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Houve um ano
chamado 2018
camafeu 5
© Taís Bravo, 2019
coleção camafeu
Produção editorial
Fred Spada
Otávio Campos
Projeto gráfico
Fred Spada
Otávio Campos
Revisão
Fred Spada
isbn 978-85-93715-31-0
1. Ensaio I. Título
cdd: B869.4
[2019]
edições macondo
Rua Dom Silvério, 302/302a
Alto dos Passos – Juiz de Fora – mg
36026-450
contato@edicoesmacondo.com.br
www.edicoesmacondo.com.br
houve um ano chamado 2018
para as que perderam
“I am talking here about a time when I began
to doubt the premise of all the stories I had
ever told myself (...)”
Joan Didion
Elena Ferrante
bandeiras vermelhas no bairro da glória
você insiste
em dar mergulhos
dentro d’água reconhece
o eletrocardiograma das montanhas
se aproxima da muralha faminta
lambe o sal de cada pedra
batiza a redoma com o gosto do que pode erodir
um álbum branco
um encontro marcado
um boteco na lapa
um aniversário de dez anos
sem conquista alguma
há muito tempo
a cidade desvia do amarelo
em tons de sépia te vejo
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ouvindo todos os gritos que foram nossos
ali
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uma vez ouvi que a queda das torres gêmeas fez com
que muitos casais americanos adiassem seus proces-
sos de separação. Parece que continuar junto se torna
uma tentativa urgente ou os erros são redimensionados
quando atingimos um nível ainda inédito de horror. Ou
que a vulnerabilidade absoluta é o que torna possível
ceder.
Não sei.
Tinha só 11 anos quando um dia cheguei da escola
e encontrei na tv uma imagem estranha. Uma imagem
fora do sentido. O suor colando o uniforme em meu
peito ainda livre de sutiãs, enquanto uma confusão de
fogo, poeira e ferro desabava sem parar. Almocei ten-
tando juntar fragmentos, a voz de uma jornalista dizia
que era algo terrível. A imagem de um avião e depois
outro não cabia em qualquer repertório. Até o final da-
quela semana, no entanto, já sabia o que poderia contar.
O Gugu levava um médium para analisar supostas ima-
gens demoníacas entre as nuvens de fumaça. Meu pai
fazia questão de me explicar o que significa os Estados
Unidos serem uma potência imperialista. O fantástico
se debruçava sobre a dor alheia. Minhas professoras da-
vam respostas vagas. Já se dizia que ali, naquele dia, o
mundo tinha atingido um novo marco; a história, mais
uma vez, se dividia. Estávamos dentro de uma fratura,
encarando o que foi e o que viria a ser. Mas em Inhaúma
a realidade continuava intacta. O casamento dos meus
pais, desequilibrado o bastante para dispensar qualquer
salvação. O calor manchando blusas. O almoço sempre
com a tv ligada. E as mudanças invisíveis como o ritmo
de um corpo.
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aos 13 anos, já usava sutiã e os pelos das pernas ras-
pados. O corpo se desfazia no banheiro do posto de
atendimento da Linha Amarela. Acontecia a primeira
fratura que poderia sentir e contar. No dia seguinte as
pessoas riam porque alguém quase misturou açúcar
com sal. A possibilidade de qualquer risada me parecia
tão difícil de explicar quanto um atentado terrorista.
Por que eles não podiam admitir que nada mais fazia
sentido?
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no dia seguinte vou precisar te mandar uma mensa-
gem. Vou precisar mandar muitas mensagens. A falta
de uma imagem faz minha cabeça simular voltas até
talvez encontrar o alívio de alguma certeza. Mas não sei
como isso aconteceu. Tiraram todas as câmeras da rua.
Nossos desastres têm sido diferentes. Ainda não se sabe
quem matou, quem mandou matar. O acontecimento
persiste fora da forma de um fato. Já são nove meses. Às
vezes cai como uma ficha ou como a queda de uma ár-
vore centenária. Nos acerta e, então, nos deixa. E nunca
vai embora isso que falta. Nos apegamos aos detalhes,
compartilhamos imagens, relatos, prints, nos apegamos
à memória, nos apegamos a algo que possa ser uma
história. Mas, eu admito, todos os dias tenho convivido
com a falta. Vou precisar mandar muitas mensagens.
A tela de um celular nunca foi uma coisa tão perigo-
sa. Vou precisar contar como foi aquele momento. Vou
precisar inventar como foi aquele momento. Nunca vou
me lembrar de como foi aquele momento. Não consigo
esquecer esse momento.
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eu estava
eu estava no brt
eu estava no bar
eu estava comendo arroz e feijão
eu estava saindo do cinema
eu estava chegando em casa
eu estava sem bateria
eu estava ao seu lado
eu estava
quando
quando
quando
quando
quando
quando
quando
quando
quando
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maio de 2018
na tv do metrô dizia
a normalidade só retornará dentro de uma semana
quase me esqueço de novo de onde deveria ir
pensando em como
a normalidade só pode estar agora
suspensa
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e me perguntei quanto deve custar arremessar uma
[pessoa
quanta gasolina é necessária para arremessar uma
[pessoa
como se repara o custo de arremessar uma pessoa
e como se calcula o lucro que se tira
das cirurgias
do material das chapas
dos lençóis das camas
e de tudo que não se repõe facilmente
por exemplo a quantidade de sangue perdida
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o lugar mais perigoso para uma mulher é
sua própria casa
não se sabe
não sei
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o que imagino é um gesto
olhos que afiam a história
enquanto se desfaz o que um dia
disseram ser
amor
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relaxing washing machine sound
acordo e
existo
acordo e
existo com
o turbilhão na cabeça
acordo
e quando acordo
acordo dentro
de uma quebra
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há um ano entro
no metrô calculo
a temperatura no pulso
hesito assim que a espuma
encosta nos pés dou um passo
para trás atenta ao medo
o medo da sensação de frio
que é sempre maior
o medo é sempre maior
do que o próprio frio
repito protejo
meu ponto fraco ou
mais sensível
fecho os braços ao redor
entro
e espero
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uma mulher mergulha*
1.
21
2.
os rituais de
entrada
permanência
e saída
da água
fazem parte da rotina
a tradição é um exercício
de expansão torácica
se pratica todos os dias
a adaptação passa
por ter pulmões
fortes e contidos
mergulha
sem reconhecer
quem era
o que fazia
o que queria
antes
os rituais de
entrada
permanência
e saída
da água
não deixam dúvidas
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sem essa camada
entre
os corpos
ou se
mergulha
seguindo as tradições
ou não se
mergulha
a liberdade
[logo ali num abismo]
3.
4.
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dos pulmões adaptados os rituais de saída um túnel de
duas vias ao fim as pessoas sorriem para a eternidade
já com as mãos limpas os dentes cansados os dedos
trincados reconhece entre os rituais de saída entrada e
permanência
um abismo
só se sai
seguindo as tradições do passado
ou não se sai?
5.
nada acontece
além do imenso tempo
em que fica
mergulhada
nada acontece
além do imenso tempo
em que fica
fora
da superfície
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mas ainda quase intacta
morrer o estritamente necessário
leva muito tempo
leva um imenso tempo
aprender a permanecer
debaixo d’água o corpo vai
mudando
ao longo do tempo
até fincar uma nova irreparável
espécie de força torácica
até vingar uma nova irreparável espécie
de força
6.
25
esboço de uma ideia ou de um desejo
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em pé
dos caminhos
em pé
das distâncias contínuas
de uma rotina
interrompida queria
sentar para poder
escrever mas desde esse dia
tenho pensado em abdicar
da espera ou da ideia de um tempo
em que seja possível se sentar para apenas
escrever um poema
tenho sentido que isso já não é
mais possível
e ainda assim continuamos
de pé
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eu estou com ela
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Então, não há mais como escapar. A mesma pedra
volta. A mesma pedra atinge a testa de Lila. Ela cai. O
uniforme de Lenu estanca o sangue. Elas estão juntas.
Depois dessa derrota. É que a história começa e Lenu já
não é mais só alguém que narra a história. Alguma coi-
sa acontece porque elas estão juntas. Os limites da his-
tória se borram. Depois dessa derrota, penso que somos
como elas. Somos ao mesmo tempo Lila e Lenu. Sozi-
nhas no front. Somos nós duas revidando as pedras.
Somos todas as que entraram na história para escapar
de um destino. Somos Lenu entregando a pedra. Somos
Lila arremessando a pedra. Somos a pedra, as mãos, o
ímpeto, o desejo, o movimento dos braços, os braços, o
medo. Somos maiores do que o medo. Estamos juntas.
E porque estamos juntas alguma coisa acontece. Entre
os limites borrados. São os nossos corpos a história. E é
essa a parte que ainda quero contar.
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Sumário
eu estava 14
Maio de 2018 15
há um ano entro 20