Sei sulla pagina 1di 38

CAIM

Baseado no livro “CAIM”, de José Saramago


Dramaturgia Teresa Frota

“A HISTÓRIA DOS HOMENS É A HISTÓRIA DOS SEUS


DESENTENDIMENTOS COM DEUS, NEM ELE NOS ENTENDE A NÓS, NEM
NOS O ENTENDEMOS A ELE”

1. O COMEÇO

Em data de que não ficou registro, o Senhor apareceu para


expulsar Adão e Eva do Jardim do Éden pelo crime nefando
de terem comido do fruto da árvore do conhecimento do bem
e do mal. Este episódio, que deu origem à primeira
definição de um até aí ignorado pecado original, nunca
ficou bem explicado.

Em primeiro lugar, mesmo a inteligência mais rudimentar


não teria qualquer dificuldade em compreender que estar
informado será sempre preferível a desconhecer, mormente
em matérias tão delicadas como são estas do bem e do mal,
nas quais qualquer um se arrisca, sem dar por isso, a uma
condenação eterna num inferno que então ainda estava por
inventar.

Em segundo lugar, brada aos céus a imprevidência do


Senhor, que se realmente não queria que lhe comessem do
tal fruto, remédio fácil teria, bastaria não ter plantado
a árvore, ou ir pô-la noutro sítio, ou rodeá-la por uma
cerca de arame farpado.

E, em terceiro lugar, não foi por terem desobedecido à


ordem de Deus que Adão e Eva descobriram que estavam nus.
Nuzinhos já eles andavam quando iam para a cama, e se o
Senhor nunca havia reparado em tal evidente falta de
pudor, a culpa era da sua cegueira de progenitor, a tal,
pelos vistos incurável, que nos impede de ver que os
nossos filhos, no fim de contas, são tão bons ou tão maus
como os demais.

Anunciado por um estrondo do trovão, o Senhor veio


trajado de maneira diferente da habitual, segundo aquilo
que seria, talvez, a nova moda imperial do céu, com uma
coroa tripla na cabeça e empunhando o cetro como um
cacete.
2.

SENHOR
Eu sou o Senhor, eu sou aquele que é.
Quem desobedeceu às minhas ordens, quem
foi pelo fruto da minha árvore?

Desesperado, Adão tentou, sem resultado, tragar o bocado


de maçã que o delatava, mas a voz não saiu, nem para trás
nem para diante.

SENHOR (CONT’D)
Responde!

Adão fez das tripas coração, consciente do feio que era


pôr as culpas em outrem.

ADÃO
A mulher que tu me deste para viver
comigo é que me deu do fruto dessa árvore
e eu comi!

EVA
A serpente enganou-me e eu comi.

SENHOR
Falsa, mentirosa, não há serpentes no
Paraíso.

EVA
Senhor, eu não disse que haja serpentes
no paraíso, mas digo sim que tive um
sonho em que me apareceu uma serpente, e
ela disse-me.

SENHOR
As serpentes não falam, quando muito
silvam.

EVA
A do meu sonho falou. Ela disse que não
querias que comêssemos do fruto porque
abriríamos os olhos e ficaríamos a
conhecer o mal e o bem como tu os
conheces, Senhor.

SENHOR
Ah, sim, pelos vistos, essa serpente
julga saber mais do que eu. E o que
fizestes, mulher perdida, mulher leviana,
quando despertaste de tão bonito sonho?

EVA
Fui à árvore, comi do fruto e levei-o a
Adão, que comeu também.
3.

ADÃO
Ficou-me aqui, na garganta.

SENHOR
Muito bem, já que assim o quiseram, assim
o vão ter.
Tu, Eva, sofrerás todos os incômodos da
gravidez, parirá com dores, e não
obstante sentirás atração pelo teu homem,
e ele mandará em ti.
E tu, Adão, a terra ficará amaldiçoada
por tua causa, só à custa de muitas bagas
de suor conseguirás arranjar o necessário
para comer, até que um dia te venhas a
transformar de novo em terra, pois dela
foste formado. Na verdade, mísero Adão,
tu és pó e ao pó retornarás.
Vão-se embora, saiam daqui, não vos quero
ver nunca mais na minha frente.
Acabou-se a boa vida! 16/17/18

2. A PARTIDA

A sua primeira morada foi uma caverna. Nos primeiros


dias, sem terem ao menos uma côdea para mastigar,
passaram fome. Casualmente, havia água ali por perto,
porém não era mais que um regato turvo, em nada parecido
com o rio caudaloso que nascia no Jardim do Éden. Até que
um dia, Eva teve a insólita ideia de ir pedir ao
querubim, colocado pelo Senhor na porta do Jardim do Éden
para os impedir de entrar, que lhe permitisse colher
alguma fruta que lhes aguentasse a fome por uns dias
mais. Cético, como qualquer homem, quanto aos resultados
de uma diligência nascida em cabeça feminina, Adão disse-
lhe que fosse ela sozinha e que se preparasse para sofrer
uma decepção.

ADÃO
Está lá aquele querubim de sentinela à
porta com sua espada de fogo. Como
quererás tu que ele vá desobedecer às
ordens que o Senhor lhe deu? Iremos ter
problemas se o querubim nos for denunciar
ao Senhor.

EVA
Mais problemas que estes que temos agora,
sem modo de ganhar a vida, sem comida
para levar à boca, sem um teto seguro nem
roupas dignas desse nome, não vejo que
problemas nos possam advir mais.
(MORE)
4.

EVA (CONT'D)
O Senhor já nos castigou expulsando-nos
do Éden, pior do que isto não imagino o
que poderá ser.

ADÃO
Sobre o que o Senhor possa ou não possa,
não sabemos nada.

EVA
Se é assim, teremos de o forçar a
explicar-se, e a primeira coisa que
deverá dizer-nos é a razão por que nos
fez e com que fim.

ADÃO
Estás louca?

EVA
Melhor louca que medrosa.

ADÃO
Não me faltes ao respeito, eu não tenho
medo, não sou medroso.

EVA
Eu também não, portanto estamos quites,
Não há mais que discutir.

ADÃO
Sim, mas não te esqueças de que quem
manda aqui sou eu.

EVA
Sim, foi que o Senhor disse. 22

Quando o sol perdeu alguma da força, Eva meteu-se ao


caminho. Estava surpreendida consigo mesma, com a
liberdade com que tinha respondido ao marido, sem temor,
sem ter de escolher as palavras, dizendo simplesmente o
que, na sua opinião, o caso justificava. Era como se
dentro de si habitasse uma outra mulher, com nula
dependência do Senhor ou de um esposo por ele designado.
Uma fêmea que decidira, finalmente, fazer uso total da
língua e da linguagem que o dito Senhor, por assim dizer,
lhe havia metido pela boca abaixo. Atravessou o riacho
gozando da frescura da água, foi colher umas bagas ácidas
que, ainda que não alimentassem, iludiam por algum tempo,
pouco, a necessidade de comer.

O Jardim do Éden já está perto, vêem-se distintamente as


copas das árvores mais altas. Eva caminha mais lentamente
do que antes, e não é porque se sinta cansada. Adão, se
ali estivesse, de certeza se riria dela.
5.

ADÃO
Tão valente, tão valente, afinal vais aí
cheia de medo.

Sim, tinha medo, medo de falhar.

QUERUBIM
Que queres? Tu e teu marido foram
expulsos do Jardim do Éden pelo Senhor e
a sentença não tem apelo, retira-te. Se
continuares a ordem que tenho é matar-te.

EVA
Terás de matar-me, Querubim, não me
deterei. Tenho fome, estamos no meio de
um deserto que não conhecemos e onde não
se vê um caminho, dormimos num buraco,
comemos ervas, como o Senhor prometeu, e
temos diarreias.

QUERUBIM
Diarreias, o que é isso?

EVA
Também se lhes pode chamar caganeiras, o
vocabulário que o Senhor nos ensinou dá
para tudo, ter diarreia, ou caganeira, se
gostares mais desta palavra, significa
que não consegues reter a merda que levas
dentro de ti. Não sabes o que é? Vantagem
de ser anjo.

Eva sorriu. O Querubim gostou de ver aquele sorriso. Eva


tinha vencido a batalha dialética e logo venceu também a
da comida. O Querubim lhe trouxe alguns frutos e pediu
que não o dissesse a ninguém. Depois, pediu a Eva que
voltasse no dia seguinte com Adão, para falar de algumas
coisas que a eles convinha conhecer.

No dia seguinte, Adão acompanhou a mulher ao Jardim do


Éden. Logo ali se viu que o Querubim, chamado Azael, não
era pessoa para perder tempo.

QUERUBIM
Não sois os únicos seres humanos que
existem na terra.

EVA
Se já existiam outros seres humanos, para
que foi então que nos criou o Senhor?

QUERUBIM
O Senhor terá lá suas razões para guardar
silêncio sobre o assunto.
6.

EVA
Não somos um assunto, somos duas pessoas
que não sabem como poderão viver. 27

Explicou então o Querubim que não demasiado afastado dali


passava um caminho frequentado de vez em quando por
caravanas, disse-lhes para arranjar maneira de se
juntarem a elas, que peçam que os contratem só pela
comida, assim seria a oportunidade de aprenderem o que
não sabem.

O plano era excelente, Adão e Eva acenderiam uma fogueira


para atrair a caravana, os seres humanos são curiosos por
natureza, esses iriam querer saber quem ateou aquela
fogueira e com que intenção o fez.

Há querubins no mundo que são uma autêntica providência,


enquanto o Senhor não se preocupou nada com o futuro das
suas criaturas, Azael, o guarda angélico encarregado de
as manter afastadas do Jardim do Éden, acolheu-as
cristãmente, garantiu-lhes a comida e, sobretudo,
habilitou-as para a vida com algumas preciosas ideias
práticas, um verdadeiro caminho de salvação do corpo,
portanto da alma. Eva chegou mesmo a derramar algumas
lágrimas quando se abraçou a Azael em despedida,
demonstração afetiva nada do agrado do marido. 28

ADÃO
Deste-lhe alguma coisa em troca?

EVA
Que coisa e a quem?

ADÃO
A quem havia de ser, a ele, a Azael.

EVA
É um querubim, um anjo.

E Eva mais não achou necessário dizer. Crê-se que foi


neste dia que começou a Guerra dos Sexos.

A caravana tardou três semanas a aparecer. Se apiedaram


daqueles desvalidos e lhes deram lugar nos lombos dos
burros em que vinham montados. Adão apagou a fogueira,
como quem fecha uma porta à despedida. Quando o último
fumo se dissipou na atmosfera, o Querubim disse:

QUERUBIM
Já lá vão, boa viagem. 29
7.

3. O ASSASSINO

A vida não lhes correu mal.

Tirando o fato de serem filhos do Senhor, não se notavam


especiais diferenças fisionômicas entre eles e os seus
providenciais hospedeiros, dir-se-ia até que pertenciam
todos à mesma raça, cabelos pretos, pele morena, olhos
escuros, sobrancelhas acentuadas.

Ao cabo de uns poucos anos, Adão já era considerado pelos


vizinhos como um bom agricultor. Os tempos do Jardim do
Éden e da caverna no deserto foram se espumando na
memória. É certo que nas recordações de Eva havia um
lugar reservado para Azael, o querubim que tinha
infringido as ordens do Senhor para salvar de morte certa
as suas obras, mas esse era um segredo seu, a ninguém
confiado.

Na casa de toscos adobes, encostada a uma colina, já


poderiam nascer os seus três filhos, Caim, Abel e Set.

Quando Abel nascer, todos os vizinhos irão estranhar a


rosada brancura com que veio ao mundo, como se fosse
filho de um anjo, ou de um arcanjo, ou de um querubim,
salvo seja.

O terceiro filho, Set, não entrará na narrativa, por


isso, aqui o deixamos, só um nome e nada mais.

Cedo se viu que as vocações dos irmãos mais velhos não


coincidiam. Enquanto Abel preferia a companhia das
ovelhas e dos cordeiros, as minhas alegrias iam todas
para as enxadas, as forquilhas e as gadanhas, um, fadado
para abrir caminho na pecuária, outro, para singrar na
agricultura. Era voz unânime, entre os vizinhos, que
aquela família tinha futuro.

Desde a mais tenra infância, eu e Abel havíamos sido os


melhores amigos, a um ponto tal que nem irmãos
parecíamos, aonde ia um, o outro ia também, e tudo
fazíamos de comum acordo.

Até que um dia o futuro entendeu que já era hora de se


apresentar.

Abel tinha o seu gado, eu tinha o meu agro, e, como


mandavam a tradição e a obrigação religiosa, oferecemos
ao Senhor as primícias do nosso trabalho, queimando Abel
a delicada carne de um cordeiro e eu os produtos da
terra, umas quantas espigas e sementes. Sucedeu então
algo até hoje inexplicado.
8.

O fumo da carne oferecida por Abel subiu a direito até


desaparecer no espaço infinito, sinal de que o Senhor
aceitava o sacrifício e nele se comprazia, mas o fumo dos
meus vegetais, cultivados com um amor pelo menos igual,
não foi longe, dispersou-se logo ali, a pouca altura do
solo, o que significava que o Senhor o rejeitava sem
qualquer contemplação.

Inquieto, perplexo, eu propus a Abel que trocássemos de


lugar, podia ser que houvesse ali uma corrente de ar que
fosse a causa do distúrbio, e assim fizemos, mas o
resultado foi o mesmo.

Estava claro, o Senhor desdenhava de mim.

Foi então que o verdadeiro caráter de Abel veio ao de


cima. Em lugar de se compadecer do meu desgosto e
consolar-me, escarneceu de mim, e, como se isto ainda
fosse pouco, desatou a enaltecer a sua própria pessoa,
proclamando-se perante mim, como um favorito do Senhor,
como um eleito de Deus. Eu não tive outro remédio que
engolir a afronta e voltar ao trabalho.

A cena repetiu-se, invariável, durante uma semana, sempre


um fumo que subia, sempre um fumo que podia tocar-se com
a mão e logo se desfazia no ar. E sempre a falta de
piedade de Abel, os dichotes de Abel, o desprezo de Abel.

Um dia pedi ao meu irmão que me acompanhasse a um vale


próximo onde era voz corrente que se acoitava uma raposa
e ali, com as minhas próprias mãos, matei Abel a golpes
de uma queixada de jumento que havia escondido antes num
silvado.

Sim, eu matei com aleivosa premeditação.

Foi nesse exato momento, isto é, atrasada em relação aos


acontecimentos, que a voz do Senhor soou, e não só soou
ela como apareceu ele. Tanto tempo sem dar notícias, e
agora aqui estava, vestido como quando expulsou meus pais
do Jardim do Éden. Tinha na cabeça a coroa tripla, a mão
direita empunhava o cetro, um balandrau de rico tecido o
cobre da cabeça aos pés.

SENHOR
Que fizeste com o teu irmão?

CAIM
Era eu o guarda-costas do meu irmão?

SENHOR
Mataste-o.
9.

CAIM
Assim é, mas o primeiro culpado és tu, eu
daria a vida pela vida dele se tu não
tivesses destruído a minha.

SENHOR
Quis pôr-te à prova.

CAIM
E tu quem és para pores à prova o que tu
mesmo criaste?

SENHOR
Sou o dono soberano de todas as coisas!

CAIM
E de todos os seres, dirás, mas não de
mim nem da minha liberdade.

SENHOR
Liberdade para matar.

CAIM
Como tu foste livre para deixar que eu
matasse a Abel quando estava na tua mão
evitá-lo, bastaria que por um momento
fosses realmente misericordioso, que
aceitasses a minha oferenda com
humildade. Tu permitiste que Abel
morresse, eu fui o braço executor, mas a
sentença foi ditada por ti.

SENHOR
O sangue que aí está não o fiz verter eu.
Tu podias ter escolhido entre o mal e o
bem, se escolheste o mal pagará por isso.
E este sangue reclama vingança.

CAIM
Se é assim, vingar-te-ás ao mesmo tempo
de uma morte real e de outra que não
chegou a haver. Matei Abel porque não
podia matar-te a ti. Pela intenção estás
morto.

SENHOR
A morte está vedada aos deuses.

CAIM
Sim, embora devessem carregar com todos
os crimes cometidos em seu nome ou por
sua causa, mas eu, porque matei, poderei
ser morto por qualquer pessoa que me
encontre.
10.

SENHOR
Não será assim, farei um acordo contigo.
Diremos que é um acordo de
responsabilidade partilhada pela morte de
Abel.

CAIM
Reconheces então a tua parte de culpa?

SENHOR
Reconheço, mas não o digas a ninguém,
será um segredo entre Deus e Caim. A
minha porção de culpa não absolve a tua,
terás o teu castigo. Andarás errante e
perdido pelo mundo. Porei um sinal na tua
testa, ninguém te fará mal, mas, em pago
da minha benevolência, procura tu não
fazer mal a ninguém.

E o Senhor tocou com o dedo indicador a minha testa, onde


apareceu uma pequena mancha negra. Disse ele que era o
sinal da minha condenação, mas também o sinal de que
estaria a vida toda sob a sua proteção e sob a sua
censura. Disse que me vigiaria onde quer que eu
estivesse. Aceitei.

Meu castigo começou naquele exato momento. Perguntei se


podia despedir-me dos meus pais. O Senhor disse que não
se metia em assuntos de família, mas que, com certeza,
Adão e Eva iriam querer saber onde estava Abel. Decidi
não me despedir. Não poderia dizer a eles que tinha
matado Abel. Sem mais nada a dizer, parti. O senhor
desapareceu antes que eu tivesse dado meu primeiro passo.
36

A cara de Abel estava coberta de moscas, havia moscas nos


seus olhos abertos, moscas na comissura dos lábios,
moscas nas feridas que tinha sofrido nas mãos quando as
levantara para proteger-se dos golpes. Pobre Abel, a quem
Deus tinha enganado. 37

4. A TEIA

Arrastando os pés de cansaço, avancei por um descampado


sem um arruinado casebre à vista ou outro sinal de vida,
uma solidão desgarradora que o céu raso aumentava ainda
mais pela ameaça de uma chuvada iminente. Logo percebi,
ao caírem as primeiras gotas, que tinha a túnica suja de
sangue. Pensei que talvez a mancha desaparecesse com a
chuva, mas logo percebi que não, melhor seria disfarçá-la
com terra, além disso sempre poderia dizer, se me
perguntassem, que se tratava de sangue de cordeiro.
11.

Mas Abel não era nenhum cordeiro, era o meu irmão, e eu


matei-o. Se o Senhor, que, segundo se diz, tudo sabe e
tudo pode, tivesse feito sumir dali a queixada de burro,
eu não teria matado Abel, e agora podíamos estar os dois
à porta de casa a ver a chuva a cair, e Abel reconheceria
que realmente o Senhor havia feito mal em não aceitar o
único que eu tinha para lhe oferecer, as sementes e as
espigas nascidas do meu afã e do meu suor, e ele ainda
estaria vivo e nós seríamos tão amigos como sempre
tínhamos sido.

Como se saísse do nada, apareceu o que restava de um


casebre. Havia sinais de cultivo da terra na parte de
trás da casa, mas é evidente que os habitantes a tinham
abandonado havia muito tempo. Fiquei ali, provavelmente
nem o próprio Senhor saberia onde eu estava.

Não tive sonhos nem pesadelos, dormi como uma pedra, sem
consciência, sem responsabilidade, sem culpa, porém, ao
acordar, à primeira luz da manhã, minhas palavras foram:
Matei o meu irmão.

Foi então que percebi que afinal havia sonhado, não um


sonho precisamente, mas uma imagem, a minha, regressando
a casa encontrando meu irmão no vão da porta, à minha
espera. Assim o recordarei durante toda a vida como se
tivesse feito as pazes com o meu crime e não houvesse
mais remorso que sofrer.

Saí da barraca e aspirei profundamente o ar frio. Com um


resto de energia que não imaginava possuir ainda,
reiniciei a caminhada.

Ao cabo de não muito tempo, comecei a sentir-me outra vez


cansado. Tinha de encontrar algo de comer, ou então
acabaria prostrado no deserto, em poucos dias reduzido à
ossamenta. Estava, porém, escrito que a minha vida não se
acabaria ali, sobretudo porque não teria valido a pena
que o Senhor tivesse perdido tanto tempo a me amaldiçoar
se era para vir morrer naquele páramo.

O aviso veio de baixo, dos fatigados pés que haviam


tardado a perceber que o chão que pisavam era já outro,
despido de vegetação, sem ervas ou cardos que
embaraçassem o andar. Sem saber como nem quando, eu tinha
achado um caminho. Fazendo das tripas coração, busquei
forças onde já as não havia e acelerei o passo. Ainda
tive de andar muito.

O Velho que finalmente me apareceu pela frente ia a pé e


levava duas ovelhas atadas por um baraço. Eu saudei-o com
as palavras mais cordiais do meu vocabulário, mas o homem
não retribuiu.
12.

VELHO
Que marca é essa que tens na testa?

Apanhado de surpresa, levei a mão à minha própria testa.

CAIM
É um sinal de nascença.

VELHO
Não deves ser boa gente. Como diz o
refrão antigo, “o diabo que te assinalou,
algum defeito te encontrou”.

Procuro trabalho, respondi, tratando de levar a conversa


ao terreno que me convinha, sou agricultor. O Velho
respondeu que já tinham agricultores em quantidade
suficiente, por esse lado não iria conseguir nada.

VELHO (CONT’D)
Deixo-te, não gosto da tua cara nem desse
sinal que tens na testa. Essa tua marca
não é de nascença, não a fizeste a ti
próprio, nada do que disseste aqui é
verdadeiro.
Diz-me, ao menos, como te chamas.

CAIM
Abel é o meu nome. 46

Chamar àquilo uma cidade era um exagero, umas quantas


casas térreas mal alinhadas, umas quantas crianças
brincando, uns adultos que se movem como sonâmbulos. Ao
fundo um edifício em construção, uma espécie de palácio
rústico de dois pisos, em que se afadigavam dezenas de
pedreiros e ajudas.

Disfarcei o melhor que pude a ansiedade e a fome que me


faziam tremer as pernas, e avancei.

Subi ao posto do Olheiro que vigiava o grupo de


operários. Ele perguntou o que eu sabia fazer.

CAIM (CONT’D)
Sou lavrador, mas imagino que mais dois
braços alguma serventia poderão ter.

OLHEIRO
Dois braços, não, uma vez que não sabes
nada do ofício de alvenel, mas dois pés,
talvez, para pisar o barro. Espera aqui,
vou falar com o capataz. Como te chamas?

CAIM
Abel.
13.

O Olheiro não se demorou muito, voltou dizendo que eu já


podia começar a trabalhar. 48

CAIM (CONT’D)
Como se chama a cidade? E o senhor daqui,
é quem?

OLHEIRO
Estes sítios são conhecidos por terra de
Nod, significa terra da fuga ou terra dos
errantes. O senhor é senhora e o seu nome
é Lilith. Tem marido, creio ter ouvido
dizer que se chama Noah, mas ela é quem
governa o rebanho.

Um grupo de homens com a túnica arregaçada com um nó


acima do joelho dava voltas na grossa camada de mistura
de barro, palha e areia, calcando-a com determinação de
modo a tornar a massa tão homogênea quanto fosse possível
na falta de meios mecânicos.

Não era um trabalho que exigisse muita ciência, apenas


boas e sólidas pernas e, podendo ser, um estômago
confortado, o que não era o meu caso, há três dias não
comia.

O Olheiro levou-me a uma espécie de quiosque que havia ao


lado da praça e onde se vendia comida.

OLHEIRO (CONT’D)
Que sinal é esse que tens na testa? Não
parece natural.

CAIM
Se eu fosse coxo em vez de ter este
sinal, suponho que não mo fariam notar
constantemente.

O Olheiro reconheceu que eu tinha razão e disse que não


voltaria a importunar-me. Os alimentos tinham um ar de
bem apaladados e eu comi com gosto.

Regressamos ao palácio, e aí vimos no balcão uma mulher


vestida com tudo o que devia ser o luxo do tempo e essa
mulher, que à distância já parecera belíssima, olhava-nos
como absorta, como se não desse por nós. Era Lilith, a
dona do palácio e da cidade.

OLHEIRO
Oxalá não ponha os olhos em ti, Oxalá.
Diz-se que é bruxa, capaz de endoidecer
um homem com seus feitiços. Basta-me ter
visto por aí dois ou três homens que
tiveram comércio carnal com ela.
(MORE)
14.

OLHEIRO (CONT'D)
Uns infelizes que davam lástima,
espectros, sombras do que haviam sido.

CAIM
Deves estar louco se imaginas um pisador
de barro a dormir com a rainha da cidade.
Ou dona, tanto faz.

OLHEIRO
Vê-se que não conheces as mulheres, são
capazes de tudo, do melhor e do pior se
lhes dá para isso. São muito senhoras de
desprezar uma coroa em troca de irem
lavar ao rio a túnica do amante ou
atropelarem tudo e todos para chegar a
sentar-se no trono. Não conheces mulher,
ainda és novo.

Tínhamos à frente a pisa de barro. O Olheiro tocou o meu


ombro.

OLHEIRO (CONT’D)
Aqui está, podes entrar, só tens de fazer
o que fazem os outros.

Acompanhada por um séquito de guardas, escravos e outros


servidores, Lilith começou a aparecer na pisa do barro.
Ela não falava, a não ser com o Olheiro do local. Pedia
informações sobre o andamento do trabalho e, uma vez ou
outra, sobre a origem dos trabalhadores vindos de fora.

Passados uns dias um enviado do palácio me perguntou se


eu tinha algum ofício. Respondi-lhe que em tempos fora
agricultor e que havia sido obrigado a deixar as minhas
terras por causa das más colheitas.

Ao fim de três dias o enviado voltou com uma ordem para


que o pisador Abel se apresentasse imediatamente no
Palácio. Vestido com a minha velha túnica manchada e
tornada já quase num farrapo, depois de limpar o melhor
que pude as pernas sujas de barro, segui o enviado.

Entramos no palácio por uma pequena porta lateral que


dava para o vestíbulo onde duas mulheres esperavam.
Conduzido por elas a um quarto separado, fui despido e
lavado dos pés a cabeça com água tépida. O contato
insistente e minucioso das mãos das mulheres provocou uma
ereção que não pude reprimir. Elas riram e, em resposta,
redobraram de atenções para com meu órgão ereto. Ejaculei
de repente, em jorros sucessivos que, ajoelhadas como
estavam, as escravas receberam na cara e na boca. Um
súbito relâmpago de lucidez iluminou meu cérebro, para
isto tinham ido buscar-me à pisa do barro.
15.

O aviso prudente do Olheiro dos alvenéis caiu em cesto


roto, eu assentei o pé na armadilha para onde a dona do
palácio me empurrara, suavemente, sem precipitações, como
se estivesse distraída por uma nuvem que passava, a
pensar noutra coisa.

O enviado esperava no vestíbulo. Ele sabia onde estava


levando o pisador de barro Abel, aonde e para quê, mas
não me invejava. 55

A entrada no palácio foi, desta vez, pela porta principal


porque Lilith não faz nada às escondidas. Se ela arranjou
um novo amante, melhor é que se saiba já, que não se arme
todo um jogo de segredinhos e maledicências, toda uma
rede de risotas e murmurações.

Lilith estava sentada num escabelo de madeira trabalhada,


usava um vestido que exibia com mínimo recato um decote
que deixava ver a primeira curva dos seios e adivinhar o
resto.

Ela me lançou um olhar apreciador, pareceu gostar do que


viu.

LILITH
Estarás sempre nesta antecâmara, de dia e
de noite, serás o meu porteiro, impedirás
a entrada de qualquer pessoa, seja quem
for, no meu quarto. Também meu marido não
está autorizado a entrar, mas ele já o
sabe, não tens que lho dizer.

CAIM
E, se mesmo assim quiser alguma vez
forçar a entrada? Não posso enfrentar
pela força quem, sendo senhor da cidade,
é senhor da minha vida. Mais cedo ou mais
tarde as consequências cairão sobre a
minha cabeça.

LILITH
A isso, meu jovem, ninguém escapa neste
mundo, mas, se és covarde, se tem dúvidas
ou medo, o remédio é fácil, voltas para o
barro.

Meu pensamento estava longe a ouvir a voz do Olheiro dos


alvenéis.

OLHEIRO
Tem cuidado, diz-se que é uma bruxa,
capaz de endoidecer um homem com os seus
feitiços.
16.

Ela levantou-se, ajustou as pregas do vestido fazendo


escorregar lentamente as mãos pelo corpo, como se
estivesse a acariciar-se a si mesma, primeiro os seios,
logo o ventre, depois o princípio das coxas, onde se
demorou, e tudo isto o fez olhando-me fixamente, sem
expressão, como uma estátua. 57

Lilith entrou no quarto e fechou a porta, deixando-me ali


prisioneiro, o seu boi de cobrição. Não seria hora de
fugir dali antes que fosse demasiado tarde? A pergunta
era ociosa, eu sabia que não fugiria, dentro daquele
quarto há uma mulher que parece desfrutar lançando-me
sucessivas negaças, mas que um dia destes me dirá: Entra.
E eu entrarei, passando de uma prisão a outra.

Não nasci para isto. Também não nasci para matar meu
próprio irmão, e apesar disso o deixei no meio do campo
com os olhos e a boca cobertos de moscas, a ele, Abel,
que também para isso não nascera.

Esta mulher se compraz em ir adiando o momento da


entrega, não obstante estar enferma de desejo, como é
fácil perceber. O que eu não sabia é que quando
finalmente Lilith abrir as pernas para se deixar
penetrar, não estará a entregar-se, mas sim a tratar de
devorar o homem a quem disse: Entra. 59

5. A ENTREGA

Não dormimos muito na primeira noite, nem na segunda, nem


na terceira, nem em todas as que se seguiram. Lilith era
insaciável e minhas forças pareciam inesgotáveis.
Estávamos, um e outro, no paraíso.

Numa noite, Noah, o senhor da cidade e marido de Lilith,


entrou na antecâmara.

Apesar da porta fechada, a veemência das nossas expansões


eróticas atingiu o pobre homem como sucessivas bofetadas,
e deu lugar ao nascimento súbito de um sentimento que
Noah não havia experimentado antes, um ódio desmedido ao
cavaleiro que montava a égua Lilith e a fazia relinchar
como nunca.

NOAH
Mato-o. Mato-o a ele e mato-a a ela.

Cansado, pálido como se estivesse à beira de extinguir-me


a vida, consequência da falta de sol, do benefício do ar
livre, todo o tempo dividido entre a antecâmara e a
cópula, eu era uma sombra, como previu o Olheiro dos
alvenéis, uma sombra de mim mesmo. Disto Lilith acabou
por dar-se conta.
17.

LILITH
Andas com má cara. A partir de agora
darás um passeio todos os dias, levas um
escravo para que ninguém te importune,
quero ver-te com a cara que tinhas quando
te vi na pisa do barro.

O escravo acompanhante foi escolhido pela própria Lilith.


O que ela não sabia é que se tratava de um agente duplo,
que recebia ordens de Noah.

Nas primeiras saídas o passeio não foi perturbado por


qualquer incidente, o escravo sempre um passo atrás de
mim, sempre atento ao que eu dizia, sugerindo o melhor
percurso fora dos muros da cidade. Não havia motivo para
preocupações. Até que um dia três homens saltaram ao
caminho e eu logo percebi que o escravo traidor fazia
quadrilha. Todos vinham armados, de espada aquele que
parecia ser o chefe, de punhais os outros. O homem
desembainhou a espada e apontou para o meu peito.

CAIM
Não poderás matar-me, a marca que levo na
testa não to permitirá. Quem a fez foi o
Senhor Deus.

O homem deu uma gargalhada e avançou de espada em riste.


No mesmo instante a arma transformou-se numa cobra que
ele sacudiu da mão horrorizado. Os seus companheiros
fugiram, o traidor que vinha comigo também. Baixei-me e
tomei a arma pelo punho. O homem se pôs de joelhos a
implorar perdão.

CAIM (CONT’D)
Tens família? Tens filhos, mulher, pai e
mãe vivos, outros parentes? A espada que
tinhas na mão já os condenou, palavra do
Senhor. Vai-te, terás em casa o pago da
tua vileza.

O homem afastou-se de cabeça baixa e chorando, e eu


voltei a cidade. 64

LILITH
Durou pouco o teu passeio.

CAIM
Tentaram matar-me. O escravo que mandaste
comigo e uns bandidos contratados. Mas a
mim não se pode matar.

LILITH
Serás tu a única pessoa a crê-lo neste
mundo.
18.

CAIM
Não me chamo Abel, o meu nome é Caim.

LILITH
Ninguém é uma só pessoa, tu, Caim, és
também Abel. Eu sou todas as mulheres,
todos os nomes delas são meus.

CAIM
Abel era o nome do meu irmão, a quem
matei porque o Senhor me havia preterido
em favor dele. Tomei o seu nome para
ocultar a minha identidade.

LILITH
Aqui não nos importaria nada que fosses
Caim ou Abel, a noticia do teu crime
nunca cá chegou. Conta-me o que se
passou.

Abri então a boca dos segredos e relatei o dramático


sucesso com todos os pormenores, não esquecendo as moscas
nos olhos e na boca de Abel, também as palavras ditas
pelo Senhor, o enigmático compromisso por ele assumido de
me proteger de uma morte violenta.

CAIM
Vês em mim um criminoso a quem nunca se
poderá perdoar?

LILITH
Não, vejo em ti um homem a quem o senhor
ofendeu, e agora que já sei como
realmente te chamas, vamos para a cama,
foste o Abel que conheci entre os meus
lençóis, agora és o Caim que me falta
conhecer.

Quando o desvario das repetidas e variadas penetrações


deu lugar à lassidão, ao abandono total dos corpos,
Lilith disse:

LILITH (CONT’D)
Foi Noah.

Estava deitada de costas, com os olhos muito abertos


fitando o teto. De repente teve a ideia: matar Noah. Nós
ficaríamos livres dele, casaríamos e eu seria o novo
senhor da cidade. Quem o mataria? Eu. Recusei, já tinha a
minha parte de assassínios.
19.

CAIM
E por que não o matas tu? Homens que
matam mulheres é coisa de todos os dias,
matando-o tu talvez inaugurasses uma nova
época.

LILITH
Creio que, apesar de tudo, não seria
capaz. Outras que o façam. Eu sou Lilith,
a louca, a desvairada, mas os meus erros
e os meus crimes por aí se ficam.

CAIM
Então deixemo-lo viver.

Eu a abracei, entrei nela suavemente, sem violência, com


uma doçura inesperada que quase a levou às lágrimas.

Duas semanas depois Lilith anunciou que estava grávida.

Decorridos alguns dias cheguei à conclusão de que, agora


que Lilith estava à espera de um filho, meu tempo
terminara. Quando a criança viesse ao mundo seria para
toda a gente o filho de Noah. Como informar Lilith de que
era meu desejo partir? Confiei que a condenação ditada
pelo Senhor, Andarás errante e perdido pelo mundo,
pudesse convencê-la a aceitar a decisão de ir-me. Afinal,
foi menos difícil do que eu esperava.

Pedi a Lilith um jumento e ela deu ordens para que me


fosse entregue o melhor, o mais dócil, o mais robusto que
houvesse nas estrebarias do palácio.

Nessa noite, dormimos juntos pela última vez. Lilith


chorou, abracei-me a ela e chorei também, mas as lágrimas
não duraram muito, daí a nada a paixão erótica tomou
conta de nós, como se o mundo não fosse mais do que isto,
dois amantes que um ao outro interminavelmente se
devoravam.

LILITH
Mata-me.

Mas eu não a matei. Beijei-a longamente nos lábios,


depois levantei-me, olhei-a uma vez mais e fui acabar a
noite na cama do porteiro.

6. O FUTURO PRESENTE

Toquei o jumento com os calcanhares e atravessei a praça.


Depois de virar a próxima esquina deixaria de ver o
palácio. Em pouco tempo encontrei-me em campo aberto. A
paisagem era seca, árida, sem um fio d’água à vista.
20.

Ao menos, desta vez não me faltará comida, os alforges


vêm cheios até à boca.

Não queria pensar em Lilith.

O caminho subia e subia, em todo o redor da paisagem não


se vê nem ao menos uma sombra aonde acudir. O jumento
avançava aos ziguezagues, ora para cá, ora para lá. Uns
quantos passos mais e a subida acabou. E então, ó
surpresa, a paisagem que eu tinha agora diante de mim era
completamente diferente, verde de todos os verdes alguma
vez vistos, uma temperatura suave, nuvens brancas boiando
no céu. Olhei para trás, a mesma aridez de antes, a mesma
secura, ali nada havia mudado. Era como se existisse uma
fronteira, um traço a separar dois países. Ou dois
tempos.

Se o tempo for outro, esta paisagem cuidada e trabalhada


pela mão do homem foi, em épocas passadas, tão estéril e
desolada como a terra de Nod. Então estava no futuro? Ou
seria outro presente, porque a terra é a mesma, sim, mas
os presentes dela vão variando, uns são presentes
passados, outros presentes por vir, é simples.

Toquei o jumento para uma fila de árvores de bom porte


que prometia a melhor das sombras e das sestas. Ali mesmo
comi, sentado no chão, enquanto as recordações dos bons
momentos vividos nos braços de Lilith voltavam a aquecer-
me o sangue. Já as pálpebras começavam a pesar-me quando
uma voz juvenil, de rapaz, me fez sobressaltar.

ISAAC
Pai! Levamos aqui o fogo e a lenha, mas
onde está a vítima para o sacrifício?

ABRAÃO
O Senhor há-de-prover, Isaac, o Senhor há-
de-encontrar a vítima para o sacrifício.

Os dois, pai e filho, começaram a subir a encosta.


Chegando ao alto do morro, o homem velho construiu um
altar e acomodou a lenha por cima dele. Depois atou o
filho e colocou-o no altar, deitado sobre a lenha. Ato
contínuo, o velho empunhou a faca para sacrificar o pobre
rapaz. Já ia cortar-lhe a garganta quando lhe segurei o
braço.

CAIM
Que vai você fazer, velho malvado, matar
o seu próprio filho, queimá-lo?

O homem se debatia quando ordenei que desatasse o rapaz,


ajoelhasse e lhe pedisse perdão.
21.

ABRAÃO
Foi o Senhor que o ordenou, foi o Senhor
que o ordenou. Quem é você?

CAIM
Cale-se, ou quem o mata aqui sou eu! Sou
Caim, sou o anjo que salvou a vida do seu
filho.

Não, não era certo, não sou nenhum anjo, anjo é este que
acabou de pousar com um grande ruído de asas e começou a
declamar como um ator que tivesse ouvido finalmente a sua
deixa.

ANJO
Não levantes a mão contra o menino,
Abraão, não lhe faças nenhum mal, pois já
vejo que és obediente ao Senhor,
disposto, por amor dele, a não poupar nem
sequer Isaac, o teu filho único.

CAIM
Chegas tarde, se Isaac não está morto foi
porque eu o impedi.

O Anjo fez cara de contrição, explicou que não fora sua


culpa, chegara atrasado porque surgiu-lhe um problema
mecânico na asa direita, não sincronizava com a esquerda,
daí sofreu contínuas mudanças de rumo que o
desorientaram. E ninguém o havia explicado bem qual dos
montes era o lugar do sacrifício.

ANJO
Vale mais tarde que nunca.

O Anjo estava enganado, nunca não é o contrário de tarde,


o contrário de tarde é demasiado tarde. O Anjo resmungou,
mas como ainda não tinha terminado a missão de que havia
sido encarregado, despejou o resto do recado.

ANJO (CONT’D)
Eis o que mandou dizer o Senhor.
˜Já que foste capaz de fazer isto e não
poupaste o teu próprio filho, juro pelo
meu bom nome que te hei-de abençoar e hei-
de dar-te uma descendência tão numerosa
como as estrelas do céu ou como as areias
da praia e eles hão-de tomar posse das
cidades aos seus inimigos, e mais,
através dos teus descendentes se hão-de
sentir abençoados todos os povos do
mundo, porque tu obedeceste à minha
ordem”, palavra do Senhor.
22.

CAIM
Não compreendo como irão ser abençoados
todos os povos do mundo só porque Abraão
obedeceu a uma ordem estúpida.

ANJO
A isso chamamos nós no céu obediência
devida.

Coxeando da asa direita, com um mau sabor de boca pelo


fracasso da sua missão, a celestial criatura foi-se
embora.

Convém saber como isto começou para comprovar uma vez


mais que o Senhor não é pessoa em quem se possa confiar.

Há uns três dias tinha ele dito a Abraão para levar o seu
único filho, Isaac, até a região do monte Mória e oferece-
lo em sacrifício. Sim, ouviram bem, o Senhor ordenou a
Abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior
simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando
tem sede, o que significa que era costume seu, e muito
arraigado.

O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que


Abraão tivesse mandado o Senhor à merda, mas não foi
assim. Abraão pôs-se a caminho levando consigo dois
criados e seu filho Isaac ao lugar referido pelo Senhor.
Lá chegando ordenou aos criados que esperassem, ele e
Isaac iriam adorar o Senhor e depois voltariam para junto
deles. Quer dizer, Abraão era um refinado mentiroso,
pronto a enganar qualquer um com sua língua traiçoeira,
pérfida, desleal.

Enquanto ajeitava os alforges no lombo do jumento, eu


imaginava o diálogo entre o frustrado verdugo e a vitima
salva.

ISAAC
Pai, que Senhor é esse que ordena a um
pai que mate o seu próprio filho? Se Deus
tivesse um filho, também o mandaria
matar?

ABRAÃO
O futuro o dirá.

Abri os olhos. Havia adormecido em cima do jumento e


quando despertei estava no meio de uma paisagem
diferente, com algumas árvores raquíticas dispersas e tão
seca como a terra de Nod, porém seca de areia, não de
cardos. Outro presente.
23.

Parecia-me que este devia ser mais antigo que o anterior,


aquele em que havia salvo a vida ao rapazito chamado
Isaac, e isto demonstrava que tanto poderia avançar como
voltar atrás no tempo, e não por vontade própria.

Lá longe, na beirinha do horizonte, distingui uma torre


altíssima com a forma de um cone truncado. Parecia-me
haver gente movendo-se ao redor do edifício. A cautela
mandava que tomasse outro caminho, que deixasse de
aventuras. A curiosidade, porém, teve mais poder que a
cautela.

À medida que me aproximava, o rumor das vozes, primeiro


tênue, ia crescendo e crescendo até se transformar em
perfeita algazarra. Os homens falavam como se estivessem
surdos e gritavam cada vez mais alto, inutilmente porque
falavam línguas diferentes. A minha sorte foi ter dado
logo com um homem que falava hebraico. Ele explicou que
quando vieram do oriente para se assentarem ali falavam
todos a mesma língua. Então, decidiram construir uma
cidade com uma grande torre, essa que ali estava, uma
torre que chegaria ao céu. Para que? Para ficarem
famosos. Aconteceu que o Senhor foi vê-la e não gostou,
disse que depois de terem-se posto a fazer a torre
ninguém mais os poderia impedir de fazer o que quisessem,
por isso confundiu-lhes as línguas e eles deixaram de
entender-se; não haveria mais cidade, a torre não seria
terminada e eles, cada um com sua língua, não poderiam
viver juntos como até agora. O Senhor disse ainda que,
quando eles já lá não estivessem, mandaria um grande
vento para destruir a torre, e o que o Senhor diz o
Senhor faz.

O ciúme é o seu grande defeito, em vez de ficar orgulhoso


dos filhos que tem, prefere dar voz à inveja, está claro
que o Senhor não suporta ver uma pessoa feliz.

O homem tinha agora os olhos gulosos fitos no burro.


Teria sido uma conquista fácil se pedisse o auxílio dos
companheiros, mas o egoísmo pode mais do que a
inteligência. Quando esboçou um movimento para deitar a
mão ao cabresto, o jumento disparou uma parelha de coices
que atirou com o pobre diabo de pantanas. Sem precisar do
estímulo dos calcanhares do cavaleiro arrancou num trote
vivo e logo num galope em tudo inesperados, vista a sua
natureza asinina, desaparecendo no meio de uma nuvem de
pó que nos fez passar a outro presente futuro neste mesmo
lugar, mas limpo dos ousados rivais do Senhor, dispersos
pelo mundo porque já não tinham uma língua comum que os
mantivesse unidos.
24.

Imponente, majestosa, a torre lá estava, na beirinha do


horizonte, ainda que inacabada parecia capaz de desafiar
os séculos e os milênios, mas, de repente, estava e
deixou de estar. Cumpria-se o que o Senhor havia
anunciado, que enviaria um grande vento que não deixaria
pedra sobre pedra nem tijolo sobre tijolo. À distância eu
não conseguia perceber a violência do furacão soprado
pela boca do Senhor nem o estrondo dos muros desabando
uns após outros, por isso a torre parecia desmoronar-se
em silêncio, como um castelo de cartas, até que tudo
acabou numa nuvem de poeira que subia para o céu e não
deixava ver o sol. Muitos anos depois se dirá que caiu
ali um meteorito, um corpo celeste, dos muitos que
vagueiam pelo espaço, mas não é verdade, foi a torre de
Babel, que o orgulho do Senhor não consentiu que
terminássemos.

7. A JUSTIÇA DO SENHOR

Escrito estava nas tábuas do destino que eu haveria de


reencontrar Abraão. Um dia, por ocasião de uma dessas
súbitas mudanças de presente que me faziam viajar no
tempo, ora para a frente ora para trás, encontrei-me
diante de uma tenda, à hora de maior calor. Pareceu-me
entrever um ancião que me recordava vagamente uma pessoa.
Chamei à porta da tenda e então apareceu Abraão. Procuras
alguém, perguntou ele. 89

CAIM
Sim e não, estou só de passagem, pareceu-
me reconhecer-te e não me enganei. Como
está teu filho Isaac? Eu sou Caim.

ABRAÃO
Estás enganado. O único filho que tenho
chama-se Ismael, não Isaac, e Ismael é o
filho que fiz à minha escrava Agar.

O jogo dos presentes alternativos havia manipulado o


tempo uma vez mais, mostrando-me antes o que só viria a
acontecer depois, isto é, o tal Isaac ainda não tinha
nascido.

Abraão mandou que eu entrasse. Fiz descer para os olhos a


fímbria do turbante a fim de esconder a marca à
curiosidade dos presentes.

Três homens conversavam com o dono da casa. Fiz menção de


me retirar com a discrição conveniente, mas Abraão disse-
me para não ir, que todos eram seus hóspedes.
25.

Foi ali que um dos homens disse que voltaria à casa de


Abraão no ano próximo e, na devida altura, Sara, mulher
de Abraão, teria um filho. Eu disse comigo em voz baixa,
“esse será Isaac”, e ninguém pareceu ter ouvido.

Ora, Abraão e Sara eram bastante idosos, e ela já não


estava em idade de ter filhos. Por isso Sara sorriu.

SENHOR
Por que Sara está sorrindo? Pensa que já
não pode ter um filho nesta idade? Será
que para o Senhor isso é uma coisa assim
tão difícil? Pois daqui a um ano,
voltarei a passar por tua casa e, no fim
do tempo devido, Sara terá dado à luz um
filho.

Neste momento todos percebemos que o homem era o próprio


senhor Deus em pessoa.

Àquela altura o Senhor tinha uma preocupação urgente e


importante.

Foi o caso de terem chegado lá acima, ao céu de onde


tinha vindo instantes antes, numerosas queixas pelos
crimes contranatura cometidos nas cidades de Sodoma e
Gomorra ali perto.

Como imparcial juiz que sempre se havia prezado de ser,


embora não faltassem ações suas para demonstrar
precisamente o contrário, tinha vindo cá abaixo para
tirar a questão a limpo. Então Abraão perguntou ao Senhor
se ele iria condenar à morte os inocentes juntamente com
os culpados. Desse modo, aos olhos de toda a gente, ser
inocente ou culpado seria a mesma coisa. O Senhor, que é
juiz do mundo inteiro, deve ser justo nas suas sentenças.
E o Senhor respondeu.

SENHOR (CONT’D)
Se lá encontrar inocentes na cidade de
Sodoma, não a destruirei em atenção a
esses.

Depois, retirou-se.

A mim, parece tão certo como eu me chamar Caim, existam


inocentes ou não Sodoma será destruída. Não somente
Sodoma, será também Gomorra, onde os costumes sexuais se
relaxaram por igual, os homens com os homens e as
mulheres postas de parte.
26.

Não sei onde nasceu essa peregrina idéia de que Deus, só


por ser Deus, deva governar a vida íntima de seus
crentes, estabelecendo regras, proibições, interditos e
outras patranhas do mesmo calibre.

Os dois homens que vieram com o Senhor eram anjos que se


dirigiram à cidade. Se lhes põem as mãos em cima, o
Senhor não ficará nada satisfeito. Eu, se estivesse no
lugar de Abraão, iria ver o que se passava, a ele não
fariam mal. Abraão concordou e ofereceu-me hospitalidade
como um pago do favor de acompanhá-lo.

CAIM
Outros favores esperarei poder fazer-te
no futuro, se estiverem na minha mão.

Mas Abraão não podia adivinhar aonde eu queria chegar com


estas misteriosas palavras.

Já o sol se tinha posto quando chegamos a Sodoma. Então


vimos um grande ajuntamento de homens em frente à casa de
Lot, sobrinho de Abraão. Gritavam “queremos esses que
tens aí, manda-os cá para fora porque queremos dormir com
eles!” Demos a volta à casa e chamamos ao portão das
traseiras. Entramos quando Lot, por trás da porta da
frente, estava a implorar para que não fizessem mal
àqueles homens que procuraram proteção na sua casa.
Continuaram os de fora furiosamente aos gritos, mas de
repente os clamores mudaram de tom e agora o que se ouvia
eram lamentações e choros. 96

Para salvar os seus anjos de serem brutalmente violados,


o Senhor havia cegado a todos os homens de Sodoma sem
exceção, o que prova que, afinal, não havia nenhum
inocente em toda a cidade.

Dentro de casa os mensageiros do Senhor diziam a Lot “Vai-


te deste lugar com todos aqueles que te pertencerem,
filhos, filhas, genros, e tudo o mais que tiveres nesta
cidade porque nós viemos para a destruir. Vão, mas não
olhem para trás”. E, sem aguardar resposta, agarraram-no
pela mão, a ele, à mulher e às duas filhas, e levaram-nos
para fora da cidade.

O Senhor fez então cair enxofre e fogo sobre Sodoma e


sobre Gomorra e a ambas destruiu até aos alicerces, assim
como a toda a região com todos os seus habitantes e toda
a vegetação. Por onde quer que se olhasse só se viam
ruínas, cinzas e corpos carbonizados.

Quanto à mulher de Lot, essa olhou para trás


desobedecendo à ordem recebida e ficou transformada em
estátua de sal.
27.

Até hoje ninguém conseguiu compreender por que foi ela


castigada desta maneira, quando tão natural é querermos
saber o que se passa nas nossas costas.

Um pensamento não me largava. Havia inocentes em Sodoma e


nas outras cidades que foram queimadas. As crianças,
aquelas crianças estavam inocentes. Aquele Deus não era o
Deus delas.

8. A IRA DO SENHOR

Num instante, encontrei-me no deserto do Sinai no meio de


uma multidão de milhares de pessoas acampadas no sopé de
um monte. O nome de um tal Moisés andava na boca de toda
a gente, uns com antiga veneração, com certa impaciência
recente a maioria. E eram estes que perguntavam onde
estaria Moisés, que há 40 dias e 40 noites se foi ao
monte a falar com o Senhor e até aquela hora nem novas
nem mandadas. O Senhor os tinha abandonado, não queria
mais saber do seu povo.

O caminho do engano nasce estreito, mas sempre encontrará


quem esteja disposto a alarga-lo.

Com a gente que aguardava o regresso de Moisés estava um


irmão dele chamado Aarão. Foi a ele que os impacientes se
dirigiram e pediram que fizesse uns deuses que os
guiassem. Pelos vistos, Aarão que, além de não ser um
modelo de firmeza de carácter, era bastante assustadiço,
em lugar de se negar redondamente criou em ouro um
bezerro, objeto das futuras adorações. E anunciou uma
festa em honra do Senhor.

Na manhã seguinte correu a voz de que Moisés estava


finalmente a descer do monte Sinai. Mal sabia ele o que o
esperava. Ao entrar no acampamento deu logo de caras com
o bezerro de ouro e gente a dançar ao redor dele. Deitou
mão ao bezerro, partiu-o, reduziu-o a pó. Então, Moisés
postou-se à entrada do acampamento e gritou.

MOISÉS
Quem é pelo Senhor, junte-se a mim!

Todos os da tribo de Levi se juntaram a ele.

MOISÉS (CONT’D)
Eis o que diz o Senhor, Deus de Israel,
pegue cada um numa espada, regressem ao
acampamento e vão de porta em porta,
matando cada um de vocês o irmão, o
amigo, o vizinho.
28.

E foi assim que morreram três mil homens. O sangue corria


entre as tendas como uma inundação que brotasse do
interior da própria terra, os corpos degolados,
esventrados, rachados de meio a meio, jaziam por toda a
parte, o grito das mulheres e das crianças eram tais que
deviam chegar ao cimo do monte Sinai onde o Senhor se
estaria regozijando com a sua vingança.

Eu mal podia acreditar no que meus olhos viam. Não


bastavam Sodoma e Gomorra arrasadas pelo fogo, ali, no
sopé do monte Sinai, ficara patente a prova irrefutável
da profunda maldade do Senhor, três mil homens mortos
porque ele tinha ficado irritado com a invenção de um
suposto rival em figura de bezerro. Eu não fiz mais que
matar um irmão e o Senhor castigou-me, quero ver agora
quem vai castigar o Senhor por estas mortes. Lúcifer
sabia bem o que fazia quando se rebelou contra Deus, há
quem diga que o fez por inveja e não é certo, o que ele
conhecia era a maligna natureza do sujeito.

Montei o jumento e fui-me embora. Havia uma nuvem escura


no alto do monte Sinai. Ali estava o Senhor. 101

Antigamente o Senhor aparecia à gente em pessoa, por


assim dizer em carne e osso, via-se que sentia mesmo
certa satisfação em exibir-se ao mundo. Agora, o Senhor
esconde-se em colunas de fumo, como se não quisesse que o
vissem. Andará envergonhado por algumas tristes figuras
que tem feito, como foi o caso das inocentes crianças de
Sodoma que o fogo divino calcinou.

9 CORTE JERICÓ

10. CORTE LILITH 2

11. A APOSTA

Vi-me metido no que, sem exagero, poderia chamar uma


tempestade, um ciclone do calendário, um furacão do
tempo. Sucessivas mudanças de presente, surgindo do nada
e precipitando-se no nada em forma de imagens soltas,
desconexas, sem continuidade nem relação entre elas.

De súbito, me vi a entrar pela porta de uma cidade onde


nunca havia estado. Perguntei a dois homens que passavam
que nome era o da cidade, e onde poderia arranjar
trabalho. Um deles respondeu que ali chamava-se Terra de
Us. 132

Depois de um silêncio, um dos homens disse que já me


conhecia e sabia meu nome, Caim.
29.

Eram os dois anjos do Senhor e acudiam-me porque fui bom


com Abraão e ajudei-os para que nada sucedesse de mau a
eles na casa de Lot, o que merecia uma recompensa.

Já que o encargo em Sodoma era destruir a cidade,


respirei fundo três vezes antes de ganhar coragem para
perguntar qual a missão que os trazia ali agora. Tive que
jurar não dizer a ninguém o que iria ouvir. Levantei a
mão direita.

CAIM
Juro.

Os Anjos contaram que há dias reuniram-se todos os seres


celestes perante o Senhor e presente estava também Satã,
que vinha de umas voltas pela Terra. O Senhor quis saber
se ele havia reparado em seu servo Job, um homem bom e
honesto, muito religioso, não havendo outro como ele no
mundo. Satã ouviu com um sorriso torcido, desdenhoso e
disse ao Senhor: achas que os sentimentos religiosos de
Job são desinteressados, mas experimenta tu levantar a
mão contra aquilo que é seu e verás se ele não te
amaldiçoa.

O Senhor então colocou tudo que pertence a Job à


disposição de Satã, mas nele não poderia tocar. Os dois
Anjos ali estavam para garantir que Satã não se
excedesse, para que não fosse além dos limites que o
Senhor lhe marcou.

CAIM (CONT’D)
Se bem entendi, o Senhor e Satã fizeram
uma aposta. A mim não me parece muito
limpo da parte do Senhor. Job não cometeu
nenhum crime, mas vai ser castigado sem
motivo com a perda de seus bens. Se o
Senhor não se fia nas pessoas que crêem
nele, então não vejo por que essas
pessoas tenham de fiar-se do Senhor. Deus
deveria ser transparente e límpido como
cristal em lugar desta contínua
assombração, deste constante medo. Enfim,
Deus não nos ama.

O Anjo aconselhou-me a ter cuidado, o Senhor estava a


ouvir-me, tarde ou cedo me castigaria.

CAIM (CONT’D)
O Senhor não ouve, o Senhor é surdo. Por
toda parte se lhe levantam súplicas, são
pobres, infelizes, desgraçados, todos a
implorar o remédio que o mundo lhes
negou, e o Senhor vira-lhes as costas.
(MORE)
30.

CAIM (CONT’D)
Começou por fazer uma aliança com os
hebreus e agora faz um pacto com o Diabo.
Para isto não valia a pena haver Deus.

Foi pior que tudo o que se poderia esperar. Munido da


carta de plenos poderes que lhe havia sido concedida,
Satã atacou ao mesmo tempo em todas as frentes. 137

Sabeus e Caldeus roubaram os bois, jumentos e camelos de


Job e passaram seus criados a fio de espada. O fogo de
Deus caiu do céu e queimou e reduziu a cinzas as ovelhas
e os criados. Um furacão fez desabar a casa onde seus
filhos e filhas estavam a comer e beber e os matou a
todos.

Então Job levantou-se, rasgou o manto e rapou a cabeça


prostrando-se por terra, mas não amaldiçoou o Senhor. O
Senhor deu o Senhor tirou. Bendito seja o nome do Senhor.

Causou-me estranheza o fato de Satã poder dispor a seu


bel-prazer dos Sabeus e dos Caldeus para serviço dos seus
interesses particulares. Expresso uma estranheza ainda
maior por Satã haver sido autorizado a servir-se de um
fenômeno natural, como foi o caso do furacão, e, pior
ainda, e isso, sim, inexplicável, por utilizar o próprio
fogo de Deus para queimar as ovelhas e os escravos que as
guardavam. Portanto, ou Satã pode muito mais do que
pensávamos, ou estamos perante uma gravíssima situação de
cumplicidade tácita, pelo menos tácita, entre o lado
maligno e o lado benigno do mundo.

O desastre desta infeliz família não irá ficar por aqui.

Poucos dias depois desses infaustos acontecimentos,


realizou-se no céu nova assembleia e Satã, mais uma vez,
desafiou Deus: um homem é capaz de dar tudo o que tem e
até a sua própria pele para poder salvar a vida, mas
experimenta levantar a tua mão contra ele, faz com que
sofra a doença nos seus ossos e no seu corpo e verás se
ele não te amaldiçoa cara a cara. O Senhor então colocou
Job à disposição de Satã com a condição de lhe poupar a
vida.

Era o que bastava a Satã. Em menos tempo do que leva a


dizer amém, o corpo de Job foi coberto de horríveis
chagas desde a planta dos pés ao alto da cabeça, mas Job
não amaldiçoou o Senhor.

A essa altura eu tinha conseguido um trabalho, pouca


coisa, a cuidar dos burros de um pequeno proprietário. Os
Anjos andavam por ali a recolher informações da desgraça
de Job para as levar ao Senhor, que deveria estar feliz,
apesar de tudo que sofreu, Job não o renegou.
31.

ANJO
Todos sabíamos que não o faria. O Senhor
primeiro que todos.

CAIM
Isso quer dizer que ele apostou porque
tinha a certeza de que ia ganhar? Se é
assim expliquem-me por que está Job
leproso, coberto de chagas purulentas,
sem filhos, arruinado? E que fará o
Senhor a Satã, que tão mau uso, pelos
vistos, parece ter feito da autorização
que lhe foi dada?

ANJO
Nada. No céu as coisas sempre foram
assim. O erro é crer que a culpa terá de
ser entendida da mesma maneira por Deus e
pelos homens. 158

A conversa ficou por ali, os Anjos foram-se embora e eu


comecei a pensar que teria de encontrar um caminho mais
digno para minha vida. Não iria ficar o resto do tempo a
cuidar de burros. Poderia regressar às terras de Nod e
ocupar o meu lugar no palácio e na cama de Lilith... ou
poderia ir ver como estavam os meus pais, se ainda
estavam vivos, se estavam bem. Usaria um disfarce para
que não me reconhecessem, mas essa alegria ninguém me
roubaria. Alegria? Para mim nunca haverá alegria. Caim é
o que matou o irmão. Caim é o que nasceu para ver o
inenarrável. Caim é o que odeia Deus.

Precisava de um burro. Ocorreu-me a ideia de comprar um


dos burros a meu cuidado, recebendo em dinheiro contado
só a metade do soldo e deixando a outra metade nas mãos
do proprietário como pagamento por conta. Investido da
posse do meu jumento, eu podia partir quando quisesse.
144

12. O FIM

Não tive de andar muito para deixar o triste presente da


terras de Us e me ver rodeado de verdejantes montanhas.
Rodeei um penhasco e encontrei-me à entrada de um vale
onde se estendia uma construção de madeira que se
assemelhava muito a um barco ou, para ser mais exato, a
uma grande arca. Curioso, encaminhei o jumento em direção
ao estaleiro, ali saudei os presentes e tentei meter
conversa perguntando o que estavam a construir.
32.

As oito pessoas que trabalhavam na obra, quatro homens e


quatro mulheres, não estavam dispostas a confraternizar e
não faziam nada para disfarçar o muro de hostilidade com
que se defendiam de meus avanços. O homem mais velho do
grupo mandou que eu continuasse o meu caminho e o tom que
usou era levemente ameaçador.

Naquele exato momento, em meio de um trovão ensurdecedor


e dos correspondentes relâmpagos pirotécnicos, o Senhor
manifestou-se. A família e o próprio patriarca prostraram-
se ato contínuo no chão. O Senhor olhou, surpreso, para
mim.

SENHOR
O que fazes por aqui? Nunca mais te vi
desde o dia em que matas-te o teu irmão.

CAIM
Enganas-te, Senhor, vimo-nos, embora não
me tenhas reconhecido, em casa de Abraão,
quando ias destruir Sodoma...

Noé e a família já se tinham levantado do chão e


assistiam com assombro ao diálogo entre entre mim e o
Senhor.

SENHOR
Não me disseste que vieste aqui fazer.

CAIM
Não vim, encontrei-me cá.

SENHOR
Da mesma maneira que te encontraste em
Sodoma ou nas terras de Us.

CAIM
E também no Monte Sinai, e na torre de
Babel, e nas terras de Nod, e no
sacrifício de Isaac. Pergunto-me até se
estas constantes mudanças que me tem
levado de um presente a outro, ora no
presente, ora no futuro, não serão também
obra tua.

SENHOR
Nada tenho que ver com isso, para mim o
tempo não existe.

CAIM
Pensei que o funcionamento da máquina do
mundo dependesse apenas da tua vontade.
33.

Senhor
Por isso é que há tanto descontentamento.
Gente que me virou as costas, alguns que
vão ao ponto de negar a minha existência.
A vida de um deus não é tão fácil quanto
vocês crêem, um deus não é senhor daquele
contínuo quero, posso e mando que se
imagina, nem sempre se pode ir direito
aos fins, há que rodear. É verdade que
pus um sinal na tua testa, mas não tenho
poder suficiente para o impedir de ir
aonde a sua vontade o leve e fazer o que
entender.

O Senhor então virou-se para o patriarca e ordenou que me


levasse na arca, assim teria mais um homem para fazer
filhos às noras. Eu decidi intervir, para saber do que
estavam a falar. O Senhor respondeu como se repetisse um
discurso já feito antes e decorado.

SENHOR (CONT’D)
A Terra está completamente corrompida e
cheia de violências, só encontro nela
corrupção. A maldade dos homens é grande,
todos os seus pensamentos e desejos
pendem sempre e unicamente para o mal,
arrependo-me de ter criado o homem pois
que por causa dele o meu coração tem
sofrido amargamente.
Vou extermina-los.

Lançaria sobre a Terra um dilúvio de água que, ao inundar


tudo, eliminaria debaixo do céu todos os seres vivos que
existem no mundo. Com Noé havia feito um pacto de
aliança; ele entraria na arca com os filhos, a mulher e
as mulheres dos filhos, e, de todas as espécies de seres
vivos, levaria para a arca dois exemplares, macho e
fêmea. Este foi o discurso do Senhor.

O pacto de aliança que alguns afirmam existir entre Deus


e os homens não contém mais do que dois artigos, a saber,
tu serves-nos a nós, vocês servem a mim.

Era certo que com aquelas dimensões e a carga que iria


levar dentro, a arca não poderia flutuar. O resultado
seria afogarem-se todos. Os cálculos do Senhor estavam
errados, um barco deve ser construído junto à água, não
num vale rodeado de montanhas, a uma distância enorme do
mar. Noé concordou comigo.

Enrugando a testa para pensar melhor, o Senhor acabou por


chegar à mesma conclusão, tanto trabalho para inventar um
vale que nunca existira antes, e afinal para nada.
34.

Decidiu que quando a arca estivesse pronta mandaria os


anjos operários para a levarem pelos ares para a costa do
mar mais próxima. Noé achou que seria muito peso, os
anjos não poderiam.

SENHOR (CONT’D)
Não sabes a força que tem os anjos, com
um só dedo levantariam uma montanha. O
que me vale é serem tão disciplinados,
não fosse isso e já teriam organizado um
complô para me deporem.

CAIM
Como Satã?

SENHOR
Como Satã, mas a este já lhe encontrei a
maneira de o trazer contente, de vez em
quando deixo-lhe uma vítima nas mãos para
que se entretenha, e isso lhe basta.

Tal como havia feito a Job, que não ousou amaldiçoa-lo,


mas que leva no coração toda a amargura do mundo.

SENHOR (CONT’D)
O teu sinal na testa está maior, parece
um sol negro a levantar-se do horizonte
dos olhos.

CAIM
Bravo, não sabia que fosses dado à
poesia.

SENHOR
É o que eu digo, não sabes nada de mim.

Com esta magoada declaração Deus afastou-se e, mais


discretamente que a chegada, sumiu-se noutra dimensão.

Picado por um debate em que não tinha feito a melhor das


figuras, o Senhor resolveu mudar de planos. Decidiu,
portanto, mobilizar a sua legião de anjos operários,
mandou-os ajudar a exausta família de Noé que, como se
pôde observar, já andava mais morta que viva.

A dois deles, com quem eu havia estabelecido laços que no


plano humano seriam facilmente classificados como de
camaradagem e amizade, perguntei se realmente pensavam
que, exterminada esta humanidade, aquela que lhe suceder
não virá a cair nos mesmos erros. Eles responderam que
com franqueza, não viam como iria resultar satisfatória a
segunda experiência quando a primeira acabou no estendal
de misérias que tinham diante dos olhos. É
35.

que na sincera opinião de anjos, para resumir, e


considerando as provas dadas, os seres humanos não
mereciam a vida.

13. O EXTERMÍNIO

Deus não veio ao bota-fora. Estava ocupado com a revisão


do sistema hidráulico do planeta. A festa, para os
outros, para ele, o labor.

Levantada pelos anjos operários, num instante a arca


estava no chão, no instante seguinte, sulcava os ares em
direção ao mar, onde finalmente pousou com fundo
suficiente dando origem a uma vaga enorme, um autêntico
tsunami, como um aviso do que haveria de vir.

A arca é bom lembrar, não tem leme nem vela, não trabalha
a motor, não se lhe pode dar corda e levá-la a remos
seria literalmente impensável. Vagará portanto ao sabor
das correntes.

Passados sete dias, número cabalístico por excelência,


abriram-se finalmente as comportas do céu. A chuva caiu
sobre a Terra, sem parar, durante quarenta dias e
quarenta noites. Uma furiosa convulsão aquática que tudo
queria engolir.

Num desses dias de tempestade desabalada, com a arca a


ser sacudida pela tormenta e os animais a atropelarem-se
uns aos outros, a mulher de Cam, escorregou no chão
imundo de excrementos de milhares de animais e foi acabar
sob as patas de um elefante. Lançaram-na ao mar tal como
se encontrava, ensanguentada, suja de excrementos, um
mísero despojo humano sem honra nem dignidade. Por que
não a limparam antes, perguntei. E Noé respondeu: Vai ter
muita água para se lavar.

A partir deste momento eu irei odiá-lo de morte.

Cam foi o segundo a desaparecer.

Tinha subido à cobertura da arca para ajustar umas tábuas


que rangiam com o balanço e o impediam de dormir, quando
caiu no mar, uma queda de 15 metros.

Jafet não sabia, o pobre, que seu fim estava perto. Uma
rasteira o precipitará no vácuo sem colete salva-vidas,
esbracejando nas agonias de um inútil desespero, aos
gritos, enquanto a arca se vai distanciando
majestosamente ao encontro do seu destino.
36.

A perda de mais um tripulante afligiu Noé a um extremo


indescritível, a desejada concretização do plano do
Senhor encontrava-se em grave risco. Resolveu ter comigo
uma conversa de homem para homem. Disse-me que a partir
daquele dia seria quando eu quisesse e como quisesse. E
com quem quisesse, incluindo a sua mulher.

Se trata de uma boa obra, uma obra pia, uma obra do


Senhor. Assim farei, e que se cumpra a vontade do Senhor.

Não faltará quem pense que eu me divertia com a situação,


jogando ao gato e ao rato com os meus inocentes
companheiros de navegação, aos quais, como já devem ter
suspeitado, eu vinha a eliminar um a um. Equivocar-se-á
quem assim creia. Eu me debatia com a minha raiva contra
o Senhor como se estivesse preso nos tentáculos de um
polvo, e essas minhas vítimas de agora não são mais, como
já Abel o tinha sido no passado, que outras tantas
tentativas para matar Deus.

A próxima vítima será justamente a mulher de Noé, que,


sem o merecer, vai pagar com a vida as horas de gozo
passadas nos braços do seu futuro assassino com a benção
e a conivência do próprio marido, a tal ponto havia
chegado a deliquescência dos costumes desta humanidade a
cujos últimos dias vimos assistindo.

Das oito pessoas que compunham a família de Noé só


restavam agora, além do próprio patriarca, seu filho Sem
e a mulher e a viúva de Jafet. Noé, com seu indefectível
otimismo e a sua inabalável confiança no Senhor pensou
que duas mulheres ainda davam para muito.

Havia muito tempo que deixara de chover. O nível do


imenso mar que cobria a terra continuava a descer, a
grande viagem aproximava-se do fim, era tempo de começar
a preparar a conclusão, o desembarque ou o que tiver de
suceder.

Sem e a mulher caíram ao mar no mesmo dia em


circunstâncias que ficaram por explicar, o mesmo tendo
acontecido à viúva de Jafet, que ainda na véspera tinha
dormido na minha cama. E agora, clamava Noé arrepelando o
cabelo no mais absoluto desespero, tudo estava perdido,
sem mulheres que fecundem não haveria vida nem
humanidade, melhor teria sido contentar-se com a que
tinham, que já a conheciam, e insistia, perdido de
desgosto. Com que cara iria comparecer diante do Senhor
com aquele barco cheio de animais?

CAIM
Deita-te daqui abaixo, nenhum anjo virá
colher-te nos seus braços.
37.

Algo soou na minha voz que o fez acordar para a


realidade. Admiti que tinha sido eu.

CAIM (CONT’D)
Sim fui eu, mas em ti não te tocarei,
morrerás pelas tuas próprias mãos. Vai
tranquilo, de Deus encarrego-me eu.

Noé deu a meia dúzia de passos que o separavam da borda


e, sem uma palavra, deixou-se cair.

No dia seguinte a barca tocou terra. Então ouviu-se a voz


de Deus.

SENHOR
Noé, sai da Arca com a tua mulher e os
teus filhos e as mulheres dos teus
filhos, retira também da Arca os animais
de toda a espécie que estão contigo, a
fim de que se espalhem pelo mundo e por
toda parte se multipliquem.

Houve um silêncio. Depois a porta da Arca abriu-se


lentamente e os animais começaram a sair. Saíam, saíam, e
não acabavam de sair, uns grandes, como o elefante e o
hipopótamo, outros, pequenos, como a lagartixa e o
gafanhoto, outros de tamanho médio, como a cabra e a
ovelha. Quando as tartarugas, que tinham sido as últimas,
se afastaram, lentas e compenetradas como lhes está na
natureza, vindo do escuro interior da Arca, apareci no
limiar da grande porta.

SENHOR (CONT’D)
Onde estão Noé e os seus?

CAIM
Mortos. Menos Noé, que se afogou por sua
livre vontade, aos outros matei-os eu.

SENHOR
Como te atreveste, assassino, a
contrariar o meu projeto? É assim que me
agradeces ter-te poupado a vida quando
mataste Abel?

CAIM
Teria de chegar o dia em que alguém te
colocaria perante a tua verdadeira face.
Houve uma humanidade, não haverá outra e
ninguém dará pela falta.

SENHOR
Caim és, e malvado, infame matador do teu
próprio irmão.
38.

CAIM
Não tão malvado e infame como tu, lembra-
te das crianças de Sodoma.
(longo silêncio)
Agora já podes matar-me.

SENHOR
Não posso, palavra de Deus não volta
atrás, morrerás da tua natural morte na
terra abandonada e as aves de rapina
virão devorar-te a carne.

CAIM
Sim, depois de tu primeiro me haveres
devorado o espírito.

Argumentamos um contra o outro uma vez e muitas.


Continuamos a discutir e a discutir estamos ainda.

A história dos homens é a história dos seus


desentendimentos com Deus, nem ele nos entende a nós, nem
nós o entendemos a ele. 88

Não há nada mais que contar.

FIM.

Estamos nas mãos de Deus, ou do destino, que é o seu


outro nome. 130

Potrebbero piacerti anche