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lemuel guerra
2 . a sociologia não respeita nem pai nem mãe. entra sem pedir licença, sem piedade,
sem complacência! quando ela circula em nossas veias, aprendemos que não temos que
esperar ler isto ou aquilo, e aquilo sobre isto, e isto sobre aquilo para nos atrever a falar
em nossos nomes. nossa relação com autores, teorias, discursos autorizados, com
dogmas, é de assalto, como alguém que invade, que ocupa, que entra e sai sem
permissão, que rouba o beijo, o sexo, o prazer, sem respeito sacralizante, sem prestar
continências, nem seguir scripts. tudo bem que os autores falem pelas nossas bocas de
sociólogos, mas o que lhes fazemos dizer tem algo de monstruoso, porque envolve a
força do fluxo e agenciamento deles, mas potencializa também descentramentos,
deslizes, deformações, usos imprevistos, traições, trocas de fluxos discursivos, que são
apenas fluxos, sem primazia sobre outros fluxos como os de merda, sangue, esperma,
saliva, suor, medos, correntes políticas, ação e contra-ação, de subjetivação, de trabalho
de suspensão de si e do naturalizado, ao sabor da corrente e da contracorrente.
3 . a sociologia permite um gozo em certa medida perverso: o gosto de todo ser dizer as
coisas que quer dizer em nome próprio: não como um sujeito, um eu, uma pessoa que
fala respeitosamente em seu nome, mas quando, através de um rigorosíssimo exercício,
nos despersonalizamos, nos abrimos de ponta a ponta para sermos atravessados pelas
multiplicidades e intensidades que nos percorrem. é quando aprendemos a falar do
fundo do que não sabemos, de dentro da nossa ignorância desejante, interessada, armada
com uma atenção dificultada, como aquela exigida dos que habitam pântanos e se
acostumam com nenhum chão firme nunca. quando nos tornamos uma legião, um
conjunto de singularidades soltas, de nomes, sangue, unhas, respiração dos pequenos
acontecimentos, de estrias do magma dos fenômenos é que somos mesmo sociólogos.
quando somos atravessados, enrabados de assalto por um estilo, um jeito, um modo de
olhar e ser as coisas que queremos ver e entender.
discurso que já lemos ou ouvimos, como se tudo fosse igual às bonecas russas, uma
contendo a outra.
5 . o lance agora é considerar os discursos que produzimos e com que nos deparamos
em termos do que funciona ou do que não funciona; do como funcionam para mim,
para você, para outros. se não funcionam, passemos para outra coisa. nosso encontro
com os discursos escritos, lidos, desenhados, tocados, mostrados, nossa produção de
comentários, descrições, associações, todo nosso exercício da sociologia é regido pela
intensidade, ao modo das correntes elétricas: passa ou não passa. trata-se menos de
explicar, compreender, interpretar e mais de sentir, de se deixar atravessar, de se
permitir afetar. todo discurso será colocado imediatamente com o fora dele, algo como
uma engrenagem menor contida em engrenagens maiores e mais complexas, a serem
entendidas nelas, com elas e contra elas. em que medida os nossos discursos serão
compreendidos e compreendemos os dos outros depende das correntes que ativamos e
que são em nós ativadas, da funcionalidade delas para nós próprios e para os outros.
8. a aposta da sociologia não é na ontologia dos fenômenos, dos grupos, das identidades,
das instituições, mas nas relações transversais em que esses e outros traços e efeitos da
vida social são produzidos, sem se preocupar em estabelecer com certeza que se
pretende científica o ser e o estar no mundo – nenhuma bicha, nenhum hétero, nenhum
professor, aluno, ou qualquer coisa em que pensemos e pelo que nos definamos, poderá
dizer com certeza: eu sou uma bicha, eu sou hétero/homem, eu sou hétero/mulher, eu
sou hetero/homo-transx/y/z, eu sou professor, eu sou aluno etc. mobilizamos jogos de
linguagem em cujo âmbito e a partir dos quais pinçamos conceitos, categorias, com as
quais antes de querer oferecer fórmulas explicadoras aos moldes das ciências duras,
construímos interpretações de subterrâneos e mecanismos invisíveis em atuação no
estilo figuracional (metonímico, metafórico). a sociologia opera em um regime do
incerto, dos improváveis, do devir universal, pensando como os grupos, indivíduos,
instituições, nações, descobrem, simbolizam, definem os vários, as populações, as
espécies, os materiais, sentimentos, símbolos, discursos, práticas diversos que os
habitam e atravessam.
produzem quando o sociólogo recua da posição lhe outorgada biograficamente, pela sua
inserção em sistemas de socialização e moldagem de si, no fora e dentro da sua própria
formação de sociólogo, ativando os modos antirreduplicação, antinaturalização do seu
lugar e do lugar dos outros sociais, introduzindo uma espécie de ‘desafinação no coro’,
algo a ser evitado pelos que se interessam em apagar os vestígios dos golpes e
contragolpes, com o objetivo escroto de manter a aparente inescapabilidade das coisas
socioculturais, pela proteção das forças com que se exercem as correntes sociogênicas
que nos arrastam, poderosas.
11. o/a sociólogo/a faz seu trabalho de revolver os jogos de tensões, as tensões dos
jogos, montando, através de sua paixão antidocumental, aquela que desconfia de sua
potência de ‘registro do verdadeiro’, maquinações antimaquínicas, assumidas em seu
caráter pluriperspectivístico, parcial, contaminado, resultante do deixar-se
atravessamento pela legião de autores, de sujeitos que falam pela sua boca e são por
ele/ela falados, gaguejados, silenciados, distorcidos, empoderados, desentendidos,
estendidos, traídos, usados, parafraseados, negados, atravessados – os léxicos em cujos
fluxos e contrafluxos somos forjados, constroem-nos como falantes, constroem nossos
lugares de fala e não o contrário.
12. depois que passa pelas mãos, pelos olhos, pelo nariz, pelo desejo do sociólogo, tudo
parece seu. depois que passa pelas suas mãos, olhos, desejo, nariz, nada parece seu! a
tarefa do sociólogo: dar aos fenômenos uma voz, uma imagem, uma fantasmagoria
elaborada, sem medo de perdê-los, traí-los! ao contrário, só interessa ao sociólogo o
que teve força, caráter, para se perder dele. o sociólogo não trancafia afetos, cheiros,
memórias, paisagens, funcionamentos, fluxos e contrafluxos, imagens que ele criou. o
sociólogo é parteiro desanestesiador do mundo, que o marca e que é por ele
ousadamente reconstruído.
14. o olhar/o ouvir/o sentir/o imaginar/o adivinhar sociológico serão tão mais
interessantes e flamejantes quanto mais capazes de perceber modulações, consonâncias,
dissonâncias, cadências, pausas, silêncios, vagarosidades, acelerações, variações nas
espessuras fenomênicas e epifenomênicas, o contraponto espesso dos sentidos e dos
não-sentidos da complexa rede de acontecimentos que formam a vida social, oferecendo
para os indivíduos interessados modos de tradução do que vivem e deixam de viver, aos
quais eles eventualmente sejam indiferentes ou mesmo resistentes.
17. nos que fazem sociologia, o pensamento/razão e as emoções não dirigem ‘de fora’ a
interpretação exercitada: sociólogos são eles mesmos, enquanto analistas, fenômenos e
devires a serem analisados. eles sujeitos se constroem à medida que reconstroem os
seus objetos, criando meios de expressão, idiomas analíticos que se moldam de acordo
com sentidos e não-sentidos fenomênicos e epifenomênicos, tomados como pontos a
serem iluminados, dobrados, redobrados.
18. toda análise sociológica é também uma fonte de recriação dos instrumentos teórico-
metodológicos através dos quais se exercita e passam a ser manejados segundo sintaxes
novas, despertadas pelas relações sujeito-objeto ativadas. o senso comum limita-se a
abordar por signos convencionais as significações dos fenômenos já instaladas na
sociedade/cultura. a sociologia é a arte de captar sentidos e não-sentidos não dantes
objetivados, tornando-os acessíveis aos sujeitos que os ativam/experimentam, como se
fosse a produção em prosa de uma poética das relações humanas – em suas implicações
com o não-humano – através da qual emerge o apelo arriscado de liberdades e
aprisionamentos particulares a conjuntos de outras liberdades e aprisionamentos –
referidos a outras espacialidades e temporalidades – em cuja presença o ‘a ser
explicado/descrito/interpretado’ é colocado.
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19. a maneira mais interessante de entender uma época e seus fenômenos não é se
concentrando nas características explícitas que definem seus edifícios sociais e
ideológicos, mas sim nos seus fantasmas renegados, que assombram das profundezas,
que habitam uma região misteriosa de entes cuja visibilidade nos é negada, os quais, no
entanto, persistem e continuam a ser eficazes na afetação das dinâmicas da vida social.
fazer sociologia é intercruzar imagens especulares do simbólico/imaginário (mitos,
narrativas, atos fundacionais reconhecidos e disseminados pelas sociodiceias
dissseminadas pelas instâncias socializadoras legítimas) com o material que compõe a
história secreta dos grupos, instituições sociais, aquela referida à ordem do substrato
obsceno do tecido social, a zona fantasmática, ‘espectral’, que sustenta efetivamente o
caráter explícito do que dizemos, fazemos e dizemos fazer, tão mais poderosos quanto
permanecerem implícitos, habitando o espaço tateante das entrelinhas, do segredo que
não ousa sequer se pensar, das fantasias traumáticas que se transmitem nas lacunas, nas
fraturas, naqueles momentos nos quais se olha sem saber para onde ou o quê.
20. é quando somos tomados pelo não entendimento, atravessados pelas falhas dos
jogos de linguagem, pela gagueira que nos desconcerta e embaraça, quando criamos
uma língua estrangeira a partir da matéria-prima do léxico da nossa língua materna, nas
suas veias e artérias e no meio dela, para falar, sentir, ouvir e ler os fenômenos do
mundo, que podemos ser mais radicalmente sociólogos.