus decretos, sempre faz exceção ao
artigo da morte e da necessidade.

10. Ignorantes e maus são os atos dos sacerdotes que, no caso


daqueles que estão morrendo, reservam penitências canônicas
para o purgatório.

10. Lutero chama a venda de indulgências de “ímpia”. Em sua carta a


Alberto, arcebispo de Mainz, datada de 31 de outubro de 1517, ele
escreve: “Desta forma, Excelentíssimo Padre, as almas entregues a teu
cuidado estão sendo conduzidas à morte”.

11. Essa mudança da penalidade canônica para a penalidade do


purgatório é, evidentemente, um dos joios que foram semeados
enquanto os bispos dormiam.

12. Em tempos antigos, as penalidades canônicas eram impostas,


não depois, mas antes da absolvição, como prova de verdadeira
contrição.

12. Esse ponto de Lutero chama a atenção para o fato de que perdão
ou absolvição, em tese, seguem a contrição e a satisfação. A
indulgência de Tetzel oferece perdão sem qualquer verdadeira tristeza
pelo pecado ou obras de satisfação.

13. Os moribundos tudo satisfazem com a sua morte e estão mortos


para o direito canônico, tendo, assim, o direito de serem
libertados das penalidades.
14. A saúde espiritual imperfeita, ou o amor imperfeito, da pessoa
que está à morte necessariamente traz consigo grande medo; e,
quanto menor for o amor, maior será o temor.

14. Lutero discute o abuso da penitência enfocando o purgatório nas


teses 14-24. A indulgência de Tetzel dizia prover “total remissão de
todos os pecados para as almas no purgatório”. Lutero conclui na tese
24 que simplesmente não existe base para tal afirmação.

15. Esse temor e esse horror bastam, para não dizer mais, para
constituir a penalidade do purgatório, já que está bem próximo
do horror do desespero.

16. Inferno, purgatório e céu parecem ser diferentes, como o são o


desespero, o quase desespero e a segurança da salvação.

16. Lutero articula significativa distinção entre purgatório e céu. Eles


não são continuação um do outro. Céu é segurança, enquanto o
purgatório é desespero.

17. Quanto às almas no purgatório, parece necessário que o horror


diminua e o amor aumente mais.

18. Parece não comprovado, nem pela razão nem pela Escritura, de
que eles estejam fora do estado do merecimento, ou seja, de
aumentar o amor.

19. Também não parece comprovado que as almas no purgatório,


ou pelo menos nem todas, estejam certas ou asseguradas de
sua própria bem-aventurança, embora nós possamos estar muito
certos disso.

20. Portanto, por “plena remissão de todas as penas”, o papa não


quer dizer realmente “de todas”, mas somente daquelas penas
que foram impostas por ele mesmo.

20. Lutero repete seu argumento da tese 5. A lei da Igreja só permite o


perdão das penalidades impostas pela igreja,mas não o perdão das
penalidades diante de Deus.

21. Assim, esses pregadores de indulgências estão errados quando


dizem que, pelas indulgências do papa, um homem é liberto de
todas as penas e está salvo.

21. Ainda que ele não mencione explicitamente Tetzel pelo nome nas
95 teses, Lutero claramente o tem em vista quando se refere a
pregadores ou, a certa altura, a “mascates” (tese 51) das indulgências.

22. De fato, o papa não dispensa, às almas do purgatório,


penalidades que, de acordo com os cânones, teriam de pagar
nesta vida.

23. Se for possível conceder a qualquer um a remissão de todas as


penalidades, é certo que tal remissão só poderá ser concedida
aos mais perfeitos, ou seja, a muito poucos.

24. Portanto, a maior parte das pessoas é necessariamente


enganada pela promessa indiscriminada e altissonante de
libertação da penalidade.
24. A referência de Lutero à “promessa altissonante” ressalta as
reivindicações inválidas da venda de indulgências. Esse é um exemplo
por excelência de falsa propaganda.

25. O poder que o papa tem, de modo geral, sobre o purgatório é


igual àquele que qualquer bispo ou vigário tem especificamente
sobre sua própria diocese ou paróquia.

26. O papa faz bem quando concede remissão às almas no


purgatório, não pelo poder das chaves, que, nesse caso, ele não
possui, mas por meio da intercessão.

26. A frase “o poder das chaves” diz respeito à interpretação católica


romana de Mateus 16.16-19. Nos dias de Lutero, essa frase significava
o poder exclusivo dado à igreja de perdoar os pecados e dispensar os
benefícios do evangelho. Lutero não nega que o poder das chaves
resida primariamente no papa. Em vez disso, argumenta que o
exercício desse poder pelo papa não se estende ao purgatório.

27. Pregam doutrinas feitas pelos homens aqueles que dizem que,
quando a moeda cai no cofre, a alma voa para fora do
purgatório.

27. Lutero refere-se ao jingle de marketing de Tetzel. A frase em


alemão era uma rima fácil de lembrar.
Solbald das Geld in Kasten klingt,
Die Seel’ aus dem Fegfeuer springt.
Tão logo no cofre o dinheiro cai,
a alma do purgatório já sai.

28. É certo que, quando a moeda tilinta na caixa de dinheiro, a


ganância e a avareza podem aumentar, mas o resultado da
intercessão da igreja está somente no poder de Deus.
29. Quem sabe se todas as almas no purgatório desejam ser tiradas
dele, como na lenda dos santos Severino e Pascoal?

29. Lutero refere-se à lenda de dois papas anteriores, Severino (638-


640) e Pascoal I (817-824), que afirmam ter-se disposto a passar um
longo tempo de sofrimento no purgatório a fim de gozar do mais alto
grau de glória no céu.

30. Ninguém tem certeza de sua própria contrição ser sincera, muito
menos de conseguir atingir plena remissão.

31. Como é raro o homem verdadeiramente arrependido, assim


também o é aquele que compra verdadeiramente as
indulgências. Na verdade, são raríssimos tais homens.

31. O uso que Lutero faz do sarcasmo enfatiza a inutilidade da venda


de indulgências.

32. Serão condenados eternamente, junto com seus mestres,


aqueles que acreditam estar tão seguros de sua salvação por
possuírem cartas de perdão.

32. Lutero usa perdão intercambiado com indulgência.

33. Os homens têm de vigiar contra aqueles que dizem que os


perdões do papa são o inestimável dom de Deus por meio do
qual o homem é reconciliado com ele.

33 Lutero está advertindo literalmente: “Comprador, tome cuidado”.


34. Pois essas graças de perdão se referem apenas às penalidades
da satisfação sacramental, e essas são designadas pelo homem.

35. Não pregam doutrina cristã os que ensinam que a contrição não
é necessária naqueles que tencionam comprar as almas para
sair do purgatório ou comprar privilégios confessionais.

35 Nenhuma contrição é necessária por parte daquele que


simplesmente joga moedas no cofre das indulgências.

36. Todo cristão realmente arrependido tem o direito à plena


remissão da penalidade e da culpa, mesmo que não tenha cartas
de perdão.

37. Todo verdadeiro cristão, quer vivo, quer morto, tem parte em
todos os benefícios de Cristo e da igreja; e isso lhe foi concedido
por Deus, mesmo que não tivesse cartas de perdão.

37. “Todos os benefícios de Cristo… ” Os reformadores passarão a


enfatizar a doutrina de união com Cristo. A raiz dessa rica expressão
está nessa frase, bem como na tese 37. Lutero aprendeu primeiro essa
frase (participatio omnium bonorum Christi) com Tomás de Aquino.

38. No entanto, a remissão e a participação nos benefícios da igreja,


que são concedidas pelo papa, jamais deverão ser desprezadas,
pois são, conforme eu disse, a declaração da divina remissão.

39. É muito difícil, até mesmo para os teólogos mais cultos, ao


mesmo tempo recomendar ao povo a abundância de perdões e a
necessidade de verdadeira contrição.
39. Esse ponto resume o dilema que Lutero enfrentava como sacerdote
paroquial. Tinha de aceitar as cartas de indulgências dadas por Tetzel
aos seus próprios paroquianos, mas, ao mesmo tempo, era
responsável, na condição de seu sacerdote, por lembrar-lhes da
necessidade da verdadeira penitência.

40. A verdadeira contrição busca e ama as penas, mas os perdões


liberais apenas relaxam as penas e as fazem ser odiadas, ou
pelo menos dão razão para que sejam odiadas.

41. As indulgências papais devem ser pregadas com cautela, para


que o povo não pense falsamente delas como preferíveis a
outras boas obras de amor.

42. Os cristãos devem ser ensinados que o papa não pretende que
a compra de perdões se compare, de qualquer modo, às obras
de misericórdia.

42. Lutero vai além de apenas apresentar argumentos para o debate


nas teses 42-51, quando oferece seu próprio resumo do que deve ser
ensinado aos cristãos. Como monge, ele exalta as virtudes de cuidar
dos pobres e necessitados. E também ressalta que tais virtudes estão
em conflito com a ostensiva riqueza do papado.

43. Os cristãos devem ser ensinados que aquele que dá aos pobres
ou empresta aos necessitados faz obra melhor do que comprar
perdões.

43. Lutero prossegue em seu ritmo com a frase recorrente de que os


“cristãos precisam ser ensinados”. Aqui vemos novamente as
preocupações pastorais de Lutero.
44. Como o amor cresce pelas obras de amor, o homem se torna
melhor ao realizar obras de amor. Ao comprar perdões, porém, o
homem não melhora; só fica mais livre das penas.

45. Os cristãos devem ser ensinados que aquele que vê alguém em


necessidade e passa adiante, dando, em vez de ajudá-lo,
dinheiro para perdões não está comprando as indulgências do
papa, mas a indignação de Deus.

45 Com ironia poética, Lutero alude à parábola do Bom Samaritano


(Lucas 10.25-37).

46. Os cristãos devem ser ensinados que, a não ser que tenham
mais dinheiro do que precisam, são obrigados a reservar o que
for necessário para suas próprias famílias, e de modo nenhum
devem desperdiçá-lo em perdões.

47. Os cristãos devem ser ensinados que a compra dos perdões é


uma questão de livre-arbítrio, e não de mandamento.

47. Lutero expande esse pensamento em seu “Sermão sobre


Indulgências e Graça”, de 1518. Ali ele nota que, de acordo com a lei
da igreja, as indulgências são “permitidas e concedidas”, mas não
“mandadas”.

48. Os cristãos devem ser ensinados que o papa, ao conceder


perdões, necessita e, portanto, deseja ter suas devotas orações
por ele mais do que seu dinheiro.

49. Os cristãos devem ser ensinados que os perdões do papa são


úteis apenas quando não confiam neles, mas totalmente nocivos
quando, em consequência delas, perdem o temor de Deus.

50. Os cristãos devem ser ensinados que, se o papa conhecesse as


exigências dos pregadores de indulgências, preferiria que a
igreja de São Pedro virasse cinzas a ser construída com a pele,
a carne e os ossos de suas ovelhas.

50. Isso marca a primeira de várias referências explícitas ao custo da


construção da Basílica de São Pedro. Embora não esteja claro em que
medida Lutero sabia dos trâmites de Leão X e Alberto de Mainz que
levaram à venda de indulgências por Tetzel, ele e outros estavam bem
cientes da motivação subjacente.

51. Os cristãos devem ser ensinados que seria desejo do papa,


como é seu dever, dar de seu próprio dinheiro a muitos daqueles
de quem certos mascates de perdões extorquem dinheiro, ainda
que a igreja de São Pedro tivesse de ser vendida.

51. “Dinheiro de bajulação” se refere às técnicas dissimuladas e


manipuladoras de Tetzel e dos pregadores de indulgências.

52. A segurança da salvação por meio de cartas de perdão é vã,


ainda que o comissário das indulgências ou mesmo o próprio
papa desse sua alma em garantia disso.

53. São inimigos de Cristo e do papa aqueles que querem silenciar


a Palavra de Deus em algumas igrejas, a fim de que os perdões
possam ser pregados em outras.

53. Embora longe de defender o princípio reformado de sola Scriptura


(somente a Escritura), Lutero enfatiza a necessidade e a centralidade
da Palavra.
54. A injúria à Palavra de Deus é causada quando, no mesmo
sermão, dedica-se um tempo igual ou mais longo a falar mais
dos perdões do que da Palavra.

55. Deve ser intenção do papa que, se os perdões, que são coisa
pequena, são celebrados com sino, procissões e cerimônias,
então o evangelho, que é coisa muito maior, deve ser pregado
com cem sinos, cem procissões e uma centena de cerimônias.

55. A menção a sino, procissões e cerimônias, como também a


referência à cruz exaltando as armas papais na tese 79, refere-se à
entrada de Tetzel numa cidade. Sua chegada era precedida pelo
anúncio de sua vinda. Ele, então, era escoltado ao centro da cidade em
um desfile, ladeado pelos dignitários políticos e eclesiásticos da
localidade. A cerimônia era tão elaborada que uma testemunha ocular
da cidade de S. Annebergo recorda que “o próprio Deus não teria sido
mais bem-recebido nem teria maior honra”.

56. Os tesouros da igreja, dos quais o papa concede as


indulgências, não são suficientemente nomeados ou conhecidos
entre o povo de Cristo.

56. A expressão “tesouros da igreja” diz respeito ao ensino da Igreja


Católica Romana medieval de que os méritos que sobravam de Cristo e
dos santos são guardados em um tesouro celestial. Isso explica por que
os católicos romanos oram aos santos e apelam a eles, especialmente
a Maria. Nos dias de Lutero, o papa podia fazer retiradas desse tesouro
e aplicar esses excessos e merecimentos não utilizados aos que
estavam faltosos e precisavam de mais. Em geral, essa retirada de
méritos acontecia por meio de contribuições financeiras à igreja. Lutero
rejeita totalmente essa visão ao argumentar, na tese 62, que o
verdadeiro tesouro da igreja é o evangelho.
57. Que eles não são tesouros temporais, certamente isso é
evidente, pois muitos vendedores não derramam tão facilmente
tais tesouros, mas apenas os ajuntam.

58. Também não são os merecimentos de Cristo e dos santos, pois,


até mesmo sem o papa, estes sempre operam graça ao homem
interior, e a cruz, a morte e o inferno para o homem exterior.

59. São Lourenço disse que o tesouro da igreja eram os pobres da


igreja, mas falava de acordo com o uso da palavra em seu
próprio tempo.

59. São Lourenço foi martirizado em 258 d.C. De acordo com a lenda
(agora amplamente rejeitada), quando os oficiais romanos mandaram
entregar as riquezas da igreja, ele ajuntou os pobres da igreja.

60. Sem sermos precipitados, dizemos que as chaves da igreja,


dadas pelos merecimentos de Cristo, são esse tesouro.

61. Pois é claro que o poder do papa é, em si mesmo, suficiente


para a remissão das penas e de casos reservados à sua
jurisdição.

62. O verdadeiro tesouro da igreja é seu santíssimo evangelho da


glória e da graça de Deus.

62. Em sua carta a Alberto, também escrita em 31 de outubro de 1517,


Lutero declara: “Pois em nenhum lugar Cristo ordenou a pregação de
indulgências, mas ordenou fortemente que o evangelho fosse pregado”.
63. Mas tal tesouro é naturalmente mais odioso, pois faz com que o
primeiro seja último.

63. Mateus 20.16 (“Assim, os últimos serão primeiros, e o primeiro, o


último”).

64. Por outro lado, o tesouro das indulgências é naturalmente mais


aceitável, porque faz com que os últimos sejam os primeiros.

65. Assim, os tesouros do evangelho são as redes com que,


anteriormente, eles pescavam homens de riquezas.

66. Os tesouros das indulgências são redes em que, agora, eles


pescam as riquezas dos homens.

66. Lutero revela o motive da venda de indulgências: obter lucros.

67. As indulgências que os pregadores proclamam como as


“maiores graças” são conhecidas como verdadeiramente assim,
por promoverem o lucro.

68. Na verdade, porém, são as graças absolutamente menores, em


comparação à graça de Deus e à piedade da cruz.

69. Os bispos e os sacerdotes são obrigados a receber os


comissários dos perdões papais com toda a reverência.

69. Isso reflete sua preocupação pastoral. Os sacerdotes são obrigados


a reconhecer esses perdões, mas tais perdões são ilegítimos e nocivos
– e, Lutero diria, condenatórios.
70. Além disso, são obrigados a forçar os olhos e atender com os
ouvidos, para que esses homens não preguem seus próprios
sonhos em vez da comissão do papa.

71. Que aquele que fala contra a verdade dos perdões papais seja
anátema e maldito!

71. Nas teses 71-74, Lutero afirmava as indulgências quando


praticadas legitimamente, enquanto condenava a prática ilegítima das
indulgências de Tetzel.

72. Mas que aquele que vigia contra a luxúria e a licenciosidade dos
pregadores de indulgências seja bendito!

73. O papa troveja justamente contra aqueles que, por qualquer


meio, tramam o mal contra o tráfego dos perdões.

73. A venda das indulgências se fazia acompanhar do documento


“Resumo da Instrução”, preparado por Alberto e seus teólogos para os
pregadores de vendas de indulgências. Lutero conseguiu obter uma
cópia. No “Resumo”, promete-se aos pregadores de indulgências a
proteção do papa.

74. Mas ele pretende protestar muito mais contra aqueles que usam
o pretexto de perdões para maquinar o mal contra o santo amor
e a santa verdade.

75. Considerar os perdões papais tão grandes que possam absolver


um homem que tenha cometido o pecado impossível de violar a
Mãe de Deus é loucura.
75. Com esses exemplos, Lutero carrega as implicações da venda de
indulgências a seu absurdo final.

76. Dizemos, pelo contrário, que os perdões papais não são


capazes de remover o menor dos pecados venais, quando se
trata da culpa.

76. A teologia católica romana distingue entre pecados venais, que


podem ser perdoados, e pecados mortais, que não podem ser
perdoados.

77. Dizem que mesmo São Pedro, se hoje fosse papa, não poderia
conceder graças maiores. Isso é uma blasfêmia contra São
Pedro e contra o papa.

78. Dizemos, pelo contrário, que até mesmo o atual papa, e


qualquer papa que existiu, tem maiores graças a seu dispor, ou
seja: evangelho, poderes, dons de cura etc., conforme está
escrito em 1 Coríntios 12.

78. Uma das referências é ao dom do evangelho, ao dom dos ofícios na


igreja e ao dom sobre todos os outros dons na igreja (1 Coríntios
12.28).

79. Dizer que a cruz exibida com as armas papais, apresentada


pelos pregadores de indulgências, tem o mesmo valor da cruz de
Cristo, é blasfêmia.

79 Lutero usou a palavra blasfêmia múltiplas vezes – e por uma boa


causa. A venda de indulgências é falsa.
80. Bispos, sacerdotes e teólogos que permitem que tais conversas
sejam espalhadas entre o povo terão de prestar contas por isso.

80. Ver Tiago 3.1.

81. Essa pregação desenfreada de perdões torna difícil, até mesmo


no caso de homens cultos, resgatar da maledicência a
reverência devida ao papa, ou mesmo das perguntas
perspicazes dos leigos.

81. Lutero introduz aqui uma série de “perguntas inteligentes” feitas


pelos leigos, que ele recapitula nas teses 82-89. Evidentemente, a
pessoa comum estava bem consciente do escândalo das indulgências
de Tetzel. Além do mais, esses pontos revelam novamente os motivos
financeiros por trás da venda de indulgências, pois Lutero faz referência
explícita ao custo da construção da Basílica de São Pedro – custo que,
de acordo com a tese 86, foi suportado, em parte, pelos pobres
camponeses da Alemanha.

82. Perguntas como: “Por que o papa não esvazia o purgatório, por
amor e pelo amor das almas desesperadas que ali estão, se ele
redime um número infinito de almas por amor do mísero dinheiro
com que constrói uma igreja? As razões anteriores seriam mais
justas, enquanto essas últimas são mais triviais”.

83. Ou: “Por que continuam as missas fúnebres e de aniversário dos


mortos, e por que não se devolve nem se permite a retirada das
doações feitas em seu benefício, já que é errado rezar pelos
redimidos?”.

83. A lei da igreja proibia orar pelas almas dos santos (parte dos
redimidos).
84. Ou: “Qual é essa nova piedade de Deus e do papa, que, por
dinheiro, permitem ao homem ímpio e a seu inimigo comprarem,
para a saída do purgatório, as almas piedosas e amadas por
Deus, e não livrarem essa mesma alma piedosa e agradável a
Deus do seu tormento apenas por amor puro?”.

84. A preocupação com as almas no purgatório não é a motivação dos


pregadores de indulgências. O motivo é o dinheiro.

85. Ou: “Por que os cânones penitenciais, ou seja, os preceitos da


penitência, que há muito tempo caíram em desuso, não são ab-
rogados e mortos, já que agora são satisfeitos pela concessão
de indulgências, como se elas ainda estivessem vivas em sua
força?”.

85. A extensão da ilegitimidade da venda de indulgências parece não


ter limites. Essa venda, por exemplo, perdoa penas da igreja há muito
tempo ab-rogadas.

86. Ou: “Por que o papa, cuja riqueza hoje é maior do que as
riquezas dos mais ricos, não constrói essa única Basílica de São
Pedro com o próprio dinheiro, em vez de recorrer ao dinheiro dos
crentes pobres?”.

86. Leão X era membro da rica e destacada família dos Médici.

87. Ou: “O que o papa redime, e qual participação nos benefícios da


igreja ele concede, àqueles que, em perfeita contrição, têm
direito a plena remissão e participação?”
87. O uso de Lutero do termo “participação” remete à tese 37. A igreja
tem de pregar a contrição, e não vender indulgências.

88. Ou: “Qual bênção maior poderia vir à igreja do que se o papa
fizesse cem vezes por dia o que faz hoje uma só vez,
concedendo a todo crente essas remissões e participações?”.

89. Ou finalmente: “Já que o papa, por seus perdões, busca a


salvação das almas, e não dinheiro, por que suspende as
indulgências e os perdões concedidos anteriormente, se eles
têm igual eficácia?”.

90. Reprimir esses argumentos convincentes dos leigos somente


pela força, e não resolvê-los através de respostas razoáveis,
implica expor a igreja e o papa ao ridículo de seus inimigos, e
deixar os cristãos insatisfeitos.

90. O chamado de Lutero por “respostas razoáveis” testifica seu desejo


de debater. Lutero procura informar a igreja dos danos causados pela
venda de indulgências.

91. Se, portanto, os perdões fossem pregados de acordo com o


espírito e a mente do papa, todas essas dúvidas seriam
facilmente resolvidas. Na verdade, elas nem mesmo existiriam.

92. Acabai, portanto, com todos esses profetas que dizem ao povo
de Cristo: “Paz, paz”, e não há paz!

92. Jeremias 6.14 (“Curam superficialmente a ferida do meu povo,


dizendo: “Paz, paz, quando não há paz” – ARA).
93. Sejam bem-aventurados todos esses profetas que dizem ao
povo de Cristo: “Cruz, cruz”, onde não há cruz!

93. O final um tanto poético de Lutero alude ao que se tornaria o centro


de sua teologia: a cruz. Nesse primeiro estágio, Lutero contende que as
indulgências prometem glória sem sofrimento, enquanto ele entende a
Escritura ensinando que a glória só virá depois do sofrimento. Lutero
termina onde começou, com a primeira tese: desafiando a igreja
católica romana a entender o arrependimento e o perdão, e oferecendo
uma alternativa radical. Para conhecer mais a teologia da cruz de
Lutero, veja sua Disputa de Heidelberg (1518).

94. Os cristãos devem ser exortados à diligência em seguir a Cristo,


sua Cabeça, por meio das penas, da morte e do inferno.

94. Em seu “Sermão sobre Indulgências e Graça” (1518), Lutero


declara “que os cristãos preguiçosos e sonolentos comprem
indulgências. Vós, fugi delas”.

95. E sejam assim confiantes de entrar no céu por meio de muitas


tribulações, e não mediante a falsa segurança de paz.

95. A declaração final de Lutero ressalta que ele não entende


totalmente a justificação pela fé. Por sua própria admissão, seriam mais
dois anos antes de sua descoberta teológica pessoal e a recuperação
dessa doutrina essencial.
UM BREVE GUIA AOS LIVROS DE
MARTINHO LUTERO E A SEU RESPEITO

“Um estudante que não deseje que seu trabalho passe a ser nada
deverá ler e reler um bom autor até que este se torne, como se fosse,
parte de sua carne e de seu sangue. As leituras dispersas confundem
mais do que ensinam. Muitos livros, mesmo entre os bons, têm o
mesmo efeito sobre o estudante. Ele é como o homem que vive em
todo lugar e, portanto, não vive em lugar nenhum. Assim como na
sociedade humana não gozamos da companhia de todos os amigos
todos os dias, mas apenas de alguns escolhidos, assim também
devemos agir em relação a nossos estudos.”
MARTINHO LUTERO, Conversas à mesa, 1533

O
S ESCRITOS DE MARTINHO LUTERO enchem
literalmente muitas estantes de livros. Assim, alguns deles
simplesmente não poderiam ser tratados aqui. Muitos
outros foram mencionados apenas brevemente em capítulos
anteriores.
Fizemos uma seleção intencional, pois um relato exaustivo
pesaria indevidamente tanto sobre o leitor como sobre o escritor.
Certa vez, alguém disse, comentando os temas de Lutero, que ele
era teólogo “de uma nota só”. Claro, diversos intérpretes têm
diferentes perspectivas no que diz respeito àquela única nota.
Porém, é verdade que, ao lermos os escritos de Lutero, certos
temas, como a teologia da cruz, a justificação pela fé, a centralidade
da Escritura e os sacramentos, vêm ao nosso encontro a cada
momento. No entanto, referir-se a Lutero como teólogo de uma nota
só exagera a questão e não demostra o correto apreço pela rica
variedade de seus escritos. Este livro serve simplesmente como
uma introdução a esses escritos e, nestas últimas poucas páginas,
oferece-se alguma direção para auxiliar aqueles que apreciaram o
que leram e desejam examinar mais a fundo esses temas.
Começamos pelos escritos do próprio Lutero e voltamo-nos em
seguida àqueles escritos a seu respeito.
Livros Escritos por Lutero
Tudo que lemos de Lutero em inglês é tradução ou do latim ou do
alemão. Edições coligidas de suas obras em latim apareceram no
tempo de sua vida, como também edições coligidas em alemão. O
mais ambicioso desses projetos é o Weimar Ausgabe, iniciado em
1888 e ainda em curso nos dias atuais, com mais de cem volumes.
Essa obra é a fonte acadêmica clássica para Lutero. Em geral,
abrevia-se como “WA” e é citada na maioria das obras a respeito
dele. Podemos, porém, ser gratos à Fortress Press por disponibilizar
boa parte desse material em inglês. Essa edição, conhecida, em
língua inglesa, como Luther’s Works, e abreviada como “LW”, teve
início em 1957, sob a editoração de Jaroslav Pelikan. Envolve
numerosos tradutores e editores, abrangendo 55 volumes dos
escritos de Lutero. Cada volume contém introduções bastante
proveitosas. Mas comprar uma coleção de 55 voloumes não será
prático para a maioria de nós. Outras fontes se mostram mais
adequadas para nós e incluem duas compilações excepcionais. A
primeira, de Timothy F. Lull, Martin Luther’s Basic Theological
Writings (1989), que oferece uma amostra completa dos escritos de
Lutero. A segunda, não tão exaustiva, mas também bastante útil, é
de John Dillenberger, Martin Luther: Selections from His Writings
(1962). Cada um desses dois volumes oferece um resumo acessível
das obras de Lutero. Mais um livro que contém uma mostra
compensadora dos escritos de Lutero é By Faith Alone: 365
Devotional Readings Updated in Today’s Language (1998). Quatro
novos volumes são um acréscimo significativo à versão em inglês.
The Annotated Luther apresenta os principais escritos de Lutero,
junto com introduções e notas explicativas bastante úteis (Fortress,
2015 e 2016).
Além disso, diversas edições dos escritos de Lutero estão
disponíveis, incluindo Três Tratados; Catecismo maior; e Catecismo
menor. Dois diferentes volumes de O cativeiro da vontade estão à
disposição. Luther and Erasmus: Freedom of the Will and Salvation
(Westminster Press, 1969), na versão em inglês, faz uma edição
que inclui todo o texto da obra de Erasmo que provocou o tratado de
Lutero. O cativeiro da vontade também é uma obra valiosa, devido à
sua excelente introdução.
Se pudéssemos acrescentar mais um capítulo a este livro, sem
dúvida seria a respeito dos comentários de Lutero. Esses
comentários representam a maior parte de seus escritos e são
fulcrais para o entendimento de seu pensamento. Em inglês, estão
disponíveis em numerosos volumes de Luther’s Works. Diversos
comentários sobre livros bíblicos individuais também estão
disponíveis em língua inglesa, incluindo The Crossway Classic
Commentaries: Galatians (Crossway, 1998); Luther’s Lectures on
Romans (Westminster, 1959); Romans (Kregel, 1976); Peter and
Jude (Kregel, 1990); e Hebrews (Kregel, 1980).
Livros sobre Lutero
Comecemos pelas biografias. De Roland H. Bainton, Here I Stand: A
Life of Martin Luther (1977) (publicado no Brasil, pelas Edições Vida
Nova, como “Cativo à Palavra”, em 2017) claramente figura entre
uma das mais conhecidas biografias de Lutero. O tratamento
completo que Bainton faz é complementado por seu estilo lúcido e
atraente. Essa biografia ainda conta com um amplo espectro de
leitores muitas décadas depois de sua primeira publicação, em
1955. Martin Brecht oferece a biografia mais completa de Lutero.
Originalmente escrita em alemão e recentemente traduzida para o
inglês, seus três volumes incluem Martin Luther: His Road to
Reformation, 1483-1521 (Fortress, 1993); Shaping and Defining the
Reformation, 1521-1532 (1994); e The Preservation of the Church,
1532-1546 (1999).
Outras biografias de relevo incluem, de Peter Manns, Martin
Luther: An Illustrated Biography (1983); James M. Kittelson, Luther
the Reformer: The Story of the Man and His Career (1987); Heiko A.
Oberman, Luther: Man between God and the Devil (1992), todas
originalmente em inglês. Mais um livro que oferece uma cronologia
completa, junto com citações por Lutero e seus contemporâneos, é,
de Oskar Thulin, A Life of Luther: Told in Pictures and Narrative by
the Reformer and His Contemporaries (1966). Finalmente, a revista
Christian History dedicou duas edições à vida, ao pensamento e aos
tempos de Lutero (edição no 34 [1992] e edição no 39 [1993]). Outro
trabalho que retrata Lutero em seus próprios dias e um pouco
depois é, de Robert Kolb, Martin Luther as Prophet, Teacher, and
Hero: Images of the Reformer, 1520-1620 (1999).
Os leitores de Heroic Boldness of Martin Luther (publicado no
Brasil, pela Editora Fiel, como Heroica ousadia de Martinho Lutero),
de Steven J. Lawson serão encorajados pelo exemplo da vida de
Lutero nessa biografia bem contada. Outro trabalho que merece
menção aborda algumas facetas da teologia de Lutero. Alister
McGrath oferece uma discussão muito útil das ideias centrais de
Lutero em seu Luther’s Theology of the Cross (1985). David C.
Steinmetz cobre essencialmente todos os aspectos do pensamento
de Lutero em Luther in Context (1995). Recentemente traduzido
para o inglês, Martin Luther’s Theology: Its Historical and Systematic
Development, de Bernard Lohse (1999), oferece um exame
fascinante da obra de Lutero, conforme o título indica, discutindo
primeiro o desenvolvimento histórico, para, então, arrumar, de
maneira sistemática, seu pensamento. Finalmente, Jaroslav Pelikan
apresenta uma discussão bem esclarecedora da tradução da Bíblia
de Lutero e de seu impacto sobre a Reforma em The Reformation of
the Bible; The Bible of the Reformation (1996).
Essa lista é apenas uma amostra da literatura existente em
língua inglesa. Todas essas obras atestam a contínua relevância do
pensamento de Lutero. O Dia da Reforma, geralmente observado
em 31 de outubro ou no domingo anterior a essa data, oferece um
adequado tributo a Martinho Lutero. Essa ocasião nos lembra seu
papel, bem como o papel que outros reformadores tiveram, na
história da tradição cristã.
Séculos distantes de seu trabalho, devemos esforçar-nos para
jamais esquecermos o papel dessas figuras e o legado de suas
obras, sempre retornando a elas. É claro que Lutero insistiria que,
quando fizéssemos isso, olhássemos para além dele e dos demais,
para o que eles apontavam: Cristo e seu evangelho. A oração no
Hinário para o culto luterano para o Dia da Reforma capta bem esse
espírito, ao deixar claro por que nos lembramos de Lutero:
Todo-poderoso Deus, que, pela pregação dos teus servos, os benditos
reformadores, tens levado a luz do Evangelho a brilhar: Concede, te
pedimos, que, ao conhecer teu poder salvador, nós o guardemos e o
defendamos fielmente contra todos os inimigos, e com alegria o
proclamemos, para a salvação das almas e a glória de teu santo nome,
por teu Filho, Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina contigo e
com o Espírito Santo, um Deus, mundo sem-fim. Amém.
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