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Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Fiel da Missão Evangélica
Literária
Lista de Ilustrações
Prefácio
Agradecimentos
Introdução: O Legado de Martinho Lutero
M
ARTINHO LUTERO saiu do Claustro Negro em
Wittenberg. Nesse prédio, ele e seus companheiros, todos
monges agostinianos, acadêmicos da universidade e
estudantes, ensinavam e aprendiam, comiam e bebiam, oravam e
dormiam. Foi ali que Martinho Lutero viveu. Também era ali que ele
escrevia. Ele cruzou o portão na direção oeste, guiado pela torre do
sino da igreja Schlosskirche, ou Igreja do Castelo, que se erguia
sobre a vila de Wittenberg. Lutero era capaz de fazer esse percurso
enquanto dormia. Um quilômetro à frente, ele chegou a seu destino.
Martinho Lutero passou o ano de 1517 em conflito. De fato, ele
estivera perturbado nos últimos 12 anos e, infelizmente, isso se
estendeu por muitos anos ainda. Em 1505, ele se viu em meio a
uma tempestade violenta, de raios e trovões, que ele concluiu ser o
juízo de Deus sobre a sua alma, e a forma de Deus aniquilá-lo. Sem
alternativa, Lutero tomou uma decisão. Ele entraria no monastério e
dedicaria sua vida a buscar piedade e paz com Deus – isso se Deus
poupasse sua vida daquela tempestade que ameaçava aniquilá-lo.
Desde então até 1517, os problemas de Lutero só aumentaram.
A paz parecia fugir dele. Ele tinha muita expectativa em relação à
igreja e, naquela época, só existia uma opção, a Igreja Católica
Romana, mas, ali, Lutero experimentava desilusão após desilusão.
Sua viagem a Roma, à Santa Sé, deixara-o totalmente esgotado.
Lá, Lutero começou a ouvir histórias de causar arrepios e
reviravoltas no estômago. Nas regiões vizinhas, vendiam-se
indulgências. A “Indulgência de Pedro”, como era chamada,
resultara de uma negociação feita entre Alberto, arcebispo de
Mainz, e o papa Leão X. De forma inédita, essas indulgências
ofereciam aos compradores passe livre para o céu. Também
ofereciam alívio do purgatório para os parentes que estavam ali
sofrendo. Bastava, para tanto, que se lançasse uma moeda no
cofre.
Naquele verão, Lutero conseguiu uma cópia da “Instrução
Sumária”. Esse documento, preparado por Alberto e seus teólogos,
dava instruções explícitas aos pregadores de vendas de
indulgências – a quem Lutero chamava de “mascates”. O
documento em si era bastante perturbador, pois zombava da lei da
igreja. E pior: os próprios membros da paróquia de Lutero, em
Wittenberg, estavam viajando para a região de Alberto e comprando
indulgências, em uma espiral descendente em suas vidas. Mas qual
incentivo eles tinham para agir de outro modo? Eles tinham sua
indulgência: uma passagem livre para sair da prisão.
Lutero sentia, de forma contundente, essa pressão. A indulgência
contava com o selo de aprovação do papa, mas estava claro que
não havia garantia alguma. A tensão interior de Lutero aumentava
enquanto ele assistia ao mal que estava sendo feito.
À medida que o outono se aproximava de Wittenberg, com o ar
se tornando cada vez mais frio e as folhas mudando de cor, Lutero
não podia mais ficar calado. Afinal, ele era doutor em Teologia
Sagrada. Era sacerdote. Era bem-treinado, e ocupava uma posição
que o obrigava a servir à igreja, mesmo que isso significasse
repreendê-la. Assim, ele encheu seu tinteiro, sentou-se à
escrivaninha e começou a trabalhar. Quando terminou de escrever,
tinha 95 argumentos e observações a respeito da venda de
indulgências. Então, preparou-se para um debate. E, naquele
mesmo dia, enviou uma carta a Alberto, arcebispo de Mainz. Lutero
planejava afixar à carta uma cópia de suas teses, de modo a
possibilitar que seus colegas acadêmicos de Wittenberg se
envolvessem no debate. Assim, ele levou sua cópia e um martelo e
dirigiu-se para o portão oeste, do lado de fora da igreja do castelo.
Quinhentos anos mais tarde, celebramos esse momento da
história, pois, efetivamente, esse ato se tornou história. O que
Lutero fez no último dia de outubro de 1517 deu início à Reforma
Protestante, impactando a igreja e a cultura por mais de cinco
séculos. Foi realmente um evento notável, executado por uma das
figuras mais empolgantes da história.
A afixação das 95 Teses no portal da igreja permanece como um
momento épico na vida de Lutero. Mas esse não é o único. Outros
momentos definidores viriam depois de 31 de outubro de 1517.
Muito mais coisas fluiriam da pena e do tinteiro de Lutero do que
somente as 95 teses.
Este livro oferece uma turnê orientada da vida de Martinho
Lutero, de seus escritos e pensamentos. Tem por objetivo não
apenas que valorizemos Lutero e seu legado, mas também que
encontremos a mesma confiança em Deus, o Castelo Forte, em sua
Palavra certeira e em Cristo e sua obra completa na cruz. Assim,
podemos olhar para trás e sentir gratidão pela vida e o legado de
Lutero.
Que nós também possamos olhar adiante! Se Cristo se demorar
em seu retorno e a igreja chegar ao ano de 2517, será que haverá
razão para celebrarmos nossos atos e nosso legado?
Nossa celebração do passado nos lembra da obrigação que
temos no presente de nosso compromisso em relação ao futuro.
Olhar para frente nos parece o melhor modo de celebrar o
aniversário de quinhentos anos da postagem das 95 teses de
Martinho Lutero.
AGRADECIMENTOS
S
OU GRATO aos amigos da editora P&R Publishing,
incluindo Bryce Craig, Amanda Martin e Ian Thompson.
Obrigado por seu apoio para esta nova edição. Também
sou grato aos meus colegas de Ligonier e da Faculdade Bíblica da
Reforma. Há muito tempo desejo voltar no tempo e ter apenas uma
refeição com Lutero. Trabalhar com R. C. Sproul está bem próximo
disso. Caleb Gorton, Anthony Salangsang, Megan Taylor, Emberlee
van Eyk e Jeanna Will, todos me ajudaram a chegar à reta final.
Sem o bondoso encorajamento de Chris Larson, esta nova edição
provavelmente não teria acontecido.
Lutero era, acima de tudo, um homem de família. Eu também sou
grato à minha família por seu amor sem limites. Obrigado.
INTRODUÇÃO
O Legado de Martinho Lutero
T
OMADO DE PURO PAVOR, ele fez um juramento à sua
santa padroeira. Desiludido, questionou as práticas da igreja
à qual dedicara sua vida. E, de modo resoluto, afixou uma
lista de protestos na porta da igreja. Com total satisfação, ele
abraçou a ideia libertadora de que a justiça de Deus é uma dádiva, e
não um merecimento. Em face de intensa batalha espiritual, ele
clamou por Deus, seu “castelo forte”, seu “baluarte que nunca falha”.
Esses são momentos decisivos na vida de Martinho Lutero. A
maioria – embora nem todos os cristãos – conhece esses momentos
decisivos. A maioria também sabe que, a cada movimento do
martelo na porta da igreja de Wittenberg, Lutero provocou a
Reforma Protestante. Porém, muito mais que isso, esses
acontecimentos também servem para formar nossas vidas, pois
encarnam a Reforma, estabelecendo o fundamento do
Protestantismo. Certo historiador comentou que qualquer vestígio do
Cristianismo na cultura ocidental se deve inteiramente a esse
homem, Martinho Lutero.
No entanto, apesar de Lutero ser bastante conhecido, para além
de alguns momentos significativos, boa parte de sua vida ainda
representa um mistério para a maior parte dos cristãos. Embora
seus escritos formem o berço do Protestantismo e articulem os
princípios essenciais da teologia reformada, ainda permanecem sem
ser lidos por muitas pessoas nos dias atuais. Essa falta de
conhecimento acerca da obra de Lutero é exatamente a razão para
este livro. Trata-se de uma tentativa de colocar seus descendentes
há muito perdidos em contato com seu legado, um convite para
dedicar algum tempo à mesa de Lutero, a fim de examinar sua vida
e ouvir suas ideias. Tais ideias, contudo, não são relíquias do
passado. Com certeza, seu pensamento inspirou toda uma geração
em seus próprios dias e também tem o poder de impactar a igreja
de hoje, acendendo, em nossa própria geração, uma busca
apaixonada por Deus e por sua verdade. São abundantes as
biografias sobre Lutero, e as obras especializadas a respeito de seu
pensamento enchem de livros muitas prateleiras. Seus próprios
escritos continuam a ser publicados séculos depois de sua morte.
Com toda a atenção dispensada a Lutero, pode-se perguntar o
porquê disso. Ou seja, o que demanda tanta atenção em Lutero?
O Legado de Lutero
O papel de Lutero como catalisador da Reforma é a principal razão
para tal interesse perene nele. Imagine um mundo sem o
Protestantismo. Se você fosse um jovem monge agostiniano nas
primeiras décadas do século XVI, não seria difícil imaginar. Para
Lutero, a realidade era um mundo sem o Protestantismo. Suas
escolhas eram claras: ou a Igreja Católica Romana ou o paganismo.
Como monge, claro, ele abraçava a primeira opção. Quando Lutero
morreu, em 1546, contudo, o mundo havia mudado de forma
significativa. Assim, entre o Catolicismo Romano e o paganismo,
agora havia uma ampla gama de escolhas, incluindo o Luteranismo,
o Anabatismo, a Igreja Reformada, o Anglicanismo e o
Presbiterianismo. Essas opções religiosas simplesmente não
existiam em 1517. Naquele ano, Lutero deu início a um mar de
mudanças e reformas que abalariam todo o mundo.
Antes do desafio de Lutero, no sentido de transformar a igreja,
diversas tentativas de reforma haviam ocorrido. Alguns movimentos,
como a Devotio Moderna (Nova Devoção), criticavam a apática
espiritualidade, como também a vasta riqueza da igreja. No entanto,
embora as objeções fossem profundas, o movimento não contava
com uma base teológica sólida para elaborar suas críticas. Outros
movimentos, ainda que mais teologicamente orientados, também
não tiveram êxito em reformar a igreja. Na Inglaterra, John Wycliffe
e, na Boêmia (a moderna República Checa), John Hus prepararam
desafios formidáveis, mas foram esmagados pelo poder de Roma.
Hus foi queimado em um poste e, embora Wycliffe tenha morrido de
causas naturais, a igreja o exumou e queimou seus ossos.
Contudo, ainda que esses reformadores da pré-Reforma não
tenham logrado uma mudança permanente, firmaram um importante
alicerce sobre o qual Lutero construiu. Na verdade, Lutero
reconheceu essas valiosas contribuições dos reformadores
anteriores à Reforma. De Wycliffe, Lutero reconheceu a importância
de se colocar a Bíblia nas mãos do povo em uma língua que todos
pudessem entender. De Hus, Lutero aprendeu a desafiar as
diversas práticas e funções da igreja que se opunham às Escrituras.
Da Devotio Moderna, Lutero entendeu também que a falta de vigor
espiritual da igreja deveria ser desafiada. No entanto, de uma forma
diferente em relação a esse movimento, ele sabia que tal desafio
teria de ser construído sobre um firme fundamento teológico. Na
verdade, ao debater com Erasmo sobre as questões da vontade e
do livre-arbítrio, Lutero destaca que a preocupação central para a
igreja é sempre teológica. Tirem a doutrina, Lutero argumenta, e não
se tem uma igreja.
Lutero se mostrava cético quanto ao entendimento teológico
básico da igreja desde meados de 1510, quando começou a
palestrar, em Wittenberg, a respeito dos Salmos, de Romanos,
Gálatas e Hebreus. Sua primeira restrição contra a igreja, contudo,
manifestou-se com a contemplação dos severos problemas
causados pelas indulgências. Claro, esse erro levou à publicação
das 95 teses em Wittenberg. Por meio desse evento, e também com
a recuperação da doutrina da justificação pela fé, sua posição
corajosa diante da igreja e do império na Dieta de Worms, bem
como sua incansável dedicação à edificação de uma igreja
alicerçada tão somente na Escritura, Lutero atuou como arquiteto da
Reforma. Seu trabalho em Wittenberg agitou as terras alemãs e
toda a Europa. Na época de sua morte, o Protestantismo e a nova
igreja evangélica estavam firmemente estabelecidos.
Mas Lutero não chama a atenção apenas por seu envolvimento
nos eventos da Reforma; ele também desempenhou importante
papel na formação das ideias reformadas. Talvez mais que qualquer
outra pessoa, Lutero moldou os pressupostos que definem o
Protestantismo. Os teólogos utilizam uma série de expressões
latinas que encerram esses conceitos. Conhecidas como os “Solas
da Reforma”, essas expressões incluem sola Scriptura, só a
Escritura; sola fide, somente a fé; sola gratia, somente pela graça;
solus Christus, somente Cristo; e soli Deo gloria, somente para a
glória de Deus. Todas essas ideias encontram raiz no pensamento
de Martinho Lutero. O fato de elas continuarem a definir o
Cristianismo é um testemunho duradouro da influência de Lutero.
Lutero chama a atenção também por sua personalidade
empolgante. “Dizem que a indiscrição”, Lutero comentou certa vez,
“é minha maior falha”. Em consequência disso, tanto seus escritos
como seus atos são recheados de humor pungente e vívido. Sua
personalidade marcante se estende às conversas e aos escritos.
Certamente, ler alguns trechos de suas “Conversas à mesa” fará
algumas pessoas ficarem ruborizadas. Além do mais, quando se
tratava de envolver seus inimigos, era raro Lutero mostrar um
linguajar contido. De alguma maneira, essas não são
necessariamente características positivas. Contudo, a atitude
transparente de Lutero e, por vezes, sua candura oferecem
numerosas historietas e vinhetas que, ainda hoje, continuam a
fascinar os leitores. Algumas vezes, as figuras históricas podem
parecer unidimensionais para as futuras gerações de leitores.
Costumamos reunir as facetas da pessoa por meio de diversos
relatos distintos, mas vemos o retrato pessoal um tanto ofuscado.
Esse não é o caso de Lutero. O retrato pessoal que surge de Lutero,
a despeito de seus pequenos pecados, é um tanto enternecedor.
Friedrich Nietzsche, luterano alemão, pelo menos em um
momento de sua vida declarou que somos “humanos, todos
humanos demais”. Tal sentimento também descreve Lutero.
Saudado pelo artista alemão Hans Holbein como o “Hércules
alemão”, Lutero parecia, para muitos, maior que a própria vida. Mas,
na realidade, embora ele tivesse pernas de ferro, seus pés eram de
barro. Talvez a maior falta de Lutero se reflita em sua atitude severa
contra os judeus em uma fase tardia de sua vida. Assim, em vez de
esconder essas falhas ou enfatizá-las ao extremo, somos bem-
servidos ao reconhecê-las. Apesar do retrato de Holbein, Lutero era
bastante humano. Isso não funciona como uma desculpa para seus
erros, mas nos lembra que, embora admiremos Lutero, também
devemos vê-lo como um pecador salvo pela graça.
Finalmente, o incansável compromisso de Lutero para com a
igreja lhe garante lugar de destaque na história. Ele demonstrou
surpreendente versatilidade, coragem nos momentos decisivos e
resistência para suportar a caminhada. É raro encontrarmos a
combinação de um visionário que também consegue implementar
sua visão. A vida de Lutero oferece um desses casos raros. Ele não
somente se posicionou de maneira ousada e apontou a direção
certa para a igreja, como também dedicou sua vida a conduzi-la
nesse caminho. Lutero trabalhou incansavelmente, muitas vezes
com grande sacrifício pessoal, para garantir que a igreja vicejasse
no período em que viveu e para além dele. Essas razões, ao lado de
outras, consubstanciam a atenção difundida que Lutero recebe. Nos
capítulos seguintes, continuaremos a examinar por que Lutero não
apenas recebe tanta atenção, como também as razões pelas quais
a merece.
Visão Panorâmica
Começamos nossa turnê de Martinho Lutero levando em conta sua
vida repleta de eventos. No Capítulo 1, traçamos os passos iniciais
de sua vida pela estrada até a Reforma Protestante. Com a
conclusão de seus estudos e após uma experiência traumática
durante uma tempestade, Lutero entra no monastério. Cerca de
doze anos depois, o papa o declara herege. Seguindo o confronto
decisivo na Dieta de Worms, Lutero entra em seu “exílio” no Castelo
de Wartburg. No Capítulo 2, prosseguimos com a narrativa de sua
vida, iniciando por sua volta a Wittenberg e terminando com as
últimas décadas de sua vida.
A Segunda Parte apresenta diversas discussões acerca de
Lutero, o Reformador. No Capítulo 3, oferecemos uma visão geral
de sua teologia. O capítulo seguinte envolve os Três Tratados,
textos fulcrais dos meses relativos ao outono de 1520. A obra
máxima de Lutero, O cativeiro da vontade, é o foco do Capítulo 5,
que aborda o que Lutero chamou de “ponto vital” da Reforma. Aqui,
exploramos esse texto crucial que desenvolve o entendimento de
Lutero sobre o livre-arbítrio e a soberania de Deus. No Capítulo 6,
examinamos a Ceia do Senhor e o papel que isso desempenhou na
Reforma. A Segunda Parte se encerra quando examinamos o
pensamento e os escritos de Lutero relativos à ética. Alguns
acontecimentos históricos fundamentais de seus dias, como a
Guerra dos Camponeses e a Peste em Wittenberg, ajudam-nos a
ver a aplicação do pensamento de Lutero.
Lutero devotou a maior parte de seus esforços à teologia e à
prática da igreja. Na Terceira Parte, continuamos nossa turnê da
vida e do pensamento de Lutero ao examinar suas contribuições à
vida da igreja. O Catecismo menor, assunto do Capítulo 7, perdura
como testemunho ao reconhecimento de Lutero acerca do papel da
igreja em treinar corretamente a próxima geração. O Capítulo 8
volta-se para um texto singular na história da igreja, as Conversas à
mesa de Lutero. Aqui, Lutero vivencia sua teologia de modo
transparente diante de sua família, seus colegas e alunos, enquanto
todos se reúnem em torno da mesa de jantar. Devido à sagacidade
tanto de Lutero como de alguns estudantes e escribas, podemos
“escutar” essas conversas.
Embora todos nós conheçamos o hino “Castelo Forte é Nosso
Deus”, de Lutero, talvez não estejamos familiarizados com o lugar
de destaque que a música desempenhava em sua vida. O Capítulo
10 oferece a oportunidade de ingressar nessa parte da experiência
de Lutero. No Capítulo 11, exploramos as ideias de Lutero sobre o
que é a “verdadeira igreja”, ao estudarmos um de seus textos
menos conhecidos, porém profundos, Sobre os concílios e a igreja.
Finalmente, Lutero deixou uma enorme quantidade de sermões.
Examinamos um sermão em especial, “Sobre como contemplar o
santo sofrimento de Cristo”, como representativo de seus
aproximadamente seis mil sermões.
Em suma, este livro apresenta tanto a vida como o pensamento
de Martinho Lutero. Não é nossa intenção dispensar um tratamento
exaustivo a qualquer um desses aspectos. De forma ideal, seria de
muita valia incluir muitos outros textos e assuntos para mostrar
Lutero em toda a sua genialidade. Mas, em termos práticos, isso
esgotaria igualmente a paciência do leitor e do escritor. A coleção
mais completa dos escritos de Lutero em língua inglesa totaliza 55
volumes e cobre apenas cerca de metade da sua obra. Assim,
escolhi os textos e assuntos que parecem cruciais ao pensamento
de Lutero. Portanto, este livro tem a intenção de familiarizá-lo com
Lutero, o que servirá como portal para uma melhor análise de sua
vida e de seu pensamento. A conclusão oferece algumas sugestões
e diretrizes para que se prossiga nessa jornada.
Após a morte de Lutero, seu grande amigo, o artista Lucas
Cranach, pintou um último retrato do reformador. Cranach captou
toda a vida e o propósito de Lutero nesse quadro de três painéis,
que foi instalado na Igreja do Castelo de Wittenberg. O painel direito
mostra Lutero no púlpito, proclamando a Palavra de Deus, enquanto
pastoreia fielmente seu rebanho. Com uma Bíblia aberta à sua
frente, ele se posta de pé, apontando para a congregação. À
esquerda, o painel mostra uma congregação reunida, escutando
atentamente o reformador. Cranach pintou a esposa de Lutero,
Katie, um filho e até mesmo sua filha Magdalena, que morrera
alguns anos antes, na congregação. Mas eles não estão olhando
diretamente para Lutero. O painel central mostra Cristo na cruz.
Tomados coletivamente, os três painéis expressam, de maneira
pungente, a paixão de Lutero ao apontar para que todos vissem
Cristo. Mais especificamente, quando olhamos para Lutero, ele nos
remete a todos para Cristo. É dessa forma que ofereço este livro,
que, embora aponte para Lutero, nos direciona a Cristo. Em última
instância, esse é o legado de Martinho Lutero.
M
ARTINHO LUTERO teve uma vida plena; assim, todo
biógrafo é desafiado quando se vê diante da questão do
que deixar de fora. Com apenas dois capítulos
especificamente dedicados à biografia, enfrentamos, de modo
especial, esse desafio. No entanto, procurei abordar os eventos
cruciais da vida de Lutero. Esses acontecimentos, examinados no
Capítulo 1, incluem momentos decisivos, como o juramento feito
durante a tempestade de trovões e raios que o enviou ao
monastério, a postagem das 95 teses, que o lançou ao centro da
atenção em 1517, e a descoberta da Reforma da justificação pela
fé, que “abriu os portais do paraíso” para ele, tornando-se a
mensagem fundamental para tudo que ele pregava. Esse capítulo
se encerra com a ousada posição de Lutero diante da Dieta de
Worms e, então, descreve seu “sequestro”.
No capítulo seguinte, retomamos o fio da história quando Lutero
retorna de seu exílio no Castelo de Wartburg. Os eventos que se
desenrolam nesses últimos anos incluem o casamento do ex-monge
com uma ex-freira, o estabelecimento da primeira casa pastoral da
era moderna, o encontro decisivo com o teólogo Ulrico Zuínglio, em
Marburg, e o compromisso incansável de estabelecer a recém-
formada igreja. Através do estudo dos acontecimentos de seus
primeiros anos, como também dos últimos, começamos a entender
por que Lutero figura com tamanha proeminência nas páginas da
história, e por que continua a fascinar os leitores cinco séculos
depois de sua morte.
Capítulo 1
OS PRIMEIROS ANOS
1483-1521
E
M 1529, JOHANNES COCHLAEUS escreveu um folheto
atacando Martinho Lutero. Intitulado “Lutero de Sete
Cabeças”, colocava em destaque uma xilogravura na
página de rosto com a caricatura de Lutero como um indivíduo
perigosamente conflitante que, de acordo com o escritor,
representava uma grande risco para a igreja, em virtude de suas
diversas e contraditórias personalidades. Um retrato mostra Lutero
como um louco com abelhas sobrevoando sua cabeça. A
xilogravura final o mostra como Barrabás, deixando implícito que ele
era o próprio inimigo de Cristo.
O papa Leão X, que, inicialmente, via os disparates de Lutero
como nada mais que delírios de um alemão bêbado, passou a
apontar Lutero como arqui-inimigo da igreja, conseguindo reunir
tanto a igreja como o império contra o monge alemão. E, mesmo na
morte de Lutero, muitos questionavam qual teria sido seu verdadeiro
legado. Teria sido ele um instrumento de Deus? Ou uma ferramenta
na mão do diabo?
No entanto, um ponto no qual os estudiosos concordam é que o
mundo em que nasceu “Martin Luder”, em 10 de novembro de 1483,
era bem diferente daquele que ele deixou em 18 de fevereiro de
1546. As décadas em que viveu contiveram mudanças e
turbulências sem precedentes, e Martinho Lutero esteve no centro
de tudo isso. Porém, Lutero experimentou um início bastante
modesto para uma figura tão proeminente. Como escreveu em sua
fase madura: “Venho de uma família de camponeses”. E continuou:
Ali comecei a entender que a justiça de Deus é aquela pela qual o justo
vive por um dom de Deus, ou seja, pela fé. Este é o significado: a
justiça de Deus é revelada pelo evangelho, ou seja, a justiça passiva
com que o Deus misericordioso nos justifica pela fé (...). Aqui eu senti
que nasci totalmente de novo e entrei pelas portas abertas no paraíso.
O resultado disso foi que Lutero trocou sua ira contra Deus por
amor. Ele escreveu: “Eu exaltava essa mais doce palavra com um
amor tão grande quanto era o ódio que eu tinha antes da expressão
‘justiça de Deus’”.
Lutero deixou de ver a justiça como ativa, algo que ele tinha de
fazer, para algo passivo, que Cristo realizara em seu lugar, adquirido
não por nossos méritos, mas somente pela fé. Nasceu, então, o
lema da Reforma – sola fide, somente a fé –, e Lutero nasceu de
novo.
Debates com Roma
O resultado de haver escrito as 95 Teses e de sua conversão foi que
Lutero recebeu uma convocação de Roma para explicar seu
comportamento. Mas, através da intercessão de Frederico, o Sábio,
ele não compareceu. Se tivesse ido, talvez jamais tivesse voltado;
assim, foi convocado a Augsburgo, em meados de outubro de 1518,
para debater com o cardeal Cajetan. Tratava-se, de fato, mais de
uma inquisição do que de um debate, e a reunião teve pouco
sucesso. As duas partes falavam além do outro. Lutero enfatizou a
autoridade da Escritura e a salvação pela fé. Nenhum desses
pontos era compreendido por Cajetan, muito menos lhe parecia
persuasivo. A intenção de Cajetan era forçar Lutero a se retratar
quanto aos seus escritos e às suas ideias, ou conseguir evidências
para condená-lo como herege. Embora estivesse claro para Cajetan
que Lutero era radical, ele se mostrou incapaz de extrair quaisquer
comentários claros do reformador que pudessem condená-lo como
herege. Lutero saiu da reunião incerto quanto ao que representaria
o próximo movimento da igreja; Cajetan saiu de lá sem uma
retratação ou uma prova de heresia.
Lutero encontrou um opositor muito maior em Leipzig, no debate
de 1519: Johann Eck, um teólogo que também era professor na
prestigiosa Universidade de Ingolstadt. Eck começara a escrever
contra Lutero assim que as primeiras cópias das 95 Teses surgiram
da impressora. Oficialmente, os debates se deram entre Eck e
Andreas Karlstadt, colega sênior de Teologia de Lutero, em
Wittenberg. Mas, na realidade, o debate se desenrolou entre Eck e
Lutero. Eck adotou uma estratégia de efeito: alinhou Lutero a
Wycliffe e Hus, ambos condenados como hereges. Lutero,
consequentemente, tornou-se culpado apenas por associação.
Porém, para Lutero, o debate ofereceu uma plataforma para a
exposição de sua doutrina sobre a autoridade da Escritura,
conhecida como sola Scriptura (somente a Escritura). O
compromisso de Lutero com a autoridade da Escritura acima da
autoridade dos pais da igreja, dos concílios e até mesmo do papa
ressoou durante todo o debate. A certa altura, Lutero chegou a
ponto de dizer que até mesmo um menino de escola, armado com o
texto, seria mais bem preparado do que o próprio papa.
Esse debate, diferente do que tivera com Cajetan, não deixou
margem à ambiguidade quanto ao resultado; Martinho Lutero estava
fora da conformidade em relação à igreja. Porém, ele ainda não fora
declarado herege. Mas Eck se esforçou diligentemente para esse
fim e, em 1520, obteve a bula papal que declarava oficialmente
Lutero como inimigo da igreja, inimigo dos apóstolos e inimigo do
próprio Cristo. Intitulada “Exsurge, Domine” (“Levanta, ó Senhor”), a
bula de Leão X, proclamada em 15 de junho de 1520, clamava pela
imediata detenção do “selvagem javali na vinha de Deus”. A Lutero,
o javali selvagem, não dava alternativa: ele tinha apenas sessenta
dias depois do recebimento da bula para se retratar. Se não o
fizesse, “sua memória [seria] completamente extirpada da
comunidade dos crentes em Cristo”. Seus livros seriam queimados,
e ele e seus seguidores, bem como seus apoiadores, seriam
tomados à força e enviados para Roma.
A bula papal chegou em um momento bem conturbado para
Lutero. Naquele outono, ele escrevera o que foi chamado
popularmente de Três Tratados. Esse trabalho, discutido em
detalhes no Capítulo 4, acentuou a quebra entre Lutero e a igreja.
Ele, contudo, encontrou tempo para responder por escrito à bula
papal: Sobre a Detestável Bula do Anticristo. Inicialmente, Lutero
gostava de Leão X. A certa altura da carta remetida ao papa em
1518, Lutero expressou pesar por Leão X ser o chefe da igreja,
dizendo: “Tu merecias ser papa em dias melhores”. Por volta de
1520, contudo, esse sentimento mudou, e Lutero se referia a Leão X
como o Anticristo. Quanto à bula papal, quando se passaram os
sessenta dias, Lutero a queimou publicamente em Wittenberg.
Quando o papa recebeu esse informe sobre Lutero, excomungou-o
e conclamou sua imediata entrega a Roma.
A Dieta de Worms
Nesse momento, o palco estava pronto para a luta final entre Lutero
e a igreja. E, mais uma vez, Frederico, o Sábio, interveio e evitou
que Lutero fosse levado para Roma. Em vez disso, ele deveria
apresentar-se perante a Dieta, o congresso Imperial em Worms, em
abril de 1521. Depois da afixação das 95 Teses, esse é o
acontecimento mais conhecido da vida de Lutero. Seu surgimento
em Worms alcançou proporções quase míticas. Carlos V, imperador
do Sacro Império Romano, supervisionava a Dieta.
Como notam muitos historiadores, o Sacro Império Romano não
era santo, nem romano, tampouco um grande império. Na verdade,
tratava-se de uma confederação solta cujo futuro era precário. Esse
era o primeiro encontro de Carlos V com os príncipes e
governadores da Alemanha, e ele não poderia ter planejado um
desafio mais complicado. Por um lado, ele era católico romano
convicto e tinha uma grande dívida para com a cúria romana. O
núncio papal, Alexandre, estava ali para garantir que os interesses
de Roma fossem protegidos. Por outro lado, Carlos V ascendera ao
trono, em grande parte, pela influência de Frederico, o Sábio,
protetor de Lutero.
Charles V estava em uma posição extremamente delicada;
Lutero, igualmente. Lutero chegara com as boas-vindas de herói em
Worms, armado para – e esperando por – um debate. Ele tinha a
Escritura a seu lado, tinha Agostinho a seu lado e tinha argumentos
que apelariam para seus compatriotas alemães também a seu lado.
Por que, arrazoou Lutero, deveríamos abdicar de nossa autoridade
local alemã de governar nossas terras e de praticar nossa religião
em prol do papa, em Roma?
Mas, em vez de se envolver em um debate, Lutero sofreu uma
inquisição. Chegada a hora de ele aparecer diante da Dieta, foram
feitas duas perguntas apenas: “Esses são teus escritos?” e “Tu te
retratarás?”. Lutero ficou atônito diante da assembleia. Como
poderiam esperar que ele se retratasse? Seus escritos continham as
palavras da Escritura, as palavras dos concílios e até mesmo
palavras dos papas. Ele não poderia simplesmente descartá-las.
Além do mais, Lutero quis saber o que exatamente em seus escritos
havia perturbado tanto Carlos V. Lutero estava disposto a admitir
que estava errado se isso fosse provado. Roma, porém, não estava
interessada em provar o equívoco de Lutero; os líderes queriam
apenas que ele fosse embora. Lutero pediu um dia para pensar no
assunto, e Carlos V anuiu. No dia seguinte, 18 de abril de 1521,
mais uma vez Lutero ficou de pé diante da Dieta de Worms. Mais
uma vez, pediu um debate e, mais uma vez, isso lhe foi negado.
Então, ele proferiu seu discurso famoso e sucinto, em que se lê na
íntegra:
Nessa solidão lúdica, estou exposto a mil diabos. É muito mais fácil
lutar contra o diabo encarnado – ou seja, as pessoas – do que contra
os espíritos de iniquidade nos lugares celestiais. Muitas vezes eu caio,
mas a mão direita do Altíssimo me levanta novamente.
E
M 6 DE MARÇO DE 1522, Lutero, ainda irreconhecível até
mesmo para seus amigos mais próximos, voltou a
Wittenberg. Seu rompimento com Roma fora irreparável e
definitivo. Agora, Lutero tinha de supervisionar o estabelecimento de
uma nova igreja, bem diferente de sua precursora. Claro, nem todos
os seus colegas e discípulos concordavam quanto a esse desafio.
Os excessos de Andreas Karlstadt e dos “profetas de Zwickau” – um
grupo de pastores de um vilarejo próximo, Zwickau, que
originalmente se associou a Lutero, trilhando, após, uma direção
mais fanática – ameaçavam desmontar a coalizão precária de
seguidores. Lutero havia enfrentado tanto o papa como o imperador,
mas será que conseguiria contrapor-se a seus amigos?
Figura 2.1 Linha do Tempo: Os Últimos Anos
1521- Permanece “em exílio” no castelo de Wartburg de maio de 1521 a
1522 março de 1522
1522 Retorna a Wittenberg
1523 Compõe seu primeiro hino, “Uma nova canção aqui terá início”
1523 Escreve Sobre autoridade temporal
1524 Publica seu primeiro hinário
1525 Guerra dos Camponeses
1525 Casa-se com Katherina von Bora em 13 de junho
1525 Escreve O cativeiro da vontade
1526 Escreve Missa alemã
1527 A peste ataca Wittenberg. A casa de Lutero é transformada em
hospital
1527 Compõe “Castelo forte é nosso Deus”
1529 Assiste ao Colóquio de Marburgo em 1-4 de outubro
1529 Escreve Catecismo menor
1530 Escreve Confissão de Augsburgo
1534 Publica a Bíblia completa em alemão
1537 Escreve Artigos de Smalcald
1539 Publica a primeira edição de Wittenberg, reunindo os escritos
coligidos
1545 Publica uma edição completa de escritos em latim, com o prefácio
contendo uma reflexão biográfica
1546 Prega seu último sermão em Wittenberg, em 17 de janeiro
1546 Morre em 18 de fevereiro, em Eisleben. É sepultado em Wittenberg
Dois dias depois, tendo à sua vista a pia batismal em que fora
batizado, Martinho Lutero morreu. Finalmente, sua luta fora
concluída. Deus, que, no passado, causava terror à sua alma pelo
mero pensamento, agora era visto como quem o receberia de
braços abertos. Aqueles que se reuniram à sua volta no leito de
morte documentaram suas palavras finais. Pouco antes de morrer,
ele orou: “Agradeço-te, Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo,
porque tens revelado teu amado filho a mim, em quem pude crer,
pregar e confessar, e em quem confiei”. Em seguida, ele ofereceu
seu último “sermão”, que consistia em recitar João 3.16 e o Salmo
68.20. Neste último, lê-se: “Nosso Deus é um Deus de salvação; a
Deus, o Senhor, pertence escapar da morte”.
A notícia da morte de Lutero espalhou-se rapidamente. Quando
Melâncton, que lecionava na universidade, recebeu-a, interrompeu a
aula e disse: “Não foi o brilho humano que descobriu a doutrina do
perdão dos pecados e da fé no Filho de Deus, mas Deus que o
levantou diante de nossos olhos, que revelou essas verdades por
meio dele. Que guardemos querida a memória desse homem e da
doutrina do modo como ele a entregou a nós”. O corpo de Lutero foi
devolvido a Wittenberg, onde jaz enterrado, na igreja do castelo.
O legado de Lutero inclui a igreja que leva seu nome, como
também todos aqueles que se chamam protestantes. Muitas das
doutrinas e práticas que definem as diversas tradições protestantes
remontam suas raízes a Martinho Lutero. Além disso, ele deixou tão
amplo acervo de escritos que a tentativa de produzir uma edição
completa de todas as suas obras, que começou em 1883,
prossegue até hoje. A Weimar Ausgabe, ou edição, já conta com
cem volumes, e continua a crescer. A versão inglesa autorizada de
suas obras, uma tradução de seleções dessa edição, conhecida
simplesmente como Luther’s Works (Obras de Lutero), é composta
por 56 volumes. Essas obras incluem tratados, sermões,
comentários, cartas e muitos panfletos ou escritos menores. Com
frequência, Lutero expressava sua surpresa com o que Deus fizera
em sua vida. Ele também disse: “Preferia que todos os meus livros
desaparecessem e somente as Sagradas Escrituras fossem lidas”,
acrescentando: “Quem vai lê-los?”. Os escritos de Lutero têm
encontrado muitos leitores e, com frequência, esses leitores foram
auxiliados a entender melhor a Escritura por meio de seus escritos.
Avaliando Lutero
A certa altura, durante seu exílio no castelo de Wartburg, na
primavera de 1523, Lutero, necessitando de uma mudança no
cenário de seu refúgio, parou em uma hospedaria próxima. Ele
estava sentado sozinho, disfarçado de cavaleiro, à mesa, lendo uma
cópia em hebraico do Saltério. Dois estudantes suíços entraram, e
Lutero os convidou a se sentar à mesa com ele. No decorrer da
conversa, surgiu o assunto de Martinho Lutero. “Caro Senhor”, os
estudantes inquiriram esse aparente cavaleiro alemão: “Pode nos
dizer se Martinho Lutero está agora em Wittenberg ou onde poderia
estar?”. Lutero, respondendo apenas à primeira parte da pergunta,
assegurou-lhes: “Certamente Lutero não está em Wittenberg”. Em
seguida, ele lhes perguntou: “Bons homens, qual opinião o povo
suíço tem sobre Lutero?”. E eles responderam: “Meu senhor, como
em todo lugar, as opiniões variam. Existem alguns que não
conseguem louvá-lo suficientemente, agradecendo a Deus que, por
seu intermédio, tenha sido revelada a verdade, trazendo-se à luz os
erros; mas alguns, especialmente o clero, condenam-no como um
herege problemático”. Lutero, então, respondeu: “A não ser que eu
me engane, eles são papistas”.
À medida que aquela conversa evoluía, as suspeitas dos
estudantes foram aumentando em relação a esse cavaleiro que
conhecia tantas coisas. Quando viram o Saltério em hebraico, essas
suspeitas se acentuaram ainda mais. Mas foi somente quando
“Junker Jorg” saiu que o dono da estalagem informou que eles
haviam estado à mesa com o próprio proscrito. Sua conversa com
Lutero, mais tarde relatada, revela certa ironia. Lutero começou sua
busca por resolver suas lutas espirituais abraçado pela igreja e,
segundo entendia, abandonado por Deus. E resolveu essas lutas
abraçado por Deus e abandonado pela igreja. Embora isso tivesse
sido mais que suficiente para Lutero, ele também foi acolhido por
aqueles que eram gratos a Deus por usar esse monge para
recuperar o tesouro do evangelho. Isso, claro, não foi verdadeiro
apenas nos dias dele, pois ainda é assim, cinco séculos depois.
Nota sobre as Fontes
As biografias de Lutero, entre as muitas existentes, são discutidas
na conclusão. As fontes primárias quanto a detalhes e questões
biográficas se encontram em Luther’s Works, vv. 48-50: Letters I, II,
III (1963), obra editada em inglês por Gottfried G. Krodel. Também é
útil consultar Luther’s Works, v. 54: Table Talks (1967), editado,
também em inglês, por Theodore G. Tappert. De autoria de Oskar
Thulin, A Life of Luther (1966), na edição em língua inglesa, oferece
um relato cronológico completo, com extensas citações das fontes
primárias, incluindo os escritos de Lutero e de seus
contemporâneos, amigos e inimigos.
E
STA SEÇÃO EXAMINA os escritos que conduziram
diretamente à Reforma e continuam a impactar a teologia
protestante nos dias atuais. Começamos com uma visão
geral da teologia de Lutero. Lutero nunca escreveu uma teologia
sistemática, mas, no desenrolar de suas obras, surgem diversos
temas e ênfases principais.
Este capítulo expõe tais temas de maneira sistemática, a fim de
oferecer o quadro maior de seu pensamento. Em seguida, abordam-
se os Três Tratados, uma série de trabalhos escritos durante os
meses cruciais do outono de 1520. Aqui, Lutero vai muito além das
95 teses em sua crítica a Roma. Sua maior obra teológica, O
cativeiro da vontade, torna-se o foco do capítulo seguinte. Aqui,
seus pensamentos quanto às questões desafiadoras da soberania
de Deus e da vontade humana revelam-se diante de nós.
Pode parecer surpreendente para alguns que a questão que
impediu os reformadores da Alemanha, Lutero e companheiros, de
se unirem aos reformadores da Confederação Suíça, de Zuínglio e
seus seguidores, dizia respeito à Ceia do Senhor. O Capítulo 6
examina essa questão para entender por que pode tornar-se um
fator crucial. Finalmente, mesmo que não intencionalmente, a
reforma teológica de Lutero inspirou uma verdadeira revolução
social. Respondendo às questões que giram à sua volta, Lutero
desenvolveu ideias intrigantes em relação ao papel e ao dever do
cristão neste mundo. Todas essas obras impactaram profundamente
a primeira geração que as leu. Não são apenas textos oportunos.
Eles continuam compensando seus leitores e se firmam entre os
grandes clássicos da fé cristã.
Capítulo 3
O CERNE DO PROBLEMA:
Entendendo a Teologia de Lutero
“É muito difícil um homem crer que Deus seja gracioso com ele. O
coração humano não consegue conceber isso.”
MARTINHO LUTERO, 1531
C
ONFORME JÁ MENCIONAMOS, Lutero nunca escreveu
uma teologia sistemática. Sua teologia foi desenvolvida nas
trincheiras, quando ele foi lançado em conflitos e se
envolveu nas controvérsias de seus dias. Com certeza, de seu
trabalho, surgiu um sistema que revelava temas distintos e que
tomou sobre si uma estrutura própria, embora não tenha ocorrido
tudo de uma só vez, nem em um único lugar.
No entanto, navegar pelos contornos do labirinto da teologia de
Lutero sem uma estrutura ou direção é como explorar um imenso
sistema de cavernas sem um mapa. Eventualmente, é provável que
se consiga perceber a direção e provavelmente os locais pelo
caminho serão apreciados, mas um mapa teria facilitado em muito a
jornada. Ao começar a examinar Lutero como reformador, bem
como suas ideias e escritos, talvez seja útil, em primeiro lugar, olhar
um “mapa”, ou a visão geral de sua teologia.
Na primavera de 1509, Lutero chegou a Wittenberg e, dando
início à sua carreira como professor de Teologia e Bíblia, escreveu
uma carta a Johann Braun, sacerdote em Eisenach a quem muito
admirava. Na carta, Lutero expressa sua intenção ao ensinar e
escrever, frisando que desejava fundamentalmente seguir uma
teologia “que penetrasse no cerne do problema, no âmago do grão
de trigo, no tutano do osso”. É certo que ainda levaria algum tempo
para Lutero alcançar seu intento, mas sua metodologia singular,
dado o seu contexto histórico, evidencia-se claramente nessas
palavras. Não se contentando com a abordagem de seus colegas,
que consistia em recapitular o ensino da tradição de maneira
enciclopédica, Lutero ansiava abordar o assunto em profundidade,
chegar à sua essência, atingir o cerne do problema. Esse ponto de
partida radical levou a um modo radical de pensar que rapidamente
destacou Lutero de seus pares. Ao traçar o caminho desses
pensamentos, chegamos àquele mapa dr sua teologia. Nossa
jornada começa com o que pode ser o entendimento teológico mais
significativo de Lutero: a teologia da cruz.
Pecadores na Raiz
João Calvino, correformador com Lutero, vindo de Genebra, começa
sua obra monumental de teologia, A instituição da religião cristã,
com um dilema. Olhamos para Deus a fim de entender a
humanidade? Ou olhamos a humanidade a fim de entender a Deus?
Calvino fez ambas as coisas; Lutero tentou olhar para Deus. Porém,
quanto mais de perto ele olhava, mais horrorizado ficava. Não causa
admiração que, quando começou a estudar e ensinar Teologia com
determinação, Lutero se tenha sentido mais confortável ao olhar
para a humanidade e, mais especificamente, para si mesmo. Mas o
que ele encontrou o deixou desconcertado. No entanto, conforme
sabemos que é verdade, ninguém terá muito apreço pela gloriosa
obra da redenção sem primeiro encarar frontalmente a feia realidade
do pecado. Assim também foi com Lutero; no caminho para a
redenção de suas lutas, ele teve de parar naquilo que certamente
parecia um desvio, e enfrentar seu pecado.
Lutero passou a entender o pecado de modo radicalmente
distinto tanto de sua noção medieval como daquela que imperava no
começo do século XVI. Conforme já vimos, ele entendia o pecado
não só como os pecados cometidos pela pessoa, mas também
nossa própria natureza: somos pecadores de “raiz”. Essa nova
perspectiva oferece à consciência já sensível de Lutero ainda mais
um estopim, lançando-o mais fundo nessas anfechtungen, ou lutas
espirituais. Anos mais tarde, quando refletia sobre esse tempo,
Lutero escreveu: “Não aprendi a Teologia toda de uma vez; tive de
ponderar ainda mais profundamente sobre ela, e minha provação
espiritual me ajudou nisso”. Seus contemporâneos, porém,
preferiam falar de pecados, e não de pecado.
Lutero entendeu que o problema era muito mais profundo do que
somente aquilo que ele fazia, pois englobava quem ele era. Enfocar
somente os pecados servia para quantificá-los, levando também a
quantificar a graça. Isso conduziu ainda ao sistema de penitências,
reduzindo a graça ao nível de cancelamento do desmerecimento
dos pecados. Nos dias de Lutero, esse ponto de vista se
desenvolvera em um complexo sistema. Surgiu, na igreja católica, a
crença de que os santos acumularam mais graça do que
necessitavam, que isso lhes servia como uma fonte de tesouro. Os
que não tivessem vidas tão santas e precisassem de graça podiam
rezar para os santos pedindo essa graça “extra”.
Se, contudo, nosso problema fosse mais profundo do que
simplesmente os pecados que cometemos, então esse sistema de
créditos e débitos não chegaria a resolver a situação. Sem dúvida, o
entendimento que Lutero tinha do pecado como muito mais que o
problema de pecar explica sua insatisfação diante da prescrição da
teologia medieval. Também fica mais clara a razão pela qual ele
lutava tão intensamente e até mesmo se enfurecia contra Deus.
Dado o contexto de seu tempo, ele desconhecia qualquer remédio
para sua alma. Essa luta, inclusive, levou-o a procurar em outro
lugar distinto daquele que os teólogos da Idade Média procuravam.
Isso o impeliu diretamente para a Bíblia, de onde, então, foi
remetido para a cruz.
A Teologia da Cruz
As crises espirituais de Lutero tiveram fim quando ele chegou ao
cerne da questão, a teologia da cruz. O primeiro escrito de Lutero
sobre o assunto veio ao final de suas 95 teses. Ali, ele expressa:
“Ide embora todos os profetas que dizem ao povo de Cristo: ‘Paz,
paz’, quando não há paz! Benditos sejam todos os profetas que
dizem ao povo de Cristo: ‘Cruz, cruz’, e não há cruz!”. O contraste
poético de Lutero entre paz e cruz, Pax e Crux em latim, faz uma
crítica aos pregadores e vendedores de indulgências, por
oferecerem glória sem sofrimento, ou paz sem tratar os horrores do
pecado. Tal “paz” de fato é falsa e, consequentemente, deixa-nos
sem paz. Quem, contudo, prega a cruz reconhece o horror do
pecado.
Lutero desenvolveu essa ideia incipiente ainda mais em outro
conjunto de teses, ou argumentos, preparado para um debate em
Heidelberg, em 1518. Na Disputa de Heidelberg, ele escreve:
“Merece ser chamado de teólogo, contudo, aquele que compreende
as coisas manifestas de Deus, as visíveis e as invisíveis, vistas
através do sofrimento e da cruz. Um teólogo da glória chama o mal
de bem e o bem de mal. Um teólogo da cruz chama a coisa do que
ela realmente é”. Essas breves assertivas revelam muito sobre a
teologia de Lutero. Primeiro, ele contrasta a teologia da glória à
teologia da cruz. A teologia da glória representa dois elementos
inter-relacionados porém distintos. Inicialmente, enfoca a
capacidade humana. A fim de entendermos esse aspecto por
completo, temos de examinar alguns elementos da teologia
medieval. Desde os dias de Tomás de Aquino (1225-1274), o
consenso teológico pregava que a natureza humana não era
totalmente caída. Tal crença dizia respeito, em especial, ao uso da
razão, mas também à capacidade humana de alcançar justiça. Esse
ponto de vista dizia que a humanidade coopera com a graça de
Deus no ato da salvação, bem como no ato contínuo da
santificação. Além disso, a capacidade da razão traz implícito,
equivocadamente, o fato de que Deus pode ser conhecido pela
razão e pela especulação filosófica. Tal conceito teve grande apelo
para os teólogos medievais que vieram depois e também para os
contemporâneos de Lutero. Esse método de teologia é o segundo
elemento na designação de Lutero da teologia da glória.
A teologia da cruz, por sua vez, desmonta ambos os elementos
da teologia da glória. Inicialmente, trataremos do método de teologia
de Lutero. Antes disso, porém, precisamos rever o período
medieval. Os teólogos usavam dois termos contrastantes para
destacar como Deus pode ser conhecido: “o Deus escondido” e o
“Deus revelado”. Para Lutero, “o Deus escondido” ou, como em
latim, o Deus absconditus, refere-se ao Deus invisível, ao Deus
insondável que transcende o entendimento humano. O Deus
revelado, Deus revelatus, refere-se a Deus conforme ele tem
revelado a si mesmo e pode ser conhecido. Lutero chama isso de
teologia da cruz porque é precisamente na cruz que Deus se revela.
Essa dinâmica do Deus escondido e revelado reflete, de acordo com
Lutero, o modo como Deus se relaciona com seu povo.
Tal dinâmica é vista inicialmente no livro do Êxodo. Por um lado,
o texto de Êxodo nos confronta continuamente com a
inacessibilidade de Deus. Só Moisés podia encontrar-se com Deus
e, assim mesmo, só podia ver as costas do Criador quando ele
passava (Êx 33). Por outro lado, o texto ensina que Deus oferece
acesso a ele ao dizer a Moisés sobre o propiciatório, o lugar de
misericórdia: “Ali, virei a ti” (Êx 25.22). Curiosamente, a palavra
usada na tradução grega do Antigo Testamento, a Septuaginta, é a
mesma usada em Romanos 3.25, em geral traduzida como
propiciação, ou sacrifício de expiação. Em outras palavras, ligando
as passagens de Romanos e de Êxodo, Cristo é nosso propiciatório,
e é em Cristo, na cruz, que encontramos Deus. Conforme Lutero
proclama: “Deus quer ser ouvido por meio do Propiciador e, assim,
ele não escutará ninguém exceto por meio de Cristo (...) aqueles
que não buscam Deus ou o Senhor em Cristo não o encontrarão”.
Assim, quando nos encontramos com Cristo na cruz, Lutero
argumenta, isso deverá nos sacudir e fazer parar. Cristo é o Deus
do universo, que morre na cruz, suportando nossa vergonha e
carregando a penalidade de nosso pecado. A cruz não é o lugar no
qual Cristo deveria estar. Lutero acrescenta que é o único lugar no
qual nós deveríamos estar. No entanto, é ali que encontramos Cristo
e Deus. Conforme escreve Lutero:
Ora, não basta a ninguém e não lhe faz bem reconhecer Deus em
glória e majestade, a não ser que ele o reconheça na humildade e na
vergonha da cruz (...) Por essa razão, a verdadeira teologia e o
reconhecimento de Deus estão no Cristo crucificado (...) Deus é
encontrado somente no sofrimento e na cruz.
“P
ASSOU O TEMPO DO SILÊNCIO e chegou o tempo de
falar.” Assim escreve Martinho Lutero no prefácio de À
nobreza cristã da nação alemã, o primeiro dos três
escritos comumente conhecidos como os Três Tratados. Na
verdade, nos últimos anos ele estivera qualquer coisa, menos
calado. Começou a falar em 1517 e, até 1520, continuou a falar bem
alto. Esse ano de 1520 representou um divisor de águas para o
reformador. Antes, ele poderia ter retrocedido de seu desafio ao
papa, às indulgências e a toda a igreja católica romana. Na verdade,
os eventos ocorridos nos meses de outono lhe deram a
oportunidade de fazê-lo. Contudo, Lutero manteve-se firme em seu
curso. Em vez de recuar nesse período, ele fincou ainda mais fundo
a cunha entre ele e a igreja. E, até o final de 1520, o rompimento de
Lutero com a igreja estava quase concluído.
Depois de postar as 95 teses, Lutero se envolveu em guerras de
panfletos, como também em inúmeros debates com vários oficiais
da igreja. Sua atividade lhe rendeu uma bula papal, ou decreto, em
que ele foi condenado como herege. Ele respondeu, como só Lutero
podia fazer, queimando publicamente esse documento. Mas ele não
era apenas outro revolucionário rebelde. No palco histórico, sua
revolução era de ideias, em especial a ideia mais significativa de
todas: as concernentes à relação da humanidade com Deus. Assim,
além de queimar o decreto papal, ele tomou em mãos a pena e,
durante os meses de outono de 1520, escreveu três obras que se
destacam eminentemente em qualquer lista de escritos importantes
da Reforma. Estes incluem o já mencionado À nobreza cristã da
nação alemã, Do cativeiro babilônico da igreja e A liberdade do
cristão.
Derrubando as Paredes: À Nobreza Cristã
Conforme já mencionamos, o papa Leão X emitiu seu decreto contra
Lutero em 15 de junho de 1520, oferecendo-lhe duas opções: ou
retratar-se, ou recusar o abjuramento e ser declarado herege. O
prazo de Lutero era de sessenta dias a partir do recebimento do
decreto. Ele o recebeu em 10 de outubro e, no dia 10 de dezembro,
queimou-o. Mas, antes mesmo de receber a bula, ele já havia
redigido o primeiro dos Três Tratados, no final de agosto de 1520.
Em seguida, em outubro, veio Do cativeiro babilônico e, somente
então, em novembro, a terceira parte, A liberdade do cristão, foi
impressa.
No primeiro dos Três Tratados, Lutero apresenta a tarefa
essencial, mas bastante impopular, de derrubar as paredes erigidas
por Roma, as quais prendiam a nação alemã e seus habitantes. Ele
utiliza a imagem de paredes para impressionar seu auditório
primário, os príncipes e governantes da Alemanha, ou a “Nobreza
da Nação Alemã”, acerca do extraordinário poder que Roma
exercia, de forma ilegítima, sobre suas terras.
A primeira parede à qual Lutero se refere como “pura invenção”
aborda a distinção radical dentro da igreja medieval entre as
autoridades da igreja e o laicato. De acordo com esse ponto de
vista, o papa, os bispos, os sacerdotes e os monges pertenciam a
um “estado espiritual” mais elevado, enquanto os oficiais do Estado,
os artesãos, comerciantes, fazendeiros e camponeses – ou seja,
todas as outras pessoas – rastejavam pelo mais baixo “estado
temporal”. Noutras palavras, a distinção entre o clero e os leigos era
tão profunda que todos do laicato eram vistos como inferiores e,
certamente, menos espirituais do que os outros. Tamanha
disparidade revela muito sobre o mundo medieval nas vésperas da
Reforma.
A igreja tivera seu poder ampliado desde o começo do período
medieval. Em 800 d.C., o papa Leão III coroou Carlos Magno como
imperador do Sacro Império Romano. Esse fato é significativo por
diversas razões, mas, essencialmente, revela o poder do papado,
pois, com a coroação pelo papa, o Estado teria de se curvar diante
da igreja. Certamente, esse poder aumentou e diminuiu por todo o
período medieval, o que se devia, em grande parte, ao talento do
papa em diversos distintos. Mas uma coisa está clara: o poder
político estava sujeito ao poder da igreja. Além do poder político, é
possível constatar o poder espiritual que a igreja exercia. Os
sacramentos, que cobriam desde o berço até a sepultura – do
batismo à extrema-unção –, pertenciam exclusivamente à igreja e a
seus agentes. Em consequência, também a salvação só provinha da
igreja. Aqueles que estavam fora do chamado sacerdócio ou que
não eram bispos, monges ou pertencentes ao clero dependiam
totalmente da igreja e de seus agentes para a salvação.
Lutero propôs derrubar essa parede, enfatizando os vários
ensinamentos bíblicos sobre o corpo de Cristo e o sacerdócio dos
crentes. Somos todos membros de um só corpo, Lutero declarou,
conforme a posição de Paulo, “e todo membro tem um trabalho por
meio do qual serve ao próximo”. Esse equipamento dos santos não
se deve a nosso ofício ou cargo, mas ao fato de todos nós termos
“um só batismo, um só evangelho, uma só fé, e sermos todos
igualmente cristãos”. Lutero acrescenta que os papas e bispos
podem ungir, raspar a cabeça dos monges, ordenar e consagrar,
mas “jamais poderão tornar um homem cristão ou espiritual ao
fazerem isso”. E continua, de forma empolgante: “É possível tornar o
homem hipócrita, impostor ou estúpido, mas nunca cristão ou
espiritual”. Em vez disso, Lutero aponta para as palavras de Pedro,
que observa que somos todos, como cristãos, consagrados como
sacerdotes (1 Pedro 2.9).
Nesse sentido, Lutero claramente reconhece que diferentes
crentes atendem a diferentes funções dentro do corpo de Cristo. E
também enfatiza a necessidade de o clero guiar os crentes tanto no
entendimento bíblico como na vida cristã. Na verdade, quando o
movimento de Lutero teve início, ele criticou mordazmente aqueles
que, como Andreas Karlstadt, seu colega em Wittenberg, tentavam
abolir qualquer distinção. Ele defendia que “não há nenhuma
verdadeira diferença básica entre leigos e sacerdotes, príncipes e
bispos, religiosos e seculares, exceto no que concerne ao ofício e
ao trabalho, mas não por status”. Lutero ainda enxerga um papel
viável para o clero diferente do que pertence ao laicato. Mas, quanto
à posição ou ao status das pessoas, ou mesmo quanto à
capacidade de alguém levar uma vida que agrade a Deus, Lutero
propõe derrubar qualquer distinção entre eles.
A segunda parede figurativa trata da Escritura e do controle que
os “romanistas” exerciam sobre ela. Nesse ponto, Lutero ataca
diretamente a reivindicação de que somente o papa seria capaz de
interpretar, de forma correta, a Escritura para a igreja, como também
a afirmativa de que a igreja seria a guardiã dessa verdadeira
interpretação. Conforme Lutero observa:
Alguns estimam que mais de trezentas mil moedas de ouro são levadas
todo ano da Alemanha para Roma. Esse dinheiro não atende a nenhum
uso ou propósito. Nada recebemos dele, exceto zombaria e desprezo.
E continuamos perguntando por que os príncipes e nobres, as cidades
e as dotações, a terra e o povo, todos vão empobrecendo. Devemos
nos surpreender com o fato de ainda termos o que comer!
C
ERTA VEZ, LUTERO COMENTOU que seus perseguidores
podiam queimar todos os seus livros, à exceção de dois.
Embora o papa tivesse entendido essa declaração de
forma literal, falhou ao deixar de cumprir o desejo de Lutero.
Felizmente, não precisamos nos contentar com apenas dois de seus
livros. Mas, se tivéssemos de fazê-lo, Lutero nos informa quais
deles deveríamos ler: Catecismo menor e O cativeiro da vontade.
O alcance dessas duas obras ilustra a supreendente habilidade
de Lutero. Catecismo menor, com sua clareza e economia de
palavras, apresenta uma declaração concisa do que é essencial na
prática e na doutrina cristã tanto para jovens como para idosos.
Compreensível, desafiador e, simultaneamente, provocante, esse
livro está entre os clássicos da literatura cristã. Há também O
cativeiro da vontade. Diferente da outra obra mais curta, Catecismo
menor, esse livro é um tratado que apresenta uma grande proeza
teológica. Nele, vemos a mente de Lutero mais aguda, enfrentando
o desafio teológico perene de abordar, de um lado, a relação entre a
liberdade humana e a responsabilidade, e, de outro, a soberania de
Deus. O tratamento perceptivo de Lutero dessa questão permite-nos
também colocar esse texto entre os clássicos da tradição cristã. Ele
conhecia a importância de ambos, Catecismo menor e O cativeiro
da vontade, não por tê-los escrito, mas pelas questões ali
abordadas. É provável que ele não tivesse a mais remota ideia de
que, séculos mais tarde, seus pensamentos ainda continuariam a
ajudar os cristãos em suas lutas.
A escolha de Lutero de O cativeiro da vontade faz sentido
quando compreendemos sua perspectiva acerca das questões
abordadas. Ele considerava os tópicos liberdade humana e
capacidade algo central na Reforma. Isso ficou bem claro quando
ele se envolveu com a obra de Desidério Erasmo, o grande
acadêmico grego que também foi seu contemporâneo. O cativeiro
da vontade apresenta, na verdade, uma resposta à obra de Erasmo
com título oposto, Livre-arbítrio (A liberdade da vontade). Erasmo
escreveu essa obra em resposta a alguns escritos e sermões mais
curtos de Lutero. Em consequência, quando lemos O cativeiro da
vontade, estamos assistindo a um debate entre dois dos mais
destacados intelectuais do século XVI. Para entendermos os
argumentos de Lutero nesse livro, primeiro precisamos ver Erasmo
e sua interação com Lutero. Nas páginas seguintes, trataremos do
debate entre Erasmo e Lutero. Também exploraremos as ideias de
Lutero nesse texto clássico, que J. I. Packer chamou de “mais
importante peça que veio da pena de Lutero”. O texto de Lutero,
contudo, não é simplesmente um tratado polêmico. Em outras
palavras, vai além de uma simples crítica a Erasmo, pois oferece
uma compreensão positiva e proveitosa.
Lutero e Erasmo
Desidério Erasmo de Rotterdam (1466-1536) representa o principal
acadêmico da Renascença. Extremamente culto, Erasmo foi
ordenado, mas nunca se desincumbiu dos deveres de sacerdote.
Em vez disso, dedicou sua vida à academia, mantendo uma posição
de prestígio na Universidade de Cambridge, na qualidade de
escritor. Também viajava com frequência por toda a Europa, e era
tido como o mais culto e sagaz escritor de sua época, gozando,
portanto, dos benefícios dessa reputação.
Erasmo ofereceu uma crítica mordaz e contínua da igreja em
duas frentes. Primeiro, sua obra clássica, escrita em 1509, O elogio
da loucura, oferece um retrato sarcástico e profundo de boa parte da
vida no século XVI, inclusive de vários acadêmicos que se julgavam
demasiadamente sérios. No entanto, ele reserva sua censura mais
aguda para o clero e sua muito difundida corrupção e até mesmo
ignorância. Em outras palavras, assim como Lutero, ele via a igreja
como necessitada de uma grande reforma.
A outra conhecida obra de Erasmo também repercute em Lutero.
Erasmo passou quase dez anos viajando e, em Cambridge, coligiu
diversos manuscritos gregos encontrados nos monastérios de toda
a Europa. Antes desses esforços, um texto grego do Novo
Testamento, extraído da rica tradição dos manuscritos,
simplesmente não existia. Ele publicou seu texto em 1516, na
Basileia. Aqui, vemos Erasmo entre os melhores acadêmicos
humanistas, pois foi além da tradução latina da Bíblia e, no espírito
do lema da Renascença, ad fontes (“às fontes”), partiu diretamente
para a origem, o Novo Testamento em grego.
Nesse contexto, tal evento, ao lado da insatisfação simultânea de
Lutero com a igreja, serviu como catalisador para a Reforma e sua
difusão. Lutero usou o texto de Erasmo em sua tradução da Bíblia
para o alemão; esse texto grego também serviu para a tradução da
Bíblia para a língua inglesa. Uma cópia desse texto caiu nas mãos
de Ulrico Zuínglio no mesmo ano em que foi publicado. Depois de
estudá-lo diligentemente, Zuínglio decidiu começar a pregar a Bíblia
em Zurique, em1520. Começou com Mateus 1.1 e, com o tempo,
lançou a cidade de Zurique na Reforma. O texto de Erasmo
provocou extraordinário impacto sobre a Reforma. Hoje em dia,
contudo, alguns estudiosos da crítica textual têm apontado falhas
pontuais em sua metodologia, pois, desde 1516, outros antigos
manuscritos foram descobertos, alterando a face da crítica textual.
Erasmo, contudo, foi o grande pioneiro no retorno ao texto original.
Essas duas questões, o foco no texto bíblico e a crítica da igreja,
encontraram cordial aprovação por parte de Lutero, inclusive
inspirando ainda mais sua obra. Os dois homens se encontraram,
pois Erasmo fazia visitas frequentes a Wittenberg. Contudo, ao
interagir com Erasmo, Lutero logo percebeu que, embora ambos
concordassem quanto à necessidade de uma reforma, discordavam
em relação à forma como essa reforma se daria e quão longe
deveria estender-se.
Lutero expressou sua admiração e preocupação no que diz
respeito a Erasmo numa carta enviada a Johann Lang. Numa
sentença, ele resume os pontos fortes e fracos de Erasmo: “Eu me
agrado porque ele expõe e ataca a ignorância dos monges e
sacerdotes, mas temo que ele não esteja promovendo Cristo e a
graça de Deus adequadamente”. Em outra ocasião, ele observa que
Erasmo “não conhece nada” acerca do evangelho. A certa altura,
Lutero declara: “Erasmo nunca tem nada a dizer sobre a
justificação”. E acrescenta: “Ele irritou e rebaixou o papado e agora
tira a cabeça da forca”.
Lutero, ao retirar seu apoio a Erasmo, fez com que esse homem
se distanciasse do reformador. Erasmo permaneceu na igreja
católica, embora seu compromisso nunca tenha ido muito além de
uma expressão nominal. Os dois homens tiveram extensa discussão
a respeito da questão da vontade. Mas essa discussão teológica
quanto ao livre-arbítrio começou muito antes de eles entrarem em
confronto e continua muito além de seu trabalho. Na verdade, pouco
depois do debate de Lutero com Erasmo, as questões foram
reformuladas sob as linhas da controvérsia arminiana e calvinista.
As raízes do debate também recuam aos primórdios da igreja, entre
Agostinho e os pelagianos. Conforme Erasmo observa nas primeiras
linhas de Sobre o livre-arbítrio: um discurso: “Entre as dificuldades,
e não são poucas as que surgem na Sagrada Escritura, não há
labirinto mais emaranhado do que o do ‘livre-arbítrio’, pois é um
assunto que há muito tem exercitado as mentes dos filósofos, como
também dos teólogos da antiguidade e os novos, em um grau
notável, embora, na minha opinião, tenha envolvido mais trabalho
do que frutos”. Erasmo nota, então, no prefácio do Discurso, que
Lutero tem “agitado violentamente” essa questão, e, ainda que
relutasse, sentia-se compelido a responder.
O Desafio de Erasmo
Erasmo ecoa a contenção de Pelágio sobre a doutrina do pecado
original. Pelágio, monge do final do século IV e início do século V,
aborrecia-se com o relaxamento moral que assolava a igreja de
seus dias. Ele via esse problema como proveniente direto do
ensinamento de Agostinho sobre o pecado original. Em suma, essa
doutrina, seguindo o ensino de Paulo em Romanos 5.12-21,
prescreve que a queda de Adão lançou toda a humanidade no
pecado. Em consequência, o pecado não está no ato de pecar, mas
na condição de ser pecador. Noutras palavras, devido à queda de
Adão, a pessoa é pecadora muito antes de pecar. Agostinho
entende a implicação de que ninguém busca o favor de Deus e de
que ninguém é absolutamente capaz de merecê-lo. Portanto, é
Deus quem nos escolhe, como Cristo declara à multidão reunida
para ouvir seu ensino em João 6.44: “Ninguém pode vir a mim se o
Pai, que me enviou, não o trouxer; e eu o ressuscitarei no último
dia”, ou conforme Cristo mais tarde fala aos discípulos em João
15.16: “Não fostes vós que escolhestes a mim; pelo contrário, eu
escolhi a vós outros”.
Pelágio via esse ensino e sua ênfase na incapacidade humana
como algo que não promovia a moralidade. Além disso, o ensino de
que Deus considera os seres humanos responsáveis pelo pecado
de Adão parece injusto até mesmo para o observador menos atento.
Pelágio, então, chega a uma conclusão diferente de Agostinho. Ele
vê Adão como simplesmente nosso exemplo e nada mais. Em
consequência, a capacidade da pessoa de merecer e de escolher o
favor de Deus permanece intacta.
De acordo com Pelágio, para que Deus seja justo, é preciso que
sejamos livres. A igreja rejeitou o pelagianismo, mas nunca por
inteiro. No começo dos anos 1500, Erasmo havia restaurado os
conceitos básicos pelagianos; Lutero assumiu o lado de Agostinho.
No entanto, antes que Erasmo redigisse seu desafio a Lutero, o
reformador já expressara suas ideias em diversos escritos. Erasmo,
então, vê um grande perigo na defesa de Lutero em relação ao
ponto de vista agostiniano. Na verdade, ele nota que promover tais
ideias “abre uma janela para a impiedade”. Em, seguida, Erasmo
desafia Lutero, ensinando que a Escritura e os pais da igreja haviam
promulgado a seguinte definição: “Por livre escolha neste lugar,
referimo-nos ao poder da vontade humana, com a qual o homem
pode aplicar-se às coisas que conduzem à salvação eterna, ou se
desviar delas”.
Erasmo cria que a queda impactou a vontade de modo negativo.
No entanto, a luz não é tão fraca que não possamos usá-la
corretamente. Ele também enfatiza a necessidade da graça de
Deus. Mas prefere falar da graça de Deus e da capacidade humana
cooperando para se alcançar a salvação. Asseverar tal cooperação
parece a Erasmo perfeitamente condizente com a Escritura e faz jus
à glória de Deus no ato da redenção. Ele escreve: “Eu pergunto qual
mérito um homem pode arrogar para si se tudo aquilo que ele, como
homem, é capaz de adquirir pela inteligência natural e pelo livre-
arbítrio, tudo isso ele deve àquele de quem recebeu tais poderes”.
Erasmo entendia que seu ponto de vista não ofendia a soberania e
a majestade de Deus. Lutero não tinha alternativa senão discordar
dele.
A Resposta de Lutero
Podemos lembrar que Lutero permaneceu ocupado nos meses de
verão e no outono de 1525. Casou-se em junho e enfrentou a
Guerra dos Camponeses, escrevendo extensamente sobre o
assunto. Tais questões retardaram uma típica resposta rápida ao
desafio de Erasmo. Devido a essa demora, a opinião popular
expressava que Lutero havia finalmente encontrado um rival à sua
altura. Lutero, contudo, explica essa demora na introdução e passa
a responder. Antes mesmo de concluir a introdução, ele oferece ao
leitor um resumo dessa resposta: “A clara evidência é que o livre-
arbítrio é pura ficção”.
Esse tratado de Lutero oferece uma resposta detalhada ao
argumento de Erasmo. Ele passa algum tempo fazendo referência
ao prefácio e à introdução de Erasmo, abordando questões
fundamentais e metodológicas antes mesmo de chegar ao assunto
que se lhe apresenta. A seção trazida no meio do livro continua a
focar nos argumentos de Erasmo. Já chegando ao final, Lutero se
desprende especificamente desses argumentos para tratar
diretamente do ensino de Paulo e de João sobre a questão.
Um dos pontos no argumento de Erasmo trata de nossa
capacidade de entender a Escritura. Ele sustenta que boa parte da
Escritura é obscura e de difícil compreensão. Em consequência,
devemos contentar-nos com seus ensinos básicos, evitando maior
aprofundamento. Ele aplica isso ao argumento que tem em mãos,
relegando à periferia a questão da vontade. Isso conduz a uma
resposta veemente por parte de Lutero. E, nesse processo, Lutero
expõe um entendimento bem distinto tanto da Escritura como da
doutrina.
Erasmo via a Escritura de um modo mais opaco que Lutero.
Erasmo comparava a Escritura à caverna mitológica de Coricos.
Quanto mais fundo se desce na caverna, “mais e mais escura ela se
torna”. Assim também ocorre com a Escritura. Quanto mais a
pessoa vasculha sua profundidade, menos aprecia a Deus, e Deus
se afasta ainda mais. Erasmo aplicava ainda essa abordagem como
método de teologia. Desejava contar com um centro de crença um
tanto definido, deixando o resto encoberto por um “silêncio místico”.
Erasmo incluía a questão da vontade nessa última categoria, o que
explica sua relutância em escrever a esse respeito.
Lutero, por sua vez, concorda com a existência de mistérios na fé
cristã. Mas traça sua linha em um local bem distinto. Assim, quando
chega às doutrinas cruciais que refletem grandes porções de
ensinamento bíblico, Lutero não aceita, como Erasmo, “discutir”. Em
vez disso, ele assevera. Tal afirmação, contudo, não se baseia em
bravata humana, mas na certeza da Palavra de Deus. “Estou
falando”, explica Lutero, “sobre afirmar as coisas que nos foram
transmitidas divinamente nas Sagradas Escrituras”. Tais doutrinas
são, para Lutero, a essência do Cristianismo. Conforme ele declara:
“Se retirar essas assertivas, será retirado o Cristianismo”. Lutero
explica ainda que “a matéria e o assunto das Escrituras são,
portanto, bem acessíveis, ainda que alguns textos sejam obscuros
devido à nossa ignorância acerca de seus termos”. Ele expressa a
acessibilidade da Escritura como uma doutrina tanto da clareza
interna como externa a ela. Por clareza externa, Lutero quer dizer,
em essência, que a Escritura, transmitida em linguagem humana
comum, usando costumes humanos comuns, pode ser lida e
compreendida. Quanto à clareza interna, isso envolve o ministério
do Espírito Santo de nos capacitar a entender a Escritura. Lutero
observa: “Quando falamos da clareza interna, ninguém percebe nem
mesmo um iota [nona letra do alfabeto grego] que está nas
Escrituras se não tiver o Espírito de Deus (...). Pois o Espírito é
necessário para o entendimento de toda a Escritura e de todas as
suas partes”.
Nesse sentido, Lutero rejeita a abordagem cética de Erasmo
quanto ao estabelecimento de limites e parâmetros ao ensino da
Escritura sobre a questão da vontade humana. Conforme Lutero
observa, “Erasmo considera a matéria do livre-arbítrio entre as
coisas inúteis e desnecessárias”, oferecendo, em vez disso, uma
lista de coisas que ele “considera suficientes para a religião cristã”.
Lutero observa que Erasmo deixa de mencionar Cristo nessa lista,
exclamando diretamente a Erasmo: “Tu pensas que a piedade cristã
pode existir sem Cristo, desde que Deus seja adorado com toda a
nossa força como sendo, por natureza, mais misericordioso!”.
A afirmação quanto ao livre-arbítrio permanece, de acordo com
Lutero, no cerne da questão. Ao prosseguir em sua resposta,
veremos o porquê disso. Nesse ponto de O cativeiro da vontade,
não era o ponto de vista de Erasmo acerca da livre escolha que
incomodava Lutero, mas o modo como Erasmo relegava essa
questão à periferia. Essa abordagem indiferente às questões
teológicas cruciais revela, mais uma vez, as diferenças
profundamente arraigadas entre o acadêmico humanista e o
reformador. Quando Erasmo desenvolve seu entendimento acerca
do livre-arbítrio, contudo, isso perturba profundamente Lutero, e ele
responde longamente nas demais páginas de O cativeiro da
vontade.
A Massa Pecadora
Lutero inicia sua principal seção do tratado com o ensino de Paulo
em Romanos 1. Aqui, Lutero entende que Paulo apresenta a
humanidade sob a ira de Deus e em terrível necessidade do
evangelho. Com isso, Lutero assinala: “Nessa passagem, Paulo
coloca todos os homens em uma única massa, e conclui que,
quanto à capacidade de fazer algo bom, são todos ímpios, maus e
ignorantes de justiça e fé”. Usando propositalmente o linguajar de
“única massa”, Lutero reflete uma interpretação similar dessa
passagem por Agostinho.
Agostinho entendia o argumento de Romanos como quem
apresenta a humanidade como uma “massa cheia de pecados”, ou
uma “massa pecaminosa”. Em outras palavras, toda a humanidade
se encontra condenada diante de Deus, unida à sua cabeça: Adão.
Dessa massa pecaminosa, Agostinho argumenta que Deus
escolheu outra massa de gente que seria unida ao segundo Adão,
Cristo. Tal entendimento reflete as doutrinas da imputação do
pecado, pois o ato de Adão é creditado à conta de toda a
humanidade, enquanto a imputação da justiça de Cristo, como ato
de obediência, é creditada na conta daqueles que nele creem.
Retornando a Lutero: “Essa massa da humanidade se encontra
sob a ira de Deus e o ignora”. Lutero revela, assim, a implicação
disso para a capacidade humana: “Isso significa que eles são, em si
mesmos, ignorantes e, sendo ignorantes da justiça da salvação,
certamente estão sob ira e condenação, das quais, em sua
ignorância, eles não conseguem nem tentam desvencilhar-se”. A
humanidade não é livre nem capaz, mas presa e incapaz. Tal
convicção também nos ajuda a entender Lutero quando ele fala
contra a liberdade. Ele não postula o determinismo. Na verdade,
Lutero é rápido em associar o livre-arbítrio ao que ele chama de
“vida aqui embaixo”.
Numa de suas passagens de “Conversas à mesa”, ele observa
que o livre-arbítrio “ordenha vacas e constrói casas”. Em O cativeiro
da vontade, Lutero define “livre-arbítrio” como a capacidade de nos
orientar para com Deus ou merecer sua obra em nossa vida. O livre-
arbítrio, portanto, tem a ver com capacidade, ou melhor, com
incapacidade. E a melhor alternativa para se entender essa
incapacidade vem das palavras de Paulo em Romanos 3.10-11,
quando ele cita o Salmo 14: “Não há um justo, nenhum sequer. Não
há quem entenda, não há quem busque a Deus”. Nesse contexto,
Lutero faz a Erasmo a seguinte pergunta penetrante: “Como
poderão esforçar-se pelo bem, quando são totalmente ignorantes de
Deus e não buscam nem se importam com ele?”. Além disso, Lutero
assevera que, por nós mesmos, nem mesmo teríamos consciência
de que somos pecadores. Ele entende que João 16.8 ensina que a
humanidade permanece ignorante não só de Cristo, mas também do
pecado, “até que o Espírito convencedor o revele”.
Ele conclui que a vontade é livre, ou seja, livre para pecar.
Diferente de Erasmo, Lutero não celebra essa característica
humana. Pelo contrário, ele vê que isso revela nosso desespero e
nossa carência. Assim, embora boa parte do argumento de Lutero
seja clara, até mesmo proferida de forma singular e inimitável, sua
conclusão resume, de maneira direta, seu argumento. Ele oferece
cinco razões pelas quais a posição de Erasmo falha. Primeiro,
aponta para a soberania de Deus, quando assinala:
F
ILIPE DE HESSE convocou um impressionante encontro de
teólogos em seu castelo de Marburgo, no começo de
outubro de 1529. Juntamente com outros príncipes e
governantes alemães, eles enfrentavam três inimigos: a França, do
Ocidente; as forças islâmicas ou “os turcos”, do Oriente; e o papa,
por toda parte. Os príncipes não podiam suportar essa divisão: suas
vidas e a sobrevivência de suas províncias exigiam uma frente unida
entre os movimentos reformistas dispersos, a fim de enfrentar esses
inimigos.
Lutero mostrava-se ambivalente quanto às questões políticas e
até mesmo totalmente adverso a elas. No entanto, não admitia
deixar escapar uma oportunidade para um bom debate teológico.
Isso, na verdade, era o que ele almejava, mas nunca conseguiu com
Roma. Um debate sério, com as melhores mentes enfrentando
questões em um ambiente aberto – Lutero sonhava com isso. Não
surpreende, portanto, que ele tenha aceitado o convite de Filipe
para fazer essa viagem até Marburgo.
Os teólogos das principais cidades que compunham a
confederação suíça estariam presentes: João Ecolampádio, cujo
nome em latim quer dizer “lâmpada da casa”, da Basileia; Martin
Bucer, um colaborador próximo de Calvino, de Estrasburgo; e Ulrico
Zuínglio, pai da reforma suíça, de Zurique.
Filipe, em cujo território ficava Marburgo, providenciou uma
guarda armada para garantir uma viagem segura e permitir que
Lutero comparecesse, apesar da proibição. Na verdade, o Colóquio
de Marburgo foi uma das poucas reuniões a que Lutero assistiu fora
da região de Frederico. Lutero foi acompanhado de Justas Jonas e
Filipe Melâncton como representantes de Wittenberg. Os outros
principados alemães foram representados por Andreas Osiander,
Stephen Agricola e Joannes Brentius. No entanto, as duas
personagens principais desse drama que se desenrolava eram
Lutero e Zuínglio. Embora Zuínglio chegasse às próprias conclusões
quanto aos erros de Roma, de uma forma independente do
pensamento de Lutero, nutria intensa admiração pelo reformador
alemão e aprendera muito com seus escritos.
O Colóquio, ou reunião formal, de Marburgo, durou quatro dias.
As partes discutiram 15 artigos, e todos concordaram em relação
aos primeiros 14. Mas surgiu forte discordância quanto ao último
artigo, que tratava da Ceia do Senhor. Lutero, junto com Melâncton
e os demais representantes alemães, assumiu a posição de que o
“é” em “Este é meu corpo” deveria ser entendido de forma literal.
Discordavam da posição católica, que dizia que eram os elementos,
sob o pronunciamento do sacerdote, que se transformavam
literalmente em corpo e sangue de Cristo. Lutero descartava esse
ponto de vista, entendendo-o como nada mais que um truque
mágico. Na verdade, a missa pode até mesmo ser a origem do
termo “hocus pocus”. Assim, a frase latina para “Este é meu corpo”
é Hoc est corpus meum. Um ouvinte iletrado medieval havia
alterado Hoc est corpus para hocus pocus, uma fórmula sem sentido
usada por mágicos quando, em suas apresentações, fazem truques
e transformam os objetos.
No entanto, embora discordasse do ponto de vista católico,
Lutero, mesmo assim, tomava essas palavras seriamente. Para ele,
era uma questão de se submeter ao texto. Não se tratava de uma
porção profética ou apocalíptica da Escritura com um sentido
figurado. Para ele, tratava-se, sim, de prosa direta, que, portanto,
devia ser entendida literalmente. Os teólogos e historiadores
frequentemente descrevem o ponto de vista de Lutero como
consubstanciação. Isso quer dizer que Cristo, em substância, está
com (do prefixo latino con) os elementos. Esse ponto de vista se
opõe ao ponto de vista católico denominado transubstanciação, em
que os elementos mudam do prefixo latino trans para o verdadeiro
corpo ou sangue de Cristo. O próprio Lutero nunca usou esse termo
para descrever seu ponto de vista. Assim, aparece, nos anos 1550,
como designativo de seu ponto de vista para aqueles que se
opunham a ele. A palavra consubstanciação reflete, pois, mais
especulação filosófica do que Lutero teria aceitado.
Conforme já vimos, Lutero tentava evitar tais constructos
filosóficos em sua teologia. Preferia rotular de “real presença”, ou
“unidade do sacramento”. Ele usava esse termo para designar que
Cristo está em, com e em volta dos elementos. Consequentemente,
aquele que comunga recebe o verdadeiro corpo e sangue de Cristo,
vertido por seus pecados. Zuínglio discordava disso; ele interpretava
o “é” como “representa”. Assim, entendia os elementos em sentido
memorial, como símbolos que apontam para a obra expiatória de
Cristo. Mas classificar o ponto de vista de Zuínglio acerca da
comunhão como apenas um memorial não reflete completamente
sua posição. A palavra crucial para Zuínglio é contemplação. Ele
escreveu que o comungante deveria contemplar o mistério da obra
redentora de Cristo de tal maneira que “pudesse agarrar a própria
coisa”. Não podia, contudo, seguir Lutero. Martin Bucer, por sua vez,
estava teologicamente hesitante. Não concordava com o ponto de
vista de Lutero nem se sentia confortável com o entendimento de
Zuínglio quanto à comunhão. Em suma, as partes não chegaram a
um acordo, e a esperança de Filipe em relação a uma frente unida
entre os reformadores desapareceu quando todos partiram de
Marburgo. Podemos nos perguntar por que o movimento da
Reforma na Europa se fragmentou no que diz respeito à Ceia do
Senhor e à curta frase: “Este é meu corpo”. A fim de entendermos a
resposta, contudo, é preciso examinarmos de perto os pensamentos
relevantes de Lutero.
O Contexto de Lutero: Tremedeira em sua Primeira Missa
Podemos nos lembrar do momento pungente no início da vida de
Lutero e de suas primeiras lutas espirituais, já descritas , quando ele
se colocou como sacerdote diante do altar para realizar sua primeira
missa. Ao declamar as palavras “A vós, Eterno, Vivo e Verdadeiro
Deus” com os joelhos trêmulos, Lutero mal conseguiu ficar de pé, e
se esforçou para que as palavras saíssem de sua boca. Essas
palavras, tão facilmente ditas por outros sacerdotes, provocavam
horror na alma de Lutero. Como lher seria possível aproximar-se
desse Deus? E o que ainda era mais difícil para ele: como
encontraria o perdão de um Deus assim, a quem ele já ofendera
com tanta violência? Ele encontrou a resposta no que, em tese, a
missa celebrava: a morte de Cristo na cruz. Pouco causava espanto,
assim, que a questão da Ceia do Senhor ocupasse tanto a atenção
de Lutero.
Entre os sacramentos, esse em especial era o que dominava seu
interesse. Muitas de suas primeiras obras, desde o tempo de 95
teses, até escrever Do cativeiro babilônico da igreja, abordam essa
questão de maneira polêmica contra Roma. E, mesmo quando o
rompimento de Lutero com Roma tornou-se definitivo, em 1521, ele
continuou a escrever sobre a Ceia do Senhor do mesmo modo.
Porém, ele deslocou o foco de Roma para os “fanáticos”, os
anabatistas e os zuiglianos, que, com frequência, abusavam dos
princípios da Reforma e tomavam ao extremo as ideias de Lutero.
Entre os anos de 1525-1529 especialmente, Lutero e Zuínglio se
envolveram em uma guerra de panfletos e livros. Essa “guerra”
culminou com o Colóquio de Marburgo. Mas a principal contribuição
de Lutero para todo esse debate veio somente em 1528, com a
publicação de Confissão concernente à Ceia de Cristo. Essa obra,
que veio após um ano tumultuado para Lutero, para sua família e
até mesmo para o vilarejo de Wittenberg, devido à doença e à
peste, oferece sua mais completa discussão acerca da questão.
Confissão Concernente à Ceia de Cristo
A obra de Lutero Confissão concernente à Ceia de Cristo visa
responder a livros de Zuínglio e João Ecolampádio. Na verdade,
Lutero divide o livro em três partes, dedicando a primeira a uma
elaborada crítica de seu ponto de vista . Ele aborda, primariamente,
a questão fundamental: Como interpretar o “é” em “Este é meu
corpo”? Claramente, Lutero reconhece o uso de metáforas na
Escritura. Mas ele acrescenta que “é” nunca é usado para
“representa”. Lutero acha que isso é verdadeiro até mesmo na
gramática comum, para além da literatura da Bíblia. Oferece, como
exemplo, a expressão “Os monges são fariseus”, para provar seu
ponto de vista. O melhor modo de entender esse dizer não é
interpretar seu significado como “os monges representam os
fariseus”. No lugar disso, os monges são “a nova essência” dos
fariseus. (Ele apela para o poeta romano Horácio, que diz que
usamos palavras antigas – nesse caso, os fariseus – para fabricar
um novo entendimento de palavras novas – nesse caso, os
monges.)
Lutero também vê uma aplicação mais ampla do entendimento
de Zuínglio de “é” como “significa”. Anteriormente, em “A adoração
do sacramento” (1523), ele escreve:
Só porque somos fracos e falhos, isso não significa que devamos nos
refrear. As pessoas com tais dúvidas têm de aprender que é da mais
elevada sabedoria entender que esse sacramento não depende de nós
sermos dignos (...). Viemos como homens pobres e miseráveis,
precisamente por sermos indignos. Assim, temos de ser compelidos a
vir à mesa da Ceia do Senhor por nossa própria necessidade, que
pende de nosso cerviz, e não sermos dissuadidos por isso.
O
MUNDO POLÍTICO em que Lutero vivia era bem diferente
do mundo moderno. A Igreja e o Estado, ou império,
estavam tão mesclados que era difícil notar a diferença
entre eles. Desde 312 d.C. e a noticiada conversão de Constantino
na Batalha da Ponte Mulviana, a igreja vivia em popularidade
crescente, com status favorecido dentro do império.
Nos dias de Constantino, ele mantinha o poder. Um forte papado
ainda estava por emergir, e a igreja era governada, em sua maioria,
pelos bispos. No entanto, após o colapso do Império Romano um
século mais tarde, o ofício papal subiu primeiro em poder
eclesiástico e, depois, em poder político. Conforme já mencionamos,
a coroação de Carlos Magno pelo papa Leão III no dia de Natal de
800 d.C., significa a extensão do poder da igreja, pois Carlos Magno
recebeu a coroa das mãos do papa.
Essa forte relação da igreja com o Estado se afastou do ensino
de Agostinho sobre a questão em sua obra A cidade de Deus. Esse
livro mostrou-se, em grande parte, apologético à acusação de que
os cristãos haviam sido responsáveis pela derrocada do Império
Romano. Agostinho começou a escrever a obra em 413 d.C.
exatamente nesse sentido. Quando a terminou, em 426, ele havia
realizado muito mais. Entre os muitos assuntos abordados no livro,
está a distinção entre as duas cidades: a cidade terrestre, a Cidade
do Homem, e a cidade celeste, a Cidade de Deus. Ele via essas
duas cidades em conflito acirrado. É claro que a vencedora final
seria a Cidade de Deus. A aliança última do cristão também estava
ali. Veremos, de modo conciso, que, à medida que Lutero vai
assumindo esse modelo, talvez Agostinho tenha exagerado na
questão do desinteresse do cristão na cidade terrestre. No entanto,
ele estabeleceu limites bem nítidos entre essas duas cidades.
No passar dos séculos seguintes, porém, essas distinções
ficaram cada vez mais obscurecidas, até que, em determinado
momento, as duas cidades acabaram se fundindo. Os historiadores
se referem a essa dinâmica como a “síntese medieval”, ou
ajuntamento de toda a vida sob a esfera da igreja. Também é
conhecida como a Cristandade, e era o mundo no qual Lutero
nasceu. Assim, as ideias de Lutero, além de haverem mudado tanto
o mundo teológico como o eclesiástico, ajudaram a moldar uma
nova paisagem social e política.
Os Dois Reinos e os Três Estados
Lutero viria a admitir abertamente que o papado e a igreja haviam
excedido seus limites. Conforme vimos em seu Discurso à nobreza
alemã, Lutero questionava o poder da igreja romana sobre os
príncipes alemães. E, ao mesmo tempo que Lutero se ateve à
separação entre igreja e Estado, também se distanciou da ala
radical da Reforma. Os historiadores designam os diversos grupos
anabatistas como compreendendo a Reforma radical não por causa
de nosso entendimento do termo radical, mas por causa da palavra
latina radix, da qual provém o vocábulo “raiz”. Os reformadores
radicais queriam ir além de Lutero, Zuínglio e Calvino, chegando ao
cerne do problema: a fusão de igreja e Estado. Consequentemente,
eles defendiam a total separação entre igreja e Estado, uma marca
das tradições anabatistas que ainda está presente nos dias atuais.
Mas Lutero não via essa ideia como algo correto. Assim, ele abriu
seu próprio caminho e, nesse processo, desenvolveu a
compreensão de como relacionar essas duas esferas, a igreja e o
Estado.
Tomando a ideia por empréstimo de Agostinho, Lutero via as
duas cidades como dois reinos em conflito. Ele cria que o Reino de
Deus prevaleceria. Diferente, porém, de Agostinho e dos
reformadores radicais, Lutero via valor no reino terrestre. O cristão,
argumentava ele, é um cidadão de ambos os reinos, responsável
por cumprir suas leis, seguir seus costumes e participar das
atividades de cada um. Além do mais, a lei de Deus trata de ambos
os reinos. Lutero demonstra isso ao apelar para a essência da lei,
conforme resumida por Cristo. O primeiro grande mandamento,
amar a Deus de todo o coração, alma, mente e força, diz respeito ao
reino de Deus. O segundo, amar ao próximo, governa a vida do
cristão no reino terrestre (Lucas 10.27). O cristão também não deve
evitar o reino terrestre, pois foi criado por Deus. Na verdade, Lutero
se refere à Cidade dos Homens, de Agostinho, como o reino da
criação. Também prefere o termo “reino da redenção” à designação
“Cidade de Deus”.
M
ARTINHO LUTERO ERA VERDADEIRAMENTE um
pastor muito ocupado. Executava múltiplas tarefas,
incluindo escrever, pregar, ensinar e administrar. Toda
semana, ele escrevia numerosas e longas cartas ou trabalhava em
um de seus muitos tratados, pregava duas vezes aos domingos e,
em geral, mais três vezes durante a semana, lecionava diariamente
na universidade, orientava muitos estudantes e aconselhava um
bom número de pastores, igrejas e até mesmo príncipes novatos.
Além disso, Lutero cuidava de sua família sempre crescente.
Também experimentou a pressão das diversas controvérsias
resultantes de seu tempo e de seus esforços. No entanto, em meio
a toda essa atividade frenética, ele dedicava algumas horas ao
ensino, não só de seus próprios filhos, mas também das crianças de
Wittenberg.
Lutero tinha um intelecto incrível. A tradução que fez do Novo
Testamento grego para o alemão, em apenas três meses,
permanece como um claro testemunho à sua genialidade. Envolveu-
se em debates com as mais brilhantes mentes de seus dias. Muito
antes de sua notoriedade ter-se espalhado com a postagem das 95
teses, ele já se havia estabelecido claramente como um dos
acadêmicos mais promissores da Alemanha. Mas talvez a marca
mais óbvia de seu prodígio intelectual tenha sido o fato de ele
ensinar as verdades essenciais da fé cristã às crianças, de uma
forma que elas conseguiam entender.
Essa ênfase no ensino das crianças, que facilmente poderia ter
sido ofuscada por outras exigências, fazia todo o sentido para
Martinho Lutero. Para a igreja nascente, que logo ganhou seu nome,
e para todo o movimento protestante não apenas sobreviver, mas
também florescer, o ensinamento das crianças se tornou prioridade
absoluta e urgente. Lutero sabia disso, não somente por causa dos
exemplos históricos, mas também porque observava a situação que
se lhe apresentava.
Assim, durante todos os meses de outono e inverno de 1528 e
1529, ele viajou pelas novas congregações de toda a região. Ainda
era um fora da lei, e essa turnê não estava isenta de riscos. No
entanto, Lutero viajava para ver, por si mesmo, as condições em
que as igrejas se encontravam. Os resultados dessa inspeção
deixaram-no frustrado e decepcionado. Testemunhou condições
“deploráveis” e “infelizes”, observando: “As pessoas comuns,
especialmente aquelas que vivem no campo, não têm conhecimento
do ensino cristão e, infelizmente, muitos pastores são
incompetentes e se mostram inadequados ao ofício de ensinar”.
“Eles passaram a dominar a fina arte”, entoava Lutero, “do abuso da
liberdade”.
Toda essa situação perturbou profundamente Lutero. Ele, então,
passou a direcionar seu foco e suas preocupações sobre dois
grupos: o clero e as crianças. Ao retornar a Wittenberg, pediu
imediatamente a Melâncton e a outros de seu círculo de amigos e
colegas que produzissem material que lhe possibilitasse lidar com
essas deficiências e treinar os infantes. Assim, eles produziram
extenso material, mas apenas uma parte foi aprovada por Lutero.
Alguns textos, ele considerava nada mais que moralismo – uma
cura que, Lutero temia, seria pior que a doença. Mas percebeu que
quase tudo estava aquém de fazer o que ele considerava essencial:
a comunicação clara das verdades cruciais da Bíblia e da teologia
ortodoxa de uma geração a outra. Em outras palavras, ele desejava
imprimir uma tradição que perdurasse, no melhor sentido do termo.
A palavra inglesa para tradição tem origem no latim traditio, que
significa transferir, passar adiante ou entregar. Para Lutero, Paulo foi
quem melhor encerrou o sentido da palavra ao admoestar seu “filho
na fé”, Timóteo, a transmitir “a homens fiéis e também idôneos para
instruir outros” (2 Tm 2.2). Lutero entendia que essa era a única
forma de a igreja permanecer fiel ao evangelho e à teologia
ortodoxa. Era preciso ensinar –explícita, proposital e
programaticamente – o evangelho e a teologia ortodoxa, e fazer isso
em relação aos mais jovens.
Depois de esperar em vão, por algum tempo, que alguém
produzisse material com esse propósito, Lutero decidiu, ele mesmo,
fazê-lo, em 1529. O resultado foi o livro Catecismo menor. Por seu
próprio testemunho, conforme vimos, Lutero declarou que não se
importava que toda a sua obra fosse queimada e esquecida,
contanto que O cativeiro da vontade e Catecismo menor
sobrevivessem. Felizmente, seu desejo se realizou sem essa
condição. Sua obra sobreviveu, tem vicejado e ainda conta com
vasto público até hoje, quase quinhentos anos depois de ter sido
escrita.
No mesmo ano, Lutero também tratou os problemas do clero
inculto com a publicação intitulada Catecismo alemão. Essa obra,
que passou a ser chamada de Catecismo maior, segue a mesma
estrutura de sua correspondente, só que é muito mais extensa.
Catecismo menor não foi a única contribuição de Lutero à
literatura infantil. Conforme já mencionamos, ele também publicou
uma tradução em alemão das Fábulas de Esopo. Além disso, foi
autor de um alfabeto simples e de um livro voltado ao público
infantil. Porém, Catecismo menor permanece como seu verdadeiro
legado, valendo-lhe outra adição à já extensa lista de credenciais: a
de educador infantil.
Uma obra-prima teológica: para crianças
Catecismo menor é uma obra-prima, por ser, ao mesmo tempo,
abrangente e conciso. Atual em sua apresentação, estilo e
conteúdo, essa obra figura entre os clássicos da literatura
devocional e teológica. Consiste em uma breve exposição dos
elementos essenciais para entender a Deus, sua Palavra e sua obra
no mundo, contendo breves ensinamentos sobre os Dez
Mandamentos, o Credo Apostólico, a Oração do Senhor e os
sacramentos. Lutero expandiu o catecismo para edições
posteriores, a fim de incluir instruções sobre a oração e aquilo que
ele chama de “a mesa dos deveres”. Essas inserções bastante
concisas apresentam diversos ensinamentos da Bíblia sobre
pastores, autoridades seculares, maridos, esposas, pais, filhos,
trabalhadores e servos, mestres e viúvas, e concluem com uma
palavra a todos os cristãos em geral.
O catecismo de Lutero foi o primeiro dos muitos catecismos
produzidos durante a Reforma, incluindo o Catecismo de
Heidelberg, o Breve e o Completo catecismo de Westminster. A
exemplo desses, o catecismo de Lutero segue um modelo de
perguntas e respostas. A palavra catecismo quer dizer, literalmente,
soar e diz respeito ao ensinamento pelo falar. O método de
instrução da catequese enfatiza o envolvimento do mestre, do pai ou
da mãe com a criança. Também encoraja a memorização, pois as
perguntas e respostas são frequentemente repetidas. Essa
repetição e essa memorização representam um meio voltado a um
fim, pois as palavras do catecismo devem impactar tanto o
pensamento como a vida daquele que conhece as palavras.
Os catecismos não foram uma inovação de Lutero na prática da
igreja. A igreja medieval usava a instrução da catequese, até
mesmo estruturando os catecismos em função dos Dez
Mandamentos, da Oração do Senhor, do Credo Apostólico e dos
sacramentos. O que foi singular no catecismo de Lutero era tanto o
conteúdo como o público-alvo. Ao desenvolver sua exposição
acerca dos diversos elementos do catecismo, Lutero chegou a
conclusões surpreendentemente distintas daquelas do entendimento
medieval. Quanto ao seu público-alvo, os catecismos medievais
visavam principalmente aos adultos – e, ainda assim, apenas uns
poucos e limitados.
Lutero tinha como alvo um auditório totalmente novo – as
crianças – e esperava ainda que o catecismo fosse apreciado por
todos os membros da igreja, e não por apenas alguns poucos
selecionados. Na verdade, seu catecismo alcançou e continua a
alcançar um público muito amplo. E talvez seja a obra de Lutero
mais lida de todos os tempos. Faltam a esse livro os elementos
polêmicos que a discussão com outros pensadores trouxe a tantos
outros de seus escritos. Além disso, apresenta uma simplicidade e
uma clareza incomparáveis. No entanto, também guarda
similaridade com outros escritos seus. As principais ideias que ele
continuamente enfatizava pontuam todo o catecismo. A seguir,
examinaremos esses temas aprendendo com Lutero os
fundamentos da fé cristã.
Ética Cristã: os Dez Mandamentos
Certa ocasião, Lutero comentou: “Quem sabe distinguir bem o
evangelho da lei deveria dar graças a Deus, pois é um verdadeiro
teólogo”. No catecismo, Lutero chega bem perto de demonstrar que
atinge seus próprios critérios. A relação entre lei e evangelho recebe
extensivo tratamento de seu pensamento. Ele começa pela lei, o
Decálogo, que oferece um retrato claro tanto do pecado como da
graça. A lei, de acordo com Lutero, serve para nos convencer e
mostrar nosso pecado. Além disso, a lei acusa e até mesmo nos
tormenta e apavora. Contudo, no meio da lei, abunda a graça.
Um padrão definido emerge dessa seção do catecismo e se
mantém por todo o texto. Ele cita o mandamento, para, então,
perguntar: “O que isso quer dizer?” (“Was ist das?”). Admitimos que,
a essa pergunta repetida, faltam originalidade e variedade. Mas
qualquer qualidade que, eventualmente, falte na pergunta, ele
oferece na resposta. Quanto ao primeiro mandamento, “Não terás
outros deuses”, Lutero faz sua pergunta peculiar, “O que isso quer
dizer?”, e segue com a resposta: “Devemos temer, amar e confiar
em Deus sobre todas as coisas”.
Assim, essa tendência de extrair um ensinamento positivo de um
mandamento negativo repercute por toda a discussão dos Dez
Mandamentos. De fato, ele usa a primeira parte da resposta à
pergunta concernente ao primeiro mandamento, “Devemos temer e
amar a Deus”, para iniciar todas as outras respostas. Lutero está
guardando essas crianças (e nós) de ver os Dez Mandamentos
simplesmente como um código legal externo. Ele também evita o
moralismo, fundamentando a base e o motivo para obedecer aos
Dez Mandamentos em nada mais que uma expressão de grata
obediência a Deus. De acordo com Lutero, a relação do ser humano
com Deus fundamenta uma vida cristã de obediência. Considere,
por exemplo, sua resposta ao quinto mandamento, “Não matarás”,
como representativa dos outros mandamentos. Aqui, Lutero nos
informa que “devemos amar e temer a Deus, e não colocar em risco
a vida de nosso próximo, nem causar-lhe qualquer mal, mas sempre
ajudá-lo e ser seu amigo em todas as necessidades da vida”.
Seguindo seu ensinamento sobre ética social, ele apela para o
resumo de Cristo acerca da lei de amar a Deus e amar ao próximo
como um princípio norteador para tratar os demais mandamentos.
Guardar o mandamento de não tirar a vida de seu semelhante
provavelmente não se apresenta à maioria de nós como um desafio
muito grande. Mas é um grande desafio manter o espírito dessa lei
e, como Lutero dizia, ajudar e ser amigo de nosso próximo em todas
as necessidades da vida.
Voltando ao quarto mandamento, não devemos somente nos
refrear de desprezar nossos pais, como também “honrar, amar,
servir, obedecer a eles e estimá-los”. Não devemos apenas deixar
de dar falso testemunho, como requer o oitavo mandamento, mas
também defendê-lo, falar bem dele e interpretar com caridade tudo o
que ele faz”. E é dessa forma que Lutero transita pelos Dez
Mandamentos.
Depois de haver examinado cada um dos mandamentos, Lutero
conclui a primeira parte do catecismo com uma declaração resumida
que bem traduz essa conexão entre lei e graça:
C
OMO PRESENTE DE CASAMENTO para o renomado
professor e seu pastor favorito, Frederico, o Sábio,
entregou as chaves do imponente Claustro Negro, o antigo
monastério agostiniano em Wittenberg, a Martinho Lutero. Lutero
entrara nessa casa como monge em 1508 e, exceto quando viajava,
ali viveu até a sua morte, em 1546. Era nesse local que ele escrevia,
dava palestras, preparava sermões, ensinava às crianças e, junto
com Katie, criou sua família. No centro do prédio, encontra-se uma
grande torre de relógio, a mesma torre na qual, conforme se
lembraria mais tarde, ele fez a descoberta da Reforma de
justificação pela fé. Um lado da casa continha seu escritório, os
quartos e as salas da família. O outro exibia um grande salão para
palestras e muitas salas de aula menores. Hoje, esse local é
conhecido como a Casa de Lutero, Lutherhalle, e permanece como
museu de Lutero e da Reforma gerada na torre.
A Casa de Lutero
Lutero entrou no Claustro Negro como um monge aflito, em meio a
uma igreja corrupta, lutando para ter paz com Deus. Saiu de lá
pastor casado com seis filhos, em meio a uma nova igreja
comprometida com o evangelho e descansando na obra de Cristo.
Katie mudou-se para o Claustro Negro em 13 de junho de 1525, em
sua noite de núpcias. Era uma casa enorme, provando-se muito
grande para gerenciar. Raramente, porém, a casa estava vazia. Os
Lutero tiveram seis filhos biológicos entre os anos 1526 a 1534.
Quatro mais, órfãos de parentes vítimas da peste, foram criados
dentro de suas paredes. Durante as pragas que atingiram
Wittenberg, o antigo monastério que se tornara lar e também
academia foi transformado ainda em hospital, sendo Martinho e
Katie os cuidadores, sob grande risco pessoal. Era um lugar no qual
dignitários, ministros e amigos viajantes se hospedavam, às vezes
por longos períodos. Servia também de pensionato para vários
estudantes. Lutero palestrava nos salões do outro lado da torre, e
ruminava suas ideias no escritório. Em volta da mesa da sala de
jantar, aconteciam algumas de suas melhores teologizações.
Ao entardecer, todos da grande casa, bem como os amigos que
vinham visitá-los, reuniam-se em torno da mesa para a refeição.
Depois do jantar, Lutero e sua família geralmente brindavam suas
visitas com música ao vivo antes de voltar para a mesa, a fim de se
ocupar de discussões teológicas que se estendiam até tarde da
noite. Katie, em mais de uma ocasião, brincou que seu marido
deveria cobrar pelas aulas ministradas nesses encontros. As
conversas eram tão envolventes que seus alunos faziam rodízio na
responsabilidade de anotá-las. Um visitante descreveu a impressão
dada pelo anfitrião sobre os que se sentavam à mesa:
“Costumávamos chamar sua conversação de condimentos da
refeição, porque nós os preferíamos a todas as especiarias e
comidas finas”.
Por hábito, os alunos de Lutero mantinham à mão cadernos e
penas para ir escrevendo à medida que o reformador falava.
Algumas vezes, Lutero até mesmo exortava o escriba: “Anote isso”,
enquanto fazia diversos pronunciamentos. Mas, essencialmente,
esses escritos eram particulares, refletindo o toma lá da cá da
discussão das questões em um ambiente informal. Esses
documentos das conversas foram coligidos e, inicialmente,
publicados em 1566, depois da morte do reformador. Por fim, em
meados do século XVIII, foram incorporados nas edições que
continham os volumes coligidos de seus escritos. Conhecidos como
Conversas à mesa (Tischreden, em alemão), esses textos são
singulares, a exemplo de seu autor, e oferecem percepções sem
precedentes, como também um retrato vivaz da vida e do
pensamento de Lutero.
Migalhas da Mesa de Lutero
A primeira publicação de Conversas à mesa surgiu como resultado
dos esforços de John Aurifaber, que atuou como secretário pessoal
de Lutero nos últimos anos de sua vida. Aurifaber também relatou
os eventos desses últimos dias e as últimas palavras de Lutero.
Diversos manuscritos, incluindo os das Conversas à mesa, também
foram para suas mãos. No prefácio da edição de 1566, Aurifaber
refere-se a esse rico tesouro de manuscritos de conversas. Ele
observa que “não poderia, em boa consciência, permitir que esse
tesouro das conversas de Lutero ao redor da mesa ficassem
ocultos”. Em consequência, deu publicidade delas a um auditório
mais amplo, com a esperança de “a igreja cristã, que pode ser
fortalecida por tal ensinamento, usá-lo como bênção, como migalhas
que caem da mesa de Lutero, e, com isso, satisfazer a fome e a
sede espiritual das almas dos homens”.
Assim, graças a esses escribas estudantes, compiladores de
manuscritos, bem como a John Aurifaber, podemos escutar essas
conversas e, séculos mais tarde, catar “migalhas da mesa de
Lutero”. Como uma coleção esparsa de conversas, as Conversas à
mesa não refletem uma obra sistemática ou estruturada. A
discussão vai desde comentários sobre o cachorrinho da família até
os discursos sobre a cristologia dos antigos pais da igreja. Em
muitas passagens, Lutero reflete sobre seus escritos e os principais
acontecimentos de sua vida. Essas reflexões ajudam os
historiadores e biógrafos a reunirem as peças do desenvolvimento
de seu pensamento. Assim, embora esses escritos não ofereçam
uma biografia completa, oferecem farto material para iluminar
períodos cruciais de sua vida.
Queremos tomar cuidado, no entanto, ao tentar usar as
Conversas à mesa para interpretar Lutero. Temos de lembrar que
essas conversações foram anotadas por estudantes e publicadas
depois da sua morte, o que significa que Lutero não poderia tê-las
“aprovado” da forma como foram registradas. Além disso, a obra
Conversas à mesa já foi usada para afirmar que Lutero seria
maníaco-depressivo, ou que seria mal-resolvido em sua relação
com os pais. Outros enxergam Lutero, devido à obra Conversas à
mesa, como obcecado pela própria saúde e fisiologia,
especialmente o intestino. Essa abordagem terapêutica ao
entendimento de Lutero se deve mais ao livro de Erik Erikson,
Young Man Luther (O jovem Lutero), um retrato altamente
psicologizado com base na psicanálise que Erikson faz de Lutero
em Conversas à mesa, e não em dados reais. Isso não quer dizer
que Lutero não tenha sofrido alguns surtos de depressão, pois, sim,
os teve. Também não quer dizer que ele nunca tenha feito referência
ao próprio intestino, pois também costumava fazer isso. Afirmamos
apenas que um retrato psicologizado de Lutero com base em
Conversas à mesa é uma péssima historiografia. Em vez de dar
crédito excessivo a essas abordagens, precisamos lembrar que
apenas uma pequena fração das conversas de Lutero foi
documentada, às vezes apenas algumas linhas que representam
uma conversa de uma noite inteira. O que foi escrito, conforme já
notamos, não foi pela pena do próprio Lutero. Em consequência, é
necessário ter uma abordagem cuidadosa da interpretação de
Lutero de Conversas à mesa. Porém, esse livro deve ser lido, pois
tal material oferece um vislumbre sem paralelo da vida de Lutero,
especialmente de sua vida privada. Aqui somos apresentados ao
Lutero por trás da persona pública, oportunidade rara no estudo das
figuras históricas em geral.
Conforme já mencionamos, a obra Conversas à mesa permeia
toda uma série de assuntos. Numerosas passagens relatam sua
interação com amigos e inimigos igualmente. Não surpreende que
esse material preencha muitas lacunas na documentação histórica.
Também tende a apresentar uma linguagem pitoresca. De fato, em
parte por conta da linguagem empregada em Conversas à mesa, os
editores expressaram certa relutância em incluir esse material nos
volumes coligidos dos escritos de Lutero. Não querendo dar mais
munição aos papistas e aos seus críticos, alguns de seus
apoiadores, até mesmo séculos após a sua morte, diziam que
Conversas à mesa era um trabalho engenhoso feito por
falsificadores. Com certeza, Conversas à mesa contém falas
cáusticas e linguagem vulgar. O próprio Lutero justifica tal linguagem
apelando para suas tristes circunstâncias. O margrave, ou príncipe,
Joaquim de Brandenburg, um dos muitos dignitários a se reunirem à
conversa em volta da mesa de Lutero, certa vez perguntou ao
reformador sobre seu linguajar rude. Lutero respondeu com uma
ilustração: “Posso cortar um galho de salgueiro com uma faca de
pão, mas, para cortar o carvalho duro, preciso de um machado e de
uma cunha, e, mesmo assim, mal consigo fendê-lo”.
As situações urgentes, defendia Lutero, requerem uma
linguagem incisiva. Nem toda a linguagem pitoresca de Lutero,
contudo, era vulgar. De fato, se fôssemos extrair todo o material
vulgar de Conversas à mesa, encheríamos apenas algumas das
centenas de páginas de texto. Seu humor e sua sagacidade, porém,
emprestam graça a todas as páginas. O sarcasmo e os comentários
jocosos rivalizam com o mais sofisticado humorista e, sem dúvida,
produziam discussões divertidas e memoráveis ao entardecer. Certa
vez, Lutero disse: “Amanhã terei de dar aula sobre a embriaguês de
Noé, portanto deverei beber bastante hoje à noite para falar dessa
maldade como quem a conhece por experiência própria”. Seu
humor, porém, geralmente assumia a forma de histórias que ou ele
mesmo inventava ou se divertia em enfeitar. Por exemplo, numa
discussão com Melâncton sobre o governo de Deus sobre o mundo,
ele conta a seguinte história:
Certa ocasião, ele diz: “Os jovens são tentados pelas moças, os
homens de trinta anos são tentados pelo ouro; quando têm quarenta
anos, são tentados por honra e glória, e aqueles que chegam aos
sessenta exclamam para si mesmos: ‘Que homem piedoso eu me
tornei!’”. As piadas curtas incluem dizeres de humor e proverbiais,
tais como: “Uma mentira é como uma bola de neve. Quanto mais
rola pelo chão, maior ela fica”.
Um bom número de diálogos de Conversas à mesa aborda
questões relacionadas a viver uma vida cristã. Lutero fala sobre
oração, estudo da Escritura e o papel do sofrimento, entre outros.
Naturalmente, controvérsias e questões a respeito de política e
prática da igreja também vêm à superfície nesses momentos ao
redor da mesa. Sobre esses tópicos, Lutero dá conselhos
semelhantes aos de um médico que prescreve receitas. Finalmente,
Conversas à mesa oferece uma visão sem paralelo à vida
doméstica de Lutero.
Katie emerge dessas páginas como uma das parceiras mais
frequentes de diálogo – com frequência, a ponto de os outros
visitantes simplesmente ficarem observando dois cônjuges
conversando a respeito de teologia depois do jantar. É claro que não
se tratava de um casal comum e, assim, as conversas não eram
sobre fatos corriqueiros. De fato, essas conversas, como tantos de
seus escritos, são clássicas e contêm tesouros de sabedoria
atemporal. Às vezes, conforme vimos, são recheadas de humor;
outras vezes, de sagacidade, mas sempre em um estilo envolvente.
Eis uma amostra do rico material encontrado em Conversas à mesa.
Uma Amostra do Cardápio
O lar de Lutero serve de matéria-prima a muitas menções. Ele usou
até mesmo o cão da família, Tolpel, como fonte para instrução. Um
secretário-estudante documentou o seguinte: “Quando acontecia de
o cachorrinho de Lutero estar à mesa, ele pedia um naco de carne
ao dono, e ficava vigiando seu mestre de boca aberta e olhos fixos.
Lutero, então, dizia: ‘Se eu pudesse orar do jeito que esse cachorro
vigia a carne! Todos os seus pensamentos se concentram nesse
pedaço de carne’”. Certa ocasião, Lutero simplesmente abandonou
a conversa para brincar com seu filho recém-nascido, Martin. O
estudante-secretário recordou: “Então ele brincou com o filho infante
e disse: ‘Ah, esta é a melhor das bênçãos de Deus’”. Lutero também
exclamou: “Sou rico. Meu Deus me deu uma freira e acrescentou
três crianças”. Em muitas passagens, Lutero reflete sobre seu
casamento com Katie. A certa altura, pensando tanto em seu
casamento como na morte de sua filha Elizabeth, quando ainda
bebê, expressa a doçura e a tristeza que essas relações humanas
trazem: “Não existe união mais doce do que em um bom
casamento. Nem há morte mais amarga do que aquela que separa
um casal casado. Somente a morte dos filhos se aproxima disso; e
quanto isso dói, pois eu mesmo já experimentei”.
Nem todas as referências à sua família tinha natureza séria. A
certa altura, ele brincava com sarcasmo: “Se eu quisesse uma
esposa mais obediente, teria de lavrá-la em pedra”. Também dirigiu
numerosos comentários jocosos a seus colegas e alunos. Numa
passagem, relembra seu conselho ao filho de seu publicador por
ocasião da noite de núpcias. Ele disse ao noivo que deveria ser
“senhor em sua casa”. Lutero, então, fez uma pausa e acrescentou:
“Sempre que sua esposa não estiver em casa!”. Quando estava
sério, exaltava as virtudes do casamento, como evidenciado no
seguinte comentário: “É uma grande bênção de Deus quando o
amor continua a florescer no casamento”. Também elogiava as
mulheres, como na seguinte passagem: “Imagina como seria o
mundo sem as mulheres. O lar, as cidades, a vida financeira e o
governo literalmente desapareceriam. Os homens não vivem sem as
mulheres. Mesmo que fosse possível aos homens gerarem filhos,
ainda assim, não poderiam fazê-lo sem as suas mulheres”.
Outros verbetes apresentam a perspectiva de Lutero sobre
numerosas questões teológicas. Em especial, os pensamentos de
Lutero sobre a tarefa e a natureza da teologia permeiam a obra
Conversas à mesa. Em uma discussão sobre como Deus pode ser
conhecido, ele declara: “[Deus] é visível em sua palavra e obra. À
parte de sua palavra e de sua obra, não se deve procurar por ele”.
Lutero afirma em outro lugar: “Eu tenho a palavra, e isso me basta”.
Cristo e sua obra de redenção servem como ponto focal da palavra
e da obra de Deus. Lutero expressa bem isso ao observar: “Vemos
que toda a história caminha em direção ao perdão dos pecados.
Tudo circula em torno do centro, e esse centro é Cristo”. Em outro
ponto, Lutero acrescenta: “Aqueles que não buscam Deus ou o
Senhor em Cristo não o encontrarão”. Lutero também relata sua
própria jornada como teólogo em uma passagem datada do outono
de 1532: “Não aprendi minha teologia toda de uma só vez. Tive de
ponderar mais profundamente, e minhas provações espirituais
[anfechtungen] me ajudaram nisso, pois não se aprende nada senão
pela prática”. E acrescenta: “É a maior dádiva de Deus ter um texto
bíblico e poder dizer: ‘Isso está certo. Eu sei disso’”.
As Reflexões de Lutero sobre sua Jornada de Vida
Talvez a percepção mais útil que se obtém em Conversas à mesa
trata das reflexões de Lutero a respeito de suas próprias lutas
espirituais e de sua peregrinação de Roma para o verdadeiro
evangelho. Nos primeiros meses de 1532, um dos alunos de Lutero
relatou o seguinte:
U
M TEMA RECORRENTE neste livro é que Martinho Lutero
revolucionou não somente a teologia da igreja de seus
dias, como também a sua prática. O tratamento da música
na igreja por Lutero é um excelente exemplo. Além de seus muitos
outros dons, Lutero apresentava grande talento musical. Alguns de
seus amigos reportam que ele era melhor músico do que teólogo –
um comentário não tanto para depreciar sua capacidade teológica,
mas para elogiar sua habilidade musical. Durante sua vida, ele
compôs 38 hinos, e muitos deles ainda integram os hinários de hoje.
Além disso, ele compôs numerosos arranjos de antífonas medievais,
ou versos cantados. Para muitos de seus textos de hino, Lutero
também oferecia a melodia. Entre essas realizações musicais,
permanece o que se pode considerar o mais amado hino de todos
os tempos: “Castelo Forte é Nosso Deus”. Se sobrevivesse apenas
esse texto de todos os seus escritos, apenas por isso talvez ainda
recitássemos seu nome entre as figuras históricas que impactaram a
igreja. Cantar e fazer música foram atribuições relevantes na vida de
Lutero.
A música enchia o lar de Lutero e, pela primeira vez na história,
também fluía dos corações gratos dos paroquianos da Igreja do
Castelo de Wittenberg. Não eram incomuns as visitas no lar de
Lutero serem brindadas com um concerto pela família de Lutero
depois do jantar. Lutero frequentemente voltava-se para a música
como consolo para as correntes de conflito em turbilhão à sua volta.
Ele via a música, em especial, como desempenhando papel crucial
na vida da igreja. O laicato escutava os monges ou corais cantando
as antífonas durante a missa. É claro, essas eram cantadas em
latim e, assim, alguns escutavam sem entender uma palavra sequer.
Por causa do trabalho reformador de Lutero, porém, eles podiam
não somente ouvir palavras que compreendiam, mas podiam, eles
próprios, cantar. Essa inovação acentuou ainda mais o abismo entre
Lutero e Roma. No entanto, Lutero preferia ver o canto
congregacional não como uma inovação, mas como um retorno e
uma restauração da prática bíblica que tinha sido obscurecida com o
passar dos séculos. A música não era um mero realce ao culto da
igreja; ela desempenhava papel crucial, ao permitir que os redimidos
expressassem gratidão a Deus. Em uma peça inacabada intitulada
Concernente à música, Lutero escreve:
Ein feste Burg ist unser Gott, Castelo forte é nosso Deus,
ein guter Wehr und Waffen; Espada e bom escudo!
Er hilft uns frie aus aller Not, Com seu poder defende os seus
die uns jetzt hat betroffen. Em todo transe agudo.
Der alt bose Feind, Com fúria pertinaz
mit ernst ers jetzt meint; Persegue Satanás
gross Macht und viel List Com ânimo cruel!
sein grausam Rustung ist; Mui forte é o Deus fiel,
auf Erd ist nicht seins gleichen Igual não há na terra.
E
M 5 DE OUTUBRO DE 1544, a igreja nova do castelo de
Torgau teve seu culto de dedicação. Leonard Koppe, o
mercador de peixe que, junto com Lutero, possibilitou a fuga
de 12 freiras do convento, vivia ali. Desde 1517, também funcionava
como um centro dos apoiadores de Lutero e uma fortaleza para
suas ideias. Agora, era a primeira cidade a construir uma igreja
evangélica ou luterana. Naturalmente, só uma pessoa seria a mais
adequada para pregar a mensagem de sua dedicação. Assim, após
algumas poucas palavras de saudação, Martinho Lutero declarou:
“O propósito desta Nova Casa é que nada mais aconteça nela
exceto que nosso Senhor fale conosco através de sua Santa
Palavra e nós respondamos a ele por meio de oração e louvor”.
Para Lutero, é nisso que consistem a missão e o propósito da igreja.
O Ingrediente que Faltava
Sempre que a igreja se reúne, escreveu Lutero, a Palavra de Deus
precisa ser pregada ou, então, os cristãos nem deveriam reunir-se.
Claramente em resposta à igreja medieval, que havia perdido a
Palavra de Deus, Lutero colocava a Palavra no coração de sua
prática e de sua vida. A Palavra de Deus era, para ele, a verdadeira
marca da igreja. De fato, em 1527 ele declarou: “A única marca
perpétua e infalível da igreja sempre foi a Palavra”.
Ao desenvolver sua doutrina da igreja, ele também expandiu sua
visão acerca das marcas da igreja. Tão cedo quanto 1520, ele
passou de enfatizar somente a Palavra como a marca para incluir os
dois sacramentos: batismo e Ceia do Senhor. Até 1539, em Sobre
os concílios e a igreja, expandiu a lista para incluir mais quatro
marcas. Em 1541, ele ampliou ainda mais essa lista, incluindo nada
menos que dez marcas que distinguem a verdadeira igreja. Não
fosse por sua morte em 1546, talvez sua lista aumentasse ainda
mais. Essa discussão sobre as marcas da verdadeira igreja era,
para Lutero, essencial. Em certo sentido, toda a sua briga com
Roma pode ser resumida pela única pergunta que ele levanta:
Como é a verdadeira igreja? Em seu ponto de vista, Roma se
desviara tanto da marca que não restava nenhum vestígio da
verdadeira igreja. Portanto, não seria possível reformá-la por dentro.
Foi preciso fazer uma quebra total e construir uma igreja totalmente
nova. Conquanto o coração da igreja estivesse morto, Lutero
encontrou muitas coisas na prática da igreja que mereciam ser
recuperadas e, por sua vez, ele instituiu em sua igreja.
No entanto, nem mesmo essas práticas foram tomadas por
empréstimo sem que houvesse sérias modificações. A discussão de
Lutero acerca da Ceia do Senhor, já tratada, demonstra exatamente
isso. Seu entendimento da confissão, que acabamos de ver no
capítulo anterior, em relação ao Catecismo menor, espelha como ele
transformava antigas práticas de modo a que refletissem melhor o
ensinamento bíblico. Dada a sua insistência no sacerdócio de todos
os crentes, o fato de ele tolerar a confissão dos pecados a um
sacerdote talvez nos surpreenda e confunda.
Olhando para seu entendimento acerca da confissão, porém,
vemos que Lutero e Roma estavam em mundos bem afastados.
Esse exemplo ilustra como Lutero adotou as práticas da igreja
medieval enquanto, simultaneamente, as reconstruiu para que
fossem um melhor retrato bíblico da igreja. E, além dessas práticas
tristemente abusivas, a igreja romana também havia perdido o
principal ingrediente, a pregação da Palavra, que obscureceu, se
não eliminou por completo, a doutrina da justificação pela fé. Assim,
uma vez restaurado o centro da igreja, havia muito trabalho a ser
feito quanto ao restante da estrutura. O legado de Lutero à igreja
inclui um material que visa não apenas reconstruir o centro, como
também a periferia. Não nos surpreende que seus escritos sobre a
igreja encham literalmente muitos volumes. Para nossos propósitos,
examinaremos principalmente duas obras, Concernente à ordem do
culto público (1523) e Sobre os concílios e a igreja (1539), para
ouvirmos a instrução de Lutero quanto à forma que a igreja deve ter
e o que deve fazer.
Reunião às Cinco da Manhã
O culto na igreja provê um lugar útil para começarmos. Lutero
apresentou muitas inovações nesses cultos. O canto
congregacional, a pregação, cantar em língua comum, em vez de
fazê-lo exclusivamente em latim, e a pregação da Palavra – todos
costumes que, hoje, são tidos como usuais – eram praticamente
desconhecidos até que Lutero os trouxesse para dentro da igreja.
Antes dele, alguns já haviam tentado instituir essas reformas. Por
exemplo, John Hus tornou o canto congregacional parte regular da
prática da igreja na Capela de Belém, em Praga. Porém, por causa
disso, foi condenado como herege e essa prática não durou muito.
Além disso, conforme Lutero viria a reconhecer, suas novas práticas
não eram realmente inovações, mas um retorno aos modelos
bíblicos. Devemos mencionar que, embora Lutero defendesse o uso
da língua comum no culto na igreja, não proibiu totalmente o uso do
latim. De fato, ele desejava que uma parte do culto incluísse grego e
hebraico. Embora Lutero quisesse implantar um culto
multilinguístico, não podia fazer isso. Também desejava que a igreja
se reunisse às quatro da manhã. Não conseguiu colocar em prática,
mas logrou convencer a congregação de Wittenberg a se reunir às
cinco da manhã. Aparentemente, levantar cedo era uma das poucas
práticas da vida do monastério que Lutero queria manter. Assim, ele
não somente prescreveu esse culto bem cedo pela manhã para os
domingos, como também queria que isso se tornasse uma prática
diária.
Aos domingos, ele marcava dois cultos: o primeiro às cinco da
manhã e o segundo, o “culto tardio”, às nove. Lutero advertiu as
famílias de Wittenberg a dedicarem as tardes do domingo ao
catecismo. Essas ideias são extraídas de seu breve texto de 1523,
Concernente à ordem do culto público. O culto da igreja que ele
delineia nesse texto retroage ao “início autêntico do cristianismo”.
Nos dias de Lutero, porém, o culto na igreja se corrompera. Ele
identifica três abusos específicos, incluindo, em primeiro lugar, o
silêncio da Palavra de Deus; em seguida, a introdução de lendas e
fábulas não cristãs no lugar da Palavra de Deus; e, finalmente, a
visão da missa como uma obra pela qual é possível merecer a graça
de Deus e ganhar a salvação. “A fim de corrigir esses abusos”,
propõe Lutero, “uma congregação jamais deve reunir-se sem a
pregação da Palavra de Deus e a oração”. Lutero propõe ainda que
a pregação da Palavra de Deus inclua a Bíblia inteira. De fato, ele
sugere que os diversos livros da Bíblia sejam apresentados até que
“a Bíblia inteira tenha sido lida”. Tudo isso, segundo ele, produz o
seguinte resultado: “Os cristãos serão, por treino diário, proficientes,
habilidosos e bem versados na Bíblia, pois é assim que os cristãos
autênticos eram formados em tempos antigos, e também podem ser
hoje”.
No desenrolar das direções para o culto, Lutero tem o cuidado de
evitar estabelecer uma programação dogmática. No entanto, sugere
que o culto comece com a pregação, ou com a leitura e a
interpretação da Bíblia. Acrescenta que isso deve durar cerca de
meia hora. Lutero não defende sermões extensos e enfadonhos.
Numa conversa à mesa sobre a pregação, ele brinca: “Quando não
tenho mais nada a dizer, paro de falar”. Depois disso, Lutero
recomenda: “A congregação deve unir-se em agradecimento a
Deus, a fim de louvá-lo e orar pelos frutos da Palavra”. Isso envolve
o cântico de salmos, hinos e antífonas – e cantos litúrgicos entoados
em forma de resposta. Todo o culto, observa Lutero, deve encerrar-
se em uma hora ou durar o tempo que parecer desejável; não
devemos sobrecarregar as almas ou cansá-las. “Esse era o caso
nos monastérios e conventos, onde as pessoas levavam as cargas
como se fossem mulas.”
A congregação deve reunir-se não apenas de manhã cedo, como
também ao entardecer. Lutero sugere que a ordem do culto para a
manhã seja também seguido à noite. Mais uma vez, ao prescrever
limites, ele evita estabelecer regras rígidas para uma ordem de
culto. Em vez disso, oferece uma abordagem flexível, “desde que a
Palavra de Deus receba plena predominância de elevar e reanimar
as almas para que elas não fiquem exauridas”. Além dos cultos de
manhã e ao entardecer, Lutero também sugere a opção de um culto
após o almoço.
Quando as pessoas vão à igreja três vezes ao dia, é preciso
perguntar se lhes sobra tempo para realizar outras coisas.
Precisamos lembrar, porém, que o modelo medieval incluía missa
diária e serviço vespertino. Além disso, temos de acrescentar que
Lutero esperava que nem todo mundo poderia frequentar todos
esses cultos. Finalmente, o reformador cria que as pessoas
deveriam frequentar “voluntariamente, e não com relutância, por
constrangimento ou para ganhar alguma recompensa, temporal ou
eterna, mas somente para a glória de Deus e o bem do próximo”.
Lutero esperava, porém, que toda a congregação se reunisse aos
domingos. Avisava ainda que preferia que a Ceia do Senhor fosse
administrada somente aos domingos, substituindo a missa diária
pela pregação da Palavra. Conforme observa: “Que tudo seja feito
para que a Palavra tenha livre curso, em vez da conversa fiada e de
ruídos sem sentido, os quais têm sido a regra até agora”. Ele
termina sua breve discussão com uma aplicação pitoresca da
história de Maria e Marta (Lucas 10). Dessa história, ele conclui que
“apenas uma coisa é necessária”, qual seja, “sentar-se aos pés de
Cristo e ouvir sua palavra diariamente. Essa é a melhor parte a
escolher, e jamais nos será tirada. É uma Palavra eterna. Todo o
resto vai passar, não importa quanto cuidado e quanta preocupação
isso dê a Marta”. Ao refletirmos sobre o conselho de Lutero quanto
ao culto da igreja, talvez decidamos não segui-lo, especialmente em
relação ao horário das reuniões, às cinco da manhã. Porém, sua
ênfase coerente e completa sobre a centralidade da Palavra será
bem recompensada se for seguida.
P
PERCEBEMOS QUE LUTERO era um prolixo escritor de
sermões ao considerar as estatísticas que se seguem.
Sobrevivem pouco mais de duzentos manuscritos de
sermões de Lutero relativos ao período de 1510 a 1522. Entre 1522
e 1546, vários estudiosos estimam que Lutero tenha pregado mais
de 5.800 sermões. Desses quase 6 mil sermões, manuscritos
inteiros, notas de estenógrafos e textos em rascunho, sobreviveram
cerca de 2 mil.
A edição Weimar das obras de Lutero, a edição alemã autoritativa
e mais completa, dedica 16 volumes exclusivamente aos sermões,
também acrescentando material de sermões em outros lugares da
edição. Em Conversas à mesa, Lutero explica como ele produzia
tantos sermões: “Com frequência, eu pregava quatro sermões em
um só dia. Durante toda a Quaresma, preguei dois sermões e dei
uma palestra a cada dia”. Ele foi chamado por muitos como um dos
melhores pregadores de todos os tempos. Embora alguns entendam
que essa designação é controversa, poucos duvidam de que ele,
ainda hoje, esteja entre os mais prolíficos pregadores da história.
Lutero fez muitos sermões na Igreja do Castelo em Wittenberg.
Além disso, pregou muitos mais em seu lar, o antigo Claustro Negro.
Quando viajava, sempre lhe pediam para pregar. Em sua última
viagem a Eisleben, ele pregou quatro vezes em apenas alguns dias,
a despeito da doença que tirou sua vida, poucos dias depois.
Primeiro, começou a pregar regularmente no Claustro Negro quando
foi nomeado subprior do monastério, em 1512. Talvez tenha
pregado antes desse tempo, durante seus anos no monastério de
Erfurt. A maioria dos estudiosos data seu primeiro sermão em 1510.
Logo após Lutero ter começado a pregar no Claustro Negro,
Frederico, o Sábio encorajou o conselho da cidade de Wittenberg a
designá-lo como sacerdote da paróquia para a Igreja do Castelo.
Lutero manteve essa posição oficialmente até 1522, quando, com
alegria, passou o título e as principais responsabilidades ao amigo,
Johannes Bugenhagen. Na prática, porém, Lutero continuou
pregando com bastante frequência, em geral três a cinco vezes por
semana.
Lutero tornou-se pastor com certa relutância. Ao refletir sobre seu
chamado para pregar, referiu-se ao chamado de Moisés. Lutero
menciona a relutância de Moisés, mas não com vistas a criticá-lo.
Na verdade, Lutero exclama: “Se eu estivesse na situação de
Moisés, teria contratado um advogado para registrar uma queixa
contra Deus”. Em outro lugar, ele acrescenta: “Deus teve de pedir a
Moisés seis vezes. Ele também me levou a essa posição da mesma
forma”. Ao olhar para trás, sobre seu tempo como ministro, porém,
Lutero confessa: “Quando penso naquele que me chamou, eu não
aceitaria o mundo inteiro para deixar de ter começado como
ministro”. Como pastor, ele entendia que deveria manter-se focado
em sua tarefa. Certa vez, definiu ministro como “alguém colocado na
igreja para a pregação da Palavra e a administração dos
sacramentos”. Para ele, pregar a Palavra significava pregar Cristo.
Mais adiante, examinamos mais de perto os pensamentos de Lutero
sobre o ministério pastoral e a tarefa da pregação. E, dos mais de 2
mil manuscritos de sermões, examinaremos apenas um sermão
representativo para ter uma ideia do que os residentes de
Wittenberg gozavam com regularidade.
Lutero e os pregadores e a pregação
Lutero e seus ouvintes nem sempre desfrutavam de uma relação
harmoniosa. Em um sermão de 1530, Lutero expressou sua
frustração pela indiferença que eles demonstravam por suas
exortações. Em seu linguajar típico, ele disse que continuar
pregando para eles na aparente indiferença em que se encontravam
“me irrita”. Sua frustração aumentou tanto naquele ano que se
recusou a pregar na igreja do Castelo por um bom tempo. Numa das
passagens de Conversas à mesa, ele observa que a maioria dos
ouvintes de sermões são epicurianos: gostam das pregações que os
ajudem a viver com facilidade, mas a pregação que os desafia nem
sempre é bem-vinda. Essas desilusões levaram Lutero a escrever:
“Se eu fosse escrever sobre os fardos da pregação conforme as
tenho conhecido e experimentado, assustaria a todos e os faria
desistir”.
No entanto, não era uma estrada inteiramente pedregosa.
Quando Lutero fez sua “greve” de pregação, logo ouviu muita gente
clamando para que retornasse e, então, mais uma vez, ele
ascendeu ao púlpito. Com frequência, Lutero refletia sobre a
natureza da pregação e dos pregadores. Pensava que os sermões
deveriam ser inteligíveis e suportáveis, com vistas ao auditório.
Muitas vezes advertiu contra pregações enfadonhas: “Não
atormentes teus ouvintes nem os mantenhas sentados na igreja
com o tédio de longos sermões. Pregações assim roubam o prazer
do púlpito”. No breve texto “Concernente à ordem do culto público”,
conforme vimos mais cedo, Lutero sugeria que o culto durasse
apenas uma hora, “e a pregação, a metade desse tempo, para “não
sobrecarregar as almas ou deixá-las exaustas”. Também instruía
seus alunos a “pregar sobre coisas adequadas para determinados
lugares e determinadas pessoas”. Ele lembra, jocoso, que certa vez
ouviu “um pregador fazendo uma exortação ao casamento para
umas senhoras idosas numa enfermaria”. Lutero também defendia
uma pregação espirituosa. Com frequência, ele revivia personagens
e histórias bíblicas para a congregação de Wittenberg e na
Lutherohalle.
O historiador Roland Bainton chama a atenção para um desses
sermões memoráveis sobre o nascimento de Cristo e o respectivo
texto: “Não havia lugar para eles na hospedaria”. Lutero provocava
seus ouvintes repreendendo os donos de hospedarias, como
também Belém em geral, por não reservarem um lugar para Cristo.
Seus ouvintes, sem dúvida, balançavam a cabeça, anuindo. Lutero
continuava: “Há muitos de vós que pensais: ‘Se eu estivesse ali!
Como eu teria atendido rapidamente para ajudar o Infante! Teria
lavado as suas fraldas’”. Então, desafiava: “Sim, vós teríeis. Dizeis
isso porque sabeis quão grande Cristo é, mas, se estivésseis lá
naquele tempo, não teríeis feito nada melhor do que o povo de
Belém”. Então, ilustrava na prática: “Tendes Cristo em vosso
próximo. Deveis servi-lo, pois o que fazeis ao próximo necessitado,
estais fazendo para o próprio Cristo”.
De modo similar, Lutero recontava a história de Gênesis 22 e a
ordem a Abraão para sacrificar Isaque. Notava que “Abraão foi
mandado por Deus a sacrificar o filho de sua velhice por milagre, a
semente pela qual ele seria pai de reis e de uma grande nação.
Abraão empalideceu. Não apenas perderia seu filho, como também
Deus parecia ser mentiroso”. Lutero continuava a história,
descrevendo vividamente os detalhes. Então, chegava ao clímax:
Esse sentimento de terror deve surgir para que vejas a severa ira e a
imutável severidade de Deus em relação ao pecado e aos pecadores,
em que ele não queria que seu único e amado Filho libertasse os
pecadores até que este tivesse pago o caríssimo resgate por eles.
O orgulho vos ataca? Eis como vosso Senhor foi aviltado e zombado
por assassinos. A incastidade e a lascívia, os pecados da carne, vos
atacam? Pensai em como foi amargo Cristo ter sua tenra carne
rasgada, lancetada e surrada repetidamente. O ódio e a inveja fazem
guerra contra vós, ou buscais vingança? Lembrai como Cristo, com
muitas lágrimas e choro, orou por seus inimigos. Se a tristeza ou as
dificuldades físicas ou espirituais vos afligem, fortalecei vosso coração
e dizei: “Por que eu não deveria então sofrer um pouco, já que meu
Senhor suou sangue no Jardim de Getsêmane devido a ansiedade e
tristeza?”.
E
mbora Martinho Lutero tivesse escrito as 95 teses
originalmente em latim, seguiram-se várias traduções
alemãs e reimpressões. As traduções subsequentes,
inclusive textos em português, têm sido impressas desde o século
XVI. Hoje, o documento é um dos mais destacados textos na
história da igreja ocidental. O texto que se segue – aqui traduzido
para o português – toma por base uma tradução livre para o inglês
por Adolph Spaeth, L. D. Reed e Henry Eyster Jacobs. Em certos
pontos, ofereço minha própria interpretação do texto deles, com
uma versão mais legível, embora tenha em mente, sempre,
preservar a intenção do original.
Por amor pela verdade e pelo desejo de trazê-la à luz, as
seguintes proposições serão discutidas em Wittenberg, sob a
supervisão do reverendo padre Martinho Lutero, mestre de Artes e
da Sagrada Teologia, e professor dessas disciplinas em Wittenberg.
Ele pede que aqueles que não puderem estar presentes para
debater oralmente conosco o façam por carta. Em Nome de Nosso
Senhor Jesus Cristo. Amém.
5. O papa não quer remir, nem pode remir, quaisquer penas, exceto
aquelas que ele impôs ou por sua própria autoridade ou pela
autoridade dos cânones.
12. Esse ponto de Lutero chama a atenção para o fato de que perdão
ou absolvição, em tese, seguem a contrição e a satisfação. A
indulgência de Tetzel oferece perdão sem qualquer verdadeira tristeza
pelo pecado ou obras de satisfação.
15. Esse temor e esse horror bastam, para não dizer mais, para
constituir a penalidade do purgatório, já que está bem próximo
do horror do desespero.
18. Parece não comprovado, nem pela razão nem pela Escritura, de
que eles estejam fora do estado do merecimento, ou seja, de
aumentar o amor.
21. Ainda que ele não mencione explicitamente Tetzel pelo nome nas
95 teses, Lutero claramente o tem em vista quando se refere a
pregadores ou, a certa altura, a “mascates” (tese 51) das indulgências.
27. Pregam doutrinas feitas pelos homens aqueles que dizem que,
quando a moeda cai no cofre, a alma voa para fora do
purgatório.
30. Ninguém tem certeza de sua própria contrição ser sincera, muito
menos de conseguir atingir plena remissão.
35. Não pregam doutrina cristã os que ensinam que a contrição não
é necessária naqueles que tencionam comprar as almas para
sair do purgatório ou comprar privilégios confessionais.
37. Todo verdadeiro cristão, quer vivo, quer morto, tem parte em
todos os benefícios de Cristo e da igreja; e isso lhe foi concedido
por Deus, mesmo que não tivesse cartas de perdão.
42. Os cristãos devem ser ensinados que o papa não pretende que
a compra de perdões se compare, de qualquer modo, às obras
de misericórdia.
43. Os cristãos devem ser ensinados que aquele que dá aos pobres
ou empresta aos necessitados faz obra melhor do que comprar
perdões.
46. Os cristãos devem ser ensinados que, a não ser que tenham
mais dinheiro do que precisam, são obrigados a reservar o que
for necessário para suas próprias famílias, e de modo nenhum
devem desperdiçá-lo em perdões.
55. Deve ser intenção do papa que, se os perdões, que são coisa
pequena, são celebrados com sino, procissões e cerimônias,
então o evangelho, que é coisa muito maior, deve ser pregado
com cem sinos, cem procissões e uma centena de cerimônias.
59. São Lourenço foi martirizado em 258 d.C. De acordo com a lenda
(agora amplamente rejeitada), quando os oficiais romanos mandaram
entregar as riquezas da igreja, ele ajuntou os pobres da igreja.
71. Que aquele que fala contra a verdade dos perdões papais seja
anátema e maldito!
72. Mas que aquele que vigia contra a luxúria e a licenciosidade dos
pregadores de indulgências seja bendito!
74. Mas ele pretende protestar muito mais contra aqueles que usam
o pretexto de perdões para maquinar o mal contra o santo amor
e a santa verdade.
77. Dizem que mesmo São Pedro, se hoje fosse papa, não poderia
conceder graças maiores. Isso é uma blasfêmia contra São
Pedro e contra o papa.
82. Perguntas como: “Por que o papa não esvazia o purgatório, por
amor e pelo amor das almas desesperadas que ali estão, se ele
redime um número infinito de almas por amor do mísero dinheiro
com que constrói uma igreja? As razões anteriores seriam mais
justas, enquanto essas últimas são mais triviais”.
83. A lei da igreja proibia orar pelas almas dos santos (parte dos
redimidos).
84. Ou: “Qual é essa nova piedade de Deus e do papa, que, por
dinheiro, permitem ao homem ímpio e a seu inimigo comprarem,
para a saída do purgatório, as almas piedosas e amadas por
Deus, e não livrarem essa mesma alma piedosa e agradável a
Deus do seu tormento apenas por amor puro?”.
86. Ou: “Por que o papa, cuja riqueza hoje é maior do que as
riquezas dos mais ricos, não constrói essa única Basílica de São
Pedro com o próprio dinheiro, em vez de recorrer ao dinheiro dos
crentes pobres?”.
88. Ou: “Qual bênção maior poderia vir à igreja do que se o papa
fizesse cem vezes por dia o que faz hoje uma só vez,
concedendo a todo crente essas remissões e participações?”.
92. Acabai, portanto, com todos esses profetas que dizem ao povo
de Cristo: “Paz, paz”, e não há paz!
“Um estudante que não deseje que seu trabalho passe a ser nada
deverá ler e reler um bom autor até que este se torne, como se fosse,
parte de sua carne e de seu sangue. As leituras dispersas confundem
mais do que ensinam. Muitos livros, mesmo entre os bons, têm o
mesmo efeito sobre o estudante. Ele é como o homem que vive em
todo lugar e, portanto, não vive em lugar nenhum. Assim como na
sociedade humana não gozamos da companhia de todos os amigos
todos os dias, mas apenas de alguns escolhidos, assim também
devemos agir em relação a nossos estudos.”
MARTINHO LUTERO, Conversas à mesa, 1533
O
S ESCRITOS DE MARTINHO LUTERO enchem
literalmente muitas estantes de livros. Assim, alguns deles
simplesmente não poderiam ser tratados aqui. Muitos
outros foram mencionados apenas brevemente em capítulos
anteriores.
Fizemos uma seleção intencional, pois um relato exaustivo
pesaria indevidamente tanto sobre o leitor como sobre o escritor.
Certa vez, alguém disse, comentando os temas de Lutero, que ele
era teólogo “de uma nota só”. Claro, diversos intérpretes têm
diferentes perspectivas no que diz respeito àquela única nota.
Porém, é verdade que, ao lermos os escritos de Lutero, certos
temas, como a teologia da cruz, a justificação pela fé, a centralidade
da Escritura e os sacramentos, vêm ao nosso encontro a cada
momento. No entanto, referir-se a Lutero como teólogo de uma nota
só exagera a questão e não demostra o correto apreço pela rica
variedade de seus escritos. Este livro serve simplesmente como
uma introdução a esses escritos e, nestas últimas poucas páginas,
oferece-se alguma direção para auxiliar aqueles que apreciaram o
que leram e desejam examinar mais a fundo esses temas.
Começamos pelos escritos do próprio Lutero e voltamo-nos em
seguida àqueles escritos a seu respeito.
Livros Escritos por Lutero
Tudo que lemos de Lutero em inglês é tradução ou do latim ou do
alemão. Edições coligidas de suas obras em latim apareceram no
tempo de sua vida, como também edições coligidas em alemão. O
mais ambicioso desses projetos é o Weimar Ausgabe, iniciado em
1888 e ainda em curso nos dias atuais, com mais de cem volumes.
Essa obra é a fonte acadêmica clássica para Lutero. Em geral,
abrevia-se como “WA” e é citada na maioria das obras a respeito
dele. Podemos, porém, ser gratos à Fortress Press por disponibilizar
boa parte desse material em inglês. Essa edição, conhecida, em
língua inglesa, como Luther’s Works, e abreviada como “LW”, teve
início em 1957, sob a editoração de Jaroslav Pelikan. Envolve
numerosos tradutores e editores, abrangendo 55 volumes dos
escritos de Lutero. Cada volume contém introduções bastante
proveitosas. Mas comprar uma coleção de 55 voloumes não será
prático para a maioria de nós. Outras fontes se mostram mais
adequadas para nós e incluem duas compilações excepcionais. A
primeira, de Timothy F. Lull, Martin Luther’s Basic Theological
Writings (1989), que oferece uma amostra completa dos escritos de
Lutero. A segunda, não tão exaustiva, mas também bastante útil, é
de John Dillenberger, Martin Luther: Selections from His Writings
(1962). Cada um desses dois volumes oferece um resumo acessível
das obras de Lutero. Mais um livro que contém uma mostra
compensadora dos escritos de Lutero é By Faith Alone: 365
Devotional Readings Updated in Today’s Language (1998). Quatro
novos volumes são um acréscimo significativo à versão em inglês.
The Annotated Luther apresenta os principais escritos de Lutero,
junto com introduções e notas explicativas bastante úteis (Fortress,
2015 e 2016).
Além disso, diversas edições dos escritos de Lutero estão
disponíveis, incluindo Três Tratados; Catecismo maior; e Catecismo
menor. Dois diferentes volumes de O cativeiro da vontade estão à
disposição. Luther and Erasmus: Freedom of the Will and Salvation
(Westminster Press, 1969), na versão em inglês, faz uma edição
que inclui todo o texto da obra de Erasmo que provocou o tratado de
Lutero. O cativeiro da vontade também é uma obra valiosa, devido à
sua excelente introdução.
Se pudéssemos acrescentar mais um capítulo a este livro, sem
dúvida seria a respeito dos comentários de Lutero. Esses
comentários representam a maior parte de seus escritos e são
fulcrais para o entendimento de seu pensamento. Em inglês, estão
disponíveis em numerosos volumes de Luther’s Works. Diversos
comentários sobre livros bíblicos individuais também estão
disponíveis em língua inglesa, incluindo The Crossway Classic
Commentaries: Galatians (Crossway, 1998); Luther’s Lectures on
Romans (Westminster, 1959); Romans (Kregel, 1976); Peter and
Jude (Kregel, 1990); e Hebrews (Kregel, 1980).
Livros sobre Lutero
Comecemos pelas biografias. De Roland H. Bainton, Here I Stand: A
Life of Martin Luther (1977) (publicado no Brasil, pelas Edições Vida
Nova, como “Cativo à Palavra”, em 2017) claramente figura entre
uma das mais conhecidas biografias de Lutero. O tratamento
completo que Bainton faz é complementado por seu estilo lúcido e
atraente. Essa biografia ainda conta com um amplo espectro de
leitores muitas décadas depois de sua primeira publicação, em
1955. Martin Brecht oferece a biografia mais completa de Lutero.
Originalmente escrita em alemão e recentemente traduzida para o
inglês, seus três volumes incluem Martin Luther: His Road to
Reformation, 1483-1521 (Fortress, 1993); Shaping and Defining the
Reformation, 1521-1532 (1994); e The Preservation of the Church,
1532-1546 (1999).
Outras biografias de relevo incluem, de Peter Manns, Martin
Luther: An Illustrated Biography (1983); James M. Kittelson, Luther
the Reformer: The Story of the Man and His Career (1987); Heiko A.
Oberman, Luther: Man between God and the Devil (1992), todas
originalmente em inglês. Mais um livro que oferece uma cronologia
completa, junto com citações por Lutero e seus contemporâneos, é,
de Oskar Thulin, A Life of Luther: Told in Pictures and Narrative by
the Reformer and His Contemporaries (1966). Finalmente, a revista
Christian History dedicou duas edições à vida, ao pensamento e aos
tempos de Lutero (edição no 34 [1992] e edição no 39 [1993]). Outro
trabalho que retrata Lutero em seus próprios dias e um pouco
depois é, de Robert Kolb, Martin Luther as Prophet, Teacher, and
Hero: Images of the Reformer, 1520-1620 (1999).
Os leitores de Heroic Boldness of Martin Luther (publicado no
Brasil, pela Editora Fiel, como Heroica ousadia de Martinho Lutero),
de Steven J. Lawson serão encorajados pelo exemplo da vida de
Lutero nessa biografia bem contada. Outro trabalho que merece
menção aborda algumas facetas da teologia de Lutero. Alister
McGrath oferece uma discussão muito útil das ideias centrais de
Lutero em seu Luther’s Theology of the Cross (1985). David C.
Steinmetz cobre essencialmente todos os aspectos do pensamento
de Lutero em Luther in Context (1995). Recentemente traduzido
para o inglês, Martin Luther’s Theology: Its Historical and Systematic
Development, de Bernard Lohse (1999), oferece um exame
fascinante da obra de Lutero, conforme o título indica, discutindo
primeiro o desenvolvimento histórico, para, então, arrumar, de
maneira sistemática, seu pensamento. Finalmente, Jaroslav Pelikan
apresenta uma discussão bem esclarecedora da tradução da Bíblia
de Lutero e de seu impacto sobre a Reforma em The Reformation of
the Bible; The Bible of the Reformation (1996).
Essa lista é apenas uma amostra da literatura existente em
língua inglesa. Todas essas obras atestam a contínua relevância do
pensamento de Lutero. O Dia da Reforma, geralmente observado
em 31 de outubro ou no domingo anterior a essa data, oferece um
adequado tributo a Martinho Lutero. Essa ocasião nos lembra seu
papel, bem como o papel que outros reformadores tiveram, na
história da tradição cristã.
Séculos distantes de seu trabalho, devemos esforçar-nos para
jamais esquecermos o papel dessas figuras e o legado de suas
obras, sempre retornando a elas. É claro que Lutero insistiria que,
quando fizéssemos isso, olhássemos para além dele e dos demais,
para o que eles apontavam: Cristo e seu evangelho. A oração no
Hinário para o culto luterano para o Dia da Reforma capta bem esse
espírito, ao deixar claro por que nos lembramos de Lutero:
Todo-poderoso Deus, que, pela pregação dos teus servos, os benditos
reformadores, tens levado a luz do Evangelho a brilhar: Concede, te
pedimos, que, ao conhecer teu poder salvador, nós o guardemos e o
defendamos fielmente contra todos os inimigos, e com alegria o
proclamemos, para a salvação das almas e a glória de teu santo nome,
por teu Filho, Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina contigo e
com o Espírito Santo, um Deus, mundo sem-fim. Amém.
BIBLIOGRAFIA
www.ministeriofiel.com.br
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