0 5 SET 1888
Haverá, ainda, esperança?
ão há mais dúvida'sobre o
N fato de que está generalizada
a sensação da presença de
uma crise terrível, absolutamente
sem precedentes em nosso país.
Nada obstante, segundo entende-
mos, contraditoriamente perma-
nece, e até se aprofunda, espessa
ignorância acerca das suas verda-
deiras raízes. De nossa parte, e os
que nos honram com a sua leitura
o sabem, de há muito vimos
apontando como causa fundamen-
tal da referida crise, o abandono
crescente de um conjunto de
valores decorrentes das bases da
cultura e da civilização de que
somos parte, valores esses cada
dia mais "questionados" e contes-
tados por um esforço gigantesco
realizado com o auxílio dos que
temos chamado de "centros de
irradiação de prestígio cultural".
São estes, como repetimos tantas
vezes, os veículos da mídia, espe-
cialmente os eletrônicos, como
ninguém ignora, grandemente in-
filtrados e influenciados —com as
honrosas exceções da praxe— por
adeptos da cosmovisão do materi-
alismo dialético, as colunas de
críticas artística, as cátedras uni-
versitárias e os púlpitos de várias
denominações religiosas —e tudo
isso para mencionar apenas o
principal e mais importante. A tal
trabalho de demolição, junta-se a
atuação de indiferentes e aliena-
dos, bem como a de oportunistas
canalhas, que não aspiram a outra
coisa além de "levar vantagem
em tudo", mote de conhecida
propaganda comercial de passado
recente, e de política externa
baseada exclusivamente no pito-
resco "pragmatismo ecuménico e
responsável", de mesmo sentido,
ainda que de linguagem preten-
samente cultivada ou erudita.
Ora, o que estamos tentando
transmitir aos leitores pode pare-
cer-lhes, à primeira vista, por
demais abstrato e bizantino. Na
verdade, porém, quando os valo-
res fundamentais de uma dada
cultura são questionados e contes-
0•nnvcJ
C ?3
JORGE BOAVENTURA
tados livremente, sem réplica vá- mente liberal, anunciou, no veícu- mente teórica, acerca de causas e
lida, noções como as de certo e lo de que é colaborador, o início de
errado, de bem e de mal, são uma série de artigos, o primeiro
de aspectos dramáticos dai crise
ue estamos vivendo —e sofren-
abaladas e tornadas gradualmente dos quais já publicado, na qual se
inoperantes. A visão da massa propõe mostrar como a minoria de
3 o— em nosso país. É chegadQ,
portanto, o momento de dizer duas
acerca daquelas noções passa a esquerda da Constituinte conse- palavras sobre como proceder, k
ficar embaralhada e, mesmo em guiu arrancar da maioria "demo- nível dos recursos a que temos
pretensas elites, instala-se um crata" um texto constitucional acesso, para tentar, pelo menosí
relativismo moral posto essenci- muito mais à esquerda do que se prolongar a vida das nossas insti-
almente a serviço de egoísmos poderia imaginar. Para citar ape- tuições e das nossas tradições.
individuais, cada vez mais insaci- nas duas das vitórias das esquer- Está claro que só poderemos
áveis e mais inescrupulosos. A das, veja-se a abolição da censura fazê-lo pelo voto. E por semelhan-
ação fragmentadora de tais ego- em quaisquer casos e para quais- te via, o que nos resta é a escolha
ísmos faz das maiorias conjuntos quer fins, e o direito absolutamen- de candidatos que, não integrando
absolutamente heterogéneos e de- te irrestrito de greve, ainda quan- a revolução das minorias a que
sagregados, presas fáceis de mi- do de natureza política, e ainda nos referimos até aqui, tenham a
norias existentes em seu seio, para quando levado a cabo com prática comprovada aptidão administra-
as quais, entretanto, exista um de abusos. Parece fantástico, mas tiva capaz de reforçar, caso eM-
referencial de valores e objetivos é o que pode inferir-se da queda, tos, a posição ideológica que sin?:
comuns a serem alcançados. Por na atual fase de elaboração consti- bolizam. Está claro que a norrn^
isso é que, desde há muito, anun- tucional, da restritiva —com rela- geral que acabamos de enunciar
ciávamos aue a convocação de ção às greves— de que poderiam vale para todos os níveis, espeçj'
uma Assembleia Nacional Consti- ser objetos de sanções os abusos almente do poder Executivo. São
tuinte, feita na ausência de rutura acaso cometidos em sua realiza- Paulo, no momento, tem dois
radical do pacto social, parecia ção. nomes perfeitamente enquadrá-
reflexo de tal aspiração, colocada, veis na moldura sugerida —e/o
desde a realização do 6o Congresso Claro que o texto final da futura dizemos de maneira isenta, eis que
do PCB, ou "partidão", como é Constituição contém dispositivos não aspiramos nem aceitaríamos
também designada a agremiação positivos e benéficos para o país qualquer função pública, de qual-
por tantos anos liderada pelo —nenhum, porém, capaz de preju- quer natureza que, em tais òu
"camarada" Prestes, cruelmente dicar a marcha do processo revo- quais circunstâncias, nos viesse^
reduzido de "Cavaleiro da Espe- lucionário em pleno curso no ser oferecida. Sem delegação áe
rança" a zero à esquerda, pela momento, segundo entendemos, de qualquer dos dois para designá-lçs
maioria dos seus próprios seguido- acordo com a estratégia de Antó- nominalmente, estamos certos de
res. E prevíamos que a referida nio Gramsci a qual supõe, exata- que o leitor sabe a quem e a que
Assembleia seria, fatalmente, mente, um vasto trabalho de nos estamos referindo. E sabe que
dominada pelos adeptos da cos- contracultura, a que já fizemos a alternativa apontada traz consi-
movisão do marxismo, ainda que menção, até que a visão crítica go, ao menos a possibilidade de
em sua maioria viesse a consti- predominante entre os governa- durante um pouco mais de déz
tuir-se de "democratas". É que dos, passe a ser distinta daquela anos, virmos a ter o Brasil in-
sabíamos que os referidos "demo- que os governantes representam. fluenciado por administrações
cratas", ressalvadas uma ou outra Quando tal divórcio se complete, democráticas e revestidas da
exceção, estariam representados será impossível a estes últimos competência que, no momento, | e
pelos dois grupos já antes mencio- deter o poder —e terá chegado, maneira verdadeiramente cop-,
nados: o dos alienados, perplexos então, o momento do "salto quali- frangedora, tem faltado ao nosso
e confusos, e o dos desalmados tativo", da transformação, social país eà nossa gente.
oportunistas, incapazes de enxer- com que sonham todos os marxis-
gar ou de interessar-se por algo tas, ainda quando desavindos em Na atual conjuntura, parece-no"s,-
além de seus egoísmos constran- termos menores, seja na dimensão se há ainda uma esperança, fora
gedores e de seus apetites brutais. apenas tática das ações, seja na dos arraiais do marxismo, é ela a
Pois agora, para que os que nos pura e simples disputa sobre qual que acabamos de apontar à inteli-
honram com a sua leitura possam fração irá, principalmente, ocupar gência dos leitores.
ver que, realmente, as nossas e usufruir do poder.
ponderações não são bizantinas
nem inoperantemente abstraías, Até aqui, como o leitor, inteli- JORGE BOAVENTURA DE S O U Z A E SILVA. 66, e
ilustre jornalista, reconhecida- gente, terá percebido, tentamos
professor d a Universidade Federal d o Rio d e Janeiro
(UFRJ) e foi chefe da Divisão d e A s s u n t o s Sociais do
realizar uma síntese, necessaria- Colégio Interamericano e m W a s h i n g t o n (EUA).
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