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São Paulo
2020
IDD – INSTITUTO DAMÁSIO DE DIREITO
Tese de Especialização
São Paulo
2020
IDD – INSTITUTO DAMÁSIO DE DIREITO
BANCA EXAMINADORA
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São Paulo
2020
RESUMO
A) FONTES JURÍDICAS
B) TRIBUNAIS
BVerfGE = Bundesverfassungsgericht
BVerfGG = Bundesverfassungsgerichtsgesetz
BAG = Bundesarbeitsgericht
LG = Landgericht
OLG = Oberlandesgericht
STF = Supremo Tribunal Federal
STJ = Superior Tribunal de Justiça
SCOTUS = Supreme Court of the United States
TJ = Tribunal de Justiça
TRF = Tribunal Regional Federal
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12
3.4. Teoria da eficácia imediata ou direta dos direitos fundamentais. Hans Carl
Nipperdey e o “Bundesarbeitsgericht”. Recepção da teoria na Europa continental ............ 65
4.4.2.2. Mediação legislativa e efeitos indiretos como regra em sua realização ... 93
6.3.1.1 Google e Facebook como “state actors”: uma discussão crescente nos
Estados Unidos................................................................................................................... 155
6.4.2.2. Transparência na definição do conteúdo vedado pela rede social ....... 176
INTRODUÇÃO
Toda concentração de poder clama por controle, do que são instrumentos os direitos
fundamentais. Esta a visão contemporânea dos direitos fundamentais que prevalece no sistema
romano-germânico: eles servem ao combate à opressão, independentemente de quem seja o
sujeito opressor, o Estado, outros cidadãos, ou empresas.
O primeiro capítulo explora com mais detalhes o contexto histórico atual e a posição
de poder que nele é ocupada pelas redes sociais de streaming, em especial o YouTube, que é a
maior de todas elas, e, por isso, o foco principal da tese.
13
O quarto capítulo é uma continuação direta do terceiro e apresenta quais teorias foram
adotadas pela doutrina e pela jurisprudência do país a respeito da eficácia dos direitos
fundamentais em relações privadas. Debruça-se especificamente sobre as obras de Daniel
Sarmento, Wilson Steinmetz e Virgílio Afonso da Silva; na jurisprudência, destaca-se a
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.
As redes sociais estão substituindo a televisão e o rádio como principal meio de acesso
à informação pela população (NETTO, 2019, on-line; THOMPSON, 2012, on-line). É inegável
o impacto social desta troca. Os veículos tradicionais de comunicação em massa, que até então
reinavam como influenciadores da opinião pública, estão perdendo o controle da narrativa
política e, com isso, sua capacidade de conduzir as escolhas populares. Embora ainda se discuta
o quão decisivas as redes sociais têm sido para a determinação do rumo político dos países, a
sua capacidade de influência é consenso.
Estudos sugerem que publicações nas redes sociais, inclusive de notícias falsas,
tiveram grande influência grande na eleição de Donald Trump em 2016 nos Estados Unidos
(MARS, 2018, on-line), em especial pelo grande barulho provocado nas redes por seus grupos
de apoiadores mais fanáticos, uma minoria que se fez maioria no ambiente virtual. Segundo
reportagem do El País, grupos de extrema direita, que representavam apenas 11% dos
seguidores do então candidato, foram responsáveis por cerca de 60% dos retweets de suas
publicações durante o período eleitoral. Tendência que se seguiu em outros países, como na
campanha do Brexit, nas eleições da Alemanha, França e dentre outros (GOLDZWEIG, 2018,
on-line).
1
Sobre a perda de relevância da televisão, confira-se o infográfico "O poder do tempo de TV", que demonstra a
mudança de paradigma na propaganda eleitoral no Brasil em: O PODER do tempo de TV. O Tempo. Belo
Horizonte, on-line. 01 out. 2018. Disponível em: <https://www.otempo.com.br/infograficos/o-poder-do-tempo-
de-tv-1.2038397>. Acesso em: 10 jan. 2020.
2
Sobre streaming, confira o tópico 1.2.
15
recursos e pouco tempo de campanha na televisão (MIRANDA, 2018, on-line). Não à toa, o
sucesso do candidato Jair Bolsonaro é, em parte, atribuído a seu alcance nas mídias sociais (EL
PAÍS, 2018, on-line). Mas não só Bolsonaro confiou no poder das redes sociais para se eleger3.
Muitos membros do Poder Legislativo eleitos naquele pleito iniciaram suas carreiras no
YouTube, ou nele encontraram a sua maior fonte de exposição, como é o caso do deputado
estadual por São Paulo Arthur “Mamãe falei” do Val e dos deputados federais Joice
Hasselmann e Luis Miranda.
Bem por isso, é certo que as redes sociais hoje detêm considerável perspectiva de
direcionar o debate político. De uma parte, pela promoção de certo tipo de conteúdo. O
YouTube, por exemplo, tem sido acusado de promover o negacionismo climático por meio da
recomendação por seu algoritmo de conteúdo "tóxico", além de permitir que youtubers
negacionistas lucrem na plataforma por meio da inserção de publicidade em seus vídeos
(PLANELLES, 2020, on-line). De outra parte, as redes sociais podem exercer sua influência
por meio da censura. O YouTube é acusado de censurar manifestações políticas dos mais
variados espectros políticos (REVISTA FÓRUM, 2019, on-line; HARRISON, 2019, on-line).
É claro que tanto poder de fogo despertou a preocupação das instituições. Na verdade,
há décadas os governos têm se preocupado com o controle do conteúdo postado na internet e a
explosão das possibilidades de criação e compartilhamento geradas pelas redes sociais só fez
aumentar a pressão sobre os provedores para que fiscalizem o que circula nas suas plataformas.
As preocupações principais – em tese – são a divulgação de ideias extremistas, a propagação
3
Em uma pesquisa recente realizada pela Câmara e pelo Senado 45% dos entrevistados afirmou ter decidido o seu
voto em período de eleições levando em consideração informações vistas em alguma rede social. As redes sociais
mais citadas como fonte dessa decisão eleitoral foram o Facebook (31%) e o Whatsapp (29%), seguidos
do YouTube (26%), do Instagram (19%) e do Twitter (10%). Ademais, para 83% dos entrevistados, o conteúdo
das redes sociais influencia muito a opinião das pessoas. Outros meios indicados como os mais utilizados como
fonte de informação foram: a televisão (50% sempre e 36% às vezes), o YouTube (49% sempre e 39% às vezes)
e o Facebook (44% sempre e 35% às vezes). Só depois disso vieram os sites de notícias, que “sempre são
consultados” por 38% dos entrevistados e são “consultados às vezes” por 46% desse pessoal. Os percentuais de
consulta à rádio (22% e 40%) e ao jornal impresso (8% e 31%) foram ainda menores, abaixo até que o do Instagram
(30% e 30%) (BARBOSA, 2019, on-line).
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4
Justamente visando combater as fake news em período eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral aprovou a
Resolução TSE nº 23.610/2019, com dispositivo voltado especificamente ao combate do que a Corte chama de
“desinformação na propaganda eleitoral”. Confira-se: “Art. 9º A utilização, na propaganda eleitoral, de qualquer
modalidade de conteúdo, inclusive veiculado por terceiros, pressupõe que o candidato, o partido ou a coligação
tenha verificado a presença de elementos que permitam concluir, com razoável segurança, pela
fidedignidade da informação, sujeitando-se os responsáveis ao disposto no art. 58 da Lei nº 9.504/1997,
sem prejuízo de eventual responsabilidade penal”.
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A lei também permite que qualquer pessoa que tenha tido os seus direitos da
personalidade violados por crimes cometidos nas redes sociais poderá requerer aos seus
provedores que forneçam informações sobre quem os praticou. Todavia, a entrega destas
informações é condicionada a reserva de jurisdição.
A NetzDG tem sido objeto de críticas, justamente por obrigar a própria rede social a
decidir sobre o caráter criminoso de um conteúdo, transferindo-lhe competência antes privativa
dos tribunais, constituindo uma espécie de censura prévia privada que ofende a Constituição
(MÜLLER-FRANKEN, p. 1-14 apud CUEVA, [2018], p. 88). A lei configuraria, assim, uma
forma de terceirização/delegação inconstitucional de atividade típica do Estado, a quem
incumbe o monopólio da repressão de ilícitos. (Cf. CUEVA, [2018], p. 88).
Artigo 13.º
Utilização de conteúdos protegidos por prestadores de serviços da sociedade da
informação que armazenam e permitem o acesso a grandes quantidades de obras e
outro material protegido carregados pelos seus utilizadores
1.Os prestadores de serviços da sociedade da informação que armazenam e facultam
ao público acesso a grandes quantidades de obras ou outro material protegido
carregados pelos seus utilizadores devem, em cooperação com os titulares de direitos,
adotar medidas que assegurem o funcionamento dos acordos celebrados com os
titulares de direitos relativos à utilização das suas obras ou outro material protegido
ou que impeçam a colocação à disposição nos seus serviços de obras ou outro material
protegido identificados pelos titulares de direitos através da cooperação com os
prestadores de serviços. Essas medidas, tais como o uso de tecnologias efetivas de
reconhecimento de conteúdos, devem ser adequadas e proporcionadas. Os prestadores
de serviços devem facultar aos titulares de direitos informações adequadas sobre o
funcionamento e a implantação das medidas, bem como, se for caso disso, sobre o
reconhecimento e a utilização das obras e outro material protegido.
2.Os Estados-Membros devem assegurar que os prestadores de serviços a que se refere
o n. º 1 estabelecem mecanismos de reclamação e recurso para os utilizadores, em
caso de litígio sobre a aplicação das medidas previstas no n. º 1.
3.Os Estados-Membros devem favorecer, sempre que adequado, a cooperação entre
os prestadores de serviços da sociedade da informação e os titulares de direitos através
de diálogos entre as partes interessadas com vista a definir melhores práticas, tais
como tecnologias adequadas e proporcionadas de reconhecimento de conteúdos,
tendo em conta, entre outros, a natureza dos serviços, a disponibilidade das
tecnologias e a sua eficácia à luz da evolução tecnológica.
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Também nos Estados Unidos a lei confere diretamente poder de censurar conteúdo às
redes sociais. A Communications Decency Act, uma lei criada em 1996 para controlar a
pornografia digital, garante aos provedores a possibilidade de censurar conteúdo qualificado
como “lewd, lascivious, filthy, excessively violent, harassing or otherwise objectionable” esteja
ou não o conteúdo protegido pela Constituição6.
O legislador brasileiro parece ter andado melhor, pois não conferiu expressamente
nenhum poder do gênero aos provedores, além de no expresso intuito de proteger a liberdade
de expressão, ter restringido a sua responsabilidade pelo conteúdo postado por terceiros à
omissão na sua remoção após ordem judicial específica que aponte o conteúdo infringente; de
modo que a qualificação do conteúdo como ilícito segue reservada Judiciário (arts. 18 e 19 do
Marco Civil da Internet). Prevê ainda o §2º do art. 19 que a responsabilidade dos provedores
por infrações a direitos de autor ou conexos depende de previsão legal específica, que deverá
respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição
Federal.
5
A Twitch (também chamada de Twittch.tv) é a maior plataforma de livestreaming existente atualmente. Embora
oferte diversas espécies de conteúdo, seu principal foco é a transmissão ao vivo de jogos de videogame e
competições de esporte eletrônico (e-sports). Seus números também impressionam. Seus espectadores assistiram
a 9,3 bilhões de horas de conteúdo em 2018 (VENTUREBEAT, 2019, on-line). Juntos, seus usuários ativos
diariamente somam 15 milhões (INFLUENCER MARKETING HUB, 2019, on-line). Em 2014, a Twitch foi
comprada pela Amazon por 970 milhões de dólares.
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Confira no tópico 6.3.1.1 a discussão existente nos Estados Unidos a respeito da caracterização da censura
praticada pelas redes sociais com base na CDA como state action para fins de definir a sua vinculação a direitos
fundamentais.
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A censura promovida autonomamente por redes sociais é levada a sério no Brasil tendo
motivado a abertura pelo Ministério Público Federal dos procedimentos preparatórios nº
1.18.000.001850/2018– 72 e 1.18.000.002245/2018-19, bem como do inquérito civil público
n° 1.18.000.002758/2017-49, que trataram de ações ou omissões ilícitas no controle de
conteúdo postado, suspeitas de terem sido discriminatórias, por motivação de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas.
Com efeito, se sem o recurso a estas plataformas os atores políticos não obtêm o
mesmo alcance e, por conseguinte a mesma capacidade de influência sobre os discursos
circulantes na esfera pública, torna-se possível afirmar que a capacidade de as acessar torna-se
um sustentáculo da própria liberdade de expressão na dimensão assumida neste contexto
histórico. Ainda mais considerando que o mercado dos provedores de aplicações, dentre os
quais se incluem as redes sociais de streaming, tende à formação de monopólios (Cf. SARTOR,
2017). Afinal, quais sites de streaming de vídeos fazem frente ao YouTube? Que alternativa
restaria ao usuário que tem sua conta suspensa por tempo indeterminado nesta plataforma para
continuar seu trabalho?
Por isso o objetivo principal desta pesquisa é definir se o direito fundamental ao devido
processo legal é invocável em sua eficácia horizontal na relação privada entre os criadores de
conteúdo e as redes sociais de streaming onde eles publicam seus vídeos fazem as suas
transmissões. Indaga-se dos desafios que a aplicação de um direito fundamental entre
particulares pressupõe, em especial a justificativa e a configuração de seu conteúdo, visto terem
sido originalmente concebidos para limitar o poder do Estado.
Para uma melhor compreensão do tema convém explicar brevemente o contexto fático
em que se dá a relação jurídica discutida, entre os criadores de conteúdo e as plataformas de
streaming.
Por sua vez, streaming é uma tecnologia mais moderna utilizada para a transmissão de
dados via internet – em especial, som e imagem –, por meio de um fluxo estável e contínuo,
que permite ao usuário acessar o conteúdo que deseja quase que imediatamente, sem que antes
seja necessário o seu download integral (COSTELLO, 2019, on-line).
Streaming é a tecnologia utilizada por YouTube, Netflix, Spotify e Deezer para ofertar
vídeos, música e publicidade. Ao clicarmos em um vídeo no YouTube a transmissão se inicia
imediatamente. Conforme o vídeo avança os dados vão sendo baixados pouco a pouco, ao
mesmo tempo em que são transmitidos na tela. Não é necessário que o vídeo inteiro seja baixado
para o nosso dispositivo. Quando fechamos o vídeo, ele some de nosso dispositivo. Um novo
acesso somente é possível abrindo novamente o link a partir do qual ele é streamado.
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O YouTube é atualmente a maior rede social de streaming do mundo. Para se ter uma
ideia de sua grandeza, o YouTube possui 1,9 bilhão de usuários (STATISTA, 2019, on-line).
Todos os dias estes usuários assistem juntos a 1 bilhão de horas de vídeos (YOUTUBE, 2019e,
on-line). Cerca de 500 horas de vídeo são upadas para o YouTube a cada minuto no mundo
(TUBEFILTER, 2019, on-line).
No YouTube os vídeos são postados dentro de canais exclusivos criados por cada
usuário. Nestes canais, salvo anúncios de publicidade, o usuário tem controle sobre o conteúdo
transmitido. Ele pode postar conteúdo próprio, ou de terceiros, desde que por eles autorizado.
Mas a liberdade dos criadores de conteúdo não é absoluta. Para utilizar a plataforma
disponibilizada pelo YouTube, os usuários devem aderir obrigatoriamente aos Termos de
23
Os Termos de Serviço do YouTube também definem que os usuários que violam suas
regras estão sujeitos às sanções ali estabelecidas unilateralmente que varia, entre a remoção do
conteúdo infringente, advertências, suspensões, o encerramento de contas e/ou a rescisão de
canais (YOUTUBE, 2019, on-line).
Criador de conteúdo (em inglês, content creator) é o termo utilizado para designar o
profissional que vive de produzir conteúdo digital para ser consumido na internet; em especial
redes sociais como as de streaming.
7
“7.B – O YouTube se reserva o direito de decidir se o Conteúdo é apropriado e obedece a estes Termos de Serviço
no que diz respeito a infrações outras que não as infrações ou violações das leis de direitos autorais, como por
exemplo, mas sem se limitar, à pornografia, material obsceno ou difamatório, (inclusive difamação, calúnia ou
injúria), ou excessivamente longo. O YouTube poderá a qualquer momento, sem aviso prévio e a seu exclusivo
critério, remover tais Conteúdos e/ou cancelar uma conta de Usuário por enviar tais materiais que violam os
Termos de Serviço”. (YOUTUBE, 2019c, on-line)
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De outra parte, esse sensível incremento na facilidade de acesso à mídia não veio
acompanhado de uma maior disponibilidade de tempo para consumi-lo. Pelo contrário, na vida
moderna e digitalizada o tempo é cada vez mais escasso. Por isso há uma feroz disputa na
internet pela atenção do usuário. Se não gostamos do que traz uma série da Netflix, em segundos
já abrimos outra. Se não gostamos de uma música da playlist do Spotify, saltamos para a
próxima ou voltamos para a anterior. O usuário só assiste e ouve ao que quer, quando quer. Não
à toa o streaming tem afetado tanto a audiência da televisão e o número de assinaturas da TV à
cabo (CARR, 2014, on-line).
Por toda essa pressa no consumir e a consequente velocidade com que as coisas na
internet se tornam desejáveis ou indesejáveis, relevantes ou relevantes, justas ou injustas, um
dia fora desse fluxo pode significar a “morte” de um criador de conteúdo. Imaginemos um
podcaster que dedica todo o seu conteúdo à política vendo-se impedido de acessar a plataforma
por onde divulga seu trabalho justamente na semana do segundo turno das eleições
presidenciais.
8
Os usuários que realizam transmissões ao vivo com frequência são chamados de livestreamers ou, como é mais
comum, apenas de streamers.
25
Daí a relevância da proteção de sua atividade contra a atuação arbitrária das redes
sociais, que implica não somente a afetação de sua liberdade de expressão, mas também de sua
possibilidade de participação política e de exercício de uma atividade econômica. O que
justificaria a exigência de oposição à rede social de garantias relativas ao devido processo legal,
como a motivação das punições e a oportunização de defesa.
26
Este é o tema explorado no presente capítulo, que busca apresentar o trajeto histórico
que ambos os conceitos compartilham, visto serem correlatos.
comunidade que, porquanto versadas em norma, constituem a sua base jurídica, de modo que
seus efeitos se irradiam necessariamente sobre todas as relações ocorridas em seu seio,
envolvendo ou não o Estado.
então área alheia à incidência das disposições constitucionais. Estas se voltavam, na verdade, a
manter o Estado afastado de intervir nas atividades negociais.
Não poderia ser diferente, primeiro, porque, em razão da ausência de uma jurisdição
constitucional, a Constituição era então compreendida, em especial no que tocava à esfera
jurídico-privada, como mera carta declaratória de diretrizes políticas, desprovida de eficácia
jurídica imediata, cujo programa dependia de mediação do legislador (interpositio legislatoris)
para a produção de efeitos concretos (SARMENTO, 2010, p. 74). Reconheciam-se como
dotados de eficácia imediata apenas os direitos invocáveis em face do Estado, individuais e
políticos, bem como as disposições normativas que tratavam de sua estrutura orgânica
(SARMENTO, 2010, p. 74).
Segundo, porque o século XIX foi a Era das Codificações, cujos principais expoentes
foram o Código Civil Francês de 1804 e o Código Civil Alemão de 1900, gerados justamente
como continentes normativos, unitários e sistematizados, com pretensão de substituir as regras
consuetudinárias que se acumularam durante o período medieval9 na regulação exaustiva das
relações privadas, e, assim, eliminar as graves dificuldades que a pluralidade e o fracionamento
do direito, “fruto do arbítrio da história”, causavam na prática jurídica (BOBBIO, 1995, p. 54-
65). Daí gozarem, na esfera privada, de supremacia mesmo frente à constituição. Esta,
inclusive, a ótica sob a qual foi concebido o Código Civil Brasileiro de 1916 (SARMENTO,
2010, p. 99).
9
Confira-se a este respeito a manifestação de Thibaut defendendo a necessidade de codificação do direito
consuetudinário alemão, citada por Norberto Bobbio: “Os alemães estão há muitos séculos paralisados, oprimidos,
separados uns dos outros por causa de um labirinto de costumes heterogêneos, em parte irracionais e perniciosos.
Justamente agora se apresenta uma ocasião inesperadamente favorável para a reforma do direito civil como não se
apresente mais em mil anos. [...]. Ninguém que queira ser imparcial pode negar que nas instituições francesas estão
encerradas muitas coisas boas e que o Código e as discussões e os discursos a respeito dele, assim como o código
prussiano e o austríaco, trouxeram para nossa filosofia mais vitalidade e arte civilista que as acaloradas discussões
dos nossos tratados sobre direito natural. Se agora os príncipes alemães concordassem com a redação de um código
geral alemão civil, penal e processual empregasse por apenas cinco anos aquilo que custa um meio regimento de
soldados, não poderíamos deixar de receber algo de notável e sólido. A contribuição de um tal código seria
incalculável” (BOBBIO, 1995, p. 53).
29
O foco da produção deste direito descoberto pela razão e posto pela autoridade do
Estado era o trabalho do Poder Legislativo, que, dominado por representantes da burguesia,
monopolizava a produção jurídica (BOBBIO, 1995, p. 38), atuando como polo gerador de
conjuntos unitários de regras racionais, imutáveis (SARMENTO, 2010, p. 345), de conteúdo
semântico denso, porém gerais e abstratas, e de aparente neutralidade axiológica, conquanto
orientadas pelos valores reputados essenciais para a consolidação do domínio da nova classe
reinante.
Como afirma Quartim de Moraes, citando Polanyi, guiado pela burguesia, o Estado
Liberal:
[...] por meio da concepção de lei ‘geral e abstrata’ portadora de uma igualdade
estritamente formal e do abstencionismo econômico, foi capaz de atribuir segurança
jurídica às trocas mercantis, gerando um mercado de trabalho repleto de mão de obra
barata, assegurando à iniciativa privada a realização de qualquer atividade
potencialmente lucrativa (1957, p. 73 apud 2014, p. 272).
É que, em sendo o papel do Judiciário o de aplicar a lei, Poder na França ainda ocupado
por membros ligados ao Ancién Regime, havia a necessidade de se garantir que também a
atividade judicante fosse fiel aos valores burgueses condensados no Código Civil. Daí a
promoção da vertente da hermenêutica jurídica que pregava a adstrição do intérprete ao
conteúdo literal da lei e à vontade hipotética do legislador, representada na ideia de que o juiz
deveria ser apenas la bouche de la loi: a Escola da Exegese. Bobbio resume o entendimento
vigorante à época: “a vontade do legislador é expressa de modo seguro e completo e aos
operadores do direito basta ater-se ao ditado pela autoridade soberana” (1995, p. 38).
[...]os magistrados, na França do Antigo Regime, eram fiéis escudeiros do status quo.
Exerciam o poder para impedir quaisquer avanços que pudessem comprometer os
interesses do rei e dos senhores feudais. Daí a revolução francesa ter negado o
Judiciário, como se vê na célebre frase de Montesquieu – os juízes devem se
comportar como seres inanimados, limitando-se a pronunciar as exatas palavras da lei
(MARINONI, 2016b, on-line).
O avanço sobre os poderes criativos dos juízes foi a ponto de a Lei Revolucionária de
1790 tê-los proibido de interpretar a lei, obrigando-os, no caso de dúvida, a recorrerem a uma
comissão formada por legisladores. Igualmente, a função da Corte de Cassação, instituída no
mesmo ano, objetivava cassar as decisões que destoassem da lei (MARINONI, 2016b, on-line).
31
Percebe-se então que, firmada no ideal de uma separação inflexível entre os Poderes,
a Revolução Francesa colocou o Legislativo e o Judiciário em polos opostos. A solução liberal
para o conflito entre legisladores e juízes foi a opção pela onipotência do legislador, titular
exclusivo da produção jurídica (BOBBIO, 1995, p. 38).
Destarte, era natural a aversão do acesso dos juízes à textura tipicamente aberta do
texto constitucional, um convite ao exercício de sua indesejada criatividade.
Reitere-se, sem embargo, que se reconhecia o caráter vinculante das normas ditas
clássicas, aquelas que definem organização do Estado e aqueles que demarcavam uma esfera
de direitos individuais e políticos do cidadão em face dele (SARMENTO, 2010, p. 74). Mas
estes eram direcionados precipuamente contra a Administração, não ao Legislador, e tampouco
eram acessíveis ao juiz (HESSE, 1995, p. 37).
declarações políticas de princípio sem força vinculativa” (1982, p. 123 apud SARMENTO,
2010, p. 76).
Vai colapsando, assim, no nível político, o postulado liberal proposto por Adam Smith
de que, a somatória da persecução egoística da satisfação de interesses individuais, dada a sua
inquestionável racionalidade, bastaria, por si, só ao atingimento do bem-estar coletivo.
Tem-se então que as normas constitucionais passaram a criar obrigações diretas para
os cidadãos, ao mesmo tempo em que ditavam diretrizes ao legislador de direito privado, seja
fixando garantias de institutos como a propriedade, a família e o casamento, que impediam que
o legislador os abolisse (HESSE, 1995, p. 49; SCHMITT, 1993, p. 20 e ss. apud POLIDO,
2006, p. 7), seja prescrevendo mandatos explícitos, como o de legislar em favor da igualdade
dos filhos tidos fora do vínculo matrimonial (art. 121) (HESSE, 1995, p. 48-49).
34
Qual o exato alcance, por exemplo, do direito à intimidade, declarado no art. 5º, inciso
X, de nossa Constituição? Compreende ele, por acaso, o segredo das contas bancárias?
Ora, não será certamente em razão de dificuldades hermenêuticas desse tipo que o
Judiciário poderá recusar-se a dar proteção aos direitos fundamentais declarados na
Constituição (1993, on-line).
35
Com efeito, a partir da metade de século houve reação à doutrina tradicional. Na Itália
Vezio Crisafulli publicou a obra La Costituzione e le sue Disposizioni di Principio, publicada
em 1952, na qual defende que todas as normas constitucionais, mesmos as ditas normas
programáticas, geram efeitos jurídicos ponderáveis (apud SARMENTO, 2010, p. 77).
De igual modo, José Afonso da Silva defende no Brasil a tese da eficácia mínima das
normas de caráter social, publicando em 1968 trabalho intitulado Aplicabilidade das Normas
Constitucionais, em que afirma que todas as normas constitucionais são dotadas de juridicidade,
mesmo as normas constitucionais programáticas que, apesar de terem eficácia limitada, impõem
limites e restrições ao Legislativo e ao Executivo, exercendo função relevante na ordem
jurídica. Ainda que não obriguem os destinatários a agirem em determinado sentido, em alguns
sistemas a omissão é sindicável pelo Poder Judiciário; outrossim, o mandamento impede a
atuação em sentido contrário, inclusive pelo legislador; além de acarretar a não recepção do
direito anterior incompatível e influenciar na interpretação e integração do ordenamento
jurídico (1998, p. 135 e ss.).
Nasceram então movimentos teóricos que, embora distintos, acabaram sendo reunidos
sob a mesma alcunha de Pós-positivistas, que têm por traço comum a tentativa de fixar a
necessidade de uma justificação ética como condicionante da validade do direito positivado,
apondo limites mínimos ao conteúdo da legalidade, com o fim de se evitar a repetição da
tragédia humana que foi perpetrada com base legal. Nesta nova concepção, reconhece-se a
eficácia de normas-princípio de conteúdo notadamente axiológico, e de eficácia autônoma em
relação às regras, cuja função seria a de promoção de valores por meio da ordem jurídica.
10
Confira-se, neste sentido, o seguinte trecho de A Teoria Pura do Direito: “Segundo o Direito dos Estados
totalitários, o governo tem o poder para encerrar em campos de concentração, forçar a quaisquer trabalhos e até
matar os indivíduos de opinião, religião ou raça indesejável. Podemos condenar com a maior veemência tais
medidas, mas o que não podemos é considerá-las como situando-se fora da ordem jurídica desses Estados”
(KELSEN, 2009, p. 44). É bom destacar que não se pode de nenhuma maneira valer-se do trecho transcrito como
evidência de associação do autor a esses movimentos. No excerto Kelsen está a analisar a validade das normas
estritamente sob a perspectiva de sua Teoria Pura do Direito. Seu objetivo é o de explicar o direito como forma e
teoria. O autor inclusive se opôs ao Terceiro Reich e foi perseguido pelos nazistas.
37
O paradigma liberal que se tornou vigente com a ascensão da burguesia, embora tenha
extraído de conceitos jusnaturalistas a base teórica que impulsionou os direitos fundamentais
positivados nas cartas constitucionais, compreendia-os de uma maneira mais restrita do que as
suas noções originais, de direitos associados à própria natureza humana, pré-estatais, e
oponíveis a quaisquer outros seres humanos (Cf. SARLET, 2000).
Sarmento observa que, o que fez a doutrina liberal na formulação dessa compreensão
foi transplantar para o direito constitucional a categoria de “direito subjetivo” tal como
historicamente desenvolvida pelo direito civil, cuja elaboração científica à época encontrava-
se em um estágio de evolução muito mais avançado do que os estudos de direito público (2010,
p. 130). O maior exemplo deste empréstimo teórico tomado pelo direito constitucional
diretamente do direito civil é a teoria dos direitos públicos subjetivos de Jellinek.
Todavia, como visto no tópico anterior, a visão teórica sobre a função dos direitos
fundamentais na ordem jurídica modificou-se profundamente a partir da influência de fatores
históricos e científicos como a difusão do controle de constitucionalidade, o nascimento do
Estado Social, a derrota do nazismo na Segunda Guerra e a reconstrução material e espiritual
que se seguiu na Europa, bem como a progressão dos estudos do direito constitucional
(BÖCKENFORDE, ano, p. 143 apud V. A. SILVA, 2011, p. 137; SARMENTO, 2010, p. 130).
Nesse fio, como aduz Vieira de Andrade, citado por Daniel Sarmento, quando se
menciona a dimensão objetiva dos direitos fundamentais o que se almeja é:
[...] fazer ver que os direitos fundamentais não podem ser pensados apenas do ponto
de vista dos indivíduos, enquanto faculdades ou poderes de que estes são titulares,
antes valem juridicamente também do ponto de vista da comunidade, como valores
ou fins que esta se propõe a prosseguir” (1998, p. 144-145 apud SARMENTO, 2010,
p. 131).
Nessa acepção, a defesa dos direitos fundamentais deixa também de ser uma questão
exclusiva de limitação dos Poderes Públicos, mas, igualmente, de direcionamento de sua
potência à consecução dos fins plasmados nas normas positivas. Assim como a sua promoção
passa a ser exigível de todos os integrantes do corpo social (Cf. SARMENTO, 2010, p. 131).
A dimensão objetiva liga-se a uma perspectiva comunitária dos direitos humanos, que
nos incita a agir em sua defesa, não só através dos instrumentos processuais
pertinentes, mas também no espaço público, através de mobilizações sociais, da
atuação de ONG’s e outras entidades, do exercício responsável do direito de voto. “
(2010, p. 131-132).
A dimensão subjetiva não foi, contudo, descartada. O que houve foi a soma de uma
nova dimensão aos direitos fundamentais, que passou a contar com duas: a subjetiva, enquanto
fonte de direitos subjetivos; e a objetiva, como bases fundamentais da ordem jurídica, cujos
efeitos irradiam por todas as áreas dos direitos (SARMENTO, 2010, p. 132).
A partir disso, a tarefa estatal na garantia da efetividade dos direitos fundamentais não
poderia mais ser cumprida apenas por meio de sua abstenção frente a negócios privados, sendo-
lhe igualmente exigíveis posições ativas em sua defesa, inclusive contra ações de particulares
que os ameacem (SARLET, 2012, p. 146; SARMENTO, 2010, p. 132).
Sob esse último aspecto, os direitos fundamentais operam como a fonte de uma nova
gama de deveres para o Legislativo e o Judiciário, que passam a ter sua atuação condicionada
a conferir-lhes a maior proteção possível dentro das condições fáticas e jurídicas existentes.
De sua perspectiva objetiva é que também se extrai a eficácia mínima das normas de
direitos fundamentais que pressupõem mediação legislativa, consistente na sindicabilidade da
omissão do Legislativo; na sua proteção pelo Judiciário; no impedimento à ação estatal
41
Eric Lüth, que era então o diretor do Clube de Imprensa de Hamburgo, resolveu
promover o boicote da exibição de um filme no festival de cinema da cidade, por ele ter sido
produzido por um cineasta de passado atrelado ao Terceiro Reich. Veit Harlan, o tal cineasta,
conseguiu obter ordem judicial para impedir o boicote. Lüth então recorreu até que o caso
chegasse ao Bundesverfassungsgericht, que resolveu o caso em seu favor, reconhecendo sua
conduta como legítimo exercício da liberdade de expressão.
11
No original: “1. Die Grundrechte sind in erster Linie Abwehrrechte des Bürgers gegen den Staat; in den
Grundrechtsbestimmungen des Grundgesetzes verkörpert sich aber auch eine objektive Wertordnung, die als
verfassungsrechtliche Grundentscheidung für alle Bereiche des Rechts gilt. 2. Im bürgerlichen Recht entfaltet sich
der Rechtsgehalt der Grundrechte mittelbar durch die privatrechtlichen Vorschriften. Er ergreift vor allem
Bestimmungen zwingenden Charakters und ist für den Richter besonders realisierbar durch die Generalklauseln.
3. Der Zivilrichter kann durch sein Urteil Grundrechte verletzen (§ 90 BVerfGG), wenn er die Einwirkung der
Grundrechte auf das bürgerliche Recht verkennt. Das Bundesverfassungsgericht prüft zivilgerichtliche Urteile nur
auf solche Verletzungen von Grundrechten, nicht allgemein auf Rechtsfehler nach. [...]” (BVerfGE, 1958, on-
line).
42
de valores, representantes das escolhas mais essenciais da sociedade, dotada de uma eficácia
irradiante que atinge todas as áreas do , inclusive o direito privado, a ponto de o Judiciário poder
ofendê-los quando não reconhece a sua devida influência sobre suas normas.
Da mesma forma, foi fixada a sua incidência na esfera privada, superando a sua
oponibilidade restrita aos Poderes Públicos, realizada por meio da interpretação das cláusulas
gerais contidas no Código Civil. Ou seja, o Bundesverfassungsgericht aderiu à teoria da eficácia
horizontal mediata que será tratada com maior densidade no próximo capítulo, por se tratar
daquela que acabou se tornando majoritária na Alemanha.
As razões de decidir do tribunal alemão, como nota Virgílio Afonso da Silva, não
representam apenas superação da ideologia liberal no que se refere à vinculação exclusiva dos
Poderes Públicos aos direitos fundamentais, mas também da barreira textual à vinculação dos
particulares representada pelo art. 1º, III da Constituição Alemã que é expresso ao ditar que os
direitos fundamentais “vinculam os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário” (2005, p. 136-
140).
Na síntese de Sarlet:
Sem embargo, vale o alerta de Sarmento e a citação que faz da obra de Luís Roberto
Barroso, no sentido de que a constitucionalização do direito privado não se resume a uma
questão de coerência a um novo vetor sistematizador do ordenamento jurídico, tratando-se, na
verdade, de um movimento necessário na luta por parâmetros normativos substancialmente
mais justos, a partir da extração dos princípios constitucionais de toda a sua eficácia jurídica
transformadora, porquanto o “(...) o legislador constitucional é invariavelmente mais
progressista do que o legislador ordinário” (BARROSO apud SARMENTO, 2010, p. 82).
Sob estes novos signos é que foi promulgado o Código Civil de 2002, como revela a
apresentação que Reale faz da nova codificação:
Por outro lado, a escolha de palavras feita pelo autor em sua Visão Geral do Projeto
de Código Civil pode também ser interpretada como um certo inconformismo com a perda de
centralidade da codificação no ordenamento jurídico, como se nota no seguinte trecho:
46
O Código atual peca por excessivo rigorismo formal, no sentido de que tudo se deve
resolver através de preceitos normativos expressos, sendo pouquíssimas as referências
à eqüidade, à boa-fé, à justa causa e demais critérios éticos. Esse espírito dogmático-
formalista levou um grande mestre do porte de Pontes de Miranda a qualificar a boa-
fé e a eqüidade como "abencerragens jurídicas", entendendo ele que, no Direito
Positivo, tudo deve ser resolvido técnica e cientificamente, através de normas
expressas, sem apelo a princípios considerados metajurídicos. Não acreditamos na
geral plenitude da norma jurídica positiva, sendo preferível, em certos casos, prever o
recurso a critérios ético-jurídicos que permita chegar-se à "concreção jurídica",
conferindo-se maior poder ao juiz para encontrar-se a solução mais justa ou equitativa.
O novo Código, por conseguinte, confere ao juiz não só poder para suprir lacunas,
mas também para resolver, onde e quando previsto, de conformidade com valores
éticos, ou se a regra jurídica for deficiente ou inajustável à especificidade do caso
concreto.
Como se vê, ao elaborar o projeto, não nos apegamos ao rigorismo normativo,
pretendendo tudo prever detalhada e obrigatoriamente, como se na experiência
jurídica imperasse o princípio de causalidade próprio das ciências naturais, nas quais,
aliás, se reconhece cada vez mais o valor do problemático e do conjetural.
O que importa numa codificação é o seu espírito; é um conjunto de idéias
fundamentais em torno das quais as normas se entrelaçam, se ordenam e se
sistematizam.
Em nosso projeto não prevalece a crença na plenitude hermética do Direito Positivo,
sendo reconhecida a imprescindível eticidade do ordenamento. O código é um
sistema, um conjunto harmônico de preceitos que exigem a todo instante recurso à
analogia e a princípios gerais, devendo ser valoradas todas as consequências da
47
Há também uma parcela da doutrina brasileira que vê o Código Civil de 2002 de modo
fundamentalmente diverso.
Para Anderson Schreiber, que endossa críticas de Gustavo Tepedino e Maria Celina
Bodin de Moraes, o “novo” código é mero fruto e um projeto conservador elaborado ainda na
década de 1970, durante os anos de chumbo da ditadura brasileira, que contraria essa releitura
histórica do direito privado, que se tornou exigência dogmática com a Constituição Federal de
1988. Segundo Schreiber, o Código Civil de 2002 mantém fundamentalmente o mesmo caráter
da regulação do Código anterior, não contendo qualquer revisão dos institutos clássicos a partir
da ótica solidarista de superação do individualismo e patrimonialismo que se esperava de uma
codificação promulgada mais de uma década após a Constituição Federal de 1988. O que
demanda um esforço redobrado da doutrina e da jurisprudência na atualização de suas
disposições a partir da invocação de normas constitucionais para a sua interpretação/integração,
assim como a aplicação direta de normas constitucionais para a regulação de situações privadas
de forma mais adequada à nova ordem de valores que foi positivada.
O “novo” Código Civil tem muito pouco de realmente novo. O texto repete
substancialmente aquele do Código Civil de 1916, já tendo sido chamado de “cópia
malfeita” do antecessor. Sua aprovação foi recebida pela melhor doutrina como “um
duro golpe na recente experiência constitucional brasileira”, restando aos juízes, aos
advogados e ao intérprete de modo geral “a espinhosa tarefa de temperar o desastre,
aplicando diretamente o texto constitucional, seus valores e princípios, aos conflitos
de direito civil, de modo a salvaguardar o tratamento evolutivo que tem caracterizado
as relações jurídicas do Brasil contemporâneo
[...]
O Código Civil de 2002 não afastou a necessidade de aplicação das normas
constitucionais às relações privadas, nem poderia, já que se trata de um processo
contínuo e necessário. A codificação de 2002, ao contrário, reforçou essa necessidade,
pois, sob o disfarce da novidade legislativa, oculta largas porções de ideologia do
passado. O patrimonialismo, o individualismo e o liberalismo exacerbado continuam
vivamente presentes no texto do “novo” Código Civil, em franca oposição ao
solidarismo humanista consagrado no texto, que inclusive tem por princípios a
eticidade e a socialidade” (2018, p. 56).
De todo modo, entendendo-se que essa nova fase do direito civil já veio incutida em
suas disposições, ou então que ele apenas representa o velho com novos trajes, tornando
premente e constante o recurso às normas constitucionais para uma regulação das situações
privadas mais atual e afinada com os direitos fundamentais, o fato é que a reconstrução do
direito privado de acordo com os valores constitucionais é uma realidade incontestável hoje no
Brasil. Seja pela interpretação das regras do Código conforme a Constituição, seja pela
utilização das suas cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados como portal de entrada
da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, ou ainda pela invocação
direta de normas constitucionais.
A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o
princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio,
quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à
dignidade da pessoa humana.
Sem embargo, não são poucas as vozes que se levantam contra a constitucionalização
do direito privado. Diz-se que ameaça a autonomia do direito privado e aniquila a ideia que lhe
é central, a autonomia privada. Outrossim, a segurança jurídica e a separação de poderes seriam
sacrificadas pelo constante recurso às normas constitucionais, cuja abertura semântica garante
ao juiz o exercício de poderes criativos quase ilimitados, usurpando a competência do
legislador.
Estas críticas, contudo, em que pese sua relevância, não serão exploradas de modo
direto neste trabalho, por não ser o seu foco. A sua abordagem ocorrerá, de qualquer maneira,
indiretamente, quando tratarmos em específico no capítulo a seguir das formas de incidência
dos direitos fundamentais nas relações privadas.
Todas as teorias que defendem a eficácia dos direitos fundamentais sobre relações
entre particulares comungam de duas premissas: a constituição possui valor normativo; e os
direitos fundamentais nela positivados irradiam seus efeitos por todas as áreas do direito,
vinculando inclusive o direito privado. Por isso, essas duas questões foram referidas no início
do capítulo como antecedentes históricos da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
Como visto, sob o paradigma liberal o Estado era considerado o único destinatário das
normas de direitos fundamentais. Todavia, em especial com o avanço da desigualdade material
e com a necessidade de reencontro do com valores morais dele afastados pelo positivismo
50
jurídico, os direitos fundamentais e os valores que eles representam passaram a ser vistos como
sustentáculo jurídico da sociedade.
As dificuldades não são poucas, por isso há toda uma gama de teorias dedicadas à
explicação de como se dá a eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
Este será o tópico explorado no próximo capítulo. Se neste buscamos nos concentrar
na Europa continental, a seguir será inevitável tratarmos de como a questão da eficácia
horizontal dos direitos fundamentais se manifesta nos Estados Unidos, em especial face à
particular resistência de sua doutrina e de sua jurisprudência a reconhecê-la.
3.1. Introdução
Assentada a incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas, resta o desafio
maior de definir exatamente de que forma se manifestam os seus efeitos. Como diz Virgílio
Afonso da Silva, o problema transmuta-se de saber “se” os direitos fundamentais produzem
efeitos nessas relações para saber “como” esses efeitos são produzidos (2005, p. 174).
A questão principal que se coloca gira em torno do grau de intensidade com o qual
pode se dar a sua aplicação, tendo em consideração que, em seu desenho original, os direitos
fundamentais foram concebidos para regular relações verticais de poder envolvendo a presença
do Estado. Enquanto que as relações horizontais guardam a peculiaridade de ambas as partes
serem igualmente titulares de direitos fundamentais e de a liberdade conferida pela autonomia
privada autorizar a renúncia a direitos que seriam indisponíveis perante os Poderes Públicos.
Por isso é que qualquer teoria que pretenda responder a esse questionamento deve
impreterivelmente resolver essa polarização dos direitos fundamentais com a liberdade
contratual, sem que se aniquile qualquer deles (SARLET, 2000; p. 24; V.A. SILVA, 2005, p.
175).
O tema também ocupa as cortes e os juristas dos Estados Unidos, onde os fortes ventos
liberais impulsionaram à prevalência do entendimento oposto, no sentido da impossibilidade
de invocação dos direitos fundamentais em relação privada, salvo os casos em que a relação
discutida guarde peculiaridades que indiquem a presença do Estado em seu seio.
Neste capítulo, intende-se apresentar essas três principais tomadas de posição perante
o fenômeno da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, bem como algumas teorias
alternativas formuladas na Alemanha por autores como Robert Alexy, Jürgen Schwabe e Claus-
Wilhelm Canaris.
3.2. Teoria negativa da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas: a doutrina
da “state action”. Jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos. A crítica de
Chemerinsky
Ademais, de modo análogo ao qual os liberais franceses viam o Código Civil, ao tempo
em que a Constituição dos Estados Unidos foi escrita, entendia-se que a common law já seria,
por si só, suficiente para proteger quaisquer das liberdades fundamentais em âmbito privado,
de modo que não seria necessário que a Constituição protegesse o que já estava protegido. Tanto
é, que a preocupação principal do constituinte, na verdade, era de que o novo governo federal
criado estivesse vinculado aos mesmo princípios de direito natural desvendados pela common
law e aos quais os atores privados já estavam sujeitos. Por exemplo, a proteção conferida pela
54
IV Emenda contra busca e apreensão sem motivo razoável seria equivalente aos princípios já
consolidados na common law de vedação da invasão de propriedade privada e das prisões sem
causa provável (probable cause). Assim como a cláusula do devido processo legal (due process
of law) trazida pela V Emenda serviria para invocar contra o Estado as as proteções já
reconhecidas pela common law contra atentados à liberdade e à propriedade privada
(CHEMERINSKY, 1985, p. 515).
Sarmento conta que a formulação da doutrina da state action se iniciou com os Civil
Rights Cases, julgados em 1883, que derivaram de questionamentos ao Civil Rights Act, lei
aprovada pelo Congresso que inseriu uma série de vedações à discriminação racial em locais e
serviços acessíveis ao público com base na XIV Emenda, que obrigara os Estados a observarem
os princípios da igualdade e do devido processo legal. Nos cinco casos julgados, a Suprema
Corte defendeu que a norma era inconstitucional, pois a XIV Emenda teria conferido à União
tão somente a competência para editar normas que proibissem a prática de atos discriminatórios
pelos Estados contra os cidadãos, mas não a competência para a criação de normas que
proibissem a discriminação praticada por um cidadão contra outro. Caberia exclusivamente aos
Estados legislar sobre condutas discriminatórias nas relações privadas (2010, pp. 213-214).
Assim é que, na visão de Sarmento, duas premissas restaram assentadas pela Suprema
Corte:
Chemerinsky destaca, por outro lado, que o julgamento dos Civil Rights Cases também
deixou claro que, caso os Estados se omitissem na produção de leis orientadas à proteção de
direitos constitucionais por meio de sua common law, então estaria caracterizada uma state
action suficiente para a intervenção federal (1985, pp. 517-518).
55
Sem embargo, o outro lado da moeda é o de que, quando a ação de atores privados for
equivalente a uma state action, estarão eles vinculados integralmente aos direitos fundamentais
positivados no texto constitucional.
O public function test envolve verificar se o particular estava exercendo uma função
pública quando ocorrida a lesão a direito fundamental. A premissa é a de que, se o Estado opta
por delegar uma função que tradicional e exclusivamente lhe é atribuída, então o ente privado
que a exerça sob sua autoridade está a praticar uma state action. Assim, neste conceito podem
ser enquadradas como exemplos de state action: a manutenção de parques urbanos; e a
organização de eleições primárias e a administração de uma cidade privada (AYOUB, 2017,
pp. 895-896).
De outra parte, é certo que esta doutrina tão tradicional não passou tantas décadas sem
ter sido criticada, destacando-se nesta perspectiva, as obras de Black, Karst, Horowitz e o
clássico artigo de Chemerinsky, aqui já citado, denominado Rethinking state action, cujas
principais ideias podem ser resumidas nos seguintes tópicos:
● A state action fazia sentido enquanto vigorava a crença de que a common law
dos Estados abarcaria todos os direitos individuais, de modo que bastaria à
proteção dos indivíduos em relações privadas. Todavia, o avanço da jurisdição
constitucional, a Suprema Corte garantiu a proteção de uma série de direitos
não previstos em nível infraconstitucional. Por exemplo, a common law não
trazia proteção específica contra discriminação racial, ofensas à liberdade de
expressão ou à autonomia reprodutiva em nível privado. Assim, a doutrina teria
se tornado anacrônica e incapaz de tutelar a liberdade individual (1985, pp.
511-519);
Sem embargo, curiosamente, – tendo em consideração essa preocupação não ter sido
demonstrada com relação a outros direitos fundamentais – no julgamento do Recurso
Extraordinário n.º 201.819, o Supremo Tribunal Federal observou o caráter público, ou
“semipúblico” (SARMENTO, 2010, p. 275), da atividade exercida por associação como
justificativa para a eficácia horizontal do devido processo legal em uma relação privada,
anulando a decisão de expulsão de um associado por não lhe ter sido garantida a oportunidade
de exercício do direito de defesa.
O Ministro Gilmar Mendes, cujo voto liderou maioria, anotou que, considerado o fato
de que a adesão à associação era uma necessidade decorrente da atividade profissional de
compositores, sem a qual a arrecadação de direitos autorais não seria possível, evidenciava-se
forte caráter público em sua atividade; o que justificaria sua qualificação como integrante de
“espaço público, ainda que não-estatal” e a oponibilidade de direitos fundamentais como
limitante de sua autonomia privada.
No tópico que se inicia será abordada a teoria da eficácia horizontal mediata dos
direitos fundamentais, que foi desenvolvida inicialmente na Alemanha por Dürig, e que acabou
se tornando a concepção majoritária no país, contando inclusive com a sua adoção pelo
Bundesverfassungsgericht, já desde o famoso Caso Lüth, julgado em 1958.
60
No mesmo sentido, Hesse, outro defensor da eficácia horizontal mediata dos direitos
fundamentais, confirma o risco oferecido à autonomia privada, pelo fato de que nas relações
privadas, ao contrário do que ocorre nas relações com o Estado, os indivíduos podem dispor da
proteção que lhes é conferida por normas de direitos fundamentais (HESSE, 1995, p. 60).
61
Eric Lüth, então diretor do Clube de Imprensa da cidade de Hamburgo, foi a público
sustentar um boicote à exibição de Unsterbliche Geliebte (“Amada imortal”) no festival de
cinema da cidade, filme produzido por Veit Harlan, ator e diretor cujo passado era de forte
associação com o regime nazista. Harlan havia prestado serviços como cineasta diretamente à
cúpula do Dritte Reich, tendo inclusive produzido, a pedido de Goebbels, o filme de propaganda
antissemita Jud Süß, que retratava um judeu de forma caricata e discriminatória com o fim de
fomentar o clima de perseguição desejado.
A Corte estabeleceu que, como defende Dürig, a sua realização em concreto no direito
civil, como fonte de regulação situações privadas, se dá meio da aplicação de cláusulas gerais
e conceitos jurídicos indeterminados positivados pelo legislador, servindo os direitos
fundamentais de critério valorativo para sua interpretação e integração.
Ademais, a decisão resolveu que, ainda que decida uma relação privada, uma sentença
judicial pode configurar lesão estatal a direitos fundamentais, quando sua eficácia irradiante
12
No original: “§ 826 Sittenwidrige vorsätzliche Schädigung – Wer in einer gegen die guten Sitten verstoßenden
Weise einem anderen vorsätzlich Schaden zufügt, ist dem anderen zum Ersatz des Schadens verpflichtet.”.
63
não for devidamente observada na fundamentação. Assim é que a Corte Constitucional poderia
intervir no julgamento de casos concretos sempre que um órgão jurisdicional restringisse de
modo inadmissível a pretensão à eficácia de um direito fundamental. Entendimento que
representou grande ampliação de sua competência, já que a atuação do
Bundesverfassungsgericht era inicialmente restrita ao controle abstrato de constitucionalidade.
Assim, a Corte definiu que a manifestação de Lüth não ofendia os “bons costumes” na
forma do § 826 BGB, pois estava albergada pelo direito fundamental à liberdade de expressão,
cujo conteúdo jurídico é de observância obrigatória na interpretação dessa cláusula geral.
13
No original: “1. Die Grundrechte sind in erster Linie Abwehrrechte des Bürgers gegen den Staat; in den
Grundrechtsbestimmungen des Grundgesetzes verkörpert sich aber auch eine objektive Wertordnung, die als
verfassungsrechtliche Grundentscheidung für alle Bereiche des Rechts gilt. 2. Im bürgerlichen Recht entfaltet sich
der Rechtsgehalt der Grundrechte mittelbar durch die privatrechtlichen Vorschriften. Er ergreift vor allem
Bestimmungen zwingenden Charakters und ist für den Richter besonders realisierbar durch die Generalklauseln.
3. Der Zivilrichter kann durch sein Urteil Grundrechte verletzen (§ 90 BVerfGG), wenn er die Einwirkung der
Grundrechte auf das bürgerliche Recht verkennt. Das Bundesverfassungsgericht prüft zivilgerichtliche Urteile nur
auf solche Verletzungen von Grundrechten, nicht allgemein auf Rechtsfehler nach. 4. Auch zivilrechtliche
Vorschriften können "allgemeine Gesetze" im Sinne des Art. 5 Abs. 2 GG sein und so das Grundrecht auf Freiheit
der Meinungsäußerung beschränken. 5. Die "allgemeinen Gesetze"müssen im Lichte der besonderen Bedeutung
64
Como se vê, essa teoria confere lugar de destaque aos direitos fundamentais na ordem
jurídica. A Constituição, onde eles estão positivados como ordem objetiva de valores, ocupa
estrato superior no ordenamento jurídico, de onde operam como vetor sistematizador e
condicionante da validade de todas as normas que o integram, de modo que os efeitos dos
direitos fundamentais, em sua dimensão objetiva, irradiam por todas as áreas do direito, sem
que hajam locais imunes à sua incidência.
Assim, longe de não reconhecer a sua eficácia nas relações privadas, entendem seus
defensores simplesmente que o lugar ideal para a conformação de seu conteúdo jurídico neste
cenário de aplicação, não é o Judiciário, e sim o Legislativo, que há de garantir sua proteção
adequada suficiente por mecanismos típicos do próprio direito privado compatibilizados com a
Constituição; porém, sem negligenciar a tutela da autonomia da vontade, ponderando
antecipadamente os potenciais interesses constitucionais em conflito e os acomodando “em
consonância com a consciência social de cada época”, fixando o “grau de cedência recíproca
de cada um dos bens jurídicos confrontantes” (SARMENTO, 2010, p. 224).
Há ainda de se dizer que, alguns autores reconhecem também que, embora a regra seja
a eficácia mediata, nas situações excepcionais em que o juiz se confronte com autênticas
lacunas do ordenamento privado, e de ausência mesmo de cláusulas gerais ou conceitos
des Grundrechts der freien Meinungsäußerung für den freiheitlichen demokratischen Staat ausgelegt werden. 6.
Das Grundrecht des Art. 5 GG schützt nicht nur das Äußern einer Meinung als solches, sondern auch das geistige
Wirken durch die Meinungsäußerung. 7. Eine Meinungsäußerung, die eine Aufforderung zum Boykott enthält,
verstößt nicht notwendig gegen die guten Sitten im Sinne des § 826 BGB; sie kann bei Abwägung aller Umstände
des Falles durch die Freiheit der Meinungsäußerung verfassungsrechtlich gerechtfertigt sein" (BVerfGE, 1958,
on-line).
65
Por isso a lição de Sarmento é feliz ao resumir a teoria como “uma espécie de
compromisso entre o pendor socializante da teoria da eficácia horizontal direta, e a visão liberal
clássica dos direitos fundamentais” (2010, p. 226).
Os seus críticos mais liberais, no entanto, denunciam que a invasão do direito privado
pelos valores constitucionais gera insegurança jurídica pela perda de previsibilidade na
aplicação das normas civis e comerciais (SARMENTO, 2010, p. 228). Enquanto os adeptos da
teoria rival, de eficácia imediata, apontam que a tutela dos direitos fundamentais resta
prejudicada quando condicionada sua eficácia aos “incertos humores do legislador ordinário”
(SARMENTO, 2010, p. 228). Na Espanha, Bilbao Ubillos, por sua vez, reputa-a supérflua, por
não se diferenciar da já sedimentada noção de que o direito privado há de ser interpretado
conforme a Constituição. (1997, p. 313 apud SARMENTO, 2010, p. 228).
3.4. Teoria da eficácia imediata ou direta dos direitos fundamentais. Hans Carl Nipperdey
e o “Bundesarbeitsgericht”. Recepção da teoria na Europa continental
A doutrina que defende que a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas
se dá de forma imediata (unmittelbare Drittwirkung), isto é, dispensando a interpositio
legislatoris, foi desenvolvida inicialmente na Alemanha por Hans Carl Nipperdey, que foi
presidente do Tribunal Federal do Trabalho (Bundesarbeitsgericht) de 1954 a 1963, tendo sido
66
posteriormente reforçada por Walter Leisner, um dos poucos autores de língua alemã que a
acataram, pois ela é rechaçada majoritariamente no país (BILBAO UBILLOS, 2005, p. 7;
SARLET, 2000, p. 9; SARMENTO, 2010, p. 228). Não é nenhuma surpresa, portanto, que o
seu principal representante na jurisprudência seja a 1ª Turma do Bundesarbeitsgericht
(ALEXY, p. 529), que a expôs inicialmente em um julgado de 1954 (BILBAO UBILLOS,
2005, p. 7).
Suas ideais são que, se a ordem jurídica há de ser compreendida como unidade
ordenada pela força normativa da Constituição e que os direitos fundamentais compõem uma
ordem de valores nela positivada como direito constitucional objetivo e vinculante, é certo que
seu conteúdo jurídico se irradia por todo o ordenamento jurídico, não havendo sentido na
consideração de que eles vinculam somente o Estado, tampouco que o direito privado pudesse
ser considerado área isolada de seus efeitos; um “gueto” na forte metáfora de Sarlet (2011, p.
9). Até este ponto, há concordância com a teoria da eficácia mediata. A sua diferença principal
é o argumento de que os seus efeitos sobre o direito privado não se resumem à influência
exercida sobre a interpretação e a integração das suas normas, pois deles derivam, também,
diretamente, direitos subjetivos privados aos indivíduos (Cf. ALEXY, p. 530).
[...] o efeito jurídico [dos direitos fundamentais] é muito mais um efeito normativo
direto, que modifica as normas de direito privado existentes, não importa se se trata
de direitos cogentes ou dispositivos, de cláusulas gerais ou normas jurídicas
específicas, ou cria novas normas, sejam proibições, deveres, direitos subjetivos, leis
de proteção ou motivos justificadores (1962, pp. 17-33 apud 2015, p. 530).
67
Por isso o autor pioneiro sustenta que aos direitos fundamentais deve ser reconhecido
um efeito absoluto (absolute Wirkung), de modo que não carecem de mediação legislativa para
serem aplicados a relações privadas e não dependem de “artimanhas interpretativas” que
busquem equiparar o ator privado ao Estado com o fim de justificá-la (NIPPERDEY, 1962, p.
24 apud SARLET, 2000, p. 10; NIPPERDEY, 1962, p. 15 apud V.A. SILVA, 2011, p. 87).
Destacando-se que ao mencionar seus efeitos absolutos o autor não faz menção a uma
concepção dos direitos fundamentais como direitos absolutos (V.A. SILVA, 2001, p. 87).
Sem embargo, assim como os adeptos da teoria indireta, seus defensores não negam
que a incidência em relações privadas possui peculiaridades quando comparada com o que
ocorre nas relações com o Estado, considerado o fato de que ambos os sujeitos são titulares de
direitos fundamentais e a necessidade de respeito à autonomia privada. Com efeito, como
expressa Alexy, a questão não é tomada por nenhuma das duas como uma “simples troca de
destinatários”; pelo contrário, reconhece-se uma modulação dos efeitos de sua força vinculante
por meio de um sopesamento dos interesses em jogo (2015, p. 532).
14
No original: “1. Die Vereinbarung einer auflösenden Bedingung, daß im Falle der Eheschließung der
Arbeitnehmerin das Arbeitsverhältnis zu einem bestimmten Zeitpunkt endigt, ist nichtig.” (BAG, 1957, on-line).
68
Sem embargo do peso doutrinário desta visão teórica, Sarlet conta que ela acabou
sendo abandonada na Alemanha por seus próprios defensores “na medida em que se reconheceu
a existência de uma diferença estrutural entre as relações particular/Estado e dos particulares
entre si, já que estes, em regra, são todos igualmente titulares de direitos fundamentais”
(SARLET, 2000, p. 10). No mesmo sentido Virgílio Afonso da Silva informa que “Até mesmo
a jurisprudência do Tribunal Federal do Trabalho, que antes, sob a influência de Nipperdey, era
partidária do modelo de aplicabilidade direta, cada vez mais tende a abandonar essa posição
inicial para juntar-se à jurisprudência do Tribunal Constitucional” (V.A. SILVA, 2011, p. 81).
Interpretado literalmente, não há dúvida acerca de sua eficácia direta e imediata. Mas
há corrente minoritária em terras lusitanas composta por Lucas Pires e Motta Pinto que insiste
na necessidade de sua mediação pelo legislador (SARMENTO, 2010, p. 233). Sem embargo, a
corrente dominante, integrada, dentre outros, por Canotilho, acolhe a teoria da vinculação direta
dos particulares a direitos fundamentais. Assim assevera taxativamente o mestre de Coimbra:
“a Constituição Portuguesa consagra inequivocamente a eficácia imediata em relação a
entidades privadas (art. 18. °/1) “ (1996, p. 595).
Sem embargo, se no caso da teoria da eficácia horizontal indireta, a tutela integral dos
direitos fundamentais fica sujeita aos humores incertos do legislador (SARMENTO, 2010, p.
228), também é certo que o reconhecimento da eficácia direta e imediata sujeita a tutela à
subjetividade do juiz – ao risco de ativismo judicial. Por isso mesmo os defensores da eficácia
imediata preocupam-se com a moderação da atuação do Poder Judiciário em sua aplicação (Cf.
SARMENTO, 2010, p. 284).
Neste mesmo sentido, Canotilho destaca que aos juízes cabe, em primeiro lugar aplicar
a legislação ordinária de direito privado que condensa “a mediação legal dos direitos, liberdades
e garantias”, interpretando-a conforme a os direitos fundamentais “pela via da interpretação
conforme a constituição”. Se esta for insuficiente, há de ser exercido o controle de
constitucionalidade com a “desaplicação da lei”15. Por fim, há de se proceder à “interpretação
conforme os direitos, liberdades e garantias”, tomando em consideração, não apenas as
cláusulas gerais ou conceitos indeterminados, “mas também as próprias normas consagradoras
e defensoras de bens jurídicos absolutos”, concretizando sua eficácia no caso concreto,
partindo, não apenas de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, mas,
propriamente, diretamente do texto constitucional (1996, p. 598).
15
A incidência da lei é afastada do caso concreto analisado em função de sua inconstitucionalidade material.
70
● Teoria dos três níveis de Robert Alexy – Ao desenvolver seu próprio modelo
de incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas, Alexy parte
afirmando que as teorias vigentes (a direta, a indireta e a de efeitos mediados
por direitos em face do Estado), além de serem equivalentes em resultados,
falham primeiramente por se basearem no falso pressuposto que poderiam ser
corretas consideradas isoladamente (2015, pp. 531-533). A abordagem
adequada do fenômeno então exige a reunião dos elementos de todos os outros
72
[...] por razões ligadas aos direitos fundamentais, há determinados direitos e não-
direitos, liberdades e não-liberdades e competências e não-competências na relação
cidadão/cidadão, os quais não existiriam sem essas razões. Se se define o conceito de
73
efeitos diretos dessa forma, então, efeitos diretos decorrem tanto da teoria dos efeitos
indiretos quanto da teoria dos efeitos mediados pelo Estado. (2015, p. 539).
Assim é que, para Alexy, cada um dos modelos abarca um aspecto da mesma
questão, sendo que “decidir qual deles será escolhido na fundamentação
jurídica é uma questão de conveniência. Mas nenhum deles pode pretender
uma primazia sobre os outros” (2015, p. 540).
Feita a breve explicação sobre as grandes teorias que discutem como se dá a incidência
de direitos fundamentais nas relações privadas, é possível concluir que na tradição romano-
germânica não gozam de prestígio posições extremadas que, ou negam em absoluto a
vinculação de particulares aos direitos fundamentais, ou pregam a sua vinculação irrestrita em
equivalência ao Estado.
Pode-se dizer que essas monografias são hoje as obras basilares sobre a vinculação de
particulares aos direitos fundamentais na literatura jurídica brasileira. Por isso o presente
capítulo será dedicado, no campo doutrinário, à apresentação das posições dos três autores,
cujas inferências serão resgatadas no último capítulo, em que se buscará finalmente responder
à questão da vinculação das redes sociais de streaming ao direito fundamental ao devido
processo legal.
Para Daniel Sarmento não há dúvida que a Constituição Federal de 1988 e os direitos
fundamentais que ela consagra não direcionam seus efeitos unicamente aos Poderes Públicos,
mas a todos os que se relacionam sob a ordem jurídica por ela instaurada.
Na sua opinião, a Carta Magna brasileira não se contenta com o papel limitado que foi
atribuído às constituições liberais: o de dispor apenas sobre a estrutura orgânica do Estado e de
regular somente as relações jurídicas em que figuram Estado e indivíduo. Ela vai além,
prevendo também os principais valores e diretrizes aceitos para a conformação da vida social
no país, de modo que ela não é somente a “Lei Fundamental do Estado brasileiro”, mas sim a
“Lei Fundamental do Estado e da sociedade” (SARMENTO, 2010, p. 258).
Por isso, para Sarmento, no cenário jurídico brasileiro a eficácia dos direitos
fundamentais nas relações privadas se dá, inegavelmente, de forma direta e imediata
(SARMENTO, 2010, p. 260).
Para mais, o constituinte brasileiro tanto expressou de modo literal sua preocupação
com a construção de uma sociedade “livre, justa e solidária” (art. 3º), quanto foi generoso na
previsão de direitos a prestações de caráter social, de modo que o sistema de direitos
fundamentais por ela adotado é mais caracterizado pela “socialidade” do que o sistema
germânico (SARMENTO, 2010, pp. 259-261 e 268).
Por fim, o art. 1º, III da Constituição Federal erigiu o princípio da dignidade da
pessoa humana como epicentro do ordenamento jurídico, de forma que, se os direitos
fundamentais representam suas manifestações, é preciso expandir sua incidência para todas
esferas da vida humana, de modo que condicionar sua proteção à atuação do legislador, significa
que, diante de sua omissão, sua proteção restará irremediavelmente comprometida
(SARMENTO, 2010, pp. 259-261 e 268).
77
Sem embargo, Sarmento ressalta que as diferenças que afastam a adoção no Brasil de
teorias que limitam a vinculação de condutas privadas aos direitos fundamentais tampouco
seriam de caráter meramente dogmático. O fato é que a sociedade brasileira seria muito mais
“injusta e assimétrica” do que a alemã e a estadunidense, ou de qualquer outro país
desenvolvido, o que justificaria um reforço na tutela dos princípios fundamentais no campo
privado, onde, por força de sua brutal desigualdade, reinaria a opressão e a violência
(SARMENTO, 2010, p. 261-262).
Nessa esteira, assevera que a autonomia privada não constitui um valor absoluto, de
modo que seria plenamente admissível a sua ponderação com outros direitos e interesses
constitucionais, além de que, por princípio, só existiria efetiva autonomia quando garantidas as
condições materiais mínimas para que o agente a exercite, o que não sucederia na maioria das
relações em que se debate a aplicabilidade dos direitos fundamentais no domínio privado, já
que a desigualdade entre as partes envolvidas costuma ser manifesta. Assim, Sarmento conclui
que “afirmar a aplicabilidade direta e imediata dos direitos individuais nestas relações não
atenta contra a autonomia privada, mas visa, ao inverso, promovê-la no seu sentido mais pleno,
que é aquele que recebeu a benção do constituinte” (SARMENTO, 2010, p. 263).
Quanto à objeção de que a teoria da eficácia direta seria antidemocrática, por conferir
poderes de conformação dos direitos fundamentais ao Judiciário, que não detém legitimação
popular, em detrimento do Legislativo, o titular por excelência desta competência, Sarmento
afirma, concordando neste ponto com Hesse (1995, p. 64-67), que, em primeiro lugar, a
prioridade do juiz na solução de casos concretos deve ser a aplicação das normas de direito
privado, que gozam de presunção de constitucionalidade, não sendo possível o seu afastamento
nos casos que envolvam direitos fundamentais sem que o intérprete se desincumba do ônus de
argumentar a sua inconstitucionalidade. Exigência, que, no entanto, não afasta a possibilidade
de aplicação direta da Constituição, diante da inexistência de norma específica regulando a
matéria, ou quando a aplicação da norma existente acarretar ofensa às normas e valores
constitucionais (2010, pp. 264-265).
[..] puro preconceito ideológico, travestido sob a forma de teses jurídicas sofisticadas,
que na verdade pugnam para evitar que a axiologia solidarista da Constituição
“contamine” o reino de suposta neutralidade e de justiça comutativa do Direito
Privado” (2010, pp. 264-265).
4.2.2. Standards para a incidência dos direitos fundamentais em relações privadas no contexto
brasileiro
Como bem nota Virgílio Afonso da Silva, o professor da UERJ não se contenta com o
lugar-comum de que a questão se resolveria pela ponderação com a autonomia privada,
cuidando de elaborar critérios que confiram maior objetividade à sua aplicação (2005, p. 175).
Neste sentido, Sarmento fixa como determinantes dois aspectos a serem observados
na relação jurídica onde a sua incidência está sendo invocada: um relativo aos seus sujeitos, e
outro relativo aos direitos em conflito.
É essencial, portanto, na visão do autor, que nas questões envolvendo a aplicação dos
direitos fundamentais nas relações entre particular seja verificada “a existência e o grau da
desigualdade fática entre os envolvidos”. De modo que “quanto maior for a desigualdade, mais
intensa será a proteção ao direito fundamental em jogo, e menor a tutela da autonomia privada”.
Assim como, “numa situação de tendencial igualdade entre as partes, a autonomia privada vai
receber uma proteção mais intensa, abrindo espaço para restrições mais profundas ao direito
fundamental com ela em conflito” (2010, p. 284).
Virgílio Afonso da Silva contesta o critério da desigualdade material das partes como
medida da proteção conferida à autonomia privada em sua colisão com outros direitos
fundamentais, afirmando que o importante para o referido calibramento seria a verificação da
“sinceridade” ou “insinceridade” com a qual a vontade de cada uma das partes foi manifestada.
81
Isto, porque, da diferença de condições materiais não necessariamente decorre uma restrição à
liberdade de contratar (2011, pp. 156-159).
Sarmento ainda acrescenta que uma nota essencial dos direitos fundamentais é o seu
papel de proteção da pessoa humana contra o poder, de modo que seria justificada a sua
incidência mais forte nas relações em que figure um agente privado mais poderoso, ainda que
isto possa representar uma relativização do princípio da autonomia privada nas hipóteses em
que este poder figura como fator determinante da assimetria (2010, p. 287).
Sem embargo, como já dito, embora Sarmento eleja a desigualdade material entre as
partes como fator modulante da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, na sua opinião
não há óbice à sua invocação em relações em que há paridade de forças, visto a sua função ser
a de proteção dos bens mais relevantes para a pessoa humana, inclusive os das pessoas mais
82
Seguindo essa linha de raciocínio, Sarmento menciona, citando Sarlet, que mesmo a
presença de uma assimetria manifesta não afastaria o reconhecimento dos direitos fundamentais
do ente mais forte, igualmente merecedores de tutela. Portanto, o que se verifica nos casos em
que invocados os direitos fundamentais em relações privadas é sempre uma hipótese de colisão
entre os direitos fundamentais de ambas as partes, cuja superação demanda a sua
compatibilização à luz do caso concreto (2011, p. 129-130 apud SARMENTO, 2010, p. 289).
O último aspecto destacado pelo autor é a verificação se alguma das partes envolvidas
pode ser identificada como um “ator público”, pois o regime de vinculação a direitos
fundamentais dos poderes públicos é muito mais rígido, não sobrando espaço para ponderação
de interesses com a autonomia privada (SARMENTO, 2010, p. 295).
83
Para a identificação de uma das partes com um poder público Sarmento propõe um
critério mais abrangente do que o defendido pelos adeptos da doutrina da state action. Com
efeito, na visão do autor, a entidade deve ser caracterizada como poder público: se recebe bens
ou recursos públicos ou se se vale de agentes estatais no exercício de atividades privadas
(citando as organizações sociais da Lei n.º 9.637/98 e as entidades de apoio da Lei n.º 8.958/94,
além dos serviços sociais autônomos); se for uma empresa estatal ou uma sua subsidiária, ainda
que exerça atividade econômica em sentido estrito; se exerce funções de natureza pública, como
os concessionários e permissionários de serviços públicos, no que toca à execução dessa
funções; e se há o exercício de alguma atividade de “caráter eminentemente público, ainda que
sem qualquer dependência formal em relação ao Estado” (caso dos partidos políticos). Já, se a
entidade privada recebe algum tipo de fomento estatal, inclusive subsídios fiscais, a questão
haveria de ser analisada com parcimônia. Este vínculo não seria, por si só, suficiente para
submetê-las a regime jurídico idêntico ao estatal. O mero fomento não importaria completa
subtração da autonomia privada das entidades, mas ele haveria de ser considerado como fator
calibrante da proteção de sua autonomia privada. Ademais, entende que é dever do “Estado
condicionar o fomento à submissão da entidade privada aos direitos fundamentais, cancelando-
o sempre que ficarem comprovadas práticas atentatórias a estes direitos” (2010, pp. 298-299).
Criticando a teoria da eficácia mediata Steinmetz aduz que condicionar a eficácia dos
direitos fundamentais à concretização legislativa e à mediação por meio da interpretação
judicial das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, acaba por inverter a equação
da ordem jurídica submetendo a Constituição à legalidade e não o contrário. Outrossim, o
trabalho do Legislativo seria reconhecidamente omisso, moroso, e insuficiente, em especial no
tocante à conformação do conteúdo de direitos fundamentais, o que coloca em risco a sua
efetividade (2004, pp. 149-150 e 156).
Não obstante, como tantos outros autores, Steinmetz reconhece que a aplicação de
direitos fundamentais em âmbito privado possui particularidades. Por isso, sustenta que nas
relações interindividuais a situação envolve a conciliação da autonomia privada com os direitos
com os quais ela se choca, de forma que a eficácia dos direitos fundamentais há de ser matizada
por estruturas de ponderação fundadas no princípio da proporcionalidade, que haverão de
determinar a solução do conflito tomando em consideração todas as circunstâncias fáticas e
jurídicas relevantes (2004, p. 295).
86
Como nota Virgílio Afonso da Silva, Steinmetz não aprofunda os critérios que
deveriam ser considerados na averiguação da necessidade e adequação da restrição, focando-se
em desenvolver como se resolve a questão da sua proporcionalidade em sentido estrito pela
técnica de ponderação segundo a qual a satisfação de um dos direitos em questão implica a não
satisfação do outro (2011, p. 163).
Steinmetz explica que precedências prima facie não contêm determinações definitivas
em favor de um princípio, mas estabelecem um ônus de argumentação para a precedência do
outro princípio no caso concreto. Ou seja, uma precedência prima facie constitui uma carga de
argumentação a favor de um princípio e, por conseqüência, uma carga de argumentação contra
o outro princípio (2004, p. 215).
88
Como se verá no tópico 4.4.2.5.1 Virgílio Afonso da Silva tece uma crítica bastante
pertinente a este modelo baseado em ponderação proposto por Steinmetz.
Influenciado pelo pensamento Alexy, Virgílio Afonso da Silva crê que, dada a falta de
uniformidade das situações de aplicação dos direitos fundamentais em âmbito privado, seria
impossível obter-se resposta satisfatória ao fenômeno baseada no apego a um modelo específico
de incidência (Cf. 2011, p. 134). Por isso o modelo adequado de justificação e controle de sua
incidência haveria de ser dotado de uma flexibilidade que permita a conciliação dos modelos
existentes, sendo essencial na sua formulação a definição do papel exercido por cada um deles
(2011, pp. 134 e 143).
Como se percebe, o objetivo visado pelo autor brasileiro é o mesmo que inspirou Alexy
na criação de seu modelo de incidência em três níveis (2015, pp. 531-542), que, por esta mesma
razão, é utilizado como ponto de partida metodológico de sua argumentação.
Antes de propor a sua “solução diferenciada” (2011, p. 134) para o problema, Virgílio
debate os fundamentos usualmente utilizados pelos adeptos dos dois modelos de aplicabilidade
mais importantes – o direto e o indireto – para a justificação teórica e dogmática do rompimento
da tradição que vinculava somente os poderes públicos a esses direitos, pois, em sua visão,
alguns estratagemas argumentativos elaborados pela doutrina alemã seriam dispensáveis, em
particular para a discussão do tema no Brasil (2011, p. 136).
Com isso ele almeja demonstrar que a fundamentação desses dois modelos, tal como
desenvolvida tendo em consideração a Constituição da Alemanha, não necessariamente se
adequa à ordem jurídica instaurada pela Constituição Federal de 1988. No caso brasileiro, por
exemplo, o recurso teórico à concepção dos direitos fundamentais como ordem objetiva de
valores, que, a princípio, foi crucial na Alemanha para a sustentação da extensão da
aplicabilidade das normas de direitos fundamentais às relações em que ausente o Estado, sequer
seria imprescindível em nosso contexto (2011, p. 136.)
direitos fundamentais” positivando tão somente as chamadas liberdades clássicas (pp. 136-
137).
Virgílio elucida dizendo que a ideia dos direitos fundamentais como proteção dos
cidadãos nas relações entre si, e não só nas relações com o Estado, era corriqueira nos
movimentos iniciais que levaram às declarações de direitos, em especial a Revolução Francesa
e o movimento pela independência das colônias britânicas na América do Norte. Eram, assim,
pensados como “direito à segurança”, com base na percepção de que as ameaças a direitos
fundamentais não provêm apenas do Estado, mas também de outros cidadãos. Seriam exemplos
desse pensamento a Declaração de Direitos de Virgínia, de 1776, em especial o seu art. 3º, bem
como a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, particularmente o art. 2, que
bem revelariam que a preocupação quanto à segurança dos cidadãos nas relações entre
si marcava fortemente a teoria e a prática dos direitos fundamentais da época (2011, pp.
137-138).
Ora, se a ideia já estava contida no núcleo das revoluções do século XVIII, também a
dita “expansão” dos direitos fundamentais às relações entre particulares poderia muito bem ser
fundamentada historicamente, como mero desenvolvimento da referida ideia de “direito à
segurança”, sem que seja “imprescindível recorrer a uma teoria de valores ou a outro tipo de
esforço argumentativo para justificar esses efeitos” (V.A. SILVA, 2011, p. 138).
Além do ajuste da visão histórica dos direitos fundamentais, segundo Virgílio, outro
aspecto que não se poderia olvidar na elaboração de uma justificativa para a aplicabilidade de
91
direitos fundamentais às relações privadas é a análise da teoria adotada pela Constituição que
se está a considerar no tocante à aplicabilidade dos direitos fundamentais (2011, p. 138).
De outra parte, por força dessa vinculação expressa apenas dos Poderes Públicos aos
direitos fundamentais, bem como pelo fato de a Lei Fundamental de Bonn prever apenas
direitos fundamentais negativos, é que se recorreu à elevação desses direitos à "condição de
valores fundamentais destinados a reger não somente a atividade estatal como também a vida
social", como manobra hermenêutica para a superação da literalidade do texto constitucional
alemão; saída apresentada no caso Lüth (V. A. SILVA, 2011, p. 140).
Por outro lado, como não há nada na Constituição Federal de 1988 que indique a
vinculação exclusiva do Estado, sequer existe a necessidade de recurso a essa concepção dos
direitos fundamentais como ordem objetiva de valores para o fim de justificar a incidência dos
direitos fundamentais em relações privadas (V. A. SILVA, 2011, p. 140).
privadas é passível de ser utilizado no Brasil, sem que as principais críticas contra ele possam
ser sustentadas, críticas estas que se direcionam precipuamente à sua compreensão como
sistema de valores objetivos (V. A. SILVA, 2011, pp. 140-141).
Ademais, como se verá no próximo tópico, Virgílio defende que tal fórmula de
justificação não se afigura imprescindível nem mesmo no caso alemão, bastando a sua
conceituação como princípios como sustentáculo dos efeitos dos direitos fundamentais nas
relações entre particulares (2011, pp. 146-147).
Fundamentar os efeitos dos direitos fundamentais nas relações privadas com base na
ideia de princípios e não na ideia de uma ordem objetiva de valores, teria duas vantagens
segundo o autor: (i) eximir o modelo das críticas relativas à essa ordem de valores; (2) evitar a
"dominação do direito infraconstitucional" pelo direito constitucional, preservando-se a
autonomia do direito privado, na medida em que, como enuncia o próprio conceito de
mandamento de otimização, a sua realização é condicionada às condições fáticas e jurídicas
existentes, considerando-se, dentre as últimas, as normas de direito infraconstitucional
existentes, incluídas as de direito privado (2011, pp. 146-147).
– de forma mediata –, assim como pela sua interpretação com base na Constituição que os
positiva (V. A. SILVA, 2011, p. 147).
Virgílio destaca em seu modelo que a análise de conflitos entre direitos fundamentais
nas relações entre particulares, contratuais ou não, não pode dispensar a observância da
existência e suficiência da solução formulada pelo legislador no exercício de sua competência
para mediar a eficácia dos direitos fundamentais em relações privadas, sendo preciso distinguir
casos em que exista mediação legislativa e casos em que essa mediação não exista ou seja
insuficiente. Há mediação legislativa quando o legislador, exercendo sua competência
legislativa, tenha fixado alguma solução para uma determinada colisão entre direitos
fundamentais. Assim, se para um caso de colisão entre direitos fundamentais no âmbito de uma
relação entre particulares, há algum dispositivo legal em que o suporte fático se enquadre, o
efeito indireto há de ser privilegiado (2011, p. 169).
Sem embargo, nas situações em que ausente mediação legislativa, ou em que esta se
revele insuficiente à máxima realização dos direitos fundamentais na situação concreta, torna-
se necessária a sua invocação direta. Nesta hipótese, contudo, o intérprete há de lidar com o
ônus argumentativo do afastamento da norma infraconstitucional exercendo o controle de
constitucionalidade e o problemático choque dos direitos fundamentais com a autonomia
privada (Cf. V. A. SILVA, 2011, pp. 148 e 169).
Para resolver esse confronto dos direitos fundamentais com a autonomia privada,
decorrente de sua aplicação direta, Virgílio recorre ao conceito de princípios formais formulado
por Alexy.
95
Em breve síntese, princípios formais seriam normas de validade, que conferem razões
para a obediência de outra norma, independentemente de seu conteúdo. Um exemplo seria o
princípio da competência decisória do legislador, que compele à aplicação das decisões
legislativas na maior medida do possível dentro das condições fáticas e jurídicas, ainda que
impliquem restrições a direitos fundamentais.
4.4.2.4. Tensão entre princípios formais e princípios materiais: perspectiva a partir do conceito
alexyano de “competência”
Como visto, Virgílio crê que a aplicabilidade direta dos direitos fundamentais às
relações privadas exige do intérprete a solução da tensão criada pela interação entre a autonomia
privada, que, como princípio formal, garante a validade de decisões restritivas de direitos
fundamentais, e os próprios direitos fundamentais por ela restringidos, que, como princípios
materiais, agem em sentido contrário, limitando a autonomia privada ao impor a necessidade
de sua realização na maior medida do possível. Sendo que o desafio posto ao intérprete é
resolvê-la sem que qualquer dos dois seja totalmente sacrificado. Para este fim, Virgílio julga
útil recorrer ao conceito de “competência” elaborado por Alexy.
No sentido proposto pelo autor alemão, uma competência consiste em uma capacidade
de se alterar a posição jurídica de um terceiro, que, por conseguinte, ocupa uma posição de
sujeição face ao exercício desta competência. Nesta acepção, os direitos fundamentais, em sua
função negativa, funcionam como limitadores de competência, por garantirem certas posições
96
jurídicas contra modificações. O legislador, por exemplo, por força da liberdade de imprensa,
não pode sujeitar os seus titulares a normas que desfigurem ou eliminem as posições jurídicas
que ela protege. Quer dizer, os direitos fundamentais restringem a competência geral do
legislador para criar ou modificar posições jurídicas, estabelecendo uma área específica de não-
competência/não-sujeição. O mesmo ocorreria no âmbito interindividual, onde os direitos
fundamentais exerceriam igualmente a função de normas negativas de competência, impedindo
que uma das partes tenha de se sujeitar a restrições impostas pela outra, que reduzam a um
mínimo desfigurado as posições jurídicas derivadas dos direitos fundamentais. Em sentido
contrário, no mesmo contexto, a autonomia privada, enquanto princípio formal, que, tal qual os
materiais, deve ser realizada em seu máximo possível conforme as circunstâncias do caso
concreto, agiria como sustentáculo da competência para modificar as posições jurídicas da parte
contrário. Assim, a colisão entre a autonomia privada e um direito fundamental em uma situação
determinada pode ser visto como uma interação entre vetores de normas de competência e de
não-competência, cabendo ao aplicador buscar, na superação de seu contraste, preservar tanto
umas como as outras, na maior medida do possível (2011, pp. 150-153).
Ele explica que a colisão entre direitos fundamentais que tenham a estrutura de
princípios materiais é resolvida por uma lei de colisão, cuja fórmula sintética é a de que ao grau
de não-realização de um princípio, necessariamente há de corresponder a importância da
realização do princípio com o qual ele colide. Assim, o sopesamento entre direitos fundamentais
em geral há de ser sempre bilateral, considerando-se tanto a importância em si de cada princípio
97
Expondo-os um a um:
Como bem observam Sarmento e Virgílio Afonso da Silva, embora muitos casos
envolvendo a aplicabilidade de direitos fundamentais às relações entre particulares já tenham
101
sido decididos pelo Supremo Tribunal Federal, a Corte não se preocupou em desenvolver uma
tese própria sobre o tema e tampouco demonstrou sua adesão a algum modelo de incidência em
específico (2010, p. 273; 2011, p. 93).
Está claro no acórdão, todavia, que o STF reconheceu que a aplicação do devido
processo legal à relação privada pressupunha a solução de seu conflito com a autonomia
privada; embora a técnica de solução não tenha sido declarada. Neste sentido, assim afirma o
voto do Ministro Celso de Mello manifestou franca adesão à possibilidade de aplicação direta
dos direitos fundamentais às relações privadas:
103
É por essa razão que a autonomia privada – que encontra claras limitações de ordem
jurídica – não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e
garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois
a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e
atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela
própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos
particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades
fundamentais(STF, 2006).
O estado da questão não é diverso no Superior Tribunal de Justiça. Com efeito, pode-
se colher diversos exemplos de aplicação direta dos direitos fundamentais em relações de direito
privado, mas em que o Tribunal deixa de apresentar qualquer elaboração teórica mais densa a
respeito de sua plausibilidade.
Sem embargo de a técnica aplicada ter sido, mais uma vez, a da aplicabilidade indireta,
os precedentes citados no acórdão – RE 201.819 e REsp 1.365.279 – sustentam a possibilidade
de sua aplicação direta. O que faz do acórdão outro exemplo de má compreensão dos modelos
de incidência de direitos fundamentais nas relações privadas pelo STJ.
Por fim, no REsp 1.330.919, no STJ tratou de um tema que está longe de ser pacificado
mesmo dentro da parcela da doutrina que defende a aplicabilidade direta das normas de direitos
fundamentais às relações privadas: a vinculação dos particulares a direitos fundamentais
prestacionais de caráter social16.
16
Sarmento e Sarlet por exemplo, são favoráveis à vinculação dos particulares a direitos fundamentais sociais,
mesmo os preciupuamente prestacionais (2010, pp. 343-344 e 2011, pp. 29-30). Já Steinmetz considera que os
direitos sociais previstos no art. 6º da Constituição Federal vinculam apenas o Estado (2004, p. 278).
106
tolheria, tanto o direito de usufruir do plano contratado, como a liberdade de escolha do médico
pelo consumidor.
[...]a eficácia do direito fundamental à saúde ultrapassa o âmbito das relações travadas
entre Estado e cidadãos – eficácia vertical –, para abarcar as relações jurídicas
firmadas entre os cidadãos, limitando a autonomia das partes, com o intuito de se obter
a máxima concretização do aspecto existencial, sem, contudo, eliminar os interesses
materiais (STJ, 2016).
Embora o tópico não seja abordado com a merecida atenção, o acórdão revela a
admissão pelo STJ de um critério de valoração da autonomia privada proposto por Sarmento:
o envolvimento de interesses existenciais no contrato (2010, pp. 290-291). Consta da
fundamentação que foi relevante para a conclusão pela nulidade da cláusula a consideração pelo
relator o Ministro Luis Felipe Salomão de que “o contrato de plano de saúde, além da nítida
relação jurídica patrimonial que por meio dele se estabelece, reverbera também caráter
existencial”, no caso a saúde do usuário, “o que coloca tal espécie contratual em uma
perspectiva de grande relevância no sistema jurídico pátrio”.
Também digno de nota, é o viés generalizante das soluções apresentadas, que parecem
pretender resolver todas as situações de conflito da mesma forma, sem preocupação com as
peculiaridades de cada caso concreto, nem com a sensível diferença estrutural das relações
107
privadas em relação às estatais. Afinal, o que movimenta todo o arcabouço teórico desenvolvido
a respeito do tema é o fato de que, nas interações típicas do domínio privado, ambas as partes
são titulares de direitos fundamentais e se faz possível a renúncia às posições jurídicas que eles
garantem.
Se, de um lado, as conclusões até hoje apresentadas pelo STJ e pelo STF podem
parecer razoáveis e adequadas para a solução dos casos concretos que lhes foram submetidos,
de outro, a sua reprodução acrítica em julgamentos futuros será capaz de conduzir à temida
hipertrofia dos direitos fundamentais que todas as teorias que tratam do tema visam evitar, que
acarreta não só a aniquilação da autonomia privada, mas uma banalização do próprio
significado dos direitos fundamentais protegidos.
Como visto nos dois capítulos anteriores, o que em grande parte dá o tom de toda a
discussão a respeito da aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações entre particulares
é a compreensão de que eles estariam historicamente associados exclusivamente com a defesa
contra o poder estatal, de modo que contrariaria sua própria função original a sua invocação
como limite ao exercício de liberdades individuais. Ainda que tal perspectiva histórica seja
contestável (V.A. SILVA, 2011, pp. 136-139), ela se assentou como lastro da resistência à sua
aceitação, ao ponto de a doutrina germânica ter sido obrigada a desenvolver fundamentos
próprios para a justificação da superação dessa concepção restrita. Daí o desenvolvimento da
noção de que os direitos fundamentais possuem uma dimensão objetiva, no sentido de
constituírem os valores fundantes da ordem jurídica que os positiva. A partir da qual inferiu-se
que os direitos fundamentais emanam efeitos sobre todos os ramos do direito, inclusive o direito
privado; e que a vinculação estatal aos direitos fundamentais não somente obriga o Estado a
respeitá-los, como também força-o a fazê-los serem respeitados pelos indivíduos nas relações
entre si (v. tópico 3.3).
Sem embargo, como se verá, o fato é que a doutrina brasileira é amplamente favorável
à aplicação do direito fundamental ao devido processo legal às relações entre particulares, assim
como a jurisprudência de nossas cortes superiores possui registros marcantes de seu
reconhecimento.
A expressão devido processo legal é tradução direta do inglês due process of law. O
termo law figura na locução no sentido de “direito” e não de “legislação”, que em inglês seria
traduzido por statutory law. Fala-se então que o processo “devido” é o processo conforme o
direito como um todo (DIDIER JR., 2017, p. 73). Daí a moderna doutrina processualista preferir
se referir a um “direito a um processo justo”, que melhor refletiria a necessidade de sua
conformidade, não só com as leis, mas também com a Constituição (MARINONI, 2015, p.
489). Igualmente, na Itália a doutrina fala de diritto al giusto processo e na Alemanha de Recht
auf ein faires Verfahren.
17
Estamos a tratar da origem da expressão due process of law. A noção de devido processo legal como cláusula
de proteção contra o poder tirânico, por sua vez, tem sua origem atrelada ao direito medieval alemão (DIDIER
JR., 2017, p. 74).
111
no Capítulo 39 da Magna Carta de 1215, que confere proteção aos cidadãos (free men) contra
ações arbitrárias da Coroa Inglesa, condicionando a retirada de seus bens ou direitos a um
julgamento justo, promovido por seus pares (lawful judgment of his equals), ou de acordo com
as “leis da terra” (by the law of the law). (GREEN, 2018, p. 402).
Assim diz texto do Capítulo 39, conforme tradução do latim original 18 para o inglês:
Whereas it is contained in the Great Charter of the Franchises of England, that none
shall be imprisoned nor put out of his Freehold, nor of his Franchises nor free
Custom, unless it be by the Law of the Land; It is accorded assented, and stablished,
That from henceforth none shall be taken by Petition or Suggestion made to our Lord
the King, or to his Council, unless it be by Indictment or Presentment of good and
lawful People of the same neighbourhood where such Deeds be done, in due Manner,
or by Process made by Writ original at the Common Law; nor that none be out of his
Franchises, nor of his Freeholds, unless he be duly brought into answer, and
forejudged of the same by the Course of the Law; and if any thing be done against the
same, it shall be redressed and holden for none. (1351 CHAPTER 4 25 Edw 3 Stat 5).
Três anos mais tarde, em 1354, o trecho foi reformulado pelo Liberty of Subject Act,
tendo sido finalmente adotada a expressão due process of law:“[N]o man of what Estate or
Condition that he be, shall be put out of Land or Tenement, nor taken nor imprisoned, nor
disinherited, nor put to Death, without being brought in Answer by due Process of the Law.”
(CHAPMAN; MCCONNELL, 2012, p. 1682; GREEN, 2018, p. 402; RARES, 2015, on-line).
18
No original latino: “Nullus líber homo capiatur vel impreisonetur aut disseisietur de libero tenemento suo vel
libertatis, vel liberis consuetudibunus suis, aut utlagetur, aut exuletur, aut aliquo modo destruatur, nec super eo
ibimus, nec supere um mittemus, nisi per legale judicium parium suorum, vel per legem terrae”.
112
common law ou dos statutes e conforme decidido por um corpo judicial independente (Cf. 2012,
pp. 1681-93 e 1807). Ou seja, o poder foi dividido entre a Coroa, o Parlamento e os Tribunais.
EMENDA V
Ninguém será detido para responder por crime capital, ou outro crime infamante,
salvo por denúncia ou acusação perante um Grande Júri, exceto em se tratando de
casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, ocorram nas forças de terra ou
mar, ou na milícia, durante serviço ativo; ninguém poderá pelo mesmo crime ser duas
vezes ameaçado em sua vida ou saúde; nem ser obrigado em qualquer processo
criminal a servir de testemunha contra si mesmo; nem ser privado da vida, liberdade,
ou bens, sem processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para
uso público, sem justa indenização.
O seu principal intuito era forçar todo os Estados da federação a oferecerem aos negros
recém-libertos as mesmas garantias conferidas pela União. A preocupação do constituinte
derivado era a de que os Estados escravagistas que perderam a guerra insistissem em práticas
113
discriminatórias contra os negros (BELLOWS, 2018, on-line). Vale lembrar que a XIII
Emenda, que foi adotada formalmente alguns anos antes em 6 de dezembro de 1865, havia
vedado a escravidão e os trabalhos forçados, estes salvo como punição por crime pelo qual o
réu tenha sido devidamente condenado.
Tanto a XIII quanto a XIV Emenda podem também ser consideradas repercussões
diretas do vergonhoso caso Dred Scott v. Sandford de 1857, no qual a Suprema Corte dos
Estados Unidos decidiu que pessoas de ascendência africana, trazidas para o país e mantidas
como escravas, ou os seus descendentes, quer fossem ou não escravos, não estariam protegidas
pela Constituição dos Estados Unidos e jamais poderiam se tornar cidadãos daquele país
(CORNELL LAW, [1992?], on-line).
A Corte também decidiu que: como os escravos não eram cidadãos, não poderiam
peticionar nos tribunais; que enquanto propriedade de seus donos, os escravos não poderiam
lhes ser retirados sem o devido processo legal; e que o Congresso não tinha autoridade para
proibir a escravidão nos então territórios federais da União (CORNELL LAW, [1992?], on-
line).
Como se verá melhor no próximo tópico, nada obstante o texto da V e da XIV Emendas
serem similares, a última guarda uma particularidade notável que foi marcante para o
desenvolvimento nos Estados Unidos do conceito de devido processo legal substantivo. Neste
sentido, Lúcia Valle Figueiredo destaca que a principal diferença entre a V e a XIV Emendas
reside no fato de que, na primeira, o devido processo legal é previsto com conteúdo meramente
formal; enquanto que, na segunda, sobretudo pela interpretação que lhe confere a Suprema
Corte dos Estados Unidos, “o devido processo legal passa a significar a igualdade na lei [equal
protection]. E não só perante a lei”. Sendo que “há distância enorme entre respeitar-se a
igualdade em face da lei e a igualdade dentro da lei”, de forma que, a partir dessa previsão
“somente será due process of law aquela lei – e assim poderá ser aplicada pelo Magistrado –
que não agredir, não entrar em confronto, não entrar em testilhas com a Constituição, com os
valores fundamentais consagrados na Lei das leis” (1997, p. 9). Enfim, na visão da autora, a
XIV Emenda instituiu a obediência das leis à Constituição e a possibilidade de controle judicial
do conteúdo das leis aplicáveis.
Após a previsão do devido processo legal na Constituição dos Estados Unidos, ele se
expandiu para diversas constituições da Europa e da América. Caso do art. 24 da Constituição
Italiana de 1947; do art. 103, Seção I, da Lei Fundamental da Alemanha de 1948; e do art. 24
114
[...] Letícia de Campos Velho Martel entende que já havia traços deste princípio no
direito pátrio, pois desde as primeiras décadas do constitucionalismo republicano ele
era objeto de estudo doutrinário e de aplicação pelos tribunais, principalmente por
meio de seus subprincípios, como o contraditório e a ampla defesa.
Todavia, os tratados e julgamentos giravam exclusivamente em torno do caráter
procedimental do devido processo legal, o que perdurou até a década de 1980.
Luiz Rodrigues Wambier também assinala a existência de alguns antecedentes do
princípio, como o art. 141, § 4º, da Constituição de 1946. Esse prescrevia que
nenhuma lesão ao direito de qualquer cidadão poderia deixar de ser apreciada pelo
Poder Judiciário, enunciado que apareceu também nos textos constitucionais de 1967
(art. 150, § 4º) e 1969 (art. 154, § 4º).
Roberto Rosas entende que a Constituição de 1824 apenas tracejou o devido processo
legal quando assegurou as garantias no processo (art. 179), não obstante o princípio
já existisse no direito norte-americano. Atribui essa ausência à forte influência
francesa em nosso direito imperial, o que somente veio a se abrandar com a
Constituição Republicana de 1891.
Ao referir-se à Carta de 1891, diz que ela assegurava a plena defesa, no processo
criminal, e proibia a prisão sem prévia formação de culpa (art. 72, § 14), passando in
albis, novamente, em relação ao due process of law, o que seria explicado pelo fato
de sermos, naquele momento, menos judiciaristas do que a doutrina e a jurisprudência
norte-americana, que se abeberavam na construction da Corte Suprema em relação à
larguíssima cláusula.
Roberto Rosas afirma, ainda, que, desde 1824, todas as Constituições brasileiras
cuidaram de garantias processuais penais, mas sem ênfases às garantias civis, o que
se devia ao fato de nossos doutrinadores, exceção feita a Rui Barbosa, terem maior
interesse pelos direitos francês e italiano, em detrimento do direito americano, em que
pese nossa Constituição de 1891 ter se inspirado no modelo constitucional dos EUA.
A despeito disso, cita diversos autores que, antes mesmo da Constituição de 1988, já
buscavam o reconhecimento do devido processo legal em nosso direito, como Lúcio
Bittencourt, José Frederico Marques, Santiago Dantas, Antônio Roberto Sampaio
Dória e outros mais (2016 p. 243-244)
suas previsões, visto que, não bastasse a inclusão de dispositivo especialmente dedicado ao
“devido processo legal”, ela densifica seu conteúdo por meio da expressão de diversos de seus
elementos estruturantes. Assim é que na Constituição Federal de 1988 são previstas, por
exemplo: a garantia da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LV); a regra da publicidade dos
atos processuais (art. 5º, LX); a proibição a “juízo ou tribunal de exceção” (art. 5º, XXXVII); e
a necessidade de motivação e publicidade das decisões judiciais (art. 93, IX). Nos Estados
Unidos, ao contrário, o seu âmbito de proteção há de ser deduzido caso a caso (ÁVILA, 2010,
p. 360).
Sem embargo, ainda que não houvesse tais menções expressas, o devido processo legal
poderia ser extraído como direito fundamental implícito mediante interpretação do princípio
fundamental do Estado Democrático de Direito (art.1º), ou do princípio da igualdade (art. 5º,
caput), na medida em que o Brasil conta com um catálogo aberto de direitos fundamentais (art.
5, §2º).
O devido processo legal, como texto jurídico, constitui cláusula geral (DIDIER JR.,
2017, p. 74). Isto é, define o antecedente de sua incidência, a situação a ser regulada pela norma
dele extraída, mas não prescreve o consequente normativo de sua verificação no caso concreto,
o efeito jurídico imputado ao fato descrito.
Já como norma, o devido processo legal possui a natureza de princípio. Prevê, assim,
um estado ideal de coisas e institui a obrigação de realizá-lo na maior medida do possível,
conforme as circunstâncias fáticas e jurídicas presentes no momento da aplicação. Embora os
meios para o atingimento desse estado ideal de coisas não sejam previstos pelo legislador, de
sua positivação, por si só, derivam efeitos mínimos correspondentes às suas funções integrativa,
116
Por se tratar de um princípio, seu conteúdo é marcado pela historicidade; ou seja, suas
linhas acompanham as mutações na cultura e na sociedade ocorridas ao longo do tempo, sem
que ele jamais adquira uma fórmula definitiva (Cf. DIDIER JR., 2017, p. 75).
Assim é que, como compila Fredie Didier Jr., nos processos que se desenvolvem no
Brasil:
É preciso observar o contraditório e a ampla defesa (art. 5°, LV, CF/1988) e dar
tratamento paritário às partes do processo (art. 5°, I, CF/1988); proíbem-se provas
ilícitas (art. 5º, LVI, CF/1988); o processo há de ser público (art. 5°, LX, CF /1988);
garante-se o juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII, CF /1988); as decisões hão de ser
motivadas (art. 93, IX, CF /1988); a· processo deve ter uma duração razoável (art. 5º,
LXXVIII, CF /1988); o acesso à justiça é garantido (art. 5°, XXXV CF /1988) etc..
(2017, p. 76)
Como bem destaca Marcelo Lima Guerra, cada uma dessas garantias componentes do
devido processo legal também podem ser consideradas como direitos fundamentais autônomos
(2008, p. 57 apud DIDIER JR., 2017, p. 76). Com efeito, em geral a doutrina e a jurisprudência
se referem à ampla defesa e à proibição da prova ilícita como direitos fundamentais próprios.
As garantias até agora referidas compõem o aspecto formal do devido processo legal
brasileiro, mas a doutrina e a jurisprudência vislumbram também um aspecto substancial
derivado do princípio.
A noção de devido processo legal substancial (em inglês, substantive due process) tem
por antecedente histórico remoto o julgamento do caso Dr. Bonham, na Inglaterra, em 1610,
em que se discutiu uma lei que concedia ao London College of Physicians – ente equivalente a
um Conselho Regional de Medicina – o poder de prender quem quer que estivesse exercendo a
119
Medicina sem uma licença. Edward Coke jurista cuja obra é de influência notável sobre o
desenvolvimento inicial do direito constitucional dos Estados Unidos, participando do
julgamento como Chief Justice da British Court of Common Pleas, arguiu que a referida lei era
nula por ser “against common right and reason”. A tese inspirou juristas estadunidenses da
época colonial a desenvolver o princípio de que as leis que conflitassem com a Constituição
seriam nulas (LIBRARY OF CONGRESS OF THE UNITED STATES, [2014?], on-line).
A Crescent City, na verdade, não operava a atividade, mas sim alugava o espaço aos
interessados mediante o pagamento de uma taxa. Enfim, com a lei, ou os açougueiros de Nova
Orleans fechavam seus matadouros, ou teriam de pagar para trabalhar para a empresa.
19
Emenda XIII. Seção 1. Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem
escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente
condenado. 'Seção 2 O Congresso terá competência para fazer executar este artigo por meio das leis necessárias
120
ao criar uma espécie de servidão, e a XIV Emenda20, por afetar seus “privilégios e imunidades”
enquanto cidadãos, além de retirar-lhes o direito à subsistência, à liberdade econômica e à
propriedade, sem que houvesse o “devido processo legal”.
This statute is denounced [by the butchers] not only as creating a monopoly and
conferring odious and exclusive privileges upon a small number of persons at the
expense of the great body of the community of New Orleans, but it is asserted that it
deprives a large and meritorious class of citizens—the whole of the butchers of the
city—of the right to exercise their trade, the business to which they have been trained
and on which they depend for the support of themselves and their families, and that
the unrestricted exercise of the business of butchering is necessary to the daily
subsistence of the population of the city. (SCOTUS, 1873, on-line)
20
Emenda V. Seção 1. Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas a sua jurisdição
são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde tiver residência, Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis
restringindo os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem poderá privar qualquer pessoa
de sua vida, liberdade, ou bens sem processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção
das leis [...].
121
direitos derivados da cidadania estadual dependeriam da common law de cada Estado e não
seriam protegidos pela XIV Emenda (SANDEFUR, 2009, pp. 118-119). Ela não protegeria,
portanto, um suposto direito à subsistência (livelihood) ou à proteção contra monopólios.
Apesar de não ter conquistado a maioria na ocasião, a leitura de Field acerca do devido
processo legal com esteio na XIV Emenda acabou se tornando mais influente para o
desenvolvimento do direito constitucional dos Estados Unidos do que o voto vitorioso de
Miller, que é fortemente criticado na doutrina.
O devido processo legal substancial aparece na Suprema Corte dos Estados Unidos
como uma forma de reconhecimento da possibilidade de controle de constitucionalidade dos
atos estatais com base em direitos fundamentais implícitos na Constituição, baseados na razão
e no senso de justiça. Assim, a cláusula poderia ser invocada, por exemplo, para que o Judiciário
declarasse a nulidade de leis que violassem a separação de poderes (princípio que não é
explícito na Constituição estadunidense) ou atos de arbitrariedade (outro termo não encontrado
no texto constitucional) (Cf. SANDEFUR, 2009 p. 149). Ou seja, por meio dele se procede ao
exame de razoabilidade e de racionalidade das normas jurídicas e dos atos do poder público em
geral (BARROSO, 1996, p. 199). Daí a sua relevância em casos como Griswold v. Connecticut
e Roe vs. Wade, nos quais a Suprema Corte consagrou o direito à privacidade, não previsto na
Constituição (Cf. BARROSO, 1996, p. 203).
Postas as suas duas dimensões, portanto, o conceito de “legal” (o “law” em due process
of law), contempla tanto elementos formais quanto materiais, que são indivisíveis, de sorte que
a exigência de respeito ao devido processo legal demanda do Estado uma atuação, não apenas
conforme as leis formais (dimensão formal), mas conforme o direito como um todo (dimensão
substancial), vedando a atuação estatal arbitrária, que intervêm sobre as liberdades individuais
destituída do necessário coeficiente mínimo de razoabilidade e proporcionalidade,
relacionando-se, principalmente, com o controle material de leis e da discricionariedade de atos
122
Nas palavras de Sandefur, tal como não pode haver forma sem substância e tampouco
pode haver substância sem forma específica, um ato do Estado somente se qualifica como
direito (law) se atende a critérios, tanto formais quanto substanciais, que o permitam ser
qualificado como tal. Se um ato do Estado não atende a esses requisitos, este ato não se qualifica
como direito, de modo que executá-lo de modo a subtrair dos indivíduos sua vida ou sua
propriedade, corresponde a retirar bens ou direitos sem o devido processo legal (due process of
law) (2009, pp. 148-149).
Em outros julgados relevantes citados por Ana Luísa Barbosa Barreto ([2013?], p. 14),
com base no desrespeito ao devido processo legal substantivo o STF declarou a
inconstitucionalidade de leis que:
O devido processo legal substancial tem sido usado pelo STF como fonte dos
princípios da razoabilidade e proporcionalidade, que inclusive são por ele usados como
sinônimos. Parcela da doutrina, contudo, entende incorreto associar as as exigências de
razoabilidade e proporcionalidade da ação estatal ao devido processo legal no ordenamento
jurídico brasileiro. Na visão de Marinoni, o direito ao devido processo legal, que ele denomina
direito ao processo justo, é de natureza puramente processual, pois os deveres de
proporcionalidade e razoabilidade decorreriam dos princípios da liberdade e da igualdade.
Ademais, o conceito de devido processo legal substantivo como fonte de direitos fundamentais
implícitos, tal como utilizado pela jurisprudência dos Estados Unidos, seria inútil visto a
Constituição brasileira contemplar um catálogo aberto de direitos fundamentais (art. 5, §2º).
(2015, p. 490). Ávila, que também o compreende em um sentido puramente procedimental,
defende igualmente que as exigências de razoabilidade, adequação e proporcionalidade
decorreriam da positivação dos princípios da liberdade e da igualdade e também das finalidades
estatais, além que não seria consistente separar o devido processo legal em duas dimensões,
primeiro porque o devido legal procedimental decorre do próprio conteúdo normativo dos
direitos que se propõe a proteger por meio do processo21; segundo, porque , a dimensão formal
21
Pela densidade do raciocínio, transcreve-se a lição de Ávila na íntegra: “1.2.5. Os elementos atribuídos ao
“devido processo procedimental” não são gratuitos, mas são decorrência do ideal de protetividade dos direitos
fundamentais: a existência de contraditório e ampla defesa é adequada e necessária à proteção de um direito, pois
sem essas condições as partes não poderão produzir provas e argumentos indispensáveis à demonstração da
realização ou restrição do referido direito; a existência de um juiz natural imparcial é elemento adequado e
necessário à proteção de um direito, pois sem ele as alegações e as provas produzidas não serão avaliadas de modo
a demonstrar a realização ou restrição do direito; as exigências de publicidade e fundamentação dos atos praticados
são elementos adequados e necessários à proteção de um direito, pois sem elas as partes não têm como tomar
conhecimento dos atos e das razões que podem demonstrar a realização ou restrição do direito; e assim por diante.
Desse modo, só o exame de proporcionalidade e razoabilidade é que permitirá verificar se um ato, uma decisão,
uma prova, um prazo ou a oitiva de uma testemunha, por exemplo, são adequados à proteção de um direito. Em
outras palavras, só se sabe se um processo é adequado ou justo se os atos praticados no processo forem
proporcionais e razoáveis ao ideal de protetividade do direito alegado. 1.2.6. Desse modo, não se pode apartar os
deveres de proporcionalidade e de razoabilidade do direito a um processo adequado ou justo. Sendo o processo
adequado ou justo aquele estruturado de maneira proporcional e razoável à proteção do direito fundamental
alegado, os deveres de proporcionalidade e razoabilidade são as próprias medidas do processo adequado ou justo.
1.2.7. As considerações precedentes conduzem, de um lado, à conclusão de que os deveres de proporcionalidade
e razoabilidade são decorrências diretas e internas dos princípios de liberdade e de igualdade, e impõem a adoção
de comportamentos que contribuam para a existência dos bens jurídicos que compõem os estados ideais de
liberdade e de igualdade; de outro, à conclusão de que o direito a um processo adequado ou justo é uma decorrência
indireta e externa da proteção de direitos, e impõe a adoção de comportamentos que contribuam para a existência
dos bens jurídicos que compõem o estado ideal de protetividade dos direitos de liberdade e de igualdade. 1.2.8. A
qualificação de adequado ou justo, no entanto, só é verificável por meio dos deveres de proporcionalidade e de
razoabilidade: mesmo sendo um ideal instrumental a outro, o ideal de protetividade consubstancia um fim e, como
tal, implica os parâmetros teleológicos de aplicação da proporcionalidade e razoabilidade. (ÁVILA, 2012 p. 356-
357).
124
5.5. O direito fundamental ao devido processo legal nas relações entre particulares no
direito brasileiro
Com efeito, o direito privado brasileiro conta com diversas disposições que
materializam o devido processo legal em âmbito privado.
Neste sentido, o art. 57 do Código Civil previa, já em sua redação original, que a
exclusão de associado somente seria admissível havendo justa causa e desde que obedecido o
disposto no estatuto da associação. Sendo que, na omissão do estatuto, a exclusão também
poderia ocorrer caso reconhecida a existência de motivos graves, mas desde subsidiada por
deliberação fundamentada, tomada pela maioria absoluta dos presentes à assembleia geral
especialmente convocada para esse fim. Por sua vez, seu parágrafo único determinava que da
decisão de órgão da associação que decretasse a exclusão em conformidade com o estatuto,
caberia sempre recurso à assembleia geral. Posteriormente, a Lei n. 11.127/05 modificou a
redação do art. 57 do Código Civil, eliminando o parágrafo único, porém reforçando o direito
de defesa do associado excluído, passando a determinar que “a exclusão do associado só é
admissível havendo justa causa, assim reconhecida em procedimento que assegure direito de
defesa e de recurso, nos termos previstos no estatuto”. Mas mesmo antes da modificação legal,
o Supremo Tribunal Federal já́ adotara entendimento parecido com o que determinou a Lei n.
11.127/05, afirmando a necessidade de a associação observar o devido processo legal nos
processos de exclusão de associado.
Como visto no tópico 4.5, não obstante neste julgado o STF ter reconhecido a
aplicabilidade direta do devido processo legal a uma relação privada, o acórdão não adentrou
na polêmica doutrinária a respeito do tema, de modo que o acórdão não revela quais seriam, na
opinião da Corte, as condições e os limites para a incidência do art. 5, LIV da Constituição;
tampouco, em especial, como se dá sua interação com a autonomia privada.
Sem embargo, como observa Virgílio Afonso da Silva (2010, p. 93), visto que, no caso
concreto analisado, o próprio estatuto da cooperativa previa o direito de defesa dos associados,
na solução da lide o STF bem poderia ter se restringido à discussão das normas do Código Civil
a respeito do inadimplemento, sem que se fizesse necessário o apelo direto ao texto
constitucional.
Anos mais tarde, em 2005, o STF voltou a se debruçar sobre a matéria, desta vez
apresentando fundamentação mais densa a respeito da aplicabilidade de direitos fundamentais
no âmbito privado. Eis o resumo do julgamento, tal como publicado no Informativo n. 405 do
STF, de 14 de outubro de 2005:
Com efeito, o Ministro Gilmar Mendes, cujo voto divergente prevaleceu, julgou
pertinente a posição privilegiada ocupada pela associação na relação jurídica, perante à de seus
associados, visto que o vínculo associativo configurava uma exigência para que os músicos
pudessem auferir a renda decorrente da exploração por terceiros de suas criações autorais.
Como visto no tópico 4.2.2, também Daniel Sarmento reputa expressiva a existência
de desequilíbrio entre as partes de relação jurídica interindividual para o fim de aplicação dos
direitos fundamentais; todavia, ele defende a sua consideração não como critério determinante
da vinculação das partes, mas sim como modulador da proteção que merece a autonomia
privada, em detrimento do direito fundamental que ela restringe. Seguindo a sua linha, a
associação do caso analisado já estaria de plano obrigada a respeitar o devido processo legal,
figurando como relevante a consideração do poder que ela concentra para a análise da
possibilidade de ela, no exercício da autonomia privada, restringir o direito de defesa dos
associados em hipóteses específicas, punindo-os sumariamente. Ainda assim a conclusão
poderia ser a mesma: pelo poder que a União Brasileira de Compositores concentra, derivado
da essencialidade da associação para o gozo de direitos econômicos, ela não pode exercer a sua
autonomia privada no sentido de restringir o direito de seus associados ao devido processo legal
para excluí-los sumariamente.
A Corte também observou que o fato de a adesão à associação ser uma necessidade
decorrente da atividade profissional de compositores, sem a qual a arrecadação de direitos
autorais não seria possível, conferia forte caráter público à sua atuação; o que justificaria sua
qualificação como integrante de “espaço público, ainda que não-estatal” e, por conseguinte, a
oponibilidade do direito fundamental ao devido processo legal como limitante de sua autonomia
privada.
Esse caráter público ou geral da atividade parece decisivo aqui para legitimar a
aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao
contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, da CF) ao processo de exclusão de
sócio de entidade. (STF, 2006, on-line).
127
A alusão à proximidade da atuação do ente privado com os poderes estatais para o fim
de subsidiar a sua vinculação a direitos fundamentais é exigência típica da doutrina da state
action (v. tópico 3.2) e não é normalmente levada em consideração pelo STF como requisito
para a aplicabilidade direta dos direitos fundamentais em relações privadas (v. tópico 4.5).
Malgrado seja seguro concluir, a partir desses dois precedentes, que o STF se posiciona
em favor da aplicabilidade direta do devido processo legal nas relações entre particulares, ainda
não está claro quais seriam exatamente os seus requisitos e tampouco como se modula a sua
incidência, considerado o seu conflito com a autonomia privada.
Sem embargo, ainda que, como exposto no tópico 4.5, o acórdão do REsp 1.365.279
faça referência à técnica de aplicação direta dos direitos fundamentais a relações entre
particulares, a técnica efetivamente aplicada pela Corte foi aquela típica dos modelos indiretos.
Isto, pois os Ministros não extraíram diretamente do art. 5º, LIV da Constituição a conclusão
pela existência de um direito subjetivo de defesa em face da assembleia condominial. Na
verdade, o direito do condômino ao devido processo legal foi alcançado a partir de uma
interpretação conforme a Constituição do art. 1.337, parágrafo único, do Código Civil. Como
visto no tópico 3.3, os adeptos da teoria indireta defendem que a realização em concreto da
eficácia irradiante dos direitos fundamentais há de ser precipuamente realizada por meio da sua
consideração como balizas hermenêuticas da interpretação das normas de direito privado, em
especial suas cláusulas gerais – como a função social da propriedade – e conceitos jurídicos
indeterminados.
128
Com efeito, foram tidos por fundamento do direito dos condôminos ao devido processo
legal: o princípio da socialidade do Código Civil; a função social da posse e da propriedade; e
a necessidade de interpretação do ordenamento jurídico conforme a Constituição22.
Enfim, tal como o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça também
reconhece – ao menos literalmente – a aplicabilidade direta do devido processo legal a relações
privadas, mas, da mesma forma, o Tribunal da Cidadania não desenvolve uma teoria própria
para sua aplicação tendo em consideração a autonomia privada.
Art. 1.085. Ressalvado o disposto no art. 1.030 [que prevê a exclusão judicial], quando
a maioria dos sócios, representativa de mais da metade do capital social, entender que
um ou mais sócios estão pondo em risco a continuidade da empresa, em virtude de
atos de inegável gravidade, poderá excluí-los da sociedade, mediante alteração do
contrato social, desde que prevista neste a exclusão por justa causa.
Parágrafo único. A exclusão somente poderá ser determinada em reunião ou
assembleia especialmente convocada para esse fim, ciente o acusado em tempo hábil
para permitir seu comparecimento e o exercício do direito de defesa.
22
Confira-se o trecho relevante do acórdão “De fato, o Código Civil – na linha de suas diretrizes da socialidade,
cunho de humanização do direito e de vivência social, da eticidade, na busca de solução mais justa e equitativa, e
da operabilidade, alcançando o direito em sua concretude – previu, no âmbito da função social da posse e da
propriedade, no particular, a proteção da convivência coletiva na propriedade horizontal. Nesse passo, como
sabido, os condôminos podem usar, fruir e livremente dispor das suas unidades habitacionais, assim como das
áreas comuns (CC, art. 1.335), desde que respeitem outros direitos e preceitos da legislação e da convenção
condominial. Realmente, o bom exercício da propriedade se lastreia na sua função social, boa-fé, nos bons
costumes, sem abuso e com respeito ao meio ambiente e aos vizinhos, notadamente os padrões de segurança,
sossego, saúde e privacidade dos atores sociais que a norma visa proteger (CC, art. 1.277). Nesse passo, como
sabido, os condôminos podem usar, fruir e livremente dispor das suas unidades habitacionais, assim como das
áreas comuns (CC, art. 1.335), desde que respeitem outros direitos e preceitos da legislação e da convenção
condominial. Realmente, o bom exercício da propriedade se lastreia na sua função social, boa-fé, nos bons
costumes, sem abuso e com respeito ao meio ambiente e aos vizinhos, notadamente os padrões de segurança,
sossego, saúde e privacidade dos atores sociais que a norma visa proteger (CC, art. 1.277). Nessa ordem de ideias,
surge a discussão se, para fins de incidência da referida sanção, atinente ao condômino nocivo e contumaz, há
necessidade de prévia notificação ao infrator, possibilitando, assim, o exercício do seu direito de defesa. A doutrina
especializada reconhece a necessidade de garantir o contraditório [...]É que, por se tratar de punição imputada por
conduta contrária ao direito, na esteira da visão civil-constitucional do sistema, deve-se reconhecer a aplicação
imediata dos princípios que protegem a pessoa humana nas relações entre particulares, a reconhecida eficácia
horizontal dos direitos fundamentais que, também, deve incidir nas relações condominiais, para assegurar, na
medida do possível, a ampla defesa e o contraditório. Com efeito, buscando concretizar a dignidade da pessoa
humana nas relações privadas, a Constituição Federal, como vértice axiológico de todo o ordenamento, irradiou a
incidência dos direitos fundamentais também nas relações particulares, emprestando máximo efeito aos valores
constitucionais”. (STJ, 2015, on-line).
129
Com efeito, o próprio Miguel Reale assinala que a redação art. 1.085 do Código Civil
é fruto de uma preocupação específica do legislador em concretizar o conteúdo do devido
processo legal nas relações societárias:
Mas não só o Código Civil contém normas relativas ao devido processo legal. Há
vários outros exemplos na legislação infraconstitucional.
A Lei n.º 6.404/76 (Lei de Sociedade Anônimas) contém diversas previsões que o
efetivam. O art. 51 condiciona a forma específica a redução de direitos dos beneficiários de
títulos emitidos por companhia, determinando que a reforma do estatuto que modificar ou
reduzir as vantagens conferidas às partes beneficiárias só terá eficácia quando aprovada pela
metade, no mínimo, dos seus titulares, reunidos em assembleia-geral especial. Igualmente, o
art. 109, §2º, prevê limitação à autonomia privada em prol do devido processo legal, prevendo
como direitos essenciais do acionista, que não podem ser retirados, nem pelo estatuto social
nem pela assembleia-geral: os meios, processos e ações que a lei lhe confere para assegurar os
seus direitos. E o art. 282, §1º, dita que os diretores ou gerentes serão nomeados, sem limitação
de tempo, no estatuto da sociedade, e somente poderão ser destituídos por deliberação de
acionistas que representem 2/3 (dois terços), no mínimo, do capital social.
A Lei n.º 12.965/14 (Marco Civil da Internet) preconiza em seu art. 20, caput, que sempre
que tiver informações de contato do usuário diretamente responsável por conteúdo removido
por ordem judicial, o provedor de aplicações de internet deverá comunicar-lhe os motivos e
informações relativos à indisponibilização de conteúdo, com informações que permitam o
contraditório e a ampla defesa em juízo, salvo expressa previsão legal ou expressa determinação
judicial fundamentada em contrário.
130
Uma discussão que deve ser levantada e que o Marco Civil poderia ter reforçado é a
de que os provedores de aplicação de internet devem aplicar os princípios de direitos
humanos em suas práticas tecnológicas e em seus Termos de Uso e de Privacidade.
A doutrina e a jurisprudência caminham no sentido de defender a aplicação dos
princípios de direitos humanos aos sujeitos de direito privado. Logicamente, os
direitos humanos não devem ser aplicados de forma absoluta. Contudo, eles devem
ser analisados pelo provedor de aplicações de internet ao aplicar as sanções previstas
em seus termos de uso e de privacidade. Nessa nova configuração jurídico
tecnológica, formatada pelo Marco Civil, o respeito aos direitos humanos, insertos em
cada artigo dessa lei, é condição primordial para o atendimento e execução das
práticas de retirada de conteúdo. Assim, ao se retirar um conteúdo do usuário do ar,
eles terão que informar sobre a possível infração, a fim de que se instaure o devido
processo legal, a ampla defesa e o contraditório. Se isso não ocorrer, mesmo que com
justa causa, poderá o provedor ser responsabilizado por abuso de direito (2017, pp.
102-103).
Por sua vez, o art. 30 do Marco Civil da Internet prevê que a defesa dos interesses e
dos direitos estabelecidos nesta Lei poderá ser exercida em juízo, individual ou coletivamente,
na forma da lei.
A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n.º 13.709/18) não foge à regra, determinando
em seu art. 22 que a defesa dos interesses e dos direitos dos titulares de dados poderá ser
exercida em juízo, individual ou coletivamente, na forma do disposto na legislação pertinente,
acerca dos instrumentos de tutela individual e coletiva. Já o seu art. 52, que trata de sanções
administrativas aplicáveis pela autoridade nacional de proteção de dados aos agentes de
tratamentos de dados preconiza em seu §1º que “as sanções serão aplicadas após procedimento
administrativo que possibilite a oportunidade da ampla defesa”.
Para Marinoni, o direito ao devido processo legal (“direito ao processo justo”) e seus
elementos estruturantes, enquanto direitos fundamentais, gozam de eficácia vertical, vertical
com repercussão lateral e horizontal, pois, tanto obrigam o Estado a adotar condutas que o
concretizem (eficácia vertical), do que pode decorrer repercussão sobre a esfera jurídica dos
131
particulares (eficácia vertical com repercussão lateral), quanto forçam os particulares a observá-
lo em processos privados tendentes a restrições e extinções de direitos (eficácia horizontal).
Ademais, nos casos em que não há lei que regula a situação de forma direta, ou quando a lei
existente a regula em desacordo com os direitos fundamentais, faz-se obrigatória para o Estado
a aplicação direta de direitos fundamentais nas relações privadas, em função do dever de
proteção que eles lhe impõem. Assim, (2015, pp. 85-86, 288 e 492).
Baseando-se nas lições de Sarmento, Fredie Didier Jr. afirma, em primeiro lugar, que
os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988 são diretamente aplicáveis
às relações entre particulares, devendo seus efeitos, contudo, ser ponderados com o princípio
da autonomia privada. O devido processo legal, como qualquer outro direito fundamental, não
seria exceção. Mencionando como exemplos de sua aplicação o art. 57 do Código Civil e o RE
n.º 201.819, ele conclui que no âmbito das relações privadas, não é lícito restringir qualquer
direito sem a observância do devido processo legal. Na sua visão, o termo “processo” contido
na locução devido processo legal deve ser compreendido em sentido amplo, abarcando qualquer
modo de produção de normas jurídicas; isto é, não só jurisdicional, administrativo ou
legislativo, mas também negocial. O processo negocial – ele explica – seria o método de criação
de normas jurídicas por meio do exercício da autonomia privada (2017, p. 82-85).
Para o professor baiano, em negócios privados o devido processo legal aplica-se tanto
na fase pré́ -negocial, quanto na fase executiva do negócio jurídico. Ele assim esclarece a sua
incidência em cada fase negocial:
Destaque-se, portanto, que, para Fredie Didier Jr. os particulares estão obrigados a
observar inclusive a dimensão substancial do devido processo legal.
Marianne de Silveira Bona, por sua vez, acredita que a aplicabilidade direta dos
direitos fundamentais em relações entre particulares encontra sustento no fato de o Brasil ser
um Estado Democrático de Direito, de forma que o devido processo legal há de ser
132
compreendido como “escudo contra toda e qualquer espécie de abuso de poder, seja proveniente
do setor público ou privado”, sendo que “a vinculação [dos particulares] é direta e imediata,
independentemente da análise do grau de diferenciação de poder entre as partes, pois essa teoria
é a que melhor se ajusta à realidade jurídica democrática e social brasileira” (2011, p. 37).
Por fim, Paula Sarno Braga, que elaborou monografia especialmente dedicada ao tema,
adota uma visão eclética acerca da vinculação de particulares a direitos fundamentais que
mistura a teoria de eficácia imediata com a teoria dos deveres de proteção (2008, pp. 138-139).
Todavia, a extensão dos efeitos dos direitos fundamentais a relações entre particulares
não se dá em termos absolutos e tampouco equivalentes ao que ocorre nas relações estatais,
pois há de ser amoldada às “idiossincrasias do direito privado”, sendo, de rigor, a sua
acomodação nos casos concretos com o princípio da autonomia da vontade (BRAGA, 2008,
pp. 145-146).
Por outro lado, a exigência de razoabilidade nas decisões negociais, como condição de
validade derivada do devido processo legal substancial, parece ser de difícil conciliação com a
autonomia privada, tendo em consideração que o reconhecimento da pessoa humana como
centro gravitacional do ordenamento jurídico tem por corolário a proteção de manifestações
irracionais intrínsecas à sua natureza. Interessa na verdade, que, no exercício da autonomia
135
privada não se promova lesões a direitos fundamentais e não que sejam necessariamente
racionais as condutas das partes.
valores em jogo, não se pode malferir aquele de maior valia; as vantagens com a
prática do ato estatal devem superar as desvantagens (BRAGA, 2008, p. 192).
Todavia, como ela não elabora como cada uma dessas etapas se manifestaria em
relações privadas, a sua proposta acaba se deparando com os mesmos obstáculos de
harmonização com a autonomia privada enfrentados pela de Steinmetz, que assim é objetada
por Virgílio Afonso da Silva:
Retomando a exposição do raciocínio de Paula Sarno Braga, ela afirma que, na fase
posterior à contratação, durante a execução do negócio firmado, o devido processo legal haveria
de ser obedecido em hipóteses como o processo de “adimplemento restritivo” e o processo
arbitral. Por processo de adimplemento restritivo a autora entende as situações jurídicas em que
uma parte, por força das disposições negociais ou legais encontra-se em uma posição superior
137
à da outra, de modo que lhe pode infligir restrições a sua esfera jurídica por meio de decisões
unilaterais parciais e não-jurisdicionais. Seriam exemplos as sanções convencionais e os
processos de exclusão de associado. A sua aplicação haveria de obedecer às exigências do
devido processo legal formal e do devido processo legal substancial. O primeiro submeteria o
exercício da prerrogativa a procedimento pautado em garantias mínimas como o direito à
defesa, à produção de provas, a um juiz natural, dentre outros não especificados. Já o segundo
demandaria que as decisões emanadas fossem justas e razoáveis, sendo vedadas restrições
excessivas e desproporcionais Assim, exempli gratia, na aplicação da sanção a conduta
antissocial de condômino, na forma do art. 1.337 do Código Civil, a sanção fixada deve ser
proporcional e compatível com a lesão causada pela conduta infrativa (2008, pp. 205-225).
O mesmo raciocínio seria aplicável ao processo arbitral (BRAGA, 2008, pp. 207-
212).
Com efeito, como bem demonstrou Paula Sarno Braga, a aplicabilidade direta do
devido processo legal não dispensa cuidados com sua adaptação ao direito privado, em especial
a necessidade de consideração do que dispõe a legislação infraconstitucional e a modulação de
sua intensidade por meio da valoração da tutela merecida pela autonomia privada em cada
situação.
138
De todo modo, em que pese essa diferença entre as duas construções teóricas,
ambas admitem a necessidade de fixação de critérios objetivos para a modulação
da incidência dos direitos fundamentais em relações privadas, de modo que, da
tutela conferida ao bem jurídico restringido, não se tenha por resultado a
aniquilação da autonomia privada, sendo necessária a sua preservação no grau
máximo permitido, conforme as circunstâncias fáticas e jurídicas com as quais
o aplicador se defronta em cada caso concreto.
e não jurisdicional (BRAGA, 2008, p. 100), que modifica sua esfera jurídica (v.
tópico 5.5).
Pois bem. Postas essas premissas, o desafio enfrentado neste capítulo é o de verificar
especificamente como se dá a incidência do direito fundamental ao devido processo legal na
relação jurídica entre as redes sociais de streaming, em particular o YouTube, e os criadores de
conteúdo que atuam na plataforma.
A consideração dos termos do negócio jurídico celebrado com as redes sociais têm
sido olvidada pelo Judiciário na decisão de questões relativas a ofensas ao devido processo
legal. Em respeito à autonomia privada, que, enquanto princípio, deve ter seus efeitos
144
Da mesma forma, de maneira geral, até por ignorarem o negócio jurídico envolvido
na lide, as Cortes não têm demonstrado cuidado de atentar para a necessidade de consideração
das soluções preordenadas na legislação infraconstitucional antes da aplicação direta do devido
processo legal à relação. Não tem havido tampouco uma discussão sobre a necessidade de
consideração da autonomia privada das redes sociais nesta aplicação.
contrato às exigências do devido processo legal, de modo a evitar a revisão de suas decisões
pelo Judiciário.
6.2. Natureza jurídica da relação entre criadores de conteúdo e redes sociais de “streaming”.
Contrato de adesão com o YouTube e seu regime jurídico23
Termos aplicáveis
Seu uso dos Serviços está sujeito a estes termos, às diretrizes da comunidade do
YouTube e às Políticas de Segurança e Direitos Autorais, que podem ser atualizados
periodicamente (conjuntamente, o "Contrato"). O Contrato celebrado conosco
também incluirá as Políticas de Publicidade no YouTube se você exibir anúncios ou
patrocínios no Serviço ou incorporar promoções pagas no seu conteúdo. Quaisquer
outros links ou referências fornecidas nestes termos são apenas para uso informativo
e não fazem parte do Contrato (YOUTUBE, 2019, on-line).
23
Para os fins deste trabalho será considerado que o contrato proposto pelo YouTube é regido pela legislação
brasileira. Assim, não haverá ingresso na discussão acerca da possibilidade de escolha pelas partes da lei aplicável
a contratos internacionais.; e tampouco a relativa à aplicação correta do art. 9º da LINDB a contratos eletrônicos.
A jurisprudência brasileira tem aplicado regularmente o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor e o
Marco Civil da Internet a estas relações com provedores.
146
Para a teoria finalista, conforme resumem Cláudia Lima Marques e Herman Benjamin,
o “destinatário final” é “o consumidor final, o que retira o bem do mercado ao adquirir ou
simplesmente utilizá-lo (destinatário final fático), aquele que coloca um fim na cadeia de
produção (destinatário final econômico)”. Restando assim excluído do conceito de “aquele que
utiliza o bem [adquirido no mercado] para continuar a produzir, pois ele não é consumidor final,
ele está transformando o bem, utilizando o bem, incluindo o serviço contratado no seu, para
oferecê-lo por sua vez ao seu cliente, seu consumidor...” (2006, pp. 83-84).
Conforme Cláudia Lima Marques, Herman Benjamin e Leonardo Roscoe Bessa, por
vulnerabilidade técnica entende-se a falta de conhecimentos específicos do consumidor sobre
o bem ou o serviço que está adquirindo, que o torna suscetível de ser enganado quanto às suas
características ou utilidade. Já́ a vulnerabilidade jurídica ou científica consiste na falta de
conhecimentos jurídicos específicos por parte do consumidor, ou a falta de conhecimentos de
contabilidade ou de economia. Por sua vez, a vulnerabilidade fática ou econômica consiste na
posição de sujeição do consumidor frente ao fornecedor em virtude de seu poder econômico;
da essencialidade do produto/serviço que fornece; ou ainda da posição monopolística que ele
ocupa, seja este monopólio de ordem fática ou jurídica (2010, pp. 324 e ss.).
24
Cf., neste sentido: REsp 1730849/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 07/08/2018,
DJe 07/02/2019; AgInt no AREsp 1083962/ES, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 11/06/2019,
DJe 28/06/2019; e AgInt no AREsp 964.780/RJ, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma,
julgado em 26/06/2018, DJe 29/06/2018.
147
como consumidores nas relações travadas com as redes sociais de streaming, em especial por
sua situação economicamente vulnerável frente a elas. Particularmente frente ao YouTube,
tendo em consideração não somente o seu notável poderio econômico, mas principalmente a
posição monopolística que ele ocupa no mercado das redes sociais de streaming (Cf. BERGEN;
SHAW, 2019; CABLE, 2019; POLLOCK, 2018).
Simplesmente não há hoje uma rede social de streaming que com ele rivalize em
termos de alcance e de estrutura. Assim, o criador de conteúdo que tem tolhido o seu acesso a
ela pode ter sua atividade econômica simplesmente inviabilizada, a depender de quanto dela é
dependente, de modo que a sujeição ao seu poder é inevitável. Youtuber é termo que hoje
designa uma profissão. Não há youtubers fora do YouTube. O mesmo se diga de criadores de
conteúdo que se valem dessa rede social como plataforma de promoção de seus ideais políticos.
Como dito no início do trabalho, há criadores de conteúdo hoje ocupando cargos no Poder
Legislativo, em todos os níveis da federação, que, ou iniciaram sua carreira política no
YouTube, ou nele encontraram a sua maior fonte de exposição. É muito provável que, sem o
YouTube, o resultado das eleições brasileiras de 2018 teria sido muito diverso (BRODERICK,
2019; GHEDIN, 2019).
Por isso é esperado que nossa jurisprudência compreenda que a regência da relação
jurídica entre criadores de conteúdo e o YouTube se faz também pela incidência das normas do
Código de Defesa do Consumidor.
pertinente, o que inclui, sem prejuízo de outros diplomas normativos, o Marco Civil da Internet
e a Lei Geral de Proteção de Dados.
● Sem embargo, por força do novo parágrafo único do art. 421, incluído pela Lei
n. º 13.874/19, a intervenção estatal no contrato deve ser mínima, sendo
excepcional a sua revisão.
● Por força do novo art. 421-A do Código Civil, também incluído pela Lei n. º
13.874/19, o contrato entre o YouTube e os criadores de conteúdo é
presumivelmente paritário e simétrico, de modo que cabe ao julgador
demonstrar na fundamentação os elementos concretos que demonstram a
assimetria entre as partes, inclusive para justificar a incidência do regime
especial do Código de Defesa do Consumidor.
● Na forma do art. 8º, parágrafo único, II do Marco Civil da Internet são nulas as
cláusulas que não ofereçam como alternativa ao contratante a adoção do foro
brasileiro para solução de controvérsias decorrentes de serviços prestados no
Brasil. Por isso é nula a cláusula “Legislação vigente” dos Termos de Serviço
do YouTube, que assim dispõe:
Como visto no Capítulo 3, as correntes teóricas que defendem a aplicação dos direitos
fundamentais nas relações privadas concordam que a situação implica um conflito entre o
direito fundamental eventualmente restringido e a autonomia privada, que legitimaria decisões
restritivas de direitos fundamentais em um primeiro momento. Os efeitos do direito
fundamental aplicado a relações privadas, portanto, não são absolutos.
Não obstante, nos casos em que se analisa um contrato já firmado25, como o celebrado
entre os criadores de conteúdo e as redes sociais de streaming, não é a desigualdade entre as
partes em si que dá o tom da proteção merecida pela autonomia privada, mas sim o eventual
reflexo dessa assimetria sobre a autenticidade da manifestação da vontade daquele que,
supostamente exercendo essa autonomia, convencionou restrição a direito fundamental que
titulariza (v. tópicos 4.2.2 e 4.4.2.5.3).
25
Sobre o conflito dos direitos fundamentais com a autonomia privada nos casos de “recusa a contratar” ver o
tópico 4.2.2.
152
A assimetria a ser considerada também não se resume àquela externa à relação jurídica,
de cunho material. É mais adequado considerar fatores de desequilíbrio, tanto intrínsecos,
quanto os extrínsecos não estritamente materiais.
Quanto aos fatores extrínsecos de desequilíbrio da relação, vale recorrer, como forma
de exemplificá-los, a uma analogia com as espécies de vulnerabilidade frente ao fornecedor
consideradas pela doutrina consumerista defensora da teoria finalista mitigada (Cf.
MARQUES; BENJAMIN; BESSA, 2010, pp. 234 e ss.). Neste sentido, a assimetria extrínseca
entre as partes contratuais, que aqui é reputada relevante, não para a incidência da legislação
consumerista, mas para fins de modulação da incidência dos direitos fundamentais, pode ser
igualmente de ordem técnica, jurídica ou econômica. Deste modo, pode tanto decorrer dos
maiores conhecimentos de uma parte a respeito do objeto negociado (assimetria técnica),
quanto do seu maior conhecimento jurídico, econômico ou contábil (assimetria jurídica), quanto
da posição monopolística que ele ocupa; de seu poder econômico; ou ainda da essencialidade
do produto/serviço que fornecido (assimetria fática ou econômica).
Nessa toada, destaca-se na relação jurídica com redes sociais a assimetria fática do
criador de conteúdo face à rede social, em especial frente ao YouTube, essencialmente pelo
caráter monopolístico da posição que ela ocupa no mercado das redes sociais de streaming (v.
tópico 6.2).
Não é demais reforçar que o YouTube não possui concorrentes no mesmo patamar de
alcance e popularidade no mercado de streaming, o que deriva em grande parte de sua
associação com a Google, proprietária do YouTube e do maior motor de buscas do mundo, que
a ele é diretamente integrado, de modo que as buscas efetuadas no Google.com direcionam a
vídeos no YouTube, e também de sua incorporação com o sistema operacional Android, que
faz com que o aplicativo do YouTube já venha instalado de fábrica em celulares que o utilizam,
153
sendo que o celular é hoje o maior meio de acesso à internet no Brasil (VALENTE, 2019, on-
line).
O mesmo se diga de criadores de conteúdo que se valem dessa rede social, não como
meio de exercício de atividade econômica, mas como plataforma de promoção política, como
os diversos criadores de conteúdo que hoje ocupam cargos no Poder Legislativo do país. O
impacto de redes sociais como o YouTube nas eleições é reconhecido a ponto de a Procuradoria
da República em Goiás ter oferecido representação à Procuradoria-Geral da República em face
do YouTube, Whatsapp, Facebook, Twitter a fim de impedir que censurassem conteúdo político
sem prévia decisão específica da Justiça Eleitoral no curso da disputa, pelo temor de controle
da liberdade de manifestação e influência sobre o resultado do pleito (Ofício nº.
4264/MPF/PRGO/3ºONTC)27.
Enfim, há uma latente assimetria entre o YouTube, enquanto maior rede social de
streaming do mundo, e os criadores de conteúdo, tanto pela posição de sujeição que estes
ocupam no seio de uma relação jurídica cujos termos foram unilateralmente definidos
(assimetria intrínseca), quanto pelo fato de ele deter praticamente o monopólio de um padrão
de comunicação social (Cf. BERGEN; SHAW, 2019; CABLE, 2019; POLLOCK, 2018), que
26
No mesmo sentido, no RE 201.819 o Supremo Tribunal Federal considerou a essencialidade do vínculo
associativo para o recebimento de direitos autorais por músicos como relevante na consideração da submissão da
União Brasileira de Compositores ao devido processo legal nos processos de exclusão de associados (2006, on-
line).
27
Cf. BRASIL, 2018, pp. 1-14.
154
lhe permite inviabilizar atividades econômicas e influenciar o debate na esfera pública, a ponto
de poder sugestionar eleições nas maiores democracias do mundo (assimetria extrínseca).
Esses fatores se mantêm estáveis seja o criador de conteúdo um youtuber das camadas
mais pobres da população, seja até mesmo o Presidente da República, um senador ou um
deputado.
Essa assimetria faz pender em favor da proteção do devido processo legal a solução
de seu conflito com a autonomia privada do YouTube, como forma de contenção e limitação
do poder da rede social.
O YouTube não é uma empresa estatal, não exerce atividade tradicionalmente exercida
pelo Estado, nem eminentemente pública; tampouco se vale de bens e recursos públicos ou do
serviço de agentes estatais28. Com efeito, não há notícia de financiamento público, ou de entrega
de bens ou servidores a elas para o exercício de sua atividade. Eventual recebimento de verbas
estatais de publicidade não é suficiente para tanto. A questão não passa, destarte, pelo public
function test (v. tópico 3.2 e AYOUB, 2017, pp. 895-896).
Tampouco a lei brasileira força a remoção de conteúdo pela rede social como faz a lei
alemã (NetzDG) ou a incentiva como a lei estadunidense (CDA), o que poderia levar a tal
consideração mediante aplicação da public encouragement theory (v. tópico 3.2 e AYOUB,
2017, pp. 895-896). Na verdade, em sentido contrário, longe de encorajar a censura, no intuito
expresso de tutelar a liberdade de expressão, o Marco Civil da Internet delimita a
responsabilidade dos provedores à omissão de cumprimento de ordem judicial, reservando a
repressão de conteúdo ao Judiciário – exceção feita ao conteúdo sexual de cunho íntimo.
Assim sendo, a sujeição da rede social ao devido processo legal não há de ser tão
intensa quanto a vigente em processos estatais, que são recheados de formas determinadas,
prazos específicos, recursos, instrução probatória. O YouTube está vinculado, na verdade, às
28
Esses são os critérios propostos por Sarmento para a associação da atuação de um ente privado a uma ação
estatal para o fim de determinar sua submissão a um regime mais restrito de vinculação a direitos fundamentais
(2010, p. 296-298).
155
6.3.1.1 Google e Facebook como “state actors”: uma discussão crescente nos Estados Unidos
Entretanto, como vimos no tópico 3.2, a doutrina da state action predomina nos
Estados Unidos, sendo interessante o fato de que têm surgido nas cortes americanas diversas
ações em que cidadãos que tiveram censurado o conteúdo postado em redes sociais contestam
a decisão dos provedores com base do direito à liberdade de expressão garantido pela I Emenda.
New York state law requires cable operators to set aside channels on their cable
systems for public access. Those channels are operated by the cable operator unless
the local government chooses to itself operate the channels or designates a private
entity to operate the channels. New York City (the City) has designated a private
nonprofit corporation, petitioner Manhattan Neighborhood Network (MNN), to
operate the public access channels on Time Warner’s cable system in Manhattan.
Respondents DeeDee Halleck and Jesus Papoleto Melendez produced a film critical
of MNN to be aired on MNN’s public access channels. MNN televised the film. MNN
later suspended Halleck and Melendez from all MNN services and facilities. The
producers sued, claiming that MNN violated their First Amendment free-speech rights
when it restricted their access to the public access channels because of the content of
their film. The District Court dismissed the claim on the ground that MNN is not a
29
Para um maior aprofundamento, confira-se o tópico 3.2.
156
state actor and therefore is not subject to First Amendment constraints on its editorial
discretion. Reversing in relevant part, the Second Circuit concluded that MNN is a
state actor subject to First Amendment constraints.
Held: MNN is not a state actor subject to the First Amendment. Pp. 5–16.
(a) The Free Speech Clause of the First Amendment prohibits only governmental, not
private, abridgment of speech. See, e.g., Denver Area Ed. Telecommunications
Consortium, Inc. v. FCC, 518 U. S. 727, 737. This Court’s state-action doctrine
distinguishes the government from individuals and private entities. Pp. 5–14.
(1) A private entity may qualify as a state actor when, as relevant here, the entity
exercises “powers traditionally exclusively reserved to the State.” Jackson v.
Metropolitan Edison Co., 419 U. S. 345, 352. The Court has stressed that “very few”
functions fall into that category. Flagg Bros., Inc. v. Brooks, 436 U. S. 149, 158. The
relevant function in this case—operation of public access channels on a cable
system—has not traditionally and exclusively been performed by government. Since
the 1970s, a variety of private and public actors have operated public access
channels. Early Manhattan public access channels were operated by private cable
operators with some help from private nonprofit organizations. That practice
continued until the early 1990s, when MNN began to operate the channels. Operating
public access channels on a cable system is not a traditional, exclusive public
function. Pp. 6–8.
(2) The producers contend that the relevant function here is more generally the
operation of a public forum for speech, which, they claim, is a traditional, exclusive
public function. But that analysis mistakenly ignores the threshold state-action
question. Providing some kind of forum for speech is not an activity that only
governmental entities have traditionally performed. Therefore, a private entity who
provides a forum for speech is not transformed by that fact alone into a state actor.
See Hudgens v. NLRB, 424 U. S. 507, 520–521. Pp. 8–10.
(3) The producers note that the City has designated MNN to operate the public access
channels on Time Warner’s cable system, and that the State heavily regulates MNN
with respect to those channels. But the City’s designation is analogous to a
government license, a government contract, or a government-granted monopoly, none
of which converts a private entity into a state actor—unless the private entity is
performing a traditional, exclusive public function. See, e.g., San Francisco Arts &
Athletics, Inc. v. United States Olympic Comm., 483 U. S. 522, 543–544. And the fact
that MNN is subject to the State’s extensive regulation “does not by itself convert its
action into that of the State.” Jackson, 419 U. S., at 350. Pp. 11–14.
(b) The producers alternatively contend that the public access channels are actually
the City’s property and that MNN is essentially managing government property on
the City’s behalf. But the City does not own or lease the public access channels and
does not possess any formal easement or other property interest in the channels. It
does not matter that a provision in the franchise agreements between the City and
Time Warner allowed the City to designate a private entity to operate the public
access channels on Time Warner’s cable system. Nothing in the agreements suggests
that the City possesses any property interest in the cable system or in the public access
channels on that system. Pp. 14–15.
882 F. 3d 300, reversed in part and remanded.
Kavanaugh, J., delivered the opinion of the Court, in which Roberts, C. J., and
Thomas, Alito, and Gorsuch, JJ., joined. Sotomayor, J., filed a dissenting opinion, in
which Ginsburg, Breyer, and Kagan, JJ., joined. (SCOTUS, 2019, on-line)
Todavia, na opinião de Jed Rubenfeld, professor de Yale, as cortes inferiores não estão
abordando uma questão relevante para a caracterização da conduta das redes sociais como ação
157
estatal: a censura promovida pelas redes sociais é baseada em uma imunidade que lhes foi
conferida diretamente pelo Congresso dos Estados Unidos, e que é orientada justamente a
induzir entes privados a promover ações de censura que estariam sujeitas a escrutínio judicial
(judicial review) caso fossem intentadas diretamente pelo Estado (2019, on-line).
O autor se refere à Seção 230 da Communications Decency Act (CDA), que garante
aos provedores a possibilidade de censurar conteúdo qualificado como “lewd, lascivious, filthy,
excessively violent, harassing or otherwise objectionable, whether or not such material is
constitutionally protected”. Quer dizer, se o Estado censurasse um discurso invocando esses
adjetivos, a questão seria passível de questionamento perante o Judiciário com base na liberdade
de expressão (I Emenda) por se tratar de uma state action. Todavia, a CDA conferiu imunidade
aos provedores para censurar livremente o conteúdo postado, sem que, a princípio, suas
decisões pudessem ser confrontadas com base na I Emenda por se tratarem de atores privados
(non state actors). Daí o questionamento do professor, de a CDA ter sido o meio encontrado
pelo Estado de fazer com que agentes privados fizessem em seu lugar o trabalho de censura do
discurso político de modo imune à ação das cortes (RUBENFELD, 2019, on-line).
estão livres de se submeterem à censura. Se no caso Skinner havia forte preferência estatal pelos
testes, no caso da CDA há forte preferência pela remoção de conteúdo ofensivo (2019, on-line).
Rubenfeld também menciona que, no caso Bantam Books, a Suprema Corte decidiu
que a pressão estatal informal e ameaças de agentes estatais, mesmo que agindo como privados,
também podem transformar uma ação privada em state action. Isto importaria, pois, no caso
dos provedores, por anos os congressistas têm pressionado o Facebook e a Google – dona do
YouTube – a bloquear discurso de ódio, conteúdo extremista, fake news, etc. Há, portanto, uma
campanha de pressão do Legislativo sobre esses atores privados a adotarem condutas de
censura, que leva à sua consideração como atos estatais (RUBENFELD, 2019, on-line).
Assim, haveria fortes argumentos para considerar esses provedores como state actors
quando bloqueiam conteúdo, pois imunidade à conduta e pressão estatal a ela indutiva
configurariam state action30 (RUBENFELD, 2019, on-line).
Ainda que no Brasil a doutrina da state action não seja reconhecida, essa discussão
poderá se tornar relevante na hipótese de a legislação brasileira avançar na seara do controle do
conteúdo das redes sociais no mesmo sentido da Netzwerkdurchsetzungsgesetz da Alemanha.
Caso isto ocorra, e a censura de conteúdo pelas redes sociais comece a ser realizada com base
em uma ordem estatal direta, é certo que os direitos fundamentais passarão a incidir com maior
intensidade do que ocorre quando a censura é realizada somente com base nos termos do
contrato.
30
Para uma resposta aos argumentos de Rubenfeld, confira-se: ROZENSHTEIN, Alan Z. No, Facebook and
Google Are Not State Actors. Lawfare. [S.l.], on-line. 12 nov. 2019. Disponível em:
<https://www.lawfareblog.com/no-facebook-and-google-are-not-state-actors>. Acesso em: 02 jan. 2020.
159
Eis um breve resumo31. Por conta de uma briga com torcedores do MSV Duisburg, um
torcedor do Bayern de Munique foi proibido pelo time de Duisburgo de frequentar estádios de
futebol no território alemão, fossem partidas de quaisquer das divisões do campeonato alemão.
O clube da Renânia do Norte-Vestefália valeu-se de uma medida restritiva de natureza civil
normatizada pela Deutscher Fußball-Bund – DFB (algo equivalente à CBF no Brasil), criada
como medida anti-hooliganismo, denominada Stadionverbot (literalmente, banimento de
estádios).
O torcedor então recorreu ao Judiciário até que, após não ter logrado sucesso em
instâncias inferiores, o caso foi levado ao Bundesverfassungsgericht por meio de reclamação
constitucional (Verfassungsbeschwerde).
31
Para uma análise completa do caso, confira-se: IANNI, Antonio. L’incidenza della Costituzione sui rapporti
privati. Sul divieto di accesso agli stadi il Bundesverfassungsgericht torna ad arbitrare la partita della Drittwirkung.
DPCE on line. [S.l.], 2018. Disponível em:
<http://www.dpceonline.it/index.php/dpceonline/article/view/565/548>. Acesso em 20 dez. 2019.
160
forças policiais que faziam com que ele fosse submetido a controles especiais (Cf. IANNI,
2018, pp. 805-806).
32
No original: “1. Art. 3 Abs. 1 GG lässt sich auch nach den Grundsätzen der mittelbaren Drittwirkung kein
objektives Verfassungsprinzip entnehmen, wonach die Rechtsbeziehungen zwischen Privaten von diesen
prinzipiell gleichheitsgerecht zu gestalten wären. Grundsätzlich gehört es zur Freiheit jeder Person, nach eigenen
Präferenzen darüber zu bestimmen, mit wem sie unter welchen Bedingungen Verträge abschließen will. 2.
Gleichheitsrechtliche Anforderungen für das Verhältnis zwischen Privaten können sich aus Art. 3 Abs. 1 GG
jedoch für spezifische Konstellationen ergeben. Mittelbare Drittwirkung entfaltet Art. 3 Abs. 1 GG etwa dann,
wenn einzelne Personen mittels des privatrechtlichen Hausrechts von Veranstaltungen ausgeschlossen werden,
die von Privaten aufgrund eigener Entscheidung einem großen Publikum ohne Ansehen der Person geöffnet
werden und wenn der Ausschluss für die Betroffenen in erheblichem Umfang über die Teilhabe am
gesellschaftlichen Leben entscheidet. Die Veranstalter dürfen hier ihre Entscheidungsmacht nicht dazu nutzen,
bestimmte Personen ohne sachlichen Grund von einem solchen Ereignis auszuschließen. 3. Ein Stadionverbot
kann auch ohne Nachweis einer Straftat auf eine auf Tatsachen gründende Besorgnis gestützt werden, dass die
Betroffenen künftig Störungen verursachen werden. Die Betroffenen sind grundsätzlich vorher anzuhören und
ihnen ist auf Verlangen vorprozessual eine Begründung mitzuteilen” (BVerfGE, 2018, on-line).
161
Com efeito, a doutrina alemã tem mesmo discutido a aplicabilidade desse precedente
do BVerfGE às relações com redes sociais, como o Facebook. Schöddert compara as duas
situações afirmando que, o Facebook torna seus serviços acessíveis a um público ilimitado e
muito superior ao de um estádio, sem considerar a pessoa do usuário, bastando para seu acesso
o preenchimento de um formulário de registro. Ademais, para a autora, devido à importância
social do Facebook para a comunicação pública, a exclusão de uma postagem ou o bloqueio da
conta significa um corte significativo nas opções de comunicação do usuário em questão,
retirando-lhe uma possibilidade de participação da vida social. Não só a sua liberdade em geral
está em jogo, mas também sua liberdade de expressão e de acesso à informação. Outrossim, o
Facebook é estruturalmente superior aos usuários, o que se reflete no seu poder de decidir sobre
a exclusão de conteúdo e o bloqueio de conta. Assim, a sujeição do Facebook a deveres
procedimentais seria bem-vinda, porque fortaleceria a formação de padrões-procedimentais de
autorregulação da rede social que levariam ao fortalecimento do direito dos usuários (2018, on-
line).
33
Como visto no tópico 4.3.1, embora não desenvolva tese no mesmo sentido do BVerfGE, Wilson Steinmetz
considera que entes privados que emitam uma decisão pública e geral de contratar têm sua autonomia privada
delimitada em maior grau pelos direitos fundamentais.
162
Daniel Sarmento (2010, p. 293) e Paula Sarno Braga (2008, p. 141) defendem que é
relevante para fins de moderação da incidência dos direitos fundamentais em relações privadas,
verificar se a restrição a direito fundamental contou com a manifestação de vontade do lesado,
de modo que, nos casos em que há esse consentimento, seria maior o peso atribuído à autonomia
da vontade, pois daí análise da validade da restrição leva à necessidade de ponderação da
autonomia da vontade dos dois sujeitos envolvidos na relação.
Com efeito, Sarmento pondera que, nos casos em que expressado consentimento, a
controvérsia liga-se à validade da renúncia ao exercício de direitos fundamentais, o que, sem
dúvida, pressupõe que a vontade do titular do direito seja autenticamente livre, algo que
dificilmente ocorre em relações assimétricas (2010, p. 293). No mesmo sentido, Paula Sarno
Braga destaca que a participação daquele que teve o direito fundamental atingido no ato que a
provocou há mais peso nos casos em que a relação é paritária (2008, p. 142).
Inegável, ademais, que há um efetivo interesse público – critério destacado por Paula
Sarno Braga (2008, p. 140) – na permissibilidade da pluralidade de conteúdo veiculado no
YouTube, vista a sua capacidade de amplificar a circulação de ideias e a de influenciar o debate
político.
Embora essa discussão não possa ser aprofundada neste espaço, parece que, em
princípio, o YouTube tem o direito de promover sua própria agenda política. Por outro lado, é
164
justo que ela não seja ocultada dos usuários, pois não existe censura neutra do ponto de vista
axiológico. Pela capacidade de influência na esfera pública que hoje essa rede social detém, é
urgente que ela revele seus valores ao público. Por isso a exigência do respeito ao devido
processo legal ganha relevo também como forma de forçar o YouTube a demonstrar, por meio
da motivação das sanções, o conteúdo efetivamente indesejado por ele.
Não obstante, mais do que a importância do bem envolvido em si, mais relevante para
a conclusão pela incidência das garantias relativas ao devido processo legal na relação com as
redes sociais é o impacto negativo que a negativa de acesso representa sobre o bem.
Ora, se um cidadão é excluído sem aviso do grupo de orações criado no Whatsapp por
fiéis de uma mesma Igreja, não parece correto afirmar que a decisão seria passível de revisão
judicial pelo fato de que o administrador do grupo estaria obrigado a oportunizar o contraditório
e motivar a exclusão, ainda que o caso envolva o exercício da liberdade religiosa. O fato é que
esta exclusão não compromete, por si só, o acesso do fiel à Igreja e à comunidade existente em
torno dela. De outra parte, se, por exemplo, o YouTube passa a excluir deliberadamente os
vídeos de uma Igreja que deve muito de sua popularidade à presença naquela rede social, ou se
bloqueia a sua conta sem respeito ao devido processo legal, a decisão da rede social parece
passível de revisão, pois o impacto negativo na divulgação de seu ideário é tremendo, o que
torna razoável a exigibilidade do contraditório e da motivação. Quer dizer, também aqui o poder
concentrado pela rede social face ao criador de conteúdo se revela decisivo.
Certo é, todavia, que a mais clara definição dos efeitos do devido processo legal
demanda, em primeiro lugar, a análise dos próprios termos do contrato proposto pelo YouTube
165
e a sua interpretação conforme o devido processo legal. Pode ser, afinal, que a própria rede
social tenha assumido prestações relativas ao devido processo legal, de modo que dispensável
o recurso direto ou indireto à norma constitucional para exigi-las. Além de ser a melhor técnica,
por preservar a autonomia privada da rede social no maior grau possível, tampouco se pode
ignorar que a intervenção estatal nas relações contratuais agora deve ser mínima na forma do
novel parágrafo único do art. 421do Código Civil inserido pela Lei n.º 13.874/19.
É certo que, de maneira geral, tende a persistir o interesse dos criadores de conteúdo
em participar da rede social e disponibilizar suas produções, tendo em consideração tratar-se
muitas vezes de sua principal atividade econômica. Todavia, demonstrado concretamente esse
desinteresse, restará caracterizado o inadimplemento absoluto. Um exemplo de
inadimplemento absoluto seria o caso do criador de conteúdo que pretendesse fazer uma live
da final de um campeonato esportivo, mas tem o conteúdo retirado do ar desavisadamente
momentos antes da partida. O impacto de seu trabalho sobre o público, que na hipótese é
dependente da disponibilização do conteúdo em um espaço de tempo especificamente
delimitado – o transcorrer da partida – certamente restaria irremediavelmente prejudicado,
justificando o seu desinteresse no cumprimento forçado da prestação.
Vejamos os deveres relativos ao devido processo legal que podem ser extraídos do
contrato celebrado pelos criadores de conteúdo com o YouTube.
Primeiro aviso
Se descobrirmos que seu conteúdo não seguiu nossas políticas pela segunda vez, você
receberá um aviso.
Isso significa que você não poderá tomar as seguintes ações durante uma semana:
● Enviar vídeos, histórias ou fazer transmissões ao vivo
● Criar miniaturas personalizadas ou postar na comunidade
● Criar ou editar playlists e adicionar colaboradores a elas
● Adicionar ou excluir playlists da página de exibição usando o botão "Salvar"
Segundo aviso
Se você receber um segundo aviso no mesmo período de 90 dias da primeira
ocorrência, não poderá postar conteúdo por duas semanas. Se não houver outros
problemas, todos os privilégios serão restaurados automaticamente depois desse
período, mas cada aviso levará 90 dias para expirar depois de ser emitido.
Terceiro aviso
Se você receber três avisos em 90 dias, seu canal será removido permanentemente do
YouTube. Não se esqueça de que cada aviso expira 90 dias depois de ser emitido e
que a exclusão do conteúdo não o remove.
Solicitar revisão humana de vídeos marcados como "Não é adequado para a maioria
dos anunciantes"
Se o conteúdo de um vídeo que você enviou for identificado como não adequado para
anunciantes, um cifrão amarelo ou aparecerá ao lado dele.
Um vídeo será marcado como "Não adequado para a maioria dos anunciantes" no
Gerenciador de vídeos nestes casos:
Nossos sistemas automatizados indicam que seu conteúdo não é adequado para todas
as marcas.
Observação: caso acredite que nossos sistemas cometeram um erro, você poderá
solicitar uma revisão humana. As decisões tomadas pelo especialista nesse processo
ajudam a melhorar nossos sistemas ao longo do tempo. Excluir e reenviar o vídeo não
resolverá o problema. O conteúdo pode ser enviado para revisão somente uma vez, e
não é possível contestar a decisão do especialista. Saiba mais sobre como as revisões
de adequação para anúncios funcionam. (YOUTUBE, 2019c, on-line).
170
Ora, se o YouTube deixa de notificar o criador de conteúdo acerca dos motivos para a
suspensão/rescisão de sua conta, remoção/desmonetização34 do conteúdo postado, ou deixa de
conferir a oportunidade de contestação da punição, ele estará inadimplindo o contrato existente
entre as partes, sujeitando-se aos efeitos do inadimplemento ditados pelo art. 389 do Código
Civil.
Há quem defenda35 que, mesmo que ausente disposição contratual neste sentido,
enquanto provedores de aplicações de internet, as redes sociais estariam obrigadas a informar
o usuário dos motivos por detrás da remoção de conteúdo por se tratar de uma obrigação ex
lege determinada pelo art. 20 do Marco Civil da Internet, que assim dispõe:
Art. 20. Sempre que tiver informações de contato do usuário diretamente responsável
pelo conteúdo a que se refere o art. 19, caberá ao provedor de aplicações de internet
comunicar-lhe os motivos e informações relativos à indisponibilização de conteúdo,
com informações que permitam o contraditório e a ampla defesa em juízo, salvo
expressa previsão legal ou expressa determinação judicial fundamentada em
contrário.
Parágrafo único. Quando solicitado pelo usuário que disponibilizou o conteúdo
tornado indisponível, o provedor de aplicações de internet que exerce essa atividade
de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos substituirá o conteúdo
tornado indisponível pela motivação ou pela ordem judicial que deu fundamento à
indisponibilização.
34
“Desmonetizado” é o termo que identifica conteúdo impedido de gerar receitas publicitárias para o seu criador
em virtude de sua inadequação às políticas de publicidade do YouTube. Para ganhar dinheiro com anúncio
publicitários veiculados durante a exibição de seus vídeos os criadores de conteúdo devem ter acesso aos
chamados “recursos de monetização” da plataforma. Para tanto, conforme o contrato, é necessária a sua adesão
ao Programa Parcerias do YouTube, que faz uma série de exigências relativas ao tipo de conteúdo passível de
veicular anúncios publicitários (Cf. YOUTUBE, 2019c, on-line).
35
Cf. GOMES, 2019, on-line; GONÇALVES, 2017, p. 102-103.
171
O fundamento legal da motivação das sanções pela rede social na verdade é o princípio
do pacta sund servanda. Ainda que não expressamente assumida, essa obrigação decorre
naturalmente do fato de a aplicação de sanções convencionais pressupor a ocorrência de um
antecedente previsto contrato. O poder de punir conferido pelo contrato não é puramente
potestativo36. O YouTube não pode suspender o usuário ou remover seu conteúdo por conduta
que não seja acertada contratualmente como motivo para tanto.
O fato é que se a rede social não demonstra o porquê de a conduta ter sido reputada
lesiva ao contrato não se pode saber se ela está efetivamente exercendo legitimamente um
direito previsto no acordo, ou se está abusando de sua posição jurídica. Por isso o poder de
punir se conecta logicamente ao dever de explicitação de um motivo.
Pelas mesmas razões, a prática pode ser reputada abusiva e, portanto, ilícita na forma
do art. 6º, IV do Código de Defesa do Consumidor.
36
Quanto às cláusulas dessa natureza, o Superior Tribunal de Justiça proferiu a seguinte orientação: “O conteúdo
puramente potestativo do contrato impôs a uma das partes condição, apenas e tão-somente, de mero espectador,
em permanente expectativa, enquanto dava ao outro parceiro irrestritos poderes para decidir como bem lhe
aprouvesse. Disposições como essa agridem o bom senso e, por isso, não encontram guarida em nosso direito
positivo. Entre elas está a chamada cláusula potestativa. É estipulação sem valor, porque submete a realização do
ato ao inteiro arbítrio de uma das partes” (STJ, 2002, on-line).
172
Conteúdo perigoso
Conteúdo que incita ódio, promove discriminação, menospreza ou humilha um
indivíduo ou grupo de pessoas com base nos itens a seguir não é adequado para
publicidade:
• Raça
• Origem étnica
• Nacionalidade
• Religião
• Deficiência
• Idade
• Status de veterano
• Orientação sexual
• Identidade de gênero
• Qualquer outra característica associada à discriminação ou marginalização
sistêmica
Conteúdo de comédia ou que apresenta uma sátira pode ser uma exceção. Declarar a
intenção cômica de um conteúdo não é o suficiente, e ele ainda pode ser considerado
como não adequado para publicidade.
Categoria
• Conteúdo que incita ódio, promove discriminação, deprecia ou humilha
Categoria
• Promoção de terrorismo e extremismo violento
Limitado ou sem anúncios
• Conteúdo produzido por grupos terroristas ou como forma de apoio a eles
• Conteúdo que promove atos terroristas, incluindo recrutamento
• Conteúdo que celebra ataques terroristas (YOUTUBE, 2019c, on-line).
174
Veja-se, neste exato sentido, que nas Diretrizes da Comunidade o próprio YouTube
revela os critérios considerados na fixação da gravidade das sanções aplicadas:
A indefinição das condutas vedadas pelo contrato confere uma desvantagem desleal à
rede social, que se vê livre para censurar qualquer conteúdo alegando inadimplemento, de nada
adiantando o exercício de defesas formais por falta de paradigma objetivo para a demonstração
da não subsunção da conduta praticada.
Assim, são nulas as cláusulas que conferem à rede social um poder irrestrito de censura
do conteúdo público, pois a indefinição do conteúdo vedado na plataforma concede à rede social
poder irrestrito de censura dos usuários e do conteúdo nela veiculado, contrariando a
expectativa gerada pelo fornecimento de um espaço público de expressão.
Ainda que se compreenda que a relação entre criadores de conteúdo e redes sociais de
streaming não é de consumo, o cenário não se modifica, pois, o dever deriva igualmente do
sinalagma, da boa-fé objetiva e da função social do contrato.
A indefinição prévia das condutas puníveis é injusta – como dito – e fere o equilíbrio
contratual, pois confere uma desvantagem desproporcional à rede social ao sujeitar a restrição
de direitos do usuário basicamente à vontade da rede social, que se torna capaz de determinar
unilateralmente quando a conduta do usuário tem o caráter de inadimplemento.
178
Essa falta de transparência contraria os ditames da boa-fé objetiva, pois gera uma
tendência ao abuso de posição contratual pela rede social, impossibilitando assim o
desenvolvimento da mútua confiança entre as partes, já que o usuário jamais estará seguro de
que a sua conduta não poderá ser reputada como infrativa do contrato.
No quadro geral, essa insegurança ofende a função social do contrato, pois prejudica
o interesse da comunidade na manutenção da rede social como uma plataforma para a livre
circulação de ideias e o livre exercício de atividades econômicas37.
Não parece, contudo, que as redes sociais de streaming estejam sujeitas às mesmas
vinculações do Estado no que toca à tipificação de condutas. Não se exige do contrato a
tipicidade estrita associada à previsão em abstrato das infrações penais. Aliás, mesmo nas
relações com entes estatais, em que os direitos fundamentais se manifestam com maior
intensidade, certo grau de abertura semântica na definição de condutas puníveis é aceitável.
Nessa linha, parece suficiente que a rede social garanta a previsibilidade básica do
conteúdo punível, cumprindo as funções de preservar a expectativa legítima do usuário e o
intuito pedagógico da antecipação do modelo de conduta indesejada. Assim, não pode, por
exemplo, vedar conteúdo que atente “contra a moral e os bons costumes”, mas pode, como faz
37
Assim dita o Enunciado n.º 23 CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil: “A função social do contrato,
prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz
o alcance desse princípio, quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade
da pessoa humana”.
179
o YouTube, “vedar Pornografia que exiba atos sexuais, genitálias ou fetiches com o propósito
de satisfação sexual” (YOUTUBE, 2019c, on-line).
Por outro lado, um desafio que o YouTube (não) tem enfrentado é a proliferação de
canais que abusam da vagueza de suas Diretrizes da Comunidade para praticarem condutas a
princípio vedadas.
Uma reportagem do site britânico Wired revelou em fevereiro de 2019 que uma rede
de pedofilia atuava às claras dentro da plataforma. Vídeos que exibiam as nádegas, roupas
íntimas e genitais de crianças recebiam milhões de visualizações e estavam sendo monetizados
pelo algoritmo da plataforma; ou seja, eles veiculavam anúncios publicitários e seus criadores
recebiam dinheiro por isso. Ocorre que os vídeos não eram explicitamente pornográficos e
muitos eram até mesmo postados pelas próprias crianças. Eram vídeos de crianças brincando
na piscina, tomando sorvete ou praticando ginástica, mas cujas caixas de comentários eram
inundadas por comentários de pedófilos interagindo entre si, trocando links de material
pornográfico, e, principalmente, marcando com timestamps (marcas temporais) os frames do
vídeo em que apareciam a virilha, os mamilos ou outras partes do corpo das crianças. Isto não
bastasse, após abrir o primeiro vídeo do gênero o algoritmo da plataforma recomendava ao
usuário uma sequência infinita de outros vídeos do mesmo naipe, particularmente populares
com pedófilos (ORPHANIDES, 2019, on-line), o que foi chamado de buraco da minhoca do
YouTube para uma rede pedofilia (“YouTube’s wormhole into paedophilia ring”) (BRODKIN,
2019, on-line).
Outra questão recente que tem gerado polêmica com relação à indeterminação do
conteúdo vedado na plataforma, é a cláusula inserida nos Termos de Serviço do YouTube em
dezembro de 2019, que autoriza a rede social a excluir canais “não comercialmente viáveis”
(not commercially viable):
O YouTube poderá encerrar seu acesso ou o acesso da sua Conta do Google a todo o
Serviço ou parte dele se acreditarmos, a nosso critério exclusivo, que a prestação do
Serviço para você não é mais comercialmente viável. (YOUTUBE, 2019, on-line).
To clarify, there are no new rights in our ToS to terminate an account bc it’s not
making money. As before, we may discontinue certain YouTube features or parts of
the service, for ex., if they're outdated or have low usage. This does not impact
creators/viewers in any new ways. (@TEAMYOUTUBE, 2019).
Ou seja, segundo a própria rede social, essa alteração dos Termos de Serviço não lhe
confere poder de encerrar uma conta porque ela não está gerando renda. Diz a rede social que,
como já previa antes o contrato, a cláusula significa apenas que eles podem descontinuar certas
partes ou recursos da plataforma, caso estejam ultrapassados ou tenham pouca utilização.
Ainda assim, é difícil prever como a rede social aplicará essa disposição na prática,
mesmo por que, se este era verdadeiramente o único intuito da plataforma, a redação da cláusula
foi tremendamente infeliz.
A princípio, se a rede social não faz essa ressalva deste gênero quando assume
expressamente a obrigação de motivar suas decisões, a cláusula há de ser interpretada no sentido
181
mais favorável ao aderente por força dos arts. 113, IV e 423 do Código Civil, e da cláusula
geral da boa-fé objetiva (art. 113, caput do Código Civil,), que, atuando como comando
hermenêutico, ditará a interpretação do contrato no sentido mais correspondente à promessa de
garantia do devido processo legal, que gera a legítima expectativa de que defesa permitida seja
efetiva.
Vale dizer, contudo, que, embora o Código de Processo Civil contenha norma expressa
determinando a nulidade da sentença judicial que não enfrenta todos os argumentos capazes,
em tese, de infirmar a sua conclusão, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido
de que “O julgador não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes,
quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão”. Sendo que a novel
prescrição trazida pelo art. 489 do Código de Processo Civil veio apenas “confirmar a
jurisprudência já sedimentada pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, sendo dever do
julgador apenas enfrentar as questões capazes de infirmar a conclusão adotada na decisão
recorrida”. (STJ, 2016).
Sem prejuízo das críticas que o precedente merece38, o ponto é que, a insistir a
jurisprudência nessa compreensão nas relações verticais com o Estado, nas quais os direitos
fundamentais incidem com muito mais intensidade, é certamente esperado que o entendimento
seja repetido nas relações entre particulares. Assim é que estaria adimplida a obrigação de
motivação quando a rede social considerar na motivação apenas os argumentos suficientes para
o afastamento na decisão no sentido por ela proposto, ainda que nem todos os argumentos do
criador de conteúdo sejam considerados.
38
A este respeito, confira-se: BECKER, Rodrigo; TRIGUEIRO, Victor. O STJ e a fundamentação das decisões.
Jota. [S.l.], 29 set. 2016, on-line. Disponível em: < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-cpc-
nos-tribunais/cpc-nos-tribunais-o-stj-e-fundamentacao-das-decisoes-29092016>. Acesso em 22 jan. 2020.
182
Não fere, portanto, o devido processo legal a rede social que opta por primeiro
bloquear o acesso ao conteúdo dito infringente, para então possibilitar ao seu criador de
conteúdo oferecer a sua defesa. Claro é, por outro lado, que a demora na análise da contestação
causa pode ampliar os danos ao criador de conteúdo punido injustamente, por isso há de se
pensar em uma duração razoável para o processo.
Quanto a este ponto, parece claro que o art. 5º, LXXVIII, que positiva o direito à
duração razoável do processo, dirige-se apenas a entes estatais ao afirmar que a todos é
assegurado, “no âmbito judicial e administrativo” a “razoável duração do processo e os meios
que garantam a celeridade de sua tramitação”. Mas a necessidade de velocidade no julgamento
da defesa dos criadores de conteúdo encontra no caso outros fundamentos de ordem
constitucional.
Em primeiro lugar, como visto, a própria noção de devido processo legal já traz
embutida a necessidade de seu encerramento em tempo razoável. Segue atual a lição de Ruy
Barbosa de que “A justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta”.
O YouTube não informa o prazo em que as contestações são analisadas, embora fixe
o prazo de 30 dias para o criador de conteúdo se defender de avisos por violação a diretrizes da
comunidade: “ Você só pode contestar em até 30 dias após a emissão do alerta ou aviso”
(YOUTUBE, 2019).
Embora 30 dias sejam uma eternidade no mundo digital, não deixa de ser um
parâmetro temporal objetivo para ser aferida a inércia da rede social. Assim é que, como
mínimo, o YouTube ofende a duração razoável do processo se não responder motivadamente à
contestação em 30 dias. Sem embargo, em casos específicos como o julgado na Alemanha,
pode o usuário recorrer ao Judiciário pedindo a suspensão da medida até uma resposta pela rede
social.
Confira-se:
Ainda que essa obrigação não houvesse sido expressamente assumida, a vedação à
piora da situação do recorrente poderia ser extraída do princípio da boa-fé objetiva caso a
contestação de punições tenha sido de qualquer modo incentivada pela rede social. O ponto é
que a contestação de punições também é benéfica à rede social, pois serve para aprimorar suas
práticas de autorregulação. Aprimoramento este que objetiva, não só promover uma plataforma
saudável para seus usuários, mas também torná-la mais atraente para anúncios publicitários.
Também o princípio da função social dos contratos parece vedar a piora do recorrente.
Pelo controle que o YouTube detém de um padrão de comunicação, que lhe confere o poder de
controle sobre uma relevante gama de interações sociais, há – como já mencionado– um grande
interesse da sociedade na manutenção da plataforma como um ambiente livre de censura, onde
as liberdades constitucionais possam ser exercidas em sua plenitude.
9.784/99 previu expressamente a possibilidade de reformatio in pejus em seu art. 64, que
concede aos órgãos de segunda instância um amplo poder de revisão independentemente das
matérias alegadas, bastando que sejam de sua competência, podendo confirmar, modificar,
anular ou revogar, total ou parcialmente, a decisão recorrida, ainda que tal revisão acarrete
gravame à situação do recorrente. Outrossim, no direito penal a possibilidade é igualmente
reconhecida caso a acusação recorra da mesma questão que a defesa.
Podemos ousar e discutir a questão da retroação de novas normas inseridas nos Termos
de Serviço e Diretrizes da Comunidade. Considerando-se que a disponibilização de vídeos na
plataforma tende à continuidade, as novas disposições contratuais também haveriam de afetar
o conteúdo disponibilizado em momento anterior. Se após a mudança dos Termos de Serviço e
Diretrizes da Comunidade o criador de conteúdo segue utilizando a plataforma, presume-se a
sua aderência às novas cláusulas, de modo que não poderia questionar a sua punição afirmando
que o conteúdo postado era anteriormente aceito ou que a punição anteriormente prevista para
aquela conduta era menos intensa.
Neste caso, a boa-fé objetiva age em seu desfavor, pela contraditoriedade que se
vislumbra em seu comportamento de aceitação/não-aceitação da mudança das cláusulas
contratuais. É dever da rede social, contudo, informar os criadores de conteúdo de eventuais
mudanças. Obrigação que o YouTube assume expressamente.
Mesmo que se buscasse eventual analogia com o direito estatal punitivo, sem prejuízo
das dificuldades que a transposição da questão ao âmbito privado representa visto o diverso
grau de incidência dos direitos fundamentais, melhor sorte não lhe assistiria, pois o Supremo
Tribunal Federal já sumulou entendimento no sentido de que “A lei penal mais grave aplica-se
ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da
continuidade ou da permanência” (Súmula n.º 711).
Um vídeo será marcado como "Não adequado para a maioria dos anunciantes" no
Gerenciador de vídeos nestes casos:
Nossos sistemas automatizados indicam que seu conteúdo não é adequado para todas
as marcas.
Observação: caso acredite que nossos sistemas cometeram um erro, você poderá
solicitar uma revisão humana. As decisões tomadas pelo especialista nesse processo
ajudam a melhorar nossos sistemas ao longo do tempo. Excluir e reenviar o vídeo não
resolverá o problema. O conteúdo pode ser enviado para revisão somente uma vez, e
não é possível contestar a decisão do especialista. Saiba mais sobre como as revisões
de adequação para anúncios funcionam.
Nossos especialistas concluíram que seu vídeo não atende às diretrizes de conteúdo
adequado para publicidade. (YOUTUBE, 2019c, on-line).
Art. 20. O titular dos dados tem direito a solicitar a revisão de decisões tomadas
unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais que afetem seus
interesses, incluídas as decisões destinadas a definir o seu perfil pessoal, profissional,
de consumo e de crédito ou os aspectos de sua personalidade.
[...]
§ 3º A revisão de que trata o caput deste artigo deverá ser realizada por pessoa natural,
conforme previsto em regulamentação da autoridade nacional, que levará em
consideração a natureza e o porte da entidade ou o volume de operações de tratamento
de dados.
Todavia, o dispositivo foi vetado pelo Executivo com base nas seguintes razões
políticas:
Razões do veto
A propositura legislativa, ao dispor que toda e qualquer decisão baseada unicamente
no tratamento automatizado seja suscetível de revisão humana, contraria o interesse
público, tendo em vista que tal exigência inviabilizará os modelos atuais de planos de
negócios de muitas empresas, notadamente das startups, bem como impacta na análise
de risco de crédito e de novos modelos de negócios de instituições financeiras,
gerando efeito negativo na oferta de crédito aos consumidores, tanto no que diz
respeito à qualidade das garantias, ao volume de crédito contratado e à composição
de preços, com reflexos, ainda, nos índices de inflação e na condução da política
monetária.
Em primeiro lugar, como anota Felipe Palhares, os argumentos utilizados para o veto
colocam o Brasil em uma posição particular em face de nações desenvolvidas como os Estados
membros da União Europeia, onde tal objeção não foi levantada, visto que no âmbito da
188
General Data Protection Regulation (GDPR) os titulares de dados possuem o direito de não
estarem sujeitos a decisões automatizadas que lhes acarretem efeitos jurídicos ou que os afetem
significativamente de modo similar, salvo em casos excepcionais. E mesmo nesses casos
excepcionais, os titulares têm direito a solicitar intervenção humana para expressar seus pontos
de vista e contestar eventuais decisões (2019, on-line).
Senão vejamos:
(71) O titular dos dados deverá ter o direito de não ficar sujeito a uma decisão, que
poderá incluir uma medida, que avalie aspetos pessoais que lhe digam respeito, que
se baseie exclusivamente no tratamento automatizado e que produza efeitos jurídicos
que lhe digam respeito ou o afetem significativamente de modo similar, como a recusa
automática de um pedido de crédito por via eletrônica ou práticas de recrutamento
eletrônico sem qualquer intervenção humana. Esse tratamento inclui a definição de
perfis mediante qualquer forma de tratamento automatizado de dados pessoais para
avaliar aspetos pessoais relativos a uma pessoa singular, em especial a análise e
previsão de aspetos relacionados com o desempenho profissional, a situação
económica, saúde, preferências ou interesses pessoais, fiabilidade ou comportamento,
localização ou deslocações do titular dos dados, quando produza efeitos jurídicos que
lhe digam respeito ou a afetem significativamente de forma similar. No entanto, a
tomada de decisões com base nesse tratamento, incluindo a definição de perfis, deverá
ser permitida se expressamente autorizada pelo direito da União ou dos Estados-
Membros aplicável ao responsável pelo tratamento, incluindo para efeitos de controlo
e prevenção de fraudes e da evasão fiscal, conduzida nos termos dos regulamentos,
normas e recomendações das instituições da União ou das entidades nacionais de
controlo, e para garantir a segurança e a fiabilidade do serviço prestado pelo
responsável pelo tratamento, ou se for necessária para a celebração ou execução de
um contrato entre o titular dos dados e o responsável pelo tratamento, ou mediante o
consentimento explícito do titular. Em qualquer dos casos, tal tratamento deverá ser
acompanhado das garantias adequadas, que deverão incluir a informação específica
ao titular dos dados e o direito de obter a intervenção humana, de manifestar o seu
ponto de vista, de obter uma explicação sobre a decisão tomada na sequência dessa
avaliação e de contestar a decisão. Essa medida não deverá dizer respeito a uma
criança.
A fim de assegurar um tratamento equitativo e transparente no que diz respeito ao
titular dos dados, tendo em conta a especificidade das circunstâncias e do contexto em
que os dados pessoais são tratados, o responsável pelo tratamento deverá utilizar
procedimentos matemáticos e estatísticos adequados à definição de perfis, aplicar
medidas técnicas e organizativas que garantam designadamente que os fatores que
introduzem imprecisões nos dados pessoais são corrigidos e que o risco de erros é
minimizado, e proteger os dados pessoais de modo a que sejam tidos em conta os
potenciais riscos para os interesses e direitos do titular dos dados e de forma a
prevenir, por exemplo, efeitos discriminatórios contra pessoas singulares em razão da
sua origem racial ou étnica, opinião política, religião ou convicções, filiação sindical,
estado genético ou de saúde ou orientação sexual, ou a impedir que as medidas
venham a ter tais efeitos. A decisão e definição de perfis automatizada baseada em
categorias especiais de dados pessoais só deverá ser permitida em condições
específicas.
Em igual sentido, a Carta dos Direitos Fundamentais Digitais da União Europeia, uma
iniciativa de um grupo de cidadãos europeus acompanhada pela Fundação ZEIT Ebelin e Gerd
Bucerius, prevê como direito fundamental a proteção contra decisões e sistemas automatizados,
189
garantindo, dentre outras coisas, que “decisões que atinjam direitos fundamentais só podem ser
tomadas por seres humanos” e que “toda pessoa sujeita a uma decisão automatizada que tenha
impacto significativo na sua vida tem direito a uma revisão independente e decidida por um ser
humano”:
Esse dever não é assumido expressamente no contrato do YouTube e parece difícil ele
ser extraído das regras e princípios que o regem. A eventual negativa da rede social não parece
contrariar a boa-fé, não sendo causa direta de contrariedade a expectativas ou abuso de posições
contratuais.
A publicidade dos atos processuais integra o devido processo legal justificando-se pelo
interesse público na transparência dos atos de poder estatais. No caso das redes sociais essa
razão persiste, sendo inegável o interesse público na publicação dos julgamentos do YouTube.
A publicidade das decisões da rede social permite uma maior lisura de suas práticas
de autorregulação de conteúdo, em primeiro lugar, porque desenvolve e evidencia aos usuários
exatamente quais conteúdos e condutas são vedados na plataforma. Isto fortalece a efetividade
das Diretrizes da Comunidade, beneficiando inclusive a rede social com a geração de um
ambiente mais atrativo para os anunciantes e mais saudável para os seus usuários, evitando a
sua responsabilização por conteúdo ilícito de terceiros. Por outro lado, a publicação das
decisões seria útil para o controle da proporcionalidade das punições aplicadas, porque os
criadores de conteúdo teriam contato com a dosimetria realizada em casos análogos, podendo
pedir paridade de tratamento.
Por isso não parece haver sentido exigir a revisão da decisão, sem que antes exista um
órgão apropriado para julgar a matéria, mesmo que criado pela própria rede social, ou um ´prgão
independente talvez criado redes sociais em conjunto, algo como o Conselho Nacional de
Autorregulamentação Publicitária (CONAR). Mas nada do gênero ainda é realidade, e é
demasiado que o Judiciário imponha a sua criação, mesmo por que, além da gravidade dessa
intervenção na relação contratual, exigência do duplo grau de jurisdição como direito
fundamental componente do conteúdo mínimo do devido processo legal não está até hoje
assentada em bases firmes nem mesmo nas relações jurídicas Estado-indivíduo.
192
É certo que a Constituição Federal de 1988 não faz menção expressa a esse direito.
Todavia, embora não conste do texto constitucional, ao menos em sede de jurisdição penal39 a
garantia possui previsão expressa no art. 8º, 3º, “h” do Pacto de San José da Costa Rica
(Convenção Americana sobre Direitos Humanos), que integra o ordenamento jurídico
brasileiro, tendo sido promulgado pelo Decreto n.º 678, de 6 de novembro de 1992 e cujo caráter
materialmente constitucional foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do
HC 90.450. Ocasião em que a nossa Corte Constitucional acolheu a orientação que atribui
natureza constitucional às convenções internacionais de direitos humanos celebradas ou
aderidas pelo Brasil mesmo antes da entrada em vigor da EC n.º 45/2004, por comporem o
chamado bloco de constitucionalidade.
Mas mesmo o STF entende que a garantia ao duplo grau em matéria penal não é
absoluta, encontrando restrições na própria Carta Magna, de modo que se faz possível a sua
restrição pelo legislador infraconstitucional, tal, como ocorre justamente nos casos em que
previsto o foro por prerrogativa de função (Cf. RHC 79785 e AI 601.832 e Súmula 704, do
STF).
39
Confira-se o referido dispositivo na íntegra: “Artigo 8º – Garantias judiciais. 1. Toda pessoa terá o direito de ser
ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente
e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou
na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 2.
Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente
comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias
mínimas: a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda
ou não fale a língua do juízo ou tribunal; b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação
formulada; c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa; d) direito do
acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se,
livremente e em particular, com seu defensor; e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor
proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele
próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei; f) direito da defesa de inquirir as testemunhas
presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam
lançar luz sobre os fatos; g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada; e h)
direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior. 3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação
de nenhuma natureza. 4. O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo
processo pelos mesmos fatos. 5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os
interesses da justiça”.
193
instrumento para a prática de um ato específico, ou seja, recorrer da decisão que lhe
foi desfavorável." (1999, pp. 107-108).
Já Fredie Didier Jr., outro adepto de seu caráter constitucional, aposta na interpretação
lógico-sistemática do texto constitucional para considerar o duplo grau de jurisdição como um
princípio implícito, ainda que não absoluto, que deriva da própria forma escalonada como os
órgãos do Poder Judiciário são estruturados na Constituição:
Considerando que o princípio não precisa estar expressamente previsto para que esteja
embutido no sistema normativo, pode-se concluir que a Constituição Federal, ao
disciplinar o Poder Judiciário com uma organização hierarquizada, prevendo a
existência de vários tribunais, tem nela inserido o princípio do duplo grau de
jurisdição. Sendo assim, é possível haver exceções ao princípio, descerrando-se o
caminho para que a legislação infraconstitucional restrinja ou até elimine recursos em
casos específicos. Além do mais, sendo o duplo grau um princípio, é certo que pode
haver princípios opostos, que se ponham como contraponto. Em outras palavras,
sendo o duplo grau um princípio, pode ser contraposto por outro princípio, de molde
a que haja limites de aplicação recíprocos. (2016, pp. 90-91).
Em sentido contrário, Orestes Nestor de Souza Laspro, autor de obra clássica sobre o
tema, acredita que o princípio não integra o devido processo legal, tampouco consta da
Constituição Federal, de modo que consiste em mero elemento acidental, sendo possível sua
restrição pelo legislador ordinário (1995, p. 96).
Embora o duplo grau possa ser considerado importante para uma maior segurança da
justiça da decisão, a verdade é que ele não é vital para o bom funcionamento da justiça
civil. Em algumas hipóteses, é racional e legitima a dispensa do duplo grau,
especialmente em nome do direito fundamental ao processo justo ou, mais
precisamente, de uma maior qualidade e tempestividade da tutela jurisdicional.
(MARINONI, 2015, pp. 356-357).
Por outro lado, no tocante à revisão das questões de fato, sua oposição é enérgica. Na
sua opinião o bom julgamento da matéria de fato é dependente do contato direto do juiz com as
partes e a produção da prova (oralidade), de modo que submeter a sua análise a revisão por um
tribunal não garante de nenhum modo uma decisão melhor. A certa altura, ele se refere ao duplo
grau em matéria de fato como sendo um “mito”:
mais adequada. O juiz, quando em contato direto com as partes e com a produção da
prova, pode formar uma convicção mais próxima da ideal a respeito dos fatos que dão
conteúdo ao litigio. Se o duplo grau é necessário, e o tribunal vai apreciar a matéria
de fato a partir da documentação dos atos processuais, é logico que a decisão do
tribunal não pode ser melhor do que o julgamento de primeiro grau de jurisdição. O
duplo grau não pode ser considerado um princípio fundamental de justiça, já́ que ele
não garante a qualidade e a efetividade da prestação jurisdicional. Muito mais
importante que o duplo grau é o direito à adequada tutela jurisdicional – esse sim um
direito garantido pelas Constituições modernas –, direito que, para ser efetivo, exige
uma resposta jurisdicional em um prazo razoável, exigência difícil de ser atendida em
um sistema em que estão presentes dois juízos repetitivos sobre o mérito. É importante
esclarecer que nenhum ordenamento, nem na Itália nem em qualquer outro país – nem
mesmo na França, onde a ideia do double degré de juridiction parece estar
particularmente arraigada –, considera o duplo grau de jurisdição como uma garantia
constitucional. Ao contrário, em quase todos os países existem mitigações do duplo
grau, justamente para atender ao princípio fundamental de acesso à justiça. [...] Por
outro o lado, o duplo grau também deve ser afastado em vista de determinadas e
particulares situações de direito substancial que assim recomendem. Lembre-se, por
exemplo, o caso da ação de despejo fundada em falta de pagamento. Suponha-se que
o locador vá a juízo e demonstre que o locatário não paga aluguel há quatro meses.
Imagine-se, ainda mais, que no momento da sentença o locatário já não paga aluguel
há doze meses. Em um caso como este, por incrível que pareça, exige-se do locador,
para a 'execução provisória', depósito não inferior a doze ou superior a dezoito meses
do valor do aluguel (art. 64 da Lei 8.245/1991 – Lei do Inquilinato). Pouca coisa pode
parecer mais absurda; mas é a realidade posta pela Lei do Inquilinato, que certamente
foi influenciada pelo mito do duplo grau. O processualista tem que se convencer de
que deve trabalhar com base naquilo que comumente ocorre. Será que 95% dos
locadores devem ser prejudicados para que 5% dos locatários não o sejam? Recorde-
se, aliás, por oportuno, que as leis de proteção do locatário – fundadas em um
discutível e romântico princípio de proteção do 'mais fraco'– estão acabando com a
propriedade familiar, parcelada, de imóveis urbanos, e transferindo a propriedade
urbana para os grandes conglomerados financeiros (MARINONI, 2003, pp. 218 e ss
apud MARINONI, 2015, pp. 356-357, nota de rodapé 8).
Vale lembrar que o duplo grau de jurisdição não consta dentre as “Normas
Fundamentais de Processo Civil” do Código de Processo Civil de 2015, que também eliminou
recursos como os embargos infringentes e o agravo retido e restringiu as hipóteses de cabimento
do agravo de instrumento. Além disso, foram elevadas as multas aplicáveis para os recursos
protelatórios. Tudo a revelar uma compreensão do tema, não como garantia absoluta, mas como
uma decisão discricionária do legislador tendo em consideração a sua instrumentalidade.
6.5. Controle judicial: formal e material. Efeitos horizontais de direitos fundamentais como
paradigma de controle material. Precedentes na jurisprudência da Alemanha
O controle judicial das decisões da rede social tendo por base o direito fundamental ao
devido processo legal é plenamente possível, inclusive porque será feito com a tônica da
verificação do adimplemento do contrato. Assim é que as decisões podem ser controladas tanto
em seu aspecto formal quanto material.
O controle formal das decisões se relaciona com a dimensão formal do devido processo
legal e se conclui com um juízo a respeito da adequação da atuação da rede social às garantias
endoprocessuais previstas contratualmente. A tutela judicial concedida variará conforme a
prestação descumprida. Se não houve oportunização de defesa ou motivação da decisão, caberá
sua anulação. Se o processo está demorando excessivamente, cabe a suspensão da sanção e o
cumprimento forçado da obrigação com a fixação de multa até que uma decisão final seja
emitida. Isto, sem prejuízo da responsabilidade pelas perdas e danos, juros de mora, correção
monetária e honorários advocatícios.
O direito ao devido processo legal em sua dimensão formal configura uma garantia à
forma com que imposta a restrição a um direito, e não a um conteúdo específico da restrição.
Nesta lógica, a intervenção do Judiciário visando sua implementação não servirá à garantia da
decisão da rede social em um determinado sentido, mas sim que essa decisão seja tomada após
o contraditório, que seja motivada, etc. Bem por isso, após a anulação de uma punição por
desrespeito ao devido processo legal, não tendo o Judiciário sindicado o seu mérito – isto é,
tendo se limitado ao controle formal da decisão – nada impede que a rede social insista na
remoção do conteúdo ou suspensão da conta, desde que a segunda decisão seja tomada com
respeito às garantias formais antes violadas.
Caso admitido que os únicos critérios possíveis para o seu controle material são
aqueles definidos no contrato, então a intervenção do Judiciário se limitará à verificação da
compatibilidade da decisão com eles. Por exemplo, no que toca à proporcionalidade haverá
196
“Sexo e nudez”
Não é permitido no YouTube conteúdo como pornografia que tenha como objetivo a
satisfação sexual. A nudez é permitida quando o principal objetivo dela é educativo,
documentário, científico ou artístico e não é infundada. No entanto, é possível que
haja uma restrição de idade desse conteúdo para proteger públicos jovens. O contexto
e os detalhes (tags, títulos, descrição etc.) são importantes porque ajudam os
espectadores a encontrar seu vídeo e a entender o intuito dele. Confira nossas
diretrizes completas neste link.
Perguntas frequentes: o que é satisfação sexual?
O termo "satisfação sexual" indica se o objetivo do conteúdo é despertar o desejo
sexual ou excitar.
Por exemplo: uma playlist ou um vídeo com uma compilação de gafes de looks de
celebridades com decotes ousados que tenha como foco somente as partes expostas
do corpo violaria as diretrizes da comunidade.
Outro exemplo consiste em enviar um vídeo de uma dançarina burlesca com zoom
para focar nas partes íntimas do corpo, em vez de ensinar sobre a arte do burlesco.
Isso não seria permitido (YOUTUBE, 2019d, on-line).
Imaginemos o caso em que um vídeo que defende a pena de morte é removido por se
tratar de “discurso de ódio” conforme as Diretrizes da Comunidade da rede social. Poderia o
Judiciário garantir a sua publicação com base no direito à liberdade de expressão, ainda que a
rede social tenha considerado que não se trata de uma manifestação legítima desse direito40?
Parece se tratar de uma intervenção drástica na autonomia da rede social para definir qual tipo
40
É óbvio que, ao revés, se o conteúdo reflete efetivamente discurso de ódio a rede social não poderia insistir na
sua divulgação com base na autonomia privada, que, como visto, não imuniza ofensas a direitos fundamentais.
198
de conteúdo merece veiculação. Ao menos em princípio não haveria óbice a que a rede social,
enquanto sujeito privado titular de direitos fundamentais, promovesse a sua própria agenda
política por meio de sua plataforma. O entendimento em contrário gera o risco de
homogeneização do discurso e hiperinflação da tutela de direitos fundamentais. Mas a questão
não é tão simples e, pela complexidade, não será abordada em profundidade neste trabalho.
1. De maneira geral, o provedor de uma rede social pode impor suas condições
contratuais removendo conteúdo ilegal ou bloqueando as contas dos usuários.
2. Entretanto, o contrato celebrado entre o usuário e o provedor da plataforma inclui
deveres de proteção do usuário de acordo com a Seção 241 (2) do Código Civil
Alemão (BGB), por força do qual – dado os efeitos horizontais indiretos– os direitos
fundamentais dos afetados devem ser levados em consideração.
41
No original: “1. Eine Allgemeine Geschäftsbedingung des Betreibers einer Social-Media-Plattform, wonach
dieser sämtliche Inhalte, die ein Nutzer postet, entfernen kann, wenn er (der Betreiber) der Ansicht ist, dass diese
gegen die Richtlinien der Plattform verstoßen, ist unwirksam, weil sie den Nutzer als Vertragspartner des
Betreibers entgegen den Geboten von Treu und Glauben unangemessen benachteiligt. (Rn. 24 – 25)
(redaktioneller Leitsatz). 2. Den Grundrechten kommt insoweit eine mittelbare Drittwirkung zu, als das
Grundgesetz in seinem Grundrechtsabschnitt zugleich Elemente objektiver Ordnung errichtet hat, die als
verfassungsrechtliche Grundentscheidung für alle Bereiche des Rechts Geltung haben, mithin auch das
Privatrecht beeinflussen. § 241 Abs. 2 BGB bildet eine konkretisierungsbedürftige Generalklausel, bei deren
Auslegung dem Grundrecht auf freie Meinungsäußerung Rechnung zu tragen ist. (Rn. 27) (redaktioneller Leitsatz).
3. Mit dem gebotenen Ausgleich der kollidierenden Grundrechtspositionen nach dem Grundsatz der praktischen
Konkordanz wäre es unvereinbar, wenn der Betreiber einer Social-Media-Plattform gestützt auf ein „virtuelles
Hausrecht“ auf der von ihm bereitgestellten Plattform den Beitrag eines Nutzers, in dem er einen Verstoß gegen
seine Richtlinien erblickt, auch dann löschen dürfte, wenn der Beitrag die Grenzen zulässiger Meinungsäußerung
nicht überschreitet. (Rn. 28) (redaktioneller Leitsatz). 4. Die Interpretation einer Äußerung setzt die Ermittlung
ihres objektiven Sinns aus der Sicht eines unvoreingenommenen und verständigen Publikums voraus. Bei der
Erfassung des Aussagegehalts muss die beanstandete Äußerung ausgehend von dem Verständnis eines
unbefangenen Durchschnittslesers und dem allgemeinen Sprachgebrauch in dem Gesamtzusammenhang beurteilt
werden, in dem sie gefallen ist. Sie darf nicht aus dem sie betreffenden Kontext herausgelöst und einer rein
isolierten Betrachtung zugeführt werden. (Rn. 31) (redaktioneller Leitsatz)”. (OLG MÜNCHEN, 2019, on-line).
200
42
No original: “1. Der Betreiber eines sozialen Netzwerks kann seine Verhaltensregeln grundsätzlich auch durch
Entfernung eines rechtswidrigen Inhalts oder durch Sperrung eines Nutzeraccounts durchsetzen. 2. Der zwischen
dem Nutzer und dem Plattformbetreiber geschlossene Vertrag beinhaltet jedoch Schutzpflichten des
Plattformbetreibers gemäß § 241 Abs. 2 BGB, in deren Rahmen – im Wege der mittelbaren Drittwirkung – die
Grundrechte der Betroffenen zu berücksichtigen sind. 3. Voraussetzung einer Sperre ist daher, dass der Ausschluss
sachlich gerechtfertigt und nicht willkürlich ist. Eine Sperre und Löschung wegen einer Äußerung ist dann nicht
gerechtfertigt, wenn die Äußerung von der Meinungsfreiheit gedeckt ist”. (LG FRANKFURT AM MAIN, 2018,
on-line).
201
● A situação do usuário não deve ser piorada pelo mero fato de ele ter contestado
a punição;
● Deve ser tornado público um extrato do julgamento, com destaque para as razões
de decidir e a decisão final, ocultando-se o nome do usuário envolvido. A
descrição dos fatos deve ser sucinta e livre de detalhes que permitam a
identificação dos envolvidos na conduta punida.
202
SÍNTESE CONCLUSIVA
fundamentais apresentam um caráter bivalente nas relações entre particulares, pois, ao mesmo
tempo em que tornam exigível a ação dos poderes públicos em favor da proteção da parte
“violada”, também garantem a sua abstenção em favor da liberdade da parte “violadora”, visto
ambas serem igualmente titulares de posições jurídicas deles derivadas. Esse duplo aspecto
deve necessariamente ser considerado pelo julgador, sob pena de o resultado da tutela judicial
ser a mera inversão do sujeito oprimido na relação.
Bem por isso, a definição dos efeitos do devido processo legal na relação jurídica passa
por uma obrigatória análise dos próprios termos do contrato e a sua interpretação conforme o
devido processo legal, dado o necessário à autonomia privada e à segurança jurídica. Pode ser
que o contrato já contenha disposições que contemplem suficientemente a garantia deste direito
fundamental, de modo que desnecessário o recurso direto à norma constitucional. Outrossim, a
intervenção estatal nas relações contratuais deve ser mínima na forma do art. 421do Código
Civil.
O controle judicial das decisões da rede social é plenamente possível, inclusive porque
será feita com a tônica do controle do adimplemento de um contrato. Mesmo o controle material
das decisões é cabível, sem dúvida desde que orientado pela vinculação da rede sociais aos
termos contratados. Assim, se a rede social, por exemplo, não veda a nudez, mas sim a
204
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ano 33, p.50-59, set. 1998.
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Malheiros, 2009.
AYOUB, Hala. The State Action Doctrine in State and Federal Courts. Florida State
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BARBOSA, Marina. Quase metade dos brasileiros usa rede social para definir voto, indica Data
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<https://congressoemfoco.uol.com.br/eleicoes/quase-metade-dos-brasileiros-usa-rede-social-
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BARRETO, Ana Luísa Barbosa. O devido processo legal substantivo e sua aplicação pelo
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<https://www.pucsp.br/tutelacoletiva/download/artigo-devido-processo-legal-ana-luisa-
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BECKER, Rodrigo; TRIGUEIRO, Victor. O STJ e a fundamentação das decisões. Jota. [S.l.],
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