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António Lobo Antunes é uma personagem de ficção

Evelyn Blaut Fernandes


Centro de Literatura Portuguesa
Universidade de Coimbra

Resumo
A par da trilogia autobiográfica (composta por Memória de elefante, Os cus de Judas e Conhecimento do
inferno), de António Lobo Antunes, Sôbolos rios que vão é também uma espécie de sublimação, uma vez
que, compreendendo o fenómeno da criação artística, se trata de um livro autobiográfico. Contudo, o que
há de comum em todos eles é que a própria escrita é uma prática fantasmática, por vezes contaminada por
uma afetiva dificuldade de expressão à qual se junta uma figuração peculiar do real. Este movimento cria
um cenário de repetição e de (con)fusão entre o que se considera ser ficção e o que se transforma em ficção.

Palavras-chave: António Lobo Antunes; personagem; fantasma; real e invenção; morte e vida.

Abstract
As well as the autobiographical trilogy (composed by Memória de elefante, Os cus de Judas and Conhecimento
do inferno), by António Lobo Antunes, Sôbolos rios que vão is also a kind of sublimation. Understanding
the phenomenon of artistic creation, this book is an autobiographical book. However, what there is in
common in all of them is the own writing as a ghost practice, sometimes crossed by an affective difficulty
of expression to which is added a peculiar figuration of real. This movement creates a design of repetition
and (con)fusion between what is believed to be fiction and what becomes fiction.

Keywords: António Lobo Antunes; character; ghost; real and invention; death and life.

Poucas coisas podem ser mais complexas do que a travessia de um “rio corrente” (CA-
MÕES, 1980, p. 281). O seu simbolismo é o da morte e, portanto, da renovação e das passagens
de onde tudo vem e para onde tudo vai (e volta). O curso da existência humana, com a sucessão
de sensações e a variedade dos seus desvios podem ter o significado de uma presença precária,
formada pela junção de instantes efémeros. Foi neste contexto que Jorge Luís Borges remontou
à antiga metáfora filosófica dos gregos sobre nenhum homem se banhar duas vezes no mesmo
rio: “com um emergente sentido de espanto, sentimos que nós também estamos mudando – que
somos tão cambiantes e evanescentes quanto o rio” (BORGES, 2000, p. 22-23). Pois bem, um rio
não é senão aquilo que passa. Além disso, a mera conjunção dessas duas palavras já sugere uma
metáfora vital: o tempo e o rio são tão fugidios quanto nós.
Mas o curso do rio é também uma forma de elaborar o percurso ficcional de uma vida e da
sua memória. Ao retomar o primeiro verso das mais insignes redondilhas camonianas, Sôbolos

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António Lobo Antunes é uma personagem de ficção

rios que vão mistura a recordação da nascente do Mondego com frequentes devaneios do narra-
dor que, estando num hospital, se atemoriza com uma morte iminente. Um romance que toma
por base esta imagem aquática é também uma forma de, revendo a própria ventura, materializar
uma afirmação da vida. A mesma água que batiza, mas antes transporta, é a que substancializa
a metáfora de uma vivência.
Seguindo a legibilidade da ficção portuguesa, Sôbolos rios que vão é um afluente impregnado
de uma dinâmica vital que os outros romances antunianos não raramente possuem. Uma leitura
diagonal permite dizer que este romance é a partilha de uma experiência excessivamente biográ-
fica. No entanto, independentemente de biografismos, o título antuniano dirige-se imediatamente
ao rio camoniano, um canto de morte que faz evocar o sentido de Heráclito: assim como não
se entra duas vezes no mesmo rio, não se lê a mesma obra duas vezes da mesma forma. Ora, o
rio camoniano não é, está sendo. O rio antuniano, por sua vez, é uma espécie de exaltação deste
gerúndio que é a potência vital.
Enquanto o senhor Antunes atravessa um rio, ou é por ele atravessado, rememora a sua visita
ao Mondego. Alguns rios entrelaçam-se, portanto, nesta narrativa: o próprio rio Mondego, o da
infância de Antoninho; “os rios que vão” sendo construídos a partir do poema camoniano; o rio
simbólico que mescla morte e vida, e que desemboca no período em que o senhor Antunes se
encontra no hospital para tratar de um “ouriço de um castanheiro […] no interior de si a que o
médico chamava cancro aumentando em silêncio” (ANTUNES, 2010, p. 11).
Diante da probabilidade de um fim definitivo que poderia acontecer enquanto um “ouriço se
lhe dilatasse nas tripas arranhando” (ANTUNES, 2010, p. 12), o senhor Antunes parte, viajando
ao redor do quarto do hospital, ao encontro de uma linhagem que o conduz à infância e aos seus
antepassados. Essa viagem atinge a presentificação de espaços resgatados que se alinham com o
devastado presente, formando um rio imagístico que mistura devaneios e realidades, presente e
passado. No contexto antuniano, ao invés de um rio com duas margens, há uma margem com
dois rios que se bifurcam: o Mondego da infância e o simbólico rio dos infernos que está sendo
atravessado pelo senhor Antunes, cujas “águas preencheram uma função psicológica essencial:
absorver as sombras, oferecer um túmulo cotidiano a tudo o que, diariamente, morre em nós”
(BACHELARD, 1997, p. 58).
É a sua estadia num hospital transformado em terra estrangeira pelo “seu pavor e as suas
lágrimas” (ANTUNES, 2010, p. 23) que o faz transportar “a infância para o hospital […], re-
fugiando-se nela e no interior da música que nela ouve, como se, desse modo, a morte o não
apanhasse” (ARNAUT, 2011, p. 392). O hospital, lugar de vigília, de semi-ausência, é um espaço
do entre que, de acordo com Jacques Lacan, “quer dizer interposição. Porque o entre é muito am-
bíguo” (LACAN, 2011, p. 91, grifos do autor). É aí, nesse entre, que o fantasma reside por inteiro,
e é aí também que reside a mais conseguida oportunidade de desenvolver artifícios para lidar,
se possível for, com situações em que se deixa “de ser pessoa sem se dar conta, [como] um peixe

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numa água mais espessa que a água, a que os outros chamavam ar e ele chamava ar igualmente
antes da dor que não chegava a ser dor” (ANTUNES, 2010, p. 99). Nesse sentido, o hospital é
“o lugar neutro: é a utopia do terceiro termo, a deriva para longe do par demasiadamente puro:
falar/calar-se” (BARTHES, 2003, p. 159, grifos do autor). Logo, o hospital é o lugar do silêncio
e é também uma terra povoada por fantasmas como “a avó que morreu há tantos anos ali viva
com ele” (ANTUNES, 2010, p. 11).
Aliás, perante este pesadelo que dinamita o corpo por dentro, não só a avó é evocada para
o acompanhar, mas também a “Mãe que está junto dele, no final do romance, para caucionar o
renascimento que a cura da doença constitui” (SEIXO, 2011, p. 468), e o pai que, desde a origem,
ensina o curso do rio. Amparado pelas figuras de ambos os progenitores, é a presença da mãe que
o protege, afinal era “o peito dela o sítio onde ancorar o seu medo do mundo” (ANTUNES, 2010,
p. 191). É ela quem lhe proporciona uma reviravolta positiva “a ocultar a dor” (ANTUNES, 2010,
p. 198) e eliminar um acidente que, por vezes, parece intransponível, acompanhando-o numa
sequência de saídas (da doença, do hospital) para que ele retorne, renovado, à vida, ao invés de
“lá descans[ar] eternamente” (CAMÕES, 1980, p. 284), como dizem as redondilhas camonianas.
Em outras palavras, é a mãe que, como um abismo, oferece o abraço assim como a filha de Ana
Emília: “é com a minha mãe que eu giro” (ANTUNES, 2007, p. 479).
Antes disso, no entanto, o senhor Antunes não só evoca, mas também convive com os fan-
tasmas evocados durante o período de internamento, que mais parece uma condensação fantas-
magórica. A recuperação de vivências materiais e humanas parece ser a única forma de lidar com
o medo e a dor que ele atravessa. Atravessa igualmente o Mondego do seu imaginário infantil.
Mas, além de ser um referente efetivo, este rio é o transporte que simbolicamente o encaminha
para a sua infância. É por estas águas nem sempre límpidas da memória que o senhor Antunes
revê Antoninho, mesmo porque o senhor Antunes internado no hospital sente-se apenas aquele
Antoninho e, ao refletir sobre parte de sua trajetória a fim de passar o passado a limpo, esbarra,
afinal, nos seus próprios medos, nos seus (des)afetos e, muitas vezes, na sua (des)memória.
Aliás, a imagem do Mondego que perpassa todo o romance simboliza a vivência do protago-
nista, também ele quase imperceptível na nascente mas que vai, paulatinamente, ganhando curso e
afluentes. Esta imagem representa “o fio da vida que vai da nascente à foz. É a fantasia de morte de
alguém que perde a identidade antes de ter chegado a perceber que identidade era essa” (CATALÃO,
2011, p. 471). Embora tudo isso tenha sido produzido para suplantar a sensação de abandono e
de solidão, por encarar a doença como “um castigo” (ANTUNES, 2010, p. 23) e ver-se a si mesmo
como um “palhaço com cancro” (ANTUNES, 2010, p. 22), o senhor Antunes permanece “intriga[do]
que a doença crescesse no interior do chumbo e todavia nem surpresa nem terror” (ANTUNES,
2010, p. 188). É também sem surpresa nem terror que passa a conhecer este inferno, desta vez por
dentro, pelas próprias vísceras, assombrado pela morte mas, por fim, atravessado pela vida, pela
sua própria e pela memória de outras tantas que para ele fizeram sentido.

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Neste romance de António Lobo Antunes, somente o passado e o futuro subsistem no


tempo, uma vez que o instante espesso subdivide cada presente em passado e futuro, em vez
de presentes vastos. Assim, é o instante que perverte insistentemente o presente em futuro e
passado. Afinal, “outros passados ainda, a sua vida cheia de passados e não sabia qual deles o
verdadeiro, memórias que se sobrepunham, recordações contraditórias, imagens que desconhecia
e não sonhava pertencerem-lhe” (ANTUNES, 2010, p. 137). Acontecimentos reais e imaginários
interpenetram-se, muito embora a distinção não seja exatamente entre o imaginário e o real,
mas entre o acontecimento como tal e o estado no qual se efetua. Acontecimentos podem ser – e
produzem – efeitos. Como escreveu Gilles Deleuze, “Freud tem razão de manter os direitos da
realidade na produção dos fantasmas, no momento mesmo em que reconhece estes como pro-
dutos que ultrapassam a realidade” (DELEUZE, 1974, p. 217). Os fantasmas, no instante em que
se caracterizam como efeitos, e porque são efeitos, diferem de suas causas reais, como herança
filogenética e constituição hereditária. É que o fantasma distingue-se não somente dos estados
de coisas e de suas qualidades, mas do vivido psicológico e, por isso, submetido à dualidade que
remete a fatores externos e internos. Nem internos nem externos, nem imaginários nem reais,
os fantasmas, diante da impassibilidade do acontecimento, podem insinuar uma espera insupor-
tável, a espera do que pode resultar, do que se acha em vias, do que não acaba mais de resultar.
Embora o fantasma tenha a propriedade de voltar, ele não se deixa fixar a um lugar, ainda
que reversível. O fantasma originário caracteriza-se pela ausência paralelamente à presença do
sujeito na cena. Ele figura-se a si mesmo tornado numa sequência de imagens na qual a perso-
nagem, por vezes, se dissipa. Esta formulação resumida poderia ser fixada, por exemplo, quando
o fantasma encontra o seu ponto de partida (ou o seu autor). Ou seja, o fantasma dissolve-se no
estado de coisas correspondente e representa também o conjunto de circunstâncias na qual se
encontra o senhor Antunes. Por isso, o fantasma abrange também uma combinação variável de
pontos singulares que constroem, em torno destas singularidades, um caso de solução.
A relação essencial do fantasma reside no movimento que propicia a percepção da experi-
ência que o atravessa. Ele abre-se, assim, à superfície de uma estrutura profunda que o aprisiona
internamente e relaciona-se metaforicamente a um ouriço, já que, como nos lembra Gilles Deleuze,
“o simbolismo está na base de todo fantasma” (DELEUZE, 1974, p. 223) e no desenvolvimento
da vida fantasmática. É mesmo isto um fantasma: um fenómeno que se forma num determinado
momento para, a seguir, se deformar e reaparecer. E é a sua extrema mobilidade e a sua capacidade
de “passagem” que faz desta uma experiência profundamente fantasmática, como se pertencesse a
uma superfície de articulação entre exterior e interior, presente e passado. Volto a Gilles Deleuze
porque é também ele quem questiona para qual “direção vai o fantasma, para onde carrega seu
começo” (DELEUZE, 1974, p. 225).
Desta forma, um título como O fantasma de Camões (de Jorge de Sena) não poderia passar
despercebido. Apesar de remeter muito brevemente ao incipit camoniano, talvez uma das senhas

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metamorfoseadas por António Lobo Antunes esteja justamente no fantasma camoniano, já que
“Camões coloca-se numa perspectiva existencial de exílio terreno e de busca individual da saída
redentora, numa espécie de balanço crítico que faz da sua vida e da sua obra. Por isso há quem
tenha visto nestas redondilhas uma autobiografia espiritual” (MOURA, 2011, p. 835, grifos do
autor). A matéria do romance antuniano, por outro lado, remonta parcialmente aos versos ca-
monianos, pois também ele, e a seu tempo e modo, percorre os rios que vão da convalescença à
infância. E, quiçá, só assim pudesse lidar com o seu próprio fantasma. Se o romance de António
Lobo Antunes possui laivos autobiográficos, penso não só na escrita (“grafia”) da vida (“bio”),
mas na vida daquele que escreve.
Não posso, contudo, deixar de perceber que o projeto da autobiografia é tão ficcional como
qualquer outro, até porque “bio” é também um modo de escrita com ficção, ainda que tanto o
poema camoniano quanto o romance antuniano partam de um relato factual. Apesar disso, o
dado de realidade sofre uma aguda alteração do “bio” ficcional. Ambos os textos, o camoniano e
o antuniano, se constituem como exílios existenciais que narram o vórtice sombrio pelo qual as
suas personagens passam. Mas, por fim, enquanto o sujeito poético se acha “[d]itoso” por “par-
tir”, “tão justo e tão penitente” (CAMÕES, 1980, p. 284), “o senhor Antunes” está “sobre os rios
a caminho da foz” (ANTUNES, 2010, p. 199), no final do romance, que termina com a inscrição
latina “Exeunt Omnes”. Esta marcação teatral designa que todos os atores, ou todas as figuras,
saem de cena. De facto, o senhor Antunes sai não só da cena ficcional, sai também do hospital,
“ou o hospital uma invenção como as outras” (ANTUNES, 2010, p. 196), como quem acaba de
realizar uma longa e dolorosa digressão.
Mas é verdade também que o fantasma reintegra tudo na retomada do seu próprio mo-
vimento. À medida que constitui um processo incorporal, a carga afetiva explica-se pela res-
sonância interna do fantasma. Através desta ressonância o simulacro aporta uma impressão
de morte, de ruptura ou de desmembramento da vida, embora, neste caso, esta impressão de
morte acabe por ressoar uma amplitude vital. De todo modo, o movimento que arrastou o
senhor Antunes transformou-o ou, pode-se mesmo dizer, reconstruiu-o. Sôbolos rios que vão
reúne experiências reais numa estrutura de obra de arte: após a constituição do caos que o
compreende segue-se a restituição da vida, pois “há uma grande diferença entre destruir para
conservar e perpetuar a ordem restabelecida das representações, dos modelos e das cópias
e destruir os modelos e as cópias para instaurar o caos que cria” (DELEUZE, 1974, p. 271).
Longe de ter sido um caos premeditadamente instaurado, tão pouco desejado, aquele “ouriço
de um castanheiro […] aumentando em silêncio” (ANTUNES, 2010, p. 11) constitui, de facto,
uma reinvenção.
É justamente por meio da invenção que a personagem-fantasma António Lobo Antunes, e
com ela o seu autor, se glorifica na mesma proporção em que se transforma em objeto. No entan-
to, o que existe, a meu ver, é uma sobreposição de planos, fazendo coexistir num espaço único

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António Lobo Antunes é uma personagem de ficção

a entidade autoral e a personagem-fantasma que compartilha o mesmo nome do escritor. Até


porque este nome também pertence identicamente ao seu avô paterno. António Lobo Antunes já
comentou que se “alguma vaidade me resta é a de usar o seu nome” (cf. COELHO, 2004, p. 35).
Mas, com certeza, ele referia-se à sua pessoa física, e não à sua personagem-fantasma. Quanto a
esta, “se lhe perguntassem o nome hesitava, no caso de possuir um nome a algália levá-lo-ia para
um saco graduado e ele sem nome outra vez” (ANTUNES, 2010, p. 52).
Na ficção de António Lobo Antunes, esta personagem-fantasma não é anti-humana, nem
inumana, nem monstruosa, nem decomposta, nem nenhuma destas coisas se almeja. Esta figu-
ra é um regente sinfónico que interfere numa legião de fantasmas. E com este regente, é “um
escritor que vamos conhecendo cada vez melhor porque o elemento narrativo dos seus livros é
cada vez mais atenuado […]. Aquele que impõe a sua ordem ao seu caos é um autor. Um autor é
um demiurgo. Há poucos autores. António Lobo Antunes é um autor” (COELHO, 2004, p. 14).
Mas António Lobo Antunes é também o nome de uma personagem e é ela que, muitas vezes,
expõe o demiurgo, porque o espaço ficcional pode ser conveniente para dizer verdades ou uma
fenda onde se guardam segredos. Ao fabricar personagens, ficamos também a saber de algumas
histórias pessoais do escritor. Porque o mesmo artista que desenha os vultos fantasmagóricos
das suas personagens também determina “uma presença que carrega consigo, contemporane-
amente, a fixa materialidade do corpo morto e a fantasmática inapreensibilidade do ser vivo”
(AGAMBEN, 2007, p. 86).
Como tive a oportunidade de escrever em outro lugar (cf. FERNANDES, 2010a), António
Lobo Antunes experiencia a literatura não só como demiurgo, mas como uma espécie de títere
habitante da ficção. É desta maneira que a pessoa civil ganha verossimilhança e eternidade como
personagem de romance, vivendo “de uma maneira exemplar o perigoso pacto do eu com a
linguagem: a “nova aliança” na qual o homem se faz verbo” (STAROBINSKI, 1991, p. 207). Este
pode ser um modo de refletir a literatura, elaborando-a por dentro, e de pensar o bastidor da
ficção, ao introduzir-se nela.
A ficção de António Lobo Antunes, ou boa parte dela, especialmente a partir de Não entres
tão depressa nessa noite escura, pode ser considerada o que Jorge Luis Borges chamou prosa al-
çada a verso (cf. BORGES, 2000, p. 68). Para além da sintaxe montada em blocos de sentido, o
encavalgamento como ritmo pedagógico de leitura destaca-se dentre as características da escrita
antuniana. Os cavalos de Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? não remetem apenas
à memória de um tempo da ascensão da família, acabam também por ditar o ritmo da leitura:
o(s) livro(s) deve(m) ser lido(s) a galope, como sugere a sintaxe de romance(s) ritmicamente
costurado(s). Ao mesmo tempo, sugere-se que as personagens narram para um guardador de
memórias, que tem uma memória de elefante e que nem sempre consegue acompanhar o fluxo
das vozes, como reclama Beatriz: “eis o António Lobo Antunes a saltar frases não logrando
acompanhar-me e a afogar num tanque os gatinhos do que sinto para se desembaraçar de mim”

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(ANTUNES, 2009, p. 17). Por isso, esta personagem-fantasma, António Lobo Antunes, salta e
repete frases, trota com as palavras, num galope de leitura e escrita, que é também uma estrutura
poética (FERNANDES, 2010a, p. 193).
Toda a obra antuniana, sobretudo a mais recente, é uma forma de repetição ou adaptação
dela mesma. Um “repertório repete-se”, escreveu Peter Brook, “e, para isso acontecer, é preciso
fixar alguma coisa” (BROOK, 2008, p. 29). Porventura, a personagem passível de “fixar alguma
coisa” como se fosse real é António Lobo Antunes, porque é ela que pode suscitar no leitor a
suspeita de que aquilo que se conta num romance aconteceu de facto, ou é total ou parcialmente
inventado. O universo ficcional torna-se, assim, o espaço mais propício a acolher a verdade, até
porque a “verdade tem uma estrutura ficcional”, afirmou Jacques Lacan (cf. ŽIŽEK, 2006, p. 57);
e, afinal, “que falsa a realidade, é a mentira que está certa” (ANTUNES, 2009, p. 335).
A realidade, no entanto, é uma “camada do real que reflete as pessoas e os problemas que
[as] circundam” (BROOK, 2008, p. 34), coincidindo com as camadas da existência. Por outro
lado, a literatura é a “possibilidade de uma nova relação com as coisas: a apropriação da [ir]
realidade” (AGAMBEN, 2007, p. 85) “sem sufocação de verdade” (BARTHES, 2009, p. 187).
Entre uma e outra surge esta personagem-fantasma, “emblema da tentativa do homem, no limite
de um risco psíquico essencial de dar corpo aos próprios fantasmas e de tornar predominante,
em uma prática artística, aquilo que, de contrário, não poderia ser captado nem conhecido”.
Giorgio Agamben refere-se às “relíquias de um passado no qual está escrita a cifra edênica
da infância” e também a “uma vaga ideia do que só pode ser possuído se estiver perdido para
sempre” (AGAMBEN, 2007, p. 55-56).
A propósito da ficção antuniana, Tereza Coelho segue a hipótese de que o “homem que es-
creve segue um homem que foi, os registos ficam sob a forma de livros” (COELHO, 2004, p. 94).
A personagem responsável por este “registo” é, insisto, a que recebe o mesmo nome do seu autor.
Porque esta personagem consegue entrar num muito interseccional espírito. “Ele não é um juiz”,
nem “é um criador” (BROOK, 2008, p. 44-45); ele é uma personagem imaginária, assim como
“o leitor é um[a] personagem imaginári[a]”, conforme escreveu Peter Brook sobre a natureza do
texto dramático para compor o retrato desta personagem. Ele é uma personagem imaginária a
partir de si mesmo porque “talvez eu também seja um[a] personagem imaginári[a]” (BORGES,
2000, p. 121-122).
Esta “personagem imaginária” ou personagem-fantasma poderia também ser aquilo que
Ana Paula Arnaut designou “máscara-disfarce” “de um narrador de primeira pessoa” que se ca-
racterizaria por ser o vestígio da “potestade omnisciente que controla a maior parte dos relatos”
(ARNAUT, 2012, p. 31). Acredito que o vestígio dessa “potestade omnisciente” possa também
funcionar como uma espécie de “figuração peculiar da morte, pela qual se lhe d[á] vida ou mo-
vimento, criando-se um esquema de reversibilidade que permita pensar a morte como vida e
esta como morte” (GUIMARÃES, 1998, p. 12). Poderia acrescentar que se trata de uma incor-

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poração fantasmática, ou mesmo fágica, de uma figura testemunhal que continua a fazer parte
da constelação ficcional do autor. Como escreveu Agripina Carriço Vieira, sobre Caminho como
uma casa em chamas,

[n]este jogo de vozes e de olhares sobre o mundo, somos guiados de apartamento em apartamento,
o mesmo é dizer de vida em vida, por uma entidade que apenas surge mencionada pontualmente
pelo viés da referência à sua atividade, a de estar a registar as falas das personagens ou de pedir para
que façam o seu registo, patente como nos seguintes excertos: “ponham anuir que impressiona”; “não
escrevo que uma gargalhada, escrevo que divertido”; “não arranjei maneira de escrever isto bem mas
espero que entendam”; “ia escrever violência e acertou em cheio”; “não me obriguem a escrever isso”
(VIEIRA, 2014, p. 13).

Como escrevi em outra ocasião, “[s]e o autor (…) ‘deve continuar inexpresso na obra’, ‘pre-
cisamente desse modo testemunha a própria presença irredutível’. Esta afirmação seria outro
modo de dizer que o autor se transforma numa espécie de ‘personagem do autor’” (FERNANDES,
2010b, p. 117). Por isso, acredito que esta personagem-fantasma funciona também como uma
espécie de testemunha, porque

se o testemunho, desde logo, se tornasse prova, informação, certeza ou arquivo, perderia a sua função
de testemunho. Para permanecer testemunho, ele deve portanto deixar-se assombrar. Deve deixar-se
parasitar por aquilo mesmo que exclui do seu foro interior, a possibilidade, pelo menos, da literatura
(DERRIDA, 2004, p. 24-25, grifo do autor).

Já não é, pois, o autor a fazer-se de personagem, mas uma personagem com características
autorais ou parcialmente testemunhais, uma vez que ela nem sempre dá conta do relato na ínte-
gra. A sua voz não garante a verdade factual do enunciado, mas assegura uma existência tanto
perante a memória quanto perante o esquecimento, porque esta voz ficcional só existe enquanto
alguém acreditar nela, esta voz “está associada ao miraculoso, ao fantástico, ao fantasmático, ao
espectral, à visão, à aparição, ao tocar do intocável, à experiência do extraordinário, à história sem
natureza, à anomalia (DERRIDA, 2004, p. 79-80). É este traço inseparável que também impede,
muitas vezes, de discernir as percepções reais das imaginárias. Como teoria geral do fantasma,
esta personagem restabelece o papel espectral nos processos da ficção antuniana. Se nos primeiros
romances, ou mesmo com Sôbolos rios que vão, podíamos falar em romances autobiográficos, os
livros ditados a esta personagem-fantasma renovam um processo essencialmente fantasmático.
Quid medium entre corpóreo e incorpóreo, ela permite dar conta de fenómenos. Ela não é um
corpo externo, embora tenha muitos dados biográficos ou autoficcionais, mas uma imagem in-
terior, um fantasma impresso da figura de autor, de modo que esta personagem também poderia
ser deduzida como uma figuração do autor empírico.

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Neste emaranhado de vozes não está ausente a relação do escritor com todos os fantasmas
que habitam os livros e a voz fantasmática dele próprio a dar voz a todas as demais vozes,
criando uma espécie de celeuma como se ele fosse no fundo mais um fantasma a habitar os
livros. Assim como esta personagem precisa do relato para existir, a obra literária só se rea-
liza em toda a sua plenitude quando é verossímil. Sendo assim, António Lobo Antunes é um
escritor. E António Lobo Antunes é uma personagem; uma personagem-escritor, se assim
preferirem. É este estatuto fantasmático que lhe permite sentar-se para inventar personagens
e contar-nos os seus segredos. E, através deles, elaborar também aquilo no que se tornou:
“chamo-me António Lobo Antunes, nasci em São Sebastião da Pedreira e ando a escrever um
livro” (ANTUNES, 2007, p. 465).
A sua obra poderia ser considerada um “emblema da tentativa do homem, no limite de um
risco psíquico essencial, de dar corpo aos próprios fantasmas e de tornar predominante, em uma
prática artística, aquilo que, do contrário, não poderia ser captado nem conhecido” (AGAMBEN,
2007, p. 55-56). Ao perceber que “os tempos se confundem na chuva contra a acácia” (ANTUNES,
2010, p. 30), o senhor Antunes, demasiado próximo de uma atmosfera liquescente, busca escapes
contra o esquecimento e encontra-o no vestígio de um tempo remoto. E, só através dessa saída
momentânea do presente, continua a existir. Não é, portanto, um acaso se o desenvolvimento
inerente ao fantasma se exprime através de transformações. O fantasma é inseparável dos casos
fortuitos que coloca em cena. Mas decerto a sua aparição provoca alterações e aquele que, através
dele, se vê a si mesmo, para além de ver e ser visto, regressa de uma experiência como que virado
do avesso, ou como quem, finalmente, entra em acordo com o próprio tempo.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad. Selvino José
Assmann. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007.
ANTUNES, António Lobo. Ontem não te vi em Babilónia. 3. ed./1. ed. ne varietur. Lisboa: Dom
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Minicurrículo

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Evelyn Blaut Fernandes

Evelyn Blaut Fernandes é doutora suma cum laude em Literatura Portuguesa pela Universidade de Coimbra,
membro do Centro de Literatura Portuguesa da mesma universidade e da Associação Internacional de
Estudos Ibero-Eslavos da Universidade de Lisboa. Publicou o livro As dezenove regras do romance policial
(North Charleston, On-Demand Publishing, LLC, 2015), além de vários ensaios em periódicos nacionais
e internacionais dedicados, sobretudo, à ficção contemporânea em língua portuguesa. É coeditora da
Antologia, revista de poesia publicada pelo selo Demônio Negro.

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