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O PROCESSO CIVIL ITALIANO NO QUADRO DA CONTRAPOSIÇÃO "CIVIL LAW" -

"COMMON LAW" (APONTAMENTOS HISTÓRICO-COMPARATIVOS) *

Mauro Cappelletti **

SUMÁRIO:  1. Origens históricas dos modernos sistemas processuais europeus continentais (civil law
procedure).  2. Analogias entre o sistema processual anglo-saxão (common Law procedure) e o sistema
processual romano clássico, e diferenças entre este sistema e aquele dos Estados europeus
continentais.  3. Processo pós-clássico e justiniano e processo continental moderno.  4. Formação e
características do processo ítalo-canônico e comum.  5. O processo comum "sumário" e as leis
particulares das livres Comunas cidadãs, dos príncipes e das monarquias.  6. A Revolução Francesa e a
codificação napoleônica; parcial retorno às idéias do processo romano puro nos Códigos alemão e
austríaco, em vigor em 1879 e 1898, respectivamente.  7. O Código de Processo Civil italiano de 1865 e
o sistema probatório.  8. Do Código de Processo Civil de 1865 ao de 1942; a "Novela" de 1950.  9.
Normas processuais na Constituição de 1948 e em outras leis especiais; conclusão sobre a
contraposição "civil law" - "common law".  ***

 
 

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1.

O ponto de partida na evolução histórica do ordenamento jurídico italiano


é representado, naturalmente, pelo direito romano. Isso é evidente
sobretudo para o direito privado substancial. Quanto ao direito processual
civil, deve-se de pronto advertir que o elemento romano primitivo e
clássico sofreu, na época do Baixo Império e depois, em especial no
período medieval, radicais e heterogêneas influências e transformações,
de tal modo que a sua presença no processo italiano atual é, pode-se
dizer, relativamente exígua. É verdade que muitos institutos processuais
que se apresentam no processo italiano vigente encontram
correspondências mais ou menos próximas em institutos processuais
romanos, ou seja, em institutos que o estudioso da história do direito
pode observar na compilação justiniana, quando não até
nas Instituições de Gaio 1 ou em textos ainda precedentes. Muitas vezes,
porém, a correspondência é mais de forma do que de conteúdo, tratando-
se de institutos que no processo romano - e pretendo aqui dizer no
processo romano "clássico" ou "puro", isto é, naquele que dominou nos
quatro séculos de maior desenvolvimento da civilização romana, ou seja,
até aproximadamente à metade do século III d. C., e que é também
chamado de processo "formulário" - tinham uma função e, por isso, uma
natureza assaz diversa daquela que vinham assumindo no processo
bizantino e sobretudo, após, no ítalo-canônico e comum 2.

Na realidade, o verdadeiro ascendente direto do sistema processual


italiano vigente, assim como dos demais sistemas continentais e do
próprio processo anglo-saxão de equity  3, foi o processo ítalo-canônico
(dito também "romano-canônico" ou simplesmente "canônico") e comum,
no qual, como veremos a seguir (nº. 4), os elementos romanos, que na
maioria das vezes são mais elementos pós-clássicos ou bizantinos, são
unidos e confundidos com elementos germânicos.

Por outro lado, embora à primeira vista possa parecer paradoxal, pode-se
até dizer que as afinidades com o processo romano clássico encontram-
se mais no ordenamento dos países de common law do que nos países
da Europa continental e, em geral, do que nos países de civil law (dentre
os quais vão inseridos, por exemplo, todos os países da América Latina).
Isso é verdadeiro sobretudo até às codificações européias modernas, as
quais, sob alguns aspectos importantes, representaram, como se verá
(infra, nº. 6), um retorno parcial, e muitas vezes consciente, ao modelo
romano clássico e um abandono do sistema medieval que durou até
tempos bastante próximos.

 
 

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2.

Para demonstrar a tese há pouco acenada, não é necessária uma


detalhada análise do processo romano clássico. Bastará recordar
algumas dentre as características mais notáveis ou mais típicas desse
processo para notar-se como a analogia, embora deva ser considerada
cautelosamente 4, é mais nítida no sistema processual anglo-saxão do
que nos países continentais: e isso ainda que não pareça sustentável,
com segurança absoluta, uma influência direta do processo romano
clássico sobre os originários desenvolvimentos históricos do processo
anglo-saxão 5.

 
 

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Para começar por uma dentre as semelhanças mais importantes - ou


mais macroscópicas 6 - pense-se, antes de tudo, na nítida distinção do
processo em duas fases: a issue-making stage (fase in jure) e
o trial (fase in iudicio, ou seja, apud iudicem) 7. A analogia é muito mais
convincente quando se pensa que também no trial romano encontramos
a figura do iudex, que é uma pessoa privada similar aos jurados do
processo anglo-saxão 8, e que já no trial romano dominavam - com um
rigor e uma coerência bem maiores do que no atual sistema italiano,
reencontrados somente no processo de common law - os princípios da
oralidade, da concentração (o processo, na fase do trial, devia
desenrolar-se de maneira concentrada, preferencialmente em uma
audiência), da imediatidade (as provas eram colhidas perante o juiz-
decisor, e não perante órgãos diversos, quais um "juiz-delegado" ou um
"juiz-instrutor"), e do livre convencimento do juiz em relação aos fatos in
issue (livre valoração de todas as provas) 9. Até mesmo um instituto
específico que ainda hoje se pode encontrar na fase pre-trial do processo
anglo-saxão já existia em fase idêntica do processo romano, a saber,
a interrogatio in jure, antecessora da interrogatio per positiones do
processo canônico e comum, do qual passou - inicialmente como instituto
limitado ao processo de equity e, após, no século passado, como instituto
de alcance geral - ao processo anglo-saxão (discovery by
interrogatories ou discovery of facts) 10.

 
 

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A propósito, é importante e sintomático observar que o discovery by
interrogatories anglo-saxão conservou uma função bem mais similar
àquela originária da interrogatio in iure do que o instituto italiano do
interrogatório formal (CPC, arts. 228-232), ou do que o análogo instituto
francês do interrogatoire sur faits et articles (abolido pela Lei de 1942,
convalidada em 1945), ambos derivados, como
os interrogatories ingleses e americanos, do instituto romano pelo trâmite
da interrogatio per positiones  11. Na verdade, a função da interrogatio in
iure não era propriamente probatória, ou seja, destinada a formar o
convencimento (livre ou vinculado à lei) do juiz sobre os fatos
controversos entre as partes e que, portanto, exigiam prova. Com efeito,
tal função era antes a de permitir ao autor que bem propusesse a própria
ação 12 e que bem formulasse e delimitasse as issues. Por causa (ou
também por causa) da relativização da distinção entre uma issue-making
stage e uma fase de debates, o instituto aqui em exame foi assumindo já
no processo justiniano 13 - e ainda mais decisivamente após, no processo
canônico e comum, no processo moderno francês e, sobretudo, no
italiano - uma função probatória 14.

Enfim, não é menos sintomático assinalar que também na fase apud


iudicem possa ser encontrado senão propriamente um instituto
específico, pelo menos uma técnica processual que, por muitas razões,
pode se assemelhar à técnica anglo-americana da examination in open
court. Esta subsiste ainda hoje e é extremamente importante no processo
civil dos países de common law (limitada, até ao século passado, às
Cortes de common law, mas, após, generalizada), enquanto está
praticamente desaparecida no processo canônico e comum. 15 Somente
em tempos recentes, em razão do já recordado fenômeno de retorno às
idéias dominantes no processo romano clássico, tal técnica tornou a
impor-se em vários ordenamentos europeus, estando lentamente
tomando assento, inclusive na Itália 16. Parece efetivamente acertado que
na fase do debate oral o iudex e especialmente as partes, ou os
defensores, podiam, dentro de um livre e espontâneo colóquio, dirigir
perguntas sobre fatos da causa a terceiros (testemunhas) e às próprias
partes, com o sistema das perguntas cruzadas 17 e do diálogo
ou altercatio entre as partes 18.

 
 

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A importância desse método de exame reside, antes de mais nada, na
ausência de pesadas formalidades. Esse sistema, já no processo
romano, atendia perfeitamente aos cânones que os mais modernos
estudos sobre a psicologia do testemunho demonstram ser úteis ao fim
de obter o máximo de rendimento do testemunho de terceiros e das
partes 19. O caráter livre e não formalizado dos interrogatórios
realizados in open court, ou seja, na imediatidade da relação entre órgão
decisor, testemunhas e partes, bem como a plena liberdade do juiz na
valoração dos resultados daquelas interrogações, com o poder, portanto,
de ter em conta cada sintoma e indício que acompanhassem as
perguntas ou as respostas (contradições, reticências, embaraços do
sujeito interrogado etc.), tudo isso mostra quão mais próximo o método
romano estava da examination e cross-examination at the trial das Cortes
anglo-saxãs do que da estrutura escrita e formalística e da valoração
predeterminada e "numérica" (nullus testis in re sua intelligitur; testis unus
testis nullus; in ore duorum vel trium stat veritas etc. 20) da prova
testemunhal do processo canônico e comum.

 
 

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Tais estrutura e valoração perduraram até à Revolução na França 21; na


Itália, até à penetração da codificação napoleônica, e ainda por mais
tempo em outros países europeus 22. Não seria exato, no entanto, estimar
que estejam desaparecidas por completo do sistema italiano vigente,
como também do francês e, com mais intensidade ainda, do espanhol.
De fato, permanece ao menos toda uma série de resíduos arcaicos do
sistema antigo, que se exprimem, de um lado, na rígida estrutura do
regime de assunção da prova testemunhal (capítulos de prova pré-
formulados por escrito etc. 23) e, de outro, no sistema ainda formal de
utilização probatória do saber das partes e na vedação da utilização do
saber de "terceiros interessados" (CPC, arts. 246-247) 24. Conquanto
ainda hoje seja praticamente vedada a possibilidade de utilizar-se
livremente como testemunha a parte ou o "terceiro interessado" (é a
antiga máxima nullus testis in re sua, preceito que certamente não é
romano-clássico), permanece, ao lado do interrogatório formal, concebido
com o objetivo de provocar a confissão-prova legal, o antiquado instituto
do juramento decisório da parte, ignorado no processo anglo-saxão. Esse
instituto, que na fase in iure do processo romano clássico tinha, grosso
modo, a função de obter uma transação entre as partes 25, transformou-
se depois em um meio de prova "legal", ou seja, "vinculante" para o juiz,
insuscetível de ser combatido com outras provas, nem mesmo com a
prova da falsidade do juramento 26. O juiz se encontra assim na absurda
posição de dever, de um lado, julgar jamais crível a parte ou outro sujeito
interessado, a tal ponto de não poder admiti-los - como os admite, por
sua vez, o juiz anglo-saxão - em interrogatórioas witnesses  27; e de
dever, por outro lado, emprestar fé absoluta às declarações havidas sob
vínculo de juramento da parte, sob "desafio" do adversário (deferimento
do juramento) ou, dentro de certos limites, do próprio juiz. E isso ainda
que se trate de declarações feitas pela parte in causa propria e sem
aquelas garantias que poderiam nascer do fato de que as questões não
fossem conhecidas antecipadamente pela própria parte.

 
 

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Outra notável analogia entre o sistema romano e o anglo-saxão se


manifesta na contraposição e progressiva sobreposição de um ius
honorarium ou praetorium  28 ao originário ius civile, algo similar, sob
muitos aspectos, ao fenômeno da formação daequity ao lado da common
law  29. A própria figura do praetor, que remonta exatamente à criação
do ius honorarium, pode ser de qualquer modo aproximada à figura
do chancellor inglês 30, ao passo que não encontra qualquer
correspondência no processo canônico e comum, nem no processo atual
dos países continentais.

De qualquer sorte, encontramos funções confiadas ao praetor que na


história do processo anglo-saxão foram cumpridas pelas próprias Courts
of common law.

 
 

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De grande interesse a esse propósito é especialmente o complexo


das actiones ficticiae, actiones utiles e actiones in factum, das quais o
jurista anglo-saxão pôde conceber uma idéia ao menos aproximada,
pensando na fundamental actio on the case31 e na enorme importância
que, também na evolução judiciária da common law, assumiu o feno
meno das ficções 32.

Essas analogias particulares induzem, de resto, a uma analogia ainda


mais vasta do sistema anglo-saxão com o romano - e, respectivamente, a
uma outra diferença profunda entre o sistema romano e aquele dos
países europeus continentais -: isto é, o fato de queo direito subjetivo
substancial foi no ordenamento romano mais a conseqüênc ia do que
acausa da ação 33. No ordenamento dos países continentais, e em
particular naquele vigente na Itália, a ação é um direito processual que
segue, quase como uma sombra, o direito substancial. O art. 24, primeira
parte, da Constituição da República italiana de 1948 reflete essa
concepção na fórmula pela qual "todos podem agir em juízo para a tutela
dos próprios direitos e interesses legítimos". No direito romano, ao invés,
e similarmente no direito inglês, os direitos subjetivos substanciais foram
praticamente criados mediante expedientes concretos de caráter
processual 34. Essa formação histórica dos direitos explica também por
que "Roman lawyers viewed the law mainly from the standpoint
of actiones" 35, e por que "there was no (...) isolation of private substantive
law from procedural law" 36. Tal formação histórica é por sua vez
explicada pela mentalidade concreta, indutiva, casuística dos juristas
romanos da época clássica, na qual o direito no sistema romano - similar
também sob este aspecto ao futuro sistema anglo-saxão de "criação
judiciária" do direito (judge made law) - era criado não tanto mediante a
elaboração ou modificação de normas gerais e abstratas, senão mais
pela criação de novas ações ou exceções para casos concretos da vida,
reconhecidos pelo praetor como merecedores de tutela 37.

 
 

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3.

Bem mais próximo ao processo continental moderno está, sob muitos


aspectos, senão o processo pós-clássico e bizantino 38, ao qual, muito
mais do que ao processo romano clássico, está efetivamente ligada,
como já foi acenado, a formação do processo canônico e comum (e, por
conseguinte, também a formação do processo anglo-saxão de equity) 39.
Com efeito, a distinção entre uma fase in iure e uma in iudicio foi
abandonada, bem como foram abolidas as formulae  40 e o iudex privado
foi transformado em um oficial público40-bis. Como conseqüência da
centralização dos poderes nas mãos do príncipe, a função criadora do
direito confiada aos praetores e aos seus edicta foi progressivamente
restringida com a fusão do ius praetorium e do ius civile  41, e com a
sobreposição a esses de um direito, por assim dizer, estatutário, de direta
emanação imperial. Também no sistema probatório começaram a
penetrar os primeiros sinais do método "numérico" e apriorístico de
valoração das provas (acompanhado de uma progressiva desconfiança
da prova testemunhal e da preferência pela prova escrita), método esse
que alcançaria o seu máximo triunfo no processo medieval 42.

4.

Na Alta Idade Média, com as invasões bárbaras, as leis germânicas


substanciais e processuais impuseram-se ao refinado direito romano-
justiniano, sem que, porém, o processo germânico (franco-lombardo)
conseguisse obter predomínio completo em toda a Itália. Para que o
sistema processual romano-justiniano se mantivesse vivo ao menos em
parte, contribuíram fortemente - além dos centros de Roma e de Ravena,
onde esse sistema continuou a ter aplicação geral - os tribunais da Igreja,
nos quais era seguido o mesmo sistema, ainda que influenciado e
parcialmente modificado pelo procedimento germânico, que prevaleceu
nos processos seculares 43.

 
 

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De todo modo, a influência foi recíproca, porque também a prática


germânica sofreu progressivamente a influência romano-justiniana,
transmitida durante os séculos das invasões 44. Essa influência estava
destinada a acentuar-se, até a ponto de ceder espaço ao grandioso
fenômeno do predomínio novo do elemento romano, com o reflorescim
ento da civilização italiana a partir do século XII 45. Esse renascimento
cultural - que por mais de quatro séculos fez da Itália o centro cultural do
mundo e ao qual deu vigor e impulso sobretudo o novo fervor de vida
surgido com os fenômenos político-sociais do urbanismo e da formação
das Comunas cidadãs livres e dinâmicas, contrapostas à estática
organização feudal - não foi menos importante no campo do direito de
quanto tenha sido nas artes e na literatura 46. A fusão dos elementos
germânicos e romanos e a elaboração - mediante essa fusão - de um
sistema processual novo e original, ainda que fortemente ligado ao
sistema romano-justiniano, foram o fruto espontâneo daquele
reflorescimento da vida, do comércio, da liberdade e, simultaneamente,
também da cultura, em particular da cultura jurídica. Essas foram também
fruto da obra dos grandes "glosadores" e, depois deles, dos
"comentadores", que retomaram o estudo do direito romano retornando
às fontes e, naturalmente, sobretudo à compilação justiniana 47, por eles
interpretada com grande liberdade e com profu ndasensibilidade às
exigências práticas de seu tempo 48. Foram, outrossim, também obra
dos"canonistas", que, interpretando o direito da Igreja, estudavam um
direito que estava fortemente influenciado pelo direito tardo-romano,
porque, segundo a máxima já firmemente estabelecida no alto
medievo, "ecclesia vivit lege romana"49. Em suma, foram obra daqueles
juristas, "legistas" e "canonistas" 50, aos quais se deve justamente
remontar a elaboração do sistema processual "romano-canônico" ou
"ítalo-canônico", que se tornou depois - em seguida à sua "recepção" por
parte de várias populações européias (especialmente a partir do século
XIV) e há até a bem pouco tempo - o ius commune dos países de civil
law  51, tendo penetrado parcialmente até nos países de common law por
meio das cortes de equity. Acerca de qual tenha sido a importância das
escolas italianas nesse trabalho de expansão e unificação jurídica,
principalmente da antiga Universidade de Bolonha, onde se encontravam
grandes mestres na senda do fundador da escola - Irnério, atuante em
torno de 1100 -, pode intuir, quem saiba, pelo exemplo de que, até ao
século XVI, os juristas alemães eram tidos em menor consideração em
seu próprio país quando não eram laureados naquelas escolas 52. Tal
importância derivava sobretudo do fato de que o redescobrimento, a
"glosa", o "comentário" dos velhos textos romanos não tinha caráter de
pura erudição, mas significava, ao contrário, redescobrimento dos
institutos de uma civilização mais evoluída quanto à sua adaptação às
exigências de uma sociedade nova e em evolução, que se tornou bem
consciente da inadequação de institutos rudimentares advindos da
obscura experiência do alto medievo.

 
 
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Certamente o sistema elaborado pelas glosas e comentários do século


XII e seguintes não é tal que esteja isento de críticas por parte do jurista
moderno. Trata-se, porém, de uma crítica que somente é válida enquanto
dirigida contra certos resíduos arcaicos daquele sistema nos
ordenamentos modernos, e em particular no italiano. Estaria
completamente privado de senso da História aquele que estudasse com o
mesmo espírito o sistema romanocanônico nos séculos de sua
elaboração e de sua expansão. Para aqueles tempos, aquele sistema
significou efetivamente um grandioso e admirável progresso. É verdade
que o processo germânico primitivo parecia render homenagem à
oralidade e à concentração — e talvez a algum outro daqueles princípios
que vimos existir já no processo romano clássico e que em grande
medida tinham desaparecido do processo bizantino. E é verdade ta
mbémque no processo ordinário ítalo-canônico e comum foram
consagrados, de maneira ainda mais exasperada do que no processo
justiniano, os princípios da escrita, da diluição do processo em
numerosíssimas etapas e fases, da imediatidade, das provas legais
etc. 53. A oralidade da prática germânica, entretanto, teve um significado
de todo diverso daquele do processo formulário. Era a oralidade de
quem, mal sabendo utilizar o instrumento da escrita, era constrangido a
prescindir desse importante e utilíssimo meio de comunicação 54. Por
outro lado, quanto aos outros princípios coligados ao da oralidade, e
sobretudo quanto ao princípio da valoração antes "legal" do que livre das
provas, é necessário recordar que o processo germânico primitivo era
decidido mediante provas assaz rápidas e simples e, em certo sentido,
livres (porque abandonadas à força ou ao acaso), porém, não certamente
seguras. Entre essas provas estava em primeiro plano o duelo 55, muitas
vezes considerado um direito do autor ou do requerido. E ao lado do
duelo outros numerosos "juízos de Deus"ou ordálios: a prova do ferro
candente, do fogo, da água fervente e assim por diante 56. O próprio
conceito de testemunho era radicalmente diverso, quer do romano, clã
ssico e justiniano, quer do moderno. As testemunhas não juravam sobre
os fatos, e freqüentemente nem mesmo sobre os direitos de uma ou de
outra parte, mas sobre a sua honorabilidade, isso quando não travassem
elas próprias duelo entre si 57.

 
 

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Frente a tal sistema, às suas arbitrariedades e superstições, cada um


compreende quão profunda renovação e melhoramento representou o
sistema da prova legal e, em geral, o processual romano-canônico e
comum. Nesse, tudo era, ou pelo menos se tentava que fosse,
racionalmente ordenado e previsível, de maneira rigorosa e quase
mecânica: o procedimento desenvolvia-se por pequenos passos ou
"fases", minuciosa e formalisticamente predeterminadas 58; as formas dos
atos processuais eram rigidamente preestabelecidas; todas as questões,
inclusive aquelas meramente formais, incidentais ou preliminares, eram
decididas com sentença motivada, que devia ser imediatamente
impugnada, pois do contrário passava definitivamente em julgado 59; eram
taxativam enteelencandas as provas admissíveis e era aprioristicamente
decidido por lei, com critérios matemáticos, o valor de cada prova. Duas
testemunhas varões valiam como prova vinculante, mas para provar
determinados atos necessitavam-se de três, ou até de cinco ou sete
testemunhas. Uma testemunha apenas não podia fazer prova, exceção
feita, originariamente, aos sanctissimi episcopi e, depois, apenas ao
Papa 60. Os servos, os parentes, os amigos da parte e naturalmente a
própria parte não podiam testemunhar. O testemunho do pobre valia
menos que o do rico. O testemunho do nobre prevalecia sobre o do não
nobre, o do clérigo sobre o do laico, com ulteriores gradações segundo o
grau de nobreza ou do ofício eclesiástico. O testemunho do cristão
prevalecia sobre o do hebreu; o do herege, e em geral de quem se
encontrasse em pecado mortal, não era admitido etc., etc. Análoga
concepção penetrou também no campo das provas diversas da
testemunhal, p. ex., no das presunções: donde, de cada prova, se sabia
em abstrato e em antecipação se fosse prova plena (vinculante) ou não
plena. Não, porém, no sentido de que a prova "não plena" fosse
livremente valorada pelo juiz; mas, sim, no sentido de que somente em
presença de um número preciso e predeterminado daquelas provas - por
exemplo, em presença de duas meias-provas (probationes semiplenae) -
seria tida uma prova por plena e vinculante.

 
 

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Um sistema antiquado? Certamente, aos olhos do moderno. Mas um
sistema profundamente inovador e "moderno" aos olhos do jurista do
século XII e XIII. Fato é que a força e o acaso, o duelo e os juízos de
Deus, eram enfim substituídos por elementos bem mais racionais e
humanos: o número das testemunhas, a sua condição social, o sexo, a
idade, a condição econômica, a fé religiosa, a honorabilidade e assim por
diante 61. Pelas concepções daquele tempo 62, não era sem razão
acreditar mais no nobre do que no vilão, "pues parece que guardara más
de caer en vergüenza por sí, y por su linaje"; nem irracional acreditar
mais no rico do que no pobre, "pues el pobre puede mentir por codicia o
por promesa"; nem era de todo irracional preferir ao testemunho dos
jovens o dos anciãos, "porque vieron más e pasaron más las cosas"; nem
creio, enfim, que muitos jurariam sobre a ilogicidade de preferir ao
testemunho feminino o do varão, "porque tiene el seso [o intelecto] más
cierto y más firme". A irracionalidade consistia, isto sim, no tornar fixos e
vinculantes esses critérios de valoração, apoiados sobre máximas de
expe riência em si e por si não privadas de uma validade, ao menos
segundo a sociedade daquele tempo 63: em suma, no subtrai-los da
valoração a ser feita livremente e caso a caso pelo juiz. Mas também
essa irracionalidade vai considerada historicamente. De um lado, a
mentalidade da época era, ainda mais do que a dos modernos, abstrata
apriorístico-dedutiva. Era a época da filosofia aristotélico-escolástica, a
idade e digamos até a grande época de To más deAquino. De outro lado,
também os juízes eram homens de seu tempo, aqueles mesm oshomens
que, até então, tinham tido confiança na justiça dos ordálios. Como teria
sidopossível dizer, inopinadamente, a esses homens, como diziam os
juristas da época romana clássica e como tornam a dizer os juristas e as
leis modernas, que as provas devem ser avaliadas segundo a sua
qualidade e não segundo o seu número, e que aquela qualidade depende
de mil razões, freqüentemente imprevisíveis e bem mais complexas do
que o sexo, ou a fé, ou a idade, ou a condição social? Tenha-se presente
que, já no direito pós-clássico e bizantino, a progressiva desvalorização
da prova testemunhal e o ingresso das primeiras exclusionary rules é um
fenômeno devido a razões de decadência cultural e dos costu mes,
devido em suma à transformação da concepção dos valores da vida, e
vai considerada, por isso, como uma barreira contra as injustiças e
abusos por parte dos próprios juízes, das partes e dos terceiros 64. Como
pretender de homens, quiçá ainda habituados à lembrança do método do
duelo, que aplicasse os critérios da observação direta e da crítica
experimental e psicológica ao conhecimento dos fatos e à apreciação das
provas?

 
 

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Também é fato que o tão discutido, e em verdade discutível, método da


prova numérica e legal constituiu em seu tempo o fruto da fusão e
transformação de elementos germânicos, rústicos e primitivos, e como
tais tornados sem valia em uma sociedade maisevoluída, composta por
juristas embebidos agora de uma cultura mais refinada e mais antiga 65.
Aquele método foi, em suma, uma espécie de enlace ideal entre
elementos romanos (seja até tardo-romanos) e elementos bárbaros e, ao
mesmo tempo, uma ponte de passagem em direção àquela concepção
mais moderna, que teve necessidade de outros séculos de evolução para
ter predomínio na Europa após a Revolução Francesa. Um predomínio
que, como veremos, não foi tampouco integral até hoje.

E isso que é dito para o método das provas, que em realidade é elemento
cardeal e determinante de todo sistema processual, vale igualmente para
as outras características fundamentais do processo ítalo-canônico e
comum. 66 Pense-se, por exemplo, no pesado formalismo do
procedimento e, em particular, no formalismo dos atos processuais. Tudo
devia resultar por escrito; tudo devia figurar nos atos (escritos). O juiz não
podia levar em conta no seu juízo senão aquilo que os atos escritos lhe
representassem: quod non est in actis non est de hoc mundo! Nenhuma
relação direta verdadeira, portanto, entre juiz e partes, entre juiz e
testemunhas, e talvez nem ao menos entre juiz e defensores. A escrita
era a muralha que separava o juiz dos outros sujeitos do processo. O
próprio testemunho, quando não era procedido diretamente por escrito,
devia ser colhido ("verbalizado") por escrito e sem a presença das partes,
pela pessoa expressamente designada para isso, ou seja,
pelo actuarius(ou notarius ou protonotarius ou cancellarius); nunca pelo
juiz 67, nem, tanto menos, em audiência "pública" 68. Nem mesmo as
inspeções eram executadas diretamente pelo juiz. E nenhuma garantia
havia que assegurasse a imutabilidade do juiz durante todo o curso do
processo.

 
 

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     DOUTRINA ESTRANGEIRA

Tudo isso, com os infinitos retardamentos, os formalismos, as possíveis


invalidades processuais que daí decorriam, parece hoje irracional.
Imagine-se, porém, que até mesmo aquele formalismo nasceu, em seu
tempo, por uma profunda exigência jurídico-social, portanto, em última
análise, por uma exigência de justiça e de liberdade, aind a que uma
liberdade concebida diversamente de como hoje nós a concebemos. Para
dar-se conta basta recordar que o definitivo triunfo do princípio da escrita
remonta a uma decretal de 1216 do Papa Inocêncio III 69. Nessa decretal,
o princípio quod non est in actis non est in mundo e, por conseguinte, o
princípio de que a sentença do juiz era nula se não fosse fundada
exclusivamente nos elementos emergentes dos acta (scripta), era
explicado como um remédio posto à tutela do innocens litigator contra a
iniquidade e o arbítrio dos juízes e contra a sua parcialidade; a fim de que
não ocorresse que a parte, de boa-fé, ficasse impossibilitada de
demonstrar a falsidade da asserção de um juiz iníquo; a fim de que, em
suma, "a falsidade não prevalecesse sobre a verdade, ou a iniqüidade
sobre a eqüidade" 70.

Isso não significa, naturalmente, que institutos, princípios e normas,


nascidos de uma efetiva necessidade social e por um fim de
humanização da justiça, não tenham podido depois transformar-se, ao
invés, em instrumentos de opressão, de desordem e de privilégio!

5.

Por óbvio, um sistema processual como este, ainda que tenha


representado originariamente um progresso formidável e tenha
contribuído de modo decisivo para formar a unidade jurídica da Europa
continental, não podia sobreviver por muito tempo à mudança da
concepção da vida, que do medievo portou à era moderna. A crítica
baconiana e galileiana contra os erros nascidos das superstições (idola
tribus, specus, fori, theatri); o princípio do "provando e reprovando" e,
depois, da observação direta e isenta dos fat os e darealidade que a nova
filosofia e a física experimental e indutiva opunham ao método da
metafísica e da lógica dedutiva; e, finalmente, com o século XVIII,
também a nova concepção da personalidade humana e da sua posição
na sociedade; tudo isso não podia deixar de exprimir a sua própria
eficácia destrutiva sobre a concepção escolástica, sobre a lógica
abstrata, sobre a concepção hierárquica e feudal que se refletia também
no processo. Cada sistema processual é, em realidade, o espelho fiel da
concepção da vida, que prevalece em um dado lugar e em um dado
momento da história dos povos!
 
 

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O PROCESSO CIVIL ITALIANO NO QUADRO DA CONTRAPOSIÇÃO "CIVIL LAW" - "COMMON LAW"...

Já na Idade Média a exigência de um processo mais dúctil, mais rápido,


menos formal se era feito sentir, especialmente no mundo, cada vez mais
dinâmico e vigoroso, das relações comerciais vindas a florescer no
âmbito das livres Comunas cidadãs. Tipos especiais de procedimentos
"sumários" foram criados, recorde-se, a propósito, sobretudo, a famosa
Clementina "Saepe" de 1306 71. Institutos novos, formados
espontaneamente pelas exigências quotidianas da praxe, foram reunidas
em legislações comunais (statuta), as quais aumentavam, onde quer que
fosse, de número e de importância a partir do final do século XII. E pelas
recíprocas relações entre a doutrina jurídica e a praxe, por vezes
acontecia que aqueles novos institutos, com veste aparentemente
romanística, tornassem-se depois de alcance geral, como parte
integrante do ius commune  72. Outras contribuições para um
desenvolvimento do sistema processual "comum", ou, especialmente
mais tarde, para parciais derrogações àquele sistema, foram trazidas
pelas primeiras legislações dos príncipes e, em seguida, mormente fora
da Itália, pelas sempre mais autorizadas monarquias centra lizadoras,
com leis especiais para cada Estado; leis que ao menos em suas
particularidades, senão propriamente nos princípios fundamentais 73,
distanciavam-se daquele sistema. Importantíssimas foram as ordenanças
dos reis franceses, especialmente a Ordonnance civile de 1667, de Luís
XIV, a qual, diversamente das precedentes, representou uma primeira
quase completa codificação do processo civil (chamado code Louis). Uma
codificação que a autoridade do poder central soube tornar vigorante por
toda a França e por todas as jurisdições, régias, feudais e eclesiásticas.
Nesse conjunto de leis ou de costum es é bastante evidente, quando não
explícito, o intento de remediar as complicações e os pesados
formalismos do procedimento, de disciplinar o processo em um modo
mais rap ido, mais preciso, mais simples. E esse fenômeno, ainda que
em proporções menores, encontra-se continuamente também nos vários
e minúsculos Estados em que estava dividida a Itália naqueles séculos 74.

 
 

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De feito, na Itália, juntamente com a decadência econômica e política,


também a doutrina jurídica em geral, e em particular a processual,
parece, sucessivamente ao século XVI, já cansada e privada de
capacidade criativa e de originalidade. A paixão já havia passado à
grande escola jurídica francesa do século XVI e estava destinada a
passar, no século XIX, à escola "histórica" alemã. Mas apesar da
decadência da ciência jurídica italiana, uma decadência que no campo do
processo civil durou até ao final de 1800 75, permaneceu uma atividade
legislativa notável, desdobrada no âmbito dos vários poderes centrais.
Inútil recordar as várias leis: das bulas e breves em matéria judiciária dos
Pontífices romanos às Constitutiones de Milão, Parma e Piacenza, às
constituições piemonteses e de Modena, ao regulamento toscano de
1771 etc. Basta advertir que, mesmo no freqüente intento de simplificar o
pesado e rígido sistema processual "comum", permaneceram essas leis
fundamentalmente ancoradas àquele sistema, em que vinham inseridos
institutos e normas de diversa formação. É preciso também acrescentar
que se tratava sempre de leis incompletas, não de verdadeiras e próprias
codificações, pelas quais elas, em vez de remediar eficazmente os velhos
inconvenientes, terminavam algumas vezes por acrescentar
inconvenientes novos, aumentando a multiplicidade e a confusão das
fontes (estatutos, leis romanas, leis canônicas e costumes), nas quais
juízes e partes deviam inspirar-se 76.

6.

Para que se tivesse uma mais clara separação do sistema do direito


comunal foi necessária a Revolução Francesa. A nova concepção de
igualdade e de liberdade não podia não se refletir sobre a concepção e
sobre a administração da justiça. De um lado, foram realizadas na nova
organização dos tribunais as idéias revolucionárias da separação d
ospoderes e da supressão das jurisdições privilegiadas, com a unificação
das várias júris dições(régias, feudais e eclesiásticas) 77. De outro,
também no sistema das provas, e especialmente da prova testemunhal, a
Revolução trouxe um espírito novo, com a introdução, pela primeira vez,
do princípio do livre convencimento do juiz, ainda que realizado bem
imperfeitamente 78. A velha concepção aritmética e apriorística, em que
dominavam critérios mecânicos e exteriores de valorização, com
freqüência baseados em superstições e que eram manifestamente
combatidos pela ideologia revolucionária (supra, nº. 4), devia
necessariamente ser levada juntamente com a destruição do sistema
feudal, de suas hierarquias e de seus privilégios 79.

 
 

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O PROCESSO CIVIL ITALIANO NO QUADRO DA CONTRAPOSIÇÃO "CIVIL LAW" - "COMMON LAW"...

Não se acredite, todavia, que a codificação seguida da Revolução tenha


levado a grandíssimas alterações da técnica processual, para além do
campo da organização dos tribunais e das provas 80. A técnica do
processo, que aparece regulada em code de procédure civile de 1806,
não é muito diversa daquela da Ordonnance de 1667, e revela, por isso,
plenamente a matriz do sistema do direito comum. Contudo, é preciso ter
presente que sobre os originários desenvolvimentos históricos do
processo francês, mais do que no processo ítalo-canônico ordinário, fora
determinante no fim do século XIX aquele sumário da Clementina
"Saepe" 81. No processo francês, ainda antes da codificação napoleônica,
são menos acentuados, embora não por certo ausentes, os defeitos de
rigidez e de formalismo alhures lamentados. Oralidade, concentração,
imediatidade, se nunca plenamente juntos no processo francês, eram,
todavia, idéias menos estranhas do que o eram em sistemas processuais
de outros países, entre os quais a Áustria e a Alemanha. Ditos princípios,
e com esses aquele da livre valorização das provas, não foram realizados
com plenitude tampouco no Código de 1806; mas isso se tornou claro na
mente dos estudiosos apenas em um tempo sucessivo, especialmente
depois que em outros países aqueles princípios foram mais
coerentemente aplicados. Entretanto, explica-se como, até que não
sucedida esta realização, muitos juristas não-franceses, não exclusos os
ingleses e os alemães, nem seus estudos e propostas de reforma, se
inspirassem amiúde, por toda a primeira metade do século XIX, e
também adiante, no sistema francês, considerado como o mais
moderno 82. Aqueles estudos e propostas, que especialmente na
Alemanha e na Áustria foram o resultado de um grande florescimento da
doutrina jurídica, estavam assentados principalmente sobre uma idéia, as
discussões em torno das quais "agitaram meia Europa durante o século
passado" 83 e dos quais partiram as mais importantes leis processuais de
reforma: o Código de Processo Civil (Zivilprozessordnung) germânico, em
vigor em 1879, e o Código de Processo Civil austríaco, em vigor em
1898. Aquela idéia foi precisamente "o princípio da oralidade", com todos
os princípios a ele coordenados ou conseqüentes: a concentração, a
imediatidade, a imutabilidade do juiz e a livre valorização das provas.
Dada com isso a definitiva superação do processo comum, escrito,
diluído na multidão de termos, retalhado em múltiplas prolações parciais
e em múltiplas parciais impugnações, privado de um contato direito do
juiz com as partes e com as provas. Depois disso que se viu nos nºs 2 e
3, nada há de estranho que a essa superação tenha contribuído
fortemente o próprio fato de que a doutrina alemã do século passado
portou consigo uma profunda pesquisa científica sobre o direito e sobre o
processo romano puro, estudado pela primeira vez com métodos de
crítica rigorosa.

 
 

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Com efeito, se não também em cada instituto, com certeza ao menos nos
princípios o Código alemão e, depois, o austríaco significaram um retorno
para algumas idéias fundamentais, que já haviam sido próprias do
processo civil romano clássico: um retorno certamente parcial, mas,
todavia, bem mais acentuado do que aquele que foi realizado no início do
século passado na França e, em seguida, na esteira da codificação
napoleônica, e em qualquer outro país neolatino 84, dentre os quais a
Itália 85.

7.

Na Itália, a codificação napoleônica penetrou juntamente com as armadas


francesas. A restauração restituiu a vigência das leis precedentes, mas
não conseguiu tolher o conhecimento de seus graves defeitos e da maior
modernidade daquela lei estrange ira. Reformas eram requeridas agora
cada vez com maior insistência. Com efeito, elas foram realizadas por
quase todos os Estados italianos, e não podiam, naturalmente, deixar de
ser reformas inspiradas, ao menos em parte, no modelo francês. Entre
essas leis de reformas vão recordadas, sobretudo, o primeiro e o
segundo Códigos sardos (1854 e 1859), elaborados por Piemonte e pela
Sardenha. Neles é acentuada a influência francesa, ainda que vários
institutos sejam derivados de lei preexistente, como as Constituições
piemonteses, e outros códigos vigentes em outras partes da Itália 86.

 
 
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O PROCESSO CIVIL ITALIANO NO QUADRO DA CONTRAPOSIÇÃO "CIVIL LAW" - "COMMON LAW"...

Depois da unificação, conquanto parcial, dos vários Estados com a


proclamação do Reino da Itália (1861), foi publicado em 1865, juntamente
com um Código Civil e várias outras leis, um Código de Processo Civil,
que vigorou, com algumas modificações de vez em quando advindas, de
1º de janeiro de 1866 a 21 de abril de 1942 87. Esse Código era
diretamente inspirado nas várias leis já vigentes nos Estados italianos,
especialmente no sdois Códigos sardos: onde, como escrevia Chiovenda,
as suas fontes indiretas foram "as fontes dessas várias leis,
especialmente o Código francês e a Ordenança de 1667. Ao lado de
muitas normas que são tradução literal da Ordenança, encontram-se
normas reproduzidas de leis estrangeiras derivadas da França e normas
que derivam ou de leis italianas - como das Constituições de Piemonte e
de Modena - ou de vigentes na Itália - como o velho regulamento
austríaco -, ou, mais ainda, do processo comum. Entre as diversas fontes
passaram pela nossa lei institutos de raiz romana, de raiz canônica, de
raiz germânica e institutos elaborados pela prática italiana e francesa"  88.

Também foi forte a influência francesa sobre o Código Civil de 1865,


principalmente na parte substancial do sistema das provas, disciplinada
naquele Código nos arts. 1312 a 1377. O método da prova legal,
abandonado a princípio, permaneceu sob várias formas: foi conservado o
juramento decisório junto ao interrogatório formal; foi conservada a
eficácia vinculante da confissão; foram conservadas
numerosas exclusionary rules e m tema de prova testemunhal, entre as
quais aquelas (abolidas há mais de um século na Inglaterra) que excluem
o testemunho das partes, terceiros interessados, parentes, afins e
cônjuges das partes; foram igualmente conservadas várias presunções
"legais" vinculantes ao juiz, paralelamente às presunções "simples", ou
seja, as relativas à livre valorização judicial. Este sistema, ambíguo e de
comprometimento, foi depois substancialmente conservado, com leves
melhoramentos, pelo Código Civil de 1942, que está ainda hoje
vigente 89.

8.
O Código de 1965 entrou em vigor em um período que, sobre o plano
ideológico, era caracterizado por um liberalismo acentuadamente
individualístico. Por isso é natural que essa ideologia dominante se
refletisse nas leis da época, para além da própria doutrina e praxe dos
tribunais 90. Como no Código francês, e diversamente do que no Código
austríaco de 1898, os poderes do juiz no processo civil italiano, regulado
pelo Código de 65, eram então extremamente limitados 91.

 
 

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A este propósito parece necessário fazer uma precisão de caráter


histórico-dogmático, que será útil, presumivelmente, ao jurista não-
europeu para compreender tudo o que de válido e tudo o que de
excessivo, ou até mesmo de patológico, portou consigo aquela
elaboração doutrinária e legislativa, que estava numa posição favorável
em 1900, send oiniciada na Áustria e na Alemanha na segunda metade
do século passado, e na Itália com o início do nosso século,
precisamente com a escola liderada por Giuseppe Chiovenda 92

Talvez a idéia mais importante que foi elaborada por essa doutrina foi
aquela do caráter público do processo civil e da autonomia da ação em
relação ao direito substancial, do qual é pedida a tutela, mediante a ação.
Naturalmente não é uma idéia que possa s era profundada nestas
páginas. Por mais que escreva, sabe-se bem que se trata de uma idéia
que pode encontrar o ceticismo de grande parte dos juristas do mundo
anglo-americano. Todavia, provavelmente esse ceticismo atenuar-se-á se
tiverem presente que no processo civil italiano, francês e também alemão
do século passado - mas, mais além ainda, sobretudo, no processo
"comum" - estavam os defeitos mais salientes.

Como escrevia Arthur Engelmann 93, "the same fear of judicial


arbitrariness", que havia levado os juristas italianos dos séculos XII e XII
a elaborar o complicado sistema da prova legal, "necessarily led, also, to
a minimization of the judicial power to direct the proceedings. (...) It was,
therefore, deemed proper to assign to the judge a purely passive rôle, or,
in other words, to exaggerate what we now call the 'principle of party-
presentation' ('Verhandlungsprinzip'). For both tendencies support was
found in the old Germanic procedure".

 
 

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O PROCESSO CIVIL ITALIANO NO QUADRO DA CONTRAPOSIÇÃO "CIVIL LAW" - "COMMON LAW"...

Não era assim, contudo, no direito processual romano puro. Neste, a livre
vontade das partes era plenamente respeitada pelo juiz (id
est, pelo praetor e pelo iudex), ao passo que determinavam as partes
livremente a matéria do pleito judicial, ou seja, o objeto do processo.
Porém, quanto à direção formal do procedimento, essa era confiada ao
órgão judicante 94, cujo papel em absoluto era puramente passivo.

Pense-se que, muito freqüentemente, no processo civil, na frente de uma


parte que tem pressa, há outra que preferiria adiar o mais possível a
decisão final. Todavia, reclama o princípio da concentração,
evidentemente, uma firme autoridade do juiz para impedir manobras
dilatórias da parte interessada em uma sentença tardia. E o leitor bem
sabe que sem a concentração não é possível nem a oralidade e a
imediatidade, nem, e m certa medida, a livre valorização das provas 95. O
processo ítalo-canônico e comum procurava reagir, como se viu, contra
aquelas manobras dilatórias e, em geral, contra os abusos das partes,
mediante instrumentos que correspondiam a uma mentalidade abstrata e
formal, mas não pareciam mais corresponder a uma concepção moderna
e que, de resto, se revelaram eles próprios muito freqüentemente
perigosos e danosos. A fixação a priori de termos preclusivos não era na
realidade idônea a dar a devida conta das concretas e imprevisíveis
circunstâncias do caso. E enquanto de um lado tendia a nivelar o
procedimento das causas mais simples e o das causas mais complexas,
era, por outro, a própria fonte de complicações, de invalidades, de
impugnações e, por conseguinte, de dilações, com grande e indevida
vantagem p ara aparte mais hábil e menos escrupulosa. A verdade é que
a direção "formal" ou "técnica" do processo deveria ser confiada, mais
que a normas gerais e abstratas, ao critério discricionário do juiz, como
precisamente ocorre no direito processual inglês e, ainda que de modo
menos acentuado, no americano 96.

 
 
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Talvez se encontre a origem ideológica ou sociológica da doutrina


"publicística" do processo civil, e do dogma da "autonomia" da ação, na
própria exigência de reagir-se a um estado de coisas que, herdado do
processo comum, continuava a manifestar-se no século passado de
maneira mais ou menos acentuada no processo alemão, italiano e
francês. E uma das principais razões pelas quais a doutrina
processualística italiana, em especial a escola chiovendiana, teve nos
últimos decênios, e continua a ter, tanta influência na literatura jurídica
dos países de língua espanhola e portuguesa, principalmente na América
Latina, esteja talvez no próprio fato de que em muitos desses países as
imperfeições do p rocesso comum foram herdadas de maneira que
permanece até mais acentuada, ainda hoje, de quanto o foi no século
passado na França e na Itália. Sempre a teoria é estimulada a trabalhar,
mormente naqueles momentos e sobre aqueles institutos a respeito dos
quais está surgindo a consciência de sua insuficiência e, por isso, de uma
necessidade de reforma. É neste sentido que uma teoria válida está
estritamente ligada à praxe.

 
 

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O PROCESSO CIVIL ITALIANO NO QUADRO DA CONTRAPOSIÇÃO "CIVIL LAW" - "COMMON LAW"...

A idéia da autonomia da ação em relação ao direito substancial, e do


caráter público do processo a despeito de seu conteúdo ou objeto
privado, permitiu conceber o processo, também civil, como coisa de
interesse público e não mera "coisa privada das partes ", Sache der
Parteien, e permitiu, assim, atenuar certos excessos, típicos do
ordenamento processual comum e ainda do processo codificado de 1800,
do chamado princípio dispositivo (principle of party-
presentation, Verhandlungsmaxime)97. Isto é, permitiu pensar que a
direção formal e técnica do processo pudesse ser subtraída da livre, ou
melhor, da arbitrária "disposição" das partes, sem que disso derive
automaticamente uma lesão ao caráter privado e, portanto, "disponível"
do direito subjetivo substancial deduzido em juízo. Este direito subjetivo é
"coisa das partes", mas não é coisa das partes o bom funcionamento do
processo, porque publice interest (ou seja, interessa à sociedade
organizada e, portanto, ao Estado) o fato de que se tenha uma
administração da justiça o mais possível ordenada, rápida e justa. Livres
as partes não só para pedir ou não pedir a tutela dos seus direitos
privados e, portanto, de instaurar ou não o processo, mas também para
deduzir no processo aquelas relações e aqueles fatos jurídicos que
considerem oportunos; além disso, livres para pedir ao juiz 100 em vez
de 1000; livres, enfim, para desistir da ação exercitada, ou para não opor
uma exceção ou para não levantar uma impugnação. Todas essas
liberdades são de fato a expressão, ou melhor, o necessário reflexo
processual do caráter privado e, destarte, disponível do direito
substancial deduzido em um juízo cível. Apenas um ordenamento que
negasse o caráter privado dos direitos de propriedade e de crédito, e
conseqüentemente dos outros direitos subjetivos civis, poderia
coerentemente abolir aquela liberdade 98. Todavia, também no pleno
respeito àquela liberdade pode-se bem pensar em instituir um
ordenamento processual em que o juiz, nos limites do poder dispositivo
das partes, ou seja, nos limites das supracitadas liberdades privadas,
possa e deva estar munido da autoridade necessária para evitar abusos e
para exercitar adequadamente a sua função "pública" de prestar
jurisdição 99. Os conquistadores normandos da Inglaterra puseram as
bases, há nove séculos, de um ordenamento semelhante 100, e o mesmo
aconteceu, há dois mil anos, na República romana.

 
 

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Nesse mesmo espírito vai entendido o "Projeto" de um novo Código de


Processo Civil, elaborado por Giuseppe Chiovenda em 1919 101. Esse
tendia a erigir uma solução radical contra aqueles defeitos do direito
processual civil, os quais certamente não haviam sido eliminados por
uma lei de 31 de março de 1901, inclinada a simplificar o complicado
procedimento 102. O sistema processual da época continuava de fato a
ser dominado pelo princípio da escrita. Nenhum conhecimento direto do
desenvolvimento e da instrução do processo tinham os membros do
colégio judicante, os quais deveriam decidir a causa com base na leitura
das atas e dos "pedidos" escritos pelos defensores. Ademais, como
acontecia já no processo comum, as questões controvertidas entre as
partes deveriam ser resolvidas pelo colégio com sentença imediatamente
apelável, mesmo que se tratasse de questões não respeitantes ao mérito,
mas tão-somente ao desenvolvimento formal do processo e à admissão
de provas. Daí a freqüente possibilidade de que o processo se retalhasse
e se complicasse em múltiplos procedimentos laterais de impugnação 103.
Naturalmente, a reforma proposta por Chiovenda era inspirada
declaradamente naqueles princípios que tínhamos visto serem já próprios
do processo romano puro, e que são, em ampla medida, realizados o
processo anglo-saxão: a oralidade, a imediatidade, a concentração e a
livre valorização das provas. E em função da realização desses princípios
de técnica processual, o projeto desejava - como escreve um autorizado
discípulo de Chiovenda, Enrico Tullio Liebman 104 - "que o juiz deixasse a
sua posição puramente passiva, que tinha no velho processo, e pudesse
intervir mais ativamente na direção do processo e na formação do
material de cognição; assim, o problema se alargava para um aspecto
mais geral de política legislativa, ou seja, para um interesse geral e social
necessariamente relacionado ao exercício de uma função pública, como
é a da administração da justiça, que Chiovenda pôs em relevo, em
contraste com a concepção rigorosamente individualística e privatística
que era respeitada no Código de 1865" I.

 
 

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O PROCESSO CIVIL ITALIANO NO QUADRO DA CONTRAPOSIÇÃO "CIVIL LAW" - "COMMON LAW"...

Mas infelizmente, os anos que seguiram ao "Projeto" de 1919 - que não


se transformou nunca em lei, assim como não se transformaram também
outros sucessivos projetos, elaborados por Lodovico Mortara, por
Francesco Carnelutti e por Enrico Redenti - foram anos de miséria para a
vida política na Itália. O regime fascista aboliu bem cedo as liberdades
"políticas", sem, aliás, incidir sobre uma estrutura econômica e social
retrógrada, especialmente em uma vasta parte do país. Entende-se,
assim, como uma doutrina processualística, em que dominavam
personalidades declaradamente contrárias àquele regime (como
Chiovenda e Calamandrei), ou a ele contrário por temperamento e
formação cultural, foi bem depressa induzida por circunstâncias a atenuar
as suas próprias impostações. Aquela doutrina havia exigido uma
autoridade maior do juiz no processo, mas em função, como já se disse,
da concentração, da imediatidade, da oralidade, da livre valorização das
provas: como instrumento, em suma, de uma mais eficiente e mais
racional tutela de direitos subjetivos, logo, de uma mais eficiente tutela
jurisdicional da própria autonomia do sujeito privado; não certamente
como instrumento de permanente invasão do Estado na esfera daquela
autonomia. Todos recordam na Itália a oposição ampla e corajosa de
Calamandrei, por volta dos anos 40, a certas patológicas exasperações
germânicas da concepção publicística do processo civil, por sorte menos
difundidas e compartilhadas na Itália105. A idéia de regular apriorística e
minuciosamente com lei o procedimento de formação lógica da sentença
cível, idéia nascida, como se viu, no processo ítalo-canônico e comum
como um freio contra os arbítrios de juízes incultos e sujeitos às pressões
dos poderosos, tornava, em certo sentido, a ser válida e de viva
atualidade. A defesa, naqueles anos, do "princípio da legalidade" contra o
princípio do "direito livre", ou seja, do direito livremente interpretado pelo
juiz à luz de uma suposta "consciência do povo", ou até, segundo a
expressão mais fanática e mais patológica de uma "vontade do

Führer, foi uma notável página na defesa contra os possíveis arbítrios de


uma magistratura que o poder dominante propendia" politizar", por
felicidade, nem sempre com sucesso 106.

 
 

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Dado que, felizmente, a doutrina processualística italiana era ainda


dominada por aquelas fortes personalidades, as quais, por sua vez,
exercitavam uma profunda ascendência sobre as praxes e até sobre o
legislador, o Código de 1940, em vigor em abril de 1942, não foi, em
realidade, uma obra fascista 107. Mas não foi tampouco uma obra
chiovendiana 108. Em outras palavras, não foi uma obra de reforma plena
e desinibida dos defeitos do processo "comum", herdados dos
ordenamentos até agora em vigor, tal como o foi o Código elaborado na
Áustria por Franz Klein, no fim do século passado. Os termos preclusivos,
fixados em abstrato por lei, foram deveras acentuados no Código de
1942, a tal ponto que se falou em um princípio da preclusãonele
dominante 109. Tentou-se obter deste modo uma maior regularidade e
rapidez do processo, mas em prejuízo das exigências concretas e
variáveis do caso. Procurou-se, para além disso, evitar a ramificação do
processo em múltiplas impugnações com o tornar provisoriamente
impugnáveis as sentenças interlocutórias e parciais, até aquelas
vertentes sobre o mérito da causa; mas com o resultado de que, quando
finalmente a sentença parcial podia ser impugnada, todas as outras nela
apoiadas caíam se fosse acolhida a impugnação da parcial, o que, assim,
por vezes, podia derivar um prolongamento ao invés de uma agilização
do processo. Proclamou-se abstratamente o princípio da oralidade (CPC,
art. 180), mas apesar de os poderes do juiz terem em geral aumentado,
não foram atribuídos nem ao juiz nem, muito menos, às partes e aos seus
defensores todos aqueles poderes e, respectivamente, aqueles deveres
que são necessários para a realização efetiva do princípio - o qual
implica, como bem sabe cada common lawyer, de um lado, uma
minuciosa preparação também escrita do debate (trial), de outro, um
debate o mais concentrado possível e no qual as argumentações orais e,
sobretudo, a assunção das provas aconteçam in open court, em frente ao
juiz e, tratando-se de órgão colegial, diante do completo colégio
judicante 110. Proclamou-se o princípio da livre valorização das provas,
mas foram conservados os institutos e as regras de que supra já se falou
(nº. 7, in fine) e, por demais, se confiou a assunção das provas ao "juiz-
instrutor", ou seja, a um só dos três juízes do Tribunal.

 
 

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O PROCESSO CIVIL ITALIANO NO QUADRO DA CONTRAPOSIÇÃO "CIVIL LAW" - "COMMON LAW"...

Essas sumárias referências críticas sobre o Código de 1940 não devem,


todavia, fazer pensar que não tenha se tratado de uma obra legislativa
bastante superior e mais moderna, sob muitos aspectos, àquela de 1865.
Pense-se, por exemplo, na figura do juizinstrutor.

Ela significa, sim, que apenas um dos três membros do órgão judicante
tem um conhecimento direto da causa e, principalmente, das provas
produzidas no processo, enquanto os outros dois membros, para além do
relato oral do juiz-instrutor, podem auferir apenas um conhecimento
indireto, mediante os escritos e as "atas" da causa 111. Não há dúvida,
todavia, de que esse sistema é melhor pelo menos do que aquele que se
tinha na Itália antes de 1942, quando podia acontecer que nenhum dos
membros do colégio judicante tivesse um conhecimento direto da causa e
das provas! Um outro melhoramento foi introduzido, por exemplo, com a
distinção entre questões que o juiz deve decidir com sentença, antes ou
depois apelável e - se não recorrida no prazo - suscetível de passar em
julgado, ou seja, de tornar-se definitivamente vinculante; e questões que,
concernindo apenas ao desenvolvimento formal do procedimento, são
resolvidas com despacho, portanto, com um provimento não apelável e,
por isso, nunca definitivamente vinculante, dado que não pode nunca
passar em julgado e pode, a qualquer tempo, ser modificado ou revogado
pelo juiz 112.
Não obstante esses e outros méritos do novo Código, os seus inegáveis
defeitos acabaram bem cedo por emergirem. Muito se falou de uma
verdadeira e própria falência daquela Lei, e se chegou ao ponto de rogar-
se a sua completa ab-rogação e um antihistórico retorno ao Código
precedente. No entanto, por uma estranha e humanamente
compreensível deturpação dos fatos, muitos, em especial os advogados,
acabaram por atribuir ao Código também a causa daqueles infortúnios
que dependiam ao menos em grande parte das desastrosas
circunstâncias políticas, sociais, econômicas da Guerr a e do imediato
pós-guerra. E não faltaram até mesmo juristas que, em vez de ver a
deficiência do Código na ausência de realização, ou pelo menos na
insuficiente realização, da oralidade e de seus princípios coligados,
atribuíram absurdamente à própria oralidade a culpa de cada defeito,
invocando o retorno ao sistema, em realidade nunca verdadeiramente
abandonado, da escrita!...

 
 

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     DOUTRINA ESTRANGEIRA

Em tal atmosfera, uma reforma parcial do Código de 1942 foi efetivada


com as leis que entraram em vigor em 1º de janeiro de 1951, as quais
modificaram numerosos artigos do Código, mas de maneira desordenada
e quase improvisada, sem uma precisa visão do conjunto, sem uma
adequada elaboração de experiência e de pensamento. Algumas das
características do Código foram atenuadas (não sempre sem boas
razões) ou abolidas: as sentenças parciais se tornaram apeláveis
imediatamente; foram fortemente limitadas as preclusões; foi atenuado o
rigor das normas sobre a extinção do processo. Contudo, quanto à
oralidade e aos outros princípios que lhe são conexos, não só deixaram
de ter uma confirmação e uma melhor atuação, como tornou a Reforma
de 1951 legítima a praxe dos memoriais escritos na fase da preparação
da causa frente ao juiz-instrutor (CPC, art. 180, no texto modificado pela
"Novela" de 1950). Daí pode-se dizer que, hoje, o desenvolvimento do
processo civil na Itália está novamente confiado, prevalentemente, às
escritas dos defensores e às atas escritas da causa 113. Essas
acompanham o processo até ao momento da decisão e, com efeito,
constituem, junto com as atas e com as provas documentais, a principal,
senão exclusiva, base sobre a qual o colégio formará o seu
convencimento e seu juízo 114.
9.

Antes de encerrar este rápido panorama histórico, será necessário


relembrar que muitas normas relativas ao processo civil se encontram
também fora do Código de Processo Civil 115. Por exemplo, a parte
substancial do sistema das provas se encontra no Livro VI, Título II, do
Código Civil (arts. 2.697-2.739). O Título IV desse mesmo Livro VI (arts.
2.907- 2.933), por sua vez, é intitulado "da tutela jurisdicional dos direitos"
e contém algumas normas fundamentais sobre a função jurisdicional e
seus efeitos. São importantes, além disso, o Decreto Real n.º 12, de 30
de janeiro de 1941, sobre o "Ordenamento Judiciário", parcialmente
modificado no pós-guerra, e o Decreto Real n.º 267, de 16 de março de
1942, sobre a falência.

 
 

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O PROCESSO CIVIL ITALIANO NO QUADRO DA CONTRAPOSIÇÃO "CIVIL LAW" - "COMMON LAW"...

Mas, à parte várias outras leis, é necessário aqui recordar sobretudo a


Constituição da República Italiana, em vigor desde 1º de janeiro de 1948.
Nela estão contidas não poucas normas que dizem respeito à função
jurisdicional, também em matéria civil 116 e que fielmente espelham a
atmosfera política e social em que surgiu aquela Constituição. A ntes de
mais nada, foi "constitucionalizado" o direito de ação do sujeito, cidadão e
estrangeiro, à tutela de seus direitos e interesses legítimos, assim como
contra atos da administração pública (arts. 24 e 113): donde seria hoje,
por exemplo, inválida por inconstitucionalidade uma lei que quisesse sub-
repticiamente subtrair de certos grupos de sujeitos os seus direitos,
privando-os do direito de ação, como infelizmente aconteceu, por razões
"raciais" em 1938 e 1939 117. Além disso, foi estabelecida uma
responsabilidade civil cumulativa, seja do Estado, seja (pessoalmente) do
empregado ou funcionário do Estado, pelos atos cumpridos por
funcionários e empregados públicos "em violação de direito" (art. 28).
Ademais, várias normas disciplinam a organização da magistratura,
garantindo independência e autonomia frente aos outros poderes, em
particular ao Executivo, proibindo a instituição de jurisdições
extraordinárias ou especiais (arts. 101-110). De outro lado, ulteriores
normas propendem a garantir às partes, dentro de certos limites, um
poder de impugnação contra as pronúncias jurisdicionais (art. 111), e a
garantir, outrossim, mediante a criação de um órgão especial de justiça
constitucional, que os juízes não apliquem normas contrárias à
Constituição (arts. 134-137)II. Trata-se, evidentemente, de um conjunto
de normas e de institutos constitucionais que representam a confluência
de um movimento político-ideológico-cultural cuja origem remonta pelo
menos ao século XVIII e que certamente não permaneceu um fenômeno
restrito aos confins italianos. Aquelas normas e institutos encontram
analogias bem notáveis e freqüentes geralmente nos ordenamentos
jurídicos do chamado mundo "ocident al" e, em particular, nos
ordenamentos dos países de common law.

 
 

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     DOUTRINA ESTRANGEIRA

Mas aquilo que, no fim da presente apresentação, pode ser de interesse


mais específico é o fato de que essas analogias foram (e são suscetíveis
de serem ulteriormente) reforçadas pelo crescente interesse que não
apenas a doutrina, mas a própria jurisprudência vem mostrando na Itália
(e não menos que na Itália, por exemplo, na Alemanha) por certas
expressões fundamentais do constitucionalismo anglo-americano; por
exemplo, pela "due process of law clause" da Constituição dos Estados
Unidos 118.

Pode acontecer que seja também esse um dos múltiplos sintomas


daquele movimento grandioso de unificação jurídica, ou pelo menos de
aproximação dos ordenamentos jurídicos nacionais, que foi na maior
parte auspiciado 119, ou previsto ou assinalado. Desse movimento, de
fato, a pesquisa histórico-comparativa que aqui concluímos pôs em luz
mais de uma etapa. A própria contraposição, delineada eficaz e
autorizadamente por Pringsheim 120, entre os dois "pares" (direito romano
clássico e common law, de um lado, e direito justiniano e civil law do
outro) foi, por força dos desenvolvimentos que a common law e a civil
law tiveram no curso dos séculos XIX e XX, atenuada fortemente. O
movimento de aproximação operou, ou está operando, de maneira
convergente em ambas as partes. Se posso levar adiante a analogia (que
ainda é, obviamente, uma simplificação, que dever ser considerada com
bastante cautela!), traçada, entre outros, por Pringsheim, direi que se
tem, de um lado, uma mitigação das escritas romanas tardias ou
bizantinas nas codificações dos países da Europa continental 121,
correspondente, de outro, a uma atenuação das próprias escritas
romanas clássicas na common law  122.

Trata-se, repito, de uma simplificação imaginosa. Mas a realidade


confirma que os pontos de encontro entre civil law e common law foram e
vão se multiplicando 123.

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