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“As Cabo-verdianas, estudantes, quando vêm para Portugal tornam-se todas, Europeias”

Cabo-verdianas em Lisboa: narrativas e práticas nas relações de género e inter-etnicidade

Celeste Fortes1
Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA /FCSH-UNL – Portugal)

Centro de Investigação e Formação em Género e Família (GICEF/ UNICV – Cabo Verde)

Resumo:
Os rostos e protagonistas da migração feminina cabo-verdiana em Lisboa apresentados neste artigo
permitem contextualizar os argumentos de que: a) não é apenas o homem cabo-verdiano que sócio-
culturalmente tem o papel valorizado de migrar; b) as mulheres cabo-verdianas quando migram não
têm apenas motivações económicas, que em grande parte se traduz no preenchimento, em Portugal,
de um “exército de servidoras” como empregadas domésticas e de limpeza, muitas outras mulheres
emigram em busca de capitais académicos e profissionais; c) essas vivem a migração como um
processo de autonomização pessoal da família e de um contexto de vida marcado por significados
identitários de género “encarcerantes”.

Palavras-chave: migração feminina cabo-verdiana, estudantes cabo-verdianas, dinâmicas de género


e inter-etnicidade, patriarcado, ganhos identitários.

“Cape Verdean student girls when they come to Portugal they all become Europeans”
Cape Verdean women in Lisbon: narratives and practices of gender relationship and inter-ethnicity

Abstract:
The story of feminine migration from Cape Verde to Lisbon that I explore in this article show that; a)
it is not only men who play a positive role in migration; b) several Cape Verdean women increasingly

1
Artigo realizado no âmbito do Doutoramento em Antropologia Social e Cultural na Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Relações de Género e de Poder: narrativas e práticas de mulheres cabo-
verdianas em Portugal e Cabo Verde, sob a orientação da Professora Doutora Susana Trovão e com financiamento da
Fundação para a Ciência e a Tecnologia, de Janeiro de 2007 a Dezembro de 2010.

* Para Citar o artigo / To quote this paper


Fortes, Celeste (2011), “As Cabo-verdianas, estudantes, quando vêm para Portugal tornam-se todas, Europeias”:
Cabo-verdianas em Lisboa: narrativas e práticas nas relações de género e inter-etnicidade” in Carmelita Silva e Celeste
Fortes, (orgs) As Mulheres em Cabo Verde: Experiências e Perspectivas, Praia, Edições, Uni-Cv, pp: 255-276.
migrate to Portugal not merely for economic motivations, to work in the service sector, but also in
search for an academic and professional capital; c) for these women migration is a process through
which they gain autonomy from their families, getting rid of constrictive gender identities and
patriarchal relationships
Keywords: Cape Verdean feminine migration; interethnic and gender dynamics; patriarchy, identity
gain.

Introdução
Numa procura pelas razões e motivações, presentes na sócio-cultura cabo-verdiana, para a
vivência quotidiana, de sentimentos e vontades antagónicos do querer ficar e ter que partir,
frequentemente as determinantes históricas para a saída, são atribuídas às condições climatéricas e da
terra (Carreira, 1983; Saint-Maurice, 1997). Nesse sentido a história da formação da sociedade cabo-
verdiana confunde-se com a sua história e tradição migratória, o que leva à exaltação da ideia de que
a identidade nacional cabo-verdiana tem na migração um papel estruturante e estruturador (Góis,
2006; Carling e Batalha, 2008).
Contudo as novas teorias que emergem do estudo das migrações permitem constatar que
tornou-se quimérico analisar a migração cabo-verdiana como um projecto construído com o objectivo
único de driblar os constrangimentos resultantes da falta de chuva, secas prolongadas e pobreza das
ilhas; hoje as determinantes migratórias entre os cabo-verdianos, não são apenas e imediatamente
económicas.
Por outro lado esta nova era das migrações (Castles e Miller, 2003) tem facilitado múltiplas
leituras das actuais dinâmicas migratórias que rompem com leituras clássicas e androcêntricas, que
olham para o homem como o protagonista central da migração tendo em conta o seu papel de
breadwinner da família enquanto à mulher é atribuída o lugar secundário, na medida em que não são
contempladas possibilidades de estas poderem construir projectos migratórios autónomos, do marido
e da família (Juliano, 2000; Pessar e Mahler, 2006).
Estamos perante a necessidade de introdução de inovações nas bitolas analíticas, o que
significa salientar o surgimento de estudos que tomam o género como princípio organizador das
migrações (Juliano, 2000; Pessar e Mahler, 2006) e que atribuem protagonismo, também, às
mulheres, particularmente aquelas que emigram com projecto migratório autónomo da família e/ou
do companheiro.
A intensificação da emigração feminina cabo-verdiana sobretudo para a Europa traduz este
fenómeno, espelhando que também na cultura migratória cabo-verdiana não é apenas o homem cabo-

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verdiano que sócio-culturalmente tem o papel valorizado de migrar, (Carling, 1997, 2001; Andall,
1999; Catarino e Oso, 2000, etc). Analisando os lugares e os papéis que as mulheres ocupam nas
dinâmicas migratórias entre os Cabo-verdianos, as abordagens que têm sido feitas centram-se:
a) Nas dinâmicas da inserção laboral de mulheres que vêm para países da Europa do sul (Espanha,
Portugal e Itália) para ocuparem nichos de trabalho disponíveis (Carling, 1997, 2001; Catarino e Oso,
2000; Fikes, 2000, etc);

b) No protagonismo de algumas mulheres cabo-verdianas (Rabidantes como são designadas)


enquanto transmigrantes (Schiller, Basch, Szanton Blanc, 1995), inseridas em redes de negócios
transnacionais (Marques et all. 2001; Grassi, 2003) colocando-as, em muitos casos, na situação de
breadwinner da família e que oferece a muitas a possibilidade de afirmarem a sua autonomia
financeira e/ou das suas famílias (Marques et all., 2001; Grassi, 2003)2;

c) Na vivência da maternidade transnacional (Hondagneu-sotelo e Ávila, 1997), uma das formas das
mulheres participarem na criação de novos modelos de participação da mãe na educação e sustento
dos filhos e na criação de outros laços familiares, transnacionais (através de remessas de dinheiro e
outros bens materiais, para os filhos e família, de construção de casa, da criação de negócios no país
de origem e de viagens para visitar a família). Nas viagens para visitar a família as mulheres podem
trazer contribuições materiais e simbólicas potencialmente catalisadoras de mudanças nos padrões e
relações de género entre aqueles que não emigraram (Iolanda, 2007; Giuffré, 2007; Rodrigues, 2007).

d) Nas práticas transnacionais protagonizadas pelas mulheres no campo da cultura expressiva,


nomeadamente através da música, com figuras de destaque como a Nancy Vieira, Mayra Andrade,
Lura ou a “diva de pés descalços” Cesária Évora (Dias, 2004; Hoffman, 2007).

Porque o perfil das mulheres migrantes laborais não esgota os múltiplos rostos da migração
feminina cabo-verdiana para Portugal, partindo do meu trabalho de terreno em Lisboa (Portugal) este
artigo destaca outras protagonistas da migração cabo-verdiana, cujas motivações migratórias se
enquadram no perfil de mulheres que emigram para prosseguirem os estudos para o nível superior,

2
As Rabidantes desenvolvem as suas redes de negócios comprando produtos em vários países da Europa, da África, no
Brasil, Estados Unidos, etc., para venderem aos seus clientes em Cabo Verde nos mercados, em casa ou em lojas
próprias, boutiques (Marques et all, 2001:283). Estes estudos ressaltam ainda a importância das redes sociais que apoiam
as mulheres nestes negócios, redes, sobretudo constituídas por familiares e amigos próximos e que localizam-se tanto em
Cabo Verde como nos vários países para onde viajam as mulheres (Marques et all., 2001, Grassi, 2003).

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adquirindo assim mais capitais académicos e profissionais3. A pesquisa de terreno entre estas jovens
mulheres cabo-verdianas, permitem contextualizar os argumentos de que:
1) Paralelamente ao destaque que se tem dado à migração feminina inserida num quadro de
preenchimento de um “exército de servidoras” (Juliano, 2000) existem mulheres cujas motivações
migratórias se enquadram no perfil de mulheres que emigram em busca de capitais académicos e
profissionais;
2) Apesar de valorizarem uma reconstrução positiva de si, vivem o dilema de um projecto migratório
que é construído muitas vezes em sintonia com as expectativas e os projectos do grupo de pertença
(família, marido, namorado, filhos, amigos, etc);
3) A saída de Cabo Verde e a convivência com outros modelos de relações de práticas de género
originam narrativas e estratégias que procuram reconfigurar os idiomas identitários de género da terra
trazida4 e da terra de acolhimento. Será interessante reflectirmos se as transformações dos idiomas
identitários de género são pontuais ou permitem concluir que existe uma reestruturação através de
dinâmicas de resistência do sistema de relações patriarcal/machista.
Uma das expectativas pessoais e sociais que recaiu sobre as mulheres com quem tenho
trabalhado nasce da convivência quotidiana com a seguinte questão: “Que queres ser quando fores
grande?”. Não será exagerado afirmar que em Cabo Verde muitos jovens foram e continuam a ser
educados para a busca de capitais académicos e profissionais, resultante da valorização social que se
atribui aos que “têm escola”, para muitos a realização desse projecto pessoal e social fez-se valer da
possibilidade de emigrar5.
Neste quadro, os sucessivos governos cabo-verdianos têm assinado protocolos de cooperação
com inúmeros países (Portugal, Brasil, Cuba, Rússia, etc.) para que os jovens estudantes, ao
concluírem o 12ºano tenham a possibilidade de prosseguir os estudos, frequentando o ensino superior
ou uma formação técnico-profissional numa das universidades dos países abrangidos pela

3
As entrevistas apresentadas neste artigo, foram realizadas em Lisboa em 2008, durante a pesquisa de terreno do projecto
de Doutoramento e enquadradas também na minha participação, enquanto colaborado do projecto, “De muitas e variadas
partes ao Portugal do século XXI: novas oportunidades, novos padrões nas relações de género, micro-familiares e inter-
étnicas” (Ant/63625/2005) coordenadora pela Prof. Doutora Susana Trovão. Todas foram realizadas em crioulo (variante
de São Vicente) e posteriormente traduzidas para português.
4
Título de umas das obras do escritor cabo-verdiano, Manuel Ferreira (1972).
5
Não sendo o propósito neste artigo, é importante realçar que os estudantes vivem este contexto sociocultural da
migração como elemento constitutivo da identidade cabo-verdiana, o que significa dizer que, por um lado é possível
encontrar jovens que mesmo tendo possibilidades de frequentar o curso superior em Cabo Verde optam por “estudar fora”
e que por outro lado, existem diferenças entre as expectativas, tanto em Cabo Verde como nos contextos migratórios
sobre quem emigra e sobre quem sai para estudar, havendo desde logo cateogorizações distintas. Sobre estas
diferenciações e categorias, agradeço particularmente à Doutora Iolanda Évora, com quem partilhei reflexões que
orientaram a escrita deste artigo.

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cooperação6. Anualmente, estas universidades disponibilizam algumas vagas para os estudantes cabo-
verdianos, cabendo ao governo cabo-verdiano o seu financiamento através da atribuição de bolsas a
alguns estudantes. Tal não impede, porém, que o estudante possa frequentar uma dessas
universidades ou outras, não recebendo bolsa do governo mas, ao invés, recorrendo ao apoio dos pais
e/ou outros familiares7 (Fortes, 2005).
Seguindo aquelas expectativas as protagonistas deste estudo deixaram São Vicente em
direcção a Lisboa, em busca de capitais académicos e profissionais. Duas estão neste momento a
organizar o regresso a Cabo Verde, três permanecem em Lisboa, sendo que uma delas com uma
permanência de décadas em Lisboa (traduzindo a dimensão sócio-histórica do projecto de
desenvolvimento cabo-verdiano, através da formação de quadros superiores) ocupa hoje um cargo
político importante em Portugal.
A etnografia multi-situada subjacente a esta pesquisa tem sido orientada pela hipótese de que
em novos contextos de vida estas mulheres desenvolvem diferentes estratégias de inserção e de
reconfiguração dos significados identitários particularmente os de género e etnicidade trazidos de
Cabo Verde e incorporados no contexto das relações inter-étnicas e de género em Portugal.
Mais especificamente, procurarei equacionar a migração feminina cabo-verdiana como um
processo de autonomização, conhecimento e experiência, destacando o grau de tensionalidade e
conflituosidade que muito frequentemente acompanha o percurso migratório pessoal da mulher face
às expectativas do (s) seu (s) grupo (s) de pertença e referência.

“Quando migras...passas a ser o centro de ti mesma”


Migração como processo de crescimento e autonomização pessoal
Em Cabo Verde existem muitas formas de se ser identificada como uma mulher adulta. As
estratégias, além das que tornam esta transformação visivelmente corporificada (Trajano Filho,

6
Saliente-se, também, que o ensino superior em Cabo Verde tem ganho vida com a abertura, entre outros, da
Universidade de Cabo Verde (UNICV) em 2006, com pólos em São Vicente e Santiago; do pólo Universitário da
Universidade Lusófona em São Vicente, em 2007, da Universidade de Santiago em 2008 e do Instituto Superior Isidoro
da Graça na ilha de São Vicente, em 2002
7
Contudo, deve-se fazer notar, que nem todos aqueles que desejam viajar para estudar conseguem efectivar este desejo.
São aqueles a quem Carling (2001, 2002) chama de não migrantes involuntários, porque apesar de terem aspiração não
conseguem ter todos os requisitos e habilidades para efectivar o projecto migratório: isto é, podem não conseguir uma
vaga no estabelecimento de ensino e se conseguirem podem não ter garantias financeiras (bolsa ou apoio financeiro de
familiares) para viverem fora do país. Por fim muitos outros apesar de conseguirem conciliar as aspirações e habilidades
para viverem fora, preferem estudar e viver perto da família, em Cabo Verde, são os não-migrantes voluntários (Carling,
2001, 2002).

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2005), por exemplo, através da gravidez (traduzindo o início da vida sexual)8 podem também ser o
início da vida profissional (significando a possibilidade de auto-sustento e de driblar os conflitos
inter-geracionais e de género) e ainda através da saída da casa dos pais para iniciar a vida conjugal
(mesmo que sem emprego, passando, neste caso, a estar dependente do namorado, marido, ou pai
d’fidj9). Para muitas outras jovens cabo-verdianas, a migração, vivida como um ritual de passagem
(Turner, 1974) tem sido uma das estratégias para se tornarem mulheres adultas.

“Sais de um núcleo familiar e passas para uma fase em que não tens nada, não tens núcleo,
não tens centro, passas a ser o centro de ti mesma…chegas a um momento que ao mesmo tempo é de
vazio e de construção...” (Ana, 28 anos, Licenciada em Ciências de Comunicação, trabalha para a Portugal Telecom)
“Cresci, porque quando vim para Portugal, no início era uma criança indefesa, toda a gente
me punha os pés em cima, todos me faziam sofrer... agora digo que já estou preparada para a vida.”
(Fátima, 28 anos, estudante e bailarina, casada com um “nórdico”)

Para estas mulheres, as dinâmicas de crescimento e autonomização pessoal facilitados pela


migração fazem sobressair nas suas narrativas uma reconstrução positiva de si em viagem, resultante
das comparações entre a posição identitária que ocupavam dentro do núcleo familiar (filhas
dependentes) e a passagem para uma posição identitária em que se tornaram mulheres “autónomas” e
“independentes” porque gerem a sua própria vida.
“Antes de vir para cá eu me via como uma adolescente, em Cabo Verde eu era muito
dependente dos meus pais, principalmente da minha mãe, não tinha independência e nenhuma
autonomia. Quando cheguei cá, acho que fui amadurecendo, se calhar foi porque vim para cá estudar
mas também pelo facto de eu estar sozinha e de saber que tinha de contar só comigo” (Maria, 24 anos,
licenciada em Enfermagem, Enfermeira no Hospital Júlio de Matos)

Será assim interessante olharmos para a migração feminina cabo-verdiana também como um
projecto de autonomização geracional, o que significa dizer que as novas posições conquistadas nas
relações intergeracionais, simbolicamente materializados no dinheiro próprio, casa própria, chaves de
casa, namorar sem ser às escondidas dos pais, significam, em parte, libertar-se da dependência dos

8
É muito comum conhecermos ou ouvirmos falar de jovens que engravidaram sem que os pais tenham alguma vez tido
conhecimento de que estas namoravam (porque em muitos casos, namoram sem consentimento dos pais). Casos de jovens
que esconderam a gravidez, até perto do nascimento da criança, com medo da reacção dos pais e da família. E muitas
destas situações podem gerar conflitos também entre o pai e mãe, porque esta é acusada de não ter conseguido controlar e
proteger a filha. Pode-se afirmar que há quase que uma ritualização; os pais castigam a filha, por ter engravidado, mas
rapidamente passa a ser apoiada e a gravidez é aceite.
9
Pai d’fidj = expressão usada entre os Cabo-verdianos, para pai do filho. O que significa que a pessoa a que se refere é “
pai do meu filho” e não “meu marido”, não havendo, muitas vezes, nenhuma relação de casal, apesar dos filhos em
comum.

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pais e da família em geral10.
“Saio quando quero e entro quando quero, durmo onde quero e com quem quiser, aqui eu é
que tenho de pensar se estou a fazer certo ou errado, em Cabo Verde eu não pensava por mim
própria, pensava era se a minha mãe ia gostar, se o meu pai ia gostar, se aprovam ou se não
aprovam…acho que isso permitiu-me amadurecer.” (Maria, 24 anos, licenciada em Enfermagem, Enfermeira
no Hospital Júlio de Matos)

Duas evidências, resultantes do que é culturalmente expectável, para as mulheres, orientam o


destaque que damos à relação mãe-filha, enquanto referência na construção desta nova pessoa mais
centrada em si, em detrimento da relação pai-filha. Em Cabo Verde, no contexto sociocultural e de
sociabilização intergeracional, a mãe é a figura mais presente, na medida em que as mulheres são
educadas para fazerem tudo pela família e são elas que têm de responder socialmente pelo sucesso e
fracasso da educação dos filhos (Rodrigues, 2007:132) justificando, deste modo, a presença constante
da mãe no quotidiano dos filhos, em particular das filhas.
“...o pai também delega algumas funções à mãe, porque ela é que está mais presente, o meu
pai costumava dizer à minha mãe “ tu é que tens de os criar”, ou seja, se alguma coisa corre mal, a
culpa é da mãe. O meu pai apesar de estar atento, dizia sempre à minha mãe “tens de aconselhar a tua
filha”, (risos)” (Carla, 32 anos, Licenciada em Sociologia, Mestranda em Estudos Africanos, actualmente trabalha
numa livraria em Lisboa).

São também estas evidências que tornam as relações mãe-filha situacionalmente ambíguas,
porque as mães servem como um espelho de duas imagens. Não é raro encontrarmos nestas
narrativas, o enaltecimento da mãe enquanto mulher batalhadora e cuidadora da família, “que faz
tudo pela família”, contrastando com a imagem (negativa) da mãe, mulher submissa, nas relações e
práticas quotidianas de género, com o marido. Esta imagem negativa da mãe origina uma negação da
mãe enquanto referência a seguir: “não quero ter a vida que a minha mãe tem”11.

10
Marcando o fim de alguns conflitos entre filhas e pais (controle das entradas e saídas de casa, permissão para ir a
festas, discotecas, para namorar, etc).

11
De que mães falam as nossas entrevistadas? Para evitar generalizações que possam comprometer o (re) conhecimento
histórico das mudanças e conquistas sociais que as mulheres têm alcançado no espaço social cabo-verdiano importa frisar
que com excepção da mãe da Ana, as mães de que falamos aqui, pertencem ao grupo de mulheres analfabetas, que não
trabalham ou que trabalham a partir de casa, e que vivem economicamente dependentes dos companheiros. São mulheres
que apesar de pertenceram a uma geração, que viveu o período da independência nacional do país, que contribui para
novos posicionamentos oficias em relação ao papel feminino pós-independência, não os interiorizaram nos seus projectos
pessoais.

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O outro lado da viagem: migração e o reforço das relações à distância
A vivência da maternidade por parte da filha constitui um dos momentos importantes no
reforço das relações da mãe (no país de origem) com a filha (no contexto migratório). Configurando a
“materialização” e simbolização da autonomização pessoal, restabelece (ainda que à distancia física)
as obrigações e papéis culturais (de cuidadoras) de mãe para filha, no cuidado aos netos e reforçando
relações transnacionais ao nível dos afectos e das emoções (Hondagneu-sotelo e Ávila, 1997).

A experiência da gravidez da filha, significará, em momentos pontuais e/ou correntes, para a


sua mãe, uma segunda maternidade, que dentro da família e nos contextos de sociabilidade pode
conforme já havia avançado, numa primeira fase gerar conflitos mas que de seguida é aceite e
apoiada.

O caso da Fátima, uma estudante cabo-verdiana em Lisboa, que engravidou no 3ºano da licenciatura
(de uma relação de namoro que durava já desde os 15 anos mas que viveu muitos momentos de
conflitos em Lisboa) permite concretizar estes argumentos. Assim como muitas outras cabo-
verdianas na migração e em Cabo Verde, viveu a experiência de ser mãe e pai do seu primeiro filho,
porque não teve apoio do pai d’fidj.

Acontecendo a gravidez durante o percurso migratório e as dificuldades decorrentes de cuidar


do filho sem apoio do pai d’fidj e longe da família, tendo de estudar e trabalhar, Fátima opta (assim
como fazem muitas outras mulheres emigrantes e não apenas as estudantes) por solicitar ajuda dos
pais para durante algum tempo “ficarem” com o filho em Cabo Verde12.

“Há dias estava a falar com a minha mãe e disse-lhe que ela não consegue imaginar o quanto
eu sofri, principalmente quando fui deixar o meu filho em Cabo Verde porque eu sempre fui muito
apegada ao M...” (Fátima, 28 anos, estudante e bailarina, casada com um “nórdico”).

Por outro lado as mães que participam neste processo de “autonomização” e “independência”
das filhas, porque contribuíram activamente para que as filhas consigam alcançar os capitais
académicos e profissionais, também servem de referência para a criação de narrativas e discursos em
torno das relações amorosas que as filhas vivem ou idealizam com os homens, cabo-verdianos.

12
No caso da Fátima, o filho ficou apenas por um período em Cabo Verde, com os avós, tendo regressado depois, para
Lisboa, com a mãe. Mas existem outros casos em que mulheres engravidam e o filho fica sobre os cuidados dos avós e
outros familiares em Cabo Verde, até ao regresso definitivo da mãe, a Cabo Verde. Sendo que a mãe só consegue estar
com o filho, durante o período de férias.

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Para as mulheres entrevistadas, o referencial de relação homem-mulher é vivido enquanto
filha, neta, sobrinha, prima, amiga e não resultante, apenas, de experiências directamente vividas de
relações amorosas com os homens.

O que significa dizer que as experiências de outras mulheres da família e do grupo de amizade
são o espelho para a construção de representações acerca do que é ser homem cabo-verdiano
(machista, mulherengo, “só sabe fazer filhos”, etc.) e do que é ser mulher cabo-verdiana (batalhadora,
lutadora, submissa, passiva, etc.) contribuindo para a criação de narrativas de reconfiguração dos
idiomas de género, tirados destas experiências, mas agora a partir da vivência pessoal de relações
amorosas com homens cabo-verdianos e estrangeiros, no contexto migratório.

Reconfigurando” e manejando os significados identitários de género da “terra trazida” e da


“terra de acolhimento”

Quando migram, sozinhas ou acompanhadas, as mulheres têm oportunidade de convivência


com uma nova realidade social, cultural, política e económica e confrontam-se com novos estilos de
vida e novas pessoas que passam a fazer parte dos vários processos de interacção e de
reconfigurações identitárias; resultando num redimensionamento identitário enquanto mulher,
emigrante, estrangeira, trabalhadora, mãe, casada, solteira, jovem, adulta e à estruturação das relações
com a terra de origem e a terra de acolhimento.

No que concerne às relações e práticas de género entre os Cabo-verdianos, a etnografia em


Lisboa tem permitido constatar que estas são marcadas por uma desconfiança a priori, tornando
homens e mulheres relutantes em manifestar desejos e possibilidades de uma vida a dois, duradoura e
baseada na mútua confiança. A migração é assim vivida como um espaço de contestação e de
libertação de hegemonias próprias do local de origem, com base no género, na geração e na posição
dentro do grupo doméstico (Mills, 1997; Constable, 1999; Kelsky, 1999).

“O homem cabo-verdiano acaba por dar menos azo ao lado romântico, tipicamente do
machismo… tem necessidade de mostrar liberdade, independência… não existindo a poligamia
formal, não sendo aceite, o homem cabo-verdiano sente que não pode se prender demais a uma e que
existem outras ‘presas’ à volta... acho que é muito raro, para não dizer impossível, encontrar um
homem cabo-verdiano que projecta ter só uma mulher na sua vida e tentam sempre manter uma
imagem de independência, de liberdade, que no fundo não têm porque eles querem ter mais do que
uma relação permite.” (Ana, 28 anos, Licenciada em Ciências de Comunicação, trabalha para a Portugal Telecom)

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“Lá em casa o meu pai gosta de sentir que ele é que é o homem (hôme), ele acha que o
homem é que tem de ser o chefe da família (...) Ele gosta de ter controlo de tudo, das nossas entradas,
das nossas saídas, do que é que fazemos com o dinheiro e mesmo o dinheiro para casa que ele dá à
minha mãe, gosta de saber como é que ela o gasta. Ele não gosta que a minha mãe saia sozinha,
porque uma mulher casada não pode, se calhar se fosse um homem podia.” (Maria, 24 anos, licenciada em
Enfermagem, Enfermeira no Hospital Júlio de Matos)

A partir destas narrativas biográficas nota-se que a exaltação das mudanças subjectivas que
ocorreram após a migração (“crescer”, “tornar-se autónoma”, “independente”, “tornar-se mãe” etc)
são valorizados como ganhos identitários que criam novas formas de idealizar uma relação homem-
mulher muito distante do que era aceite antigamente.
“As coisas mudaram muito em relação à minha geração e às gerações posteriores, felizmente,
tínhamos aquelas relações ditas tradicionais, que eram os maridos chefes de família…primeiro era ele
que comia e depois o resto da família comia (...) Os chefes de família comiam sozinhos na sala de
jantar e quando saíam é que os outros iam comer ou então comiam na mesa da cozinha. Antes as
mulheres aceitavam isso como uma coisa que era inevitável, que era quase divino...agora dizem-nos
coisas e já não calamos como faziam as nossas mães que calavam, nós respondemos” (CC, 59 anos,
Deputada na Assembleia Nacional, ex-estudante cabo-verdiana em Lisboa).

Por outro lado estas mudanças que obrigaram a alterações no calendário feminino e na agenda
pessoal da migrante (Segalen, 1999) - conquista da autonomia, adiar a formação da própria família,
investimento na carreira profissional e em relações amorosas fora do grupo de pertença étnica, corte
com algumas práticas quotidianas do grupo, adiar o regresso imediato a Cabo Verde após a conclusão
da licenciatura - provocam, segundo as mulheres, o desencontro com o projecto de vida dos homens
porque elas mudaram mas sentem que não conseguem mudar a reactividade dos homens, que tentam
sempre manter os mesmos padrões de género, inspirados no modelo de mulher /mãe/ cuidadora/
submissa.

Conforme anteriormente salientado, neste novo calendário feminino as mulheres provocam


(sobretudo ao nível discursivo) uma descontinuidade geracional, no domínio das relações de género.
Nesta medida, desejam não ter o mesmo percurso de vida da mãe, tornam-se assim “mais egoístas e
menos altruístas”; não querem viver com homens que projectam ter mulheres com base na figura das
suas mães. Estes desejos e comportamentos traduzem-se em vários momentos, desinvestimentos no
grupo de pertença e em conflitos com os pais e com os namorados, estes últimos, resistentes a estas
mudanças, “condenam” as mulheres:

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“O meu ex-namorado costumava dizer-me que as cabo-verdianas, estudantes, quando vêm
para Portugal tornam-se todas europeias (...) O facto de atrasar a construção da minha própria família,
de só pensar em ter a minha família a partir dos 30 anos, de investir muito na minha formação. As
imagens que os jovens homens têm das suas mães é aquela imagem de uma pessoa que abdica de
tudo em prol da família e a imagem que eles encontram nas suas namoradas é de uma mulher que
projecta as suas vidas profissionais e depois pensam na família. Eles têm uma imagem diferente das
mulheres, que é a imagem mais próxima de mãe.” (Ana, 28 anos, Licenciada em Ciências de Comunicação,
trabalha para a Portugal Telecom)

“Têm de mostrar que são superiores à mulher, que eles é que são os machos...lembro-me que
no meu grupo de amigos, em Cabo verde, ainda antes de eu vir para Lisboa, havia um casal e o rapaz
era daqueles que não se importava de demonstrar o quanto gostava da namorada e ele era muito
gozado pelos amigos, mesmo pelos pais dele, recriminavam-no por ter este comportamento.” (Carla,
32 anos, Licenciada em Sociologia, mestranda em Estudos Africanos, actualmente trabalha numa livraria em Lisboa)

Do ponto de vista identitário, a possibilidade de viajarem (em busca de capitais económicos,


académicos, profissionais e simbólicos) confere às mulheres um status e um papel activo, os quais,
no cenário da construção social das relações de género em Cabo Verde e na diáspora Cabo-verdiana
podem ser manejados como uma das formas de redimensionar e renegociar as imagens e
representações dos papéis que tradicionalmente estariam consignados aos homens e às mulheres tanto
no espaço doméstico como no espaço público (Grassi, 2003; Massart, 2005; Évora, 2007; Giuffré,
2007).

Contudo a análise dos dilemas e das angústias que vivem quando pensam no regresso a Cabo
Verde e a vivência da maternidade conflituosa, durante a migração, entre outros exemplos, mostram
que apesar de haver estratégias de resistência ao “machismo cabo-verdiano” e de em vários casos
existirem transformações e reconfigurações desses significados identitários de género, estes não
originam necessariamente novos modelos de relações de género contraditórias ao “machismo” e
“patriarcado” mas sim regeneração do próprio sistema de subversão feminina.

O que significa dizer que embora estas mudanças façam sobressair o carácter fluído do patriarcado
(Kandiyoti, 1988, Hondagneu-sotelo, 1992) as continuidades nas representações sobre homens e nas
práticas de relações de género, trazidas de Cabo Verde, alertam para uma interpretação mais contida
na análise dos ganhos reais em termos de género sobretudo no discurso de emancipação feminina
através da migração (Pessar, 1999). A narrativa biográfica da Fátima é exemplificativa da vivência de
modelos de relações de género, contraditórios. Ficou grávida durante o período de licenciatura, facto

265
que à partida não poderia acontecer, dado que estava num processo de construção de uma pessoa
centrada em si, com capitais académicos e profissionais; a gravidez resultou no conflito com o seu
pai d´fidj, falta de apoio e “fuga” às responsabilidades de pai e uma não relação pai-filho.

“Eu tive muitos problemas com ele para registar o meu filho (reconhecer a paternidade), eu
pensei “uma pessoa que namoramos durante 7 anos, que conhecemos desde que tínhamos 5 anos...
tenho de correr atrás dele para registar o filho e ainda por cima ter de fazer teste de DNA (...) Para
mim mais do que uma humilhação aquilo foi uma frustração... Ele não quis saber da minha
gravidez... Eles não têm relação nenhuma, qual relação? O P não tem juízo para ter uma relação com
o M, ele passa a vida a andar de um lado para outro, ele tem 4 filhos e não mantém contacto com
nenhum.” (Fátima, 28 anos, estudante e bailarina, casada com um “nórdico”).
Desta não vivência conjugal com o pai do primeiro filho e do resultado traumático, a Fátima
opta por romper com o grupo de pertença e actualmente vive uma relação conjugal com um homem
nórdico:

“A diferença é ggggggggggggggrande, há um abismo entre os dois, primeiro de tudo, o meu


marido me respeita, ele ajuda-me em casa, não existe aquela divisão de que eu tenho de fazer tudo
em casa, se eu tiver a lavar pratos ele limpa o chão, tira fraldas ao M ou dá-lhe leite. Enquanto o pai
do meu outro filho, acho que ele nunca o pôs ao colo, aliás ele nunca me respeitou porque quando
ainda andávamos ele engravidou uma amiga minha; por isso ele deixou-me com traumas de homens
cabo-verdianos.” (Fátima, 28 anos, estudante e bailarina, casada com um “nórdico”)

Importa por isso situar o discurso das relações de género no contexto das relações inter-
étnicas entre cabo-verdianos e outros grupos étnicos, porque é da comparação entre cabo-verdianos e
outros grupos que as mulheres ressaltam o machismo e a infidelidade dos cabo-verdianos por um
lado e o facto de por exemplo os portugueses se aproximarem mais do ideal de homem, “que valoriza
as mulheres”.
“Quando vais à casa de um casal africano e estão numa festa é difícil perceberes quais são os
casados ou seja há menos demonstração pública de afectos, de ligação (...) Os homens tentam manter
este literal afastamento e se fores a casa de um casal europeu é mais fácil, porque há mais interacção
entre eles, são mais demonstrativos. E não quero viver neste afastamento e o problema é isso (risos)
mas como costumam dizer nem sempre encontramos aquilo que queremos, tentamos encontrar o
melhor dentro daquilo que há” (Ana, 28 anos, Licenciada em Ciências de Comunicação, trabalha na Portugal
Telecom)

266
Estas imagens em relação aos homens cabo-verdianos resultam, assim, em imagens
idealizadas dos homens portugueses/ europeus. Aos olhos das mulheres cabo-verdianas, os homens
portugueses são diferentes dos seus homens porque aqueles investem mais num relacionamento sério
(duradouro, com compromisso, cuidam das suas mulheres, querem construir família, ajudam em casa,
têm demonstrações públicas de afecto, tratam as suas mulheres como se fossem “umas bonecas”,
etc.). Imagens perfeitas e idealizadas que não concebem (não consideram) possíveis problemas
conjugais e conflitos de género dentro de casais europeus.
A pesquisa de terreno entre estas mulheres suscita outras múltiplas questões13: se os homens cabo-
verdianos estão longe do ideal de homem que as mulheres cabo-verdianas têm e se os homens
portugueses e de outras nacionalidades, europeias, estão mais perto das expectativas e ideias de
homem para estas mulheres, porquê que algumas mulheres afirmam a impossibilidade de uma
relação amorosa e conjugal com estes homens europeus?

Múltiplas respostas podem ser encontradas, mas aquelas que nos são dadas pelas mulheres
recorrem às diferenças culturais entre portugueses e cabo-verdianos para justificarem as
impossibilidades de um relacionamento “sério” entre um homem europeu e uma mulher cabo-
verdiana. Salientando que seriam mal vistas pelo grupo de pertença tanto em Cabo Verde como em
Portugal14, sobretudo pelos homens cabo-verdianos que se sentiriam traídos. Com efeito, a cultura de
fechamento entre cabo-verdianos, que exige uma interdependência e um ensimesmamento, tem
normas de convivência intergrupal que devem ser acatadas, sob pena de serem excluídos.

As narrativas das mulheres permitem detectar que da impossibilidade de haver relações


amorosas com pessoas de outros grupos étnicos e da necessidade de manter a coesão grupal, o código
moral/sexual aparece como uma das normas centrais evitando possíveis episódios de desinvestimento
no grupo de pertença.

13
Tendo em conta, por exemplo, a experiência traumática da Fátima que cria uma relação amorosa fora do grupo étnico
(uma excepção que confirma a regra da forte endogamia grupal entre os cabo-verdianos) e o desabafo da Ana que procura
encontrar o seu par ideal, dentro daquilo que há. Também durante uma conversa, com um rapaz, estudante cabo-verdiano
confidenciou-me que as “Brancas são para curtir, mas para casar, tem de ser com as nossas mulheres, com uma mulher
cabo-verdiana”.
14
“Bo bai bo traze um mandrong!?” = “foste e trouxeste um estrangeiro!?”, costuma-se dizer em São Vicente, ou “Já não
ligas aos ‘pretos’?” = costuma-se dizer a alguém do grupo, que mantém relações de amizade ou de namoro com um “não
cabo-verdiano”, sobretudo quando se nota um afastamento do grupo de pertença.

267
“ (os homens) têm aquela coisa de possessão/possessivo e depois não te esqueças que os
homens africanos têm aquela coisa de terem a virilidade à tona (risos)... se tivermos relacionamentos
com outros homens (brancos) eles acham que isso pode pôr em causa a sua masculinidade,
principalmente porque existe aquela teoria de que os homens brancos são menos eficazes que os
pretos, então acham que de certa forma é trair a sua masculinidade, eles é que têm aquele power todo,
acham que não podemos virá-los as costas para irmos relacionar com outros (brancos), acham que
isso é traição porque eles é que são os bons.” (Ana, 28 anos, Licenciada em Ciências de Comunicação, trabalha
para a Portugal Telecom)

Orgulho, vergonha, medo do julgamento valorativo dos outros, a possibilidade de humilhação


são, segundo Sheff (1994), fortes motivações identitárias que orientam os indivíduos para uma
necessidade de criar pertenças, através da promoção de alianças que resultam em ou são resultados
de competições identitárias. É neste sentido que as relações inter-étnicas no contexto pós-colonial
português não podem ser escamoteadas sem se olhar para o corpo negro enquanto capital físico e um
lugar dinâmico que exerce um papel simbólico e de agencialidade nestas relações (Shilling,1993)

Os sentidos sociais atribuídos, por africanos e não-africanos no Portugal pós-colonial, aos


manejos e performances corporais na construção de feminilidades e masculinidades diferenciadas e
diferenciadoras em contextos de comunicação intercultural e relações de género e inter-étnicas, criam
expectativas performativas que fazem do corpo tela de inscrição dinâmica destas relações. O corpo
negro feminino, enquanto corpo desejado, pelo seu exotismo e sensualidade e do corpo negro
masculino que carrega também com ele, o mito de que os homens negros são mais “dotados” e que,
por isso, “levam vantagem no sexo”15.

Estes corpos pós-coloniais participam de forma activa naquilo que Vale de Almeida classifica
como politica de corpo (Almeida, 2004) procurando dinamizar estratégias que “revisitam” as
narrativas coloniais produzidas em torno do corpo negro, revalorizando-os e promovendo a
desincorporação de espaços homogéneos, onde os negros não são visíveis, através da incorporação
destes num espaço público que deve tornar-se mais heterogéneo (Mata, 2006).

A tónica valorativa no caso dos homens cabo-verdianos (e africanos) para evitarem possíveis
estilhaçamentos ou esmagamentos identitários (Bastos, 2000) na competição com os outros homens é
colocada no corpo, isto é, na exacerbação positiva do corpo negro, e das suas performances sexuais e

15
Como defende um artigo publicado no número 4 da revista AFRO em Maio de 2008.

268
sensuais em detrimento da desvalorização performativa dos homens, portugueses, brancos16 e esta
exacerbação do corpo negro e, por conseguinte, do eu e do grupo de pertença, faz-se acompanhar de
um controlo cerrado ao corpo das mulheres do grupo17.
As viagens não terminaram, os projectos de (re)emigração estão em curso e os desejos de sair
continuam a ser alimentados. As narrativas biográficas, partilhadas neste artigo, mostram-nos que em
determinados momentos a migração é para elas uma empresa individualizante que desafia as
solidariedades familiares e étnicas (Fenton, 2005:155), mas apesar de valorizarem uma reconstrução
positiva de si em viagem, as mulheres vivem os dilemas de um projecto migratório que é construído
muitas vezes em sintonia com as expectativas e os projectos (de ascensão social a partir da formação
delas) do grupo de pertença (família, marido, namorado, filhos, amigos, etc.).

Dilemas e conflitos que são, assim, intrínsecos à própria natureza ambivalente de todo o
projecto migratório e tornam-se mais presentes quando se começa a pensar num possível regresso a
Cabo Verde, na medida em que todo o projecto migratório é construído, tomando o regresso como
parte estruturante e estruturador (Sayad, 1998, 2000).

O regresso ao país será o momento pessoal e colectivo para o teste à continuidade dos ganhos
identitários, sobretudo de género, conseguidos durante o período de vida fora do arquipélago cabo-
verdiano (Évora, 2007), nessa medida, as análises feitas ao longo deste artigo, embora tenham
pretendido reflectir, sobretudo, sobre as dinâmicas de reconstrução das identidades de género, classe
e etnicidade, no contexto migratório em diálogo com as narrativas identitárias trazidas da terra de
origem, não podem territorializar as reflexões apenas em Portugal e não concluir, naquele contexto, a
viagem biográfica dessas mulheres.

Essas experiências migratórias interpelam-nos para continuidades nas pesquisas, que sigam o
percurso biográfico das mulheres, pesquisando e analisando as estratégias criadas pelas mulheres,
que conseguiram efectivar o regresso a Cabo Verde, para tornar visíveis os ganhos identitários
(particularmente os ganhos identitários de género) que dizem ter conseguido durante o período
migratório e que legitima a adopção da etnografia multi-situada como postura metodológica central.

16
Também, os homens criam diferentes estratégias para reconfigurarem os idiomas identitários quando migram. Será
desta modo interessante, noutro espaço, analisar mais aprofundadamente, essas diferentes estratégias.
17
Não deixa de ser importante anotar que em Cabo Verde e entre os cabo-verdianos, apesar da exposição do corpo e da
visibilidade pública dos capitais eróticos, há um forte controlo da exposição pública das relações e da vivência da
sexualidade.

269
A viagem para outro terreno de pesquisa, Cabo Verde, permitirá também ouvir o contexto social de
origem, para detectar as possíveis fundamentações sociais locais, para os medos do regresso a Cabo
Verde, que muitas das entrevistadas manifestam ainda em Lisboa; e por outro lado, identificar as
diferentes formas de acolher, novamente, estas mulheres, nas estruturas sociais cabo-verdianas, tendo
em conta as novas posições sociais que poderão ocupar.

Será importante, reflectir sobre as influências que a migração e as pressões para o regresso, bem
como os processos de individualização e diferenciação (experienciadas durante a migração) em
conflito com as pressões para a lealdade e conformidade com as expectativas dos grupos de
referência, originam várias angústias e medos quanto a um possível regresso mais definitivo a Cabo
Verde.

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