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Obscurum

A Filha
da Noite
Elidia Martins
®Todos os direitos reservados

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Índice
1 – Madame Satã..................................................................................................................................4
2 – Lar doce lar...................................................................................................................................19
3 – Mistério.........................................................................................................................................28
4 – O anjo do cemitério......................................................................................................................36
5 – As escrevinhações de Loïc............................................................................................................42
6 – O ocultista.....................................................................................................................................46
7 – Uma reflexão sobre a morte.........................................................................................................51
8 – O chamado....................................................................................................................................56
9 – O demônio....................................................................................................................................63
10 – O passado....................................................................................................................................74
11 – Inimigo........................................................................................................................................78
12 – O condomínio.............................................................................................................................86
13 – O clã............................................................................................................................................91
14 – A caçada......................................................................................................................................98
15 – Thoughtless...............................................................................................................................104
16 – Montando o palco.....................................................................................................................111
17 – Agridoce....................................................................................................................................115
18 – Enternecimento.........................................................................................................................121
19 – Caminhos..................................................................................................................................127
20 – Intimidade.................................................................................................................................134
21 – O Fenecido................................................................................................................................141
22 – Depressão.................................................................................................................................147
23 – Mestre de fantoches..................................................................................................................151
24 – Ajustes......................................................................................................................................160
25 – Pratos limpos............................................................................................................................168
26 – Bem-vinda ao lar......................................................................................................................176
27 – E a vida continua......................................................................................................................184
28 – Sim para a loucura....................................................................................................................191
29 – Em ação....................................................................................................................................197
30 – Incidente...................................................................................................................................203
31 – Quase morte..............................................................................................................................210
32 – Quadros.....................................................................................................................................215
33 – Desire........................................................................................................................................222
34 – Dormindo com o inimigo.........................................................................................................230
35 – Hora aberta...............................................................................................................................236
36 – Sobre rompimento....................................................................................................................241
37 – Uma visita inesperada...............................................................................................................248
38 – Sangue......................................................................................................................................253
39 – Pandaemonium.........................................................................................................................258
40 – Prisão........................................................................................................................................265
41 – Sem saída..................................................................................................................................270
42 – Agnes........................................................................................................................................276
43 – Tentação....................................................................................................................................281

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44 – Capela do Divino Espírito Santo..............................................................................................287
45 – O Rapto.....................................................................................................................................292
46 – Samael......................................................................................................................................299
47 – O Metamorfo............................................................................................................................306

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1 – Madame Satã

Apesar de saber que minha vida estava prestes a mudar completamente, de estar
numa cidade que me era totalmente estranha e sabendo que minha irmã não
havia me dito tudo, eu estava curiosa. Nunca tinha visto um vampiro antes, todos
nós escutamos sobre eles, mas em Schrödinger, minha cidade natal, eu nunca
tive o privilegio de encontrar com nenhum deles.

Katrien, uma mulher interessante que eu conheci ano passado e minha amada
irmã Hedy seguiam à frente, enquanto após cruzar a larga porta dupla de
entrada, meus olhos pareceram se deliciar no ambiente finamente decorado e
sombrio como se saído de um sonho misterioso e belo. Um bar para vampiros,
com um nome que me arrancava dos lábios o riso, Madame Satã, eu mesma
poderia usar aquilo como título.

A música inundou meus ouvidos fazendo desvanecer toda a tristeza que eu vinha
sentindo nos últimos dias. Era um tipo de metal alternativo, com seus riffs
pesados, compassos estranhos e uma tendência experimental que me fazia sentir
viva e alegre novamente, como nos velhos tempos. Embora eu não sabia
exatamente como foram os meus velhos tempos. Eu e minha irmã tínhamos
perdido a memória de toda nossa vida há dois anos por causa de um acidente de
carro, de acordo com o que meu pai me dissera.

— Liese, você precisa se comportar, controlar seus pensamentos, pois nunca sabe
quando encontrará outro telepata como você e não revelar jamais, sob hipótese
alguma, o que nós somos.

As palavras de minha irmã repetiam-se em minha cabeça. Eu consigo ter acesso


aos pensamentos das pessoas quando toco nelas ou elas me tocam, e ter tocado
em minha irmã mais cedo não tinha me deixado nada confortável. Ela estava
amargurada, entristecida e desesperada, embora não tivesse me dito uma única
palavra, era claro como o amanhecer que ela voltaria para casa e eu ficaria
naquele lugar, uma cidade pacata ao norte chamada Louis de Broglie.
Exatamente ali onde eu estava, visitando aquele bar, fingindo que era um passeio

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numa sexta-feira à noite, a beira de me despedir da pessoa que eu mais amava
no mundo, minha irmã Hedy.

O lugar roubara meus pensamentos do meu foco de atenção, as pessoas ao redor


não eram vampiros, tinha como saber disso, fazia parte do que eu era, reconhecer
a natureza das pessoas era tão natural para mim quanto respirar oxigênio. Mas,
entre todos aqueles rostos, por mais despojadas e excêntricas que eram suas
roupas, um homem pálido, de cabelos longos e loiro, com um par de olhos azuis
tão profundos e belos, sentado numa poltrona de couro preto e desgastado no
mezanino do lugar, pareceu roubar para si todo o ar que havia dentro de mim.
Nunca tinha visto homem mais bonito antes em toda a minha vida. E ele poderia
ser tudo, menos um mortal, transpirava sedução e poder, era tão intenso aquilo
que sentia ao vê-lo que fiquei preocupada.

Eu tive que lutar muito contra mim mesma para fazer com que meus olhos me
obedecessem e tirassem ele de meu campo de visão, para dar então vida
novamente ao ambiente. Minha irmã e Katrien conversavam com um garçom,
provavelmente para conseguirmos uma mesa para sentarmos logo que o lugar
estava cheio. Passei os olhos rapidamente pelo balcão e eles logo repousaram nos
bartenders, uma mulher e um homem, que preparavam bebidas como que se
estivessem dando um show de malabarismo num teatro. Era encantador.

Entretanto, meus olhos me traíram novamente erguendo-se para o mezanino,


uma mulher lhe servia uma taça, vinho talvez e ele parecia olhar para tudo e
nada ao mesmo tempo. Senti a mão pequena de Katrien fechando-se ao redor do
meu pulso como num esforço para me trazer para o meu corpo novamente. Com
a mão livre passei a mão pela minha cintura para sentir uma de minhas adagas
presas ao cinto por debaixo da sobrecasaca grafite que estava vestindo e num
movimento brusco, puxei de volta meu braço, soltando-me de sua mão, para
acender um cigarro, enquanto as seguia para a mesa onde o garçom estava nos
conduzindo.

A decoração do bar fazia certo apelo aos olhos, como que se gritasse que aquele
era um lugar apropriado para vampiros. As paredes de cor vinho, entretanto, me
deixavam com uma sensação de calor, o balcão preto contrastava com a
prateleira de vidro presa numa parede espelhada, de forma a fazer as garrafas de
bebidas de variados tipos parecerem duplicadas. Percebi novamente que os

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bartenders faziam as bebidas esbanjando sensualidade e aquilo me fez rir de
certa forma. Não era assim tão ruim quanto gostaria de pensar que fosse.

A mesa arredondada era alta e cor café, com bancos altos para acompanhar a
altura da mesa com estofado vermelho, casava bem com o chão xadrez. Pedimos
nossas bebidas, vinho seria uma boa companhia para aquela noite. Ergui os
olhos novamente, infelizmente eu não tinha mais uma boa visão do mezanino
aonde estava sentada.

Olhei para Hedy enquanto o garçom servia nossos pedidos. Minha irmã era muito
bonita, mas não nos parecíamos em nada, não havia absolutamente nada em
nossa fisionomia que pudesse fornecer a ideia de que éramos parentes para um
desconhecido. Hedy tinha o cabelo castanho-escuro, enquanto o meu era ruivo
acobreado, o cabelo dela era tão liso que nada conseguia prendê-lo, o meu era
liso apenas na raiz e depois ondulava nas pontas dando um aspecto rebelde,
comprido, caindo abaixo da cintura, enquanto o dela caía num repicado sobre os
ombros. Meus olhos eram verdes, os dela avelã. Eu era alta esbanjando
sensualidade em minhas curvas, enquanto ela era baixa e magricela. E ainda que
eu era bajulada pela minha beleza física e extrema agilidade, Hedy era um gênio e
a invejava por isso, eu não tinha sequer um terço de sua inteligência.

E apesar disso, ela nunca se comportava como o gênio que era comigo, nos
amávamos muito, Hedy era a minha amiga e minha cúmplice em quase tudo, era
carinhosa e prestativa e de minhas irmãs, era sem dúvidas a que eu mais
gostava. Tínhamos personalidades claramente distintas, ainda assim sentia que
Hedy podia me compreender como ninguém.

— O que está achando de sua futura casa?

Olhei para Katrien ao ouvi-la apenas para confirmar se era comigo mesmo que
ela estava falando.

— Futura casa? Achei que isso fosse um bar. - Repliquei confusa.

— Não sei se é uma boa ideia falarmos sobre isso aqui. - Disse Hedy
discretamente olhando ao redor. — Dizem que vampiros têm a audição sensível.

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— Com todo esse barulho de fundo e com um monte de gente falando ao mesmo
tempo, não acho que poderão nos ouvir assim com tanta facilidade. E há bem
poucos vampiros no recinto. Sua irmã sabe por que nós a trouxemos aqui, Hedy?

— Existe algo a mais do que se divertir numa noite de sexta-feira? - Perguntei


olhando para Hedy que me lançou aquele olhar angustiado que eu conhecia bem,
sempre me olhava daquele modo quando algo não estava certo.

Eu não sei porque não me senti desesperada quando ela balançou a cabeça
afirmativamente. Entretanto, ela estava fugindo, soube disso no momento que
percebi que virou a cabeça para o lado fitando um rapaz bonito que estava
sentado no balcão numa conversa aparentemente animada com outro rapaz,
quando lhe investi um olhar inquisitivo. Ela não me diria nada. 

Como que se implorando por explicação, meus olhos se deitaram no rosto quente
e rosado de Katrien, que tranquilamente os recebeu com um sorriso numa boca
absurdamente grande por detrás do vidro do copo que estava diante dela para
mais um gole de bebida.

— Eu não entendo muito bem como as coisas funcionam com vocês, mas sempre
fui sua amiga desde que te conheci ano passado, Liese. Não acho que seja certo o
modo como seu pai vem conduzindo todo o seu caso, entretanto, é certo que eu
pareço ser a melhor alternativa para te esconder.

— Vocês acham mesmo que Neil pode me pegar ou me prender? - Perguntei


claramente nervosa olhando para minha irmã.

— Eu não sei de tudo quanto eu gostaria, Lie. - Havia carinho na voz de Hedy. —
Não sei de todos os motivos que levam nosso pai acreditar que Neil é um grande
perigo para você. E todo o problema que você acabou causando em seu último
trabalho expôs você demais. Não resta muito agora a não ser te esconder e
proteger. Ao menos até termos o tempo necessário para limpar toda a sua
bagunça e dar um fim a Neil.

— Achei que vim para essa cidade a trabalho, não para me esconder. - Eu já
estava bastante irritada nessa altura.

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— Você continuará trabalhando como sempre fez, Liese e é aí onde eu entro. Esse
bar é de um clã de vampiros que precisa esconder algo muito valioso, embora eu
não saiba o que exatamente isso seja. Esse bar é uma fachada, uma saída de um
dos vários túneis subterrâneos que levam para onde os vampiros desse clã de fato
vivem, pelo menos é o que dizem. E embora eu esteja te contando isso, não é de
conhecimento comum. As pessoas sabem que é possível encontrar vampiros aqui,
muitos vêm apenas por ter uma visão romântica da coisa toda, admiradores de
vampiros que sentem prazer em ter relações sexuais com eles, ou porque sonham
que deixando os vampiros se alimentar deles vão receber algum tipo de simpatia
e tornarem-se um deles. Contudo, também é um alvo fácil, humanos não gostam
de vampiros, não gostam de ter pessoas desaparecidas ou mortas por causa deles
e existem aqueles que os caçam.

— Não me parece muito inteligente ter um bar para se frequentar quando se está
sendo caçado.

— Esse bar é a ideia de um excêntrico. Eles não querem se esconder na


realidade, eles querem se tornar conhecidos. Dizem que os vampiros por muito
tempo tiveram como regra não permitir ser conhecido, mas depois da grande caça
aos vampiros onde muitos deles desapareceram da face da terra, eles tiveram a
grande ideia de desafiar a própria regra para atrair outros da própria espécie.
Tem quem acredita que estão tentando se preparar para uma retaliação.
Precisam de um número maior deles para isso.

— Eles podem se reproduzir como uma praga, por que querer atrair outros?

— Porque quanto mais velho o vampiro, mais poderoso ele é. Não é apenas uma
questão de sair transformando todo mundo. E transformar os humanos com
poderes sobrenaturais não deu muito certo, logo que os poderes não são
mantidos depois da transformação em vampiro.

— Eu não vejo o menor sentido nisso tudo. Vocês estão querendo que eu me
esconda com vampiros que querem se tornar conhecidos?

— Eles querem ser conhecidos, esse bar é um ponto de referência certamente,


mas não são facilmente encontrados porque ninguém sabe exatamente onde eles
dormem e vivem. Não sei de todos os planos deles, ninguém sabe, nem posso te
dizer se isso é realmente verdade, porque eles ainda são muito reservados. Tudo o

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que sei é por causa do trabalho de meu pai e só por causa disso. Seu pai pediu
para que eu e meu pai intermediássemos para que você ficasse aqui, porque meu
pai faz experimentos com mutantes, o procedimento é diferente para atender a
demanda de nossos clientes, mas os vampiros em especial insistem que esses
mutantes percam completamente a memória, sejam de outros lugares que não
essa cidade e sofram uma lavagem cerebral para que pensem que os vampiros
são uma supremacia e uma raça superior que deve ser protegida com a própria
vida.

— Você deverá se comportar como eles, Lie. E não nos lembramos de nada sobre
nossa própria vida, então não vai ser um problema para você. Apenas aja como
uma mutante e seja a assassina que sempre foi. Não ficará aqui para sempre,
irmã, apenas enquanto tentamos consertar as coisas em Schrödinger para que
você possa retornar em segurança.

— De fato não me lembro de toda a minha vida, mas me lembro dos últimos dois
anos.

— Soren te aceitou mesmo assim. - Disse Katrien.

— Soren? Assim como?

— Soren Arnesen, o vampiro loiro do mezanino que você ficou olhando desde que
chegou aqui. - Disse Katrien sorrindo. — Informamos que você não tem memória
da sua vida e que passou pelo processo que apagou sua memória há dois anos.
Eu disse outras coisas sobre o seu poder, também expliquei que é uma assassina
e ele ficou realmente interessado. Sabe que você não acha que eles são
superiores, mas que trabalha bem por dinheiro. Ele abriu uma exceção para
alguns poucos que trabalham aqui quanto a lavagem cerebral por causa de poder
semelhante ao seu. Entretanto é possível que deem um trabalho diferente para
você como fizeram com os outros.

— Que ponto que cheguei? Guarda-costas de vampiros. - E sequer dei tempo


para deixar Hedy falar quando a vi movimentando os lábios como se procurando
por palavras: — Sei que vai me dizer que não será por muito tempo, Hedy. Eu já
entendi. Quando papai toma a iniciativa de fazer algo, não tem nada que
possamos fazer contra. Só estou puta porque você não me contou sobre nada
disso até agora, sustentando a mentira de que eu tinha um trabalho para fazer

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aqui. Nosso pai parece mais um chefe do que um pai e eu esperava que ao menos
você me notificasse sobre os planos loucos dele para a minha vida. Eu sei que
você não tem culpa, eu falhei em pegar o Neil. Tenho falhado em muitas coisas no
último mês.

— Você é mais importante do que eu e nossas outras irmãs para o papai, Lie.
Sabe que é a menina dos olhos dele, a mais poderosa entre nós. Ele valoriza
muito isso e quer te tirar de circulação por enquanto. Não pense que ele desistiu
de você, porque é totalmente o oposto disso.

Eu tentei não revirar os olhos, mas não foi possível, eu estava brava. Hedy
poderia ter me contado, poderia ter me dito que eu não voltaria de Louis de
Broglie, poderia ter me dito que Katrien tinha arranjado um esquema para que eu
ficasse com os vampiros. Poderia ter me dado ao menos um pouco de tempo para
me preparar psicologicamente para aquela loucura. Eu balancei a cabeça de um
lado para o outro num movimento involuntário, era terrível aquilo tudo, era
terrível o que meu pai nos forçava a fazer. No que ele forçou Hedy fazer. Eu me
sentia sufocada, precisava de ar fresco e não pensei muito.

Percebi me fora do bar, com as mãos apoiadas no parapeito do outro lado da rua,
um penhasco se abria abaixo de meus pés numa escuridão profunda, as luzes da
cidade distante pareciam vaga-lumes piscando num véu de escuridão. Ao meu
redor e ao redor do enorme galpão, que era o bar, apenas um matagal com alguns
arbustos cortados pela única estrada de mão dupla que seguia monte acima para
dentro da escuridão, se perdendo numa curva.

Virei-me encostando me no parapeito ficando de frente para o bar, um homem


estava encostado na parede, ao lado da porta dupla, olhando para mim. Era
interessante que aquilo chamasse minha atenção num momento onde não
conseguia sentir qualquer outra coisa que não fosse raiva.

Contudo, ao que senti a brisa fria tocando meu rosto, senti como que se a raiva
desvanecesse lentamente, como que se levada ao vento. Não seria de todo ruim
ficar longe de Schrödinger, de não ter Neil me perseguindo, de passar um tempo
numa cidade pacata abarrotada de vampiros e sabe-se lá mais do que. Eu só
precisava não permitir que me conhecessem, que soubessem o que eu realmente
era. Poderia ser divertido afinal.

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Como foi boa essa mudança do meu estado de humor, porque em seguida como
que se estivesse apenas esperando por aquilo, Hedy saiu da grande porta, vindo
em minha direção. Eu tinha que admitir que aquilo não estava sendo fácil para
ela também. Nem me senti aborrecida quando a ouvi dizer:

— Sabe que não voltará com a gente essa noite, não é?

Eu não pensei nada, não quis dizer nada. Ela certamente já tinha deixado tudo
preparado sem que eu soubesse.

— Eu não te contei porque eu sei da sua tendência em fazer apenas aquilo que
você quer. E por mais que o papai realmente abuse da gente na maioria das
vezes, eu tenho que admitir que a ideia de te deixar aqui é boa. Será bom para
você, Lie. Tudo o que te aconteceu nesse último mês foi terrível demais e é
possível que uma cidade e rotina novas possam te dar o consolo que você merece,
vai te ajudar a superar tudo isso.

— Nada me fará superar aquilo, Hedy.

— Você precisa deixar o passado para trás agora, precisa se fortalecer. Eu não
posso conviver com a ideia de que a minha irmã que sempre foi autoconfiante e
segura de si mesma se perdeu num mar de insegurança, não consigo mais te
olhar sendo consumida pela culpa. Dê uma chance para si mesma, dê uma
chance para a vida. Você tem que seguir em frente.

O barulho do carro se aproximando pela estrada me fez desviar o olhar de minha


irmã apenas para ter certeza de que aquilo era uma despedida, seu motorista
havia vindo buscá-la. Eu tentaria lidar melhor com a aquela situação por Hedy,
sabia o quanto ela estava preocupada comigo e eu também pensava como ela de
certa forma, sentia que ficar ali poderia renovar as coisas, que dar um tempo
para tudo o que conhecia poderia ser revigorante. Eu sorri sem esforço, deixando
minha irmã colocar uma mecha do meu cabelo atrás de minha orelha, apenas
para ouvir o que ela estava pensando e silenciosamente ela me dizia em sua
mente: "Eu espero que você suporte esse momento, sei que consegue." Dirigi então
minha voz para dentro da mente dela, a Liese de sempre: "Eu não sou de suportar
as coisas, eu soluciono. Eu ficarei bem, Hedy, mas se apresse para que eu possa
voltar para casa o mais rápido possível. E não deixe que o papai controle sua vida
como está fazendo com a minha.".

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Recebi o abraço quente e apertado de minha irmã naquele momento, o perfume
doce dela inundava em minhas narinas. Eu não pude me controlar muito bem,
meus olhos estavam marejados, aquela era a parte realmente difícil para mim,
ficar longe dela, do meu porto seguro. E com um sorriso claramente aflito a vi
entrar no carro, com a sua voz repetindo o de sempre dentro da minha cabeça
"Não deixe que ninguém saiba o que você realmente é" e logo desaparecer de vista.

Restava encarar a situação e com essa disposição entrei novamente no bar,


sentindo-me de certa forma consolada com a música agressiva que tocava, eu
mesma era um poço de agressão, estava em casa. Avistei Katrien que fez um
movimento ansioso como que se estivesse com pressa, não dei muita bola para
isso e fui ao balcão pedindo outra bebida. Tão logo fui servida eu segui em sua
direção, acho que ela percebeu que eu não estava muito a fim de conversar
naquele momento e fez um gesto discreto apontando para uma escada logo ao fim
do balcão.

Deixei ela caminhando à minha frente, enquanto a seguia despreocupada,


sentindo cada degrau sob meus pés a medida que subia a escada, mergulhando
num corredor escuro como se estivesse entrando num túnel no qual eu não veria
a luz de seu término tão cedo. A parede ao lado trouxe a imagem que tanto tinha
me chamado a atenção quando entrei, era tudo o que me separava agora do loiro
bonito e misterioso. Eu poderia descrever como se houvesse um gás entorpecedor
no ar quando respirei profundamente antes de atravessar a porta que se abriu
para nós duas tão logo Katrien bateu nela.

Será que Katrien havia dito que eu poderia acessar a mente das pessoas e me
comunicar com elas quando as tocava? O que de fato Katrien poderia saber sobre
mim e meus poderes? Certamente meu pai não havia lhe contado a verdade,
certamente ela sabia o que poucos sabiam, que eu era a melhor assassina de
Schrödinger, mas não sei exatamente o que ela poderia ter dito para eles, o que
eles poderiam já saber sobre mim e isso me fez sentir a adrenalina percorrendo
meu sangue. Sei que me passaria como uma mutante, como a humana que não
era. Se acreditavam que eles não perceberiam, então não tinha com o que me
preocupar.

Soren era ainda mais bonito de perto. Eu não sei como poderia descrever aquela
beleza, seus olhos azuis pareciam sempre severos e cheios de um mistério que
parecia gritar para ser revelado, sentia que ele queria me intimidar de certa forma

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enquanto cochichava com Katrien, seus olhos estavam cravados em mim, como
que se pudesse me partir ao meio com eles. Eu estava sexualmente atraída, acho
que qualquer mulher sentiria a mesma coisa com aquele rosto pálido e sensual
com um olhar que parecia poder controlar meus desejos mais sombrios.

Entretanto, algo que eu não contava chamou minha atenção para o fundo da sala
e meus olhos lutaram para fazer com que se desvanecesse a bela visão de Soren
para repousar na escuridão no fundo do mezanino. Eu pude ver a sombra dele
mesclando-se como um vulto que rapidamente pareceu querer ser conhecido. Ele
deu alguns passos lentos à frente como que se quisesse ser banhado pela pouca
luz do ambiente. Seus olhos grandes e avelãs brilharam num brilho etéreo e
sombrio, como que se carregassem neles a sabedoria de muitos séculos.

Eu podia sentir um aroma delicado que vinha dele, não era exatamente perfume,
mas também não sei dizer o que era aquilo, era um cheiro amadeirado, agradável
e também perturbador. Seus cabelos caíam sobre o rosto calmo, castanho claro,
tão claro que algumas mechas eram alouradas, ondulado, caindo repicado abaixo
dos ombros. A palidez e maciez de sua pele, a boca num tamanho perfeito, com
um olhar que parecia me devorar. Eu sorri com o pensamento que me ocorreu em
seguida, talvez ele quisesse de fato me devorar, provar de meu sangue, secar
minhas veias. Ah minha adorada loucura estava de volta e aquilo me deixava
animada.

Eu nunca soube o que Soren e Katrien conversaram naquela noite, antes de ela
me deixar avisando que deixaria minhas coisas com a bartender que se chamava
Astrid. Eu nem me aborreci com perguntas sobre o motivo dela me deixar sozinha
e sair tão rapidamente daquele lugar, havia dois poderosos seres das trevas que
me eram ameaçadores e eu podia sentir a magia deles em cada poro de minha
pele.

Soren pareceu crescer quando finalmente se levantou daquela poltrona


caminhando lentamente em minha direção, eu não tinha me afastado muito da
porta e inspecionei rapidamente o mezanino, poderia pular pelo pequeno
parapeito, ou mesmo me esgueirar rapidamente pela porta, estava fechada, mas
não trancada. Não conseguia ver muito ao fundo, apenas o outro vampiro que
continuava imóvel me olhando com um olhar inquisitivo. Os olhos deles estavam
me despindo, estava certa disso, podia senti-los, podia sentir a frieza daqueles
olhos que tentavam enxergar minha alma e torcia para que não a vissem. Soren

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desviou rapidamente o olhar para o outro vampiro, esse se movimentou tão
rapidamente que eu não pude vê-lo em movimento, mas senti seu hálito mortal
em meu pescoço, seu queixo exercia uma leve pressão em meu ombro. Minha voz
me fez sentir um prazer indescritível ao ouvi-la:

— Se estão tentando me assustar, sinto informar que não está dando muito certo.
Vocês só estão me deixando excitada.

— Deveria sentir medo, humana. Podemos acabar com você em segundos. - Disse
o outro vampiro.

— Fallesen. Liese Fallesen. E você? - Eu disse me virando e ficando de frente para


o vampiro acastanhado, me afastando um pouco dele com alguns passos para
trás.

Aquilo pareceu ser agradável para Soren e senti seu sorriso me queimando, com
um olhar que me inspecionava curioso enquanto passava lentamente ao meu
lado. Ele parou ao lado do outro vampiro e os dois como que se pudessem
conversar telepaticamente entre eles deram alguns passos sincronizados para
frente como se tentassem me encurralar como uma presa. A voz de Soren soou
adocicada e severa ao mesmo tempo, quando disse:

— Você é petulante, senhorita Fallesen. Katrien é muito insolente em pensar que


não poderíamos sentir que você não é uma mutante. Liese De Vries é seu
verdadeiro nome, não? Precisa ostentar outro por ser uma assassina, eu entendo.

Aquilo de fato me assustou, eu não esperava por aquele comentário e Katrien não
estava mais lá para que pudesse me ajudar com aquela situação. Sem saber o
que dizer eu nada disse, apenas olhei para os dois, sem demonstrar minha
consternação.

— Claramente não é uma vampira. Que tipo de imortal é você?

— Uma que é melhor ser deixada nas sombras para o bem de todos.

O outro vampiro avançou sobre mim agarrando-me pela cintura, me fazendo


desfalecer como se fosse uma boneca de pano em seus braços, como se seu toque
pudesse tirar toda a força de meu corpo físico, como quem tivesse tomado um

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forte calmante. Rapidamente com a outra mão ele tirou a adaga de meu cinto a
jogando no chão e sensualmente cheirou meu pescoço, deixando a ponta de seu
nariz acariciá-lo propositadamente.

E embora eu estivesse sob algum tipo de torpor, eu podia sentir algo fraco que
vinha de sua mente, eu sabia seu nome, ele parecia sussurrar mentalmente ele
para mim, Loïc Bonnet. Meus olhos se depositaram sobre o dele num esforço,
nossos lábios quase se tocaram nesse movimento, ele sorriu e eu pude ouvi-lo em
minha mente "É linda!" pensava para si mesmo, "Que tipo de ser ela é?". Eu disse
em voz alta:

— Talvez você venha a me conhecer de verdade, Loïc Bonnet.

Ele apertou os olhos num sorriso que me transmitiu certa tranquilidade, embora
meu corpo ainda era um pedaço de carne mole em seus braços, seus olhos
percorriam meu rosto, ele parecia fascinado e eu sentia a loucura crescendo em
meu âmago, porque me sentia também fascinada sob seu toque gelado, sob a
inspeção de seus olhos, uma presa inerte em seus braços. Sequer sentia meu
sangue correndo rápido, sabia que encarava a morte, mas não estava com medo,
eu não tinha porque sentir medo. E meus pelos se eriçaram quando senti seus
lábios frios sobre os meus, me seduzindo, me fazendo desejá-lo, enquanto tentava
inutilmente me enfeitiçar. Eu ouvia seus comandos em minha mente, ouvia seu
feitiço nefasto tentando controlar a minha vontade, mas até certo ponto ele estava
vencendo de certa forma, eu estava entregue, o desejava e não podia controlar o
que sentia.

Ele me soltou tão rapidamente quanto tinha me tomado em seus braços, o torpor
foi deixando lentamente meu corpo, como que se eu estivesse acordando de
ressaca. Ele não ficou muito distante de mim, ainda estava bem próximo, eu
estava perigosamente tonta e ao alcance de sua mão. Seus olhos expressavam a
sua surpresa, sabia que não tinha conseguido me enfeitiçar, sabia que apenas
parte de seu poder teve efeito sobre mim e sabia que eu estava seduzida.

— Eu ficarei com você. - Ele disse com um sorriso estranho estampado no rosto.
— Trabalhará para mim sob uma condição.

Falar não me parecia natural, requeria um certo esforço, mas consegui perguntar
quase num sussurro:

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— Que condição?

— Se Soren me permitir, eu farei com que beba de meu sangue. Eu viverei em


você, te encontrarei quando quiser, te sentirei enquanto você viver, não importa
onde você esteja. Irei te rastrear, sonhar com as coisas que você faz durante o
dia, quando o sono da morte me toma. Com meu sangue em você te vigiarei vinte
e quatro horas por dia. Todos os dias. Até que a morte nos separe.

— E se eu não aceitar?

— Passará por uma experiência bastante dolorosa. Katrien mentiu para nós,
disse que você era uma humana, não sabemos quem ou o que você é. Eu não
posso confiar em você, eu não te conheço. Mas, sei que é uma telepata como ela
nos informou. Você me provou isso.

Loïc olhou de soslaio para Soren, como que esperando uma resposta dele, o loiro
alto balançou a cabeça dando-lhe a permissão provavelmente. Ele me encarou
novamente, maneando levemente a cabeça, com um sorriso sombrio.

Não me agradava a ideia de ter alguém me vigiando o tempo todo, em saber que
ele me encontraria em qualquer lugar não importasse onde eu estivesse. Sentir?
Estava claro que os dois podiam me sentir, pareciam saber exatamente o que eu
estava sentindo, não saberia dizer se sabiam o que eu estava pensando, Hedy
havia me dito para sempre tomar cuidado com os meus pensamentos porque
telepatas eram raros, mas eu não era a única e meu conhecimento sobre os
vampiros era mínimo. O que mais ele poderia sentir ou descobrir se eu bebesse
seu sangue? Eu não fazia ideia e parecia que eu não tinha muito tempo para
pensar no assunto e o brilho místico e sombrio dos olhos de Loïc parecia me dizer
isso, que eu não tinha tempo, ele esperava pacientemente por uma resposta. Eu
precisava ganhar um pouco de tempo:

— E ao ficar com você o que fará comigo?

— Serei seu dono. Fará o que eu quiser que faça.

Ok, aquilo não era muito agradável. Como assim ser meu dono? Quem ele estava
pensando que era?

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— Fica ainda mais bonita irritada.

Claro, ele só estava confirmando que podia me sentir, embora eu não tivesse a
menor noção de como poderia fazer aquilo. O plano para trabalhar para eles
tinha escorrido pelo ralo. Eu não sabia mais o que esperar do meu segundo
seguinte, quanto mais pensar no que seria minha vida se aceitasse. Olhei para o
lado de forma discreta, talvez ainda pudesse fugir, mas estava sem carro, no meio
do nada, numa cidade desconhecida e desarmada. Olhei para Soren, parecia
curioso, me encarava com certo deleite no olhar. Eu depositei um olhar vazio
sobre Loïc e balancei a cabeça.

Ele sorriu vitorioso, mordendo o próprio pulso em seguida e com delicadeza


colocou o pulso ferido sobre meus lábios e sem pensar muito suguei seu sangue.
Meu corpo rapidamente reagiu ao sangue, a música pareceu aumentar, assim
como o frio que emanava de sua pele pálida, havia um brilho ao meu redor, como
luzes etéreas que dançavam no ambiente, todos os meus sentidos estavam
aguçando e seu sangue ficava saboroso, meus lábios em seu pulso me
proporcionavam um prazer nunca antes sentido. Seus pensamentos inundavam a
minha mente, eram imagens confusas, uma visão de uma estrada coberta pela
neblina, depois um cemitério com cruzes altas e estátuas de anjos.

Ele me afastou bruscamente, levantei meu olhar e constatei que estava ainda
mais pálido do que antes e parecia cansado. Soren me olhou de uma forma ainda
mais estranha, embora eu ainda o achasse maravilhoso, Loïc agora se sobressaía,
como se me fosse importante demais, querido demais, como que sem o conhecer
já gostasse dele. Eu balancei a cabeça, aquilo devia ser algum efeito por ter
tomado de seu sangue, me sentia bêbada, alta como que se tivesse tomado algum
alucinógeno e estranhamente o desejava.

Acho que ambos sabiam de minha confusão, porque sequer se importaram


quando me sentei na poltrona onde Soren estava anteriormente, olhando para as
minhas próprias mãos, buscando algum tipo de apoio para me lembrar de quem
realmente era, de não me deixar perder naquele torpor prazeroso. Eu nem me
importei ao notar que eles cochichavam, não me parecia importante, embora
soubesse que estavam decidindo algo sobre mim. Como eu poderia informar
Katrien sobre aquilo? Será que ela realmente não sabia que eles sentiriam que eu
não era humana?

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Não tive muito tempo, olhei Soren pela última vez, enquanto Loïc me puxava pelo
braço, levando-me para fora do mezanino. Eu tinha que pegar minhas coisas com
Astrid como Katrien havia informado, mas ele não pareceu se importar com isso,
não me deu tempo e também não me deixou falar. Saiu me puxando de forma
brusca para fora do bar, onde um carro estava nos esperando. Entramos no carro
e esse saiu em disparada.

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2 – Lar doce lar

Eu nunca tinha experimentado algo como aquilo antes, meus sentidos estavam
tão aguçados que tudo estava me incomodando, o balanço do carro me deixava
enjoada, as luzes da cidade pareciam tão intensas que machucavam meus olhos
e eu os mantinha fechados, os sons eram tão altos que minha cabeça doía,
apenas sentir a mão fria de Loïc segurando a minha que me era prazeroso, o
toque era intenso, mas de certa forma suave e não me incomodava como o
restante. Eu gostaria de estar num quarto escuro naquele momento, num silêncio
profundo, sem qualquer estímulo.

Entretanto, embora eu quisesse ter ao menos uma ideia sobre onde estávamos
indo, as imagens que surgiam em minha mente pareciam como se tivessem sido
arrancadas de um sonho, de uma terra que não me lembro de ter conhecido, de
cidades antigas e tempos aos quais não tinha nenhum acesso no meu banco de
memórias, rostos desconhecidos. Senti-me ainda mais indisposta e deitei minha
cabeça no ombro de Loïc que pareceu não se importar com aquilo.

Aquelas imagens e rostos e pessoas desconhecidas me incomodavam, mas


algumas pareciam novas, como que se eu estivesse tendo acesso às memórias de
Loïc e não precisamente minha memória, porque na verdade eu não tinha
memória. Por algum motivo que desconhecia, eu e minhas irmãs não tínhamos
lembranças do nosso próprio passado.

Não entendia exatamente o que acontecia. Minha mente funcionava sem qualquer
falha. Entretanto, quando o assunto era o meu passado informações
desencontradas inundavam a minha mente, fatos e imagens, lembranças e
detalhes do mundo e de como as coisas eram. Alguns estímulos pareciam que
iam me fazer lembrar de algo, quando como acordamos de manhã com a
sensação de que tivemos um sonho importante durante a noite, mas por mais
que nos esforcemos o sonho não nos salta a consciência e durante o dia
pequenos fatos, imagens e detalhes parecem que vão fazer com que esse sonho se
lance em nossa consciência e quando tentamos agarrar o sonho, ele se escapa

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novamente, deixando a sensação de que deixamos escapar algo importante, de
que tínhamos que nos esforçar mais um pouco para nos lembrar dele.

Dessa forma, eu não sabia de onde vinha exatamente, o que sabia era o que me
contaram. Mas, isso não aliviava muito a minha angústia de todos os dias. Via
imagens de pessoas em minha mente, que saltavam de vez em quando, mas
nunca reconhecia ninguém, esses rostos do passado eram substituídos por
tonalidades fantasmagóricas sem me deixarem qualquer sussurro que dissessem
quem eram eles. No que concerne ao meu próprio passado eu não era capaz de
recordar de ninguém que conhecesse, nem de uma única conversa. Tudo o que
tinha naquele momento era o que chamava de minha nova vida. E tudo o que me
lembrava era do dia em que despertei como Liese, com um pai e mais três irmãs e
isso aconteceu dois anos atrás. Assim podia dizer que me lembrava bem de tudo
o que aconteceu nos últimos dois anos, antes disso minha vida era um livro em
branco.

Mas, aquelas imagens não me eram nem um pouco familiares, imagens de um


mundo velho e esquecido, sons de uma época que não saberia precisar, variados
rostos demonstrando diferentes sentimentos. Era Loïc. Era como que se estivesse
me transmitindo alguma coisa e estar encostada nele, com sua mão segurando
fortemente a minha, não me dava qualquer tipo de trégua. Eu apenas não sabia
dizer se ele estava em minha mente ou se eu estava na dele.

O carro parou abruptamente, abri rapidamente os olhos doloridos, a


luminosidade das luzes artificiais da cidade ainda machucava meus olhos, a
porta se abriu, Loïc desceu me forçando a segui-lo, não me sentia disposta, mas
saí do carro atrás dele e a porta bateu atrás de nós se fechando. Eu não conhecia
bem aquela cidade, mas sabia que estávamos no centro. Meus olhos estavam
semicerrados, podia ver algumas pessoas andando ou paradas nas calçadas, os
comércios fechados, mas devia ter alguma discoteca por perto, porque podia ouvir
a música eletrônica abafada vinda de algum lugar como se fosse algo estrondoso
em meus ouvidos sensíveis.

Caminhamos alguns quarteirões e entramos numa discoteca ou algo parecido.


Dei um suspiro longo, o volume da música era bem alto e me incomodava. Loïc
não me dirigiu sequer uma palavra, gostaria de saber se ele estava me torturando
voluntária ou involuntariamente. Fomos para o fundo do lugar onde tinha um
sofá na forma de um semicírculo grande e confortável, havia pessoas nesse sofá,

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mas não sei exatamente o que Loïc fez, se é que fez alguma coisa, que ao que o
viram saíram do sofá dando lugar para ele.

Nos sentamos em silêncio, me senti um pouco melhor porque ali a iluminação era
pálida e num tom azulado que não machucava meus olhos. Sentia a minha
irritação querendo sair pelos meus poros e lutava para não xingá-lo. Não
conseguia entender porque eu estava tão vulnerável, certamente já teria o
mandado à merda e teria tentado fugir. Mas, eu estava mal, como se estivesse
muito doente, como se estivesse para morrer e o cheiro dele que inundava
minhas narinas parecia me dar algum tipo de consolo. Tudo o que eu sentia era
louco e não parecia ter qualquer sentido.

Eu que sempre fora muito observadora sequer notei quando um homem e uma
mulher se aproximaram dele, apenas senti soltando minha mão e se enroscando
nos braços dos dois. Tive que me arrastar para o canto do sofá para dar espaço
para eles e fiz um sinal em seguida para o garçom que não demorou muito para
me atender e tudo o que consegui falar para o garçom foi:

— Sex on the beach.

Loïc depositou sobre mim um olhar altamente sensual com um sorriso


estampado em seu rosto enquanto o homem negro beijava seu pescoço
graciosamente, mas logo seu rosto sumiu de meu campo de visão, a mulher havia
entrado em nossa frente. A música estava me irritando mais do que o aperto que
estava sofrendo no sofá dos prazeres de Loïc, mas a bebida desceu tão
deliciosamente e gelada em minha garganta que consegui relaxar e deixei meu
corpo se esparramar no sofá.

Bufei quando a mulher caiu sobre o meu colo quase me fazendo derrubar a
bebida que busquei equilibrar com toda a minha habilidade. Loïc se curvou sobre
ela, acariciando seu pescoço e ajustando sua cabeça, enquanto cravava seus
olhos nos meus. O avelã logo deu lugar a um olho negro circundado com uma
coloração estranhamente vermelha e como um animal faminto ele cravou suas
presas no pescoço da mulher. Havia prazer naqueles olhos estranhos que não
paravam de me fitar, enquanto a sugava.

Por algum motivo aquilo me deixou muito excitada e achei que ele percebeu, o
demônio retirou a mulher de meu colo a empurrando sem qualquer tipo de

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delicadeza. O sangue tingia seus lábios e parte de seu queixo e embora eu
pudesse, não evitei e ele me beijou. Seu toque gelado, sua boca gelada, o gosto de
sangue roubando o doce de minha bebida, eu só podia estar fora de mim. Segurei
seus cabelos grossos e macios entre meus dedos e o apertei contra meu corpo
com fervor. A sedução novamente. Sim, era seu maldito feitiço vampírico e eu não
podia fazer qualquer coisa a não ser desejá-lo. Ele sabia disso, seu sorriso me
disse que sabia, seus pensamentos expressavam um contentamento e não o
afastei quando começou a beijar meu pescoço, mesmo sabendo que eu estava
numa situação perigosa.

Sorte que o homem o abraçou por trás e me soltou, me deixou jogada novamente
no canto do sofá para se alimentar mais uma vez. Senti minha mão limpando
meus lábios avermelhados pelo sangue de seu beijo e tomei mais de minha
bebida, tateando os bolsos de meu casaco em busca de um cigarro. Só vi quando
ele jogou o corpo do homem sobre o corpo da mulher que estava estirada aos
meus pés.

Eu o olhei em seguida e estava corado, sua palidez havia desaparecido


completamente e parecia um humano novamente. Me olhou, parecia estar se
divertindo, eu também estaria me divertindo se estivesse ao menos me sentindo
bem.

Eu ainda tive tempo para tomar mais uma bebida até que ele me tocou
novamente depois de muito tempo. Se levantou e me olhou como se num convite
para me levantar também. Empurrei os corpos com os pés para me dar espaço
para levantar e o segui. Fizemos todo o percurso de volta para o carro onde o
motorista ainda estava nos esperando.

Eu não precisei perguntar, ele rapidamente me informou depois que saímos que
os corpos seriam retirados, que aquela discoteca era de um amigo e que ali podia
se alimentar – e consequentemente matar – livremente. O dono daria um jeito nos
corpos depois.

Sentamos juntos no banco de trás novamente e estava me sentindo muito


sonolenta, nem vi qual percurso fizemos, senti apenas sua mão gelada me
puxando para fora do carro e tirando de meu cochilo consequentemente.

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Desci do carro e meus olhos me deslumbraram com a casa grande e sombria que
pairava em minha frente. Havia um gramado diante dela e um caminho
pavimentando ladeado por estátuas que eu poderia jurar que eram cópias das
perfeitas estátuas de deuses gregos. No alto da porta da casa de dois andares
havia duas gárgulas e a porta se abriu como num passo de mágica, mostrando
me um homem muito bonito atrás dela.

Ele era negro, seus lábios grossos davam um delineado bonito ao rosto de traços
graves e belos, era alto e forte e se vestia num sobretudo preto que realçava sua
beleza. Os olhos castanho-escuro me fitaram curiosos e um sorriso discreto fora
aberto para Loïc. Maneando a cabeça num movimento bonito Loïc disse:

— Eric, essa é Liese e deverá ficar de olho nela enquanto eu descanso. Ela não
pode deixar essa casa sem minha ordem, entendeu? Enquanto aqui ela pode
fazer qualquer coisa, mas fique de olho nela, odeio mortais e estranhos em minha
casa quando estou dormindo.

Penduramos nossos casacos no mancebo ao lado da porta e Loïc continuou me


guiando escada acima. Levou-me para onde seria meu quarto por um longo
tempo. O roxo das paredes era um pouco depressivo, mas a cama grande era
convidativa. Na parede um quadro retratando uma montanha, o que me agradou,
sempre amei os lugares altos, sentia falta dos lugares altos, da liberdade do voo,
das minhas asas. Diante da cama havia uma penteadeira com um enorme
espelho redondo em mogno. Loïc disse:

— Tem algumas roupas no closet que pode te servir, amanhã peço para alguém
trazer suas coisas. Não faça nada estúpido.

Saiu do quarto apressado. Eu pude ver pela grande janela arqueada de meu novo
quarto que a aurora despontava com seus dedos coloridos no céu e caminhei até
o closet onde de fato havia algumas roupas e achei uma camiseta comprida que
serviria bem como camisola. Não me demorei para cair na cama, estava exausta.

Acordei com o som da chuva que caía pesada lá fora, sentado numa cadeira ao
lado de minha cama estava Eric, com seus olhos grandes percorrendo a página
de um livro. Me sentei na cama sem dizer qualquer palavra. Despertar era o
momento mais doloroso do dia para mim, amava viver, mas detestava acordar.

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Fingi não me irritar com a presença de Eric em meu quarto, empurrei a coberta
com os pés e saltei da cama indo para o banheiro de meu quarto.

Logo saí caminhando pela enorme casa. Meu quarto ficava num corredor próximo
a escada que dava ao andar de baixo. A casa parecia velha, a decoração era
interessante, sombria, mas interessante. Eu desci as escadas em busca de uma
cozinha, seria mais fácil se perguntasse para Eric onde ficava, mas meu mau
humor matinal fazia me sentir repulsa à simples ideia de ter que trocar algumas
palavras com alguém. Amava o silêncio, a paz, a ausência de pessoas. Despertar
era doloroso, sempre seria.

Vaguei pela casa como uma alma penada sob o bege monótono de suas paredes e
as milhares de estátuas, o lugar era vazio, quase não tinha móveis, apenas os
essenciais, mas estátuas, essas abundavam, de todas as formas e estilos, com as
mais horrendas criaturas caracterizadas.

Saltavam aos olhos os quadros nas paredes, sempre retratando uma imagem
noturna, sombria, desolada. Os móveis pareciam antigos, em jacarandá, pesados
e trabalhados. Havia certo charme naquela casa e todo aquele estilo antigo e
sombrio pareceu agradar meus sentidos e quase afastou o mau humor.

Depois de muito perambular encontrei uma cozinha, havia muito mais coisas e
comida armazenada do que esperava para a casa de um vampiro, mas logo
deduzi que talvez Eric morasse ali. Ele era humano, mutante era provável, mas
humano e o seu corpo tinha as mesmas necessidades que o meu. E o meu
naquele momento estava gritando por cafeína, algo que pudesse ajudar a trazer
meu espírito de volta ao corpo que parecia lutar contra uma ressaca de sangue de
vampiro.

A cafeteira, o café e depois o aroma preenchendo o ar fez com que eu salivasse e


assim que ficou pronto me sentei à mesa, deixando que seu vapor quente e
perfumado tocasse meu nariz me proporcionando uma onda de prazer
inigualável.

Eric sentou ao meu lado em silêncio, me observando por um tempo, como que se
quisesse perceber o momento correto. Senti simpatia por ele naquele momento,
enquanto o líquido quente de aroma forte descia suavemente pela minha

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garganta, me sentia amparada e mais disposta. Pensei em Loïc por um momento,
onde ele dormiria agora?

Era tarde, já havia passado algumas horas depois do meio-dia, e ainda que
estivesse escuro por causa da tempestade que caía pesada e barulhenta, ainda
era dia. A imagem de Soren saltou em minha mente, toda a noite passada em
meu passeio alucinado, as duas vítimas de Loïc, minhas sensações estranhas, os
sonhos e memórias antigas e sinistras. Não queria pensar naquilo, não naquele
momento.

— Você me seguirá para onde eu for? - Eu não saberia dizer se era o melhor jeito
de começar uma conversa, mas era tudo o que conseguia fazer naquele momento.

— Pelo menos até o mestre acordar.

— Acredita que os vampiros são uma supremacia? - Lembrei-me do comentário


de Katrien sobre a lavagem cerebral.

— Acredito em Loïc. Confio nele.

Eu procurei até onde suas roupas me permitiam, numa busca por marcas de
presas em seu pescoço ou braços, mas não havia nada ali, ao menos não havia
nada recente e visível. Eu estava curiosa, muito curiosa.

— Vive aqui com ele?

— Sim.

— E como veio parar aqui?

Eric me olhou por algum tempo em silêncio, eu poderia tocar nele e saberia tudo,
mas estava com a preguiça de sempre, minha indisposição matinal, meu horror
ao despertar. Já era um grande esforço ter que conversar. Se ele não quisesse
responder estava bem também. Eu saberia num momento ou outro.

— Eu faço a segurança do mestre durante o dia. - Ele disse finalmente. — Faço


isso desde que ele me tirou das ruas, quando eu tinha doze anos de idade. Eu o
tenho como a um pai. Eu devo minha vida a ele.

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Eu já não estava mais tão interessada quanto estava há um minuto, deixei os
músculos de minhas costas relaxarem no encosto da cadeira, deliciando-me com
o líquido quente em minha boca.

— Aqui é sua casa agora. - Ele disse abruptamente.

Eu não sabia o que dizer sobre aquilo, na realidade nem queria pensar sobre
casa, ainda que aquilo me fizesse sentir um pouco segura, não queria de fato
dizer muita coisa.

— Ao beber o sangue do seu mestre ele pode de fato me rastrear?

— Ele te deu de beber?

Eric claramente procurava marcas em meu corpo e seus olhos não escondiam a
sua surpresa.

— Ele não bebeu do meu sangue. Mas, me fez beber do dele.

— Sim, ele sabe de tudo agora. Sabe te encontrar não importa onde você esteja.
Está ligada a ele agora, um vínculo de sangue. Diferente, claro, de quando ele
cria alguém. Você sabe, ele não te transformou numa vampira. Mas, até onde eu
sei, você é a segunda pessoa que ele faz isso. Devia se sentir honrada.

— Honrada por perder minha liberdade e privacidade?

— Por estar sob a proteção dele.

— Eu não sou do tipo que precisa ser protegida. E também não acho que essa
seja a intenção do seu mestre.

Eu estava irritada novamente.

— Cedo ou tarde você perceberá isso.

Seja o que for que meu olhar demonstrava para ele, não era bom. Mas, sorriu
para mim, com seus dentes brancos e grandes, como se fosse um belo menino
levado e seu olhar era terno, como de um pai paciente. Era muito esquisito.

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Sem saber o que fazer, novamente enchi a xícara com o líquido escuro e com ela
retornei para o quarto. Não demorou muito até Eric tomar novamente a cadeira
ao lado de minha cama. Ainda que não falasse nada, sua perseguição me irritava
profundamente e perdi as contas de quantos cigarros fumei seguido um do outro
assoprando a fumaça em sua cara.

Eric continuou impassível e me joguei na cama novamente, fiquei imóvel, olhando


para o teto, deixando meus pensamentos correrem soltos, mas nada que
pensasse era de fato importante, imagens aleatórias, algo para me ocupar. Acabei
cochilando novamente e quando acordei Eric parecia estar me esperando, me
questionei porque não teria me acordado se estava esperando por isso, mas ele
jogou um belo vestido púrpura sobre a minha cama, dizendo:

— Vista-se. O mestre espera por você.

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3 – Mistério

O vestido caiu perfeitamente em meu corpo, o púrpura caía para uma tonalidade
mais arroxeada do que vermelha e contrastava com minha pele clara. Fiquei feliz
ao ver minhas malas no chão do quarto. Abri a mais importante e todas as
minhas armas estavam nela, talvez eles não tivessem as revistado.

Após finalizar uma maquiagem própria para noite e calçar um sapato que
combinava, olhei novamente para o espelho, estava linda, os olhos tão marcados
com uma maquiagem escura e brilhante, que o verde parecia querer saltar de
meu rosto. Entretanto, eu odiava vestidos. Ainda mais um longo como aquele,
que atrapalharia meus movimentos se precisasse de meu corpo. Contudo, meus
ombros e costas à mostra me davam uma certa sensação de liberdade ao sentir o
ar frio tocando minha pele, o vestido de frente única não pedia por um colar e
descia num decote avantajado. Eu estava perigosamente sensual.

Loïc me esperava no andar de baixo de frente para a escada. Seus olhos cheios de
malícia me fitaram de cima a baixo. Eu tinha um coque frouxo, com algumas
madeixas soltas, acariciando ombros, costas e braços e ele parecia se deliciar
com o que via.

Como um perfeito cavalheiro levou minha mão até os lábios, com um sorriso
tentador como o diabo que era. Ele me instigava, convidava a me mostrar, a
mostrar o meu poder, a mostrar-lhe a imortal que eu era. Eu podia sentir isso
como que seus pensamentos pudessem tocar minha pele.

Eric que estava um pouco longe de nós abriu-me um sorriso satisfeito.

A noite estava fresca, a chuva tinha deixado um rastro frio no vento, mas aquilo
não me parecia ruim, não sentia frio, tinha todo o calor do inferno fervendo em
meu sangue e a mão gelada que me guiava para o carro grande e moderno.

Sentamos ambos no banco de trás. Estava curiosa para saber nosso destino, mas
por algum motivo eu não queria perguntar, me sentia confortável no silêncio

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tumular dele. Sentia que éramos crianças selvagens convidando a noite para
brincar com a gente.

Apertei minha pequena bolsa, como sempre fazia, para me certificar de que
estava armada, de que não tinha deixado nada importante para trás. Percebi seu
olhar observador, como uma criança levada, esperando o momento certo para me
pegar desprevenida.

Quando chegamos ao nosso destino e saltamos do carro, ele me ofereceu o braço


e delicadamente permiti que meu braço descansasse no dele, frio como uma
pedra e ao mesmo tempo tentador.

Uma mulher falou animada com ele, enquanto caminhávamos em direção a


entrada da grande casa. Algumas pessoas se divertiam próximos a uma piscina,
garçons vestindo apenas calças e uma gravata distribuíam bebidas, animados e
sensuais.

A mulher nos guiou para dentro da casa, onde várias pessoas se divertiam,
conversavam e dançavam, em seus vestidos longos e caros, finos e elegantes.
Uma competição silenciosa dos melhores tecidos, das melhores grifes, dos
modelos únicos.

Detesto champanhe, então o uísque me pareceu atrativo, eu cumprimentava


aqueles que se aproximavam de Loïc, mas não me sentia inclinada a qualquer
conversa.

Soltei-me, permiti que meu poder se liberasse, não me importava muito se Loïc
perceberia ou não, a coisa poderia ficar descontrolada se eu continuasse o
suplantando. Quanto mais se jogava as coisas nas sombras, mais elas cresciam e
saiam do controle, não era diferente do meu poder.

E daí se Loïc perceberia que eu poderia seduzir tanto quanto ele? E daí se ele
soubesse que eu poderia levar as pessoas a loucura? Ao puro êxtase? Talvez ele
pudesse até saber que eu era capaz de reconhecer cada espécie apenas com um
simples olhar cuidadoso. E ao mesmo tempo que verdadeiramente não me
importava com isso, eu me sentia curiosa sobre ele.

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Todos os que se aproximavam dele o tratavam com tanto respeito e veneração,
que era impossível negar a sua importância e status. Muitos ali eram vampiros,
outros simples mortais num teatro de horror, implorando para serem comidos,
drenados, implorando pelo beijo da morte.

Eu reconhecia os vampiros pelo brilho etéreo que tinham em seus olhos, alguns
pela palidez, eu tinha percebido na noite anterior que eles pareciam mais
humanos quando se alimentavam bem e que a palidez era um sinal perigoso de
fome.

Loïc me deixou sozinha e persegui um vermute, aliviada por na mesma bandeja


também ter à minha disposição um conhaque, amava beber a mistura dos dois. E
assim que me deleitei na mistura acendi um cigarro e procurei um lugar calmo
onde pudesse observar as pessoas.

A música estava alta, mas não fora ela que me perturbara naquele momento, mas
sim uma voz feminina que parecia vir como um sussurro ao vento, de longe,
falando algo que parecia remexer a minha alma dentro de meu corpo. Eu podia a
ouvir com tanta clareza e havia tanta intensidade naquela voz etérea, que a
música pareceu parar e o estrépito silenciou.

Lilith, Layil, Ardat-Lili, Laylah. Mãe Escura que vem à noite nas asas da sombra,
Lilith, ouça meu chamado e venha para mim! Oh, venha superando a maravilha do
sol poente abrindo os portões da noite. Desperte o desejo em minha alma. Eu te
chamo, Antiga! Eu te invoco, Mãe dos Demônios, que se assenta no trono em meio
àqueles que governam o mundo.

A doce voz se repetia rodopiando no ar, roçando em meus ouvidos, intensificando


a minha curiosidade. De onde viria? Quem a estava chamando? Meus olhos
correram curiosos ao redor. A litania continuava, agora misturando-se com a
música que meus ouvidos tornaram a perceber.

Meus olhos desesperados correram a procura de Loïc. O encontrei extasiado,


num canto, devorando um pobre rapaz. Mas, como que em resposta, seus olhos
encontraram os meus e seu sorriso o denunciou, sabia que eu estava o
procurando.

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Observei que ele não havia bebido do rapaz até a morte, ele parecia fraco, mas
estava bem quando Loïc o soltou de seus braços e caminhou em minha direção.
Com um olhar terno acariciou meu rosto com as costas frias de sua mão e
perguntou:

— O que te incomoda?

— Você consegue ouvir uma voz que clama ao vento?

Ele riu, mas nada havia soado engraçado. Seu olhar era de um garoto levado e
maneou a cabeça com a sensualidade de sempre. Se divertia me seduzindo, eu
não conseguia ver outra coisa além do brilho avelã de seus olhos. Maldito
vampiro, estava brincando comigo novamente.

Senti as mãos frias sobre meus ombros e seu hálito gelado era como um cubo de
gelo descendo pelo meu pescoço. Senti seu beijo frio em minha nuca e virei-me.
Ela era linda, os cabelos pérola caiam-lhe em delicados cachos, os olhos azuis
como um céu de verão, a boca vermelha, não estou certa se de sangue ou batom,
um sorriso doce não fosse pelas presas como o som das trombetas da morte. E
seu pensamento em minha cabeça "Eu a quero, posso sentir o cheiro doce de seu
sangue quente, eu quero devorá-la".

Senti os braços frios de Loïc me enlaçarem pela cintura, puxando-me com


urgência contra seu corpo. Sua voz rouca e sensual fez meus pelos eriçarem pela
proximidade que falava de meus ouvidos.

— Ninguém pode tocá-la sem minha permissão. Inclusive você, Yasmin.

— Seu bom gosto não passa desapercebido, Loïc. Será que não pode sequer me
apresentar a sua garota?

— Liese Fallesen. - Eu disse.

Ela sorriu com a beleza de um anjo infernal, fria como uma lápide e ainda assim
adorável e atrativa. Mas, minha atenção foi novamente retirada de Yasmin e Loïc,
para deixar meus ouvidos captarem aquele chamado ao vento. Eu queria segui-lo,
encontrar aquela que chamava, talvez pudesse carregar Loïc comigo.

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Os dois trocaram algumas palavras, mas eu não os ouvia, ouvia apenas aquele
chamado no vento, tão intenso que meu corpo queria saltar, fugir para longe do
enlaço de Loïc. Com os olhos vibrando as chamas do inferno, me virei de encontro
ao seu rosto e beijei seus lábios gelados, ele claramente não esperava por aquilo.
E ri diante do olhar inquisitivo, acenando um delicado adeus para Yasmin e o
puxando para fora da casa comigo.

Com um puxão em meu braço, ele disse:

— Para onde está me levando?

— Quero saber de onde vem essa voz que posso ouvir no vento.

Ele sorriu deleitoso e não mais opôs resistência. Caminhamos para fora da casa,
a esmo pela rua mal iluminada pelos postes. A voz não era mais tão nítida como
antes, mas havia um rastro de energia, como que sussurros me guiassem.

— Essa voz pode vir de muito longe.

Ele podia ouvir também e aquilo me animou. Olhei Loïc com ternura, embora
devorasse suas vítimas sem qualquer misericórdia e seu olhar carregasse a frieza
cortante de uma nevasca, algo nele parecia quente.

Caminhamos em silêncio por alguns quilômetros em direção aquele sussurro,


mas num determinado momento ele parou completamente e nós paramos com
ele. Percebi-me sozinha num bosque escuro com Loïc, o ruído dos animais
noturnos parecia uma sinfonia harmoniosa e gentil.

Nos olhamos com o silêncio a falar pelos nossos lábios, estávamos esperando que
a voz retornasse, ele também parecia comovido, parecia sentir o mesmo chamado.
Nos tocamos sem que tivéssemos que pensar nisso. Nunca entendi porque
fizemos isso. Eu deslizava meus dedos quentes sobre seu rosto pálido e ele
brincava com seus dedos ao longo de meus braços.

— É melhor voltarmos. - Anunciou com a voz rouca colocando-se a caminhar


prontamente.

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Eu olhei ao redor, num gesto esperançoso de que a voz poderia continuar sua
litania sombria, mas nada aconteceu e segui em frente em passos apressados
para alcançá-lo.

Não nos tocamos mais aquela noite.

Ele se perdeu na festa e eu passei grande parte do tempo sozinha, beliscando


alguma comida, bebendo como uma louca. A noite parecia convidativa e saí para
tomar um ar.

No gramado muitos estavam transando, no chão, nos bancos, na beirada e dentro


da piscina. Sorri, mas me afastei, sentando-me numa das mesas brancas de
metal que estavam espalhadas pelo local.

Percebi-me interessada, curiosa a respeito de como eles levavam a vida. Não


pareciam tão diferentes de mim afinal. Via os casais se amando no chão, alguns
vampiros devorando suas presas, o cheiro floral que permeava o ar, a música
abafada que vinha de dentro da casa.

E eu o vi caminhando em minha direção. O cabelo era negro, liso e tão comprido


quanto o meu, a palidez corada de um vampiro claramente bem alimentado. Os
olhos castanhos semicerrados por um sorriso discreto, a voz tão gutural e
provocante que chegava em meus ouvidos numa palavra educada:

— Posso?

Eu balancei a cabeça afirmativamente e meus olhos seguiram seu movimento


gracioso, a gola alta de seu casaco emoldurava a beleza desumana de suas
formas. Um deus sombrio com divina beleza, uma obra de arte.

— O que está fazendo com Loïc?

Eu não sabia responder aquilo, não mesmo. Tentei me lembrar das coisas que ele
falava, lembrei de dizer que era meu dono quando o encontrei com Soren. Será
que faria algum sentido dizer que ele era meu dono?

— Sinceramente eu não sei como te responder isso.

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— Me chamo Maxius.

— Liese.

— Desculpe se isso parece invasivo, mas nunca te vi antes. Não sou o único
curioso ao seu respeito. Não é humana, embora se pareça com uma, mas também
não é uma vampira. É intrigante.

— Todos vocês podem perceber isso? - Procurei não deixar minha preocupação se
revelar no tom de minha voz.

— Só os mais velhos.

Eu o toquei e as imagens saltaram em minha mente. Loïc conversando com


outros vampiros, ele mesmo assinando algum documento importante. "Eles estão
vindo. Eles estão se organizando para nos atacar. Estamos vulneráveis, Loïc está
vulnerável. O dia é nossa maldição, nossa fraqueza. Precisamos resolver isso.".

Seu olhar era desleixado e retirei minha mão sobre a dele. Levei a bebida à boca,
estavam novamente sendo caçados como foram há pouco tempo. Não era
novidade, Katrien havia falado sobre isso, falado sobre os mutantes
descerebrados que os protegiam durante o dia. Mas, Maxius parecia mesmo
preocupado, eu ainda não tinha visto aquela mesma preocupação em Loïc.

Os olhos castanhos de Maxius pareciam agora duas bolas de fogo laranja, segurei
o sorriso instigado pela minha curiosidade, parecia louco, tentando adivinhar o
que eu tinha feito. Um demônio confuso e curioso, não poderia ser mais bonito.

Os gemidos, a música abafada, os grilos e as cigarras, o vento que despenteava


seus cabelos que se balançavam brilhosos sob a fraca luz que vinha dos postes
do enorme jardim. Maxius Martin, carregando consigo vários séculos. O que
aqueles olhos teriam visto?

Eu não soube e não descobriria, pelo menos não naquela noite. Loïc já estava ao
meu lado. Eles se encaravam sombrios e silenciosos tendo a noite e eu como suas
testemunhas. Eu via aquele olhar de Maxius que parecia pedir por alguma coisa,
alguma coisa que não teve tempo de falar, alguma coisa importante que deixou
escapar.

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— Ela é minha. - Havia uma ordem por detrás da frase curta que soou quase
como um comando sob a voz rouca de Loïc.

— Eu a vi sozinha e vim fazer companhia apenas.

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4 – O anjo do cemitério

A mão apertada de Loïc em meu braço revelou a sua intenção de me conduzir


para outro lugar. Fiz um gesto de despedida para Maxius e segui Loïc até o nosso
carro que nos esperava. Entrei sem fazer muitas perguntas, embora de fato
quisesse saber o motivo pelo qual ele evitou que eu conversasse mais com
Maxius. Ele pareceu perceber minha curiosidade quando disse assim que o carro
entrou em movimento:

— O aroma do seu sangue é diferente e tentador, muito atrativo para todos nós.
Não tem cheiro de humana e desperta uma sede devastadora nos vampiros. É
provável que não saiba disso, mas é bom que saiba caso não queira se tornar um
cadáver enquanto me acompanha.

Ele sequer me olhava enquanto dizia aquilo. De fato eu não tinha como saber
daquilo, saber sobre o cheiro diferente do meu sangue. Poderia até entender
porque, mas não estava certa se aquilo se dava por causa do que eu era. Mas,
estava intrigada, intrigada com o que Loïc, Maxius e Yasmin eram.

Eu os havia observado durante aquela noite, eram seres sensuais que naquele
momento eu poderia reduzir a sexo, sedução, sangue e morte. Mas, a
preocupação de Maxius me soava como um eco humano, instinto de
sobrevivência, talvez, mas não saberia se instintos eram tudo o que eram.

— Se sabe que Katrien não falou a verdade, por que me deixou ficar?

Ele não pareceu surpreso com aquela pergunta, talvez já a estivesse esperando,
sequer dirigiu seu olhar a mim. Por algum tempo achei que não responderia,
estava quieto olhando pela janela do carro.

— Você me intriga. - Ele disse finalmente. — Eu acho que alguém te enviou com
algum propósito e que você não vai querer me contar. Você me desafia e com o
passar dos séculos eu passei a amar os desafios, são eles que animam a vida. São
eles que me convidam a dar sentido a uma eternidade sem sentido. Não é sempre

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que alguém bate à porta de um vampiro como uma mentira que quer ser
descoberta. Você é uma mentira e estou curioso sobre o que seja a sua verdade.

— E como soube que meu nome verdadeiro é Liese De Vries?

— Por descuido de Katrien. O fato de você evitar que eu te enfeitice não é regra e
sim exceção. É a única que vi em todo esse tempo que consegue evitar que eu te
enfeitice e faça-a contar a verdade. O pai de Katrien é cuidadoso ao apagar
algumas das memórias dela, sabe do que os vampiros são capazes, mas
esqueceram de apagar sobre seu nome. Sei com isso que sua família é muito
influente e poderosa em Schrödinger e que ninguém em sua cidade suspeita que
a bela Liese é uma assassina profissional, paga para fazer os trabalhos mais
sujos. Mas, Fallesen é sua marca registrada. E se eu tenho uma assassina se
infiltrando em meu mundo, é melhor que eu a mantenha até descobrir quem te
contratou.

— E no que te ajudaria descobrir me levando para sua festa? Não devia me


torturar e me fazer falar?

Ele finalmente me olhou com um sorriso que demonstrava seu escárnio.

— Mesmo me tocando, tendo acesso aos meus pensamentos, ou ao menos


deveria, não é exatamente o que acontece, não é mesmo? E não acha intrigante
que eu não seja previsível? Não acha um desafio que em vez de te torturar para
saber quem te enviou, eu te trato com respeito e delicadeza? Deixei que ficasse
com todas as suas armas. Por que? Eu não deveria estar com medo ou ávido por
respostas?

Ele tocou o meu rosto com os dedos frouxos e despreocupados, deslizando-os


como que se estivesse o redesenhando.

— Você não sabe muito sobre nós e não sabe nada sobre mim, eu posso ver isso
em seus olhos.

— Estou me escondendo. - Eu nem sei porque disse aquilo, era como se sentisse
uma urgência em lhe dizer a verdade.

— Do que se esconde?

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O que eu estava fazendo? Se lhe contasse a verdade entregaria de bandeja a
minha fraqueza e Neil era a minha fraqueza, a pior delas. Senti novamente seus
lábios frios encostando-se nos meus e ergui meus olhos para fitar os dele. Havia
um brilho pálido e místico neles, ele estava tentando me enfeitiçar novamente,
tentando me controlar, tentando me descobrir. Ninguém em sã consciência fitaria
os olhos de um vampiro, era através deles que eles controlavam as suas vítimas,
que as seduziam, as obrigavam a pensar o que queriam que pensassem, fazer o
que queriam que fizessem, era parte da magia deles.

Não tinha de fato tanto efeito sobre mim, não sei dizer o motivo, pois que nunca
tinha estado em contato tão íntimo com um vampiro antes. Entretanto, sabia que
não era totalmente seguro, porque Loïc conseguia me seduzir como ninguém
havia feito antes. E ainda que eu soubesse que meu desejo por ele estava
intimamente ligado a sua magia,  não o resistia, não conseguia controlar o desejo
de me entregar e permitir que fizesse com o meu corpo o que ele bem quisesse.

Soltou-me delicadamente e seu riso preencheu o carro silencioso.

— Eu entendo sobre esconder. Eu fiz isso por séculos. Nunca subestimamos o


poder humano, somos vulneráveis durante o dia, nossos segredos e fraquezas
tinham que ser ocultados. Com o passar dos anos nos tornamos lendas e com
todo o avanço científico, com a mudança brusca do mundo e da cultura, dizer o
que éramos fazia com que os humanos pensassem que fôssemos apenas loucos.
Mas, você sabe que depois de tudo o que aconteceu ao mundo há duzentos anos
e com a aparição de mutantes, nossa existência era possível. As coisas mais
absurdas consideradas míticas eram possíveis, não só possíveis, eram reais. Nos
tornamos mais abusados e sofremos com isso.

— Eu sou um anjo da morte. - Aquilo não era a verdade, mas era uma metáfora
apropriada. — E seres como eu não deveriam ter suas fraquezas descobertas,
mas um mutante as descobriu, sabe quem eu sou, o que faço, meus motivos e
quer acabar com a minha raça. É por isso que estou aqui.

Não era uma mentira, Neil de fato sabia como me destruir e me perseguir parecia
ser seu esporte favorito. Eu mesma estava me estranhando, me abrir com as
pessoas não era um costume, sempre fui do tipo calada, que guardava para si
mesma o que sentia, as situações que me desafiavam, anseios e desejos. Eu
sofria de um crônico isolamento social e lidar com as pessoas, ou vampiros, como

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no caso, era sempre um desafio. Elas raramente me despertavam algum tipo de
interesse ou curiosidade. Como Loïc conseguia? Era magia?

— Só isso? - Ele soava desafiador.

— Posso contar mais se me contar algo importante ao seu respeito.

Seu sorriso era de um vitorioso. Eu não conseguia compreender o que ele estava
querendo fazer. Ele pediu ao motorista para que parássemos, desceu do carro e o
segui. Diante de nós estava um cemitério, era um lugar bonito cheio de capelas e
estátuas, túmulos altos e decorados. Ele entrou no cemitério, as árvores
sombreavam o lugar já escuro. Quanto mais nos aprofundávamos e distantes
ficávamos das luzes artificiais da avenida, mais a escuridão nos tomava e num
gesto entediado, eu passei a acender com meu isqueiro pequenos tocos de velas
que eu encontrava sobre os túmulos altos.

Ele parou diante de uma enorme estátua em mármore de anjo no meio do lugar e
a inspecionou, sim, ele parecia gostar muito de esculturas e achei divertido o
modo como ele a observava a acariciando com mais delicadeza do que tocava em
suas vítimas.

— Esse é um gesto desafiador. - Ele disse abruptamente. — Há vampiros que me


veem como um inimigo, porque eu quebro algumas de nossas regras mais antigas
e o faço quase que o tempo todo. É normal que enlouqueçamos, vampiros velhos
demais normalmente estão enlouquecidos, conhecimento demais é loucura,
certamente. E eu sou velho demais, mas não sou completamente louco.
Entretanto, mesmo com toda a mente aberta que os humanos podem ter, estar
no topo da cadeia alimentar é um grande problema, um perigo para eles e para
nossa própria sobrevivência e muitos discordam que possamos viver dessa
maneira. E eu não suporto a ideia de um mundo escuro e vazio, nunca gostei.

— Eu me sentiria no paraíso num mundo escuro e vazio.

Seus olhos tinham um brilho estranho no escuro e conseguia enxergá-lo agora


que meus olhos haviam se acostumado com a escuridão com a mesma clareza
que o veria sob a luz. E aquilo era uma parte de meu poder que me tornava uma
assassina excepcional, a visão noturna como eu chamava, podendo enxergar tão
bem no escuro como se fosse dia, mas para isso era necessário ficar na completa

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escuridão por um tempo até meus olhos se acostumarem com ela, o mesmo que
sair de um lugar escuro para um lugar muito claro, onde a luz nos cega, a
escuridão também me cegava e apenas por um tempo.

— Nunca gostei de me sentir solitário. - Aquilo soava como uma confissão.

Eu nunca poderia entender aquele comentário. A solidão era o presente mais


maravilhoso que a vida poderia ter me dado, mesmo sentindo prazer na presença
de pessoas, achava normalmente aquilo muito cansativo e gostava da companhia
de pouquíssimas pessoas. Acho que Hedy era a única amiga que eu tinha e
Heitor, mas Heitor estava morto. E pensar nele me encheu de uma tristeza
incomensurável. Olhei para o rosto calmo do anjo, branco e frio, invejava suas
asas abertas. Loïc me observava, devia captar a minha tristeza, minha inabilidade
de lidar com a dor e a perda, meu terrível medo do abandono. A agonia do
envolvimento.

— Solidão é um bem precioso. - Havia tanto sentimento em minha voz que


acredito que ele pôde sentir em seu próprio corpo.

— É por isso que é uma assassina? Para deixar o mundo mais vazio? - Seu
sorriso discreto tinha um ar zombeteiro.

— Não preciso esvaziar o mundo. Os humanos são bons em fazer isso por eles
mesmos. Sou contratada para matar porque faço isso bem. Mato alguns para
proteger outros. Mato para proteger minha espécie, para fazer valer nossa própria
lei. Faço isso apenas porque eu sou boa nisso, porque tenho a frieza necessária e
porque é o que meu pai espera que eu faça. Eu não mato porque me importo,
mato para ter sossego e não precisaria fazer isso se as pessoas deixassem de se
enfiar onde não são chamadas. Tenho meu próprio código de conduta e não tem
nada a ver com gostar de ficar sozinha.

— Vou ter que pensar no que fazer quando eu entrar na sua lista negra, já que
não vou te deixar sozinha.

Ele segurou novamente minha mão puxando-me para fora do cemitério.

— Apenas pare de me forçar a usar vestido e ficaremos bem.

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Ele riu.

— Mulher de vestido é a coisa mais sensual que existe e como eu já te disse, sou
seu dono e você fará o que eu achar que deve. Não tenho medo da sua lista negra.
Na realidade é você que devia ter medo de mim.

— Eu não tenho medo de você. - Era verdade.

— E do que tem medo? - Perguntou parando abruptamente e ficando de frente


para mim como que se precisasse olhar em meus olhos.

— De amar o que eu não posso controlar.

Aquilo pareceu infinitamente divertido para ele e gargalhou, colocando-se


novamente a caminhar. Devo ter parecido bastante humana naquele momento,
ao menos eu me sentia daquele jeito. Não poderia negar a dor que ainda sentia
pela morte de Heitor, a solidão era o modo mais seguro de evitar a dor da perda,
do abandono, do descontrole sobre seres inteligentes e vivos.

Enquanto o carro partia com nós dois dentro dele, olhei para o cemitério mais
uma vez, sem entender porque Loïc havia me levado lá, se tudo o que ele queria
mesmo era apenas ver a estátua do anjo, ou se havia algo lá que ele quisesse me
mostrar, que quisesse que eu soubesse ainda que não tivesse me dito nada sobre
isso.

Ele devia estar decepcionado pelo meu medo, eu também ficaria, não havia nada
de especial ou provocante naquilo, uma fraqueza tão estúpida quanto qualquer
outra. Entretanto, seu silêncio era agradável, eu podia mensurar o quanto me
sentia disposta a saber mais sobre vampiros, investigar fazia parte do meu
trabalho, observar, presumir. O olhei mais uma vez, queria saber quem era,
quem de fato se escondia atrás de um vampiro velho e não tão louco.

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5 – As escrevinhações de Loïc

Já estava há três semanas morando na casa de Loïc, minha rotina se resumia a


acordar no período da tarde, conversar um pouco com o Eric, treinar e me ocupar
com qualquer coisa até a hora de Loïc levantar de seu caixão – que eu ainda não
tinha permissão de saber onde ficava – e me levar para algum lugar qualquer. Às
vezes eram festas ou boates, mas outras vezes eram reuniões as quais eu não
participava e ficava sempre de fora esperando por ele. Mesmo quando claramente
eu não devia saber o que estava fazendo, me obrigava a ficar ao lado dele durante
a maior parte de seu tempo desperto.

Não foram semanas fáceis, eu era muito sensível ao estresse que o


relacionamento com as pessoas me proporcionava e Eric havia deixado de me
perseguir por todo lugar da casa que eu ia, tinha apenas uma semana, após
concordar em não me seguir mais se eu não tentasse invadir os cômodos que
viviam trancados e não saísse da casa. Minha necessidade em ficar sozinha era
tão grande que quando não conseguia eu sentia dor de cabeça e ficava
fisicamente indisposta.

Estava acostumada com o meu estilo de vida anterior, ficava a maior parte do
tempo trancada em meu quarto com livros, filmes e música, as três artes que eu
amava mais do que tudo. Minha vontade de ter conversas triviais e conhecer
pessoas era bem pequena e quando eu tinha tais desejos sempre passava algum
tempo com Hedy ou com Heitor quando ele ainda estava vivo. Entretanto, eu
gostava da sedução e isso era facilmente resolvido nos bares à noite, uma transa
casual e bebedeiras.

Era meu trabalho insano que parecia me trazer um pouco de sanidade, era por
ele que eu deixava minha casa, que passava horas na rua seguindo alguém,
observando sua rotina e comportamento ou procurando por minhas vítimas. O
grupo que poderia sumir com a minha espécie da face do planeta. E embora me
envolvesse com uma pessoa ou outra, não sabia o que era exatamente intimidade
ou vínculo, tinha grande dificuldade em me ligar a alguém e se isso tinha
acontecido com Heitor, nunca soube exatamente o que ele fez para conseguir.

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Sempre penso que se me lembrasse do que exatamente aconteceu comigo no
passado, saberia compreender porque aquilo era uma necessidade tão grande e
entenderia melhor minha dificuldade com os vínculos. Era claro que a minha
espécie não era a mais afetuosa que existia, mas éramos sociais, ou ao menos a
maioria de nós éramos. E eu trocaria facilmente a vida social por um livro e um
copo de bebida, as pessoas sempre pareciam mais interessantes nos livros. Um
desprezo que eu não tinha conhecimento da origem.

Meu pai dissera que eu era uma assassina antes de sofrer o acidente com as
minhas irmãs onde perdemos a memória e quase a vida, ou o corpo
demasiadamente humano que possuíamos. Hedy não tinha a mesma agilidade
que eu e embora não tivesse o trabalho mais honesto do mundo, ela não tinha
que lidar com a morte tão diretamente quanto eu. Eu não tinha nenhum
problema filosófico com isso, mas admito que poderia viver sem isso.

Eu sentia falta dela, queria dizer o quanto estava achando interessante meu novo
objetivo de observar e compreender a vida de vampiros, embora o único que
realmente observava dado a situação era Loïc e com o pouco de contato que tive
com outros vampiros, sentia que havia algo de especial sobre ele. Eu não podia
ter acesso a nenhum meio de comunicação, não tinha celular ou computador,
não havia telefone na casa de Loïc. Ele me permitiu usar um player para música,
ler qualquer coisa que quisesse na biblioteca particular dele e ainda estava
considerando se eu poderia ter um caderno. Bem, eu havia pedido por isso, logo
que gostava de escrever para passar o tempo.

E era justamente isso que eu estava fazendo naquela tarde, a música estrondava
no fone de ouvido, enquanto olhava para uma das estantes de livros. A biblioteca
era o lugar mais agradável da casa, embora eu nunca ficasse lá para ler porque
Loïc não gostava do cheiro de cigarro que eu deixava em seus livros.

Estava procurando algo diferente, algo que parecesse valer a pena gastar meu
tempo para ler, eram tantos títulos que me sentia perdida, todos organizados por
gênero e em ordem alfabética. Entretanto, no topo da estante tinha uma pilha
interessante e quando peguei a escada para alcançá-los percebi que não eram
exatamente livros, eram cadernos de folhas amareladas e capa de couro.

Peguei um desses e abri apenas para esboçar um sorriso satisfeito, eram


anotações escritas a mão e tinta preta por Loïc. Ao menos aquele que eu tinha em

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mãos não contava nada em particular, não era exatamente um diário como
suspeitei que fosse a princípio, era algo como poesias, normalmente sem rimas,
como se estivesse falando de seus sentimentos ou sobre qualquer coisa que
tivesse lhe passado à cabeça, mas que ainda parecia falar dele ou do mais
profundo que havia nele.

Eu o vi, como um belo demônio ensandecido, que tinha ideias grandiosas em seu
palácio satânico enviando seus seguidores para virar irmão contra irmão, fazendo
mães matarem seus filhos, jogando fogo nas grandes realizações da humanidade,
devastando a terra e fazendo todos morrerem de fome, causando sofrimento e caos
por toda a parte, trazendo o desespero aos corações dos homens. Isso sim é algo
que merece ser chamado de mal e de fato a tarefa de um demônio. Assim eu vejo
que não sou nada, que me chamaram de demônio uma vez, mas não passo de uma
flor bonita que se abre à noite dando um pouco de sua fragrância mortal ao mundo.
Não sou a corporificação do mal, não, eu não faço essas coisas. Minha dieta é
apenas um ato clandestino. Repugnante quanto qualquer outro predador, sim isso
eu sou. Um adorador do perfume do sangue, não um mal. Uma criatura noturna,
aterrorizante e mortal, mas bela e desejável.

Não entendi porque aquilo havia me chamado a atenção, mas pequenos textos
como esse se espalhavam pelas folhas, talvez uma forma de expressar seus
sentimentos, de organizar seus pensamentos, eu não sabia dizer. E durante
aquela tarde li bastante das coisas que escrevia e comecei a achá-lo um ser belo e
sensível. Um louco e um sonhador dentro de um vampiro. Era bonito de ver e
tinha mais desses cadernos no topo da estante, então fui cuidadosa o suficiente
para colocar no lugar exatamente como estava uma hora antes do horário que
costumava aparecer pela casa para que não soubesse do meu melhor achado
naquela biblioteca.

Loïc tinha algo de romântico que eu só pude saber depois de ler as coisas que
escrevia, ao contrário de mim, parecia carregar uma filosofia, parecia ter um
objetivo maior do que apenas viver sua vida imortal, mesmo depois de tantos
séculos o mundo e a vida ainda o encantavam. Os humanos o encantavam. Todas
as mudanças era como um bálsamo sobre a eterna e fresca ferida de sua alma e
aquilo eu achava bonito. Era como se Loïc fosse um daqueles personagens
interessantes de um livro, cheio de grandes objetivos e sonhos. E o que parecia
haver de comum entre nós era que apreciávamos o belo, cada um ao seu modo,
em sua própria tonalidade.

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E assim eu o olhei naquela noite enquanto me apresentava mais um vestido, nem
mais me aborrecia com o seu fetiche por vestidos, percebi que ele tinha tomado
gosto em viver me vestindo e de fato tinha um gosto requintado e minha sorte era
de que gostava de tons escuros tanto quanto eu. Embora admito que ficaria mais
satisfeita se minha roupa fosse uma calça e corpete de couro macio e brilhante.
No geral acho que o vampiro se satisfazia que minha aparência fosse de uma
boneca ruiva e gótica.

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6 – O ocultista

Ao contrário de todas as noites anteriores fomos ao Madame Satã novamente e


para minha surpresa Yasmin dançava num palco abaixo do mezanino e Soren
estava no mezanino. Loïc me abandonou no balcão para conversar com Soren e
fiquei por algum tempo observando a dança sensual de Yasmin enquanto homens
a olhavam e aplaudiam claramente excitados.

Naquela noite havia mais vampiros no lugar do que na primeira vez que tinha ido
com minha irmã e Katrien e os humanos estavam aos montes, implorando para
serem drenados e comidos. Eu não conseguia entender muito bem aquilo, não
entendia bem qual o tipo de fascínio que exerciam sobre os humanos, que tipo de
esperança carregavam, que tipo de prazer havia em serem mordidos e drenados.
Talvez fosse como um bom sexo, um delicioso sadomasoquismo, por que não? Os
vampiros faziam sexo, pareciam adorar isso. E então percebi que eu mesma não
fazia sexo há muito tempo.

Olhei ao redor enquanto deixava o conhaque com vermute bianco, que Astrid
tinha preparado para mim, descer deliciosamente e quente pela minha garganta,
sim, eu precisava de um pouco de diversão e sedução. E quando pensei nisso,
quando pensei em sexo, meus olhos se ergueram rapidamente para o mezanino,
sim, ele poderia me levar para cama, me sentiria satisfeita, Soren estava lindo
como sempre em suas roupas modernas e caras, mas sequer me notava.

A música que começou a tocar foi um convite para a dança, raramente me


entregava tanto a essa parte em meus passeios com Loïc, mas estava animada e
inclinada. Ele ainda não tinha me dado uma lista de regras para seguir e na
maioria das vezes me deixava fazer qualquer coisa que eu quisesse, mas não
deixava os vampiros se aproximarem ou conversarem comigo por muito tempo e
nunca entendi aquilo.

Não era a única a dançar naquele lugar e isso me deixou mais confortável, pois
que Yasmin ainda se apresentava e por algum motivo eu gostava dela, embora

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havíamos conversado bem pouco e Loïc me avisara várias vezes que ela estava
louca para provar do meu sangue. E enquanto eu dançava meus velhos instintos
me induziram a observar um homem.

Ele estava próximo olhando para o palco, mas em seu pescoço estava a marca
odiosa, um grande pingente, um círculo com o Tetragrammaton. Um maldito
ocultista que tinha o poder de acabar com a minha espécie. Olhei ao redor, sabia
que ele não me reconheceria se não fosse um sensitivo, apenas os sensitivos
poderiam me reconhecer como sou realmente e fiquei o observando por um tempo
enquanto eu dançava para me assegurar das pessoas que estavam com ele.

Aquilo era estranho de certa forma já que os Ocultistas pararam de usar o


símbolo do Tetragrammaton em Schrödinger há muito tempo, desde que
começaram a morrer rápida e misteriosamente – ao menos para as mídias – pois
que eles sabiam porque morriam, tinham o poder de eliminar espécies como a
minha com a magia e isso era péssimo para todo mundo. Eram eles os que eu
matava em maioria em Schrödinger, era a minha tarefa maior caçá-los e eliminá-
los.

Eu fui até o balcão novamente e pedi minha bolsa para Astrid. O vestido se
mostrou o que eu mais poderia odiar vestir naquele momento e segui para o
banheiro. Decidi ficar com a bolsa enquanto reforçava o batom e me olhava no
espelho. Era odioso ter que ficar carregando aquilo, mas minhas adagas estavam
lá dentro e certamente precisaria delas em breve.

Quando saí do banheiro vi que o Ocultista conversava animadamente com outro


rapaz, o observei por um tempo procurando pelo ponto luminoso que
normalmente aparece no ombro esquerdo daqueles que são sensitivos, ele poderia
ver minha alma como ela realmente era, poderia ver minhas asas que a magia
escondia e eu não poderia me deixar ser descoberta. E depois de algum momento
vi o brilho pálido, como uma minúscula bola de luz me avisando que aquele rapaz
poderia ver mais do que deveria.

Estava acostumada com o fato de Loïc me deixar sozinha por bastante tempo
quando saíamos e esperava que os dois rapazes se separassem em algum
momento para que pudesse me aproximar do pior deles sem que esse pudesse me
ver completamente com os seus olhos espirituais. E essa espera levou quase uma
hora e bastante bebida.

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Tão logo o Ocultista o deixou sozinho me aproximei por trás, eu mudaria o estado
de consciência dele, algo que gostava de chamar de magia do êxtase, eu podia
mudar o estado de consciência da pessoa e induzir o êxtase trazendo um pouco
de alucinação. Assim usando o tom de minha voz poderia deixá-lo num estado
hipnótico e para isso precisava falar sem que ele pudesse colocar seu olhar sobre
mim. E sussurrei em seu ouvido:

— Está tudo bem agora, você está seguro e pode confiar em mim. Vamos sair
daqui, vamos ficar lá fora um pouco, mas não me olhe.

Ele se virou, enquanto continuei atrás dele, sussurrando em seu ouvido palavras
que ele provavelmente não estava entendendo e às vezes o conduzindo. Tão logo
deixamos o bar o segurei pelo braço levando para dentro do matagal ao lado e lá
silenciosamente cortei sua garganta e a veia femural, alterei sua consciência de
forma que visse tudo como se fosse um momento único e prazeroso, assim não
gritaria, eu ainda tinha que acabar com o Ocultista. Fiquei o olhando sangrar até
que o desmaio lhe levasse embora, esse era o problema com o meu poder, não
tinha como mantê-lo se não ficasse perto da pessoa e quando esse se
enfraqueceu ao ponto de desmaiar com a perda de sangue retornei para o bar.

O ocultista estava lá, bebendo no balcão e me aproximei dele. Ele me olhou


animado e eu sorri o sorriso mais sedutor que eu não dava há muito tempo.

— Pode me pagar uma bebida? - Perguntei.

— Claro. - Ele disse animado. — O que quer beber?

— Dry Martini.

Não demorou muito até que se aproximasse de mim novamente segurando a


minha bebida e a dele, uísque provavelmente. Mal dei tempo para que
perguntasse meu nome, dizendo em seu ouvido com o tom certo para a hipnose:

— Vamos lá fora comigo, quero fumar um cigarro e ficar em silêncio por um


tempo.

Ele balançou a cabeça afirmativamente e me seguiu. Eu o estava levando para


próximo de onde o amigo estava, talvez já estivesse morto e bebi meu Martini

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rapidamente, jogando o copo no chão e o envolvendo num abraço e beijo. Era um
homem nojento e nada sensual, mas queria que acreditasse que o queria, era
sempre bom uma mistura de prazer e terror, me divertia. Toquei seu membro
com o sorriso mais terrível que ele provavelmente viu em sua vida e da bolsa
previamente aberta, retirei a adaga cortando rapidamente a jugular. Ele tentou
fugir enquanto pressionava a mão no pescoço tentando estancar o sangue, mas o
derrubei com um golpe rápido em sua perna.

— Fique quietinho, vai acabar logo. - Eu disse.

E enquanto o via sangrar fui derrubada e ele saindo da esfera da minha magia
começou a gritar e se levantou. Era Loïc que estava em cima de mim me
segurando, quando Soren rapidamente apareceu quebrando o pescoço do homem
e o fazendo finalmente calar. Loïc parecia calmo quando perguntou:

— Por que matou esse homem?

— Você mata humanos para sobreviver e eu, ocultistas.

— Não me interessa o que você faz para sobreviver, não deve matar ninguém no
meu bar. - A voz de Soren denotava sua irritação.

Loïc me ajudou levantar dizendo para Soren:

— Peça para alguém se livrar desse corpo.

— Tem outro. - Informei calmamente.

— Onde?

Apontei para adiante. E Soren bufou claramente irritado. Loïc entretanto parecia
calmo e me levou para o mezanino. Ficou me olhando por um tempo como que se
estivesse me analisando e então, disse:

— Por que você precisa matar ocultistas?

— Eu já te disse que é por sobrevivência.

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— Bem, eu não vi você se alimentando dele e eu percebo que você se alimenta
como qualquer outro humano.

Não respondi e também não queria. Teria que explicar que os ocultistas tinham
um modo como eliminar minha espécie através de magia e que embora eles não
tivessem nenhum tipo de poder sobrenatural como tinha os mutantes, eles
tinham um conhecimento metafísico capaz de me fazer desaparecer para sempre
e que eu precisava evitar isso para o bem de todos, por Hedy e por mim
especialmente.

Soren olhou para mim com o rosto liso, como se algo tivesse lhe tirado toda
expressão. Seria hipocrisia se me condenassem por qualquer coisa, matavam
mais gente por noite do que eu teria feito em dias. Mas, sei que estavam curiosos
e que gostariam de algum tipo de explicação, essa que eu não queria dar. A voz
de Soren fez com que eu o olhasse novamente:

— Você não deve nunca matar nesse bar, nem nós fazemos isso. Não queremos a
polícia revirando esse lugar procurando por desaparecidos. Não estamos assim
tão expostos e não queremos ficar especialmente por assassinato. Seja qual for o
seu motivo para isso, terá que fazer em outro lugar. E se matar um vampiro
considere-se morta.

— Eu não quero matar vampiros. Eu tenho um motivo para matar e não tenho
nenhum motivo para matar vampiros. Posso beber alguma coisa?

Loïc não respondeu, mas fez um sinal para Astrid pelo parapeito do mezanino e
logo essa chegou com uma garrafa de uísque e arrumou uma mesa que tirou do
fundo escuro do mezanino para que eu pudesse me sentar. Entendi o que aquilo
queria dizer, não me deixariam sair de lá. Todo o meu plano de uma noite de
divertimento e sedução tinha escorrido pelo ralo, bastava me contentar com o
uísque sem gelo.

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7 – Uma reflexão sobre a morte

Depois de um longo tempo Loïc deixou o mezanino e Soren se sentou comigo,


ficou me observando por algum tempo e admito que me senti animada, por algum
motivo ele me atraía muito e eu não sabia nada sobre ele.

— Eu procuro entender, mas não consigo. Não sei porque Loïc insiste em te
manter com a gente. Eu soube que ele tem te levado para todos os lugares que vai
e que te trata com respeito como se fosse uma de nós. Por que?

— Por que todo vampiro que eu encontro quer saber por que eu estou com Loïc,
ou como ele me trata?

— Talvez porque ele nunca fez isso antes. Mas, eu vou descobrir.

— Os motivos dele?

— Quem você é.

— Boa sorte com isso, porque nem eu mesma sei quem sou. Katrien pode ter
mentido sobre muita coisa, embora eu não tenha ideia do que ela contou para
vocês, mas ela não mentiu sobre eu não me lembrar de meu passado. Então, se
você descobrir quem eu sou, me deixe saber também, porque não me lembro.

— Uma gota de seu sangue em minha boca e eu saberia de tudo.

Eu acariciei meus lábios com o copo antes de dar mais um gole no uísque, sem
desviar o olhar dele.

— Vocês conseguem saber sobre suas vítimas?

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— Sim. Memórias, histórias, sabedoria, filosofia, tudo isso elas passam através de
seu sangue. Drenar alguém é um momento íntimo e único, segredos são
revelados, claro que alguns têm uma vida nojenta, visões pequenas, tudo o que
há de limitado, mas há aqueles que tem sabedoria, algo de bom e útil para
compartilhar e nos dá tudo através do sangue.

— Loïc também me disse que meu sangue é irresistível.

Seu sorriso parecia conter alguma admiração.

— Então, ele te disse sobre seu cheiro?

— Sim, ele disse, para vampiros não tenho apenas o cheiro de um perfume caro e
tabaco.

Aquele sorriso era mais irresistível para mim do que meu sangue devia ser para
ele. Não fosse por não saber se ele estava falando a verdade sobre saber de
memórias e coisas pelo sangue de sua vítima, eu ofereceria meu pescoço para ele
com prazer. E claro que esse pensamento me fez rir, me sentia tão pequena e
medíocre quanto os humanos que se ofereciam como comida.

Soren exercia de fato um fascínio sobre mim que eu não poderia conter e ele não
estava me seduzindo como Loïc costumava fazer para brincar comigo. Ele era
apenas ele, com seu semblante sempre severo e de poucos sorrisos. Mas, o
achava lindo, embora não soubesse nada sobre ele e Loïc raramente falava sobre
outros, especialmente sobre vampiros.

— Do que está rindo?

— Dos meus pensamentos.

— Não devia estar abalada com os mortos que você deixou do lado de fora?

— Você fica abalado a cada refeição sua?

— Às vezes fico.

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— Como? - Não esperava aquela resposta, eles sempre pareciam tão frios e sem
qualquer piedade quando se alimentavam, que era estranho ouvir que ficasse
abalado.

— Se observar bem perceberá que os ancestrais de vampiros são humanos e não


acho que nos livramos completamente de nossa humanidade quando nos
transformamos em monstros. Lidamos com a vida ou a morte de uma forma
diferente, mas não o fazemos do dia para a noite. Nos descobrimos e nos
redescobrimos, reciclamos nosso conhecimento e ideias, reciclamos o tempo pelo
qual andamos, reciclamos a nós mesmos. Ainda assim há sentimentos em nós e
sentimentos são coisas vivas, autônomos, crescem e explodem como bem
entendem. Há pessoas que deviam morrer e há pessoas que deviam viver e há eu
oferecendo sempre a mesma coisa, sempre o mesmo beijo mortal e preciso como
um vampiro jovem, de um bom motivo para ficar em paz com a morte que sempre
trago comigo.

— Você se questiona se a pessoa da qual está se alimentando deve ou não


morrer?

— Sempre. - Ele me olhou como se esperasse algum comentário, mas eu nada


disse, então continuou: — Antes dos cientistas explodirem o mundo com o seu
experimento para simular o Big Bang eu apenas me alimentava de assassinos e
outros criminosos perigosos, você seria meu prato preferido. Entretanto, quando
tudo ficou escasso e a vida era apenas possível nas zonas mais próximas dos
polos e climas frios, com o caos imperando e os humanos lutando pela
sobrevivência, não havia quem estivesse livre da maldade, do pecado e do
egoísmo e minha ideia teve que ser colocada de lado. Eu poderia me alimentar de
qualquer um naquelas circunstâncias e percebi que para o homem a maldade e a
bondade dependiam do ambiente e das circunstâncias e que não deveria me
apegar a valores morais de um tempo que não mais existia. Isso não quer dizer
que perdi a total consciência do que é bom e do que é mau, eu sou bom naquilo
que faço e nesse sentido sou um ótimo vampiro, mas há pessoas que me
comovem e elas sempre existirão. E o que você pensa da morte?

— Eu prefiro não pensar. Não tento imaginar como era a vida de minhas vítimas,
não penso em seu medo ou qual a ideia que carregam sobre a morte, se
acreditam se vão para o céu ou o inferno, se renascerão ou qualquer coisa que

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possam querer acreditar. A morte vem para todos de um jeito ou de outro,
independente do que pensamos sobre ela.

O maldito ocultista descarregando seu revólver na cabeça de Heitor foi a cena que
surgiu em minha mente, a dor da minha impotência, a carnificina de minha
fúria, o plano que deu absurdamente errado e a morte que o levou de mim para
sempre. Era doloroso pensar naquilo, doloroso pensar onde Heitor poderia estar,
onde seu espírito poderia ter ido. O sofrimento do vazio dos dias e da vida que ele
tinha me deixado. A dor do abandono, a verdade crua da impermanência de todas
as coisas, o desespero com o qual eu empurrava meus dias, a loucura da dor.

Não, eu não tinha porque pensar nisso. Não precisava arrancar a casca da ferida
para descer novamente o sangue fresco do meu sofrimento. Eu não queria pensar
naquilo, não queria pensar nas pessoas que compartilhavam da mesma dor que
eu sentia pelas vítimas que eu fazia. Queria nunca ter o conhecido, nunca tê-lo
amado, nunca ter deixado que Heitor se aproximasse tanto de mim, que
compartilhasse de minha intimidade, se assim fosse sua morte não doeria tanto,
não deixaria aquele buraco em meu peito, aquele frio em minha alma que parecia
jamais poder ser aquecida por algo como amor novamente.

— Não queria te deixar perturbada.

Havia um sorriso discreto, ele havia percebido certamente, talvez pudesse até
mesmo enxergar a sombra que se formava ao meu redor como uma cria nefasta
de minha própria dor. O que eu poderia dizer em seguida? Eu queria mesmo
manter algum tipo de conversa? Estava certamente indisposta e me sentiria em
paz se pudesse voltar para a casa de Loïc, de entrar no quarto e deixar que o
sono me levasse embora para a escuridão protetora, para o esquecimento de
todas as coisas.

— Loïc é muito antigo, bem mais antigo do que eu, acho que é o vampiro mais
antigo vivo e há muita sabedoria e poder nele, bem mais do que ele demonstra.
Devia tirar algum proveito do fato de ele gostar de você.

O olhei aturdida.

— Por que está me dizendo isso?

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— Porque por um momento me ocorreu que você talvez precise dele. Embora isso
é algo engraçado até para mim mesmo. Não confiamos em você e ao mesmo
tempo que você se cerca de mistérios e mentiras, eu ainda acho que tem um
papel fundamental entre a gente. Talvez Loïc tivesse sentido isso antes que eu.

O que ele estava dizendo? Eu estava agoniada, queria ir embora, não gostava do
que Soren estava me fazendo lembrar e pensar. Sim, houve um momento que eu
me importava, que pensava em minhas vítimas, em seus amores e sonhos, em
seus desejos e intentos. Tinha um momento que fazia sentido pensar nessas
coisas, filosofar sobre a morte. Havia um momento que a vida tinha sentido para
mim.

Mas, não era mais esse momento, Heitor tinha levado consigo tudo o que parecia
colorir o mundo e minha vida era um filme em preto e branco, com dias a correr
com sol ao amanhecer e lua ao anoitecer e entre isso apenas o vazio, a solidão, a
dor e o silêncio.

Meu erro, meu maldito erro o tinha matado naquele dia. Eu jamais deveria ter
permitido que fosse comigo. E a cena, o momento de sua morte, dando voltas em
minha cabeça, repetindo-se. Heitor morrendo mais trezentas vezes a cada minuto
dentro de minha mente.

Entretanto o toque frio da mão de Loïc sobre meu ombro fez aquilo parar
abruptamente e sua voz em meu ouvido me trouxe alívio:

— Eu posso te sentir e vou te levar para casa.

Eu não sabia o que eu estava fazendo, apenas me levantei e o abracei. Fui


acolhida em seus braços como se ele soubesse que minha sanidade dependesse
daquilo. Não consegui olhar para Soren novamente e deixei que Loïc me guiasse
até o carro.

— Você terá que me explicar isso.

Não me olhava enquanto o dizia. As luzes passavam pelo seu rosto numa dança
com a sombra na medida em que o carro se movimentava.

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8 – O chamado

E lá eu estava na biblioteca novamente, olhando para o busto de alguém que deve


ter sido importante algum dia, ou que ao menos Loïc pensou que fosse,
segurando um de seus cadernos de capa de couro em minhas mãos, tentando
esquecer tudo o que Soren tinha me feito pensar na noite anterior.

Nesse estado não conseguiria ficar na biblioteca, precisava ficar fumando feito
uma louca e bebendo tanto quanto eu poderia. Nessa disposição levei o caderno
dele comigo para o quarto e tranquei a porta depois de aconchegar algumas
garrafas de vinho na mesa de cabeceira. Era um caderno diferente, que eu ainda
não tinha visto.

Loïc contava uma história dessa vez, algo que aconteceu com ele em algum
momento, como a maioria das coisas que ele escrevia, aquela também não estava
datada.

De guerreiro gaulês a escravo romano, assim tudo começou para mim, o início do
fim. Meu cabelo ainda ficou como ela o deixou, não tão curto como no estilo romano,
ela dizia que gostava de meu aspecto bárbaro. Minha domina, minha senhora,
aquela louca que em noites de solidão me levava para a sua cama e me dizia que
eu era tão bonito quanto Febo, o deus romano.

Ela me dizia outras coisas, coisas essas que hoje parecem até fazer certo sentido,
dizia-me que a escravidão era uma benção, que eu devia sempre me lembrar de
quão afortunado era por não ter vontade própria, por não precisar tomar decisões,
por viver à deriva. Isso é uma benção, ela dizia, uma grande benção.

Não era bem o que eu pensava, mas não podia falar se não tivesse ordem para
isso e noite após noite ela me fazia deitar em sua cama, tirava minha toga
grosseira e fazia com que eu fizesse sexo com ela. De dia eu trabalhava sem
descanso ou pausa, embora ela fosse boa comigo, seu marido não o era.

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Não conseguia conviver com a ideia de que eu nunca teria um futuro, ou que nunca
realizaria um sonho, que viveria e morreria como um escravo, a não ser que por
amor ou qualquer coisa que o valha, ela me desse alforria, me transformasse num
cidadão romano, havia acontecido com outros pelo que comentavam, poderia
acontecer comigo.

Mas, a medida em que o tempo passava e não me tornava um cidadão romano,


crescia em mim um desespero e um desejo pela morte. Desejava a morte como um
jovem que deseja levar sua amada para cama, ou o devoto que espera um milagre
de seu deus. Eu desejava a morte com uma sede e disposição inabaláveis, mas
quanto mais a desejava, mais ela parecia correr para longe de mim.

Todas as minhas tentativas de suicídio foram frustradas, sempre fui encontrado no


momento, como que se a própria vida quisesse que eu continuasse vivo, minha
senhora preocupada me afastou de todos os objetos cortantes e perigosos quando
soube e a vida parecia querer que eu continuasse vendo os horrores que tinha que
lidar todos os dias. Eu chamava a morte, como aquele que apaixonado chama a
sua amada à noite em sua janela.

E um dia ela me ouviu e me chamou, embora eu mesmo já não tivesse um nome,


não tivesse nada que pudesse chamar de meu, nem mesmo meu corpo era meu. E
a morte surgiu como uma ninfa ruiva, um ser pálido e frio, que depois eu soube que
me observava desde sempre, que podia sentir meus sentimentos e ler meus
pensamentos. Ela me conhecia como eu já não poderia mais conhecer, havia me
esquecido de quem eu era.

Tinha a força de cinco ou seis homens e me carregar com ela não era uma tarefa
difícil. Eu não opus resistência, estava desejando pela morte e em meu coração
tinha certeza de que ela era a própria morte. Ela me levou para um bosque há
alguns quilômetros de Roma, eu não tinha noção de onde poderia estar exatamente
e lá me beijou com o seu beijo mortal e me deixou numa casa com telhado de
palha, jogado numa cama dura de palha e amarrado por cordas.

Saiu furtiva dentro da escuridão da noite que já começava a se perder em aurora e


eu fraco dormi por horas. Quando acordei sentia a pior de todas as sedes e ainda
era dia, os raios solares ainda invadiam a casa por pequenas frestas no telhado.
Eu gritei e gritei, mas não havia nada por perto, ninguém para atender meu
chamado.

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Eu tive que tentar entender o que estava pensando enquanto gritava. O que era
aquele instinto que temia a morte que eu tanto desejava? O que era aquilo que
gritava em mim, mesmo sabendo que se alguém me encontrasse saberia que era
apenas um escravo e me forçaria a continuar a ser? Não tinha respostas para
essas perguntas e elas me calaram.

A sede perturbadora me levou num tormento até o anoitecer, quando minha ninfa
ruiva me encontrou novamente, parecia saber o quanto eu estava sedento e me
entregou uma garrafa de bom vinho romano, que bebi em desespero no gargalo e
que em poucos minutos estava vazia, e minha sede ainda estava bem viva.

Não houve muito tempo para conversa, não me disse nada, apenas tocava meu
rosto deslizando seus dedos frios antes de cravar seus caninos em meu pescoço
novamente. Desfaleci, mal conseguia sentir as batidas de meu próprio coração, a
morte estava chegando para mim finalmente. A morte linda corporificada naquele
anjo ruivo de olhos verdes e intensos. Eu a amava, a desejava, meu anjo da morte.

Ela fez aquilo várias vezes durante aquela noite, me drenava quase que
completamente e depois me fazia sugar de seu delicioso sangue, que descia quente
em minha garganta como um fogo secreto. Soube mais tarde que essa repetição só
se deu porque queria me tornar poderoso, tão poderoso quanto ela.

Seu doce nome Petria jamais esquecerei, embora convivi com ela apenas por alguns
dias, me ensinou tudo o que sei, me mostrou como ler os pensamentos, como ver a
intenção dos corações dos homens, como mover os objetos com a minha mente,
como seduzir a minha vítima e me alimentar sem estardalhaço.

Petria me deu olhos novos e a noite não era apenas um céu estrelado, eu via as
galáxias, o brilho do infinito, podia ouvir os deuses dançando nos jardins secretos
do mundo, podia agarrar-me ao vento e voar. De escravo romano a deus da noite.

Mas, ela se foi tão rápido quanto entrou em minha vida e nela eu tinha conhecido
pela primeira vez o que era o amor, minha criadora, minha mãe e minha amante.
Foi levada pela noite ou pelo vento ou pelas lágrimas de sangue que chorei. Por um
tempo eu ainda a podia sentir, viva em algum lugar desse imenso mundo.

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Não sei por quantas vezes gritei por seu nome na esperança de que voltasse para
mim. Contudo, ela tinha partido sem sequer me deixar uma carta de despedida ou
de me explicar o motivo.

E eu sabia que a esperaria por toda a eternidade.

Entretanto, naquele dia, enquanto caminhava pelas ruas de Roma, anos após ter
me tornado o vampiro que era, deixei de sentir sua presença no mundo.

Não sabia como, mas sabia que tinha acontecido, sabia que ela tinha me deixado,
talvez para sempre.

Não podia acreditar nisso, eu não queria. E continuo a esperando, a espero até
hoje, séculos e mais séculos após sua partida.

Será que eu me pareço com ela? Sim, essa pergunta rodou pela minha cabeça
enquanto retornava para a biblioteca para guardar meu pequeno tesouro.

Loïc era afetuoso comigo, mas não se comportava como se fosse devoto ou com
um amor arrebatador, sentia que me respeitava a sua maneira, ainda que
mantivesse a ideia maluca de que era meu dono. Ou seria mais correto dizer meu
dominus?

Não entendia porque aquilo havia me perturbado tanto, mas poderia haver uma
explicação para ele ter me acolhido mesmo sabendo que Katrien tinha mentido,
talvez eu o fizesse lembrar de Petria, alguém que amou muito.

Eu estava descendo a escada novamente após deixar seu caderno no alto da


estante, quando ouvi sua voz:

— Então descobriu minhas anotações?

Eu não esperava por aquilo.

Virei desconcertada, aturdida. Não temia algum castigo ou algo do tipo, não
queria que ele soubesse que tinha descoberto suas anotações, queria poder
continuar lendo suas coisas, seus sentimentos, os fragmentos de sua história.

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— Descobri Petria.

Ele caminhou lentamente ao meu redor, me encarando daquele jeito perturbador


que costumava fazer quando parecia zangado de alguma forma, avaliando,
observando, me intimando.

— Eu me pareço com ela?

Eu precisava saber de alguma forma. Talvez não tivesse sido algum tipo de
mágica ou algum tipo de profecia, não tinha motivos especiais para eu ser
escolhida para qualquer coisa, ele não sabia o que eu era de fato, ou ao menos
assim eu acreditava.

— Se parece muito. E nunca tinha visto ninguém tão parecido com ela durante
todos esses anos.

Ele não parecia muito confortável, não parava de me rodear e pela primeira vez
desde que o conheci, eu o temi.

— Eu não sou Petria.

— Sei que não.

— Foi por isso então? Achei que Soren tinha me aceito.

— Não foi Soren que te aceitou, ele teria te matado aquela noite como ele matou
Katrien por mentir para ele. Eu te salvei, te tirei das mãos da morte e coloquei
nas minhas.

Ele parou com o rosto pálido tão próximo de mim que podia sentir seu hálito.

Então, Katrien estava morta e eu não conseguia sequer sentir qualquer coisa em
relação a isso, ela nunca tinha me sido importante. Sinceramente, estava mais
envolvida no que estava acontecendo naquele exato momento e retruquei:

— Transformou-me numa escrava.

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— Eu não te trato como uma escrava, ou te trato com a delicadeza e honra que
todo escravo deveria ser tratado.

— Só falta me dizer que é uma benção.

— Você está vivendo à deriva há quase dois meses, estava vivendo dessa forma
quando te encontrei naquele bar. Os outros estão decidindo a sua vida agora e
entre eles, eu estou também. Você não é Petria, se fosse seria minha mentora,
minha mãe, minha amante e toda a minha imortalidade. Você me diz que está
aqui para se esconder e é isso que eu estou fazendo, te escondendo e te
protegendo. Não pode me dizer que te trato mal.

— Não, mas não me permite ser livre, não me permite fazer minhas próprias
escolhas, me carrega consigo de um lado para o outro sem sequer perguntar se
estou disposta. Isso não é um conceito longe de escravidão a meu ver.

— Talvez.

— Pode ler meus pensamentos. Disse que podia no que escreveu.

— Posso, mas você pensa numa língua que eu desconheço. As imagens, seu
Heitor morrendo, os sonhos que passam em sua mente enquanto acordada, eu os
posso ver. Mas, se o seu pensamento é um som, então não posso compreender.

— O anjo. - A palavra simplesmente escorregou pela minha boca.

— Sim, você gosta de asas, se descreve como um anjo da morte, pensa em si


mesma com asas grandes e negras. Sente falta delas. Eu te levei lá para ver como
reagiria. Talvez eu saiba o que você é, Liese.

Num movimento rápido e brusco eu o toquei, precisava saber o que estava em


sua mente. Mas, como em outros momentos era um espaço vazio, sem imagens
ou frases.

Ele me empurrou violentamente e eu bati com as costas na estante empurrando a


escada para o lado com a queda do meu corpo. Lançou me um último olhar
enquanto me levantava e me deixou sozinha.

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Eu não conseguia compreender aquele demônio louco, não sabia o que pensar
daquilo, nunca tinha me agredido antes.

Eu te chamo, Antiga! Eu te evoco, Mãe dos Demônios, que se assenta no trono em


meio daqueles que governam o mundo. Todos servem a você, que foram criados por
você e por sua própria essência. Criadora e Destruidora, cuja face é brilhante do
lado direito e negra do lado esquerdo, venha para mim!

A voz novamente, ela a estava chamando de novo, podia a ouvir agora. Não que
fosse o melhor momento.

Deixei a biblioteca tentando imaginar onde Loïc poderia estar. A voz insistia em
sua liturgia. Por que ela estava chamando pelos seres da noite? Por que estava
chamando pela Antiga? Quem era ela?

Loïc não parecia estar em lugar algum e também não vi Eric quando parei à porta
de entrada. Aproximei-me lentamente, andando nas pontas dos pés e movi a
maçaneta. Estava aberta.

Não pensei duas vezes e saí correndo na disposição de encontrar aquela que
chamava os seres da noite.

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9 – O demônio

Corri para a garagem, todos os carros de Loïc estavam lá com a chave na ignição.
Entrei no que estava mais próximo da saída e deixei o local.

Música e foda-se era uma boa combinação para esquecer o que tinha acontecido
comigo e Loïc alguns minutos atrás. Nada daquilo fazia o menor sentido, me
agredir sem explicação, sem motivo.

Escolhi algum heavy-metal aleatório, aumentei o volume e tive aquele vislumbre


de liberdade. Da minha liberdade, da minha própria vida, dirigindo feito uma
louca a toda velocidade, ouvindo algo tão agressivo quanto meu próprio espírito.

— Foda-se! - Eu gritei, gargalhando em seguida feito uma louca. Claro que eu


estava zangada, mas não pensaria naquilo, não, eu não daria aquele gostinho de
vitória para um vampiro louco.

Eu podia sentir de onde vinha a litania, não importava que a música agradável
estivesse no último volume. Preocupava-me apenas que estava desarmada e abri
o porta-luvas para ver se tinha alguma coisa. Sorri ao ver uma pequena beretta,
melhor do que nada e a coloquei no cós de minha calça.

Odiei aquela cidade maldita mais do que tudo, não a conhecia e embora andasse
com Loïc para cima e para baixo, eu raramente dirigia, desconhecia suas ruas e
avenidas e entrei na contramão por isso muitas vezes.

O sussurro me levou para uma estrada no meio do nada, ladeada apenas por
matagal e mal sinalizada.

A magia estava ficando mais intensa, eu podia sentir no ar, ela estava por perto.

Parei o carro no acostamento e desci. Diante de mim um bosque repleto de altos


pinheiros, ela estava ali certamente, embora não pudesse ver qualquer carro
estacionado por perto.

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Adentrei o bosque, me senti em paz entre a natureza, sentia falta de caminhar
por ela. Não fazia ideia de quanto Louis de Broglie poderia ser de fato uma cidade
segura.

Segui adiante até ver a luminosidade, uma fogueira crepitava a alguns metros de
mim, o bosque inundava meus ouvidos com seu barulho noturno, com o farfalhar
das folhas, o zunido suave do vento, o crepitar do fogo próximo e a voz dela. A voz
encantadora daquela que chamava pela mãe antiga.

Eu fiquei escondida atrás de uma árvore de tronco largo de onde podia observá-
la. Fazia seu ritual compenetrada, parte nesse mundo e parte em outro mundo.
Era linda, não muito alta, de cabelos encaracolados e castanhos, eu não podia
notar dali a real cor de seus olhos, o rosto ovalado era delicado.

— Oh Mãe Antiga de todos nós, conceda-me seu poder essa noite. Que eu
encontre seu auxílio, que encontre um lugar para me refugiar, eu peço por sua
proteção contra aqueles que me perseguem.

Que ótimo! O mundo estava mesmo cheio de perseguidores de meninas


inocentes. Mas, quem poderia estar a perseguindo? Por que ela movia tamanha
magia para aquilo? É claro que chamando Lilith e pedindo por proteção seria eu
quem entraria em seu caminho.

E como iria a proteger na situação em que eu estava? Os Antigos só poderiam


estar de brincadeira comigo naquele momento. Talvez pudesse fugir com ela para
Schrödinger. Mas, não tinha pego nada, sequer dinheiro ou cartão de crédito, ou
qualquer coisa que o valha. Eu devia ao menos falar com ela.

Inspirei fundo soltando o ar pela boca lentamente e quando enfim dei um passo
em sua direção, a mão gelada tomou meu pulso. Loïc! Ele era tudo o que eu
queria que não estivesse ali e acho que pôde ver isso claramente em meu olhar
enfadado.

— O que você está fazendo aqui? Quem te deu permissão para sair?

— A segunda pergunta é retórica.

— Responda a primeira então.

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— Ela... - Maneei a cabeça de modo a apontar para a garota. — Ela é uma bruxa
e uma bem poderosa. E vim atender seu chamado.

— Do que está falando, Liese?

— Estou falando que a coisa mais rara do mundo é um humano se fazer ouvir
por seres como eu – que estão vivendo nessa terra com eles – por meio da magia.
E ela chamou uma senhora muito antiga, uma senhora da noite a qual estou
ligada e a quem devo obediência. E por isso preciso ajudá-la. Ela precisa de
proteção, precisa de uma guardiã e por isso eu a ouvi e não pude evitar atender
seu chamado.

— Uma guardiã?

— Eu não tenho nenhuma ligação com a magia, minha ligação é com a luta, com
a agressão, com a loucura e com a luxúria. E ela precisa de mim para alguma
coisa que preciso descobrir.

— Eu não posso permitir que você faça isso.

— Eu te destruiria se me impedisse. Sinto muito, Loïc, ou me ajuda ou não terei


nenhuma escolha. Você pode decidir se quiser, posso te dar algumas opções:
pode me ajudar e fazer o que tivermos que fazer ao meu lado, ou pode me deixar
partir com ela.

— Você não pode me destruir.

— Seus dois mil e trezentos anos não terão tanta utilidade, acredite. Eu me
escondo, minto e na maior parte do tempo estou fora de mim, mas estou falando
sério agora.

— Quem são vocês?

A voz dela era doce e delicada como seu rosto e me virei esboçando um sorriso.

— Eu vim atender ao seu chamado.

— Está me dizendo que é Lilith? - Perguntou desconfiada.

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— Não, eu não sou Lilith. Posso dizer que sou uma amiga próxima dela e vim
aqui para te ajudar.

— Está zombando de mim! - Ela falou num tom alto de voz olhando desconfiada
para Loïc.

— Eu me chamo Liese de Vries e esse aqui é meu amigo Loïc Bonnet. Eu viajei
vários quilômetros para chegar aqui, me perdi nessa cidade horrorosa e vim
atender ao seu pedido de proteção.

— Nem eu acreditaria nessa baboseira. - Disse Loïc me fazendo revirar os olhos.

— Você precisa acreditar em mim. - Eu disse num tom desesperado.

— Qual seu nome? - Loïc perguntou se aproximando dela.

— Não interessa meu nome.

— Se eu disser qual o seu nome dará uma chance para ela? Acreditará que
viemos aqui para atender ao seu chamado?

Viemos? O que ele estava querendo dizer com isso? Eu o olhei desconfiada.

— Vocês podem ser mutantes e eu não preciso de mutantes.

— Qual o nome dela? - Eu perguntei impaciente.

— Cora Nimue.

— Se me disser do que precisa se proteger posso fazer o serviço e nos livrarmos


uma da outra rapidamente. Você é uma sensitiva, droga, só nos olhe com seus
olhos espirituais e perceberá que estamos dizendo a verdade.

— Eu não posso. Estou bloqueada.

Eu sabia que não devia, mas se não ajudasse seria certamente castigada pelas
velhas mães da noite e ser castigada por elas era pior do que qualquer ocultista

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poderia fazer comigo. Precisaria confiar de que eu seria capaz de lutar contra Loïc
se isso fosse necessário.

Aos poucos foi ouvido a minha camisa se rasgando e minhas asas negras se
abriram grandes e sublimes, fazendo o vento cantar nelas. Eu soltei um gemido
de dor, estavam doloridas por serem mantidas presas por tanto tempo. Deixei que
Cora visse meus olhos, duas chamas brilhantes eles eram.

— Nossa, caramba! - Ela parecia estar sem ar. — O que você é?

— Um demônio. - Respondi com a voz etérea como o canto de um belo anjo caído.

— Linda! - Loïc me olhava maravilhado.

— Acredita em mim agora? Porque se não acreditar eu mesma irei te matar.

Ela avançou sobre mim como uma criança encantada com um novo brinquedo e
tocou minha asa. Contudo os olhos de Loïc se depositavam em meus seios
descobertos pelo trapo que havia se tornado minha camisa.

— Eu não posso ficar nessa forma. - Eu disse impaciente.

— Conhece Lilith de verdade?

Ela me era assustadora.

Eu mexi minhas asas como se as estivesse batendo para alongá-las um pouco,


fazendo com que os nossos cabelos balançassem com o vento que produziam,
estavam doloridas e me senti aliviada de as abrir novamente após tanto tempo.
Mas, não podia ficar daquela maneira, sussurrei o encantamento antigo e elas
diminuíram, ou ao menos assim eles teriam visto, até desaparecerem em minhas
costas num clarão avermelhado, sem deixar qualquer marca.

— Eu preciso me alimentar.

Cora olhou para Loïc, logo soube o que ele era. Eu e ele nos entreolhamos, ela
parecia assustada.

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— Sim, ele é um vampiro, mas não vai te comer, a não ser que você queira.
Vamos sair daqui. Eu preciso vestir algo decente.

Ela me tocou mais uma vez, como que se para constatar que eu era real e sorriu,
mas para Loïc olhava com desconfiança. Correu até onde estava a fogueira e
depois reapareceu entre os pinheiros com uma mochila nas costas.

Loïc dirigia, eu estava esparramada no banco do passageiro completamente


frustrada, enquanto que Cora olhava pela janela no banco de trás. Loïc me olhou
e repetia esse movimento de me olhar e depois olhar a estrada várias vezes, até
que finalmente falou:

— Por isso que disse que me destruiria? Por ser um demônio?

— Hierarquicamente falando eu estou mais para domina do que você para


dominus. Não sei de fato se consigo, mas sei que se as mães da noite me
ajudassem você não teria nenhuma chance.

Ele riu.

— Por que não te senti como um demônio? Por que ainda não te sinto como um
demônio?

— Como me sente? - O olhei desleixada.

— Como algo muito antigo.

— Teoricamente eu sou algo muito antigo. Anjo ou demônio, tanto faz, a palavra
demônio é apenas uma deturpação, uma forma pejorativa de dizer que sou
sombria e malvada, que sou um ser da noite, a diferença em termos práticos é
que anjos são dogmáticos, enquanto demônios são pragmáticos. O conceito de
demônio se tornou uma ideia tão pejorativa quanto achar que gauleses são
selvagens e bárbaros como oposto de romanizado, se é que me entende. - Pisquei
para ele. — Sou um daemon ou um ággelos. Daemon que em grego significa gênio
ou ággelos também grego para mensageiro, meu querido keltoi*1. - Sorri
debochada.

1 Palavra grega para Celta.

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— E o que os ocultistas têm a ver com a sua sobrevivência?

— Eles que começaram isso. Quer dizer, os cientistas começaram com o Dia
Fatídico.

Todos nós sabíamos sobre o dia fatídico, fazia parte de nossa cultura agora. Tudo
havia começado com as experiências de cientistas com partículas subatômicas.
Há duzentos anos os cientistas fizeram um experimento onde pudessem simular
o Big Bang, tomaram todos os cuidados necessários, mas infelizmente a coisa não
havia saído como o esperado.

Tinha muita coisa em risco naquele experimento, segundo contam os livros de


história, os cientistas queriam comprovar a existência do Bóson de Higgs e
também procuravam pela existência de outras dimensões de espaço e tempo, a
explicação para a matéria negra, uma força que compõe grande parte do universo
e sobre a qual ainda se sabe muito pouco, assim como saber para onde ia a
antimatéria.

Na época houve uma grande comoção, havia aqueles que temiam que o
experimento fizesse surgir um buraco negro, uma força gravitacional tão forte que
engoliria o universo. Na época os cientistas provaram que isso acontece no
universo naturalmente com muita frequência e sem o destruir. E embora houve
todo um estardalhaço a respeito daquilo, não puderam fazer nada para impedir o
experimento.

Assim o dia fatídico foi marcado com um novo Big Bang em nossa história. A
simulação foi uma catástrofe e resultou numa enorme explosão, não sobrou
ninguém envolvido diretamente naquele experimento e tampouco pessoas na
cidade onde ele foi feito para contar exatamente o que ocorreu naquele dia.
Dizem, entretanto, que de fato se criou um buraco negro e que esse trouxe para o
nosso mundo algumas espécies como a minha.

Era apenas uma teoria que os universos poderiam estar conectados entre si
através de buracos negros, teorias que aparentaram ser verdade ou serviram
muito bem para explicar o que aconteceu. O que se revelou pareceu ainda mais
absurdo para os humanos, mas espécies como a minha apareceram na terra
depois disso. Chamo de espécie, embora estamos vivos ao longo dos mitos da
humanidade.

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Descobriu-se após esse experimento de que os mitos eram realidades de outro
universo e que o tal buraco negro, se é que foi realmente isso que se criou no
experimento, se revelou como um portal por onde passamos. Mas, não foi
exatamente uma passagem voluntária.

Ocorreu que com a explosão vários países foram consumidos quase que
instantaneamente. Mas, o maior problema, além do tal buraco negro, foi que o
experimento mexeu completamente com o campo magnético da terra. Os que
conseguiram sobreviver a grande explosão tiveram que lidar com todas as
mudanças que envolveram esse planeta, especialmente a climática. Foi um
grande cataclismo.

Muitas coisas estranhas aconteceram desde então. Estranhas ao menos na visão


dos humanos, logo que tudo o que eu estou contando aqui, li em algum lugar ou
são contados romanticamente nos filmes que assistimos. Sim, temos tecnologia, a
mesma ciência que nos destruiu está tentando reconstruir o estrago que ela
causou, mas a vida não é tão fácil, muitas espécies animais e vegetais foram
extintas nesse processo e algumas espécies que antes acreditavam existir apenas
no imaginário da humanidade sobreviveram a catástrofe, claro que não falo das
melhores delas se eu adotar uma visão humanizada. Veja Loïc.

Os humanos também sofreram alterações nesse processo, alguns deles tiveram


uma grande mudança genética e esses nós chamamos de mutantes. Com o DNA
alterado, alguns deles se mostraram com capacidades sobrenaturais, eles não são
a maioria e muitos são vítimas de estudos e pesquisas no campo da ciência.
Normalmente eles se escondem e agem como marginais para garantir a própria
sobrevivência.

Eu não precisava repetir isso para Loïc que sobreviveu ao evento ou para Cora
que deve ter estudado isso nas aulas de história na escola. Todos nós sabíamos
sobre o dia fatídico e vivíamos agora numa região fria, pouco abaixo da zona
subpolar, a qual chamávamos de Quantum e era com imensa ironia que todas as
cidades de Quantum tivessem nomes de cientistas como Schrödinger e Loius de
Broglie, com o clima estranhamente temperado.

— Certo, e então? O que os ocultistas têm a ver com você? - Loïc repetiu
impaciente.

70
— Contaram-me que com o aparecimento de mutantes e coisas absurdas como
você, os humanos se viram novamente agarrados em sua fé para sobreviver a
tudo aquilo. Além da fome, da migração e de todos os problemas climáticos no
planeta, os mutantes eram outro problema. Com seus poderes se sobressaíam e
conseguiam viver mais tranquilamente roubando os outros que não tinham poder
algum. Assim, os ocultistas tentaram usar alguns métodos que antes
consideravam ultrapassados, o tal buraco negro se mostrou um tipo de portal e
na época não sabiam que a influência desse último mudou completamente a
energia da terra como um todo e ao que fizeram rituais e outros tipos estranhos
de feitiços, começaram trazer à vida seres que antes eram considerados apenas
parte do imaginário humano. Eu por exemplo. A ideia inicial era usar a magia
antiga de Salomão e a magia Enoquiana para que conjurando anjos e demônios
pudessem ter poderes para enfrentar os mutantes e todas as adversidades
planetária.

— Salomão? Aquele lá da bíblia?

— Ele mesmo. - Eu sorri. — Particularmente, eu considero Salomão um homem


interessante. Deu a ideia de que com símbolos, rituais e as palavras certas, um
demônio poderia ser invocado e fazer aquilo que a pessoa que estivesse fazendo o
ritual quisesse que fizesse. A ideia era bastante interessante, ao menos no ponto
de vista dos humanos, eles se consideravam um deus em miniatura e através da
arte oculta, poderiam nos escravizar para fazermos o que desejassem. Tinham a
ideia de que havia um Deus no comando, que os anjos trabalhavam para Ele e os
demônios contra os dois, mas que tanto anjos quanto demônios eram desprovidos
do dom do livre arbítrio. Quanta insolência! Mas, através da magia de Salomão,
eles trouxeram primeiro nós ao mundo. Alguns, ao menos os grandes nomes
como Samael, Amon, Lúcifer e Astaroth por exemplo, vieram por convite, outros
como eu, viemos ou por fazer parte da legião, ou porque parecia divertido e depois
de nos ver felizes em corpos físicos, que pudemos sentir todos os prazeres da
carne e da vida, de um modo muito próximo ao humano, não quisemos mais ir
embora. Os anjos vieram há bem pouco tempo e são muito poucos.

— E você se lembra dessa passagem? De como ganhou um corpo?

— Não. Eu perdi a memória de verdade há dois anos, num acidente de carro


como acho que já te contei. Meu pai é um demônio e ele nos contou isso.

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— E por que você mata os ocultistas se eles que trouxeram vocês?

— Você mata ocultistas? - Perguntou Cora fazendo-nos lembrar da presença dela.

— Mato. - Disse virando para trás para respondê-la e me ajeitando novamente no


banco, continuei olhando para Loïc: — E mato porque somos caçados por eles.
Na visão humana nós influenciamos ao mundo de uma forma negativa e
destrutiva. E com a mesma magia que nos trouxeram para cá, podem nos
mandar de volta.

— Cora? - Ele perguntou com um ar preocupado.

— É uma bruxa e Lilith protege as bruxas e todos os seres noturnos, incluindo


você, acho.

— Um demônio como você?

— Uma deusa antiga. - Respondeu Cora para Loïc.

— Os deuses já estavam desacreditados há mais de dois mil anos atrás, vide


Roma.

— Vampiros eram apenas lendas, vide Loïc. - Eu sorri debochada.

— E por que eu não podia saber disso? Por que tinha que me esconder sua
natureza?

— Loïc você não sabe, nunca viu minhas asas, nunca viveu esse dia. Entendeu?
Ao contrário das ideias dos vampiros de Louis de Broglie, nós devemos
permanecer ocultos e desconhecidos.

— É irônico que eu tivesse que viver mais de dois mil anos para viver algo como
isso. Persegui por tanto tempo ideias espirituais, tentando encontrar a
espiritualidade em mim mesmo ou nos homens. Como qualquer outro que tivesse
vivido o século XX e XXI, cheguei a pensar que logo a ciência teria todas as
respostas, para ter que acomodar em minha casa aquela que pode ter algo para
falar sobre Deus.

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— Eu tenho tanto para falar sobre Deus quanto você. Não sei nada sobre Deus.
Acredito que caos e vazio sejam conceitos ótimos para definir, se isso for possível,
Deus. Eu sequer posso entender direito o que eles queriam dizer com toda aquela
história de cabala e árvore da vida. Vai por mim, tem coisa que é melhor ficar
como está, nem tudo precisa ser explicado e entendido.

— Vocês dois vão ficar filosofando até quando? - O tom de Cora era entediado.

— Do que você precisa afinal? - Perguntei à ela virando-me para trás novamente.

— Eu não me sinto segura de falar abertamente assim, ao menos não num carro,
ele pode estar em qualquer lugar, me encontrar em qualquer lugar. Eu preciso de
um lugar para ficar e preciso de proteção.

— O que ele é?

— Um vampiro.

Eu e Loïc nos entreolhamos.

— Como ele se chama?

Cora o olhou desconfiada, claro que devia lhe inspirar desconfiança, logo que
aparentemente ela estava sendo perseguida por um deles.

— Não quero falar o nome dele, não me sinto segura.

— Passarei em casa para você se trocar e depois vamos para outro lugar. - Ele me
olhou como se quisesse me dizer alguma coisa, com um leve maneado de cabeça
e um olhar demorado antes de o repousar sobre a estrada por onde dirigia.

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10 – O passado

Deixei Cora e Loïc esperando enquanto fui ao meu quarto para trocar
rapidamente de roupa, pelo menos estava livre de vestido aquela noite. Contudo,
enquanto buscava pela roupa, percebi que havia um dos cadernos de Loïc sobre a
mesa de cabeceira.

Ao lado repousava cuidadosamente uma caneta sofisticada e elegante, com


detalhes em dourado e embora eu não fosse uma expert, poderia jurar que era
ouro. Tomei o caderno em minhas mãos delicadamente e o folheei, constatei que
estava em branco, exceto pela primeira página.

Admito que me senti receosa e hesitei em ler por alguns segundos.

As palavras escorrem de meus dedos como os séculos têm escorrido por minha
vida. A ânsia em dizer todas as palavras em todas as línguas para expressar algo
que eu não conseguiria sequer admitir pensar. Sinto-me embargado, como se não
ousasse, covarde, de espalhar tais pensamentos, como os pássaros fariam com as
sementes. Já se sentiu assim? Porque mesmo com séculos de conhecimento, ainda
me pego acometido, às vezes assustado, sobretudo melancólico. Imóvel, evito o
espelho, pois que não consigo me olhar nos olhos. Nunca me disseram que o preço
da liberdade era a infinita solitude. Aqui está seu caderno, bem como pediu, mas
há um preço por ele. Deve me escrever como te escrevo, responder-me como te
respondo, perguntar-me como te pergunto. Eu sinto muito. É tudo.

Era um pedido de desculpas e um apelo. O que eu saberia sobre se sentir sozinho


por tanto tempo? E o que eu sabia de Loïc para poder julgá-lo? Entretanto, sabia
não poder entender porque ele insistia nessa questão de solidão, ele saía todos os
dias e estava sempre rodeado de pessoas e vampiros.

Quem de fato estaria interessado em sentimentos alheios?

Eu depositei o caderno sobre a mesa de cabeceira e entrei no closet para


encontrar algo para vestir.

74
Talvez ele estivesse curioso sobre que tipo de sentimentos havia dentro de mim.
Que perigo aquilo poderia ter? Eu era mestra em esconder meus sentimentos até
de mim mesma, perita em me esquivar e fugir. Era uma brincadeira, realmente, e
eu poderia brincar daquele modo.

Desde que não me esquecesse de sua agressão e lhe desse o troco.

Era realmente estranha aquela situação, mas de alguma forma ele poderia ter
uma vontade genuína de saber sobre mim, eu já tinha lhe mostrado que era um
demônio e no carro ele havia prometido que não contaria para ninguém. Eu já
tinha feito o pior que podia.

Após me vestir, escrevi em retorno.

Não sei se consigo,

Não minto.

Quando aproximo do imo,

Sinto que estou em perigo.

Há um mar secreto em mim

Onde não há nenhum abrigo,

Me queima um fogo carmesim

A dor saúdo, se preciso.

O que te perguntaria?

Contaria sobre sua vida?

Correria comigo na pradaria?

Diria alguma coisa pervertida?

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Brinco contigo, vampiro,

Vivemos um horror desmedido,

Toque minha água sagrada,

Sinta-a, mas dela não me diga nada.

Liese de Vries – Louis de Broglie.

Olhei para o poema horrorizada. Desde que Heitor morreu eu não escrevia
daquela forma e percebi que queria impressionar Loïc de certo modo, como se
isso fosse necessário.

Eu não tinha desculpas agora, não estava bêbada e nem drogada. Joguei o
caderno sobre a mesa, tentando entender o que estava fazendo, o que havia me
impulsionado. Queria rasgar e jogar aquela folha fora, sem que ele pudesse
colocar o olhar sobre o que escrevi.

Era horrível ter que olhar para os sentimentos e não saber porque estavam ali.
Agora aquilo rondava a minha cabeça novamente, a angústia de não me lembrar
de nada, o desejo de saber quais foram as coisas em minha vida que me levaram
a criar a personalidade que eu tinha.

Heitor havia me convencido de que não deveria ficar tentando me lembrar sobre o
meu passado, dizia que era melhor que eu vivesse o presente. Era fácil entender a
natureza de seus conselhos, eu era obcecada por isso.

Sempre achei estranho o fato de que meu pai não tivesse nenhum tipo de registro
meu e de minhas irmãs antes disso, não haviam fotos ou cartas que nos
contassem um pouco sobre o que éramos antes do acidente.

Alguns poucos demônios com os quais entrei em contato diziam que não havia
muito o que me preocupar sobre saber do passado, que num momento ou outro
me lembraria de todas as coisas. Sequer me lembrar de onde viemos e nada com
o que eu lidava em Schrödinger parecer familiar, sempre me levou num turbilhão
de perguntas sem respostas.

76
Neil parecia de certa forma familiar, ao menos foi como senti quando nos
trombamos na rua perto da praça do castelo no centro de Schrödinger pela
primeira vez. Entretanto, ele teve uma reação esquisita e começou a me seguir,
pensei em matá-lo e me livrar dele prontamente, mas alguma coisa dentro de
mim gritou para que não fizesse aquilo e apenas fugi.

Segui minha intuição e voltei rapidamente para casa, comentei com as minhas
irmãs sobre isso, sobre o homem louco que me perseguiu e elas me aconselharam
a falar com meu pai. Esse por último me mostrou vários registros sobre Neil e
disse que ele era um ocultista de muito conhecimento e um caçador de demônios.

Isso aconteceu um pouco depois do grande problema em Schrödinger, quando


alguns demônios foram forçados por meio de magia pelos ocultistas a mostrarem
a verdadeira identidade. Aquilo era um grande problema, pois que Schrödinger
era a capital de Quantum e seu governo estava nas mãos dos demônios.

A repercussão foi dolorosa, após o Dia Fatídico muitos se apegaram em Deus


novamente e demônios poderiam facilmente levar a culpa por tudo o que havia
acontecido, a péssima imagem de nós criada pela igreja ainda sobrevivia. Éramos
sinônimos de perversidade, maldade e destruição.

Não que eu discorde completamente com esse pensamento, mas o poder que
temos sobre Quantum estava em jogo e era um jogo do qual não queríamos
perder e nossa identidade devia ser mantida no mais restrito sigilo. Matar todo
mundo não faz o menor sentido. Que rei quer reinar num reino de cadáveres?

Apressei-me até o carro onde Loïc e Cora me esperavam.

77
11 – Inimigo

— Por que demorou tanto? - Loïc perguntou assim que eu entrei no carro.

— Estava te respondendo em meu novo caderno. Ficaria feliz de ter um apenas


para mim, é bom dizer.

Lançou me um sorriso afável e eu retribuí um sorriso túrbido, virando-me em


seguida para a janela.

— Vou deixá-las noutra casa minha e vou sair para caçar o jantar.

Balancei a cabeça em concordância.

A outra casa não era tão longe, mas assim como a casa onde vivíamos ficava num
lugar desabitado, no alto de um monte. Enquanto nos aproximávamos da casa
imensa de três andares por uma trilha sinuosa e sem iluminação, virei-me para
Cora e perguntei:

— Como ele se chama?

— Nikolai Ilitch.

— O que Nikolai quer com você? - A feição de Loïc se transformou.

— É uma longa história e eu preciso estar segura para isso.

— Ele é só um vampiro. - Disse Loïc exasperado.

— Não, ele não é mais só isso.

Loïc freou bruscamente e manobrou o carro para voltar pelo mesmo caminho ao
qual estava vindo.

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— O que está fazendo? - Perguntei surpresa.

— Já que vão falar de Nikolai eu quero estar presente, mas preciso me alimentar,
então vamos para algum lugar onde eu possa fazer isso e depois voltamos para
cá.

— E quem ele é? E por que tem tanto interesse nele?

— Ele é o líder do clã que tem muito interesse de ver o meu destruído. Nikolai é
meu inimigo.

— Por que ele quer te destruir?

— Éramos um único clã antes e Nikolai tinha interesses maiores, sempre aspirou
por poder e queria controlar essa cidade. Como eu discordava assim como Soren,
Yasmin e Maxius, acabamos nos separando.

— Mesmo se conseguisse o poder dessa cidade, Schrödinger governa quase todas


as cidades de Quantum, exceto por essa. E até onde eu sei, não demorará muito
tempo até que Schrödinger tome o controle de Louis de Broglie também.

— O que sabe sobre isso? - Ele me perguntou claramente interessado.

— Não muito, eu não gosto de política, entretanto como você pode adivinhar eu
faço o trabalho sujo deles na maioria das vezes. Meu pai é um homem influente.

— Além de linda e demônia, você também é rica? Que mundo injusto! - Retrucou
Cora.

— Luxúria. - Repliquei.

— Nikolai sempre teve o desejo de exterminar os humanos. Ele pensa num


mundo onde os vampiros reinam e humanos são cultivados.

— Como se você se importasse com os humanos! - Replicou Cora. — O que


estamos indo fazer mesmo?

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— Não sabe nada sobre mim! - Ele disse altivo. — Eu mato humanos para me
alimentar, como os humanos matam os animais. Eu não vejo ninguém muito
chocado comendo cadáver na mesa, a diferença é que eu mesmo tenho que caçar
e matar, não existe um açougue para vampiros. Mas, são tão responsáveis pela
morte dos animais quanto aqueles que são pagos para matá-los para vocês.

— Não nos use como desculpa para o que você faz! - O tom de Cora era irritadiço.

— Não estou usando nada como desculpa, desculpe se estamos no topo da cadeia
alimentar.

— Chega com essa discussão ridícula! - Objetei.

Ficaram em silêncio para o meu alívio.

Loïc seguiu para a discoteca que ele havia me levado na noite em que me deu de
seu sangue para beber e pediu para que nós esperássemos por ele no carro. Eu
liguei o som e tamborilei os dedos no ritmo da música. Cora inclinou o corpo para
frente segurando nos dois bancos dianteiros e colocando a cabeça entre eles,
perguntou:

— Como soube que eu estava precisando de você? Lilith apareceu para você e
disse?

— Eu não sei dizer como eu soube. Estava te ouvindo há alguns dias. É muito
raro disso acontecer, mas já aconteceu comigo antes. É como se algo dentro de
mim que não pensa soubesse o que tinha que fazer.

— Você é uma serva de Lilith?

— Não exatamente. Eu sou ligada à noite e eu devo obediência as divindades


poderosas da noite por algum motivo que eu não me lembro. Você deve saber que
temos reis, príncipes e duques, masculino e feminino. Deve entender porque
dizemos que nosso nome é legião. É como uma linhagem e se for visto dessa
forma, perceberá que eu tenho uma linhagem com a noite.

— Eu posso entender. - Ela balançou a cabeça desleixada.

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— Eu tenho um juramento para proteger as bruxas. - Eu a olhei com certo receio.
— Tenho a tendência de amar as mulheres fortes, aquelas que lidam com a
magia, com o mundo natural e sobrenatural, especialmente as que são selvagens.
É a minha natureza.

— Você pode conceder poderes? Iniciação?

— Não, eu não tenho ligação com a magia. Sou apenas uma guardiã.

— Você gosta dele?

— Eu não gosto de ninguém. - Respondi ríspida.

— Então, o que faz com ele? Por que mora com ele?

— Estou aqui para te proteger, não para responder a um interrogatório.

Ela riu, jogando o corpo para trás de forma displicente, dizendo:

— Não haveria motivo para ser tão grosseira se isso não te afetasse. Acabou de
dizer que ama as bruxas e depois se contradisse falando que não gosta de
ninguém.

— Tenho tendência a amá-las, não o dever. E o que te faz pensar que eu tenho
que ser sua amiga? - Virei-me para ela.

— Você é tudo o que eu tenho agora. - Ela respondeu com voz embargada. — Não
tenho para onde ir, não tenho dinheiro, não tenho família, não tenho nada e nem
ninguém. Por isso eu pedi auxílio para Lilith.

Eu sacudi a cabeça e me alinhei ao banco novamente, apenas para observar Loïc


se aproximando. Ele entrou e a porta fechou-se num som abafado, estava corado
e com o semblante mais descontraído. Deu a partida e percebendo que eu e Cora
estávamos em silêncio, aumentou o volume da música. Viajamos sem trocar
qualquer palavra.

A casa não era exatamente uma casa, era uma mansão e Loïc nos fez esperar
enquanto ele ligava o gerador. Já no interior da casa, ela me mostrou algo bem

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diferente do que estava acostumada de onde vivíamos. Não tinha a característica
antiga e rústica, nem havia milhares de estátuas espalhadas.

As paredes eram pintadas de preto e o lugar onde estávamos bem na entrada era
um enorme salão, com poltronas e sofás estofados na cor vermelho sangue, com
pés e braços em madeira trabalhada. Havia uma escada que subia numa leve
curva para o andar de cima, larga e com o corrimão numa madeira tom café e os
degraus eram cobertos por carpete aparentemente aveludado e vermelho. Havia
mesas baixas de madeira e tampo de vidro espalhadas pelo local, normalmente
perto das poltronas e sofás e milhares de candelabros por toda parte.

Loïc nos fez cruzar todo o salão pela direita e atravessamos uma porta dupla
demarcada por dois lustres de parede de cristal e demos numa outra sala tão
grande quanto a primeira, onde um terço da parede tinha uma cobertura
amadeirada e já próximo ao teto havia escultura em relevo. Cruzamos também
essa grande sala para dar noutra menor, também com portas altas e duplas.

Lá havia uma mesa em jacarandá e a decoração se assemelhava com o que eu


estava acostumada na casa dele. Havia um busto sobre a mesa como na
biblioteca e duas altas estátuas uma de cada lado da porta que pareciam fadas.

Ele se sentou na poltrona maior atrás da mesa rústica e fez sinal para que
sentássemos nas duas poltronas à sua frente, dizendo:

— Pode nos contar agora.

— Que lugar é esse? - Perguntou Cora dando um giro em seu próprio eixo
observando o lugar.

— Quando vivíamos como um clã, morávamos aqui. Moramos juntos até Nikolai
nos separar e termos que viver cada um num lugar diferente por proteção. Por
que Nikolai está atrás de você?

— Conheci Nikolai há três anos e me apaixonei por ele, achei que era recíproco.
Talvez no começo fosse. Eu confiava nele e foi a primeira pessoa que conheci
quando saí da cidade de Heisenberg. Eu tinha apenas dezoito na época. Estava
procurando emprego e ele me arrumou um numa boate. Embora soubesse desde
o princípio que ele era um vampiro, nunca me pareceu perigoso ou louco. Achei

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que tivesse encontrado o homem da minha vida. Com o tempo eu estava tão
acostumada com a presença dele que fazia magia mesmo quando ele estava
presente e percebi que ele havia se interessado muito por aquilo. Interessado até
demais.

Ela nos olhou com certa tristeza no olhar. Não dissemos nada, esperamos
apenas, parecia precisar digerir o que vinha em sua mente. Eu podia
compreender bem o que era lidar com lembranças dolorosas. Após uma
inspiração profunda e ruidosa, ela continuou:

— Ele começou a me pedir para que eu fizesse algumas demonstrações do que eu


era capaz de fazer com magia, entre a projeção astral e a necromancia, Nikolai
também gostava muito da precognição e pediu para que eu visse como ele poderia
fazer para conseguir o que desejava, aquilo que você já nos informou antes, ser
dono dessa cidade. Eu o amava e fiz como havia me pedido e vi que ele poderia
conseguir com a ajuda de um demônio. Azazel estava disposto a ajudá-lo, mas ele
não estava nesse mundo.

Eu prendi o ar involuntariamente e senti meu corpo paralisar como se tivesse


congelado quando ouvi aquilo. Ela pareceu perceber minha reação inusitada e
ficou me olhando em silêncio por um tempo, assim como Loïc. Ela continuou:

— Eu sabia que ele não tinha como superar você, Soren, Yasmin e Maxius porque
são mais velhos que ele e ninguém no clã dele seria capaz de lidar com vocês
quatro sem muito prejuízo, ele precisava de alguém que pudesse destruí-los,
precisava de Azazel. Eu senti muito medo, sentia que algo não estava certo
naquilo. Sou uma bruxa de nascença e sabia o que os ocultistas tinham feito e
com o que eles estavam lidando especialmente em Schrödinger, por mais que
ninguém que realmente preze pela vida fale a respeito, era inevitável não saber
disso em Heisenberg. Nós conhecemos a magia Enoquiana e a magia de Salomão,
eu conhecia, mas minha intuição me dizia para não dizer nunca isso para
Nikolai. Ele começou a ficar diferente depois de um tempo, começou a ficar
agressivo e impaciente, até mesmo comigo. Estava enlouquecido e obcecado. E
não sei dizer como ele ficou sabendo, mas sabia que poderia trazer Azazel e me
forçou a fazê-lo.

Ela me olhou como que estivesse esperando algum tipo de julgamento, talvez
estivesse com medo pelo fato de eu matar ocultistas justamente por aquele

83
motivo. Mordeu o lábio inferior demonstrando seu nervosismo e apertou as mãos
uma contra a outra, olhando-me quando continuou:

— Eu disse para Nikolai que eu não poderia fazer aquilo, menti que desconhecia
aquele tipo de magia e que ele deveria encontrar um ocultista para fazer aquilo,
mas ele claramente não acreditou em mim. Após algum tempo sob tortura, ele
acabou me forçando a fazer, me enfeitiçou e eu trouxe... - fez uma breve pausa:
— Eu trouxe Azazel que decidiu ajudá-lo, mas Azazel queria que eu trouxesse
outros que estavam ligados a ele. Eu estava com tanto medo e tão assustada com
tudo aquilo que fugi e depois fiquei pedindo ajuda para Lilith, porque Nikolai
pode me encontrar em qualquer lugar e ele quer que eu traga os outros. Minha
intuição e sensibilidade estão bloqueadas por causa disso, tenho que doar grande
parte da minha energia para trazer um demônio e certamente morrerei se eu
trouxer mais deles. Ou morrerei por não fazer e nem tentar. Se vocês não me
ajudarem eu morrerei certamente.

Eu massageei minhas têmporas, Azazel era conhecido, muito conhecido,


especialmente pela ira, ele provavelmente não teria nada contra as bruxas, mas
eu não poderia precisar aquilo, não o conhecia direito. A voz de Cora despertou
algo em mim que não soube explicar quando ela disse:

— Azazel matará todos os que se opõe a Nikolai e ele tem uma pequena lista de
prioridade. - Ela olhou para Loïc como se ele soubesse quem estivesse nessa lista,
não precisava dizer, eu mesma que não conhecia bem a história já sabia que ela
estava querendo dizer que ele, Soren, Yasmin e Maxius deviam estar certamente
nela.

— Eu posso acabar com Nikolai e é o que vou fazer. Mas, sinceramente, não acho
que posso fazer muita coisa contra Azazel. - Eu a olhei com certo pesar: — Acho
que Lilith não queria te proteger tanto assim, se quisesse ela teria pedido para
Samael atender seu chamado, não eu.

— Você conhece Samael? Ele está nesse mundo também? - Ela sempre tinha
aquela cara de criança levada quando me fazia esse tipo de pergunta.

— Conheço e sim ele está. Depois de Soren, é o homem mais bonito que eu já vi
na vida. Já ficamos juntos algumas vezes, ele é um diabo sedutor.

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— Acha que ele te ajudaria?

— Não. - Respondi veemente. Olhei para Loïc, dizendo: — Quais os métodos mais
efetivos? Estaca, decapitação, prata, sol, fogo, o que?

— Prata não faz nada em nós, somos vampiros não lobisomens. Estaca,
decapitação, sol e fogo funcionará bem. Mas, você não fará isso.

— Por que não? - Perguntei com uma sobrancelha arqueada.

— Não cabe a você matar um vampiro e tampouco julgá-lo.

— Eu acho que você não está entendendo muito bem a sua posição nesse
momento, Loïc. - Eu disse debochada. — Nikolai pode não ter nenhuma chance
contra vocês, mas vocês não tem nenhuma chance contra Azazel, nem eu tenho.
Preciso saber onde encontrar Nikolai.

— Ele virá ao meu encontro cedo ou tarde. - Disse Cora.

— Tem alguma coisa para beber nesse lugar? - Perguntei a Loïc.

— Não. Mas, iremos para um lugar que tem.

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12 – O condomínio

Loïc dirigiu por cerca de duas horas até chegarmos num tipo de condomínio que
ficava numa região remota entre Louis de Broglie e Feynman. Era um pequeno
aglomerado de casas pequenas como chalés de telhado em forma triangular e
com certo charme. As ruas estreitas eram pavimentadas e os postes imitavam
antigos candeeiros dando beleza ao ambiente. Não havia nenhum tipo de
comércio exceto pelo que pareceu ser um bar.

Loïc estacionou o carro numa dessas casas, todas iguais com apenas detalhes
diferentes uma da outra, como a tonalidade da pintura, logo que todas eram uma
variação entre vermelho e ocre. A casa era um sobrado e depois vi que tinha três
quartos no andar de cima, copa e cozinha e uma sala ampla dividida em dois
ambientes, estar e jantar.

Na sala de jantar tinha um bar elegante em cerejeira com tampo em granito no


canto da parede, com uma adega climatizada que subia ao longo da parede. Olhei
para Cora enquanto essa se jogou no sofá comprido esticando-se toda sobre a
superfície almofadada e cinza. Loïc falava ao telefone quando me olhou antes de
se esgueirar pela cozinha, era Eric.

A televisão grande ligou-se e percebi que Cora havia encontrado o controle remoto
em algum lugar e agora procurava por algo para assistir. Deixei-a na sala e subi a
escada em caracol para o andar de cima. Dei num corredor estreito, havia quatro
portas. Fui direto para o quarto do fundo do corredor e ao abrir me deparei com
um cômodo todo fechado, sem janela, apenas com a porta que dava para o
corredor e um sarcófago no centro do quarto.

Curiosa olhei nos outros dois quartos restantes, ambos com cama de casal,
guarda-roupas embutidos e penteadeira, ambos suítes, não muito grandes, mas
confortáveis o suficiente. Ficaríamos ali certamente e abri a janela do quarto que
dava para a entrada da casa dando a vista para a rua, foi o que mais agradou,
pois que tinha um aparelho de som. Seria meu novo quarto se minha intuição de
que ficaríamos ali estivesse certa.

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— Vermute bianco com conhaque. - Ele me disse entregando-me um copo de
cristal onde preparou a bebida. — Sei que é seu favorito.

Singular. Nunca tinha percebido que ele observava aquilo, nem saberia dizer
exatamente como ele concluiu com exatidão que aquela era a minha bebida
preferida. Astrid sabia daquilo, talvez ouviu algum pensamento dela. De toda
forma, era afetuoso.

— Você ficará aqui também? - Perguntei antes de levar o copo à boca.

— Sim. Pedi para Eric trazer nossas coisas e avisar aos outros para ficar aqui na
vila, como chamamos esse lugar, também. Pedi para ele explicar a situação. Não
sei se é muito inteligente reuni-los aqui com Cora e Nikolai com facilidade para
encontrá-la. E você o que fará?

Eu acendi um cigarro, senti o gosto adocicado da bebida e o olhei novamente


enquanto baforava fumaça mais uma vez. Disse honestamente:

— Eu não sei. Estou numa sinuca de bico como você deve ter percebido. Mas,
acho que as coisas ficariam melhores se você deixasse de lado essa ideia de me
ter como sua prisioneira.

— Você deve saber que estou mais inseguro agora do que estava antes sobre
você.

Eu lancei um olhar vazio pela janela seguindo a fumaça do cigarro, não sabia o
que pensar ou o que fazer, não entendia porque Lilith havia me colocado naquela
situação. Olhei de soslaio para ele, que parecia pensativo ao meu lado olhando
para fora.

— A vida está enlouquecendo novamente. - Cuspi as palavras junto com um


longo suspiro.

— Você não é obrigada a entrar nisso. - Sua voz soava calma.

— Não parece que a vida está me dando esse tipo de escolha. De toda forma,
temos um inimigo em comum, embora eu não posso alegar de que devo encarar
Azazel como inimigo. O que eu posso dizer decerto é de que meu pai não ficará

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nada feliz se eu me voltar contra Azazel e Lilith não ficará feliz se eu não ajudar
Cora. - Depositei um olhar apreensivo sobre ele e mordi o lábio inferior. — Se eu
ficar ao lado de Cora, posso contar com você? Admito que a briga será com
cachorro grande e que nossa chance é mínima.

— E podemos confiar um no outro?

— Eu só posso responder por mim. O que você me diz?

— Eu não sei o que pensar, Liese. Não entendo o motivo de você se voltar contra
a sua própria raça por causa de uma bruxa.

— Nem eu entendo. - Minha voz soou baixa como se eu mesma me recusasse


àquilo e me sentei descuidada sobre a cama.

— Estaria disposta a se revelar para os outros? Estaria disposta a nos dizer como
podemos destruir Azazel e qualquer outro da sua raça?

— Está me pedindo para lhe dizer como acabar comigo?

— Disse que a respeito de confiança poderia responder apenas por você mesma,
mas nesse caso não resta muito a não ser confiar em mim.

Eu poderia tentar resolver aquilo de outra maneira, talvez pudesse conversar com
meu pai e pedir para que ele intervisse para que Azazel não fizesse nada contra
Cora, embora soubesse que aquilo seria como assinar uma sentença de morte
para a moça, pois outros poderiam acabar com ela, já que tinha o poder e
conhecimento necessário para nos trazer para o mundo.

Apertei o copo entre minhas mãos, a verdade é que eles já deveriam saber do que
Cora era capaz e ficaria surpresa se não recebesse uma ordem para acabar com
ela se soubessem que estava comigo. Sem dirigir meu olhar, disse:

— Eu não sei exatamente como o ritual é feito, mas é necessário que haja um
ocultista ou bruxa com poder arcano suficiente para abrir um portal, um vórtice
de energia que é o responsável pela passagem. Evocação para nos trazer e
banimento para nos mandar embora. Acho que se quiser saber de todos os
detalhes é melhor falar com Cora.

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— Pode se revelar para Soren e os outros à noite?

Certamente o olhei com aflição, porque era assim que estava me sentindo naquele
momento. Eu sabia que aquilo não acabaria nada bem, especialmente para mim.
O passo que estava dando era largo demais, se tivesse como, pensaria que a vida
estava me empurrando para o meu melhor. Quando acreditava na força da vida
sempre tinha esse pensamento de que a vida traz todos os acontecimentos para o
nosso melhor.

Entretanto, estava confusa demais para acreditar na vida. Otimismo não ajudaria
em nada naquela situação. Poderia estar equivocada sobre muitas coisas, mas
decerto meu pai ficaria contra mim se não pudesse me controlar. Queria ligar
para Hedy, falar com ela, saber o que poderia me aconselhar naquela situação.
Mas, acho que me faria desistir.

— Sim. - Fiz uma pausa, tentando organizar meus pensamentos, até que eu disse
por fim: — Talvez devêssemos falar com Soren.

— O que exatamente diríamos a Soren?

— Ele é o líder, não é?

Ele riu.

— Não entendo porque está rindo. - Disse tempestuosa.

— Não entendo que não tenha percebido que esteve com o líder esse tempo todo.
Eles farão o que eu disser.

— Estou numa posição privilegiada então, porque você fará o que eu vou dizer.

Seu semblante expressava sua exasperação. Eu sorri:

— Eu não tenho a velocidade que vocês têm, então gostaria de ter um de vocês
comigo. Também não gostaria de manter tanto Cora ao meu lado, porque não sei
o quanto ela é esperta, mas não tenho muita escolha, é melhor que a mantenha
comigo, assim pode ser que Nikolai venha ao meu encontro. E agora sabendo que
você é o líder, é melhor não ficar com a gente.

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— Não pode me pedir isso.

— Tanto posso que o estou fazendo. Se Nikolai por algum motivo acredita que
tem que acabar com você e até trouxe Azazel por causa disso, não é sábio que
fique com Cora. Ela certamente bebeu do sangue dele.

— Não é justo que me peça isso. O risco me fascina, os momentos de infinitas


possibilidades, o que me desafia é o que me faz sentir vivo. E ele já deve saber
que estou com ela.

— De que vai adiantar ter a sua ajuda se você estiver morto? Qual a graça de
brincar de gato e rato se não quer se esconder?

— Eu gostaria que você me deixasse decidir isso por mim mesmo.

— Eu gostaria que você fizesse o que estou pedindo.

— Nos reuniremos à noite e podemos conversar melhor a respeito disso já que


teremos dormido e pensado melhor no que faremos.

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13 – O clã

Loïc guiou eu e Cora para um enorme galpão na vila, as portas enormes


acomodavam uma porta menor por onde passamos. Por mais que a aparência
externa não transmitisse nada além de um galpão abandonado, o interior era
ricamente decorado, a ânsia pelo belo e prazeroso parecia uma característica
comum a todos os vampiros.

O lugar tinha várias colunas de concreto, entretanto todas apresentavam


esculturas em relevo, em formas charmosas e abstratas. Havia várias mesas de
madeira espelhadas pelo lugar que estava cheio, exceto por mim, Cora e Eric,
todos eram vampiros.

Havia um palco, o que lembrava um teatro antigo, entretanto nesse palco estava
uma mesa de madeira grande, rústica e pesada, coberta por uma toalha
finamente trabalhada em bordados dourados num tecido vermelho sangue. E
justamente para essa mesa que Loïc nos guiou.

Não pude evitar perceber que todos me olhavam, embora seus rostos não
demonstrassem qualquer expressão. Apenas por vaidade olhei para o meu corpo,
parecia estar tudo bem com a minha calça em sarja preta e a frente única preta
de um tecido leve e translúcido que eu vestia. Estava confortável em mim mesma.

Logo que nos sentamos à mesa, Loïc e Cora ambos ao meu lado, uma vampira de
cabelo preto, liso e comprido esboçou-me um sorriso e me serviu vinho. Havia
algumas garrafas na mesa, coincidentemente um vermute bianco e conhaque,
mas havia também uísque e vinho. Eu agradeci e ela nos deixou. As bebidas
tratavam de uma delicadeza e meus olhos deitaram-se em Loïc por um instante.

Não demorou muito até que Soren e Yasmin juntaram-se a gente e o imprevisto
som de violino me fez virar. Maxius olhou para todos os presentes e como se
estivesse se apresentando para uma grande plateia, embora aquilo fosse acurado
de certo modo, ao lado de nossa mesa, se curvou e em seguida começou a tocar
seu violino.

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O som gentil e triste fez-me desviar o olhar do belo Maxius para Loïc novamente.
Teria ele visto os grandes mestres da música clássica se apresentando em algum
momento? Ele me olhou matreiro, com um discreto sorriso correndo pelo canto
da boca. Eu queria agradecê-lo, mas apenas toquei de leve sua mão fria e
delgada, a repuxando rapidamente e depositando sobre meu colo, enquanto me
virava novamente para Maxius e seu violino.

Jamais teria me ocorrido que Maxius tocasse violino e era belo enquanto se
balançava e fechava os olhos como que se a música o roubasse do mundo. O
violino era banhado às vezes por seus cabelos pretos, como uma seda negra que
tentasse envolver o instrumento. Era tão belo que eu estava estupefata.

Mas, senti sobre a minha a mão gelada e ele a apertou num contato intenso. E eu
pensei: "Obrigada", e senti seu dedo circulando em minha pele numa leve e
delicada massagem. Contudo, não me atrevi a olhá-lo, não naquele momento
onde a música me envolvia como um feitiço.

Quando ele terminou todos aplaudiram e assoviaram, ele agradeceu numa


reverência animada, colocou o violino sobre a nossa mesa e sentou-se. Logo
outros três vampiros também juntaram-se a nós. Duas mulheres e um homem,
que Loïc sussurrou em meu ouvido serem Valéria, Alisha e Arthur.

A vampira que me serviu anteriormente serviu taças com sangue para todos os
presentes e a música se fez presente, mais contemporânea e num volume não
muito alto.

— Há tanto tempo não fazemos isso, que admito estar emocionado. - Disse
Maxius.

— Você é muito sentimental, Maxius. - Disse Soren debochado.

— Ele é importante para manter o equilíbrio. Sem Maxius talvez estivéssemos já


todos loucos. - Yasmin se expressava de modo genuíno.

— Parece então que chegamos no momento que estávamos adiando por todo esse
tempo. - Os olhos de Arthur sustentavam um brilho lívido.

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Arthur não devia ter mais do que vinte anos quando foi transformado num
vampiro. O cabelo em louro escuro tinha um corte num estilo romano, os olhos
eram de um azul profundo e dramático, olhá-lo era como fitar o vazio para além
do oceano, sem nada além do ruído das ondas.

Observá-lo me fazia considerar algum tipo de regra para escolher as pessoas mais
bonitas para serem transformadas, ao menos aqueles que dividiam a mesa
comigo naquele momento pareciam confirmar a teoria. Embora eu soubesse que
era um modo vazio de se escolher.

— Antigamente – Loïc sussurrou em meu ouvido: — os mais belos eram


escolhidos sim com o propósito de que fossem um insulto ainda maior a Deus. -
Seu sorriso era ardiloso dando-lhe um aspecto sensual. — Havia toda uma
conotação de que os demônios éramos nós. Sem ofensa.

Ele riu e eu ri com ele. Havia brilho em seu olhar enquanto me explicava aquilo e
pela primeira vez eu tive a sensação de que ele me tratava como a uma amiga.

— Não que eu o tenha feito desse modo, embora Soren é bastante bonito. Mas,
não foi pela beleza, Soren era selvagem, encontrei-o na Irlanda, pilhando e
matando. Quando nos encontramos pela primeira vez, ele me perguntou sobre o
deus cristão, não fazia parte da sua crença pagã e eu falava a língua dele, então
encheu-me de perguntas e sua curiosidade me cativou.

Laço tão antigo me entristeceu, vi minha fragilidade como se estivesse olhando


para um copo de cristal. Não me lembrava de ter uma ligação tão longa e
profunda com ninguém. Eu os olhei, sim eles conversavam animadamente, se
conheciam há muito tempo, poderiam enumerar os defeitos e qualidades de cada
um deles.

Enquanto para mim tudo era sempre novo, ou ainda não existia, tudo precisava
de tempo e dedicação, de trabalho e cuidado. A solidão me perfurou como uma
adaga afiada, a senti não da forma com que a sentia sempre, com gratidão e a
sensação de ser abençoada, mas como uma maldição.

Para quem eu de fato era importante? Quem de fato sentiria minha falta ou
lutaria minha causa? E eu conhecia bem a resposta, tão bem que não queria
admitir para eu mesma.

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Talvez eu pudesse ter algum tipo de ligação daquela se pudesse me lembrar dela.
Quem poderia me dizer? E quando estive construindo uma relação de puro amor
e devoção com Heitor, ele morreu, a vida o roubou de mim, como que com seu
dedo em riste dissesse que eu não nasci para aquilo.

Olhei para Cora, ela conversava animadamente com Alisha, a vampira tinha o
cabelo em tom chocolate, volumoso e brilhante, a pele era macia e seus olhos
grandes e castanhos pareciam querer imitar o chocolate de seu cabelo. Cora
conversava como se a conhecesse há anos e vi qual era sua perdição em apenas
um minuto de observação, ela confiava rápido demais e se entregava na mesma
velocidade.

Não era a toa que não tivesse percebido desde o princípio o caráter de Nikolai e
como foi depois enganada e usada por ele. O destino das ingênuas. Contudo uma
amostra escancarada e gratuita da ausência da malícia em si mesma, não é fácil
reconhecer nos outros aquilo que não há dentro de nós mesmos.

— Eu ficarei com Liese.

Virei-me prontamente para Soren ao ouvi-lo anunciar aquilo. Seu olhar grave
caiu sobre meu rosto, tinha a impressão de que estava me inspecionando.

— Talvez Arthur devesse acompanhá-la. - Objetou Loïc: — Nikolai não o conhece.

— Nem ele conhece Nikolai. - Retrucou Soren.

— Arthur tem quase a minha idade.

"No mínimo uns dois mil anos, bem que eu queria ter essa idade com cara de vinte"
- Pensei.

— Mil e novecentos. - Ele disse e sorriu para mim.

— Consegue me ouvir? - Perguntei não conseguindo esconder minha surpresa.

Ele apenas sorriu. Eu segurei a mão de Loïc e lhe dirigi telepaticamente a


pergunta:

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— Você me disse que não conseguia entender quando eu pensava em som, por que
Arthur consegue?

— Porque isso é diferente para cada vampiro, nem todos nós temos os mesmos
poderes. - Ele sussurrou em meu ouvido. — Só vejo o que você pensa, não
entendo o som de seus pensamentos como que se você pensasse num idioma
estrangeiro e totalmente desconhecido por mim. Mas, não quer dizer que é da
mesma forma com ele.

— E o que você vai fazer? - Soren me olhava intensamente enquanto me


perguntava.

— Vou caçar Nikolai. Cora me entregou uma lista de todos os lugares que ele
costuma frequentar. Eric já me arrumou algumas estacas e uma besta. Espero
que flechas no coração faça um trabalho semelhante a estaca.

— Pode ser que funcione. - Soren assentiu.

— Quem ficará com Loïc? - Perguntei.

— Se Soren e Arthur estão indo com você, talvez eu, Maxius e Alisha devêssemos
ficar. Valéria poderia ficar com Cora.

— E os mutantes descerebrados? Nikolai pode não agir durante o dia, mas eu e


Azazel podemos. Nikolai é apenas uma questão de tempo, não é exatamente ele
quem me preocupa.

Eu não queria pensar os pensamentos que invadiam a minha mente, Arthur


ficaria ciente deles, mas eu estava preocupada, eu estava preocupada com os
vampiros. Percebi naquele momento que não era apenas por Cora, ou ao menos
não era mais apenas por ela. Eu estava preocupada com Loïc. Estava preocupada
com os outros.

O rosto belo de Arthur se redesenhou diante de mim, fitei-o de soslaio, ele me


encarava severo em seu rosto jovem e harmonioso. Deslizei a mão sobre a mesa,
como se o atrito de minha pele com o tecido pudesse me trazer de volta ao
momento, cessando meus pensamentos conturbados e aflitivos, agarrei o copo e
trouxe a bebida à boca.

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Eu não precisava mais de vinho. Virei toda a bebida para esvaziar o copo e fiz
minha mistura predileta. Eu sabia que matando Nikolai ficaria mais fácil para
nos escondermos de Azazel, mas precisávamos acabar com ele também em algum
momento.

— Talvez fosse mais coerente encontrarmos alguns ocultistas. - Disse Yasmin.

— Como os identificaremos? - Perguntou Maxius.

Loïc e Soren prontamente me olharam e tudo o que eu consegui fazer foi


gargalhar. Em um mês e minha vida estava de pernas pro ar. Eles não
precisavam me dizer o que estavam pensando quando me olharam. Ri, não sei se
apenas de mim mesma ou de desespero.

— Posso reconhecê-los, mas não quero mantê-los por perto, são perigosos para
mim.

— Falando em você. - Soren balançou a taça fazendo o líquido vermelho rodopiar


dentro dela. — Loïc nos informou que você se revelaria como uma prova de
confiança.

— O que querem que eu faça?

Loïc se levantou e segurou minha mão num convite para acompanhá-lo. Fomos
adiante parando próximo a beirada do palco. Os outros que estavam na mesa se
levantaram e se posicionaram ao nosso lado. Loïc levantou o braço e logo a
música parou. Ele disse:

— Essa noite, como há muito não fazíamos, eu reuni esse clã. Como nossos
líderes aqui presentes nesse palco comigo já informaram, estamos recebendo um
novo membro nesse clã. Sei que muitos não estão contentes com isso, fui
informado a respeito, mas como líder de vocês, eu peço um voto de confiança
mais uma vez. Ninguém aqui é obrigado a gostar do novo membro, mas são
obrigados a respeitá-lo e tratá-lo com dignidade. Isso nunca nos aconteceu antes,
mas estamos vivendo outro momento e precisamos nos adaptar como sempre
fizemos. Apresento-vos Liese de Vries, um demônio que nessa noite se torna uma
irmã para todos desse clã.

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Olhei nervosa para Loïc e ele balançou a cabeça. Abri minhas asas grandes e
negras e deixei que meus olhos brilhassem como fogo. Todos me olharam atônitos
e um silêncio lúgubre tomou conta do local. Admito que me senti desconcertada,
mas Yasmin tocou minhas asas esboçando um sorriso largo.

— É linda demais. - Ela disse. — Você pode voar com elas? Sei que parece
infantil, mas me parece tão surreal.

— Posso.

Logo me vi rodeada por vampiros tocando minhas asas, olhando-me curiosos


como se eu fosse algum tipo de boneca em exposição. Alguns mostravam os
caninos e faziam um chiado, como se estivessem prontos para me atacar, mas,
em geral, tocavam minhas asas com admiração e horror em seus rostos.

Não sei precisar quanto tempo fiquei nessa situação porque aquilo pareceu uma
eternidade. A pedido de Loïc, não escondi minhas asas como sempre fazia, sentei-
me a mesa de modo que minhas asas ficassem por cima do encosto da cadeira e
abri-las resultou em certa comoção novamente.

Definitivamente me sentia insegura, estava indo contra todas as regras, eu jamais


deveria mostrar minha verdadeira natureza para ninguém, ouvi isso tantas vezes,
que era impossível não sentir que estava fazendo algo errado. Sem tirar que a
exposição social estava me sufocando. Disse finalmente:

— Soren e Arthur ficarão comigo?

Ambos afirmaram com um balanço de cabeça.

— Alisha também. Ela se encarregará de aprisionar os ocultistas que você


identificar. - Disse Loïc.

— Certo. Então vamos dar um passeio. - Eu finalizei.

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14 – A caçada

Saíamos sempre com dois carros. Sempre eu, Soren e Cora em um e Alisha e
Arthur em outro. Nunca dormíamos no mesmo lugar e eu me sentia exausta, pois
que passava grande parte da noite acordada e não dormia de dia para cuidar da
segurança dos três vampiros que estavam comigo, enquanto esses dormiam o
sono da morte em seus caixões, sarcófagos ou criptas, dependia do lugar onde
descansávamos.

Pelo menos uma ou duas vezes na semana ficávamos em casa para que eu
pudesse dormir também o sono dos mortos e era verdadeiramente isso, nessas
noites eu chegava a dormir até onze horas seguidas. Entretanto, nos outros dias
se eu dormisse quatro horas, poderia me considerar uma pessoa com sorte.

Eu seguia a lista dos lugares que Nikolai frequentava – que Cora me entregara –
religiosamente, sempre nos separávamos quando estávamos nesses lugares,
especialmente aqueles que eram públicos e sociais. Admito que trabalhar em
equipe não era nada agradável, eu estava acostumada a fazer tudo sozinha e do
meu jeito e me cansava facilmente de nossas discussões sobre “o que poderia ser
melhor” ou sobre “o que estávamos fazendo de errado”.

Era um esforço sobre-humano o que eu fazia para me colocar numa posição


passiva e ouvir tudo o que os outros pensavam sobre o que estávamos fazendo.
Às vezes me sentia inclinada a concordar que várias cabeças pensavam melhor do
que uma, mas um comentário impertinente era o suficiente para eu voltar a
achar que aquilo era uma perda de tempo.

Nas últimas duas semanas, o tempo que deixei de ficar com Loïc como fazia, eu
passei a conhecê-los melhor e devo admitir que minha curiosidade sobre os
vampiros reergueu-se pujante. Entretanto, eu poderia dizer que não mais se
tratava de uma mera curiosidade, estava deslumbrada, sabia que podia gostar
deles, só não podia precisar o quanto.

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Havia um senso familiar entre eles, nada abertamente declarado, mas se
tratavam com respeito e cuidado, como se fossem irmãos ou amigos íntimos,
daqueles amigos que sabemos que podemos contar a qualquer momento.
Cuidavam um do outro, atenciosos, era intenso o modo como se importavam com
as necessidades do grupo, como se importavam com a necessidade de cada
indivíduo e o respeito com o qual tratavam as diferenças.

Não lhes cabia um sentimentalismo barato, não era isso, de sentimental não
havia nada. Eram as ações, sólidas e concisas, que mostravam o quanto se
importavam um com o outro. Se elogiavam às vezes, mas normalmente a base de
ironia, discutiam muito, debochavam com frequência um do outro, eram como
adolescentes velhos, sábios e ao mesmo tempo imaturos. Audaciosos e
imprevisíveis.

E havia algo terrivelmente humano neles. Como resquícios daquilo que foram um
dia ou como uma acentuação dramática do que eram. Não saberia explicar com
precisão, mas havia resquícios de humanidade em todos eles. E era Cora que as
realçava. Cora era nossa professora de humanidade em seu comportamento
despojado. Ela nos tratava com amor na maior parte do tempo, se esforçava para
entender nossa obscuridade, realçava o que tínhamos de bom, incentivava nossos
comportamentos humanizados. Era impossível não amá-la.

Não me recordo de nenhum momento onde Cora não tenha nos tratado como se
fôssemos iguais a ela, como se nada houvesse de diferente entre nós. Ela não
parecia perseguir um ideal de bondade superficial e tolo e nem pretendia
acreditar num mau absoluto ou em maldade intrínseca.

— Eu sempre duvidei de gente boazinha. - Ela dizia. — Não raro as pessoas que
se passam como boazinhas são as mais perigosas, são capazes das maiores
atrocidades, dos piores pecados e vendem uma mentira. O ser humano é
complexo e nele residem tanto bem quanto mal e é assim que deve ser. E vocês
não são diferentes. Ao menos eu espero.

Aparentemente não era a única que a amava e protegia, eles haviam se apegado a
ela também. Alisha especialmente, parecia uma mãe para Cora. Tinha o hábito de
sair para comprar coisas para Cora tão logo se levantava de seu caixão,
procurava agradá-la comprando comida que ela gostava, se preocupava com uma
alimentação balanceada, passou a ler livros sobre saúde e bem-estar, além de

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nutrição. Insistia para que Cora se exercitasse, escolhesse as opções nutricionais
mais saudáveis e a repreendia sempre que ela se excedia com bebidas alcoólicas.

Admito que achava aquilo aberrante. Era esdruxulo aquele sentimento maternal
que Alisha desenvolvia por Cora. E diante de meu espanto procurava não intervir
e nem dizia o que eu pensava sobre aquilo. Alisha era definitivamente maluca.

Arthur me era mais agradável e envolvente. Claro que isso tinha a ver com a
nossa parceria, apenas ele conseguia ouvir os pensamentos de todos, meus e de
Cora inclusos e assim ele se tornava o grande protetor do grupo. Ele podia nos
ouvir se estivéssemos no mesmo ambiente que ele. Combinamos então de que ele
ficaria observando minha mente quando estávamos em ação, poderia me
comunicar com ele se algo estivesse saindo do controle ou se Nikolai por acaso
aparecesse no lugar. Acho que todos nós fazíamos isso, para ser sincera, mas
fazia com que me sentisse mais próxima dele do que dos outros por causa disso.

Arthur não era de falar muito e muitas vezes quando o fazia era telepaticamente.
Facilmente dirigia sua voz para dentro de nossas cabeças e se eu não ficasse
atenta o suficiente podia facilmente confundir um pensamento dele como meu.
Era sutil e por isso mesmo agradável. Era tão gentil que era comum comprar café
para mim e trazer no momento em que me acordavam.

Agora era parte da minha rotina dormir junto com o sol. Tão logo os vampiros
despertavam, eu me jogava na cama para as minhas míseras quatro horas de
sono antes de sairmos em busca de Nikolai pela cidade.

Eu estava certamente experimentando algo completamente novo, nos últimos


dois anos não me lembro de interagir e conviver daquela maneira com ninguém
exceto por Hedy e Heitor, e ainda que dissesse que não me importava com eles
deliberadamente, sabia que estava mentindo. Eu me importava e me importar
com alguém era assustador.

Colocando precisamente, não me reconhecia. Não via Loïc havia duas semanas e
podia dizer que sentia falta dele, sentia falta de sua biblioteca, de seu fetiche por
vestidos, de sua petulância e até mesmo de seus registros confusos. Não tinha
nenhuma notícia dele e me questionava se estava bem.

100
Naquela noite Arthur me acordou como costumava, colocando sua mão
delicadamente sobre meu ombro e me balançando gentilmente. Sobre a mesa de
cabeceira estavam os copos de plásticos, cinco copos grandes de café, o suficiente
para trazer minha alma de volta para o corpo. Deixou-me solitária sem dizer uma
palavra tão logo me viu sentada sobre a cama, respeitava meu momento de
solidão pós despertar.

Delonguei-me em meu ritual, alguns goles de café, um cigarro queimando no


cinzeiro, uma leitura apressada na página do livro que estava lendo, banho e
roupas apropriadas. Para mais uma rodada de café morno, cigarros sobre o
cinzeiro e mais algumas passadas de olhos sobre as páginas do livro. Não estava
com o melhor humor, mas estava pronta.

Cora e Alisha conversavam animadamente sobre a novela que estavam


acompanhando pela televisão. Arqueei uma sobrancelha e me sentei ao lado de
Soren que se entretinha com uma revista. Lancei um olhar curioso sobre a revista
apenas para notar que lia sobre moda e contemplava as últimas tendências.
Estava explicado porque se vestia sempre tão bem.

— Loïc está cuidando dos três ocultistas que Alisha enviou. - Ele disse sem tirar
os olhos da revista.

— Falou com Loïc? - Perguntei curiosa.

— Cheguei há pouco tempo. Ele perguntou sobre você e quis saber se


encontramos Nikolai. Parece que está com o telefone grampeado e não está
querendo mais o usar.

Aquela não era uma notícia muito boa, nada boa por sinal. Eu mesma já tive
muitas de minhas vítimas grampeadas e isso era um sinal de que Azazel talvez
estivesse recebendo apoio. Eu não saberia precisar sobre a política de Loius de
Broglie, era a única cidade de Quantum que não estava sob o controle de
Schrödinger, mas não devia funcionar de modo tão distinto.

Peguei-me preocupada e ansiosa. Arthur certamente o percebeu, lançou-me um


olhar óbvio e sua voz terna rimbombou em minha mente: “Ele ficará bem”.

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— Eu já lhe disse, Loïc é o vampiro mais antigo que conhecemos, mesmo se seu
amigo seja poderoso, não é assim tão fácil quanto parece, não pegará Loïc sem
enfrentar uma boa briga. - Soren percebeu também, podia me sentir.

— Não quero ficar separada de Cora essa noite. - Disse Alisha. — Será que não
podemos rever isso? Ela ficará mais segura se ficar comigo.

— Vamos para onde hoje? Ou vão querer ficar rondando, indo de um lugar para
outro? - Perguntou Cora.

— Vamos para aquele bar no centro, o Thoughtless. - Arthur com sua voz baixa e
suave. — Estou certo de que ele ainda gosta de ir naquele lugar, pude sentir
quando estivemos lá semana passada.

— Acho arriscado ficar levando Cora para esses lugares. - Protestou Alisha. — É
mais seguro que ela fique em outro lugar. Ele vai suspeitar se a ver também, vai
saber que se trata de uma armadilha.

— Eu pensei nisso também. - Confessei. — Admito que não me sentia segura de


deixá-la sozinha com vocês. Mas, acho que seria melhor se eu fizesse isso
sozinha.

— Você sempre quer fazer tudo sozinha. - Queixou-se Cora.

— Eu sempre fiz tudo sozinha. - Contestei.

— Não é porque você sempre agiu de um jeito que não pode fazer de outra forma.
Eu confio em Alisha, ficarei bem com ela.

— Eu sei, querida. - Disse Alisha alisando os cachos de Cora.

— Eu e Liese vamos para o Thoughtless, vocês vão para algum lugar que ele não
frequentava tanto, qualquer um deles e tentem extrair o máximo de informação
que conseguirem. - Arthur sempre soava apaziguador.

Soren me entregou um celular que retirou do bolso, dizendo:

102
— Peguei esse para você, é novo e tem nossos telefones nele. Pode nos mandar
mensagem se precisar. Eu e Arthur já tínhamos discutido sobre essa separação
ontem, então dei um jeito de comprar um para você.

Tomei o aparelho em minha mão e pensei em Hedy. Sentia falta de minha irmã,
talvez ligasse para ela quando eles estivessem dormindo, ao menos para matar a
saudade que sentia. Era melhor que ela não soubesse no que eu estava envolvida,
não que não confiasse nela, mas não queria lhe trazer problemas.

— Nos encontramos na casa do lago antes do nascer do sol. Dormiremos lá hoje.


- Delineou Arthur.

Concordamos. Eu gostava da casa do lago, era o melhor lugar que tinha ficado
desde então em nossas perambulações. Era de Arthur. Entretanto, o que mais me
agradava era que ela ficava na margem do lago, erguida por vigas para alinhar-se
ao lago em tempo de cheia e enchentes, toda em madeira e extremamente
aconchegante. Ficaria feliz se fosse minha noite de folga para dormir feito uma
rainha naquela casa.

Cora parecia ressentida quando fitou-me. Eles estavam deixando a casa para ir a
outro bar, bem mais afastado do centro a oeste, era outro lugar que Nikolai ia,
mas não com muita frequência e se chamava Afável. Sempre me questionava o
que motivava as pessoas a dar nomes para coisas. Eu e Arthur partimos em
seguida depois de organizarmos a casa e colocarmos o lixo para fora.

103
15 – Thoughtless
Deixamos o carro alguns quarteirões longe do local, numa rua deserta e
residencial. Arthur foi antes que eu, sempre tomávamos o cuidado de não sermos
vistos juntos. Fiquei sentada no carro por um tempo, coloquei uma música
agradável e olhei para a foto de Nikolai que havia deixado no porta-luvas. Fosse o
que fosse, ele era bonito. Indiscutivelmente os loiros me atraíam.

Remexi em minha bolsa grande novamente, não cabia uma besta lá dentro, por
isso deixava as que Eric me dera no porta-malas. Eu tinha duas pistolas na
bolsa, não faria tanto dano a um vampiro certamente e por isso dividiam espaço
com minha adaga, que também não faria muito estrago. Era o mesmo que andar
desarmada, mas era melhor do que nada.

Percebi que nunca havia perguntado para eles se sentiam dor ou o que acontecia
se perdessem muito sangue. Imaginava que eles se recuperariam, a regeneração
dos vampiros era algo realmente surpreendente. Arthur havia me mostrado dias
atrás do que o sangue deles era capaz, quando cortei meu dedo abrindo uma lata
de cerveja e com uma pequena gota de seu sangue, fez o pequeno corte cicatrizar
em segundos. Não sei o que seria deles se os cientistas descobrissem a
propriedade medicinal desse sangue.

Segui pelas ruas desertas e vazias, apenas com a noite, a lua e o vento como
companhia. O celular era muito melhor do que o mapa que eu estava carregando
por todo aquele tempo, me guiava facilmente com o GPS. Era horrível admitir que
às vezes me pegava condicionada, aquele celular me dizia isso claramente, um
pouco mais de três semanas com Loïc e já estava adaptada, esquecendo-me
totalmente das facilidades tecnológicas.

A palavra Thoughtless brilhava e piscava vermelha num enorme painel de led. A


frente do bar era uma armação de madeira avermelhada sustentando vidro fumê,
dando assim a impressão de que havia apenas vidro, como também era a porta.
Uma banda de rock se apresentava no palco, onde várias pessoas, adultos jovens
em sua maioria, dançavam e balançavam a cabeleira.

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O andar de cima era reservado para mesas e não deixei de lançar um olhar para
Arthur quando passei por ele que se sentava rente ao longo balcão. Subi a escada
de madeira que dava no andar de cima e admito que era um ambiente acolhedor,
com suas mesas e cadeiras de madeira, com pessoas animadas conversando.

Sentei numa mesa ao lado do parapeito baixo, de lá conseguia ter uma boa visão
do andar de baixo e especialmente da porta de entrada. Pedi duas doses da
minha mistura favorita para o garçom, detestava ficar sendo importunada por
garçons e se passou tanto tempo que não pude contar os minutos.

A banda já havia terminado sua apresentação, as músicas tocavam aleatórias de


vários estilos de rock diferentes, as pessoas já alcoolizadas pareciam falar mais
alto, dançavam mais livremente e estavam despreocupadas. Confesso que estava
com sono e que daria tudo por uma cama macia. Mas, eu o vi, Nikolai e esbocei
um sorriso discreto quando ouvi a voz de Arthur confirmando em minha mente:

— Nikolai.

O doce descuido!

Observei que pelo caminho que estava tomando ele viria ao segundo andar.
Discrição era quase meu sobrenome, calculei o tempo, eu passaria ao lado da
escada para ir ao banheiro e era melhor que o fizesse para mudar de posição, já
que a cadeira que estava sentada me deixara de costas para o andar de cima. O
seduziria e informei isso a Arthur.

Senti-me triunfante quando passei ao lado dele, estava acompanhado por uma
mulher, uma humana, mas lancei-lhe um olhar tão sedutor e intenso que
percebeu. Era mais bonito pessoalmente do que na foto, o cabelo loiro caía oleoso
sobre o peito timidamente musculoso, despenteado como que se tivesse
balançado o cabelo e o jogado para trás. Seus lábios eram pequenos e rosados, os
dentes levemente separados emoldurados por um sorriso largo em reação ao que
a mulher provavelmente lhe dizia. Vestia uma regata preta que contrastava com a
lividez de sua pele e um kilt longo de couro, com botas de cano longo. Nos braços
tinha pulseiras, ou algo que o valha, em couro, que começavam nos punhos e
subiam ao longo do antebraço, terminando ligeiramente antes dos cotovelos, com
um cardaço preto que as fechavam trespassando entre orifícios metalizados.

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Aproveitei o banheiro para fazer o que era preciso e reforçar o batom, ajeitei meu
cabelo para ficar ainda mais atraente e sorri. Seria definitivamente mais divertido
do que eu pensava. Se conseguisse seduzi-lo como planejava, poderia saber
muito mais sobre Azazel e quem mais fosse que estivesse o ajudando. Sim, aquele
momento onde percebia que meu trabalho era adorável.

Retornei para minha mesa analisando antecipadamente qual seria a melhor


cadeira para me sentar de modo que eu pudesse o olhar. Ele se sentava de frente
para a minha mesa com a mulher morena ao seu lado, na terceira mesa ao lado
esquerdo da minha. Me sentaria de lado, dando uma visão tanto da parte inferior
do bar, tanto de onde ele estava, seria assim mais convincente.

Olhei-o de soslaio enquanto me sentava e esbocei um suave sorriso ao ver que me


observava. Eu desejava intensamente que a morena fosse apenas o jantar
daquela noite. Ela chamou o garçom para a mesa, uma deixa para encará-lo mais
uma vez e lhe esboçar um sorriso fingidamente tímido. Ele retribuiu discreto e
lascivo. Vampiros! Fiz um sinal para o garçom tão logo anotou o pedido da
morena e pedi outra bebida.

Tedioso era a precisa palavra para descrever o longo tempo que ficamos trocando
olhares e sorrisos sedutores e discretos. Não poderia simplesmente me sentar
com eles e colocar tudo a perder, ele desconfiaria. Tinha que me comportar como
uma moça desinteressada e interessada ao mesmo tempo, nada que eu não
pudesse fazer. Ao longo do tempo comunicava Arthur sobre o que estava
acontecendo e o que tinha em mente em fazer. Ele concordava.

Num determinado momento o casal surgiu logo atrás do garçom que me servia
novamente. Volúpia! Nos olhamos demoradamente e a mulher sorriu para mim,
retribuí e fiz sinal para se sentarem. Nikolai sentou-se diante de mim, dizendo:

— Seu cheiro!

Claro, eles me viam como se eu fosse um caviar de vampiros, já tinha me


acostumado com aquilo.

— Sim, o perfume dela é maravilhoso. - Disse a mulher.

Estendi a mão para ela, dizendo:

106
— Liese de Vries. E adoro perfume caro. - Sorri.

— Suzanne Evans. E esse é Nikolai Ilitch.

Estendi a mão para ele, que a tomou com delicadeza e a beijou. Eu disse
cravando meu olhar em seus olhos que belamente imitavam o cinzento do mar no
inverno:

— Encantada.

— Arrebatado.

Que voz! Entendia porque Cora morreu de amores por ele, era uma tentação, um
demônio da sedução. O jeito como me olhava, jogado na cadeira, brincando com a
mão no queixo glabro. Suzanne disparou a falar, nada que valesse muito a pena,
falava sobre um evento que havia acontecido com ela, mas nós dois nos
observávamos sem escrúpulos. Mordi o lábio inferior antes de sensualmente dar
mais um gole em minha bebida e lhe depositei um olhar provocante.

Ele se virou para ela cravando seus olhos agudamente nos dela. Estava a
enfeitiçando, já convivia há algum tempo com eles para saber disso com precisão.
Sua voz era doce, suave e quase um sussurro. Pedia gentilmente para que
Suzanne fosse embora e que jamais se lembrasse que esteve com ele. Aproveitei o
momento para informar Arthur, sabia que Nikolai não podia ler pensamentos,
parecia que era algo que apenas os vampiros muito velhos podiam fazer e não era
via de regra.

— Gosta de vampiros, Liese? - Ele me perguntou após ficar por um tempo vendo
Suzanne se afastar.

— Gosto do que é belo. - Sorri. Idônea.

Ele se levantou e sentou-se ao lado, passando o braço por cima do encosto de


minha cadeira. Senti o toque suave da pele de seu rosto em meu pescoço,
enquanto ele me cheirava lentamente. Beijou meu pescoço e afastou a cabeça,
dando assim espaço para me virar e o encarar. O sorriso era sombrio, mas não
destituído de beleza.

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— Onde ela foi? Não sei se vai gostar de nos ver tão próximos um do outro. - Até
eu admirava minha capacidade em mentir.

— Eu a dispensei. - Disse largando relaxado o corpo na cadeira. — Nunca te vi


antes.

— Sou de Schrödinger. Estou aqui a serviço.

— Isso explica. - Jogou o cabelo que incomodava o olho para trás, num gesto
apessoado e irresistível.

— Eu não sei o que poderia conversar com um vampiro, nunca encontrei com
nenhum em Schrödinger. Queria te impressionar, mas não sei como. - Havia
mais do que sedução em minha voz, eu sustentava o fogo do inferno em meus
olhos enquanto o encarava.

Ele se inclinou em minha direção novamente, encostando seus lábios gelados nos
meus:

— Já estou impressionado.

Aquela voz! Um múrmuro prazenteiro como o vento agitando as folhas, graciosa


como o ruído da água corrente e plácida. Que deus o havia desenhado? Que
divindade maligna planejara ser tão formoso e riscoso?

Enrosquei meus dedos em seus cabelos macios e perfumados por trás de sua
nuca, cravando meu olhar em seus lábios e em seguida fazendo-o escorrer
lentamente até seus olhos, apenas para inferir que ele encarava meus lábios
como um animal pronto para dar o bote. Senti seus dedos frios deslizando
frouxos sobre meu rosto e depois seu polegar pressionando levemente meus
lábios, enquanto os outros dedos acariciavam suavemente a maçã de meu rosto,
ao passo que seus olhos corriam apressados entre minha boca e olhos.

Tudo em minha volta pareceu desvanecer, como se houvéssemos apenas nós dois
suspensos no cosmo.

Seus lábios entreabertos eram convidativos, admito que ele era um poço de
imponência e magnetismo, quase podia me esquecer de que era insano,

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pressionei levemente meus lábios contra os dele, erguendo meu olhar para fitar o
infinito azul dos olhos sob as pálpebras preguiçosas que imploravam para se
fecharem. Ajeitou sutilmente o corpo, ficando completamente de frente para mim
e me virei para me acomodar de modo confortável.

O beijo ansioso brotou com uma explosão de sensações, sua língua acariciava a
minha na cavidade úmida e quente que se misturava com o gélido de seu corpo.
As mãos ágeis pareciam conhecer a pressão perfeita enquanto deslizavam
morosas e pacientes sobre minhas costas e pescoço. Seu perfume era como
sândalo, quente e envolvente e admito que o enlacei em meus braços sem o
menor desejo de soltá-lo.

“Admito que preferiria não saber que está gostando disso.” - A voz de Arthur em
minha mente quase me impulsionou ao riso. Mas, consinto que gostava de seu
olhar sedento sobre meu rosto, as mordidas leves nos próprios lábios e a maneira
como me acariciava ávido.

Malditos vampiros sedutores!

Eu o desejava.

— Soren está vindo me buscar, fique com o carro e não marque nada para hoje à
noite. Já que sua loucura deu certo é melhor seguirmos com cuidado redobrado.

Assenti. Sorte que Arthur estava tão concentrado em minha mente que eu não
precisava de esforço para que ele soubesse de minhas intenções, tinha apenas
que falar mentalmente, como num monólogo interno e Nikolai sequer percebeu.

Entre carícias e beijos, nos envolvemos numa conversa casual. Falávamos em


grande parte sobre música e outras frivolidades. Tínhamos gostos semelhantes e,
bem, era charmoso e cativante.

Inesperadamente me sentia bem com ele, era divertido e descontraído. Sua fala
era contundente, eloquente e prudente, nada em seu comportamento denunciava
a sua loucura e hostilidade. Nenhum pensamento maléfico ou torpe. A beldade
não era hostil de forma alguma. Era carinhoso e parecia se deliciar com o tato,
perdi as contas de quantas vezes senti seus dedos deslizando sobre minha pele e
seus pensamentos invadindo minha cabeça.

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Havia suavidade e energia em seus gestos. Profundidade em suas opiniões.
Harmonia em seu temperamento. Nada, absolutamente nada, expressava
desarranjo e loucura. Nenhum desvario. Nenhum traço de perversidade. E não
era como se estivesse encenando, não, era espontâneo e sereno.

A dúvida saltou em meu interior como uma pontada.

O celular revelou-me que logo o sol nasceria no momento em que trocamos


nossos números. Disse que queria me ver novamente e me deixou após um beijo
úmido e demorado. Pedi outra bebida.

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16 – Montando o palco

Cora e Alisha invadiam o apartamento com minhas malas e muito barulho, riam
desmedidamente, trombando uma contra a outra como se estivessem bêbadas e
incapazes de manterem o equilíbrio do corpo. Soren ajuntava os cacos de vidro do
vaso grande que havia quebrado me revelando o barulho horrível que havia me
acordado assustada e que me fizera ir até a sala onde estavam.

Arrastei-me para a pequena cozinha ainda zonza de sono, amarrando


corretamente o penhoar, buscando por cafeína, mas nada ali havia exceto água e
foi o que bebi. Joguei-me no sofá tenro, afundando-me e coloquei os pés sobre a
pequena mesa de centro.

Cora sentou-se ao meu lado analisando-me, conferindo se era possível, através de


minhas feições, a conversa. Todos já sabiam como eu acordava e para o próprio
conforto e bem-estar evitavam falar comigo tão logo eu despertava. Via aquilo
como um tipo de carinho e proteção, deixava me confortável.

— Arthur nos contou sobre o que aconteceu essa madruga. - Referia-se a Nikolai.

Fitei-a como uma forma de dizer para prosseguir.

— Não o amo mais e nem me importo com quem ele saia, nem me importo que
essa pessoa seja você.

Ela sentou-se apertando um joelho contra o outro e olhando para as mãos.

— Tenho medo do que ele possa fazer com você. Ele é gentil, é impossível não
gostar dele. Não permita que ele te faça esquecer o motivo pelo qual você está
fazendo isso.

Minha atenção recaiu sobre a porta quando essa se abriu com Arthur a empurrar
com o pé enquanto equilibrava a bandeja de isopor na qual estavam meus copos
de café e sorri para ele, como se fosse um anjo que viesse do céu para me salvar.

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Ele chutou a porta para fechá-la com um estrondo e sorriu colocando a bandeja
sobre meu colo.

Beberiquei um pouco da bebida que fumegava deliciosa e convidativa, dizendo:

— Não é comigo que você devia se preocupar. O questionamento, a divergência, a


desconfiança e a vontade de troçar são sinais de saúde e nesse sentido pode me
considerar uma pessoa muito saudável. É com a facilidade com a qual se entrega
que devia se preocupar.

Olhou-me estarrecida.

— Não será a gentileza dele que mexerá com o meu ego. - Analisei-a. — Não
compreendo sua preocupação.

— Vampiros são estruturados em sedução, não são confiáveis. - Virou-se para os


outros com as mãos erguidas. — Sem ofensas. E Nikolai é mestre nisso.

— Ela está com medo de que você venha a se apaixonar por Nikolai. - Alegou
Alisha.

— Viável. - Manifestou-se Arthur.

Lancei-lhe um olhar fulminante e estava pronta para lhe dizer algum ultraje
quando o celular vibrou no bolso largo do penhoar felpudo. Abri e notei a
mensagem de Nikolai: “Acordei e assim, de repente, percebi que não paro de
pensar em você. Quando nos veremos novamente?”. Sem qualquer expressão
digitei um texto rápido: “Podemos nos ver amanhã à noite?”. Cora olhou para o
celular, sim ela tinha lido e sacudiu a cabeça involuntariamente dirigindo-se para
um dos quartos.

— Tem certeza que ficará bem aqui sozinha? - Perguntou Arthur.

— É seu plano, Arthur. - Proferi. — Tenho que ter uma residência fixa se quero
convencê-lo de que não tenho nada a ver com vocês e Cora. - Fiz uma pausa. —
Estou preocupada com Cora. Por que sinto que ela ainda gosta dele?

— Talvez ela ainda goste. Embora esteja certa que é melhor ficar longe dele.

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Sabia que podia confiar em Arthur, ele sabia sobre tudo o que se passava com a
gente, nossos pensamentos, nossos sentimentos e nossos desejos mais íntimos. O
celular vibrou novamente junto com a voz de Soren que dizia:

— Se queremos acabar com o mal pela raiz acho que esse é melhor modo. Se
Nikolai confiar em Liese ele se revelará facilmente.

“Posso te levar para jantar? O Rigbs é um restaurante interessante e


aconchegante.”

— Rigbs?

— É um restaurante aqui no centro. - Respondeu Alisha.

“Que horas?” - Digitei em retorno.

— Por que um vampiro me levaria para um restaurante? - Pensei em voz alta.

— Piegas! - Deflagrou Soren.

Ri.

"20 horas, sem atraso, não suporto esperar.".

Franqueza jamais deveria ser entendida como rudeza. Um ponto positivo no meu
livro imaginário de bom comportamento, eu sempre entenderia franqueza como a
coragem da verdade.

— Eu devia ficar preocupada com vocês como estou?

— Por que se preocupa? - Perguntou Alisha em sua comum meiguice.

— Porque não estarei lá para protegê-los.

— Continuaremos dormindo num lugar diferente a cada dia e não se livrará da


gente assim tão facilmente. Eu continuarei indo para os lugares que você for,
sempre tomando a precaução em não ser visto. Tanto eu quanto você temos a
vantagem de não sermos conhecidos por Nikolai.

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— Seria bom que você saísse amanhã para fazer umas compras e deixar esse
lugar com cara de apartamento de humano. Se o receber aqui do modo como
está, ele identificará como a casa de um vampiro facilmente. - Anunciou Soren.

A parede de vidro com sua porta corrediça que dava para a sacada do
apartamento dava um acabamento bonito e luminosidade para a sala. As paredes
eram claras, os móveis modernos e escuros. Os abajures de chão davam charme
ao ambiente e era um lugar que eu escolheria para viver facilmente.

Contudo, entendia o que Soren me pedia, era tão elegante e impessoal como um
quarto de hotel e necessitava urgentemente de um pouco de pessoalidade.

Eles não se alongaram muito naquela noite.

No dia seguinte, devidamente descansada, almocei num restaurante e deliciei-me


comprando as mais diversas coisas, quadros, livros novos e usados, duas
pequenas estátuas de deuses, um aquário, terminando com o que eu mais
detestava, o supermercado.

Passei o restante da tarde montando o aquário, depois decidindo os melhores


lugares para pendurar as réplicas de Nymphéas de Monet que comprara, coloquei
uma estátua no canto da sala, outra em meu quarto. No segundo quarto criei
uma espécie de escritório, organizando os livros novos e usados numa estante
alta, deixando o notebook sobre a mesa.

As horas corriam afobadas, enquanto eu mal tinha conseguido guardar todos os


utensílios de cozinha que comprara e sequer tinha organizado minha adega. O
alcoolismo era evidentemente a razão de minha sanidade.

Eu não poderia me atrasar.

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17 – Agridoce

A noite estava fria, o outono já começava a anunciar o inverno e a noite pedia ao


menos um saharienne creme, uma sobrepele marrom escuro, um cachecol da
mesma cor numa tonalidade levemente diferente e uma calça skinny preta. A
maquiagem era suave e bem, sinceramente, se eu fosse um homem me convidaria
para sair.

Cheguei alguns minutos adiantada e entrei, ele provavelmente teria reservado a


mesa. E sim, Nikolai havia o feito. O garçom me guiou até a mesa num mezanino
reservado. O lugar era clássico, elegante e confortável. A iluminação numa
tonalidade amarela passava a sensação de calor, com lustres de parede em cristal
e plantas e flores espalhadas por toda parte. As mesas confortáveis cobertas por
belíssimas toalhas amarelas e a música instrumental num volume agradável, era
um deleite aos sentidos.

Enquanto escolhia o prato, me deliciei com pães e gressinos, recém-assados,


crocantes e uma deliciosa surpresa de queijo, acompanhados de um vinho
branco. Nesse momento o vi num trench coat preto aberto, com o colete preto
abotoado sobre a camisa branca, calça de couro e botas. Confesso que meu olhar
era abobalhado, era impossível não parecer repetitiva, ele estava notável e era
estonteantemente lindo.

O toque gelado de sua mão sobre meu pescoço, o perfume agradável que me
entorpecia, o cabelo sedoso que caia sobre meu ombro, os lábios frios
pressionando os meus num beijo discreto e a voz aveludada que me chegava ao
ouvido melodiosa, era no mínimo perturbador:

— Estou contente em te encontrar novamente. - Examinou-me.

Sorri acariciando seu rosto. O garçom parou ao meu lado para que fizesse o
pedido e senti aquilo como um alívio, estava inusitadamente tensa. Assim que fiz
o pedido e ele pediu por um vinho tinto, provavelmente para encenar, eu disse:

115
— Achei que ficar bem alimentada fosse um pré-requisito para a noite, mas
admito que não me sinto muito confortável ficando entre pessoas sóbrias por
muito tempo.

Seu riso demonstrou, claramente, seu divertimento.

— Então prefere os loucos?

— Definitivamente. Em meio aos loucos eu sou apenas mais uma. - Esbocei um


sorriso dúbio. — Haveria mais sinceridade se eu dissesse que sou antissocial.
Não exatamente no sentido de que sou contra a organização da sociedade, apenas
me incomoda o contato direto com outras pessoas.

— Isso me inclui? - Disparou despreocupado.

— Até o momento não, mas não posso garantir que será sempre assim.

— Provocador. Do que mais preciso saber?

— Não deve sob hipótese alguma se alimentar de mim.

— Desafiador.

— Imprescindível. Do contrário esse jantar será a última coisa que faremos


juntos.

— Além de restaurante e dieta mais alguma restrição?

Não pude deixar de rir. Ele me puxou contra seu corpo beijando meu pescoço de
forma tão espontânea e abrupta, que tive que me equilibrar para não cair em
cima dele. Sussurrou em meu ouvido:

— Prometo que jamais vou me encontrar com você esfomeado.

— Não me importo que se alimente quando estiver comigo, só que não se


alimente de mim.

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— Espera. - Ele endireitou a coluna ficando numa postura impecavelmente ereta.
— É impressão minha ou estamos planejando o futuro?

— Não sei, mas até o momento você esteve concordando.

Ele riu.

— É agradável pensar que nos encontraremos mais vezes.

Balancei a cabeça em concordância.

Era estranho vê-lo ao meu lado me olhando comer, não que isso me fosse novo,
não, mas o modo como me observava, como se analisasse cuidadosamente cada
movimento meu. Às vezes soltava algum comentário divertido, contudo, na maior
parte do tempo ficava imóvel e calado, como quem analisa uma ameba no
microscópio.

Fora um alívio deixar o restaurante. Concordei em ir para a casa dele, deixei que
dirigisse meu carro, já que informou que não usou nada além de seu corpo e
velocidade para chegar ao restaurante. Conversávamos sobre banalidades,
política, a situação em Schrödinger e Louis de Broglie, refletíamos sobre o clima,
do que gostávamos e do que detestávamos.

Não era uma viagem longa, cerca de vinte minutos e eu já estava diante de sua
casa. Logo que entramos pela porta da frente deparei-me com um ateliê. Havia
telas espalhadas – a técnica – pintura a óleo. O cheiro de tinta era intenso como
se houvesse algum quadro fresco. Ele retirou meu casaco e o pendurou num
mancebo junto com o dele ao lado da porta e enquanto fazia isso me aproximei
dos quadros.

— Não me disse que pintava. - Falei.

— Não achei importante dizer, você veria num momento ou outro. Quer beber
alguma coisa?

— Sim.

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Ele fez um sinal para que eu o acompanhasse e adentramos noutra sala grande,
as paredes de vidro mostravam o quintal arborizado e verde, havia apenas um
sofá comprido que mais parecia um divã, um piano e um bar.

— Alguma preferência?

— Conhaque com um terço de vermute bianco.

— Seu preferido? - Perguntou enquanto preparava.

Concordei. Caminhei até o piano grande e preto, levantei a tampa e deslizei meus
dedos sobre as teclas, dizendo:

— Vai tocar alguma coisa para mim?

Ele me entregou a bebida, dizendo:

— Espero que goste de música clássica.

Sentou-se e sem muito preparo começou a tocar Spring Waltz de Chopin. Ao


passo que seus dedos deslizavam sobre o teclado, sentei-me ao seu lado no banco
comprido e como se a música pudesse brotar por si mesma, sem necessitar de
sua atenção, seu olhar caiu sobre meu rosto por um momento.

Queria que soubesse o quanto eu gostava de Chopin e do quão feliz foi em sua
escolha. A música era como ondas inundando aquele ambiente amplo e vazio,
fazia vibrar meu corpo, o cabelo sempre com aquele aspecto bonito e despenteado
caiam-lhe delicados, ao passo que se movimentava como que se música tivesse
total controle sobre seu corpo e entre seus suaves movimentos, cravava seus
olhos em mim como se a música não mais dependesse dele para existir de tempos
em tempos.

Quando terminou de tocar, deixou as mãos repousarem frágeis sobre o piano,


dizendo:

— Sempre que toco tenho a sensação que a música expressa com precisão tudo
aquilo que não conseguimos colocar em palavras. - Ele acariciou meu rosto,
aproximando lentamente sua boca da minha, com o olhar lânguido. — Acho que

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o toque também usa uma linguagem semelhante, o linguajar mudo dos gestos, as
frases precisas do olhar. Falam mais de nossas almas do que as palavras.

Estávamos tão próximos que eu podia sentir seu hálito.

— O que minha alma te diz? - Sussurrei.

— Que eu preciso te ensinar a deixar de ter medo.

Eu levei alguns segundos para compreender o que estava dizendo e embora eu


sentisse que tivesse o compreendido, pude apenas ocupar-me da sensação que
seus lábios produziam ao apertar os meus, a língua fria e úmida que acariciava
minha quentura vagarosamente. Não, não queria pensar em coisa alguma, eu
queria apenas sentir, me entregar, ensandecer.

Enlaçou as mãos sobre minha cintura e se levantou levando meu corpo junto ao
dele. Em pé estávamos verdadeiramente mais confortáveis, mantive meus olhos
semicerrados, apenas pelo prazer de olhar seu rosto gracioso, seus olhos que se
abriam de tempos em tempos para devorar meus lábios em conjunto com sua
boca.

Não, não queria pensar no que estávamos fazendo. No que eu estava fazendo. Ele
não tinha usado qualquer tipo de feitiço, não tinha tentado dominar a minha
vontade e nem usou qualquer tipo de poder sedutor, senão a sua naturalidade.
Eu estava perigosamente entregue, despindo-me da minha frieza com o fogo do
desejo primitivo.

Ele me afastou para me encarar novamente, como um caçador que observa


atentamente sua presa. Não havia pressa em seus movimentos quando retirou
meu cachecol. Os pensamentos desvanecidos, estava inerte, permitia que ele me
beijasse uma, duas, três vezes… Guiando meu corpo cego para o sofá, onde me
deitou, não me dando tempo para contestar, embora contestar estava longe do
desejo que sentia.

Não, nós não mais precisávamos de palavras. Minhas mãos ágeis desabotoou os
botões de seu colete e depois de sua camisa, retirando ambos. Eu não sabia dizer
se era o modo como ele me olhava, ou sua boca macia massageando a minha, se
era o seu toque frio, a mão firme que me despia morosamente, ou o desejo que

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agitava meu sangue, algo era irrevogavelmente singular. O modo como eu me
sentia era díspar.

Sentir! O problema era esse, eu sentia. Era insólito, não apenas libido, era afeto.

Aquilo me assustou e muito. Num gesto descortês coloquei minhas mãos sobre
seu peito nu e o empurrei. Encarou-me plácido, com seu cabelo caindo e
acariciando meu rosto.

— Não, não agora. - Balbuciei.

Ele sorriu e tão rápido quanto um piscar de olhos senti seus lábios pressionando
os meus novamente, sua respiração emitia um som suave que parecia ter um
efeito calmante sobre mim. Ele beijou então meu pescoço e num tom baixo,
sussurrou em meu ouvido, enquanto acariciava minha orelha com seus lábios:

— Não farei nada que você não queira. Ainda que eu não compreenda.

A tensão se dissipou e meus músculos relaxaram. Ele se deitou ao meu lado


passando o braço abaixo de meu pescoço e trazendo meu corpo contra o dele.
Sua pele parecia aquecer-se em contato direto com a minha, o prazer contínuo de
senti-lo tão próximo de meu peito. Ele acariciava meu cabelo quando disse:

— Vai me dizer por que? Vai me contar o que passou em sua mente que a fez
sentir-se repentinamente tão assustada?

— Não. - Respondi veemente.

— Por que? - Ele inclinou a cabeça para me olhar. — Tem medo do meu
julgamento?

— Não. Apenas acredito que ainda não chegamos nesse nível de intimidade.

Ele segurou meu queixo e ergueu minha cabeça delicadamente, até seus lábios
alcançarem os meus novamente, dizendo:

— Tudo o que um vampiro tem é tempo.

120
18 – Enternecimento

Uma semana se passara desde que eu e Nikolai fomos ao restaurante e depois


tocou piano para mim, uma noite que admito não sair de minha cabeça grande
parte do tempo. Nos encontramos mais duas vezes depois disso, em momentos
menos voluptuosos como aquele em que quase transamos, mas não menos
sensuais.

Eu respirava o ar frio da noite, enquanto a música que estrondeava em meus


ouvidos parecia jogar um pó mágico trazendo encanto aos carros que corriam de
um lado para o outro pela avenida, os sons silenciados do mundo pelo prazer da
harmonia melodiosa que apenas eu podia ouvir, graças a tecnologia.

Enfiei as mãos nos bolsos do meu casaco, enquanto minha mente em deleite
fantasiava encontros, redesenhava sentidos, criava novas filosofias, mesclando-se
com o que meus olhos me diziam ser o que havia de mais real, as pessoas que
passavam por mim na calçada apertando seus casacos e passos como uma forma
de se proteger do frio, apressadas para o descanso merecido.

As portas dos comércios se fechavam dando espaço para a escuridão que lutava
contra a luminosidade pública, assim como meus devaneios lutavam contra a
veracidade que meus olhos denunciavam. O estado de magia e deleite que eu
sentia na companhia de mim mesma.

Quis lutar quando sua imagem surgiu em minha mente, belo em seu rosto lívido,
seus olhos como um mar amortecido pelo inverno, seus gestos apessoados e
sensuais, sua fala aveludada, o toque gentil de suas mãos. O que Nikolai estava
fazendo em meu sonhar acordado?

Convidei a noite para me fazer companhia, estava feliz em estar sozinha, sequer
sabia descrever o quanto. Eu não tinha um momento comigo mesma desde que
cheguei a Louis de Broglie e amava aquela sensação de liberdade, livre de
qualquer responsabilidade ou obrigação, ao menos por um momento, um
momento de profundo amor-próprio e íntimo contato comigo mesma.

121
Deparei-me com o letreiro do Thoughtless piscando vermelho, convidava-me para
uma bebida e algumas lembranças. Entrei descuidada e me aconcheguei num
dos bancos do balcão. Escolhi algo diferente numa brincadeira cândida com o
menu.

A música era deleitável, o ambiente jovial e as horas se escorreram sem que eu


me apercebesse delas. O torpor aprazível que a bebida me proporcionava, o
divertimento em me negar conversar com os homens e mulheres que me
abordavam ocasionalmente, foram me roubados por mãos frias que cobriram
meus olhos.

“Não esperava a encontrar essa noite”. - Seus pensamentos o denunciavam,


embora Nikolai não soubesse disso. E para realçar sua ignorância, deixei minhas
mãos correrem pelos seus braços num esforço de encontrar o rosto que ele fazia
questão de afastar de meu alcance. E os segundos rolaram sobre a brincadeira.

Os braços despencaram sobre meu colo num abraço sufocante, enquanto


pressionava-me contra seu corpo, o perfume que me envolvia numa sensação
revigorante, o beijo em meu pescoço que eriçava os pelos do corpo. Virei o rosto
para tocar com meus lábios a boca sôfrega pela minha.

Não havia espaço para ele onde eu estava sentada, então levantei carregando o
copo comigo. O fulgor de seus olhos num sorriso crescente e espontâneo.

— Não sabe o quanto estou feliz em te encontrar aqui. Não respondeu a


mensagem que lhe enviei mais cedo.

— Desculpa, eu não a vi. - E não tinha visto mesmo, deixei o celular no


silencioso.

— Tudo bem. Eu estava apenas te convidando para jantar em minha casa.

— Jantar? - Ri. — Na sua casa? - Impossível esconder o choque.

— Tive tempo o suficiente para pensar sobre aquele restaurante e me ocorreu ser
sensato o esforço para me redimir.

— Não há a menor necessidade em se preocupar com isso. - Eu sorria.

122
— Lembra que quando nos conhecemos você disse que queria me impressionar,
mas não sabia como? Não me sinto diferente.

Admito que ficaria envergonhada se alguém visse a expressão idiota que se


estampava em meu rosto. Enlaçou minha cintura com um braço, enquanto que o
outro escorreu numa carícia cadenciada entre meu rosto e pescoço, afagando
meu cabelo em conjunto, dizendo:

— É sensato não evitar o prazer, é ele que nos dá a completude necessária para
deixarmos a vida quando as circunstâncias nos obrigam sem dever coisa alguma
a suprema existência. - Ele queria me impressionar.

Eu lhe responderia algo se um moço não tivesse me interrompido, tocando


levemente o ombro de Nikolai e chamando pelo seu nome. Abandonou-me por um
momento para receber o rapaz num cumprimento caloroso e receptivo, passando
rapidamente o braço sobre meus ombros e me apresentando para o jovem.

O humano devia ter cerca de vinte e cinco anos, os olhos castanhos e curiosos me
examinavam dos pés a cabeça. Admito que me senti tentada a tocá-lo apenas
para saber o que se passava em sua mente, o que se revelou desnecessário em
seguida quando esticou a mão para um aperto. Pensava sobre minha aparência e
sobre o quanto achava o amigo sortudo.

Amigo?

— Alugamos um novo estúdio. - Ele disse. — Está a fim de tocar com a gente essa
semana? Um ensaio desinteressado com covers e diversão.

— Claro. - Nikolai respondeu.

Envolveram-se numa breve conversa casual, da qual eu fazia questão em


observar e analisar cada palavra dita. Conversavam como se fossem amigos há
bastante tempo e nada condizia com o que Loïc havia me dito sobre ele detestar
humanos e querer exterminá-los.

Não, a conversa denotava que se divertiram muito juntos e que estavam


inclinados a repetirem aquilo mais vezes. Confusão não descrevia o estado que

123
me encontrava, estava além disso. Estava perplexa e desorientada, movida pelo
meu caos interior, fui ao balcão pedir outra bebida.

Entrelacei meus dedos com as mãos sobre o balcão enquanto esperava o


bartender preparar minha bebida, elas expressavam abertamente a agitação que
se formava em meu interior. Em seguida, já com a bebida em mãos, retornei para
Nikolai que me esperava solitário. Ele sorriu.

— Então, vai aceitar jantar em minha casa?

— Por que não? - Sorri procurando esconder minha perturbação.

Sorriu satisfeito e me envolveu em conversas triviais enquanto esperava que eu


esvaziasse meu copo. Estava novamente sem carro e caminhamos até o prédio
que eu morava no centro, para pegarmos o meu para nos dirigirmos à sua casa.

Admito que o que veio a seguir não amenizou minha inquietação. Nikolai havia
comprado todos os ingredientes e vestindo um avental obviamente novo,
preparava a comida em sua cozinha impecavelmente limpa e que denotava seu
comum desuso. Compenetrado seguindo a receita que uma mulher apresentava
através de um notebook, não conversava muito comigo, mas fazia questão de me
servir vinho eventualmente.

Parecia se divertir com sua falta de habilidade com a cozinha e eu mesma me


pegava rindo ocasionalmente. Às vezes me fazia provar o molho, ele não levava
absolutamente nada a boca e parecia sempre preocupado quando a receita
sugeria que o sal era a gosto.

O que eu poderia dizer? Eu estava estarrecida. Num misto de assombro e riso


diante do absurdo que aquilo se apresentava.

Serviu-me num prato bonito e sentando-se diante de mim, novamente com


aquela expressão de usar um microscópio, esperou ansioso para que eu dissesse
se estava bom. E sim, estava. O salmão grelhado ao molho de alcaparras que
havia me servido com alguns cogumelos e batatinhas com manteiga de limão e
alho crocante estava delicioso e pareceu satisfeito.

— Acho estranho que tenha uma cozinha em sua casa. - Disse enquanto comia.

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— Acabei me acostumando com cozinhas. - Respondeu displicente. — Minha ex-
namorada humana precisava de uma e alguns amigos também se divertiam nela.
Sempre me ajudou a parecer humanizado.

— Parecer humano é importante para você? - Perguntei curiosa.

— Não necessariamente. - Falou relaxando-se na cadeira. — Em comparação a


outros vampiros eu sou bastante descuidado. Não me importo que saibam que
sou vampiro.

— Isso não é perigoso? - Servi-me de mais vinho branco. — Digo, os humanos


devem saber ao menos que são seu prato principal.

Ele riu.

— São, é verdade. Mas, não me oferecem perigo. Não tenho motivos para me
preocupar com isso. Tudo o que eu posso dar ao mundo é música, algumas belas
pinturas, morte e um toque de obscuridade. Os humanos que transformaram o
mundo num lugar mais interessante, cheio de confortos que há séculos sequer
podíamos imaginar e prazeres inigualáveis. Um devotado ao prazer como eu não
pode negar o desenvolvimento humano.

Eu o toquei rapidamente, precisava saber o que se passava em sua mente,


precisava saber se o que dizia era verdadeiro. Se os humanos não eram algo que
ele queria exterminar, ao menos. E sim, o que pensava condizia com o que dizia e
como me lançou um olhar pasmo, eu disse:

— Temo que alguém faça algo contra você. - Ótimo, soava como a preocupação
que sentia diante da discordância de comportamento que esperava dele.

— Já sou assim tão importante para você?

Seu olhar era divertido e ri enquanto recostava no encosto da cadeira, voltando a


me deliciar com a comida.

— Não. Se é sinceridade o que espera. E nem sei se quero que o tempo te


transforme em algo importante para mim. Ainda assim quero correr esse risco.

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— Um pouco de romantismo lhe cairia bem.

Limpei a boca com o guardanapo, levantei-me puxando a mesa e sentei-me sobre


suas pernas, entrelaçando meus braços ao redor de seu pescoço e dizendo:

— Acredite, eu estou sendo romântica.

Observei uma pequena mancha negra no azul de sua íris como se fosse uma
pintinha, enquanto seus olhos fitavam meus lábios ao passo que os beijava
suavemente, dizendo:

— Quando estamos juntos, tenho a sensação de que você é intratável, mas em


vez de seguir a sensatez, prefiro o incitamento do risco e a agitação da incerteza.
Não é romântica nem de longe, mas é altamente provocante e me deixa curioso
quanto a minha habilidade de fazê-la se apaixonar por mim.

— Não acha presunçoso acreditar que pode fazer com que alguém sinta algo
específico por você?

— Se não houvesse sequer a probabilidade você não estaria em meu colo agora.

Ele realmente esperava por isso, ao menos eram o que as imagens de seus
pensamentos me diziam naquele momento e não estava inclinado a me enfeitiçar
ou usar qualquer um de seus poderes de vampiro. Eu procurava ser o mais
natural possível, sentir as emoções das pessoas parecia ser natural para
qualquer vampiro, Nikolai não era exceção. Não podia ser descoberta.

Entretanto o que sentia era condizente com o momento, admito. Embora


estivesse confusa e inquieta com as revelações daquela noite e com o suposto
amor pela humanidade que Nikolai demonstrava sentir, contradizendo Loïc, me
sentia bem com ele e me sentir bem era suficiente.

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19 – Caminhos

Eu e Nikolai nos encontramos mais algumas vezes depois daquela noite. Não nos
víamos há quatro dias e três semanas haviam se passado desde que nos
encontramos pela primeira vez. Ele levava – o que fosse que tínhamos – de modo
espontâneo e despreocupado, seguia gentil como a brisa que ondulava a
superfície do lago cintilante pelos fracos raios solares do outono, que eu e Cora
observávamos em silêncio.

Era atormentador, pensava nele mesmo quando não queria, esperava por suas
mensagens diárias, seus pequenos mimos. Eu podia dizer que estava
transtornada, não fosse pelo fato de Nikolai ser quem era, alegaria ser capaz de
despertar sentimentos que eu preferiria adormecidos. Não ousava sequer pensar
naquilo.

Deslizando minha mão agitada sobre a terra que me acolhia, senti a superfície
dura e fria de uma pequena pedra e a lancei ao lago, observei as pequenas ondas
que se formaram com o atrito, em círculos bonitos, delicados e dançantes,
infelizmente não era assim que a realidade caía sobre mim, embora a brisa fria
que inundava meu olfato de frescor me fosse agradável.

— Você tem estado estranha ultimamente.

Sentia que eu precisava conversar com alguém, desejava um mentor ou


conselheiro como jamais desejara. Infelizmente não podia falar sobre aquilo com
Cora. Eu não ousava sequer abrir um monólogo interno honesto sobre aquilo,
quanto mais confessar com alguém.

— Estou bem.

Não tinha convencido nem a mim mesma.

Agora foi a vez dela lançar uma pedra sobre a superfície plácida do lago. Observei
a ondulação em silêncio.

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— Gosto de ver como a água reage quando jogamos uma pedra sobre ela. - Ela
disse. — Há uma velha lenda que diz que cada um de nós tem um fio de destino e
que as velhas deusas, mais antigas que o próprio universo, tecem esses fios, os
misturam como uma teia de aranha, ligando todo ser vivo um ao outro. - Suas
mãos deslizavam apressadas sobre a terra em busca de mais pedras. — Assim,
em termos imagéticos, o destino era como uma teia de aranha, e os eventos,
qualquer objeto ou ser que colidia contra ela. E o que acontecia a um único fio,
era sentido por todos os outros por estarem conectados. Tendo assim um evento
uma vibração expansiva, afetando tudo no universo.

— Não acredito em destino. E o que está falando não faz o menor sentido, porque
se o evento é qualquer objeto ou ser que colide com sua teia de aranha fatal,
vamos ter que pensar quem é o maldito que está lançando esses eventos nelas e
perturbando sua paz.

Ela riu.

— Talvez não haja um evento, talvez o balanço dos fios aconteçam pelo próprio
tear.

— Continua tentando me convencer que são os deuses que decidem nossas vidas.

— Como pode ser tão cética? Você é um demônio!

— Por isso mesmo. - Justifiquei. — Nunca lhe ocorreu que pode ser minha tarefa
primordial fazê-la descartar sua fé?

Olhou-me com olhos arregalados. Ri.

— Quero que se dane se tem fé ou não. Apenas acho que não há algo como
destino, tampouco há algo como sentido. Que significado tem a vida ou a morte?
Nós escolhemos que sentido damos a nossa própria vida, escolhemos os valores
nos quais nos baseamos. Escolher é bem mais poderoso que destino. São as suas
escolhas agora que definem o seu futuro. E o nome disso, Cora, é
empoderamento. Você é senhora de seu próprio destino.

— Se é assim, como justificamos nossas escolhas ruins?

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— Estupidez.

Ela bufou:

— Você é a coisa mais sem graça que Lilith poderia ter me enviado.

Lancei outra pedra que encontrei ao meu redor no lago. Estava eu sendo
estúpida?

— Há algo mais forte que nos emburrece. Talvez justifique escolhas idiotas. -
Decretei altiva. — Emoções. Incluiria sentimentos, mas como não usei plural no
meu enunciado, entenda emoções como emoções e sentimentos.

— Não há nada errado em sentir. - Protestou.

— Não sei se uma criança espancada até a morte por um adulto possuído e
enlouquecido pela raiva concordaria com você.

— Você deturpa tudo, Liese! - Vociferou, jogando novamente outra pedra no lago,
com violência. Observou o lago por um tempo e numa voz mais branda, disse: —
Sabe por que você é um demônio?

— Culpa do criador? - Perguntei debochada.

— Porque você tem medo. - Disse veemente. — Tem medo de sentir,


especialmente as coisas boas, os sentimentos bons. Medo nada mais é do que a fé
no mal. Tem medo porque está sempre esperando pelo pior.

— Medo é natural.

— Assim como amor, mas você escolheu cultivar o primeiro.

— Como ele te tratava?

— O que? - Havia indignação em sua voz.

— Como Nikolai te tratava?

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— É sério que está me perguntando sobre Nikolai apenas para mudar de
assunto?

Eu sorri e pisquei para ela.

— Ele era gentil na maior parte do tempo. - Lançou outra pedra na superfície
cristalina e brilhante. — Eu tinha dezoito anos quando o conheci, sentia-me
especial por meu namorado ser um vampiro bonitão, me orgulhava de o
apresentar aos amigos que fazia na boate que eu trabalhava. Acho que tinha
muito a ver com a minha baixa autoestima. Eu me sentia importante e especial
porque namorava com ele. - Ela deu de ombros.

— Ele tocava piano para você?

— Não.

— Cozinhava?

— Não! - Vociferou novamente. — Ele fez isso para você? - Havia pesar em sua
voz.

— É... Não! - Acendi um cigarro. — Estou perguntando para saber como é que te
tratava de um modo geral.

— Ele era gentil. O sexo era excelente. Conversávamos muito um com o outro.
Dizia que me achava linda por causa da minha fragilidade e humanidade.

— Ele nunca cogitou te transformar numa vampira?

— Eu quis muito, admito. Mas, ele me dizia que não era uma bênção como eu
pensava que era. Que havia muito mais dor e sofrimento do que beleza em sua
condição. Que a imortalidade não era tão prazerosa e benéfica quanto parecia e
que jamais desejaria um fim tão cruel para mim. Pensei que não queria dividir a
eternidade comigo e depois só confirmei isso.

— Ele te falava sobre exterminar os humanos ou cultivá-los?

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— Não, nunca me falou qualquer coisa assim. Mas, eu sou humana. Talvez não
quisesse me chatear com seus pensamentos funestos.

A lógica dela não fazia nenhum sentido. Por que alguém que quer destruir a
humanidade se preocuparia em não chatear um humano?

— Nunca percebeu sequer um desprezo pela humanidade?

— Percebo isso mais em você do que nele. - Disse displicente.

— Eu não desprezo a humanidade. - Protestei.

— Talvez seja apenas um sintoma do seu narcisismo. Porém, como posso


convencer um louco da realidade de sua própria loucura?

— Não seja inconveniente. - Dei um tapinha em seu ombro.

Encarou-me.

— Ele é seu inimigo, Liese, não se esqueça disso! - Disse sisuda.

Eu não tinha como esquecer, de jeito algum. Só pensava naquilo a maior parte do
tempo. Pensava em sua malignidade supostamente oculta. Malignidade essa que
não condizia com nada com que ela dissera. Pensava no perigo que ele
representava, não para os outros, o perigo que naquele momento Nikolai se
provava ser para mim.

— Vai se encontrar com ele hoje de novo, não? - Sua voz era abatida.

— Disse que me levaria para uma festa. Não sei como Arthur fará para entrar de
penetra.

— Demorou cerca de um ano até que me levasse para uma festa onde pude
conhecer alguns de seus amigos.

Odiava o tom dela. Ela sofria, estava escancarado. E aquilo me fazia sentir mal de
certa forma. Estava incomodada e não queria mais falar de Nikolai com Cora. Se

131
havia um sentimento ao qual nenhum ser no universo merecia carregar consigo
era culpa. E eu me sentia culpada naquele momento.

Culpada pelo quê? Ela mesma me colocou naquela situação.

— Ele gosta de você.

— Não quero conversar sobre isso, Cora. Que tal falarmos de sua teia fatal?

— Deveria conversar. Esqueceu que eu tenho premonições?

— Acredito, pelo que já conversamos no decorrer desse tempo, que deveria ser
claro para você meu pensamento sobre futuro. Ele não existe. A vida é uma
eterna construção. E eu não estou a fim de ficar te torturando com o que vem
acontecendo nessa coisa louca que estou vivendo com Nikolai. Não percebe que o
seu sentimentalismo me tortura?

— O meu ou o seu?

Bufei.

— Eu sou praticamente seu demônio da guarda. Não poderíamos nos fixar nessa
relação apenas? Sem esse lance de amizade, carinho e compreensão? Sem as
alucinações sobre me transformar num demônio melhor? Hã? O que acha? Não
parece promissor?

A cutuquei delicadamente com o cotovelo.

— Eu posso te ensinar o caminho da perdição! Perfeito, não acha?

— Odeio quando você faz isso! - Rosnou. — Tudo bem. - Deu um longo suspiro.
— Ensina-me o caminho da perdição, enquanto Nikolai te ensina o da rendição.

Levantei-me abrupta.

— Certo. O que quer que eu diga? O que quer saber sobre Nikolai ou eu ou o que
for que queira saber?

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— Nada. - Estava desconcertada, era claro que não esperava por aquilo.

A deixei sozinha.

133
20 – Intimidade

Viajamos cerca de duas horas e meia até o local da festa ao sudoeste de Louis de
Broglie. Uma trilha de barro nos guiava para dentro da floresta repleta de
pinheiros e bétulas e como íamos em baixa velocidade passamos a seguir outros
carros que pareciam estar indo para o mesmo destino.

A enorme mansão erguia-se numa arquitetura pós moderna e sua entrada era
coroada com um prédio piramidal. Era extravagante e chamativo. Nikolai parecia
mais interessado nas pessoas que estavam chegando, enquanto eu ainda
analisava as milhares janelas e a extensão da casa, que estava mais para um
prédio de hotel ou para um castelo com o que havia de mais moderno.

Ao adentrarmos o lugar, minha admiração pela arquitetura e decoração não


diminuiu. O teto abobado do enorme salão caía de um modo espetacular como
um tipo de lona de circo, em tons pastéis e suaves. No centro do salão havia um
chafariz que as luzes brincavam com as cores mais sortidas sobre a água. Todo o
salão era cercado por uma colunata que estava decorada com trepadeiras.

Já estive em muitos lugares como aquele antes com Loïc, para saber que se
tratava de uma festa repleta de vampiros, sempre havia um tom macabro na
ambientação, ainda que aquele lugar expressasse toda a modernidade, embora
eles – os vampiros – ainda não eram tão visíveis e evidentes, restando mais uma
grande porção de humanos, com roupas excêntricas e olhares perturbadores.

— Devo confessar que você está tão linda que seria prazeroso te apresentar como
minha namorada e causar alguns olhares invejosos.

Lancei-lhe um olhar desconfiado.

— Não quero ser apresentada como sua namorada porque não sou sua
namorada.

— Quer ser?

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— Não? - Arqueei as sobrancelhas.

Ele riu novamente tomando um copo de uísque da bandeja do garçom que


passava próximo a nós e me entregando.

— Por que não? Não gosta da ideia de cuidarmos um do outro?

Sério que ele queria levar aquele tipo de conversa?

— Namoro é quase sinônimo de intimidade e o que eu penso sobre isso foi muito
bem descrito numa frase de um livro que dizia basicamente que a intimidade é
uma relação entre dois idiotas, providencialmente atraídos para a sua mútua
destruição. Eu passo.

Gargalhou.

— Isso parece bem clichê, mas não saberia colocar em outras palavras. Encontrar
você foi a melhor coisa que me aconteceu em todos esses séculos, Lie.

Lie? Somente uma pessoa me chamava daquele jeito. Ah Hedy, se soubesse o


quanto sinto sua falta!

— Você é lindo, Nikolai, lindo e absurdo. Entretanto, não precisa externalizar


qualquer maluquice que passe em sua cabeça. Não me dê motivos para eu deixar
de me sentir atraída por você.

Gargalhou e enlaçou me pela cintura, puxando meu corpo contra o dele, num
abraço apertado. Deixei meus braços descansarem sobre seus ombros, enquanto
inclinava a cabeça para o lado, sentindo o toque macio de seus lábios em meu
pescoço. Duas mulheres dançando sensualmente acariciando uma o corpo da
outra, captaram minha atenção, ao passo que me desfalecia sob seu toque e sua
respiração próxima ao meu ouvido.

— Você se faz de durona, Lie, mas posso sentir em meus poros o quanto você
aprecia estar comigo. A alegria que sente em minha companhia e a perturbação
que por algum motivo eu também te causo.

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Nossos narizes se tocaram enquanto cravava seus olhos sempre com aquela
expressão preguiçosa como que jamais se abrissem completamente.

— Eu sei que você gosta de mim na mesma proporção que eu gosto de você.

Eu daria qualquer coisa naquele momento para que a música me deixasse ouvir o
ruído que minha respiração fazia ao rimbombar em nossas peles pela
proximidade do beijo. Sim, gostava dele, sentia-me bem quando estava com ele, o
que ele não sabia era que precisava o matar. E eu já não sabia o por quê. Todos
os motivos para seu assassinato eram tão turvos naquele momento, que não
sabia o que pensar.

Entretanto, de algo sabia bem, estava rendida e precisava saber a verdade. Sabia
que as pessoas não mostravam suas monstruosidades do dia para noite e que
Nikolai não seria exceção, num momento ou outro se descuidaria, não
conseguiria esconder seus terríveis desejos sombrios por muito tempo.

Não sei se Nikolai se colocava em teste ou treinamento de resistência ou se


tratava-se apenas de um fetiche, mas novamente se pegou beijando meu pescoço
e virei o rosto para o lado ao passo que inclinava a cabeça para trás quando o vi.
Seus olhos me entregaram um brilho vermelho e ele fez uma pequena reverência
para mim com a cabeça.

Um demônio.

Nos reconhecíamos por causa desse brilho vermelho nos olhos e instintivamente
sabíamos em que grau estávamos em hierarquia. Ele sabia que eu era superior e
por isso a reverência.

Ao contrário das festas de Loïc, as de Nikolai tinham a presença de demônios –


além de mim – que poderiam me reconhecer com um simples olhar. Embora
fôssemos extremamente discretos a respeito de nossa natureza, nada me garantia
que aquele demônio não dissesse a qualquer outra pessoa que eu era como ele.
Seria arriscado para o meu plano se Nikolai descobrisse o que eu era por
qualquer outro que não fosse eu, ele poderia desconfiar de mim e destruir todo o
meu plano.

— Quero te contar algo. - Disse abruptamente.

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Olhou-me atento.

— Eu sou um demônio.

— Eu já sabia. - Ele sorriu carinhoso. — Reconheci pelo cheiro. O sangue dos


demônios tem um cheiro tão gostoso e provocativo que é impossível não
reconhecê-los.

Estava estupefata e sentindo-me estúpida.

— Por que nunca me disse que sabia?

— Estava esperando que me contasse. O que você pode fazer? Transformar água
em vinho? Ler meus pensamentos? Tem alguma força descomunal?

Estávamos abraçados ainda e seus pensamentos não demonstravam nenhum


tipo de desconfiança ao meu respeito. Ele não suspeitava de mim. Sequer
passava em sua cabeça que fôssemos desiguais ou que eu tinha outro motivo
para estar com ele, além de sua sensualidade.

— Responder essa pergunta é dar um passo à intimidade. - Objetei.

— Não devia temer tanto a intimidade. O tempo não determina a intimidade,


apenas a disposição. Se isso ajudar a te sentir mais confortável com essa
conversa, eu posso me esconder da visão, mesmo diante de uma multidão, não
me torno invisível no sentido estrito da palavra, mas sou capaz de iludir os
observadores e levá-los a acreditar que desapareci. Posso mudar minhas
características físicas e posso esconder outras pessoas ou objetos. Posso fazer
outras coisas além disso, claro. Cito apenas como uma forma de fazê-la perceber
que podemos confiar um no outro.

— Tenho o que chamo de êxtase, posso induzir o sono, estados alterados de


consciência, sonhos e alucinações. Transformar água em vinho seria uma boa
metáfora para isso, posso fazer com que a pessoa tenha o sonho mais prazeroso
ou um horrendo pesadelo e acreditar que o que ela vê é completamente real. Sou
um psicoativo ambulante.

137
— Não somos tão diferentes, embora não seja capaz de dar sonhos aos outros,
apenas sumiço.

Rimos.

— Não sabia que conhecia muitos demônios. - Era verdade.

— Não conheço muitos, apenas alguns. Estive em Schrödinger mês passado, é


quase uma colônia para demônios como Louis de Broglie é para vampiros.

— Foi a passeio?

Perguntei e me concentrei em sua mente. Para meu espanto o vi num encontro


com Samael. Há muito tempo Lilith e Samael eram um casal e se amavam ainda
nos dias atuais. Com suas memórias vi que o contato de Nikolai com Samael
transmitia amizade. E outra pergunta que não mais queria calar era: por que
Lilith estava ajudando Cora e Samael estava com Nikolai? E não havia nada,
sequer uma memória furtiva, sobre Azazel.

Não ouvi nada do que dizia. Alguma coisa naquela história não estava casando.
Estava faltando algo, algo essencial e se os demônios estavam envolvidos naquilo,
estava evidentemente no lugar errado se o que eu queria era a verdade.

Não precisei responder Nikolai porque ele foi abordado por três vampiros. Elisa e
Ariadne agarraram-se nele, divertidas e sensuais. Enquanto que o terceiro
vampiro, Victor, jogou alguma conversa fora comigo e tão logo tive a oportunidade
me esgueirei sozinha pelo salão.

Procurava pelo demônio que tinha visto mais cedo. Embora eu fosse superior,
não poderia o comandar porque desconhecia seu verdadeiro nome para comando
e sequer sabia de seu nome mundano para início de conversa.

Conforme caminhava procurando por ele, percebi que a maioria das pessoas que
estavam naquela festa eram humanas, entre eles reconheci três ocultistas que
parei por um momento para examinar. Um desses ocultistas era uma mulher que
se envolvia sensualmente com um vampiro.

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Observei as pessoas envolvidas com a música e envolvendo-se numa dança
sensual com seus parceiros. Segui então pela colunata, e lá no corredor escuro
que ela formava, muitas pessoas beijavam-se ou despiam-se. A cada passo
alguma coisa nova, um mundo sexual se abria naquele corredor, entretanto, num
canto algumas garotas que não pareciam ter mais que vinte anos, usavam drogas
ilícitas abertamente, como se não precisassem temer coisa alguma.

E por mais que eu pudesse chamar aquele corredor como túnel dos prazeres do
inferno, o demônio não o coroava como um rei e já não sabia mais onde procurá-
lo.

Vi uma porta dupla à minha direita e a abri olhando ao redor para me certificar
de que não estava sendo observada. Fui apresentada a um longo e largo corredor
com milhares de portas em ambos os lados. Não havia nada lá, sequer uma alma
penada, além de suas paredes brancas e destituídas de ornamentos e um piso
brilhante e verde-escuro. A sensação que tinha era de andar no corredor de um
hospital.

Todos os meus instintos gritavam que não era uma boa ideia ficar ali conforme
meus passos hesitantes insistiam em seguir adiante. Vi, há alguns passos de
mim, uma porta entreaberta e dei passos ligeiros impulsionada por minha
curiosidade, nenhuma outra estava aberta.

Esgueirei-me rente a parede e espiei pela fresta. Vi um vampiro vestindo um


longo casaco cinza que caia-lhe sobre o tornozelo, com um chapéu de abas e
cabelos longos e grisalhos, hipnotizando outro ser. Eu não conseguia ver
claramente o ser que ele hipnotizava, mas dava comandos. O vampiro mais velho
deu alguns passos para o lado para pegar alguma coisa que eu não conseguia ver
e diante dele estava outro vampiro.

Saia daí agora! - Gritou a minha voz interior.

Retornei pelo corredor com passos apressados, mas um som peculiar me fez
parar abruptamente para olhar o que fosse – que sabia – estava atrás de mim.
Virei-me rapidamente e diante de mim estava a coisa mais horrenda que já vira.

Era certamente um vampiro, entretanto a figura era bestial. A pele era tão fina
que parecia estar para se partir ou rasgar, havia pelugem em algumas partes do

139
corpo, mesmo no rosto e mãos. Os olhos tinham uma coloração vermelha e eram
tão fundos que se desenhavam num enorme círculo negro.

Havia pouco cabelo na criatura, como que se estivessem caindo numa velocidade
sobrenatural, mas os poucos fios eram compridos, negros e sebosos, as unhas
eram grandes, escuras e afiadas. A boca era uma coisa negra e disforme, com
pequenas feridas aparentemente pútridas nos lábios e os dentes eram amarelos e
escuros, sujos e desgastados. Era uma boca nojenta.

Corri e percebi que estava em meu encalço.

140
21 – O Fenecido

A porta dupla se revelou diante de mim, por sorte aquela coisa grotesca parecia
não ser tão veloz como normalmente os vampiros eram e tentava pensar de onde
havia surgido. Eu sequer ouvi uma abertura de porta naquele corredor.

Rapidamente abri a porta dupla e ouvi seu som abafado tão logo a fechei. Senti
certo alívio por estar do outro lado em meio as pessoas, talvez aquela coisa não
quisesse se mostrar para os convidados. De toda forma fui andando de costas
com os olhos ainda cravados na porta, percebendo que agora minha visão
transformava-se num borrado por causa do jogo de luz que estava piscando no
ambiente.

Trombei em alguém, que acabou me empurrando bruscamente. Desequilibrei por


um momento, mas logo estava firme sobre meus pés. Joguei o cabelo que caía
sobre meu rosto para trás. Era melhor que me aproximasse de Nikolai
novamente. Dei uma olhada ao meu redor para me localizar.

As luzes piscando como numa discoteca não me permitiam enxergar muito bem,
precisava sempre de uma luminosidade ou escuridão contínua e fixa para que
meus olhos tivessem uma visão nítida, uma fraqueza como compensação a minha
habilidade de enxergar nitidamente na completa escuridão. A música ribombando
numa explosão ininterrupta de vibração, carregava consigo os corpos dançantes
das centenas que estavam ao meu redor.

Onde estava Nikolai?

Estávamos com seus três amigos perto de uma coluna que sustentava uma
enorme samambaia, precisava apenas encontrar aquele ponto e dei mais alguns
passos na direção correta.

Contudo, a coisa pesada acertou minhas costas como uma bola de boliche
acertando um pino e caí no chão, sentindo a superfície fria e suja esfregando
ardidamente meu rosto enquanto deslizava sobre ela e parei batendo com a

141
cabeça nas pernas de alguém. Levei a mão rapidamente ao lado, mas onde estava
minha bolsa?

Levantei-me rapidamente num salto e virei-me para ver o que me atacara. E lá


estava o vampiro monstruoso caminhando lentamente em minha direção
enquanto as pessoas abriam-lhe caminho, curiosas e assustadas. A coisa
horrenda sorriu para mim novamente e saltou em minha direção. Ouvi a gritaria
e a correria no tumulto que se criou.

Num reflexo me posicionei para me defender, mas aquilo não me tocou. O


perfume denunciou o que o parara. Nikolai estava em minha frente, com a mão
enfiada dentro do peito do monstro. A música silenciou-se subitamente, as luzes
pararam de piscar dando lugar a uma iluminação branca e constante. Meus
olhos se acostumaram novamente e eu agora via claramente.

O cabelo loiro e sedoso de Nikolai caindo desalinhado sobre sua cintura, os


olhares assustados das pessoas, o ruído estranho que o monstro fazia enquanto
se contorcia diante dele, o sangue escuro pingando no chão. Nikolai olhou ao
redor como se estivesse procurando por algo ou alguém. E então, num
movimento brusco ele arrancou o coração da coisa do peito segurando em sua
mão, o monstro caindo ao chão, diminuía de tamanho como se estivesse secando,
transformando sua roupa num tipo de casca larga. E a voz aveludada que dizia
num tom severo:

— Esse é o fim de qualquer um que tentar tocar nela.

Ele fechou a mão reduzindo o coração a uma pasta vermelha e disforme e jogou o
que restava ao chão. Continuou olhando ao redor como que se estivesse
esperando que alguém se mostrasse e logo se voltou para mim. As pessoas que
havia formado um círculo ao redor da cena começaram a se dispersar e um
faxineiro logo foi ao lugar para limpar o local, como se aquilo tivesse sido apenas
um pequeno acidente.

Algumas pessoas ainda assustadas começaram a deixar o lugar apressadamente,


enquanto outras continuavam no lugar como se absolutamente nada tivesse
acontecido.

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A camisa escura estava umedecida pelo sangue que havia respingado nele e o
braço direito estava encharcado de sangue até metade do antebraço. Acariciou
meu cabelo com a mão esquerda, perguntando:

— Você está bem?

Balancei a cabeça afirmativamente e rapidamente peguei minha bolsa que estava


sobre o chão há uns dois metros de distância. Nikolai havia me acompanhado e
fomos juntos ao banheiro para que ele pudesse lavar-se.

Enquanto lavava o braço na pia de granito claro e a água descia vermelha como
um vinho aguado, disse:

— Foi um erro te trazer aqui. Normalmente isso não acontece, nossas festas
costumavam ser melhores.

— O que era aquilo?

— Nós os chamamos de Fenecidos. Acontece com alguns vampiros. Quanto mais


velhos vamos nos tornando, menor a nossa sede de sangue, mas precisamos
beber diariamente ou do contrário esquecemos completamente dessa necessidade
por um tempo, também para se manter um vampiro velho e saudável, é
necessário que enfrentemos de tempos em tempos o que eu chamo de morte
induzida. Ficamos enterrados por alguns anos, sem beber e sem nos mover,
dormimos um sono inquieto e ouvimos os sons do mundo que nos produzem
sonhos. Isso impede que enlouquecemos com os anos. E podemos ficar também
alguns dias sem sentir sede, mas não nos alimentarmos é perigoso.

Ele me olhou novamente enquanto pegava toalhas de papel para secar o rosto e
os braços.

— Um Fenecido ignora tudo isso, a morte induzida e fica sem se alimentar ao


ponto de não mais sentir sede de todo. Assim vai se degradando, enlouquecendo
e se entregando a sua forma bestial. E quando chegam nessa forma tornam-se
perigosos, não há nada que se assemelhe com consciência ou mente e estão tão
sedentos que tudo o que fazem é atacar, beber e matar. Não resta mais nada de
humanidade num fenecido.

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— Quantos anos você tem, Nikolai?

— Precisamente 1267. Fui transformado em vampiro com vinte e sete anos. -


Tocou meu rosto com delicadeza, o espelho havia denunciado a marca vermelha
que havia se formado pelo atrito contra o chão: — Está doendo?

— Está ardendo um pouco, mas logo passa.

Ele beijou sobre o machucado, dizendo:

— Vamos embora desse lugar.

Ele me guiou segurando em minha mão até nosso carro e pegamos a estrada
novamente após o percurso pela estrada de barro em meio a floresta. O silêncio
de certa forma me incomodava, o vampiro velho que enfeitiçava outro vampiro
ainda estava em minha mente e procurava me lembrar dos detalhes antes do
Fenecido aparecer naquele corredor. Eu disse, abrupta:

— Obrigada por me proteger.

— Eu gosto de você, Lie. - Ele virou para me lançar um rápido olhar. — Não tem
que me agradecer, eu sempre te protegerei.

— Um vampiro pode enfeitiçar outro? - Eu não sabia se deveria de fato lhe fazer
aquela pergunta.

— Teoricamente não. A dominação normalmente se dá apenas em humanos,


demônios como você também não são suscetíveis a dominação, ou seja, não são
enfeitiçados por um vampiro. Mas, não posso dizer com precisão. Um vampiro
comum é muito forte, normalmente temos a força de cinco ou seis homens,
entretanto, eu fui abençoado com isso e sou muito mais forte que todos eles.
Minha força e resistência são absurdas até mesmo para um vampiro. Como que
se a força já comum a todos nós tivesse sofrido algum tipo de amplitude. Assim
penso que embora não exista, é possível que algum vampiro possa ter essa
amplitude também na dominação. Tudo é possível.

— E os fenecidos?

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— Fenecidos são perigosos, como eu já disse, não há mais nada de humano
neles, nada que os fazem pensar no que estão fazendo e mantém a força e o poder
que tinham quando ainda eram saudáveis.

Ele tamborilou os dedos sobre o volante. Olhou pelo retrovisor e pelo espelho
lateral, concentrado na direção. Maneou a cabeça suavemente denotando sua
frustração.

— Eu sinto muito, realmente não desejava que essa festa fosse assim. Sempre
soube que ficando comigo, você enfrentaria esse tipo de situação num momento
ou outro, mas não esperava que fosse agora. Estava certo de que esse tipo de
situação não aconteceria nessa festa, jamais te traria aqui se soubesse que isso
fosse possível.

Coloquei minha mão sobre a dele que estava repousada sobre a marcha,
rapidamente entrelaçou seus dedos nos meus e enquanto olhava para nossas
mãos, eu disse:

— Está tudo bem. Eu estou bem.

Lançou-me um olhar rápido.

— Terminei com minha ex por causa disso. - Confessou. — Eu temia o que


poderia acontecer com ela estando ao meu lado, era humana e frágil e eu não
tinha como ficar a protegendo o tempo todo. Sabia que era melhor para ela que
ficasse longe de mim, completamente fora do meu mundo. E prometi que não
envolveria mais ninguém nisso.

Ok, não havia mentira em suas palavras. E não precisava dizer que me sentia
zonza com aquela informação. Ele poderia estar se referindo a outra pessoa
provavelmente e então decidi perguntar:

— Como ela se chama?

— Cora.

Afundei no banco e agradeci que estivesse tão compenetrado na estrada para não
ver meu rosto transtornado. Eu já não estava entendendo mais nada.

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— Prometi a mim mesmo que não faria isso com mais ninguém, mas eu
simplesmente não consegui parar de pensar em você desde que te conheci e por
um momento achei que fosse possível te manter longe desse mundo. Queria
acreditar que por ser um demônio você fosse capaz de lidar com isso. Entretanto,
quando vi aquele Fenecido te atacando tudo o que senti foi medo. Acho que
mesmo um demônio morreria por ser mordido por um Fenecido, a mordida deles
pode matar até mesmo um vampiro. Acho melhor não nos encontrarmos mais.

— Não! - Minha voz saiu tão espontaneamente que até me assustei.

Virei-me em sua direção e repousei meu braço em seu ombro entrelaçando meus
dedos em seu cabelo num afago delicado.

— Eu quero ficar com você. - Era tão natural que me convencia. — Eu não sou do
tipo frágil que precisa ser protegida, não uso toda a minha capacidade porque
não quero ser reconhecida, não posso ser reconhecida. Não te dou o direito de
decidir por mim.

Ele virou a cabeça para me olhar e minha mão se encheu com a pele fria e macia
de seu belo rosto. Esboçava um sorriso tímido e beijou meus lábios num contato
rápido e suave.

— Não acho que conseguirá se esconder por muito tempo se continuar comigo.

— Não quero mais me esconder. - Sim, havia um desejo sincero por detrás dessa
frase, não me esconder era sinônimo de liberdade e loucura.

— Isso é um namoro? - O sorriso malicioso era mais provocante que seus olhos
preguiçosos quando me fitaram novamente, dividindo sua atenção com o volante.

— Não. Isso é uma relação entre dois idiotas, providencialmente atraídos para a
sua mútua destruição.

Ele riu e me beijou rapidamente agarrando minha mão e a apertando contra o


peito. Eu já não podia mais imaginar o que viria depois.

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22 – Depressão

A sobrecasaca impermeável caia-me até o tornozelo, necessário para aquele


começo de noite. A chuva fina já se transformava em pequenos flocos de neve que
anunciavam o inverno eminente. Certamente não saberia dizer o que estava
acontecendo comigo, mas não estava bem.

Demorou para que fosse tomada novamente por aquele estado de espírito,
embora soubesse que com tudo o que estava me acontecendo nos últimos dias ele
seria inevitável.

A humanidade do corpo que eu carregava era notável e infelizmente não havia


como escapar de coisas como emoções e sentimentos e tampouco senti-los como
se fossem irreais. Com a alma atada naquele corpo não poderia negar de que
eram mais reais e dolorosos do que imaginara.

Aqueles flocos gélidos e dançantes que rodopiavam como gotas luminosas


carregadas pelo vento cortante que castigava a pele de meu rosto, mesmo que eu
puxasse o capuz para protegê-lo, pareciam querer me carregar para um mundo
íntimo e desolado, a casa de minha alma.

Não fosse pela necessidade de ter que comprar pó de café, admito que não teria
deixado meu quarto, o clima gelado e a tristeza que violentava minha alma
convidavam-me para o sono eterno, um mergulho no mar profundo do
esquecimento.

Como alguém poderia estar bem com tudo aquilo? Quem mentiria para mim? O
que de fato estava em jogo? E, por que eu tinha que estar envolvida com aquilo
tudo?

O ódio pelas relações sociais ardia em meu interior. Cora certamente não havia
me contado tudo, não me contara sobre como terminaram e o que Nikolai havia
me dito não condizia em nada com as ideias de alguém que a queria morta. Claro
que eu também estava suspeitando dela, tanto quanto suspeitava dele.

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Era óbvio que caí feito tola numa rede de intrigas, num assunto que não tinha
nada a ver comigo. E que prematuramente havia tomado partido, porque Lilith
me induziu aquilo, mas já não estava mais certa sobre coisa alguma.

Parei diante de um mendigo que esticava um pote pequeno e sujo com algumas
moedas dentro dele. O chão úmido, suas roupas molhadas e imundas, seus olhos
pedintes, as mãos trêmulas que provavelmente me fariam ouvir o barulho das
moedas atritando contra a superfície metalizada se não estivesse protegida pelo
fone de ouvido, a imagem da crueldade do mundo.

Agachei-me diante dele, estaria certamente me vendo como um belo anjo de asas
grandes e brancas, com uma aura de luz dourada e a beleza da divindade. Seus
olhos arregalados marejavam diante do esplendor que devia ser para ele aquela
visão. Uma ilusória amostra do poder de Deus.

— Se você não se amar e não se importar consigo mesmo, ninguém mais no


mundo o fará, nem eu e muito menos Deus. Sua condição é apenas um sintoma
da sua falta de amor-próprio. Vá e jamais peque contra si mesmo novamente.

O vi se levantando e correndo abobalhado entre as pessoas que caminhavam


apressadas e tentando encontrar abrigo contra a fina neve que caía sob os toldos
dos comércios. Eu sorri sem entender porque me divertia fazendo aquele tipo de
coisa. Nunca sabia o resultado de algo como aquilo, mas, no fundo, esperava que
ele lutasse contra a sua miséria. Talvez o que eu mesma queria fazer naquele
momento, já que também me sentia miserável.

“Estou tentando falar com você há três dias. Por que não me responde?” - Mais
uma mensagem de Nikolai em meu celular. Ignorada. Não queria falar com ele,
não queria vê-lo, não, não queria ver ninguém. Eu os detestava com toda a
brutalidade do meu ser.

Gondolas, café, caixa para pagamento e um pacote. As ruas me tomam


novamente enquanto caminho de volta para casa.

Foi fácil manter Soren, Arthur, Alisha e Cora longe de mim, alguns berros,
chamas nos olhos e deixá-los enlouquecidos e alucinados por um tempo foi o
suficiente para saberem que era melhor me deixar sozinha. Arthur desconfiava,

148
sim, ele sabia que eu carregava toda a agonia da incerteza dentro de mim, mas
nem por um momento me questionou.

Entretanto, precisava ver Loïc, nunca mais tive uma notícia sequer dele e
precisava saber da verdade. Nikolai poderia de fato ser tão insano ao ponto de
sequer pensar em seus desejos sombrios, mas a dúvida era inevitável enquanto o
via com seus amigos humanos, sempre cortejando a gentileza e o prazer. Sem
desconfiar nem por um momento de mim como suas mensagens insistentes
declaravam.

Eu precisava de respostas.

Ao ponto de cruzar uma rua paralela a qual estava andando, eu o vi, apertei os
olhos apenas para confirmar se o que via era real. Não podia acreditar em meus
próprios sentidos.

Mas, não, eles não me faltavam, o cabelo castanho escuro desfiado num corte
bonito e moderno, o rosto triangular e comprido, o cavanhaque bem-feito, o
costumeiro óculos escuros mesmo em dias nublados, o trench coat preto usual,
as mãos agitadas, chacoalhando o casaco, ocultadas pelos bolsos.

O que Neil estava fazendo em Louis de Broglie?

Dobrei a esquina e corri como se não houvesse amanhã. Ele não poderia me ver.
Não precisava pensar muito, ele havia descoberto, sabia onde eu estava e me
procurava certamente. Fiz um caminho totalmente diferente com o qual estava
acostumada.

Já dentro de meu apartamento, encostada contra a porta que acabara de trancar,


segurando a sacola com os pacotes de pó de café e a respiração ofegante pela
corrida, senti vontade de gritar.

Não bastava intrigas, demônios em festa de vampiros, Fenecidos, os sentimentos


que ignoravam toda e qualquer razão por Nikolai, minhas dúvidas, o aperto no
peito que sentia sempre que pensava em Cora, as indagações sobre Lilith e
Samael, a falta que sentia de Hedy, o ódio que sentia das relações sociais... Tinha
mesmo que encontrar Neil naquele momento? Ele tinha mesmo que saber que eu
estava em Louis de Broglie?

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Respirei fundo e transpirando ódio fui preparar um café e colocar roupas quentes
já que a minha estava fria por causa do clima.

Afundei-me no sofá macio com a xícara fumegante com o néctar dos deuses
pronto para preencher meu paladar de prazer inigualável, tocando meu nariz
gelado com o seu vapor quente e perfumado. Devia voltar para Schrödinger. Não
havia nenhum motivo que me fizesse ficar naquele lugar. Estava metida numa
situação totalmente desnecessária.

Se Lilith quisesse que me castigasse.

Se Loïc e Nikolai quisessem, que se matassem.

Se Cora estava mesmo em perigo, ou seja lá o que fosse que estivesse metida, que
arcasse com as consequências de suas escolhas ou pedisse ajuda novamente
para Lilith.

Eu não tinha nada a ver com aquilo. Há alguns meses e nem me ocupava a
mente com a existência de vampiros. Que continuasse assim.

Não dependia deles para nada. Não precisava deles. Não havia sequer motivo
para estar me escondendo em Louis de Broglie se Neil já sabia que eu estava lá.

Tentei várias vezes ligar para Hedy, mas sempre recebia a mensagem de que seu
celular ou estava desligado ou fora de área. Por que ela tinha a maldita mania de
desaparecer quando eu mais precisava dela?

Não, não precisava ver Loïc, nem saber da verdade. Não precisava daquilo de
modo algum.

Poderia voltar para a minha paz, minhas frequentes fugas de Neil, voltar a ter
minha vida como eu a tinha antes de ir para Louis de Broglie.

Eu estava fora!

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23 – Mestre de fantoches

— Senhoras e senhores, esperamos que tenham tido uma ótima viagem. Bem-
vindos a Schrödinger, a bela capital de Quantum. - A voz anunciava nos alto-
falantes minha chegada em casa.

Subi a escada rolante com as malas leves, esperava que Hedy tivesse ao menos
lido minha mensagem informando que estava voltando, enquanto o trem moderno
e veloz deixava a estação.

Segui até o ponto da estação onde costumávamos nos encontrar quando


viajávamos e pedíamos para que uma fosse buscar a outra. E sim, a magricela
estava lá me esperando, mas não havia nenhuma demonstração de alegria ao me
ver.

— Você não devia ter voltado.

— Também senti saudade de você. - Respondi sarcástica.

— Eu estou falando sério! - Seu tom expressava o nervosismo. — Só vim aqui


para fazer você mudar de ideia e voltar para Louis de Broglie sem sequer pisar os
pés em casa.

Seu tom era severo. Talvez eu tivesse que ouvir o que ela tinha para me dizer.

— Você soube que Katrien morreu?

— Já que quer conversar comigo antes de irmos para casa, o que você acha de
nos sentarmos num café ou algo que o valha? Eu gostaria muito de beber alguma
coisa e fumar um cigarro.

Sentamos nas mesas que ficavam na calçada de um café charmoso ao lado da


estação de trem de Schrödinger. Fitei minha irmã por um momento, enquanto me
deliciava em meu merecido cigarro, ela estava agitada e raramente a via daquele

151
modo. Pousou seus pequenos olhos avelã sobre mim, examinando-me por um
momento.

Olhei para a cidade, Schrödinger era uma cidade muito rica e isso refletia em sua
arquitetura, ruas limpas, sem pedintes, carros caros, pessoas trajadas no que
havia de mais requintado, caminhando pelas calçadas como se estivessem numa
passarela de moda e todo o charme que só aquela cidade tinha em Quantum.
Fitei Hedy:

— Eu soube que Katrien morreu, mas não tinha nenhuma intimidade com ela e
não posso dizer que senti sua morte. Ela mentiu para os vampiros que me
entregou.

— Eles mentiram para todos nós. - Desabafou Hedy. — O pai dela, Philip, está
agora sendo caçado pelo nosso, não era para você ficar com os vampiros que você
está, de acordo com o que papai me disse, era para você ficar com um vampiro
chamado Gustavo.

— Não conheci nenhum Gustavo.

— Claro que não. Você foi entregue para o clã errado, porque assim Philip e
Katrien decidiram.

— Espera. Vocês já sabiam com quem eu teria que ficar?

— O papai tem planos para você em Louis de Broglie, embora eu não soubesse de
nada disso quando te deixei lá. Irão acabar com a independência daquela cidade,
entretanto os vampiros nela são vistos como um grande problema a essa
realização.

— Como assim? Eles não são sequer ligados à política.

— Você não sabe de nada, Lie. - Seus movimentos eram nervosos. — Há três clãs
grandes de vampiros em Louis de Broglie e estão desunidos porque há anos os
demônios estão tentando controlá-los. O primeiro plano de fazer os humanos os
exterminarem não deu muito certo, porque os humanos não são páreos para
muitos deles.

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— Então a caça aos vampiros que Katrien falou daquela vez foi obra nossa?

— Você sabe que somos os mestres dos fantoches, que é por isso que governamos
o mundo e por isso os ocultistas querem acabar com a gente.

— Espero não ser a única idiota que não sabia disso.

— Não, muitos demônios nem sonham com o que está acontecendo.

— Soube algo sobre Azazel?

— Ouvi rumores de que ele foi trazido ao mundo, mas nem papai sabe sobre isso,
ele não entrou em contato com nenhum de nós.

— Eu vi um demônio em Louis de Broglie, você tem alguma ideia do que ele


poderia fazer lá?

— Muitos dos nossos estão indo para lá, muitos deles com interesses próprios.
Papai disse que Samael não é mais confiável e pelo que fiquei sabendo, ele
também está de olho naquela cidade. Há muitos motivos políticos e desejo de
poder em torno de Louis de Broglie e você deve cuidar dos interesses dos De
Vries, foi por isso que papai te enviou.

— Então, toda aquela história sobre me proteger e me esconder era uma mentira?

— Sim, Lie, mas eu também não sabia. - Se defendeu.

Olhei para a avenida abarrotada de carros, pessoas que caminhavam em todos os


ritmos, os ricos habitantes de Schrödinger. Notei que Hedy me observava, devia
saber que eu estava prestes a explodir.

— Qual o interesse dos "De Vries"?

— Tomar o poder de Louis de Broglie, acabar com os vampiros que protegem


aquela cidade, governar.

— Você concorda com isso?

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— Sabe que ele nunca se importou se concordamos com seus planos ou não,
apenas quer que façamos o que ele quer.

Odiava meu pai com todos os átomos de meu ser. Hedy me conhecia demais para
fingir que aquilo não me incomodara.

— Você fez amigos entre eles?

Eu não queria responder sua pergunta, não queria ser amiga de ninguém e muito
menos queria ter família ou o sobrenome De Vries naquela altura. Ela esperava
por uma resposta, embora procurasse me dar o tempo que sabia ser necessário.
Concentrei-me por um momento no som do trem de alta velocidade que devia
partir para outra cidade como uma forma de me acalmar.

— Seja como for. - Ela continuou. — Você ainda tem um pouco de tempo para se
situar a toda essa novidade. Pode ajustar o que for preciso antes que papai te
mande a ordem de extermínio. Ele queria que você estivesse com eles, com
Gustavo especialmente, para saber de suas fraquezas e como destruí-los, como
não dá para saber que vampiro pode ler os pensamentos, era parte do plano que
nem você soubesse disso para não dar informações para eles. O pai de Katrien já
sabia disso tudo e te mandou para o clã que ele estava tentando proteger, ele tem
certo poder em Louis de Broglie e é um humano que entende bem o que é ser
vassalo de demônios e estava tentando evitar que nós tomássemos Louis de
Broglie, ao menos foi o que papai me disse quando pediu para que eu
investigasse sobre a morte de Katrien e sabermos que eles tinham te enviado para
o lugar que papai não queria que você sequer chegasse perto. E assim também
soubemos que o clã onde você está é o mais poderoso, com os vampiros mais
velhos e que estão tentando destruir outro vampiro que papai considera
importante.

— Que vampiro? - Perguntei curiosa.

— Nikolai Ilitch. Que embora não seja tão velho quanto eles, tem sido quem está
segurando outro clã em pé, porque dizem que ele tem tanta força ao ponto de
conseguir acabar com qualquer vampiro, não importando se esse seja mais velho
que ele ou não; e tem tanta resistência que consegue ficar cerca de uma hora sob
a luz solar sem lhe causar muito dano, coisa que nenhum vampiro consegue
fazer. E esse clã ao qual Nikolai pertence está indo contra Gustavo, o clã ao qual

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você deveria ajudar. Pelo menos inicialmente, já que os demônios estão ajudando
Gustavo para tomar Louis de Broglie logo que esse clã está totalmente envolvido
com a política.

— Além de Neil, quem mais sabe que estou lá?

— Ninguém. E como assim além de Neil?

— O vi caminhando pelo centro de Louis de Broglie dois dias atrás.

— Daremos um jeito nisso. - Abandonou-me para chamar o garçom e pedir algo.


— Quer mais alguma coisa? - Perguntou-me enquanto garçom anotava seu
pedido.

— Uma garrafa de conhaque e uma de vermute. - Respondi.

— Garrafa?

— Vai controlar minha bebida como faz com minha vida?

Ela assentiu para o garçom e esse nos deixou.

— Não consigo digerir nada disso, Hedy. - Confessei. — Eu quis voltar porque me
percebi muito envolvida. Lilith me pediu para ajudar uma bruxa e por mais que
papai pode me controlar por saber meu nome secreto, Lilith pode me castigar se
não fizer o que ela espera que eu faça. E só isso já foi o suficiente para me fazer
entrar numa confusão na qual eu não quero estar.

— Do que está falando, Lie?

— Estou dizendo que eu estou sendo usada num aparente conflito de interesses
que vem de todos os lados, incluindo a minha própria raça e que estou cansada
de ser usada. - Cuspi as palavras, exasperada.

Olhei novamente os carros que corriam sob a luz fraca do dia nublado com o
vento frio a suspirar em meus cabelos.

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— E nessa confusão toda, peguei-me importando-me com Nikolai. - Falei sem
direcionar meu olhar para ela.

— Nikolai Ilitch? - Sua voz estava carregada de estupefação.

— Sim, teoricamente estou com ele para matá-lo, ao menos começou assim e pelo
que estou entendendo do que você vem falando desde que eu cheguei, terei que
matá-lo também pelos De Vries, é isso? Por causa de um tal de Gustavo que eu
desconheço.

— Você está gostando dele, Lie. - Ela soava alegre e não, aquilo não era uma
pergunta, ela estava afirmando.

— Não. - Respondi veemente.

— Claro que está. Você não é de se importar com ninguém.

— Agora me importo e não é apenas com ele que me importo. Passei a me


importar com gente demais pro meu gosto desde que cheguei em Louis de
Broglie. E não sei como você consegue ficar alegre com uma desgraça dessa.
Quando meu pai me dará a ordem para matar todos aqueles com os quais eu me
importo, quero ver se manterá seu sorriso ao me ver desolada por não poder me
controlar diante de seu comando por saber meu nome secreto e matar com
minhas próprias mãos aqueles que eu devia proteger.

— Estou feliz sim, embora sei que as circunstâncias não permitem tal felicidade.
Entretanto, fico contente que você esteja abrindo seu mundinho sombrio para
alguém, é importante, você sabe disso. Para sua própria saúde e vitalidade.

— As pessoas que eu amo morrem, Hedy. Não há nenhuma felicidade nisso. E


não, não me deixa em nada saudável, apenas mais louca.

— O que você vai fazer?

— Bem, eu posso escolher entre fugir para algum lugar onde ninguém mais me
encontre e escolher se deixo Lilith ou papai acabar com a minha existência. Ou
me desapegar de qualquer tipo de sentimentos como sempre fiz e torcer para que
o desejo de papai e Lilith não sejam conflitantes.

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— Sério que é essa vida vazia que você deseja? Estou farta dessa vida, Lie! - Hedy
expressava claramente sua raiva. — Papai nunca se importou com nada, nunca
sequer se importou com nossos sentimentos e desejos, nunca sequer nos levou
por um segundo em consideração. O que importa para ele são nossas
habilidades, nas máquinas mortais e perigosas que somos, para aquilo que
podemos ser úteis. Eu estou cansada.

— E o que você quer que eu faça?

— O que você faz de melhor. Se rebelar. Proteja seus amigos, lute pelo que
acredita, se é pra lutar que lutemos pelo que queremos.

— Ninguém é amigo de ninguém em tão pouco tempo.

— E quem se importa com tempo? Quem se importa se são ou não seus amigos?
Se podem de algum modo preencher o vazio que sua vida é, vale o esforço. Prefiro
a morte a ter que viver como temos vivido nesses últimos dois anos. Se você quer
continuar vivendo desse jeito, ótimo. Eu cansei. E não importa o que quer que
você diga com a sua cretinice de sempre, sei que está tão cansada quanto eu e se
quiser virar a mesa como estou querendo, vou te ajudar no que precisar.

— Você está me aconselhando a proteger os vampiros que estou envolvida e ficar


contra o nosso digníssimo pai, senhor Klaus de Vries, é isso? - Sim, estava
horrorizada.

— Sim, proteja-os, dê uma chance para que eles virem seus amigos com o tempo,
tempo esse que eles quase não têm mais. Não devem sequer fazer ideia do que
Schrödinger está prestes a fazer com eles. Se realmente não se importar com
nenhum deles, então faça isso por nós duas, ajude-me a encontrar meios de
acabar com papai, ajude-me a encontrar aliados. Mas, faça alguma coisa por nós.
Fique em Louis de Broglie, investigue, encontre esse tal de Gustavo e mate-o
antes que ele acabe com os outros, descubra o que puder de lá. Eu só posso
investigar aqui, não podemos levantar suspeitas. Maya está com uma viagem
marcada para Heisenberg na próxima semana. De lá ela vai para Louis de Broglie
comprar uma casa para você e deixar dinheiro num cofre dentro dessa casa, você
não vai mais usar cartão de crédito, não ficará exposta de jeito algum e não
movimentará sua conta bancária. Se trabalharmos juntas também não me ligará
e nem me mandará mensagem eletrônica.

157
— Maya? Mas, nem nos damos bem eu e Maya.

Minha irmã Maya sempre teve um grande atrito comigo, não que ela gostasse de
alguém, era ainda mais fria do que eu e talvez por nossas semelhanças nunca
conseguimos nos dar bem.

— Sim, só vão se encontrar para ela te entregar a chave e o endereço de sua casa,
sabe que Maya tem um controle mental muito grande e ninguém consegue ler a
mente dela e nem dominá-la. Nem papai consegue usando seu nome secreto fazer
com que ela obedeça e isso é mais do que valioso para nós nesse momento.

Suspirei.

— E se eu não tivesse vindo, Hedy? Você me contaria sobre a sua revolução?


Deixaria com que eu soubesse a verdade?

— Sim, porque Maya te encontraria na próxima semana de qualquer jeito, você


sabendo disso ou não.

Ela esperava por um comentário, mas eu não tinha nada a falar, estava tonta
com tanta informação e tentava pensar na minha situação num todo.

— Apaixonei-me por um ocultista, Lie. Se eu não fizer nada agora terei que
enterrá-lo em breve. E eu preciso de você tanto quanto preciso de Maya. Volte
para Louis de Broglie.

— E como vamos destruir demônios mais poderosos que nós?

— Não podemos. E se nos matarem nossos espíritos vagarão até encontrar outro
corpo com alguém disposto para fazer o ritual. Coisa que Kevin já está ciente de
que deve fazer. Comodidades ao se namorar com um ocultista. Se morrer fique ao
lado dele e encontraremos um corpo para você.

Ela abria a bolsa e procurava por algo enquanto eu disse:

— E se um ocultista nos mandar embora?

Ela me entregou a foto de Kevin, dizendo:

158
— Não voltaremos mais. O banimento é nossa verdadeira morte para esse mundo.

Era um moreno bonito o que a foto me apresentava, lembrava-me um pouco de


Eric.

— Então, o que você fará?

— Vou protegê-los na esperança de que se tornem nossos aliados, mas ainda não
sei como farei.

— Ótimo.

O garçom colocou nossos pedidos na mesa. Servi-me com a bebida, enquanto


Hedy devorava o croissant, me dizendo com a boca cheia:

— Agora volte.

— Mas, eu nem bebi!

— Leve as bebidas com você e beba na sua viagem de volta, se isso lhe parece
importante.

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24 – Ajustes

Já fazia quatro dias desde que voltei de Schrödinger e tive minha conversa insana
com minha irmã. Evitei encontrar as pessoas até que me sentisse mais dona de
minha própria mente, emoções e pensamentos. Não seria fácil encontrar Arthur
com todo aquele caos interior, deixar-lhe me invadir e reconhecer o que eu
julgava ser fraqueza. Dentre eles Arthur era o único que por algum motivo não
conseguia odiar tanto naquele momento.

Usar Nikolai como uma desculpa para os manter afastados havia me colocado
num turbilhão de sentimentos que evitaria se soubesse que me arrasaria como
um tornado faria a uma cidade em seu rastro destrutivo. Nem mesmo o
entorpecimento etílico, que julgava ser meu melhor escape, fora capaz de
afugentá-lo de minha mente e tornou-se pior quando há dois dias silenciaram-se
suas mensagens insistentes.

Os conselhos de Hedy corriam pela minha mente como os carros que passavam
apressados ao lado do meu, meu carro vagaroso como minha disposição. A ideia
de ir contra nosso próprio pai era sublime e por isso estava inclinada a ajudá-la,
entretanto não me parecia digno motivar-me em proteger os mentirosos.

Sentia naquele momento que era mais importante conhecer a verdade para saciar
a minha curiosidade. O espírito heroico e protetor nunca fora parte em meu
arsenal de personalidade, tampouco a abnegação, nem cabia-me um forte
sentimento de amizade. As mentiras que me contaram, essas, sim, pareciam
sustentar-me forçando-me seguir adiante.

Parei o carro diante do sinal vermelho do semáforo, estava indo buscar Cora para
um passeio não muito agradável, ao menos para ela. Os dedos tamborilaram
sobre o volante, a imagem dele invadindo minha mente tornara-se uma rotina
desagradável, havia um resquício de instinto heroico quando percebia-me sedenta
pelo seu toque e presença, a ocultar a malignidade com extrema habilidade,
caçado e odiado por ser quem era. O maldito Nikolai me roubara de mim mesma.

160
“Nada que eu disser servirá como desculpa por te ignorar por tanto tempo, minha
vida está de cabeça para baixo e estive em Schrödinger dias atrás. Sinto muito por
tudo.” - Enviei a mensagem de voz para Nikolai pelo celular e dei a partida ao
passo que o semáforo assim me permitia.

Puta que pariu, como eu pensava nele! Aquilo era pior do que qualquer outra
coisa que poderia me acontecer. Aumentei o volume, ensurdecer-me com música
sempre teve um efeito calmante.

Foi um alívio quando Cora entrou em meu carro, sentando-se ao meu lado no
banco de passageiro, com suas conversas alegres, estranhas e filosóficas. Ela me
distraía do que minha mente tanto insistia em pensar.

— Eu senti sua falta, Liese! - A voz era alegre. — O que você esteve fazendo esse
tempo todo?

— Enchendo minha cabeça de minhocas. - Condizia com minha realidade.

— Achei que ainda estivesse com raiva da gente. Você explodiu aquele dia, nos
enfeitiçou e tudo.

Ela mencionava certamente minha encenação para que me deixassem em paz.

— Continuo detestando vocês. Não pense que só porque te convidei para sair hoje
que meu ódio por você diminuiu.

Ela sacudiu a cabeça revirando os olhos.

— Por que você sempre tem que tratar os sentimentos com tanto descaso? Fala
que me odeia, mas sei que quer dizer o oposto.

— Como pode ter tanta certeza sobre isso? - Eu a fitei rapidamente. — Nem eu sei
o que sinto na maior parte do meu tempo. - Um banho de sinceridade inesperada.

— Saberia se não tivesse tanto medo deles.

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— Lá vem você com essa sua obsessão sobre medo. Você não tinha que pensar
outra coisa? Algo do tipo que demônios são seres trevosos, que não estão ligando
para sentimentos e etc?

— É assim que você gostaria que eu pensasse sobre você?

— Seria mais realístico.

— Na verdade eu só acho que você faz tipo.

Fiz uma careta e parei o carro a dois metros do abismo que se seguia abaixo.
Peguei uma garrafa de bebida no banco de trás do carro e desci. Não precisava
descrever o semblante desapontado de Cora, enquanto olhava a paisagem do alto
do penhasco, deixando a mão descansar sobre a estrutura metálica e fria da
porta que parecia se recusar a fechar.

Encostei me no capô do veículo, deixando a fraca luz do sol outonal aquecer


fugazmente o rosto que parecia esforçar-se para captar o fraco calor que o vento
frio roubava com tanta destreza. Ela encostou-se ao meu lado, fazendo-me olhá-
la por um instante antes de deixar o gosto amargo inundar meu paladar.

— Você tem alguma noção por quê eu te trouxe aqui?

— Eu nunca esperei muito de você. - Disse honesta.

— Eu acho que daqui de cima até o fundo desse penhasco deve ter em torno de
uns trezentos metros e acho que cair ali não fará com que escape com vida. - Dei
outro gole na bebida a olhando com o canto dos olhos. — E será exatamente isso
o que acontecerá se você mentir pra mim e estou me lixando se Lilith vai gostar
ou não disso.

Estava perplexa e deixei meu ombro tocar o dela.

— Ficaremos assim juntinhas, assim eu saberei exatamente o que estará se


passando em sua mente e se alguma coisa não condizer com a verdade, é lá no
fundo que você terminará. - Eu meneei a cabeça para a beira do penhasco. —
Estamos entendidas?

162
Não sei dizer se era pelo tom de minha voz, ou pelo brilho maligno que sustentava
em meu olhar, mas ela me olhava perplexa e temerosa. Eu não tinha a menor
intenção de fazer com que se sentisse bem ou relaxada e continuei:

— Sabe, Cora, eu tenho algumas crenças e uma de minhas crenças mais fortes é
de que informação é poder. Impossível não acreditar nisso quando se tem uma
vida como a minha. E de acordo com as informações que estou recebendo, algo
me diz que uma parte muito importante está faltando. E eu quero saber que parte
é essa.

Ela não ousou falar, mas abominava o terror psicólogo que eu estava
proporcionando. Com mãos aflitas afagou o próprio cabelo, deixando o olhar cair
sobre a planície que se estendia com seus ramos verdes como mãos erguidas em
súplicas ao pai sol, que se balançavam de um lado para o outro pelo vento, com a
fraca luz dourada que afagava suas tonalidades amarronzadas, sinais da morte
que o destino invernal anunciava.

— Por que você e Nikolai terminaram?

Ela me olhou embaraçada e sua voz era embargada quando disse:

— Nikolai decidiu que seria assim.

— Por que?

— Ele me disse que não tinha como me proteger o tempo todo e que seu mundo
era perigoso e que por isso ele achava melhor que cada um seguisse com a sua
vida antes que as coisas ficassem muito perigosas.

Até ali as histórias batiam.

— Isso foi antes ou depois de você trazer Azazel para o mundo?

— Antes. - Ela esfregou as mãos, mais num gesto nervoso do que uma manobra
contra o frio do vento que sacudia nossos cabelos. — Depois que nos separamos,
eu comecei a frequentar os lugares que ele frequentava, tinha a esperança de que
ele se arrependesse e reatasse nosso namoro. No começo ele me evitava, insistia
para que eu desistisse, dizia que eu poderia encontrar um parceiro melhor que

163
ele. Mas, num certo dia ele cedeu e me levou para um hotel próximo ao lugar
onde estávamos. Sabe, era Nikolai, mas ele estava diferente, nós transamos
naquela noite, mas nunca tínhamos transado daquele modo, ele estava frio e
distante e me encheu de perguntas sobre a magia. Eu sentia que algo estava
muito errado, mas eu não sabia dizer o que era.

— E? - Insisti ao que ela fez a pausa.

— Nos encontramos com mais frequência depois disso, sempre acabávamos num
quarto de hotel qualquer, ele nunca mais me levou para a casa dele como fazia e
sempre me pedia para demonstrar minha magia, o que eu era capaz de fazer e
essas coisas que já te contei. Nesses encontros sempre insistia sobre a minha
capacidade de trazer demônios para esse mundo e eu sempre desconversava. Não
havia nada de carinhoso nele, nem um gesto de amor. Mas, eu me dizia que era
normal, que ele tinha deixado de gostar de mim e que saía comigo talvez porque
estava interessado em sexo ou algo assim. Entretanto, ainda estava apaixonada
por ele e estava tentando reconquistá-lo. Comecei a fazer tudo o que me pedia,
mesmo achando aquela atitude muito estranha e descomunal. Nos três anos que
estivemos juntos Nikolai sempre pareceu tão fácil de lidar, nunca tentou mudar
qualquer coisa em mim, eu quem fazia isso, insistia para ele se comportar de um
modo diferente do que fazia, exigia dele, mas ele nunca me exigiu coisa alguma.

— E por que você acha que ele mudou do nada? Algum tipo de dupla
personalidade?

— Ele nunca pareceu ter duas personalidades enquanto namorávamos. Eu não


sei dizer o que havia mudado, na época pensava que era porque ele não me
amava mais e que por isso poderia me tratar de qualquer jeito. Eu estava
implorando pelo amor dele naquele momento, fazia sentido que me tratasse com
descaso e até desprezo, eu tinha esses mesmos sentimentos quando me via
naquela situação, sentindo-me roubada e usada, mas, ainda assim, disposta a
tudo para não perder aquilo, para reconquistar o amor dele.

Ela não mentia e suas lembranças eram realmente atormentadoras. Senti pena
de Cora. Entreguei a garrafa para ela, fazendo sinal para que bebesse, era minha
forma de mostrar que me importava. Deixei meu olhar cair na paisagem, o sol
que começava a se esconder atrás das montanhas distantes e azuis com a neve a
coroar-lhe de branco dentro de um verde que começava a amarelar-se.

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Como faria para fazer com que Nikolai me dissesse algo sobre aquilo? Ela não
mentia, as suas lembranças e seu diálogo interno condiziam com o que falava. Eu
não conseguia compreender. O vento soprou meu cabelo num gesto rude e gélido,
fazendo-me arrepiar, como se invejoso de meus próprios pensamentos.

— Eu não tinha pensado antes em dupla personalidade, mas algo em Nikolai


depois que nos separamos era estranho, ele parecia desconhecer coisas as quais
ele tinha intimidade, era como que se tivesse esquecido de coisas que era óbvio
que sabia.

Será que aquele vampiro velho que enfeitiçava vampiros tinha algo a ver com
aquilo?

— E como foi com Azazel?

— Ele me enfeitiçou e me forçou a fazer tudo o que eu fiz, sem que eu pudesse
fazer qualquer coisa contra aquilo. Levou-me para uma casa velha no meio de
uma floresta, mas não sei que lugar era aquele, não me lembro de muitos
detalhes daquela noite justamente por causa do feitiço. E lá eu trouxe Azazel.

— Nikolai te apresentou algum demônio antes disso?

— Não. Nunca. Ele não me deixava saber muito sobre coisas da vida de vampiro
dele. Se andava com demônio antes eu nunca soube e ele nunca comentou nada
a respeito também. Por que está me perguntando sobre isso, Liese?

— Como disse, informação é poder. - Tomei a garrafa de volta. — Esclareça-me


uma coisa. O que você sabia sobre Loïc e os outros quando estava com Nikolai?

— Demorou muito tempo até que Nikolai me permitisse conhecer algumas


pessoas com as quais ele tinha contato, acho que estávamos para fazer três anos
de namoro quando me levou numa festa de seu clã e que conheci alguns deles.
Ele sempre foi muito reservado nesse tempo quanto a isso, nunca foi de me
contar as coisas que acontecia com ele, mesmo quando parecia claramente
nervoso ou abalado.

— E como você sabia sobre Loïc e os outros e sobre o clã dele querer destruí-los?

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— Victor, um amigo vampiro de Nikolai comentou algo sobre isso com outra
vampira numa festa e como estava por perto, ouvi. Ele dizia para ela que o líder
deles estava perdendo tempo indo contra um tal de Gustavo e que estava disposto
a convencê-lo de ir contra Loïc, Soren e os outros.

Não tive tanto contato com Victor, mas conversei com ele na festa onde fui
atacada pelo Fenecido. Entretanto, aquilo me deixou alarmada.

— Mas você disse para mim e Loïc que Nikolai havia deixado claro que ele
precisava de alguém forte para matá-los quando te forçou a trazer Azazel.

— Sim, mas apenas me disse isso depois que terminamos.

— E ele se importava com a sua magia antes de terminarem?

— Ele sempre foi curioso a respeito disso, mas não me pedia para fazer
demonstrações nessa época. Era mais eu que mostrava alguma coisa ou outra,
sempre tive essa tendência de querer parecer especial para ele, queria ser tão
interessante para ele quanto ele era para mim.

— Você tem uma tendência de falar demonstrando propriedade em assuntos que


você não conhece direito. - Suspirei decepcionada.

— Desconfia que eu esteja mentindo?

— Eu desconfio de muita coisa, Cora, meu nome deveria ser desconfiança.

— Você está atraída por ele, não está?

A encarei por um momento.

— Estou.

— Você fala sem se importar como me sinto a respeito disso.

— Você me faz uma pergunta com a esperança de que eu minta? Se não quer
saber a verdade sobre isso, então não me pergunte.

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Ela me olhou desnorteada. Sacudi a cabeça sem entender aquele tipo de
comportamento e disse em seguida:

— Tudo o que me diz condiz com suas lembranças e sentimentos a respeito, e


ainda que tenha sido usada, torturada, enfeitiçada e fazendo algo contra sua
vontade, com um maluco que quer te matar, você ainda se incomoda que eu
esteja atraída pelo seu psicopata? Eu não consigo entender essas coisas, não
mesmo. Deveria levantar as mãos para os céus e agradecer por se ver livre dele.

— Você devia se afastar dele se não estiver mais a fim de matá-lo, já que está se
sentindo atraída. - O tom ardiloso incomodara-me.

— Isso é um conselho de amiga ou de ex-namorada? E quem disse que o fato de


estar atraída por ele significa que não o matarei? Você é presunçosa, Cora, acha
que conhece alguém bem quando não sabe nada sobre a pessoa. - Estava
enojada.

— Eu pensei... - a voz era embargada. — Pensei que era minha amiga, que eu
podia confiar em você.

Sim, pensava no bem dela, se havia algo que queria era que ela fosse feliz e
levasse uma vida tranquila. Caíra naquela situação tão despretensiosamente
quanto eu, não pedira por nada daquilo. Embora muitas vezes sua personalidade
me fosse intragável, cabia-me aceitar minha incompreensão e amenizar meu
próprio julgamento a respeito dela. Ainda assim percebia-me lutando contra a
vontade de jogá-la penhasco abaixo.

— Eu quero te proteger e justamente por isso não espere muito de mim, Cora.

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25 – Pratos limpos

Entrei com Cora quando chegamos à casa onde ela e os vampiros estavam se
escondendo naquele dia. A porta pesada e amadeirada cerrou-se num golpe
abafado. Os três vampiros estavam no local, Soren e Alisha sentados num dos
sofás almofadados e marrons, enquanto que Arthur estava encostado no batente
da porta que levava para outro cômodo.

Cora cruzou a sala em passos apressados, com as mãos erguidas num


movimento rude e gritando a plenos pulmões para deixarem-na em paz pelas
próximas horas. Olhei para cada um deles com um ar debochado, finalmente
diante daqueles que mentiram para mim. Meu inverno interior ergueu-se num
vendaval gélido, sensibilizar-me não seria tarefa fácil.

Arthur olhou-me desafiador, enquanto me joguei sobre o sofá, esparramando


meu corpo como se seu relaxamento mascarasse a raiva que sentia deles naquele
momento, raiva que nos últimos dias deixei amenizar, antes que tivesse uma
atitude prematura de cravar estacas no coração de cada um deles.

Em minha mente formavam-se as imagens de batatas fritas, comidas diversas,


livros que estava pensando em ler e segurei o riso ao ver a expressão desesperada
de Arthur. Claro que ele sabia que eu não queria que soubesse o que tinha
acontecido com Cora e talvez pudesse suspeitar que não queria que soubesse o
que estava sentindo. Era fácil dar algo diferente para minha mente se ocupar,
uma telepata tem facilidade de se esconder dentro de sua própria mente.

— O que fez com ela? - Perguntou Alisha nervosa.

— Só quis saber de alguns detalhes que ela não tinha me contado ainda. A
propósito, de detalhes que até mesmo vocês não me contaram.

— Do que está falando? - Perguntou Soren inclinando-se em minha direção.

— Loïc me disse sobre o diferencial da idade do vampiro e todos me disseram que


Nikolai não era de fato um problema para vocês, já que são mais velhos do que

168
ele. Mas, ninguém me contou que Nikolai tem um poder ao qual pode acabar com
vocês quando quiser. Ninguém me disse que ele é mais forte em força bruta do
que qualquer um de vocês. Loïc, e vocês consequentemente, não estão me
ajudando apenas porque é um simples interesse, mas porque nenhum de vocês
conseguem matá-lo.

O silêncio era tumular.

— O que eu devia pensar sobre isso? Por que mentiram pra mim? Por que
nenhum de vocês me falaram do risco que eu estava correndo com Nikolai com
detalhes? Ele era do clã de vocês, não era? Sabem do que ele é capaz. Entretanto,
não seria nenhum problema para vocês se ele acabasse comigo.

— Não é bem assim. - Balbuciou Alisha.

— É como então? Do que Nikolai é capaz? Vai me dizer que não sabiam.

— Nikolai tem muita força, pode levantar um ônibus lotado se quiser. Ele tem
resistência e resiliência, ao ponto de que pode ficar algum tempo sob a luz solar
sem se machucar e ele pode desaparecer de vista a bel prazer. - Respondeu Soren
claramente desconcertado.

— Aí está meu ponto. - Havia deboche em minha voz. — Eu não tinha sequer
ideia disso.

— Você não perguntou. - Defendeu-se Arthur.

Dei uma gargalhada forçada e me levantei. Com o dedo em riste para o rosto de
Soren, disse:

— Avise Loïc que quero conversar com ele. E me considerem fora de seu maldito
clã, quando quiserem jogar limpo comigo me avisem, antes disso vão se danar.

Ia saindo, quando ouvi Arthur:

— Espere, Liese.

Voltei-me para ele.

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— Sei que se importa com a gente, que pensou em nós e em nossa segurança
esse tempo todo e erramos por não te contar sobre os poderes de Nikolai e o
quanto ele é de fato perigoso. Mas, isso não quer dizer que não nos importamos
com você. Eu estive com você esse tempo todo, cuidando de sua segurança.

— Ainda bem que posso confiar nos meus reflexos, Arthur.

Abandonei-os procurando não pensar muito naquilo, como esperado de mim


mesma, não me importar com o que estava sentindo, ao menos até o ponto onde
isso não se tornava absurdamente doloroso. Como poderia ter sido tão tola?
Devia ter me agarrado neles o tempo todo para saber o que exatamente estava
passando na cabeça deles. Sentia um ódio profundo de mim mesma.

O celular apitou tão logo dei a partida no carro: “Estou no Thoughtless.” Era o que
dizia sua mensagem curta. Um convite talvez. Já que tinha tirado o dia para
deixar os pratos limpos, por que não?

Aliás, eu não tinha acabado com ele ainda, precisava saber das coisas que Cora
havia me revelado logo cedo, precisava saber se ele era de fato um perigo para
ela, já sabia das mentiras que circulavam aquela história.

Era Nikolai, afinal. Do que adiantava negar o que sentia ou queria?

O centro já não me era um lugar tão seguro desde que vi Neil, então procurei
estacionar o carro o mais próximo do bar que consegui.

Thoughtless estava mais cheio do que o habitual, parei no balcão para um pedido
rápido e depois olhei ao redor. Ele estava no andar de cima, conversando com um
grupo de jovens. Suspirei antes de esticar o braço para pegar a minha bebida já
pronta.

Subi devagar os degraus amadeirados. Tive que desviar de três mulheres que
desciam as escadas animadas, em suas roupas curtas e sensuais, com bebidas
nas mãos e gargalhadas nos lábios.

Não o toquei e sequer fiz qualquer sinal para informá-lo que estava lá, apenas
parei próxima a ele, onde poderia me ver, com a parede sendo suporte para
minhas costas e sola do pé esquerdo num desejo de sujar o papel de parede

170
amadeirado. Ele estava em pé num círculo de amigos numa conversa animada e
eu não queria atrapalhar.

Não sei quantos minutos precisamente se passaram, mas naquele momento ele
me viu. Caminhou em minha direção e me era impossível não pensar em sua
beleza. Embora não fosse o homem ou vampiro mais bonito do mundo, ainda me
era estonteante.

“Não pense sobre isso, Liese, ele pode ser um psicopata com dupla personalidade
que você precisará matar em breve” - minha voz interior me incomodava às vezes,
admitia.

Sequer me tocou para cumprimentar quando disse:

— Não esperava que viesse, logo que não me respondeu nada. - Sua voz era
ressentida.

— Há muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo, Nikolai. – Não sei precisar se


estava chateada por não ter sequer me tocado.

— Quer ir para algum lugar onde possamos conversar mais à vontade e sem
tanto barulho?

— Prefiro, desde que haja bebida. Preciso beber hoje mais do que nunca.

— Seu alcoolismo não te incomoda?

— Não, ele é a razão de minha estabilidade mental.

Ele riu.

O segui para fora do bar e ele como sempre não estava de carro, costumava
andar em sua velocidade sobrenatural e nunca parecia preparado para carregar
ninguém consigo. Não que isso me incomodasse, mas não queria voar por
enquanto, gostava de me sentir humana.

Ao chegarmos em sua casa, me deixou sozinha esperando no ateliê e para meu


assombro pintara um quadro meu. Aproximei-me, o cheiro de tinta ainda era

171
forte e provavelmente ainda estava trabalhando nele, embora não soubesse dizer
quanto tempo alguém levava para pintar um quadro ou quando ele iniciara.

Parou ao meu lado me entregando uma garrafa de uísque e um copo, e, olhou


para o quadro que eu observava. Eu vestia um vestido branco em sua ilustração e
uma grande lua cheia coroava o ambiente arborizado que tinha idealizado para
me retratar.

Seguiu-se para a sala do piano e após uma última olhadela sobre o quadro
avancei pela sala ao lado em passos apressados. O couro do sofá resmungou
num rangido quando se sentou, os olhos caíram morosos sobre o jardim que se
iluminava enquadrado pela parede transparente.

Sentei-me ao seu lado, evitando encará-lo, depositei o olhar vazio sobre a neblina
que formava uma névoa branca sob a luz artificial que brilhava em seu jardim.
Aquilo me ajudava a não pensar muito no que estaria disposta a contar para ele,
na realidade esperava que não me fizesse nenhuma pergunta complicada.

O silêncio só não era completo por causa do vento que zunia nas árvores que já
se entregavam a nudez, o outono levava embora suas folhas e o chão estava
coberto por elas.

— Como começamos? - Sua voz era arrastada.

— Eu deduzo que você espera algum tipo de explicação sobre meu sumiço. -
Lancei-lhe um olhar ligeiro, para logo me ver agarrada a neblina.

—Acredito que mereço ouvir alguma coisa.

Por que meus sentimentos insistiam numa direção totalmente diferente dos meus
pensamentos?

— Eu penso que devia te mandar à merda, mas não consigo sentir isso.

— E o que sente?

— Que estou ferrada.

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— Não está dizendo muito. - Disse impaciente.

O vento chicoteou as árvores desnudas em lamúria.

O que eu devia fazer? Será que não teria sido melhor esperar um tempo antes de
tentar dialogar com ele? O que era assim tão difícil? Eu precisava continuar com
ele se quisesse ter certeza de que Nikolai se tratava de um psicopata de dupla
personalidade ou se estava enfeitiçado pelo vampiro velho da festa.

E sim, eu desejava que fosse a segunda opção, algo que o redimisse da culpa. Não
queria mentir para ele, mas também sentia que não podia lhe contar a verdade.
Não podia confiar nele, por mais que me pegasse querendo acreditar que era
isento de toda culpa, entretanto Cora não havia mentido e se aquele não era ele,
não poderia dizer quem era.

— Nos três primeiros dias após a festa que fomos, eu não te respondi porque
precisava de um tempo para deliberar. Amor, paixão, gostar e se importar são
coisas que me assustam. Ver você invadindo meus pensamentos ao longo do meu
dia, sem sequer ter sido chamado, só me dizia que estava perdendo o controle.
Essas coisas nunca acabam bem em minha vida.

— E depois disso? - Agora soava mais brando.

O gosto amadeirado do uísque preencheu-me como se fosse a única coisa que


pudesse sentir no mundo. Desceu suave e doce, fazendo-me ouvir o líquido
batendo no fundo do copo novamente, antes do estalido do atrito da garrafa
contra o piso amadeirado ao que abandonava a garrafa entre meus pés.

Sabia que o sofá era extremamente macio, contudo estava tão tensa que sentia
como se estivesse sentada numa pedra. A fumaça do cigarro subiu quase que
conjuntamente com o fogo do isqueiro, o crepitar do fogo no tabaco, enquanto
sugava a fumaça quente trazia me a sensação ilusória de que estava tudo bem.

— Fui para Schrödinger e encontrei-me com minha irmã. - O fitei tentando me


decidir se explicava ou não o motivo pelo qual fui para Schrödinger. — Ela me
disse muitas coisas desagradáveis, que ainda exigem uma escolha de minha
parte e diante desse fato eu não tinha cabeça para mais nada.

173
O olhei novamente, tinha virado seu tórax e se inclinava em minha direção.

— E continuo não tendo cabeça para nada.

"Especialmente quando olho sua boca rosada". - Até meus pensamentos me


sacaneavam.

— E por que não me disse? Achou que eu não entenderia?

“Continuo achando que você não vai entender”.

Mas, que diabos eu estava pensando? Será que era algum tipo de sedução? Não
podia ser, não sentia nenhuma magia vindo dele. Ele apoiou a cabeça em sua
mão, com o braço repousando no braço do sofá, como que se quisesse dizer que
tinha todo o tempo do mundo.

— É complicado, Nikolai. - Defendi-me. — Eu não me sinto pronta para falar


sobre minha vida familiar com você.

— Por que eu tenho a sensação de que você está me enrolando?

— Por que eu estou?

Ele gargalhou.

Ouvi o tilintar do copo batendo contra a garrafa quando desajeitadamente o


coloquei ao lado dela sobre o chão. Virando-me para ele, dobrei a perna sobre o
sofá e apoiei um braço sobre a coxa enquanto me inclinava em sua direção.
Afastou um pouco o tronco como se espaço fosse necessário entre nós. Os
músculos rígidos pareciam não querer moverem-se e suspirei.

Cravei-lhe o que julguei um olhar súplico, o desejo agressivo era ruidoso e


doloroso e sabia que ele o podia ouvir. Inspirei profundamente como se aquilo
pudesse me encorajar e inclinei-me tanto que meus lábios quase tocaram os dele,
fitando-o em seguida como se me fosse possível mensurar o que me era
permitido. Descansava seus olhos morosos sobre meu rosto, impassível. Senti um
aperto na boca do estômago e sabia que não era por causa do uísque. Eu beijei
suavemente seus lábios e afastei-me para o olhar novamente.

174
Não houve tempo para mensurar ou deduzir, num movimento imperceptível
apenas senti sua mão pressionando minha nuca, trazendo meu rosto
rapidamente de encontro ao dele e sua língua atrevida invadiu minha boca sem
pedir permissão.

Eu me joguei sobre ele literalmente, nos ajeitando em seguida para acomodar


nossos corpos estirados sobre o sofá agora tão escancaradamente desconfortável,
um sobre o outro, sem afastar nossas bocas sequer por um segundo. Aninhava-
me em seu peito, segurava seu rosto entre as mãos e ele me enlaçava em seus
braços, bagunçando meu cabelo num gesto ansioso.

A verdade que eu não admitiria sequer para mim mesma, o desejava mais do que
qualquer outra coisa, ao ponto de me entregar a estupidez. Cheguei até a me
lembrar da teia idiota do destino de Cora.

Seus pensamentos invadiam minha cabeça, como sua língua a minha boca.
Sabia que eu mentia, sabia que estava escondendo algo importante, mas assim
como eu, não conseguia negar o desejo, não conseguia ignorar o que sentia por
mim.

E aquilo me deixava torpemente feliz.

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26 – Bem-vinda ao lar

Quatro dias depois de ter me encontrado com Nikolai, fui ao encontro de minha
irmã.

Maya estava em pé, sobre seu salto alto, enrolando seu cabelo loiro nos dedos,
mascando indecentemente um chiclete, encostada em seu carro estacionado ao
lado da estação de trem de Louis de Broglie.

Fez questão de me examinar da cabeça aos pés em sua altivez de sempre.


Embora ela fosse loira e eu ruiva, nos parecíamos bastante, altas, com boa forma,
sensuais e competíamos para ver quem era a mais insensível, embora Maya
sempre pareceu ganhar de longe nesse quesito.

Competíamos tanto uma com a outra que era importante para um bom
relacionamento que não soubéssemos nada do que se passava em nossas vidas,
era possível que uma desse em cima do namorado da outra apenas para pirraçar
ou para fazer o pobre infeliz votar na melhor, como na disputa pelo pomo de ouro
que Atena, Hera e Afrodite colocaram Páris.

Hedy acreditava que aquela era nossa forma de demonstrar amor. Hedy sempre
fora a mais inteligente, mas se aquilo era amor, não saberia descrever o que era
ódio. De toda forma eu e Maya já nos defendemos algumas vezes. Uma vez entrei
numa briga numa boate por causa dela, para a defender. E ela já havia feito algo
semelhante, além de ter sido ela quem me separou do corpo morto de Heitor
quando me encontraram e cuidou de mim naquela noite.

Mas, tirando esses raros momentos de afeição ou o que isso fosse, nos
detestávamos. Ela sempre se sentira especial e poderosa pelo fato de que
ninguém pudesse lhe dar ordens, que mesmo de posse de seu nome secreto,
ninguém conseguia a comandar. E eu a detestava por isso também, já que
qualquer otário com meu nome secreto me forçava a fazer qualquer coisa.

— Veio com o seu carro? - Até sua voz era esnobe.

176
— Sim, embora eu more aqui no centro, não caminho mais aqui.

— Siga-me então.

Ela entrou em seu carro e ficou parada olhando pelo retrovisor até ver que eu
estava pronta para segui-la. Sentia-me confortável por ter levado o carro, assim
evitava qualquer tipo de conversa desnecessária com ela.

Viajamos por cerca de uma hora e quinze minutos rumo ao norte e a paisagem
que foi se abrindo quando já estávamos chegando – no que vim a saber depois
que era meu novo bairro – deixou-me embasbacada. Mas, o que eu poderia
esperar de Maya?

Entretanto, sequer sabia que lugar como aquele ainda existia. Era como se todas
as casas estivessem situadas numa floresta. A estrada simples de mão dupla que
seguíamos avisava a entrada em estrada de terra para a casa. E a minha
certamente não tinha placa alguma, indicava apenas que era a entrada para a
minha casa por causa de um pequeno pilar de pedra que sustentava a escultura
grande de um gato, meu animal preferido.

Da entrada da estrada de barro a partir do gato até chegar onde estava


exatamente a minha casa levamos cerca de vinte minutos. A estrada tinha
passagem para um carro apenas e era ladeada por um bosque de bétulas que
agora estavam carregadas com suas folhas amarelas e vermelhas por causa do
outono, com seus charmosos troncos brancos.

Ao que finalmente deixamos a estrada de barro demos num lugar gramado, como
se fosse uma larga clareira do bosque, onde se situava minha casa, grande
demais para uma pessoa só. Em frente dela estava a piscina, agora coberta e todo
o lugar era gramado, com um caminho pavimentado até a varanda da casa que
seguia em toda a sua extensão, dando um ar de casa de campo, com
espreguiçadeiras e cadeiras espelhadas por toda a varanda e um balanço para
duas pessoas ao lado da entrada principal que era de vidro, assim como as
paredes ao redor da entrada.

Ao lado da casa estava a garagem, um galpão largo e bem-acabado, que abriu sua
porta automática, provavelmente com clique no controle remoto que devia estar
com Maya, já que ela estacionou seu carro lá e fiz o mesmo.

177
Ao descer vi que havia quatro carros de cores e modelos diferentes na garagem,
esportivos como eu gostava, ao menos ela teve cuidado ao escolher por mim, já
que nossos gostos eram diferentes. O que não pude dizer o mesmo sobre casa
quando entramos. Era grande e espaçosa demais, bem ao gosto de Maya, já que
eu preferia os ambientes menores.

Ela me levou para a traseira da casa no térreo, logo que tinha dois andares,
levando diretamente para um salão que exceto pelas paredes internas, todas as
paredes que davam para fora eram de vidro, dando a vista para um pequeno lago
que estava ofuscado pelas árvores do bosque que continuava até se perder de
vista, dizendo:

— Sei que você adora paredes de vidros com uma vista bonita e só escolhi essa
casa por causa disso. Os quatro carros da garagem são seus, Hedy disse para que
você use um carro diferente a cada dia.

Havia uma enorme cortina preta que era acionada por um botão que fecharia
tudo para que a televisão enorme pudesse ser usada sem a interferência da luz
natural. Lá também estava o bar com uma enorme adega climatizada, com
bancos de madeira em jacarandá combinando com o resto dos móveis. Estava
tudo bem até aquele momento.

No centro havia um tapete felpudo de pele sintética na cor marrom aos pés de
enormes e confortáveis sofás. O home theater não era ideal, mas serviria bem
como aparelho de som e havia vários instrumentos musicais espelhados por todo
o cômodo, e agradeci pelo piano, já que era a única coisa ali que arriscava tocar.

Não saberia dizer qual das duas era mais exagerada, se Hedy ou Maya.

Balancei a cabeça pensando ainda sobre usar um carro a cada dia, enquanto a
seguia pela casa, abriu uma porta abaixo da escada que dava para o andar de
cima, acendeu a luz suave no interruptor ao lado da porta e desceu uma escada
de madeira. Demos num porão bonito, com decoração em tijolos vermelhos onde
havia cinco caixões, abajures de chão, televisão e um home teather. Queria saber
qual era o problema das minhas irmãs com televisão. E sim, eu estava perplexa.
Para quê eu queria caixões no meu porão? Ela esclareceu em seguida:

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— Isso aqui também é ideia da Hedy, disse que é para os seus amigos quando
quiserem dormir na sua casa.

Balancei a cabeça inconformada, seguindo-a novamente, já que parecia estar com


pressa para me mostrar a casa. E enquanto passávamos rapidamente de um
cômodo para o outro, ela dizia:

— Compramos várias roupas feitas sob medida para você, casacos, vestidos e
camisas que não se rasgarão se precisar de suas asas. Claro que eu quis escolher
os modelos, mas a Hedy preferiu ela mesma escolher e ajudei nas escolhas pelas
coisas cafonas que você gosta de usar.

— Não uso nada cafona. - Impliquei.

— Nem todo mundo tem bom gosto como eu.

— Como se você tivesse bom gosto.

Ela subiu pela escada em caracol quadrada, toda em madeira escura, que dava
para o andar de cima, me levou para o que viria ser o meu quarto, era tão amplo
que dava a sensação de vazio. Numa parede larga estava a estante de livros,
embora não houvessem muitos, elas sabiam que eu gostava, mas certamente
Hedy devia ter escolhido pra mim e ao lado da janela uma escrivaninha, com um
notebook sobre ela.

— Nada de usar a internet. - Avisou Maya ao me ver observando o computador.


— Hedy disse que é apenas para você passar o tempo com jogos e outras coisas
que gosta de fazer no computador.

Mostrei-lhe a língua.

Meu quarto tinha quatro portas, um que dava no corredor para o andar de baixo.
Outra que dava para o amplo banheiro, uma que dava para o closet imenso e
repleto de roupas para todas as estações e climas, e um segundo closet com
sapatos onde havia duas portas altas de cofres.

Ela abriu o primeiro cofre e com uma careta espalmou a mão como num convite
para eu olhar, havia todas as armas e munições possíveis de se encontrar

179
naquele cofre, até mesmo estacas e bestas. A voz debochada e esnobe de Maya
rimbombou nas paredes:

— Suas irmãs sabem de seu gosto duvidoso e de suas neuroses.

— Como se não usasse nenhuma arma. - Disse sarcástica.

Ela abriu o segundo cofre e nem precisou dizer coisa alguma, havia apenas muito
dinheiro, alguns documentos e pastas. Pegou uma dessas pastas e me entregou.
Ao abrir, vi que tinha vários documentos com a minha foto, mas com um nome
diferente. Liza Finkler.

— Tenho nome novo agora?

— Para todos os efeitos você é uma nobre da família Finkler. Ideia da Hedy, sabe
como ela é obcecada com essas coisas de identidade. Tem uma conta no banco
também, senhorita Flinker, mas Hedy disse para usá-la apenas em último caso.

Folheei os documentos, identidade, passaporte, carteira de motorista, documento


da casa, dos carros e alguns papéis como bilhetes que registravam alguns
endereços e umas chaves. Perguntei:

— O que é isso?

— Vamos nos corresponder com cartas escritas à mão, não é o sistema mais
rápido de comunicação, mas Hedy disse que é o mais seguro. Essas cartas serão
deixadas na caixa de correio da Casa A, que estará trancada com cadeado, por
isso as chaves demarcadas com as letras A, B e C. As pessoas que vão levar essas
cartas jamais nos verão pessoalmente e não devemos nunca assinar com nossos
nomes. Você deve assinar apenas como Corvo. Eu assino como Raposa e Hedy
como Girafa.

— Girafa, sério?

— Ela é baixa e magricela, deve ter o desejo de ser grande e pescoçuda, vai saber.
A Hedy é louca. Mas, sim, voltando as cartas. Você deverá sempre checar a
correspondência na Casa A pelo menos quatro vezes por semana, isso fica por
minha conta, porque Hedy disse todos os dias e jamais no mesmo horário, se por

180
acaso o cadeado estiver arrombado, dirija-se para a Casa B e se ocorrer de haver
violação na caixa de correio lá também, vá para a Casa C.

— E se a Casa C estiver arrombada também?

— Foge, porque se isso acontecer, fomos descobertas. Hedy enfatizou que eu


repetisse sem parar para você não criar nenhuma rotina, nada de sair dessa casa
sempre no mesmo horário, para mudar sua aparência também, tingir o cabelo e
cortá-lo, você sabe. Embora não tenha como seus vizinhos te verem pela
distância que uma casa tem da outra e muitos só vêm para cá para passar
temporadas ou nos finais de semana e feriados, é melhor não se expor muito.

— Não acha que a Hedy exagera com essas coisas?

— Acho. - Ela deu de ombros. — De toda forma ela também pediu para te avisar
que poucos e apenas aqueles que você realmente confia podem saber onde você
mora. E para ficar longe do centro de Louis de Broglie. Quanto menos demônios
te verem melhor.

— E onde vou para passar meu tempo e me divertir?

— Você quer dizer encher a cara e ouvir rock com se divertir? - Disse debochada
enquanto deixávamos o quarto.

— Cinema e teatro também me divertem.

— Há uma vila aqui perto que tem bares, cinemas, shoppings e qualquer coisa
que você precisar, se chama Constante de Planck em honra a Louis de Broglie.

— Que original!

— Dizem ser o segundo centro do norte. Dá uma chance, de repente é


interessante.

Maya estava me assustando com toda aquela gentileza.

181
— Há mais três quartos de hóspedes nesse andar e uma biblioteca que Hedy fez
questão de comprar todos os livros e títulos que você deixou em Schrödinger.
Todos os cômodos do andar de cima estão ligados pela sacada. Depois você olha.

Descemos novamente pela escada e ela me guiou até uma segunda sala de estar,
com uma tela ainda maior e home theater, sofás confortáveis, tapetes felpudos e
macios, bar e tudo o que tinha na outra sala. Embora essa ainda tivesse um
espaço mais amplo e uma porta que dava para um salão de festa.

Eu me servi de bebida, enquanto Maya se jogou no sofá, observando as réplicas


de Monet nas paredes como que se estivesse pensando ainda na decoração.
Sentei-me no outro sofá ao seu lado. Perguntei:

— Você que organizou tudo isso?

— Acha mesmo que eu faria isso? Foram as pessoas que trabalham para Hedy e
que vivem em Louis de Broglie que deixou tudo isso como está. Só dei ordens,
nada mais.

Ela remexeu em sua bolsa e me jogou um celular que propositadamente acertou


meu rosto, ao passo que tive que me mover rapidamente para agarrar o
carregador no ar antes que acertasse minha cabeça também.

— Coisas de Hedy. Esse celular não tem como ser rastreado, mas ela disse para
não usá-lo, a não ser que precise muito.

— Eu já estou usando um celular. Estou aqui no fim do mundo e as pessoas que


conheço nessa cidade estão próximas do centro. Preciso de alguma coisa para me
comunicar.

— Então use o não rastreável. Aviso Hedy sobre isso. Estava me esquecendo, um
homem e uma mulher virão aqui três vezes por semana para limpar a casa e
cuidar do jardim, piscina e bem, essas coisas. Margarete e Vincent. Já os
informei que você detesta conversar e expliquei o que precisam fazer, não se
deixarão sequer que você os note quando estiverem aqui. Sabe que eu sei como
escolher os criados.

182
Sim, ela sabia mesmo, éramos semelhantes em nosso mau humor e no trato com
as pessoas, e se alguma pessoa era boa para conviver com Maya, certamente
também era para conviver comigo.

— O que mais você precisa? - Perguntei.

— Estou esperando Vincent chegar para cadastrar sua digital para trancar essa
casa e acionar o alarme. Sua casa não tem chave, meu amor.

— Não sei se me agrada.

— Não me importo com o que você acha.

Quando será que ela iria embora?

183
27 – E a vida continua

Margarete era uma mulher engraçada, a via pela casa de vez em quando, nunca
falava comigo se eu não lhe dirigisse a palavra e cozinhava bem como ninguém. E
Vincent eu raramente via, cuidava de meu jardim e todas as coisas externas. O
lugar era geralmente silencioso e calmo, calmo até demais e eu sempre fugia para
Constante de Planck.

Admito que a pequena imitação de centro ao norte não era tão divertida e não
tinha nenhum lugar que realmente me agradasse, exceto por um bar que se
chamava Non-Sense. Embora sempre achasse que Hedy exagerava com suas
ideias de segurança e discrição, não podia frequentá-lo como gostaria e em menos
de uma semana eu já estava completamente entediada.

Decidi naquele dia ir para a Casa A à noite para checar a caixa de


correspondência, pois tinha combinado de me encontrar com Loïc no Madame
Satã. Arthur tinha entrado em contato comigo para me avisar sobre aquilo,
depois de uma semana insistente com todos os pedidos de desculpas possíveis e
imagináveis. Todos devidamente ignorados.

Enquanto dirigia pensava se deveria ou não trazer Cora para morar comigo.
Incomodava-me o fato dela ficar com os vampiros, mas seria um problema se eu
trouxesse Nikolai para minha casa, como estava planejando enquanto ia para a
Casa A. Embora desconfiasse dele, não mais resistia ao que sentia, estava
infernalmente em paz com isso.

Abri a caixa de correspondência estacionando o carro vermelho bem ao lado dela.


Ficava numa casa vazia, num bairro deserto, que eu jurava ser desabitado. Pela
primeira vez encontrei um envelope desde que me mudei. Dentro dele estava
apenas um endereço, com a data para dali dois dias, às 23 horas e um pequeno
recado: “Vá armada até os dentes, vampiros são esperados. Girafa”.

Eu nem precisava pensar muito, era assim que trabalhava em Schrödinger,


provavelmente só teria que chegar no local e matar tudo que se movesse.

184
Sua imagem se formou em minha mente, enquanto eu dirigia para o Madame
Satã e simultaneamente ao que seu rosto belo e claro pairava em minha mente, o
celular apitou me informando sua mensagem. Será que era algum tipo primitivo
de telepatia?

“Estou com saudade. Quando vamos nos ver?”.

“Ainda preciso te convidar para vir em minha nova casa”. - Olhei a mensagem,
enquanto dividia a atenção com o volante, odiando-me por me sentir alegre com
aquilo.

“Estou ansioso.”

Psicopata fofo maldito! Fazia nove dias desde que o encontrei pela última vez e
sim, também queria encontrá-lo. Claro que eu demorava para o ver justamente
para não me envolver mais do que já estava envolvida, mesmo sabendo que ele
poderia me indicar coisas e lugares que poderiam ser do interesse de Hedy.

Sempre o mesmo maldito tormento, os sentimentos brotavam e o raciocínio se


turvava, mesclando-se com ações estúpidas, desejos cretinos e filosofias
questionáveis.

De toda forma não tinha mais que ficar me enganando naquela altura, não tinha
nenhuma força contra a estupidez quando o assunto era ele. Apenas sabia que
seria doloroso o dia que tivesse que por fim a vida – ou seria a morte? – dele.

“O que acha de conhecer minha casa amanhã? Vai estar disponível?” - Qualquer
hora bateria o carro por ficar digitando no celular.

“Te encontro onde? Que horas?”.

“Em frente ao Thoughtless. Às 20 horas. Moro longe do centro agora.”

“Estarei lá.”

Sorri e aumentei o volume da música. Eu estava totalmente louca. Entretanto,


como li uma vez, a sabedoria consistia em ter a razão por guia, coisa que admito
tentar fazer a maior parte do meu tempo, e, a loucura, pelo contrário, consistia

185
em obedecer às paixões; contudo o filósofo também dizia que para que a vida dos
homens não fosse triste e aborrecida, Júpiter havia lhes dado mais paixão que
razão.

Eu tinha que concordar com Júpiter naquela altura, ainda que não o conhecesse
pessoalmente. O que haveria de divertido se não fosse o caminho para a
autodestruição que eu seguia?

Tinha que admitir que a sensação de familiaridade quando entrei no Madame


Satã era agradável, já estava tão acostumada com Louis de Broglie que
sinceramente quase não sentia falta de Schrödinger, mesmo que minhas relações
não fossem das mais felizes.

Entre as centenas que se divertiam naquele lugar, fiquei estupefata quando vi


Alisha e Cora se apresentando no palco de dança improvisado embaixo do
mezanino. Rostos conhecidos como de Arthur, Maxius e Yasmin se misturavam
com os desconhecidos.

Fiz um sinal levantando o dedo indicador para Astrid e aguardei até que
entregasse minha mistura favorita. Não cumprimentei ninguém e segui
diretamente para o mezanino onde provavelmente Loïc devia estar me esperando.

Senti a maçaneta fria em minha mão, enquanto inspirei profundamente o ar


escuro do corredor. Os vi na penumbra no fundo do mezanino, sentados numa
mesa amadeirada, coberta por uma toalha vinho e com um candelabro sobre ela.
Soren virou-se para olhar-me quando Loïc inclinou levemente a cabeça ao me ver
entrar.

Puxei a cadeira produzindo um ruído irritante, escorri um olhar desdenhoso


sobre os dois antes de me sentar, colocando o copo sobre a mesa e queimando
levemente os dedos sobre a chama de uma das velas. Fitei Loïc por um momento,
enquanto ainda brincava com a vela, dizendo:

— Vamos conversar sobre confiança hoje?

Ele maneou a cabeça.

186
— Se estiver disposta a me contar sobre o que está acontecendo entre você e
Nikolai, quem sabe?

— Você sabe o que está acontecendo entre eu e Nikolai. - O encarei.

— Sei? Cora me disse que você confirmou que estava atraída por ele. Ela duvida
que você venha a matá-lo, está envolvida demais.

— Cora sabe tanto de mim quanto você. E antes de falarmos sobre isso, o que
acha de me contar sobre ter me enviado até Nikolai sem saber absolutamente
nada do que era capaz? Ou sobre o motivo pelo qual você prefere que eu o mate
em vez de você mesmo?

Ele colocou o caderno que havia me dado enquanto ainda estava morando com
ele sobre a mesa e o empurrou em minha direção criando pequenas ondulações
na toalha. Olhei para o caderno com desdém e voltei a encará-lo.

— Queria te entregar pessoalmente. A propósito sua casa nova é linda. Adorei


todas aquelas bétulas e gostei de me balançar no balanço ao lado da porta de
entrada.

— Eu gosto de você, Loïc, não me faça me arrepender disso agora. - Dei um gole
na bebida, o olhando de soslaio.

— Apenas acho que você está fazendo uma tempestade num copo d'água. Apenas
esquecemos de te informar sobre os poderes de Nikolai. - Suas mãos estavam
estranhamente agitadas.

— Vocês mentiram! - Objetei. — Disseram que poderiam acabar com ele a


qualquer momento. Esperaram eu chegar com a ideia de matá-lo por causa de
Cora e se aproveitaram da situação.

— E como foi que você chegou aqui mesmo?

— A verdade é que eu tinha muito pouco a ver com toda a história que me fez
parar aqui em suas mãos. Fiquei sabendo há pouco tempo que Philip estava
tentando proteger o seu clã e ainda assim vocês mataram Katrien. Por que? O
que você sabe sobre isso, Loïc? Katrien me dissera que vocês faziam negócios com

187
o pai dela, colocando mutantes descerebrados para proteger vocês. Realmente
não sabia que ele tinha a ideia de entregar uma De Vries para vocês? Já sabia
meu nome, não era? Além dos poderes de Nikolai, o que mais eu não sei, Loïc?

— E o que você sabe, Liese? - Havia tanto desdém em seus olhos que senti
vontade de esbofeteá-lo.

— Eu não estou aqui para jogos, Loïc e quero a verdade.

— Conte a ela. - Interveio Soren tentando apaziguar.

Loïc lançou o olhar sobre Soren e fitando-me em seguida, disse:

— Sim, eu sabia que você viria e por isso dei o meu sangue para você beber.
Sabia que era a filha de Klaus De Vries e que eu devia te manter comigo e em
segurança, porque nem você sabia que estava vindo para cá. Pelos desejos de seu
pai era para você estar com Gustavo. Philip disse que a chance de você se voltar
contra seu pai é muito grande e que era melhor que a tivéssemos como aliada.
Ele disse que quando você soubesse o que Klaus fez, você ficaria contra ele
certamente.

— Então todos vocês estão envolvidos com a política? - Eu estava estarrecida.

— Eu não dou a mínima para política, o que quero evitar é um extermínio da


minha raça.

— E o que Nikolai tem a ver com isso? O que me falou sobre ele querer
exterminar a humanidade e tomar o controle dessa cidade é verdadeiro? - Agarrei
sua mão prontamente.

— Não. - Olhou para a minha mão com certo pesar. — Nikolai é perigoso, ele tem
o poder necessário para nos exterminar e ideias próprias, não segue nada e nem
ninguém e se afiliou a um clã com ideias semelhantes as dele.

— Que ideia? - Estava indignada.

— Nikolai acredita que cada individualidade tem um força por detrás, uma força
que ele chama de Vontade e que essa Vontade determina o caminho tomado pelo

188
homem ou vampiro ou ser. O perigo disso é que ele acredita que a pessoa não
tem outro direito a não ser fazer a vontade dela. E é complicado porque essa
vontade embora ele acredite ser algo como um propósito, ele incita que cada um
deve fazer o que quer, porque essa é a única lei a qual deve ser seguida. E esse
clã adotou esse credo e eles fazem exatamente o que querem, o que é um perigo
para todos.

— Ele virou seu inimigo por ter uma filosofia diferente da sua?

— Ele virou meu inimigo quando o clã dele decidiu que as ideias que decidiram
ultrapassadas do meu clã deveriam ser retiradas de nosso meio.

Não estava dizendo tudo. Eu sabia, disse que se esconderam e deixaram de viver
sozinho quando Nikolai deixou o clã dele. Entretanto, estava irritada, não sabia
que Loïc poderia ser tão intratável.

— E como você soube disso?

— Fiquei sabendo disso após alguns vampiros de nosso clã serem mortos e em
nossas investigações descobrimos que vampiros do clã ao qual Nikolai faz parte
os mataram. Não o atacamos abertamente até pelo perigo que Nikolai significa
para todos nós.

Estava tão enojada que tudo o que conseguia sentir por Loïc era repulsa. Lancei
um olhar para Soren, ignorei completamente o caderno e saí em seguida. Não
suportava ficar naquele lugar nem por mais um minuto.

Arthur ainda tentou evitar que eu deixasse o bar, segurando em meu pulso, mas
puxei meu braço bruscamente sentindo a ardência do atrito entre nossas peles
soltando-me de suas mãos e viajei de volta para casa.

Era informação demais. Eu sabia que teria que encontrar Philip para saber o que
meu pai havia feito que me colocaria contra ele. Sabia que nada mais fazia
sentido, estava me sentindo enganada por todos.

Todo o tratamento que Loïc me deu enquanto estive com ele tinha apenas como
objetivo me ter como aliada, criar algum tipo de laço de amizade para que ficasse

189
ao seu lado quando fosse contra meu pai ou qualquer plano que tivesse em sua
mente.

Não podia entender porque estava tão chateada se esperava por aquilo. O que
esperar das relações sociais senão uma rede de interesses? Não importava se
homem, demônios, vampiros ou qualquer coisa, a sociedade era hipócrita, as
pessoas e seres fúteis, egoístas e interesseiras. Meu isolamento social sempre
esteve certo, as relações sociais era como uma árvore que ao ser balançada só cai
fruto podre.

Entrei em casa indo direto ao cofre de armas, peguei um machado e desci ao


porão. Liguei a televisão e coloquei uma música agressiva num volume
ensurdecedor e comecei a golpear os caixões que minhas irmãs deixaram lá. Para
eu ter lugar para meus amigos. Que ironia! Quem tinha amigos nesse mundo?

Meus gritos eram mais ensurdecedores que a música, ria enquanto as farpas
cravavam em minha pele e rosto, dolorosas e ardidas, algumas tão ferozes que
arrancava o líquido vermelho e quente de minha pele. As madeiras se partiam em
lamentos, lamentavam a minha raiva e dor. Descreviam em poeira e pequenos
pedaços a minha aflição.

A fúria irracional sequer permitia que fechasse os olhos em reflexo e proteção a


madeira que saltava, rodopiava e dançava no ar. Às vezes abandonava o machado
apenas para tentar espatifar pedaços maiores batendo-os contra a parede, o que
resultou em mãos doloridas, sangrentas e inchadas.

Quando apenas um caixão restava e a insanidade pareceu ter se escorrido por


completo para fora junto com o suor que umedecia meu corpo, eu levantei o
machado novamente, mas minhas mãos não desceram para desferir o golpe.

O azul-cinzento de seus olhos pareceram me fitar novamente, naquela expressão


apessoada e morosa. O machado parecia terrivelmente pesado, o suor e as
minúsculas farpas pareciam ter um plano para me cegar. Fechei os olhos numa
inspiração profunda, o toque, a maciez da pele, a voz aveludada e calma, todos o
queriam morto. O queriam derrotado apenas porque era forte e poderoso, por ser
um perigo ambulante.

Deixei o machado no chão, um caixão inteiro e saí do porão.

190
28 – Sim para a loucura

Nikolai me esperava em frente ao Thoughtless quando parei o carro e buzinei


acenando para ele. Esboçou-me um sorriso encantador e pulou rapidamente para
dentro do carro no banco do passageiro. Nos beijamos antes que eu desse a
partida.

Ele conversava animado, em especial sobre coisas banais, sempre com um ou


outro elogio, galanteador que era. Eu sequer dava muita atenção, estava calada
diante do que pensava fazer aquela noite. Ao menos se tivesse coragem.

Ao que abri a porta e entrei, ele ficou parado ao lado de fora, fazendo-me voltar e
olhá-lo sem entender. Sorrindo, divertido, ele disse:

— Um vampiro só pode entrar na casa de alguém se for convidado.

Nunca soube daquilo, também nunca convivi com vampiros em Schrödinger e


quando eu vim para Louis de Broglie todas as casas que fiquei, antes de minhas
irmãs comprarem a minha, eram de vampiros. Sorri, dizendo:

— Por favor, entre, senhor Ilitch.

Como ele tinha cômodo semelhante o guiei até a sala de paredes de vidro e acendi
as luzes do quintal para que pudesse observar um pouco do bosque e o brilho
das luzes artificiais no pequeno lago distante.

Enquanto ele mexia nos instrumentos musicais espalhados pela sala, preparei
uma bebida para mim e numa taça coloquei um pouco de sangue para ele.
Durante o período da tarde quando fui checar a correspondência da Casa A,
passei num pequeno hospital em Constante de Planck e subornei um enfermeiro
para me vender algumas bolsas de sangue.

Entreguei a taça com o líquido grosso e vermelho e ele cheirou. Soltou uma
gargalhada em seguida, dizendo:

191
— Não acredito nisso!

— Está refrigerado, não sei se é possível beber o sangue desse jeito.

— Onde conseguiu isso?

— Num hospital em Constante de Planck. É chato beber sozinha.

Surpreendeu me com um beijo rápido e intenso e continuou sorrindo depois que


me soltou de seus braços. Deu apenas um gole no líquido vermelho e colocou a
taça sobre o balcão do bar.

Ele parecia curioso sobre minha casa e o guiei de cômodo em cômodo. Estava
encantado com a decoração, embora não pudesse me gabar muito disso, porque
minha irmã Maya que tinha cuidado de tudo. Entretanto, pareceu
particularmente interessado em meu quarto.

Ficamos lá por um longo tempo, ele olhava os livros com interesse, depois sentou
em minha cama passando a mão sobre a colcha macia que a protegia, pegou
alguns dos travesseiros e os cheirou. Achei a situação tão engraçada que sentei
na cama rindo.

— O que está fazendo? - Perguntei.

— Tentando estabelecer uma pequena ligação telepática com você, já que somos
dois idiotas como você diz.

— E o que cheirar minha cama tem a ver com isso?

— Tem a sua energia, seu cheiro, seus pensamentos, seus sonhos, é o lugar onde
você se rende, para de brigar contra o mundo e se entrega ao universo. Ficando
frágil e inconsciente por horas. Entendendo essa sua energia, posso aparecer em
seus sonhos quando precisar.

— Todos os vampiros podem fazer isso? - Perguntei curiosa.

192
— É bem comum, mas não são todos o que fazem. Alguns são tão bons nisso que
podem fazer com que as pessoas os vejam em seus quartos, ainda que não
estejam fisicamente presentes.

— Poderei te ver em meu quarto?

— Se eu quiser e você também, sim. Dispende muita energia e por isso os


vampiros não usam tanto essa técnica, mas é boa para momentos em que a
telepatia se faz necessária.

Eu aprendia mais sobre vampiros com Nikolai do que pude aprender com Loïc.
Na mesa de cabeceira ao lado da minha cama, havia deixado metade de uma
garrafa de conhaque na noite anterior, estiquei o braço e enquanto ele ainda se
esfregava e cheirava a minha cama, tomei todo o líquido.

— Eu não estou muito certa sobre isso, mas preciso te dizer algo importante.

De fato eu precisava de mais bebida, aquilo se tornou tão claro quanto o dia
quando proferi aquela frase. Inquieta o deixei sozinho e desci até o bar para pegar
outra garrafa. Ele estava para descer a escada quando retornei e pareceu gostar
da ideia de retornar para o quarto e o segui.

— Está tudo bem?

— Não.

Como eu diria a ele?

— Nikolai, estive te evitando esse tempo todo porque eu percebi que gosto de você
e tudo o que eu não queria era gostar de você.

— Por que não queria gostar de mim, se eu gosto tanto de você?

— Primeiro porque eu detesto amar o que não posso controlar e segundo porque
relacionamentos nunca acabam bem.

Mais um terço da garrafa garganta abaixo enquanto seus olhos me examinavam


num misto de meiguice e divertimento.

193
— Definitivamente isso não devia ter acontecido, mas acho que me apaixonei por
você.

Ele avançou sobre mim e tentei me esquivar para continuar bebendo. Não deu
muito certo, ele era mil vezes mais rápido que eu e me vi totalmente envolvida em
seu beijo. Seus olhos preguiçosos apertados pelo sorriso fez me desfalecer quando
disse:

— Eu também estou apaixonado por você, Lie.

Novamente levei o gargalo da garrafa à boca, podia ouvir minha voz interior
gritando mais do que os grilos que cantavam lá fora: “Não, Nikolai, não era essa a
resposta, tinha que me dizer que estava louca, fora de controle e totalmente sem
noção”. Indelicada me soltei de seus braços e fiquei em pé.

Seu semblante denotava sua confusão, enquanto eu tentava reunir a coragem


necessária para lhe dizer a verdade. Meu coração estava disparado e observei o
olhar de Nikolai sobre a veia de meu pescoço que saltava. Do que estava com
medo?

Sentei-me novamente na cama, inquieta e segurei sua mão. Ele não dizia nada,
apenas me olhava como se tivesse todo o tempo do mundo para esperar que eu
me acalmasse.

— Encontrei Cora certa noite, pedindo ajuda num ritual para Lilith. Eu sou um
ser da noite, um demônio da noite e devo fazer o que as deusas da noite me
pedem. Nós demônios não somos exatamente como os vampiros, fazemos parte
de uma linhagem e essa nos leva até deuses que podem nos ordenar fazer
diversas coisas. Também ficamos submetidos as ordens daqueles que possuem
nossos nomes secretos, por isso ninguém os sabe, exceto os maiorais da
linhagem que nos comandam. E quando eu encontrei Cora, soube que Lilith
queria que a protegesse. E ela me pediu para que eu a protegesse de você.

— Por que ela precisaria se proteger contra mim? Sempre desejei o bem dela.

Senti-me ainda pior quando seus pensamentos e sentimentos apenas me


mostraram que ele dizia a verdade. Como aquilo era possível? Será que foi
realmente enfeitiçado?

194
— Eu não sei. - Estava ainda mais confusa. — Bem, acontece que eu não vim
para Louis de Broglie precisamente a trabalho. Meu pai armou para mim,
inventou uma desculpa de que queria me esconder porque eu tenho um
perseguidor em Schrödinger chamado Neil e porque matei meu namorado.

— Como assim matou seu namorado?

— É uma longa história e se eu parar para contar o que aconteceu com Heitor
não conseguiria te contar o que eu preciso.

Assentiu com a cabeça.

— Meu pai quer tomar Louis de Broglie para si e tinha planos de me manter com
os vampiros para que quando chegasse o tempo, ele me desse a ordem de
extermínio.

— Ordem de extermínio?

— Eu sou uma assassina. - Fiz uma pausa para observar sua feição, mas
continuava impassível. — Philip, o cientista doido aqui de Louis de Broglie, era
vassalo do meu pai e organizou para que eu ficasse com os vampiros que
supostamente meu pai queria que eu ficasse, mas Philip estava planejando
contra meu pai e me enviou para um clã totalmente distinto do que meu pai
esperava e fiquei com Loïc por um tempo.

Seu silêncio e imobilidade estavam me dando nos nervos.

— Embora eu não soubesse de nada por parte de ninguém, todos estavam cientes
disso e quando encontrei Cora e com tudo o que Loïc me disse ao seu respeito, eu
me aproximei de você com a intenção de te matar, mas não sem antes saber
quais as suas intenções e o clã de Loïc me deu suporte. Mas, foi por me sentir
atraída por você e por tudo o que você me transmitia ser completamente diferente
do que todos me diziam, que a verdade foi se revelando.

— Que verdade, Liese?

Preferia não ter olhado para ele, estava com o semblante severo e retirou a mão
da minha. Eu não sabia como continuar.

195
— Talvez eu não devesse me explicar. Eu preciso apenas que saiba que meu pai
está ligado a um vampiro chamado Gustavo que eu desconheço e os planos dele é
exterminar com todos os vampiros, inclusive o Gustavo quando seu clã e de Loïc
forem exterminados e você está no topo da lista negra dele e de todos os outros,
porque você é o vampiro mais poderoso pelo que entendi. Todos te querem morto.

— Até você?

— Não. Até ontem eu apenas queria saber se você realmente era um perigo para
Cora, mas quando eu soube que fui enganada e usada por todos, queria apenas
te contar a verdade. - Meus olhos estavam marejados. — Dane-se se Lilith me
punir, dane-se o que de fato aconteceu entre você e Cora... - Com voz embargada
continuei: — Eu decidi te proteger.

— Não preciso da sua proteção.

Daria qualquer coisa para saber o que se passava em sua cabeça, seu rosto não
sustentava qualquer expressão e a rudeza de sua voz não me transmitia qualquer
tranquilidade. Olhou-me por um momento e depois deixou a minha casa,
saltando pela janela.

Já não mais podia o ver em qualquer lugar quando fui até a sacada. Nikolai
partira.

196
29 – Em ação.

De volta a estaca zero. Gostaria de me dizer que estava tudo bem, que estava
acostumada com aquele tipo de vida e que me sentia bem em minha solidão, mas
não era verdade. Eu estava arrasada.
Enquanto caminhava pelas ruas movimentadas de Constante de Planck percebia
sob a luz pálida que o inverno parecia apressado e que avançava sobre o outono
ansioso. A neblina umedecia meu rosto como deveria fazer as lágrimas que eu
não permitia rolarem. Triste sim, vencida nunca.
Pensava sobre trazer Cora para morar comigo, sabia que era o correto a se fazer,
já que Lilith queria claramente que ficássemos juntas. Ela não tinha nenhum
motivo para ficar aos cuidados do clã de Loïc, ele não estava preocupado com
ninguém além de si mesmo e seus comparsas.
Talvez fosse apenas questão de tempo passar pelo aborrecimento e a raiva que ela
sentia por mim, nem precisaria saber que informei Nikolai sobre o perigo que
estava correndo e logo se sentiria bem ao ver que nem estava me encontrando
com ele mais. Pelo modo como me deixou na noite anterior, certamente não o
veria novamente.
Sentei-me no banco de metal numa praça arborizada onde observava as pessoas
passando apressadas com suas sombrinhas ou apertando seus casacos. As
vitrines das lojas com suas ofertas imperdíveis de sempre, agarrei-me ao vento
que cantava nas copas das árvores.
Meu estado era deplorável, jamais imaginara que me sentiria daquela forma por
causa de Nikolai. Apalpei o casaco úmido pela neblina antes de levar o cigarro à
boca. Loïc pairava também em minha mente, numa visão cinza e dolorosa, eu não
queria, mas tinha que admitir que desejara a amizade dele. Contudo, me sentia
traída.
Eu que sempre fora amante da solidão, a odiava sob o cinzento do dia, como uma
amante traída que vê todo o encanto se desvanecendo numa imagem cruel. Todos
aqueles malditos sentimentos sempre incontroláveis, afogando a alma perturbada
num lago de fogo.
Olhei várias vezes o relógio e aquelas malditas horas não passavam, mesmo
sentindo que meu casaco já estava encharcado. Retornei para casa, afundando-
me na banheira de água quente, enquanto forçava um livro a tentar roubar
minha atenção de meu interior para um mundo fantasioso e brilhante, oposto a
minha realidade desprezível.

197
As horas se arrastaram, entretanto me senti melhor quando a noite chegou, vesti
um sobretudo que caía até os tornozelos que estava pesado pelas várias armas
que havia colocado em seus vários bolsos internos. Em uma bolsa de mão,
coloquei mais armas, estacas e algumas bestas. Prendi meu cabelo numa trança
e saí.
O GPS me guiava enquanto me dirigia ao local que Hedy pedira, o trabalho era
vida, ele podia me tirar do caos interno que me encontrava e sequer os
sentimentos pareciam gritar como antes. Não que a imagem dele sumisse
completamente de minha mente, mas não doía tanto.
O lugar como indicado era um galpão cercado por um alambrado, alguns
cachorros corriam soltos pela área externa do galpão e percebi uma pequena e
discreta movimentação. Algumas pessoas entravam pelo outro lado por um
portão.
Fiquei observando ao longe, alguns carros também estacionavam na área externa
e logo percebi que se tratava de uma reunião. Após examinar o lugar por um
tempo percebi que no ponto onde estava, conseguiria entrar sem ser vista.
Precisava apenas lidar com os cachorros.
Abri o porta-malas do meu carro e tirei uma pistola veterinária tranquilizante.
Entre os minúsculos vãos do alambrado mirei nos cachorros mais próximos e
atirei. Esperei alguns minutos até que meus agitados amiguinhos dormissem e
quando acalmaram num sono divino, joguei a bolsa por cima do alambrado.
Agarrei-me ao arame frio, encaixando meus dedos em seus pequenos vãos e num
impulso joguei-me por cima dele quase sem fazer qualquer ruído, caindo em pé
ao chão do outro lado com os joelhos levemente flexionados.
Afaguei um cachorro que dormia dizendo em voz baixa:
— Viu, Hécate? Eu ainda cuido deles. - Sorri despreocupada.
Ao correr para trás do galpão, observei que o enorme prédio tinha vitrôs rentes ao
teto e que não havia nada ali que pudesse usar para escalar e espiar o interior.
Então abri minhas asas e flutuei até a altura da janela, cuidando para que seu
bater não fosse tão ruidoso.
O lugar estava repleto de grandes máquinas que eu não tinha ideia para o que
serviam, algumas bancadas com tubos de ferro sobre elas e grandes moldes
também de metal. E embora o lugar tivesse toda essa aparência de uma
indústria, ninguém trabalhava.
Algumas pessoas andavam de um lado para o outro, outras conversavam em
pequenos grupos, como que se estivessem esperando por algo. Dali eu podia
perceber apenas uma entrada e era impossível adentrar o lugar pelo vitrô.

198
Voltei ao chão apenas para pegar a bolsa com as armas e a colocar sobre o
telhado do lugar, ao decidir que espiaria pela janela por mais um tempo, até
compreender o que estava se passando no local e estar certa sobre o melhor
momento para acabar com eles.
Pela janela conferi que havia ao todo onze homens no local, todos humanos.
Alguns minutos se passaram sem que nada importante ou interessante de fato
acontecesse. Até que um vampiro adentrou o lugar. Preocupei-me com o cheiro
do meu sangue, não sabia precisar sobre o olfato dos vampiros.
Logo outro vampiro adentrou o lugar, carregando um Fenecido consigo. A besta
estava amarrada com várias correntes que pareciam prata e gritava como um
animal ferido. Os humanos deram alguns passos em recuo. O vampiro que
entrou primeiramente e sozinho começou a falar.
— Como vocês podem ver, esse aqui é um Fenecido produzido por nós. Com uma
dose alta de anticoagulante injetável, nós produzimos vários cortes no vampiro
causando-lhe sangramento por dias. Após uma semana ele já fica completamente
deteriorado se não for alimentado. Com um mês em nosso cativeiro, ele se
encontra dessa forma. Peço muito aos doutores aqui presentes que estudem esse
Fenecido, que embora esteja em frenesi, não perdeu suas faculdades mentais e se
o retirarmos dessa dieta de anticoagulante e sangramento ele pode retornar
rapidamente ao que era.
Então, era isso. Alguém estava tentando transformar vampiros saudáveis em
Fenecidos e Hedy já sabia daquilo. Era fácil de deduzir que alguém estava usando
os Fenecidos com algum propósito, como aquele que me atacou na festa. Talvez
alguém pudesse os controlar, embora Nikolai nada disse sobre isso, apenas que
na forma bestial não tinham mais mente ou qualquer resquício de humanidade.
Os humanos eram certamente médicos e cientistas que estavam ajudando
aqueles vampiros no que quer que fosse o plano deles. Quem estaria por trás
disso? Será que era Gustavo? Certamente que era, ele era o maior interessado na
destruição dos outros clãs, mas se meu pai queria exterminá-lo depois da limpeza
de Louis de Broglie, certamente ele também oferecia perigo aos demônios.
Peguei minha bolsa e fui caminhando livremente até a entrada do galpão. Outros
cachorros apareceram e latiram para mim, mas usei a pistola tranquilizante
novamente, embora não esperei que se acalmassem dessa vez.
A enorme porta do galpão estava entreaberta e ao entrar por ela, eu a fechei.
Coloquei suavemente a pistola veterinária no chão e me esgueirei pelo local para
verificar se haviam outros espaços que eu não tivesse visto através da janela e ao
conferir que não, segui por um corredor improvisado por divisórias, indo na
direção que minha audição me indicava.

199
O vampiro continuava com o seu discurso e logo me vi na entrada do salão maior
onde eles estavam reunidos. Escondendo-me apenas com a parede como
proteção, retirei da bolsa duas bestas e segurei uma em cada mão, precisava ser
rápida e certeira com os vampiros que poderiam ser os mais problemáticos para
mim naquele momento.
O que segurava o Fenecido estava numa posição onde acertá-lo seria fácil. Mirei a
área mais próxima de seu coração e disparei a primeira besta da mão esquerda.
Ele caiu no chão, não morto, apenas aparentemente paralisado. O Fenecido livre
de suas mãos começou a saltar repetidamente, batendo o corpo violentamente
contra o teto e o chão.
Rapidamente acertei o outro vampiro que já vinha em minha direção furioso. Em
cheio! Caiu no chão como o outro. Tive que usar minhas asas para proteger meu
corpo tão logo os homens começaram a atirar em mim. As abri e circundei meu
corpo com elas como um campo de proteção, pelo menos pelo tempo necessário
para eles descarregarem suas armas em mim. Gemi de dor enquanto recebia os
tiros.
Retirei duas submetralhadoras de meu sobretudo e fui acertando alguns
humanos. Observei que os vampiros estavam se mexendo e tentando retirar as
flechas de seus corações.
Corri para cima dos homens para alcançar a bancada onde estavam os tubos
metálicos, era melhor que eu terminasse com os vampiros o mais rápido possível.
Os homens continuavam atirando e eu procurava me proteger com as minhas
asas na medida do possível.
Calculando o espaço previamente dei um salto e caí na bancada, sempre
tomando o cuidado para me proteger das balas com as minhas asas, embora
aquilo me causasse dor. Entretanto, tão logo caí em pé sobre a bancada, um
humano sortudo conseguiu acertar minha coxa direita e com um grito de raiva,
tirei outra arma de meu casaco e descarreguei na cabeça dele.
O vampiro que segurava antes o Fenecido tinha conseguido se livrar da flecha e
se rastejava para se alimentar de um dos humanos que estava apenas
machucado caído ao seu lado. A perna estava doendo e estava sangrando muito,
ainda assim fui veloz o suficiente, caindo sobre ele segurando um dos tubos e
cravando com toda força em seu coração.
Talvez por causa do cheiro do meu sangue, o Fenecido ficou ainda mais agitado e
veio para cima de mim, enquanto eu descarregava minha arma nos três últimos
homens em pé, para pararem de me acertar. Eu não queria matar o Fenecido, ele
provavelmente era algum vampiro dos clãs ou do Loïc ou do Nikolai, embora pelo
estado em que estava seria impossível reconhecê-lo.

200
Fui descuidada deixando as estacas nas bolsas que deixei no corredor e depois de
descarregar mais um cartucho na cabeça do Fenecido enlouquecido, estiquei o
braço para pegar mais um tubo de metal e avancei sobre o outro vampiro. Esse
ainda estava paralisado por causa da flecha e foi fácil matá-lo.
Restava apenas o Fenecido enlouquecido e segui pelo corredor atirando nele para
ao menos deixá-lo mais lento. Abaixei-me rapidamente para pegar minha bolsa e
nesse momento ele saltou em cima de mim me derrubando.
Fiquei lutando para afastá-lo de mim, pois que ele fazia muita força para tentar
morder meu pescoço, lembrava-me que Nikolai havia dito que uma mordida de
um Fenecido era suficiente para matar, não sabia se aquele Fenecido fabricado
tinha o mesmo tipo de poder, mas não queria arriscar.
Enquanto tentava o afastar com um de meus braços, peguei uma espingarda da
bolsa e comecei a bater na cabeça dele. Com dificuldade consegui chutá-lo, assim
o arremessei um pouco para longe e tentei me levantar novamente, mas acredito
que estava faminto demais e saltou sobre mim novamente.
Enquanto saltava descarreguei a espingarda nele e quando estava caindo
novamente sobre meu corpo, coloquei o cano da espingarda em seu coração
fazendo toda a força que eu podia para aterrá-la em seu peito.
Eu não conseguia empurrar a espingarda com força suficiente contra o peito na
posição vulnerável que estava, mas sem que eu pudesse perceber claramente
como, o Fenecido caiu morto sobre meu corpo e quando olhei para ver o que o
havia atingido, vi Loïc. Empurrei o corpo nojento que ressecava e diminuía sobre
o meu e me sentei pressionando a perna.
Loïc se aproximou para me examinar, perguntando:
— Você está bem?
— Acho que a bala está alojada na minha coxa. - Minha visão estava começando
a ficar turva pela perda de sangue.
Ele rasgou minha calça e em seguida com a unha grande fez um corte no pulso,
deixando seu sangue cair em minha ferida. Sem muita piedade, enfiou em
seguida os dedos da outra mão no buraco me fazendo gritar de dor e arrancou a
bala deixando o buraco ainda maior.
Achei que fosse desmaiar de dor e novamente ele deixou seu sangue cair na
ferida. Acredito ter levado cerca de dois minutos para cicatrizar e minha perna
ficar como se nada houvesse acontecido.
— O que está fazendo aqui? - Perguntei ainda zonza.
— Você bebeu meu sangue, lembra? Posso te sentir, saber quando está em perigo
ou quando está machucada. Vim te ajudar. E o que você faz aqui?

201
— Trabalhando. - Disse enquanto me levantava tentando me equilibrar.
Caminhei pelo lugar procurando por inflamáveis e encontrei alguns barris com
querosene. Saí espelhando por todo o lugar e Loïc sem questionar começou a me
ajudar. Tão logo umedecemos o quanto foi possível, peguei minhas coisas e
acendi um cigarro. Tão logo deixamos o galpão atirei o isqueiro aceso sobre o
rastro inflamável.
— Vou pra casa. - Disse acenando adeus para Loïc.
— De nada. - Ele gritou enquanto me afastava dele.
— Avisa Cora que vou pegá-la amanhã. - Gritei antes de entrar em meu carro.

202
30 – Incidente.

“Girafa, você é expert nisso, por isso produza o mais rápido possível uma arma de
fogo automática para exterminar vampiros. Por mais ágil que o corvo seja, ele não
consegue matar rapidamente com bestas difíceis de armar e estacas. Enquanto
não estiver de posse dessas armas, estarei de folga. Assinado, Corvo”. Enfiei o
bilhete num pequeno envelope apenas com um “Para Girafa” como destinatário e
me dirigi para a Casa A.
Olhar para o celular nunca me pareceu tão doloroso desde que Heitor havia
morrido, odiava seu maldito silêncio, odiava sua tela em branco instigando
algumas palavras insanas ao mesmo tempo que ostentava a certeza de que não
havia mais ninguém do outro lado. Sem olhos para ver ou ouvidos para ouvir.
O ronco do motor do carro era um alento despretensioso e tedioso, música, sim,
isso soaria melhor em tarde tão aparentemente cinza, ainda que o céu estivesse
nitidamente claro. Os dias por mais coloridos que fossem tomaram por si
próprios a mágica de se tornarem frios e cinzentos sob a perspectiva de meu
olhar.
Em mim ainda havia aquela frieza onde a escuridão e a tristeza nada mais eram
que um estado corriqueiro. Meu tão agradável niilismo, minha divina natureza.
Nunca como um calor aprazível e aconchegante, sempre um vento frio e cortante,
o mais sombrio de meu ser que me tornava sublimemente bela.
Enquanto olhava para o sol que começava a descansar no horizonte, tamborilei
os dedos entediados sobre o volante enquanto esperava que milagrosamente as
portas duplas de Madame Satã se abrissem para mim, enquanto pensava em
como melhorar meus movimentos ao assassinar vampiros. Sabia ser bastante
ágil, mas não era rápida o suficiente para eles e a força me faltava. Deveria apelar
para a inteligência que claramente não tinha.
Estava entediada e por mais que soubesse que trabalhar seria a melhor coisa que
pudesse fazer naquele momento, não estava disposta a sair matando como na
noite anterior sem ter como acabar rapidamente com vampiros, eles eram muito
mais fortes e rápidos que eu e por mais que a flecha no coração os paralisassem,
armar a besta num momento em que tudo o que se precisa é rapidez, era inviável.
Logo vi Astrid abrindo o bar e desci do carro. A cumprimentei, enquanto me
olhava pasma, certamente não estava esperando por ninguém aquela hora.

203
Entramos e enquanto ela foi se preparando para o trabalho, invadi o balcão e
comecei beber.
Teria sido melhor se tivesse mandado mensagem por celular, mas precisava me
ocupar, fazer alguma coisa, pois sempre que estava ociosa me via torturada por
meus pensamentos e sentimentos.
— Quer que eu ligue a música? - Perguntou-me Astrid.
— Por favor. Sabe me dizer quem vem pra cá hoje?
— Soren com certeza.
— Como você se sente trabalhando para vampiros? - Disse movendo para me
sentar num dos bancos do balcão.
— Estou acostumada com eles. - Respondeu-me enquanto abaixava atrás do
balcão para ligar a música.
— Pode me preparar algo realmente forte? Qualquer coisa que derrubaria um
humano com menos de um litro.
Ela riu.
— Tentando esquecer alguma coisa?
— Acho que não conseguiria esquecer nem se estivesse em coma. Mas, confesso
que me sinto péssima.
Astrid armou-se num semblante compassivo e se pôs a preparar a bebida. Nesse
momento vi Soren adentrando o recinto e tão logo me viu, caminhou em minha
direção. Sem nem o cumprimentar, disse:
— Peça para alguém trazer Cora para mim.
— Não acho que Alisha ficará bem se você levar Cora.
— Quero que Alisha se dane. Anda logo que estou com pressa.
Astrid entregou-me a bebida estupefata. Além de minha rudeza, devia lhe ser
estranho ver Soren prontamente falando com alguém ao telefone, pedindo para
que trouxesse Cora.
— Daqui vinte minutos ela estará aqui.
Virei a bebida toda e bati o copo vazio no balcão, dizendo:
— Prepare mais dois pra mim, Astrid.
Seu semblante pasmo era engraçado.
— Ela não embebeda. - Afirmou Soren nos deixando.
— É verdade? - Perguntou ela preparando a bebida.

204
— Preciso de muito para ficar embriagada, provavelmente a quantidade suficiente
para deixar dez homens fortes e resistentes em coma alcoólico.
— Como isso? - Os olhos se arregalaram. — Está me sacaneando, não?
Não respondi nada, como explicaria que era resistente ao álcool porque era um
demônio?
Quando chegou, Cora parou ao meu lado, perguntando:
— Quer falar comigo?
— Vim te buscar para morar comigo.
— Eu não quero morar com você!
— Bem, é uma opção. Mas, ainda assim terá que ir para a minha casa, invocar
Lilith e explicar para ela que não quer mais minha ajuda e proteção. Não é a
melhor coisa do mundo, mas ela me colocou no seu caminho, não os vampiros.
Pode retirar seu pedido de proteção diretamente com ela e ficarei feliz por me
livrar de você. Vamos.
— Isso não é justo, Liese! - Reclamou me seguindo.
— Reclame com Lilith. Você não é dessas de acreditar que os deuses decidem seu
destino? Lide com ele.
Ela rosnou mais alguns palavrões e entrou em meu carro. Seguimos em silêncio e
fui diretamente para o bar em Constante de Plack chamado Non-Sense. O
ambiente era tão psicodélico que as paredes e as luzes coloridas me
incomodavam um pouco, mas a música e a bebida eram boas.
Eu e Cora sentamos numa mesa, ela continuava reclamando pelo fato de levá-la
àquele lugar, enquanto eu observava o minúsculo palco com os instrumentos
preparados para receber alguma banda, embora não havia sinal de pessoas lá.
Ela não parou de reclamar por um segundo, mas prestei atenção quando disse:
— Eu nem trouxe minhas roupas.
— Tenho tantas que dá para vestir um batalhão. Nossos corpos não são tão
diferentes, posso te dar algumas.
— E Nikolai? - Ela parecia de fato preocupada.
— Não acho que verei Nikolai tão cedo.
— Por que?
Não queria lhe dar a resposta, não queria que soubesse que decidi por protegê-lo
assim como a ela, mesmo que não soubesse o que exatamente aconteceu entre os
dois depois que terminaram.

205
Aos poucos o bar ia ficando lotado e num dado momento um homem parou ao
lado de nossa mesa cumprimentando Cora. Ele balançou levemente a cabeça
para mim num cumprimento e fiz o mesmo.
A guitarra ruidosa fez com que a música ambiente se desligasse e olhei para o
palco, os rapazes tomavam os instrumentos nas mãos se preparando para
apresentação. Deixei Cora por um momento para ir ao banheiro e quando
retornei a banda já se apresentava.
Senti o coração acelerado e me senti engasgada quando vi que quem cantava era
Nikolai. Sentei-me à mesa pálida e virei a bebida, fazendo um sinal para o
garçom.
Quando o rapaz a deixou, eu fiz um gesto com a cabeça para que se virasse e
olhasse para o palco. Nikolai cantava numa voz gutural e totalmente desumana,
nem mesmo eu reconheceria aquela voz se não o tivesse visto.
Ela virou-se para mim com espanto em seu olhar e achei sua face tão engraçada
que estourei em risos.
— O que vamos fazer? - Perguntou-me, olhando assustada para o garçom que me
servia.
— Um brinde para o filho da puta que joga eventos na sua teia fatal! - Eu ri.
Ela estava de fato assustada. Olhei para o círculo agressivo que se formava em
frente ao palco, homens dançando, balançando a cabeça e se esmurrando. Olhei
para Nikolai, embora não esperasse de fato por aquilo, não negava estar contente
ao vê-lo.
De toda forma eu estava armada, como sempre andava, apenas não tinha uma
besta ou estaca comigo, comecei olhar ao meu redor para ver se encontrava algo
que eu pudesse usar como estaca.
— Não é melhor irmos embora? - Ela insistiu.
— E nos privar de uma noite divertida? Não mesmo. Apenas me ajude a
encontrar alguma coisa nesse lugar que eu poderia usar como estaca caso isso
seja necessário e não saia de perto de mim. Se precisar ir ao banheiro iremos
juntas.
Ela começou olhar ao redor, assim como eu mesma fazia. Olhei novamente para o
palco, ficava lindo sem camisa e com o kilt longo que caía sobre os tornozelos.
Nikolai de fato não se importava com a exposição, talvez estivesse convencido de
que ninguém poderia fazer nada contra ele. Ou talvez fosse pelo fato de que
poderia desaparecer a qualquer momento, eu não saberia dizer.
A maestria e virtuosismo com o qual o guitarrista tocava sua melodia agressiva,
fez com que meu olhar caísse sobre ele e percebi que era um vampiro assim como

206
Nikolai. Olhei os outros integrantes, todos humanos. E então, sorri, ao olhar para
o baterista, sua baqueta poderia me servir.
— Você conhece esse pessoal da banda? - Perguntei para Cora.
— Sim, são amigos de Nikolai há muito tempo e sempre gostaram de tocar juntos.
— Normalmente bateristas carregam baquetas reservas. Fica aqui que vou tentar
roubar uma sem ser vista.
Levantei-me e ela segurou em meu braço, perguntando:
— Tem certeza?
Eu pisquei com um olho só para ela e a deixei indo em direção ao palco. Ele me
viu, seus olhos me penetraram como uma faca afiada. Continuei caminhando,
depois que estivesse atrás do palco ele não me veria, embora pudesse sentir o
cheiro de meu sangue.
Esgueirei-me por detrás da pequena armação do palco, o baterista estava
protegido apenas por uma cortina preta. Agachei-me e levantei a cortina com
cuidado, como eu presumira, ao lado de seu banquinho, sobre o chão, estava
uma bolsa de couro com algumas baquetas dentro. Enfiei a mão rapidamente e
peguei duas. Disfarcei ao ver um homem vindo em minha direção e depois
retornei para a mesa.
Sentei-me levantando ligeiramente a baqueta para mostrar à Cora e as coloquei
num dos bolsos internos do meu casaco. Particularmente eu não achava que ele
poderia nos atacar, mas não saberia precisar sobre a segurança de Cora.
— Vamos ficar em pé no balcão próximas a porta. - Informei-a, levantando-me.
Ela me seguiu. Seu semblante era pesaroso e levantou elegantemente o longo
cabelo cacheado, prendendo-o num coque solto e alto. Nesse momento um
homem que estava ao nosso lado no balcão se aproximou dela, sussurrando
alguma coisa em seu ouvido.
Encostei-me no balcão colocando meu cotovelo sobre ele, apreciando minha
bebida, enquanto dividia minha atenção entre Cora, a beleza estonteante do
charmoso cantor e o empurra-empurra da plateia agitada.
Logo que a música terminou, Nikolai informou que fariam uma pausa e meus
olhos o seguiu. Foi para próximo do balcão, no lado oposto ao que eu estava e
distante de mim. Uma garota parou ao lado dele, conversando bastante animada
e sensual. Ele deu atenção para ela, mas sorri quando vi seus olhos sobre mim
novamente.
— Sai daqui! - Gritou Cora.
Retirei minha atenção da divindade sombria para ver o que estava acontecendo.
O homem tentava a agarrar a força e ela tentava lutar em vão contra ele.

207
Rapidamente tirei a adaga de minha cintura e avancei sobre ele, cortando seu
pescoço rapidamente e o empurrando.
Ele caiu gritando sobre uma mesa, levando a mão para o pescoço e xingando-me.
Cora ao que viu que eu tinha cortado o pescoço do homem começou a gritar
incontrolavelmente e logo toda a atenção do bar estava sobre a gente.
Avancei sobre o homem novamente que se levantava da mesa e segurando pelo
colarinho de sua jaqueta o empurrei contra a mesa fazendo-a bater contra a
parede, pronta para dar outro golpe enquanto dizia:
— Isso é o que vai acontecer com qualquer otário que agredir uma mulher em
minha frente.
Levantei a mão para desferir outro golpe, mas alguém a segurou. Sem pensar
muito, peguei uma arma de dentro do meu casaco e virei-me a apontando para a
cabeça de quem quer que fosse que tivesse me parado. Mas, assim que engatilhei
e rapidamente me virei apontando a arma, vi os olhos cinzas que me enfeitiçavam
e abaixei a arma.
— Não devia chamar tanta atenção para si. - Ele disse calmo.
Ignorando-o virei-me apenas para ver que o pobre homem sangrando tentava
escapar de mim e sem qualquer pena dei alguns tiros na cabeça dele. Houve uma
gritaria e grande comoção. Provavelmente um amigo do homem, avançou sobre
mim, mas não teve tempo, Nikolai o segurou no pescoço e o espremeu separando
a cabeça do corpo. Jogou o corpo que se sacudia em seus últimos espasmos ao
chão e me olhou.
Ficamos ambos sujos com o sangue do decapitado e continuamos nos olhando.
Nenhum de nós dois tínhamos qualquer pena em matar, sua calmaria nada mais
era do que um traço de sua personalidade, estava certa disso, ainda segurava
meu pulso como se não tivesse capacidade em me largar. Estúpida, eu não
pensava, não conseguia, ele tinha o poder de me tornar idiota, disse apenas:
— Faça qualquer coisa contra Cora e você acabará como ele.
Fiz um gesto brusco com o braço que ele segurava e ele me soltou. Avancei sobre
Cora que chorava chocada e a puxei pelo braço para fora do bar, não sem antes
jogar dinheiro sobre o balcão para pagar minha bebida. Dei uma última olhada
para trás e ele ainda estava lá parado, me olhando.
Claro que Cora não reagiu nada bem àquilo. Sentada ao meu lado no carro, ainda
chorando, disse:
— Como você pode? Por que matou aquele homem?
— Porque ele estava te agredindo, mesmo você dizendo para se afastar
continuava te agarrando. Nojento! Todo homem que faz isso devia acabar numa
vala.

208
— Liese, você não está sentindo nem remorso? - Perguntou estupefata.
— Remorso por ter um cretino a menos no mundo? Claro que não, ainda vou
beber em comemoração a minha boa ação de hoje.

209
31 – Quase morte

Nossos primeiros dias morando juntas não foram muito fáceis. Era rotineiro que
quando a noite caísse, eu tivesse que sair de casa para brigar e xingar Alisha que
ficava gritando no quintal para que devolvesse Cora e apenas se acalmava
quando Cora ia ao seu encontro e ficava um tempo com ela ao lado de fora.
Cora acatara a contragosto em não convidar nenhum vampiro para dentro de
casa, mesmo aqueles do clã de Loïc. Embora nossas discussões fossem diárias e
corriqueiras, logo que Cora ainda mantinha a insana aspiração de me
transformar num demônio melhor, ela seguia as regras que eu impunha ao morar
em minha casa.
Duas semanas havia passado desde o incidente no Non-Sense e não tinha mais
visto Nikolai desde aquilo. Na realidade nem sabia dizer o que aconteceu depois
daquilo, já que Cora ficou insistindo para que eu não retornasse mais naquele
bar, embora esperasse que ao menos ele enfeitiçasse todo mundo para esquecer
do ocorrido.
Deixei Cora sozinha em casa aquela tarde, para checar a correspondência da
Casa A. Havia algo aquele dia depois de tanto tempo. A carta curta me deixou
dois endereços, um para ir numa casa e me apresentar como Avalanche a uma
senhora que devia se apresentar como Neve Doce e outro endereço para aquela
noite, simplesmente chegar e matar. Também me indicava para frequentar uma
boate chamada Desire, afirmando que o dono da boate era o próprio Gustavo.
Chequei o celular, embora já não tivesse mais esperança de algum mimo ou
mensagem, ele nunca mais falou comigo. Configurei o GPS para chegar a casa da
senhora.
A casa era toda em madeira, simples, no meio de um bosque ao sopé de uma
montanha no meio do nada. Subi os dois degraus de madeira que dava numa
varanda cercada por um parapeito pequeno e bati à porta velha com a pintura
verde desgastada.
A porta se abriu numa pequena fresta por onde uma velhinha de cabelos curtos,
volumosos e brancos, que devia ter um pouco mais de um metro e meio de altura,
olhou-me curiosa.
— Avalanche. - Eu disse.

210
— Neve doce. - Respondeu, fechando a porta em minha cara.
Sem saber exatamente o que esperar, acendi um cigarro. Alguns minutos depois
a porta se abriu e a velhinha com dificuldade começou a empurrar caixas
grandes e pesadas de metal. Após deixar três caixas na varanda, colocou um
envelope em cima de uma e disse:
— Adeus! - Fechou a porta na minha cara novamente.
Sacudi a cabeça e abri o envelope. “Armas com munição que irradia raios
ultravioletas. No coração para matar e em qualquer parte do corpo para paralisar.
Volte ao trabalho. Girafa.”. Sorri e coloquei as caixas no porta-malas.
Fiz Cora me ajudar com as caixas enquanto as tirava do carro e levava para meu
quarto. Ela ficou curiosa sobre o conteúdo, mas a ignorei.
— Terminei de preparar uma comida maravilhosa. Vamos comer.
— Me dê apenas alguns minutos.
Ela me deixou sozinha no quarto. Observei as armas, eram de tamanho médio e
confortável para as mãos. As balas tinham uma pequena e estranha capsula, eu
não precisava saber ou entender da tecnologia usada, mas fiquei contente por ter
uma arma como aquela.
Carreguei três, deixei com elas alguns cartuchos sobre a cama e guardei as
caixas no meu cofre de armas. Passando pelo outro closet peguei um cinto para
acomodar as armas e depois que as coloquei em minha cintura, desci com a
outra em mãos.
Cora me esperava na sala de jantar, entreguei a arma e ela a segurou desajeitada,
perguntando enquanto eu me servia:
— Para quê isso?
— Para matar vampiros. Vai o matar se acertar no coração e o paralisar se
acertar em qualquer parte do corpo.
— Mas, eu não sei usar isso! - Disse assustada.
— Terá que aprender se quiser permanecer viva.
Havia repugnância em seus olhos enquanto maneava a arma, inepta, a colocando
sobre a mesa em seguida, dizendo:
— Nem todo mundo tem a frieza que você tem.
— Se um humano pode fazer algo, qualquer outro pode aprender. E matar é algo
que a sua espécie tem feito de melhor durante milhares de anos, nada com que
você também não se acostume.
— Não pode me transformar num monstro! - Vociferou.

211
— Estou apenas tentando alongar os seus dias de vida. - Eu disse
experimentando a comida fumegante que invadia minhas narinas com um
perfume apetitoso.
Ela me deixou sozinha enquanto bufava e rosnava alguns xingamentos. Dei de
ombros.
À noite, antes de sair para meu serviço, passei no quarto de Cora. Ela estava
sentada na cama, assistindo alguma coisa no notebook e coloquei uma sacola
cheia de dinheiro sobre a cama, joguei sobre ela a chave e o documento do carro,
dizendo:
— Você ficará com o carro vermelho. Acho que isso ajudará para que sinta ter um
pouco de independência e que morar comigo não é um pesadelo completo.
Ela nada disse e a deixei.
Enquanto dirigia para o local que a carta indicara, peguei me pensando nele uma
vez mais. Respirei fundo e soltei um grito, aumentando o volume da música em
seguida. Quando ele deixaria de povoar meus pensamentos?
O local daquela noite era um hospital abandonado. Estacionei o carro há alguns
quarteirões dele e segui no meu sobretudo pesado. Fui avaliando o local, não
havia nenhuma movimentação e as janelas do segundo andar voltadas para a rua
que eu estava, com alguns vidros quebrados, não denunciavam qualquer
luminosidade.
Abri minhas asas e voei adentrando o lugar por uma janela com os vidros
quebrados. Era um quarto de hospital, com a cama enferrujada e todos os móveis
bagunçados e amontoados num canto. Sem fazer qualquer barulho passei pela
porta dando no corredor.
O lugar estava completamente escuro e silencioso. Segui rigorosamente em
silêncio, vasculhando e tentando encontrar o que fosse que tivesse que matar ali.
Parei achando que tivesse ouvido algo por um momento que vinha do andar de
baixo.
Segui devagar, descendo um lance de escada larga, para após virar para esquerda
ter de descer outro lance. Parei encostando-me à parede, tive a impressão de ser
seguida, mas não havia nada atrás de mim quando me virei, então coloquei a
cabeça para fora do grande e largo corredor, protegendo o corpo contra a parede.
Adiante havia um largo pátio, com várias colunas espalhadas pelo local, algumas
mesas velhas e bancos de concretos que estavam ligados as paredes. De lá
também vinha uma fraca iluminação, como que se o ambiente estivesse sendo
iluminado por velas, embora não as pudesse ver de onde estava.
Hedy não tinha me dito nada na carta sobre o que esperar daquele lugar, mas
achei melhor me armar contra vampiros, engatilhei a arma e fiquei a segurando,

212
enquanto passei os próximos vinte minutos, imóvel, espiando o que acontecia
naquele pátio.
Um som abafado atrás de mim me fez virar rapidamente, um vampiro vinha num
salto em minha direção, acertei seu coração em cheio e assim que ele caiu se
debatendo, ouvi a movimentação que vinha do pátio em minha direção.
Eu não sabia que tipo de pessoas ou seres estavam ali reunidos e por isso tirei
também uma arma de fogo para os humanos. Virei-me no corredor em direção ao
pátio e não foi difícil de diferenciar humanos de vampiros. Dois vampiros vinham
tão rapidamente em minha direção que pareciam voar. Atirei em ambos
acertando-os no coração, para em seguida sair atirando nos três humanos que os
acompanhavam.
Outros começaram a vir em minha direção e estava tão concentrada atirando e
recarregando que não vi quando outro vampiro me acertou por trás. Ele
esmurrou minhas costas com tanta força, que me arrastei por uns dois metros no
chão perdendo minhas armas pelo caminho.
Virei-me de costas para o chão, retirando rapidamente mais duas armas de meu
sobretudo, enquanto observava o vampiro que me atacava pegando minhas
armas que ficaram caídas. Ia atirar nele, mas a movimentação a minha direita me
fez olhar para o lado. Levantei-me num salto.
Atirei rapidamente em dois, mas outro deles avançou sobre mim, me empurrando
contra a parede, perfurando minhas costas, acima do rim direito, por um cano de
metal que estava quebrado na parede num ângulo de 90 graus. Eu gritei
enquanto coloquei uma mão sobre o cano ensanguentado que atravessava meu
corpo e rapidamente dei um tiro no coração do vampiro que me pressionava
contra a parede e atirando no outro que estava atrás dele enquanto caía.
Caí no chão com o cano sendo arrancado de meu corpo por causa da queda do
modo mais doloroso possível e gritei novamente, num esforço para me levantar.
Quando consegui sustentar meu corpo sobre as mãos e os joelhos, ao erguer meu
peito o outro vampiro que tinha me acertado por trás disparou o revólver. Não
houve tempo para me proteger com as minhas asas.
Não poderia imaginar que as balas contra vampiros de Hedy eram tão dolorosas e
caí no chão com dois tiros em meu abdômen e dois em minha asa que me
protegeu tardiamente. Sentia que estava perdendo meus sentidos e sabia que ele
continuava caminhando em minha direção, ouvia sua risada nefasta e seus
passos morosos e pesados.
Não me movi, segurando o revólver firmemente numa das mãos, esperava apenas
que ele estivesse conferindo se eu estava mesmo morta. Então, ouvi ao meu lado
direito uma porta se abrindo e sem pensar muito ergui o peito com dificuldade
acertando o vampiro armado, que num reflexo me acertou novamente.

213
Caí já sem nenhuma força, minha visão estava totalmente turva e estava confusa.
Virei a cabeça por mais um momento, apenas para observar aquele que se
aproximava de mim. Tentei agarrar-me a arma, mas já não havia força em meu
corpo.
Pisquei algumas vezes, o chão de mosaico vermelho se enchia com o meu sangue
que se empoçava ao redor de meu corpo, cintilado pelas chamas bruxuleantes
das velas. Vi as botas diante de meu rosto e o vi se curvando sobre mim. Colocou
o pulso cortado, enchendo minha boca com o gosto metálico do sangue.
Já estava perdendo meus sentidos completamente, mas num último esforço
inclinei a cabeça pesada. Apertei os olhos na esperança de que a visão embaçada
desvanecesse em nitidez, mas não consegui discernir a sombra que estava diante
de mim, dando-me de beber de seu sangue.
Restou-me apenas a inconsciência.

214
32 – Quadros

Abri meus olhos com dificuldade, minha boca estava terrivelmente seca e meu
corpo estava consideravelmente dolorido. Havia um abajur com iluminação suave
sobre a mesa de cabeceira, a cortina bege balançava com o vento que soprava
pela janela entreaberta.
Embora não me lembrasse exatamente do que tinha acontecido na confusão
mental que me encontrava naquele momento, estava certa de que nunca estive
naquele quarto antes.
A porta se abriu num rangido e virei a cabeça, estava inegavelmente fraca e quase
não pude acreditar no que eu via. Era Nikolai, carregando uma bandeja consigo,
com uma garrafa de vidro com água e um copo. Esfreguei os olhos, estava
certamente alucinando.
Ele se sentou ao meu lado na cama e acariciou carinhosamente meu cabelo,
dizendo:
— Achei que nunca mais acordaria.
Sua palidez denotava o que pensei ser fome, estava lívido e abatido. Fiz um
esforço para tentar me lembrar de como eu havia parado naquele lugar e tentava
checar se aquilo era realidade ou sonho. Disse finalmente:
— Estou confusa.
— Você ficou muito ferida. Ainda não está completamente curada, estou há
quatro dias dando de meu sangue para te manter viva e as feridas em seu
abdômen ainda não cicatrizaram por completo. Acordou muito zonza algumas
vezes, pediu por água e banheiro, mas acho que não consegue se lembrar disso.
Levantei o lençol que me cobria, estava vestindo uma camiseta certamente dele e
a ergui também, olhei para meu abdômen e realmente havia alguns buracos com
aspectos nada agradáveis e sangue seco por toda parte. Quando toquei levemente
sobre as feridas, as lembranças foram retornando a medida que a dor fazia meus
músculos contraírem.
Primeiro eram apenas imagens confusas e desconexas, mas aos poucos a
memória ficou clara e lembrei dos vampiros que matei, de acordo com Nikolai, há
quatro dias. Cora deveria estar preocupada. Sentei-me com dificuldade e dor e
encostei-me na cabeceira da cama.
— O que estava fazendo lá? - Perguntei preocupada.

215
— Os vampiros que você matou eram do meu clã. Eles tinham me convidado para
uma reunião, mas depois que te socorri, outro vampiro, também do meu clã, veio
furioso em minha direção e tentou me matar. Acredito que eles armaram para
mim.
Como Hedy poderia saber daquilo? Era uma pergunta pertinente.
— O que são aquelas balas? Elas me machucaram enquanto eu as retirava de
você.
— Munição especial contra vampiros. - Respondi enquanto questionava porque
qualquer gesto medíocre dele, como jogar o cabelo para trás, como fazia, tinha
sempre que parecer uma obra de arte diante de meus olhos.
— Devo me preocupar com você, Lie?
— Só deve se preocupar comigo se causar algum mal a Cora. - Respondi
sentindo-me acolhida pela realidade que parecia esconder-se de mim segundos
atrás. — Acho que na atual situação eu é quem devo me preocupar com você,
agora que bebi do seu sangue.
— Eu não te faria mal. - Se levantou e continuou: — Preciso me alimentar, estou
fraco por te alimentar tanto com ele e também preciso comprar algo para você se
alimentar.
— Onde está meu cigarro?
Ele caminhou até uma poltrona de camurça vermelha que estava num canto do
quarto, onde meu sobretudo estava jogado no encosto e revistou os bolsos,
encontrando o maço e o isqueiro me entregou, deixando-me sozinha por um
momento, para depois retornar com uma garrafa de bebida.
— Não entendo nada de remédio, mas sei que isso pode servir para aliviar um
pouco a dor. Volto logo.
Entregou-me a bebida e deixou o quarto.
Era definitivamente prazerosa a sensação do líquido doce descendo úmido e
quente em minha boca e garganta secas. Mover-me era doloroso e colocar a
garrafa ao lado da cama foi angustiante. Arfei enquanto acomodava novamente o
corpo sobre os travesseiros e a cabeceira da cama.
O tempo se arrastava e sentia-me como se estivesse em dois mundos distintos. A
respiração insistia que estava viva, mas a morte sorrateira parecia esconder-se
embaixo da cama, pronta para o golpe final. O mal-estar de estar sob o efeito de
sangue de vampiro ainda era pior que meu estado deplorável.
A cortina se levantou novamente num movimento delicado e dançante sobre o
toque repentino do vento. O quarto estranhamente se inundou com o que parecia
ser murmúrios. Inclinei a cabeça num movimento irracional, como se aquilo

216
pudesse me fazer ouvir melhor e após alguns minutos alarmada, ouvindo o
farfalhar de folhas no quintal, os quase inaudíveis estalidos dos móveis e
madeiras, minha respiração que parecia ensurdecedora, percebi que o vento
sussurrava meu nome.
A porta se abrindo retirou-me do estado de alerta no que pareceu um estrondo
aos ouvidos sensíveis. Colocou sobre a mesa de cabeceira uma bandeja com um
prato do que parecia ser creme de cenoura, com uma pequena cesta de pães.
Senti o colchão se afundando ao que se sentou ao meu lado, o som abafado das
presas sobre o próprio pulso e o gosto metálico invadindo minha boca em questão
de segundos.
— É melhor sentir esse gosto ruim agora, do que depois de se alimentar.
Depositei meu olhar sobre o rosto gracioso que se emoldurava pálido pelo
dourado do cabelo, os cinzentos que me fitavam vistosos, endeusando-se
enquanto seu sangue descia garganta abaixo. O corpo reagindo ao que fosse
aquela propriedade, especialmente curativa, fazia-me sentir bem e afastava para
longe a dor.
Senti-me prontamente alucinada. Sim, o desejo intenso pelo doador da medicina
diabólica dilacerava minha alma, como se Nikolai já não fosse importante,
atraente e sensual o suficiente. Seu rosto perdia rapidamente a coloração, os
olhos afundavam-se como se sua carne estivesse secando junto com o sangue
sugado e o silêncio que nos permeava, enquanto nos encarávamos, por alguma
razão, pareceu pesado.
— Não mais. - Sua voz soava arrastada e retirou o pulso de minha boca.
Colocou uma mão sobre a cama apoiando o corpo que inclinava levemente para
trás, os olhos vazios vidrados no alto, enquanto que os pequenos furos no pulso
se fechavam rapidamente. Julguei que sentisse dor e o rosto que se virou para
mim por um momento denotava seu cansaço.
Claramente sob o efeito do poder maligno de seu sangue, vi-me tentada a ajudá-
lo, como um fanático que se entrega em profunda devoção a um deus funesto.
Levantei-me cambaleante como se estivesse profundamente bêbada, levando
alguns segundos até firmar-me sobre meus pés. Olhava-me impassível quando
me voltei para ele, curvei-me inclinando a cabeça e jogando o cabelo para o lado,
levando, em profundo silêncio, meu pescoço até seus lábios.
Senti seus lábios se abrindo como uma massagem suave e fria sobre o pescoço
quente e fechei meus olhos quando sua mão apoiou docemente minha cabeça. Os
músculos automaticamente se retesaram, enquanto o olhar vago caía sobre a
parede vazia a minha frente. Senti suas presas como leves agulhas que hesitantes
pareciam não querer ferir minha carne. Passei meu braço atrás de seu pescoço

217
para apoiar o corpo fraco, curvo e rígido, que parecia pronto para fugir diante do
perigo.
Os segundos rolaram, senti o vento frio agitando suavemente meus cabelos e a
inquietude fazia-se presente diante da espera pelo beijo fatal, que embora
parecesse iminente ao toque das presas afiadas sobre minha pele pálida, com sua
mente silenciosa e livre de quaisquer pensamentos, adiava-se moroso como se
nunca fosse acontecer.
A pressão fria de seu rosto sobre meu ombro cedeu, virei-me enquanto seu rosto
lentamente se afastava de mim e com mãos gentis afastou-me dele. Olhou-me
inexpressivo.
— Roubaria toda a intimidade que você tanto presa se bebesse do seu sangue.
Levantou-se prontamente se retirando do quarto, deixando-me apenas seu rastro
perfumado e a certeza de que estava saindo para se alimentar novamente. Sentei-
me sentindo as pernas amolecidas, com nada em mente exceto pelo barulho
gentil que as cortinas esvoaçantes faziam. Levei o creme já frio à boca, apenas
para degustar de seu sabor levemente adocicado, sentia-me nauseada e deixei o
prato de lado.
Matei aqueles que o queriam morto. O mundo parecia menos vazio sabendo que
Nikolai caminhava sobre ele. A alma repentina quis lamentar, mas amordacei-a,
incapaz de ouvir o que fosse que ela queria me dizer naquele momento. Apenas a
cidade poderia arfar em meus ouvidos, recusava-me a ouvir o que fosse que
quisesse dizer para mim mesma.
A água quente e reconfortante que caía agradável sobre meu corpo quando
finalmente encontrei a ducha, corria sob meus pés num tom avermelhado. O
burburinho que se ouvia em minha pele e chão parecia querer apaziguar o
conflito aparente em minha mente. Não havia tanto espaço para elas, mas abri
minhas asas para intensificar o prazer e relaxamento que sentia.
— Liese…
Meu nome se repetia num sussurro, como se fosse emitido pela própria noite.
Fechei o chuveiro e prendi a respiração para que pudesse escutar nitidamente a
voz que repetia meu nome. A voz sussurrava como se de muito longe e nada
podia sentir de sua vibração. Apenas aquele sentimento de que algo clamava pela
minha atenção.
Envolvi-me na toalha felpuda para em seguida vestir-me em um de seus
moletons, tentando silenciar todos os meus movimentos, em prol de continuar
ouvindo o chamado sussurrante. Contudo, ele se fora tão repentinamente quanto
tinha chego e agarrando meu sobretudo pesado e meus pequenos pertences
espalhados pelo quarto caminhei porta afora.

218
Ao final da escada seu ateliê denunciou onde eu estava, embora já estivera em
sua casa, nunca tinha me aventurado no andar superior. Olhei para os quadros
com assombro, estava retratada em vários deles. Alguns terminados, outros em
desenvolvimento, enquanto ainda outros estavam rasurados, como se por raiva
ou dor, tivesse espalhado a tinta propositadamente para cobrir meu rosto.
Virei-me ao ouvir a porta se abrindo. Estava corado agora, observou-me e aos
quadros e nada disse a respeito. Seguiu para outro cômodo como se tivesse algo
para fazer, enquanto eu tocava os quadros tentando imaginar o que se passara
em sua mente enquanto me retratava.
— O que fará agora? - Perguntou seguindo para a sala do piano.
— Preciso do meu carro. - Respondi o seguindo.
— Não trouxe seu carro, apenas você. - Respondeu-me sentando-se no sofá de
couro.
Sentei-me ao seu lado, dizendo:
— Nikolai, eu…
— O que você está querendo fazer? Por que matou aqueles vampiros? Você sabia
que eles tinham a intenção de me matar? - Perguntou, me interrompendo.
— Não sabia que queriam te matar. Mas, os teria matado do mesmo jeito se
soubesse disso. Estou trabalhando contra meu pai junto de minha irmã e não sei
com clareza porque ela me pede para matar determinadas pessoas. Antes desse
grupo, matei outro que estava transformando vampiros saudáveis em Fenecidos.
Estavam usando anticoagulante e sangravam o vampiro, de acordo com o que
disseram antes de eu matá-los, o vampiro se degrada rapidamente com esse
processo.
— Já não sei em quem confiar. - Confessou. — Um dos vampiros que você matou
era um amigo meu. Quer dizer, eu achava que era um amigo.
Fiquei em silêncio enquanto o observava cabisbaixo.
— Sei que não mentiu para mim a última vez em que conversamos em sua casa.
Eu gosto de você, Lie, mas não consigo ainda reagir bem a tudo o que você me
disse.
— Não te recrimino.
— Vamos buscar seu carro.
Seguimos em seu carro em silêncio, ele sequer me olhava e eu observava a noite,
com as luzes artificiais se apagando e se acendendo em meu rosto sobre o
movimento do carro.

219
Não sei quantas vezes amaldiçoei meus próprios pensamentos enquanto
seguíamos em quietude. Ficaria mais feliz se o sangue dos vampiros não tivesse
aquele efeito de puro amor e devoção pelo vampiro doador como tinha. Senti uma
ridícula vontade de chorar.
— É por causa do meu sangue, isso vai passar.
O olhei assustada. Como sabia?
— Vou ouvir seus pensamentos nas próximas duas semanas, mas depois não
ouvirei mais. Só aconteceu porque eu tive que dar muito do meu sangue para
você não morrer.
Meu rosto enrubesceu instantaneamente. Se já me envergonhava com meus
próprios pensamentos nascidos do fogo do desejo que me consumia, senti-me mil
vezes pior ao saber que ele me ouvia, que via em sua tela mental as imagens
pervertidas que minha mente me apresentava.
Ele me olhou desconcertado. E se não fosse ainda mais ridículo do que minha
atual situação, pularia do carro e sairia voando. Ele sabia, sabia o quanto
pensava nele, o quanto o desejava, sabia do terrível conflito ao qual submetia a
mim mesma. Gritava mentalmente para me calar e a respiração ofegante
denunciava meu desconcerto.
Nikolai riu.
— Estou dentro de você agora. Não gosto de tirar a privacidade das pessoas,
entretanto foi necessário dessa vez.
— Cora já bebeu do seu sangue?
— Por que eu faria isso com ela?
— Eu não sei.
Loïc tinha feito aquilo comigo, Cora havia dito que ele o fizera, achei que era algo
normal para os vampiros saírem perseguindo as pessoas a bel prazer.
— Então, ele fez isso com você?
— Nikolai, não dá para você ficar longe da minha cabeça por um tempo não? -
Vociferei irritada.
— Não dá. Naturalmente eu não leio mentes, não sei como controlar isso.
“Não pense. Não pense. Não pense.” - Gritava mentalmente para eu mesma.
Ele riu.
— Pare de se torturar, não vou te julgar. - Lançou-me um olhar travesso.
— Pode me sentir também?
— Sim, e isso eu sentirei até que um de nós dois morra.

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Voltei a observar luz e sombra dançando dentro do carro para ocupar a minha
mente, não me sentia confortável sabendo que ele estava dentro da minha
cabeça, não era a mesma coisa que Arthur, eu não tinha pensamentos
pervertidos com Arthur e nem sentimentos calorosos e desconcertantes.
Embora soubesse que ele sabia o desejo que tinha de o agarrar e não soltá-lo
mais, eu tinha bebido seu sangue pelos últimos quatro dias e se já tinha essa
vontade sem sangue algum, quem diria naquele estado.
Indiquei-lhe o caminho no qual eu achava que tinha deixado o carro, nos
perdemos por um momento, mas logo encontrei meu carro estacionado dois
quarteirões do hospital. Ele estacionou o carro para eu descer, enquanto revirava
os bolsos do sobretudo que carregava em meu braço pela chave.
Os céus sabiam o quanto eu não queria deixá-lo e ele também deveria saber na
atual situação. Que se dane!
Puxei seu rosto aproximando-o do meu e sem rodeios enquanto apertava suas
bochechas deixando a boca rosada e pequena entreaberta, invadi-lhe com meu
calor, deixando minhas mãos escorrerem cadenciadas enlaçando suavemente
meus dedos em seus cabelos macios. Com contentamento senti sua mão sobre
minha nuca, enquanto a outra pressionava minhas costas num esforço inútil de
me trazer para perto de seu corpo.
Nos olhamos em silêncio, não precisávamos da vibração da voz ou da rudeza das
palavras. Enquanto ainda o tocava sabia exatamente o que se passava em sua
mente, da mesma forma que invadia a minha. A voz foi necessária entretanto:
— Obrigada por me salvar.
Ele balançou a cabeça. Desgarrei-me de seu corpo abruptamente, saindo do carro
e dei uma última olhada, inclinando a cabeça pesarosa ao constatar que sequer
me olhou quando partiu. Senti a pontada dolorosa do choque entre meu dedão e
o pneu do carro quando chutei-lhe rancorosa e com um balançar involuntário de
cabeça entrei em meu carro.

221
33 – Desire

— Onde esteve esse tempo todo? - Ouvi a voz de Cora que me perseguia pela casa
enquanto buscava desesperadamente uma garrafa de uísque.
— Aconteceu um incidente. - Respondi sem olhar para ela.
Minha mente estava certamente em outro lugar e ela me observava nas roupas
masculinas que eu vestia. Agarrei a primeira garrafa de uísque disponível. A
televisão acendeu-se tão rapidamente quanto meu dedo pressionou o botão do
controle remoto ao mesmo tempo que me afundei na maciez estofada. Olhei a
cena do filme que passava, uma perseguição policial, não era suficiente para
captar minha atenção.
Cora sentou-se ao meu lado, como se pudesse perceber a confusão mental que
me encontrava, examinava-me como um médico faria num paciente incapaz de
falar.
— Nunca mais fui a mesma, Cora. - Confessei. — Fiquei por um tempo sem
trabalhar depois que Heitor morreu, mas continuo cometendo erros bobos. Eu
devia ter revirado aquele lugar, encontrado qualquer um que estivesse se
escondendo, planejado melhor meus movimentos…
— Do que está falando?
— Do que preciso expressar. - Suspirei. — Estou ciente agora que eu não devo
subestimar os vampiros, eles são fortes, habilidosos e cuidadosos, mas isso não
diminui minha frustração.
— E por que está frustrada? - Perguntou aparentemente interessada.
— Nikolai me salvou.
— Como? - Não escondeu o choque.
Levantei a camiseta e mostrei as cicatrizes em relevo e avermelhadas.
— Eu o senti me ajudando, me fazendo beber de seu sangue, mas estava muito
mal e minha visão estava turva, não pude reconhecê-lo. Depois me disse que eu
matei um amigo dele e mesmo matando alguém de seu clã, ele me salvou antes
de descobrir que estavam tramando contra ele.
— Não devia se sentir agradecida e feliz por isso? - Perguntou confusa.

222
— Quem se sente bem quando está ciente da própria incompetência? E não
percebe que se Nikolai é o psicopata que você diz, ele está dificultando muito as
coisas? Por que me salvaria?
— Talvez você seja importante para ele.
— Ele nem me conhece.
— Liese, já passou pela sua cabeça que nem todo mundo fica questionando tudo
o que sente? Que às vezes a gente gosta de alguém porque a gente gosta? Que as
coisas são bem mais simples do que raciocinamos? Quando o conheci eu não
senti paixão a primeira vista, mas me vi tão encantada que sabia que acabaria
nisso. A gente sabe quando alguém é especial, não precisa de tempo,
antecedentes criminais, currículos. Essas coisas às vezes melhoram a condição,
como outras coisas pioram nos fazendo questionar se conseguimos ou não lidar
com um defeito. Você não pode controlar tudo e nem ninguém o faz.
Olhei-a de soslaio, enquanto virava o uísque.
— Você bebeu o sangue dele?
Balancei a cabeça afirmativamente.
— Estaria morta se não fosse por ele. - Admiti.
Ouvimos Alisha gritando no quintal novamente. Balancei a cabeça, levantando-
me:
— Qual o problema dela?
— Ela perdeu uma filha antes de ser transformada e tenta superar me adotando
como uma.
— Pff…
Ficaria feliz se o sono da morte me tomasse enquanto me dirigia para o meu
quarto. Joguei-me sobre a cama macia, sentindo ainda o cheiro dele que estava
impregnado naquela roupa emprestada que eu vestia. Como poderia dormir
depois de ter ficado por tanto tempo desacordada?
Peguei o celular entediada e busquei pela discoteca de Gustavo que Hedy havia
me informado. Havia um site propaganda, com algumas fotos do local,
recomendações e toda a sorte de marketing. Após um tempo joguei o celular
sobre a cama e me troquei para uma noite de ensandecimento eletrônico e um
pouco de investigação.
Uma bermudinha mais ou menos curta, uma meia-calça grossa toda rasgada,
uma camisa preta e gravata, com botas longas e escondidas por um longo
sobretudo, não estava exatamente parecendo uma fã de música eletrônica,
entretanto condizia com meu estado de espírito. Quem ligava?

223
Havia uma pequena fila logo na entrada do lugar, que parecia muito badalado. A
entrada ficava quase imperceptível num beco cheio de caçambas de lixo no centro
de Louis de Broglie. A fila não serviu apenas para me irritar, mas também para
perceber que as pessoas eram revistadas antes de entrarem, o que me fez
retornar para o carro e gastar alguns minutos me desarmando e jogando as
armas no porta-malas.
Não teria nada contra discotecas não fossem seus malditos jogos de luzes. Minha
visão era uma coisa borrada e disforme, caminhando quase que cegamente entre
as centenas que dançavam suadas. O lugar era muito maior do que poderia
julgar pela porta de entrada e um DJ animado motivava o pessoal já
enlouquecido.
Deparei-me com uma rampa de chão emborrachado que subi com a ajuda do
corrimão para não ser arrastada pelas pessoas que transitavam nela. Dei num
outro ambiente. Parei no novo ambiente por um momento agradecida pela pouca
e fixa luminosidade. A maior parte da luminosidade vinha do chão, por lâmpadas
compridas, fixadas entre o chão e a parede, emoldurando dessa forma todo o
lugar.
A visão tornando-se lenta e finalmente nítida, apresentou-me o negro balcão do
bar, onde pessoas animadas conversavam. Todo o saguão era salpicado com
mesas e bancos redondos chumbados ao chão. Evitei a parede atrás de mim,
diante do balcão, por seus grandes vãos arqueados que passavam a luminosidade
pulsante da pista de dança e avancei para o balcão enquanto examinava as
pessoas ao meu redor.
Instantaneamente ele chamou a minha atenção, estava de costas conversando
com algumas mulheres que riam sensuais para ele. Tinha o corpo, a estatura e
até o cabelo parecido com de Nikolai, mas sabia não ser a divindade sombria que
me torturava, pois que o loiro do cabelo do homem era num tom perolado e bem
mais claro.
Pedi por uma bebida enquanto o examinava de soslaio. As três mulheres o
apalpavam e assim que o garçom entregou-me a bebida, entreguei a ele meu
sobretudo, que logo guardou entregando-me um pequeno pedaço de madeira com
um número para retirá-lo. Virei-me ainda encostada no balcão para o lado do
moço sedutor. Não precisava muito para saber que era um vampiro.
Num momento aparentemente bem animado da conversa, ele virou e pude
vislumbrar seu rosto. Os traços escandinavos de seu semblante eram gritantes,
os olhos azuis pareciam duas gemas arrancadas do céu de verão, sorriu
enfeitando o rosto com covinhas e ao contrário do rosto glabro de Nikolai, esse
tinha um pouquinho de barba tão clara quanto o próprio cabelo.
De toda forma era um vampiro numa discoteca de um vampiro inimigo dos dois
únicos clãs que eu conhecia, não precisava de muito para presumir que se

224
tratava de alguém do clã de Gustavo. Não precisei pensar ou elaborar qualquer
plano como que já soubesse o que tinha que fazer.
Aproximei-me, as mulheres pararam de falar abruptamente ao me ver parando ao
lado deles. Sorri um sorriso diabólico para elas e aproximando meus lábios de
seu ouvido ao ponto de tocá-lo levemente, disse com voz aveludada:
— Tenho uma queda por loiros.
Virou-se abrupto e sorriu tão logo depositou o azul-celeste sobre meu rosto com
suas pupilas dilatadas. Avançou-se sobre mim e também deixando sentir seus
lábios em minha orelha, sussurrou:
— E eu por demônios. Olavi Selvik.
— Liese Flinker.
Sem pestanejar passou o braço sobre minha cintura, trazendo-me para perto de
seu corpo, senti a ponta gelada de seu nariz subindo moroso em meu pescoço e
com a cabeça inclinada olhei para as três mulheres que encaravam-me como se
estivessem prontas para me matar. Pisquei abusada e voltei minha cabeça no
exato momento de encontrar seus lábios já alcançando os meus.
Mordi seu lábio inferior num convite sensual que atendeu prontamente. E
enquanto nossas línguas brincavam uma com a outra, por um momento furtivo
desejei que Olavi fosse Nikolai. Mas, seus pensamentos que invadiam a minha
mente deixavam-me claro que não era e aquele beijo já tinha servido ao propósito,
sabia quem era Gustavo e sim, tudo indicava que ele era o vampiro velho que vi
na festa que fui com Nikolai.
Uma das mulheres nos deixou, mas não sem antes bater em minha mão que
sustentava o copo um pouco afastado do corpo de Olavi propositadamente,
derramando um pouco da bebida no chão e espirrando nele. Virei-me de supetão
e a puxei pelo longo cabelo que prendia num rabo baixo, agarrando seu pescoço
com a outra mão. Olavi sorriu satisfeito e com passos largos se posicionou atrás
da moça que se esforçava para respirar.
Olavi inclinou a cabeça faceiro – olhando me com seu rosto diabolicamente
angelical – acima do ombro da moça que esbugalhava os olhos claramente
assustada. Sentia sua garganta subindo em espasmos vigorosos, num esforço
involuntário de seu corpo em busca de ar. Como se entendendo o que eu estava
prestes a fazer, Olavi cravou-lhe as presas no pescoço leitoso e ao ver os já
familiares olhos negros envoltos por um círculo vermelho, afrouxei minha mão e
sorri para ele seduzida.
Agora enlaçada, tendo um braço de Olavi sobre seu tórax e a outra mão a
levantar-lhe a cabeça delicadamente pelo queixo, a mulher arfava assustada.

225
Abaladas as duas mulheres correram, enquanto ele carregou o corpo desfalecido
para trás do balcão do bar com passos garbosos, como se a abraçasse e a
conduzisse numa dança. Retornou carregando em seus olhos o caminho da
minha perdição e sorrimos sem a necessidade das palavras para expressar a
mútua e insana simpatia.
— Não que de fato eu queira, mas não poderei ficar por muito tempo. Preciso
resolver algumas coisas. - Disse enquanto deslizava os dedos frouxos sobre a pele
macia de meu rosto, compenetrado nos riscos invisíveis que desenhava.
— Uma notícia perturbadora para uma noite que prometia ser divertida.
Olhou-me distraído com suas covinhas a enfeitar o já belo rosto e conduzindo
meu corpo cego com sua boca tão próxima a minha, numa ameça deleitosa em
beijá-la, fez me dar alguns passos para trás até sentir a parede fria contra as
minhas costas. Esticou os braços apoiando as mãos sobre a parede e pressionou
ainda mais forte seu corpo contra o meu. Fitou meus olhos sustentando um
sorriso luxurioso e beijou-me.
Deslizei minhas mãos vagarosamente sobre seu peito, enquanto as perseguia com
o azul celestial que tanto me fascinara, com o lábio solto como se precisasse de
um tempo para descansar. Senti as mãos ansiosas afundando em meus cabelos e
trazendo minha cabeça para mais perto de seu rosto aparentemente ofegante
como se não pudesse me deixar escapar.
A mão carnuda desceu pelo meu pescoço, escorregando lentamente sobre o colo e
redesenhando com dedos frouxos o contorno de meus seios, enquanto a boca
úmida lançava-se lasciva em pequenas mordidas em meu pescoço não todo de
brincadeira. A música eletrônica vibrava e sentia as batidas compassadas em
meu corpo, as luzes que piscavam invadiam as frestas abertas da parede
guiando-me para um estado hipnótico.
E embora meu corpo passasse a reconhecer o ritmo, sentindo que minha
respiração tornava-se irregular e intensa, estremeci ao sentir seus dedos
descendo lentamente pelo meu abdômen e descansando no cós de minha
bermuda como se prontos para mais um pequeno esforço. Avaliou-me como se
pudesse medir as ondas de prazer que insistiam percorrer pela minha carne.
A imagem de Nikolai formou-se invasiva em minha mente e com certo desespero
procurei os olhos que me fitavam num azul libidinoso. Apertei-o contra meu
corpo, enquanto busquei por consolo em seus lábios, como moça num sonho tolo,
beijando-lhe para me esquecer do outro.
A mão atrevida afogou-se para dentro de minha bermuda, o toque delicado entre
minhas pernas fez me olhar os olhos que se apertavam num sorriso obsceno.
Nossas bocas se encontram novamente, o corpo estremecia e vibrava
involuntariamente, não apenas pelas batidas ritmadas e ensurdecedoras, mas

226
pelo toque cadenciado e invasivo entre minhas pernas. Afastei-me de sua boca
como se precisasse de ar.
— Algumas aventuras nunca terminam. - Sussurrou em meu ouvido. — Mas
piores são aquelas que nunca começaram.
Não queria falar, não queria que me fizesse pensar, sabia onde meus
pensamentos parariam se lhe desse uma ínfima brecha. Também era filha de
Satã e precisava dos prazeres carnais como qualquer outro. Assim calei-o fazendo
nossas bocas se encontrarem novamente numa luta débil, mordendo-se com os
lábios, brincando na concavidade onde o ar pesado ia e vinha com um perfume
antigo de fragrância obscura.
Senti as pontas dos dedos úmidos que fugiam da escuridão entre minhas pernas
deslizando como patinadores habilidosos sobre minha pele ao redor de meu
umbigo. Olavi inclinou a cabeça para trás num sorriso cruel, pronto para
abandonar-me nas labaredas ardentes do desejo. Devolvo o sorriso devasso
inclinando levemente a cabeça para o lado, enquanto suas mãos habilidosas
ajeitam minha roupa como se jamais tivessem passado por ali antes.
Deixei-o sem explicação para aplacar meu calor com uma bebida gelada,
debruçando-me ainda ofegante no balcão enquanto esperava por ela. Senti seu
cheiro ao toque suave de seu rosto em meu cabelo e agarrando a bebida entre as
mãos me voltei para ele, encostando-me no balcão.
— Será que terminaremos a aventura? - Falei após esparramar a bebida doce e
fria por minha boca.
— Eu espero que não. Como vampiro aprendi que se há algo que não gosto é o
fim. A morte me veio como se fosse o fim e percebi que se tratava apenas de um
ciclo, um ouroboros eternamente devorando a própria cauda, sem começo e nem
fim. Prefiro as coisas assim.
— Não me parece atrativo a eternidade com um desconhecido.
— A eternidade só é possível se estiver na companhia de um desconhecido, ao
contrário se torna morosa e tediosa. Não que não esteja interessado em conhecer
seu calor infernal. Algo me diz que temos almas parecidas, velhas e frias. Foi a
primeira coisa que senti quando te beijei. - Examinou-me. — Seus olhos me
dizem que você reconhece, assim como eu, que um mundo cheio de perigos,
traição e terror é apenas uma oportunidade para os corajosos mostrarem seu
valor. E ainda que seu corpo tentasse me ludibriar com calor, o seu fogo é frio e
se a morte lhe sorrir é provável que lhe sorrirá de volta.
— Como pode saber tudo isso sobre mim?
Maneou a cabeça risonho.

227
— Apenas tenho facilidade em reconhecer pessoas que são parecidas comigo. De
certa forma foi uma habilidade que tive que desenvolver no decorrer da minha
vida. Sou de uma época onde os criadores escolhiam os vampiros que
transformavam seguindo, além da simpatia, alguns critérios. Coisas importantes
para o século XVIII. Entretanto, fui criado e rapidamente abandonado, sem saber
muito sobre como era a vida de um vampiro, o isolamento foi um grande
motivador para tentar acertar em minhas escolhas quando pensava em
transformar alguém para ser minha companhia, minhas duas primeiras
tentativas deram estupidamente errado. Sou elitista se considerar bem esse
ponto.
— Então, se especializou para reconhecer grupos sociais superiores?
— Não posso garantir que exatamente. - Gostava do modo como sorria
frequentemente. — A quantidade como uma forma de medir a diversidade é uma
mentira. Gostam de nos fazer acreditar que um mundo lotado de pessoas é um
lugar bom porque há a diversidade. Mas, um olhar mais acurado sobre os
humanos nos revelará que a diversidade é quase nula, poucos pensam por si
mesmos e raros são os genuínos e originais, todos controlados por mentes mais
sagazes, fazendo-os consumir coisas sem sequer questionar, fazendo-os acreditar
que são especiais e originais como uma forma de pagar pelo seu produto e por
algum tipo de carência, essas pessoas acreditam que são especiais, inteligentes e
toda a sorte de boas qualidades. Contudo, quando você sobe um pouquinho e os
olha de cima, percebe que não são diferentes de uma manada conduzida por um
único espertinho e é incrível, ao menos para mim, acreditar que estão felizes
assim. Sei que a diversidade está numa minoria e que encontrá-los não é tarefa
fácil.
Meus olhos brilharam com o fogo do inferno, sim, ele pensava como eu e não
podia pensar que encontraria um amigo no clã que sabia que tinha que destruir.
Como essas coisas se repetiam tanto em minha vida? Talvez tivesse sofrendo
algum tipo de maldição ao encontrar pessoas interessantes entre minhas vítimas.
— Sou antissocial. - Admiti. — Gosto de muito pouca gente e mesmo essas que
gosto, normalmente são como uma pedra no sapato. Também não vejo nada de
interessante na maioria das pessoas que encontro e sei o quanto é fácil gostar de
pessoas semelhantes a mim, porque elas normalmente não me enchem o saco.
Sorrimos. Sim, nos entendíamos. Apressado conversou algo com o atendente do
bar, que logo colocou um pedaço de papel e uma caneta sobre o balcão, onde ele
escreveu seu nome e telefone, dizendo ao me entregar:
— Entre em contato para darmos continuidade em nossa aventura. - Beijou-me
novamente na ânsia de impregnar minha roupa com seu perfume e deixou-me
para fazer o que tinha que fazer naquela noite.

228
Fiquei mais algumas horas sozinha no lugar, recusando os convites de dança,
enquanto procurava encontrar outros vampiros ou mesmo o dono do lugar que
era meu principal alvo naquele momento. Não soube ao menos naquela noite o
que aconteceu com as duas mulheres que estavam com Olavi, mas não as vi
mais. Nem vi mais ninguém que me fosse interessante.

229
34 – Dormindo com o inimigo

Olavi não titubeou quando liguei marcando um encontro, até me senti contente
com o fato de me deixar escolher o lugar, não que eu conhecesse muitos, mas
preferiria uma noite no mínimo divertida. Escolhi um bar qualquer há alguns
quilômetros do centro de Louis de Broglie, apenas para relaxar, ouvir músicas
que me agradassem e enfim, encontrar-me com meu inimigo sensual.
Ele estava atrasado, entretanto a solidão em meio a tanta gente bêbada e
despreocupada era uma dádiva e a espera não era em nada dificultosa. Embora
tivesse que admitir que ainda me pegava pensando em como tiraria a verdade
sobre Nikolai, aquilo me deixava ainda muito inquieta e se Azazel estava em
algum lugar, gostaria de saber onde estava.
Contudo, estava com o foco no que Hedy vinha me pedindo e tentar saber dos
lugares frequentados por Gustavo era minha prioridade e com esse pensamento
em mente, estar com Olavi era o melhor que eu poderia fazer. Entretanto, não
gostava de me repetir e a última vez que usei a sedução como estratégia fui
envenenada pelo meu próprio veneno.
Vi Olavi entre as pessoas seguindo diretamente ao local onde estava sentada,
abrindo-me o sorriso diabolicamente belo de sempre. Sim, meu inimigo era
bonito, daquela beleza angelical que você nem percebe o quanto pode ser
perigoso, se é que Olavi fosse perigoso de fato, mas não tinha como fingir que
reconhecemos prontamente nossos instintos assassinos.
Beijou meus lábios suavemente e sentou-se na cadeira ao lado da minha,
dizendo:
— Desculpe pelo atraso, infelizmente tenho muitos compromissos ultimamente.
— Que tipo de compromissos? - Perguntei indiferente.
— Coisas de clã, nada sério, mas que precisa ser feito.
— Parece que exigem muito de você.
— Um tanto quanto. - Tocou meu cabelo, num afago carinhoso.
Seus pensamentos me invadiram e pude ver que há pouco matara alguns homens
engravatados que eu desconhecia. Era um escritório, um lugar que nunca vi
antes e carregou consigo algumas pastas pardas com documentos nelas. Por

230
algum motivo ele se lembrava muito de olhar para as próprias mãos, como se
precisasse se certificar de que estavam normais. Era uma memória estranha e eu
não conseguia entender bem aquilo.
— O que um vampiro precisa fazer pelo seu clã? - Arrisquei.
— Diz respeito a demônios tanto quanto a vida dos demônios diz respeito aos
humanos. - Sorriu.
O maldito era inteligente.
— Não fique chateada. - Disse enquanto pressionava levemente seus lábios sobre
os meus, espalhando o azul perversamente belo sobre meu rosto. — Estou até
pensando em te levar ao Hora Aberta.
— O que é Hora Aberta? - Perguntei curiosa.
Riu-se.
— Jurei que conhecesse. - Afagou meu rosto. — É um bar frequentado por todo
tipo de espécies. É um lugar neutro, onde é estritamente proibido qualquer tipo
de desavença. Gosto de ir lá às vezes, encontrar vampiros de outros clãs, anjos e
demônios, todos num só lugar sem causar problemas, exceto por algumas boas
provocaçõezinhas. Não dá para dizer que fazemos o mesmo quando deixamos o
lugar, mas sempre é divertido.
— Engraçado que eu não tenha ouvido falar desse lugar. - Realmente estava
surpresa. — Estranho não ser informada por minha própria raça sobre um lugar
como esse.
— Talvez por ser uma zona neutra e não exatamente um ponto turístico.
Senti-me estúpida e meus olhos faiscaram de raiva. Os olhos se apertaram e
lançou-se sobre minha boca novamente, havia percebido. Livrei-me de seu beijo
para pedir por mais uma bebida, num esforço de tentar aplacar o desconforto que
sentia. Não era agradável naquele momento ter de fazer o papel de demônio
inofensivo.
— Não é tão diferente desse lugar onde estamos. - Disse quando me soltou. — A
única diferença é que aqui somos apenas nós dois entre centenas de humanos, lá
certamente acontecerá o exato oposto.
— Não ligo de ficar entre humanos, são fáceis de dar cabo se encherem muito
saco. O que nem sempre é fácil entre seres como nós.
— Ah, é interessante se envolver numa boa briga. - Jogou o cabelo para trás e
sim, não pude deixar de esboçar um sorriso diante da beleza que se apresentava.
— Estou aqui pensando num modo de saber mais sobre você.
— Leia meus pensamentos. - Disse despreocupada.

231
— Gostaria imensamente, mas não tenho essa habilidade. Você tem?
— Também não tenho, mas já encontrei alguns que têm, deve ser bom saber o
que estão pensando. - Mentira estava começando a se tornar um dos meus
pecados prediletos.
— Nem sempre. Normalmente em cem pensamentos, nem dois são de fato
interessantes.
— Uma descrição da sua própria mente? - Ri, levando o copo à boca.
— Não sei se ia gostar de saber o que de fato está se passando em minha mente
agora. - Acariciou meus lábios antes de beijá-los.
Bem, saber eu sabia e até concordava com a ideia pervertida que se erguia em
sua mente. Mas, Olavi estava desconfiado, se questionava o que de fato eu
poderia fazer e ao mesmo tempo, com tão pouca informação ao meu respeito,
achava melhor não parecer muito invasivo.
— Só vai saber se gosto ou não, se me contar. - Insisti, afastando levemente meu
rosto do dele.
— Tirar toda a sua roupa faz parte do plano.
— Não me parece uma proposta de todo ruim. - Sorri, deixando meus olhos se
acenderem num brilho vermelho.
Ele pareceu adorar aquilo, beijou me com boca úmida e sôfrega, deixando suas
mãos escorrerem sobre meu corpo, abusada. Afastar-me apenas para encará-lo
com meu olhar sustentando as chamas ardentes do inferno, apenas fez com que
quase arrancássemos nossas roupas ali mesmo.
Não demorou muito para concluirmos que era melhor irmos para outro lugar.
Olavi parecia conhecer bem o local e encontramos um hotel a dois quarteirões do
bar, que ele também já sabia onde ficava. Estranhei, talvez porque eu ainda
precisasse de GPS para andar naquela cidade.
Fomos para o quarto elegante, olhei a decoração que só não me pareceu
totalmente insípida por causa das figuras abstratas pintadas no quadro acima da
cabeceira da cama larga de casal. Olavi acendeu os dois abajures que estavam
sobre os criados-mudos, um de cada lado da cama, e num claro esforço em tentar
me deixar confortável serviu-me com uma bebida que pegou no pequeno frigobar,
na área onde havia um balcão com bancos altos, dentro do imenso quarto.
Agarrei-me ao copo observando Olavi, que parecia brigar com o controle remoto e
a televisão a fim de encontrar um canal que apenas tocasse música. Tão logo
colocou música para preencher suavemente o ambiente, agachou-se diante de
mim e tirou meus sapatos, colocando-os simetricamente um ao lado do outro aos
pés da cama, sentando-se ao meu lado em seguida e retirando os sapatos dele,
que colocou metódica e simetricamente ao lado dos meus. Senti vontade de rir.

232
— Vamos ficar à vontade. - Sorriu.
Não sei o que ele quis dizer com aquilo, eu já estava à vontade e ele não parecia
estar tenso ou qualquer coisa do tipo. Com toque delicado acariciou meus braços,
dizendo:
— Eu gosto de conhecer as pessoas com quem me envolvo.
Sério que ele me levou ali pra gente ficar conversando?
— Quanto menos se sabe sobre alguém, mais se gosta da pessoa, vai por mim.
— Eu disse na discoteca que gosto de desconhecidos, mas não quero que você
seja uma desconhecida completa. Quero entender mais de seu fogo frio.
Levantei-me e o empurrei fazendo-o cair deitado na cama, sentei-me em cima dele
e curvando-me para alcançar sua boca, disse:
— Palavras não significam nada.
Entrelaçou os dedos em meus cabelos, puxando meu rosto contra o dele,
encaixando nossas bocas desejosas. A boca macia era tão convidativa que não
sentia vontade de fazer qualquer outra coisa a não ser beijá-lo, ainda assim sua
pele fria me proporcionava sensações tão distintas que me aventurei a beijar seu
pescoço, quando decidi por despir seu peito.
Acreditei que pudesse continuar sentindo o toque frio de sua pele em meus lábios
enquanto me aventurava pelo peito glabro, mas suas mãos firmes ergueu-me com
sua força sobrenatural, fazendo minha cabeça cair entre os travesseiros macios.
Não tinha nenhuma pressa em me despir e o gosto de minha pele lhe parecia
agradável. Seu cabelo macio, invejoso de seu dono, acariciava minha pele com
seu toque sedoso, enquanto o rastro frio que sua boca deixava se perdeu com o
peso de seu corpo, quando sua boca astuta encontrou meu pescoço. Por um
momento me preocupei, sentia suas presas arranhando minha pele sensível e
temia pela menor gota de sangue em sua boca.
Rapidamente segurei sua cabeça entre minhas mãos e o fiz beijar meus lábios
novamente, mas ele tinha outros planos. Serpenteou-se pelo meu corpo, com
suas malditas e deliciosas mordidas, até encontrar-se entre minhas pernas. E
Satã, como ele sabia trabalhar com aquela língua! Tinha definitivamente me
apaixonado pelo vampiro errado.
Aquilo não poderia ficar daquele jeito, tinha que lhe mostrar a luxúria da qual eu
era feita, ele bem que poderia ser um vampiro sedutor, mas eu era a cria da
devassidão e lhe mostrei do que a boca de um demônio era capaz.
Embora não nos conhecêssemos, nossos corpos pareciam se comunicar com uma
precisão que talvez as palavras não tivessem conseguido. Suas mãos e seu olhar
mostravam seu desejo dominador e eu preferia sua mão pressionando meu

233
pescoço, do que suas presas deslizando sobre ele. Se tivesse que morrer, que
fosse estrangulada, com todos os meus segredos intactos.
— Eu estou viajando em seu corpo. - Sussurrou em meu ouvido.
Sim, eu também estava gostando. Encarei os olhos brilhantes que fitavam meus
lábios, com seus cabelos a fazerem cócegas em meu pescoço pelo movimento e
agarrei-lhe pela nuca para que minha língua brincasse com sua boca.
Empurrei-o para o lado, subindo em cima dele para encaixá-lo suavemente entre
minhas pernas, pronta para tomar-lhe os lábios em minha boca, mas quando o
fitei transbordante em prazer, alucinei. Por um momento não era mais Olavi que
me fitava com o desejo a implorar-me, era Nikolai. Senti uma leve pontada de dor
em meu peito e o amaldiçoei pela milésima vez, por insistir em roubar meus
melhores momentos.
O rosto de Nikolai se desvaneceu no rosto de Olavi, que sustentava um olhar
inquisitivo diante de minha hesitação. Curvei-me lentamente sobre ele, deixando
meu rosto vultuoso tocar os lábios que tremiam insistindo silenciosamente para
que eu não parasse. As gotas grossas e insistentes da repentina chuva bateu
contra a vidraça da janela e minha respiração pareceu tornar-se ainda mais
ruidosa do que qualquer outro som, apenas para anunciar o êxtase que a
penetração produzia.
As horas se escorreram enquanto brincávamos com os nossos corpos e após meu
terceiro orgasmo daquela noite, observei todas as marcas roxas que havia deixado
em minha pele clara, examinando se estive de fato livre de qualquer mordida. Ele
riu, puxando delicadamente minha cabeça para repousar no peito nu.
— Não te mordi, percebi que ficou tensa todas as vezes que pensei em fazer isso.
— Podemos continuar assim? - Disse, deslizando meus dedos frouxos sobre o
peito pálido.
— Não sei, ainda estou louco de vontade de te morder. Não sabe o quanto é
prazeroso drenar alguém durante o sexo. Quase não consegui evitar com esse
sangue tentador que você tem.
Moveu-se tão rapidamente, me jogando para o lado e colocando o peso de seu
corpo sobre mim, com a boca devidamente encaixada em meu pescoço, que num
reflexo peguei o abajur sobre o criado-mudo ao lado da cama e quebrei em sua
cabeça. Ele gargalhou e rolou para o lado, puxando-me com ele e beijando minha
boca.
— Que adorável! Não podemos confiar um no outro. - Mordeu meu lábio
levemente. — Já estou até vendo que vou me tornar ciumento e possessivo com
você.
— E eu vou andar com uma estaca no bolso toda vez que me encontrar com você.

234
Apertou-me ainda mais forte contra o corpo, beijando-me novamente.
— Faça isso.
Sim, aquele doente realmente queria que eu tivesse uma estaca comigo, ficava
excitado com a ideia de que era perigoso transar comigo e justamente por isso,
ficar vulnerável lhe deixava excitado. Eu ri, Olavi era totalmente louco e
justamente por isso o achava incrivelmente agradável.
— “Ao velado veludo. Do fundo do teu centro: Seu escuro amor mudo, te rói
desde dentro.”.
— Não, você não está recitando William Blake! - Exclamei, incrédula.
Ele gargalhou novamente. Bati com os punhos fechados sobre seu peito,
ameaçou me morder novamente e me afastei, mas não de todo. Apertou-me
contra ele novamente, dizendo:
— Não recito para todas.
— Claro, acredito nisso. - Disse irônica.
— Não mesmo. - Depositou um olhar severo sobre meu rosto, que se inclinava
para olhá-lo. — Só para aquelas que me satisfazem.
— Uma pena que não nasci para satisfazer ninguém.
— Por isso mesmo que você me satisfaz e merece ouvir um poema. - Beijou-me,
risonho.

235
35 – Hora aberta

Hora Aberta ficava quase na fronteira entre Louis de Broglie e Heisenberg, numa
cidadezinha aparentemente pouco movimentada, não fossem pelos carros que
paravam aos montes diante do lugar. Descemos do meu carro e esse logo foi
tomado pelo manobrista que o levaria para o estacionamento. Senti a mão
apertada de Olavi sobre a minha e seguimos adiante.
A entrada do lugar era uma réplica perfeita de um templo grego com suas
colunas e estátuas de deuses iluminadas por luzes coloridas em tons verdes,
azuis e amarelos. Entretanto, tão logo cruzamos a entrada esplendorosa, o
edifício se apresentou como um largo e imenso galpão, as paredes apresentavam
um grafiato com riscos profundos numa cor salmão. O teto era as próprias telhas
que cobriam o galpão e muitos candelabros e lustres de cristais decoravam o
lugar.
E embora tivesse todo um aspecto simples, o lugar era requintado e tinha a forma
de L, sendo que o balcão do bar, sempre a primeira coisa que procuro num lugar
assim, ficava na curva entre os dois ambientes distintos que essa forma
proporcionava.
Olhei para as pessoas ao meu redor e sim, Olavi dizia a verdade sobre aquele
lugar, pude até mesmo ver o anjo Gabriel se engraçando com dois humanos, um
homem e uma mulher, numa mesa e por mais que não fôssemos amigos, nos
conhecemos em Schrödinger, o que pareceu se lembrar, pois que maneou a
cabeça num ligeiro cumprimento, que retribuí de mesma forma.
A iluminação era avermelhada, porém constante e no saguão principal as mesas
estavam espalhadas de forma graciosa, simetricamente alinhadas e eram
enfeitadas sempre por um candelabro e um pequeno vaso de planta das mais
diversas.
Fiquei realmente curiosa por conhecer quem seria o dono daquele lugar.
Demônios se divertiam em mesas ou dançavam alegremente, vampiros
circulavam pelo lugar livremente e embora não quisesse acreditar em meus olhos,
vi dois elfos conversando animadamente numa mesa. Sim, eu tinha como saber
que eram elfos por causa da minha capacidade de reconhecer a natureza dos
seres, mas não lembro de ter visto um elfo, ao menos não durante minha
memória de dois anos.

236
Olavi parecia bem mais familiarizado, deduzi que visitasse aquele lugar com
frequência, já que se empenhava em cumprimentar muita gente. Eu ostentava
um olhar intenso sobre qualquer um que me fitasse por muito tempo. O que
aconteceu muitas vezes, já que grande parte dos demônios que pude ver em
minha pequena caminhada até a mesa onde Olavi me conduzia, eram todos
inferiores em hierarquia e faziam pequenas reverências ou encaravam-me com
olhares inquisitivos.
O que era comum, vale dizer, pois nunca tinha encontrado de fato um superior e
mesmo aqueles que teoricamente eram meus superiores como meu pai e Samael,
não conseguiam se apresentar exatamente como superiores, meu pai conseguia
apenas me controlar pelo conhecimento que tinha de meu nome secreto e não
exatamente porque era meu superior direto. Se eu tivesse um superior direto,
ainda não havia o conhecido.
Sentamos à mesa que Olavi me conduzira e nela estava sentada uma vampira,
era parda e linda, de olhos grandes de cor âmbar e cabelos encaracolados
castanho-claros. Fitou-me por um tempo, ostentando um olhar investigador,
enquanto que Olavi nos apresentava. Seu nome era Lídia Oliveira e estendeu a
mão num cumprimento frio.
— Gustavo já chegou? - Perguntou Olavi fazendo-me esboçar um sorriso interno.
— Já. Foi conversar com Silene. - Respondeu, entediada.
Em seguida ela cochichou alguma coisa com ele, que soube apenas por estar
ainda segurando minha mão, perguntava-lhe se era eu quem ele havia pedido
para Gustavo interrogar e ele balançou a cabeça afirmativamente. Agradeci por
não ter sido revistada naquele momento, já que mantinha uma pistola
antivampiro escondida na minha bota.
Olavi havia me explicado pelo caminho que Hora Aberta era um bar relativamente
novo, com cerca de cem anos de funcionamento, com a frequência de poucos
humanos e grande parte deles bruxos e ocultistas. Era uma zona neutra onde
absolutamente ninguém infringia as regras expostas pela dona do lugar, que por
algum motivo, parecia ter algum controle sobre todos eles. Essa a qual estava
curiosa em conhecer.
Deixei meus olhos escorrerem pelos variados rostos e formas que enchiam o
lugar, enquanto o paladar se agradava com a umidade etílica que o invadia.
Entretanto, Gustavo sentando-se ao meu lado roubou-me a atenção. Segurou a
minha mão num cumprimento cortês e seus pensamentos invadiram minha
mente concentrada. Estava convencido de que me enfeitiçaria porque conseguia
facilmente enfeitiçar demônios.

237
Um calafrio percorreu meu corpo e pensei se seria sensato sair correndo ou ficar
e me deixar ser enfeitiçada. Cravou seu olhar em mim sem me dar tempo de
qualquer reação e com voz suave e ritmada, disse:
— Pode me atender?
Senti sua magia, como se pudesse nublar minha consciência por um momento,
entretanto me concentrei em focar-me em quem eu era o máximo que conseguia e
embora sentisse um leve torpor, sua voz não soou como um comando irresistível,
quando disse:
— Por que não coloca sua mão sobre a chama da vela?
Sentia o toque de sua magia, forte como uma rajada de vento, mas que por algum
motivo não me arrastava, contudo segura de que poderia manter minhas funções
mentais intactas, decidi fingir que ele estava no comando e coloquei minha mão
sobre a chama tremulante da vela.
O calor me queimava e por dentro eu gritava, mas mantinha sobre o rosto velho
de Gustavo, como se tivesse cinquenta anos ou mais quando foi transformado,
um olhar sereno e impassível. O cheiro da pele queimada subia no ar e a dor
quase me fazia tremular, mas aguentei até que disse:
— Retire a mão do fogo agora, minha criança.
Aliviada retirei a mão e ele a tomou para si. Enquanto mordia o próprio pulso,
senti seus pensamentos invadindo minha mente, estava confiante de que estava
realmente me comandando. Deixou um pouco de seu sangue cair sobre minha
mão machucada, a curando quase que instantaneamente. Em seguida, Olavi a
tomou e limpou o sangue com um pouco da bebida de meu copo derramado num
guardanapo.
— Diga-me, criança, por que abordou Olavi?
Queria muito rir e embora nunca tivesse feito teatro, amava a encenação.
Respondi:
— Porque ele é atraente.
— Qual seu verdadeiro nome?
— Liese Flinker.
— E seu nome secreto?
— Por ordem de meu superior não posso revelar.
— Quem é seu superior?
E agora como poderia saber quem não estava totalmente envolvido naquela
história? Só haveria um entre nós que não se daria o luxo de se misturar com

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qualquer outro que não fosse de nossa espécie por ter praticamente todo mundo
trabalhando para ele.
— A estrela da manhã.
— Quem é essa? - Perguntou Lídia que observava atentamente.
— Lúcifer. - Respondeu Olavi.
— E isso é bom para nós? - Ela insistiu.
— Se ela se apaixonar por Olavi…- Disse Gustavo.
Eu queria rir diante da cena.
— Não, não a force a se apaixonar por mim. - Objetou Olavi.
— Por que não? - Perguntou Lídia desconfiada.
— Porque me simpatizei por ela e se um dia vier a gostar de mim, que eu saiba
que foi naturalmente.
— Seus caprichos são tediosos! - A vampira bufou. — Ela só é um demônio como
qualquer outro.
— Ela é bonita, inteligente e boa de cama. E se vai ficar comigo, eu que decido.
— Você gosta de Olavi, Liese? - Perguntou-me.
— Gosto. - Oh céus! Como aquilo era difícil, queria rir enlouquecidamente.
— Você sabe que fará tudo o que ele mandar, não sabe?
— Sim.
— E você será fiel a mim e ao meu clã de agora em diante.
— Sim.
— E não se lembrará de nada do que lhe disse agora, embora fará exatamente
como ordenado. Despertando em sua consciência em dez segundos.
Contei os dez segundos facilmente e depois me movi apenas para levar o copo a
boca, com a sensação pesada de todos aqueles olhares que me fitavam. A forte
vontade de rir ainda era vigorosa, mas se desvaneceu quando sem querer ergui o
olhar. Nikolai cravou seu olhar em mim prontamente quando nossos olhos se
cruzaram. Senti meu corpo amolecendo como se tivesse sofrendo de uma súbita
queda de pressão.
A sensação só piorou quando claramente caminhou em minha direção. Todos à
mesa comigo se viraram para olhá-lo quando se sentou ao lado de Lídia bem
diante de mim. Gritava mentalmente para que ele fosse embora, dizendo que
Gustavo poderia o enfeitiçar e soltei um discreto suspiro de alívio quando ele
tocou minha mão, dizendo antes de dar-lhe um beijo:

239
— Onde encontraram moça tão formosa?
E dentro da minha mente ouvia sua voz. “Como assim me enfeitiçar?”.
“Ele pode enfeitiçar vampiros, Nikolai, não deve ficar perto dele”. Sentia-me aflita.
Beijou minha mão e confirmou-me com seu olhar que tinha me ouvido. Soltando
minha mão eu sabia que não conseguiria o ouvir, mas sabia que ele ainda podia
por causa do efeito de seu sangue.
— Ela é minha, Nikolai. - Disse Olavi altivo.
Queria entender qual era o problema dos vampiros com seus complexos de
possessão.
— Como que se quando o assunto sou eu, você pudesse decidir por isso. -
Respondeu irônico. — Como anda seu plano para me matar, Gustavo?
— Quase pronto. - O velho sorriu e deu uma piscadinha para Nikolai.
— Não sei porque se incomodam tanto comigo, sequer sou líder do clã que faço
parte.
— Como se você precisasse ser líder de alguma coisa…
— Para ser importante? - Ele interrompeu Lídia.
Se sua intenção era provocá-los, conseguiu deixar tudo ainda pior quando tão
rapidamente, que meus olhos sequer puderam o notar, tomou-me em seu colo e
deixou o bar. Sentia pela energia que fluía dele que estava usando alguma magia
e deduzi que provavelmente estivesse nos deixando invisíveis em sua fuga.

240
36 – Sobre rompimento

Viajar com Nikolai foi uma experiência interessante, caminhava com tanta
velocidade que me sufocava com o vento e seus saltos eram tão habilidosos que
tive a impressão de voar muitas vezes. Paramos num lugar ermo, de frente a uma
casa de madeira há vários quilômetros de distância do Hora Aberta. Quando me
colocou novamente no chão diante da casa, eu disse nervosa:
— Droga, Nikolai, por que fez isso?
Ignorou-me e como se usasse uma chave para destrancá-la, arrombou a porta da
velha casa, fazendo um sinal com a cabeça para que eu o acompanhasse. A
madeira rangeu sob nossos pés na medida em que avançamos na penumbra.
Esperei alguns segundos até que meus olhos se acostumassem com a escuridão e
observei o lugar.
A casa parecia estar abandonada há muito tempo, haviam lençóis sobre os
móveis e estes estavam com uma crosta de poeira. Nikolai seguiu por uma escada
reta de madeira que deu num corredor estreito, que dobrando a esquerda,
anunciava algumas poucas portas para quartos. Entrou num deles e o segui.
Retirou o grande lençol de uma das camas e senti o vento frio e fresco invadindo
o recinto, ao que abriu a janela.
O cheiro de mofo misturado com madeira era de fato forte, mas o inverno cada
vez mais próximo deixava no vento que invadia o quarto um rastro gélido que me
fazia tremer debaixo do cardigã leve que vestia. Atencioso, percebeu que eu sentia
frio, retirou o lençol de um armário velho do quarto onde estávamos, arrancando
as portas, para em seguida quebrá-las em várias partes como se estivesse
rasgando uma folha de papel.
— Empresta-me seu isqueiro. - Disse enquanto jogava a madeira na lareira
empoeirada do quarto.
Entreguei-lhe o isqueiro e ele ajeitou o lençol de modo a incendiá-lo. Esperei
sentada na cama enquanto ele preparava o fogo e assim que a fogueira começou
a se levantar quente na velha lareira de tijolinhos vermelhos, sentou-se ao meu
lado. Ao perceber-me sozinha com ele naquele lugar, senti meu coração
disparando como que se as emoções estivessem tomando controle de meu corpo e
evitei olhá-lo.

241
— Vai me contar o que você está fazendo? - Perguntou com voz firme.
Não precisei, pois me esqueci de proteger minha mente e as cenas saltaram nela,
meu encontro com Olavi, nossa transa, meu desejo de matar Gustavo e de saber
o que se passava naquele clã para avisar Hedy. Tudo isso subiu à minha
consciência sem que precisasse me esforçar. Ao inclinar a cabeça para trás num
movimento claramente desolado, peguei-me por um instante assustada.
O susto se transformou rapidamente em ódio por mim mesma por estar
preocupada com o que quer que estivesse passando em sua mente. Olhamo-nos
por um momento, com o fogo a crepitar nosso silêncio. Eu não tinha mais nada a
esconder naquele momento.
— Eu preciso que me diga a verdade. - Declarei abruptamente. — O que você fez
com Cora depois que vocês terminaram?
— Nada. - Respondeu confuso.
Avancei sobre ele e tomei sua mão entre as minhas, olhou para nossas mãos,
seus pensamentos me dizendo sobre sua ligeira confusão. Tocou meu rosto com
ternura e colocando uma mecha de cabelo atrás de minha orelha, perguntou:
— O que você quer saber?
— Por que forçou Cora a trazer Azazel?
Fui tomada por uma onda de agonia quando seus pensamentos apenas
confirmaram o que sua voz exprimiu em alto e bom som:
— Não forcei Cora a trazer ninguém.
Estava tão confuso com o que lhe perguntara quanto eu com o que respondia.
Joguei-me na cama aflita. Gustavo certamente havia o enfeitiçado, eu não via
outra explicação para aquilo. Levantei-me apenas para observá-lo, olhando-me
como se não entendesse o que eu estava fazendo.
— Quando foi a última vez que encontrou Gustavo, Nikolai?
— Faz muito tempo, bem antes de eu conhecer Cora, enquanto estava
acontecendo a caça aos vampiros. Foi quando o conheci pela primeira vez e
também a última vez que me encontrei com ele, exceto por hoje.
— Mas, falou agora pouco com ele sobre os planos para te aniquilar como se o
visse com frequência. - Disse confusa.
— Raramente vou ao Hora Aberta e nunca o encontrei pessoalmente após a vez
que ajudamos um ao outro durante a caçada. A verdade é que ele espalha aos
quatro ventos de que tem um plano para me destruir e como o vi depois de tanto
tempo, queria ver se o que ele tinha a me dizer a respeito dos boatos.

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— Naquela festa que me levou, onde o Fenecido me atacou, eu o vi pela primeira
vez enfeitiçando um vampiro. Ele tentou me enfeitiçar um pouco antes de você
chegar, mas por algum motivo não funcionou em mim, embora pude sentir o
entorpecimento que sua magia causava em minha mente e ele estava muito
convencido de que podia enfeitiçar demônios também. O que não condiz com o
que me disse sobre a dominação.
— Exceto se ele sofreu uma amplitude em dominação, como eu tenho em força. -
Interrompeu-me.
— Acho que é esse o caso e estou feliz em ser imune a isso, mas agora como vou
explicar isso? Tudo o que menos queria era que soubessem que te conheço.
Embora não sei dizer se Gustavo não nos viu juntos naquela festa e se ele estava
envolvido com o Fenecido que me atacou. E mesmo que você não o tenha visto,
ele estava frequentando livremente o mesmo lugar que você. Será que em algum
momento ele não te abordou e te fez esquecer?
— Aquela festa era de um vampiro do meu clã, ele não tinha que estar lá.
— Mas, estava. E acredito que muita gente do seu clã está interessado na sua
morte. Cora me disse que ouviu Victor dizendo que tentaria convencer o líder de
vocês a atacar Loïc e acredito que esse evento está ligado ao fato de que Loïc te
queira morto, porque acredita que você estava por trás desse ataque.
— Eu estava entre os vampiros que os atacaram, como sempre estou quando meu
clã precisa desse tipo de manobra.
— O que aconteceu entre você e Loïc? - Perguntei interessada.
— Por que nos separamos?
Balancei a cabeça afirmativamente.
— Não sei precisar como tudo começou. - Fitou a luz prateada que entrara em
batalha contra o avermelhado do fogo em sua invasão ao quarto. — Nunca quis
me destacar, nem nunca quis ser líder de nada, sempre achei que essas coisas
inibiam a minha liberdade. Fiquei sozinho por muito tempo e encontrei Loïc e seu
clã há séculos. Eram mais velhos que eu, procurava na época saber de coisas
sobre nós, como tudo começou, se tínhamos mesmo que seguir algumas regras e
coisas que não tive como aprender com meu criador. Fiquei encantado com Loïc,
com tudo o que ele sabia, com o modo como lidava com o clã, com o modo como
lidava com a nossa suposta imortalidade. Loïc nunca gostou de ficar sozinho e de
certa forma, acho que isso me encantava nele.
Olhou-me como se para conferir se estava prestando atenção.
— Eu dormi por um século, enterrado num cemitério no país onde nasci. Quando
despertei procurei por Loïc, ele sempre viajou muito e ficamos, por mais de um
século, separados, por não saber onde poderia encontrá-lo. Naquela época não

243
deixávamos ser conhecidos e a maioria levava as regras a risca, especialmente de
não nos envolvermos com os humanos, embora eu sempre estivesse envolvido
com os humanos e suas festas, sabia que era só me manter bem alimentado e me
passaria como um humano facilmente. Gostava de ficar com eles, faziam-me
entender as passagens dos séculos e foram de especial ajuda para entender as
mudanças pelas quais passamos.
Fez um breve silêncio como se precisasse rebuscar em sua memória.
— Sempre que ficava sozinho. - Continuou. — Passava grande parte do meu
tempo com os humanos, aprendendo com eles, lendo o que escreviam, estudando
suas filosofias e desenvolvendo as minhas próprias para a realidade, tenuemente
diferente, de um vampiro. Criei minhas próprias ideias e opiniões, tinha uma
filosofia que achava compatível com o modo que queria viver minha eternidade e
quando finalmente encontrei Loïc compartilhei com ele, era meu amigo afinal e
costumávamos conversar por horas. Ele não pareceu aceitar muito bem, mas não
criou conflito com isso de início. O problema foi que o clã crescera e passamos a
conviver num mesmo local. Com o tempo todos já sabiam que mesmo sendo mais
novo que muitos deles, ninguém era de fato páreo para mim e como sempre
acontece quando se está inserido numa sociedade, muitos começaram a me
admirar, me davam muita atenção, sabiam do risco de arrumar uma briga
comigo, então muitos concordavam comigo mesmo quando claramente queriam
discordar, apenas como um modo de me ter como um amigo, acredito eu, não sei
explicar o que exatamente se passa na cabeça das pessoas. Loïc sempre foi o que
lia mentes, não eu.
— E então? - Perguntei curiosa quando em sua pausa.
— Então que os boatos começaram a surgir, de que Loïc acreditava que eu estava
querendo tomar seu lugar. Ele me disse que não, que eram apenas boatos e bem,
não afetou, ou ao menos não notei na época, nossa amizade. Mas, minhas
filosofias, tão diferentes das dele, começaram a criar certo problema, quando eu
incentivava outros membros do clã a fazerem exatamente aquilo que sentiam com
suas almas obscuras, acredito que há algo como propósito na vida de cada
pessoa, mesmo de um vampiro, por mais sinistro e mórbido que seja seu
propósito. Que mesmo nossas vítimas poderiam muitas vezes terem escapado de
nós, se tivessem feito qualquer outra escolha, sempre pensei que uma força maior
empurraram-nas até onde chegaram.
Olhou-me como se meu silêncio o incomodasse.
— Muitas de minhas vítimas tinham o desejo de morrer, que eu podia sentir
vibrando no sangue delas, muitas simplesmente achavam que era cedo demais
ou que não mereciam terminar daquela maneira, para outras era como se fosse
um alívio. E essas coisas sempre me perturbaram de certa forma, não no sentido
de que sentia exatamente pena delas, pensava porque ela estaria ali, exatamente

244
onde eu a esperava, que força por detrás de suas escolhas inconscientes as
trouxera até a morte. E passei a chamar isso de Poder Pessoal, por causa de um
escritor brasileiro americanizado que li muito tempo depois e que explicava
exatamente o que eu já pensava muitos séculos atrás, que havia um poder no
homem e que ele chegava até onde esse poder o permitia. Não era exatamente
algo como destino, entende? Era propósito, como que de certa forma,
inconscientemente, já soubéssemos quais escolhas tomaríamos. Por isso que sou
pintor e músico, esse poder em mim permite que eu faça isso, do mesmo modo
que entre tantas pessoas que viviam ao meu lado naquela época, eu fui escolhido
para me tornar um vampiro, ainda que isso nunca tivesse passado em minha
mente. Como o seu te permite ceifar vidas e proteger outras, como de Cora. É sua
vontade. Seu propósito. A força divina que te move. Loïc entendeu como anarquia
e como um líder preocupado com um clã que fizesse o que bem entendesse,
decidiu que minhas ideias eram perigosas e me pediu para não falar mais sobre
isso.
— E o que você fez?
— Por um tempo, por gostar muito de sua amizade e companhia, fiquei em
silêncio e não expressava mais minhas ideias, especialmente as que estava
filosoficamente apaixonado. - Sorriu tímido. — Mas, não poder me expressar ia
contra a minha natureza, meu propósito e minha vontade. Então deixei o clã e
com isso muitos saíram comigo. E enfim, Loïc ficou ressentido. Não nos falamos
mais.
— Loïc é estranho. - Suspirei. — Não havia a mesma doçura com a qual você
falou dele, quando falou de você para mim.
— Loïc precisa dormir por uns bons anos. Ele sabe disso, como também sabe que
Soren cuidará bem do clã, como já cuidou uma vez. Não sei porque ele tem
adiado tanto. Contudo, não é problema meu.
— Eu preciso encontrar uma forma de descobrir se Gustavo te enfeitiçou, é a
única coisa que explica o que aconteceu com Cora depois que vocês terminaram.
E embora saber que ele pode te enfeitiçar e te controlar dessa forma, fico aliviada
de que por si mesmo não teria feito isso. Se fico aliviada por um lado por, seja lá
o que você tenha feito, não foi exatamente porque quis, por outro não me deixa
segura, se Gustavo pode te enfeitiçar, você pode matar qualquer um.
Pareceu confuso ao se virar como se precisasse admirar a luz pálida que invadia
pela janela. Aproximei-me tocando seu rosto. Os olhos morosos caíram sobre
minha face. Senti-me como se estivesse suspensa, flutuando no espaço sem
gravidade, não ousei me mover, apenas meus dedos que subiam e desciam sobre
a pele macia de seu rosto.
Fosse o que sentia naquele momento, aquilo apertava o peito, me sufocando. Era
doloroso olhar para ele e o desejar tanto. Temia pela sua segurança e

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especialmente pela minha e de Cora diante da conclusão. Não saberia dizer se
seria um insulto para ele o meu desejo de protegê-lo.
— Nikolai, eu…- Afastei minha mão de seu rosto impassível. — O que estava
fazendo no Hora Aberta?
— Estava procurando um vampiro chamado Adriano Alencar. Soube que ele
estava junto com os outros de meu clã quando tentaram me matar, mas
desapareceu desde que você os matou. Pensei que pudesse conseguir alguma
informação no Hora Aberta. Mas, você frustrou meus planos.
— Eu frustrei seus planos? Sabia que eu tenho vários planos e que você
conseguiu estragar com maestria?
— Tenho certeza de que alguns orgasmos que senti há alguns dias não eram
meus.
— Ah não, você não está me dizendo isso! - Dei alguns passos agitados de um
lado para o outro.
— Não sou seu dono e também não sou um demônio, mas sou orgulhoso.
— Como se precisasse dizer isso depois do que você fez.
— Vai me dizer que não gostou?
Rapidamente coloquei meu pé sobre a cama e retirei o revólver do cano de minha
bota, engatilhei e apontei para ele.
— Vai usar sua bala especial em mim?
— Não pensarei duas vezes se continuar me atrapalhando.
Avançou sobre mim com sua velocidade anormal e não precisou tocar em minhas
mãos ou arma para me desarmar, o encaixe perfeito de sua boca macia sobre a
minha foi suficiente.
— Melhor trabalharmos juntos. - Disse, afastando seu rosto, sem de fato me
soltar de seus braços.
— Depois que descobri que posso ter orgasmo por nós dois, acho que não há a
menor necessidade de trabalharmos juntos.
O beijei novamente, passei por ele o afastando do vão da janela e saltei por ela.
Lancei-lhe um último olhar, tão logo meus pés tocaram o chão, enfiou a cabeça
para fora da janela, perguntando:
— Está brava?
— Depois de luxúria, ira é meu pecado predileto. Mas, não, apenas tenho muita
coisa para fazer, estou sem cabeça para ficar me envolvendo com você.
— Já está envolvida. - Lançou me um sorriso maligno, dando uma piscadinha.

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— Exato. - Eu disse, abrindo minhas asas. — Não fosse por isso, estaríamos
transando agora mesmo.
Voei para longe.

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37 – Uma visita inesperada

Senti certo alívio ao pousar na grama de meu quintal, com a varanda iluminada
diante de mim e a porta de vidro como um convite a uma merecida bebida. Minha
cabeça estava girando, precisava de uma boa desculpa para dar a Olavi.
Disposta a acabar com todo meu estoque de bebida, segui em passos largos, mas
parei abruptamente quando ouvi algo atrás de mim. Retirando a arma que
colocara no cós de minha calça, virei-me rapidamente engatilhando e logo abaixei
a arma ao ver Loïc.
— O que está fazendo aqui?
Ele se aproximou segurando seu maldito caderno e me entregou, dizendo:
— Você tem se tornado problemática.
— Ah é? - Respondi, tomando o caderno em minha mão.
— Sim, tem feito muitas coisas as quais não deveria ultimamente.
— Como o que?
— Beber o sangue de Nikolai.
— Como sabe disso?
Ele maneou a cabeça ostentando um sorriso sarcástico, olhou para o lado e sem
me olhar, respondeu:
— Estive lá. Senti que estava morrendo e fui ao seu encontro, mas Nikolai estava
com você nos braços quando cheguei.
— E corajoso, resolveu não se aproximar? - Perguntei, sarcástica.
— Isso é um problema de fato. Por que você matou aqueles vampiros? - Encarou-
me.
— Trabalho.
— Está trabalhando para quem?
— Não é da sua conta, Loïc.
— Sim, é sim. E transar com Olavi, sério?
— Espero que tenha apreciado os orgasmos.

248
— Por que está saindo com ele?
— Loïc, também sou telepata, sei que as perguntas fazem saltar as imagens na
mente das pessoas com suas deliciosas respostas, mas não estou inclinada a te
dizer nada, se ainda não percebeu.
— Você vai dizer. - Sorriu.
Avançou rapidamente sobre mim, ergui a arma para atirar, mas não consegui
puxar o gatilho, por mais que quisesse e tentasse, algo em mim não me permitia
mover meu dedo. Ao seu toque meu corpo amoleceu, olhei para arma que caiu ao
chão, confusa com o que estava acontecendo, falou em meu ouvido:
— Eu estou dentro de você e não pode me matar.
As presas cravaram em meu pescoço dolorosamente. Juntei toda a força que
podia para bater em seu peito, mas meu corpo não me obedecia completamente.
Enquanto meu sangue escoava para dentro de sua boca, sentia minha respiração
ofegante e meu coração acelerado.
Os pensamentos de Loïc me invadia e ele assistia a tudo, em meu sangue estava
armazenado todas as minhas memórias e ele as acessava a cada gole. Algumas de
minhas próprias lembranças saltavam em minha mente por estarem vívidas na
mente de Loïc.
Senti dor em meu peito, todos os músculos de meu corpo se tornaram rígidos e
eu tremia incontrolavelmente em seus braços. Meus próprios pensamentos se
tornaram descontrolados, surgiam aos montes em minha mente, mas ainda pude
ouvir os pensamentos de Loïc, estava preocupado, queria parar de me drenar,
mas parecia ter perdido o controle.
Loïc temia me matar e eu sabia que estava para morrer. Meu corpo entregou-se
completamente, fraco, não conseguia mais se debater ou mesmo me manter em
pé. Maldito Loïc! Estava levando meu lindo corpo embora e eu teria que encontrar
o namorado de minha irmã para me trazer de volta.
Contudo, caí ao chão, zonza e fraca, quando Nikolai retirou Loïc a força, o
arremessando como se fosse um boneco de pano, fazendo-o bater com tanta força
contra uma árvore, que a partiu ao meio com o impacto. O covarde fugiu
rapidamente.
O deus sombrio tomou-me em seus braços, enquanto eu lutava para manter
meus sentidos, estiquei o braço com dificuldade para colocar minha digital para
abrir a porta, tremia tanto que foi necessário que ele me ajudasse e quando
entramos, Cora, talvez por ouvir o barulho da porta, surgiu e gritou:
— O que você fez com ela?
— O que podemos fazer? - Ele perguntou calmo. — Ela foi mordida, se eu der do
meu sangue para ela agora, ela pode se tornar uma de nós.

249
— Ah minha deusa. - Senti a mão de Cora sobre a minha testa suada. —
Transfusão de sangue será que resolve? O que está acontecendo?
— Cora, preste atenção. - Eu disse lutando para manter a consciência que
facilmente me escapava. — Leve-me para o hospital e quando faltar pouco para o
nascer do sol, ligue para Olavi e diga que estou internada. Mesmo se der tempo
de me ver, não quero que fique muito tempo comigo, apenas quero que me veja
como estou, pois vou dizer para ele que Nikolai fez isso.
— Como você consegue pensar numa coisa dessa quando está morrendo? - Ela
estava desesperada. — Por que dizer que Nikolai fez isso?
— Não te interessa, só faça o que estou dizendo. E se esconda, se possível quando
ligar para ele, peça para a recepcionista do hospital e não deixe que ele te veja,
não estou nada bem, não vou poder fazer nada e não quero que ele te enfeitice e
saiba da verdade. Você me entendeu? Se não fizer o que estou pedindo
exatamente como estou pedindo, se eu sair viva dessa, eu te mato.
— Pegue logo o carro, vamos levá-la logo para o hospital. - Apressou Nikolai.
Senti a pele macia de seu rosto sobre o meu, enquanto os passos de Cora pela
casa se tornavam cada vez mais inaudíveis, a voz ainda chegou em meu ouvido.
— Você vai ficar bem.
Lembro-me apenas de estar no colo de Nikolai no banco de trás do carro quando
finalmente perdi a consciência.
A luz dourada invadia o quarto do hospital quando abri meus olhos, Cora
cochilava numa poltrona confortável ao lado da minha cama. Olhei para o braço
onde a agulha perfurava minha veia para receber o soro e a arranquei, sentando-
me na cama em seguida e chutando a perna de Cora.
— Liese, você está bem? - Ela parecia assustada, quando saltou-se diante de
mim.
— Não porque ainda não bebi um café e não fumei um cigarro. Olavi veio?
— Sim. Você está bem mesmo? Seu corpo estava rejeitando a transfusão de
sangue, tive que improvisar e fazer magia aqui no hospital para tentar modificar
magicamente o sangue para que pudesse recebê-lo. E depois que terminaram
com a transfusão fiz outro ritual para te manter estável.
— Parece que funcionou. Vamos embora.
Levantei-me cambaleante e me vi naquela ridícula camisola de hospital.
— Vá pegar o carro e me espere embaixo da janela desse quarto. Deixe tudo pago.
— Já está pago. Mas, você não deve ir, ainda não está recuperada.

250
— Qual parte de “vá pegar o carro e me espere abaixo da janela” que você não
entendeu?
— Você precisa de medicamento.
— Preciso de alguém para matar o Loïc. - E então vociferei: — Vá logo!
— Nem precisa se preocupar, seu namoradinho disse que ele mesmo fará isso. -
Disse enquanto deixava o quarto.
Olhei ao redor do quarto insípido e branco e abri um armário de parede, onde
estava minha roupa. A luz invadia o lugar pela janela que Cora deixara aberta,
ainda que o vento estivesse frio. Vi uma enfermeira passando no corredor ao lado
da minha porta e rapidamente a fechei.
Estava com raiva, com muita raiva de perceber que não poderia matar nem Loïc e
nem Nikolai por ter tomado o sangue deles. O maldito Loïc sabia disso e é óbvio
que o demônio enfadonho que roubou-me de mim também sabia. Troquei
rapidamente de roupa e fiquei olhando pela janela, quando vi meu carro vermelho
estacionando abaixo dela, depois de uma espera de alguns minutos. Saltei da
janela do terceiro andar, fazendo Cora nitidamente arregalar os olhos e entrei no
carro.
Acendi um cigarro tão logo ela deu a partida e perguntei:
— Como foi com Olavi?
— Eu fiz como pediu e não permiti que me visse. O pouco que consegui espiar,
percebi que ficou com você até pouco antes do nascer do sol.
— E Nikolai?
— Foi atrás do Loïc. - Olhou-me rapidamente. — Acha mesmo certo matar o Loïc?
— Acharia melhor se eu mesma fizesse, mas não consigo atacá-lo. Não poderei
atacar Nikolai se isso for necessário e nem você, primeiro porque você tem medo
de matar e segundo porque bebeu do sangue dele também de acordo com a sua
história.
— Como assim de acordo com a minha história?
— Porque ele diz que não deu do sangue dele para você. Ele te sentiria, não? E de
toda forma ele não mentiu quando disse.
— Você acha que dá mesmo para confiar em Nikolai?
Baforei a fumaça do cigarro.
— Cora, não se pode confiar em ninguém, guarde isso em mente.
— Seu namoradinho novo é muito bonito.

251
— Olavi? É bom perguntar, já que sempre se refere a Nikolai quando chama de
namoradinho.
— Você gosta de colecionar namorados pelo visto. E sim, estou falando de Olavi.
— É uma pena que terei que matá-lo, admito.
— Por que tem que matá-lo?
— Porque ele faz parte do clã do Gustavo e é outro vampiro idiota como Loïc que
quer me controlar.
— Não é mais fácil conversar, tentar convencê-lo de ficar ao seu lado, expor suas
ideias e opiniões?
A olhei com o canto dos olhos, numa expressão claramente enfadada.
— Não levo nem um minuto para puxar o gatilho, então não, o que você sugere
não é nem de longe mais fácil.
— E como consegue transar com outro enquanto gosta do Nikolai?
— Desde quando gostar de alguém significa adotar uma vida celibatária? -
Suspirei, Cora era um caso perdido. — Preciso passar na Casa A.
— Onde fica isso?
Configurei o GPS para ela e liguei o som do carro.

252
38 – Sangue

Olhava para a carta que Hedy me enviara naquele dia, pedia para que eu
protegesse e trouxesse uma bruxa para morar comigo, que se chamava Agnes.
Como já tinha virado um hábito dela, não me deu nenhuma informação a
respeito. Havia apenas uma foto da moça e o endereço atrás da foto que sugeria
ser um bar ou algo semelhante, os dias e os horários que a encontraria naquele
lugar.
Dessa forma eu estava livre para fazer qualquer coisa depois que eu e Cora
voltamos para casa, logo que ela não estaria no lugar naquele dia. Entrei no
banheiro para um banho, nua diante do espelho olhei para o pescoço e lá estava
a marca de meu último encontro com Loïc. Por um momento pensei o que devia
haver em meu sangue que fizesse com que ele perdesse o controle daquela forma.
Ser mordida por um vampiro era bem mais perigoso do que eu pensara.
Demorei-me no banho, o corpo ainda fraco pareceu se deliciar em afundar-se na
água quente da banheira. Loïc já deveria saber sobre o ódio mortal que estava
sentindo dele. Odiava o fato de que ele estava tornando tão difícil manter o tímido
sentimento de amizade que nutria por ele.
Olhei o sabonete se estatelar contra a parede mediante a fúria que sentia e gritei,
deixando a banheira e me enrolando na toalha. Não demorou muito até que Cora
invadisse meu banheiro:
— Liese, você está bem?
Certamente ela pode notar o ódio que havia em meu olhar quando a olhei com o
canto dos olhos, passando ao seu lado para me vestir. Logo o alto balcão com seu
tampo de mármore gelo de minha cozinha se transformou no lugar mais atrativo
da casa. Ela havia me preparado o café.
Olhei pelo vitrô alto, a noite que já se anunciava, as luzes brancas e clara da
cozinha penduradas em luminárias sobre o balcão fez me lembrar que precisava
buscar meu carro no Hora Aberta, mas não me sentia inclinada, não estava
fisicamente bem, embora não quisesse que Cora soubesse daquilo e não queria
sequer que percebesse como de fato me sentia emocionalmente.
Estava tomando o café que Cora preparara, quando meu celular apitou me
avisando da mensagem de Olavi, queria vir em minha casa para me visitar e
saber se estava bem. Queria tudo menos o inimigo sensual em minha casa. E

253
enquanto lhe respondia dizendo que estava bem e se ele gostaria de sair comigo
àquela noite, Cora adentrou a cozinha, informando:
— Nikolai está à nossa porta.
Os dedos deslizaram rápidos sobre a tela do celular para enviar a mensagem para
Olavi. Sentia-me arrastar enquanto caminhava em direção a porta, olhei por um
segundo o Monet na parede branca do corredor que me levava até a entrada,
como se a bela pintura pudesse de alguma forma melhorar meu estado de ânimo.
Abri a porta de vidro encarando aqueles olhos cinzentos que tinham o poder de
me assombrar, senti o toque frio de sua mão sobre o meu rosto e seus lábios se
deitaram suavemente sobre os meus. Não, eu não queria apenas um encostar de
lábios e o envolvi em meus braços, pressionando-lhe a nuca e invadindo lhe a
boca com meu calor.
— Sério que vocês vão ficar se beijando na minha frente? - Protestou Cora.
Paramos para olhá-la. Com meus olhos cravados nela, lambi os lábios de Nikolai
e o beijei novamente, sem sequer parar de fitá-la por um segundo. O deus
sombrio pareceu se importar tanto quanto eu e sem muito esforço ajeitou minha
cabeça para encaixar minha boca perfeitamente na dele.
— Por que Loïc fez isso com você? - Perguntou, afastando levemente o rosto.
— Porque queria saber o que eu ando fazendo. Pelo visto, vocês podem me sentir
e até saber por onde eu ando, mas não tem completo acesso ao que me acontece.
— Não temos como saber o que conversa, vê ou está fazendo. Sentimos o que
você sente, alegria, tristeza, medo, ansiedade, prazer ou perigo, sabemos com
quem se encontra se conhecemos a pessoa, do contrário não temos como saber
quem é e podemos te encontrar em qualquer lugar, sentimos a sua energia. Mas,
se ele só queria saber o que estava acontecendo, não precisava beber tanto
sangue.
— Ele tentou parar, mas não conseguiu. Meu sangue deve ser tão demoníaco que
fez com que ele perdesse completo controle.
— Se bebermos uma gota de sangue morto nós morremos.
— Então, ao que parece beber do sangue de demônio é uma morte dupla, o
demônio morre drenado e vocês morrem porque não se controlam. Bom saber.
— Você não vai inventar de ser drenada novamente, se eu não estivesse no
hospital você teria morrido, seu corpo rejeita qualquer sangue humano. - Cora
protestou. — Seu corpo só aceitou o O Negativo depois que fiz magia para alterá-
lo usando tudo o que sei para trazer demônios.
— Acho que você não entendeu, se não fosse por Nikolai, eu e Loïc estaríamos
mortos agora.

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— Se não fosse por mim, você estaria morta agora. - Esbravejou.
— Mas, demônios são relativamente novos no mundo, não acredito que todos os
vampiros saibam disso. - Ele disse, calmo.
— Loïc sabe. - Eu disse indo em direção ao bar para me servir.
— Loïc é um vampiro morto.
— Faça isso por mim, Nikolai, por favor. - Concordei.
— Vocês não podem simplesmente matar Loïc. Ele não sabia que te mataria. -
Protestou Cora irritada.
— Ele não devia nem ter me mordido para começo de conversa. - Argumentei.
— Verdade. - Concordou Nikolai.
— Tudo para vocês é matar, matar, matar… Loïc não é uma pessoa má.
— Loïc é tão egoísta que ele não pensaria duas vezes em te matar se ele tivesse
algum benefício com isso. - Disse, reaproximando-me de Nikolai.
— Loïc é seu amigo. - Insistiu.
— Não tenho amigos. - Respondi, olhando para o celular que apitara.
“Encontre-me num bar chamado Pandaemonium às 21 horas”. Dizia a mensagem
de Olavi, que Nikolai curioso também leu.
— Vai sair com ele novamente? - Ele perguntou.
— Não sou do tipo que recusa um bom sexo. - O beijei.
— Ainda não conhece o meu. - Respondeu, dando uma leve mordida em meus
lábios e me beijando novamente.
— Vocês são nojentos! - Ela disse, ligando a televisão.
— Primeiro mandamento, Cora, amar a si mesmo sobre todas as coisas. Com
base nisso você faz o resto de suas escolhas. Se gostar de Nikolai e transar com
Olavi me agrada, amém.
— Você não ficará contra essa loucura? - Ela perguntou encarando Nikolai.
— Por que eu ficaria? Não há nada além de faça o que quiser.
— Como você cultua a prostituta sagrada? - Perguntei curiosa.
— Eu não preciso ser uma puta para cultuar uma deusa assim. - Argumentou. —
Os deuses não querem que eu seja qualquer outra coisa que eu não seja.
— Então, por que você quer que a gente seja o que você acha que devemos ser?

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— Só acho que há modos melhores para você lidar com as coisas, sem ser
matando todo mundo. Loïc não tinha a intenção de te matar, ele apenas não
conseguiu parar.
— Loïc não respeitou a vontade dela. - Olhei para o deus sombrio com ternura ao
ouvi-lo.
— Agora você vai ficar defendendo a Liese? - Perguntou irritada.
— Acho melhor você enfeitiçar Cora e fazê-la esquecer disso, certamente contará ao
Loïc. - Disse dentro da mente dele, afastando-me para encher meu copo
novamente.
Nikolai rapidamente parou diante de Cora, curvando-se para deixar seus olhos na
altura dos castanhos olhos dela, suas mãos apoiaram-se no sofá cinzento e
macio, logo acima dos ombros que afundaram-se ainda mais no encosto do sofá
mediante a um estado de relaxamento.
— Cora, você pode me atender?
— Sim.
— Você nunca ouviu eu e Liese falando sobre Loïc. Você sabe que nós dois somos
importantes para você e que corremos perigo, por isso você nunca falará
absolutamente nada para ninguém sobre o que acontece com a gente. Você
entendeu?
— Sim, vou sempre manter tudo em segredo.
— Boa menina. Agora você irá para o seu quarto, porque você está morrendo de
sono e precisa dormir profundamente por três horas.
Ele deu alguns passos para trás, dando espaço para Cora se levantar e sem dizer
qualquer palavra ela seguiu para seu quarto. Invejei aquele poder dos vampiros, a
vida seria tão mais fácil podendo comandar as pessoas daquele jeito,
especialmente Cora.
— Acho que ao fazer o que me pediu sem te questionar, demonstra meu interesse
em trabalharmos juntos. O que tem a perder? Seríamos imbatíveis juntos.
— Ainda não estou certa de que posso confiar em você.
— Lie, o que você tem a perder? Você não pode me ferir se eu for o cara mal que
você espera que eu seja e já ficamos em tantas situações onde você esteve
vulnerável, que se eu quisesse te matar, já teria feito.
— Eu preciso ir, senão me atrasarei. Aonde você vai?
— Passarei certamente no Madame Satã.
— Não importa o que aconteça, não mate Arthur.
— Gosta dele?

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Balancei a cabeça afirmativamente. Ele se aproximou segurando minha nuca e
beijou me. Repousei a mão frouxa sobre seu rosto e abri meus olhos apenas para
fitar o rosto esmaecido que eu tanto amava. Revelou-me o azul pálido de seus
olhos relutante em abandonar meus lábios. Não, não aquele sentimento, não
aquela frase… Eu não diria o quanto gostava dele. Mas, ele sorriu e disse, antes
de me envolver em seu beijo novamente:
— Eu também gosto de você.

257
39 – Pandaemonium

Não pude acreditar em meus olhos quando entrei no bar. Se soubesse que
houvesse um lugar como aquele em Louis de Broglie não iria em outro. Logo na
porta de entrada tinha uma enorme estátua de um Exu africano, tão alta e
perfeita que era fácil de se confundir com uma pessoa.
As mesas ovais de um tamanho até que grande para um bar, mas pequenas
demais para um restaurante, eram de madeira, com cadeiras estofadas com
motivos em mandalas. Em cima do extenso balcão havia uma estátua de bronze
enorme do deus indiano Shiva e entre as prateleiras de madeira onde ficavam as
bebidas, um enorme quadro de Buda.
Sorri com a ideia de tomar a dietilamida do ácido lisérgico e ir para aquele bar.
Olhei ao redor na ânsia de encontrar Olavi, enquanto caminhava por entre as
mesas, desviando-me das pessoas que conversavam animadas, embora não
piscassem, cada pequeno espaço do bar era iluminado numa cor diferente, pelos
vários e belos lustres de vidro que despencavam numa cascata de brilhos.
Mais ao fundo do bar, encontrei um chafariz com uma estátua de Dionísio como
um menino urinando vinho, claro que não era vinho, mas as luzes que o
iluminavam, davam a água uma coloração avermelhada. Já próxima ao chafariz,
vi Olavi numa das mesas que circundavam o deus do vinho, conversando com
duas mulheres, uma de cada lado dele.
Parei ao lado da mesa e ele sorriu para mim, fazendo uma das mulheres se sentar
noutro lugar e batendo a mão na cadeira, agora vazia, num convite para me
sentar. Sentei-me e enquanto pedia uma bebida para o garçom, percebi que a
mulher sentada ao lado dele me olhava incomodada e seu semblante se tornou
severo, quando Olavi puxou-me pela nuca e beijou suavemente minha boca.
— Quem é ela? - Perguntou, me encarando.
Ao ouvi-la, virou-se para mim, esboçando aquele sorriso maligno adornado de
covinhas em seu belo rosto angelical. Não necessitava de meus poderes telepatas
para compreender o que queria me dizer. Abri um largo sorriso e com voracidade,
nossas bocas se encaixaram, havia tanto desejo em nós, que os lábios
umedeciam ao toque tenro e ávido de nossas línguas. Se Olavi tinha uma
qualidade era a que ele sabia exatamente como me divertir com sua doce
malignidade.

258
— Minha alma gêmea. - Respondeu, sem olhar para ela.
Fitei o céu de seus olhos, enquanto suas mãos ainda pressionavam meu rosto,
incapaz de me soltar. Os olhos embebidos examinavam meus lábios, na medida
em que os acariciava com os dedos frouxos. Perguntou:
— Você está melhor? Estive com você tão logo a recepcionista ligou informando
que alguém a trouxera para o hospital. Queria ter feito companhia até que ficasse
bem, mas o sol é meu pior inimigo.
— Ficarei bem. Só não me sinto ainda muito disposta.
— Matarei Nikolai por isso. Sempre achando que é o invencível, que pode fazer
qualquer coisa, ele não sabe o que o aguarda.
— Olavi, você prometeu! - A mulher insistiu.
— Liese, essa é a Amelia. - Ele maneou a cabeça para a mulher que sentava-se ao
seu lado.
— O que prometeu a ela? Uma noite alucinante de sexo? - Perguntei.
Ele riu.
— Minha Freya é você. - Acariciou meu rosto, beijando suavemente meus lábios.
— Ela quer que eu a transforme num vampiro.
— Como se isso fosse grande coisa. - Disse a outra mulher.
Sorri para ela, era magra e aparentemente alta, vestia um vestido preto e curto de
alcinhas, o cabelo dourado preso num coque frouxo, com a franja longa e
desfiada, belamente ornamentando seu rosto. O demônio sedutor rapidamente
notou minha simpatia pela moça, dizendo:
— Essa é Sara.
— Você fala isso porque tem inveja de mim. Ninguém quer ser um humano como
nós, perderemos nossas belezas, definharemos numa cama em velhice. Tudo o
que estou pedindo é a eterna jovialidade. - Protestou a outra.
— Por que você acredita que merece isso, Amelia? - Perguntei curiosa.
— Por que eu deveria te responder? - Respondeu, arrogante. — Uma mera mortal
como qualquer uma de nós.
— Apenas acho que se eu fosse vampiro, com o dom de conceder a imortalidade a
alguém, pensaria, sem sombra de dúvidas, no que aquela pessoa teria a oferecer
para o mundo como recompensa de sua imortalidade. Não que eu ache que
vampiros são seres maravilhosos, mas já que vão ficar tanto tempo
perambulando no mundo, que sejam, no mínimo, interessantes.
— Acho que ela acredita ser bonita o suficiente. - Disse Sara, virando a caneca de
cerveja quase que num só gole.

259
— Vocês são amigas? - Perguntei, observando Sara.
— Na verdade só vim porque estava entediada. - Ela respondeu, levantando o
dedo para o garçom, solicitando mais uma cerveja.
— Olavi, eu faço tudo o que você me pede, tenho faxinado a sua casa há mais de
um ano, te alimento, deixo você fazer o que quiser comigo e você me prometeu
que me transformaria hoje.
— O que você acha? - Ele me perguntou.
— Acho sobre o quê?
— A transformaria numa vampira?
— Se fosse vampira não existiria mais gente no mundo. - Respondi.
Sara riu.
— Faria a mesma coisa.
Olavi sorriu para ela.
Amelia continuou com sua imploração. Entediada, olhei ao meu redor, havia
vários vampiros naquele lugar, todos desconhecidos, meu olhar curioso se
depositou num vampiro que estava em pé, encostado numa parede, encarando-
me enquanto acariciava o corpo de uma mulher. Deixando-o, percebi que a
maioria era humanos e estes estavam claramente implorando pela morte, como
Amelia insistentemente fazia.
— Você quer brincar? - Ele sussurrou em meu ouvido.
— Do que? - Perguntei, colocando novamente minha atenção sobre ele.
— Assustar menininhas.
— Onde?
— Minha casa.
— Já confia em mim o suficiente para me deixar saber onde você mora?
— Claro que não, mas sentir que estou em perigo me excita.
Claro que sim, estava confiante de que o feitiço do amiguinho tivesse realmente
feito efeito em mim. Não queria deixar aquele lugar, queria saber se Gustavo o
frequentava. Entretanto, saber onde Olavi morava me dava uma grande vantagem
e concordei.
Os acomodei em meu carro e seguimos para sua casa. Como de costume deles,
não morava perto de grandes aglomerações e sua casa era distante das casas de
seus vizinhos.

260
Amelia parecia bastante familiarizada com a casa quando entramos, estava
impecavelmente limpa, havia pouquíssimos móveis e os que havia no local
possuíam um design moderno e arrojado. Sentei-me no sofá preto e
extremamente macio, com Sara ao meu lado. Diante de nós uma escada em
mármore com o corrimão de vidro convidava-nos para o andar de cima.
Olavi fez com que Amelia me servisse uma bebida, enquanto que tomei a
liberdade para colocar alguma música que me fosse agradável para ouvir. A
música sombria com seus riffs pesados preencheu o ambiente ensurdecedora,
não queria continuar ouvindo Amelia implorando para Olavi a transformar num
vampiro, já tinha ouvido o suficiente daquilo durante a viagem até a casa dele e
com o copo em mãos, comecei a dançar.
Ele pareceu se incomodar com a forte iluminação, apagou a luz acendendo velas
por todo o cômodo, com Amelia sempre a lhe seguir, ela era de fato uma jovem
muito bonita, os cabelos negros e lisos caíam-lhe sobre a fina cintura, os peitos
volumosos e proporcionais ao corpo magro e pequeno, olhos tão verdes quanto os
meus, pequenos e brilhantes, a boca pequena e rosada, pena que era estúpida.
Logo Olavi se aproximou dela, em seu comportamento altamente sedutor,
rasgava-lhe a pele com suas unhas compridas, sugando de seu sangue em
seguida. Assim se seguiu por minutos, Amelia gemendo de dor ao receber os
cortes, com o demônio sedutor a sugar-lhe. Olhei para Sara, continuava
impassível como se absolutamente nada estivesse acontecendo, saboreando a
cerveja e mexendo em seu celular.
— Minha vez de brincar. - Eu disse, o afastando de Amelia.
Cravei-lhe o olhar sustentando o fogo do inferno neles. Encarou-me e mostrei-lhe
minha imagem como coisa grotesca, metade de meu corpo e rosto mostrava-se
cadavérico, com vermes a dançar sobre meus ossos, enquanto que o outro lado
era de extrema beleza. Ela gritou, claramente assustada, dizendo:
— O que é você?
— Uma mera mortal. - Respondi, sorrindo em minha monstruosidade.
Com mãos delicadas a guiei até o enorme espelho que Olavi tinha numa das
paredes da sala e Amelia começou a gritar sem parar. O que via, alucinada, era
que enormes vermes rastejavam abaixo da pele macia e perfeita de seu rosto e
corpo, diante dessa visão começou a se estapear, num esforço de fazê-los
pararem.
Quando ela se virou desesperada para pedir auxílio para amiga, foi tomada pelo
pânico, Sara estava com toda a carne apodrecida, despencando em pequenos
pedaços. E embora a outra mulher também visse a mesma coisa de si mesma e
da amiga, estava completamente desinteressada, seu instinto suicida me
agradara e sorri.

261
Sem poder ver o que víamos, pois que não o deixei fazer parte de minha magia, o
demônio sedutor, percebendo o desespero de Amelia e os gestos estranhos de
Sara, que em sua visão, se livrava dos pedaços que estavam para cair de sua
carne, os arremessando pela sala, aproximou-se de mim e perguntou:
— O que está fazendo?
Encostei meus lábios nos dele e permiti que visse o que estávamos
experimentando. Seu olhar seguia Amelia que corria pela casa, na esperança de
encontrar uma saída, mas em sua alucinação todas as portas e janelas não mais
existiam. Sentou-se chorando convulsivamente num canto vazio da sala.
Caminhei até ela, entregando meu punhal, dizendo:
— Se for corajosa o bastante, pode retirar esses vermes de você com isso.
Segurou o punhal desajeitada, entre as lágrimas, coçava ferozmente os lugares
onde sentia que os vermes andavam debaixo de sua pele, certamente pensava se
faria aquilo ou não, enquanto a olhava. Ajoelhou-se diante de mim, implorando:
— Por favor, faça isso parar! Eu te imploro! O que eu fiz para merecer isso?
— O que você fez para merecer? - Perguntei, curiosa.
— Eu… eu… Eu não devia ter usado os homens para extorqui-lhes, também não
devia ter humilhado todas as mulheres que eram feias ou desajeitadas, eu não
queria, mas me sentia bem quando as via chorando por não serem bonitas como
eu…
— Ah, pelo amor de Deus, não seja patética! - Rosnou Sara do outro lado, ainda
relaxada sobre o sofá. — O que você esperava lidando com seres das trevas como
eles? O paraíso? Bondade? Sempre se achou especial e bem, agora todos nós
vemos o quão miserável você é, implorando pela vida.
— Eu gosto dela. - Sorri.
— Eu também. - Concordou Olavi.
O vampiro avançou sobre Sara e sugou-lhe até a última gota de sangue vivo. Via
em seus olhos a ansiedade e a angústia que era estar nas mãos de um vampiro
daquele jeito, mas ela bravamente continuava impassível, parecia deliciar-se com
a promessa do fim, nada mais deleitoso do que dar a imortalidade para aqueles
que esperam ansiosamente pela morte.
Olavi a abandonou inconsciente ao chão e sincronizados olhamos para Amelia,
que em desespero rasgava a carne com o punhal para retirar os enormes vermes
que via. Urrava de dor a cada estocada, o líquido grosso e vermelho banhava seu
corpo, tingindo suas roupas e chão.
— Você é terrível! - Disse excitado antes de me envolver em seu beijo úmido.

262
— Espero estar te ensinando o que é tortura. Porque ficar mordendo e drenando
sangue é prazeroso demais.
— Quer que eu te conceda esse prazer?
— Não mesmo. E se tentar vai alucinar tanto quanto ela.
Tomou-me no colo, jogando-me em seguida sobre o sofá, devorávamo-nos num
beijo molhado e demorado, quando estalei meus dedos. Amelia provavelmente se
via no espelho com seu belo rosto, sem qualquer verme e todo talhado pelos
cortes que ela mesma fizera. O choro e os gritos tornaram-se ainda mais
intensos, fazendo Olavi me abandonar para olhá-la.
Ela avançou sobre ele, agarrou-lhe a mão com as mãos úmidas e vermelhas,
implorando ainda mais intensamente para ele a transformar numa vampira para
se curar e manter a beleza que lhe era tão cara. Sem dizer uma palavra qualquer,
ele mordeu o próprio pulso e deixando-me, deslizou graciosamente até Sara e
colocou o pulso sobre a boca dela, dizendo:
— Já fiz minha escolha.
Sorri satisfeita, sentando-me confortavelmente para assistir o teatro de horrores.
O corpo de Sara agitou-se em espasmos e por algum momento Olavi penteou-lhe
os cabelos a acalmando, informando-a de que apenas seu corpo mortal estava
morrendo. Enquanto Amelia engatinhava-se na direção dele, escorregando em
seu próprio sangue. Quando finalmente alcançou Olavi, ele a chutou,
arremessando-a para o outro lado da sala.
Sentou-se ao meu lado e aproximando a boca úmida na minha, afastei-me e
ofereci meu copo, dizendo:
— Limpe sua boca de seu sangue se quiser me beijar.
Levantou-se e rapidamente trouxe Amelia, a jogou indelicadamente sobre seus
pés ao sentar-se ao meu lado novamente e pegando o braço fino e leitoso da
moça, a mordeu, sugando-lhe mais um pouco. O rosto pequeno era uma mistura
grotesca de lágrimas e sangue e mais uma vez implorou:
— Por favor, Olavi, me transforme.
Desnudou o pênis e puxando a cabeça da garota, ordenou:
— Chupe-me.
Olhei para ela curiosa, sem titubear, colocou o pênis de Olavi na boca. Horroriza-
me o fato dela sequer se defender, não tentou nos atacar sequer por um
momento, não lutou por um segundo e como um cachorro, atendia ao demônio
sedutor sem titubear. Agarrou-me o rosto, trazendo para perto dele e enquanto se
deliciava com o sexo oral nefasto, beijava-me excitado.

263
Doentiamente me deleitava nos prazeres do inferno e abri minhas pernas, tão
logo senti sua mão deslizando sob minha calcinha. Acariciava-me suavemente
com sua mão e com sua língua que ainda invadia-me a boca. Arrastada pelo
desejo abrasador, retirei minhas roupas, empurrando Amelia e me sentando
sobre ele.
Nossos gemidos ignoravam seu choro e ignoraram também quando Sara
despertou como uma vampira e avançou faminta sobre mim. Olavi a olhou em
seus olhos, enquanto ainda guiava meus quadris num pedido para que eu não
parasse, dizendo:
— Como seu criador, te proíbo de morder, Liese. Por causa dela te tornei uma de
nós e por isso você sempre deverá servi-la. Alimente-se daquela inútil, mas não
beba dela quando a morte lhe vier, ou morrerá com ela.
Esqueceu-se dela completamente, concentrando-se novamente em meu corpo,
beijando meus seios e pescoço, enquanto movia-me sobre ele impulsionada pelo
êxtase. Seu celular tocou, senti meu corpo sendo pressionado levemente para
trás, em seu esforço de pegar o celular no bolso da calça que descansava em seus
tornozelos, olhou o aparelho para conferir quem o estava importunando e sendo
uma ligação claramente importante, atendeu:
— Olavi.
Eu mordia-lhe a orelha, quando ao ouvir o que a voz para mim inaudível dizia,
puxou meu cabelo, dando uma leve mordida em meu ombro, dizendo ao telefone:
— Estou indo.
Colocou-me de lado com sua força sobrenatural, dizendo:
— Minha rainha, terei que deixá-la.
— Por que? - Perguntei.
— Pegamos Nikolai.
Tive que esconder o choque.
— Como assim?
— Gustavo está com ele no Madame Satã, tenho que ir.
Vestiu-se rapidamente e deixou a casa. Olhei atônita para Sara que estava com a
boca toda suja do sangue de Amelia, que jazia ao seu lado, angustiada e sem
pensar vesti minha roupa.

264
40 – Prisão

Voando chegaria muito mais rápido ao Madame Satã e foi o que fiz, depois de me
armar até os dentes com as armas que mantinha no porta-malas do meu carro.
Queria muito pensar que Loïc não estivesse envolvido naquilo, mas seu
envolvimento me parecia óbvio, já que sabia que Nikolai estava o caçando.
Abri a porta dupla do Madame Satã para passar livremente por ela com minhas
asas a mostra. O lugar só não estava vazio, porque muitos vampiros, todos
desconhecidos, estavam em dezenas. Vi Nikolai próximo ao palco improvisado,
Gustavo sustentava seu braço, enquanto seus olhos pálidos fixavam-se no chão
xadrez, totalmente vazios.
— O que você faz aqui? - Perguntou Olavi avançando rapidamente em minha
direção num salto sobre as mesas.
Atirei na perna dele apenas para paralisá-lo, não queria de fato matá-lo,
simpatizava-me com ele e sabia que ainda poderia arrancar-lhe informações. Não
tive tempo para sequer respirar, vários vampiros começaram a saltar em minha
direção, atirava neles com tanta rapidez quanto me fosse possível, deixá-los se
aproximar de mim seria um grande risco.
Ainda assim dois deles chegaram próximos, bati minhas asas com violência,
quebrando as mesas ao meu redor e fazendo copos e garrafas se espatifarem com
a força do vento. Atirei nos dois enquanto ainda batia minhas asas e em três que
estavam no parapeito do mezanino prontos para se lançarem sobre mim.
— Nikolai! - Gritei, enquanto me defendia dos ataques.
Haviam muitos, minha desvantagem era clara. Gritei seu nome novamente,
depositou o olhar vazio em meu rosto como se estivesse destituído de alma. Virei-
me rapidamente para a direita para matar um vampiro que saltava ao meu lado.
Gustavo encarou-me nos olhos, dizendo:
— Pode me atender?
— Vou te atender no inferno! - Vociferei, atirando nele.
Entretanto, outro vampiro entrou diante dele o protegendo e caindo paralisado
em seguida. Fiquei irada e atirei no coração do vampiro que tinha me
atrapalhado. Gustavo agora se protegia com o corpo de Nikolai, que continuava

265
imóvel e impassível. Atirei em mais um vampiro, quando senti as mãos agarrando
me pela cintura e a voz de Soren em meu ouvido:
— Desculpa, Liese!
Não houve tempo, ele me acertou com tanta força na cabeça, que perdi a
consciência.
Acordei sentindo minha cabeça latejando, meus pulsos doíam, com os grilhões
frios que os prendiam em correntes fixadas na parede, suspensas acima de
minha cabeça. Um tanto atordoada olhei adiante, com as grades grossas da cela
a me revelar um corredor pouco iluminado, não havia ninguém diante de minha
cela e deduzi que fosse dia.
Os grilhões em meus pulsos causaram-me dor quando puxei o braço com força
para frente na esperança de quebrá-los. Por mais que eu fizesse forço para
quebrá-los, não cediam. Abri minhas asas com violência e facilmente elas
quebraram as correntes. Coloquei os braços sobre as pernas estendidas sobre o
chão úmido e pedroso, observando o vermelhidão ao redor de meus pulsos.
Lutei por horas tentando escapar, mas não tive a mesma sorte com as grades da
cela e quando finalmente me dei por vencida, sentei-me sentindo o frio da pedra
em minhas costas, o forte cheiro de limo das paredes úmidas que parecia tornar
a realidade ainda mais amarga, levei as mãos à cabeça, desolada. Pensava em
Nikolai, no que estava acontecendo com ele, se ainda estava vivo.
Senti o rastro úmido e quente de minhas lágrimas, falhei novamente, de novo
perdendo aqueles que amava. A dor era lancinante, balançava o corpo para frente
e para trás na esperança de que aquilo pudesse amenizar meu sofrimento. Chorei
por muito tempo e em desespero, levantei-me e arremessei-me contra as grades
inúmeras vezes novamente.
Aquilo de fato não estava adiantando, nada fazia com que cedessem, mas eu
insistia em me debater contra elas, movida pela ira, pelo desespero, pelo medo
que sentia em perder Nikolai. A dor física servia para suplantar a dor emocional,
a imagem de Heitor sendo morto mesclava-se com a imagem de Nikolai em
mesma situação.
Estava tão enlouquecida que abri minhas asas e comecei a voar, batendo-me de
um lado para outro na escura e pequena cela, batia contra as grades cada vez
mais forte, gritando enquanto a dor me tomava de todas as formas.
— Ficar se debatendo só encherá seu lindo rosto e corpo de hematomas.
Bati mais uma vez contra as grades ao escutar Loïc e agarrei-me a elas.
— Não faça isso, Loïc. Por favor, me deixe sair daqui!
— Eu sinto muito, Liese. Mas, Nikolai precisa morrer e não vou deixar que você
atrapalhe meus planos. Se apaixonar por ele foi seu maior erro.

266
Olhei para ele e Soren, que permanecia quieto ao seu lado, ao contrário de Loïc
me encarava pesaroso. Loïc passou algumas garrafas de bebidas pelas frestas das
grades escuras e alguns maços de cigarros, dizendo:
— Quando tudo acabar deixarei que saia.
— Então, ele não está morto?
— Não ainda.
— Deixe-me sair! - Vociferei, tentando inutilmente chacoalhar as grades.
— Devia ter se apaixonado por mim, Liese. Teria sido mais feliz.
Deixou o corredor acompanhado de Soren, enquanto continuei gritando a plenos
pulmões:
— Loïc! Loïc! Seu maldito, eu vou te matar!
— Você não pode! - Ouvi sua voz já a distância.
— Loïc! Loïc! - Não sei por quantas vezes gritei repetindo seu nome.
Peguei uma garrafa pronta para arremessá-la contra a parede, mas sorte que a
razão falou mais alto que a ira e bebi no gargalo rapidamente até esvaziá-la,
lançando contra a parede em seguida, em meio aos meus berros. Meu desespero
era tanto que peguei um caco de vidro no chão e cortei meu braço várias vezes.
Acendi um cigarro, observando o líquido viscoso e vermelho que escorria,
pingando em grossas gotas de meus dedos. O ruído abafado fez me olhar para o
lado apenas para ver Yasmin tomando o turno da guarda. Terminei de fumar
tranquilamente e peguei um caco de vidro pontudo e comprido. Aproximei-me da
grade.
Encarei-a por algum tempo, então fiz com que visse a minha perda de sangue
ainda mais intensa, sabia que ela sempre quis beber de meu sangue e eu o
deixava pingar ao chão deliberadamente, alucinando-a com a intensificação de
seu cheiro.
Ela se aproximou como eu esperava e tão logo o fez, com um braço pressionei-a
contra a cela e o com o outro enfiei-lhe o longo caco de vidro no peito, acertando-
lhe o coração. Ela se debateu em clara dor e me afastei da grade, na esperança de
que abrisse para se vingar da dor causada.
Seus gritos eram agudos e ensurdecedores e não demorou até que outros
vampiros se juntassem diante da grade. Yasmin estava furiosa, mas claramente
não tinha a chave de minha cela, do contrário já teria aberto. Usei novamente de
minha magia.
Os vampiros viam minha cela como se dentro dela estivesse o próprio sol e
correram para longe. Precisava pensar em algo mais efetivo do que torturá-los e

267
assustá-los, mas Loïc era inteligente, não deixara a chave com eles. Sentei-me no
canto da sala, ao fundo, onde a luz não me alcançasse, quem olhasse pela grade,
veria apenas a ponta vermelha do cigarro que queimava novamente entre meus
dedos.
Chegara ao ponto crítico, não estava mais triste, estava imersa em puro ódio.
Todos os vampiros que chegavam para zelar minha cela, eram atormentados por
alucinações, que os afugentavam. Todos os que tentei alucinar de forma que
abrissem a grade, se viram perdidos e confusos por não saberem onde estava a
chave.
Maxius chegara naquele momento para repor o lugar do último enlouquecido que
eu fiz se machucar gravemente. Encarou-me por um tempo, claramente
assustado e disse:
— Se matar ou machucar todos os que vêm zelar por você, não terá alguém para
abrir a cela para você.
— Você vai me tirar daqui, Maxius. - Ordenei do fundo da cela.
— Eu não posso.
Sorri, fazendo-o ver que havia apenas uma saída do lugar e que essa era a minha
cela, sobre o teto ele poderia ver uma minúscula fresta, a qual naquela altura já
assinalava a luz solar que estava para invadir o cubículo no qual eu o
enclausurara.
Maxius relutou contra a alucinação, mas o toque dourado queimou-lhe a pele e
não mais achou que aquilo não era real, afastou-se da luz encostando-se contra a
grade de minha cela.
— Está escuro aqui onde estou e o sol não te tocará. - Disse, sedutora.
Ele agarrou as grades e percebi que fazia força para demovê-las. Minha liberdade
estava próxima e sorri. Entretanto, como um vento, Loïc passou por ele o
afastando das grades. Arthur parou diante delas e me encarou. Após alguns
segundos, Loïc parou ao lado de Arthur me encarando, enquanto segui Maxius
com os olhos, passando atrás dos dois, cabisbaixo.
Fiz com que ambos vissem o mesmo que tinha feito com Maxius. Embora Loïc
logo acreditou que aquilo era de fato a realidade e estava prestes a ser queimado
e destruído pelo sol, Arthur continuou me olhando impassível.
Quando Loïc finalmente agarrou-se contra a grade para abri-la, Arthur tocou seu
ombro com leveza, dizendo:
— É apenas uma alucinação, Loïc. Não está de fato acontecendo.
Merda, Arthur tinha tanto controle mental que era imune a minha magia.
Observei raivosa quando com delicadeza ele guiou Loïc pelo corredor, o afastando

268
de minha cela e consequentemente da alucinação que criara em sua mente. Não
vi mais ninguém diante da minha cela naquela noite e em meio ao sofrimento e
tédio acabei adormecendo.

269
41 – Sem saída

Rabiscar a parede com o caco de vidro foi meu único passatempo. Naquele
cubículo escuro e fedorento, não tinha como precisar o passar do tempo. Não me
alimentavam durante o dia, disso estava certa, apenas vampiros se aproximavam
de minha cela e com o tempo, apenas Arthur o fazia devido a sua imunidade a
minha magia.
Estava aflita, pensava em Nikolai e insistia em acreditar que ainda estava vivo,
esperava ao menos que Loïc dissera a verdade sobre me manter presa enquanto
ele estivesse vivo, precisava acreditar nisso, o deus sombrio permeava meus
sonhos quando tirava os cochilos e sempre acordava com a tristeza a tingir as
paredes musgosas daquela cela.
Peguei um caco de vidro e o deslizei em meu braço, estava novamente flertando o
suicídio, precisaria apenas encontrar o namorado da minha irmã, mas temia que
o procedimento levasse muito tempo. Entretanto, poderia me comunicar com ele
certamente e pedir para Hedy intervir. Não parecia ser o mais lógico, mas era
uma solução.
Cortei os pulsos impetuosa, o corte fundo e desalinhado, fazendo brotar o líquido
vermelho e viscoso. Era terrível que ali não tinha água corrente e sabia que teria
que me cortar várias e várias vezes para sangrar o suficiente. Após um tempo,
como esperado, o sangue já não mais jorrava como deveria e limpei as mãos
ensanguentadas em minha camisa, levando novamente o caco sobre os pulsos.
Maldita morte demorada e dolorosa. Senti meu corpo enfraquecendo e fui tomada
por uma sonolência incontrolável. Acendi um cigarro, tentando driblar o sono,
precisava perder mais sangue, muito mais. Não consegui me controlar e acabei
cochilando.
Seu belo rosto surgiu num sonho enluarado, estava lindo, como da primeira vez
que o vi. Nikolai tocou meu rosto, deslizando morosamente seus olhos sobre ele,
os lábios se apertavam como se falar exigisse um imenso esforço. Senti-me
incrivelmente ansiosa e acariciei seu cabelo.
— Por favor, não morra. - Balbuciou com dificuldade.

270
Meus olhos marejaram e sua imagem se desvaneceu como poeira arrastada pelo
vento. Gritei seu nome repetidas vezes e meu grito intenso e desesperado fez
irromper uma lucidez a qual até poucos segundos não tinha. Nikolai estava vivo e
ainda me sentia, certamente aquilo se tratava da telepatia dos vampiros que ele
mesmo contara outra vez. Enchi-me de estranha alegria, queria poder ter-lhe dito
que a morte era a minha única esperança.
Meus olhos se abriram com dificuldade, ainda sentia os rastros úmidos de
minhas lágrimas em meu rosto, meus braços esticados ao chão ao longo de meu
corpo, a umidade da parede invadia minha roupa e gelava minha pele. Ergui o
olhar e Arthur estava sentado de frente a minha cela, observando-me.
Estiquei a mão com dificuldade para pegar o caco de vidro próximo ao meu joelho
e levei até meu pescoço. Senti a ponta dura e fria sobre a minha pele macia e
olhei para Arthur mais uma vez, encarando-me com seu olhar impassível.
Quando apertei o vidro com força o suficiente contra a pele, ouvi sua voz em
minha cabeça:
— Aguente mais um pouco, vou te tirar daqui.
Aquela simples frase fez-me parar por um momento, entretanto não sabia se
podia confiar nele. Por que me ajudaria? E se estivesse realmente inclinado a
isso, por que já não fizera? Não queria mais confiar em ninguém e com esse
pensamento continuei em meu corte.
Entretanto, com a telecinese, Arthur moveu todos os cacos de vidro de minha cela
para fora. Não lutei prontamente, ainda havia mais garrafas cheias de bebida que
eles repuseram e poderia quebrá-las num momento que estivesse sozinha e
continuar com o meu plano funesto. Debilitada pela perda de sangue, dormi
novamente.
Acordei com Arthur dentro de minha cela, batendo levemente em meu rosto.
Ajudou-me a levantar e entrelacei meu braço no dele. A luminosidade do corredor
machucou um pouco meus olhos já tão acostumados com a escuridão do
cubículo fedorento. Ele guiou-me por milhares de corredores, num caminho
sinuoso e confuso, que muito se assemelhava com um labirinto.
Certamente se tratava dos túneis subterrâneos que Katrien mencionara
anteriormente e muitos eram repletos com masmorras ou gavetas, como num
cemitério vertical. Na medida em que corríamos pelos corredores rochosos,
iluminados por luzes artificiais em pequenas luminárias pretas no teto, senti o ar
se tornando cada vez mais fresco.
Tropecei no degrau da estreita escada que o vampiro me conduzira e só não caí
propriamente porque ele me sustentou em seu braço. Paramos por um momento
para ele abrir uma porta que residia acima de nossas cabeças no topo da escada,

271
a porta era uma pedra pesada que ele levantou e empurrou para o lado e quando
saltamos para fora, vi-me num lugar ermo.
Algumas altas e poucas árvores salpicavam o lugar, uma planície aparentemente
aberta. A aurora já tocava o céu com seus dedos coloridos e se eu estivesse certa,
o sol nasceria em questão de minutos. Rapidamente ele me guiou adiante, onde
deparamos com um carro. Arthur abriu o porta-malas e entregou-me a chave,
dizendo:
— Você precisará dirigir. O sol está para nascer e não posso precisar se ficarei
bem no porta-malas. Você consegue, não?
Balancei a cabeça afirmativamente e assim que o vampiro pulou para dentro do
porta-malas, bati a porta a fechando. Entrei no carro, sabia que Loïc me acharia
não importasse para onde fosse, precisava de minha casa e minhas armas. Não
fazia ideia de onde estava, mas a necessidade e o desespero me fizeram usar
meus instintos como guia e consegui chegar em casa, quase batendo o carro
várias vezes com as perdas momentâneas de consciência.
Estacionei o carro o mais próximo que consegui da porta de entrada. O sol já
tinha nascido há mais de uma hora desde que partimos e temia por Arthur. Abri
a porta e retornei ao carro abrindo o porta-malas. O vampiro fumaçava e sua
carne estava repleta de feridas.
A luz dourada o fez gritar e as queimaduras tornavam-se rapidamente enormes.
Agarrei-o pelo braço e o conduzi para dentro, convidando-o para que não ficasse
empacado na porta de casa, levando-o velozmente para o porão. Ele entrou no
caixão com dificuldade e fechei a tampa. Deixei-o e tranquei a porta quando saí
do porão, encontrando-me com Cora, claramente sonolenta.
— Você está horrível!
Sim, minha aparência e cheiro não deviam ser dos melhores e precisava
desesperadamente de banho e roupas limpas. Ela me seguiu até o banheiro
quando silenciosamente a deixei, sentia que desfaleceria mediante ao caos
emocional e a fraqueza física. Tive que me sentar na beira da banheira enquanto
essa se enchia.
— Liese, o que está acontecendo?
— Não estou bem. - Respondi finalmente. — Precisamos proteger Arthur, ele está
no porão e nenhum vampiro poderá entrar nessa casa.
Ela olhou para os meus braços, preocupou-se prontamente, enquanto me despia
para relaxar na banheira.
— O que fizeram com você?
— Destruíram qualquer humanidade que eu poderia ter. - Respondi, enfiando-me
na água quente, que se avermelhou rapidamente.

272
— Quer que eu encontre algum médico para te atender?
— Eu ficarei bem. Só preciso comer e dormir.
— Vou preparar algo para você.
Meu corpo afundou-se com a água a cantar suavemente ao contato com minha
pele. Sabia que apenas um vampiro poderia me levar até onde Nikolai estava e
que ele não devia estar nem um pouco contente comigo. Como me angustiava
pensando nele! A aflição teria me feito correr se não fosse a razão a me dizer que
não estava em condições para isso naquele momento.
Ainda me questionava como fizera no carro sobre os motivos de Arthur. Por que
teria me ajudado? Por que traíra Loïc?
A ira me invadia sempre que pensava em Loïc, não me lembro de odiar tanto
alguém antes e minha incapacidade em matá-lo por beber de seu sangue me
deixava ainda mais irada. E embora meu desejo fosse saltar daquela banheira e
arrastá-lo até a luz solar que as nuvens não impediam de brilhar naquele dia
morno de outono, sabia que não conseguiria por mais que tentasse.
O sabonete perfumado arrancou-me alguns gemidos quando passei sobre o
braço. As feridas estavam horríveis e certamente precisaria de alguns pontos nos
pulsos, esperava que o vampiro que dormia em meu porão pudesse fazer algo a
respeito disso quando levantasse, mas sabia que ele precisaria se alimentar, seu
aspecto não era nada bonito quando o deixei no caixão.
O moletom foi reconfortante e joguei me sobre a cama, minha cabeça doía, meus
braços ardiam e os cortes latejavam. Cora entrou no quarto servindo-me café e
céus como eu precisava daquilo. Ajeitou a jarra de vidro sobre a mesa de
cabeceira e serviu-me, sentando-se ao meu lado em seguida e examinando o
braço livre, enquanto eu levava a xícara fumegante a boca.
— Não entendo porque você não me conta as coisas.
— Tudo o que você precisa saber é que não deve confiar no Loïc e nem em
ninguém do clã dele. Pare de receber Alisha.
— Ela não seria incapaz de fazer algo contra mim.
— Se eu fosse você, não estaria tão certa disso.
— O que está acontecendo, Liese? - Disse em seu típico tom desesperado,
encarando-me.
— Estamos em guerra, Cora. E ao morar comigo, meus inimigos também são os
seus inimigos. Não confie em ninguém do clã do Loïc.
Ela assentiu contrariada e me deixou. Olhei o céu azul que se revelava
timidamente pela janela escancarada do meu quarto. Após duas xícaras de café
meu corpo cedeu e me esparramei pela cama, dormindo sem mesmo comer.

273
O sol ainda brilhava quando acordei. Sentia-me melhor, a cama macia e o
descanso revigorou um pouco o corpo fraco. Levantei-me e cambaleei devido a
tontura que me tomara. Não poderia me dar ao luxo de ficar doente e fraca,
precisava agir. Ainda estava em débito com Hedy, precisava encontrar a bruxa
que ela me pedira e precisava salvar Nikolai.
Caminhei apoiada nas paredes em busca da cozinha, precisava de um café e
algum alimento. Olhei por toda parte, mas Cora não estava em casa. Enquanto
esperava a cafeteira fazer seu trabalho, levantei a manga do moletom para olhar
meu braço, algum pouco sangue jorrara enquanto dormia e tingira as mangas
cinzas. Suspirei.
A mão frágil tremia ao levar o alimento à boca, quando ouvi Cora entrando em
casa e claramente me procurando, gritei:
— Estou na cozinha.
Ela entrou ao lado de uma mulher que vestia um jaleco branco e carregava uma
maleta térmica em sua mão, dizendo:
— Vamos para o quarto, ela cuidará de você.
Cambaleei novamente ao me levantar do banco do balcão da cozinha e caminhei
com Cora apoiando-me no braço. Sentei-me em minha cama, retirando a blusa de
moletom e a mulher logo tomou meus braços para analisar. Após suturar todos
os cortes que precisavam disso, ela e Cora improvisaram uma haste para a bolsa
de sangue com o mancebo e a bruxa começou o ritual para a transformação do
sangue.
Admito que o tratamento fez me sentir melhor, fiquei observando a médica
enquanto essa olhava para Cora admirada, simpatizei-me com ela, seu silêncio
era confortante, embora eu soubesse que ela sabia que eu era um demônio,
porque a bruxa lhe contara no caminho e seu olhar demonstrava sua
curiosidade.
A inquietude e ansiedade que tomara meu corpo quando comecei a receber a
transfusão de sangue deixaram-me assim que Cora finalizou o ritual e a mulher
encarou-me, percebendo que meu semblante suavizara. Senti a mão quente e
delicada de Cora segurando a minha, dizendo:
— Talvez devêssemos contratar Lisandre para trabalhar para nós, já que tem sido
comum você aparecer mal em casa.
— Negocie com ela. - Respondi.
Lisandre esperou até que toda a bolsa de sangue se esvaziasse, colocando uma
enorme bolsa de soro em seguida, deixando o quarto ao lado de Cora. Olhei para
janela, a noite já começava a se apresentar lentamente. Relaxei sobre o colchão
macio, mas não pude apreciar aquele estado por muito tempo.

274
Ouvi barulhos e gritos vindo do andar inferior da casa, sentei-me rapidamente
sobre a cama, colocando uma arma antivampiros que deixei sobre a mesa de
cabeceira, segurei a bolsa de soro na mão e desci rapidamente para ver o que
estava acontecendo.
Sacudi a cabeça ao perceber que nossos planos de termos uma médica particular
tinha escorrido pelo ralo, ao ver Arthur soltando o corpo desfalecido sobre o chão
da sala.
— Você acabou de matar minha médica particular! - Suspirei, sentando-me em
seguida sobre o sofá macio.
— Desculpe. Precisava muito me alimentar para me curar.
— E agora? Onde vou encontrar outra médica que não se importa em tratar
demônios? - Cora parecia de fato desolada.
— Desculpem-me pelo transtorno. - Disse o vampiro desconcertado.
— Tenho de me trocar. Preciso resgatar uma bruxa a pedido de minha irmã e
estou certa de que logo Loïc estará aqui.

275
42 – Agnes

Sabia que aquele não era o melhor momento para acolher a bruxa de Hedy, mas
sem saber de seus motivos, me via obrigada a agir rapidamente quanto aquilo.
Arthur que se sentava ao meu lado no banco de passageiro, tirou minha mão da
marcha para olhar meu braço. Impaciente, eu retirara todos os curativos.
— Quer que dou um jeito nisso? - Perguntou-me.
— Por favor. - Aceitei.
Mordeu o próprio pulso deixando seu sangue pingar nas feridas, que cicatrizaram
prontamente, puxei a linha da sutura com os dentes, o que fez sangrar um pouco
a pele sensível e entreguei-lhe novamente o braço para receber um pouco mais da
medicina diabólica. Entortei-me para entregar o outro braço, segurando o volante
com o braço já curado e repetimos o procedimento.
— Se mataria mesmo? - Perguntou.
— Você ainda tem alguma dúvida?
Olhei-o enquanto ria.
— Por que me ajudou, Arthur?
— Quando os pensamentos alheios lhe invadem a mente, ainda que não queira, a
verdade se torna indigesta. Eu te conheço e não concordo com as atitudes que
Loïc vem tomando ao seu respeito. Você é horrível, mas tem uma qualidade que
aprecio.
— Que qualidade? - Arqueei uma sobrancelha ao fitá-lo, incrédula.
— Quando você gosta de alguém, torna-se leal. Nesse ninho de cobra em que
vivemos, lealdade é uma qualidade que deve ser não apenas observada, mas
honrada. Espero manter uma relação com base na lealdade com você.
— Ainda não sei se posso confiar em você. Apenas te protegi do sol porque tenho
um maldito senso de justiça.
— Você pode confiar em mim, Liese.
— Por que demorou tanto para me libertar daquela prisão?

276
— Precisava saber o que Loïc estava fazendo, acho que apenas Soren sabia de
tudo, queria confirmar se Loïc se unira a Gustavo realmente ou se se uniu
apenas para matar Nikolai. Então, precisei desse tempo para saber o que estava
acontecendo na mente de Loïc.
— Loïc está com Gustavo? - Perguntei, claramente decepcionada.
— Não, fez um trato com ele apenas para matar Nikolai.
— Ainda não sei se posso confiar em você. - Confessei, pesarosa.
Ele me tocou.
— Veja dentro de minha mente e conheça a verdade. Te considero como minha
amiga, Liese, e estou ao seu lado.
Não havia mentiras naquelas palavras, nem em seus sentimentos. Por uma
fração de segundos desejei que Loïc fosse ao menos um terço do que Arthur era e
aquele pensamento despertou ainda mais a minha fúria. Aumentei o volume da
música e pisei fundo no acelerador.
O endereço que Hedy apontava era de um prostíbulo, certamente um lugar onde
os homens iam para verem as mulheres dançando e se despindo sensualmente.
Ficava diante de uma enorme e bela praça, que parei por um momento para
admirar.
Havia um enorme lago artificial de dois níveis separados por uma pequena
cascata artificial, com jarros de água que brincavam em jatos aleatórios como
numa dança. Duas escadarias circundavam o lago redondo, dando num
monumento que parecia um altar alto e retangular, com a estátua de um homem
sobre uma carroça guiada por vários cavalos.
Sobre a cascata artificial havia três estátuas de quimeras que se assemelhavam a
cachorros com asas de morcegos, grandes e largas. Além da beleza do lugar, com
muitas árvores e uma suave iluminação, algo além do lago chamava me atenção.
Sabia que alguma magia estava sendo realizada ali e curiosa me aproximei com o
vampiro a me seguir.
Ela estava debruçada sobre a mureta do lago, vestia um longo vestido roxo de
mangas longas e rodadas. Desenhou com a ponta do indicador um símbolo sobre
a água, que mediante a poderosa magia que induzia, pude ver claramente como
se brilhasse numa forte luz azul.
Aproximei-me dela lentamente, o cabelo negro e liso escorria de modo a tocar a
água do lago com as pontas, virou-se e fitou-me audaciosa, com grandes e belos
olhos de um castanho tão escuro que pareciam negros. Os lábios pintados com
um batom roxo saltavam-lhes carnudos e estonteantes sobre a pele leitosa.
Esticou um dos braços na ânsia de segurar minha mão, enquanto apoiava o
corpo sobre o cotovelo do outro braço sobre a mureta. Agachei-me ao seu lado,

277
fitando o rosto suave quando ela fez um sinal para eu olhar sobre a água. Ela via
o futuro na superfície da água, vi meu próprio rosto fitando um altar numa igreja
e enquanto observava totalmente imersa naquela imagem, ela disse:
— Vi que você estava vindo.
Passou a mão levemente sobre a superfície da água, como se estivesse apagando
uma lousa, mostrando-me então a imagem minha e de Arthur conversando no
carro, como fazíamos há pouco e então, a minha imagem me aproximando dela
na praça.
— Gostaria de ver mais. - Eu disse, finalmente. — Contudo, não posso me
demorar aqui. Você precisa vir comigo.
Ela aceitou prontamente e nos seguiu até o carro. Enquanto dirigia para casa a
olhei pelo retrovisor, parecia imersa nos próprios pensamentos olhando a
paisagem noturna e deserta da estrada que levava à minha casa.
— Tenho que fazer muitas coisas e terá que ficar em casa com Cora, minha outra
protegida.
Ela balançou a cabeça afirmativamente.
— Você não deve confiar em nenhum vampiro e não pode convidar ninguém para
a minha casa, se isso acontecer, eu te mato.
— Hedy me avisou para ser cuidadosa no trato com você. Disse que você é
temperamental.
— Ela é. - Concordou Arthur, rindo.
Olhei-o furiosa e continuei:
— Cora pode ser meio difícil, mas com o tempo você se acostuma.
— Ou não. - Arthur estava de fato achando aquilo engraçado.
— Por que Hedy pediu para que eu te protegesse?
— Achei que soubesse.
— Não perderia meu tempo te perguntando isso se soubesse. - Respondi,
enfadada.
— Gustavo está me caçando.
— Não vai me dizer que se envolveu com aquele vampiro horroroso, com tanto
vampiro bonito por aí.
— Não, não me envolvi. Descobriram que posso trazer demônios com muita
facilidade e estão querendo que eu trabalhe com eles. Gustavo ficou ainda mais
nervoso quando viu que não é capaz de me enfeitiçar.

278
— Sabe me dizer por que ele não é capaz de te enfeitiçar? - Perguntei curiosa. —
Ele tentou me enfeitiçar também, mas não deu certo.
— Filhas e protegidas de Nix não são suscetíveis a esses feitiços. - Respondeu
calmamente.
Filhas de Nix? Eu não saberia dizer qual poderia ser minha ligação com Nix, mas
de algum modo aquele comentário tornou minha mente inquieta e senti que
aquelas memórias antigas e fugidias invadiram minha cabeça novamente, sem
que pudesse me lembrar delas ou reconhecê-las, como imagens borradas e
fracas, incapazes de enlevar minha memória.
Senti-me angustiada mais uma vez, a velha angustia que sentia com frequência
há bem pouco tempo atrás, a ânsia de querer me lembrar, de saber que estava
deixando passar informação muito importante. Senti as mãos trêmulas sobre o
volante, a ira novamente erguia-se como um vulcão pronto para entrar em
erupção.
Tomada por aquelas emoções inesperadas e inquietantes, por reflexo desviei de
algo que havia parado na estrada em frente ao nosso carro. Desci o barranco
arbustal ao lado da estrada, desviando o máximo que podia das árvores esparsas,
concentrada em não perder o controle do carro.
Sacudíamos e saltávamos no banco, a medida que o carro descia velozmente no
terreno acidentado.
— Loïc. - Informou Arthur.
— Ele pode parar um carro? - Perguntei, preocupada.
— Pode. - Respondeu o vampiro.
— O que ele é? - Perguntou Agnes, olhando pelo vidro de trás.
— Um vampiro. - Respondi.
— Volte para a estrada. - Ela ordenou. — Farei uma magia para nos ocultar.
— Pode mesmo fazer isso? - Perguntei, sem esconder o sorriso de satisfação.
— Sou uma criança protegida da noite, escuridão e ocultamento é meu forte.
Maldita Hedy, sempre encontrava e escolhia as melhores.
— Espero que você consiga enxergar no escuro.
Disse e em seguida começou a sussurrar um encantamento numa língua morta.
A escuridão se manifestou dentro do carro como uma fumaça negra e densa, aos
poucos comecei ouvir vozes que vinham de todos os lados sussurrando meu
nome. Minha aura estranhamente se expandiu arroxeada, misturando-se
harmoniosamente à escuridão que crescia ao nosso redor.

279
A minha visão se modificou prontamente, não enxergava apenas o matagal de
onde tentava retirar o carro para retornar à estrada, mas também várias almas
que perambulavam pela noite, animais grotescos se tornaram audíveis, seres
escuros e nefastos nos encaravam com olhos flamejantes. Virei o espelho do
retrovisor para observar meu próprio rosto e vi que meus olhos eram chamas
frias e azuis.
O rosto estava mais magro e a pele claramente repuxada, dava-me um aspecto
feminino e ao mesmo tempo monstruoso. Algo parecia gritar dentro do meu
íntimo, como se eu e a noite fôssemos uma. Olhei de soslaio para Arthur, que me
encarava pasmado.
— Protejam-nos, filhos da noite. - Ela vociferou.
Atingi a estrada e quando o fiz, uma rajada de vento negro, ainda mais escuro
que a própria noite, passou por nós, arrastando consigo árvores e arbustos que
ladeavam a estrada. Vi o vento místico seguindo pela estrada como um tornado
pelo retrovisor e Agnes gargalhou. Arthur deu um leve tapa em meu ombro
sustentando um largo sorriso, dizendo:
— Encontramos uma boa aliada.

280
43 – Tentação

Já estava bem armada, mas aproveitei que deixara Agnes em casa com Cora e fui
ao cofre de armas para enfiar ainda mais armas antivampiros e munições em
meu sobretudo já pesado. Não saberia dizer se o tornado negro pegara Loïc,
embora Agnes deu sua palavra que sim. Era minha brecha para me locomover
livremente por Louis de Broglie.
Aumentei o volume da música no carro para não ter que ficar conversando com
Arthur, trabalho em equipe nunca fora o meu forte, mas meus planos para
aquela noite era procurar por Olavi no Pandaemonium e sabia que teria que
enfrentar muitos vampiros.
Encarei a enorme estátua de Exu enquanto retirava duas armas de meu
sobretudo, ao passo que caminhava bar adentro, Arthur também segurava duas
armas antivampiros, seguindo meu conselho sobre atirar em vez de atacá-los
como vampiro que era. O bar estava lotado e não consegui conter o sorriso
maligno que se abriu em meu rosto ao ver Olavi sentado próximo a estátua de
Dionísio.
Não demorou muito até que eu e Arthur fôssemos atacados pelos vampiros ali
presentes. Os tiros e vampiros caindo em seus saltos contra nós, causaram um
grande tumulto no lugar. As pessoas assustadas tentavam correr, as coisas que
se quebravam e espatifavam no chão na medida que os vampiros eram mortos ou
derrubados pelos nossos tiros.
Arthur cuidava da retaguarda, enquanto eu caminhava lentamente de encontro a
Olavi, que astuto, colocou-se em pé como se estivesse me esperando. Naquela
altura já devia saber que era incapaz de me comandar, mas sua loucura era
maior do que sua razão, pois se assim não fosse, ele teria fugido.
Eu sequer olhava para os vampiros que saltavam furiosos sobre mim enquanto
caminhava diretamente ao seu encontro, meus olhos estavam cravados sobre o
azul encantador que me fitava diabólico, com seu sorriso sensual como um
delicioso convite a devassidão.
Quando parei diante dele, tive que atirar num último vampiro que saltou de um
corredor acima do balcão, com a parede com enormes vãos quadrados que
imitavam largas janelas, mas sem qualquer proteção. Mordi o lábio inferior do
demônio sedutor, que rapidamente invadiu minha boca com a língua macia e

281
enquanto nos beijávamos dei um tiro no ombro esquerdo dele, fazendo-o cair ao
chão, paralisado.
Agachei-me, confiante de que Arthur terminaria com os outros vampiros no
ambiente, sentia dor certamente, assim as caretas que fazia, enquanto colocava a
mão sobre o ombro ferido, denotavam. Contudo, abriu-me seu maldito sorriso
sedutor novamente, dizendo:
— Como não ficar excitado com uma mulher como você?
Sim, eu poderia dizer o mesmo sobre o maldito sedutor e curvei-me sobre ele para
alcançar a boca maligna que me recebeu prontamente. Após beijá-lo, lambi seus
lábios, dizendo:
— Você já deve imaginar porque estou aqui, não?
— Adoraria pensar que sentiu minha falta e que está ansiosa pelo meu sexo.
Dei outro tiro no braço dele. Gemeu de dor e ao mesmo tempo em que se
contorcia, beijou meus lábios novamente. Ri ao perceber que o perverso estava
realmente excitado, quando friccionei me contra ele, entrelaçou as mãos em meu
cabelo e beijou-me ansiosamente. Olavi era doente.
— Onde está Nikolai? - Perguntei.
— Assim você fere meus sentimentos, Liese.
— Vou te ferir o tanto que for necessário até que me diga onde Nikolai está,
querido. - O beijei novamente.
— Caramba, eu sempre pensei que você fosse doente, Liese, mas isso já é demais.
- Exclamou Arthur.
— Quem é o coleguinha? - Perguntou Olavi, inclinando a cabeça para olhar
Arthur.
— Não te interessa. - Respondi.
Levantei o puxando comigo. Não me parecia muito inteligente levá-lo para minha
casa, mas talvez Agnes pudesse ajudar a ocultar seu paradeiro e não o deixaria
sair de lá com vida se não colaborasse. Não foi necessário dizer isso para Arthur,
que agarrou o braço de Olavi com sua força sobrenatural, embora fosse realmente
difícil para que o demônio sedutor se livrasse mesmo de mim, pois que estava
muito ferido, ao ponto de seus pés arrastarem garrafas quebradas pelo chão por
onde passávamos, Arthur pareceu querer se certificar.
Entrei com Olavi no banco de trás, enquanto Arthur tomou a direção. Observava
o ferimento no braço dele, que ainda não havia cicatrizado nem um pouco e para
me certificar de que não faria nada estúpido, dei outro tiro, mas dessa vez, na
perna.

282
— Vamos, eu não tenho a noite toda. Onde está Nikolai?
— Se fizer amor comigo eu te respondo.
E tal foi o choque, sob seu toque, notar que o perverso estava realmente falando
sério. Ele realmente queria transar comigo. Sacudi a cabeça inconformada. Como
poderia fazer tal proposta quando sabia que eu não titubearia em matá-lo?
Olavi abriu um sorriso sombrio quando o convidei a entrar em minha casa,
enquanto Arthur o arrastava para dentro. Parei por um instante na porta, com a
impressão de que alguém nos seguia. Fechei a porta e dei alguns passos em
direção ao quintal e parei ao lado do carro ainda quente que acabáramos de
estacionar.
Tinha certeza de que alguém me vigiava escondido no bosque que sussurrava ao
se curvar pelo vento, a lua cheia espantou a escuridão, quando as nuvens por um
curto momento, deixaram de a ocultar. Meus olhos escorriam por todo o local,
mas nada conseguia ver. Talvez tivesse sido apenas uma impressão devido a
tensão daquele momento.
Deparei-me com Cora olhando para Olavi extasiada. Suspirava mediante a beleza
do vampiro ferido que se estirou sobre meu sofá.
— Caramba, que homem bonito! - Exclamou.
— Sua beleza esconde sua monstruosidade. - Disse Agnes tranquilamente.
— Liese gosta da minha monstruosidade. - Disse, altivo.
— Liese não é exemplo para comparação. - Retrucou Cora.
— Precisaremos de outro caixão. - Eu disse, pensativa.
— Se você não quebrasse a casa toda quando se zanga, isso não seria um
problema agora. - Resmungou Cora.
— Ligue para alguma funerária. - Disse Arthur.
— Cora, compre um caixão. - Ordenei.
Segurei o braço de Olavi e o arrastei com dificuldade para o porão. Embora andar
lhe fosse difícil, não opôs resistência. Ao chegarmos diante da escada do porão, já
me sentia cansada e o empurrei escada abaixo para facilitar meu trabalho. Bati a
porta a fechando atrás de mim e desci a escada, quando estava para saltar o
corpo do vampiro estirado no começo da escada, ele puxou minha perna, fazendo
me cair ao seu lado.
— Sei que me quer. - Disse, puxando-me contra seu corpo.
— Quero Nikolai, Olavi.
Mordeu meus lábios, dizendo:

283
— Sabe que sou melhor do que ele.
— Não delira.
Senti a boca úmida invadindo a minha e rolei para cima de seu corpo. Levantei
seus braços acima da cabeça, o fazendo gemer de dor e beijei a boca macia.
Fitamo-nos nos olhos que ardiam numa súplica para apagarem o fogo que as
bocas em simetria atiçavam em nossos corpos. Lambi os lábios doces, fazendo o
maldito fechar os olhos em profunda entrega quando escorreguei com minha
boca úmida em seu pescoço.
— Toque-me. - Sussurrou.
Atirei nele novamente no outro ombro, senti a leve mordida em meu pescoço e
apontei a arma em sua testa, dizendo:
— Ficará pior se me morder.
— Já entendi. - Levantou a cabeça com dificuldade para alcançar minha boca.
Retirei-lhe a camiseta preta e ensanguentada, deslizando minha boca quente
sobre o peito glabro, fazendo-o soltar mais alguns gemidos entre os lábios
cerrados. Serpenteei-me beijando-lhe até alcançar o cós de suas calças. Não
sabia dizer se gemia de dor ou de prazer, ou ambos, mas aquilo acendeu-me.
Antes de tirar-lhe as calças, retirei meu sobretudo e mais leve atirei-me sobre ele.
Por que não sentia medo? Ele me desejava ardentemente, sim, seus pensamentos
sussurravam seus desejos em minha mente, o toque gentil entrelaçando os dedos
em meu cabelo demonstravam sua atração, mas não o compreendia e não me
compreendia. Não o amava, mas amava estar com ele. Não éramos confiáveis,
mas nos submetíamos a vulnerabilidade em prol do prazer.
Fiz o demônio sedutor amar tanto minha boca como fizera antes. Inclinava a
cabeça a fitar-me com seu rosto pálido enquanto o devorava. Não me sentia
completamente confortável, porque eu gostava da maldita situação em que me
encontrava e sabia que Nikolai precisava de mim mais do que nunca naquele
momento.
Esticou os braços num claro esforço, trazendo minha boca para encaixar-se na
dele, retirou a regata leve que eu vestia e acariciou meus seios, umedecendo
meus lábios.
— Onde está Nikolai? - Insisti.
— Ainda não está nua o suficiente.
Nossas bocas uniram-se numa simetria perfeita, sugando uma a outra, com as
línguas a trocarem as mais obscuras carícias. Senti sua mão entre minhas
pernas e soltei um leve gemido sob seu toque suave.
— Você me quer. - Afirmou, mordendo levemente meus lábios.

284
Sim, eu o queria, o desejava, não negava o desejo sexual que habilidoso sempre
me instigava. E embora meu corpo queimasse com as chamas do desejo insano,
não conseguia parar de pensar em Nikolai. Senti as mãos ousadas retirando
minhas calças num esforço doloroso. Ergui o corpo para me livrar delas o mais
rápido possível e quando nua, encaixei-me sobre ele, fazendo inclinar a cabeça
para trás e suspirar de prazer.
Enquanto meus quadris subiam e desciam prensando-o entre minhas pernas,
entreguei-me a insanidade do momento, inclinando minha cabeça para trás e
gemi entre os dentes cerrados quando a boca ávida agarrou-se ao meu seio.
Beijei-lhe a boca entreaberta, roçando nossos peitos nus, numa ode ao prazer.
Empurrei-o contra o chão novamente, curvando-me sobre ele, deixando minha
boca deslizar sobre o pescoço pálido. Estiquei o braço ao longo de seu corpo e
peguei a arma novamente. Ainda sentada sobre ele apontei a arma em seu
coração, dizendo:
— Onde está Nikolai?
— Ah, Liese, como você é cruel! - Disse com a voz entrecortada.
Acertei-lhe o abdômen fazendo o curvar e se estirar rapidamente, jogou a cabeça
para trás, esparramando o cabelo loiro sobre o chão e abriu um sorriso deleitoso.
O maldito era um doente masoquista.
— Beije-me. - Implorou.
Curvei-me sobre ele para alcançar os lábios esfomeados, Olavi estava num misto
de dor e prazer e não poderia me sentir diferente, já que também me encontrava
num estado caótico. Nossas línguas lutavam vorazmente impulsionadas pelo
desejo intenso, quando o senti transbordando dentro de mim.
— Na Capela do Divino Espírito Santo. - Suspirou fazendo as palavras jorrarem
junto com as últimas gotas de seu gozo.
Rolei o corpo cansado ao seu lado, colocando meu rosto sobre o ombro ferido,
sentindo os lábios úmidos beijando minha testa. Toquei o peito do tentador,
questionando-me. Agarrei a arma novamente e dei mais um tiro nele e beijei seus
lábios.
Levantei-me e me vesti. Deixando-o nu no porão, logo que estava tão debilitado
por causa dos tiros que não conseguia sequer se mover. Todos encararam
prontamente meu rosto vultuoso e Agnes estourou em gargalhadas, quando Cora
claramente surpresa e enojada, perguntou:
— Estava transando com ele?
— Se você soubesse o quanto o filho da puta é bom de cama, aproveitaria que ele
está imobilizado pelas balas e o estupraria. - Virei-me para Arthur, dizendo: —
Disse que Nikolai está na capela do divino espírito santo.

285
Senti a tristeza me invadindo na medida que meu tesão se apagava. Odiei-me
duplamente. Odiei-me por apreciar tanto o sexo de Olavi, quanto por deixar meu
deus sombrio sofrendo por mais uma noite. Avancei sem pensar sobre o bar da
sala e com mãos trêmulas agarrei a primeira garrafa que vi.
— Não se torture por isso. - Ouvi a voz de Arthur em minha mente.
— Agnes, você sabe usar uma arma?
— Claro que sei.
— Você e Cora cuidarão de Olavi enquanto Arthur estiver dormindo. Ao menos a
cada três horas dê um tiro nele e não o deixe se alimentar de vocês, mas não o
matem.
Entreguei-lhe uma arma antivampiro.
— O que você fará? - Perguntou Cora.
— Verificar se me disse a verdade sobre Nikolai.
— Deixe-me ir com você. - Se prontificou Arthur.
— Logo o sol nascerá e preciso fazer isso logo. - Virei para Agnes. — Consegue
esconder a presença de Olavi?
— Sim.
— Faça isso.
— Liese, não é perigoso? - Perguntou Cora preocupada.
— Ah pelo que há de mais sagrado, ela é um demônio! - Protestou Agnes.
— Cora, faça umas aulas com a Agnes.
Acendi um cigarro, dei mais alguns goles no uísque e deixei a casa.

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44 – Capela do Divino Espírito Santo

Estacionei o carro na mesma rua onde ficava a igreja no centro de uma praça, a
dois quarteirões de distância. Abri a garrafa de uísque que trouxera comigo,
enquanto esperava pelo nascer do sol. Meus sentimentos a me torturar, pensava
nele, em como deveria estar. Não parecia haver mentira em Olavi quando disse
que estava naquela igreja, mas eu temia pela vida dele mais do que tudo.
Assustei-me ao ver um homem passando na calçada ao lado do meu carro, era
claramente um humano, talvez saindo para ir ao trabalho, ainda assim retirei
uma arma do bolso e a engatilhei. Meus olhos o seguiram na medida em que
caminhava apressado, mas desapareceu numa esquina com seu paletó e seus
passos largos.
Levei a bebida a boca novamente e inclinei a cabeça para olhar o céu, encostei-
me novamente ao banco e repousei meus olhos acima dos prédios baixos de cinco
e três andares que se erguiam bem atrás da igreja, observando o céu que se
tornava um azul ainda mais claro, com as nuvens como se tivessem sido pintadas
de azul-escuro, com uma pequena linha amarela que anunciava o sol que eu
tanto ansiava.
Dei mais alguns goles na bebida e estacionei o carro bem ao lado da igreja. Desci
batendo a porta atrás de mim e apertando o botão do alarme para fechar o
automóvel. Acendi um cigarro e com passos lentos me aproximei do belo
monumento que era a Capela do Divino Espírito Santo.
Ela se erguia no centro da praça numa arquitetura gótica, com suas torres
pontiagudas e esguias, como mãos erguidas num esforço de tocar o céu. A grande
porta dupla de madeira num arco ogival estava trancada e encantava-me os olhos
as intricadas estátuas externas que contavam certamente histórias da bíblia.
Minha mão tocou na grande fechadura de ferro escuro e fiz um pequeno esforço
para abrir, mas não cedeu, então atirei várias vezes na fechadura até que a
grande porta cedeu e invadi a igreja.
Os andaimes e os bancos de madeira empilhados, assim como as latas de tinta e
outros materiais espalhados pelo local, denotavam que a igreja estava passando
por uma reforma. Olhei para os belos vitrais por um momento, a luz do dia já
começava a expulsar a escuridão para fora daquelas paredes, entre as mesas

287
improvisadas de madeiras, algumas estátuas de santos católicos e anjos estavam
cobertas com plásticos.
Andei lentamente olhando ao redor, meus passos ecoavam na igreja vazia e me
deparei com um arco ogival que convidava a entrar noutro cômodo. Parei ali por
um momento, olhando para o altar que se erguia adornado com madeira e ouro e
lembrei-me da visão no lago da praça que Agnes me mostrara, sim, era
exatamente aquele altar que eu encarava durante a visão. O chão tinha milhares
de motivos espirais e olhei para o cômodo convidativo apenas para observar que
seu chão ao contrário do restante da igreja carregava um símbolo.
Era circular como todos os outros, porém o quadro de uma caveira na parede e a
dança de sol e caveiras, simulando vida e morte no círculo desenhado sobre o
chão, dançavam em espirais como numa mandala. Fui caminhando lentamente
para dentro do círculo batendo meu pé com força propositadamente, para ter
certeza de que era uma cripta.
Sim, havia uma entrada ali bem no centro do círculo e quando me abaixei para
tentar descobrir como abrir a cripta, uma lata de tinta que caiu no chão, fez me
levantar rapidamente e voltar-me para o saguão da igreja. Um padre estava
levantando o galão de tinta e em seguida parou em pé diante do velário,
reacendendo as várias velas ali depositadas.
— Quem é você? - Perguntei, aproximando-me dele.
— Em que posso ajudá-la, jovem?
— Pode abrir a cripta para mim. - As chamas do inferno arderem em meus olhos.
O padre assustado correu até o altar agarrando a bíblia e uma cruz. Virando a
cruz em minha direção, começou a rezar:
— Espírito do Senhor, Espírito de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, Santíssima
Trindade, Virgem Imaculada, anjos, arcanjos e santos do paraíso, descei sobre
mim.
— Vamos, padre, só abra a maldita cripta, não tenho tempo a perder com suas
rezas. Acha mesmo que o todo poderoso dará ouvidos a um padre vendido aos
vampiros? - Disse dando alguns passos em sua direção.
— Afaste-se de mim, demônio.
Abri minhas asas e flutuei ao redor dele, que me acompanhava como um radar,
direcionando a cruz em minha direção.
— Padre, isso é só um objeto, não vê? O poder do símbolo está na interpretação
que dá a ele e assim como eu, cético como está, não vê nada além de um
instrumento de tortura da antiguidade.

288
— Fundi-me, Senhor, modelai-me, enchei-me de Vós, utilizai-me. Expulsai de
mim todas as forças do mal, aniquilai-as, destrói-as, para que eu possa estar bem
e fazer o bem.
— Desculpe, padre, mas estou sem paciência para esperar por sua reza. - Pousei
diante dele, engatilhei o revólver. — Ou abre a maldita cripta, ou vai morrer
lentamente e com bastante dor.
Empurrei-o para a outra sala e ele caiu de joelhos sobre o círculo que eu queria
aberto. Percebi que forçava o círculo interno, tentando-o girar, mas o tremor e
medo pareciam roubar-lhe a força. Ajoelhei-me diante dele e o ajudei a girar a
pedra. Retiramos a pedra. Olhei pelo buraco redondo e fiquei assim por um
tempo, até meus olhos se acostumarem com a escuridão do nível subterrâneo.
Havia uma escada de alumínio e apenas não saltei, pois que o padre se moveu
sorrateiramente tentando escapar de mim, avancei rapidamente na direção dele e
o puxei pela batina, arrastando-o e o soltando buraco adentro. Ficou deitado no
chão assim que caiu contra ele e desci num pulo.
Olhei ao redor, as paredes do cubículo escuro estavam repletas de crânios, o ar
era empoeirado e o cheiro de podridão invadia as narinas. Saí empurrando o
padre pelo único corredor do lugar, um túnel subterrâneo que se estendeu por
milhares de metros, até darmos num aparentemente cemitério vertical, num
saguão escuro. Tinha certeza que vampiros dormiam ali, mas o corredor
continuava e minha curiosidade me impulsionou adiante.
Os pensamentos do padre invadia minha cabeça, continuava rezando temeroso,
mas por um segundo algo mudou completamente em sua mente, enquanto batia
em suas costas fazendo-o caminhar diante de mim. Ele queria gritar para avisar
alguém.
Empurrando-o contra a parede, fiz com que visse-me como o mais monstruoso
demônio, via-me com o rosto avermelhado, com olhos grandes e flamejantes, os
chifres circundavam em grandes e negras espirais, a boca grande mostrava-lhe
dentes enormes e afiados.
— Grite, que além de te matar, ainda o recebo no inferno.
O padre resmungou e chorou, implorando pela ajuda de Jesus. Enquanto eu
continuava o socando nas costas para continuar caminhando. Demos noutro
cubículo e meus olhos marejaram quando eu o vi. As mãos presas em correntes,
a poça escura do sangue no chão e o rosto descarnado, denotavam que estavam
tentando transformá-lo num Fenecido.
Coloquei o padre em minha frente quando me aproximei dele, empurrando-o para
cima de Nikolai, que parecia dormir.
— Nikolai. - O chamei com voz baixa.

289
Ele se debateu contra as correntes e mostrou as presas grandes sob os lábios
mirrados. O padre assustado tentou fugir, mas eu o empurrei, ajustando sua
cabeça enquanto puxava seu cabelo, de modo a encaixar seu pescoço na boca de
Nikolai, que se alimentou dele prontamente.
Os cortes que estavam por toda a parte de seu corpo se fechavam, o corpo e o
rosto se enchiam novamente, como se a carne retornasse para debaixo da pele,
mas ainda não fora o suficiente. Quando abandonou o padre ao chão, já beirando
a morte, depositou os olhos cinzentos e ameaçadores sobre mim.
— Eu vou te tirar daqui. - Falei, sentindo o perigo que estava correndo diante do
vampiro sedento e em frenesi.
Não houve tempo para reagir. Nikolai quebrou as correntes com muita facilidade
agora que tinha revigorado um pouco de sua força e saltou sobre mim, cravando
seus dentes em meu pescoço. Gemi pela dor causada pela mordida ao bater com
as minhas costas contra o chão pétreo e gelado.
Segurei sua cabeça com uma de minhas mãos sentindo o cabelo macio e não
pude controlar os olhos que marejaram diante do óbvio. Seu corpo pesado sobre o
meu, pressionando-me contra o chão e os dentes afiados que me drenavam,
anunciavam nossa morte eminente.
— Se você não lutar contra meu sangue, sabe que nós dois morreremos. -
Sussurrei.
Não houve nenhuma reação, continuava me drenando sedento. Coloquei com
dificuldade as mãos sobre o peito frio e tentei empurrá-lo, entretanto Nikolai era
muito forte e continuou impassível. Ainda lutando por nós dois, abri minhas asas
e nos levantei batendo seu corpo contra o teto baixo. Fiz isso várias vezes, mas
nada o demovia.
Em meu último esforço contra o teto senti meu corpo tremer e a ansiedade
invadiu meu peito, o coração acelerado e a respiração ofegante informavam o que
eu não queria saber, bebera já bastante sangue. Bati violentamente com o meu
corpo contra o chão, já sem forças para lutar.
— Nikolai, nós dois morreremos se continuar. Por favor, não deixe que as
tentações infernais te leve para longe de mim.
Nenhuma reação novamente. Soquei-lhe as costas com os punhos fechados e
chorei em desespero. Não temia por mim, meu corpo morreria, mas eu poderia
encontrar-me com o namorado de minha irmã, o fato de não poder ver mais meu
deus sombrio era o que me oprimia o peito.
— Você precisa parar! - Gritei a pleno pulmões mediante meu desespero.
As lágrimas inundaram meu rosto, um de meus braços não suportou mais bater
contra o corpo frio de Nikolai e se estendeu ao chão, vencido. Meus olhos

290
começaram a pesar, sentia meus lábios fracos e trêmulos, com a boca
entreaberta como se precisasse de ar. Repousei minha mão sobre o cabelo macio
novamente e com pesar vi que era o momento para me despedir dele.
— Não conseguiremos. Falhei em te salvar. - Balbuciei e num esforço virei a
cabeça com dificuldade, beijando-lhe a cabeça e dizendo: — Eu te amo.
Não havia mais pelo que lutar e deixei o corpo relaxar sobre o chão duro e frio.
Fechei os olhos por um momento, mas o abri inundados pelas lágrimas, o
vampiro afastara-se de meu pescoço. Senti as mãos frias sobre meu rosto e os
lábios sôfregos pressionando os meus, enquanto dizia:
— Perdoe-me, Lie.
— Tire-nos daqui. - Balbuciei, lutando para não perder a consciência.
Senti apenas meu corpo sendo suspenso pelos seus braços enquanto ele
deslizava rapidamente pelo túnel escuro. Inclinou-me subindo alguns degraus da
escada de alumínio para fazer-me passar pelo buraco redondo e após me colocar
deitada no chão frio da igreja, passou rapidamente pelo buraco, tomando-me no
colo em seguida.
Com dificuldade mostrei-lhe onde estava o carro e me colocando no banco de
passageiro, entrou e dirigiu veloz. Eu lutava contra a inconsciência que insistia
querer me tomar, olhei para o rosto aflito que me fitava repetidamente, tinha se
recuperado completamente e sequer parecia pálido. Entretanto, sua pele
fumaçava pela exposição ao sol, embora não vi nenhuma ferida se formando,
como vira em Arthur.
— Consegue dirigir até minha casa? - Sussurrei com dificuldade.
— Estamos longe, é provável que chegue muito machucado.
— Estou morrendo. - Balbuciei. — Pela terceira vez na mesma semana.
— Não permitirei que morra. - Disse aflito.
Fui tomada pela escuridão da inconsciência em seguida.

291
45 – O Rapto

O quarto estava escuro quando acordei. Sentindo algo em meu braço passei a
mão sobre ele, estava com uma agulha cravada em minha veia, com o soro a
alimentar-me, preso a um pedestal que nunca vira antes em meu quarto. Puxei a
agulha do braço e levantei-me cambaleante.
Abri a porta de meu quarto e ceguei-me com a claridade que vinha da casa. Desci
a escada cuidadosamente para não cair, mediante a tontura que sentia e o
estrépito que vinha da sala era ensurdecedor. Assim que desci o último degrau,
direcionando-me para a cozinha, na ânsia de tomar café, vociferei:
— Calem a boca!
Logo Cora invadiu a cozinha, enquanto com dificuldade, por estar muito zonza,
tentava preparar um café. Ela me guiou até o banco e em seguida se pôs a
preparar o café para mim, perguntando:
— Como se sente?
— Péssima.
— Encontramos outro médico que cuidou de você e nos cobrou uma fortuna,
Arthur o enfeitiçou para não se lembrar de nada.
— E Nikolai? - Perguntei.
— Estou aqui. - Respondeu, adentrando a cozinha.
Sorri ao perceber que estava bem e até mesmo corado, não aquela coisa
cadavérica que encontrara pela manhã. Senti o toque frio de sua mão sobre meu
rosto, com nossos olhos a se iluminarem num brilho místico.
— Obrigado por me salvar.
— Agradecer só a deixará mais convencida. - Disse Cora, colocando o café no
balcão diante de mim. — Aqui seu café. Quer comer alguma coisa?
Virei todo o líquido quente, levantei-me para agarrar a jarra onde ela colocou o
resto do café e segui para a sala, seguida de Nikolai. Sentei-me sobre o sofá macio
ignorando os olhares de Arthur e Agnes.
— Ela precisa saber da verdade. - Disse Agnes fitando Arthur.
Os olhei enquanto acendia um cigarro.

292
— Nikolai acredita que devemos trabalhar juntos. - Arthur anunciou. — Então,
acho importante lhe dizer a verdade.
— Que verdade? - Insisti.
— Arthur esteve sempre comigo. - Disse Nikolai.
Encarei Arthur.
— Por isso te libertei.
— Como assim? - Minha confusão era aparente.
— Eu vim de outro continente e sempre fui amigo de Nick, mesmo antes dele
entrar no clã do Loïc, mas a vida me levou para outro lugar e fiquei longe por
muito tempo. Quando retornei encontrei-me com Nick que deixara o clã de Loïc
há pouco tempo. Os rumores sobre Loïc desejá-lo morto corria desde aquela
época, no começo Nick queria apenas saber se aquilo era verdade.
— Como Arthur é um telepata com um controle mental excepcional, não se
deixando ser conhecido por nenhum outro telepata, concordou em fazer parte do
clã do Loïc em prol de obter informações sobre a veracidade dos rumores. Então,
as coisas se tornaram ainda mais dramáticas durante a caçada aos vampiros. No
início os clãs eram apenas organizados para receber vampiros com filosofias
semelhantes às dos clãs, mas depois da caçada, onde muitos vampiros também
estiveram envolvidos com a morte de outros, os clãs se fortaleceram e declararam
guerra uns contras os outros. Arthur já estava dentro do clã do Loïc e não
necessariamente passou a trabalhar para o meu clã.
— Não me importo com clãs. - Arthur o interrompeu. — Era claro como o dia que
Loïc o queria morto, sentia-se traído, não gostava das ideias de Nick, mas
também não gostava da ideia de não ter alguém tão poderoso em seu clã e muito
menos de ter alguém mais poderoso que ele, o mais velho entre nós. Em meio ao
clima tenso que se formava entre os clãs, Nick passou a ser um alvo para todos, o
fato dele suportar o sol por algum tempo e sua força descomunal, deixavam todos
inseguros e receosos. Era possível ser arrastado para o sol pela manhã por Nick,
era um perigo bem real.
— Eu tinha esperanças de que uma sociedade funcionasse, não nego que gostava
do clã que estava, infelizmente não são as ideias que unem as pessoas, mas o
amor. E amizade verdadeira é algo difícil de encontrar. As pessoas são volúveis
demais, é necessário um sentimento forte para as unirem.
Minha cabeça estava rodando com aquelas informações e café não me era mais
suficiente. Cambaleei ao meu levantar, quase me espatifando ao chão, mas fui
agarrada por Arthur em tempo. Livrei-me de suas mãos e avancei sobre o bar,
agarrando-me a uma garrafa de conhaque e sentei-me novamente. Encarando
Nikolai, perguntei:

293
— Então, você já sabia sobre mim desde o início?
— Não, ele não sabia porque não contara a ele. Não nos encontrávamos com
tanta frequência, tínhamos que ser cuidadosos. Nosso plano era destruir o clã de
Loïc desde dentro e por isso eu estava lá. Te acompanhar era uma forma de me
comunicar com Nikolai, mas eu tinha muitas coisas para informá-lo e você não
me parecia ser de fato um perigo.
Quis dar um tiro na cara de Arthur naquele momento.
— Soube sobre você quando me contou em sua casa sobre seus planos,
encontrei-me com Arthur depois daquilo e ele me informou sobre como você
chegou naquele lugar. Precisava confirmar e entender porque Loïc a queria tanto
em seu clã. Antes disso Arthur não me disse sequer uma palavra sobre você.
Meu orgulho estava claramente ferido. Que demônio de merda eu era? Que
ceifeiro era eu que não conseguia ser no mínimo visto como perigoso? Ouvimos o
barulho de Olavi se debatendo no porão. Agnes levantou pegando a arma
antivampiros que estava no braço do sofá ao seu lado e seguiu com passos
pesados.
— Cuidado. - Alertou Cora.
— Sei que o idiota vai me atacar assim que eu abrir a porta. - Ela disse.
Ouvimos o som suave da porta se abrindo e em seguida dois disparos. O som
abafado do corpo de Olavi quando caiu escada abaixo e os gritos de Agnes:
— Mas, que maldição! Já não falei para você passar seu tempo assistindo
televisão? O que você tem de bonito, você tem de chato.
Ouvi a porta batendo e achei aquilo tão engraçado que atenuou meu estado de
humor. Agnes em nada se parecia com Cora, além de se mostrar muito mais útil.
Gostava dela.
— Desculpe te deixar tão desconfortável com a verdade. - Disse Arthur, que
claramente havia percebido que estava irritada com tudo aquilo.
— Então, você me ajudou escapar por causa da sua amizade com Nikolai?
— Não. Te ajudei pelo motivo que lhe contei, pela sua lealdade e o apreço que
sinto por ela.
— Por que deixou que Loïc o capturasse?
— Não estava no clã aquele dia. Eu já tinha informado Nick de que Loïc
encontrara-se com Gustavo duas vezes, até onde eu sabia e que era possível que
estivesse tramando alguma coisa com ele. Entretanto, não sabia que Loïc tinha te
mordido, vocês dois caíram na armadilha dele direitinho, ele sabia que Nick o
caçaria por causa disso e informou Gustavo, que se prontificou a ficar de tocaia
para enfeitiçar Nick e prendê-lo. Fui saber sobre o que tinha acontecido, quando

294
Loïc pediu para eu vir rapidamente, porque estavam tendo um problema em
manter você sem enlouquecer todo mundo que ficava próximo a sua cela. Nesse
exato momento também soube que Nick estava preso e não podia fazer muito
porque Loïc me designou a ficar com você.
Meu olhar se depositou vazio sobre o chão. Além de irritada, sentia-me exausta.
Naquele momento odiava todo e qualquer vampiro, Nikolai e Arthur inclusive. Dei
mais alguns goles no conhaque sentindo o líquido frio descendo sobre meu
queixo e arremessei a garrafa contra o chão. Levantei-me cambaleante novamente
e quando Nikolai se colocou diante de mim para me ajudar a manter o equilíbrio,
bati em seu braço com força e o empurrei para longe de mim.
— Ela está com raiva. - Informou Cora, que já estava acostumada com meus
comportamentos agressivos.
Subi a escada, segurando-me firmemente no corrimão para não cair e assim que
adentrei meu quarto me joguei sobre a cama. Não sabia se podia confiar que
Arthur dissera me a verdade, que Nikolai de fato não sabia sobre mim quando
nos encontramos pela primeira vez e aquilo me fazia sentir idiota. Além de me
deixar claro que não era tão boa quanto eu gostava de pensar que era.
Sentia-me terrivelmente inútil e esse sentimento era pior do que qualquer outro
que poderia sentir naquele momento. Xinguei-me mentalmente milhares de vezes,
descontente comigo mesma. Tinha deixado tanta coisa importante escapar, os
vampiros haviam brincado comigo e aquilo era enojante, não por eles terem feito
aquilo, mas por eu ter permitido.
Gritei arremessando um livro que estava sobre a mesa de cabeceira na parede,
em seguida arremessando o pedestal onde o soro estava pendurado. De fato Loïc
não me deixava ficar sozinha por muito tempo com os outros vampiros, mas
passei grande parte do meu tempo com Arthur, eu não tinha sequer desconfiado
dele.
A porta se abriu e o demônio sombrio adentrou meu quarto. Arremessei outro
livro sobre ele, que o pegou no ar, colocando-o novamente sobre a mesa de
cabeceira. Sentou-se ao meu lado, puxando meu corpo contra o dele e me
abraçou, apertando meu rosto contra seu peito.
— Quero ficar sozinha. - Anunciei.
— Não, você não quer.
— Onde foi parar seu discurso sobre vontade e divino propósito?
— Você só está injustamente chateada comigo.
— Injustamente? - Soltei-me de seus braços num ímpeto. Queria esbofeteá-lo.
— Não foi um requisito desde que nos conhecemos não tocarmos a intimidade um
do outro enquanto não estivéssemos prontos para isso?

295
Se a raiva que sentia e atravessava o olhar que lhe lancei o pudesse ferir, já
estaria seco ao meu lado.
— Isso tem mais a ver com a situação que nos encontrávamos quando nos
conhecemos do que no que sentimos um pelo outro, Lie.
— Vai pro inferno!
O silêncio reinou entre nós. O som abafado do fogo crepitando sobre o tabaco do
meu cigarro, um olhar furtivo para a janela fechada apenas pela vidraça. Ele
permanecia imóvel, mas não queria olhá-lo, nem tocá-lo. Nem sabia dizer o que
exatamente sentia naquele momento. O corpo fraco pediu por uma nova posição
mais confortável e amontoei os travesseiros sobre a cabeceira e encostei-me no
monte macio.
— Como conseguiu parar de me drenar de manhã?
— Estava te ouvindo e estava tentando, mas não conseguia. Então, me lembrei de
que quando me exponho ao sol ou quando sou atacado, preciso manter-me numa
vontade inabalável, não sei como te explicar exatamente como acontece, mas
torno meu corpo rígido, inabalável, resistente. E ao pensar em como faço isso, o
fiz e consegui resistir ao seu sangue. Uma rígida disposição mental em não te
drenar.
— Então, sua magia também te ajuda a manter o autocontrole?
— Com a força que tenho é necessário que eu mantenha o autocontrole.
Nikolai era mais estranho do que eu pensava, mas, pelo menos, ao que parecia
conseguiria se controlar caso precisasse de algo como meu sangue novamente.
Contudo o odiei mais uma vez, parecia tão perfeito e tão poderoso, que não devia
me ver mais do que um demônio de merda mesmo.
— O que meu sangue te revelou?
— Muitas coisas estranhas. - Disse, fitando-me como se me analisasse.
— Como o quê? - Perguntei, impaciente.
— Lie, não acho que você seja um demônio, embora pudesse dizer que é muito
semelhante a eles. Você é algo bem mais antigo, tão antigo que acredito que fora
esquecido. Se houve um ser como você, acho que esqueceram de citar nos livros
de história, filosofia e mitologia.
— Do que você está falando?
Olhou-me aflito, com a confusão estampada em seu rosto. Virou a cabeça para o
lado como se precisasse encontrar palavras. Sabia que ele conseguiu acessar
através de meu sangue coisas que eu mesma não poderia.
— Nikolai?

296
— Eu não sei o que você é. Sinto muito, tudo em seu sangue é confuso e obscuro.
Eu o toquei por um momento, tentando acessar seus pensamentos, claro que
aquilo me atormentara nos últimos dois anos e já estava claro que minha
memória foi propositadamente apagada, mas queria saber porquê. Os
pensamentos e memórias de Nikolai nada me diziam, ainda estava atormentado
por ter me mordido, se culpava dolorosamente e era tudo o que permeava sua
mente naquele momento.
Senti abruptamente os lábios frios pressionando os meus, com a língua forçando
a passagem, sedenta de meu calor. Não, eu não queria beijá-lo, queria esbofeteá-
lo, entretanto meu autocontrole era tão poderoso quanto o demônio de merda que
eu era e enlacei meus braços em seu pescoço, afogando minha mão em seus
cabelos, pressionando sua nuca. Maldito Nikolai! Como gostava dele. Mordi seu
lábio com força, senti o gosto metálico invadindo nossas bocas e bebi de seu
sangue para me sentir fisicamente melhor.
Percebendo que desejava seu sangue, levou o pulso aos lábios e o mordeu,
colocando-o sobre a minha boca, enquanto beijava meu pescoço e ombro.
Quando bebi o que julguei ser suficiente, puxei sua cabeça e encaixei minha boca
na dele novamente.
Puxou meu corpo pela cintura, fazendo-me deslizar sobre o colchão macio e em
seguida curvou-se sobre mim. Senti a mão na parte de dentro de minha coxa,
empurrando levemente minha perna para encaixar-se entre elas, fazendo-me
afundar na cama com o peso de seu corpo sobre o meu.
Seus beijos lascivos umedeciam meu pescoço, dando a minha respiração vida
própria, fazendo meus lábios sibilarem com a passagem do ar que agora parecia
pesado e longo. Senti as mãos sobre meu abdômen, erguendo a camiseta que eu
vestia, escorregou-se para baixo e enquanto lentamente me despia, beijava minha
barriga, deixando um rastro úmido e frio, que fez meus pelos se eriçarem.
Inclinei-me levemente para ele passar a camiseta pela minha cabeça e se livrar
dela, sugando meu peito em seguida como um bebê faminto. Ergui a cabeça para
olhá-lo, os olhos fechados como se tudo o que precisasse fosse sentir, com seu
cabelo a acariciar meu tórax. Como eu o desejava e ao mesmo tempo o odiava por
não me contar o que vira em meu sangue. Puxei seu rosto, trazendo sua boca
entreaberta pressionando-a contra a minha novamente.
— Eu te amo. - Ele sussurrou antes de devorar-me com seu beijo.
Minhas unhas correram sobre suas costas, arrastando a camiseta com elas,
relaxei-me embaixo dele, ao sentir sua pele tocando a minha, num delicioso e
suave afago dos corpos sedentos. Fitei o cinzento de seus olhos, como um mar
agitado num dia nublado de inverno e eles logo misturaram num fogo frio, um
misto de romance e erotismo.

297
Acariciou meus lábios enquanto me fitava, colocou o dedo dentro de minha boca,
fazendo-me chupá-lo e os cinzentos seguiram a mão audaciosa, fitava meus
lábios, mordendo seu lábio inferior e quando deixou a boca macia entreaberta,
com o desejo a saltar-lhe dos olhos morosos, livrei-me de seu dedo para beijar a
boca ávida.
Ouvimos o som do vidro da janela se estilhaçando, meditante ao impacto de uma
enorme pedra e paramos abruptamente. Empurrei o corpo de Nikolai para o lado
e estiquei-me para pegar a arma sobre a mesa de cabeceira. Caminhei até a
janela sobre as pontas dos pés e assustei-me quando Alisha bateu contra o vidro
quebrado. Parecia uma louca, com o cabelo despenteado e gritando:
— Você não pode me impedir de ver Cora.
Não pensei, num reflexo acertei-lhe diretamente o coração. Esgueirei a cabeça
pela janela e ouvi o som de seu corpo no impacto contra o chão. Eu e Nikolai nos
olhamos, maldito momento para Alisha aparecer em minha janela. Procurei pela
camiseta e enquanto estava vestindo, ouvi os gritos de Cora.
Desci rapidamente, mas não em tempo de evitar que Cora saísse de casa e
quando parei diante da porta escancarada de vidro, a vi sendo agarrada por um
vampiro. Assim que meu corpo assinalou o movimento vindouro, mediante a
minha intenção de correr até ela, Nikolai me agarrou pela cintura e Loïc parou
subitamente diante de nós, do lado de fora da porta.
— Você foi longe demais, Liese.
Agnes disparou a arma contra Loïc, acertando-lhe o braço e o fazendo correr em
seguida. Nikolai puxou-me para dentro, fechando a porta num estrondo, a
chutando. Aquilo foi a gota d’água num copo já transbordante e livrando-me das
mãos do deus sombrio, fui para meu quarto. Precisava de roupas bonitas e um
pesado sobretudo.

298
46 – Samael

Pulei a janela do quarto, pois que não queria que ninguém fosse comigo. Eu não
era o demônio de merda que não oferecia nenhuma ameaça? Por que então
quereriam trabalhar comigo? Para me proteger? Sim, naquele momento orgulho
era meu pecado predileto. Deixei os faróis desligados, embora sabia que ouviriam
o ronco do motor.
O sangue de Nikolai aplicara-me a tão amável medicina diabólica e sentia meu
corpo novo em folha. Aumentei o volume da música agressiva que coloquei para
tocar e me dirigi veloz para o Madame Satã. Se Loïc estava procurando por briga,
havia encontrado.
Parei num posto de gasolina e comprei alguns galões de gasolina que coloquei no
porta-malas bem como alguns maços de cigarro e bebidas. Na pressa em sair sem
ser vista, acabei deixando meus cigarros para trás. Retornei para o carro, já não
estava tão longe do Madame Satã.
Estacionei o carro diante do bar e atirei em dois vampiros que estavam
guardando a porta do lado de fora. Entrei empurrando a porta dupla com as
armas nas mãos, dei dois passos adentro e outro vampiro veio em minha direção,
fazendo-me atirar nele. Poucos o notaram caindo por causa do barulho
ensurdecedor da música e segui adiante.
A música estrondosa era agradável aos meus ouvidos, ergui meus olhos para o
mezanino e vi Soren sentado na sua poltrona de couro como sempre. O lugar
estava lotado e me movimentar exigia retirar as pessoas do meu caminho ou
procurar me desviar delas.
Yasmin que claramente não morrera com o caco de vidro que cravei em seu
coração, reconheceu-me de pronto e saltou em minha direção, fazendo algumas
pessoas se afastarem curiosas, abrindo um pequeno túnel para a sua passagem,
mas antes que encostasse em mim, dei um tiro certeiro em seu coração.
Ela caiu ao chão agitando-se convulsivamente e o tumulto se iniciou, as pessoas
assustadas gritavam e começaram a se movimentar todas juntas para a porta de
saída. Entretanto, subitamente pararam e estranhamente começaram a se
comportar de maneira estranha. Alguns começaram a lutar, esbofeteavam-se e se
empurravam.

299
Outros como se enlouquecidos pelo desejo se jogaram no chão ou sobre a mesa,
despindo-se e transando. Outros quebravam garrafas e cortavam a carne de seus
corpos e de outros com cacos de vidro, num prazer estranhamente sangrento.
Mesmo os vampiros estavam enlouquecidos, transando ou drenando alguém.
Olhei ao redor, apenas uma pessoa tinha uma magia de êxtase tão poderosa
quanto aquela.
Escorri meus olhos pelo lugar e o achei com facilidade. O cabelo castanho liso e
repicado na altura dos ombros, os olhos verde-água apertado pelo sorriso que
reluzia o brilho do próprio inferno, a camisa com a gravata afrouxada no pescoço,
seu odioso gosto por champagne. Jogou a franja para o lado num gesto
apessoado e jogando uma moeda para cima, fazendo cair e rolar pela parte
exterior dos dedos, disse:
— Finalmente te encontrei.
— Samael. - Disse, atirando num homem nu de pênis ereto que tentou me
agarrar. — Nem sabia que estava me procurando.
— Não ouviu o chamado ao vento? Soube há pouco que está com Nikolai. Seu pai
não deve estar muito contente com isso.
— Meu pai nem sabe disso.
Dei a volta no balcão, olhei para Astrid que cortava o braço com uma faca, com o
rosto inundado pelas lágrimas e a empurrei um pouco para o lado para alcançar
a garrafa de conhaque na prateleira de bebidas. Peguei um copo e sentei-me ao
lado de Samael.
— Por que está com Nikolai? - Perguntei.
— Como soube?
— Tenho mãos que me contam segredos.
— Gosto das crianças selvagens que entendem que prazer e loucura enobrecem o
espírito.
— Não me venha com essa baboseira. O que quer com ele?
— Ele tem potencial, Liese. - Ele disse acariciando a taça de champagne,
sustentando um sorriso maligno.
— Para ser seu vassalo?
— Já disse que gosto das coisas selvagens e livres. - Levou a taça à boca.
Avancei sobre ele e tomando-lhe a taça, a coloquei sobre o balcão, sorrindo ao
ouvi-lo:
— Está abusada.

300
— Não diria isso se estivéssemos deitados numa cama, Samael. O que quer com
ele?
— Ele é importante pra você! - Riu debochado. — Está bem, está bem… Eu conto.
- Pegou a taça novamente e continuou: — Ganância é um pecado que seu pai
cultiva com maestria, você sabe disso, mas orgulho é mais importante e
promissor para mim do que ganância e acho que você já pode adivinhar que
Klaus pisou no meu calo. Estou aqui por puro divertimento, fazendo meu
digníssimo papel de adversário e já que vamos brincar com vampiros, apostei no
melhor cavalo.
— Vai proteger o seu investimento?
— Parece que não se trata de um investimento só meu. Está interessada nele,
não é mesmo? - Ele perguntou, sempre com a beleza a sustentar-lhe.
— Digamos que compartilhamos o mesmo bem. - Respondi seca.
— As ruivas continuam fazendo meu tipo. - Deu uma piscadinha. — Admito que
quando seu pai souber que ficou ao meu lado, o gostinho da vitória será ainda
mais saboroso.
— Prefiro que ele não saiba disso por enquanto. Estou conseguindo informações
dessa forma.
— Está me propondo uma parceria? Ou ainda prefere trabalhar sozinha?
— Ainda prefiro trabalhar sozinha, embora goste de saber com quem posso
contar.
— Se me der o número do seu telefone, pode contar comigo.
— Sabe me dizer por que Lilith quer que eu proteja Cora?
— Não é ela que minha senhora está protegendo. É você. - Sustentou um olhar
lascivo sobre mim. — Ainda não posso falar sobre essas coisas. Mas, o pouco que
você sabe sobre Philip poderia ao menos imaginar que sua perda de memória não
foi causada por um acidente. Por isso Lilith está tão brava.
— Por que não me conta tudo o que sabe? - Disse antes de virar a bebida,
enchendo novamente meu copo.
— Porque eu não devia nem ter te contado o que contei. Talvez Philip pudesse te
falar sobre os detalhes.
— E onde ele está?
— Fugindo do seu pai, claro. Disseram que foi visto em Feynman, mas não sei
precisar. Não fique ansiosa, Liese, essas coisas se revelarão para você muito em
breve.
— Se eu conseguir permanecer viva, talvez.

301
Suspirei. A informação de que Philip poderia ter apagado a minha memória
deixou-me claramente inquieta e mais irritada do que já estava. Pensei no que ele
poderia ter me feito pensar sobre quem eu era ou queria. Não pude evitar pensar
em Katrien falando sobre os mutantes descerebrados pensando exatamente o que
ele queria que pensassem e diante desse fato, impossível não me sentir
incomodada com a possibilidade de que tudo o que eu pensava e acreditava ser,
pudesse não ter nada a ver com quem eu era.
— No que ele me transformou? - Perguntei claramente arrasada.
— Em termos de personalidade, pelo que sei, nada. Mas, não teria tanta certeza
sobre Klaus ser seu pai de verdade. Claro que poderia ser um termo usado para
um maioral da sua linhagem, mas esse também não é o caso.
— Samael, me conte a verdade. - Segurei sua mão, impulsiva.
— Não me venha com seu toque maligno, suave e invasivo. - Afastou minha mão.
— Já te falei coisa demais por hoje. E tirei a noite para me divertir e não para me
envolver nos seus dramas.
Levei o copo novamente à boca e olhei para Soren, que permanecia sentado,
olhando para o nada como se estivesse atônito. Não podia deixar aquele
sentimento miserável que surgira com a informação de Samael me tomar, me
recusava a me sentir deprimida como estava querendo me sentir. Levantei-me.
— Talvez você nem seja um demônio. - Ele gargalhou.
— Não te dou o direito de incitar a loucura em mim. - Vociferei. Sem conseguir
evitar o que Nikolai me dissera pouco antes.
— O que um demônio de merda poderia fazer contra mim?
Maldito, inspecionara meus dilemas e sentimentos. Sem pensar atirei nele e a
bala parou no ar bem diante de seu rosto, gargalhou e pegou a bala entre os
dedos.
— A doce fúria. - Abriu seu sorriso maligno. — Não é um demônio de merda,
apenas esconderam de você todo o seu potencial. Espero que sua irmã tenha te
enviado a bruxa que eu indiquei. Ela tem mais a ver com você do que os
demônios.
— Por que não fala a verdade logo? Que mania de brincar com a cabeça e
sentimentos das pessoas.
— O que posso fazer se isso me é tão agradável? - Deu de ombros.
Entreguei o meu celular para ele dizendo:
— Ligue para o seu número que descobrirá o meu.

302
— Então, estamos fazendo uma parceria? - Perguntou, sorridente, enquanto
pegava meu celular.
— Não, porque quero marcar um encontro para te torturar e te fazer me contar a
verdade.
Ele gargalhou. Abandonei-o e subi as escadas para dentro do corredor escuro que
me levava ao mezanino. Entrei e olhei para o fundo, apenas para me certificar de
que não havia de fato ninguém lá. Curvei-me diante de Soren e toquei em sua
testa, deixando minha magia tocar sua cabeça para tirar-lhe do estado em que
Samael o colocara. Olhou me assustado e antes que reagisse, atirei em sua perna
duas vezes para o paralisar.
— Liese! - Exclamou, surpreso.
— Para onde Loïc levou Cora?
— Para Azazel.
Aquilo pareceu chamar a atenção de Samael, que abriu suas asas e pousou ao
nosso lado, encostando-se no baixo parapeito do mezanino.
— E onde ele está? - Perguntei.
— Não sei.
Dei mais dois tiros, dessa vez no abdômen e toquei seu rosto.
— Não torne as coisas difíceis, Soren. Onde Azazel está?
— Apenas Loïc sabe. Eu realmente não sei. Mas, se me levar com você, é provável
que Loïc negocie a informação, ele é meu criador.
— Não quero dar esperança para Loïc. - Beijei seu rosto. — Vim apenas para lhe
dar dor.
Atirei em seu coração e olhei o rápido definhamento, até secar-se, como acontecia
aos vampiros quando morriam.
— Não devia tê-lo matado, ele poderia nos ajudar a encontrar Azazel.
Ignorei Samael e pulei do parapeito, caminhei desviando das pessoas
enlouquecidas. Já em meu carro peguei os galões de gasolina e subi para o
mezanino, onde comecei a espalhar o líquido inflamável.
— Deixe eu te ajudar.
Samael pegou o outro galão e saltou na parte inferior do bar, espalhando o
combustível por toda parte. Não vi quando ele colocou fogo no local, enquanto eu
ainda espalhava o combustível pelo mezanino. Joguei o restante sobre Soren e
aticei fogo nele. Voei até a porta, para escapar das pessoas que ainda
enlouquecidas, sequer notaram que estavam em chamas.

303
Encostei em meu carro e acendi o cigarro, enquanto esperava por Loïc, sabia que
ele viria após sentir a morte de sua cria. Samael entregou meu celular e entrando
num conversível vermelho, deixou o local, acenando um adeus.
O fogo se espalhou rapidamente, assistia impassível, não sabia exatamente o que
faria se Loïc de fato aparecesse, sabia que não conseguiria matá-lo, mas talvez
pudesse me levar para onde Nikolai poderia me encontrar. E esse pensamento se
tornou verdadeiro em questão de segundos.
— O que está fazendo? - Nikolai perguntou ao parar ao meu lado. — Pensei que
fossemos trabalhar juntos.
— Estamos trabalhando juntos.
— Tem pessoas lá dentro? - Perguntou observando o fogo que crescia.
— E vampiros. - Respondi.
— E o que está esperando?
— Loïc vir chorar a morte de Soren.
— Matou Soren? - Parecia surpreso.
— Acho que ele não achou que fosse de fato matá-lo. O bom de ninguém dar
importância a um demônio ceifador de merda.
— É impressão minha ou você está chateada pelo fato de que Arthur não te
julgou perigosa?
— Quer me contar sobre Samael? - O ignorei.
— Encontrou-se com ele?
— Sim e ele me fez o favor de me deixar irritada.
— O que aconteceu?
— Não aconteceu nada.
Encarou-me.
— Sinta-se livre para não me contar, se quiser. Mas, depois não fique brava
comigo por não te contar as coisas como ficou agora há pouco.
Olhei-o de soslaio. Então, lhe contei o que Samael me dissera. Senti-me
totalmente estranha ao contar-lhe aquelas coisas, não sentia que podia confiar
nele, não conseguia na realidade confiar em ninguém, nem em mim mesma.
Sentia-me exposta e terrivelmente ridícula.
Encarei-o, estava quieto, provavelmente notara que eu estava tensa diante do
pavor que sentia, tive novamente que lidar com meu medo de revelar meus
pensamentos, sentimentos e emoções, sentia-me vulnerável, como se entregasse
a Nikolai as armas para me destruir completamente.

304
Senti seus braços me envolvendo, o perfume como um aroma do desejo que
nutria por ele, mesmo seu acalento me assustava naquele momento, deixava a
mostra o que eu tinha de mais frágil. Afastei-o dizendo:
— Vamos embora.

305
47 – O Metamorfo

Bati a ponta da caneta sobre a mesa de vidro da minha sala de jantar, enquanto
encarava o papel onde fiz alguns rabiscos. Tamborilei os dedos sobre a carta que
escrevera para Hedy, pedia-lhe informações sobre Agnes e Samael, assim como a
indagava sobre o que sabia sobre nossa perda de memória. Tentava calcular o
perigo de enviar uma carta tão direta, mas sentia-me engasgada com aquilo.
Toquei em seguida na capa de couro do caderno que Loïc me entregara na noite
em que me mordeu, questionava-me se ele escrevera algo nele, lembrei de minhas
tardes em sua casa, quando passava grande parte do meu tempo o lendo. Curvei-
me com uma leve pontada no peito, maldito Loïc.
Assinalei todos os lugares que lembrava ter visitado com Loïc alguma vez, estava
disposta a incendiá-los todos. Contudo, me preocupava com Cora, por mais que
Samael dissera que era o oposto do que pensei, de que Lilith enviou Cora para me
proteger, deixá-la morrer feriria meu orgulho, mas do que já estava ferido. Sem
dizer em mandar alguém como Cora para me proteger. O que ela poderia fazer
por mim? Agnes se mostrava muito mais útil.
Estar sozinha em casa, embora Olavi ainda estivesse no porão, me dava uma
sensação de alívio enorme, precisava muito de solidão, mas do que nunca antes.
Samael era bem conhecido por incitar a loucura, mas sua frase pulsava em
minha mente como um mantra: “Talvez você nem seja um demônio”.
Ouvi o líquido batendo no fundo do copo, tão logo percebi que precisava de um
pouco de calmante e me esgueirei para o bar. Olavi deveria saber onde Azazel
estava e por algum motivo me sentia temerosa de encontrá-lo. Virei a bebida
garganta abaixo e me aproximei da janela.
Puxei ligeiramente a cortina e espiei ao lado de fora, vi as sombras entre as
árvores, minha casa abruptamente tornara-se um ponto turístico para vampiros
desde que Nikolai passou a ficar entre nós depois que o salvei. Esbocei um
sorriso maligno abandonando a cortina e segui para o porão.
Desci a escada devagar, curvando-me, inspecionando o lugar, com a arma
engatilhada em minha mão, Olavi tornara-se perigoso, estando ao ponto do
colapso, temia um frenesi, por isso Agnes e Arthur saíram para buscar algumas
pessoas para o alimentarem.

306
Estava encolhido no canto, os braços enlaçados aos joelhos que apertava contra o
peito, o cabelo sedoso e perolado caindo sobre as penas, com a fronte apoiada nos
joelhos. Senti pena. Aproximei devagar e toquei seu rosto delicadamente. Não se
moveu, mas fez sua voz audível:
— Liese, você tem sido muito cruel comigo.
— Achei que gostasse de dor. - Respondi, sentando-me ao seu lado.
— Gosto quando é você quem me causa dor, não sua criadagem.
— Vamos te alimentar hoje, logo estarão com alguns humanos aqui. Se você fosse
confiável não teria que estar nessas condições.
— Eu já te disse onde Nikolai estava, por que ainda me mantém preso?
— Onde está Azazel?
Agitou-se, levantando a cabeça, afastei um pouco dando alguns passos para trás.
Serpenteou com as costas contra a parede e ficou em pé. Apontei-lhe o revólver,
mas algo terrível chamou minha atenção. O rosto descarnado de Olavi contorceu-
se, por algum motivo minha pergunta incitou-lhe algum tipo de frenesi.
Seu rosto se modificou rapidamente e num piscar de olhos, Olavi tinha meu
corpo, minha aparência, nada nele parecia lembrar de que não era eu. O queixo
caiu sem meu consentimento e tudo fez sentido. O demônio sedutor era um
metamorfo, capaz de assumir qualquer forma desejada. E aquilo só se confirmou,
quando ainda se contorcendo, como se tomado pela dor, transformou-se em
Nikolai.
— Gosta de mim agora?
Mesmo o timbre da voz era de Nikolai, assustada atirei nele, estava atordoada,
meu deus sombrio jamais fizera com que Cora trouxesse Azazel para o mundo,
mas Olavi. Agachou-se lentamente, apoiado pela parede, caindo novamente ao
chão, agarrando os joelhos como antes. Dei alguns passos lentos em sua direção
e na proximidade apropriada toquei sua cabeça, que se deitou sobre os joelhos
presos ao peito.
— Então foi você que fez Cora trazer Azazel, se passando como Nikolai?
— Não foi nada difícil. - Balbuciou. — Nunca vi bruxa tão poderosa e estúpida.
Não entendo porque o universo tem essa mania de dar poder para pessoas
idiotas.
— Por que Azazel a quer?
A porta do porão se abriu naquele momento, com duas mulheres sendo
empurradas por Arthur, afastei-me um pouco para se aproximarem de Olavi, que
as olhou com o semblante deprimido. Agarrou uma delas e cravou as presas no
pescoço, os olhos negros pousaram rapidamente sobre os meus. O rosto voltou a

307
ter vida. As várias balas cravadas em sua carne começaram a se juntar aos seus
pés, na medida que saiam de seu corpo como se tivessem vontade própria.
Se curava tão rapidamente que tão logo soltou o corpo desfalecido da primeira
mulher, dei-lhe dois tiros para impedir que fugisse. Odiei-me naquele momento,
tinha me apegado a Olavi, entreguei a arma para Arthur e deixei o porão em
seguida. Olhei para minhas mãos trêmulas mediante a emoção que surgia tão
intensamente.
Aqueles vampiros eram piores que demônios, pareciam ter o dom de me fazer
gostar deles para me ensinarem o terrível estado de se contorcer em sofrimento
no inferno. Senti a parede fria, quando em encostei nela ao lado da porta do
porão, estava devastada. Mordi o lábio inferior e pousei os olhos no vazio do chão.
Queria escapar do óbvio, mas sabia que não tinha como fugir, depois que me
informasse onde Azazel estava, teria que matá-lo e não compreendia porque
aquilo me causava tanta dor. Vi a sombra de Agnes na parede ameaçando atingir
o corredor e fiz a curva rapidamente, correndo escada acima.
Tranquei a porta de meu quarto tão logo a fechei atrás de mim, invadi o closet e
me equipei de todas as armas possíveis. Precisava extravasar aqueles
sentimentos ou enlouqueceria. Havia deixado um carro na casa de Olavi e outro
no Hora Aberta e precisava recuperá-los.
A imagem de Cora saltou em minha mente, chutei a perna da mesa de cabeceira
ao pensar nela e sequer saber se ainda estava viva. Peguei o celular e mandei
uma mensagem para Nikolai, pedindo para me encontrar na estação de trem de
Louis de Broglie dali duas horas, assim ele poderia me ajudar a recuperar meus
carros.
— Aonde você vai? - Perguntou Agnes ao me ver descendo a escada.
— Pegar meus carros.
Respondi apressada, caminhando até a sala de jantar e pegando a carta que
escrevera para Hedy. Tirei uma arma do sobretudo e engatilhei antes de deixar a
casa, no caso de ser atacada por alguns dos vampiros que montava guarda entre
as bétulas do bosque.
Antes de me dirigir para a estação de trem passei na Casa A para deixar a carta e
percebi que havia outra para mim. Hedy me informava de que havia mais armas
antivampiros com a senhorinha que me atendera da última vez. Sem pensar
segui rapidamente para a casa da senhora, estava mesmo precisando de mais
armas, logo que estava usando muita munição nos últimos dias.
Após passar na casa da velha, segui viagem até o centro de Louis de Broglie,
estacionei o carro no estacionamento da estação de trem e segui para diante da
entrada. Olhei as pessoas que passavam apressadas por mim, enquanto
procurava pelo ladrão de mim mesma.

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Estava encostado ao lado da escadaria central da estação, por onde as pessoas
transitavam apressadas, o capuz preto escondia-lhe o rosto, mas reconheceria
aqueles cabelos dourados que caiam-lhe sobre o peito de longe. Ergueu os olhos,
sem levantar a cabeça quando parei diante dele. Beijei-lhe os lábios suavemente
quando disse:
— Você está triste. - Tocou meus lábios, acariciando-lhes com dedos frouxos.
Olhei involuntariamente para o lado, como se desviando meus olhos de seu olhar
pudesse esconder o que sentia dele. Estava aliviada pelo efeito de seu sangue ter
passado e não mais ler meus pensamentos como fazia até pouco tempo. Apertou
meu corpo contra o dele sem se importar com os passantes.
— Olavi é um metamorfo. Foi ele quem se passou por você e forçou Cora a trazer
Azazel. Entrou num frenesi quando o questionei sobre Azazel e se transformou na
gente bem diante de meus olhos.
— É sério? - Estava claramente surpreso.
— Sim, acredito que o sangue que Cora disse que tomou de você, na verdade foi
de Olavi. Seria hipócrita se dissesse que não me sinto chateada com o fato de que
terei que matá-lo.
Lançou-me um olhar aborrecido, seu ciúme invadia minha mente, mas procurei
não constrangê-lo com aquilo. Acariciei o rosto frio e beijei-lhe os lábios. Gostaria
que soubesse que por mais que eu gostasse de Olavi, nada se comparava ao que
sentia por ele, sua voz soou como se nada houvesse acontecido quando disse:
— Para onde vamos primeiro?
— Pegar o carro que deixei na casa de Olavi. É provável que tenhamos que
enfrentar alguns vampiros lá.

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