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AGRADECIMENTOS
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LISTA DE ABREVIATURAS
AT Acompanhamento Terapêutico
CAP Centro de Avaliação Psicológica da UFRGS
CAPS Centro de Atenção Psicossocial
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CDESC Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
CF Constituição Federal
CFP Conselho Federal de Psicologia
CIPAS Centro Interdisciplinar de Pesquisa e Atenção à Saúde
CRAS Centro de Referência em Assistência Social
CREAS Centro de Referência Especializado em Assistência Social
CRPRS Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul
DS Direitos Sociais
EAPs Estratégia de Atenção Psicossocial
ESF Estratégia Saúde da Família
GAM Guia de Gestão Autônoma da Medicação
GeraPOA Oficina de Geração de Renda
NAR Núcleo de Abrigos Residenciais
MEC Ministério da Educação
ONU Organização das Nações Unidas
PIDESC Pacto Internacional Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
PMPA Prefeitura Municipal de Porto Alegre
PNAS Política Nacional de Assistência Social
PNE Plano Nacional de Educação
PPs Políticas públicas
PROJOVEM Programa Nacional de Inclusão de Jovens
PTS Projeto Terapêutico Singular
PUCRS Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
PVC Programa de Volta para Casa
RAS Rede de Atenção à Saúde
RPB Reforma Psiquiátrica Brasileira
RSB Reforma Sanitária Brasileira
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SASE Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino
SEBRAE Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
SENAC Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
SENAI Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
SMS Secretaria Municipal de Saúde
SRT Serviços Residenciais Terapêuticos
SUAS Sistema Único de Assistência Social
SUS Sistema Único de Saúde
UBS Unidade Básica de Saúde
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
UFF Universidade Federal Fluminense
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
VEPMA Vara de Execução de Penas e Medidas Alternativas
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BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
_____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
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RESUMO
6
SUMÁRIO
6. Referências ............................................................................................................. 59
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1. Delineando os Direitos Sociais como tema de pesquisa
CAPÍTULO II
DOS DIREITOS SOCIAIS
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a
moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, Art. 6º).
1
Pesquisa financiada com bolsa de Doutorado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior [CAPES]. O Projeto é formulado a partir da perspectiva de
aprofundamento da produção desenvolvida no Grupo de Pesquisa “Travessias: Narrações da
Diferença – Clínica, Pesquisa e Intervenção”, coordenado pela Profª. Drª. Analice de Lima
Palombini, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS.
2
O Programa de Acompanhamento Terapêutico na Rede Pública – ATnaRede – é uma
atividade de extensão do Instituto de Psicologia da UFRGS. Atualmente integra como uma das
ações do CIPAS [Centro Interdisciplinar de Pesquisa e Atenção à Saúde] da UFRGS. Em 2018,
o Programa completa 20 anos de execução.
3
Na escrita será usada em alguns momentos a expressão ‘psicólogo’, no masculino, visando
localizar a posição da qual fala o autor. Contudo, se compreende que a psicologia é uma
profissão majoritariamente feminina, 89% segundo o Conselho Federal de Psicologia (2013),
razão pela qual orienta o CFP em utilizar o artigo ‘a’, em primeiro lugar, quando referido à
categoria profissional.
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Figura 1. Cartaz fixado em espaços públicos sobre mobilização contra Medida
Provisória, proposta por representantes do Estado, que altera regramentos do Direito
Social à educação. Constantes alterações nos regramentos das políticas que
garantem Direitos Sociais no Brasil são indicadores do contexto sócio-histórico em que
se constituem as políticas públicas brasileiras.
9
Torres & Ecker, 2016; Ecker & Torres, 2015; Scarparo, Torres, & Ecker, 2014;
Lara & Ecker, 2012; Cemin, Ecker, & Luckmann, 2012).
Nessa travessia, como aprendiz, quatro recortes dos percursos foram
delineando a atual aproximação com a questão dos Direitos Sociais e os
processos subjetivos e terapêuticos, enquanto tema de pesquisa do Doutorado.
O primeiro deles está vinculado ao fato que, apesar de grande parte das
experiências desses doze anos terem permanecido no campo de conhecimento
da Psicologia Social (orientado por professoras(es) que intitulavam-se dessa
área), as atividades nas pesquisas, extensões e estágios evidenciavam a
vigência, nos serviços, de diferentes perspectivas sobre o modo como se
poderia produzir saúde mental e cuidado da população atendida. Assim, dentro
de uma mesma equipe, ou entre grupos acadêmicos, encontravam-se
abordagens que enfatizavam que a produção de “saúde”4 dependia do
organismo das pessoas (questões orgânicas e hereditárias), outras priorizavam
que a maior influência era da aprendizagem e dos estímulos externos
(aspectos comportamentais), algumas destacavam aspectos internos
(funcionamento psíquico ou intrafamiliar) ou aspectos externos (determinantes
sociais, políticos e/ou econômicos).
4
Coloca-se a expressão saúde entre aspas para destacar a heterogeneidade com que se
compreende o que é saúde dentre os(as) profissionais, usuários(as), familiares e demais
presentes nos serviços públicos. Heterogeneidade que, em alguns casos, faz emergir conflitos
entre posicionamentos opostos no que se refere a definição de encaminhamentos e práticas de
cuidado. Entende-se que há contradições no termo “saúde”, considerando que sua
compreensão também reflete uma construção sócio-histórica.
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Registrado em escrito por Acompanhante Terapêutico, a imagem evidencia uma das
estratégias de se produzir saúde na população atendida. Lê-se: “Manhã: 1 (uma)
Risperidona 3mg, 1 (uma) Carbamazepina 200mg, 1 (uma) Sertralina 50mg, Bipirideno
2mg. Tarde: Bipirideno 2mg. Noite: 7 (sete) Amplictil 100mg, 2 (duas) Risperidonas
3mg, 1 (uma) Carbamazepina 200mg, 4 (quatro) Amitriptilina”.
12
Fonte: Foto do autor. Cartaz de domínio público.
Figura 4. Nota do CRPRS sobre “Pacote do Governo Estadual” do Rio Grande do Sul.
13
Fonte: Foto do autor. Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRPRS, 2016).
5
Na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) 2005-2013.
14
brasileiras, há uma multiplicidade de entendimentos do que seriam elas (Piana,
2009).
Um dos efeitos possíveis dessa heterogênea compreensão, sobre a
função de um profissional/serviço público, talvez fosse encontrado em algumas
das experiências desses doze anos em que não era incomum ouvir na fala
das(os) profissionais discursos que descreviam alguns dos usuários e usuárias
como interesseiros(as), manipuladores(as), inconvenientes, carentes, mal-
intencionados(as) e outros adjetivos pejorativos. E, para os próprios
usuários(as), era recorrente colocarem-se em uma posição de quem estava
recebendo ‘um favor’ e tratarem os profissionais como se eles estivessem
realizando uma ‘boa ação’ ou caridade. O discurso sobre os serviços públicos
como via de garantia de direitos, quando emergia, estava mais próximo de
profissionais que atuavam em áreas como o serviço social, e, quando situava-
se na fala de profissionais da psicologia, por muitas vezes aparecia como algo
vago - ‘você tem direitos’, ‘isso é de teu direito’, ‘isso faz parte dos direitos’
como se houvesse uma grande categoria de direitos e todas as práticas de
intervenção estivessem subsumidas a ela. Já na fala das usuárias e usuários,
era bem menos frequente o discurso dos direitos e, quando surgia, vinha
daquelas(es) próximas(os) a movimentos de militância ou que eram
acompanhadas(os) por profissionais mais politizados.
Relato 1.
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ser reanalisada. A necessidade de reanálise emergia à medida que, na prática
profissional, frente a populações em situação de vulnerabilidade econômica
e/ou social, tornava-se premente acionar serviços para garantir direitos. Frente
às mais diversas violações daquilo que, a priori, eram considerados direitos,
perguntas se colocavam: quais, de fato, são os direitos previsto em
Constituição para uma cidadã(o) brasileira(o)? existem diferentes tipos de
direitos? quais serviços poderiam ser acionados para garantia desses direitos?
Se na Constituição Federal está escrito que todas(os) têm direitos, por que no
cotidiano da prática profissional não se encontram serviços para garanti-los?
Todos direitos previstos em Constituição deveriam ser providos pelo Estado?
Que efeitos subjetivos e terapêuticos poderiam ser pensados a partir de
práticas de cuidado direcionadas sob o discurso dos direitos?
Essas questões passam a compor, na época, a formulação do projeto de
pesquisa de Mestrado, dando início a toda uma investigação que envolvia
pensar a constituição histórica dos direitos, no Brasil. Por fim, após percorrer
uma série de estudos durante os dois anos de formação, optou-se, na
formulação da pesquisa, em fazer um recorte em torno aos Direitos Sociais,
mais especificadamente o Direito Social à educação e sua relação com o
Direito Social à assistência aos desamparados, pela Política Nacional de
Assistência Social - PNAS (Resolução nº 145, de 15 de outubro de 2004).
A escolha em analisar os Direitos Sociais derivou de dois principais
motivos: o primeiro se referia à exigência de desnaturalização da ingênua, ou
simplista, noção de ‘direitos’ como categoria única e universal. Neste processo
de desmistificação, uma série de direitos previstos em Constituição emergiu
(Direitos Humanos, Sociais, Civis, etc.), e era necessário fazer um recorte de
apenas um deles para que a análise do estudo se aprofundasse. O segundo
motivo estava diretamente vinculado às experiências profissionais na área da
psicologia com populações consideradas em situação de vulnerabilidade social
e/ou econômica, em que frequentemente se encontravam indivíduos, famílias,
crianças, idosos e outros grupos populacionais vivendo sem acesso a ações de
educação, saúde, lazer, alimentação, transporte, moradia, trabalho, dentre
outros. Frente a estes não acessos, indagava-se até que ponto a falta de
serviços ofertados pelo Estado brasileiro, que garantissem processos
educativos, de saúde, atividades de lazer, cultura, esporte, trabalho,
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alimentação e moradia, influenciavam na qualidade ou no modo como as vidas
e os processos subjetivos dessas pessoas se constituíam, fazendo com que
problemas e/ou conflitos emergisse como produtores de adoecimento psíquico.
Narrativa 1.
17
3) A garantia dos direitos previstos em Constituição depende de políticas
públicas ofertadas pela federação, estados e/ou municípios;
4) A falta de serviços públicos para garantia de direitos pode estar
diretamente vinculada a uma específica escolha administrativa do
Estado, mas também aos encargos dos estados e municípios;
5) Um direito previsto em Constituição nem sempre é de obrigatoriedade
do Estado (o Estado ter de disponibilizar serviços ou garantir vagas), ou
seja, não é porque algo seja direito de todas(os) na Constituição que
haverá políticas públicas que os ofertem;
6) Os efeitos subjetivos e terapêuticos, através de práticas de cuidado
direcionadas sob o discurso dos direitos, nem sempre produzem saúde
ou maior autonomia visto que as condicionalidades impostas por
algumas políticas que garantem direitos podem vir a cercear a existência
dos sujeitos.
Narrativa 2.
6
Nome fictício.
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aquela mulher estava fazendo. É quando, olhando toda aquela cena, Fernando
volta-se pra mim, sorri e exclama “cada um se vira de um jeito né!”
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social que demarcava a educação, com acesso em todos os níveis de ensino,
como marca distintiva da subjetividade de uma elite (Ecker, 2016).
Figura 5. Escrita espontaneamente produzida por participante para ser entregue aos
colegas em atividade de pesquisa na universidade.
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educação: a pública e a privada. Entretanto, como apontaram os dados
analisados na pesquisa de Mestrado, apesar do Estado se sustentar sobre
essa dualidade, sua intervenção incisiva no campo da garantia do direito à
educação pela justificativa do Direito Social, após CF de 1988, será
massivamente via âmbito público, através de uma série de programas e
políticas. Ao mesmo tempo, haverá reduzida incidência legislativa sobre as
iniciativas privadas/particulares, para situá-las como responsáveis por garantir
o Direito Social à educação da população como um todo, o que as deixará
relativamente livres, sem oposição direta do Estado, produzindo diferentes
formas de se acessar a educação no país. Essa ampla discursividade jurídica
resultará em heterogêneas formas de se produzir subjetividades no acesso à
educação que, no caso da população pobre, vulnerável, carente e em risco
social, poderia vir a produzir uma gestão, também, de caráter cerceante e
enclausurador (Ecker, 2016).
A pesquisa de Mestrado evidenciou que o discurso do direito à educação
‘para todos’, nas intervenções do Estado, acobertou a produção de uma
sociedade brasileira desigual, possibilitando práticas educativas que
produziram monopólio político e econômico de um seleto e elitizado grupo,
principalmente pela reserva de serviços privados/particulares, nos mais
variados níveis de ensino, garantindo formação e consequente, acesso desse
grupo às profissões valorizadas economicamente, a seu ingresso em posições
políticas e de gestão do país. O que se discutiu, então, foi sobre uma
Constituição de 1988 que surgiu sob discursos de redemocratização quando,
na materialidade do cotidiano, já havia se formado um sistema subjetivo
desigual, dentre as diferentes camadas da população, pelo modo como,
historicamente, elas tiveram acesso, ou não, aos direitos (Ecker, 2016).
Assim, é em um contexto brasileiro desigual de acesso aos Direitos
Sociais, sustentado por esferas públicas e privadas/particulares, que se pode
pensar na hipótese de que haja, na gestão da população que acessa
prioritariamente os serviços públicos, específicas formas de se produzirem
subjetividades e práticas terapêuticas. Na tentativa de investigar essa hipótese,
no presente projeto de Doutorado, se propõe a análise de experiências do
autor na área da saúde mental e, mais especificadamente, a aproximação com
o Programa de Acompanhamento Terapêutico na Rede Pública – ATnaRede.
21
Articulando políticas públicas e Direitos Sociais às práticas da psicologia,
o Programa propõe um cuidado terapêutico na perspectiva do
Acompanhamento Terapêutico, que tem a cidade como matéria da clínica,
trabalhando em interface com as políticas do Estado, de garantia de direitos,
cujos equipamentos se localizam nos territórios dos usuários(as) atendidos(as)
pelo Programa. Abrangendo um público que, prioritariamente, acessa os
serviços de caráter público, substitutivos da lógica manicomial, do campo da
atenção psicossocial, o contexto do Programa possibilita fazer emergir a
complexidade em torno do sistema publico de garantia dos Direitos Sociais,
também por contemplar usuários e usuárias que não são, necessariamente,
considerados em situação de pobreza ou extrema pobreza.
2. Processos Metodológicos
2.1 Objetivos
2.1.1 Objetivo Geral
Dentro desse cenário, este trabalho tem como objetivo investigar como o
exercício de Direitos Sociais incide nos processos subjetivos e terapêuticos em
curso, na prática clínica em saúde mental, articulado às políticas públicas
brasileiras?
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- Através dos materiais de campo, problematizar como o contexto sócio-
histórico dos Direitos Sociais no Brasil produz possíveis efeitos nos processos
subjetivos e terapêuticos na prática clínica em saúde mental.
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e usuárias da rede pública de serviços de Porto Alegre7, encaminhados devido
a alguma demanda no campo da atenção psicossocial. Comemorando 20 anos
de funcionamento em 2018, o Projeto é responsável por capacitar anualmente
inúmeros alunos e alunas de graduação da psicologia da UFRGS, que realizam
o requisito formativo do Estágio Básico ou do Estágio de Ênfase (em Clínica ou
Políticas Públicas). Esses(as) estudantes são os(as) responsáveis por
realizarem o Acompanhamento Terapêutico.
Sob supervisão acadêmica em diferentes espaços8, os(as) alunos(as) do
Estágio Básico realizam o Acompanhamento de 1 (um) usuário ou usuária
durante o período de 1 (um) ano. As(os) estagiárias(os) da Ênfase realizam o
AT de 2 (dois) casos, durante o mesmo intervalo de tempo. No ano de 2018 o
Projeto conta com a participação de, em média, 18 (dezoito) Acompanhantes
Terapêuticos dos quais dois, uma mulher e um homem, são estudantes da
Residência Integrada em Saúde Mental Coletiva da UFRGS. Além dos(as)
estudantes de graduação e residentes, o ATnaRede também integra a
participação de bolsistas de extensão e, eventualmente, alunos(as) do
mestrado e doutorado.
Em 2018 o Programa está realizando o atendimento de 17 (dezessete)
Acompanhamentos, dos quais 4 (quatro) são efetuados por uma dupla de
estudantes. O AT ocorre com 1 (um) encontro semanal, de duração variável
(em média três horas por encontro), o que resulta no Acompanhamento
Terapêutico com um total médio de 45 (quarenta e cinco) encontros ao ano.
Eventualmente, também são realizadas reuniões com as equipes dos serviços
da rede pública que acompanham os casos, reuniões com familiares,
instituições9, responsáveis, dentre outros. Situando a cidade como matéria da
clínica, os ATs ocorrem no encontro entre Acompanhante e Acompanhado(a)
7
Rio Grande do Sul, Brasil.
8
Todos(as) os(as) estudantes participam da supervisão coletiva que ocorre 1 (uma) vez por
semana, no período das 15h às 18h (1º grupo) e das 17h às 20h (2º grupo), com as
professoras psicólogas responsáveis pela coordenação geral do Programa.
Concomitantemente, participam da supervisão que ocorre na disciplina do Estágio específico
com a(o) professora(o) psicóloga(o) responsável e, quando ingressam no Projeto, realizam a
disciplina eletiva “Introdução a prática do Acompanhamento Terapêutico”, na qual também é
possível compartilhar e discutir as experiências do AT com os(as) colegas.
9
Alguns usuários e usuárias atendidos(as) pelo Programa residem em instituições de moradia
como, por exemplo, abrigos, residenciais terapêuticos, repúblicas ou casas de cuidado (tanto
públicas quanto privadas).
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em lugares variados da cidade, desde a moradia onde reside o(a) usuário(a),
nos serviços que acessa, instituições que reside, até em espaços públicos e
locais de lazer e/ou cultura. A escolha do lugar em que se realiza o
Acompanhamento está sujeita à demanda e singularidade do processo de cada
caso.
O Programa já beneficiou inúmeros usuários e usuárias dos serviços
públicos, possibilitando a ampliação de seus laços sociais, produção de
autonomia e reduzindo o número de internações psiquiátricas. De forma
paralela, interviu e acompanhou efeitos institucionais importantes ao fazer
incidir, nos serviços e nas políticas de que os usuários(as) se utilizam, uma
série de informações novas, relativas ao contexto da vida cotidiana desses(as)
usuários(as). Essas incidências resultam em outros olhares dos(as)
usuários(as) sobre si, assim como, requerem um reposicionamento das
equipes, com relação aos casos atendidos, produzindo outros significados
naquilo que estava naturalizado ou estagnado (Palombini, 2008). O trabalho
em rede, que o Programa propõe, permite realizar intervenções coletivas com
os serviços territoriais, resultando em intervenções mais heterogêneas e
articuladas (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2018).
Somados vinte anos de funcionamento em 2018, o Projeto propiciou a
capacitação de um número significativo de estudantes de graduação em
psicologia, suas iniciações na prática clínica e na aproximação com as políticas
públicas. A experiência acumulada pelo Programa ATnaRede tem contribuído
para a implementação de projetos similares em cursos de graduação
universitária e em projetos de educação permanente, junto a gestão estadual e
gestões municipais de saúde. Por ser uma referência na articulação entre
universidade, políticas públicas e o cuidado terapêutico em saúde mental, o
Programa tornou possível estabelecer diversas parcerias com órgãos públicos
e com outras universidades, seja pela via da extensão, pesquisa ou por
atividades de ensino (UFRGS, 2018).
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em consideração a questão de pesquisa, que visa analisar os possíveis efeitos
dos Direitos Sociais nos processos subjetivos e terapêuticos, decorrentes da
prática clínica em saúde mental, articulados às políticas públicas brasileiras.
Na primeira etapa, serão realizados registros de experiências -
narrativas, imagens, diários de campo e relatos – que remetam a atenção
psicossocial no Brasil e ao contexto sócio-histórico brasileiro. Serão priorizadas
experiências obtidas desde o ingresso no curso de doutorado, em março de
2016, mas não há uma restrição de data para a escolha dos materiais, o que
pode incluir experiências vivenciadas ao longo dos 12 anos de formação e de
prática profissional. Dentre alguns dos registros10, estão: cartazes, panfletos,
reportagens, notas públicas, materiais de pesquisa11, diários de campo,
anotações sobre participação em eventos, mobilizações sociais ou reflexões
produzidas em disciplinas ou em atividades acadêmicas que envolvam o tema
da saúde mental no Brasil.
Na segunda etapa, serão realizados registros de experiências -
narrativas, imagens, diários de campo e relatos – através da inserção no
Programa de Acompanhamento Terapêutico na Rede Pública - ATnaRede.
Serão enfatizadas experiências registradas a partir do encontro de supervisão,
que ocorre 1 (uma) vez por semana, com duração de 5 (cinco) horas, em que é
relatado e discutido os casos de Acompanhamento Terapêutico que o
Programa têm atendido. O ingresso do pesquisador no Programa ocorreu em
agosto de 2016 e pretende permanecer até dezembro do ano de 2019,
totalizando 28 meses de inserção no Programa. Dentre alguns dos registros a
partir da inserção no Programa ATnaRede, estão: fichas com os dados dos
10
Muitos dos materiais de pesquisa são de domínio público.
11
Materiais de pesquisa do Projeto “Implementação e descentralização da estratégia da gestão
autônoma da medicação (GAM) no estado do RS: efeitos de disseminação”, no qual o autor
compõe como membro da equipe. A pesquisa é um desdobramento do estudo multicêntrico,
UNICAMP – UFF – UFRJ - UFRGS (2009 - 2011), que teve como objetivo construir a versão
brasileira do Guia de Gestão Autônoma da Medicação (GUIA GAM-BR), traduzindo e
adaptando o instrumento criado pelos serviços alternativos de saúde mental no Quebec,
Canadá. Direcionado às pessoas usuárias dos serviços de saúde mental, o Guia GAM
possibilita criar espaços de fala sobre a experiência de uso de psicofármacos, visando
compartilhar decisões a esse respeito entre profissionais dos serviços e usuários(as). Na
pesquisa, são realizadas rodas de conversa, com a participação de pesquisadoras(es),
estudantes, profissionais e usuários(as), em que se compartilha sobre as experiências da GAM
nos serviços (Zambillo & Palombini 2017; Serrano-Miguel, Silveira & Palombini, 2016; Melo,
2015; Emerich, Onocko Campos & Passos, 2014; Passos, et al., 2013).
26
ATs, cadernos de atas12, cartazes, desenhos, diários de campo, anotações
sobre os relatos dos Acompanhantes, materiais obtidos a partir dos
Acompanhamentos e gravações dos encontros de supervisão.
A escolha dos materiais objetivou articular dados que emergem sobre o
campo da atenção psicossocial com as configurações sócio-históricas em torno
dos Direitos Sociais no Brasil, situando os processos subjetivos e terapêuticos
no contexto das políticas públicas brasileiras. Para acesso aos dados obtidos
através da pesquisa em saúde mental “Implementação e descentralização da
estratégia da gestão autônoma da medicação (GAM) no estado do RS: efeitos
de disseminação” se tem autorização do Comitê de Ética em Pesquisa da
UFRGS, número do parecer: 837.294. Referente aos dados do Programa
ATnaRede, se tem a aprovação da PROREXT (Pró-Reitoria de Extensão da
UFRGS) e aos usuários e usuárias do Programa foram entregues, devidamente
esclarecidos e assinados, os Termos de Consentimento que seguem a
Resolução 466/2012 do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Saúde
(Resolução n. 466, de 12 de dezembro de 2012). O restante dos materiais de
pesquisa são de domínio público.
12
Em cada reunião de supervisão um(a) estudante é responsável por registrar os relatos dos
casos. Cada usuário e usuária possui um espaço específico na ata, permitindo produzir
memórias sobre seu atendimento, desde o ingresso, permanência até a obtenção de alta do
Programa. O registro no caderno de atas dos Acompanhamentos ocorre desde novembro de
2015.
27
Desse modo, propõe-se compreender como se estabelece arranjos entre
governo, verdade e sujeito entre o campo da atenção psicossocial e o exercício
dos Direitos Sociais, visando colocar em discussão os efeitos dos direitos nos
processos subjetivos e terapêuticos quando articulados às políticas públicas
brasileiras. Para isso, será mapeado o modo como o discurso dos Direitos
Sociais - educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer,
segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e
assistência aos desamparados – emerge nos materiais analisados e coloca em
evidência a forma como os sujeitos produzem e conduzem a si, no mundo,
enquanto seres subjetivos de desejos e direitos. A noção de discurso, quando
posicionada na problemática da subjetividade, é situada para além do
enunciado oral, ou seja, incluem-se documentos, textos, imagens, diários de
campo, relatos, instituições, políticas, dentre outros contextos, reconhecidos
como não naturais, mas sim, racionalidades discursivas fabricadas, capazes de
expressar questões subjetivas de uma determinada época, as quais forjam
sistematicamente os objetos dos quais falam (Fischer, 2001).
O método de análise e discussão proposto nesse estudo situa o modo
como os discursos atuam enquanto processos de governo das vidas,
entendendo as estruturas de racionalidades dos materiais em análise como
centrais para compreensão das formas como os diferentes atores sociais
compreendem o mundo e conduzem suas experiências de vida. Tais
experiências articulam discursos naturalizados como verdadeiros e
mecanismos de assujeitamento, ligando campos sócio-históricos e produção de
modos de vida, o que remete a processos de subjetivação específicos, datados
e localizados historicamente (Hüning & Guareschi, 2009). Assim, o registro de
experiências - narrativas, imagens, diários de campo, relatos, dentre outros
documentos – opera como ferramenta que coloca os discursos em evidência,
possibilitando a problematização das subjetividades no campo da atenção
psicossocial no Brasil e os efeitos dos Direitos Sociais, via políticas públicas,
nos processos subjetivos e terapêuticos.
A formulação de narrativas, igualmente, ocupa um lugar importante no
método de pesquisa, ao contribuir no estudo das práticas em saúde mental,
produzindo um material denso e profundo sobre as experiências subjetivas dos
sujeitos de forma encarnada (Onocko-Campos et al., 2013). Desse modo,
28
através das narrativas, aliadas ao estudo dos discursos, torna-se possível
destacar a natureza expressiva dos dados enquanto produtos subjetivos,
restituindo-lhes “a coloração vívida” (p.11) na qual eles se apresentam, numa
experiência de linguagem compartilhada e, consequentemente, na
multiplicidade de vozes que envolvem (Melo, 2015). As narrativas, assim como
os demais materiais de pesquisa, tomam lugar central no método de análise,
fazendo emergir experiências e constituições subjetivas, incluindo aquelas que
remetem aos processos terapêuticos.
Os efeitos terapêuticos, enquanto objeto de pesquisa, serão avaliados
nos materiais tendo como parâmetro a noção de autonomia. O conceito de
autonomia, central para o movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira [RPB],
quando reportado aos sujeitos em sofrimento psíquico, tensiona as práticas
psiquiátricas tradicionais exigindo uma terapêutica que priorize inclusões e
produções de cidadanias, tendo a liberdade e o exercício dos direitos como
princípio do cuidado (Zambillo, 2015). Assim, os registros de experiências -
narrativas, imagens, diários de campo, relatos, dentre outros documentos -,
quando colocados em análise, serão avaliados pelo modo como visibilizam os
efeitos produzidos nas práticas do Acompanhamento Terapêutico, articuladas
as políticas públicas brasileiras e experiências na atenção psicossocial, que
dizem respeito à produção de autonomia dos sujeitos: ampliação dos laços
sociais, realização pessoal, conquista e exercício da cidadania e dos direitos.
Por fim, em relação ao método de pesquisa, cabe destacar que as
ferramentas teórico-metodológicas de autores Pós-Estruturalistas têm
contribuído para a necessária desnaturalização das práticas psicológicas, ao
apontar o processo gradativo de governamentalização da vida, experimentado
pelo ocidente moderno como algo que está longe de representar uma evolução
da humanidade, mas efeitos de um conjunto de relações que produzem formas
de subjetivação. Dessa forma, emerge a questão dos sujeitos de direitos como
sujeitos dessas políticas, ou seja, como experiência subjetiva de cidadania
produzida por práticas sócio-históricas em torno da democracia ocidental.
29
3. Direitos Sociais no Brasil: politicas públicas, paradoxos e ambiguidades
PREÂMBULO
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional
Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-
estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na
harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a
solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a
seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
(Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, s/p).
30
todos os Estados devem respeitar” (p.24), assim como, defender a população
de abusos das autoridades Estatais.
31
declarações, contemplando a diversidade de situações e sujeitos que
enfrentam violações” (p.50). Em 1985, foi instituído o Comitê de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais [CDESC] da Organização das Nações Unidas
[ONU], com o objetivo de avaliar o cumprimento do PIDESC pelos Estados
signatários e, então, em 1988, a Constituição Federal brasileira dedica um
Capítulo específico para a descrição dos DS.
Ao instituir os Direitos Sociais na Constituição de 1988, o Estado se
comprometia em garantir o exercício de condições dignas de vida para a
sociedade como um todo, afirmando a prestação positiva por parte do Poder
Público na efetivação de justiça social. De acordo com Sales e Pachú (2015),
os Direitos Sociais se constituem como direitos fundamentais dos sujeitos,
inerentes à noção de indivíduo, intitulados nas doutrinas jurídicas como ‘direitos
de segunda dimensão’. Nos direitos de segunda dimensão, o registro do
reconhecimento de sua importância em documentos jurídicos não é o
suficiente, fazendo-se necessárias estratégias para sua efetivação. Assim, para
materializar Direitos Sociais no cotidiano da população, faz-se necessária a
criação de políticas públicas, instrumentos de viabilização desses direitos,
através de medidas concretas, planejadas e bem definidas, por parte do Poder
Público, que estabelecem um elo entre população e a atuação do Estado.
Dentre as produções teóricas que conceituam o que seriam as políticas
públicas, encontram-se diversas definições. Na conceituação clássica de
Laswell (1936), ações e análises que visam formular políticas públicas
implicariam em responder questões como: quem ganha o quê? Por quê? E que
diferença faz? O autor Dye (1984) sugere as políticas públicas como via de
escolha do governo em realizar ou não realizar intervenções. De acordo com
Peters (1986), políticas públicas afirmariam a soma de atividades dos governos
que agem, diretamente ou por intermédio de delegações, na vida dos(as)
cidadãos(ãs). Em contexto brasileiro, segundo o Manual de Políticas Públicas
do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas [SEBRAE], “as
Políticas Públicas são a totalidade de ações, metas e planos que os governos
(nacionais, estaduais ou municipais) traçam para alcançar o bem-estar da
sociedade e o interesse público” (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e
Pequenas Empresas, 2008, p.5).
32
Tabela 1 - Levantamento do número de encaminhamentos de usuários e usuárias
para o Programa ATnaRede e os serviços públicos envolvidos. Dados evidenciam
algumas das diferentes políticas brasileiras, relacionadas aos Direitos Sociais,
presentes em meio à produção de subjetividades e práticas terapêuticas no campo da
saúde mental.
Número de usuários(as)
Ano acolhidos em Serviços públicos que encaminharam*
atendimento pelo
ATnaRede
2013 4
- Apoio Matricial [SMS/PMPA];
3 - Centro de Referência Especializado de
2014 Assistência Social [CREAS];
7 - Centro de Atenção Psicossocial [CAPS];
2015 - Centro de Avaliação Psicológica da
UFRGS [CAP];
2016 4 - Estratégia Saúde da Família [ESF];
- Núcleo de Abrigos Residenciais [NAR];
- Oficina de Geração de Renda [GeraPOA];
2017 2 - Ponto de Cultura (Ministério da Cultura);
- Unidade Básica de Saúde [UBS];
- Vara de Execução de Penas e Medidas
Total Alternativas [VEPMA];
2013 20
a 2017
33
Nesse sentido, o autor aponta sobre a forma como as políticas públicas
expressariam a conversão de decisões e demandas estatais e privadas em
intervenções públicas, que comprometeriam a população como um todo. A
articulação e negociação entre o que é do Estado e o que é do privado, ou do
público e do privado, então, se apresentariam como elementos inerentes à
noção de política pública (Pereira, 2011). Numa definição de política pública
semelhante, o apoio de entes privados, direta ou indiretamente, está previsto
na descrição do Manuel de Políticas Públicas do SEBRAE (2008), como via de
assegurar determinados direitos e, assim, atenuar desigualdades sociais e
proporcionar vida digna aos sujeitos, garantindo necessidades fundamentais de
sobrevivência.
Narrativa 3.
34
Como descrito na literatura revisada, políticas públicas teriam por função
melhorar as condições de vida da população, produzindo subjetividades em
meio à igualização de situações sociais desiguais. A produção de PPs está
prevista na Constituição Federal de 1988, nos Artigos 196 e 200, devendo ser
utilizadas para promover e fortalecer os Direitos Sociais. Assim, Direitos
Sociais e políticas públicas se articulam como pressupostos da garantia e gozo
dos direitos individuais na “medida em que criam condições materiais mais
propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona
condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade” (Silva, 1999,
pp. 289-290).
Nos estudos da psicologia sobre políticas de Direitos Sociais, na análise
de práticas e subjetividades, produzem-se, majoritariamente, pesquisas e
discussões referentes às políticas de saúde e de assistência social. Conforme
Yamamoto e Oliveira (2010), nos últimos 25 (vinte e cinco) anos a inserção de
psicólogas(os) se deu, prioritariamente, nessas áreas das PPS. Tal realidade
demandou da formação universitária uma adequação dos modelos
consagrados de atuação profissional, devido a conjunturas impostas pelas
próprias políticas. Assim, as práticas na esfera dos Direitos Sociais, via
políticas públicas, recolocaram o modo como o exercício da psicologia vinha se
produzindo historicamente no Brasil, já que inseriram no cotidiano brasilidade
às práticas profissionais, realidades sócio-histórico localizadas, também
tensionado pelos elementos específicos ao modo como se organizaram as
politicas públicas no contexto brasileiro.
A ideia de território e territorialidade, por exemplo, emerge na
especificidade das políticas públicas, como organizador das ofertas de serviços
de saúde e da assistência social, nos municípios brasileiros. No campo do
Direito Social à saúde, por exemplo, o conceito de território se constitui como
um elemento importante para distribuir e organizar os serviços, assim como,
para delimitar a área de abrangência das intervenções de cuidado. A noção
territorial, no âmbito do Sistema Único de Saúde [SUS], relaciona-se às
próprias diretrizes da política: num viés da descentralização, regionalização das
ações, organização dos serviços com vistas à expansão do acesso, cobertura
da população que o compõe, uso racional de recursos, atenção às
35
necessidades regionais e estímulo à participação popular local, nos espaços de
controle social (Gadelha, Machado, Lima & Baptista, 2009).
Assim, pensar a produção de subjetividades e os processos
terapêuticos, na esfera dos Direitos Sociais, inserindo uma lógica de cuidado
territorial, requer colocar em análise os paradoxos e ambiguidades em torno
dos dispositivos Estatais, constituídos para o esquadrinhamento da população
em uma perspectiva territorial. Cadastros, fichas de acompanhamento, visitas
domiciliares, regiões de pertencimento, formas identitárias (gestantes,
adolescentes, hipertensos, diabéticos, homens violentos...), mapas das
famílias, etc., incluem a população em práticas de controle pelas políticas
públicas e passam a fixar e segmentar os usuários à medida que o Estado
adentrar no território (Hillesheim & Bernardes, 2014).
Fonte: Gráfico do autor. Dados disponíveis no caderno de registro das atas do Programa.
36
Contudo, a ideia de território, como um dos elementos característicos de
algumas das políticas de garantia dos DS, ainda permanece restrita a um
recorte geográfico e não a uma perspectiva de território existencial
subjetivante. Na prática, a criação de territórios próprios para as políticas
transmuta-se em compreensões geográficas. Estas vão desde de direcionar
modos de circulação, modos de habitar e de ser, que expropriam, impedem de
circular ou produzem sentimentos de pertença ou de identificação sobre
aqueles que supostamente habitariam determinado recorte espacial; até a
evidencialização da complexidade em torno de uma dinâmica territorial:
abrange aspectos amplos, como o uso dos recursos de um território,
compreensão das migrações, o crescimento demográfico, as desigualdades
regionais, os diferentes interesses, saberes, ações governamentais,
formalidades, informalidades, legalidades, ilegalidades, sujeitos e conflitos que
compõem as condições socioespaciais e operam em determinado local
(Hillesheim & Bernardes, 2014).
A ideia de território e territorialidade, nas políticas públicas articuladas ao
campo da saúde mental, tem sua importância ao considerar que a Lei
Nº10.216, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de
transtornos mentais, considera os diferentes setores da vida de usuárias e
usuários, incluindo o contexto sócio-histórico e territorial para formulação das
práticas de cuidado. Ao redirecionar o modelo assistencial em saúde mental, a
jurisdição, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, situa a construção do
Projeto Terapêutico Singular [PTS] articulado as diferentes políticas públicas,
não apenas as da saúde, já que os sujeitos passam a ser compreendidos como
sujeitos sociais, em que a relação saúde-transtorno situa-se para além de um
organismo individual. Abarcar, então, o cuidado desses sujeitos requer situá-los
no contexto sócio-histórico e territorial em que vivem, produzem e são
produzidos, levando em consideração uma perspectiva ampliada de saúde.
Ampliar a noção de saúde requer inserir os diferentes Direitos Sociais -
educação, trabalho, lazer, moradia, etc. - como elementos inerentes a uma
constituição subjetiva cidadã, situando o adoecimento sob um olhar multifatorial
e reconhecendo a “atuação territorial, a intersetorialidade das políticas e o
trabalho em rede” como “elementos [...] que orientam a perspectiva da
desinstitucionalização, bem como a Estratégia de Atenção Psicossocial [EAPs]”
37
(p.642), pilares da política de saúde mental no Brasil. Desse modo, os
diferentes Direitos Sociais seriam operadores e aliados às estratégias
terapêuticas, já que atuam como ferramentas na constituição de autonomia,
cidadania e de uma qualidade de vida digna. Contudo, estudos têm apontado
que a construção de autonomia e reabilitação psicossocial no Brasil, na
perspectiva da cidadania, tem enfrentado limitações, exatamente pelo contexto
brasileiro carecer de equipamentos sociais que garantam os direitos previstos
em constituição (Severo & Dimenstein, 2011).
Relato 2.
Acho que seria passo de formiguinha, pra isso acontecer também, [...] por ser
um equilíbrio muito desproporcional, tu pega uma pessoa com uma autoestima
totalmente aniquilada por uma questão social do que é valorizado socialmente,
por que se tu vai nessas comunidades, o que tu vai ouvir muito é aquela
coisa assim “ah, eu quero ser doutor, eu quero ser advogado”, como se
isso fosse um topo de uma hierarquia de valor [...] as pessoas que não têm
a mesma autoestima que o psiquiatra tem a chegarem a falar. Eu acho que
esses processos são bem mais complexos [...] de muita coisa, tu conseguir
chegar na frente de alguém que já tem uma, se a gente pegar esses usuários
dos serviços, o médico realmente ele já tem uma estética de [...]. O que eu
quero dizer com uma estética [...] Ele cuidou os dentes desde pequeno, ele
teve uma nutrição muito boa, ele vem de outra classe social, então, as
palavras que ele usa, ele teve uma educação muito diferente da tua,
então, uma linguagem muito rebuscada e isso te intimida, tinha um usuário
que me dizia assim, “ai, tu fala tão bonito, eu não entendo, mas eu acho
bonito”. E daí é isso, tu tem alguns artifícios que, né, teu processo diferente, às
vezes, daquele usuário que passou fome, não teve acesso a dentista, né, não
teve [...], coisas básicas, assim, parece pra nós que “ah, não é nada”, mas
é, né, ele tem dificuldade de conseguir emprego, ele tem dificuldade pra
muitas coisas [...]
38
formulam Venturini, Galassi, Roda e Sérgio (2003), quando os autores indagam
sobre o modelo de sujeito idealizado, a partir do projeto da modernidade, que
ronda as práticas de cuidado em saúde mental. Este projeto de sujeito estaria
calcado na necessidade de recuperar aquilo que ‘faltaria ao louco’ para que ele
possa atender expectativas de ser ‘racional’, ‘consciente’, ‘lógico’ e, portanto,
‘mentalmente normalizado’.
Normalizar ou afirmar diferenças não são os únicos efeitos subjetivos e
terapêuticos encontrados nas literaturas sobre as políticas públicas no Brasil.
As ambiguidades e paradoxos em torno das produções de subjetividades e
práticas terapêuticas permeiam, não apenas, aquelas em meio aos serviços da
Rede de Atenção Psicossocial [RAPS], mas nas diferentes PPs de garantia dos
Direitos Sociais. Assim, não é porque as politicas existam e tenham se
estruturado no País, numa rede de serviços em nível crescente de
complexidade, norteadas pelo ideal de justiça social, que violações de direitos
e violências não possam ocorrer. Em relação ao Direito Social à moradia, por
exemplo, teve-se o discurso da garantia de direitos como norte para o
planejamento urbano nas cidades-sede da Copa do Mundo 2014. A justificativa
das obras executadas prometiam complementar a vida das comunidades, o
plano de circulação viária urbana da região, aperfeiçoando a operação do
sistema de transporte coletivo, melhorando o acesso a diversos pontos da
cidade, a trafegabilidade local, ampliando a circulação social, o transporte,
dentre outros (Prefeitura de Porto Alegre, 2014).
Entretanto, as alterações estruturais em torno do evento trouxeram
intervenções não previstas no Plano Diretor. A criação de obras e as alterações
nas zonas urbanas interferiram em áreas públicas e em leis anteriormente
consolidadas. Essas ações acarretaram uma série de efeitos de impacto
subjetivo na população: ações repressoras a moradores(as) de rua,
ambulantes, movimentos sociais, aliança entre serviços públicos e privados,
seja através das empresas de comunicação ou pela privatização de espaços
públicos através de imposições da FIFA, expansão do mercado imobiliário,
alterações nas políticas habitacionais e, principalmente, grandes especulações
imobiliárias. Sob o discurso da garantia de direitos, a desenfreada realização,
tanto pelo Estado, quanto pela iniciativa privada, de empreendimentos e obras
de mobilidade urbana resultaram na violação de direitos, remoções de diversas
39
pessoas de suas casas e comunidades, adoecendo famílias e sujeitos (Comitê
Popular COPA, s/d).
Leia-se:
Eu tu, Nós vamos dar as mãos Para lutar Pela Nossa saúde Física e mental.
Trabalhadores da área da saúde e usuários do Sus, Pois é nossa saúde a nossa vida
que esta em jogo. Se não lutamos juntos, nunca sairemos dessa situação Porque a
união faz a força. Desistir é para os fracos, os valentes Lutam até o fim! Vamos
trabalhar não só com a mente mas também com o coração.”
40
“O MEDO DO MEDO
Considerada um transtorno de ansiedade grave, a sensação de medo intenso
transforma a vida de quem é diagnosticado com o problema e provoca uma discussão
para além dos rótulos”.
2015 8 7 1 16** 0 1 1
(mês 11 a 12)*
42
2016 14 8 1 23** 0 1 2
(mês 1 a 12)
2017 12 8 0 20** 0 1 2
(mês 1 a 12)
2018 10 7 0 17** 0 1 1
(mês 1 a 3)
43
usuários e usuárias entre diferentes espaços físicos e grupos sociais. Nisso, a
ferramenta clínica do AT pode vir a servir para a manutenção, construção ou
reconstrução de diferentes laços sociais, territoriais e familiares (Velozo &
Serpa Júnior, 2006).
Narrativa 4.
Ele estava em casa sozinho, sua irmã havia ido para a praia por alguns dias. A
situação parecia uma novidade ao AT, mas, de novo, ele não expressava nada.
Pela primeira vez sua irmã o deixava sozinho em casa. Talvez,
anteriormente, ela tivesse medo de que ele se sentisse desconfortável fora de
casa ou causasse alguma situação indesejada pelo seu jeito de ser. Ele
parece tranquilo, assistindo TV, como de costume. Sua irmã havia deixado
comida pronta na geladeira, quase como se tudo tivesse sido preparado para
parecer mais um dia qualquer. Uma semana se passa, e sua irmã volta. No
novo encontro, pergunto a ele sobre seus sonhos.
- Eu gostaria de trabalhar.
- Ok, mas vamos com calma, quais outros sonhos podemos ir pensando
juntos?
Um silêncio se cria entre nós. Como uma pessoa que ficou tanto tempo em
casa, sem sair, tinha como um dos seus principais sonhos trabalhar?
44
plasticidade característica da ferramenta clínica do AT. Um processo que evoca
diferentes lugares, possibilidades, experiências, dimensões e passagens
(Velozo & Serpa Júnior, 2006). Acompanhar usuários e usuárias dos serviços
de saúde mental na sua circulação na cidade, pela cidade, com a cidade. Ao
desestabilizar roteiros, o Acompanhamento Terapêutico produz-se com íntima
relação ao inusitado e à necessidade de invenção. Imprevisibilidade e invenção
que se criam a partir do que se vai experienciando nas andanças
(Chnaideman, 2008).
Figura 9. Cartaz produzido no evento sobre saúde mental em São Lourenço do Sul
[RS] - Mental Tchê da Resistência - (2017) por profissionais, residentes, estudantes,
estagiários, usuários e usuárias de serviços de saúde mental e familiares, descreve
temas que envolvem o cotidiano subjetivo de suas vidas, processos terapêuticos e
práticas profissionais.
Leia-se:
45
responsabilizar o agressor, revolução, alegria! Atenção, igualdade, racial, institucional,
corrupção, medicalização, internação compulsória, golpe de estado, fome, mental,
morte, doméstica, mídia, exclusão social, agressão ao intelecto, policial, física, verbal,
discriminação, rótulos, estigma, gênero, resistência, tristeza, Estado, autonomia,
resiliência” (ao final da atividade, muitos(as) explicaram que se remeteram a palavra
‘violências’, no centro do cartaz, para incluírem suas palavras. O que resultaria em:
violência verbal, violência física, violência mental, etc.).
Narrativa 5.
Ele é grande, tem a pele bem negra, um rosto adorável... com uma expressão
que lembra algo fofo, como um ursinho de pelúcia. Deve pesar um 110 kilos e
46
está sempre rindo alto. Estão ensinando ele a amarrar seus próprios
sapatos. Ele parece ter dificuldade em conseguir, mas sempre espera esse
momento com concentração e silêncio. Não se comunica por palavras do
português, mas sim, muito mais emitindo sons aleatórios e gestos.
Frequentemente fica sentado, balançando o corpo para a frente e para atrás,
ou mexendo a cabeça repetidamente como se algo o incomodasse no pescoço.
Mas ele não parece incomodado. Sempre que nos encontramos ele quer ir
para a rua. Na verdade, o lugar preferido dele parece ser o posto de
conveniências que fica na avenida próxima ao Residencial Terapêutico. O
prazer dele não parece estar em comprar coisas, mas sim, no encontro que
ele tem com o atendente do caixa. Quando chega ao caixa, ele para de pé e
fica emitindo sons e gestos ao atendente como se estivesse conversando
sobre vários assuntos. O atendente sempre sorri.
47
políticas públicas, os transeuntes, aquilo que está imóvel, ou de passagem,
registram-se como dispositivos possíveis para produzir outros modos de
subjetivação (Berger; Morettin & Neto, 1991).
No panorama urbano da cidade, as políticas públicas, como os serviços
de saúde e os demais locais que visam garantir Direitos Sociais, apresentam-
se como ferramentas ofertadas pelo Estado que materializam a possibilidade
de agenciar os sujeitos a algo que é do coletivo, que remete a uma
determinada forma de organização social. Assim, escolas, postos de saúde,
meios de transporte, praças, serviços de assistência social, espaços de cultura,
lazer, dentre outros, situam-se como cenários da trama clínica do
Acompanhamento Terapêutico.
Relato 3.
[...] o doutor [...] uma vez quase me matou, foi aumentando, aumentando, o
remédio... eu fiquei tão sedada, tão sedada, que eu não conseguia descascar
uma laranja, não conseguia tomar banho sozinha, aí o meu marido me levou no
consultório e ele falou assim “leva lá no hospital e larga lá, essa ali não tem
mais jeito”, eu tava dopada, mas tava ouvindo muito bem! Aí quando eu
cheguei lá no médico e ele veio logo, quando eu cheguei no Hospital tava o
doutor Cláudio lá, daí disse “essa guria tá muito intoxicada”, daí pegou e fez um
processo de desintoxicação, até mandou uma carta (para a Unidade Básica de
Saúde) pedindo que eu não podia tomar remédio forte, aí eu [...] preferi
continuar com ele, que já me conhece e eu tenho confiança nele.
48
Em 2011, com a Portaria Nº 3.088, de 23 de dezembro, instituiu-se a
Rede de Atenção Psicossocial – RAPS - para pessoas com sofrimento ou
transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e
outras drogas. Ainda prioritariamente com ações em torno do Direito Social à
saúde, a RAPS está representada pelos serviços e equipamentos, tais como:
os Centros de Atenção Psicossocial, os Serviços Residenciais Terapêuticos, os
Centros de Convivência e Cultura, as Unidade de Acolhimento (UAs), e os
leitos de atenção integral (em Hospitais Gerais, nos CAPS III) (Portaria Nº
3.088, de 23 de dezembro de 2011).
Apesar de ser uma ação vinculada ao Sistema Único de Saúde, que
compreende o sujeito de forma integral, psicológica e socialmente (atenção
psicossocial), no documento de descrição da RAPS ainda predomina a
descrição de serviços de cuidado prioritariamente na área do Direito Social à
saúde. A articulação com políticas de garantia de outros Direitos Sociais talvez
se materialize quando se compreende os Centros de Convivência e Cultura
(Direito Social ao lazer); as Estratégias de Desintitucionalização - Programa de
Volta para Casa [PVC] (que pelo auxílio-reabilitação ajudaria a garantir outros
Direitos Sociais, como o de alimentação, por exemplo); e as Estratégias de
Reabilitação Psicossocial - Iniciativas de Geração de Trabalho e Renda,
Empreendimentos Solidários e Cooperativas Sociais – que aproximariam os
usuários e usuárias de ações em torno do Direito Social ao trabalho.
A ideia de direito aparece na Portaria da RAPS quatro vezes: 1) quando
reporta a Lei nº 10.216 “sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras
de transtornos mentais”; 2) no Art. 2º que afirma como uma das diretrizes da
RAPS “I - respeito aos direitos humanos, garantindo a autonomia e a liberdade
das pessoas”; 3) no Art. 4º sobre os objetivos da RAPS “VII - produzir e ofertar
informações sobre direitos das pessoas, medidas de prevenção e cuidado e os
serviços disponíveis na rede”; e 4) no Art. 10º quando especifica sobre os
pontos de atenção da Rede de Atenção Psicossocial na atenção hospitalar “§
1º [...] cuidado integral por meio de estratégias substitutivas, na perspectiva da
garantia de direitos com a promoção de autonomia e o exercício de cidadania,
buscando sua progressiva inclusão social” (Portaria Nº 3.088, de 23 de
dezembro de 2011, s.p).
49
Garantir, proteger, respeitar, produzir, ofertar e prevenir emergem como
verbos em torno das ações sobre os direitos na RAPS. Promover cidadania,
liberdade, cuidado, autonomia e inclusão social circunscrevem-se como
objetivos. Contudo, apesar de citar os Direitos Humanos, a RAPS não faz
referência direta aos Direitos Sociais e, portanto, não os legitima como
inerentes à produção de processos terapêuticos no campo da saúde mental
brasileira. A ideia de Direitos Sociais também não é referenciada em nenhuma
das principais leis e portarias que embasam a RAPS: Lei Nº 10.216 de 2001
(que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de
transtornos mentais); Lei Nº 10.708, de 31 de julho de 2003 (que institui o
auxílio-reabilitação psicossocial); Portaria Nº 336, de 19 de fevereiro de 2002
(que regulamenta o funcionamento dos CAPS); e Portaria Nº 4.279, de 30 de
dezembro de 2010 (que estabelece diretrizes para a organização da Rede de
Atenção à Saúde [RAS] no âmbito do Sistema Único de Saúde).
Entretanto, a inexistência da noção de Direitos Sociais, nas principais
leis e portarias sobre as políticas públicas de saúde mental no Brasil, não
significa que nas práticas profissionais cotidianas não se produzam processos
terapêuticos aliados aos serviços e ações em torno dos DS. Nas bibliografias
sobre Acompanhamento Terapêutico, por exemplo, é possível encontrar relatos
de experiências sobre uma série de práticas que envolvem o uso terapêutico
do AT aliado às políticas públicas, tais como as de saúde, educação, infância,
assistência aos desamparados, dentre outras (Silveira, 2016; Barros &
Brandão, 2011; Meira, 2013; Carniel & Pedrão, 2010).
Essa inerente aproximação do AT com as políticas públicas remete ao
que ele permite operacionalizar, desde o contexto clínico, com sua proposta
terapêutica localizada sócio-histórica e territorialmente. Ou seja, quando se
produzem processos terapêuticos envolvendo a complexa rede de relações dos
sujeitos (pessoas, lugares, objetos, espaços e temporalidades múltiplas),
constitutivas da subjetividade, torna-se compreensivo que o Acompanhamento
Terapêutico percorra as diferentes esferas das vidas dos sujeitos e, assim,
adentre também na dinâmica dos serviços comunitários e territoriais dos quais
esses sujeitos se utilizam (Palombini, 2017). De acordo com Palombini (2017),
a maleável ferramenta do AT, que sustenta imprevistos e demanda improvisos,
foi útil ao processo de implementação da Reforma Psiquiátrica exatamente por
50
propor um cuidado em liberdade e intersetorial, que articula a produção de
autonomia vinculada ao exercício de habitar, usufruir e constituir a cidade, ou
seja, ao exercício da cidadania.
Fonte: imagem do autor. Lado externo do terminal centro do Trensurb de Porto Alegre - RS.
[...] pois, acompanhando o usuário, tanto nos seus percursos pelos serviços e
outros dispositivos próprios às políticas públicas, quanto na experimentação de
uma sociabilidade que se exerce em espaços variados da cidade, é o próprio
processo de implantação da reforma psiquiátrica que é, assim, acompanhado,
pondo em análise o funcionamento da rede e as formas como as comunidades
locais, a começar pelas famílias, respondem à desinstitucionalização da
loucura (Palombini, 2017, p.16).
51
reiterada, como terminologia que compõe o texto de uma série de leis, portarias
e outros documentos que sustentam as diretrizes e princípios dos serviços
brasileiros. Na regulamentação da Rede de Atenção Psicossocial, por exemplo,
a ideia de autonomia aparecerá 5 (cinco) vezes, como no Art. 2º, Inciso I, que
afirma o respeito aos Direitos Humanos como inerente à garantia de
“autonomia e liberdade”; no Inciso VII, que articula a proposta de
“desenvolvimento de atividades no território [...] com vistas à promoção de
autonomia”; no Art. 6º, Inciso I, que compreende a Unidade Básica de Saúde
como via “de desenvolver a atenção integral que impacte na situação de saúde
e autonomia das pessoas” e as Estratégias de Desinstitucionalização como
iniciativas que atuem na “promoção de autonomia”, além de afirmar as
iniciativas de geração de trabalho e renda/empreendimentos
solidários/cooperativas sociais como recursos para “ampliação de autonomia”
(Portaria Nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011, s.p).
Direito e autonomia, assim como inclusão social e cidadania, aparecem
articulados em alguns pontos do documento, o que leva a considerar a
proximidade, ou inseparabilidade, com que eles são operacionalizados. De
acordo com Zambillo (2015), a noção de autonomia ganha destaque nos
discursos vinculados aos movimentos da Reforma Psiquiátrica, e também da
Reforma Sanitária Brasileira [RSB], por permitir operacionalizar o que Leal
(2001) descreveu como certo rompimento da dicotomia entre indivíduo e
sociedade – rompimento que o termo, autonomia, possibilitava sustentar, em
um momento sócio-histórico em que havia certa hegemonia de um discurso
biológico e determinista de se compreender os processos de saúde.
A ideia de autonomia ganha destaque ao afirmar a inseparabilidade que
há entre produção de saúde, ética, singularidades (individuais e territoriais) e a
não segregação. Realizando um mapeamento de como o termo aparece em
pesquisa sobre materiais bibliográficos da RPB, entre os anos de 1986 e 1998,
Leal, 2001 (citado por Zambillo, 2015), sintetiza:
52
introjetado, é concebido como uma terceira instância no ‘interior’ do sujeito,
diferenciado, por suas características próprias, do eu e do outro de si.
(iii) Autonomia dizendo respeito ao indivíduo livre, independente,
autossuficiente, mas que tem essa potência limitada pelas obrigações para
com o meio onde está inserido.
(iv) Autonomia definida como capacidade do indivíduo de gerar normas para
sua vida, capacidade essa que parte de sua possibilidade de ampliar relações
com o social (p.83-84).
53
perspectiva sócio-histórica, influenciam na realidade materializada nesse
campo de disputas no Brasil.
Sem a garantia de direitos é possível desenvolver autonomia? Se os
Direitos Sociais existem para garantir uma vida digna, que possíveis
autonomias são produzidas quando não há a garantia deles? Contribuindo para
essas questões, formuladas pelo presente Projeto de Pesquisa, Vasconcelos
(2000) alerta que, no Brasil e nas sociedades latino-americanas, predomina
uma estrutura cultural hegemonicamente hierárquica, em contraste com o
individualismo anglo-saxônico e escandinavo. Derivado de uma lógica
escravagista, essa conjuntura resultaria em uma não valorização da autonomia
e da independência pessoal, já que as relações se pautam pela dependência
pessoal, tomando por base sua rede de pertencimento. As políticas públicas,
“pobres e segmentadas, com forte perfil de exploração e desigualdade entre as
classes e grupos sociais, e com exclusão da grande maioria da população ao
acesso aos bens materiais e serviços sociais básicos”, também seriam
predominantemente Estatais, diferentemente de muitos países que usufruem
de “organizações não-governamentais financiáveis pelo Estado para a provisão
de serviços de suporte em saúde mental” (p.174).
Relato 4.
54
negras nos serviços e na gestão dos mesmos, pois algumas pessoas não
conseguem pensar estratégias quando as situações não lhes afetam
diretamente. Assim, uma pergunta fica “martelando” na minha cabeça, “Por que
as pessoas atendidas pelo AT nesse território são brancas?” [...] Contudo, há
uma quantidade considerável de pessoas negras institucionalizadas por
questões de saúde mental. Isso leva ao seguinte questionamento: “Essas
pessoas tiveram a oportunidades de outras formas de cuidado antes da
internação?”. Eu não sei, mas analisando como as coisas acontecem,
provavelmente não tenham tido tal oportunidade. Situações como essa estão
ligadas aos inúmeros estereótipos atribuídos aos corpos negros. A imagem que
as pessoas têm sobre as pessoas negras. Assim, eu enquanto mulher negra e
estudante de psicologia, também me pego a pensar que talvez não esteja
sendo vista pelos acompanhados e pelas pessoas que acabo encontrando
nesse trabalho como uma psicóloga, à medida que, a figura de um(a)
psicólogo(a) esteja distanciada da figura negra. No local onde os
acompanhados fazem consultas periódicas com a psiquiatra, a equipe é
composta por profissionais brancos sem distinção de cargos. E esse é o perfil
de profissionais com os quais eles estão acostumados a tratar. Algumas vezes
um dos acompanhados se direcionou a mim de uma forma mais grosseira,
invalidando a minha experiência de estudante de psicologia, como se não fosse
digno de consideração os apontamentos que eu fazia e, inevitavelmente eu não
pude deixar de pensar sobre a imagem que o acompanhado tinha de mim.
Embora existam coisas que me distanciam dos acompanhados, como; as
vivências, raça/cor, saúde, trajetórias, entre outros, o AT faz com que a gente
crie estratégias para que as experiências possam se harmonizar e nessa
caminhada essa troca trazer benefícios para todos. [...] Por fim, tendo
consciência da importância do trabalho e dos esforços de quem trabalha com
AT, encerro esse texto com um provérbio africano que diz: “Gente simples,
fazendo coisas pequenas, em lugares pouco importantes, consegue mudanças
extraordinária”.
55
Severo e Dimenstein (2011) apontam contradições no campo da
reabilitação psicossocial para a produção de cidadania, que vêm somar-se às
questões aqui formuladas em relação à articulação entre direitos, autonomia e
saúde mental: predomínio da lógica do déficit, na exigência da nomeação
‘incapacitado’ para se garantir direitos e benefícios sociais; dependência
das(os) usuárias(os) ao serviço de saúde mental, a qual se produz também na
medida em que as atividades oferecidas são a única possibilidade dos usuários
acessarem espaços sociais – “É onde eu me distraio...O único canto que eu
saio é pra lá” (usuário); dificuldade de avanços na intersetorialidade pela
precariedade das políticas públicas, onde os “projetos terapêuticos
predominantes são constituídos pelas consultas psiquiátricas e [...] as
atividades projetadas (pelos profissionais, nos projetos terapêuticos) coincidem
com as mesmas atividades já desenvolvidas pelos usuários no serviço”
(p.649. Parênteses nosso), restringindo a circulação social dos(as) usuários(as)
aos serviços de saúde mental.
O percurso teórico deste capítulo delineou-se na articulação dos
seguintes termos: clínica, AT, circulação, cidade, território, saúde mental,
inclusão social, contextos comunitários de vida, modos de vida, subjetividades,
espaços urbanos, construção de vínculos, adoecimento psíquico, liberdades,
imprevisibilidade, invenção, práticas de cuidado, saúde, autonomia, autonomia
como ação, empowerment e auto valorização. Ao contextualizar práticas
terapêuticas em saúde mental no contexto brasileiro à luz dos princípios da
Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, materializou-se um panorama
sócio-histórico no Brasil marcado por hierarquias, imobilizações, isolamentos,
socializações limitadas, circulações circunscritas, elitizações, desigualdades e
exclusões. Todos esses elementos confluem na articulação proposta entre
Acompanhamento Terapêutico, Direitos Sociais, políticas públicas e a produção
de autonomias, permitindo ampliar a análise sobre os Direitos Sociais e a
prática clínica no país, seus efeitos subjetivos e terapêuticos, objetivo do
presente Projeto de Doutorado.
56
políticas públicas, o presente Projeto de Doutorado inicialmente descreveu o
processo de delineamento do tema, para, em seguida, especificar os
procedimentos metodológicos e, por fim, revisar bibliografias sobre os Direitos
Sociais, Acompanhamento Terapêutico, prática clínica e as políticas públicas.
Nesse percorrido, recorreu-se a autoras e autores, de diferentes áreas, e suas
contribuições para a análise dos temas que envolvem a presente proposta de
estudo.
Conjuntamente ao processo de contextualização da pesquisa e revisão
bibliográfica, optou-se por formular a escrita inserindo, ao longo do texto, os
possíveis materiais de estudo - dados dos casos atendidos pelo Programa
ATnaRede e os registros de experiências (narrativas, imagens, diários de
campo, relatos, dentre outros documentos) –, intentando compartilhar com as
avaliadoras do Projeto fragmentos dos materiais de pesquisa, reunidos ao
longo dos dois primeiros anos de doutorado. Esses materiais visibilizam
elementos importantes para problematizar a produção de subjetividades no
campo da saúde mental, no contexto sócio-histórico do Brasil, apontando
especificidades vívidas e subjetivas envolvendo os processos terapêuticos e
subjetivos em meio às políticas públicas brasileiras e a atenção psicossocial.
Pretende-se continuar o acompanhamento dos atendimentos e ações do
Programa ATnaRede, assim como a participação na pesquisa sobre o Guia
GAM e o registro de experiências sobre as políticas de atenção psicossocial no
Brasil. Também está previsto, no cronograma de pesquisa, a experiência de
Doutorado Sanduíche junto ao Programa de Pós-graduação em Psicologia
[PPG] da Universidade Federal de Santa Catarina [UFSC]. Tal experiência
acontece como possibilidade de cursar as disciplinas ofertadas pelo PPG da
UFSC e de participar das atividades do Grupo de Pesquisa “Psicanálise,
Processos criativos e Interações Políticas - LAPCIP/UFSC”, coordenado pela
Prof. Drª. Ana Lúcia Mandelli de Marsillac, especialmente no Projeto de
Extensão “Acompanhamento terapêutico: clínica e criação na cidade”.
Se for avaliado como pertinente pelas membras da banca, futuramente,
objetiva-se contrapor os materiais de pesquisa com as revisões bibliográficas
trabalhadas ao longo da escrita, com o intuito de avançar na análise sobre os
temas de estudo. Materiais que remetam ao contexto sócio-histórico do Brasil
permanecem tendo relevância à pesquisa, ao contribuírem para pensar os
57
Direitos Sociais e as práticas em saúde mental em solo brasileiro. O exercício
clínico, a noção de direitos e a materialidade das políticas públicas no Brasil
apresentam-se como marcadores que possibilitam, através da articulação entre
eles, avançar na produção de conhecimento sobre a prática clínica da
psicologia, ao evidenciarem especificidades sócio-históricas que recaem sobre
a produção de subjetividades e terapêuticas localizadas e singulares.
Compreende-se que estudos nessa abordagem contribuem, também,
incluindo elementos, em especial, ao campo da atenção psicossocial, no que
se refere ao processo de formulação dos Projetos Terapêuticos Singulares.
PTSs que considerem os possíveis efeitos subjetivos e terapêuticos que os
Direitos Sociais podem exercer na produção de saúde, adoecimento,
autonomia, paradoxos e/ou contradições, no cotidiano de vida da população
brasileira. Ao mesmo tempo, a pesquisa visa afirmar uma análise que parta dos
dispositivos da saúde mental para atingir algo muito mais amplo, ou seja, os
Direitos Sociais no Brasil e o modo como eles operam.
2. Acompanhar as ações
do Projeto de Extensão X
ATnaRede, incluindo a
leitura e análise de
materiais que já foram
produzidos sobre o
mesmo
3. Acompanhar as ações X X X X X X X X X X X X X
do Projeto de Extensão
da UFSC, incluindo a
leitura e análise de
materiais que já foram
produzidos sobre o
mesmo.
4. Cursar disciplinas,
atividades e eventos na X X X X X X X X X X X X X
UFSC
5. Registro de X X X X X X X X X X X X X
experiências - narrativas,
imagens, diários de
58
campo, relatos, dentre
outros documentos –
sobre a atenção
psicossocial e os Direitos
Sociais no contexto sócio-
histórico do Brasil
6. Estabelecer X X X X X X X X X X X X X
interlocuções para a
possibilidade de futuras
parcerias entre o PPG da
UFSC e o PPGPSI da
UFRGS.
8. Participar em X X X X X
congressos para
apresentação dos
resultados da
investigação.
9. Escrita e divulgação X
dos resultados finais.
6. Referências
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