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FORTES, Celeste. 2013. “Estudo para não ter a mesma vida da minha mãe”. Relações de Género e de
Poder: narrativas e práticas de “mulheres cabo-verdianas”, em Portugal e Cabo Verde. Tese de
Doutoramento, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
2
VARELA, Odair. 2009. O repto da ‘diversidade de conhecimento’ em Cabo Verde: do colinial/moderno
ao moderno/pós-colonial», e-cadernos CES, CES; FEUC.
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Por exemplo, Violência Baseada no Género, Migração Feminina, Dinâmicas familiares a partir do lugar
das mulheres na vida das famílias, Pobreza Feminina, mundo rural e as mulheres, participação política
das mulheres, entre outros.
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A eleição da(s) mulher(es) cabo-verdiana(s) como alvo de investigação remete-
nos, para lá deste equivoco primário, para a necessidade de problematização sobre
uma segunda questão. Embora não se deva perder de vista que estamos a falar de
uma agenda jovem e correndo o risco de estas provocações serem entendidas como
um acto de investida contra algo que ainda não reuniu todas as condições para se
consolidar, a minha experiência de pesquisa leva-me a considerar que é tempo de
aceitarmos a hipótese de que a eleição das mulheres provoca o epistemicídio do
outro4. E podemos – em razão de não haver espaço para uma listagem ampla de
outros Outros – tomar o homem cabo-verdiano como a vítima, principal, deste
epistemícidio.
Este Outro ocupa um lugar ambíguo na maioria das pesquisas sobre as
dinâmicas de género em Cabo Verde. Muitas vezes presente-ausente das pesquisas,
porque quando aparece é um personagem evocado a partir de vozes femininas. Daí
podermos observar que há a partir desta Outridade opositiva5, dos homens, uma dupla
visão singularizante sobre as dinâmicas de género em Cabo Verde.
A de que as relações de género são configuradas a partir da guerra de sexo
entre homens e mulheres. Isto é, ainda mantem-se a valorização da perspectiva
binária das relações de género, que interliga, sem problematizar, o processo de
construção das pertenças de género a partir da ideia de que as mulheres constroem a
sua identidade em permanente conflito com os homens.
A outra singularização, que também tido sido alvo de críticas, nas minhas
pesquisas, tem a ver com o facto de que esta perspectiva binária cria dois grupos
essencializados e homogeneizados, sempre em oposição. O grupo das mulheres,
definidas identitariamente, sobretudo pelo feminismo vitimário6, a partir da condição
de vítimas de um quadro sociocultural machista e androcêntrica que as aprisiona. E os
homens tidos como machistas, poligâmicos, infiéis e ausentes nas suas
responsabilidades paternais, por exemplo.
4
CUNHA, Teresa. 2014. Never Trust Sindarela. Feminismos, Pós-colonialismo, Moçambique e Timor-
Leste. Coimbra: Edições Almedina. A ideia de epistemícidio tem a ver, no geral, com o facto de se
provocar a invisibilidade e o silenciamento de outras vozes, numa espécie de homicídio simbólico,
deixando de estar presente, durante uma pesquisa que dá primazia apenas a uma voz.
5
Um Outro sempre visto na sua condição de oposição.
6
LIPOVETSKY, Gilles. 1997. A Terceira Mulher. Permanência e Revolução no Feminino. Lisboa: Instituto
Piaget.
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Etnografia para a pluralização de vozes: contributos contra-hegemónicos.
Isto quer dizer que esta perspectiva categorizante considera todas as mulheres,
como fazendo parte de uma mesma unidade, que tem na dominação o denominador
comum e irmãs da mesma luta. Para estas investigadoras – posição que partilho para o
caso da agenda de pesquisa em Cabo Verde – esta é uma estratégia falaciosa.
7
Ver, por exemplo: MOHANTY, C., 2008, “Bajo los ojos de Occidente: academia feminista y
discursoscoloniales”, en Suárez Navaz, L. e Castillo, R. (eds.) Descolonizando el feminismo:Teorías y
prácticas desde los márgenes. Madrid, Cátedra, pp. 117-163. BIDASECA, K., 2010, Perturbando el texto
colonial. Los Estudios (Pos) coloniales en América Latina. Buenos Aires: Editorial SB.
8
STRATHERN, Marilyn., 2006 [1988]. O Género da Dádiva: problemas com as mulheres e problemas com
a sociedade na Melanésia. Campinas: Editora UNICAMP. A minha pesquisa com mulheres cabo-
verdianas, em Cabo Verde e Portugal, privilegia a relação intra-sexual, entre mulheres mães e mulheres
filhas, que reciprocamente contribuem para trajectórias diferenciadas de fazerem-se enquanto
mulheres cabo-verdianas.
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Adoptar esta possibilidade - que não excluir a existência de conflitos mas
apenas retira-lhe a centralidade na dinâmica relacional – abre caminho para que a
agenda de pesquisa se liberte deste fetichismo binário.
Por outro lado, permite que a agenda endógena de pesquisa participe numa
agenda internacional, nascida no Sul da geopolítica do conhecimento, que tem
criticado esta produção de categorias universalizantes, estanques e redutoras. Em
concreto, podemos, a partir de Cabo Verde, contribuir para estas propostas de
rupturas metodológicas e epistemológicas com o feminismo hegemónico ocidental e
para a consolidação de uma epistemologia feminista ao sul.
4
Resgate das vozes femininas e o processo de construção do investigador
especialista.
Acrescenta Bourdieu que esta relação assimétrica é cada vez mais evidente e
profunda nos contextos relacionais em que o investigador possui maiores capitais
culturais, intelectuais, sociais, etc., do que aqueles que o investigado possui. O autor
prossegue e defende que uma das diferenças visíveis, nessa relação social, ocorre no
mercado dos bens linguísticos e simbólicos, significando que a interacção se dá num
contexto de manejos dos capitais linguísticos, por parte do entrevistador e
entrevistados.
9
BOURDIEU, Pierre. 2007 [1993]. A Miséria do Mundo. Petrópolis/RJ: Vozes.
5
na condição de sujeitos sem voz. Trata-se de considerar, por um lado, que o estudo da
sociedade cabo-verdiana, similar a outros contextos, por muito tempo não considerou
a ideia de que homens e mulheres participam e interpretam os seus contextos sociais e
culturais de diferentes formas, em resultado das suas pertenças de género,
diferenciados. E que, por outro lado, os homens foram privilegiados, enquanto únicas
vozes escutadas e consideradas com competências para a interpretação da
sociocultura cabo-verdiana. Isto é, falar com os homens significaria falar com o
representante do colectivo, que fala em nome de todos.
Mas, devemos estar conscientes das implicações desta participação
epistemológica. Na investigação em Cabo Verde - e no caso particular das dinâmicas de
género - creio que o que é mais visível são as dificuldades de libertação de exigências e
necessidades impostas pelos organismos nacionais e internacionais de cooperação e
de financiamento.
Nessa medida, os investigadores são constantemente cortejados enquanto
especialistas, para participarem em projectos que deixam uma zona dúbia; se se
tratam de projectos de investigação, investigação acção ou investigação acção-
participativa ou projectos de implementação de políticas públicas, com vista a atingir
as exigências de organismos que financiam o desenvolvimento do país.
A existência destas zonas dúbias remete-nos para a necessidade de
dialogarmos com outros investigadores.
Na geografia política do conhecimento, Spivak10 – que centra toda a sua
produção crítica à volta dos efeitos que a produção do conhecimento moderno
(Ciência moderna) teve sobre a subalternização do Outro e do conhecimento que é
produzido fora desse espaço hegemónico – pergunta Pode o Subalterno Falar?
10
SPIVAK, Gayatri. 1988. Can the Subaltern Speak?. In N. Cary; L. Grossberg (eds) Marxism and the
Interpretation of Culture. Chicago. University of Illinois Press, p.271-313.
6
investigação - autoridades, governos, instituições sociais, os outros que ficaram de
fora, como sejam os homens que foram indirectamente referenciados e por
conseguinte directamente ausentados.
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Com todos os perigos inerentes ao uso estratégico do conhecimento.
7
Creio que, por enquanto, a resposta que pode satisfazer é a de que temos de
considerar que a condição de subalternidade é criada, também, pelos investigadores.
Estes podem deixar de subalternizar a um nível, mas continuam a outros níveis, para
colocar o subalterno sempre no lugar de subalterno, enquanto óptimos objectos de
estudo e excelentes instrumentos para a consolidação do projecto de se tornar
especialista.
Assim, na esteira destes diálogos, deixo uma última pergunta, para este debate,
necessário e urgente: serão os investigadores especialistas ou especialistas salteadores
de vozes?