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IDD – INSTITUTO DAMÁSIO DE DIREITO

FACULDADE IBMEC SÃO PAULO

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM DIREITO DIGITAL E


COMPLIANCE

IVO HOFMANN FRANCISCO ALVES

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

APLICAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL NA RELAÇÃO JURÍDICA ENTRE


REDES SOCIAIS DE STREAMING E CRIADORES DE CONTEÚDO:

ANÁLISE DOS TERMOS DE SERVIÇO, DIRETRIZES DA COMUNIDADE E


DIRETRIZES DE CONTEÚDO ADEQUADO PARA PUBLICIDADE DO YOUTUBE

São Paulo

2020
IDD – INSTITUTO DAMÁSIO DE DIREITO

FACULDADE IBMEC SÃO PAULO

IVO HOFMANN FRANCISCO ALVES

APLICAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL NA RELAÇÃO JURÍDICA


ENTRE REDES SOCIAIS DE STREAMING E CRIADORES DE CONTEÚDO:

ANÁLISE DOS TERMOS DE SERVIÇO, DIRETRIZES DA COMUNIDADE E


DIRETRIZES DE CONTEÚDO ADEQUADO PARA PUBLICIDADE DO YOUTUBE

Tese de Especialização

Área de Direito Digital e Compliance

Orientador: Prof. Thiago Giovani Romero

São Paulo

2020
IDD – INSTITUTO DAMÁSIO DE DIREITO

FACULDADE IBMEC SÃO PAULO

IVO HOFMANN FRANCISCO ALVES

APLICAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL NA RELAÇÃO JURÍDICA ENTRE


REDES SOCIAIS DE STREAMING E CRIADORES DE CONTEÚDO: ANÁLISE DOS
TERMOS DE SERVIÇO, DIRETRIZES DA COMUNIDADE E DIRETRIZES DE
CONTEÚDO ADEQUADO PARA PUBLICIDADE DO YOUTUBE

Monografia apresentada ao IBMEC São Paulo, como


exigência parcial para aprovação no Curso de Pós-
Graduação “Lato Sensu” – Especialização em Direito
Digital e Compliance, sob a orientação do Prof. Thiago
Giovani Romero

São Paulo, ___de______________de______.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________

______________________________________________

______________________________________________

São Paulo

2020
RESUMO

As redes sociais estabeleceram um novo padrão de comunicação social modificando


estruturalmente o locus onde a sociedade civil forma suas opiniões. Em especial, as redes
sociais de streaming como o YouTube, por seu alcance e gratuidade, têm se demonstrado
decisivas em eleições nas maiores democracias do mundo. A falta de controle deste seu poder
de influência é preocupante, pois lhes possibilita manipular o debate público por meio da
censura (velada) do conteúdo nela veiculado. Como forma de contenção de sua arbitrariedade,
indaga-se da aplicabilidade do direito fundamental ao devido processo legal na relação jurídica
entre criadores de conteúdo e redes sociais de streaming. As questões principais tratadas são:
se há vinculação das redes sociais de streaming ao devido processo legal nas hipóteses de
exclusão de postagens e suspensão de usuários; qual é a conformação exata do conteúdo desse
direito fundamental nessa relação privada; e se o Judiciário pode anular as decisões das redes
sociais quando esse direito for desrespeitado. Opõem-se à sua vinculação ao devido processo
legal: a liberdade contratual das redes sociais e a noção histórica de que os direitos fundamentais
servem de barreira contra a intervenção estatal em negócios privados, e não como seu arrimo.
A busca pela resposta começa pela demonstração das bases conceituais da aplicabilidade dos
direitos fundamentais a relações privadas e as teorias a respeito do tema, inclusive aquela
adotada majoritariamente no Brasil. Em seguida, investiga-se o direito fundamental ao devido
processo legal, suas duas dimensões, e seus efeitos específicos em relações privadas. Após
serem fixadas as premissas teóricas da vinculação das redes sociais de streaming ao devido
processo legal, passa-se à averiguação da intensidade de sua proteção na relação entre criadores
de conteúdo e o YouTube. Discutem-se quais características dessa relação jurídica em especial
fazem tender o conflito entre o devido processo legal e a autonomia privada a uma preferência
pela tutela das garantias processuais dos criadores de conteúdo, em detrimento da liberdade do
YouTube de censurar livremente o conteúdo veiculado em sua plataforma. Os Termos de
Serviço, as Políticas de Monetização e as Diretrizes da Comunidade do YouTube são
entendidos como cláusulas de um contrato, sendo a obrigação de respeito ao devido processo
legal concebida a partir de sua interpretação conforme a Constituição, as regras e cláusulas
gerais do Código Civil, do Código de Defesa do Consumidor e do Marco Civil da Internet.
Analisa-se então a possibilidade de controle judicial formal e material das decisões das redes
sociais. Por fim, formulam-se recomendações às redes sociais de streaming relativas ao devido
processo legal com o fim de evitar a revisão de suas decisões pelo Judiciário.
PALAVRAS-CHAVE: eficácia horizontal dos direitos fundamentais; aplicação do devido
processo legal a relações privadas; redes sociais de streaming; criadores de conteúdo;
liberdade de expressão; censura; YouTube; compliance.
ABSTRACT

Social networks have established a new standard of social communication, structurally


modifying the “locus” where civil society forms its opinions. In particular, social networks
based on streaming such as YouTube, due to their reach and gratuity, have proved decisive in
elections in the largest democracies in the world. The lack of control of this power of influence
is a matter of concern, as it allows them to manipulate the public debate through the (veiled)
censorship of the content published in it. As a way of containing its arbitrariness, it is questioned
the applicability of the “due process clause” in the legal relationship between content creators
and streaming social networks. The main issues dealt with are: whether streaming social
networks are legally bound to the “due process clause” in cases of deletion of posts and
suspension of users; what is the exact conformation of this fundamental right in this private
relationship; and whether the Judiciary can override social media decisions when this right is
disrespected. The obstacles to this legal bond between the social networks and the “due process
clause”: the contractual freedom and the historical notion that fundamental rights serve as a
barrier against state intervention in private businesses, and not as their support. The search for
an answer begins with the demonstration of the conceptual bases of the applicability of
fundamental rights to private relations and the theories on the subject, including the one mostly
adopted in Brazil. Then, the two dimensions of due process and its specific effects on private
relations are investigated. After stablishing the theoretical premises of considering the due
process clause legally binding to social networks, it proceeds to research the intensity of its
effects in the relationship between content creators and YouTube. It discusses which
characteristics of this legal relationship in particular make the need to protect the content
creators from arbitrariness stronger than YouTube’s autonomy to freely censor the content
broadcasted on its platform. The YouTube Terms of Service and Community Guidelines are
viewed are clauses in a contract, and the obligation to respect due legal process is conceived
from its interpretation in accordance with the Constitution, the general rules and clauses of the
Brazilian Civil Code, the Brazil Code of Consumer’s Protection and the Civil Framework of
the Internet. It then analyzes the possibility of formal and material judicial review of the social
network decisions. Finally, recommendations are made to social networks based on streaming
regarding due legal process in order to avoid the review of its decisions by the Judiciary.
KEYWORDS: horizontal effects of fundamental rights; application of due process to
private relations; streaming; social networks; content creators; freedom of speech;
censorship; YouTube; compliance.
LISTA DE ABREVIATURAS PRINCIPAIS

A) FONTES JURÍDICAS

BGB = Bürgerlischesgesetzbuch (Código Civil Alemão)


CC = Código Civil de 2002
CDA= Communications Decency Act
CDC = Código de Defesa do Consumidor
CF = Constituição Federal de 1988
CPC = Código de Processo Civil de 2015
CPC/73 = Código de Processo Civil de 1973
GG = Grundgesetz (Lei Fundamental de Bonn)
LINDB = Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro
NetzdDG = Netzwerkdurchsetzungsgesetz
RE = Recurso Extraordinário
REsp = Recurso Especial

B) TRIBUNAIS

BVerfGE = Bundesverfassungsgericht
BVerfGG = Bundesverfassungsgerichtsgesetz
BAG = Bundesarbeitsgericht
LG = Landgericht
OLG = Oberlandesgericht
STF = Supremo Tribunal Federal
STJ = Superior Tribunal de Justiça
SCOTUS = Supreme Court of the United States
TJ = Tribunal de Justiça
TRF = Tribunal Regional Federal
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12

CAPÍTULO 1 – REDES SOCIAIS DE STREAMING: PODER DE INFLUÊNCIA E


CONTROLE DE CONTEÚDO ............................................................................................ 14

1.1. Redes sociais de “streaming”: novo local de formação da opinião


pública.................... .............................................................................................................. 14

1.2. O que é “streaming”? ............................................................................... 21

1.3. O YouTube: a maior rede social de “streaming” do mundo .................... 22

1.4. Os criadores de conteúdo ......................................................................... 23

CAPÍTULO 2 – BASES CONCEITUAIS DA EFICÁCIA HORIZONTAL DOS


DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONSTITUIÇÃO COMO NORMA JURÍDICA E
DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS....................................... 26

2.1. Considerações introdutórias............................................................................ 26

2.2. A Constituição como norma jurídica .............................................................. 27

2.3. A chamada dimensão objetiva dos direitos fundamentais .............................. 37

2.4. O direito civil constitucional .......................................................................... 43

2.5. Notas conclusivas ........................................................................................... 49

CAPÍTULO 3 – TEORIAS SOBRE A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS


FUNDAMENTAIS ................................................................................................................. 51

3.1. Introdução ................................................................................................ 51

3.2. Teoria negativa da eficácia dos direitos fundamentais nas relações


privadas: a doutrina da “state action”. Jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos.
A crítica de Chemerinsky..................................................................................................... 52
3.3. Teoria da eficácia horizontal mediata ou indireta dos direitos fundamentais.
A concepção de Dürig. O Caso Lüth como marco da jurisprudência do
“Bundesverfassungsgericht” ................................................................................................ 60

3.4. Teoria da eficácia imediata ou direta dos direitos fundamentais. Hans Carl
Nipperdey e o “Bundesarbeitsgericht”. Recepção da teoria na Europa continental ............ 65

3.5. Outras teorias alemãs. Canaris, Alexy e Schwabe ................................... 70

3.6. Considerações finais ................................................................................ 73

CAPÍTULO 4 – EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS


CONFORME A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA DO BRASIL ............................ 74

4.1. Notas introdutórias ................................................................................... 74

4.2. Daniel Sarmento ............................................................................................. 75

4.2.1. Vinculação direta dos particulares a direito fundamentais conforme a


Constituição Federal de 1988............................................................................................... 75

4.2.2. Standards para a incidência dos direitos fundamentais em relações privadas


no contexto brasileiro ........................................................................................................... 79

4.3. Wilson Steinmetz .................................................................................... 83

4.3.1. Modelo intermediário de aplicabilidade dos direitos fundamentais a relações


privadas ................................................................................................................................ 84

4.3.2. Regra da proporcionalidade ......................................................................... 86

4.4. Virgílio Afonso da Silva .......................................................................... 88

4.4.1. Fundamentos da vinculação de particulares a direitos fundamentais e


possibilidade de aplicação direta das normas constitucionais ............................................. 89

4.4.2. O “modelo diferenciado” de Virgílio Afonso da Silva ................................ 92

4.4.2.1. Compreensão dos direitos fundamentais como princípios e direito à


proteção ................................................................................................................................ 93

4.4.2.2. Mediação legislativa e efeitos indiretos como regra em sua realização ... 93

4.4.2.3. Aplicabilidade direta e necessidade de preservação da autonomia privada:


recurso ao conceito de “princípios formais” ........................................................................ 94
4.4.2.4. Tensão entre princípios formais e princípios materiais: perspectiva a partir
do conceito alexyano de “competência” .............................................................................. 95

4.4.2.5. Resolução da tensão entre autonomia privada e direitos fundamentais ... 96

4.4.2.5.1. Impossibilidade de sopesamento entre princípios formais e materiais 96

4.4.2.5.2. Inadequação da regra da proporcionalidade para a solução de colisões


entre princípios no âmbito privado ...................................................................................... 97

4.4.2.5.3. Critérios possíveis para a valoração da autonomia privada ................ 99

4.5. Posição da jurisprudência brasileira....................................................... 100

CAPÍTULO 5 – DEVIDO PROCESSO LEGAL: CONCEITO E APLICABILIDADE A


RELAÇÕES PRIVADAS .................................................................................................... 109

5.1. Considerações introdutórias ................................................................... 109

5.2. Origem histórica do devido processo legal ............................................ 110

5.3. Conteúdo jurídico................................................................................... 115

5.4. Dimensões: devido processo legal formal e substantivo ....................... 118

5.5. O direito fundamental ao devido processo legal nas relações entre


particulares no direito brasileiro ........................................................................................ 124

5.6. Conclusões possíveis ............................................................................. 137

CAPÍTULO 6 – APLICAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL NA RELAÇÃO


JURÍDICA ENTRE CRIADORES DE CONTEÚDO E REDES SOCIAIS DE
STREAMING: ANÁLISE DOS TERMOS DE SERVIÇO, DIRETRIZES DA
COMUNIDADE E DIRETRIZES DE CONTEÚDO ADEQUADO PARA
PUBLICIDADE DO YOUTUBE ........................................................................................ 138

6.1. Premissas aceitas .................................................................................... 138

6.2. Natureza jurídica da relação entre criadores de conteúdo e redes sociais de


“streaming”. Contrato de adesão com o YouTube e seu regime jurídico .......................... 145

6.3. Características da estrutura da relação jurídica entre criadores de conteúdo e


redes sociais de streaming. Critérios para a valoração da autonomia da vontade ............. 150
6.3.1. Assimetria entre as partes e seu reflexo na sinceridade da manifestação da
vontade do criador de conteúdo ......................................................................................... 151

6.3.1.1 Google e Facebook como “state actors”: uma discussão crescente nos
Estados Unidos................................................................................................................... 155

6.3.1.2. Circunstâncias da oferta: caso “Stadionverbot” ..................................... 158

6.3.2. Concorrência da vontade do criador de conteúdo na restrição a direito


fundamental........................................................................................................................ 162

6.3.3. Essencialidade dos bens jurídicos envolvidos ....................................... 163

6.4. Interpretação do contrato conforme o devido processo legal ................ 164

6.4.1. Regras, princípios, cláusulas gerais e conceitos indeterminados relativos a


contratos de adesão. Interpretação dos Termos de Serviço e Diretrizes da Comunidade do
YouTube conforme o devido processo legal ..................................................................... 165

6.4.2. Os deveres do YouTube ......................................................................... 166

6.4.2.1. Comunicação da sanção, motivação e oportunização de defesa.......... 166

6.4.2.2. Transparência na definição do conteúdo vedado pela rede social ....... 176

6.4.2.3. (Des)necessidade de consideração de todos os argumentos da defesa 180

6.4.2.4. Possibilidade de contraditório “ex post”.............................................. 181

6.4.2.5. Duração razoável do processo ............................................................. 182

6.4.2.6. “Non reformatio in pejus”. (Im)possibilidade de piora da situação do criador


de conteúdo que contesta a punição ................................................................................... 183

6.4.2.7. Alterações contratuais e retroação. Punição por conteúdo anteriormente


aceito..................... ............................................................................................................. 185

6.4.2.8. Juiz natural. (Des)necessidade de revisão da punição por um ser


humano............................................................................................................................... 185

6.4.2.9. Publicidade dos julgamentos ............................................................... 190

6.4.2.10. Duplo grau de jurisdição .................................................................... 191

6.5. Controle judicial: formal e material. Efeitos horizontais de direitos


fundamentais como paradigma de controle material. Precedentes na jurisprudência da
Alemanha ........................................................................................................................... 194
6.6. Medidas de “compliance” recomendadas às redes sociais de “streaming”
para evitar a anulação de suas sanções .............................................................................. 200

SÍNTESE CONCLUSIVA ................................................................................................... 202

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 205


12

INTRODUÇÃO

As redes sociais de streaming como o YouTube e a Twitch evoluíram muito


rapidamente em termos de alcance e popularidade. A sua capacidade de influenciar a opinião
pública tornou-se notável e o conteúdo que por elas é transmitido dita as tendências, não só de
consumo, mas também políticas. Também a partir de sua popularização nasceram profissões
que simplesmente não existiriam sem elas, como a de youtubers, streamers e thumbnail makers

Essa rápida ascensão cria novos desafios em matéria de proteção de direitos


fundamentais, pois o poder concentrado por essas redes sociais as habilita a interferir em
questões fundamentais da vida em sociedade, como quem será eleito, quem será para sempre
estigmatizado por um erro do passado, qual será a narrativa política dominante no país, quais
visões de mundo merecem ser expressadas com o mesmo alcance e quem poderá exercer certas
atividades econômicas. Há ameaça, portanto, à liberdade de expressão, a direitos políticos, a
direitos da personalidade e à livre iniciativa.

Toda concentração de poder clama por controle, do que são instrumentos os direitos
fundamentais. Esta a visão contemporânea dos direitos fundamentais que prevalece no sistema
romano-germânico: eles servem ao combate à opressão, independentemente de quem seja o
sujeito opressor, o Estado, outros cidadãos, ou empresas.

Dentre todos, o devido processo legal é o direito fundamental mais especialmente


dedicado à racionalização, legitimação e controle social dos atos de poder. Indaga-se, assim, se
as redes sociais de streaming, pelo poder quem concentram, estariam vinculadas ao direito
fundamental do devido processo legal quando atuem censurando criadores de conteúdo que
atuam em suas plataformas, e qual a sua exata intensidade. As suas decisões devem ser
motivadas? Deve ser oportunizada defesa ao usuário afetado? Em quanto tempo a defesa deve
ser julgada? A defesa deve ser julgada por um ser humano? São algumas das questões para as
quais se busca uma resposta.

O primeiro capítulo explora com mais detalhes o contexto histórico atual e a posição
de poder que nele é ocupada pelas redes sociais de streaming, em especial o YouTube, que é a
maior de todas elas, e, por isso, o foco principal da tese.
13

A partir do segundo capítulo, inicia-se a exploração das bases conceituais que


permitiram a superação da ideia historicamente arraigada na doutrina e na jurisprudência de
que os direitos fundamentais vinculariam somente o Estado.

Seguindo essa linha, o terceiro capítulo explora as diferentes teorias a respeito da


eficácia dos direitos fundamentais em relações privadas, em especial as três principais: a teoria
negativa da state action e as teorias da eficácia mediata e imediata desenvolvidas precipuamente
na Alemanha. A pesquisa utiliza os termos eficácia e aplicabilidade indistintamente, em que
pese a relevância da distinção conceitual apontada por parcela da doutrina.

O quarto capítulo é uma continuação direta do terceiro e apresenta quais teorias foram
adotadas pela doutrina e pela jurisprudência do país a respeito da eficácia dos direitos
fundamentais em relações privadas. Debruça-se especificamente sobre as obras de Daniel
Sarmento, Wilson Steinmetz e Virgílio Afonso da Silva; na jurisprudência, destaca-se a
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.

O quinto e penúltimo capítulo é especialmente dedicado ao direito fundamental ao


devido processo legal, cuja oponibilidade às redes sociais de streaming é o cerne da
investigação. Aborda-se a sua origem histórica, suas dimensões e o reconhecimento de sua
aplicabilidade a relações privadas pela doutrina e pela jurisprudência do Brasil.

O último capítulo expõe as premissas aceitas após a investigação para o fim de


enfrentar a questão principal do trabalho, a aplicabilidade do direito fundamental ao devido
processo legal à relação entre criadores de conteúdo e redes sociais de streaming. A partir da
definição da natureza dessa relação jurídica e de seus caracteres o norte do capítulo passa a ser
a interpretação do contrato do YouTube conforme o direito fundamental ao devido processo
legal. Discute-se quais deveres relativos ao devido processo legal de podem ser extraídos, tais
como o de comunicar e motivar punições, o de oportunizar o contraditório, a vedação à
reformatio in pejus, etc. Ao final, arrolam-se medidas de compliance que as redes sociais de
streaming poderiam adotar para o fim de evitar a revisão judicial de suas decisões.

A síntese conclusiva dedica-se a compilar de modo resumido as principais conclusões


do trabalho, sem pretensão de substituir a sua leitura integral.
14

CAPÍTULO 1 – REDES SOCIAIS DE STREAMING: PODER DE


INFLUÊNCIA E CONTROLE DE CONTEÚDO

1.1. Redes sociais de “streaming”: novo local de formação da opinião pública

As redes sociais estão substituindo a televisão e o rádio como principal meio de acesso
à informação pela população (NETTO, 2019, on-line; THOMPSON, 2012, on-line). É inegável
o impacto social desta troca. Os veículos tradicionais de comunicação em massa, que até então
reinavam como influenciadores da opinião pública, estão perdendo o controle da narrativa
política e, com isso, sua capacidade de conduzir as escolhas populares. Embora ainda se discuta
o quão decisivas as redes sociais têm sido para a determinação do rumo político dos países, a
sua capacidade de influência é consenso.

Estudos sugerem que publicações nas redes sociais, inclusive de notícias falsas,
tiveram grande influência grande na eleição de Donald Trump em 2016 nos Estados Unidos
(MARS, 2018, on-line), em especial pelo grande barulho provocado nas redes por seus grupos
de apoiadores mais fanáticos, uma minoria que se fez maioria no ambiente virtual. Segundo
reportagem do El País, grupos de extrema direita, que representavam apenas 11% dos
seguidores do então candidato, foram responsáveis por cerca de 60% dos retweets de suas
publicações durante o período eleitoral. Tendência que se seguiu em outros países, como na
campanha do Brexit, nas eleições da Alemanha, França e dentre outros (GOLDZWEIG, 2018,
on-line).

No Brasil, a situação não é diferente. A campanha eleitoral televisiva perdeu seu


caráter decisivo, o que até então era impensável1. É bem provável que sem as redes sociais de
streaming2 que, como o YouTube, que permitem gratuitamente a transmissão de conteúdo a
ampla audiência e por tempo ilimitado, o resultado das eleições brasileiras de 2018 teria sido
muito diverso (BRODERICK, 2019, on-line; GHEDIN, 2019, on-line). As redes sociais são
centrais para partidos pequenos alcançarem um grande público, mesmo que com poucos

1
Sobre a perda de relevância da televisão, confira-se o infográfico "O poder do tempo de TV", que demonstra a
mudança de paradigma na propaganda eleitoral no Brasil em: O PODER do tempo de TV. O Tempo. Belo
Horizonte, on-line. 01 out. 2018. Disponível em: <https://www.otempo.com.br/infograficos/o-poder-do-tempo-
de-tv-1.2038397>. Acesso em: 10 jan. 2020.
2
Sobre streaming, confira o tópico 1.2.
15

recursos e pouco tempo de campanha na televisão (MIRANDA, 2018, on-line). Não à toa, o
sucesso do candidato Jair Bolsonaro é, em parte, atribuído a seu alcance nas mídias sociais (EL
PAÍS, 2018, on-line). Mas não só Bolsonaro confiou no poder das redes sociais para se eleger3.
Muitos membros do Poder Legislativo eleitos naquele pleito iniciaram suas carreiras no
YouTube, ou nele encontraram a sua maior fonte de exposição, como é o caso do deputado
estadual por São Paulo Arthur “Mamãe falei” do Val e dos deputados federais Joice
Hasselmann e Luis Miranda.

Após a eleição, as redes sociais passaram a ser canal oficial de comunicação do


governo e dos parlamentares. Inclusive, o Presidente da República Jair Bolsonaro utiliza-se de
livestreaming fazendo transmissões semanais em seu canal no YouTube e no Facebook. Além
de ele utilizar frequentemente sua conta no Twitter, por meio da qual inclusive divulgou alguns
criadores de conteúdo do YouTube como fonte de informação confiável (FILHO, 2018, on-
line).

Bem por isso, é certo que as redes sociais hoje detêm considerável perspectiva de
direcionar o debate político. De uma parte, pela promoção de certo tipo de conteúdo. O
YouTube, por exemplo, tem sido acusado de promover o negacionismo climático por meio da
recomendação por seu algoritmo de conteúdo "tóxico", além de permitir que youtubers
negacionistas lucrem na plataforma por meio da inserção de publicidade em seus vídeos
(PLANELLES, 2020, on-line). De outra parte, as redes sociais podem exercer sua influência
por meio da censura. O YouTube é acusado de censurar manifestações políticas dos mais
variados espectros políticos (REVISTA FÓRUM, 2019, on-line; HARRISON, 2019, on-line).

É claro que tanto poder de fogo despertou a preocupação das instituições. Na verdade,
há décadas os governos têm se preocupado com o controle do conteúdo postado na internet e a
explosão das possibilidades de criação e compartilhamento geradas pelas redes sociais só fez
aumentar a pressão sobre os provedores para que fiscalizem o que circula nas suas plataformas.
As preocupações principais – em tese – são a divulgação de ideias extremistas, a propagação

3
Em uma pesquisa recente realizada pela Câmara e pelo Senado 45% dos entrevistados afirmou ter decidido o seu
voto em período de eleições levando em consideração informações vistas em alguma rede social. As redes sociais
mais citadas como fonte dessa decisão eleitoral foram o Facebook (31%) e o Whatsapp (29%), seguidos
do YouTube (26%), do Instagram (19%) e do Twitter (10%). Ademais, para 83% dos entrevistados, o conteúdo
das redes sociais influencia muito a opinião das pessoas. Outros meios indicados como os mais utilizados como
fonte de informação foram: a televisão (50% sempre e 36% às vezes), o YouTube (49% sempre e 39% às vezes)
e o Facebook (44% sempre e 35% às vezes). Só depois disso vieram os sites de notícias, que “sempre são
consultados” por 38% dos entrevistados e são “consultados às vezes” por 46% desse pessoal. Os percentuais de
consulta à rádio (22% e 40%) e ao jornal impresso (8% e 31%) foram ainda menores, abaixo até que o do Instagram
(30% e 30%) (BARBOSA, 2019, on-line).
16

de notícias falsas (fake news4) e os danos causados a direitos autorais e direitos da


personalidade.

Um dos esforços legislativos mais incisivos nesse sentido foi a aprovação na


Alemanha em junho de 2017 da Netzwerkdurchsetzungsgesetz (algo como "lei para o reforço
da aplicação do direito nas redes"), que obriga redes sociais a:

● disponibilizar aos usuários um processo permanente, facilmente reconhecível e


diretamente acessável para denúncia de conteúdo ilícito;

● tomar nota e imediatamente checar o conteúdo das denúncias, determinando se


o conteúdo tem relevância penal;

● remover ou bloquear o acesso a conteúdo "manifestamente criminoso" dentro de


vinte e quatro horas após o recebimento da denúncia;

● remover ou bloquear o acesso a conteúdo não "manifestamente criminoso" em


até sete dias desde a reclamação. O prazo pode ser superado se a decisão
depender da falsidade de uma alegação de fato ou das circunstâncias concretas,
casos em que a rede social pode oportunizar ao usuário a oportunidade de se
defender antes da decisão. Ou ainda, se a rede social decidir entregar o poder de
decidir a uma instituição de autorregulação, desde que admita aceitar a sua
decisão. A instituição escolhida deve então decidir se o conteúdo é ilícito dentro
de sete dias.

● informar os usuários de todas as decisões tomadas e prover motivação


(BUNDESMINISTERIUMS DER JUSTIZ UND FÜR
VERBRAUCHERSCHUTZ, [2018?], on-line).

Outrossim, os provedores de redes sociais são obrigados a elaborar relatórios bienais


a respeito da gestão das denúncias de conteúdo criminoso. Os relatórios devem conter

4
Justamente visando combater as fake news em período eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral aprovou a
Resolução TSE nº 23.610/2019, com dispositivo voltado especificamente ao combate do que a Corte chama de
“desinformação na propaganda eleitoral”. Confira-se: “Art. 9º A utilização, na propaganda eleitoral, de qualquer
modalidade de conteúdo, inclusive veiculado por terceiros, pressupõe que o candidato, o partido ou a coligação
tenha verificado a presença de elementos que permitam concluir, com razoável segurança, pela
fidedignidade da informação, sujeitando-se os responsáveis ao disposto no art. 58 da Lei nº 9.504/1997,
sem prejuízo de eventual responsabilidade penal”.
17

informações a respeito do volume de denúncias, das práticas decisórias e das equipes


responsáveis por processar as denúncias. Esses relatórios devem ser publicados na internet.

A lei também permite que qualquer pessoa que tenha tido os seus direitos da
personalidade violados por crimes cometidos nas redes sociais poderá requerer aos seus
provedores que forneçam informações sobre quem os praticou. Todavia, a entrega destas
informações é condicionada a reserva de jurisdição.

A NetzDG tem sido objeto de críticas, justamente por obrigar a própria rede social a
decidir sobre o caráter criminoso de um conteúdo, transferindo-lhe competência antes privativa
dos tribunais, constituindo uma espécie de censura prévia privada que ofende a Constituição
(MÜLLER-FRANKEN, p. 1-14 apud CUEVA, [2018], p. 88). A lei configuraria, assim, uma
forma de terceirização/delegação inconstitucional de atividade típica do Estado, a quem
incumbe o monopólio da repressão de ilícitos. (Cf. CUEVA, [2018], p. 88).

O fato é que, no afã de controlar o discurso de ódio, o Parlamento alemão acabou


conferindo maior poder de censura às redes sociais, que inclusive agora será feita com base em
um poder conferido pela lei e não necessariamente pelos seus termos de uso.

Trilha o mesmo caminho o art. 13 da Diretriz de Direitos Autorais da União Europeia


aprovada pelo Parlamento Europeu em março de 2019:

Artigo 13.º
Utilização de conteúdos protegidos por prestadores de serviços da sociedade da
informação que armazenam e permitem o acesso a grandes quantidades de obras e
outro material protegido carregados pelos seus utilizadores
1.Os prestadores de serviços da sociedade da informação que armazenam e facultam
ao público acesso a grandes quantidades de obras ou outro material protegido
carregados pelos seus utilizadores devem, em cooperação com os titulares de direitos,
adotar medidas que assegurem o funcionamento dos acordos celebrados com os
titulares de direitos relativos à utilização das suas obras ou outro material protegido
ou que impeçam a colocação à disposição nos seus serviços de obras ou outro material
protegido identificados pelos titulares de direitos através da cooperação com os
prestadores de serviços. Essas medidas, tais como o uso de tecnologias efetivas de
reconhecimento de conteúdos, devem ser adequadas e proporcionadas. Os prestadores
de serviços devem facultar aos titulares de direitos informações adequadas sobre o
funcionamento e a implantação das medidas, bem como, se for caso disso, sobre o
reconhecimento e a utilização das obras e outro material protegido.
2.Os Estados-Membros devem assegurar que os prestadores de serviços a que se refere
o n. º 1 estabelecem mecanismos de reclamação e recurso para os utilizadores, em
caso de litígio sobre a aplicação das medidas previstas no n. º 1.
3.Os Estados-Membros devem favorecer, sempre que adequado, a cooperação entre
os prestadores de serviços da sociedade da informação e os titulares de direitos através
de diálogos entre as partes interessadas com vista a definir melhores práticas, tais
como tecnologias adequadas e proporcionadas de reconhecimento de conteúdos,
tendo em conta, entre outros, a natureza dos serviços, a disponibilidade das
tecnologias e a sua eficácia à luz da evolução tecnológica.
18

Como se vê, a diretiva responsabiliza prestadores de serviços como as redes sociais de


streaming como o YouTube e a Twitch5, que armazenam e permitem o acesso a grandes
quantidades de obras e outros materiais protegidos upados pelos seus utilizadores, por violações
a direitos autorais, delas exigindo a implementação de tecnologias preventivas que possam
reconhecer automaticamente o conteúdo armazenado reputado violador de direitos autorais, os
chamados “filtros de upload”. Quer dizer, não só elas devem decidir sozinhas sobre violações
a direitos autorais, como também de modo genérico e automatizado. Segundo Susan Wojcicki,
presidente do YouTube, seus algoritmos ainda não são capazes de distinguir entre paródias e
memes, que são usos permitidos de propriedade autoral e o que a legislação visa excluir, de
modo que há sério risco de dano à liberdade de expressão na internet (HALE, 2019, on-line).

Também nos Estados Unidos a lei confere diretamente poder de censurar conteúdo às
redes sociais. A Communications Decency Act, uma lei criada em 1996 para controlar a
pornografia digital, garante aos provedores a possibilidade de censurar conteúdo qualificado
como “lewd, lascivious, filthy, excessively violent, harassing or otherwise objectionable” esteja
ou não o conteúdo protegido pela Constituição6.

O legislador brasileiro parece ter andado melhor, pois não conferiu expressamente
nenhum poder do gênero aos provedores, além de no expresso intuito de proteger a liberdade
de expressão, ter restringido a sua responsabilidade pelo conteúdo postado por terceiros à
omissão na sua remoção após ordem judicial específica que aponte o conteúdo infringente; de
modo que a qualificação do conteúdo como ilícito segue reservada Judiciário (arts. 18 e 19 do
Marco Civil da Internet). Prevê ainda o §2º do art. 19 que a responsabilidade dos provedores
por infrações a direitos de autor ou conexos depende de previsão legal específica, que deverá
respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição
Federal.

5
A Twitch (também chamada de Twittch.tv) é a maior plataforma de livestreaming existente atualmente. Embora
oferte diversas espécies de conteúdo, seu principal foco é a transmissão ao vivo de jogos de videogame e
competições de esporte eletrônico (e-sports). Seus números também impressionam. Seus espectadores assistiram
a 9,3 bilhões de horas de conteúdo em 2018 (VENTUREBEAT, 2019, on-line). Juntos, seus usuários ativos
diariamente somam 15 milhões (INFLUENCER MARKETING HUB, 2019, on-line). Em 2014, a Twitch foi
comprada pela Amazon por 970 milhões de dólares.
6
Confira no tópico 6.3.1.1 a discussão existente nos Estados Unidos a respeito da caracterização da censura
praticada pelas redes sociais com base na CDA como state action para fins de definir a sua vinculação a direitos
fundamentais.
19

A censura promovida autonomamente por redes sociais é levada a sério no Brasil tendo
motivado a abertura pelo Ministério Público Federal dos procedimentos preparatórios nº
1.18.000.001850/2018– 72 e 1.18.000.002245/2018-19, bem como do inquérito civil público
n° 1.18.000.002758/2017-49, que trataram de ações ou omissões ilícitas no controle de
conteúdo postado, suspeitas de terem sido discriminatórias, por motivação de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas.

As investigações culminaram com oferecimento de representação à Procuradoria Geral


da República em desfavor do Facebook, Whatsapp, Twitter e YouTube (Ofício nº.
4264/MPF/PRGO/3ºONTC), onde se afirma que:

Admitir-se que provedores de aplicações de internet, nacionais ou


estrangeiros, proprietários de redes sociais, por ato próprio, possam cometer algum
tipo de restrição de alcance, censura, bloqueio de acesso e banimento etc., contra
usuários brasileiros em geral, e, principalmente, a candidatos, partidos, coligações,
seus apoiadores e cidadãos, em decorrência de comunicação de natureza política,
durante a disputa eleitoral, significa: violentar a soberania nacional, a cidadania
brasileira, o pluralismo político; vilipendiar as liberdades humanas de manifestação
de pensamento, ideias e informações; degradar sobremaneira o Estado Democrático
de Direito. (BRASIL 2018, p. 13)

Com efeito, se sem o recurso a estas plataformas os atores políticos não obtêm o
mesmo alcance e, por conseguinte a mesma capacidade de influência sobre os discursos
circulantes na esfera pública, torna-se possível afirmar que a capacidade de as acessar torna-se
um sustentáculo da própria liberdade de expressão na dimensão assumida neste contexto
histórico. Ainda mais considerando que o mercado dos provedores de aplicações, dentre os
quais se incluem as redes sociais de streaming, tende à formação de monopólios (Cf. SARTOR,
2017). Afinal, quais sites de streaming de vídeos fazem frente ao YouTube? Que alternativa
restaria ao usuário que tem sua conta suspensa por tempo indeterminado nesta plataforma para
continuar seu trabalho?

Sem embargo, também o exercício do direito fundamental à livre iniciativa em sua


eficácia plena vê-se ameaçado pela atuação cesarista das redes sociais de streaming. Youtuber
e streamer são termos que hoje nomeiam profissões. Há um sem número de pessoas
dependentes economicamente de sua popularidade nestas plataformas que poderiam ser
imensamente lesadas por uma punição injusta.
20

Também não podem ser ignorados os impactos concorrenciais decorrentes de uma


decisão do YouTube de impedir a veiculação de conteúdo de uma determinada empresa.
Perante os seus concorrentes o seu alcance seria significativamente menor.

Considerando, portanto, essa relevante função política e econômica que as redes


sociais têm exercido na democracias contemporâneas, que deriva do fato de serem um meio de
divulgação e controle de ideias sem precedentes em termos de eficiência, aliada à sua
capacidade de inviabilizar o exercício de direitos fundamentais em sua dimensão atual de
eficácia, é importante discutir se elas não estariam sujeitas a obrigações distintas dos demais
atores privados no que toca à garantia das liberdades constitucionais. Em especial, se seriam
obrigadas a observar o devido processo legal quando removem conteúdo postado ou suspendem
seus usuários, como limitante da arbitrariedade no exercício do poder.

Por isso o objetivo principal desta pesquisa é definir se o direito fundamental ao devido
processo legal é invocável em sua eficácia horizontal na relação privada entre os criadores de
conteúdo e as redes sociais de streaming onde eles publicam seus vídeos fazem as suas
transmissões. Indaga-se dos desafios que a aplicação de um direito fundamental entre
particulares pressupõe, em especial a justificativa e a configuração de seu conteúdo, visto terem
sido originalmente concebidos para limitar o poder do Estado.

Concluindo-se pela oponibilidade do direito fundamental ao devido processo legal


nesta relação privada, pretende-se delinear o conteúdo mínimo deste direito, mais
especificamente em sua dimensão processual, mas a dimensão substancial será tratada na
medida do necessário. Questiona-se, assim, se os criadores de conteúdos poderiam exigir das
redes sociais de streaming, inclusive pela via judicial: a definição clara e transparente em seus
Termos de Serviço e/ou Diretrizes da Comunidade das condutas passíveis de intervenção pela
plataforma, em especial a remoção de conteúdo e a suspensão e o banimento de usuários; a
motivação das punições; o respeito ao contraditório prévio ou posterior; a observância do
postulado da proporcionalidade; dentre outras garantias relativas ao devido processo legal.

A análise terá por pano de fundo os Termos de Serviço e as Diretrizes da Comunidade


do YouTube, que hoje é a maior rede social de streaming do mundo e a sua interpretação
conforme a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional pertinente.

Ao final, pretende-se arrolar medidas de compliance que as redes sociais de streaming


poderiam adotar para evitar a anulação de suas sanções e o eventual pagamento de indenizações
por danos materiais e morais.
21

Para uma melhor compreensão do tema convém explicar brevemente o contexto fático
em que se dá a relação jurídica discutida, entre os criadores de conteúdo e as plataformas de
streaming.

1.2. O que é “streaming”?

Duas são as formas conhecidas de se baixar conteúdo da internet: por download


progressivo ou por streaming.

Download progressivo (progressive download) é a tecnologia tradicional para baixar


conteúdo da internet, presente desde os primórdios da rede. Neste método, após o usuário dar
o comando de download ao servidor onde estão hospedados os arquivos que deseja acessar,
estes vão sendo transmitidos gradualmente para o seu dispositivo, sendo que somente poderão
ser acessados após o término do download (COSTELLO, 2019).

Os apps que utilizamos em nossos celulares, como o Facebook e o Whatsapp, são


baixados por download progressivo. Não é possível abrir e usar o app do Whatsapp antes que
ele tenha sido completamente baixado para o dispositivo.

Por sua vez, streaming é uma tecnologia mais moderna utilizada para a transmissão de
dados via internet – em especial, som e imagem –, por meio de um fluxo estável e contínuo,
que permite ao usuário acessar o conteúdo que deseja quase que imediatamente, sem que antes
seja necessário o seu download integral (COSTELLO, 2019, on-line).

Ao contrário do que ocorre com o download progressivo, por streaming os arquivos


são baixados ao mesmo tempo em que são executados, de modo que o usuário pode assistir ao
vídeo ou escutar à música que deseja sem precisar esperar o conteúdo ser totalmente transferido
para o seu dispositivo (NETSHOW, 2017, on-line).

Streaming é a tecnologia utilizada por YouTube, Netflix, Spotify e Deezer para ofertar
vídeos, música e publicidade. Ao clicarmos em um vídeo no YouTube a transmissão se inicia
imediatamente. Conforme o vídeo avança os dados vão sendo baixados pouco a pouco, ao
mesmo tempo em que são transmitidos na tela. Não é necessário que o vídeo inteiro seja baixado
para o nosso dispositivo. Quando fechamos o vídeo, ele some de nosso dispositivo. Um novo
acesso somente é possível abrindo novamente o link a partir do qual ele é streamado.
22

Já livestreaming é o uso de streaming especificamente para a transmissão de conteúdo


em tempo real (COSTELLO, 2019, on-line).

Em livestreaming os dados são transmitidos em tempo real aos dispositivos conectados


e somente são acessíveis no momento em que transmitidos. Se o usuário deixa de acompanhar
uma transmissão, ou se o seu dispositivo se desconecta da internet enquanto ele está assistindo,
não é possível acessar o conteúdo perdido, salvo se uma gravação for disponibilizada mais tarde
(NETSHOW, 2017, on-line). Não é como assistir a um vídeo no YouTube, onde podemos
acelerar o vídeo, avançar ou retroceder. Livestreaming é como assistir TV ao vivo, mas com
mais maior possibilidade de interação. Bolsonaro faz uso da tecnologia de livestreaming em
suas transmissões semanais em tempo real.

1.3. O YouTube: a maior rede social de “streaming” do mundo

O YouTube é atualmente a maior rede social de streaming do mundo. Para se ter uma
ideia de sua grandeza, o YouTube possui 1,9 bilhão de usuários (STATISTA, 2019, on-line).
Todos os dias estes usuários assistem juntos a 1 bilhão de horas de vídeos (YOUTUBE, 2019e,
on-line). Cerca de 500 horas de vídeo são upadas para o YouTube a cada minuto no mundo
(TUBEFILTER, 2019, on-line).

No YouTube os vídeos são postados dentro de canais exclusivos criados por cada
usuário. Nestes canais, salvo anúncios de publicidade, o usuário tem controle sobre o conteúdo
transmitido. Ele pode postar conteúdo próprio, ou de terceiros, desde que por eles autorizado.

Qualquer pessoa pode criar o seu próprio canal no YouTube e começar a


postar/transmitir seu conteúdo. Bastam um dispositivo com acesso à Internet e a criação de uma
conta nas plataformas. A criação da conta prescinde da identificação do usuário, que, inclusive
pode criar contas e canais diversos, sob diferentes nomes. Há um favorecimento do anonimato.

Igualmente, os vídeos postados no YouTube podem ser acompanhados por qualquer


pessoa, mesmo que sequer possua uma conta nas plataformas.

Mas a liberdade dos criadores de conteúdo não é absoluta. Para utilizar a plataforma
disponibilizada pelo YouTube, os usuários devem aderir obrigatoriamente aos Termos de
23

Serviço e às Diretrizes da Comunidade e à Política de Privacidade e de Direitos Autorais


formulados pela rede social.

Conforme as “Diretrizes da Comunidade “do YouTube são vedados vídeos que


contenham: nudez ou conteúdo pornográfico ou sexualmente explícito; conteúdo prejudicial ou
perigoso; conteúdo de incitação ao ódio; conteúdo explícito ou violento; assédio e bullying
virtual; spam, metadados enganosos e golpes; ameaças; desrespeito a direitos autorais; violação
de privacidade; falsificação de identidade; conteúdo que coloque o bem-estar emocional ou
físico de menores em risco (YOUTUBE, 2019b, on-line).

Os Termos de Serviço do YouTube também definem que os usuários que violam suas
regras estão sujeitos às sanções ali estabelecidas unilateralmente que varia, entre a remoção do
conteúdo infringente, advertências, suspensões, o encerramento de contas e/ou a rescisão de
canais (YOUTUBE, 2019, on-line).

Em sua versão anterior os Termos de Serviço do YouTube eram bastante ditatoriais,


prevendo inclusive a remoção de conteúdo e o cancelamento de contas sem aviso prévio, a seu
exclusivo critério7.Todavia, eles passaram por uma alteração relevante em 10 de dezembro de
2009 que ampliou as garantias dos criadores de conteúdo contra punições, mas também gerou
polêmica, por exemplo pela parente possibilidade de remoção de canais “não comercialmente
viáveis”. Isto será analisado em detalhe no último capítulo.

1.4. Os criadores de conteúdo

Criador de conteúdo (em inglês, content creator) é o termo utilizado para designar o
profissional que vive de produzir conteúdo digital para ser consumido na internet; em especial
redes sociais como as de streaming.

7
“7.B – O YouTube se reserva o direito de decidir se o Conteúdo é apropriado e obedece a estes Termos de Serviço
no que diz respeito a infrações outras que não as infrações ou violações das leis de direitos autorais, como por
exemplo, mas sem se limitar, à pornografia, material obsceno ou difamatório, (inclusive difamação, calúnia ou
injúria), ou excessivamente longo. O YouTube poderá a qualquer momento, sem aviso prévio e a seu exclusivo
critério, remover tais Conteúdos e/ou cancelar uma conta de Usuário por enviar tais materiais que violam os
Termos de Serviço”. (YOUTUBE, 2019c, on-line)
24

Os youtubers do YouTube os streamers8 da Twitch são criadores de conteúdo. Felipe


Neto, Whindersson Nunes, Pewdiepie, são alguns dos criadores de conteúdo mais famosos do
YouTube; YoDa e Ninja são, respectivamente, os maiores criadores de conteúdo na Twitch, do
Brasil e do mundo.

A tecnologia de streaming revolucionou a produção e o consumo de conteúdo digital.


O fato de o usuário não precisar mais baixar antes todo o conteúdo que deseja consumir permitiu
o acesso instantâneo a vastas bibliotecas de mídia. Temos à disposição no Deezer toda a
discografia de nossa banda preferida imediatamente ao alcance dos dedos. Se o Deezer não tem,
procuramos no Spotify, ou no Apple Music. Abrindo o Popcorn Time podemos encontrar juntos
todos os filmes de Hitchcock, Fellini e Herzog, com diversas resoluções e legendas (mesmo
contra os interesses dos titulares de seus direitos de exploração).

De outra parte, esse sensível incremento na facilidade de acesso à mídia não veio
acompanhado de uma maior disponibilidade de tempo para consumi-lo. Pelo contrário, na vida
moderna e digitalizada o tempo é cada vez mais escasso. Por isso há uma feroz disputa na
internet pela atenção do usuário. Se não gostamos do que traz uma série da Netflix, em segundos
já abrimos outra. Se não gostamos de uma música da playlist do Spotify, saltamos para a
próxima ou voltamos para a anterior. O usuário só assiste e ouve ao que quer, quando quer. Não
à toa o streaming tem afetado tanto a audiência da televisão e o número de assinaturas da TV à
cabo (CARR, 2014, on-line).

Os que produzem conteúdo digital estão constantemente desafiados pela veloz e


imprevisível flutuação do interesse do público, devendo estar sempre atentos às tendências de
consumo sinalizadas pelos tópicos mais acessados (trending topics), adequando seu produto ao
que quer o público hoje, de preferência agora.

Por toda essa pressa no consumir e a consequente velocidade com que as coisas na
internet se tornam desejáveis ou indesejáveis, relevantes ou relevantes, justas ou injustas, um
dia fora desse fluxo pode significar a “morte” de um criador de conteúdo. Imaginemos um
podcaster que dedica todo o seu conteúdo à política vendo-se impedido de acessar a plataforma
por onde divulga seu trabalho justamente na semana do segundo turno das eleições
presidenciais.

8
Os usuários que realizam transmissões ao vivo com frequência são chamados de livestreamers ou, como é mais
comum, apenas de streamers.
25

Daí a relevância da proteção de sua atividade contra a atuação arbitrária das redes
sociais, que implica não somente a afetação de sua liberdade de expressão, mas também de sua
possibilidade de participação política e de exercício de uma atividade econômica. O que
justificaria a exigência de oposição à rede social de garantias relativas ao devido processo legal,
como a motivação das punições e a oportunização de defesa.
26

CAPÍTULO 2 – BASES CONCEITUAIS DA EFICÁCIA


HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONSTITUIÇÃO
COMO NORMA JURÍDICA E DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS

2.1. Considerações introdutórias

A discussão sobre a vinculação de particulares aos direitos fundamentais tem como


seus antecedentes teóricos o reconhecimento da juridicidade da Constituição, noção que não
lhe é congênita, e a apuração da chamada dimensão objetiva dos direitos fundamentais, ligada
à sua compreensão como um conjunto de valores objetivos, dotado de uma eficácia jurídica
irradiante, que atinge todas os ramos do direito, influenciando relações que não sofreriam sua
incidência caso visualizados como meros direitos públicos subjetivos.

Este é o tema explorado no presente capítulo, que busca apresentar o trajeto histórico
que ambos os conceitos compartilham, visto serem correlatos.

A exposição parte da vitória da burguesia na Revolução Francesa, cujo paradigma


jusfilosófico consagrou a visão liberal dos direitos fundamentais como direitos de defesa
invocáveis exclusivamente em face do Estado, orientados a impedir sua intervenção em
negócios privados.

A argumentação passa então pelo derruimento do Estado Liberal com o agravamento


dos conflitos distributivos e a necessidade de tomada de posição dos Poderes Públicos diante
da desestabilização do sistema econômico capitalista, que fez surgir o Estado Social. Este,
caracterizado por uma nova gama de tarefas estatais fixada em nível constitucional, que fez
revolucionar não só a compreensão das funções do Estado perante o meio social, como também
do caráter com que as normas de direitos fundamentais deveriam ser interpretadas.

Na sequência, o capítulo aborda o resgate do direito natural em função da premente


necessidade de retorno do direito legislado a valores morais como condicionantes de sua
legalidade, decorrência do asco ao positivismo jurídico gerado por sua associação ao Terceiro
Reich e o Holocausto, que culminou com o reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos
fundamentais: a sua concepção como fórmulas condensantes dos valores essenciais da
27

comunidade que, porquanto versadas em norma, constituem a sua base jurídica, de modo que
seus efeitos se irradiam necessariamente sobre todas as relações ocorridas em seu seio,
envolvendo ou não o Estado.

A teoria dos efeitos irradiantes dos direitos fundamentais (Ausstrahlungseffekte) e a


dos deveres de proteção (Schutzpflichten) são apresentadas como frutos da evolução da
compreensão de sua dimensão objetiva, que fomentam a intensificação da intervenção estatal
em âmbito particular e conformam a criação, a interpretação, a integração e a aplicação do
direito privado.

Por fim, o capítulo aborda o fenômeno da constitucionalização do direito privado


(direito civil constitucional) e como esta se revela no Brasil a partir das disposições da
Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002.

Pelas limitações físicas deste trabalho, sem embargo da importância histórica e


dogmática do direito constitucional da common law, o capítulo se concentra no reconhecimento
da juridicidade do texto constitucional e da eficácia dos direitos fundamentais tal como se
desenvolveu no panorama do sistema-românico germânico, tradição do qual o direito brasileiro
é herdeiro.

2.2. A Constituição como norma jurídica

O ordenamento jurídico é um sistema ordenado logicamente como uma pirâmide


escalonada cujo vértice é ocupado pela Constituição como seu fundamento de validade. É a
construção teórica que se tornou tão popular com as obras de Hans Kelsen ao ponto de soar
como um pleonasmo.

Mas, se hoje soa quase redundante a afirmação da submissão de todos os campos do


direito à constituição, o fato é que esta não era a compreensão em voga até a metade do século
XX.

No paradigma do Estado Liberal, que prevaleceu durante o século XIX, a partir da


Revolução Francesa, o direito privado é que ocupava o centro gravitacional do ordenamento
jurídico, operando como fonte independente e indivisível de disciplina das relações privadas,
28

então área alheia à incidência das disposições constitucionais. Estas se voltavam, na verdade, a
manter o Estado afastado de intervir nas atividades negociais.

Não poderia ser diferente, primeiro, porque, em razão da ausência de uma jurisdição
constitucional, a Constituição era então compreendida, em especial no que tocava à esfera
jurídico-privada, como mera carta declaratória de diretrizes políticas, desprovida de eficácia
jurídica imediata, cujo programa dependia de mediação do legislador (interpositio legislatoris)
para a produção de efeitos concretos (SARMENTO, 2010, p. 74). Reconheciam-se como
dotados de eficácia imediata apenas os direitos invocáveis em face do Estado, individuais e
políticos, bem como as disposições normativas que tratavam de sua estrutura orgânica
(SARMENTO, 2010, p. 74).

Segundo, porque o século XIX foi a Era das Codificações, cujos principais expoentes
foram o Código Civil Francês de 1804 e o Código Civil Alemão de 1900, gerados justamente
como continentes normativos, unitários e sistematizados, com pretensão de substituir as regras
consuetudinárias que se acumularam durante o período medieval9 na regulação exaustiva das
relações privadas, e, assim, eliminar as graves dificuldades que a pluralidade e o fracionamento
do direito, “fruto do arbítrio da história”, causavam na prática jurídica (BOBBIO, 1995, p. 54-
65). Daí gozarem, na esfera privada, de supremacia mesmo frente à constituição. Esta,
inclusive, a ótica sob a qual foi concebido o Código Civil Brasileiro de 1916 (SARMENTO,
2010, p. 99).

Na verdade, sequer se vislumbrava a necessidade de se recorrer à Constituição para


buscar a regulação adequada de relações privadas, visto que os códigos eram vistos como o
autêntico baluarte da liberdade burguesa (HESSE, 1995, p. 37). O direito privado era o direito
constitutivo da sociedade burguesa, tendo o direito constitucional uma posição secundária
frente a ele, inclusive na perspectiva material (HESSE, 1995, p. 38).

9
Confira-se a este respeito a manifestação de Thibaut defendendo a necessidade de codificação do direito
consuetudinário alemão, citada por Norberto Bobbio: “Os alemães estão há muitos séculos paralisados, oprimidos,
separados uns dos outros por causa de um labirinto de costumes heterogêneos, em parte irracionais e perniciosos.
Justamente agora se apresenta uma ocasião inesperadamente favorável para a reforma do direito civil como não se
apresente mais em mil anos. [...]. Ninguém que queira ser imparcial pode negar que nas instituições francesas estão
encerradas muitas coisas boas e que o Código e as discussões e os discursos a respeito dele, assim como o código
prussiano e o austríaco, trouxeram para nossa filosofia mais vitalidade e arte civilista que as acaloradas discussões
dos nossos tratados sobre direito natural. Se agora os príncipes alemães concordassem com a redação de um código
geral alemão civil, penal e processual empregasse por apenas cinco anos aquilo que custa um meio regimento de
soldados, não poderíamos deixar de receber algo de notável e sólido. A contribuição de um tal código seria
incalculável” (BOBBIO, 1995, p. 53).
29

A tônica dessas codificações era o patrimonialismo e o individualismo, notas


fundamentais do liberalismo-burguês, promovido pela classe recém ascendente, que havia
tomado o poder derrubando o Antigo Regime.

Assegurando sua nova posição social contra o retorno do Absolutismo, a burguesia


passou a se valer do direito positivo como fonte de legitimação de poder fundada em um novo
jusnaturalismo de viés racionalista, tipicamente iluminista. Segundo esse movimento histórico,
na síntese formulada por Bobbio, que o denomina jusnaturalismo racionalista estatal, o direito
é, ao mesmo tempo, expressão da autoridade e da razão. É autoridade, pois que ineficaz
enquanto não posto e reforçado pelo Estado. De outra parte, o direito posto pelo Estado não é
reflexo de puro exercício arbitrário de poder, mas sim produto derivado da própria razão (1995,
p. 54). Neste sentido o projeto preliminar do Código Civil Francês, depois suprimido da redação
definitiva, declarava: “Existe um direito universal e imutável, fonte de todas as leis positivas:
não é outro senão a razão natural, visto esta governar todos os homens”.

O positivismo jurídico, todavia, a corrente de filosofia do direito que acabou se


tornando dominante à época, embora tenha raízes nessa vertente do jusnaturalismo, na medida
em que identifica o direito como fruto da razão tornado obrigatório pelo Estado, dele acabou se
distanciando, na medida em que passou a resumir o fenômeno jurídico ao direito legislado,
rejeitando como critério de validade qualquer proposição valorativa não versada em norma
positiva.

O foco da produção deste direito descoberto pela razão e posto pela autoridade do
Estado era o trabalho do Poder Legislativo, que, dominado por representantes da burguesia,
monopolizava a produção jurídica (BOBBIO, 1995, p. 38), atuando como polo gerador de
conjuntos unitários de regras racionais, imutáveis (SARMENTO, 2010, p. 345), de conteúdo
semântico denso, porém gerais e abstratas, e de aparente neutralidade axiológica, conquanto
orientadas pelos valores reputados essenciais para a consolidação do domínio da nova classe
reinante.

A intenção era a de que os códigos criados representassem o núcleo do sistema de


direito privado, servindo de lubrificante das engrenagens do sistema econômico, pela promoção
de seus fundamentos: o direito de propriedade, a liberdade contratual pautada na autonomia da
vontade e na igualdade formal entre os homens, e a segurança jurídica. Esta última, alcançada
por meio da estabilização da regulação das relações privadas, que favorecia a previsibilidade
da conduta das partes, salvaguardando-se a expectativa na força obrigatória dos contratos (pacta
30

sund servanda). Esperava-se, assim, criar-se um mercado autorregulado, imune e independente


da intervenção estatal.

Como afirma Quartim de Moraes, citando Polanyi, guiado pela burguesia, o Estado
Liberal:

[...] por meio da concepção de lei ‘geral e abstrata’ portadora de uma igualdade
estritamente formal e do abstencionismo econômico, foi capaz de atribuir segurança
jurídica às trocas mercantis, gerando um mercado de trabalho repleto de mão de obra
barata, assegurando à iniciativa privada a realização de qualquer atividade
potencialmente lucrativa (1957, p. 73 apud 2014, p. 272).

Outra razão fundamental para a falta de reconhecimento da eficácia normativa da


Constituição neste contexto histórico, é o fato de que o Estado recém instalado tinha como
marco uma visão rígida da separação entre os poderes, inspirada no pensamento montesquiano.
As funções do Estado Liberal se dividiam de modo estanque: o Legislativo criava as normas, o
Executivo as implementava, e o Judiciário as aplicava aos casos concretos sem interpretá-las.

É que, em sendo o papel do Judiciário o de aplicar a lei, Poder na França ainda ocupado
por membros ligados ao Ancién Regime, havia a necessidade de se garantir que também a
atividade judicante fosse fiel aos valores burgueses condensados no Código Civil. Daí a
promoção da vertente da hermenêutica jurídica que pregava a adstrição do intérprete ao
conteúdo literal da lei e à vontade hipotética do legislador, representada na ideia de que o juiz
deveria ser apenas la bouche de la loi: a Escola da Exegese. Bobbio resume o entendimento
vigorante à época: “a vontade do legislador é expressa de modo seguro e completo e aos
operadores do direito basta ater-se ao ditado pela autoridade soberana” (1995, p. 38).

Marinoni explica a razão histórica por detrás dessa concepção:

[...]os magistrados, na França do Antigo Regime, eram fiéis escudeiros do status quo.
Exerciam o poder para impedir quaisquer avanços que pudessem comprometer os
interesses do rei e dos senhores feudais. Daí a revolução francesa ter negado o
Judiciário, como se vê na célebre frase de Montesquieu – os juízes devem se
comportar como seres inanimados, limitando-se a pronunciar as exatas palavras da lei
(MARINONI, 2016b, on-line).

O avanço sobre os poderes criativos dos juízes foi a ponto de a Lei Revolucionária de
1790 tê-los proibido de interpretar a lei, obrigando-os, no caso de dúvida, a recorrerem a uma
comissão formada por legisladores. Igualmente, a função da Corte de Cassação, instituída no
mesmo ano, objetivava cassar as decisões que destoassem da lei (MARINONI, 2016b, on-line).
31

Percebe-se então que, firmada no ideal de uma separação inflexível entre os Poderes,
a Revolução Francesa colocou o Legislativo e o Judiciário em polos opostos. A solução liberal
para o conflito entre legisladores e juízes foi a opção pela onipotência do legislador, titular
exclusivo da produção jurídica (BOBBIO, 1995, p. 38).

Destarte, era natural a aversão do acesso dos juízes à textura tipicamente aberta do
texto constitucional, um convite ao exercício de sua indesejada criatividade.

Assim é que a Constituição não condicionava a validade, nem a interpretação das


normas de direito privado (HESSE, 1995, p. 35-36) e muito menos era possível extrair-se dela
diretamente a regulação direta das relações entre particulares. Tampouco se poderia falar de
uma competência processual dos juízes para examinar a compatibilidade de leis aos direitos
fundamentais previsto na Constituição, uma função de controle material (HESSE, 1995, p. 37).

Reitere-se, sem embargo, que se reconhecia o caráter vinculante das normas ditas
clássicas, aquelas que definem organização do Estado e aqueles que demarcavam uma esfera
de direitos individuais e políticos do cidadão em face dele (SARMENTO, 2010, p. 74). Mas
estes eram direcionados precipuamente contra a Administração, não ao Legislador, e tampouco
eram acessíveis ao juiz (HESSE, 1995, p. 37).

A compreensão do caráter vinculante das normas constitucionais então começou a


mudar, em primeiro lugar, na prática, antes mesmo da virada teórica que culminou com o
reconhecimento de eficácia normativa a toda a Constituição, a partir da adoção generalizada de
instrumentos de controle de constitucionalidade que cristalizaram a sua compreensão como
norma jurídica conformadora de todo o ordenamento e não apenas como diretriz política de
caráter meramente programático (SARMENTO, 2010, p. 76). Assim é que se passou, do Estado
de Direito, ao Estado Constitucional, em que a lei ordinária vê-se subordinada a um estrato
superior que lhe condiciona a validade (ZAGREBELSKY, 1992, p. 39 apud SARMENTO,
2010, p. 76). Concepção que enfim deslocou a Constituição para o núcleo da ordem jurídica,
submetendo inclusive o direito privado aos seus ditames (SARMENTO, 2010, p. 77).

No entanto, neste momento inicial, as normas consideradas juridicamente eficazes e,


portanto, passíveis de serem utilizadas como paradigma para o controle de constitucionalidade
das leis ainda eram apenas aquelas que definiam a estrutura do Estado e as que limitavam a sua
esfera de ação (SARMENTO, 2010, p. 76). Neste sentido, destaca Ana Prata, que “todas as
normas que excedessem o estatuto organizatório do estado e o elenco dos direitos assegurados
aos cidadãos contra este tinham um cariz não preceptivo, traduzindo-se num conjunto de
32

declarações políticas de princípio sem força vinculativa” (1982, p. 123 apud SARMENTO,
2010, p. 76).

Contudo, paralelamente a esta noção de submissão das leis à Constituição, emergia o


Estado Social, que veio substituir o Estado Liberal, e cujos papéis determinados em nível
constitucional foram redefinidos em relação ao modelo anterior. Além dos direitos chamados
de “clássicos”, uma nova dimensão de direitos fundamentais foi concebida. Como bem resume
Sarmento, com seu advento:

[...] o Estado e o Direito passaram a exercer novas funções prestacionais, de modo


que passou a se consolidar o entendimento de que os direitos fundamentais não devem
limitar seu raio de ação às relações políticas, entre governantes e governados,
incidindo também em outros campos, como o mercado, as relações de trabalho e a
família” (2010, p. 78).

Eis, portanto, um marco fundamental da intervenção estatal direta nos negócios


privados a partir da Constituição.

É que, com o progresso do sistema econômico capitalista, especialmente com a


Revolução Industrial, que, ao mesmo tempo, representou tanto avanços na geração quanto na
sua concentração de riqueza, houve sério agravamento da desigualdade material entre os
cidadãos, o que gerou marcantes tensões sociais provenientes especialmente da oprimida classe
trabalhadora.

Duas noções importantíssimas para a virada do direito constitucional se desenvolviam:


a de que a desigualdade de fato é obstáculo ao exercício da liberdade, de modo que a sua
proclamação formal não basta à sua garantia; e a de que, contrariando a concepção que os criou,
o Estado não é o único inimigo dos direitos fundamentais, cabendo-lhe, não só se abster de
violá-los, como também intervir em face da conduta de atores privados, em especial aqueles
dotados de algum poder social ou econômico que insistam em sua violação (V. A. SILVA,
2011, p. 18).

O cenário de predomínio das codificações burguesas individualistas então começa


então a se alterar após a Primeira Guerra Mundial. Quando já consolidada a noção de que as
codificações civis, longe da pregada racionalidade pura e neutralidade frente a valores, eram
antes orientadas à manutenção dos privilégios burgueses, permitindo a continuidade da
exploração dos mais fracos e a acumulação do lucro gerado pela atividade industrial, enquanto
seu risco era absorvido pelo proletariado.
33

Vai colapsando, assim, no nível político, o postulado liberal proposto por Adam Smith
de que, a somatória da persecução egoística da satisfação de interesses individuais, dada a sua
inquestionável racionalidade, bastaria, por si, só ao atingimento do bem-estar coletivo.

Assim é que, enquanto as constituições liberais conferiam ao Estado basicamente o


dever de não intervir no livre exercício de direitos individuais, o que seria suficiente para o
atendimento das demandas sociais; em sentido contrário, as constituições que demarcam o
Estado Social, partem do reconhecimento da insuficiência da livre persecução da satisfação de
interesses egoísticos para a solução de conflitos distributivos, para conferir-lhe a tarefa de
corrigir ativamente a hiper-concentração da riqueza gerada pelo sistema econômico por meio
da positivação de direitos sociais e econômicos que envolvem a intervenção estatal em relações
privadas, em especial as relações de trabalho, bem como que conferem direitos subjetivos
exercíveis em face dos poderes públicos cuja efetivação não mais se satisfaz com sua abstenção,
mas que demandam a entrega de prestações concretas.

Como resume Sarmento, se a Constituição do Estado Liberal se caracterizava por seu


caráter estruturante e pelo desenho da esfera de liberdade individual alheia à intervenção estatal,
visando a manutenção do status quo, a Constituição do Estado Social prega a ação estatal
transformadora, apontando objetivos, a serem perseguidos pelos Poderes Públicos e os meios
concretos para tanto (2010, p. 77).

A Constituição de Weimar de 1919, o maior marco legislativo do Estado Social do


século XX, bem demonstra a modificação da relação entre o direito constitucional e o direito
privado que estava ocorrendo: oferecendo proteção ao direito de propriedade, ao mesmo tempo
em que subordinava o seu exercício cumprimento de fins de interesse coletivo social (art. 153);
protegendo a liberdade contratual nas trocas econômicas, desde que exercida "de acordo com
as leis" (art. 152.1); garantindo o direito à herança "de acordo com o direito civil"(art. 154.1),
e estendendo o direito fundamental à liberdade de expressão às relações de trabalho e emprego
público.

Tem-se então que as normas constitucionais passaram a criar obrigações diretas para
os cidadãos, ao mesmo tempo em que ditavam diretrizes ao legislador de direito privado, seja
fixando garantias de institutos como a propriedade, a família e o casamento, que impediam que
o legislador os abolisse (HESSE, 1995, p. 49; SCHMITT, 1993, p. 20 e ss. apud POLIDO,
2006, p. 7), seja prescrevendo mandatos explícitos, como o de legislar em favor da igualdade
dos filhos tidos fora do vínculo matrimonial (art. 121) (HESSE, 1995, p. 48-49).
34

Também é notável na Constituição weimariana a positivação de normas consagradoras


de direitos como a saúde, educação e trabalho, e, como visto, de controle da ordem econômica
capitalista por meio da função social da propriedade, além da previsão de mecanismos de
colaboração entre trabalhadores e empregadores por meio de conselhos. Disposições que,
visavam acomodar as demandas do proletariado no projeto burguês de sociedade. Sendo
inclusive reconhecido o seu papel histórico no arrefecimento da revolução socialista que se
insinuava na Alemanha (KLEIN, 1995, p. 34).

Sem embargo, as normas de caráter social, que obrigavam a prestações de caráter


emancipatório, não eram compreendidas como diretamente vinculantes (HESSE, 1995, p. 49).
A doutrina que dominou que o direito constitucional ao longo de quase todo o século XX
negava-lhe o reconhecimento de sua eficácia jurídica. Se era tema pacífico a força vinculante
das normas clássicas (orgânicas e de não intervenção), os mandamentos constitucionais
garantidores de direitos subjetivos típicos do Estado Social, eram vistos como meras “normas
programáticas”, de eficácia mediata, sujeitas à interpositio legislatoris.

A resistência ao reconhecimento de eficácia normativa às normas veiculadoras de


direitos sociais pode ser explicada, segundo Sarmento, de um lado, pela própria resistência
ideológica oposta pela classe dominante à mudança do status quo. Mas à ideologia se aliava a
questão dogmática relativa à indeterminação semântica de algumas dessas normas, e ainda uma
razão de ordem prática consistente nos condicionantes materiais à sua efetivação, dada a
necessidade da utilização de recursos públicos para a concretização das prestações deles
derivadas (SARMENTO, 2010, p. 77).

Móveis que fizeram sedimentar a doutrina que dividia as normas constitucionais em


autoaplicáveis, caso das relativas às liberdades individuais, e não autoaplicáveis, como as de
caráter social. O que fez lançar as últimas em um verdadeiro “limbo jurídico”, na metáfora de
Sarmento (SARMENTO, 2010, p. 76).

Fábio Konder Comparato objeta a pertinência desses obstáculos opostos à efetivação


de direitos sociais, afirmando que, em primeiro lugar, a indeterminação do objeto de direitos
sociais não é maior do que a de muitos direitos individuais::

Qual o exato alcance, por exemplo, do direito à intimidade, declarado no art. 5º, inciso
X, de nossa Constituição? Compreende ele, por acaso, o segredo das contas bancárias?
Ora, não será certamente em razão de dificuldades hermenêuticas desse tipo que o
Judiciário poderá recusar-se a dar proteção aos direitos fundamentais declarados na
Constituição (1993, on-line).
35

Em segundo lugar, quanto à afirmação de que por decorrência haveria indevida


intervenção do Judiciário na competência exclusiva do Executivo e do Legislativo para a
formulação de políticas públicas, Comparato aduz que, ao determinar a efetivação de um direito
social, o Judiciário age dentro da sua própria competência, sancionando os demais poderes por
uma omissão inconstitucional, sendo consagrada em muitos sistemas constitucionais
contemporâneos – o brasileiro, inclusive – a sanção judiciária para a inconstitucionalidade por
omissão(1993, on-line).

Finalmente, no que se refere, à alegada invasão de competência financeira do


Legislativo, o autor alega que também direitos públicos subjetivos dependem de recursos
materiais para sua efetivação, sem que a prévia solução do problema financeiro lhes seja oposta
como impedimento à tutela. Levanta a seguinte questão: “Por acaso os juízes podem se recusar
a garantir aos desapropriados a indenização a que fazem jus, sob o pretexto de que a lei
orçamentária não contempla previsão de verbas para tanto? “ (COMPARATO, 1993, on-line).

Com efeito, a partir da metade de século houve reação à doutrina tradicional. Na Itália
Vezio Crisafulli publicou a obra La Costituzione e le sue Disposizioni di Principio, publicada
em 1952, na qual defende que todas as normas constitucionais, mesmos as ditas normas
programáticas, geram efeitos jurídicos ponderáveis (apud SARMENTO, 2010, p. 77).

De igual modo, José Afonso da Silva defende no Brasil a tese da eficácia mínima das
normas de caráter social, publicando em 1968 trabalho intitulado Aplicabilidade das Normas
Constitucionais, em que afirma que todas as normas constitucionais são dotadas de juridicidade,
mesmo as normas constitucionais programáticas que, apesar de terem eficácia limitada, impõem
limites e restrições ao Legislativo e ao Executivo, exercendo função relevante na ordem
jurídica. Ainda que não obriguem os destinatários a agirem em determinado sentido, em alguns
sistemas a omissão é sindicável pelo Poder Judiciário; outrossim, o mandamento impede a
atuação em sentido contrário, inclusive pelo legislador; além de acarretar a não recepção do
direito anterior incompatível e influenciar na interpretação e integração do ordenamento
jurídico (1998, p. 135 e ss.).

Essa contestação da visão tradicional acerca da eficácia normas de direitos


fundamentais é também reflexo do desprestígio das codificações e da crença na onipotência do
Legislativo, então considerado infalível e bastião da liberdade na perspectiva rousseauniana
inspiradora do constitucionalismo liberal. Uma decorrência da expansão do sistema
jurisdicional de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade, principalmente após a
36

Europa testemunhar os horrores praticados pelo nacional-socialismo na Segunda Guerra


Mundial, que fez do legislador cúmplice da barbárie valendo-se da concepção positivista que
não reconhecia limites ao conteúdo da legalidade. O que reforçou a percepção acerca da
necessidade de contenção do direito legislado pelo Judiciário, servindo-lhe de parâmetro os
valores incutidos no ordenamento jurídico pelas normas definidoras de direitos fundamentais
(SARMENTO, 2010, p. 37).

Ao mesmo tempo, deu ares de urgência à necessidade de superação dos paradigmas


epistemológicos do positivismo jurídico, a associação que se fez deles com a legitimação das
atrocidades cometidas pelo regime nazista, visto os positivistas considerarem a validade
jurídica de uma lei uma questão alheia à justiça de seu conteúdo10 e o fato de os oficiais do
Reich julgados em Nuremberg terem utilizado em sua defesa justamente o argumento de que
apenas obedeciam às leis da Alemanha.

Nasceram então movimentos teóricos que, embora distintos, acabaram sendo reunidos
sob a mesma alcunha de Pós-positivistas, que têm por traço comum a tentativa de fixar a
necessidade de uma justificação ética como condicionante da validade do direito positivado,
apondo limites mínimos ao conteúdo da legalidade, com o fim de se evitar a repetição da
tragédia humana que foi perpetrada com base legal. Nesta nova concepção, reconhece-se a
eficácia de normas-princípio de conteúdo notadamente axiológico, e de eficácia autônoma em
relação às regras, cuja função seria a de promoção de valores por meio da ordem jurídica.

O distanciamento do positivismo-jurídico tem claro tom de retorno ao direito natural.


É o que assinala Chaim Perelmann sobre o período afirmando que "se o recurso ao direito
natural foi relativamente raro na jurisprudência europeia antes da última guerra, a reação
causada pelos excessos do nacional-socialismo generalizou o recurso 'aos princípios gerais do
direito, comuns a todos os povos civilizados'”. Todavia, prossegue o jusfilósofo:

Em vez de apelar para um direito fundamentado na natureza do homem, prefere-se


fazer referência à natureza das coisas, ora a princípios fundamentais de nossa
civilização, tais como puderam ser formulados nos adágios juristas romanos e foram
veiculados pelos direitos nacionais (1996, p. 391).

10
Confira-se, neste sentido, o seguinte trecho de A Teoria Pura do Direito: “Segundo o Direito dos Estados
totalitários, o governo tem o poder para encerrar em campos de concentração, forçar a quaisquer trabalhos e até
matar os indivíduos de opinião, religião ou raça indesejável. Podemos condenar com a maior veemência tais
medidas, mas o que não podemos é considerá-las como situando-se fora da ordem jurídica desses Estados”
(KELSEN, 2009, p. 44). É bom destacar que não se pode de nenhuma maneira valer-se do trecho transcrito como
evidência de associação do autor a esses movimentos. No excerto Kelsen está a analisar a validade das normas
estritamente sob a perspectiva de sua Teoria Pura do Direito. Seu objetivo é o de explicar o direito como forma e
teoria. O autor inclusive se opôs ao Terceiro Reich e foi perseguido pelos nazistas.
37

Na seara do direito constitucional, o Pós-positivismo se desenvolve a partir da


expansão da abrangência das matérias constitucionais, o reconhecimento da sua força
normativa em face dos três poderes e mesmo em face de particulares, o fortalecimento do papel
da jurisdição constitucional e a penetração dos seus princípios e valores por todos os ramos do
ordenamento, o que convencionou-se chamar de neoconstitucionalismo. Basicamente uma
doutrina de contenção do poder estatal e do arbítrio de quem quer detivesse uma posição de
desequilíbrio de poder. (Cf. SARMENTO, 2010, p. 81).

Evocando este novo conjunto de ideias, as constituições europeias formuladas a partir


do segundo pós-guerra apresentam expressamente em seu texto a previsão de princípios como
a dignidade humana, a solidariedade, o bem-estar de todos e a igualdade em sentido material,
aos quais se reconhecia o caráter vinculante, independente do seu acolhimento pela legislação
ordinária.

A Constituição passa de mera diretriz política orientadora da ação estatal, a vetor de


conformação normativa de todo o ordenamento jurídico. Recipiente de um conjunto de regras
e princípios de eficácia normativa, invocável contra o Estado, mas também justificadores de
sua intervenção nas relações privadas. Com este mesmo espírito, embora mais tarde, nasce
também a Constituição Federal de 1988.

2.3. A chamada dimensão objetiva dos direitos fundamentais

Neste contexto de ascensão da Constituição ao topo da ordem jurídica com o


reconhecimento de sua eficácia normativa é que se encaixa o reconhecimento da dimensão
objetiva dos direitos fundamentais nela previstos.

O paradigma liberal que se tornou vigente com a ascensão da burguesia, embora tenha
extraído de conceitos jusnaturalistas a base teórica que impulsionou os direitos fundamentais
positivados nas cartas constitucionais, compreendia-os de uma maneira mais restrita do que as
suas noções originais, de direitos associados à própria natureza humana, pré-estatais, e
oponíveis a quaisquer outros seres humanos (Cf. SARLET, 2000).

Na visão liberal prevalente durante o século XIX os direitos fundamentais eram


compreendidos unicamente em uma dimensão subjetiva, que os concebe como matriz de
38

direitos subjetivos invocáveis apenas em face do Estado, correspondentes à deveres de não


intervenção no exercício das liberdades individuais (Cf. SARMENTO, 2010, p. 130; V. A.
SILVA, 2011, p. 137).

Sarmento observa que, o que fez a doutrina liberal na formulação dessa compreensão
foi transplantar para o direito constitucional a categoria de “direito subjetivo” tal como
historicamente desenvolvida pelo direito civil, cuja elaboração científica à época encontrava-
se em um estágio de evolução muito mais avançado do que os estudos de direito público (2010,
p. 130). O maior exemplo deste empréstimo teórico tomado pelo direito constitucional
diretamente do direito civil é a teoria dos direitos públicos subjetivos de Jellinek.

Todavia, como visto no tópico anterior, a visão teórica sobre a função dos direitos
fundamentais na ordem jurídica modificou-se profundamente a partir da influência de fatores
históricos e científicos como a difusão do controle de constitucionalidade, o nascimento do
Estado Social, a derrota do nazismo na Segunda Guerra e a reconstrução material e espiritual
que se seguiu na Europa, bem como a progressão dos estudos do direito constitucional
(BÖCKENFORDE, ano, p. 143 apud V. A. SILVA, 2011, p. 137; SARMENTO, 2010, p. 130).

Da somatória desses elementos resultou, não apenas o incremento do catálogo de


direitos fundamentais positivados, com a integração às liberdades clássicas de uma nova
geração de direitos orientada à garantia de igualdade material e de condições básicas para a vida
digna da população, mas também uma revolução na perspectiva tradicional acerca da eficácia
dos direitos liberais, influenciada pelo discurso emergente de necessidade de transformação da
realidade por meio da força estatal (Cf. SARMENTO, 2010, p. 130).

A desigualdade material passou a ser aceita como fator negativo de afetação da


liberdade individual com a retirada da máscara ideológica que encobria a ficção que vinculava
o seu pleno exercício à simples afirmação do princípio da igualdade em nível formal. O direito
constitucional deixou, portanto, de ignorar a ameaça dos poderes privados aos direitos
fundamentais (Cf. BILBAO UBILLOS, 2005, p. 2).

Outrossim, ainda como consequência desse viés transformador, à função de garantia


de pretensões individuais em face do Estado, agregou-se aos direitos fundamentais um novo
ponto de vista acerca de sua finalidade que lhes conferiu uma nova gama de efeitos: a
denominada dimensão objetiva dos direitos fundamentais (SARMENTO, 2010, p. 130).

Sarmento retrata adequadamente o Zeitgeist do período:


39

O tema da dimensão objetiva, conquanto deite raízes em conceitos aflorados durante


o constitucionalismo de Weimar, só aparece de forma mais clara na doutrina e
jurisprudência constitucional alemã do 2º pós-guerra, já sob a égide da Lei
Fundamental de Bonn de 1949. Naquele momento, numa reação natural contra os
horrores do Holocausto, toda a atenção dos juristas germânicos voltava-se para o
estudo dos direitos humanos, que haviam galgado o pedestal axiológico na nova
ordem constitucional daquele país, a qual tinha como epicentro o princípio da
dignidade da pessoa humana, albergado no seu art. 1º. Grande parte das discussões
mais importantes da teoria contemporânea dos direitos fundamentais vai surgir
naquele período seminal do pensamento constitucional alemão. (2010, p. 134).

As normas definidoras de direitos fundamentais passaram então a ser compreendidas


também como consagradoras dos valores mais relevantes da comunidade histórica que promove
a sua positivação, de modo que constituem a base jurídica, não só da estrutura e das ações
Estado, mas sim de toda a sociedade (SARMENTO, 2010, p. 130).

Nesse fio, como aduz Vieira de Andrade, citado por Daniel Sarmento, quando se
menciona a dimensão objetiva dos direitos fundamentais o que se almeja é:

[...] fazer ver que os direitos fundamentais não podem ser pensados apenas do ponto
de vista dos indivíduos, enquanto faculdades ou poderes de que estes são titulares,
antes valem juridicamente também do ponto de vista da comunidade, como valores
ou fins que esta se propõe a prosseguir” (1998, p. 144-145 apud SARMENTO, 2010,
p. 131).

Representante dessa virada teórica é a proposta elaborada por Rudolf Smend da


Constituição como integração, que se aproxima da concepção dos direitos fundamentais como
ordem de valores, que embasa a formulação de seu aspecto objetivo. Na visão de Smend, a
Constituição tem por função precípua a integração da comunidade, o que depende da promoção
dos valores essenciais por ela compartilhados, a que correspondem os direitos fundamentais
como sua objetivação em nível normativo-positivo.

O autor supera desta maneira a conceituação meramente formal da Constituição, que


lhe reconhecia função puramente estruturante das competências dos órgãos estatais (1985 apud
SARMENTO, 2010, p. 136).

Ora, se os direitos fundamentais constituem, assim, o alicerce jurídico de toda a


sociedade, por corolário, não seria mesmo concebível que seus efeitos se dirigissem unicamente
ao Estado. Antes, seus efeitos se irradiam por todo o ordenamento atingindo todas as espécies
de relações jurídicas por ele abarcadas, inclusive as que não contam com a participação do
Estado.
40

Nessa acepção, a defesa dos direitos fundamentais deixa também de ser uma questão
exclusiva de limitação dos Poderes Públicos, mas, igualmente, de direcionamento de sua
potência à consecução dos fins plasmados nas normas positivas. Assim como a sua promoção
passa a ser exigível de todos os integrantes do corpo social (Cf. SARMENTO, 2010, p. 131).

Por isso o acerto da afirmação de Sarmento de que:

A dimensão objetiva liga-se a uma perspectiva comunitária dos direitos humanos, que
nos incita a agir em sua defesa, não só através dos instrumentos processuais
pertinentes, mas também no espaço público, através de mobilizações sociais, da
atuação de ONG’s e outras entidades, do exercício responsável do direito de voto. “
(2010, p. 131-132).

A dimensão subjetiva não foi, contudo, descartada. O que houve foi a soma de uma
nova dimensão aos direitos fundamentais, que passou a contar com duas: a subjetiva, enquanto
fonte de direitos subjetivos; e a objetiva, como bases fundamentais da ordem jurídica, cujos
efeitos irradiam por todas as áreas dos direitos (SARMENTO, 2010, p. 132).

A partir disso, a tarefa estatal na garantia da efetividade dos direitos fundamentais não
poderia mais ser cumprida apenas por meio de sua abstenção frente a negócios privados, sendo-
lhe igualmente exigíveis posições ativas em sua defesa, inclusive contra ações de particulares
que os ameacem (SARLET, 2012, p. 146; SARMENTO, 2010, p. 132).

Da dimensão objetiva decorre, assim, a extensão de sua eficácia ao tráfico jurídico


privado, reino tornado imune à sua incidência pela teoria liberal clássica, que visava liberar a
burguesia da opressão do Poder Absoluto (SARMENTO, 2010, p. 132).

Nesta nova visão dos direitos fundamentais, todavia, reconhece-se igualmente a


existência de poderes sociais não estatais com igual capacidade de tiranizar a liberdade. Daí o
assentimento da modulação da autonomia privada pelos direitos fundamentais, bem como da
necessidade de as normas de direito privado serem, criadas, interpretadas e integradas de acordo
com a ordem de valores consagrada em nível constitucional.

Sob esse último aspecto, os direitos fundamentais operam como a fonte de uma nova
gama de deveres para o Legislativo e o Judiciário, que passam a ter sua atuação condicionada
a conferir-lhes a maior proteção possível dentro das condições fáticas e jurídicas existentes.

De sua perspectiva objetiva é que também se extrai a eficácia mínima das normas de
direitos fundamentais que pressupõem mediação legislativa, consistente na sindicabilidade da
omissão do Legislativo; na sua proteção pelo Judiciário; no impedimento à ação estatal
41

contraditória, inclusive no âmbito da produção normativa; na não recepção do direito anterior


com ela incompatível; e na capacidade de determinar a interpretação e integração do
ordenamento jurídico (Cf. SARMENTO, 2010, p. 132-133).

A consagração desse renovado olhar sobre os direitos fundamentais veio na sentença


do Caso Lüth proferida pelo Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht) em
1958, que será profundamente abordada em tópico posterior deste trabalho.

Eric Lüth, que era então o diretor do Clube de Imprensa de Hamburgo, resolveu
promover o boicote da exibição de um filme no festival de cinema da cidade, por ele ter sido
produzido por um cineasta de passado atrelado ao Terceiro Reich. Veit Harlan, o tal cineasta,
conseguiu obter ordem judicial para impedir o boicote. Lüth então recorreu até que o caso
chegasse ao Bundesverfassungsgericht, que resolveu o caso em seu favor, reconhecendo sua
conduta como legítimo exercício da liberdade de expressão.

Releva, para o presente momento da argumentação, que a decisão representa um marco


do reconhecimento jurisprudencial da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, como se vê
no seguinte trecho de sua ementa, traduzido livremente:

1. Os direitos fundamentais são, em primeiro lugar, linha de defesa dos cidadãos


contra o Estado; o conteúdo jurídico dos direitos fundamentais da Constituição
incorpora também uma ordem objetiva de valores, que, como escolhas fundamentais
de caráter constitucional, valem para todas as áreas do Direito”.
2. No direito civil, a reserva jurídica dos direitos fundamentais é desenvolvida pelas
normas de direito privado. Ele adota disposições de natureza obrigatória e é realizável
pelo juiz especialmente por meio de cláusulas gerais (Generalklauseln).
3. O juiz civil pode ofender direitos fundamentais por meio de uma sentença (§ 90,
BVerfGG), quando ele deixa de reconhecer a influência dos direitos fundamentais
sobre o direito civil. O Tribunal Constitucional reexamina nas decisões cíveis tão
somente no tocante à questão da violação dos direitos fundamentais, não se
manifestando sobre erros jurídicos em geral. (BVerfGE, 1958, on-line)11.

Como se vê, a Corte reconheceu expressamente que os direitos fundamentais previstos


na Constituição, no caso, a Lei Fundamental de Bonn de 1949, constituem uma ordem objetiva

11
No original: “1. Die Grundrechte sind in erster Linie Abwehrrechte des Bürgers gegen den Staat; in den
Grundrechtsbestimmungen des Grundgesetzes verkörpert sich aber auch eine objektive Wertordnung, die als
verfassungsrechtliche Grundentscheidung für alle Bereiche des Rechts gilt. 2. Im bürgerlichen Recht entfaltet sich
der Rechtsgehalt der Grundrechte mittelbar durch die privatrechtlichen Vorschriften. Er ergreift vor allem
Bestimmungen zwingenden Charakters und ist für den Richter besonders realisierbar durch die Generalklauseln.
3. Der Zivilrichter kann durch sein Urteil Grundrechte verletzen (§ 90 BVerfGG), wenn er die Einwirkung der
Grundrechte auf das bürgerliche Recht verkennt. Das Bundesverfassungsgericht prüft zivilgerichtliche Urteile nur
auf solche Verletzungen von Grundrechten, nicht allgemein auf Rechtsfehler nach. [...]” (BVerfGE, 1958, on-
line).
42

de valores, representantes das escolhas mais essenciais da sociedade, dotada de uma eficácia
irradiante que atinge todas as áreas do , inclusive o direito privado, a ponto de o Judiciário poder
ofendê-los quando não reconhece a sua devida influência sobre suas normas.

Na própria decisão o Bundesverfassungsgericht cunhou a expressão efeito de


irradiação (Ausstrahlungswirkung) dos direitos fundamentais referindo-se à sua capacidade de
impulsionar e estabelecer diretrizes para a aplicação e interpretação do direito
infraconstitucional, apontando para a necessidade de sua interpretação conforme (CANARIS,
p. 377; SARLET, 2012, p. 127).

Da mesma forma, foi fixada a sua incidência na esfera privada, superando a sua
oponibilidade restrita aos Poderes Públicos, realizada por meio da interpretação das cláusulas
gerais contidas no Código Civil. Ou seja, o Bundesverfassungsgericht aderiu à teoria da eficácia
horizontal mediata que será tratada com maior densidade no próximo capítulo, por se tratar
daquela que acabou se tornando majoritária na Alemanha.

As razões de decidir do tribunal alemão, como nota Virgílio Afonso da Silva, não
representam apenas superação da ideologia liberal no que se refere à vinculação exclusiva dos
Poderes Públicos aos direitos fundamentais, mas também da barreira textual à vinculação dos
particulares representada pelo art. 1º, III da Constituição Alemã que é expresso ao ditar que os
direitos fundamentais “vinculam os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário” (2005, p. 136-
140).

Outra importante decorrência do reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos


fundamentais desenvolvida pela doutrina alemã foi a chamada teoria dos deveres de proteção
do Estado (Schutzpflichten), que consiste na ideia de que dos direitos fundamentais emana um
dever geral de sua efetivação que impulsiona os Poderes Públicos (o seu destinatário precípuo)
a saírem da inércia, que antes lhes era imposta justamente pela compreensão dos direitos
fundamentais como direitos de defesa, determinando intervenções no sentido de sua efetivação
contra ameaças diversas, provindas mesmo de outros indivíduos ou até de outros Estados
(SARLET, 2012, p. 128; DUQUE, 2014, p. 110-111 apud ARNT RAMOS, ano, p. 7).

Na síntese de Sarlet:

[...] os deveres de proteção decorrentes das normas definidoras de direitos


fundamentais impõem aos órgãos estatais (e é o Estado o destinatário precípuo desta
obrigação) um dever de proteção dos particulares contra agressões aos bens jurídicos
fundamentais constitucionalmente assegurados, inclusive quando estas agressões
forem oriundas de outros particulares, proteção esta que assume feições absolutas, já
que abrange todos os bens fundamentais (SARLET, ano, p. 12).
43

Os deveres de proteção configuram um imperativo de tutela que implica na exigência


de medidas positivas do Estado com o objetivo de proteger de forma efetiva o exercício dos
direitos fundamentais, sejam elas de natureza legislativa (como a determinação e proibições),
executiva ou jurisdicional (SARLET, 2012, p. 128).

A intervenção estatal no domínio privado visando a proteção de direitos fundamentais,


considerada a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, passa então a ser uma obrigação
dos poderes constituídos, ao contrário do que supunha a sua dimensão subjetiva, a partir da
compreensão de sua insuficiência para a garantia de uma liberdade efetiva para todos, e não
apenas daqueles que foram capazes de angariar sua independência pela concentração de poder
econômico e social.

2.4. O direito civil constitucional

A transmutação da Constituição, de documento político para diploma juridicamente


vinculante, e matriz de todos os ramos do , e o reconhecimento da influência decorrente da
dimensão objetiva direitos fundamentais, provocou, na inspirada metáfora de Fachin, uma
verdadeira “virada de Copérnico” no direito privado, que houve de ser conformado à perda de
sua capacidade de autopoiese e à nova tábua axiológica igualitária e solidarista positivada nas
Constituição do pós-Segunda Guerra, que trocou o anterior privilégio do patrimônio e do
indivíduo pela centralidade da pessoa humana e da coletividade, impondo-se uma releitura de
que resulta sua despatrimonialização/repersonalização (Cf. SARMENTO, 2010, p. 75).

Como afirma Anderson Schreiber:

As Constituições do pós-guerra consagraram, por toda parte, valores solidaristas e


humanitários, em larga medida opostos ao liberalismo de outrora. A nova axiologia
constitucional impunha ampla reformulação das bases do direito privado. À liberdade
contratual contrapõe-se o dirigismo contratual. Ao direito de propriedade impõe-se a
função social da propriedade. À família chefiada pelo homem contrapõem-se a
igualdade de gênero e o melhor interesse dos filhos. [...] O Código Civil perdeu o
papel de centro do sistema jurídico, que se deslocou gradativamente para as
Constituições (2018, p. 52).
44

Assim, por constitucionalização do direito civil (direito civil constitucional)


compreende-se o esforço científico permanente de (re)formulação de princípios e institutos
clássicos do direito privado – como a autonomia privada, o direito de propriedade, os princípios
contratuais, a família – a partir de um novo vetor normativo de conformação: a Constituição.

Sem embargo, vale o alerta de Sarmento e a citação que faz da obra de Luís Roberto
Barroso, no sentido de que a constitucionalização do direito privado não se resume a uma
questão de coerência a um novo vetor sistematizador do ordenamento jurídico, tratando-se, na
verdade, de um movimento necessário na luta por parâmetros normativos substancialmente
mais justos, a partir da extração dos princípios constitucionais de toda a sua eficácia jurídica
transformadora, porquanto o “(...) o legislador constitucional é invariavelmente mais
progressista do que o legislador ordinário” (BARROSO apud SARMENTO, 2010, p. 82).

A questão tampouco se resume à interpretação das normas de direito privado conforme


à Constituição (aplicação indireta das normas constitucionais), envolvendo também o
reconhecimento da possibilidade/dever de recurso direto às normas constitucionais para a
regulação de relações jurídicas entre particulares, visando-se obter a máxima realização dos
valores constitucionais no campo das relações privadas (Cf. SCHREIBER, 2018, p. 53).

A Constituição Federal de 1988, que claramente bebeu na fonte deste novo


constitucionalismo, positiva a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado
brasileiro (art. 5º, III) e a solidariedade social como um de seus objetivos (art. 3º, I). Conjugação
de princípios que revela de modo inegável a superação do individualismo que caracterizava o
direito positivo oitocentista, pois, muito embora as codificações de então já consagrassem a
dignidade do homem como sua justificação teórico-filosófica, ali ela assumia a função de
firmamento de posições individuais face ao Estado e à coletividade por ele representada.

Bem ao contrário, na Constituição brasileira, em um espírito similar ao da Constituição


de Weimar, ela aparece associada ao conceito de solidariedade social, que, ao estilo
weimariano, condiciona a tutela das liberdades clássicas ao atendimento de fins de interesse
coletivos ao mesmo tempo em que se busca a satisfação de interesses individuais.

Operam, assim, os direitos fundamentais, simultaneamente, como garantidores e


condicionantes de posições jurídicas, atrelando o de sua proteção estatal ao seu exercício em
direção a fins socialmente atraentes.
45

Disto decorre uma releitura funcionalizante da autonomia privada que impacta no


desenvolvimento da figura do abuso de direito e dos institutos da função social dos contratos e
da propriedade, que se veem condicionados ao atendimento de propósitos sociais que
transcendem a satisfação de seus titulares individuais, permitindo o controle judicial dos fins
com que os direitos são exercidos.

A intervenção estatal em negócios privados se torna uma constante, e a linha divisória


entre direito público e direito privado torna-se tênue a ponto de a distinção ser reputada como
dotada de valor meramente histórico, ou então puramente quantitativa: onde predomina o
interesse público incide com mais força o direito público e onde predomina o interesse privado
incide com mais força o direito privado (Cf. SCHREIBER, 2018, p. 58).

Sob estes novos signos é que foi promulgado o Código Civil de 2002, como revela a
apresentação que Reale faz da nova codificação:

O "sentido social" é uma das características mais marcantes do projeto, em contraste


com o sentido individualista que condiciona o Código Civil ainda em vigor. Seria
absurdo negar os altos méritos da obra do insigne Clóvis Beviláqua, mas é preciso
lembrar que ele redigiu sua proposta em fins do século passado, não sendo segredo
para ninguém que o mundo nunca mudou tanto como no decorrer do presente século,
assolado por profundos conflitos sociais e militares.
Se não houve a vitória do socialismo, houve o triunfo da "socialidade", fazendo
prevalecer os valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor
fundante da pessoa humana. Por outro lado, o projeto se distingue por maior aderência
à realidade contemporânea, com a necessária revisão dos direitos e deveres dos cinco
principais personagens do Direito Privado tradicional: o proprietário, o contratante, o
empresário, o pai de família e o testador.
Nosso empenho foi no sentido de situar tais direitos e deveres no contexto da nova
sociedade que emergiu de duas guerras universais, bem como da revolução
tecnológica e da emancipação plena da mulher. É por isso, por exemplo, que acabei
propondo que o "pátrio poder" passasse a denominar-se "poder familiar", exercido em
conjunto por ambos os cônjuges em razão do casal e da prole.
Em virtude do princípio de socialidade, surgiu também um novo conceito de posse, a
posse-trabalho, ou posse "pro labore", em virtude da qual o prazo de usucapião de um
imóvel é reduzido, conforme o caso, se os possuidores nele houverem estabelecido a
sua morada, ou realizado investimentos de interesse social e econômico. Por outro
lado, foi revisto e atualizado o antigo conceito de posse, em consonância com os fins
sociais da propriedade (2001, on-line).

Por outro lado, a escolha de palavras feita pelo autor em sua Visão Geral do Projeto
de Código Civil pode também ser interpretada como um certo inconformismo com a perda de
centralidade da codificação no ordenamento jurídico, como se nota no seguinte trecho:
46

Em um País há duas leis fundamentais, a Constituição e o Código Civil: a primeira


estabelece a estrutura e as atribuições do Estado em função do ser humano e da
sociedade civil; a segunda se refere à pessoa humana e à sociedade civil como tais,
abrangendo suas atividades essenciais. É claro que nas nações anglo-americanas, de
tradição costumeira-jurisprudencial, não há códigos privados, mas não deixa de haver
normas civis básicas no sistema do common-law.
É a razão pela qual costumo declarar que o Código Civil é "a constituição do homem
comum", devendo cuidar de preferência das normas gerais consagradas ao longo do
tempo, ou então, de regras novas dotadas de plausível certeza e segurança, não
podendo dar guarida, incontinenti, a todas as inovações ocorrentes. Por tais motivos
não há como conceber o Código Civil como se fosse a legislação toda de caráter
privado, pondo-se ele antes como a "legislação matriz", a partir da qual se constituem
"ordenamentos normativos especiais" de maior ou de menor alcance, como, por
exemplo, a lei das sociedades anônimas e as que regem as cooperativas, mesmo
porque elas transcendem o campo estrito do Direito Civil, compreendendo objetivos
e normas de natureza econômica ou técnica, quando não conhecimentos e exigências
específicas (2001, on-line).

Também é interessante observar que, embora Reale arrole o princípio da eticidade


como um dos fundamentos do Código, admitindo a abertura do direito privado à sua
interpretação e integração pelo recurso hermenêutico a valores éticos-jurídicos, o autor não faz
menção expressa aos valores positivados em nível constitucional na forma de direitos
fundamentais, tampouco aborda a necessidade de interpretação conforme a Constituição, e
muito menos utiliza a expressão “direitos fundamentais” em qualquer momento do texto:

O Código atual peca por excessivo rigorismo formal, no sentido de que tudo se deve
resolver através de preceitos normativos expressos, sendo pouquíssimas as referências
à eqüidade, à boa-fé, à justa causa e demais critérios éticos. Esse espírito dogmático-
formalista levou um grande mestre do porte de Pontes de Miranda a qualificar a boa-
fé e a eqüidade como "abencerragens jurídicas", entendendo ele que, no Direito
Positivo, tudo deve ser resolvido técnica e cientificamente, através de normas
expressas, sem apelo a princípios considerados metajurídicos. Não acreditamos na
geral plenitude da norma jurídica positiva, sendo preferível, em certos casos, prever o
recurso a critérios ético-jurídicos que permita chegar-se à "concreção jurídica",
conferindo-se maior poder ao juiz para encontrar-se a solução mais justa ou equitativa.
O novo Código, por conseguinte, confere ao juiz não só poder para suprir lacunas,
mas também para resolver, onde e quando previsto, de conformidade com valores
éticos, ou se a regra jurídica for deficiente ou inajustável à especificidade do caso
concreto.
Como se vê, ao elaborar o projeto, não nos apegamos ao rigorismo normativo,
pretendendo tudo prever detalhada e obrigatoriamente, como se na experiência
jurídica imperasse o princípio de causalidade próprio das ciências naturais, nas quais,
aliás, se reconhece cada vez mais o valor do problemático e do conjetural.
O que importa numa codificação é o seu espírito; é um conjunto de idéias
fundamentais em torno das quais as normas se entrelaçam, se ordenam e se
sistematizam.
Em nosso projeto não prevalece a crença na plenitude hermética do Direito Positivo,
sendo reconhecida a imprescindível eticidade do ordenamento. O código é um
sistema, um conjunto harmônico de preceitos que exigem a todo instante recurso à
analogia e a princípios gerais, devendo ser valoradas todas as consequências da
47

cláusula rebus sic stantibus. Nesse sentido, é posto o princípio do equilíbrio


econômico dos contratos como base ética de todo o Direito Obrigacional.
Nesse contexto, abre-se campo a uma nova figura, que é a da resolução do contrato
como um dos meios de preservar o equilíbrio contratual. Hoje em dia, praticamente
só se pode rescindir um contrato em razão de atos ilícitos. O direito de resolução
obedece a uma nova concepção, porque o contrato desempenha uma função social,
tanto como a propriedade. Reconhece-se, assim, a possibilidade de se resolver um
contrato em virtude do advento de situações imprevisíveis, que inesperadamente
venham alterar os dados do problema, tornando a posição de um dos contratantes
excessivamente onerosa.
Tal reconhecimento vem estabelecer uma função mais criadora por parte da Justiça
em consonância com o princípio de eticidade, cujo fulcro fundamental é o valor da
pessoa humana como fonte de todos os valores. Como se vê, o novo código abandonou
o formalismo técnico-jurídico próprio do individualismo da metade deste século, para
assumir um sentido mais aberto e compreensivo, sobretudo numa época em que o
desenvolvimento dos meios de informação vem ampliar os vínculos entre os
indivíduos e a comunidade.

Há também uma parcela da doutrina brasileira que vê o Código Civil de 2002 de modo
fundamentalmente diverso.

Para Anderson Schreiber, que endossa críticas de Gustavo Tepedino e Maria Celina
Bodin de Moraes, o “novo” código é mero fruto e um projeto conservador elaborado ainda na
década de 1970, durante os anos de chumbo da ditadura brasileira, que contraria essa releitura
histórica do direito privado, que se tornou exigência dogmática com a Constituição Federal de
1988. Segundo Schreiber, o Código Civil de 2002 mantém fundamentalmente o mesmo caráter
da regulação do Código anterior, não contendo qualquer revisão dos institutos clássicos a partir
da ótica solidarista de superação do individualismo e patrimonialismo que se esperava de uma
codificação promulgada mais de uma década após a Constituição Federal de 1988. O que
demanda um esforço redobrado da doutrina e da jurisprudência na atualização de suas
disposições a partir da invocação de normas constitucionais para a sua interpretação/integração,
assim como a aplicação direta de normas constitucionais para a regulação de situações privadas
de forma mais adequada à nova ordem de valores que foi positivada.

Confira-se trecho de sua dura avaliação:


48

O “novo” Código Civil tem muito pouco de realmente novo. O texto repete
substancialmente aquele do Código Civil de 1916, já tendo sido chamado de “cópia
malfeita” do antecessor. Sua aprovação foi recebida pela melhor doutrina como “um
duro golpe na recente experiência constitucional brasileira”, restando aos juízes, aos
advogados e ao intérprete de modo geral “a espinhosa tarefa de temperar o desastre,
aplicando diretamente o texto constitucional, seus valores e princípios, aos conflitos
de direito civil, de modo a salvaguardar o tratamento evolutivo que tem caracterizado
as relações jurídicas do Brasil contemporâneo
[...]
O Código Civil de 2002 não afastou a necessidade de aplicação das normas
constitucionais às relações privadas, nem poderia, já que se trata de um processo
contínuo e necessário. A codificação de 2002, ao contrário, reforçou essa necessidade,
pois, sob o disfarce da novidade legislativa, oculta largas porções de ideologia do
passado. O patrimonialismo, o individualismo e o liberalismo exacerbado continuam
vivamente presentes no texto do “novo” Código Civil, em franca oposição ao
solidarismo humanista consagrado no texto, que inclusive tem por princípios a
eticidade e a socialidade” (2018, p. 56).

De todo modo, entendendo-se que essa nova fase do direito civil já veio incutida em
suas disposições, ou então que ele apenas representa o velho com novos trajes, tornando
premente e constante o recurso às normas constitucionais para uma regulação das situações
privadas mais atual e afinada com os direitos fundamentais, o fato é que a reconstrução do
direito privado de acordo com os valores constitucionais é uma realidade incontestável hoje no
Brasil. Seja pela interpretação das regras do Código conforme a Constituição, seja pela
utilização das suas cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados como portal de entrada
da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, ou ainda pela invocação
direta de normas constitucionais.

Exemplo claro dessa nova face de despatrimonialização e repersonalização do direito


civil brasileiro consiste na positivação expressa no art. 42 do Código Civil de 2002 da função
social dos contratos, que prescreve a necessidade de interação entre o exercício da autonomia
privada e o respeito a direitos existenciais, das partes envolvidas, e do meio social em que elas
se inserem, colocando a pessoa humana no núcleo conformador do instituto. Neste sentido, os
contratos deixam ser vistos pela ordem jurídica como meio de conferir segurança às trocas
econômicas e passam a valer como instrumento de proteção da dignidade humana. Assim, a
autonomia privada não mais consiste em um valor em si mesma, tampouco seu exercício pode
se dar desatrelado do atendimento fins específicos. O Estado só empresta a sua força à sua
tutela, desde que seu uso esteja orientado à realização concomitante de interesses sociais
relevantes. Além de atender aos interesses dos contratantes, o contrato deve ser útil à promoção
dos valores da comunidade.
49

Interpretando-o, o Enunciado n. 23 CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil,


afirma que:

A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o
princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio,
quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à
dignidade da pessoa humana.

Outro reflexo na seara contratual é o dever de interpretação mais favorável ao aderente


das cláusulas ambíguas ou contraditórias de contrato de adesão (art. 423 do Código Civil), que
se pauta no desequilíbrio de força entre as partes, por se ter vislumbrado que o tratamento
formalmente igualitário, ao invés de promover a liberdade dos contratantes, a mitiga.

Sem embargo, não são poucas as vozes que se levantam contra a constitucionalização
do direito privado. Diz-se que ameaça a autonomia do direito privado e aniquila a ideia que lhe
é central, a autonomia privada. Outrossim, a segurança jurídica e a separação de poderes seriam
sacrificadas pelo constante recurso às normas constitucionais, cuja abertura semântica garante
ao juiz o exercício de poderes criativos quase ilimitados, usurpando a competência do
legislador.

Estas críticas, contudo, em que pese sua relevância, não serão exploradas de modo
direto neste trabalho, por não ser o seu foco. A sua abordagem ocorrerá, de qualquer maneira,
indiretamente, quando tratarmos em específico no capítulo a seguir das formas de incidência
dos direitos fundamentais nas relações privadas.

2.5. Notas conclusivas

Todas as teorias que defendem a eficácia dos direitos fundamentais sobre relações
entre particulares comungam de duas premissas: a constituição possui valor normativo; e os
direitos fundamentais nela positivados irradiam seus efeitos por todas as áreas do direito,
vinculando inclusive o direito privado. Por isso, essas duas questões foram referidas no início
do capítulo como antecedentes históricos da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

Como visto, sob o paradigma liberal o Estado era considerado o único destinatário das
normas de direitos fundamentais. Todavia, em especial com o avanço da desigualdade material
e com a necessidade de reencontro do com valores morais dele afastados pelo positivismo
50

jurídico, os direitos fundamentais e os valores que eles representam passaram a ser vistos como
sustentáculo jurídico da sociedade.

Se durante todo o século XIX prevaleceu o afastamento do Estado da esfera privada,


no início do século XX a Constituição de Weimar de 1919, que marca o nascimento do Estado
Social, já continha disposições expressas acerca da intervenção estatal em relações entre
particulares, fundamentada a partir da previsão de direitos fundamentais em favor dos
hipossuficientes que visavam corrigir o desequilíbrio de forças entre as partes. Caso das normas
orientadas à regulação das relações entre trabalhadores e empregadores. O que passa pelo
reconhecimento da necessidade da satisfação de condições materiais mínimas como
pressuposto do pleno gozo da liberdade e da desigualdade como coeficiente limitador do seu
exercício.

Essa ingerência estatal em negócios privados foi se intensificando após o final da


Segunda Guerra, com o desprestígio do positivismo jurídico e a renovação do conceito de
legalidade por força de um retorno às concepções jusnaturalistas, que teve por consequência
principal o desenvolvimento o da noção da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que
os posicionou como matriz conformadora da legalidade, estendendo seus efeitos a todas as áreas
do direito.

Há, todavia, de se discutir como se dá essa incidência, considerando-se a diferença


essencial de os particulares, enquanto sujeitos passivos de direitos fundamentais, serem
igualmente titulares de posições jurídicos por eles garantidas, do que decorre a necessidade de
solução de uma colisão entre direitos fundamentais. Outrossim, se nas relações com os Poderes
Públicos os direitos fundamentais são tidos por indisponíveis, nas relações privadas temos a
autonomia da vontade como instrumento de sua disposição.

As dificuldades não são poucas, por isso há toda uma gama de teorias dedicadas à
explicação de como se dá a eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

Este será o tópico explorado no próximo capítulo. Se neste buscamos nos concentrar
na Europa continental, a seguir será inevitável tratarmos de como a questão da eficácia
horizontal dos direitos fundamentais se manifesta nos Estados Unidos, em especial face à
particular resistência de sua doutrina e de sua jurisprudência a reconhecê-la.

Considerado o propósito deste trabalho, trataremos exclusivamente das interrogações


doutrinárias relativas à eficácia dos direitos de primeira dimensão, dentre os quais se enquadra
o direito fundamental ao devido processo legal.
51

CAPÍTULO 3 – TEORIAS SOBRE A EFICÁCIA HORIZONTAL


DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

3.1. Introdução

Acompanhada a evolução da compreensão do caráter jurídico-normativo da


Constituição e da dimensão objetiva dos direitos fundamentais nela positivados, pode-se dizer
que hoje é firme no panorama doutrinário e jurisprudencial do sistema romano-germânico a
noção da viabilidade da invocação de direitos fundamentais como limitadores do exercício da
autonomia privada nas relações de direito privada.

Assentada a incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas, resta o desafio
maior de definir exatamente de que forma se manifestam os seus efeitos. Como diz Virgílio
Afonso da Silva, o problema transmuta-se de saber “se” os direitos fundamentais produzem
efeitos nessas relações para saber “como” esses efeitos são produzidos (2005, p. 174).

A questão principal que se coloca gira em torno do grau de intensidade com o qual
pode se dar a sua aplicação, tendo em consideração que, em seu desenho original, os direitos
fundamentais foram concebidos para regular relações verticais de poder envolvendo a presença
do Estado. Enquanto que as relações horizontais guardam a peculiaridade de ambas as partes
serem igualmente titulares de direitos fundamentais e de a liberdade conferida pela autonomia
privada autorizar a renúncia a direitos que seriam indisponíveis perante os Poderes Públicos.
Por isso é que qualquer teoria que pretenda responder a esse questionamento deve
impreterivelmente resolver essa polarização dos direitos fundamentais com a liberdade
contratual, sem que se aniquile qualquer deles (SARLET, 2000; p. 24; V.A. SILVA, 2005, p.
175).

A doutrina e a jurisprudência da Alemanha se dedicam à busca por essa solução há


várias décadas desde a promulgação da Lei Fundamental de Bonn de 1949 (V.A. SILVA, 2005,
p. 174). Desse debate surgiram duas vertentes principais que se tornaram a base de variações
que foram sendo criadas, tanto na Alemanha, quanto nos demais países do continente, como
Espanha e Portugal.
52

De um lado, os adeptos da teoria da eficácia horizontal indireta dos direitos


fundamentais defendem que a sua invocação nas relações entre particulares pressupõe a prévia
conformação de seu conteúdo pelo legislador, de modo que a sua entrada no mundo privado se
dá de forma mediata, pela sua influência na interpretação das normas positivas de direito
privado, em especial as cláusulas gerais e os conceitos jurídicos indeterminados. De outro, estão
os que consideram que a obrigação a que se sujeita o Estado de lhes conferir a máxima
efetividade não pode restar condicionada à livre disposição das maiorias eventuais que ocupam
o Parlamento, de modo que a eficácia horizontal dos direitos fundamentais há de se realizar de
forma direta.

O tema também ocupa as cortes e os juristas dos Estados Unidos, onde os fortes ventos
liberais impulsionaram à prevalência do entendimento oposto, no sentido da impossibilidade
de invocação dos direitos fundamentais em relação privada, salvo os casos em que a relação
discutida guarde peculiaridades que indiquem a presença do Estado em seu seio.

Neste capítulo, intende-se apresentar essas três principais tomadas de posição perante
o fenômeno da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, bem como algumas teorias
alternativas formuladas na Alemanha por autores como Robert Alexy, Jürgen Schwabe e Claus-
Wilhelm Canaris.

Por sua vez, a sua influência na doutrina e na jurisprudência brasileiras merecerão


abordagem em um capítulo exclusivo.

Feitas essas considerações gerais é o momento de se apresentar os distintos


posicionamentos que visam resolver a dita tensão a que se sujeitam os direitos fundamentais
quando invocados em relações tidas por horizontais.

3.2. Teoria negativa da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas: a doutrina
da “state action”. Jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos. A crítica de
Chemerinsky

O direito constitucional dos Estados Unidos é fortemente marcado pela compreensão


de que, salvo a XIII Emenda à Constituição, que proíbe a escravidão, os direitos fundamentais
previstos na Bill of Rights da Carta estadunidense vinculam exclusivamente o Estado.
53

Prevalece em âmbito doutrinário e jurisprudencial que somente a ação estatal (state


action) pode ser limitada pela sua invocação, ocorra ela em nível federal, estadual ou local
(SCOTUS, 1983, on-line).

Segundo os defensores doutrina da state action, como sumariza Chemerinsky, a


Constituição dos Estados Unidos não proíbe a privação de direitos fundamentais por
decorrência da conduta de particulares. O comportamento das partes somente deve obediência
às disposições constitucionais se o Estado está tão intimamente envolvido na conduta – isto é,
o nexo estatal com a conduta é tão grande, que ela lhe possa ser imputada, como se ação estatal
fosse. Fora dessas restritas hipóteses, não há nada que os tribunais possam fazer, mesmo contra
as infrações aos valores constitucionais mais básicos (1985, pp. 508-509).

Nisto consiste, então, basicamente, a doutrina da state action: a Constituição não se


presta à regulação de relações privadas, restringindo-se seu campo de incidência às relações
dos indivíduos com o Estado. Assim é que direitos fundamentais previstos em sede
constitucional não podem ser invocados no âmbito privado, exceção feita à XIII Emenda. A
única possibilidade de os direitos fundamentais servirem de subsídio às cortes para a restrição
da conduta de um ente privado é o caso em que ela esteja tão intrinsecamente ligada ao Estado
a ponto de ele poder ser responsabilizado por ela.

A origem deste entendimento tem forte raiz histórica: a formação centrípeta da


federação dos Estados Unidos e a aversão ao poder central que sempre a caracterizou. Neste
contexto, a doutrina da state action protegeria a soberania dos Estados frente à União. Visto
que, mesmo após a criação da federação, os Estados mantiveram a sua competência para legislar
sobre direito privado (salvo comércio interestadual e internacional), outorgar à Suprema Corte,
um órgão federal, a capacidade de extrair eficácia direta das normas constitucionais para a
regulação de situações privadas, equivaleria a conferir à União esta competência, mesmo que a
pretexto de aplicar a Constituição (SARMENTO, 2010, p. 213).

Ademais, de modo análogo ao qual os liberais franceses viam o Código Civil, ao tempo
em que a Constituição dos Estados Unidos foi escrita, entendia-se que a common law já seria,
por si só, suficiente para proteger quaisquer das liberdades fundamentais em âmbito privado,
de modo que não seria necessário que a Constituição protegesse o que já estava protegido. Tanto
é, que a preocupação principal do constituinte, na verdade, era de que o novo governo federal
criado estivesse vinculado aos mesmo princípios de direito natural desvendados pela common
law e aos quais os atores privados já estavam sujeitos. Por exemplo, a proteção conferida pela
54

IV Emenda contra busca e apreensão sem motivo razoável seria equivalente aos princípios já
consolidados na common law de vedação da invasão de propriedade privada e das prisões sem
causa provável (probable cause). Assim como a cláusula do devido processo legal (due process
of law) trazida pela V Emenda serviria para invocar contra o Estado as as proteções já
reconhecidas pela common law contra atentados à liberdade e à propriedade privada
(CHEMERINSKY, 1985, p. 515).

Há também razões dogmáticas que sustentam a doutrina da state action, como a


literalidade do texto da Constituição estadunidense, que se refere apenas aos Poderes Públicos
o que toca aos direitos fundamentais (BILBAO UBILLOS, 1997, p. 02 apud SARMENTO,
2010, p. 213), sendo que a corrente hermenêutica constitucional tradicional do país defende a
necessidade de que, na interpretação das normas constitucionais, deve-se buscar respeitar ao
máximo a vontade original dos founding fathers da Nação (interpretativismo).

Sarmento conta que a formulação da doutrina da state action se iniciou com os Civil
Rights Cases, julgados em 1883, que derivaram de questionamentos ao Civil Rights Act, lei
aprovada pelo Congresso que inseriu uma série de vedações à discriminação racial em locais e
serviços acessíveis ao público com base na XIV Emenda, que obrigara os Estados a observarem
os princípios da igualdade e do devido processo legal. Nos cinco casos julgados, a Suprema
Corte defendeu que a norma era inconstitucional, pois a XIV Emenda teria conferido à União
tão somente a competência para editar normas que proibissem a prática de atos discriminatórios
pelos Estados contra os cidadãos, mas não a competência para a criação de normas que
proibissem a discriminação praticada por um cidadão contra outro. Caberia exclusivamente aos
Estados legislar sobre condutas discriminatórias nas relações privadas (2010, pp. 213-214).

Assim é que, na visão de Sarmento, duas premissas restaram assentadas pela Suprema
Corte:

a) os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição americana vinculam apenas


os Poderes Públicos e não os particulares; e (b) o Congresso nacional não tem poderes
para editar normas protegendo os direitos fundamentais nas relações privadas, pois a
competência para disciplinar estas relações é exclusiva do legislador estadual. (2010,
p. 214).

Chemerinsky destaca, por outro lado, que o julgamento dos Civil Rights Cases também
deixou claro que, caso os Estados se omitissem na produção de leis orientadas à proteção de
direitos constitucionais por meio de sua common law, então estaria caracterizada uma state
action suficiente para a intervenção federal (1985, pp. 517-518).
55

Não obstante, com base na doutrina da state action a jurisprudência estadunidense


frequentemente negou a procedência de ações civis fundadas em discriminação racial
promovida por empregadores, restaurantes e creches, quando ausente lei ordinária estadual
(statutes) em sentido contrário.

No caso Minnick v. California Department of Corrections, citado por Chemerinsky,


Suprema Corte chegou a ponto de afirmar que a Constituição não ofereceria obstáculo a uma
pessoa privada para poder praticar a discriminação racial que quisesse: “So far as the
Constitution goes, a private person may engage in any racial discrimination he wants” (1985,
p. 510, nota de rodapé 23).

No mesmo sentido, em Williams v. Howard Johnson’s Restaurant, o Tribunal definiu


que a discriminação racial por um empregador privado não equivale a uma state action: “racial
discrimination by private employer is not state action”. O que também foi dito em Player v.
Alabama Department of Pensions and Sec.quanto à discriminação racial praticada por creches:
“discrimination by childcare center operated by sheriff’s office does not constitute state
action” (CHEMERINSKY, 1985, p. 510, nota de rodapé 23).

Sempre se baseando na ausência de state action a Suprema Corte igualmente garantiu:


a hospitais privados a possibilidade de negar abortos, mesmo os autorizados pela Constituição
e até mesmo a prerrogativa de demitir os médicos envolvidos nas operações (Taylor v. St.
Vincent’s Hospital). Assim como consentiu com que empregadores privados demitissem
empregados em função do exercício da liberdade de expressão o por atuarem politicamente
(Rendell-Baker v. Kohn) (CHEMERINSKY, 1985, p. 511, notas de rodapé 27 e 28).

Sem embargo, o outro lado da moeda é o de que, quando a ação de atores privados for
equivalente a uma state action, estarão eles vinculados integralmente aos direitos fundamentais
positivados no texto constitucional.

Neste sentido, o caso mais emblemático de reconhecimento da incidência de direitos


fundamentais em uma relação privada pela aplicação da state action foi o caso Marsh v.
Alabama julgado pela Suprema Corte em 1946. Discutia-se se uma empresa privada, que
possuía uma porção de terras no interior dos Estados Unidos grande o bastante para abrigar
ruas, residências, igrejas e estabelecimentos comerciais, formando uma pequena cidade, podia
ou não proibir testemunhas de Jeová de pregarem no interior da sua propriedade. A Corte
declarou inválida tal proibição, pois, ao manter sob seu domínio uma “cidade privada” (private
56

owned town), a empresa se equiparava ao Estado, de modo que se se sujeitava à I Emenda da


Constituição, que assegura a liberdade de culto.

Contudo, fora de situações assim peculiares ou em que o envolvimento do Estado era


demasiado evidente, a mera afirmação da necessidade de verificação do caráter estatal da
conduta do particular como pressuposto para a incidência dos direitos fundamentais não parecia
clara e segura o suficiente. Por isso a Suprema Corte passou a desenvolver requisitos objetivos
à aplicação da state action no ensejo de buscar caracterizar quando as ações privadas poderiam
ser submetidas à eficácia vinculante da Constituição. Com este fim, dois testes foram
desenvolvidos: o public function test; e o state involvement or encouragement theory (AYOUB,
2017, pp. 865-866).

O public function test envolve verificar se o particular estava exercendo uma função
pública quando ocorrida a lesão a direito fundamental. A premissa é a de que, se o Estado opta
por delegar uma função que tradicional e exclusivamente lhe é atribuída, então o ente privado
que a exerça sob sua autoridade está a praticar uma state action. Assim, neste conceito podem
ser enquadradas como exemplos de state action: a manutenção de parques urbanos; e a
organização de eleições primárias e a administração de uma cidade privada (AYOUB, 2017,
pp. 895-896).

Conforme Sarmento, os objetivos visados pela Suprema Corte ao conceber o public


function test eram: impedir que, por meio da delegação formal de suas funções típicas a
particulares, o Estado não se escusasse da garantia de direitos constitucionais; e reconhecer que,
ainda que não haja delegação formal, certas atividades, por sua própria natureza, são “funções
de caráter essencialmente público”, que, por isso, sujeitam-se “aos mesmos condicionamentos
constitucionais impostos aos Poderes Públicos (2010, pp. 214-215).

Já o segundo teste, a state involvement or encouragement theory, sustenta-se na ideia


de que um ator privado pode se tornar tão envolvido ou encorajado pelo Estado que sua conduta
possa ser qualificada como state action (AYOUB, 2017, p. 896).

O conceito foi aplicado em casos envolvendo a execução judicial de condutas


discriminatórias e a destinação de recursos públicos (public funding) ou subsídios a instituições
que praticam discriminação (AYOUB, 2017, p. 897). Foi assim determinante no caso Norwood
v. Harrison, em que restou decidido pela Suprema Corte que o Estado não poderia emprestar
livros a escola privada que mantivesse políticas segregacionistas.
57

Ayoub explica que a maior dificuldade nesses casos é justamente a de identificar se o


envolvimento estatal é tão difundido que, sozinho, facilita ou apoia significativamente a
conduta ilícita. Nesta toada, a Suprema Corte entendeu no caso Norwood v. Harrison que o
Estado não poderia garantir auxílio financeiro debatido se ele tendesse, significativamente, a
facilitar, reforçar e apoiar discriminações em âmbito privado (AYOUB, 2017, p. 897).

De outra parte, é certo que esta doutrina tão tradicional não passou tantas décadas sem
ter sido criticada, destacando-se nesta perspectiva, as obras de Black, Karst, Horowitz e o
clássico artigo de Chemerinsky, aqui já citado, denominado Rethinking state action, cujas
principais ideias podem ser resumidas nos seguintes tópicos:

● A state action fazia sentido enquanto vigorava a crença de que a common law
dos Estados abarcaria todos os direitos individuais, de modo que bastaria à
proteção dos indivíduos em relações privadas. Todavia, o avanço da jurisdição
constitucional, a Suprema Corte garantiu a proteção de uma série de direitos
não previstos em nível infraconstitucional. Por exemplo, a common law não
trazia proteção específica contra discriminação racial, ofensas à liberdade de
expressão ou à autonomia reprodutiva em nível privado. Assim, a doutrina teria
se tornado anacrônica e incapaz de tutelar a liberdade individual (1985, pp.
511-519);

● A teoria ignora a razão fundamental pela qual os direitos são protegidos em


primeiro lugar, qualquer seja o ponto de vista teórico adotado: positivismo,
direito natural, teorias do consenso, ou a visão moderna do direito
constitucional. Se, segundo o positivismo, todo o direito deriva do Estado, a
rigor não há uma esfera de comportamentos individuais livres, alheia à sua
interferência. Assim, toda a atividade privada decorre de uma decisão estatal
de não proibi-la. Disto deriva que há uma state action por detrás de qualquer
violação privada a direito fundamental. A seu turno, as teorias de direito
natural, defendem, ao contrário do positivismo, que há direitos que
independem da existência do Estado, cuja tarefa é defendê-los. Se assim é,
qualquer ofensa a direito fundamental, independentemente da qualidade do
sujeito que a perpetre, decorre de uma falha estatal em proteger adequadamente
direitos naturais do Homem, de modo que há, igualmente, uma state action por
detrás de toda ofensa a direito fundamental em relação privada. Por fim, as
teorias do consenso têm por traço comum defender que os direitos são
58

salvaguardas de proteção de atividades e liberdade consensualmente


consideradas dignas de proteção. Desta maneira, qualquer ofensa a elas, seja
praticada pelo Estado ou por entes privados fere o consenso que os embasa. A
conclusão, destarte, é de que a state action não faz sentido nem perante o
positivismo, nem perante as escolas de direito natural ou as teorias do
consenso. Ademais, conforme a interpretação moderna que a Suprema Corte
faz dos direitos fundamentais, entendidos como reflexos de atividades e
liberdades tidas como de alto valor, e, por isso, fundamentais, então qualquer
negativa a eles, não importando o ator envolvido, deve ser submetida a controle
judicial. Se o papel da Corte é de proteger valores fundamentais, não há razão
para limitar sua atuação à sua tutela exclusivamente contra ações estatais
(1985, pp. 519-535);

● As justificativas contemporâneas para a state action, a de que ela tutela a


autonomia privada e a soberania dos Estados não foram devidamente
analisadas pela doutrina. A doutrina não promove a liberdade individual e, pelo
contrário permite sua restrição. Ao deixar de analisar causas pela exigência de
state action a Suprema Corte deixa de considerar qual seria a melhor forma de
proteger a liberdade dos envolvidos em casos de restrição na esfera privada.
Opta-se por simplesmente proteger a liberdade do violador, sem ponderar o
valor dos direitos em conflito, de modo que os limites da autonomia privada
seguem indefinidos. Assim, a eliminação da doutrina, na verdade, maximizaria
a tutela da liberdade delimitando o seu âmbito de proteção. Outrossim, a state
action não é necessária como proteção da intervenção estatal em condutas
privadas, porque a esfera de “não intervenção” pode muito bem ser delimitada
por princípios gerais já delineados pela doutrina e pela prática jurisprudencial.
Por outro lado, quanto à necessidade de proteção da a soberania dos Estados,
o fato é que ela não pode ser por eles oposta como justificativa para permitir
violações a direitos constitucionais. Os Estados “não têm o poder de impedir a
reparação de negações de liberdade e igualdade”. Eliminar os requisitos de
state action tampouco provocaria perda de autonomia, pois o dever de proteção
aos quais os Estados se submeteriam ainda lhes conferiria grande flexibilidade
na escolha dos meios de proteção.
59

No Brasil, como se abordará melhor em tópico específico, a doutrina da state action


não tem grande ressonância, prevalecendo de modo amplamente majoritário o entendimento de
que os direitos fundamentais previstos na Constituição não se dirigem apenas aos agentes
públicos, mas a todos os sujeitos, indistintamente.

Sem embargo, curiosamente, – tendo em consideração essa preocupação não ter sido
demonstrada com relação a outros direitos fundamentais – no julgamento do Recurso
Extraordinário n.º 201.819, o Supremo Tribunal Federal observou o caráter público, ou
“semipúblico” (SARMENTO, 2010, p. 275), da atividade exercida por associação como
justificativa para a eficácia horizontal do devido processo legal em uma relação privada,
anulando a decisão de expulsão de um associado por não lhe ter sido garantida a oportunidade
de exercício do direito de defesa.

O Ministro Gilmar Mendes, cujo voto liderou maioria, anotou que, considerado o fato
de que a adesão à associação era uma necessidade decorrente da atividade profissional de
compositores, sem a qual a arrecadação de direitos autorais não seria possível, evidenciava-se
forte caráter público em sua atividade; o que justificaria sua qualificação como integrante de
“espaço público, ainda que não-estatal” e a oponibilidade de direitos fundamentais como
limitante de sua autonomia privada.

De todo modo, como será melhor desenvolvido em tópico próprio a tradição do


Supremo Tribunal Federal é a de invocação direta dos direitos fundamentais em relações
privadas.

Também na Europa doutrinas negativas da eficácia dos direitos fundamentais em


relações privadas como a state action não gozam de aceitação. Como já foi dito, no panorama
doutrinário e jurisprudencial do velho continente a discussão da doutrina contemporânea de
direitos fundamentais não mais versa sobre a questão “se” os direitos fundamentais vinculam
particulares; e sim “como” se dá essa vinculação.

No tópico que se inicia será abordada a teoria da eficácia horizontal mediata dos
direitos fundamentais, que foi desenvolvida inicialmente na Alemanha por Dürig, e que acabou
se tornando a concepção majoritária no país, contando inclusive com a sua adoção pelo
Bundesverfassungsgericht, já desde o famoso Caso Lüth, julgado em 1958.
60

3.3. Teoria da eficácia horizontal mediata ou indireta dos direitos fundamentais. A


concepção de Dürig. O Caso Lüth como marco da jurisprudência do
“Bundesverfassungsgericht”

A concepção hoje predominante na doutrina e jurisprudência tedescas é a de que a


invocação da eficácia de direitos fundamentais em relações privadas pressupõe a sua mediação
pelo legislador ordinário, que a elas estende os seus efeitos por meio da positivação de cláusulas
gerais e conceitos jurídicos indeterminados em normas de direito privado, e cuja interpretação
e integração há de ser feita à luz dos direitos fundamentais previstos na Constituição, que
constituem uma ordem objetiva de valores que irradia por todo o ordenamento jurídico..

Originalmente, a teoria da eficácia horizontal mediata ou indireta dos direitos


fundamentais (mittelbare Drittwirkung), uma concepção intermediária entre as teorias que
negam sua eficácia sobre relações privadas e as que defendem sua incidência direta, foi proposta
por Dürig na obra Grundrechte und Zivilrechtsprechung (Direitos Fundamentais e
Jurisprudência Civil), publicada em 1956, sete anos após a promulgação da Lei Fundamental
de Bonn (ALEXY, 2015, p. 511; SARMENTO, 2010, p. 221; V.A. SILVA, 2011, p. 75).

O professor da Universidade de Tübingen compartilha com os defensores da teoria da


eficácia direta e imediata a ideia de que, além da dimensão subjetiva, que diz respeito aos
direitos subjetivos que eles conferem ao indivíduo em face do Estado, os direitos fundamentais
possuem também uma dimensão objetiva, que os faz serem tomados como conjunto de valores
objetivos básicos que irradia seus efeitos por todo o ordenamento jurídico. Todavia, ele rejeita
veementemente a sua oponibilidade direta em relações privadas como fonte de direitos
subjetivos, sem que antes o seu conteúdo tenha sido condensado pelo legislador ordinário em
norma de direito privado (SARLET, 2000, pp. 10-11).

Na sua visão, o reconhecimento da vinculação direta de particulares a direitos


fundamentais representaria tanto a perda da autonomia do direito privado, que seria estatizado
em prejuízo de sua longa tradição histórica, quanto um potencial aniquilamento da sua pedra
angular: a autonomia privada (DÜRIG, 1956, pp. 183-184 apud SARLET, 2000, p. 10).

No mesmo sentido, Hesse, outro defensor da eficácia horizontal mediata dos direitos
fundamentais, confirma o risco oferecido à autonomia privada, pelo fato de que nas relações
privadas, ao contrário do que ocorre nas relações com o Estado, os indivíduos podem dispor da
proteção que lhes é conferida por normas de direitos fundamentais (HESSE, 1995, p. 60).
61

Outrossim, para Hesse, o reconhecimento da possibilidade de invocação direta de direitos


fundamentais em âmbito privado, considerado o seu elevado grau de indeterminação semântica,
importaria prejuízo à clareza de significado e à segurança jurídica necessárias para o tráfego
jurídico-privado, contrariando a tarefa reservada ao direito civil no Estado de Direito, que, “por
princípio corresponde possibilitar la configuración de las relaciones jurídicas y la solución de
los problemas mediante reglas claras, detalladas y determinadas” (HESSE, 1995, p. 60).

Na proposta de Dürig, portanto, a realização em concreto da eficácia irradiante dos


direitos fundamentais, seria realizada, a princípio, pela interpretação em conformidade com seu
conteúdo das normas de direito privado específicas para a regulação da situação privada
analisada pelo órgão julgador. Já quando ausente norma específica, a sua incidência se daria
por meio da aplicação das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados positivados,
cuja interpretação e integração haveria de ser feita igualmente tendo em consideração os direitos
fundamentais (Cf. SARMENTO, 2010, p. 222). Portanto, como também defende Hesse (1995,
pp. 64-67), Dürig entende que incumbe precipuamente ao legislador a tarefa de conformação
do conteúdo jurídico dos direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares
(SARLET, 2000, p. 11).

Como dito, além do sucesso doutrinário, a teoria da eficácia horizontal mediata


conquistou também a jurisprudência do Tribunal Federal Constitucional da Alemanha
(Bundesverfassungsgericht). Costuma-se associar o multicitado caso Lüth, julgado em 15 de
janeiro de 1958, como marco de sua adoção pela Corte.

Eric Lüth, então diretor do Clube de Imprensa da cidade de Hamburgo, foi a público
sustentar um boicote à exibição de Unsterbliche Geliebte (“Amada imortal”) no festival de
cinema da cidade, filme produzido por Veit Harlan, ator e diretor cujo passado era de forte
associação com o regime nazista. Harlan havia prestado serviços como cineasta diretamente à
cúpula do Dritte Reich, tendo inclusive produzido, a pedido de Goebbels, o filme de propaganda
antissemita Jud Süß, que retratava um judeu de forma caricata e discriminatória com o fim de
fomentar o clima de perseguição desejado.

Em reação ao boicote promovido por Lüth, a produtora e a distribuidora do filme


recorreram ao Judiciário em busca da obtenção de uma medida liminar que o forçasse a se
abster de exortar o público, os cinemas e os teatros contra o filme. O pedido foi deferido em
primeira instância, tendo o juiz baseado a tutela concedida no §856 do Código Civil Alemão
(Bürgerliches Gesetzbuch – BGB), que determina que “aquele que, contrariando os bons
62

costumes, causar dolosamente dano a alguém, é responsável pela sua recomposição”12.


Entendeu o juízo de primeira instância que a conduta de Lüth contrariava o conceito de “bons
costumes” positivado no dispositivo.

Inconformado, Lüth apelou para o Tribunal de Justiça de Hamburgo


(Oberlandesgericht), mas a decisão de primeiro grau foi confirmada, concluindo a Corte que a
conduta feria a dignidade humana do cineasta, configurando, portanto, uma efetiva ofensa aos
bons costumes.

Lüth então levou o caso ao Bundesverfassungsgericht por meio de reclamação


constitucional (Verfassungsbeschwerde) cuja decisão lhe foi finalmente favorável

A importância do caso para o direito constitucional da Alemanha consiste no fato de o


Bundesverfassungsgericht ter superado neste julgamento, tanto a ideologia liberal no tocante à
vinculação exclusiva dos Poderes Públicos aos direitos fundamentais, quanto o impedimento
literal à vinculação dos particulares posto pelo art. 1º, III da Lei Fundamental de Bonn, que é
expressa ao ditar que os direitos fundamentais “vinculam os Poderes Legislativo, Executivo e
Judiciário” (V.A. SILVA, 2011, pp. 136-140), para afinal reconhecer que, embora os direitos
fundamentais, se dirijam primordialmente ao Estado, eles compõem uma ordem de valores
objetiva que emana seu conteúdo de forma vinculante a todas as áreas do direito (dimensão
objetiva dos direitos fundamentais).

A Corte estabeleceu que, como defende Dürig, a sua realização em concreto no direito
civil, como fonte de regulação situações privadas, se dá meio da aplicação de cláusulas gerais
e conceitos jurídicos indeterminados positivados pelo legislador, servindo os direitos
fundamentais de critério valorativo para sua interpretação e integração.

Também foi abordada a peculiaridade da incidência de direitos fundamentais na seara


privada, onde colidem posições jurídicas igualmente tuteladas em nível constitucional, tendo
sido fixada a exigência de que a norma individual e concreta formulada para a solução da lide,
observasse, necessariamente, todas as circunstâncias do caso concreto, efetuando uma
ponderação dos bens jurídicos em conflito.

Ademais, a decisão resolveu que, ainda que decida uma relação privada, uma sentença
judicial pode configurar lesão estatal a direitos fundamentais, quando sua eficácia irradiante

12
No original: “§ 826 Sittenwidrige vorsätzliche Schädigung – Wer in einer gegen die guten Sitten verstoßenden
Weise einem anderen vorsätzlich Schaden zufügt, ist dem anderen zum Ersatz des Schadens verpflichtet.”.
63

não for devidamente observada na fundamentação. Assim é que a Corte Constitucional poderia
intervir no julgamento de casos concretos sempre que um órgão jurisdicional restringisse de
modo inadmissível a pretensão à eficácia de um direito fundamental. Entendimento que
representou grande ampliação de sua competência, já que a atuação do
Bundesverfassungsgericht era inicialmente restrita ao controle abstrato de constitucionalidade.

Assim, a Corte definiu que a manifestação de Lüth não ofendia os “bons costumes” na
forma do § 826 BGB, pois estava albergada pelo direito fundamental à liberdade de expressão,
cujo conteúdo jurídico é de observância obrigatória na interpretação dessa cláusula geral.

Confira-se a ementa em tradução livre:

1. Os direitos fundamentais são, em primeiro lugar, linha de defesa dos cidadãos


contra o Estado; o conteúdo jurídico dos direitos fundamentais da Constituição
incorpora também uma ordem objetiva de valores, que, como escolhas fundamentais
de caráter constitucional, valem para todas as áreas do Direito.
2. No direito civil, a reserva jurídica dos direitos fundamentais é desenvolvida pelas
normas de direito privado. Ele adota disposições de natureza obrigatória e é realizável
pelo juiz especialmente por meio de cláusulas gerais (Generalklauseln).
3. O juiz civil pode ofender direitos fundamentais por meio de uma sentença (§ 90, da
Lei Fundamental do Bundesverfassungsgericht), quando ele deixa de reconhecer a
influência dos direitos fundamentais sobre o direito civil. O Tribunal Constitucional
reexamina nas decisões cíveis tão somente o tocante à questão da violação dos direitos
fundamentais, não se manifestando sobre erros jurídicos em geral.
4. Também as normas de direito privado podem ser interpretadas como “leis gerais”
no sentido do art. 5º, inciso 2 da Lei Fundamental e, assim, limitar o direito
fundamental à liberdade de expressão.
5. As "leis gerais" devem ser interpretadas à luz do especial significado do direito à
liberdade de expressão para um Estado livre e democrático.
6. O direito fundamental do art. 5º da Lei Fundamental protege não somente a
expressão de uma opinião, bem como, os efeitos espirituais (geistige Wirken) obtidos
por meio da sua manifestação.
7. A exteriorização de uma opinião que conclama ao boicote não necessariamente
viola os bons costumes na forma do § 826 BGB; podendo ela ser justificada
constitucionalmente, com base na liberdade de expressão, pela ponderação
(Abwägung) de todas as circunstâncias envolvidas no caso concreto13. (BVerfGE,
1958, on-line).

13
No original: “1. Die Grundrechte sind in erster Linie Abwehrrechte des Bürgers gegen den Staat; in den
Grundrechtsbestimmungen des Grundgesetzes verkörpert sich aber auch eine objektive Wertordnung, die als
verfassungsrechtliche Grundentscheidung für alle Bereiche des Rechts gilt. 2. Im bürgerlichen Recht entfaltet sich
der Rechtsgehalt der Grundrechte mittelbar durch die privatrechtlichen Vorschriften. Er ergreift vor allem
Bestimmungen zwingenden Charakters und ist für den Richter besonders realisierbar durch die Generalklauseln.
3. Der Zivilrichter kann durch sein Urteil Grundrechte verletzen (§ 90 BVerfGG), wenn er die Einwirkung der
Grundrechte auf das bürgerliche Recht verkennt. Das Bundesverfassungsgericht prüft zivilgerichtliche Urteile nur
auf solche Verletzungen von Grundrechten, nicht allgemein auf Rechtsfehler nach. 4. Auch zivilrechtliche
Vorschriften können "allgemeine Gesetze" im Sinne des Art. 5 Abs. 2 GG sein und so das Grundrecht auf Freiheit
der Meinungsäußerung beschränken. 5. Die "allgemeinen Gesetze"müssen im Lichte der besonderen Bedeutung
64

Como se vê, essa teoria confere lugar de destaque aos direitos fundamentais na ordem
jurídica. A Constituição, onde eles estão positivados como ordem objetiva de valores, ocupa
estrato superior no ordenamento jurídico, de onde operam como vetor sistematizador e
condicionante da validade de todas as normas que o integram, de modo que os efeitos dos
direitos fundamentais, em sua dimensão objetiva, irradiam por todas as áreas do direito, sem
que hajam locais imunes à sua incidência.

Assim, longe de não reconhecer a sua eficácia nas relações privadas, entendem seus
defensores simplesmente que o lugar ideal para a conformação de seu conteúdo jurídico neste
cenário de aplicação, não é o Judiciário, e sim o Legislativo, que há de garantir sua proteção
adequada suficiente por mecanismos típicos do próprio direito privado compatibilizados com a
Constituição; porém, sem negligenciar a tutela da autonomia da vontade, ponderando
antecipadamente os potenciais interesses constitucionais em conflito e os acomodando “em
consonância com a consciência social de cada época”, fixando o “grau de cedência recíproca
de cada um dos bens jurídicos confrontantes” (SARMENTO, 2010, p. 224).

Mas a teoria tampouco negligencia o papel do Judiciário na garantia de sua eficácia


nas relações privadas, incumbindo, em sua visão, valer-se os preceitos fundamentais como
balizas hermenêuticas da interpretação das cláusulas gerais e conceitos jurídicos
indeterminados, portal de introdução dos valores constitucionais no direito privado; e ainda
rejeitar, por inconstitucionalidade, as normas privadas lesivas a direitos fundamentais
(SARMENTO, 2010, p. 224).

Sem embargo, quando em sua atividade o Judiciário descuida de conferir a devida


eficácia aos direitos fundamentais na solução de casos concretos pela aplicação de normas
privadas, caracteriza-se verdadeira responsabilidade estatal pela lesão, habilitando-se a sua
censura pela jurisdição constitucional, tal como procedeu o Bundesverfassungsgericht no caso
Lüth.

Há ainda de se dizer que, alguns autores reconhecem também que, embora a regra seja
a eficácia mediata, nas situações excepcionais em que o juiz se confronte com autênticas
lacunas do ordenamento privado, e de ausência mesmo de cláusulas gerais ou conceitos

des Grundrechts der freien Meinungsäußerung für den freiheitlichen demokratischen Staat ausgelegt werden. 6.
Das Grundrecht des Art. 5 GG schützt nicht nur das Äußern einer Meinung als solches, sondern auch das geistige
Wirken durch die Meinungsäußerung. 7. Eine Meinungsäußerung, die eine Aufforderung zum Boykott enthält,
verstößt nicht notwendig gegen die guten Sitten im Sinne des § 826 BGB; sie kann bei Abwägung aller Umstände
des Falles durch die Freiheit der Meinungsäußerung verfassungsrechtlich gerechtfertigt sein" (BVerfGE, 1958,
on-line).
65

jurídicos indeterminados capazes de resolver a situação concreta, admite-se, sim, a sua


invocação direta. É a posição de Larenz, Mota Pinto e Böckenforde (SARMENTO, 2010, p.
225), afirmando o último que:

Si faltan tales puntos de conexión [as cláusulas gerais e os conceitos jurídicos


indeterminados] no cesa la actuación de los derechos fundamentales, sino que se
impone, directamente. E1 propio derecho fundamental se convierte en punto de
conexión para los deberes de acción o omisión de terceros o para los propios
derechos en el Ordenamiento jurídico-privado o en otros Ordenamientos jurídicos
parciales: oclusión de lagunas de protección de valores en virtud de Ia supremacía
de Ia Constitución o, precisamente, eficacia directa jurídico-material frente a
terceros. (1993, p. 113-114).

Por isso a lição de Sarmento é feliz ao resumir a teoria como “uma espécie de
compromisso entre o pendor socializante da teoria da eficácia horizontal direta, e a visão liberal
clássica dos direitos fundamentais” (2010, p. 226).

Os seus críticos mais liberais, no entanto, denunciam que a invasão do direito privado
pelos valores constitucionais gera insegurança jurídica pela perda de previsibilidade na
aplicação das normas civis e comerciais (SARMENTO, 2010, p. 228). Enquanto os adeptos da
teoria rival, de eficácia imediata, apontam que a tutela dos direitos fundamentais resta
prejudicada quando condicionada sua eficácia aos “incertos humores do legislador ordinário”
(SARMENTO, 2010, p. 228). Na Espanha, Bilbao Ubillos, por sua vez, reputa-a supérflua, por
não se diferenciar da já sedimentada noção de que o direito privado há de ser interpretado
conforme a Constituição. (1997, p. 313 apud SARMENTO, 2010, p. 228).

Embora goze de prestígio na doutrina e jurisprudência alemã, a teoria da eficácia


horizontal mediata não é unanimidade. É o que será exposto a seguir, no tópico que cuidará de
sua teoria rival: a da eficácia imediata dos direitos fundamentais sobre as relações privadas.

3.4. Teoria da eficácia imediata ou direta dos direitos fundamentais. Hans Carl Nipperdey
e o “Bundesarbeitsgericht”. Recepção da teoria na Europa continental

A doutrina que defende que a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas
se dá de forma imediata (unmittelbare Drittwirkung), isto é, dispensando a interpositio
legislatoris, foi desenvolvida inicialmente na Alemanha por Hans Carl Nipperdey, que foi
presidente do Tribunal Federal do Trabalho (Bundesarbeitsgericht) de 1954 a 1963, tendo sido
66

posteriormente reforçada por Walter Leisner, um dos poucos autores de língua alemã que a
acataram, pois ela é rechaçada majoritariamente no país (BILBAO UBILLOS, 2005, p. 7;
SARLET, 2000, p. 9; SARMENTO, 2010, p. 228). Não é nenhuma surpresa, portanto, que o
seu principal representante na jurisprudência seja a 1ª Turma do Bundesarbeitsgericht
(ALEXY, p. 529), que a expôs inicialmente em um julgado de 1954 (BILBAO UBILLOS,
2005, p. 7).

Suas ideais são que, se a ordem jurídica há de ser compreendida como unidade
ordenada pela força normativa da Constituição e que os direitos fundamentais compõem uma
ordem de valores nela positivada como direito constitucional objetivo e vinculante, é certo que
seu conteúdo jurídico se irradia por todo o ordenamento jurídico, não havendo sentido na
consideração de que eles vinculam somente o Estado, tampouco que o direito privado pudesse
ser considerado área isolada de seus efeitos; um “gueto” na forte metáfora de Sarlet (2011, p.
9). Até este ponto, há concordância com a teoria da eficácia mediata. A sua diferença principal
é o argumento de que os seus efeitos sobre o direito privado não se resumem à influência
exercida sobre a interpretação e a integração das suas normas, pois deles derivam, também,
diretamente, direitos subjetivos privados aos indivíduos (Cf. ALEXY, p. 530).

Na proposta de Nipperdey, que é compartilhada por Mangoldt, um dos principais


autores da Lei Fundamental de Bonn, compreendê-los como não diretamente vinculantes aos
particulares equivaleria a conferir-lhes caráter meramente declaratório (BLECKMANN, 1997,
pp. 226-227 apud SARLET, 2000, p. 10). Ao mesmo tempo, seria inegável o seu caráter
vinculante na esfera privada, em face à constatação de que a ameaça aos direitos fundamentais
pode da mesma forma advir de poderes sociais, e não exclusivamente do Estado, como
propunha o ideal liberal que inspirou sua formulação como direitos de defesa. A extensão dos
efeitos dos direitos fundamentais às relações privadas seria direta consequência da opção
constitucional pelo Estado Social, fundada, no nível dos fatos, no expresso reconhecimento
dessa realidade (SARMENTO, 2010, pp. 229-230).

Assim ele afirma:

[...] o efeito jurídico [dos direitos fundamentais] é muito mais um efeito normativo
direto, que modifica as normas de direito privado existentes, não importa se se trata
de direitos cogentes ou dispositivos, de cláusulas gerais ou normas jurídicas
específicas, ou cria novas normas, sejam proibições, deveres, direitos subjetivos, leis
de proteção ou motivos justificadores (1962, pp. 17-33 apud 2015, p. 530).
67

Por isso o autor pioneiro sustenta que aos direitos fundamentais deve ser reconhecido
um efeito absoluto (absolute Wirkung), de modo que não carecem de mediação legislativa para
serem aplicados a relações privadas e não dependem de “artimanhas interpretativas” que
busquem equiparar o ator privado ao Estado com o fim de justificá-la (NIPPERDEY, 1962, p.
24 apud SARLET, 2000, p. 10; NIPPERDEY, 1962, p. 15 apud V.A. SILVA, 2011, p. 87).
Destacando-se que ao mencionar seus efeitos absolutos o autor não faz menção a uma
concepção dos direitos fundamentais como direitos absolutos (V.A. SILVA, 2001, p. 87).

Sem embargo, assim como os adeptos da teoria indireta, seus defensores não negam
que a incidência em relações privadas possui peculiaridades quando comparada com o que
ocorre nas relações com o Estado, considerado o fato de que ambos os sujeitos são titulares de
direitos fundamentais e a necessidade de respeito à autonomia privada. Com efeito, como
expressa Alexy, a questão não é tomada por nenhuma das duas como uma “simples troca de
destinatários”; pelo contrário, reconhece-se uma modulação dos efeitos de sua força vinculante
por meio de um sopesamento dos interesses em jogo (2015, p. 532).

Outrossim, a teoria da eficácia imediata prega que o afastamento da aplicação da


norma de direito civil específica para a busca de uma solução com sede na aplicação direta dos
direitos fundamentais exige justificação. O juiz deve se desincumbir desse ônus argumentativo.
Neste ponto, há, portanto, concordância com a teoria da eficácia indireta, no que se refere ao
reconhecimento do legislador como titular de uma posição preferencial na conformação e
ordenação do conteúdo jurídico dos direitos fundamentais. Por isso Alexy aponta como outra
semelhança entre as duas teorias o fato de se dirigirem precipuamente ao Judiciário (2015, p.
531).

O exemplo mais famoso de aplicação da teoria da eficácia horizontal imediata foi um


caso julgado em 10 de maio de 1957 pelo Bundesarbeitsgericht, em que, baseando-se na
proteção à família e ao matrimônio conferida pela o art. 6º da Lei Fundamental; na proteção da
dignidade humana e no caráter vinculante dos direitos fundamentais (art. 1º); no direito
fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade (art. 2º); e na igualdade entre homens
e mulheres, com proibição da discriminação de gênero (art. 3º), o Tribunal concluiu ser “[...]
nulo o ajuste de condição extintiva da relação de trabalho da empregada em momento
determinado no caso de matrimônio”14.

14
No original: “1. Die Vereinbarung einer auflösenden Bedingung, daß im Falle der Eheschließung der
Arbeitnehmerin das Arbeitsverhältnis zu einem bestimmten Zeitpunkt endigt, ist nichtig.” (BAG, 1957, on-line).
68

Sem embargo do peso doutrinário desta visão teórica, Sarlet conta que ela acabou
sendo abandonada na Alemanha por seus próprios defensores “na medida em que se reconheceu
a existência de uma diferença estrutural entre as relações particular/Estado e dos particulares
entre si, já que estes, em regra, são todos igualmente titulares de direitos fundamentais”
(SARLET, 2000, p. 10). No mesmo sentido Virgílio Afonso da Silva informa que “Até mesmo
a jurisprudência do Tribunal Federal do Trabalho, que antes, sob a influência de Nipperdey, era
partidária do modelo de aplicabilidade direta, cada vez mais tende a abandonar essa posição
inicial para juntar-se à jurisprudência do Tribunal Constitucional” (V.A. SILVA, 2011, p. 81).

Embora não goze de prestígio em terras germânicas, a teoria da eficácia imediata é


hoje majoritária, tanto em Portugal, quanto na Espanha (SARMENTO, 2010, p. 229). O mesmo
se diga do Brasil, como se demonstrará no próximo capítulo.

Veja-se que, no direito português, o constituinte originário cuidou de fixar


expressamente a incidência dos direitos fundamentais em relações privadas. Assim determina
o art. 18.1 da Constituição Portuguesa: “os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos,
liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”.

Interpretado literalmente, não há dúvida acerca de sua eficácia direta e imediata. Mas
há corrente minoritária em terras lusitanas composta por Lucas Pires e Motta Pinto que insiste
na necessidade de sua mediação pelo legislador (SARMENTO, 2010, p. 233). Sem embargo, a
corrente dominante, integrada, dentre outros, por Canotilho, acolhe a teoria da vinculação direta
dos particulares a direitos fundamentais. Assim assevera taxativamente o mestre de Coimbra:
“a Constituição Portuguesa consagra inequivocamente a eficácia imediata em relação a
entidades privadas (art. 18. °/1) “ (1996, p. 595).

O jurista português, reconhece, todavia, que há direitos fundamentais previstos na


Carta lusitana que somente podem ter como sujeito passivo o próprio Estado (p.ex. 22, 31,
49.71, 52.72), e que a teoria dispensa invocação quando a própria constituição determina a
eficácia em relação a terceiros (p.ex. 37.74 e 38.72) (CANOTILHO, 1996, p. 594).

Na Espanha, a teoria é defendida por autores como Quadra-Salcedo, Bilbao Ubillos,


Vega Garcia, Perez Luño e Naranjo de la Cruz (SARMENTO, 2010, p. 230).

Bilbao Ubillos, em prol do modelo de aplicabilidade direta dos direitos fundamentais,


apresenta os seguintes argumentos: na atualidade o poder dificilmente se apresenta como
exclusivamente público ou privado; igualmente, há um progressivo entrecruzamento entre as
esferas pública e privada, que torna tênue a fronteira entre o direito público e o direito privado;
69

a condição normativa da Constituição como norma básica e elemento de unidade de todo o


ordenamento; a força expansiva dos direitos fundamentais (2005, pp. 04-09).

Entretanto, o autor espanhol faz a ressalva de que os direitos fundamentais previstos


na Constituição de seu país divergem em estrutura normativa, de modo que cada um deles há
de ser analisado individualmente com o fim de se determinar a existência e a amplitude de sua
eficácia horizontal. Direitos como o direito à honra, à intimidade, à imagem e à liberdade de
religião, por exemplo, seriam dotados de eficácia horizontal imediata, enquanto outros, por sua
própria natureza, vinculariam apenas o Estado. Ademais, mesmo admitida a eficácia horizontal
imediata de alguns direitos fundamentais, é certo que ela não se manifestaria de forma absoluta,
fazendo-se necessária a sua ponderação casuística com o autonomia privada do particular,
diferenciadora da tutela dos direitos fundamentais no campo das relações públicas e privadas
(SARMENTO, 2010, p. 230). Posição similar é defendida por Vega Garcia e Naranjo de la
Cruz (SARMENTO, 2010, p. 230).

Sem embargo, se no caso da teoria da eficácia horizontal indireta, a tutela integral dos
direitos fundamentais fica sujeita aos humores incertos do legislador (SARMENTO, 2010, p.
228), também é certo que o reconhecimento da eficácia direta e imediata sujeita a tutela à
subjetividade do juiz – ao risco de ativismo judicial. Por isso mesmo os defensores da eficácia
imediata preocupam-se com a moderação da atuação do Poder Judiciário em sua aplicação (Cf.
SARMENTO, 2010, p. 284).

Neste mesmo sentido, Canotilho destaca que aos juízes cabe, em primeiro lugar aplicar
a legislação ordinária de direito privado que condensa “a mediação legal dos direitos, liberdades
e garantias”, interpretando-a conforme a os direitos fundamentais “pela via da interpretação
conforme a constituição”. Se esta for insuficiente, há de ser exercido o controle de
constitucionalidade com a “desaplicação da lei”15. Por fim, há de se proceder à “interpretação
conforme os direitos, liberdades e garantias”, tomando em consideração, não apenas as
cláusulas gerais ou conceitos indeterminados, “mas também as próprias normas consagradoras
e defensoras de bens jurídicos absolutos”, concretizando sua eficácia no caso concreto,
partindo, não apenas de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, mas,
propriamente, diretamente do texto constitucional (1996, p. 598).

15
A incidência da lei é afastada do caso concreto analisado em função de sua inconstitucionalidade material.
70

3.5. Outras teorias alemãs. Canaris, Alexy e Schwabe

Embora o reconhecimento da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais se


divida, principalmente na Alemanha, entre esses dois blocos de teorias, a sua doutrina produziu
também variações relevantes das duas, cuja singeleza deste trabalho não permite uma
abordagem adequada. De todo modo, é mister relatar, ainda que de modo muito sucinto, as
seguintes:

● Teoria dos deveres de proteção de Canaris, Isensee, Oeter e Stern – A corrente


que advoga a teoria dos deveres de proteção nega que os particulares possam
ser considerados diretamente vinculados a direitos fundamentais, de modo que,
perante a ordem jurídica, o Estado seria o seu destinatário exclusivo, direto e
imediato. Por outro lado, seus adeptos consideram que as normas definidoras
de direitos fundamentais, para além de instituírem proibições de intervenção
ao Estado, também lhe impõem um imperativo de tutela, de modo que é seu
dever exercer as funções legislativa e jurisdicional de modo a lhes conferir
proteção suficiente. Há uma proibição à proteção insuficiente dos direitos
fundamentais (Untermassverbot), inclusive no que tange ao âmbito do tráfico
jurídico privado (SARMENTO, 2010, p. 241). Enquanto ao Poder Legislativo
incumbe legislar no sentido de se conferir proteção suficiente aos direitos
fundamentais, ao Poder Judiciário cabe a proteção dos direitos fundamentais
contra violações por outros particulares interpretando as normas de direito
privado conforme a Constituição e controlando a sua constitucionalidade.
Assim, os atores privados estariam apenas indiretamente vinculados aos
direitos fundamentais, sendo seu pressuposto a concretização legislativa dos
mandamentos constitucionais, que condensa o seu conteúdo e faz nascer
direitos subjetivos oponíveis entre particulares.

A doutrina dos deveres de proteção se aproxima das teorias que defendem a


eficácia horizontal mediata, porém delas se distancia na medida em que
reconhece o dever estatal de estabelecer meios de tutela eficazes para os
direitos fundamentais contra ações privadas, reconhecendo que cabe aos
Poderes Públicos intervir nessas relações com o fim de evitar ofensas. Canaris,
todavia, avança no sentido das teorias de eficácia imediata, sustentando que,
71

ausente proteção legislativa de um direito fundamental de um particular


ameaçado por outro, cabe ao juiz colmatar a lacuna, obedecendo ao princípio
da proporcionalidade, no sentido de que sua intervenção sobre a autonomia
privada seja adequada, necessária e proporcional em sentido estrito (2003, pp.
81-90 apud SARMENTO, 2010, p. 242).

● Teoria da convergência estatista de Schwabe – No modelo proposto por


Schwabe, os direitos fundamentais vinculam exclusivamente o Estado,
restando livres os particulares (1973, pp. 229-230 apud V. A. SILVA, ano, p.
104). Ademais, seria irrelevante a discussão sobre a eficácia horizontal direta
ou indireta, pois o exercício da autonomia privada é sempre decorrência de
uma autorização estatal (nota 81 apud SARLET, 2000, p. 16), de modo que
eventuais ofensas a direitos fundamentais no seu exercício são imputáveis ao
Estado e não ao particular violador, que por elas se torna responsável na medida
em que se omitiu na criação de uma proibição legal à conduta violadora (1971,
p. 17 apud V. A. SILVA, ano, p. 105). Portanto, o Estado há de responder por
uma ofensa a direitos fundamentais em âmbito interindividual sempre que não
exercer sua função legislativa vedando-a, pois da ausência de proibição decorre
a conclusão pela sua permissão estatal (1971, p. 17 apud V. A. SILVA, ano, p.
105). Assim, a invocação de sua proteção contra outro particular não deixaria
de ser um pedido de tutela contra uma ação estatal, de modo que a eficácia dos
direitos fundamentais se manifestaria nesta seara de forma mediada por direitos
exercíveis contra o Estado.

Destaque-se, contudo, Schwabe não propõe uma equiparação das ações


privadas às ações estatais, como é característica da doutrina da state action;
apenas responsabiliza o Estado pelos efeitos decorrentes dos atos privados (V.
A. SILVA, ano, p. 104).

● Teoria dos três níveis de Robert Alexy – Ao desenvolver seu próprio modelo
de incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas, Alexy parte
afirmando que as teorias vigentes (a direta, a indireta e a de efeitos mediados
por direitos em face do Estado), além de serem equivalentes em resultados,
falham primeiramente por se basearem no falso pressuposto que poderiam ser
corretas consideradas isoladamente (2015, pp. 531-533). A abordagem
adequada do fenômeno então exige a reunião dos elementos de todos os outros
72

modelos. Por isso a sua proposta conciliadora é a de um modelo dividido em


três níveis de efeitos: (1) o dos deveres estatais; (2) o dos direitos em face do
Estado; e (3) o das relações jurídicas entre sujeitos privados, sendo que, em
cada um deles, um dos modelos considerados exerce um papel decisivo.

O modelo de efeitos indiretos se destaca no primeiro nível, o dos deveres


estatais. Segundo Alexy, a visão que sustenta este modelo, dos direitos
fundamentais como ordem objetiva de valores válida para todo o direito, acerta
ao reconhecer que eles impõem ao Estado o dever de protegê-los, inclusive por
meio da legislação de direito privado, assim como pela sua aplicação judicial
nas relações entre particulares por meio da interpretação. No segundo nível,
dos direitos contra o Estado, revela-se a correção da teoria que os reconhece
mediados por direitos de defesa contra o Estado, pois, para sustentar o
entendimento de que o Estado também viola o seu dever de proteção ao não
vedar a ação violadora de um particular, não bastaria a alusão à eficácia
irradiante dos direitos fundamentais, sendo necessário igualmente o
reconhecimento de que deles derivam direitos subjetivos exigíveis em face do
Estado relativos à sua proteção em âmbito privado. Por fim, no terceiro e
último nível, o das relações entre particulares, é adequado o reconhecimento
de efeitos diretos dos direitos fundamentais. Isto, pois, no fim das contas,
independentemente do modelo aplicado na solução do caso sempre se
constatará um efeito direto dos diretos fundamentais na relação privada, pois a
exigibilidade do respeito a um direito fundamental em face de outro particular
não poderia se fundamentar unicamente em uma obrigação do Estado em
protegê-los. Seja porque o Estado está obrigado a considerar os direitos
fundamentais na interpretação do direito privado, seja porque o particular tem
um direito subjetivo contra o Estado de exigir sua proteção, o fato é que a ação
estatal em prol de sua tutela sempre acabará fundada no reconhecimento da
existência de um direito subjetivo de um particular, oponível ao terceiro
violador, sustentado por um princípio de direito fundamental (2015, pp. 533-
542). Na interpretação do conceito de efeitos diretos, todavia, há de se
considerar os três níveis, devendo ele ser compreendido no sentido de que:

[...] por razões ligadas aos direitos fundamentais, há determinados direitos e não-
direitos, liberdades e não-liberdades e competências e não-competências na relação
cidadão/cidadão, os quais não existiriam sem essas razões. Se se define o conceito de
73

efeitos diretos dessa forma, então, efeitos diretos decorrem tanto da teoria dos efeitos
indiretos quanto da teoria dos efeitos mediados pelo Estado. (2015, p. 539).

Assim é que, para Alexy, cada um dos modelos abarca um aspecto da mesma
questão, sendo que “decidir qual deles será escolhido na fundamentação
jurídica é uma questão de conveniência. Mas nenhum deles pode pretender
uma primazia sobre os outros” (2015, p. 540).

3.6. Considerações finais

Feita a breve explicação sobre as grandes teorias que discutem como se dá a incidência
de direitos fundamentais nas relações privadas, é possível concluir que na tradição romano-
germânica não gozam de prestígio posições extremadas que, ou negam em absoluto a
vinculação de particulares aos direitos fundamentais, ou pregam a sua vinculação irrestrita em
equivalência ao Estado.

Outrossim, mais do que uma tendência à moderação, as teorias da eficácia mediata e


imediata parecem compartilhar mais pontos em comum do que diferenças inconciliáveis, pois
todas as teses que pregam a incidência dos direitos fundamentais sobre as relações privadas,
ainda que divirjam, sobre o modo como se dá esse incidência, partem de duas premissas
comuns: a extrapolação da concepção liberal-negativa de que os direitos fundamentais somente
vinculam os Poderes Públicos; e o reconhecimento dos direitos fundamentais constituem uma
ordem objetiva de valores, cujos efeitos irradiam por todo o ordenamento jurídico (Cf. V. A.
SILVA, 2011, p. 136).

Traçado o panorama da discussão no continente europeu e norte-americano, é chegada


a hora de abordarmos como se deu a sua influência em na doutrina e na jurisprudência de nosso
país.
74

CAPÍTULO 4 – EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS


FUNDAMENTAIS CONFORME A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA
DO BRASIL

4.1. Notas introdutórias

A Constituição Federal de 1988 é pródiga na previsão de direitos fundamentais,


contando tanto com direitos individuais clássicos, quanto sociais e econômicos, coletivos e
difusos, e até mesmo alguns diretamente relacionados com situações privadas, em especial no
que se refere à família e ao trabalho. Apesar disso – é até curioso – o tema da vinculação dos
particulares aos direitos fundamentais ainda não havia sido objeto de monografias
especialmente dedicadas ao tema até 2004, ano em que foram publicados os trabalhos de Daniel
Sarmento e Wilson Steinmetz, inicialmente teses de doutorado apresentadas respectivamente
na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e na Universidade Federal do Paraná, que foram os
pioneiros na sua abordagem com tal extensão e profundidade (V.A. SILVA, 2005, p. 174). No
ano seguinte, veio a lume a tese de livre-docência de Virgílio Afonso da Silva, defendida
perante a Universidade de São Paulo, também posteriormente transformada em livro, que além
de tratar do argumento com a atenção que ele merece, traz também críticas relevantes às
considerações dos dois prógonos.

Pode-se dizer que essas monografias são hoje as obras basilares sobre a vinculação de
particulares aos direitos fundamentais na literatura jurídica brasileira. Por isso o presente
capítulo será dedicado, no campo doutrinário, à apresentação das posições dos três autores,
cujas inferências serão resgatadas no último capítulo, em que se buscará finalmente responder
à questão da vinculação das redes sociais de streaming ao direito fundamental ao devido
processo legal.

No campo jurisprudencial, o capítulo apresentará julgados importantes do Superior


Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal no afã de demonstrar a perspectiva das duas
cortes no tocante aos efeitos horizontais dos direitos fundamentais, em especial a teoria
eventualmente acolhida e os fatores observados na modulação de seus efeitos, dado o conflito
com a autonomia privada.
75

4.2. Daniel Sarmento

4.2.1. Vinculação direta dos particulares a direito fundamentais conforme a Constituição


Federal de 1988

Para Daniel Sarmento não há dúvida que a Constituição Federal de 1988 e os direitos
fundamentais que ela consagra não direcionam seus efeitos unicamente aos Poderes Públicos,
mas a todos os que se relacionam sob a ordem jurídica por ela instaurada.

Na sua opinião, a Carta Magna brasileira não se contenta com o papel limitado que foi
atribuído às constituições liberais: o de dispor apenas sobre a estrutura orgânica do Estado e de
regular somente as relações jurídicas em que figuram Estado e indivíduo. Ela vai além,
prevendo também os principais valores e diretrizes aceitos para a conformação da vida social
no país, de modo que ela não é somente a “Lei Fundamental do Estado brasileiro”, mas sim a
“Lei Fundamental do Estado e da sociedade” (SARMENTO, 2010, p. 258).

Na expressão de Sarmento, o nosso constituinte originário não se iludiu com a


“miragem liberal de que o Estado é o único adversário dos direitos humanos”, tendo refutado a
ideologia que determinou a separação entre direito público e privado e, por conseguinte, a
exclusão dos direitos fundamentais da seara das relações entre particulares. Bem ao contrário,
a Constituição brasileira seria intervencionista e social, o que se revela tanto por seu “generoso
elenco de direitos sociais e econômicos” nos arts. 6º e 7º, quanto pelo fato de a construção de
uma sociedade livre, justa e solidária, ter sido positivada como objetivo fundamental da
República em seu art. 3º, de modo que se firmou, em nível constitucional, a promoção da
igualdade substantiva como incumbência estatal (SARMENTO, 2010, p. 260).

Nesta toada, a Constituição brasileira seria “francamente incompatível” com o


pensamento prevalente durante século XIX, que negava a eficácia dos direitos fundamentais
nas relações privadas, bem como não se adapta à teoria majoritária na Alemanha que condiciona
a sua incidência “à vontade do legislador ordinário, ou os confina ao modesto papel de meros
vetores interpretativos das cláusulas gerais de direito privado” (SARMENTO, 2010, p. 260).
76

Por isso, para Sarmento, no cenário jurídico brasileiro a eficácia dos direitos
fundamentais nas relações privadas se dá, inegavelmente, de forma direta e imediata
(SARMENTO, 2010, p. 260).

A incompatibilidade do direito constitucional brasileiro com a teoria da eficácia


horizontal indireta é por ele justificada com base na percepção da existência de diferenças
fundamentais entre a Constituição Federal de 1988 e a Lei Fundamental de Bonn de 1949. Em
função de sua origem histórica, a Constituição da Alemanha teria se preocupado precipuamente
com a contenção do arbítrio estatal, tendo em vista ter sido concebida após a derrocada do
Estado totalitário nazista. Assim é que, de modo expresso, ela consagra a vinculação aos direitos
fundamentais apenas dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (art. 1,3), ao mesmo
tempo em que silencia no tocante à submissão dos particulares aos mesmos direitos, salvo o art.
9, 3, que garante a liberdade de associação sindical dos empregados, exercível em face dos
empregadores (SARMENTO, 2010, pp. 259-261 e 268).

Outrossim, embora a Lei Fundamental de Bonn preveja expressamente o princípio do


Estado Social (art. 20), não cuida de arrolar direitos sociais. Em sentido contrário, a
Constituição do Brasil, além de não conter nenhum dispositivo que limite literalmente a
vinculação direta aos direitos fundamentais aos Poderes Públicos, a linguagem em que versada
a estatuição da maioria das liberdades fundamentais previstas no art. 5º transmitiria a ideia de
uma “vinculação passiva universal”. Sendo certo, todavia, que certos direitos previstos têm o
Estado como seu destinatário necessário é o Estado, como os direitos conferidos aos presos
(SARMENTO, 2010, pp. 259-261 e 268).

Para mais, o constituinte brasileiro tanto expressou de modo literal sua preocupação
com a construção de uma sociedade “livre, justa e solidária” (art. 3º), quanto foi generoso na
previsão de direitos a prestações de caráter social, de modo que o sistema de direitos
fundamentais por ela adotado é mais caracterizado pela “socialidade” do que o sistema
germânico (SARMENTO, 2010, pp. 259-261 e 268).

Por fim, o art. 1º, III da Constituição Federal erigiu o princípio da dignidade da
pessoa humana como epicentro do ordenamento jurídico, de forma que, se os direitos
fundamentais representam suas manifestações, é preciso expandir sua incidência para todas
esferas da vida humana, de modo que condicionar sua proteção à atuação do legislador, significa
que, diante de sua omissão, sua proteção restará irremediavelmente comprometida
(SARMENTO, 2010, pp. 259-261 e 268).
77

Para o autor, a somatória dessas disposições revela que a Constituição brasileira é


progressista e contém um projeto de emancipação dos excluídos por meio dos direitos
fundamentais, o que impõe o esgotamento de suas possibilidades hermenêuticas para o alcance
de sua eficácia máxima como instrumentos de mudança do status quo (2010, p. 268).

Sem embargo, Sarmento ressalta que as diferenças que afastam a adoção no Brasil de
teorias que limitam a vinculação de condutas privadas aos direitos fundamentais tampouco
seriam de caráter meramente dogmático. O fato é que a sociedade brasileira seria muito mais
“injusta e assimétrica” do que a alemã e a estadunidense, ou de qualquer outro país
desenvolvido, o que justificaria um reforço na tutela dos princípios fundamentais no campo
privado, onde, por força de sua brutal desigualdade, reinaria a opressão e a violência
(SARMENTO, 2010, p. 261-262).

De outra parte, embora Sarmento considere a desigualdade um fator importante a ser


considerado na aplicação de direitos fundamentais às relações interindividuais, ele argumenta
que a vinculação também não deixa de ser direta nas relações paritárias, de modo que a
relevância da assimetria se manifesta apenas no momento da ponderação do direito lesado com
a autonomia privada (2010, p. 289).

Na defesa de sua posição Sarmento combate ainda, um a um, os típicos argumentos


dos opositores à eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas.

Nessa esteira, assevera que a autonomia privada não constitui um valor absoluto, de
modo que seria plenamente admissível a sua ponderação com outros direitos e interesses
constitucionais, além de que, por princípio, só existiria efetiva autonomia quando garantidas as
condições materiais mínimas para que o agente a exercite, o que não sucederia na maioria das
relações em que se debate a aplicabilidade dos direitos fundamentais no domínio privado, já
que a desigualdade entre as partes envolvidas costuma ser manifesta. Assim, Sarmento conclui
que “afirmar a aplicabilidade direta e imediata dos direitos individuais nestas relações não
atenta contra a autonomia privada, mas visa, ao inverso, promovê-la no seu sentido mais pleno,
que é aquele que recebeu a benção do constituinte” (SARMENTO, 2010, p. 263).

De outra parte, o professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado


do Rio de Janeiro, admite que o regime de submissão dos particulares aos direitos fundamentais
não pode ser o mesmo a que se sujeita o Estado. A incidência direta dos direitos fundamentais
não poderia descuidar da ponderação dos bens que eles tutelam com a autonomia privada,
exigindo-se solução da qual não resulte a sua total supressão (SARMENTO, 2010, p. 258-259).
78

Quanto à objeção de que a teoria da eficácia direta seria antidemocrática, por conferir
poderes de conformação dos direitos fundamentais ao Judiciário, que não detém legitimação
popular, em detrimento do Legislativo, o titular por excelência desta competência, Sarmento
afirma, concordando neste ponto com Hesse (1995, p. 64-67), que, em primeiro lugar, a
prioridade do juiz na solução de casos concretos deve ser a aplicação das normas de direito
privado, que gozam de presunção de constitucionalidade, não sendo possível o seu afastamento
nos casos que envolvam direitos fundamentais sem que o intérprete se desincumba do ônus de
argumentar a sua inconstitucionalidade. Exigência, que, no entanto, não afasta a possibilidade
de aplicação direta da Constituição, diante da inexistência de norma específica regulando a
matéria, ou quando a aplicação da norma existente acarretar ofensa às normas e valores
constitucionais (2010, pp. 264-265).

Na sua opinião, ao controlar a constitucionalidade do trabalho do legislador,


reconhecendo a eficácia normativa da Constituição, o Judiciário estaria apenas exercendo o seu
papel de guardião da Constituição, que também lhe foi conferido democraticamente. O respeito
aos direitos fundamentais também seria um pressuposto da democracia, sendo que, na prática,
a jurisdição constitucional brasileira, tem se demonstrado sua aliada. Além disso, a interferência
da jurisdição constitucional nas relações privadas teria sido uma escolha do próprio constituinte,
de modo que é inegável o exercício desta tarefa (2010, pp. 264-265).

E, finalmente, o reconhecimento de conflitos entre princípios constitucionais e a


necessidade de utilização da técnica de ponderação como sua solução muito menos seria uma
exclusividade do tema da extensão da eficácia dos direitos fundamentais às relações privadas,
sendo que, em outros âmbitos, o problema de se conferir ao Judiciário competência para sua
resolução sequer costuma ser cogitado como óbice à sua atuação. A rigor, ele arremata, negar
a aplicação pelo Judiciário da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas
configura:

[..] puro preconceito ideológico, travestido sob a forma de teses jurídicas sofisticadas,
que na verdade pugnam para evitar que a axiologia solidarista da Constituição
“contamine” o reino de suposta neutralidade e de justiça comutativa do Direito
Privado” (2010, pp. 264-265).

Quanto à insegurança jurídica potencialmente gerada pela indeterminação semântica


dos direitos fundamentais, Sarmento destaca, em primeiro lugar, que o uso de cláusulas gerais
e conceitos jurídicos indeterminados, que igualmente apresentam sentidos abertos, é já
difundido no direito privado desde a jurisprudência dos conceitos e da edição do Código Civil
79

alemão ao final do século XIX, e que, no paradigma pós-positivista, reconhece-se a abertura de


todo o ordenamento à ingerência de valores por força do reconhecimento da juridicidade dos
princípios. Desta forma, a interpretação e aplicação do direito de modo mais dinâmico, elástico
e rico do ponto de vista axiológico, conquanto menos previsível, é hoje uma questão que diz
respeito a todos os ramos do direito, de modo que injustificável “a criação de uma redoma em
torno do direito privado, para deixá-lo imune aos sopros renovadores do pós-positivismo”. Em
segundo lugar, embora referida insegurança jurídica seja em certo grau reconhecível, ela seria
passível de redução pelo estabelecimento de standards capazes de determinar quando deve
prevalecer a autonomia privada e quando deve prevalecer o direito com o qual ela conflite em
cada caso concreto. Para o autor, um exemplo desses paradigmas seriam as “relações de
precedência condicionada” mencionadas por Alexy; outro seria a natural evolução da
argumentação e da racionalidade prática de sua aplicação. Enfim, a segurança jurídica
tampouco seria o único valor perseguido pelo ordenamento, sendo admissível o seu sacrifício
em prol de ganhos em termo de justiça substancial (SARMENTO, 2010, pp. 265-266).

No que se refere à suposta perda de autonomia do direito privado, Sarmento afirma,


em oposição, que, tendo em vista o reconhecimento da normatividade da Constituição e sua
posição superior na ordem jurídica, nenhum ramo do direito público ou privado pode escapar
de sua influência, sendo que tal fenômeno deveria louvado e não lamentado, dada a qualidade
de nosso Texto Magno no que toca à sua base democrática e humanitária, que permite uma
revigoração de institutos do direito civil que se encontram em descompasso com a realidade,
devolvendo-lhes a sua eficácia, e moldando-os às demandas da sociedade atual. Além do que,
no Brasil, a constitucionalização do direito privado sequer estaria aberta à discricionariedade
do intérprete, visto que o próprio constituinte já fez essa opção, dedicando-se a disciplinar
inúmeros institutos jusprivados como a família e a propriedade (2010, pp. 266-267).

4.2.2. Standards para a incidência dos direitos fundamentais em relações privadas no contexto
brasileiro

Superada a questão relativa à possibilidade de invocação direta de direitos


fundamentais em relações privadas, Sarmento avança no tratamento do modo como se dá essa
incidência.
80

Como bem nota Virgílio Afonso da Silva, o professor da UERJ não se contenta com o
lugar-comum de que a questão se resolveria pela ponderação com a autonomia privada,
cuidando de elaborar critérios que confiram maior objetividade à sua aplicação (2005, p. 175).

Neste sentido, Sarmento fixa como determinantes dois aspectos a serem observados
na relação jurídica onde a sua incidência está sendo invocada: um relativo aos seus sujeitos, e
outro relativo aos direitos em conflito.

Ao longo de toda a obra Direitos Fundamentais e Relações Privadas o autor sustenta


que a figura mais determinante do desenvolvimento da concepção de eficácia horizontal dos
direitos fundamentais com a falência do Estado Liberal foi a ascensão da percepção de que a
liberdade e a autonomia privada, então sempre invocadas como escudo à intervenção estatal em
relações privadas, pressupunham que os agentes tivessem supridas certas condições materiais
mínimas garantidoras do livre exercício de direitos individuais. Por corolário, a desigualdade
material entre as partes de uma relação jurídica seria um vetor de opressão a direitos
fundamentais em âmbito privado que clama pela intervenção estatal corretiva desse
desequilíbrio com fundamento na Constituição.

É essencial, portanto, na visão do autor, que nas questões envolvendo a aplicação dos
direitos fundamentais nas relações entre particular seja verificada “a existência e o grau da
desigualdade fática entre os envolvidos”. De modo que “quanto maior for a desigualdade, mais
intensa será a proteção ao direito fundamental em jogo, e menor a tutela da autonomia privada”.
Assim como, “numa situação de tendencial igualdade entre as partes, a autonomia privada vai
receber uma proteção mais intensa, abrindo espaço para restrições mais profundas ao direito
fundamental com ela em conflito” (2010, p. 284).

De outra parte, como já mencionado, embora Sarmento considere a desigualdade um


fator importante a ser considerado na aplicação de direitos fundamentais às relações entre
indivíduos, ele argumenta que a vinculação não deixa de ser direta nas relações paritárias, de
modo que a relevância da assimetria se manifesta apenas no momento da ponderação do direito
lesado com a autonomia privada (2010, p. 289).

Virgílio Afonso da Silva contesta o critério da desigualdade material das partes como
medida da proteção conferida à autonomia privada em sua colisão com outros direitos
fundamentais, afirmando que o importante para o referido calibramento seria a verificação da
“sinceridade” ou “insinceridade” com a qual a vontade de cada uma das partes foi manifestada.
81

Isto, porque, da diferença de condições materiais não necessariamente decorre uma restrição à
liberdade de contratar (2011, pp. 156-159).

Sarmento responde à crítica, asseverando que a fixação da desigualdade material como


elemento de aferição da autonomia da vontade seria apenas uma generalização, dentre tantas
empregadas no direito, construídas a partir das regras ordinárias de experiência. E que ela se
afiguraria particularmente razoável, na medida em que seria comum, em relações assimétricas,
a invocação da autonomia da vontade da parte mais fraca como justificativa para “imposições
heterônomas ditadas pela mais forte”. Exemplo claro do emprego dessa generalização seriam o
direito do trabalho e o direito do consumidor, que preveem uma constelação de normas de
ordem pública limitadoras da autonomia da vontade com o fim de proteção dos
hipossuficientes. Enfim, diz Sarmento, se é fato que a desigualdade de condições materiais
reflete em um desequilíbrio de força, então seria razoável assumir que, em uma relação jurídica
assimétrica, a liberdade de exercício da autonomia privada seria prejudicada. Assim é que a
desigualdade material geraria uma presunção simples de que a parte mais débil não agiu
livremente, gerando uma preferência prima facie dentro do processo ponderativo pela proteção
de seu direito (Cf. SARMENTO, 2010, pp. 285-287).

Sarmento ainda acrescenta que uma nota essencial dos direitos fundamentais é o seu
papel de proteção da pessoa humana contra o poder, de modo que seria justificada a sua
incidência mais forte nas relações em que figure um agente privado mais poderoso, ainda que
isto possa representar uma relativização do princípio da autonomia privada nas hipóteses em
que este poder figura como fator determinante da assimetria (2010, p. 287).

Finalizando a resposta a Virgílio Afonso da Silva, Sarmento aduz que o critério da


autonomia real ou aparente proposto pelo professor paulista não é um substituto adequado para
o critério da desigualdade material, pois o seu campo de aplicação seria muito mais limitado.
Isto, pois ele somente poderia ser considerado nas situações em que o lesado tenha tido de
manifestar sua concordância com o ato lesivo, o que deixaria desprotegida a parte mais fraca
em situações em que a lesão advém, por exemplo, da recusa da parte mais forte em celebrar um
contrato por razões discriminatórias (2010, pp. 287-288).

Sem embargo, como já dito, embora Sarmento eleja a desigualdade material entre as
partes como fator modulante da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, na sua opinião
não há óbice à sua invocação em relações em que há paridade de forças, visto a sua função ser
a de proteção dos bens mais relevantes para a pessoa humana, inclusive os das pessoas mais
82

poderosas. Nesta hipótese de equilíbrio, contudo, a proteção conferida à autonomia privada


haveria de ser mais intensa, porquanto ausente a presunção de que uma das partes não teria
agido livremente (SARMENTO, 2010, p. 289).

Seguindo essa linha de raciocínio, Sarmento menciona, citando Sarlet, que mesmo a
presença de uma assimetria manifesta não afastaria o reconhecimento dos direitos fundamentais
do ente mais forte, igualmente merecedores de tutela. Portanto, o que se verifica nos casos em
que invocados os direitos fundamentais em relações privadas é sempre uma hipótese de colisão
entre os direitos fundamentais de ambas as partes, cuja superação demanda a sua
compatibilização à luz do caso concreto (2011, p. 129-130 apud SARMENTO, 2010, p. 289).

Além de se ter em conta na ponderação o tipo e a dimensão do poder exercido pela


parte mais forte, Sarmento aponta como significativa a consideração da natureza do direito
fundamental em jogo, pois, “a tutela da autonomia privada no que se refere ao que chamamos
de questões existenciais é muito mais intensa do que a conferida às decisões de caráter
econômico-patrimonial”. Deste modo, bens “supérfluos” envolvidos no exercício da autonomia
privada, levariam a um menor grau de tutela. Como exemplo, Sarmento cita que as discotecas
teriam mais liberdade em restringir o acesso de clientes do que as escolas, pois o lazer é menos
essencial do que a educação (2010, pp. 290-291).

Sarmento considera igualmente relevante a verificação do envolvimento de


manifestação da vontade da vítima no ato violador de direito fundamental. No caso de decisões
heterônomas seria menor o peso atribuído à autonomia da vontade, pois a análise se resumiria
ao seu exercício pela parte decisora, enquanto o consentimento manifestado levaria à
necessidade de ponderação da autonomia da vontade dos dois sujeitos envolvidos na relação.
Nos casos em que expressado consentimento, a controvérsia liga-se à validade da renúncia ao
exercício de direitos fundamentais, o que, sem embargo da magnitude da questão, pressupõe
indiscutivelmente que a vontade do titular do direito seja autenticamente livre, o que muito
dificilmente ocorre em relações assimétricas. Ademais, da renúncia não poderia resultar lesão
ao princípio da dignidade da pessoa humana e tampouco ao núcleo essencial dos direitos
fundamentais do indivíduo (2010, p. 293).

O último aspecto destacado pelo autor é a verificação se alguma das partes envolvidas
pode ser identificada como um “ator público”, pois o regime de vinculação a direitos
fundamentais dos poderes públicos é muito mais rígido, não sobrando espaço para ponderação
de interesses com a autonomia privada (SARMENTO, 2010, p. 295).
83

Para a identificação de uma das partes com um poder público Sarmento propõe um
critério mais abrangente do que o defendido pelos adeptos da doutrina da state action. Com
efeito, na visão do autor, a entidade deve ser caracterizada como poder público: se recebe bens
ou recursos públicos ou se se vale de agentes estatais no exercício de atividades privadas
(citando as organizações sociais da Lei n.º 9.637/98 e as entidades de apoio da Lei n.º 8.958/94,
além dos serviços sociais autônomos); se for uma empresa estatal ou uma sua subsidiária, ainda
que exerça atividade econômica em sentido estrito; se exerce funções de natureza pública, como
os concessionários e permissionários de serviços públicos, no que toca à execução dessa
funções; e se há o exercício de alguma atividade de “caráter eminentemente público, ainda que
sem qualquer dependência formal em relação ao Estado” (caso dos partidos políticos). Já, se a
entidade privada recebe algum tipo de fomento estatal, inclusive subsídios fiscais, a questão
haveria de ser analisada com parcimônia. Este vínculo não seria, por si só, suficiente para
submetê-las a regime jurídico idêntico ao estatal. O mero fomento não importaria completa
subtração da autonomia privada das entidades, mas ele haveria de ser considerado como fator
calibrante da proteção de sua autonomia privada. Ademais, entende que é dever do “Estado
condicionar o fomento à submissão da entidade privada aos direitos fundamentais, cancelando-
o sempre que ficarem comprovadas práticas atentatórias a estes direitos” (2010, pp. 298-299).

Em síntese, são os seguintes os fatores considerados por Sarmento como relevantes


para a modulação da eficácia horizontal dos direitos fundamentais:

● A desigualdade material entre as partes, porquanto reveladora do livre


exercício da autonomia privada pela parte mais fraca;

● Importância do bem jurídico confrontada com a autonomia privada;

● Envolvimento de manifestação da vontade da vítima no ato violador de direito


fundamental;

● A existência de potencial lesão à dignidade da pessoa humana

● Proteção do núcleo essencial do direito fundamental da autonomia privada;

● A identificação de sujeito envolvido como poder público.

4.3. Wilson Steinmetz


84

4.3.1. Modelo intermediário de aplicabilidade dos direitos fundamentais a relações privadas

Steinmetz igualmente defende a vinculação direta dos particulares aos direitos


fundamentais no direito brasileiro, embora seu modelo de incidência possa ser caracterizado
como intermediário. Primeiro, porque Steinmetz compreende que certas categorias de direitos
fundamentais, como os direitos sociais, vinculam exclusivamente o Estado; segundo, porque,
na sua visão, em respeito à ordem democrática e à separação de poderes, há de se conferir
preferência à incidência mediata, pela aplicação das normas de direito privado que concretizam
seu conteúdo interpretadas conforme a Constituição; terceiro, porque ele vislumbra a incidência
dos direitos fundamentais nas relações privadas como um problema de colisão, cuja solução
pressupõe a ponderação da autonomia privada com os interesses em conflito; e quarto, porque
na sua opinião nem toda norma de direito fundamental goza de aplicabilidade imediata com
plenitude de efeitos, antes pressupondo mediação legislação obrigatória.

Como premissas da aplicabilidade direta no direito brasileiro, Steinmetz afirma que


figurariam um “feixe” ou uma “constelação” de fundamentos constitucionais. Com maior
"força dogmática", tem-se: o princípio da supremacia da Constituição; o postulado da unidade
material do ordenamento jurídico; e o reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos
fundamentais. A seu turno, com menor “força dogmática”, figuram a expressa positivação dos
princípios da solidariedade e dignidade da pessoa humana e a letra do art. 5º, §1º da Constituição
Federal, que prescreve a aplicação imediata dos direitos fundamentais (2011, pp. 100 e ss. apud
POLIPPO 2013, p. 5).

Sem embargo, Steinmetz defende que, a princípio, incumbe ao aplicador privilegiar


no caso concreto a mediação de sua eficácia tal como delineada pelo legislador em norma
infraconstitucional dedicada à sua solução. Ou seja, a prioridade na extensão dos direitos
fundamentais às relações entre privados há de ser a consideração de sua eficácia mediata pela
interpretação conforme a Constituição das ponderações e decisões legislativas. Somente pela
apresentação de razões jurídicos-constitucionais de relevo (ônus da argumentação) é que poderá
o juiz afastar-se da solução determinada pelo legislador, sob pena de ofensa aos princípios
democrático e da separação entre os poderes. De outra parte, nos casos em que ausente norma
de direito privado, ou ainda naqueles em que estas forem insuficientes para a tutela ótima dos
direitos fundamentais envolvidos, o recurso à eficácia direta dos direitos fundamentais se faz
necessária (2004, p. 296 apud SARMENTO, 2010, p. 270).
85

Ademais, nem toda norma de direito fundamental gozaria de aplicabilidade imediata,


com plenitude de efeitos, em todas as situações concretas, pressupondo, alguns direitos e
garantias, imprescindível mediação legislativa. Neste sentido, Steinmetz afirma que o art. 5º,
LXXI da Constituição Federal é indicativo da necessidade de regulamentação legislativa para
o pleno exercício de direitos inerentes à nacionalidade, soberania e cidadania, o que justifica a
existência do mandado de injunção; assim como a previsão da ação direta de
inconstitucionalidade por omissão no art. 103, §2º da Constituição Federal sinaliza a mesma
tendência . Todavia, mesmo nestas hipóteses o direito fundamental carente da interposição do
legislador não seria totalmente desprovido de eficácia, de modo que sua previsão em abstrato
seria suficiente para a garantia imediata da totalidade das posições jurídicas que o constituem
(2011, pp. 126 e ss. apud BAGGIO; MARQUES, 2013, p. 252).

Steinmetz não se impressiona com o argumento de que a aplicação de direitos


fundamentais na resolução de conflitos entre particulares ameaça a segurança jurídica
promovida pelas normas privadas, pois o direito privado contemporâneo igualmente faz uso de
normas de baixa densidade semântica, do que seriam exemplos justamente as cláusulas gerais
e os conceitos jurídicos indeterminados, de modo que o abandono do recurso à Constituição
não representaria o ganho em certeza pregado pelos seus opositores (2004, p. 164).

Criticando a teoria da eficácia mediata Steinmetz aduz que condicionar a eficácia dos
direitos fundamentais à concretização legislativa e à mediação por meio da interpretação
judicial das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, acaba por inverter a equação
da ordem jurídica submetendo a Constituição à legalidade e não o contrário. Outrossim, o
trabalho do Legislativo seria reconhecidamente omisso, moroso, e insuficiente, em especial no
tocante à conformação do conteúdo de direitos fundamentais, o que coloca em risco a sua
efetividade (2004, pp. 149-150 e 156).

Não obstante, como tantos outros autores, Steinmetz reconhece que a aplicação de
direitos fundamentais em âmbito privado possui particularidades. Por isso, sustenta que nas
relações interindividuais a situação envolve a conciliação da autonomia privada com os direitos
com os quais ela se choca, de forma que a eficácia dos direitos fundamentais há de ser matizada
por estruturas de ponderação fundadas no princípio da proporcionalidade, que haverão de
determinar a solução do conflito tomando em consideração todas as circunstâncias fáticas e
jurídicas relevantes (2004, p. 295).
86

Entretanto, a liberdade das partes exercida na forma da autonomia privada gozaria de


uma posição preferencial na colisão, uma "precedência prima facie", pois a intervenção estatal
não poderia acarretar a anulação de decisões de foro íntimo, movidas por sentimentos pessoais,
já que a individualidade da pessoa humana autoriza mesmo as ações desprovidas de
racionalidade. Neste sentido, ele exemplifica, um testador não poderia ser obrigado, com base
no princípio da igualdade, a dividir em partes exatamente iguais o seu patrimônio disponível.
Assim como não se poderia impor a um comerciante a vedação a conceder descontos
específicos para seus amigos. Em contrapartida, o princípio da igualdade poderia ser oponível
a condutas privadas em casos específicos cujas particularidades conduzem a uma obrigatória
paridade de tratamento. Assim ocorreria, por exemplo, nos casos em que se discuta o
fornecimento de serviços públicos essenciais; a conduta de um particular titular de posição
monopolista ou de um poder social (como meios de comunicação, sindicatos, etc.) e naqueles
em que o privado emita uma decisão pública e geral da vontade de contratar (casos de bares e
hotéis) (STEINMETZ, 2004, pp. 153 e 333).

4.3.2. Regra da proporcionalidade

Acolhendo a tese de Alexy, Steinmetz sustenta que tanto os direitos fundamentais


quanto a autonomia privada possuem estrutura de princípios, de modo que devem ser
compreendidos como mandamentos de otimização. Seguindo esta premissa, visto que todos os
princípios, considerados em abstrato, possuem igual medida de peso e valor, quando colidentes,
as circunstâncias fáticas e jurídicas do caso concreto é que determinam qual prevalecerá, sem
que do seu choque resulte a determinação da invalidade de qualquer deles ou a introdução de
uma cláusula de exceção à sua incidência (tal como ocorreria caso possuíssem a estrutura de
regras). Não há, destarte, nas situações em que tensionam, uma precedência absoluta de um
princípio sobre o outro, mas sim uma precedência condicionada pelo contexto. Portanto, para
Steinmetz, a solução de sua colisão baseia-se na análise da relação de precedência condicionada
entre os princípios envolvidos no caso concreto. São suas palavras: “com base nas
circunstâncias relevantes do caso – são elas que determinam o peso relativo de cada um dos
princípios no caso – que um dos princípios precede o outro, ou, o que é dizer o mesmo, um
princípio cede ante outro” (2004, p. 206).
87

Em sua visão, a determinação dessa relação de precedência é realizada por meio da


aplicação da técnica de ponderação pautada pelo princípio da proporcionalidade, que serve de
norte da formulação da regra de colisão definidora da preferência por um dos princípios
envolvidos, como a autonomia privada ou o direito fundamental por ela restringido. Para
exemplificar seu raciocínio, Steinmetz se refere a uma relação contratual entre privados, na qual
uma restrição a direito fundamental de um dos contratantes foi convencionada com base na
autonomia privada. Então, no curso da execução do contrato, o particular cujo direito
fundamental foi restringido busca obter judicialmente a sua anulação, afirmando justamente a
restrição a direito fundamental como causa de nulidade; enquanto o outro defende-se invocando
o princípio da autonomia privada (2004, 214-217).

Para Steinmetz a solução desta lide demanda a aplicação do princípio da


proporcionalidade, incumbindo ao julgador indagar se a questionada restrição contratual é
necessária, adequada e proporcional em sentido estrito (2004, pp. 214 e ss.). Steinmetz antepõe,
ademais, como pressuposto de sua aplicação, que inexista “regulação legislativa específica à
qual o caso pudesse ser enquadrado” (2005, p. 45 apud V.A. SILVA, p. 162, nota de rodapé
86).

Como nota Virgílio Afonso da Silva, Steinmetz não aprofunda os critérios que
deveriam ser considerados na averiguação da necessidade e adequação da restrição, focando-se
em desenvolver como se resolve a questão da sua proporcionalidade em sentido estrito pela
técnica de ponderação segundo a qual a satisfação de um dos direitos em questão implica a não
satisfação do outro (2011, p. 163).

Visando então mitigar a subjetiva intrínseca ao processo argumentativo ponderativo


Steinmetz desenvolve parâmetros orientadores da aplicação da proporcionalidade aos casos em
que do exercício da autonomia privada resulte a restrição de direitos fundamentais. Para tanto,
ele recorre ao conceito de precedências prima facie, também concebido por Alexy. (pp. 216-
225).

Steinmetz explica que precedências prima facie não contêm determinações definitivas
em favor de um princípio, mas estabelecem um ônus de argumentação para a precedência do
outro princípio no caso concreto. Ou seja, uma precedência prima facie constitui uma carga de
argumentação a favor de um princípio e, por conseqüência, uma carga de argumentação contra
o outro princípio (2004, p. 215).
88

Baseando-se neste raciocínio como instrumento de conciliação do choque da


autonomia privada com os direitos fundamentais, Steinmetz apresenta quatro espécies diversas
de precedências prima facie assim esquematizadas:

1. Em uma relação contratual de particulares em situação (ou sob condições) de


igualdade fática, há uma precedência prima facie do direito fundamental individual
de conteúdo pessoal ante o princípio da autonomia privada.
2. Em uma relação contratual de particulares em situação (ou sob condições) de
desigualdade fática, há uma precedência prima facie do direito fundamental
individual de conteúdo pessoal ante o princípio da autonomia privada.
3. Em uma relação contratual de particulares em situação (ou sob condições) de
igualdade fática, há uma precedência prima facie do princípio da autonomia privada
ante o direito fundamental individual de conteúdo patrimonial.
4. Em uma relação contratual de particulares em situação (ou sob condições) de
desigualdade fática, há uma precedência prima facie do direito fundamental
individual de conteúdo patrimonial ante o princípio da autonomia privada (2004, p.
220).

Steinmetz esclarece que sua construção se refere a precedências gerais e não a


precedências definitivas, porém destaca que, justamente por seu caráter prima facie o seu
afastamento ou inversão nos casos concretos de colisão demanda que o aplicador de
desincumba de um “ônus de argumentação” (2004, p. 221).

Ou seja, elas apenas estruturam o processo ponderativo, sem determinar o seu


resultado. Este, como dito, advém da aplicação do princípio da proporcionalidade e os testes
que o caracterizam, na seguinte sequência: em primeiro lugar (1) verifica-se se há uma estrutura
relacional meio-fim, na qual o meio consiste na medida (contratual) restritiva de direito
fundamental e o fim é a finalidade ou o objetivo pretendido com aquele meio; na sequência, (2)
examina-se se o fim pretendido é constitucionalmente legítimo; por fim, (3) examina-se,
sucessivamente, se a restrição contratual de direito fundamental (o meio) é (3.1) adequada, (3.2)
necessária e (3.3) proporcional em relação ao fim pretendido (2004, pp. 218-219).

Como se verá no tópico 4.4.2.5.1 Virgílio Afonso da Silva tece uma crítica bastante
pertinente a este modelo baseado em ponderação proposto por Steinmetz.

4.4. Virgílio Afonso da Silva


89

4.4.1. Fundamentos da vinculação de particulares a direitos fundamentais e possibilidade de


aplicação direta das normas constitucionais

Influenciado pelo pensamento Alexy, Virgílio Afonso da Silva crê que, dada a falta de
uniformidade das situações de aplicação dos direitos fundamentais em âmbito privado, seria
impossível obter-se resposta satisfatória ao fenômeno baseada no apego a um modelo específico
de incidência (Cf. 2011, p. 134). Por isso o modelo adequado de justificação e controle de sua
incidência haveria de ser dotado de uma flexibilidade que permita a conciliação dos modelos
existentes, sendo essencial na sua formulação a definição do papel exercido por cada um deles
(2011, pp. 134 e 143).

Como se percebe, o objetivo visado pelo autor brasileiro é o mesmo que inspirou Alexy
na criação de seu modelo de incidência em três níveis (2015, pp. 531-542), que, por esta mesma
razão, é utilizado como ponto de partida metodológico de sua argumentação.

Antes de propor a sua “solução diferenciada” (2011, p. 134) para o problema, Virgílio
debate os fundamentos usualmente utilizados pelos adeptos dos dois modelos de aplicabilidade
mais importantes – o direto e o indireto – para a justificação teórica e dogmática do rompimento
da tradição que vinculava somente os poderes públicos a esses direitos, pois, em sua visão,
alguns estratagemas argumentativos elaborados pela doutrina alemã seriam dispensáveis, em
particular para a discussão do tema no Brasil (2011, p. 136).

Com isso ele almeja demonstrar que a fundamentação desses dois modelos, tal como
desenvolvida tendo em consideração a Constituição da Alemanha, não necessariamente se
adequa à ordem jurídica instaurada pela Constituição Federal de 1988. No caso brasileiro, por
exemplo, o recurso teórico à concepção dos direitos fundamentais como ordem objetiva de
valores, que, a princípio, foi crucial na Alemanha para a sustentação da extensão da
aplicabilidade das normas de direitos fundamentais às relações em que ausente o Estado, sequer
seria imprescindível em nosso contexto (2011, p. 136.)

Virgílio recorda que a primeira barreira que condicionou os esforços teóricos da


doutrina alemã a respeito do tema, foi a compreensão difundida de que os direitos fundamentais
são, por excelência, direitos de defesa. Tese que se fundava tanto em um “pilar histórico”, pois
os direitos fundamentais teriam supostamente surgido e sempre sido encarados como limitação
contra o arbítrio estatal; quanto em um “pilar constitucional”, visto que, ao arrolar os seus
direitos fundamentais nos arts. 1 a 17, a Constituição alemã “abraçou uma teoria liberal dos
90

direitos fundamentais” positivando tão somente as chamadas liberdades clássicas (pp. 136-
137).

Segundo a referida noção histórica dos direitos fundamentais, a vinculação exclusiva


do Estado seria respaldada pela própria tradição do direito constitucional, de modo que a sua
visão como meros direitos de defesa dispensaria maior elaboração científica. Por sua vez, a
ideia de vinculação dos particulares a seus efeitos, por não gozar desse mesmo prestígio
histórico, demandaria o desenvolvimento de premissas próprias (Cf. V.A. SILVA, 2011, pp.
136-137).

Contudo, para Virgílio, as mencionadas razões históricas que seriam fundamento


exclusivo da sua função clássica, na verdade, representam apenas um recorte parcial da
evolução dos direitos fundamentais no tempo, que não retrataria o fenômeno em toda a sua
extensão. Em sua gênese, o conceito também se associaria ao controle da conduta de
particulares (2011, pp. 137-139).

Virgílio elucida dizendo que a ideia dos direitos fundamentais como proteção dos
cidadãos nas relações entre si, e não só nas relações com o Estado, era corriqueira nos
movimentos iniciais que levaram às declarações de direitos, em especial a Revolução Francesa
e o movimento pela independência das colônias britânicas na América do Norte. Eram, assim,
pensados como “direito à segurança”, com base na percepção de que as ameaças a direitos
fundamentais não provêm apenas do Estado, mas também de outros cidadãos. Seriam exemplos
desse pensamento a Declaração de Direitos de Virgínia, de 1776, em especial o seu art. 3º, bem
como a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, particularmente o art. 2, que
bem revelariam que a preocupação quanto à segurança dos cidadãos nas relações entre
si marcava fortemente a teoria e a prática dos direitos fundamentais da época (2011, pp.
137-138).

Ora, se a ideia já estava contida no núcleo das revoluções do século XVIII, também a
dita “expansão” dos direitos fundamentais às relações entre particulares poderia muito bem ser
fundamentada historicamente, como mero desenvolvimento da referida ideia de “direito à
segurança”, sem que seja “imprescindível recorrer a uma teoria de valores ou a outro tipo de
esforço argumentativo para justificar esses efeitos” (V.A. SILVA, 2011, p. 138).

Além do ajuste da visão histórica dos direitos fundamentais, segundo Virgílio, outro
aspecto que não se poderia olvidar na elaboração de uma justificativa para a aplicabilidade de
91

direitos fundamentais às relações privadas é a análise da teoria adotada pela Constituição que
se está a considerar no tocante à aplicabilidade dos direitos fundamentais (2011, p. 138).

Nesta lógica, segundo o autor, há diferenças essenciais entre a Constituição Federal de


1988 e a Lei Fundamental de Bonn, que fazem com que a extrapolação dos efeitos vinculantes
dos direitos fundamentais para além das relações Estado-indivíduo não tenha de recorrer aos
mesmos argumentos. Primeiramente, ao contrário da Carta tedesca, que, em seu art. 1º, 3, prevê
expressamente que os direitos fundamentais "vinculam os Poderes Legislativo, Executivo e
Judiciário", a brasileira não contém qualquer disposição ditando que os direitos fundamentais
vinculam somente os poderes estatais. Ademais, enquanto a Constituição da Alemanha adotou,
ao menos formalmente, um modelo liberal de direitos fundamentais, apresentando um catálogo
de direitos meramente negativos, a do Brasil arrola, além desses direitos clássicos, uma série
de direitos fundamentais sociais e econômicos cuja existência se justifica muito mais nas
relações privadas do que nas relações com o Estado (2011, pp. 138-140).

De outra parte, por força dessa vinculação expressa apenas dos Poderes Públicos aos
direitos fundamentais, bem como pelo fato de a Lei Fundamental de Bonn prever apenas
direitos fundamentais negativos, é que se recorreu à elevação desses direitos à "condição de
valores fundamentais destinados a reger não somente a atividade estatal como também a vida
social", como manobra hermenêutica para a superação da literalidade do texto constitucional
alemão; saída apresentada no caso Lüth (V. A. SILVA, 2011, p. 140).

Quer dizer, a necessidade de contorno de um entrave textual à aplicabilidade dos


direitos fundamentais às relações entre particulares foi a pedra de toque do desenvolvimento da
concepção da Constituição como sistema de valores cuja eficácia irradiava para todos os ramos
do direito.

Por outro lado, como não há nada na Constituição Federal de 1988 que indique a
vinculação exclusiva do Estado, sequer existe a necessidade de recurso a essa concepção dos
direitos fundamentais como ordem objetiva de valores para o fim de justificar a incidência dos
direitos fundamentais em relações privadas (V. A. SILVA, 2011, p. 140).

Assim sendo, considerando-se: que há razões históricas para se sustentar a vinculação


direta de particulares a direitos fundamentais; e que a Constituição brasileira, além de prever
direitos fundamentais sociais cujos efeitos se direcionam precipuamente a relações privadas,
também não contém qualquer disposição expressa no sentido de uma vinculação exclusiva dos
poderes públicos, o modelo de aplicabilidade direta dos direitos fundamentais a relações
92

privadas é passível de ser utilizado no Brasil, sem que as principais críticas contra ele possam
ser sustentadas, críticas estas que se direcionam precipuamente à sua compreensão como
sistema de valores objetivos (V. A. SILVA, 2011, pp. 140-141).

Ademais, como se verá no próximo tópico, Virgílio defende que tal fórmula de
justificação não se afigura imprescindível nem mesmo no caso alemão, bastando a sua
conceituação como princípios como sustentáculo dos efeitos dos direitos fundamentais nas
relações entre particulares (2011, pp. 146-147).

Portanto, em síntese, na visão de Virgílio, não só a Constituição Federal de 1988


vincula igualmente os particulares aos direitos fundamentais, como ela também permite a sua
aplicação direita para regular o tráfico jurídico privado sem que se faça necessária a referência
à sua dimensão objetiva.

4.4.2. O “modelo diferenciado” de Virgílio Afonso da Silva

Conforme mencionado no tópico anterior, para Virgílio Afonso da Silva o modelo


ideal de aplicabilidade das normas de direitos fundamentais nas relações privadas há de
conseguir conciliar os modelos então existentes, que seriam, a rigor, menos incompatíveis do
que a maior parte da doutrina e da própria jurisprudência parecem acreditar (V. A. SILVA,
2011, p. 143).

Virgílio usa como ponto de partida metodológico o modelo em três níveis


desenvolvido por Alexy, mas dele discorda no que toca à afirmação de que a opção por um ou
outro nível de incidência na solução de um caso concreto resume-se a uma questão de
conveniência e oportunidade (v. tópico 3.5 do Capítulo 3).

Para o professor titular de direito constitucional da USP há fatores alheios à


argumentação que condicionam esta escolha, em especial as normas positivas disponíveis. A
opção pela aplicação de efeitos diretos ou indiretos dependerá, na maioria das vezes, "da
existência ou não de mediação legislativa entre os direitos fundamentais e a relação entre
particulares" e não somente de "estratégias argumentativas" (V. A. SILVA, 2011, p. 145).
93

4.4.2.1. Compreensão dos direitos fundamentais como princípios e direito à proteção

Na proposta de Virgílio, a resposta ideal para a questão da expansão dos efeitos


vinculantes dos direitos fundamentais para além das relações entre Estado/indivíduo estaria na
sua consideração como princípios: mandamentos que demandam a realização de seu conteúdo,
na maior medida possível, conforme as condicionantes fáticas e jurídicas existentes no contexto
de sua aplicação (2011, pp. 146-147).

Do conceito de direitos fundamentais como princípios decorre a justificativa para a


expansão de seus efeitos a todas as situações que compreendam a sua realização máxima, do
que se infere, inclusive, a garantia de direitos à proteção contra lesões praticadas por terceiros,
na medida em que também particulares podem ameaçar as liberdades constitucionais (de
expressão, religião, associação, privacidade etc.). Isto, pois, a negativa de seus efeitos nesta
gama de relações, acaba por ofender o mandamento de otimização que as normas de direitos
fundamentais prescrevem, na medida em que, restringindo-se a sua invocação apenas às
relações de que o Estado participe, o seu conteúdo não estará sendo realizado na maior medida
do realizável (V. A. SILVA, 2011, p. 146).

Fundamentar os efeitos dos direitos fundamentais nas relações privadas com base na
ideia de princípios e não na ideia de uma ordem objetiva de valores, teria duas vantagens
segundo o autor: (i) eximir o modelo das críticas relativas à essa ordem de valores; (2) evitar a
"dominação do direito infraconstitucional" pelo direito constitucional, preservando-se a
autonomia do direito privado, na medida em que, como enuncia o próprio conceito de
mandamento de otimização, a sua realização é condicionada às condições fáticas e jurídicas
existentes, considerando-se, dentre as últimas, as normas de direito infraconstitucional
existentes, incluídas as de direito privado (2011, pp. 146-147).

4.4.2.2. Mediação legislativa e efeitos indiretos como regra em sua realização

Assim é que, vistos como princípios, em função da existência de um Código Civil a


regular as relações privadas, cujas normas em sua maioria possuem a estrutura de regras, que
funcionam como condicionantes jurídicos de sua realização ótima, resta obstada, à primeira
vista, a invocação direta dos direitos fundamentais, sendo seu conteúdo realizado por meio delas
94

– de forma mediata –, assim como pela sua interpretação com base na Constituição que os
positiva (V. A. SILVA, 2011, p. 147).

Virgílio destaca em seu modelo que a análise de conflitos entre direitos fundamentais
nas relações entre particulares, contratuais ou não, não pode dispensar a observância da
existência e suficiência da solução formulada pelo legislador no exercício de sua competência
para mediar a eficácia dos direitos fundamentais em relações privadas, sendo preciso distinguir
casos em que exista mediação legislativa e casos em que essa mediação não exista ou seja
insuficiente. Há mediação legislativa quando o legislador, exercendo sua competência
legislativa, tenha fixado alguma solução para uma determinada colisão entre direitos
fundamentais. Assim, se para um caso de colisão entre direitos fundamentais no âmbito de uma
relação entre particulares, há algum dispositivo legal em que o suporte fático se enquadre, o
efeito indireto há de ser privilegiado (2011, p. 169).

Deste modo, enquanto princípios, em regra os direitos fundamentais produzirão efeitos


apenas indiretamente sobre as relações privadas. Compreendendo esses seus efeitos indiretos,
de uma parte o transporte de seu conteúdo ao direito privado pelo trabalho do legislador, que
se vê obrigado à sua realização; de outra, pela imperiosidade da sua consideração na
interpretação das leis (V. A. SILVA, 2011, p. 147).

Sem embargo, nas situações em que ausente mediação legislativa, ou em que esta se
revele insuficiente à máxima realização dos direitos fundamentais na situação concreta, torna-
se necessária a sua invocação direta. Nesta hipótese, contudo, o intérprete há de lidar com o
ônus argumentativo do afastamento da norma infraconstitucional exercendo o controle de
constitucionalidade e o problemático choque dos direitos fundamentais com a autonomia
privada (Cf. V. A. SILVA, 2011, pp. 148 e 169).

4.4.2.3. Aplicabilidade direta e necessidade de preservação da autonomia privada: recurso ao


conceito de “princípios formais”

Para resolver esse confronto dos direitos fundamentais com a autonomia privada,
decorrente de sua aplicação direta, Virgílio recorre ao conceito de princípios formais formulado
por Alexy.
95

Em breve síntese, princípios formais seriam normas de validade, que conferem razões
para a obediência de outra norma, independentemente de seu conteúdo. Um exemplo seria o
princípio da competência decisória do legislador, que compele à aplicação das decisões
legislativas na maior medida do possível dentro das condições fáticas e jurídicas, ainda que
impliquem restrições a direitos fundamentais.

A ideia que sustenta o princípio é a preservação de sua competência decisória em face


de discordância dos demais poderes. Por este ângulo, as decisões do legislador são válidas e
devem ser seguidas pelo Executivo e pelo Judiciário, ainda que eventualmente discordem,
porque derivam do exercício da competência democrática entregue ao Legislativo conforme o
princípio da separação de poderes, e não porque seu conteúdo é materialmente bom (V. A.
SILVA, 2011, pp. 148-149).

Para Virgílio a autonomia privada também poderia ser caracterizada como um


princípio formal, de modo que ela deve ser respeitada na maior medida do possível na análise
de situações concretas, ainda que um ato de vontade implique restrições a direitos fundamentais
(V. A. SILVA, 2011, pp. 149-150).

4.4.2.4. Tensão entre princípios formais e princípios materiais: perspectiva a partir do conceito
alexyano de “competência”

Como visto, Virgílio crê que a aplicabilidade direta dos direitos fundamentais às
relações privadas exige do intérprete a solução da tensão criada pela interação entre a autonomia
privada, que, como princípio formal, garante a validade de decisões restritivas de direitos
fundamentais, e os próprios direitos fundamentais por ela restringidos, que, como princípios
materiais, agem em sentido contrário, limitando a autonomia privada ao impor a necessidade
de sua realização na maior medida do possível. Sendo que o desafio posto ao intérprete é
resolvê-la sem que qualquer dos dois seja totalmente sacrificado. Para este fim, Virgílio julga
útil recorrer ao conceito de “competência” elaborado por Alexy.

No sentido proposto pelo autor alemão, uma competência consiste em uma capacidade
de se alterar a posição jurídica de um terceiro, que, por conseguinte, ocupa uma posição de
sujeição face ao exercício desta competência. Nesta acepção, os direitos fundamentais, em sua
função negativa, funcionam como limitadores de competência, por garantirem certas posições
96

jurídicas contra modificações. O legislador, por exemplo, por força da liberdade de imprensa,
não pode sujeitar os seus titulares a normas que desfigurem ou eliminem as posições jurídicas
que ela protege. Quer dizer, os direitos fundamentais restringem a competência geral do
legislador para criar ou modificar posições jurídicas, estabelecendo uma área específica de não-
competência/não-sujeição. O mesmo ocorreria no âmbito interindividual, onde os direitos
fundamentais exerceriam igualmente a função de normas negativas de competência, impedindo
que uma das partes tenha de se sujeitar a restrições impostas pela outra, que reduzam a um
mínimo desfigurado as posições jurídicas derivadas dos direitos fundamentais. Em sentido
contrário, no mesmo contexto, a autonomia privada, enquanto princípio formal, que, tal qual os
materiais, deve ser realizada em seu máximo possível conforme as circunstâncias do caso
concreto, agiria como sustentáculo da competência para modificar as posições jurídicas da parte
contrário. Assim, a colisão entre a autonomia privada e um direito fundamental em uma situação
determinada pode ser visto como uma interação entre vetores de normas de competência e de
não-competência, cabendo ao aplicador buscar, na superação de seu contraste, preservar tanto
umas como as outras, na maior medida do possível (2011, pp. 150-153).

4.4.2.5. Resolução da tensão entre autonomia privada e direitos fundamentais

4.4.2.5.1. Impossibilidade de sopesamento entre princípios formais e materiais

A resposta doutrinária costumeira é de que a referida tensão entre autonomia privada


e direitos fundamentais que surge nos casos em que estes são aplicados diretamente às relações
entre particulares pode ser resolvida, tal como as colisões entre princípios materiais, pela
aplicação da técnica de sopesamento. Virgílio, todavia, não reputa possível ou até mesmo
necessária a sua utilização (V. A. SILVA, 2011, p. 153).

Ele explica que a colisão entre direitos fundamentais que tenham a estrutura de
princípios materiais é resolvida por uma lei de colisão, cuja fórmula sintética é a de que ao grau
de não-realização de um princípio, necessariamente há de corresponder a importância da
realização do princípio com o qual ele colide. Assim, o sopesamento entre direitos fundamentais
em geral há de ser sempre bilateral, considerando-se tanto a importância em si de cada princípio
97

colidente, como o grau de realização e de não realização de cada um em suas restrições


recíprocas. Este padrão, no entanto, é conceitualmente impossível de ser repetido nas colisões
entre princípios formais e princípios materiais. Isto, pois os princípios formais como a
autonomia privada são desprovidos de conteúdo realizável, sendo sua função apenas a de
validar decisões/garantir competências, de forma que lhe falta um valor de comparação com o
princípio material colidente. Tanto é, que embora a doutrina que se proponha a tratar da questão
sempre faça alusão à necessidade de sopesamento da autonomia privada com os direitos
fundamentais, os raciocínios apresentados não relacionam as restrições do direito fundamental
lesado com a necessidade de realização da autonomia privada, tal como esta técnica exige. Ao
contrário, as soluções propostas resumem-se a definir previamente "situações em que a
autonomia privada deve ser mais respeitada e situações em que esse respeito poderá ser mais
facilmente mitigado", com base em critérios para a valoração da autonomia privada de modo
prévio abstrato, e não na interação concreta com direitos fundamentais. A consideração da
desigualdade entre as partes para aferir o grau de proteção que a autonomia merece, por
exemplo, não cuida de um critério de sopesamento, mas sim de um critério de valoração, que
visa definir previamente, em abstrato, a importância da tutela da autonomia privada em um caso
concreto hipotético. De outra parte, a efetiva técnica de sopesamento não se resume à valoração
dos interesses em jogo, sendo etapa indispensável a mencionada análise bidirecional de sua
interação e de sua realização/não realização recíproca na situação analisada (V. A. SILVA,
2011, pp. 154-160).

Enfim, a discordância de Virgílio não diz respeito à definição de standards para a


consideração da validade da restrição a um direito fundamental provocada pela autonomia
privada. Ele reconhece a sua importância e, como se verá, trata de vários deles. O que o autor
contesta é tão somente a afirmação de que se tratem critérios de sopesamento, pois não se trata
de técnica adequada para a aplicação de princípios formais, que não possuem conteúdo
mensurável.

4.4.2.5.2. Inadequação da regra da proporcionalidade para a solução de colisões entre


princípios no âmbito privado

Virgílio considera indevida a aplicação da regra da proporcionalidade, que foi


desenvolvida tendo em consideração as relações de que o Estado participa, para a formação da
98

regra de colisão entre a autonomia privada e direitos fundamentais em âmbito interindividual.


Como visto no tópico 4.3.2, é o que sustenta Steinmetz, para quem a análise da validade da
restrição contratual promovida pela autonomia privada, há de ser aferida a partir de juízo a
respeito de sua adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

Duas seriam as razões para o seu descabimento: em primeiro lugar, a já referida


impossibilidade de sopesamento de princípios formais, considerada a sua carência de conteúdo;
em segundo lugar o fato de que a aplicação dos testes da adequação e da necessidade que a
regra da proporcionalidade pressupõe, enfrenta obstáculos insuperáveis no domínio privado,
visto terem sido desenvolvidos especificamente para a análise da validade de restrições de
direitos fundamentais promovidas pelos Poderes Públicos (2011, pp. 160-163).

A adequação, explica Virgílio, é aferida a partir de um juízo comparativo entre meios


e fins, de maneira que afigura-se adequada a medida apta a promover a realização da finalidade
eleita. Sucede que, de modo geral, em se tratando de medidas estatais restritivas, a análise da
adequação se inicia com a exigência de que a finalidade buscada seja legítima, ou seja, a
validade da restrição é condicionada à persecução da realização de outro direito fundamental
ou de um interesse coletivo. Nas relações entre particulares, contudo, isto não é exigível. Nelas
os fins perseguidos são normalmente interesses privados como o aumento do lucro, do que não
necessariamente decorre a sua ilegitimidade (2011, p. 163-164). Há dificuldade, portanto, em
definir quais interesses seriam legitimamente persequíveis pelos particulares.

Mas o maior problema residiria na aplicação do teste da necessidade. Em relação às


medidas estatais, reputam-se necessárias aquelas capazes de promover um objetivo que não
seria possível de ser atingido com a mesma intensidade, caso eleita outra que não representasse
o mesmo grau de restrição a direito fundamental. Quer dizer, o meio eleito pelo Estado para o
atingimento do fim desejado, embora reduza a proteção a um direito fundamental, é válido,
tendo em conta ser o único possível para o atingimento da finalidade pretendida. O ponto é que
impor tal restrição a atos privados equivale à retirada total da autonomia das partes para
disporem sobre os termos do contrato. Afinal, se só há uma única medida adequada conforme
a necessidade, não há qualquer liberdade de escolha; os termos do contrato haveriam de ser,
invariavelmente, sempre os menos gravosos ao direito fundamental. Assim, mesmo a
precedência prima facie de que gozaria a autonomia privada nas relações em que as partes se
encontram em pé de igualdade fática, defendida por Steinmetz (v. tópico 4.3.2), acaba perdendo
sua força, pois, em quase todos os casos, a sua precedência seria superada, predominando
sempre os direitos fundamentais em detrimento da autonomia privada (2011, pp. 164-165).
99

4.4.2.5.3. Critérios possíveis para a valoração da autonomia privada

Quanto aos parâmetros possíveis de serem considerados na valoração da autonomia


privada quando em conflito com direitos fundamentais, Virgílio propõe: a autenticidade da
declaração de vontade; a preferência prima facie de que goza a autonomia privada; e a
intensidade da restrição ao direito fundamental promovida pela autonomia privada.

Expondo-os um a um:

● Autenticidade da declaração de vontade – Criticando a posição de Sarmento no


sentido de que quanto maior o grau de desigualdade material entre as partes, menor
seria o grau de proteção conferido à autonomia privada e maior o conferido ao direito
fundamental afetado, Virgílio destaca que a mera constatação de desigualdade material
entre as partes não seria suficiente para se avaliar concretamente a relevância da
autonomia privada e a necessidade de seu respeito. A desigualdade material entre as
partes envolvidas não implicaria, incondicionalmente, limitação ao exercício da
autonomia privada. Na visão de Virgílio, o que releva na relativização da autonomia
privada é o grau de autenticidade das vontades expressadas, que pode ser afetado por
fatores de diversas naturezas, até mesmo pela desigualdade material entre as partes,
mas não somente e necessariamente por ela, pois “é perfeitamente possível que, em
uma relação entre particulares, haja um enorme grau de autonomia na escolha dos
termos e condições da relação, ainda que haja uma considerável desigualdade material
e de poder entre as partes”. Em suma, quanto mais real for a autonomia privada, mais
valor ela terá, enquanto princípio formal, para sustentar a validade do exercício da
competência das partes para decidir livremente os termos de sua relação. Sem
embargo, o critério da autenticidade da vontade (autonomia real), ele reforça, não é
um critério para sopesamento, mas de valoração, pois ele não faz comparar a
autonomia privada com o direito fundamental colidente. É unilateral, diz só da
autonomia privada. De outra parte, para se saber se a declaração de vontade da parte
foi efetivamente sincera há de se considerar se: havia simetria de poder entre as partes
(=ausência de pressões internas); se há pressões externas à própria relação; e se
mudanças fáticas ocorridas no curso da relação contratual não a desequilibraram,
intensificando a restrição ao direito fundamental sacrificado (2011, pp. 156-159).
100

● Precedência “prima facie” da autonomia privada e intensidade da restrição – Outro


critério de valoração (e não de sopesamento) possível, quando ausente o desequilíbrio
entre as partes ou insinceridade na manifestação de vontade, seria a consideração de
uma precedência prima facie da autonomia da vontade em face de outros direitos
fundamentais envolvidos. Precedência que, contudo, pode ser revertida, sendo o fator
mais relevante sob esta ótica a análise da intensidade da restrição aos direitos
fundamentais. Assim, ainda que as partes estejam em igualdade e que tenha sido
sincera a manifestação de vontade, o peso conferido ao princípio formal da autonomia
privada tenderá a ser menor quanto maior for a intensidade da restrição aos direitos
fundamentais envolvidos na relação (V.A. SILVA, 2011, pp. 159-160).

● Intensidade da restrição e núcleo essencial da autonomia privada – Virgílio se opõe


ao argumento de que na consideração dos efeitos dos direitos fundamentais em
relações privadas não se poderia abdicar de se conferir proteção a um núcleo essencial
e irredutível da autonomia privada, que não cederia à proteção do direito fundamental
que ela restringe. Na sua visão, o núcleo essencial da autonomia privada não pode ser
protegido às custas de lesões a direitos fundamentais, importando sempre a análise da
intensidade da restrição ocasionada pelo exercício dessa autonomia. O autor
exemplifica com a venda de um imóvel. O proprietário pode resolver vendê-lo a um
grande amigo, ainda que a proposta de um desconhecido seja melhor. Neste caso, a
desigualdade de tratamento é justificável com base no necessário respeito à autonomia
privada. Todavia, o mesmo não se poderia dizer se o discrímen considerado para a
diferença de tratamento entre dois potenciais compradores com propostas equivalentes
fosse o fato de um deles ser negro, pois “a intensidade do desrespeito à igualdade seria
muito maior e justificaria uma intervenção na autonomia privada do proprietário do
imóvel” (2011, pp. 165-167). Em síntese, há de se ter sempre em consideração a
intensidade da restrição a direito fundamental promovida pela autonomia privada no
caso concreto, não podendo o seu núcleo essencial ser invocado como critério genérico
de validade do ato ou negócio jurídico.

4.5. Posição da jurisprudência brasileira

Como bem observam Sarmento e Virgílio Afonso da Silva, embora muitos casos
envolvendo a aplicabilidade de direitos fundamentais às relações entre particulares já tenham
101

sido decididos pelo Supremo Tribunal Federal, a Corte não se preocupou em desenvolver uma
tese própria sobre o tema e tampouco demonstrou sua adesão a algum modelo de incidência em
específico (2010, p. 273; 2011, p. 93).

No já mencionado RE 158.215, em que o STF tratou da aplicabilidade do direito


fundamental ao devido processo legal nas relações entre particulares, o caso concreto versava
sobre a expulsão de associados de uma cooperativa do Rio Grande do Sul em inobservância às
regras estatutárias relativas a tal procedimento e, sobretudo, sem ter a eles garantido o direito a
defesa previsto estatutariamente. Negligenciando a análise da existência e da suficiência de uma
solução prescrita pelo legislador infraconstitucional para a hipótese de descumprimento de
norma estatutária, antes do recurso direto à Constituição, recomendação que é feita, tanto pelos
defensores do modelo direto, quanto pelos defensores do modelo indireto, o Tribunal
Constitucional optou sem desvios pela regulação do caso por meio da aplicação direta do direito
fundamental ao devido processo legal.

Não há qualquer menção à legislação infraconstitucional no acórdão e os Ministros


sequer explicitaram as premissas que embasaram sua conclusão pela necessidade de recurso
direto à Constituição. O lacônico voto do relator, Ministro Marco Aurélio, faz parecer ser uma
verdade autoevidente a possibilidade de aplicação direta dos direitos fundamentais em âmbito
privado no ordenamento jurídico brasileiro.

Eis a íntegra de seu voto:

Exsurge, na espécie, a alegada contrariedade ao inciso LV do rol das garantias


constitucionais. Conforme ressaltado pela Procuradoria Geral da República, os
Recorrentes foram excluídos do quadro de associados da Cooperativa em caráter
punitivo, tal como depreende-se do acórdão atacado (folhas 245 a 249). O Colegiado
de origem acabou por mitigar a garantia da ampla defesa, levando em conta o desafio
lançado pelos Recorrentes no sentido de serem julgados pela Assembléia da
Cooperativa. A exaltação de ânimos não é de molde a afastar a incidência do preceito
constitucional assegurador da plenitude da defesa nos processos em geral. Mais do
que nunca, diante do clima reinante, incumbia à Cooperativa, uma vez instaurado o
processo, dar aos acusados a oportunidade de defenderem-se e não excluí-las
sumariamente do quadro de associados. Uma coisa é a viabilização da defesa e o
silêncio pela parte interessada, algo diverso é o atropelo das normas próprias à espécie,
julgando-se o processo sem a abertura de prazo para produção da defesa e feitura de
prova. Na esteira do pronunciamento da Procuradoria Geral da República, tenho que
o recurso extraordinário interposto está a merecer conhecimento e provimento.
Provejo-o para, reformando o acórdão de folhas 246 a 249, julgar procedente o pedido
formulado na demanda anulatória. Fulmino o ato da Assembléia da Recorrida que
implicou a exclusão dos Recorrentes do respectivo quadro social, reintegrando-os,
assim, com os consectários pertinentes e que estão previstos no Estatuto da Recorrida
(STF, 1996).
102

Já no RE 161.243, envolvendo a aplicação do princípio da igualdade a relações de


trabalho, mais uma vez, sem grande cuidado com a fundamentação, o STF decidiu que a Air
France não poderia discriminar o tratamento dispensado aos seus trabalhadores franceses e não
franceses. Afirma o acórdão simplesmente que a “discriminação que se baseia em atributo,
qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o
credo religioso (...) é inconstitucional” (STF, 1996).

Igualmente, no RE 201.819, que também tratou do devido processo legal em processo


de exclusão de associados, desta vez da União Brasileira de Compositores, embora o tema da
aplicabilidade de direitos fundamentais a relações privadas tenha sido tratado com maior rigor
e profundidade pelo Ministro Gilmar Mendes, que até esboçou uma aproximação com a
doutrina da state action ao justificar o reconhecimento de um direito subjetivo do associado à
ampla defesa com base no caráter público (“ainda que não estatal”) da atividade exercida pela
associação, a tese não foi desenvolvida a ponto de poder ser considerada como um paradigma
teórico de sua jurisprudência (STF, 2006).

Em sua conclusão, assim manifestou-se o Ministro Gilmar Mendes:

Todavia, afigura-se-me decisivo no caso em apreço, tal como destacado, a singular


situação da entidade associativa, integrante do sistema ECAD, que, como se viu na
ADI n. º 2.054-DF, exerce uma atividade essencial na cobrança de direitos autorais,
que poderia até configurar um serviço público por delegação legislativa.
Esse caráter público ou geral da atividade parece decisivo aqui para legitimar a
aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao
contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, da CF) ao processo de exclusão de
sócio de entidade.
Estando convencido, portanto, de que as particularidades do caso concreto legitimam
a aplicabilidade dos direitos fundamentais referidos já́ pelo caráter público – ainda
que não estatal – desempenhado pela entidade, peço vênia para divergir, parcialmente,
da tese apresentada pela eminente relatora. voto, portanto, pelo conhecimento do
recurso e, no mérito, pelo seu desprovimento (STF, 2006).

Está claro no acórdão, todavia, que o STF reconheceu que a aplicação do devido
processo legal à relação privada pressupunha a solução de seu conflito com a autonomia
privada; embora a técnica de solução não tenha sido declarada. Neste sentido, assim afirma o
voto do Ministro Celso de Mello manifestou franca adesão à possibilidade de aplicação direta
dos direitos fundamentais às relações privadas:
103

É por essa razão que a autonomia privada – que encontra claras limitações de ordem
jurídica – não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e
garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois
a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e
atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela
própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos
particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades
fundamentais(STF, 2006).

Ao contrário do Ministro Gilmar Mendes, contudo, que destacou as peculiaridades da


relação do recorrente com a associação com o fim de justificar a incidência do devido processo
legal, o Ministro Celso de Mello defende a sua aplicabilidade genérica:

[...] a ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil


a possibilidade de agora [...] à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial
dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da
República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais
(STF, 2006).

Já a Ministra Ellen Gracie, que votou a favor da associação recorrente, entendeu,


primeiramente, que o estatuto da associação autorizava a exclusão tal como realizada, sendo
que haveria de prevalecer o direito de associação, no sentido de proteção do regramento da
UBC. Quando confrontada com o argumento de que o STF já havia reconhecido a aplicação de
direitos fundamentais a relações entre privados, a Ministra afirmou que o caso da Airfrance
versava sobre uma relação trabalhista, em que presente a subordinação, enquanto que, no caso
da UBC, o associado teria optado livremente por se associar a ela (STF, 2006).

O estado da questão não é diverso no Superior Tribunal de Justiça. Com efeito, pode-
se colher diversos exemplos de aplicação direta dos direitos fundamentais em relações de direito
privado, mas em que o Tribunal deixa de apresentar qualquer elaboração teórica mais densa a
respeito de sua plausibilidade.

Na mesma direção, no julgamento do REsp 1.713.426, feito em que o ex-companheiro


de uma sócia de um clube curitibano fora proibido de frequentar suas dependências sob a
alegação de que tal direito seria conferido apenas a ex-cônjuges e não a ex-companheiros, o
STJ decidiu, invocando o supra referido RE 201.819, que a recusa da associação violava a
isonomia e a proteção constitucional de todas as entidades familiares. Confirmando apenas que
o “espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à
incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais
de seus associados e de terceiros” (STJ, 2019).
104

Já no REsp 1.365.279, o STJ anulou a sanção aplicada por assembleia condominial,


aplicando diretamente o direito fundamental ao devido processo legal em relação privada, por
reputar que a sanção prevista para o comportamento antissocial reiterado de condômino (art.
1.337, parágrafo único, do CC) não pode ser aplicada sem que antes lhe seja conferido o direito
de defesa (STJ, 2015).

Em que pese a menção no acórdão à aplicabilidade direta, as premissas e a forma de


incidência reconhecidas pela Corte serem típicas do modelo indireto. Isto, pois o que fizeram
os Ministros, na verdade, foi extrair o direito do condômino ao devido processo legal a partir
de uma interpretação conforme a Constituição do art. 1.337, parágrafo único, do CC. Como
visto no tópico 3.3, na proposta de Dürig, acolhida pelo Bundesverfassungsgericht ao decidir
do caso Lüth, a realização em concreto da eficácia irradiante dos direitos fundamentais é
realizada pela interpretação em conformidade das normas de direito privado singulares para a
regulação da situação analisada pelo órgão julgador, e de suas cláusulas gerais – como a função
social da propriedade – e conceitos jurídicos indeterminados.

É o que transparece no seguinte trecho do acórdão:

De fato, o Código Civil – na linha de suas diretrizes da socialidade, cunho de


humanização do direito e de vivência social, da eticidade, na busca de solução mais
justa e equitativa, e da operabilidade, alcançando o direito em sua concretude – previu,
no âmbito da função social da posse e da propriedade, no particular, a proteção da
convivência coletiva na propriedade horizontal.
Nesse passo, como sabido, os condôminos podem usar, fruir e livremente dispor das
suas unidades habitacionais, assim como das áreas comuns (CC, art. 1.335), desde que
respeitem outros direitos e preceitos da legislação e da convenção condominial.
Realmente, o bom exercício da propriedade se lastreia na sua função social, boa-fé,
nos bons costumes, sem abuso e com respeito ao meio ambiente e aos vizinhos,
notadamente os padrões de segurança, sossego, saúde e privacidade dos atores sociais
que a norma visa proteger (CC, art. 1.277).
Nesse passo, como sabido, os condôminos podem usar, fruir e livremente dispor das
suas unidades habitacionais, assim como das áreas comuns (CC, art. 1.335), desde que
respeitem outros direitos e preceitos da legislação e da convenção condominial.
Realmente, o bom exercício da propriedade se lastreia na sua função social, boa-fé,
nos bons costumes, sem abuso e com respeito ao meio ambiente e aos vizinhos,
notadamente os padrões de segurança, sossego, saúde e privacidade dos atores sociais
que a norma visa proteger (CC, art. 1.277).
Nessa ordem de ideias, surge a discussão se, para fins de incidência da referida sanção,
atinente ao condômino nocivo e contumaz, há necessidade de prévia notificação ao
infrator, possibilitando, assim, o exercício do seu direito de defesa.
A doutrina especializada reconhece a necessidade de garantir o contraditório [...]
É que, por se tratar de punição imputada por conduta contrária ao direito, na esteira
da visão civil-constitucional do sistema, deve-se reconhecer a aplicação imediata dos
princípios que protegem a pessoa humana nas relações entre particulares, a
reconhecida eficácia horizontal dos direitos fundamentais que, também, deve incidir
105

nas relações condominiais, para assegurar, na medida do possível, a ampla defesa e o


contraditório.
Com efeito, buscando concretizar a dignidade da pessoa humana nas relações
privadas, a Constituição Federal, como vértice axiológico de todo o ordenamento,
irradiou a incidência dos direitos fundamentais também nas relações particulares,
emprestando máximo efeito aos valores constitucionais (STJ, 2015).

No julgamento do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n. º 330.494, o STJ


decidiu ser injustificada a recusa de uma associação ao ingresso de um associado, dado ele ter
atendido todos os requisitos previstos no estatuto, sustentando que:

As associações devem observar a teoria da eficácia horizontal dos direitos


fundamentais, uma vez que o relacionamento vertical entre as normas – normas
constitucionais e normas infraconstitucionais, por exemplo – deve ser apresentado, de
tal forma, que o conteúdo de sentido da norma inferior deve ser aquele que mais
intensamente corresponder ao conteúdo de sentido da norma superior.
[...]
A interpretação dos arts. 54 e 55 do Código Civil deve ser feita à luz dos princípios
constitucionais, que impedem discriminações arbitrárias em associações profissionais
(STJ, 2016).

Sem embargo de a técnica aplicada ter sido, mais uma vez, a da aplicabilidade indireta,
os precedentes citados no acórdão – RE 201.819 e REsp 1.365.279 – sustentam a possibilidade
de sua aplicação direta. O que faz do acórdão outro exemplo de má compreensão dos modelos
de incidência de direitos fundamentais nas relações privadas pelo STJ.

Por fim, no REsp 1.330.919, no STJ tratou de um tema que está longe de ser pacificado
mesmo dentro da parcela da doutrina que defende a aplicabilidade direta das normas de direitos
fundamentais às relações privadas: a vinculação dos particulares a direitos fundamentais
prestacionais de caráter social16.

No caso, interpretando o conceito jurídico indeterminado de “cláusula abusiva” trazido


pelo art. 51, IV do Código de Defesa do Consumidor de acordo com o direito fundamental à
saúde, entendeu o Tribunal que seria nula a cláusula contratual de plano de saúde que limitasse
a cobertura de exames, internações e demais procedimentos hospitalares exclusivamente pelo
fato de terem sido solicitados por médico diverso daqueles que compõem o quadro da
operadora, pois isso configuraria não apenas discriminação do profissional, mas também

16
Sarmento e Sarlet por exemplo, são favoráveis à vinculação dos particulares a direitos fundamentais sociais,
mesmo os preciupuamente prestacionais (2010, pp. 343-344 e 2011, pp. 29-30). Já Steinmetz considera que os
direitos sociais previstos no art. 6º da Constituição Federal vinculam apenas o Estado (2004, p. 278).
106

tolheria, tanto o direito de usufruir do plano contratado, como a liberdade de escolha do médico
pelo consumidor.

A intervenção estatal na liberdade contratual se justificaria, pois, nos termos do


acórdão:

[...]a eficácia do direito fundamental à saúde ultrapassa o âmbito das relações travadas
entre Estado e cidadãos – eficácia vertical –, para abarcar as relações jurídicas
firmadas entre os cidadãos, limitando a autonomia das partes, com o intuito de se obter
a máxima concretização do aspecto existencial, sem, contudo, eliminar os interesses
materiais (STJ, 2016).

Embora o tópico não seja abordado com a merecida atenção, o acórdão revela a
admissão pelo STJ de um critério de valoração da autonomia privada proposto por Sarmento:
o envolvimento de interesses existenciais no contrato (2010, pp. 290-291). Consta da
fundamentação que foi relevante para a conclusão pela nulidade da cláusula a consideração pelo
relator o Ministro Luis Felipe Salomão de que “o contrato de plano de saúde, além da nítida
relação jurídica patrimonial que por meio dele se estabelece, reverbera também caráter
existencial”, no caso a saúde do usuário, “o que coloca tal espécie contratual em uma
perspectiva de grande relevância no sistema jurídico pátrio”.

Evidencia-se, portanto, uma notável tendência de nossos Tribunais Superiores, não só


ao reconhecimento da vinculação de particulares aos direitos fundamentais, bem como à
aceitação de sua aplicabilidade direta às relações interindividuais. Se, de uma parte, eles estão
a atuar de modo condizente com a direção na qual caminha a doutrina brasileira contemporânea
dos direitos fundamentais, não deixa de ser preocupante o seu desapego ao esclarecimento das
premissas adotadas na solução de uma questão tão complexa. Em especial, destaca-se a falta de
um enfrentamento inicial das soluções já propostas pelo legislador infraconstitucional aos casos
apresentados, nem que fosse para, ao final, reputá-las insuficientes para a proteção máxima dos
direitos fundamentais, o que abonaria a invocação direta do texto constitucional. Como visto
ao longo deste trabalho, mesmo os defensores mais obstinados da teoria direta afirmam como
seu pressuposto o esgotamento das possibilidades hermenêuticas das normas jusprivadas
criadas pelo Poder Legislativo, em respeito à posição preferencial que ele goza na ordem
democrática para a conformação dos direitos fundamentais.

Também digno de nota, é o viés generalizante das soluções apresentadas, que parecem
pretender resolver todas as situações de conflito da mesma forma, sem preocupação com as
peculiaridades de cada caso concreto, nem com a sensível diferença estrutural das relações
107

privadas em relação às estatais. Afinal, o que movimenta todo o arcabouço teórico desenvolvido
a respeito do tema é o fato de que, nas interações típicas do domínio privado, ambas as partes
são titulares de direitos fundamentais e se faz possível a renúncia às posições jurídicas que eles
garantem.

Se, de um lado, as conclusões até hoje apresentadas pelo STJ e pelo STF podem
parecer razoáveis e adequadas para a solução dos casos concretos que lhes foram submetidos,
de outro, a sua reprodução acrítica em julgamentos futuros será capaz de conduzir à temida
hipertrofia dos direitos fundamentais que todas as teorias que tratam do tema visam evitar, que
acarreta não só a aniquilação da autonomia privada, mas uma banalização do próprio
significado dos direitos fundamentais protegidos.

Não se critica necessariamente os resultados a que os Ministros chegaram, mas sim o


meio descompromissado com a boa técnica jurídica com que eles foram atingidos.

O modo como a questão é tratada revela desprestígio pelo trabalho do Legislativo,


demonstrando a falta de consciência das Corte Superiores a respeito do locus que ocupam na
ordem jurídica democrática instaurada pela Constituição Federal de 1988. A invocação direta
de direitos fundamentais para a solução de lides privadas – repito, sem prejuízo das elogiáveis
soluções alcançadas – tem sido utilizada, em particular pelo STF, como forma injustificada e
irrefreada de concentração de poder de criação do direito, em desrespeito à separação de
poderes e à competência decisória do legislador na conformação de seu conteúdo jurídico.

Quando intervém no domínio privado para o controle do exercício da autonomia


privada, o Estado não pode, a pretexto de proteger direitos fundamentais contra lesões
provocadas por terceiros, negligenciar sua função clássica de defesa contra ações arbitrárias
dele próprio. Os direitos fundamentais apresentam um caráter bivalente nas relações entre
particulares, pois, ao mesmo tempo em que tornam exigível a ação dos poderes públicos em
favor da proteção da parte “violada”, também garantem a sua abstenção em favor da liberdade
da parte “violadora”, visto ambas serem igualmente titulares de posições jurídicas deles
derivadas. Esse duplo aspecto deve necessariamente ser considerado pelo julgador, sob pena de
o resultado da tutela judicial ser a mera inversão do sujeito oprimido na relação. Daí a
importância de a jurisprudência, tanto demonstrar compromisso com um modelo de incidência,
quanto considerar os critérios apresentados pela doutrina destinados à modulação do grau de
intervenção na autonomia privada pautada em direitos fundamentais.
108

Os ganhos não se reduziriam ao aumento da segurança jurídica, representando também


a otimização da realização concreta dos mandamentos constitucionais.
109

CAPÍTULO 5 – DEVIDO PROCESSO LEGAL: CONCEITO E


APLICABILIDADE A RELAÇÕES PRIVADAS

5.1. Considerações introdutórias

Como visto nos dois capítulos anteriores, o que em grande parte dá o tom de toda a
discussão a respeito da aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações entre particulares
é a compreensão de que eles estariam historicamente associados exclusivamente com a defesa
contra o poder estatal, de modo que contrariaria sua própria função original a sua invocação
como limite ao exercício de liberdades individuais. Ainda que tal perspectiva histórica seja
contestável (V.A. SILVA, 2011, pp. 136-139), ela se assentou como lastro da resistência à sua
aceitação, ao ponto de a doutrina germânica ter sido obrigada a desenvolver fundamentos
próprios para a justificação da superação dessa concepção restrita. Daí o desenvolvimento da
noção de que os direitos fundamentais possuem uma dimensão objetiva, no sentido de
constituírem os valores fundantes da ordem jurídica que os positiva. A partir da qual inferiu-se
que os direitos fundamentais emanam efeitos sobre todos os ramos do direito, inclusive o direito
privado; e que a vinculação estatal aos direitos fundamentais não somente obriga o Estado a
respeitá-los, como também força-o a fazê-los serem respeitados pelos indivíduos nas relações
entre si (v. tópico 3.3).

Embora nas maiores democracias que adotam o sistema de direito romano-germânico


a aplicabilidade dos direitos fundamentais a relações interindividuais hoje seja consenso, tanto
em nível doutrinário quanto jurisprudencial, limitando-se a controvérsia apenas ao modo como
se manifesta a sua incidência (v. tópicos 3.4, 3.5 e 3.6), o ponto é que, no que respeita
especificamente ao direito fundamental ao devido processo legal, a investigação de sua
extensão ao âmbito privado parece merecer uma abordagem peculiar, dado que a sua ligação
histórica com a sujeição ao poder estatal é ainda mais forte, o que tende a fortalecer as objeções
à sua aplicabilidade.

É bom lembrar que, mesmo os defensores da teoria direta, admitem a existência de


direitos fundamentais que são eminentemente vinculantes apenas ao Estado, como é o caso dos
direitos dos presos (v. tópicos 4.2 e 4.3).
110

Sem embargo, como se verá, o fato é que a doutrina brasileira é amplamente favorável
à aplicação do direito fundamental ao devido processo legal às relações entre particulares, assim
como a jurisprudência de nossas cortes superiores possui registros marcantes de seu
reconhecimento.

Este capítulo propõe-se a apresentar, sem pretensão de esgotar os temas: a origem


histórica do conceito de devido processo legal; o seu conteúdo jurídico mínimo; e o modo como
a doutrina e a jurisprudência do Brasil têm considerado a sua aplicabilidade às relações não
estatais.

5.2. Origem histórica do devido processo legal

A Constituição Federal de 1988 determina que “ninguém será privado da liberdade ou


de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, LIV). Está assim positivado, de modo
expresso, o direito ao devido processo legal no rol de direitos fundamentais da República
Federativa do Brasil.

A expressão devido processo legal é tradução direta do inglês due process of law. O
termo law figura na locução no sentido de “direito” e não de “legislação”, que em inglês seria
traduzido por statutory law. Fala-se então que o processo “devido” é o processo conforme o
direito como um todo (DIDIER JR., 2017, p. 73). Daí a moderna doutrina processualista preferir
se referir a um “direito a um processo justo”, que melhor refletiria a necessidade de sua
conformidade, não só com as leis, mas também com a Constituição (MARINONI, 2015, p.
489). Igualmente, na Itália a doutrina fala de diritto al giusto processo e na Alemanha de Recht
auf ein faires Verfahren.

Embora a V e a XIV Emendas à Constituição dos Estados Unidos tenham sido a


referência histórica que inspirou o constituinte brasileiro (MARINONI, 2015, p. 489), a
expressão due process of law apareceu pela primeira vez17 no direito anglo-saxônico em um
conjunto de leis (statutes) elaboradas pelo Parlamento da Inglaterra durante o reinado de
Eduardo III (1327-1377), com o fim de interpretar a expressão “law of the land”, que aparece

17
Estamos a tratar da origem da expressão due process of law. A noção de devido processo legal como cláusula
de proteção contra o poder tirânico, por sua vez, tem sua origem atrelada ao direito medieval alemão (DIDIER
JR., 2017, p. 74).
111

no Capítulo 39 da Magna Carta de 1215, que confere proteção aos cidadãos (free men) contra
ações arbitrárias da Coroa Inglesa, condicionando a retirada de seus bens ou direitos a um
julgamento justo, promovido por seus pares (lawful judgment of his equals), ou de acordo com
as “leis da terra” (by the law of the law). (GREEN, 2018, p. 402).

Assim diz texto do Capítulo 39, conforme tradução do latim original 18 para o inglês:

(39) No free man shall be seized or imprisoned, or stripped of his rights or


possessions, or outlawed or exiled, or deprived of his standing in any way, nor will
we proceed with force against him, or send others to do so, except by the lawful
judgment of his equals or by the law of the land. (THE BRITISH LIBRARY, 2014,
on-line)

Em 1351, o Parlamento introduziu o seguinte trecho ao capítulo, visando esclarecer o


que a Magna Carta queria dizer ao se referir a um julgamento “by the law of land”:

Whereas it is contained in the Great Charter of the Franchises of England, that none
shall be imprisoned nor put out of his Freehold, nor of his Franchises nor free
Custom, unless it be by the Law of the Land; It is accorded assented, and stablished,
That from henceforth none shall be taken by Petition or Suggestion made to our Lord
the King, or to his Council, unless it be by Indictment or Presentment of good and
lawful People of the same neighbourhood where such Deeds be done, in due Manner,
or by Process made by Writ original at the Common Law; nor that none be out of his
Franchises, nor of his Freeholds, unless he be duly brought into answer, and
forejudged of the same by the Course of the Law; and if any thing be done against the
same, it shall be redressed and holden for none. (1351 CHAPTER 4 25 Edw 3 Stat 5).

Três anos mais tarde, em 1354, o trecho foi reformulado pelo Liberty of Subject Act,
tendo sido finalmente adotada a expressão due process of law:“[N]o man of what Estate or
Condition that he be, shall be put out of Land or Tenement, nor taken nor imprisoned, nor
disinherited, nor put to Death, without being brought in Answer by due Process of the Law.”
(CHAPMAN; MCCONNELL, 2012, p. 1682; GREEN, 2018, p. 402; RARES, 2015, on-line).

Chapman e McConnel chamam a atenção para o fato de que previsão da cláusula do


devido processo legal na Magna Carta, além da notável função de garantia de direitos
individuais, implica forte conexão com a separação de poderes, pois, ao garantir o direito a um
julgamento conforme a lei, ela determinava que a Coroa não poderia mais unilateralmente
privar as pessoas de seus direitos à vida, liberdade ou propriedade, exceto nos termos da

18
No original latino: “Nullus líber homo capiatur vel impreisonetur aut disseisietur de libero tenemento suo vel
libertatis, vel liberis consuetudibunus suis, aut utlagetur, aut exuletur, aut aliquo modo destruatur, nec super eo
ibimus, nec supere um mittemus, nisi per legale judicium parium suorum, vel per legem terrae”.
112

common law ou dos statutes e conforme decidido por um corpo judicial independente (Cf. 2012,
pp. 1681-93 e 1807). Ou seja, o poder foi dividido entre a Coroa, o Parlamento e os Tribunais.

Embora a Constituição dos Estados Unidos – escrita em 1787, ratificada em 1788, e


em vigor desde 1789 – tenha sido fortemente influenciada pela Magna Carta e, em especial,
pelos comentários que Sir Edward Coke teceu a seu respeito (Cf. CHAPMAN; MCCONNEL,
2012, p.1681; HYMAN, 2005, pp. 10 e ss.), a princípio, ela nada previa acerca dessa garantia.
A cláusula do devido processo legal só veio a ser citada posteriormente na Declaração dos
Direitos dos Cidadãos dos Estados Unidos (a Bill of Rights), que é o nome pelo qual ficaram
conhecidas as dez primeiras emendas à Constituição dos Estados Unidos, ratificadas em
conjunto em 15 de dezembro de 1791.

Dentre esses direitos adicionados à Constituição estadunidense destaca-se o due


process of law previsto na V Emenda, na qual se lê que nenhuma pessoa será privada de sua
vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal:

EMENDA V
Ninguém será detido para responder por crime capital, ou outro crime infamante,
salvo por denúncia ou acusação perante um Grande Júri, exceto em se tratando de
casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, ocorram nas forças de terra ou
mar, ou na milícia, durante serviço ativo; ninguém poderá pelo mesmo crime ser duas
vezes ameaçado em sua vida ou saúde; nem ser obrigado em qualquer processo
criminal a servir de testemunha contra si mesmo; nem ser privado da vida, liberdade,
ou bens, sem processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para
uso público, sem justa indenização.

Posteriormente, em 09 de julho de 1868, após o fim da Guerra de Secessão com a


vitória do Norte abolicionista, foi ratificada a XIV Emenda, cuja Seção 1 conferiu o caráter de
cidadão a qualquer pessoa nascida ou naturalizada nos Estados Unidos e estendeu o devido
processo legal como garantia contra o poder estadual.

Eis a redação da Seção 1 da XIV Emenda:

Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas a sua


jurisdição são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde tiver residência,
Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os privilégios ou as
imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem poderá privar qualquer pessoa de
sua vida, liberdade, ou bens sem processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua
jurisdição a igual proteção das leis. [...]

O seu principal intuito era forçar todo os Estados da federação a oferecerem aos negros
recém-libertos as mesmas garantias conferidas pela União. A preocupação do constituinte
derivado era a de que os Estados escravagistas que perderam a guerra insistissem em práticas
113

discriminatórias contra os negros (BELLOWS, 2018, on-line). Vale lembrar que a XIII
Emenda, que foi adotada formalmente alguns anos antes em 6 de dezembro de 1865, havia
vedado a escravidão e os trabalhos forçados, estes salvo como punição por crime pelo qual o
réu tenha sido devidamente condenado.

Tanto a XIII quanto a XIV Emenda podem também ser consideradas repercussões
diretas do vergonhoso caso Dred Scott v. Sandford de 1857, no qual a Suprema Corte dos
Estados Unidos decidiu que pessoas de ascendência africana, trazidas para o país e mantidas
como escravas, ou os seus descendentes, quer fossem ou não escravos, não estariam protegidas
pela Constituição dos Estados Unidos e jamais poderiam se tornar cidadãos daquele país
(CORNELL LAW, [1992?], on-line).

A Corte também decidiu que: como os escravos não eram cidadãos, não poderiam
peticionar nos tribunais; que enquanto propriedade de seus donos, os escravos não poderiam
lhes ser retirados sem o devido processo legal; e que o Congresso não tinha autoridade para
proibir a escravidão nos então territórios federais da União (CORNELL LAW, [1992?], on-
line).

Como se verá melhor no próximo tópico, nada obstante o texto da V e da XIV Emendas
serem similares, a última guarda uma particularidade notável que foi marcante para o
desenvolvimento nos Estados Unidos do conceito de devido processo legal substantivo. Neste
sentido, Lúcia Valle Figueiredo destaca que a principal diferença entre a V e a XIV Emendas
reside no fato de que, na primeira, o devido processo legal é previsto com conteúdo meramente
formal; enquanto que, na segunda, sobretudo pela interpretação que lhe confere a Suprema
Corte dos Estados Unidos, “o devido processo legal passa a significar a igualdade na lei [equal
protection]. E não só perante a lei”. Sendo que “há distância enorme entre respeitar-se a
igualdade em face da lei e a igualdade dentro da lei”, de forma que, a partir dessa previsão
“somente será due process of law aquela lei – e assim poderá ser aplicada pelo Magistrado –
que não agredir, não entrar em confronto, não entrar em testilhas com a Constituição, com os
valores fundamentais consagrados na Lei das leis” (1997, p. 9). Enfim, na visão da autora, a
XIV Emenda instituiu a obediência das leis à Constituição e a possibilidade de controle judicial
do conteúdo das leis aplicáveis.

Após a previsão do devido processo legal na Constituição dos Estados Unidos, ele se
expandiu para diversas constituições da Europa e da América. Caso do art. 24 da Constituição
Italiana de 1947; do art. 103, Seção I, da Lei Fundamental da Alemanha de 1948; e do art. 24
114

da Constituição Espanhola de 1978. A Constituição Francesa de 1958 não prevê expressamente


o devido processo legal, mas o Counseil Constitutionnel já reconheceu em diversas
oportunidades a necessidade de respeito a certas garantias processuais. Outrossim, o princípio
também foi acolhido por diversas convenções internacionais, como o art. 10 da Declaração
Universal dos Direitos do Homem. (HOYOS, 1987, p. 47 apud CALIXTO, 2016, p. 242).

No Brasil, o princípio do devido processo legal só foi expressamente adotado nestes


exatos termos com a Constituição Federal de 1988, sob a fórmula “ninguém será privado da
liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, LIV) (FIGUEIREDO, 1997, p.
9-10). Sem embargo, estudo de Rubens Calixto, professor da Universidade Estadual Paulista,
demonstra que a doutrina nacional reconhece indícios da garantia em constituições anteriores:

[...] Letícia de Campos Velho Martel entende que já havia traços deste princípio no
direito pátrio, pois desde as primeiras décadas do constitucionalismo republicano ele
era objeto de estudo doutrinário e de aplicação pelos tribunais, principalmente por
meio de seus subprincípios, como o contraditório e a ampla defesa.
Todavia, os tratados e julgamentos giravam exclusivamente em torno do caráter
procedimental do devido processo legal, o que perdurou até a década de 1980.
Luiz Rodrigues Wambier também assinala a existência de alguns antecedentes do
princípio, como o art. 141, § 4º, da Constituição de 1946. Esse prescrevia que
nenhuma lesão ao direito de qualquer cidadão poderia deixar de ser apreciada pelo
Poder Judiciário, enunciado que apareceu também nos textos constitucionais de 1967
(art. 150, § 4º) e 1969 (art. 154, § 4º).
Roberto Rosas entende que a Constituição de 1824 apenas tracejou o devido processo
legal quando assegurou as garantias no processo (art. 179), não obstante o princípio
já existisse no direito norte-americano. Atribui essa ausência à forte influência
francesa em nosso direito imperial, o que somente veio a se abrandar com a
Constituição Republicana de 1891.
Ao referir-se à Carta de 1891, diz que ela assegurava a plena defesa, no processo
criminal, e proibia a prisão sem prévia formação de culpa (art. 72, § 14), passando in
albis, novamente, em relação ao due process of law, o que seria explicado pelo fato
de sermos, naquele momento, menos judiciaristas do que a doutrina e a jurisprudência
norte-americana, que se abeberavam na construction da Corte Suprema em relação à
larguíssima cláusula.
Roberto Rosas afirma, ainda, que, desde 1824, todas as Constituições brasileiras
cuidaram de garantias processuais penais, mas sem ênfases às garantias civis, o que
se devia ao fato de nossos doutrinadores, exceção feita a Rui Barbosa, terem maior
interesse pelos direitos francês e italiano, em detrimento do direito americano, em que
pese nossa Constituição de 1891 ter se inspirado no modelo constitucional dos EUA.
A despeito disso, cita diversos autores que, antes mesmo da Constituição de 1988, já
buscavam o reconhecimento do devido processo legal em nosso direito, como Lúcio
Bittencourt, José Frederico Marques, Santiago Dantas, Antônio Roberto Sampaio
Dória e outros mais (2016 p. 243-244)

Embora o constituinte originário de 1988 tenha tomado por referências a V e a XIV da


Constituição dos Estados Unidos (MARINONI, 2015, p. 489), nosso Texto Magno ultrapassa
115

suas previsões, visto que, não bastasse a inclusão de dispositivo especialmente dedicado ao
“devido processo legal”, ela densifica seu conteúdo por meio da expressão de diversos de seus
elementos estruturantes. Assim é que na Constituição Federal de 1988 são previstas, por
exemplo: a garantia da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LV); a regra da publicidade dos
atos processuais (art. 5º, LX); a proibição a “juízo ou tribunal de exceção” (art. 5º, XXXVII); e
a necessidade de motivação e publicidade das decisões judiciais (art. 93, IX). Nos Estados
Unidos, ao contrário, o seu âmbito de proteção há de ser deduzido caso a caso (ÁVILA, 2010,
p. 360).

Por prever em tantos dispositivos específicos os “elementos normalmente deduzidos


do ‘devido processo legal’”, Ávila chega a afirmar que, quando se analisa a Constituição
brasileira, tem-se a impressão de que a sua previsão literal no art. 5º, LIV é supérflua (Cf. 2010,
p. 353)

Sem embargo, ainda que não houvesse tais menções expressas, o devido processo legal
poderia ser extraído como direito fundamental implícito mediante interpretação do princípio
fundamental do Estado Democrático de Direito (art.1º), ou do princípio da igualdade (art. 5º,
caput), na medida em que o Brasil conta com um catálogo aberto de direitos fundamentais (art.
5, §2º).

5.3. Conteúdo jurídico

Texto normativo e norma jurídica não se confundem. A norma é o resultado da


interpretação de um enunciado normativo.

O devido processo legal, como texto jurídico, constitui cláusula geral (DIDIER JR.,
2017, p. 74). Isto é, define o antecedente de sua incidência, a situação a ser regulada pela norma
dele extraída, mas não prescreve o consequente normativo de sua verificação no caso concreto,
o efeito jurídico imputado ao fato descrito.

Já como norma, o devido processo legal possui a natureza de princípio. Prevê, assim,
um estado ideal de coisas e institui a obrigação de realizá-lo na maior medida do possível,
conforme as circunstâncias fáticas e jurídicas presentes no momento da aplicação. Embora os
meios para o atingimento desse estado ideal de coisas não sejam previstos pelo legislador, de
sua positivação, por si só, derivam efeitos mínimos correspondentes às suas funções integrativa,
116

interpretativa, bloqueadora e otimizadora, tais como: a imposição da necessidade de criação


dos elementos necessários à sua proteção; o bloqueio à eficácia de normas e conduta contrárias
ou incompatíveis (inadequadas, desnecessárias, desproporcionais) com o mandamento que ele
instituiu; e o impulso a condutas que o concretizem (ÁVILA, 2010 , pp. 353-354; MARINONI,
2015, p. 492).

Por restar previsto no estrato constitucional, ocupando o centro da ordem jurídica, o


princípio do devido processo legal possui também a característica de alicerce de toda a
legislação infraconstitucional que o estrutura, sendo em seu conceito que deve ser buscada a
unidade das plurais fontes normativas que visam materializá-lo (MARINONI, 2015, p. 493).

Por se tratar de um princípio, seu conteúdo é marcado pela historicidade; ou seja, suas
linhas acompanham as mutações na cultura e na sociedade ocorridas ao longo do tempo, sem
que ele jamais adquira uma fórmula definitiva (Cf. DIDIER JR., 2017, p. 75).

Confira-se, neste exato sentido, famosa passagem do juiz Felix Frankfurter da


Suprema Corte dos Estados Unidos no julgamento do caso Anti-Fascist Committee v. Mc Grath
de 1951:

The requirement of "due process" is not a fair-weather or timid assurance. It must be


respected in periods of calm and in times of trouble; it protects aliens as well as
citizens. But "due process," unlike some legal rules, is not a technical conception with
a fixed content unrelated to time, place and circumstances. Expressing as it does in
its ultimate analysis respect enforced by law for that feeling of just treatment which
has been evolved through centuries of Anglo-American constitutional history and
civilization, "due process" cannot be imprisoned within the treacherous limits of any
formula. Representing a profound attitude of fairness between man and man, and
more particularly between the individual and government, "due process" is
compounded of history, [341 U.S. 123, 163] reason, the past course of decisions, and
stout confidence in the strength of the democratic faith which we profess. Due process
is not a mechanical instrument. It is not a yardstick. It is a process. It is a delicate
process of adjustment inescapably involving the exercise of judgment by those whom
the Constitution entrusted with the unfolding of the process. (SCOTUS, 1951, on-
line).

Todavia, sem prejuízo de seu caráter mutante, de que resulta a impossibilidade de se


definir em abstrato o seu retrato cabal, ao longo da história consolidou-se uma noção mínima
acerca de seu conteúdo. Assim, incorporaram-se ao conceito de devido processo legal garantias
basilares, como a necessidade de respeito ao contraditório e à duração razoável do processo
(Cf. DIDIER, 2017, p. 75; MARINONI, p. 2015, p. 491).

Como mencionado, muitas dessas proteções individuais concretizadoras do direito ao


devido processo legal que se consolidaram com a sua evolução histórica foram adotadas pela
117

Constituição Federal de 1988 instituindo as balizas do modelo constitucional processual


brasileiro (DIDIER JR., 2017, p. 76). Assim, todas as normas (princípios e regras)
constitucionais relativas ao devido processo legal compõem a sua estrutura mínima vinculante.

Assim é que, como compila Fredie Didier Jr., nos processos que se desenvolvem no
Brasil:

É preciso observar o contraditório e a ampla defesa (art. 5°, LV, CF/1988) e dar
tratamento paritário às partes do processo (art. 5°, I, CF/1988); proíbem-se provas
ilícitas (art. 5º, LVI, CF/1988); o processo há de ser público (art. 5°, LX, CF /1988);
garante-se o juiz natural (art. 5º, XXXVII e LIII, CF /1988); as decisões hão de ser
motivadas (art. 93, IX, CF /1988); a· processo deve ter uma duração razoável (art. 5º,
LXXVIII, CF /1988); o acesso à justiça é garantido (art. 5°, XXXV CF /1988) etc..
(2017, p. 76)

Como bem destaca Marcelo Lima Guerra, cada uma dessas garantias componentes do
devido processo legal também podem ser consideradas como direitos fundamentais autônomos
(2008, p. 57 apud DIDIER JR., 2017, p. 76). Com efeito, em geral a doutrina e a jurisprudência
se referem à ampla defesa e à proibição da prova ilícita como direitos fundamentais próprios.

Em nível infraconstitucional, reiterando e desenvolvendo a previsão constitucional, o


conteúdo mínimo do direito fundamental ao devido processo legal é especialmente tratado no
Capítulo I do Código de Processo Civil de 2015, dedicado às “Normas Fundamentais do
Processo Civil”, que prevê, por exemplo, que o processo civil será ordenado, disciplinado e
interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da
República Federativa do Brasil , observando-se as disposições do CPC (art. 1º); que as partes
têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade
satisfativa (art. 4º); que é assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício
de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação
de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório (art. 7º); que não se
proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida, salvo as hipótese
de tutela de evidência, de tutela provisória de urgência e a liminar em ação monitória (art. 9º, I,
II e III); que o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a
respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate
de matéria sobre a qual deva decidir de ofício (art. 10º); e que todos os julgamentos dos órgãos
do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade
(art. 8º).
118

Por comporem um mínimo, não há óbice ao desdobramento de novas garantias, seja


por sua previsão em legislação infraconstitucional, seja por meio da interpretação dos
dispositivos constitucionais, forte no art. 5º, §2º da Constituição Federal, que prescreve ser
aberto o rol de direitos fundamentais por ela consagrados.

As garantias até agora referidas compõem o aspecto formal do devido processo legal
brasileiro, mas a doutrina e a jurisprudência vislumbram também um aspecto substancial
derivado do princípio.

5.4. Dimensões: devido processo legal formal e substantivo

Tradicionalmente, compreende-se o direito ao devido processo legal em seu aspecto


processual, mais nítido, consistindo neste sentido na “indispensabilidade de todas as garantias
e exigências inerentes ao processo, de modo que ninguém poderá́ ser atingido por atos sem a
realização de mecanismos previamente definidos na lei” (LUCON, 2007, p. 7). Conformando-
se, assim, em sua dimensão formal, com a exigibilidade de um conjunto de garantias
endoprocessuais mínimas, como o contraditório, a ampla defesa, a paridade de armas, o juiz
natural, a motivação das decisões, a duração razoável do processo etc. A isto corresponde a
noção de procedural due process of law do direito norte-americano. Há também uma
compreensão mais ampla de seu conteúdo que o estende, ainda em seu caráter formal, a
quaisquer processos de criação de norma, como o processo legislativo.

Ao lado de sua dimensão formal, a doutrina e a jurisprudência reconhecem o seu


desdobramento em uma dimensão substantiva/material, que implica uma preocupação não com
a forma da ação estatal, mas com o seu conteúdo (CORNELL LAW, [1992?], on-line), que
pode ser resumida na exigência de seja adequada a parâmetros de razoabilidade e legitimidade.
O que, por corolário, estabelece a possibilidade de controle judicial da legislação e dos atos
administrativos, autorizando-se a declaração de sua nulidade quando violem as bases jurídicas
do regime democrático definidas na Constituição (Cf. LUCON, 2007, pp. 8-9).

A noção de devido processo legal substancial (em inglês, substantive due process) tem
por antecedente histórico remoto o julgamento do caso Dr. Bonham, na Inglaterra, em 1610,
em que se discutiu uma lei que concedia ao London College of Physicians – ente equivalente a
um Conselho Regional de Medicina – o poder de prender quem quer que estivesse exercendo a
119

Medicina sem uma licença. Edward Coke jurista cuja obra é de influência notável sobre o
desenvolvimento inicial do direito constitucional dos Estados Unidos, participando do
julgamento como Chief Justice da British Court of Common Pleas, arguiu que a referida lei era
nula por ser “against common right and reason”. A tese inspirou juristas estadunidenses da
época colonial a desenvolver o princípio de que as leis que conflitassem com a Constituição
seriam nulas (LIBRARY OF CONGRESS OF THE UNITED STATES, [2014?], on-line).

Mas a dimensão substancial do processo legal ganhou repercussão com o julgamento


pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1873 de uma série de casos chamada de
Slaughterhouse Cases nos quais se debateu os limites que a XIV Emenda impunha à
competência legislativa dos Estados por meio da previsão da due process clause (“Nenhum
Estado [...] poderá privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade, ou bens sem processo legal,
ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção das leis”) e da privileges and
immunities clause (“Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os privilégios
ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos [...]”).

O Estado da Louisiana havia aprovado uma lei que restringia a atividade de


matadouros em Nova Orleans por razões de saúde pública e de proteção ambiental. Os
matadouros jogavam os restos e os dejetos de animais no Rio Mississipi, o que contaminava o
suprimento de água da cidade e acabou causando um surto de cólera. Para controlar o problema
aprovou-se uma lei em 1869 que criava uma empresa privada chamada Crescent City Live-
Stock Landing and Slaughter-House Company e determinava que a atividade de abate passaria
a ser autorizada somente em uma área restrita ao sul da cidade, no lado oposto ao rio, onde a
Crescent City se instalaria sozinha. A lei garantia a esta única empresa o privilégio de exercer
a atividade e criava sanções para quem a desobedecesse.

A Crescent City, na verdade, não operava a atividade, mas sim alugava o espaço aos
interessados mediante o pagamento de uma taxa. Enfim, com a lei, ou os açougueiros de Nova
Orleans fechavam seus matadouros, ou teriam de pagar para trabalhar para a empresa.

O monopólio criado motivou um grupo de quatrocentos açougueiros a questionar a lei


da Louisiana no Judiciário, alegando que ela infringia as recentemente criadas, XIII Emenda19,

19
Emenda XIII. Seção 1. Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem
escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente
condenado. 'Seção 2 O Congresso terá competência para fazer executar este artigo por meio das leis necessárias
120

ao criar uma espécie de servidão, e a XIV Emenda20, por afetar seus “privilégios e imunidades”
enquanto cidadãos, além de retirar-lhes o direito à subsistência, à liberdade econômica e à
propriedade, sem que houvesse o “devido processo legal”.

O Justice Samuel Freeman Miller assim resumiu o interesse dos açougueiros:

This statute is denounced [by the butchers] not only as creating a monopoly and
conferring odious and exclusive privileges upon a small number of persons at the
expense of the great body of the community of New Orleans, but it is asserted that it
deprives a large and meritorious class of citizens—the whole of the butchers of the
city—of the right to exercise their trade, the business to which they have been trained
and on which they depend for the support of themselves and their families, and that
the unrestricted exercise of the business of butchering is necessary to the daily
subsistence of the population of the city. (SCOTUS, 1873, on-line)

O advogado representante dos açougueiros era John A. Campbell, que defendeu


perante Suprema Corte uma interpretação da XIV Emenda no sentido de que, sob a Constituição
Federal, os Estados não poderiam mais privar as pessoas de sua vida, liberdade ou propriedade
sem o devido processo legal. Ademais, haveria uma categoria de direitos tão fundamentais que
os Estados não poderiam retirar de seus cidadãos nem que os procedimentos formais previstos
em lei fossem seguidos. Ou seja, ainda que a lei houvesse seguido todo o trâmite legislativo,
tendo sido devidamente debatida e aprovada pelo Congresso, a sua mera adequação formal não
seria suficiente para a extinção de certos direitos. Nesta acepção, portanto, o devido processo
legal consistia, além de uma limitação formal à criações de leis, também uma limitação
material.

Todavia, no julgamento, a maioria dos membros da Suprema Corte acabou seguindo


o entendimento do Justice Miller, que interpretou a XIV Emenda de forma restritiva. Para
Miller, o texto da emenda distinguiria entre dois tipos de cidadania, uma estadual e uma federal,
sendo que ela somente protegeria direitos derivados da cidadania federal que são apenas aqueles
expressamente concedidos na Constituição pelo Governo Federal, quais sejam o direito de
viajar para a sede do governo; o direito de exigir proteção federal em alto mar; o direito de se
reunir pacificamente para protestar; o direito de usar águas navegáveis; o direito dos cidadãos
de mudar seu estado de residência, e os direitos garantidos pela XIII e XV Emendas. Já os

20
Emenda V. Seção 1. Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas a sua jurisdição
são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde tiver residência, Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis
restringindo os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem poderá privar qualquer pessoa
de sua vida, liberdade, ou bens sem processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição a igual proteção
das leis [...].
121

direitos derivados da cidadania estadual dependeriam da common law de cada Estado e não
seriam protegidos pela XIV Emenda (SANDEFUR, 2009, pp. 118-119). Ela não protegeria,
portanto, um suposto direito à subsistência (livelihood) ou à proteção contra monopólios.

Sem embargo, em seu multicitado voto dissidente, o Justice Stephen J. Field,


concordou com as teses dos açougueiros, argumentando que a visão de Miller acabava por
esvaziar o conteúdo da XIV Emenda, cujo intuito seria justamente o de obrigar os estados a
garantir os mesmos direitos fundamentais já reconhecidos em face da União, mesmo os não
explícitos na Constituição (LIBRARY OF CONGRESS OF THE UNITED STATES, [2014?],
on-line).

Apesar de não ter conquistado a maioria na ocasião, a leitura de Field acerca do devido
processo legal com esteio na XIV Emenda acabou se tornando mais influente para o
desenvolvimento do direito constitucional dos Estados Unidos do que o voto vitorioso de
Miller, que é fortemente criticado na doutrina.

O devido processo legal substancial aparece na Suprema Corte dos Estados Unidos
como uma forma de reconhecimento da possibilidade de controle de constitucionalidade dos
atos estatais com base em direitos fundamentais implícitos na Constituição, baseados na razão
e no senso de justiça. Assim, a cláusula poderia ser invocada, por exemplo, para que o Judiciário
declarasse a nulidade de leis que violassem a separação de poderes (princípio que não é
explícito na Constituição estadunidense) ou atos de arbitrariedade (outro termo não encontrado
no texto constitucional) (Cf. SANDEFUR, 2009 p. 149). Ou seja, por meio dele se procede ao
exame de razoabilidade e de racionalidade das normas jurídicas e dos atos do poder público em
geral (BARROSO, 1996, p. 199). Daí a sua relevância em casos como Griswold v. Connecticut
e Roe vs. Wade, nos quais a Suprema Corte consagrou o direito à privacidade, não previsto na
Constituição (Cf. BARROSO, 1996, p. 203).

Postas as suas duas dimensões, portanto, o conceito de “legal” (o “law” em due process
of law), contempla tanto elementos formais quanto materiais, que são indivisíveis, de sorte que
a exigência de respeito ao devido processo legal demanda do Estado uma atuação, não apenas
conforme as leis formais (dimensão formal), mas conforme o direito como um todo (dimensão
substancial), vedando a atuação estatal arbitrária, que intervêm sobre as liberdades individuais
destituída do necessário coeficiente mínimo de razoabilidade e proporcionalidade,
relacionando-se, principalmente, com o controle material de leis e da discricionariedade de atos
122

administrativos, tendo por paradigma a Constituição. Em síntese, o conceito de “legal” (o “law”


em due process of law) (Cf. BARROSO, 2001, p. 214; LUCON, 2007, p. 9).

Nas palavras de Sandefur, tal como não pode haver forma sem substância e tampouco
pode haver substância sem forma específica, um ato do Estado somente se qualifica como
direito (law) se atende a critérios, tanto formais quanto substanciais, que o permitam ser
qualificado como tal. Se um ato do Estado não atende a esses requisitos, este ato não se qualifica
como direito, de modo que executá-lo de modo a subtrair dos indivíduos sua vida ou sua
propriedade, corresponde a retirar bens ou direitos sem o devido processo legal (due process of
law) (2009, pp. 148-149).

O Supremo Tribunal Federal reconhece a dimensão substancial do devido processo


legal e o tem aplicado expressamente. Para a Corte, a garantia opera como paradigma de
controle material de normas e atos do poder público, que podem ser declarados
inconstitucionais por serem desarrazoados ou desproporcionais, opondo-se como limite à
discricionariedade do legislador e do administrador e do julgador.

Por exemplo, no julgamento da ADIN n. 11558-8/AM, em que restou assentada a


inconstitucionalidade de lei que concedia adicional de um terço da remuneração, referente a
férias, a inativo por violar o princípio em comento, a Corte afirmou:

A essência do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os


direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se
revele opressiva ou, como no caso, destituída do necessário coeficiente de
razoabilidade. Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de
poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de
competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável,
gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta
distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função
estatal".

Em outros julgados relevantes citados por Ana Luísa Barbosa Barreto ([2013?], p. 14),
com base no desrespeito ao devido processo legal substantivo o STF declarou a
inconstitucionalidade de leis que:

● instituíram programa de pensão mensal para crianças geradas a partir de estupro;

● estabeleciam a obrigatoriedade da pesagem de botijões entregues para


substituição à vista do consumidor;

● proibiam o plantio de eucalipto para produção de celulose;

● e da medida provisória que suspendeu o registro de armas de fogo.


123

O devido processo legal substancial tem sido usado pelo STF como fonte dos
princípios da razoabilidade e proporcionalidade, que inclusive são por ele usados como
sinônimos. Parcela da doutrina, contudo, entende incorreto associar as as exigências de
razoabilidade e proporcionalidade da ação estatal ao devido processo legal no ordenamento
jurídico brasileiro. Na visão de Marinoni, o direito ao devido processo legal, que ele denomina
direito ao processo justo, é de natureza puramente processual, pois os deveres de
proporcionalidade e razoabilidade decorreriam dos princípios da liberdade e da igualdade.
Ademais, o conceito de devido processo legal substantivo como fonte de direitos fundamentais
implícitos, tal como utilizado pela jurisprudência dos Estados Unidos, seria inútil visto a
Constituição brasileira contemplar um catálogo aberto de direitos fundamentais (art. 5, §2º).
(2015, p. 490). Ávila, que também o compreende em um sentido puramente procedimental,
defende igualmente que as exigências de razoabilidade, adequação e proporcionalidade
decorreriam da positivação dos princípios da liberdade e da igualdade e também das finalidades
estatais, além que não seria consistente separar o devido processo legal em duas dimensões,
primeiro porque o devido legal procedimental decorre do próprio conteúdo normativo dos
direitos que se propõe a proteger por meio do processo21; segundo, porque , a dimensão formal

21
Pela densidade do raciocínio, transcreve-se a lição de Ávila na íntegra: “1.2.5. Os elementos atribuídos ao
“devido processo procedimental” não são gratuitos, mas são decorrência do ideal de protetividade dos direitos
fundamentais: a existência de contraditório e ampla defesa é adequada e necessária à proteção de um direito, pois
sem essas condições as partes não poderão produzir provas e argumentos indispensáveis à demonstração da
realização ou restrição do referido direito; a existência de um juiz natural imparcial é elemento adequado e
necessário à proteção de um direito, pois sem ele as alegações e as provas produzidas não serão avaliadas de modo
a demonstrar a realização ou restrição do direito; as exigências de publicidade e fundamentação dos atos praticados
são elementos adequados e necessários à proteção de um direito, pois sem elas as partes não têm como tomar
conhecimento dos atos e das razões que podem demonstrar a realização ou restrição do direito; e assim por diante.
Desse modo, só o exame de proporcionalidade e razoabilidade é que permitirá verificar se um ato, uma decisão,
uma prova, um prazo ou a oitiva de uma testemunha, por exemplo, são adequados à proteção de um direito. Em
outras palavras, só se sabe se um processo é adequado ou justo se os atos praticados no processo forem
proporcionais e razoáveis ao ideal de protetividade do direito alegado. 1.2.6. Desse modo, não se pode apartar os
deveres de proporcionalidade e de razoabilidade do direito a um processo adequado ou justo. Sendo o processo
adequado ou justo aquele estruturado de maneira proporcional e razoável à proteção do direito fundamental
alegado, os deveres de proporcionalidade e razoabilidade são as próprias medidas do processo adequado ou justo.
1.2.7. As considerações precedentes conduzem, de um lado, à conclusão de que os deveres de proporcionalidade
e razoabilidade são decorrências diretas e internas dos princípios de liberdade e de igualdade, e impõem a adoção
de comportamentos que contribuam para a existência dos bens jurídicos que compõem os estados ideais de
liberdade e de igualdade; de outro, à conclusão de que o direito a um processo adequado ou justo é uma decorrência
indireta e externa da proteção de direitos, e impõe a adoção de comportamentos que contribuam para a existência
dos bens jurídicos que compõem o estado ideal de protetividade dos direitos de liberdade e de igualdade. 1.2.8. A
qualificação de adequado ou justo, no entanto, só é verificável por meio dos deveres de proporcionalidade e de
razoabilidade: mesmo sendo um ideal instrumental a outro, o ideal de protetividade consubstancia um fim e, como
tal, implica os parâmetros teleológicos de aplicação da proporcionalidade e razoabilidade. (ÁVILA, 2012 p. 356-
357).
124

tampouco poderia se realizar de modo justo e adequado sem respeito às exigências de


razoabilidade e proporcionalidade (ÁVILA, 2010, pp. 361-362).

5.5. O direito fundamental ao devido processo legal nas relações entre particulares no
direito brasileiro

Como visto, historicamente, o direito fundamental ao devido processo legal foi


nitidamente concebido como proteção do indivíduo em face do Estado. Todavia, no Brasil a
aplicabilidade de direitos derivados do princípio a relações entre particulares é prevista em
diversas normas de nível infraconstitucional, assim como a invocação direta do mandamento
constitucional é reconhecida, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência.

Com efeito, o direito privado brasileiro conta com diversas disposições que
materializam o devido processo legal em âmbito privado.

Neste sentido, o art. 57 do Código Civil previa, já em sua redação original, que a
exclusão de associado somente seria admissível havendo justa causa e desde que obedecido o
disposto no estatuto da associação. Sendo que, na omissão do estatuto, a exclusão também
poderia ocorrer caso reconhecida a existência de motivos graves, mas desde subsidiada por
deliberação fundamentada, tomada pela maioria absoluta dos presentes à assembleia geral
especialmente convocada para esse fim. Por sua vez, seu parágrafo único determinava que da
decisão de órgão da associação que decretasse a exclusão em conformidade com o estatuto,
caberia sempre recurso à assembleia geral. Posteriormente, a Lei n. 11.127/05 modificou a
redação do art. 57 do Código Civil, eliminando o parágrafo único, porém reforçando o direito
de defesa do associado excluído, passando a determinar que “a exclusão do associado só é
admissível havendo justa causa, assim reconhecida em procedimento que assegure direito de
defesa e de recurso, nos termos previstos no estatuto”. Mas mesmo antes da modificação legal,
o Supremo Tribunal Federal já́ adotara entendimento parecido com o que determinou a Lei n.
11.127/05, afirmando a necessidade de a associação observar o devido processo legal nos
processos de exclusão de associado.

O precedente referido cuida-se do já citado RE 158.215, que possui a seguinte ementa:


125

COOPERATIVA– EXCLUSÃO DE ASSOCIADO– CARÁTER PUNITIVO -DE–


VIDO PROCESSO LEGAL. Na hipótese de exclusão de associado decorrente de
conduta contrária aos estatutos, impõe-se a observância do devido processo legal,
viabilizando o exercício da ampla defesa". (STF, 1997, on-line).

Como visto no tópico 4.5, não obstante neste julgado o STF ter reconhecido a
aplicabilidade direta do devido processo legal a uma relação privada, o acórdão não adentrou
na polêmica doutrinária a respeito do tema, de modo que o acórdão não revela quais seriam, na
opinião da Corte, as condições e os limites para a incidência do art. 5, LIV da Constituição;
tampouco, em especial, como se dá sua interação com a autonomia privada.

Sem embargo, como observa Virgílio Afonso da Silva (2010, p. 93), visto que, no caso
concreto analisado, o próprio estatuto da cooperativa previa o direito de defesa dos associados,
na solução da lide o STF bem poderia ter se restringido à discussão das normas do Código Civil
a respeito do inadimplemento, sem que se fizesse necessário o apelo direto ao texto
constitucional.

Anos mais tarde, em 2005, o STF voltou a se debruçar sobre a matéria, desta vez
apresentando fundamentação mais densa a respeito da aplicabilidade de direitos fundamentais
no âmbito privado. Eis o resumo do julgamento, tal como publicado no Informativo n. 405 do
STF, de 14 de outubro de 2005:

A Turma, concluindo julgamento, negou provimento a recurso extraordinário


interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que
mantivera decisão que reintegrara associado excluído do quadro da sociedade civil
União Brasileira de Compositores – UBC, sob o entendimento de que fora violado o
seu direito de defesa, em virtude de o mesmo não ter tido a oportunidade de refutar o
ato que resultara na sua punição– v. Informativos 351, 370 e 385. Entendeu-se ser, na
espécie, hipótese de aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas.
Ressaltou-se que, em razão de a UBC integrar a estrutura do ECAD – Escritório
Central de Arrecadação e Distribuição, entidade de relevante papel no âmbito do
sistema brasileiro de proteção aos direitos autorais, seria incontroverso que, no caso,
ao restringir as possibilidades de defesa do recorrido, a recorrente assumira posição
privilegiada para determinar, preponderantemente, a extensão do gozo e da fruição
dos direitos autorais de seu associado. Concluiu-se que as penalidades impostas pela
recorrente ao recorrido extrapolaram a liberdade do direito de associação e, em
especial, o de defesa, sendo imperiosa a observância, em face das peculiaridades do
caso, das garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da
ampla defesa. Vencidos a Min. Ellen Grade, relatora, e o Min. Carlos Velloso, que
davam provimento ao recurso, por entender que a retirada de um sócio de entidade
privada é solucionada a partir das regras do estatuto social e da legislação civil em
vigor, sendo incabível a invocação do princípio constitucional da ampla defesa" (STF,
2005, on-line).

Embora tampouco nesse precedente o STF tenha se dedicado a desenvolver


esmiuçadamente quais pressupostos haveriam de ser verificados no caso concreto para sustentar
126

a incidência imediata do direito ao devido processo legal em relações interindividuais, e


tampouco quais seriam os parâmetros determinantes de sua intensidade, resta claro da
fundamentação que a assimetria entre as partes foi considerada relevante.

Com efeito, o Ministro Gilmar Mendes, cujo voto divergente prevaleceu, julgou
pertinente a posição privilegiada ocupada pela associação na relação jurídica, perante à de seus
associados, visto que o vínculo associativo configurava uma exigência para que os músicos
pudessem auferir a renda decorrente da exploração por terceiros de suas criações autorais.

Como visto no tópico 4.2.2, também Daniel Sarmento reputa expressiva a existência
de desequilíbrio entre as partes de relação jurídica interindividual para o fim de aplicação dos
direitos fundamentais; todavia, ele defende a sua consideração não como critério determinante
da vinculação das partes, mas sim como modulador da proteção que merece a autonomia
privada, em detrimento do direito fundamental que ela restringe. Seguindo a sua linha, a
associação do caso analisado já estaria de plano obrigada a respeitar o devido processo legal,
figurando como relevante a consideração do poder que ela concentra para a análise da
possibilidade de ela, no exercício da autonomia privada, restringir o direito de defesa dos
associados em hipóteses específicas, punindo-os sumariamente. Ainda assim a conclusão
poderia ser a mesma: pelo poder que a União Brasileira de Compositores concentra, derivado
da essencialidade da associação para o gozo de direitos econômicos, ela não pode exercer a sua
autonomia privada no sentido de restringir o direito de seus associados ao devido processo legal
para excluí-los sumariamente.

A Corte também observou que o fato de a adesão à associação ser uma necessidade
decorrente da atividade profissional de compositores, sem a qual a arrecadação de direitos
autorais não seria possível, conferia forte caráter público à sua atuação; o que justificaria sua
qualificação como integrante de “espaço público, ainda que não-estatal” e, por conseguinte, a
oponibilidade do direito fundamental ao devido processo legal como limitante de sua autonomia
privada.

Afirmou o Ministro Gilmar Mendes que:

Esse caráter público ou geral da atividade parece decisivo aqui para legitimar a
aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao
contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, da CF) ao processo de exclusão de
sócio de entidade. (STF, 2006, on-line).
127

A alusão à proximidade da atuação do ente privado com os poderes estatais para o fim
de subsidiar a sua vinculação a direitos fundamentais é exigência típica da doutrina da state
action (v. tópico 3.2) e não é normalmente levada em consideração pelo STF como requisito
para a aplicabilidade direta dos direitos fundamentais em relações privadas (v. tópico 4.5).

Possivelmente, o Ministro Gilmar Mendes tinha em mente, ao se valer dessa analogia,


superar o forte elo histórico do devido processo legal com a limitação do poder estatal, mas não
é possível cravar essa conclusão, já que o seu voto não aprofunda a análise desta condição e
nem do fato de ela destoar do que usualmente a Corte pondera para o fim de aplicação direta
dos direitos fundamentais em relações privadas.

Malgrado seja seguro concluir, a partir desses dois precedentes, que o STF se posiciona
em favor da aplicabilidade direta do devido processo legal nas relações entre particulares, ainda
não está claro quais seriam exatamente os seus requisitos e tampouco como se modula a sua
incidência, considerado o seu conflito com a autonomia privada.

Também o Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou favoravelmente à


aplicabilidade direta do direito ao devido processo legal em relações privadas no julgamento
do REsp 1.365.279, em que foi anulada sanção aplicada por assembleia condominial com fulcro
no art. 1.337 do Código Civil sem que tivesse sido conferido direito de defesa ao condômino
infrator. A propósito, esta é a conclusão do enunciado 92 da I Jornada de Direito Civil do CJF:
"Art. 1.337: As sanções do art. 1.337 do novo Código Civil não podem ser aplicadas sem que
se garanta direito de defesa ao condômino nocivo".

Sem embargo, ainda que, como exposto no tópico 4.5, o acórdão do REsp 1.365.279
faça referência à técnica de aplicação direta dos direitos fundamentais a relações entre
particulares, a técnica efetivamente aplicada pela Corte foi aquela típica dos modelos indiretos.
Isto, pois os Ministros não extraíram diretamente do art. 5º, LIV da Constituição a conclusão
pela existência de um direito subjetivo de defesa em face da assembleia condominial. Na
verdade, o direito do condômino ao devido processo legal foi alcançado a partir de uma
interpretação conforme a Constituição do art. 1.337, parágrafo único, do Código Civil. Como
visto no tópico 3.3, os adeptos da teoria indireta defendem que a realização em concreto da
eficácia irradiante dos direitos fundamentais há de ser precipuamente realizada por meio da sua
consideração como balizas hermenêuticas da interpretação das normas de direito privado, em
especial suas cláusulas gerais – como a função social da propriedade – e conceitos jurídicos
indeterminados.
128

Com efeito, foram tidos por fundamento do direito dos condôminos ao devido processo
legal: o princípio da socialidade do Código Civil; a função social da posse e da propriedade; e
a necessidade de interpretação do ordenamento jurídico conforme a Constituição22.

Enfim, tal como o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça também
reconhece – ao menos literalmente – a aplicabilidade direta do devido processo legal a relações
privadas, mas, da mesma forma, o Tribunal da Cidadania não desenvolve uma teoria própria
para sua aplicação tendo em consideração a autonomia privada.

Voltando à análise da legislação de direito privado, também cuidando de


concretização do devido processo legal, o art. 1.085 do Código Civil, que trata a exclusão de
sócio de responsabilidade limitada, com redação do parágrafo único dada pela Lei n.º
13.792/19, preconiza que:

Art. 1.085. Ressalvado o disposto no art. 1.030 [que prevê a exclusão judicial], quando
a maioria dos sócios, representativa de mais da metade do capital social, entender que
um ou mais sócios estão pondo em risco a continuidade da empresa, em virtude de
atos de inegável gravidade, poderá excluí-los da sociedade, mediante alteração do
contrato social, desde que prevista neste a exclusão por justa causa.
Parágrafo único. A exclusão somente poderá ser determinada em reunião ou
assembleia especialmente convocada para esse fim, ciente o acusado em tempo hábil
para permitir seu comparecimento e o exercício do direito de defesa.

22
Confira-se o trecho relevante do acórdão “De fato, o Código Civil – na linha de suas diretrizes da socialidade,
cunho de humanização do direito e de vivência social, da eticidade, na busca de solução mais justa e equitativa, e
da operabilidade, alcançando o direito em sua concretude – previu, no âmbito da função social da posse e da
propriedade, no particular, a proteção da convivência coletiva na propriedade horizontal. Nesse passo, como
sabido, os condôminos podem usar, fruir e livremente dispor das suas unidades habitacionais, assim como das
áreas comuns (CC, art. 1.335), desde que respeitem outros direitos e preceitos da legislação e da convenção
condominial. Realmente, o bom exercício da propriedade se lastreia na sua função social, boa-fé, nos bons
costumes, sem abuso e com respeito ao meio ambiente e aos vizinhos, notadamente os padrões de segurança,
sossego, saúde e privacidade dos atores sociais que a norma visa proteger (CC, art. 1.277). Nesse passo, como
sabido, os condôminos podem usar, fruir e livremente dispor das suas unidades habitacionais, assim como das
áreas comuns (CC, art. 1.335), desde que respeitem outros direitos e preceitos da legislação e da convenção
condominial. Realmente, o bom exercício da propriedade se lastreia na sua função social, boa-fé, nos bons
costumes, sem abuso e com respeito ao meio ambiente e aos vizinhos, notadamente os padrões de segurança,
sossego, saúde e privacidade dos atores sociais que a norma visa proteger (CC, art. 1.277). Nessa ordem de ideias,
surge a discussão se, para fins de incidência da referida sanção, atinente ao condômino nocivo e contumaz, há
necessidade de prévia notificação ao infrator, possibilitando, assim, o exercício do seu direito de defesa. A doutrina
especializada reconhece a necessidade de garantir o contraditório [...]É que, por se tratar de punição imputada por
conduta contrária ao direito, na esteira da visão civil-constitucional do sistema, deve-se reconhecer a aplicação
imediata dos princípios que protegem a pessoa humana nas relações entre particulares, a reconhecida eficácia
horizontal dos direitos fundamentais que, também, deve incidir nas relações condominiais, para assegurar, na
medida do possível, a ampla defesa e o contraditório. Com efeito, buscando concretizar a dignidade da pessoa
humana nas relações privadas, a Constituição Federal, como vértice axiológico de todo o ordenamento, irradiou a
incidência dos direitos fundamentais também nas relações particulares, emprestando máximo efeito aos valores
constitucionais”. (STJ, 2015, on-line).
129

Com efeito, o próprio Miguel Reale assinala que a redação art. 1.085 do Código Civil
é fruto de uma preocupação específica do legislador em concretizar o conteúdo do devido
processo legal nas relações societárias:

A propósito desse assunto, para mostrar o cuidado que tivemos em atender à


Constituição, lembro que a lei atual sobre sociedades por cotas de responsabilidade
limitada permite que se expulse um sócio que esteja causando danos à empresa,
bastando para tanto mera decisão majoritária. Fui dos primeiros juristas a exigir que
se respeitasse o princípio de justa causa, entendendo que a faculdade de expulsar o
sócio nocivo devia estar prevista no contrato, sem o que haveria mero predomínio da
maioria. Ora, a Constituição atual declara no artigo 5° que ninguém pode ser privado
de sua liberdade e de seus bens sem o devido processo legal e sem o devido
contraditório. Em razão desses dois princípios constitucionais, mantivemos a
possibilidade da eliminação do sócio prejudicial, que esteja causando dano à
sociedade, locupletando-se às vezes à custa do patrimônio social, mas lhe
asseguramos, por outro lado, o direito de defesa, de maneira que o contraditório se
estabeleça no seio da sociedade e depois possa continuar por vias judiciais. Está-se
vendo, portanto, a ligação íntima que se procurou estabelecer entre as estruturas
constitucionais, de um lado, e aquilo que chamamos de legislação infraconstitucional,
na qual o Código Civil se situa como o ordenamento fundamental (2001, on-line).

Mas não só o Código Civil contém normas relativas ao devido processo legal. Há
vários outros exemplos na legislação infraconstitucional.

A Lei n.º 6.404/76 (Lei de Sociedade Anônimas) contém diversas previsões que o
efetivam. O art. 51 condiciona a forma específica a redução de direitos dos beneficiários de
títulos emitidos por companhia, determinando que a reforma do estatuto que modificar ou
reduzir as vantagens conferidas às partes beneficiárias só terá eficácia quando aprovada pela
metade, no mínimo, dos seus titulares, reunidos em assembleia-geral especial. Igualmente, o
art. 109, §2º, prevê limitação à autonomia privada em prol do devido processo legal, prevendo
como direitos essenciais do acionista, que não podem ser retirados, nem pelo estatuto social
nem pela assembleia-geral: os meios, processos e ações que a lei lhe confere para assegurar os
seus direitos. E o art. 282, §1º, dita que os diretores ou gerentes serão nomeados, sem limitação
de tempo, no estatuto da sociedade, e somente poderão ser destituídos por deliberação de
acionistas que representem 2/3 (dois terços), no mínimo, do capital social.

A Lei n.º 12.965/14 (Marco Civil da Internet) preconiza em seu art. 20, caput, que sempre
que tiver informações de contato do usuário diretamente responsável por conteúdo removido
por ordem judicial, o provedor de aplicações de internet deverá comunicar-lhe os motivos e
informações relativos à indisponibilização de conteúdo, com informações que permitam o
contraditório e a ampla defesa em juízo, salvo expressa previsão legal ou expressa determinação
judicial fundamentada em contrário.
130

Na opinião de Victor Hugo P. Gonçalves o art. 20 do Marco Civil da Internet implica


vinculação dos provedores de aplicação ao devido processo legal, de modo que a remoção de
conteúdo está sujeita ao respeito ao contraditório e à ampla defesa, sob pena de responsabilidade
do provedor por abuso de direito. Ele afirma:

Uma discussão que deve ser levantada e que o Marco Civil poderia ter reforçado é a
de que os provedores de aplicação de internet devem aplicar os princípios de direitos
humanos em suas práticas tecnológicas e em seus Termos de Uso e de Privacidade.
A doutrina e a jurisprudência caminham no sentido de defender a aplicação dos
princípios de direitos humanos aos sujeitos de direito privado. Logicamente, os
direitos humanos não devem ser aplicados de forma absoluta. Contudo, eles devem
ser analisados pelo provedor de aplicações de internet ao aplicar as sanções previstas
em seus termos de uso e de privacidade. Nessa nova configuração jurídico
tecnológica, formatada pelo Marco Civil, o respeito aos direitos humanos, insertos em
cada artigo dessa lei, é condição primordial para o atendimento e execução das
práticas de retirada de conteúdo. Assim, ao se retirar um conteúdo do usuário do ar,
eles terão que informar sobre a possível infração, a fim de que se instaure o devido
processo legal, a ampla defesa e o contraditório. Se isso não ocorrer, mesmo que com
justa causa, poderá o provedor ser responsabilizado por abuso de direito (2017, pp.
102-103).

Por sua vez, o art. 30 do Marco Civil da Internet prevê que a defesa dos interesses e
dos direitos estabelecidos nesta Lei poderá ser exercida em juízo, individual ou coletivamente,
na forma da lei.

A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n.º 13.709/18) não foge à regra, determinando
em seu art. 22 que a defesa dos interesses e dos direitos dos titulares de dados poderá ser
exercida em juízo, individual ou coletivamente, na forma do disposto na legislação pertinente,
acerca dos instrumentos de tutela individual e coletiva. Já o seu art. 52, que trata de sanções
administrativas aplicáveis pela autoridade nacional de proteção de dados aos agentes de
tratamentos de dados preconiza em seu §1º que “as sanções serão aplicadas após procedimento
administrativo que possibilite a oportunidade da ampla defesa”.

Quanto ao âmbito doutrinário, predomina também o entendimento pela vinculação


direta dos particulares ao devido processo legal. Seguem essa orientação Luiz Guilherme
Marinoni, Fredie Didier Jr., Marianne da Silveira Bona e Paula Sarno Braga.

Para Marinoni, o direito ao devido processo legal (“direito ao processo justo”) e seus
elementos estruturantes, enquanto direitos fundamentais, gozam de eficácia vertical, vertical
com repercussão lateral e horizontal, pois, tanto obrigam o Estado a adotar condutas que o
concretizem (eficácia vertical), do que pode decorrer repercussão sobre a esfera jurídica dos
131

particulares (eficácia vertical com repercussão lateral), quanto forçam os particulares a observá-
lo em processos privados tendentes a restrições e extinções de direitos (eficácia horizontal).
Ademais, nos casos em que não há lei que regula a situação de forma direta, ou quando a lei
existente a regula em desacordo com os direitos fundamentais, faz-se obrigatória para o Estado
a aplicação direta de direitos fundamentais nas relações privadas, em função do dever de
proteção que eles lhe impõem. Assim, (2015, pp. 85-86, 288 e 492).

Baseando-se nas lições de Sarmento, Fredie Didier Jr. afirma, em primeiro lugar, que
os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988 são diretamente aplicáveis
às relações entre particulares, devendo seus efeitos, contudo, ser ponderados com o princípio
da autonomia privada. O devido processo legal, como qualquer outro direito fundamental, não
seria exceção. Mencionando como exemplos de sua aplicação o art. 57 do Código Civil e o RE
n.º 201.819, ele conclui que no âmbito das relações privadas, não é lícito restringir qualquer
direito sem a observância do devido processo legal. Na sua visão, o termo “processo” contido
na locução devido processo legal deve ser compreendido em sentido amplo, abarcando qualquer
modo de produção de normas jurídicas; isto é, não só jurisdicional, administrativo ou
legislativo, mas também negocial. O processo negocial – ele explica – seria o método de criação
de normas jurídicas por meio do exercício da autonomia privada (2017, p. 82-85).

Para o professor baiano, em negócios privados o devido processo legal aplica-se tanto
na fase pré́ -negocial, quanto na fase executiva do negócio jurídico. Ele assim esclarece a sua
incidência em cada fase negocial:

Na fase pré-negocial, deve-se lembrar, por exemplo, que a oferta de um negócio é


uma postulação e que toda norma que regula o negócio jurídico, quanto aos seus
requisitos, é norma de processo negocial. Assim,, também nos negócios jurídicos
deve-se respeitar o devido processo legal (ex. escritura pública para transferência de
imóvel: se ela não existir, não existe a tradição). Na fase executiva, deve-se ver, por
exemplo, que a imposição de sanção convencional deve atender aos requisitos
estabelecidos no negócio e/ou na lei abstrata, bem assim observar o direito de defesa
do infrator (ex. imputação de multa por conduta antissocial de condômino– art.1.337,
caput e parágrafo único, do Código Civil), não podendo ultrapassar os limites da
razoabilidade/proporcionalidade (devido processo legal substancial) (2017, p. 84).

Destaque-se, portanto, que, para Fredie Didier Jr. os particulares estão obrigados a
observar inclusive a dimensão substancial do devido processo legal.

Marianne de Silveira Bona, por sua vez, acredita que a aplicabilidade direta dos
direitos fundamentais em relações entre particulares encontra sustento no fato de o Brasil ser
um Estado Democrático de Direito, de forma que o devido processo legal há de ser
132

compreendido como “escudo contra toda e qualquer espécie de abuso de poder, seja proveniente
do setor público ou privado”, sendo que “a vinculação [dos particulares] é direta e imediata,
independentemente da análise do grau de diferenciação de poder entre as partes, pois essa teoria
é a que melhor se ajusta à realidade jurídica democrática e social brasileira” (2011, p. 37).

Por fim, Paula Sarno Braga, que elaborou monografia especialmente dedicada ao tema,
adota uma visão eclética acerca da vinculação de particulares a direitos fundamentais que
mistura a teoria de eficácia imediata com a teoria dos deveres de proteção (2008, pp. 138-139).

Em sua visão, à luz da Constituição brasileira os os direitos fundamentais vinculam os


particulares de forma direta e imediata, mas o legislador goza de preferência na sua
conformação, de modo que cabe ao julgador, em princípio aplicar suas soluções, só podendo
delas se afastar se demonstrar argumentativamente sua inconstitucionalidade. Assim como cabe
ao juiz aplicar diretamente a Constituição quando omisso o legislador (BRAGA, 2008, pp. 143
e 146).

Todavia, a extensão dos efeitos dos direitos fundamentais a relações entre particulares
não se dá em termos absolutos e tampouco equivalentes ao que ocorre nas relações estatais,
pois há de ser amoldada às “idiossincrasias do direito privado”, sendo, de rigor, a sua
acomodação nos casos concretos com o princípio da autonomia da vontade (BRAGA, 2008,
pp. 145-146).

Esse conflito entre os direitos fundamentais e a autonomia privada seria resolvido


mediante ponderação com base na máxima da proporcionalidade, sendo que, para efetuar essa
ponderação, seria necessário ter em consideração fatores determinantes da força e intensidade
com que os direitos como o devido processo legal incidem na relação, limitando a proteção à
autonomia privada (BRAGA, 2008, pp. 138-139).

Na visão da autora, os fatores determinantes da extensão de seus efeitos seriam:

● o grau de de desequilíbrio entre as partes – de modo que, nas situações de maior


assimetria, por configurarem “campo aberto para arbitrariedades e abusos
daquela parte munida de força maior e poderio”, a importância da cláusula do
devido processo legal cresceria em importância como meio de contenção e
limitação do poder, evitando abusos de posição jurídica (BRAGA, 2008, pp. 140
e 145);
133

● a essencialidade dos bens em jogo – de maneira que, quanto mais essencial o


bem ameaçado, com mais força incidiria a exigência do devido processo legal.
Assim, em casos envolvendo bens supérfluos, como os eminentemente
patrimoniais ligados ao lazer, interfere a cláusula com menor intensidade.
Igualmente, quanto mais próxima a relação jurídica estiver de um contexto
puramente privado, de alta disponibilidade, onde seja mínimo ou inexistente o
interesse público, também será menor a exigibilidade do devido processo. Por
exemplo, um pai não estaria obrigado a obedecer ao devido processo legal ao
punir seu filho, privando-o de um passeio por uma conduta desobediente
(BRAGA, 2008, p. 140);

● participação daquele que teve o direito fundamental atingido no ato – se o


atingido por restrição a direito fundamental participou do ato que a provocou,
em especial em sendo paritária a relação, mais prestígio há de ter a autonomia
privada (BRAGA, 2008, p. 141);

● necessidade de respeito a especificidades sociais e culturais – incumbe ao


intérprete verificar se, no caso concreto analisado, a restrição a direito
fundamental não é justificada por especificidades sociais e culturais típicas de
uma comunidade plural. (BRAGA, 2008, pp. 142-143).

Destaca a autora, enfim, que, independentemente dessas diretrizes, a solução


dependerá das particularidades de cada caso concreto, inclusive a força da investida contra o
direito fundamental e a reversibilidade da situação (2008, pp.142-143).

Basicamente, a proposta de Paula Sarno Braga para solução do conflito entre os


direitos fundamentais e a autonomia privada é uma condensação das posições de Daniel
Sarmento e Wilson Steinmetz expostas no capítulo anterior. Por isso pode ser objeto das
mesmas críticas que Virgílio Afonso da Silva faz às duas (v. tópico 4.4. e ss.).

Como novidade, a autora avança no estudo da incidência do devido processo legal em


relações entre particulares, cuidando de especificar a sua extensão conforme a fase negocial
(2007, pp. 179 e ss.).
134

Na fase pré-negocial, todo o rito de aperfeiçoamento do negócio haveria de transcorrer


de acordo com o devido processo legal formal e substancial, observando-se a legalidade e a
razoabilidade.

[...] todo rito de aperfeiçoamento do negócio, do mais conciso ao mais prolongado,


deve transcorrer de acordo com o devido processo legal formal e material, pautando-
se na legalidade e razoabilidade.
O due process formal impõe que a etapa formativa do negócio transcorra de modo
legítimo, solidário e cooperativo. E a regulamentação deste processo pré-negocial
nada mais é do que a regulamentação dos requisitos de constituição válida do negócio
jurídico. São eles, em termos gerais, a exigência de que: i) os sujeitos sejam capazes,
com vontade livre, consciente e de boa-fé; ii) a exteriorização desta vontade respeite
as formas legais; e iii) seu objeto seja lícito, moral e possível. E mais, toda a trajetória
processual deve ser marcada pela transparência e probidade
Já o due process material exige que, ao fim desse percurso processual, o negócio daí
resultante seja, em seu conteúdo, equilibrado e proporcional. Deve atender, pois, as
máximas da boa-fé objetiva e da equidade contratual.
Assim, também no selamento de negócios jurídicos deve ser observado o due process
of law (BRAGA, 2008, p. 179).

O problema da proposta, é que compreendido o devido processo legal formal nesta


acepção ampla proposta pela autora, que abarca inclusive os elementos típicos da constituição
válida de um negócio jurídico, a proximidade com o conceito de legalidade é tamanha, que não
parece haver qualquer vantagem do ponto de vista científico em diferenciá-los. Em especial
pela abrangência com que o conceito de legalidade hoje é compreendido, que não dispensa o
preenchimento de seu conteúdo por valores.

No mesmo sentido, os deveres de transparência e probidade, além de seu conteúdo


notadamente material, que destoa do sentido de adequação a formas a que essa dimensão
procedimental do devido processo legal se refere – de modo que seria mais adequado, dentro
de sua proposta, referir-se a eles como decorrências da incidência do devido processo legal
substancial –, é certo que configuram, na verdade, exigências que são próprias, tanto do
princípio constitucional da socialidade, quanto do princípio da boa-fé objetiva, de modo que é
desnecessário fundamentá-los nas cláusula do devido processo legal formal.

Por outro lado, a exigência de razoabilidade nas decisões negociais, como condição de
validade derivada do devido processo legal substancial, parece ser de difícil conciliação com a
autonomia privada, tendo em consideração que o reconhecimento da pessoa humana como
centro gravitacional do ordenamento jurídico tem por corolário a proteção de manifestações
irracionais intrínsecas à sua natureza. Interessa na verdade, que, no exercício da autonomia
135

privada não se promova lesões a direitos fundamentais e não que sejam necessariamente
racionais as condutas das partes.

Em sentido análogo, confira-se o que afirma Daniel Sarmento:

O fato de que os particulares são também titulares de direitos fundamentais,


desfrutando de uma autonomia privada constitucionalmente protegida, impõe uma
série de adaptações e especificidades na incidência dos direitos humanos no campo
privado. Este é um ponto reconhecido consensualmente mesmo pela doutrina que
advoga a tese da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares
Um exemplo ilustra a assertiva: não é razoável exigir, com base na isonomia, que um
indivíduo trate de forma igual todos os seus vizinhos, pois ele tem o direito de gostar
mais de alguns do que de outros, de convidar alguns para sua casa e outros não, e seria
totalitária a ordem jurídica que pretendesse imiscuir-se nesta questão. nas belas
palavras de Vieira de Andrade, “(...) o homem não é apenas um ser racional, nem é
perfeito e a ética jurídica não pode pretender que ele o seja. a liberdade do homem
individual inclui necessariamente uma margem de arbítrio, é também uma liberdade
emocional”. Temos, como seres humanos, o direito inalienável de agir com base em
nossos sentimentos pessoais, preferências subjetivas de foro íntimo, e até a caprichos,
e esta faculdade as autoridades públicas, num Estado de Direito não podem possuir
(2010, pp. 282-283)

O mesmo se diga da demanda de que o conteúdo do contrato seja equilibrado e


proporcional por exigência do devido processo substancial. A princípio, nada impede que uma
parte decida livremente, no exercício de sua autonomia privada, participar de um contrato
desequilibrado e desproporcional. Pode ser, por exemplo, que ela faça essa opção no intuito de
aumentar sua participação em um mercado ou então vise preservar uma relação longa data com
um parceiro comercial. Quer dizer, a incidência do devido processo substancial também não
pode se esquivar de sua interação com a autonomia privada. Por isso, mais adequado seria
verificar a validade do contrato dito desequilibrado e desproporcional após a consideração dos
critérios de valoração da autonomia privada propostos pela própria autora (assimetria, bens
jurídicos envolvidos, etc.). Todavia, como essas premissas não são retomadas quando ela faz
essa análise da incidência do devido processo legal na fase pré-contratual, não há como saber
como a autora compreende a sua operacionalização.

Outro problema é que a autora considera convergentes os sentidos da razoabilidade e


a proporcionalidade (2008, p. 192), resumindo-os na exigência de que os atos estatais devem
ser:

i) substancialmente adequados para alcançar o resultado pretendido, considerando-se


que os meios escolhidos devem ser aptos a conduzir ao fim almejado; ii) realmente
necessários para obter tal fim, aferindo-se se não haveria outros meios menos gravosos
para o cidadão; iii) e enfim, estritamente proporcionais, ou seja, ponderados os
136

valores em jogo, não se pode malferir aquele de maior valia; as vantagens com a
prática do ato estatal devem superar as desvantagens (BRAGA, 2008, p. 192).

Todavia, como ela não elabora como cada uma dessas etapas se manifestaria em
relações privadas, a sua proposta acaba se deparando com os mesmos obstáculos de
harmonização com a autonomia privada enfrentados pela de Steinmetz, que assim é objetada
por Virgílio Afonso da Silva:

[...] Adequação [...] refere-se à aptidão de fomentar a realização de uma finalidade.


Diante disso, é necessário que se pergunte qual era a finalidade da restrição ao direito
fundamental atingido (a privacidade). Aqui, ou seja, ainda antes de se perguntar se a
medida é adequada, já começam os problemas. Ao contrário do que ocorre com as
medidas estatais restritivas de direitos fundamentais, que, em geral, somente são
legítimas quando pretendem, pela via da limitação a um direito fundamental, fomentar
outro direito fundamental ou um interesse coletivo, nas relações entre particulares isso
não é exigido. [...]. Steinmetz salienta que toda e qualquer restrição a direito
fundamental – incluindo-se aí aquelas decorrentes de atos de particulares – deve estar
vinculada a uma finalidade constitucionalmente legítima. O grande problema, neste
ponto, é definir se aquilo que é legítimo para o Estado é também legítimo para o
particular e vice-versa. Não parece ser o caso, pelo que acabou de ser exposto. [...]
Mas o problema maior da utilização da proporcionalidade aos casos de restrição a
direitos fundamentais decorrentes de atos de autonomia privada pode ser percebido
na tentativa de se aplicar o teste da necessidade a esses casos.
[...] Na forma como aplicada no controle de atos estatais restritivos de direitos
fundamentais, uma medida que limita um direito fundamental somente é necessária
“caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma
intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental
atingido.”0 Mais uma vez é necessário que aqui se indague acerca da possibilidade de
aplicação desse raciocínio às relações entre particulares. A resposta parece ser
negativa. Exigir que os particulares adotem, nos casos de restrição a direitos
fundamentais, apenas as medidas estritamente necessárias – ou seja, as menos
gravosas – para o atingimento dos fins perseguidos nada mais é do que retirar-lhes a
autonomia de livremente dispor sobre os termos de seus contratos. Em outras palavras:
exigir a obediência à regra da necessidade não é uma forma de solução da colisão
entre direito fundamental e autonomia privada, já que essa autonomia estará
necessariamente comprometida pelas próprias exigências dessa regra. Se aos
particulares não resta outra solução que não a adoção das medidas estritamente
necessárias, não se pode mais falar em autonomia. E, diante disso, as precedências
prima facie estabelecidas pelo próprio Steinmetz perdem um pouco de seu sentido, já
que mesmo que a relação contratual tenha sido estabelecida sob condições de
igualdade fática (ou de sinceridade) e o direito fundamental envolvido tenha conteúdo
patrimonial, se os termos do contrato não forem os menos gravosos a esse direito, o
contrato será sempre nulo. (2005, p. 179)

Retomando a exposição do raciocínio de Paula Sarno Braga, ela afirma que, na fase
posterior à contratação, durante a execução do negócio firmado, o devido processo legal haveria
de ser obedecido em hipóteses como o processo de “adimplemento restritivo” e o processo
arbitral. Por processo de adimplemento restritivo a autora entende as situações jurídicas em que
uma parte, por força das disposições negociais ou legais encontra-se em uma posição superior
137

à da outra, de modo que lhe pode infligir restrições a sua esfera jurídica por meio de decisões
unilaterais parciais e não-jurisdicionais. Seriam exemplos as sanções convencionais e os
processos de exclusão de associado. A sua aplicação haveria de obedecer às exigências do
devido processo legal formal e do devido processo legal substancial. O primeiro submeteria o
exercício da prerrogativa a procedimento pautado em garantias mínimas como o direito à
defesa, à produção de provas, a um juiz natural, dentre outros não especificados. Já o segundo
demandaria que as decisões emanadas fossem justas e razoáveis, sendo vedadas restrições
excessivas e desproporcionais Assim, exempli gratia, na aplicação da sanção a conduta
antissocial de condômino, na forma do art. 1.337 do Código Civil, a sanção fixada deve ser
proporcional e compatível com a lesão causada pela conduta infrativa (2008, pp. 205-225).

O mesmo raciocínio seria aplicável ao processo arbitral (BRAGA, 2008, pp. 207-
212).

5.6. Conclusões possíveis

Em suma, em que pese as notas históricas particulares que o marcam, também o


devido processo legal é reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência como diretamente
aplicável as relações privadas, a exemplo do que acontece com outros direitos fundamentais.

Sem embargo, nem os Tribunais e nem a doutrina que se refere especificamente à


aplicabilidade direta deste direito ao domínio privado – sendo exceção o trabalho de Paula
Sarno Braga – têm dado atenção suficiente à circunstância de que, nesta gama de relações, pelo
fato de ambas as partes serem titulares de direitos fundamentais ,e de a renúncia pontual ao seu
exercício se fazer possível, exsurge um conflito do devido processo legal – em ambas as suas
dimensões – com a autonomia privada, que há de ser solucionado, visto esta também ter a
natureza de princípio e, como tal, consistir em um mandamento de otimização.

Com efeito, como bem demonstrou Paula Sarno Braga, a aplicabilidade direta do
devido processo legal não dispensa cuidados com sua adaptação ao direito privado, em especial
a necessidade de consideração do que dispõe a legislação infraconstitucional e a modulação de
sua intensidade por meio da valoração da tutela merecida pela autonomia privada em cada
situação.
138

CAPÍTULO 6 – APLICAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL


NA RELAÇÃO JURÍDICA ENTRE CRIADORES DE CONTEÚDO E
REDES SOCIAIS DE STREAMING: ANÁLISE DOS TERMOS DE
SERVIÇO, DIRETRIZES DA COMUNIDADE E DIRETRIZES DE
CONTEÚDO ADEQUADO PARA PUBLICIDADE DO YOUTUBE

6.1. Premissas aceitas

Com base no exposto até o presente momento da argumentação, é seguro fincar as


seguintes premissas para a abordagem da questão da aplicação do direito fundamental ao devido
processo legal na relação jurídica entre redes sociais de streaming e criadores de conteúdo:

● A natureza privada das partes da relação em foco não representa obstáculo à


incidência dos direitos fundamentais. Com efeito, tanto a doutrina brasileira
contemporânea sobre direitos fundamentais, quanto a jurisprudência de nossas
cortes superiores possui entendimento pacífico no sentido da extensão dos
efeitos dos direitos fundamentais às relações privadas (v. capítulo 4 e tópico
5.5). Há certa divergência na doutrina, contudo, no que toca ao fundamento
dogmático dessa incidência. Sarmento e Steinmetz recorrem à concepção de
origem germânica acerca da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, assim
defendendo que a sua eficácia irradiante sobre o direito privado deriva da
característica de eles comporem um conjunto sistematizado dos valores
essenciais eleitos pela sociedade para serem os alicerces de sua ordem jurídica
(v. tópicos 4.2.1, 4.3.1). Virgílio Afonso da Silva, por sua vez, reputa
desnecessário esse recurso teórico no contexto brasileiro, tendo em consideração
que, ao contrário da Constituição alemã, a Carta Magna brasileira não oferece a
barreira ao reconhecimento da eficácia horizontal dos direitos fundamentais
representada pela literalidade do art. 1º, 3 da Lei Fundamental de Bonn, que
limita expressamente seus efeitos vinculantes ao Legislativo, ao Executivo e ao
Judiciário (v. tópico 4.4.1). Para o professor da Universidade de São Paulo, a
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais decorre de eles possuírem
natureza normativa de princípio (v. tópico 4.4.2.1). De qualquer modo, ambas
139

essas construções teóricas equivalem em resultado, na medida em que a partir


de qualquer delas é possível chegar à mesma conclusão: o direito privado não é
um gueto alheio à juridicidade das disposições constitucionais relativas a
direitos fundamentais.

● Quanto ao modo de vinculação, a teoria da vinculação direta dos particulares a


direitos fundamentais é aquela adotada majoritariamente no Brasil, tanto pela
doutrina, quanto pela jurisprudência do STF e do STJ (v. capítulo 4).

● A teoria da vinculação direta, como as demais que admitem a incidência dos


direitos fundamentais nas relações privadas, reconhece que a sua aplicação
pressupõe sempre a solução de uma colisão entre direitos fundamentais. Isto,
porque, além de ambos os sujeitos envolvidos serem igualmente titulares de
direitos fundamentais, nas relações entre particulares admite-se a renúncia a
direitos fundamentais. Figuram, neste dilema, de um lado a necessidade de
proteção da autonomia privada das partes na definição dos termos da relação; do
outro, o direito fundamental restringido por seu exercício no caso concreto.

Desta maneira, no cenário brasileiro a tendência é a compreensão de que a


vinculação das redes sociais de streaming aos direitos fundamentais se dá de
forma imediata perante a Constituição Federal de 1988 e não apenas por meio
de sua influência sobre a interpretação das normas de direito privado (em
especial, as cláusulas gerais e os conceitos jurídicos indeterminados). Mas seus
efeitos não são absolutos, devendo ser conciliados com a autonomia privada das
redes sociais.

● As elaborações teóricas contemporâneas – tanto brasileiras, quanto estrangeiras


– que admitem aplicação dos direitos fundamentais a relações privadas não
deixam de considerar que compete precipuamente ao Legislativo a tarefa de
conferir densidade à abstração semântica característica da textura das normas
prescritoras de direitos fundamentais, de modo que, ao Judiciário cabe, antes de
recorrer diretamente à Constituição para a solução da lide, buscar no
ordenamento jurídico a existência de normas preordenadas à sua solução, sejam
regras específicas, sejam cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados.
Ausentes estas, ou sendo então insuficientes para a máxima efetividade do
direito “lesado”, é que exsurge a possibilidade da elaboração de norma
140

individual e concreta a partir do recurso direto ao texto constitucional. Portanto,


o apelo às normas de direitos fundamentais consiste em um recurso subsidiário
à disposição do julgador (v. tópicos 3.3, 3.4, 4.2.1, 4.3.1, 4.4.2.2 e 5.5).

Neste sentido, a construção adequada das balizas da incidência dos direitos


fundamentais na relação entre criadores conteúdo e as redes sociais de
streaming, pressupõe, antes de tudo, indagar qual a natureza dessa relação
jurídica e, por conseguinte, quais as normas já preexistentes no ordenamento
jurídico para regulá-la. Só após o esgotamento de suas possibilidades
hermenêuticas, e, persistindo a percepção da inexistência de norma específica
ou da insuficiência das existentes para a máxima proteção do direito restringido
pelo exercício da autonomia privada, é que se poderá pensar em invocar
diretamente direitos fundamentais para regulá-la.

● A doutrina brasileira concorda que o grau de incidência dos direitos


fundamentais em âmbito privado há de variar conforme coeficientes que
determinam a intensidade com que a autonomia privada há de prevalecer.
Todavia, há discordância no tocante à técnica utilizada para a formulação da
chamada “norma de colisão” que resolverá este conflito. Se Braga, Sarmento e
Steinmetz consideram que fatores como a assimetria entre as partes e a natureza
do bem afetado são critérios a serem considerados em um
sopesamento/ponderação a ser realizado entre a autonomia privada e o outro
direito fundamental afetado (v. tópicos 4.2.1, 4.2.2, 4.3.2 e 5.5 ); já Virgílio
Afonso da Silva, embora aceite critérios de valoração da autonomia privada,
afirma ser conceitualmente impossível sopesá-la com qualquer outro direito
fundamental, considerada a sua natureza de princípio formal, desprovido de
conteúdo mensurável (v. tópico 4.4.2.5.1). Outrossim, ele afirma que, quando,
por exemplo, a doutrina invoca a desigualdade entre as partes como fator
determinante da intensidade da proteção a ser conferida à autonomia privada,
ela não considera como sua contrapartida o grau de realização/não-realização
em concreto do outro direito fundamental que com ela conflita. Olha-se somente
para a autonomia privada, e tenta-se definir de forma isolada o grau de tutela
que ela merece consoante o critério eleito, ignorando-se a sua interação
recíproca com o direito fundamental contra o qual ela se opõe. Em outras
palavras, na sua opinião, a doutrina desconsidera a perspectiva bilateral que a
141

utilização da técnica de sopesamento exige. Como resultado, a consideração da


desigualdade e de outros critérios usualmente citados acaba não operando como
verdadeiro critério norteador de sopesamento, mas sim como elemento de
valoração geral e apriorística da autonomia privada (v. tópico 4.4.2.5.1).

De todo modo, em que pese essa diferença entre as duas construções teóricas,
ambas admitem a necessidade de fixação de critérios objetivos para a modulação
da incidência dos direitos fundamentais em relações privadas, de modo que, da
tutela conferida ao bem jurídico restringido, não se tenha por resultado a
aniquilação da autonomia privada, sendo necessária a sua preservação no grau
máximo permitido, conforme as circunstâncias fáticas e jurídicas com as quais
o aplicador se defronta em cada caso concreto.

● Quanto aos fatores de modulação reputados relevantes, a doutrina destaca os


seguintes: a assimetria entre as partes (embora Virgílio somente a considere
relevante quando reflita em prejuízo à liberdade da manifestação da vontade); a
liberdade efetiva de exercício da autonomia privada pela parte que tem seus
direitos restringidos; a essencialidade/disponibilidade do bem afetado pela
autonomia privada; a participação daquele que teve seu direito fundamental
atingido na produção da restrição; e a consideração de aspectos socioculturais
específicos do contexto de aplicação (v. tópicos 4.2.2, 4.3.2, 4.4.2.5.3 e 5.5).

● Apesar de a gênese histórica do direito fundamental ao devido processo legal


estar mais intimamente ligada à defesa contra o arbítrio estatal (v. tópico 5.2), a
doutrina e a jurisprudência brasileiras são favoráveis à sua oponibilidade a entes
privados (v. tópico 5.5). A sua aplicação se destaca, em especial, nas relações
jurídicas em que a uma das partes é dada a possibilidade de restringir
unilateralmente os direitos da outra. Por exemplo, as situações nas quais, por
força das próprias disposições negociais ou de disposições legais, a uma delas é
dado o poder de formular concretamente, e opor à outra, o consequente advindo
da prática de uma conduta prevista no ajuste. Nesta lógica, pode-se citar as
sanções aplicadas por assembleia condominial aos condôminos por conduta
contrária à convenção, bem como as aplicadas por associações, aos associados,
por ofensa ao estatuto. Casos em que as partes recaem na instauração de um
processo particular negocial, que culminará com uma decisão unilateral parcial
142

e não jurisdicional (BRAGA, 2008, p. 100), que modifica sua esfera jurídica (v.
tópico 5.5).

A relação entre redes sociais de streaming e criadores de conteúdo se encaixa


perfeitamente nesse contexto. Ao YouTube, afinal, por meio de seus Termos de
Serviço e Diretrizes da Comunidade, é reservado o direito de punir os criadores
quando contrariadas as suas previsões, seja com a restrição do acesso à sua
plataforma, seja com a remoção do conteúdo postado. Por isso o YouTube
haveria de respeitar o devido processo legal no exercício desse poder contratual.

Veja-se que, em situação análoga, encontram-se redes sociais como o Facebook


e o Whatsapp, sendo que o Judiciário tem considerado que essas são obrigadas
a respeitar o devido processo legal na suspensão de contas. Com efeito, em 11
de novembro de 2019, decisão da 6ª Vara Cível de Brasília concedeu tutela de
urgência antecipada antecedente em favor da Associação Nacional de
Farmacêuticos Magistrais (Anfarmag), obrigando o Whatsapp a restaurar as
contas de seus associados no aplicativo, que haviam sido suspensas sem uma
decisão motivada e sem que lhes fosse oportunizado o direito de defesa. A
associação havia recorrido ao Judiciário em prol da defesa das farmácias
associadas que tiveram suas contas no Whatsapp bloqueadas sumariamente.
Segundo a rede social, o bloqueio se justificaria por suposta violação dos termos
de serviço, que proíbem a promoção e venda de “drogas sujeitas a prescrição
médica", como, no caso, remédios manipulados. O juízo de primeiro grau
entendeu que a conduta de suspender as contas sem contraditório prévio
contrariava o art. 20 do Marco Civil da Internet, que determina que cabe ao
provedor de aplicações de internet, sempre que tiver informações de contato do
usuário por ele diretamente responsável, comunicá-lo dos motivos e
informações relativos à indisponibilização de conteúdo, de modo que ele possa
exercer o contraditório e a ampla defesa.

Para embasar a decisão, o magistrado considerou também que:

[...] a interrupção do serviço de comunicação eletrônica de dados, denominado


Whatsapp, é capaz de causar prejuízos aos associados da autora, notadamente porque
o uso do referido aplicativo no meio corporativo tem se tornado essencial para a
comunicação com clientes e fornecedores (GOMES, 2019, on-line; JUIZ…, 2019, on-
line)
143

Igualmente, por entender que o Whatsapp baniu a conta de um escritório de


advocacia sem respeitar o devido processo legal, o juízo da 7ª Vara Cível de
Brasília (processo n. º 0703666-32.2019.8.07.0001) concedeu liminar obrigando
ao restabelecimento dos serviços e dos dados apagados, sob pena de multa
diária. No caso, a banca, que utilizava a rede social para contatar seus clientes,
teve tolhido o seu acesso de forma desavisada e carente de qualquer justificativa.
Ela alegou que sua conta foi bloqueada sem que lhe fossem comunicados os
motivos e sem que lhe fosse oportunizado o contraditório e a ampla defesa,
sendo que esses direitos fundamentais também se aplicariam às relações
privadas. Em sua defesa, a rede social alegou infração aos termos de uso do
serviço. Todavia, segundo a magistrada responsável, não houve demonstração
de qual de suas cláusulas teria sido violada. Ao justificar a necessidade da tutela
de urgência, a magistrada ponderou que a interrupção do serviço é capaz de
causar prejuízos à parte autora, notadamente porque o uso da rede social no meio
corporativo tem se tornado essencial para a comunicação com clientes e
fornecedores.

Já no processo n. º 1040605-47.2019.8.26.0602 do Tribunal de Justiça de São


Paulo, o juízo da 6ª Vara Cível de Sorocaba/SP deferiu liminar determinando a
reativação da conta de Whatsapp de um homem, que também havia sido banida
sem qualquer motivação, sob pena de multa diária. A decisão considerou que o
número de telefone foi excluído do aplicativo Whatsapp, aparentemente sem
qualquer justificativa, unilateralmente e sem oportunidade de defesa, e que o
perigo de dano para o autor decorria do fato de ele utilizar o aplicativo para se
comunicar com seus clientes.

Pois bem. Postas essas premissas, o desafio enfrentado neste capítulo é o de verificar
especificamente como se dá a incidência do direito fundamental ao devido processo legal na
relação jurídica entre as redes sociais de streaming, em particular o YouTube, e os criadores de
conteúdo que atuam na plataforma.

A consideração dos termos do negócio jurídico celebrado com as redes sociais têm
sido olvidada pelo Judiciário na decisão de questões relativas a ofensas ao devido processo
legal. Em respeito à autonomia privada, que, enquanto princípio, deve ter seus efeitos
144

preservados na maior medida possível, é imprescindível que qualquer aplicação de direitos


fundamentais considere, em primeiro lugar, o conteúdo da manifestação de vontade das partes.
É dizer, antes de recorrer a uma aplicação direta do direito ao devido processo legal, é mister
verificar se o próprio negócio jurídico já não contém cláusulas orientadas à sua concretização,
e se elas, por si sós, já não são adequadas e suficientes para sua garantia. Os termos de uso do
Facebook, da Twitch e do YouTube contêm previsões relativas ao devido processo legal, como
a possibilidade de contestar as suspensões de conta. Se elas não foram respeitadas no caso
concreto, faz-se dispensável o recurso à norma constitucional, pois se está diante de um simples
caso de inadimplemento contratual.

Da mesma forma, de maneira geral, até por ignorarem o negócio jurídico envolvido
na lide, as Cortes não têm demonstrado cuidado de atentar para a necessidade de consideração
das soluções preordenadas na legislação infraconstitucional antes da aplicação direta do devido
processo legal à relação. Não tem havido tampouco uma discussão sobre a necessidade de
consideração da autonomia privada das redes sociais nesta aplicação.

Por isso a investigação empreendida nesta capítulo partirá da análise da natureza e da


estrutura da relação jurídica entre as redes sociais de streaming e os criadores de conteúdo, que
revelará, tanto as normas de direito privado especificamente criadas pelo legislador para sua
regulação, quanto a expressão dos critérios citados pela doutrina como sendo determinantes da
intensidade da extensão dos efeitos dos direitos fundamentais às relações entre particulares (a
assimetria entre as partes, os bens jurídicos envolvidos, etc.).

Na sequência, os termos convencionados com o YouTube serão confrontados com a


legislação privada de regência da relação jurídica, sendo o objetivo determinar a sua
interpretação adequada conforme as exigências do devido processo legal. Em um primeiro
momento, serão exploradas as possibilidades hermenêuticas da legislação infraconstitucional
(de suas regras, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados) para a tutela efetiva do
direito fundamental. Se, e apenas se, for vislumbrada a sua ausência/insuficiência para a
realização ótima do devido processo legal na relação é que se buscará auxílio direto no texto
constitucional.

Finalmente, definida a forma de regulação da relação jurídica conforme o direito


fundamental ao devido processo legal, a parte final do capítulo cuidará de sugestões a serem
adotadas por redes sociais de streaming no sentido de adequar sua conduta na execução do
145

contrato às exigências do devido processo legal, de modo a evitar a revisão de suas decisões
pelo Judiciário.

6.2. Natureza jurídica da relação entre criadores de conteúdo e redes sociais de “streaming”.
Contrato de adesão com o YouTube e seu regime jurídico23

É de natureza contratual a relação jurídica entre as redes sociais de streaming e


criadores de conteúdo. Mais especificamente, os Termos de Serviço, as Diretrizes da
Comunidade do YouTube, as Políticas de Monetização e demais, compõem um contrato de
adesão, cujas cláusulas foram formuladas exclusivamente pela rede social.

Confira-se a cláusula “Termos aplicáveis” dos Termos de Serviço do YouTube,


conforme a sua última atualização em 10 de dezembro de 2019:

Termos aplicáveis
Seu uso dos Serviços está sujeito a estes termos, às diretrizes da comunidade do
YouTube e às Políticas de Segurança e Direitos Autorais, que podem ser atualizados
periodicamente (conjuntamente, o "Contrato"). O Contrato celebrado conosco
também incluirá as Políticas de Publicidade no YouTube se você exibir anúncios ou
patrocínios no Serviço ou incorporar promoções pagas no seu conteúdo. Quaisquer
outros links ou referências fornecidas nestes termos são apenas para uso informativo
e não fazem parte do Contrato (YOUTUBE, 2019, on-line).

A princípio, o regime jurídico aplicável ao contrato seria o civil e não o consumerista.


Isto, pois os criadores de conteúdo se valem do serviço prestado pela rede social, não como
seus destinatários finais, mas para o exercício de sua atividade econômica. Sendo que, na forma
do art. 2º do Código de Defesa do Consumidor, “consumidor é toda pessoa física ou jurídica
que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. Todavia, não se pode olvidar
que, acerca do próprio significado da expressão “destinatário final”, formaram-se na doutrina
diversas teorias, sendo as principais a teoria finalista e a teoria maximalista.

23
Para os fins deste trabalho será considerado que o contrato proposto pelo YouTube é regido pela legislação
brasileira. Assim, não haverá ingresso na discussão acerca da possibilidade de escolha pelas partes da lei aplicável
a contratos internacionais.; e tampouco a relativa à aplicação correta do art. 9º da LINDB a contratos eletrônicos.
A jurisprudência brasileira tem aplicado regularmente o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor e o
Marco Civil da Internet a estas relações com provedores.
146

Para a teoria finalista, conforme resumem Cláudia Lima Marques e Herman Benjamin,
o “destinatário final” é “o consumidor final, o que retira o bem do mercado ao adquirir ou
simplesmente utilizá-lo (destinatário final fático), aquele que coloca um fim na cadeia de
produção (destinatário final econômico)”. Restando assim excluído do conceito de “aquele que
utiliza o bem [adquirido no mercado] para continuar a produzir, pois ele não é consumidor final,
ele está transformando o bem, utilizando o bem, incluindo o serviço contratado no seu, para
oferecê-lo por sua vez ao seu cliente, seu consumidor...” (2006, pp. 83-84).

Já para a teoria maximalista, por “destinatário final” há de se compreender todo aquele


que adquire o bem ou serviço para seu uso, independentemente do fim econômico ao qual se
destine. Deste modo, pode-se caracterizar como consumidor, tanto uma pessoa física que o
adquira para o seu uso pessoal, quanto uma grande empresa que pretenda implementá-lo em
sua atividade produtiva.

Sem embargo, na jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça aderiu a uma teoria


intermediária entre as duas, comumente denominada de teoria finalista mitigada, segundo a
qual admite-se a incidência do Código de Defesa do Consumidor nas relações jurídicas em que
o adquirente do produto ou serviço, embora não seja o seu “destinatário final” tal como
compreendido pela teoria finalista pura, esteja em situação de vulnerabilidade técnica, jurídica
ou econômica em relação ao fornecedor24.

Conforme Cláudia Lima Marques, Herman Benjamin e Leonardo Roscoe Bessa, por
vulnerabilidade técnica entende-se a falta de conhecimentos específicos do consumidor sobre
o bem ou o serviço que está adquirindo, que o torna suscetível de ser enganado quanto às suas
características ou utilidade. Já́ a vulnerabilidade jurídica ou científica consiste na falta de
conhecimentos jurídicos específicos por parte do consumidor, ou a falta de conhecimentos de
contabilidade ou de economia. Por sua vez, a vulnerabilidade fática ou econômica consiste na
posição de sujeição do consumidor frente ao fornecedor em virtude de seu poder econômico;
da essencialidade do produto/serviço que fornece; ou ainda da posição monopolística que ele
ocupa, seja este monopólio de ordem fática ou jurídica (2010, pp. 324 e ss.).

Considerados esses enunciados da teoria finalista mitigada adotada pelo Superior


Tribunal de Justiça, é possível inferir que os criadores de conteúdo podem sim ser considerados

24
Cf., neste sentido: REsp 1730849/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 07/08/2018,
DJe 07/02/2019; AgInt no AREsp 1083962/ES, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 11/06/2019,
DJe 28/06/2019; e AgInt no AREsp 964.780/RJ, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma,
julgado em 26/06/2018, DJe 29/06/2018.
147

como consumidores nas relações travadas com as redes sociais de streaming, em especial por
sua situação economicamente vulnerável frente a elas. Particularmente frente ao YouTube,
tendo em consideração não somente o seu notável poderio econômico, mas principalmente a
posição monopolística que ele ocupa no mercado das redes sociais de streaming (Cf. BERGEN;
SHAW, 2019; CABLE, 2019; POLLOCK, 2018).

Simplesmente não há hoje uma rede social de streaming que com ele rivalize em
termos de alcance e de estrutura. Assim, o criador de conteúdo que tem tolhido o seu acesso a
ela pode ter sua atividade econômica simplesmente inviabilizada, a depender de quanto dela é
dependente, de modo que a sujeição ao seu poder é inevitável. Youtuber é termo que hoje
designa uma profissão. Não há youtubers fora do YouTube. O mesmo se diga de criadores de
conteúdo que se valem dessa rede social como plataforma de promoção de seus ideais políticos.
Como dito no início do trabalho, há criadores de conteúdo hoje ocupando cargos no Poder
Legislativo, em todos os níveis da federação, que, ou iniciaram sua carreira política no
YouTube, ou nele encontraram a sua maior fonte de exposição. É muito provável que, sem o
YouTube, o resultado das eleições brasileiras de 2018 teria sido muito diverso (BRODERICK,
2019; GHEDIN, 2019).

Na verdade, a teoria finalista mitigada é uma deturpação do intuito original do


legislador, mas que decorre da omissão do Poder Legislativo em considerar outros fenômenos
de assimetria de poder no mercado. Não só o “consumidor”, no sentido comum da palavra, está
sujeito a condições e práticas abusivas por deter menos conhecimento, recursos, ou por
depender de um determinado bem ou serviço ou de um fornecedor em específico. O intuito de
seus defensores é simplesmente o de buscar uma maior proteção da parte mais fraca em relações
travadas no mercado. Por isso é que a equiparação de empresas e de profissionais autônomos a
consumidores se justifica, ainda que possa causar certa estranheza. Sem dúvida o ideal seria o
legislador ter tratado desses casos comuns de assimetria de agentes no mercado com mais
atenção, em especial pela insegurança que sua omissão acabou gerando, decorrente da incerteza
com relação ao regime jurídico aplicável a certos contratos.

Por isso é esperado que nossa jurisprudência compreenda que a regência da relação
jurídica entre criadores de conteúdo e o YouTube se faz também pela incidência das normas do
Código de Defesa do Consumidor.

Naturalmente, em nível infraconstitucional essa relação jurídica não é regulada


somente pelo Código Civil e pelo Código de Defesa do Consumidor, mas por toda a legislação
148

pertinente, o que inclui, sem prejuízo de outros diplomas normativos, o Marco Civil da Internet
e a Lei Geral de Proteção de Dados.

Assim sendo, por exemplo:

● O contrato entre criadores de conteúdo e o YouTube deve ser interpretado


conforme o princípio da função social do contrato (art. 421 do Código Civil), a
boa-fé e os usos do lugar de sua celebração (art. 113 do Código Civil), sendo
vedado o abuso de direitos derivados do contrato (art. 187 do Código Civil);

● Os contratantes são obrigados a guardar, tanto na conclusão do contrato, como


em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé (art. 422 do Código Civil);

● Por comporem um contrato de adesão, as cláusulas ambíguas ou contraditórias


dos Termos de Serviço e das Diretrizes da Comunidade do YouTube devem ser
interpretadas na forma do art. 423 do Código Civil. Ou seja, sempre em favor
do aderente, que, no caso, é o criador de conteúdo. No mesmo sentido, o art.
113, §3º, IV, incluído pela Lei n. º 13.874/19, determina que o negócio jurídico
há de ser interpretado do modo mais favorável à parte que não redigiu o
dispositivo;

● Sem embargo, por força do novo parágrafo único do art. 421, incluído pela Lei
n. º 13.874/19, a intervenção estatal no contrato deve ser mínima, sendo
excepcional a sua revisão.

● Por força do novo art. 421-A do Código Civil, também incluído pela Lei n. º
13.874/19, o contrato entre o YouTube e os criadores de conteúdo é
presumivelmente paritário e simétrico, de modo que cabe ao julgador
demonstrar na fundamentação os elementos concretos que demonstram a
assimetria entre as partes, inclusive para justificar a incidência do regime
especial do Código de Defesa do Consumidor.

● É dever do YouTube redigir o contrato em termos claros, de modo a facilitar sua


compreensão pelo consumidor (o criador de conteúdo), tal como determina o
art. 54, §3º do Código de Defesa do Consumidor. Inclusive, as cláusulas que
implicarem limitação de direito do criador de conteúdo devem ser redigidas com
destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão (art. 54, §4º do Código
de Defesa do Consumidor).
149

● São vedadas as cláusulas e as práticas abusivas por parte do YouTube na forma


do art. 6º, IV do Código de Defesa do Consumidor.

● O YouTube é qualificado como provedor de aplicações de internet perante o


Marco Civil da Internet (art. 5º, VII), estando sujeito aos deveres específicos
previstos por esta lei para esta espécie de provedor. Assim, ele pode ser
responsabilizado civilmente por conteúdo gerado por terceiros, desde que, após
ordem judicial específica, não tome providências, no âmbito e nos limites
técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, para tornar indisponível o
conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em
contrário (art. 19 do Marco Civil da Internet). Ademais, sempre que tiver
informações de contato do usuário diretamente responsável pelo conteúdo tido
por infringente, caberá ao provedor de aplicações de internet comunicar-lhe os
motivos e informações relativos à indisponibilização de conteúdo, com
informações que permitam o contraditório e a ampla defesa em juízo, salvo
expressa previsão legal ou expressa determinação judicial fundamentada em
contrário (art. 20 do do Marco Civil da Internet). Caso o conteúdo gerado por
terceiro consista em materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de
caráter privado tornados públicos sem autorização dos participantes, o provedor
de aplicações será responsável subsidiariamente pela violação da intimidade, a
partir do momento em que de deixe de, diligentemente, no âmbito e nos limites
técnicos do seu serviço, tornar indisponível esse conteúdo (art. 21 do Marco
Civil da Internet).

● Na forma do art. 8º, parágrafo único, II do Marco Civil da Internet são nulas as
cláusulas que não ofereçam como alternativa ao contratante a adoção do foro
brasileiro para solução de controvérsias decorrentes de serviços prestados no
Brasil. Por isso é nula a cláusula “Legislação vigente” dos Termos de Serviço
do YouTube, que assim dispõe:

Todas as ações judiciais decorrentes ou relacionadas a estes termos ou ao Serviço


serão regidas pela legislação da Califórnia, exceto com relação a suas regras sobre
conflito de leis, e serão litigadas exclusivamente em tribunais estaduais ou federais do
Condado de Santa Clara, Califórnia, EUA. Você e o YouTube autorizam a jurisdição
pessoal desses tribunais (YOUTUBE, 2019, on-line).
150

Já com relação à escolha da legislação californiana como regente das obrigações


das partes do contrato com o YouTube, reitera-se que não ingressaremos na
intrincada discussão a respeito da autonomia das partes para escolherem a lei
aplicável aos contratos internacionais, e tampouco a existente acerca da
interpretação do art. 9º da LINDB no campo dos contratos eletrônicos. Estamos
considerando que a lei aplicável à relação jurídica em foco é a brasileira, pois
assim tem entendido nossa jurisprudência, aplicando normalmente as
disposições do Código Civil, Código de Defesa do Consumidor e Marco Civil
da Internet às relações com redes sociais.

6.3. Características da estrutura da relação jurídica entre criadores de conteúdo e redes


sociais de streaming. Critérios para a valoração da autonomia da vontade

Como visto no Capítulo 3, as correntes teóricas que defendem a aplicação dos direitos
fundamentais nas relações privadas concordam que a situação implica um conflito entre o
direito fundamental eventualmente restringido e a autonomia privada, que legitimaria decisões
restritivas de direitos fundamentais em um primeiro momento. Os efeitos do direito
fundamental aplicado a relações privadas, portanto, não são absolutos.

A doutrina brasileira defende verificar a validade da restrição do direito fundamental


a partir de critérios valorativos que definiriam o grau de proteção que a autonomia privada
mereceria em cada caso concreto. Critérios esses – como a assimetria entre as partes e a
essencialidade dos bens envolvidos – que devem ser considerados, tanto na interpretação na
legislação infraconstitucional que regula a relação analisada, quanto na eventual aplicação
direta das normas constitucionais (v. Capítulo 4 e tópico 5.5).

No tópico subsequente analisaremos como tais critérios se manifestam


especificamente na relação entre criadores de conteúdo e o YouTube, mas é certo que o
raciocínio pode ser aplicado à Twitch, bem como a outras redes sociais como o Facebook, o
Instagram e até o Whatsapp.
151

6.3.1. Assimetria entre as partes e seu reflexo na sinceridade da manifestação da vontade do


criador de conteúdo

A superação da ideia de restrição da produção de efeitos dos direitos fundamentais à


relação entre Estado-cidadãos tem por pedra de toque o reconhecimento de que também outros
cidadãos são capazes de concentrar poder a ponto de serem capazes de impor restrições
heterônomas a seu gozo (v. capítulos 2 e 3).

Sem embargo, conforme se desenvolveram as teorias que sustentam a incidência dos


direitos fundamentais em relações privadas, a desigualdade entre as partes não é o busílis da
sua submissão a seus efeitos – o que tem fundamentos próprios já demonstrados –, mas sim um
dado que deve ser considerado quando se calibra a intensidade da proteção de tais direitos em
detrimento da preferência pela proteção da autonomia privada (v. capítulo 2, 3 e 4).

O raciocínio é o de que, embora nas relações entre particulares, em virtude da


competência garantida pela autonomia privada, seja em princípio admissível a renúncia a
direitos fundamentais, a restrição convencionada pode não se afigurar legítima e alheia a uma
intervenção estatal corretiva, quando presentes elementos capazes de afetar o próprio exercício
soberano dessa liberdade de contratar garantidora da validade da autorrestrição, como é o caso
do desequilíbrio de poder entre as partes contratantes.

Se não há efetivo exercício de autonomia privada por ambas as partes, a intervenção


estatal na relação contratual antes se faz em prol da garantia da liberdade de contratar – do mais
fraco – e não o contrário (v. tópico 4.2.1).

Não obstante, nos casos em que se analisa um contrato já firmado25, como o celebrado
entre os criadores de conteúdo e as redes sociais de streaming, não é a desigualdade entre as
partes em si que dá o tom da proteção merecida pela autonomia privada, mas sim o eventual
reflexo dessa assimetria sobre a autenticidade da manifestação da vontade daquele que,
supostamente exercendo essa autonomia, convencionou restrição a direito fundamental que
titulariza (v. tópicos 4.2.2 e 4.4.2.5.3).

25
Sobre o conflito dos direitos fundamentais com a autonomia privada nos casos de “recusa a contratar” ver o
tópico 4.2.2.
152

A assimetria a ser considerada também não se resume àquela externa à relação jurídica,
de cunho material. É mais adequado considerar fatores de desequilíbrio, tanto intrínsecos,
quanto os extrínsecos não estritamente materiais.

O desequilíbrio de poder é intrínseco à relação quando a lei ou a vontade das partes


confere a uma delas de modo exclusivo o poder de afetar unilateralmente a esfera jurídica da
outra, por exemplo, aplicando sanções por descumprimento dos termos da convenção, como
ocorre nas relações com associações, condomínios (BRAGA, 2008, p. 100), e, aqui, com redes
sociais.

Outro fator de desequilíbrio intrínseco decorre da prevalência da vontade de uma das


partes em sua estruturação, como sucede nos contratos de adesão em que o aderente apenas
consente com os termos definidos unilateralmente pelo aderido.

Quanto aos fatores extrínsecos de desequilíbrio da relação, vale recorrer, como forma
de exemplificá-los, a uma analogia com as espécies de vulnerabilidade frente ao fornecedor
consideradas pela doutrina consumerista defensora da teoria finalista mitigada (Cf.
MARQUES; BENJAMIN; BESSA, 2010, pp. 234 e ss.). Neste sentido, a assimetria extrínseca
entre as partes contratuais, que aqui é reputada relevante, não para a incidência da legislação
consumerista, mas para fins de modulação da incidência dos direitos fundamentais, pode ser
igualmente de ordem técnica, jurídica ou econômica. Deste modo, pode tanto decorrer dos
maiores conhecimentos de uma parte a respeito do objeto negociado (assimetria técnica),
quanto do seu maior conhecimento jurídico, econômico ou contábil (assimetria jurídica), quanto
da posição monopolística que ele ocupa; de seu poder econômico; ou ainda da essencialidade
do produto/serviço que fornecido (assimetria fática ou econômica).

Nessa toada, destaca-se na relação jurídica com redes sociais a assimetria fática do
criador de conteúdo face à rede social, em especial frente ao YouTube, essencialmente pelo
caráter monopolístico da posição que ela ocupa no mercado das redes sociais de streaming (v.
tópico 6.2).

Não é demais reforçar que o YouTube não possui concorrentes no mesmo patamar de
alcance e popularidade no mercado de streaming, o que deriva em grande parte de sua
associação com a Google, proprietária do YouTube e do maior motor de buscas do mundo, que
a ele é diretamente integrado, de modo que as buscas efetuadas no Google.com direcionam a
vídeos no YouTube, e também de sua incorporação com o sistema operacional Android, que
faz com que o aplicativo do YouTube já venha instalado de fábrica em celulares que o utilizam,
153

sendo que o celular é hoje o maior meio de acesso à internet no Brasil (VALENTE, 2019, on-
line).

Por isso o acesso ao YouTube é de especial relevância para a publicidade de produtos


e serviços, pela inigualável possibilidade de divulgação de de produtos e serviços não
necessariamente digitais que ele oferece, de modo que a exclusão da plataforma é capaz de
gerar impactos em nível concorrencial. Além de ele ser essencial para o exercício de atividades
econômicas centradas na criação e distribuição de conteúdo digital, caso da atividade dos
youtubers e streamers, que dependem da plataforma para exercê-la, lucrando direta e
indiretamente com a popularidade de seus vídeos e transmissões. Neste cenário de dependência,
é claro que a sujeição aos Termos de Serviço e Diretrizes da Comunidade do YouTube,
condição para o uso da plataforma, não é uma opção necessariamente livre dos criadores de
conteúdo. Como visto no tópico anterior, a essencialidade do acesso às redes sociais para o
exercício de atividades econômicas tem sido considerada pela jurisprudência para a conclusão
pela aplicação do direito ao devido processo legal em sua relação com seus usuários26.

O mesmo se diga de criadores de conteúdo que se valem dessa rede social, não como
meio de exercício de atividade econômica, mas como plataforma de promoção política, como
os diversos criadores de conteúdo que hoje ocupam cargos no Poder Legislativo do país. O
impacto de redes sociais como o YouTube nas eleições é reconhecido a ponto de a Procuradoria
da República em Goiás ter oferecido representação à Procuradoria-Geral da República em face
do YouTube, Whatsapp, Facebook, Twitter a fim de impedir que censurassem conteúdo político
sem prévia decisão específica da Justiça Eleitoral no curso da disputa, pelo temor de controle
da liberdade de manifestação e influência sobre o resultado do pleito (Ofício nº.
4264/MPF/PRGO/3ºONTC)27.

Enfim, há uma latente assimetria entre o YouTube, enquanto maior rede social de
streaming do mundo, e os criadores de conteúdo, tanto pela posição de sujeição que estes
ocupam no seio de uma relação jurídica cujos termos foram unilateralmente definidos
(assimetria intrínseca), quanto pelo fato de ele deter praticamente o monopólio de um padrão
de comunicação social (Cf. BERGEN; SHAW, 2019; CABLE, 2019; POLLOCK, 2018), que

26
No mesmo sentido, no RE 201.819 o Supremo Tribunal Federal considerou a essencialidade do vínculo
associativo para o recebimento de direitos autorais por músicos como relevante na consideração da submissão da
União Brasileira de Compositores ao devido processo legal nos processos de exclusão de associados (2006, on-
line).
27
Cf. BRASIL, 2018, pp. 1-14.
154

lhe permite inviabilizar atividades econômicas e influenciar o debate na esfera pública, a ponto
de poder sugestionar eleições nas maiores democracias do mundo (assimetria extrínseca).

Esses fatores se mantêm estáveis seja o criador de conteúdo um youtuber das camadas
mais pobres da população, seja até mesmo o Presidente da República, um senador ou um
deputado.

Essa assimetria faz pender em favor da proteção do devido processo legal a solução
de seu conflito com a autonomia privada do YouTube, como forma de contenção e limitação
do poder da rede social.

De outra parte, embora esse desequilíbrio de forças entre o YouTube e os criadores de


conteúdo seja marcante, não faz identificá-lo como poder público para o fim de incidência de
um regime mais contundente de proteção dos direitos fundamentais.

O YouTube não é uma empresa estatal, não exerce atividade tradicionalmente exercida
pelo Estado, nem eminentemente pública; tampouco se vale de bens e recursos públicos ou do
serviço de agentes estatais28. Com efeito, não há notícia de financiamento público, ou de entrega
de bens ou servidores a elas para o exercício de sua atividade. Eventual recebimento de verbas
estatais de publicidade não é suficiente para tanto. A questão não passa, destarte, pelo public
function test (v. tópico 3.2 e AYOUB, 2017, pp. 895-896).

Tampouco a lei brasileira força a remoção de conteúdo pela rede social como faz a lei
alemã (NetzDG) ou a incentiva como a lei estadunidense (CDA), o que poderia levar a tal
consideração mediante aplicação da public encouragement theory (v. tópico 3.2 e AYOUB,
2017, pp. 895-896). Na verdade, em sentido contrário, longe de encorajar a censura, no intuito
expresso de tutelar a liberdade de expressão, o Marco Civil da Internet delimita a
responsabilidade dos provedores à omissão de cumprimento de ordem judicial, reservando a
repressão de conteúdo ao Judiciário – exceção feita ao conteúdo sexual de cunho íntimo.

Assim sendo, a sujeição da rede social ao devido processo legal não há de ser tão
intensa quanto a vigente em processos estatais, que são recheados de formas determinadas,
prazos específicos, recursos, instrução probatória. O YouTube está vinculado, na verdade, às

28
Esses são os critérios propostos por Sarmento para a associação da atuação de um ente privado a uma ação
estatal para o fim de determinar sua submissão a um regime mais restrito de vinculação a direitos fundamentais
(2010, p. 296-298).
155

balizas desse direito fundamental, como a oportunização de defesa, a motivação e a


proporcionalidade das decisões, e a solução em prazo razoável.

6.3.1.1 Google e Facebook como “state actors”: uma discussão crescente nos Estados Unidos

A equiparação do YouTube com um poder público, embora afete o regime de proteção


de direitos fundamentais ao qual ele se sujeita, não se faz necessária no Brasil como forma de
estear a incidência do devido processo legal na relação, visto não ser adotada no Brasil a
doutrina da state action, segundo a qual os direitos fundamentais somente vinculam o Estado,
de modo que a sua incidência em uma relação privada somente se justifica quando a ação do
particular envolvido possa ser equiparada a uma ação estatal (state action)29.

Entretanto, como vimos no tópico 3.2, a doutrina da state action predomina nos
Estados Unidos, sendo interessante o fato de que têm surgido nas cortes americanas diversas
ações em que cidadãos que tiveram censurado o conteúdo postado em redes sociais contestam
a decisão dos provedores com base do direito à liberdade de expressão garantido pela I Emenda.

As instâncias inferiores têm decidido seguidamente que o fato de o Google e o


Facebook proverem fóruns públicos onde os usuários podem se expressar não é circunstância
suficiente para caracterizá-los como state actors. Decisões consistentes com o precedente da
Suprema Corte dos Estados Unidos criado em fevereiro de 2019 no julgamento de Manhattan
Community Access Corp. v. Halleck, no qual se decidiu que uma rede de televisão privada não
era um state actor (RUBENFELD, 2019, on-line).

Confira-se a ementa de dito precedente:

New York state law requires cable operators to set aside channels on their cable
systems for public access. Those channels are operated by the cable operator unless
the local government chooses to itself operate the channels or designates a private
entity to operate the channels. New York City (the City) has designated a private
nonprofit corporation, petitioner Manhattan Neighborhood Network (MNN), to
operate the public access channels on Time Warner’s cable system in Manhattan.
Respondents DeeDee Halleck and Jesus Papoleto Melendez produced a film critical
of MNN to be aired on MNN’s public access channels. MNN televised the film. MNN
later suspended Halleck and Melendez from all MNN services and facilities. The
producers sued, claiming that MNN violated their First Amendment free-speech rights
when it restricted their access to the public access channels because of the content of
their film. The District Court dismissed the claim on the ground that MNN is not a

29
Para um maior aprofundamento, confira-se o tópico 3.2.
156

state actor and therefore is not subject to First Amendment constraints on its editorial
discretion. Reversing in relevant part, the Second Circuit concluded that MNN is a
state actor subject to First Amendment constraints.
Held: MNN is not a state actor subject to the First Amendment. Pp. 5–16.
(a) The Free Speech Clause of the First Amendment prohibits only governmental, not
private, abridgment of speech. See, e.g., Denver Area Ed. Telecommunications
Consortium, Inc. v. FCC, 518 U. S. 727, 737. This Court’s state-action doctrine
distinguishes the government from individuals and private entities. Pp. 5–14.
(1) A private entity may qualify as a state actor when, as relevant here, the entity
exercises “powers traditionally exclusively reserved to the State.” Jackson v.
Metropolitan Edison Co., 419 U. S. 345, 352. The Court has stressed that “very few”
functions fall into that category. Flagg Bros., Inc. v. Brooks, 436 U. S. 149, 158. The
relevant function in this case—operation of public access channels on a cable
system—has not traditionally and exclusively been performed by government. Since
the 1970s, a variety of private and public actors have operated public access
channels. Early Manhattan public access channels were operated by private cable
operators with some help from private nonprofit organizations. That practice
continued until the early 1990s, when MNN began to operate the channels. Operating
public access channels on a cable system is not a traditional, exclusive public
function. Pp. 6–8.
(2) The producers contend that the relevant function here is more generally the
operation of a public forum for speech, which, they claim, is a traditional, exclusive
public function. But that analysis mistakenly ignores the threshold state-action
question. Providing some kind of forum for speech is not an activity that only
governmental entities have traditionally performed. Therefore, a private entity who
provides a forum for speech is not transformed by that fact alone into a state actor.
See Hudgens v. NLRB, 424 U. S. 507, 520–521. Pp. 8–10.
(3) The producers note that the City has designated MNN to operate the public access
channels on Time Warner’s cable system, and that the State heavily regulates MNN
with respect to those channels. But the City’s designation is analogous to a
government license, a government contract, or a government-granted monopoly, none
of which converts a private entity into a state actor—unless the private entity is
performing a traditional, exclusive public function. See, e.g., San Francisco Arts &
Athletics, Inc. v. United States Olympic Comm., 483 U. S. 522, 543–544. And the fact
that MNN is subject to the State’s extensive regulation “does not by itself convert its
action into that of the State.” Jackson, 419 U. S., at 350. Pp. 11–14.
(b) The producers alternatively contend that the public access channels are actually
the City’s property and that MNN is essentially managing government property on
the City’s behalf. But the City does not own or lease the public access channels and
does not possess any formal easement or other property interest in the channels. It
does not matter that a provision in the franchise agreements between the City and
Time Warner allowed the City to designate a private entity to operate the public
access channels on Time Warner’s cable system. Nothing in the agreements suggests
that the City possesses any property interest in the cable system or in the public access
channels on that system. Pp. 14–15.
882 F. 3d 300, reversed in part and remanded.
Kavanaugh, J., delivered the opinion of the Court, in which Roberts, C. J., and
Thomas, Alito, and Gorsuch, JJ., joined. Sotomayor, J., filed a dissenting opinion, in
which Ginsburg, Breyer, and Kagan, JJ., joined. (SCOTUS, 2019, on-line)

Todavia, na opinião de Jed Rubenfeld, professor de Yale, as cortes inferiores não estão
abordando uma questão relevante para a caracterização da conduta das redes sociais como ação
157

estatal: a censura promovida pelas redes sociais é baseada em uma imunidade que lhes foi
conferida diretamente pelo Congresso dos Estados Unidos, e que é orientada justamente a
induzir entes privados a promover ações de censura que estariam sujeitas a escrutínio judicial
(judicial review) caso fossem intentadas diretamente pelo Estado (2019, on-line).

O autor se refere à Seção 230 da Communications Decency Act (CDA), que garante
aos provedores a possibilidade de censurar conteúdo qualificado como “lewd, lascivious, filthy,
excessively violent, harassing or otherwise objectionable, whether or not such material is
constitutionally protected”. Quer dizer, se o Estado censurasse um discurso invocando esses
adjetivos, a questão seria passível de questionamento perante o Judiciário com base na liberdade
de expressão (I Emenda) por se tratar de uma state action. Todavia, a CDA conferiu imunidade
aos provedores para censurar livremente o conteúdo postado, sem que, a princípio, suas
decisões pudessem ser confrontadas com base na I Emenda por se tratarem de atores privados
(non state actors). Daí o questionamento do professor, de a CDA ter sido o meio encontrado
pelo Estado de fazer com que agentes privados fizessem em seu lugar o trabalho de censura do
discurso político de modo imune à ação das cortes (RUBENFELD, 2019, on-line).

Para Rubenfeld seria pertinente à controvérsia relativa à Seção 230 da CDA o


precedente Skinner v. Railway Labor Executives Association, no qual a Suprema Corte dos
Estados Unidos discutiu se testes de álcool e drogas promovidos nos empregados de uma
empresa de ferrovias, baseados em autorização conferida por regulamento criado por uma
agência estatal, caracterizava-se ou não como state action para fins de incidência da IV Emenda.
Decidiu a Corte que o fato de a realização dos testes pela empresa não ser obrigatória não
necessariamente tornava-a uma ação privada, sendo que o Estado não necessariamente havia
assumido uma conduta passiva em relação à sua realização, tendo, ao contrário, demonstrado
uma clara preferência pela sua realização. Contratos que proibissem os testes estavam vedados
e os trabalhadores não eram livres para recusá-los, já que poderiam ser retirados do serviço em
caso de recusa. Enfim, havia um encorajamento, um apoio, e uma participação do Estado na
realização dos testes pela empresa privada suficiente para caracterizar como hipótese de state
action, e assim limitada por direitos fundamentais (SCOTUS, 1963, on-line).

Na opinião de Rubenfeld, essas razões são inteiramente aplicáveis à discussão da


Seção 230 da CDA, pois, em ambos os casos, o Estado não assume uma conduta passiva frente
à conduta dos entes privados, já que, assim como as empresas de ferrovia estavam livres de
responsabilidade por testar seus empregados, os provedores estão livres para censurar conteúdo.
Outrossim, assim como os trabalhadores não eram livres para recusar os testes, os usuários não
158

estão livres de se submeterem à censura. Se no caso Skinner havia forte preferência estatal pelos
testes, no caso da CDA há forte preferência pela remoção de conteúdo ofensivo (2019, on-line).

Rubenfeld também menciona que, no caso Bantam Books, a Suprema Corte decidiu
que a pressão estatal informal e ameaças de agentes estatais, mesmo que agindo como privados,
também podem transformar uma ação privada em state action. Isto importaria, pois, no caso
dos provedores, por anos os congressistas têm pressionado o Facebook e a Google – dona do
YouTube – a bloquear discurso de ódio, conteúdo extremista, fake news, etc. Há, portanto, uma
campanha de pressão do Legislativo sobre esses atores privados a adotarem condutas de
censura, que leva à sua consideração como atos estatais (RUBENFELD, 2019, on-line).

Assim, haveria fortes argumentos para considerar esses provedores como state actors
quando bloqueiam conteúdo, pois imunidade à conduta e pressão estatal a ela indutiva
configurariam state action30 (RUBENFELD, 2019, on-line).

Ainda que no Brasil a doutrina da state action não seja reconhecida, essa discussão
poderá se tornar relevante na hipótese de a legislação brasileira avançar na seara do controle do
conteúdo das redes sociais no mesmo sentido da Netzwerkdurchsetzungsgesetz da Alemanha.
Caso isto ocorra, e a censura de conteúdo pelas redes sociais comece a ser realizada com base
em uma ordem estatal direta, é certo que os direitos fundamentais passarão a incidir com maior
intensidade do que ocorre quando a censura é realizada somente com base nos termos do
contrato.

6.3.1.2. Circunstâncias da oferta: caso “Stadionverbot”

Para fins de determinação da intensidade da vinculação de privados a direitos


fundamentais em uma relação contratual, importa também considerar as circunstâncias em que
o objeto negociado é ofertado. A esta conclusão chegou o Tribunal Constitucional Federal da
Alemanha quando do julgamento do caso Stadionverbot.

30
Para uma resposta aos argumentos de Rubenfeld, confira-se: ROZENSHTEIN, Alan Z. No, Facebook and
Google Are Not State Actors. Lawfare. [S.l.], on-line. 12 nov. 2019. Disponível em:
<https://www.lawfareblog.com/no-facebook-and-google-are-not-state-actors>. Acesso em: 02 jan. 2020.
159

Eis um breve resumo31. Por conta de uma briga com torcedores do MSV Duisburg, um
torcedor do Bayern de Munique foi proibido pelo time de Duisburgo de frequentar estádios de
futebol no território alemão, fossem partidas de quaisquer das divisões do campeonato alemão.
O clube da Renânia do Norte-Vestefália valeu-se de uma medida restritiva de natureza civil
normatizada pela Deutscher Fußball-Bund – DFB (algo equivalente à CBF no Brasil), criada
como medida anti-hooliganismo, denominada Stadionverbot (literalmente, banimento de
estádios).

À época em que aplicada a medida, as diretrizes da DFB (DFB-Richtlinien de 2005)


para a aplicação de uma Stadionverbot determinavam que, caso a investigação penal a respeito
da conduta do torcedor fosse arquivada, o clube haveria de abrir uma fase instrutória com o fim
de revisar a restrição. Nesta oportunidade, segundo essas diretrizes, o clube tinha a faculdade –
e não a obrigação – de oportunizar o contraditório ao torcedor afetado. Quer dizer, a oitiva do
torcedor, além de facultativa, era realizada somente ex post, na hipótese de revisão da medida.

Seguindo essas diretrizes, o MSV Duisburg aplicou a Stadionverbot ao torcedor do


Bayern de Munique e somente lhe concedeu a oportunidade de se defender quando da revisão
da medida, após o arquivamento da investigação penal a respeito da briga de que ele
supostamente havia participado nos arredores da MSV Arena (o estádio do Duisburg). Ao final
do processo, contudo, a medida foi mantida.

O torcedor então recorreu ao Judiciário até que, após não ter logrado sucesso em
instâncias inferiores, o caso foi levado ao Bundesverfassungsgericht por meio de reclamação
constitucional (Verfassungsbeschwerde).

Em sua defesa, o torcedor alegou, de um lado, que a restrição carecia de substância,


dada o arquivamento da investigação penal; de outro, que a falta de contraditório prévio
representava ofensa ao devido processo legal (faires Verfahren), já que, em função dos
interesses envolvidos, esse direito fundamental haveria de ser garantido, mesmo que em uma
relação privada. O torcedor mencionou ainda uma violação do direito à intimidade, pois a
medida lhe teria imposto um estigma social categorizando-o como hooligan, sendo que, por
consequência da Stadionverbot, ele havia sido colocado em uma espécie de lista negra das

31
Para uma análise completa do caso, confira-se: IANNI, Antonio. L’incidenza della Costituzione sui rapporti
privati. Sul divieto di accesso agli stadi il Bundesverfassungsgericht torna ad arbitrare la partita della Drittwirkung.
DPCE on line. [S.l.], 2018. Disponível em:
<http://www.dpceonline.it/index.php/dpceonline/article/view/565/548>. Acesso em 20 dez. 2019.
160

forças policiais que faziam com que ele fosse submetido a controles especiais (Cf. IANNI,
2018, pp. 805-806).

A Primeira Turma da Corte Constitucional tedesca interpretou que o caso versava


sobre um conflito entre os direitos da personalidade do torcedor e os direitos de propriedade e
de inviolabilidade do domicílio (Hausrecht) do clube de futebol, o dono da casa (no caso, do
estádio), tendo toda a discussão versado sobre se havia um direito do torcedor a não ser
discriminado e sobre se o clube deveria ter obedecido ao devido processo legal ao vedar a sua
entrada.

Aplicando a teoria da eficácia mediata dos direitos fundamentais, o BVerfGE teceu as


seguintes conclusões, conforme a ementa do julgado traduzida livremente32:

1. O art. 3º, 1 da Lei Fundamental da Alemanha interpretado conforme a doutrina da


eficácia mediata dos direitos fundamentais (mittelbare Drittwirkung) não dá azo à
existência de um princípio constitucional objetivo que assegure paridade de
tratamento nas relações jurídicas entre atores privados. Em princípio, as pessoas são
livres para escolher, de acordo com suas preferências pessoais, quando, com quem, e
sob quais circunstâncias elas querem contratar.
2. Em casos específicos, a paridade de tratamento pode ser exigida a partir da invocação
do art. 3º, 1 da Lei Fundamental da Alemanha. O art. 3º, 1 da GG produz efeitos
indiretos em relações privadas quando, por exemplo, indivíduos exercem o seu direito
à inviolabilidade do domicílio (Hausrecht) com o fim de excluir pessoas determinadas
de eventos ofertados a um público grande, cuja admissão, em regra, não leva em
consideração individualmente as pessoas admitidas, e quando essa exclusão acarretar
um impacto considerável na possibilidade de o excluído participar da vida social. Os
organizadores não têm permissão para usar seu poder discricionário de decisão para
excluir determinadas pessoas de um evento desse tipo sem um motivo objetivo.
A aplicação de uma sanção de banimento de estádios (Stadionverbot) não pressupõe
provas de que a pessoa afetada tenha cometido uma infração penal; bastando a
demonstração de indícios capazes de embasar preocupações reais de que os afetados
possam causar distúrbios futuros. A princípio, as partes afetadas devem ser ouvidas
antes da aplicação da sanção e, se solicitado, os motivos para a aplicação da sanção
devem ser fornecidos, para que se possa recorrer judicialmente. (BVerfGE, 2018, on-
line).

32
No original: “1. Art. 3 Abs. 1 GG lässt sich auch nach den Grundsätzen der mittelbaren Drittwirkung kein
objektives Verfassungsprinzip entnehmen, wonach die Rechtsbeziehungen zwischen Privaten von diesen
prinzipiell gleichheitsgerecht zu gestalten wären. Grundsätzlich gehört es zur Freiheit jeder Person, nach eigenen
Präferenzen darüber zu bestimmen, mit wem sie unter welchen Bedingungen Verträge abschließen will. 2.
Gleichheitsrechtliche Anforderungen für das Verhältnis zwischen Privaten können sich aus Art. 3 Abs. 1 GG
jedoch für spezifische Konstellationen ergeben. Mittelbare Drittwirkung entfaltet Art. 3 Abs. 1 GG etwa dann,
wenn einzelne Personen mittels des privatrechtlichen Hausrechts von Veranstaltungen ausgeschlossen werden,
die von Privaten aufgrund eigener Entscheidung einem großen Publikum ohne Ansehen der Person geöffnet
werden und wenn der Ausschluss für die Betroffenen in erheblichem Umfang über die Teilhabe am
gesellschaftlichen Leben entscheidet. Die Veranstalter dürfen hier ihre Entscheidungsmacht nicht dazu nutzen,
bestimmte Personen ohne sachlichen Grund von einem solchen Ereignis auszuschließen. 3. Ein Stadionverbot
kann auch ohne Nachweis einer Straftat auf eine auf Tatsachen gründende Besorgnis gestützt werden, dass die
Betroffenen künftig Störungen verursachen werden. Die Betroffenen sind grundsätzlich vorher anzuhören und
ihnen ist auf Verlangen vorprozessual eine Begründung mitzuteilen” (BVerfGE, 2018, on-line).
161

O que nos importa da decisão do BVerfGE é basicamente o seu entendimento de que,


aquele que oferta um bem ou serviço a um público indeterminado, sem considerar
especificamente a pessoa com quem contrata, não pode se valer de seu poder unilateral de
decisão – derivado da lei, monopólio ou superioridade estrutural – para discriminar potenciais
contratantes sem um motivo objetivo, em especial quando a negativa de acesso ao bem/serviço
ofertado cause impacto na capacidade de o afetado participar da vida social. Além do que, a
aplicação de uma medida excludente do acesso ao bem serviço como a Stadionverbot pressupõe
a oitiva da parte antes de sua aplicação e a exposição de seus motivos.

É possível traçar um claro paralelo entre a relação jurídica analisada no caso


Stadionverbot e a relação jurídica entre usuários e redes sociais.

Com efeito, a doutrina alemã tem mesmo discutido a aplicabilidade desse precedente
do BVerfGE às relações com redes sociais, como o Facebook. Schöddert compara as duas
situações afirmando que, o Facebook torna seus serviços acessíveis a um público ilimitado e
muito superior ao de um estádio, sem considerar a pessoa do usuário, bastando para seu acesso
o preenchimento de um formulário de registro. Ademais, para a autora, devido à importância
social do Facebook para a comunicação pública, a exclusão de uma postagem ou o bloqueio da
conta significa um corte significativo nas opções de comunicação do usuário em questão,
retirando-lhe uma possibilidade de participação da vida social. Não só a sua liberdade em geral
está em jogo, mas também sua liberdade de expressão e de acesso à informação. Outrossim, o
Facebook é estruturalmente superior aos usuários, o que se reflete no seu poder de decidir sobre
a exclusão de conteúdo e o bloqueio de conta. Assim, a sujeição do Facebook a deveres
procedimentais seria bem-vinda, porque fortaleceria a formação de padrões-procedimentais de
autorregulação da rede social que levariam ao fortalecimento do direito dos usuários (2018, on-
line).

O raciocínio de Schöddert é coerente e as mesmas razões podem ser aplicadas à relação


entre criadores de conteúdo e o YouTube. Igualmente, o YouTube oferta seus serviços a uma
gama ilimitada de potenciais usuários33 e o acesso à sua plataforma é essencial tanto à
participação na comunicação social atual, quanto ao exercício de atividades econômicas.

33
Como visto no tópico 4.3.1, embora não desenvolva tese no mesmo sentido do BVerfGE, Wilson Steinmetz
considera que entes privados que emitam uma decisão pública e geral de contratar têm sua autonomia privada
delimitada em maior grau pelos direitos fundamentais.
162

Outrossim, como já referido, é nítida a superioridade do YouTube frente aos criadores de


conteúdo.

Assim, na esteira do decidido pelo BVerfGE, o YouTube não poderia excluir um


usuário sem um motivo objetivo, além de ser obrigado a conferir oportunidade de defesa e
motivar as suas decisões, ainda que o seu contrato nada disponha nesse sentido.

6.3.2. Concorrência da vontade do criador de conteúdo na restrição a direito fundamental

Daniel Sarmento (2010, p. 293) e Paula Sarno Braga (2008, p. 141) defendem que é
relevante para fins de moderação da incidência dos direitos fundamentais em relações privadas,
verificar se a restrição a direito fundamental contou com a manifestação de vontade do lesado,
de modo que, nos casos em que há esse consentimento, seria maior o peso atribuído à autonomia
da vontade, pois daí análise da validade da restrição leva à necessidade de ponderação da
autonomia da vontade dos dois sujeitos envolvidos na relação.

No caso em que se discute a incidência do direito ao devido processo legal na hipótese


de remoção de conteúdo e suspensão de usuários pelo YouTube já houve adesão do criador de
conteúdo aos Termos de Serviço e Diretrizes da Comunidade, sendo caso, portanto, em que
houve manifestação de consentimento. Não se pode olvidar, contudo, que este fator não há de
ser considerado de forma isolada, mas sim em conjunto com os demais, sendo que, como
demonstrado, a efetiva liberdade do criador de conteúdo em aderir aos termos propostos pelo
YouTube é baixa, considerada a posição por ele ocupada no mercado de streaming que o torna
essencial para o exercício da atividade profissional de criação de conteúdo digital.

Com efeito, Sarmento pondera que, nos casos em que expressado consentimento, a
controvérsia liga-se à validade da renúncia ao exercício de direitos fundamentais, o que, sem
dúvida, pressupõe que a vontade do titular do direito seja autenticamente livre, algo que
dificilmente ocorre em relações assimétricas (2010, p. 293). No mesmo sentido, Paula Sarno
Braga destaca que a participação daquele que teve o direito fundamental atingido no ato que a
provocou há mais peso nos casos em que a relação é paritária (2008, p. 142).

Considerada a manifesta assimetria entre os criadores de conteúdo e o YouTube, este


critério perde muito em relevância.
163

6.3.3. Essencialidade dos bens jurídicos envolvidos

Outra questão reputada significativa para a intensidade da incidência dos direitos


fundamentais em relações privadas é a consideração da natureza dos bens jurídicos em jogo, de
maneira que, quanto mais essencial o bem ameaçado, com mais força incide a exigência do
devido processo legal.

É difícil isolar os bens jurídicos envolvidos na relação jurídica entre criadores de


conteúdo e as redes sociais de streaming dada a variedade de usos que a plataforma permite. O
criador de conteúdo pode expor sua vida pessoal como diversão, mas também como atividade
econômica, caso dos daily vloggers. Pode-se expor opiniões políticas em mero exercício de
liberdade de expressão ou com o claro intuito de influenciar tomadas de decisão coletivas. Pode-
se usar a rede social para se professar a fé em alguma religião existente ou até mesmo para se
fundar uma nova, com cultos transmitidos via livestreaming. Sem embargo, marcadamente, do
lado dos criadores de conteúdo, as questões envolvem em geral a liberdade de expressão, o
direito de participação política e a livre iniciativa. Nenhum destes bens parece ser “supérfluo”,
para se usar uma expressão de Daniel Sarmento (2010, pp. 290-291). Vale lembrar que nas
decisões vinculantes proferidas no julgamento da ADPF n. º 130 e na ADI n. º 2.404 o STF
estabeleceu como premissas do regime constitucional de proteção à liberdade de expressão que
esse direito fundamental goza de posição preferencial quando colidente com outros direitos
fundamentais. Deste modo, ainda que a discussão possa variar de tom conforme o caso
específico, o pano de fundo parece ser o mesmo: a restrição a bens essenciais, de modo que de
maneira geral é incrementada a sua exigência de proteção em detrimento da autonomia privada
do YouTube em restringir sua veiculação sem garantir o devido processo legal, mesmo por que,
da parte do YouTube há basicamente apenas o interesse econômico em lucrar com a publicidade
veiculada nos vídeos e transmissões realizados na plataforma, além do interesse em evitar sua
responsabilização pela veiculação de conteúdo ofensivo.

Inegável, ademais, que há um efetivo interesse público – critério destacado por Paula
Sarno Braga (2008, p. 140) – na permissibilidade da pluralidade de conteúdo veiculado no
YouTube, vista a sua capacidade de amplificar a circulação de ideias e a de influenciar o debate
político.

Embora essa discussão não possa ser aprofundada neste espaço, parece que, em
princípio, o YouTube tem o direito de promover sua própria agenda política. Por outro lado, é
164

justo que ela não seja ocultada dos usuários, pois não existe censura neutra do ponto de vista
axiológico. Pela capacidade de influência na esfera pública que hoje essa rede social detém, é
urgente que ela revele seus valores ao público. Por isso a exigência do respeito ao devido
processo legal ganha relevo também como forma de forçar o YouTube a demonstrar, por meio
da motivação das sanções, o conteúdo efetivamente indesejado por ele.

Não obstante, mais do que a importância do bem envolvido em si, mais relevante para
a conclusão pela incidência das garantias relativas ao devido processo legal na relação com as
redes sociais é o impacto negativo que a negativa de acesso representa sobre o bem.

Ora, se um cidadão é excluído sem aviso do grupo de orações criado no Whatsapp por
fiéis de uma mesma Igreja, não parece correto afirmar que a decisão seria passível de revisão
judicial pelo fato de que o administrador do grupo estaria obrigado a oportunizar o contraditório
e motivar a exclusão, ainda que o caso envolva o exercício da liberdade religiosa. O fato é que
esta exclusão não compromete, por si só, o acesso do fiel à Igreja e à comunidade existente em
torno dela. De outra parte, se, por exemplo, o YouTube passa a excluir deliberadamente os
vídeos de uma Igreja que deve muito de sua popularidade à presença naquela rede social, ou se
bloqueia a sua conta sem respeito ao devido processo legal, a decisão da rede social parece
passível de revisão, pois o impacto negativo na divulgação de seu ideário é tremendo, o que
torna razoável a exigibilidade do contraditório e da motivação. Quer dizer, também aqui o poder
concentrado pela rede social face ao criador de conteúdo se revela decisivo.

6.4. Interpretação do contrato conforme o devido processo legal

Delineados os caracteres da relação jurídica entre o YouTube e os criadores de


conteúdo, sobressai uma nítida preferência pela proteção do direito dos criadores ao devido
processo legal em detrimento da autonomia da rede social para controlar como quer o conteúdo
veiculado na sua plataforma, sendo permitido concluir que, independentemente dos termos em
que versados o contrato – como mínimo – o YouTube não pode deliberadamente remover
conteúdo ou suspender contas sem a declaração de um motivo objetivo e sem que seja conferida
oportunidade de o usuário se defender.

Certo é, todavia, que a mais clara definição dos efeitos do devido processo legal
demanda, em primeiro lugar, a análise dos próprios termos do contrato proposto pelo YouTube
165

e a sua interpretação conforme o devido processo legal. Pode ser, afinal, que a própria rede
social tenha assumido prestações relativas ao devido processo legal, de modo que dispensável
o recurso direto ou indireto à norma constitucional para exigi-las. Além de ser a melhor técnica,
por preservar a autonomia privada da rede social no maior grau possível, tampouco se pode
ignorar que a intervenção estatal nas relações contratuais agora deve ser mínima na forma do
novel parágrafo único do art. 421do Código Civil inserido pela Lei n.º 13.874/19.

6.4.1. Regras, princípios, cláusulas gerais e conceitos indeterminados relativos a contratos de


adesão. Interpretação dos Termos de Serviço e Diretrizes da Comunidade do YouTube
conforme o devido processo legal

As cláusulas do contrato de adesão imposto como condição à participação na rede


social de streaming são obrigatórias tanto para os usuários quanto para a rede social. Os Termos
de Serviço e Diretrizes da Comunidade do YouTube vinculam tanto os criadores de conteúdo
quanto o YouTube. É o que determina o princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt
servanda).

Assim, se a rede social opta livremente por obrigar-se expressa ou implicitamente a


garantir prestações relacionadas à concretização do devido processo legal, tais como a
oportunização do contraditório e a motivação das decisões, é certo que, caso um usuário seja
punido sem que lhe tenha sido dada chance de se defender, ou caso falte motivação à punição,
restará caracterizado o inadimplemento do contrato.

O que sujeita a rede social à anulação da sua decisão e ao cumprimento forçado do


contrato, sem prejuízo da sua responsabilização pelo pagamento de perdas e danos, mais juros,
correção monetária e honorários advocatícios caso a questão seja levada ao Judiciário, tudo na
forma do art. 389 do Código Civil.

A princípio, no contexto indagado, a espécie de inadimplemento decorrente do


descumprimento de obrigações contratuais relativas ao devido processo legal é a mora (art. 394
do Código Civil) e não o inadimplemento absoluto, pois o seu cumprimento ainda se faz
possível mesmo que tardiamente (TEPEDINO, 2014, p. 696). De uma parte, o juízo de
possibilidade do cumprimento extemporâneo da prestação se faz a partir da perspectiva do
devedor, no caso, a rede social (ALVIM, 1980, p. 41 apud TEPEDINO, 2014, p. 697). Sem
166

embargo, ainda que persista a possibilidade da prestação do ponto de vista do devedor, a


caracterização do inadimplemento relativo em oposição ao inadimplemento absoluto,
pressupõe igualmente um juízo sobre a subsistência da utilidade da prestação para o credor,
posterior ao inadimplemento. A inutilidade da prestação traz o mesmo efeito de sua
impossibilidade, de modo que o desinteresse do credor na entrega da prestação em atraso, ainda
que possível, perfaz o bastante para caracterizá-lo (ALVIM, 1980, p. 48 apud TEPEDINO,
2014, p. 697).

É certo que, de maneira geral, tende a persistir o interesse dos criadores de conteúdo
em participar da rede social e disponibilizar suas produções, tendo em consideração tratar-se
muitas vezes de sua principal atividade econômica. Todavia, demonstrado concretamente esse
desinteresse, restará caracterizado o inadimplemento absoluto. Um exemplo de
inadimplemento absoluto seria o caso do criador de conteúdo que pretendesse fazer uma live
da final de um campeonato esportivo, mas tem o conteúdo retirado do ar desavisadamente
momentos antes da partida. O impacto de seu trabalho sobre o público, que na hipótese é
dependente da disponibilização do conteúdo em um espaço de tempo especificamente
delimitado – o transcorrer da partida – certamente restaria irremediavelmente prejudicado,
justificando o seu desinteresse no cumprimento forçado da prestação.

As prestações respeitantes ao devido processo legal na relação contratual, tais como a


oitiva do punido e a consideração de seus argumentos na decisão final, embora diversas,
compõem um mesmo feixo representativo de concretização de seu conteúdo, que deve ser
entendido indivisível, pois elas carecem de seu sentido pleno caso consideradas isoladamente.

6.4.2. Os deveres do YouTube

Vejamos os deveres relativos ao devido processo legal que podem ser extraídos do
contrato celebrado pelos criadores de conteúdo com o YouTube.

6.4.2.1. Comunicação da sanção, motivação e oportunização de defesa

Em seus Termos de Serviço, ao mesmo tempo em que se reserva o direito de suspender


ou rescindir a conta do usuário por violação do contrato, o YouTube assume expressamente as
167

obrigações de comunicar e motivar a suspensão/rescisão da conta, bem como a de possibilitar


ao usuário punido contestar as punições que lhe são aplicadas:

Suspensão e rescisão de conta


[...]
Rescisões e suspensões pelo YouTube por justa causa
O YouTube poderá suspender ou encerrar seu acesso, sua Conta do Google ou o
acesso da sua Conta do Google a todo o Serviço ou parte dele se (a) você violar este
Contrato de forma significativa ou repetida; (b) formos obrigados a fazê-lo para
cumprir um requisito legal ou um mandado; ou (c) acreditarmos que houve uma
conduta que cria (ou poderia criar) responsabilidade ou dano a qualquer usuário, a
terceiros, ao YouTube ou às nossas Afiliadas.

Rescisões pelo YouTube para alterações do serviço


O YouTube poderá encerrar seu acesso ou o acesso da sua Conta do Google a todo o
Serviço ou parte dele se acreditarmos, a nosso critério exclusivo, que a prestação do
Serviço para você não é mais comercialmente viável.

Aviso de rescisão ou suspensão


Enviaremos uma notificação especificando o motivo da rescisão ou suspensão, exceto
se acreditarmos que isso: (a) violaria a legislação ou o pedido de uma autoridade legal
ou poderia gerar responsabilidades legais para o YouTube ou nossas Afiliadas; (b)
prejudicaria uma investigação ou a integridade ou operação do Serviço; ou (c)
prejudicaria qualquer usuário, outro terceiro, o YouTube ou nossas Afiliadas. Nos
casos em que o YouTube precisar encerrar seu acesso para alterações no Serviço, você
terá tempo suficiente para exportar o Conteúdo do Serviço, sempre que razoavelmente
possível.

Efeito da suspensão ou rescisão da conta


Se sua Conta do Google for encerrada ou o acesso dela ao Serviço for restringido,
você poderá continuar usando alguns aspectos do Serviço sem uma conta, por
exemplo, o modo somente visualização, e este Contrato continuará a ser aplicado a
tais usos. Se você acreditar que sua Conta do Google foi encerrada por engano, envie
uma contestação usando este formulário.

As mesmas garantias são prometidas nos casos de remoção de conteúdo:


Seu Conteúdo e Conduta
[...]
Remoção de conteúdo pelo YouTube
Se acreditarmos que qualquer Conteúdo viole este Contrato ou pode causar danos ao
YouTube, nossos usuários ou terceiros, podemos remover ou excluir o Conteúdo a
nosso próprio critério. Enviaremos uma notificação especificando o motivo da nossa
ação, exceto se acreditarmos que isso: (a) violaria a legislação ou o pedido de uma
autoridade legal, ou poderia gerar responsabilidades legais para o YouTube ou nossas
Afiliadas; (b) prejudicaria uma investigação ou a integridade/operação do Serviço ou
(c) prejudicaria qualquer usuário, outro terceiro, o YouTube ou nossas Afiliadas.
Saiba mais sobre denúncias e aplicação de políticas, incluindo como fazer uma
contestação, na página Solução de problemas da nossa Central de Ajuda.
(YOUTUBE, 2019, on-line)
168

Da mesma forma, as Diretrizes da Comunidade do YouTube também o obrigam à


notificação motivada do usuário no caso de remoção de conteúdo, além da possibilidade de
contestar as sanções pertinentes:

Conceitos básicos sobre os avisos das diretrizes da comunidade


[...]
Os avisos das diretrizes da comunidade são emitidos quando nossos revisores recebem
denúncias sobre violações das regras de comportamento no YouTube, as diretrizes da
comunidade.
Às vezes, o conteúdo é removido por outros motivos que não sejam violações das
diretrizes da comunidade, como reivindicação por violação de privacidade de
terceiros ou por um mandado. Nesses casos, o usuário que enviou o vídeo não receberá
um aviso.

O que acontece se você receber um aviso


Se um aviso for emitido, informaremos você por e-mail, notificações no dispositivo
móvel ou no computador e nas configurações do canal. Também informaremos:
● qual conteúdo foi removido;
● quais políticas foram violadas (por exemplo, conteúdo adulto ou violência);
● como isso afeta seu canal;
● o que você pode fazer a seguir.
Se o conteúdo violar nossas diretrizes da comunidade, veja como isso afetará seu
canal:
Alerta
Entendemos que erros acontecem e que você não tem a intenção de violar nossas
políticas. Por isso, apenas um alerta é emitido na primeira ocorrência. Isso acontecerá
apenas uma vez, e esse alerta permanecerá no seu canal. Caso seu conteúdo viole as
diretrizes da comunidade novamente, você receberá um aviso. Se achar que
cometemos um erro, conteste o alerta.

Primeiro aviso
Se descobrirmos que seu conteúdo não seguiu nossas políticas pela segunda vez, você
receberá um aviso.

Isso significa que você não poderá tomar as seguintes ações durante uma semana:
● Enviar vídeos, histórias ou fazer transmissões ao vivo
● Criar miniaturas personalizadas ou postar na comunidade
● Criar ou editar playlists e adicionar colaboradores a elas
● Adicionar ou excluir playlists da página de exibição usando o botão "Salvar"

Todos os privilégios serão restabelecidos automaticamente após esse período, mas o


aviso continuará no canal por 90 dias.
169

Segundo aviso
Se você receber um segundo aviso no mesmo período de 90 dias da primeira
ocorrência, não poderá postar conteúdo por duas semanas. Se não houver outros
problemas, todos os privilégios serão restaurados automaticamente depois desse
período, mas cada aviso levará 90 dias para expirar depois de ser emitido.

Terceiro aviso
Se você receber três avisos em 90 dias, seu canal será removido permanentemente do
YouTube. Não se esqueça de que cada aviso expira 90 dias depois de ser emitido e
que a exclusão do conteúdo não o remove.

O que fazer se você receber um aviso


Queremos ajudar você a continuar no YouTube. Para isso, é importante:
● conhecer nossas diretrizes da comunidade para garantir que seu conteúdo siga
nossas políticas;
● entrar em contato com nossa equipe caso seu canal receba um aviso e você
acredite que cometemos um erro. [..].
O YouTube também se reserva o direito de restringir a criação de conteúdo de acordo
com os próprios critérios. Caso sua conta tenha sido restringida na plataforma ou
impossibilitada de usar algum dos nossos recursos, você não poderá usar outro canal
para contornar essas penalidades. Essa regra se aplicará a todo o período em que a
restrição estiver ativa. Consideramos a violação dela um descumprimento dos nossos
Termos de Serviço, o que pode levar ao encerramento da sua conta. (YOUTUBE,
2019b, on-line).

O mesmo se diga de sua Política de Monetização:

Solicitar revisão humana de vídeos marcados como "Não é adequado para a maioria
dos anunciantes"
Se o conteúdo de um vídeo que você enviou for identificado como não adequado para
anunciantes, um cifrão amarelo ou aparecerá ao lado dele.

Um vídeo será marcado como "Não adequado para a maioria dos anunciantes" no
Gerenciador de vídeos nestes casos:

Nossos sistemas automatizados indicam que seu conteúdo não é adequado para todas
as marcas.
Observação: caso acredite que nossos sistemas cometeram um erro, você poderá
solicitar uma revisão humana. As decisões tomadas pelo especialista nesse processo
ajudam a melhorar nossos sistemas ao longo do tempo. Excluir e reenviar o vídeo não
resolverá o problema. O conteúdo pode ser enviado para revisão somente uma vez, e
não é possível contestar a decisão do especialista. Saiba mais sobre como as revisões
de adequação para anúncios funcionam. (YOUTUBE, 2019c, on-line).
170

Ora, se o YouTube deixa de notificar o criador de conteúdo acerca dos motivos para a
suspensão/rescisão de sua conta, remoção/desmonetização34 do conteúdo postado, ou deixa de
conferir a oportunidade de contestação da punição, ele estará inadimplindo o contrato existente
entre as partes, sujeitando-se aos efeitos do inadimplemento ditados pelo art. 389 do Código
Civil.

Há quem defenda35 que, mesmo que ausente disposição contratual neste sentido,
enquanto provedores de aplicações de internet, as redes sociais estariam obrigadas a informar
o usuário dos motivos por detrás da remoção de conteúdo por se tratar de uma obrigação ex
lege determinada pelo art. 20 do Marco Civil da Internet, que assim dispõe:

Art. 20. Sempre que tiver informações de contato do usuário diretamente responsável
pelo conteúdo a que se refere o art. 19, caberá ao provedor de aplicações de internet
comunicar-lhe os motivos e informações relativos à indisponibilização de conteúdo,
com informações que permitam o contraditório e a ampla defesa em juízo, salvo
expressa previsão legal ou expressa determinação judicial fundamentada em
contrário.
Parágrafo único. Quando solicitado pelo usuário que disponibilizou o conteúdo
tornado indisponível, o provedor de aplicações de internet que exerce essa atividade
de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos substituirá o conteúdo
tornado indisponível pela motivação ou pela ordem judicial que deu fundamento à
indisponibilização.

Não parece ser uma interpretação adequada do dispositivo. Na verdade, o art. 20 do


Marco Civil da Internet regula remoções de conteúdo determinadas por terceiros que não a
própria rede social. Caso das remoções determinadas por ordem judicial específica, na forma
do art. 19, ou das remoções determinadas por participante de material contendo cenas de nudez
ou atos sexuais de caráter privado na forma do art. 21. Assim, o intuito do legislador com a
obrigação instituída pelo art. 20, como expressa literalmente o seu caput, é instrumentalizar a
defesa do usuário afetado, em juízo e contra esses terceiros, e não contra a própria rede social,
que, em especial no caso da remoção por ordem judicial, sequer poderia deliberar sobre a
continuidade da veiculação do conteúdo.

34
“Desmonetizado” é o termo que identifica conteúdo impedido de gerar receitas publicitárias para o seu criador
em virtude de sua inadequação às políticas de publicidade do YouTube. Para ganhar dinheiro com anúncio
publicitários veiculados durante a exibição de seus vídeos os criadores de conteúdo devem ter acesso aos
chamados “recursos de monetização” da plataforma. Para tanto, conforme o contrato, é necessária a sua adesão
ao Programa Parcerias do YouTube, que faz uma série de exigências relativas ao tipo de conteúdo passível de
veicular anúncios publicitários (Cf. YOUTUBE, 2019c, on-line).
35
Cf. GOMES, 2019, on-line; GONÇALVES, 2017, p. 102-103.
171

O fundamento legal da motivação das sanções pela rede social na verdade é o princípio
do pacta sund servanda. Ainda que não expressamente assumida, essa obrigação decorre
naturalmente do fato de a aplicação de sanções convencionais pressupor a ocorrência de um
antecedente previsto contrato. O poder de punir conferido pelo contrato não é puramente
potestativo36. O YouTube não pode suspender o usuário ou remover seu conteúdo por conduta
que não seja acertada contratualmente como motivo para tanto.

O fato é que se a rede social não demonstra o porquê de a conduta ter sido reputada
lesiva ao contrato não se pode saber se ela está efetivamente exercendo legitimamente um
direito previsto no acordo, ou se está abusando de sua posição jurídica. Por isso o poder de
punir se conecta logicamente ao dever de explicitação de um motivo.

Além disso, o detalhamento no contrato das condutas passíveis de punição, gera a


legítima expectativa no aderente de que as suas ações dentro da plataforma que não se adequem
aos tipos puníveis são permitidas. Por isso a penalidade aplicada há de ser justificada também
por uma exigência da cláusula geral da boa-fé objetiva, que é prevista no art. 113 do Código
Civil como cânone hermenêutico dos negócios jurídicos; no seu art. 187 como vetor restritivo
do exercício de direitos; e no seu art. 422 como standard de comportamento probo e leal, impõe
que o negócio seja interpretado e executado conforme a confiança gerada reciprocamente entre
as partes por seus atos e declarações de vontade, permitindo a conclusão pela existência de
deveres anexos ao regulamento contratual, dentre os quais destaca-se a proibição do
comportamento contraditório das partes contratantes (venire contra factum proprium)
(MARTINS COSTA, 2008 p. 400; SCHREIBER, 2018 pp. 405-406). A sua aplicação no caso
veda à rede social que abandone, no exercício de seus poderes contratuais, a expectativa gerada
por sua declaração de vontade anterior, consistente na autolimitação de sua faculdade de punir
as violações do ajuste.

Pelas mesmas razões, a prática pode ser reputada abusiva e, portanto, ilícita na forma
do art. 6º, IV do Código de Defesa do Consumidor.

36
Quanto às cláusulas dessa natureza, o Superior Tribunal de Justiça proferiu a seguinte orientação: “O conteúdo
puramente potestativo do contrato impôs a uma das partes condição, apenas e tão-somente, de mero espectador,
em permanente expectativa, enquanto dava ao outro parceiro irrestritos poderes para decidir como bem lhe
aprouvesse. Disposições como essa agridem o bom senso e, por isso, não encontram guarida em nosso direito
positivo. Entre elas está a chamada cláusula potestativa. É estipulação sem valor, porque submete a realização do
ato ao inteiro arbítrio de uma das partes” (STJ, 2002, on-line).
172

As Diretrizes da Comunidade do YouTube, por exemplo, vedam conteúdo que reflita:


nudez ou conteúdo sexual; conteúdo prejudicial ou perigoso; incitação ao ódio; conteúdo
explícito ou violento; assédio e bullying virtual; spam, metadados enganosos e golpes; ameaças;
lesões a direitos autorais; ofensa a privacidade; falsificação de identidade; riscos à segurança
(YOUTUBE, 2019b, on-line).

A natureza desse tipo de conteúdo vedado é tratada em maior detalhe na cláusula


“Políticas do YouTube”, que integra o contrato.

A nudez e o conteúdo sexual vedados, por exemplo, são assim esclarecidos:

Políticas de nudez e conteúdo sexual


Não é permitido publicar no YouTube conteúdo explícito com o objetivo de satisfação
sexual (como pornografia). Vídeos que apresentem conteúdo fetichista serão
removidos ou conterão restrições de idade. Na maioria dos casos, a exibição de
fetiches violentos, explícitos ou humilhantes é proibida no YouTube.
Se você encontrar conteúdo que viola essa política, faça uma denúncia. Acesse este
link para ver instruções sobre como fazer isso. Caso queira denunciar muitos vídeos,
comentários ou o canal de um usuário como um todo, acesse nossa ferramenta de
denúncia.
É proibida a exibição de conteúdo sexualmente explícito com menores e que mostre
a exploração sexual de pessoas dessa faixa etária. Nossa equipe denuncia imagens de
abuso sexual infantil ao Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas,
que trabalha com órgãos globais de cumprimento da lei.

O que isso significa para você


Publicações que apresentam os seguintes tipos de conteúdo:
Não publique conteúdo no YouTube caso ele se encaixe em algum dos itens abaixo.
● Conteúdo que exiba genitálias, seios ou nádegas (cobertos ou descobertos)
com o propósito de satisfação sexual
● Pornografia que exiba atos sexuais, genitálias ou fetiches com o propósito de
satisfação sexual (YOUTUBE, 2019c, on-line).

Jás as suas Diretrizes de Conteúdo Adequado para Publicidade negam a possibilidade


de se gerar receita publicitária com conteúdo que contenha: linguagem imprópria; violência;
conteúdo adulto; atos perigosos ou nocivos; conteúdo perigoso; conteúdo ofensivo e
degradante; drogas recreativas e conteúdo relacionado a drogas; conteúdo relacionado a tabaco;
conteúdo relacionado a armas de fogo; assuntos polêmicos e eventos delicados; temas adultos
em conteúdo para a família (YOUTUBE, 2019c, on-line).

As espécies de conteúdo inadequado à publicidade são esclarecidas por exemplos ditos


não exaustivos pela própria rede social. Assim é tratado o tópico “Conteúdo perigoso”:
173

Conteúdo perigoso
Conteúdo que incita ódio, promove discriminação, menospreza ou humilha um
indivíduo ou grupo de pessoas com base nos itens a seguir não é adequado para
publicidade:

• Raça
• Origem étnica
• Nacionalidade
• Religião
• Deficiência
• Idade
• Status de veterano
• Orientação sexual
• Identidade de gênero
• Qualquer outra característica associada à discriminação ou marginalização
sistêmica
Conteúdo de comédia ou que apresenta uma sátira pode ser uma exceção. Declarar a
intenção cômica de um conteúdo não é o suficiente, e ele ainda pode ser considerado
como não adequado para publicidade.

Exemplos (não exaustivos)

Categoria
• Conteúdo que incita ódio, promove discriminação, deprecia ou humilha

Limitado ou sem anúncios


• Conteúdo que promove, exalta ou tolera a violência contra outras pessoas
• Conteúdo que incentiva os outros a acreditar que uma pessoa ou um grupo é
desumano, inferior ou digno de ódio
• Conteúdo que promove grupos hostis ou produtos deles

Categoria
• Promoção de terrorismo e extremismo violento
Limitado ou sem anúncios
• Conteúdo produzido por grupos terroristas ou como forma de apoio a eles
• Conteúdo que promove atos terroristas, incluindo recrutamento
• Conteúdo que celebra ataques terroristas (YOUTUBE, 2019c, on-line).
174

O contrato vai além no que ao julgamento da adequação de um conteúdo à publicidade,


explicitando os critérios que são considerados no enquadramento do conteúdo às categorias de
inadequação:

O que os revisores observam


Cada parte do conteúdo é cuidadosamente assistida e avaliada por nossos especialistas
que analisam todo o conteúdo relacionado ao vídeo, incluindo:
• Conteúdo do vídeo
• Título
• Miniatura
• Descrição
• Tags

Como os revisores avaliam o conteúdo


Nossos revisores avaliam o vídeo e o conteúdo relacionado como um todo. A
adequação de anúncios de cada vídeo pode mudar dependendo do contexto. Pensando
nisso, nossos revisores não recebem uma lista de verificação de quantos palavrões,
níveis de violência ou quanto conteúdo polêmico existe em um vídeo. Em outras
palavras, é possível ver um vídeo com alguns palavrões que receba anúncios,
enquanto um vídeo sem palavrões, mas com uma quantidade considerável ou
frequente de conteúdo violento, talvez não receba.
Em vez de uma lista de verificação, os revisores usam as diretrizes de conteúdo
adequado para publicidade, combinadas com os seguintes princípios, para tomar uma
decisão:
• Contexto
• Foco
• Tom
• Realismo
• Teor
O princípio mais importante é o contexto. Qual é a intenção por trás do seu vídeo:
informar e educar ou chocar e provocar? Por exemplo, se for para informar e educar,
inclua o contexto no seu título, miniaturas, descrição e tags. Esse contexto ajuda os
revisores na tomada de decisão sobre a monetização. Sem contexto, os revisores
podem não conseguir avaliar o conteúdo com precisão. (YOUTUBE, 2019c, on-line).

Ora, cabe sempre ao YouTube demonstrar o porquê de a conduta do criador de


conteúdo ter sido considerada ofensiva a essas vedações, inclusive demonstrando a
operacionalização dos critérios de julgamento definidos no contrato e também rebatendo os
argumentos de defesa trazidos pelo criador na hipótese de contestação. De outro modo, ele
estará abusando de seu poder contratual, exercendo-o em desacordo com os critérios que ele
próprio elegeu na redação do contrato de adesão. O que sujeita a sua decisão a revisão judicial
(v. tópico 6.5, para maior detalhamento).
175

O mesmo se diga da eventual definição no contrato dos critérios a serem considerados


na dosimetria das punições. Se a rede social define circunstâncias a serem consideradas na
definição da intensidade da sanção, a eles se vincula, de modo que não pode deixar de
demonstrar na motivação como elas foram consideradas na seleção da reprimenda adequada.

Veja-se, neste exato sentido, que nas Diretrizes da Comunidade o próprio YouTube
revela os critérios considerados na fixação da gravidade das sanções aplicadas:

Se o comportamento de um criador de conteúdo do YouTube dentro ou fora da


plataforma prejudicar usuários, funcionários, a comunidade ou o ecossistema,
responderemos com base em alguns fatores, como a ofensividade das ações e a
existência de um padrão prejudicial nas atitudes.
Nossa resposta poderá ser a suspensão dos privilégios desse criador ou até mesmo o
encerramento da conta (YOUTUBE, 2019b, on-line).

A rede social também distingue condutas conforme a gravidade ao prescrever sanções


específicas para violações ditas “severas” de suas diretrizes, como se vê nos seguintes tópicos
das Políticas do YouTube:

Violações severas ou graves das políticas do YouTube


Os criadores de conteúdo que prejudicam amplamente a comunidade do YouTube
podem perder acesso aos privilégios e benefícios de criador de conteúdo. As ações
proibidas incluem:
● Violar de maneira severa, grave ou repetida nossas diretrizes da comunidade.
● Tentar gerar receita com vídeos que violam de maneira severa ou grave nossas
diretrizes de conteúdo adequado para publicidade.
Sabemos que existem nuances nas diretrizes da comunidade e que cada situação é
única. Por exemplo, podemos considerar que o conteúdo apresenta uma violação
severa ou grave das nossas diretrizes da comunidade se o criador fizer uma brincadeira
cruel que traumatize pessoas, promover violência ou ódio contra um grupo,
demonstrar crueldade ou explorar a dor alheia para ganhar visualizações ou inscritos.
O contexto adicional de um vídeo pode nos ajudar a entender a história e a intenção
por trás de conteúdo desse tipo.

Repercussões dos danos à comunidade do YouTube


Se um criador de conteúdo enviar qualquer tipo de conteúdo que viole severamente
nossas diretrizes da comunidade, podemos suspender os anúncios no canal, cancelar
o acesso dele ao programa de criadores de conteúdo e impedir que os vídeos apareçam
na seção "Em alta" por um período. No entanto, se a ação for grave, repetida ou
combinada com más intenções, o criador de conteúdo pode enfrentar repercussões
mais rigorosas ou mais duradouras.

As seguintes penalidades podem ser aplicadas temporariamente ou indefinidamente


com base na gravidade das ações em análise:
176

Programas de geração de receita premium, promoção e parcerias de desenvolvimento


de conteúdo: os criadores de conteúdo podem ser removidos do Google Preferred e o
contrato deles com o YouTube Originals pode ser suspenso, cancelado ou rescindido.
Privilégios de monetização e de suporte ao criador de conteúdo: os canais do criador
de conteúdo podem perder a capacidade de veicular anúncios e gerar receita. Além
disso, ele pode ser removido do Programa de Parcerias do YouTube, perdendo o
acesso ao suporte e aos YouTube Spaces.
Recomendações de vídeos: os criadores de conteúdo podem perder a qualificação para
serem recomendados no YouTube. Com isso, eles não poderão aparecer na página
inicial, na guia "Em alta" ou nas recomendações de "Assistir a seguir".
As repercussões podem variar de acordo com o caso. Nossa equipe de especialistas
em políticas analisará cada caso e fornecerá aconselhamento e notificações para os
criadores de conteúdo que perderem privilégios devido a comportamentos
inadequados (YOUTUBE, 2019b, on-line).

Há também de se destacar que, ao escolher graduar as sanções conforme a gravidade


das infrações, o YouTube acabou assumindo um dever de proporcionalidade na sua aplicação
que é manifestação do devido processo legal substancial. Por outro lado, ainda que não
houvessem tais previsões expressas, o YouTube ainda assim estaria obrigado a oferecer
respostas proporcionais ao comportamento violador do contrato, porque o excesso punitivo
configura abuso de posição contratual vedado pelo princípio da boa-fé objetiva (art. 187 do
Código Civil) e prática abusiva proibida pelo art. 6º, IV do Código de Defesa do Consumidor.

6.4.2.2. Transparência na definição do conteúdo vedado pela rede social

Embora o foco deste trabalho seja desvendar precipuamente o conteúdo da dimensão


formal do devido processo legal na relação entre criadores de conteúdo e redes sociais de
streaming, parece inevitável tecer algumas palavras sobre a dimensão substancial no que toca
à definição das condutas vedadas.

Faz-se necessário discutir o dever de transparência da rede social na definição do


conteúdo vedado, pois se as condutas que ensejam sanção são definidas arbitrariamente, perdem
sentido as garantias processuais de defesa. Os limites formais de controle do poder são pouco
efetivos sem a consideração de limites materiais, por isso a garantia de que as infrações estejam
previamente tipificadas em normas sancionadoras integra o devido processo legal (Cf.
OSÓRIO, 2019, pp. 228-229).
177

A indefinição das condutas vedadas pelo contrato confere uma desvantagem desleal à
rede social, que se vê livre para censurar qualquer conteúdo alegando inadimplemento, de nada
adiantando o exercício de defesas formais por falta de paradigma objetivo para a demonstração
da não subsunção da conduta praticada.

O direito ao devido processo legal em sua dimensão substancial, portanto, aplicado à


relação jurídica entre criadores de conteúdo e as redes sociais, faz exigível a descrição de forma
clara em seus Termos de Serviço e Diretrizes da Comunidade quais são as condutas puníveis e
quais são as sanções correspondentes.

Em sendo aplicável o Código de Defesa do Consumidor à relação, essa exigência


decorre diretamente do seu art. 54, §3º, que determina que as cláusulas de contrato de adesão
sejam redigidas de modo claro, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor, bem
como do seu art. 54, 4§º, que dita que as cláusulas que implicarem limitação de direito do
consumidor deverão ser redigidas de modo a permitir sua imediata e fácil compreensão.

Também o art. 51, IV do Código de Defesa do Consumidor preconiza serem nulas de


pleno direito as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que
estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em
desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade. O mesmo se diga
do art. 6º, IV do Código de Defesa do Consumidor, que veda práticas abusivas por parte dos
fornecedores de serviços.

Assim, são nulas as cláusulas que conferem à rede social um poder irrestrito de censura
do conteúdo público, pois a indefinição do conteúdo vedado na plataforma concede à rede social
poder irrestrito de censura dos usuários e do conteúdo nela veiculado, contrariando a
expectativa gerada pelo fornecimento de um espaço público de expressão.

Ainda que se compreenda que a relação entre criadores de conteúdo e redes sociais de
streaming não é de consumo, o cenário não se modifica, pois, o dever deriva igualmente do
sinalagma, da boa-fé objetiva e da função social do contrato.

A indefinição prévia das condutas puníveis é injusta – como dito – e fere o equilíbrio
contratual, pois confere uma desvantagem desproporcional à rede social ao sujeitar a restrição
de direitos do usuário basicamente à vontade da rede social, que se torna capaz de determinar
unilateralmente quando a conduta do usuário tem o caráter de inadimplemento.
178

Essa falta de transparência contraria os ditames da boa-fé objetiva, pois gera uma
tendência ao abuso de posição contratual pela rede social, impossibilitando assim o
desenvolvimento da mútua confiança entre as partes, já que o usuário jamais estará seguro de
que a sua conduta não poderá ser reputada como infrativa do contrato.

No quadro geral, essa insegurança ofende a função social do contrato, pois prejudica
o interesse da comunidade na manutenção da rede social como uma plataforma para a livre
circulação de ideias e o livre exercício de atividades econômicas37.

Não parece, contudo, que as redes sociais de streaming estejam sujeitas às mesmas
vinculações do Estado no que toca à tipificação de condutas. Não se exige do contrato a
tipicidade estrita associada à previsão em abstrato das infrações penais. Aliás, mesmo nas
relações com entes estatais, em que os direitos fundamentais se manifestam com maior
intensidade, certo grau de abertura semântica na definição de condutas puníveis é aceitável.

Como afirma com autoridade Fábio Medina Osório:

Não há dúvidas de que conceitos ou termos jurídicos indeterminados, cláusulas gerais


e elementos normativos semanticamente vagos ou ambíguos podem ser utilizados na
tipificação de condutas proibidas, seja no Direito Penal, seja no Direito
Administrativo Sancionador, neste com maior frequência. Trata-se, inclusive, de um
problema de linguagem, de inevitável abertura da linguagem normativa, com todas
suas potencialidades.
Dentre as possíveis consequências da cláusula constitucional do devido processo
legal, destaca-se a ideia de que as normas sancionadoras não podem ser
excessivamente vagas, pois devem ser redigidas com a suficiente clareza e precisão,
dando justa notícia a respeito de seu conteúdo proibitivo, sem permitir espaços
demasiado ambíguos ou obscuros.
Veja-se que o alcance do tipo há de ser, efetivamente, suficiente para cobrir algum
comportamento ilícito, dando aos administrados e jurisdicionados uma previsibilidade
básica, que se repute razoável e adequada às circunstâncias e peculiaridades da relação
punitiva. (2019, p. 232).

Nessa linha, parece suficiente que a rede social garanta a previsibilidade básica do
conteúdo punível, cumprindo as funções de preservar a expectativa legítima do usuário e o
intuito pedagógico da antecipação do modelo de conduta indesejada. Assim, não pode, por
exemplo, vedar conteúdo que atente “contra a moral e os bons costumes”, mas pode, como faz

37
Assim dita o Enunciado n.º 23 CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil: “A função social do contrato,
prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz
o alcance desse princípio, quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade
da pessoa humana”. 

179

o YouTube, “vedar Pornografia que exiba atos sexuais, genitálias ou fetiches com o propósito
de satisfação sexual” (YOUTUBE, 2019c, on-line).

Por outro lado, um desafio que o YouTube (não) tem enfrentado é a proliferação de
canais que abusam da vagueza de suas Diretrizes da Comunidade para praticarem condutas a
princípio vedadas.

Uma reportagem do site britânico Wired revelou em fevereiro de 2019 que uma rede
de pedofilia atuava às claras dentro da plataforma. Vídeos que exibiam as nádegas, roupas
íntimas e genitais de crianças recebiam milhões de visualizações e estavam sendo monetizados
pelo algoritmo da plataforma; ou seja, eles veiculavam anúncios publicitários e seus criadores
recebiam dinheiro por isso. Ocorre que os vídeos não eram explicitamente pornográficos e
muitos eram até mesmo postados pelas próprias crianças. Eram vídeos de crianças brincando
na piscina, tomando sorvete ou praticando ginástica, mas cujas caixas de comentários eram
inundadas por comentários de pedófilos interagindo entre si, trocando links de material
pornográfico, e, principalmente, marcando com timestamps (marcas temporais) os frames do
vídeo em que apareciam a virilha, os mamilos ou outras partes do corpo das crianças. Isto não
bastasse, após abrir o primeiro vídeo do gênero o algoritmo da plataforma recomendava ao
usuário uma sequência infinita de outros vídeos do mesmo naipe, particularmente populares
com pedófilos (ORPHANIDES, 2019, on-line), o que foi chamado de buraco da minhoca do
YouTube para uma rede pedofilia (“YouTube’s wormhole into paedophilia ring”) (BRODKIN,
2019, on-line).

Basicamente, o algoritmo do YouTube não só estava permitindo a veiculação, a


promoção e a monetização do conteúdo, como também estava facilitando a conexão e a
interação entre pedófilos (BRODKIN, 2019, on-line). O escândalo tomou grandes proporções
porque os os próprios anunciantes se revoltaram contra o YouTube, que passou finalmente a
agir, excluindo mais de 400 canais, deletando contas e desabilitando comentários em dezenas
de milhões de vídeos (BRODKIN, 2019, on-line).

Outra questão recente que tem gerado polêmica com relação à indeterminação do
conteúdo vedado na plataforma, é a cláusula inserida nos Termos de Serviço do YouTube em
dezembro de 2019, que autoriza a rede social a excluir canais “não comercialmente viáveis”
(not commercially viable):

Rescisões pelo YouTube para alterações do serviço


180

O YouTube poderá encerrar seu acesso ou o acesso da sua Conta do Google a todo o
Serviço ou parte dele se acreditarmos, a nosso critério exclusivo, que a prestação do
Serviço para você não é mais comercialmente viável. (YOUTUBE, 2019, on-line).

Alguns usuários e sites de notícias interpretaram a inclusão como uma autorização


para a rede social deletar qualquer conta ou canal que não estivesse gerando renda o suficiente
para ela.

O temor é o de que a cláusula represente um passe livre para o YouTube censurar


conteúdo, conferindo-lhe discricionariedade para bloquear o que quer que, na sua opinião,
manche a sua reputação perante anunciantes, mídia ou governos.

Diante da polêmica, em um tweet de 11 novembro de 2019 a conta do Team YouTube,


responsável pelo site, afirmou o seguinte:

To clarify, there are no new rights in our ToS to terminate an account bc it’s not
making money. As before, we may discontinue certain YouTube features or parts of
the service, for ex., if they're outdated or have low usage. This does not impact
creators/viewers in any new ways. (@TEAMYOUTUBE, 2019).

Ou seja, segundo a própria rede social, essa alteração dos Termos de Serviço não lhe
confere poder de encerrar uma conta porque ela não está gerando renda. Diz a rede social que,
como já previa antes o contrato, a cláusula significa apenas que eles podem descontinuar certas
partes ou recursos da plataforma, caso estejam ultrapassados ou tenham pouca utilização.

Ainda assim, é difícil prever como a rede social aplicará essa disposição na prática,
mesmo por que, se este era verdadeiramente o único intuito da plataforma, a redação da cláusula
foi tremendamente infeliz.

6.4.2.3. (Des)necessidade de consideração de todos os argumentos da defesa

Voltando ao tema do contraditório e da ampla defesa, questiona-se se, no julgamento


da contestação de uma punição, a rede social teria obrigatoriamente de considerar na motivação
de sua decisão todos os argumentos apresentados pela defesa do criador de conteúdo.

A princípio, se a rede social não faz essa ressalva deste gênero quando assume
expressamente a obrigação de motivar suas decisões, a cláusula há de ser interpretada no sentido
181

mais favorável ao aderente por força dos arts. 113, IV e 423 do Código Civil, e da cláusula
geral da boa-fé objetiva (art. 113, caput do Código Civil,), que, atuando como comando
hermenêutico, ditará a interpretação do contrato no sentido mais correspondente à promessa de
garantia do devido processo legal, que gera a legítima expectativa de que defesa permitida seja
efetiva.

Vale dizer, contudo, que, embora o Código de Processo Civil contenha norma expressa
determinando a nulidade da sentença judicial que não enfrenta todos os argumentos capazes,
em tese, de infirmar a sua conclusão, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido
de que “O julgador não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes,
quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão”. Sendo que a novel
prescrição trazida pelo art. 489 do Código de Processo Civil veio apenas “confirmar a
jurisprudência já sedimentada pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, sendo dever do
julgador apenas enfrentar as questões capazes de infirmar a conclusão adotada na decisão
recorrida”. (STJ, 2016).

Sem prejuízo das críticas que o precedente merece38, o ponto é que, a insistir a
jurisprudência nessa compreensão nas relações verticais com o Estado, nas quais os direitos
fundamentais incidem com muito mais intensidade, é certamente esperado que o entendimento
seja repetido nas relações entre particulares. Assim é que estaria adimplida a obrigação de
motivação quando a rede social considerar na motivação apenas os argumentos suficientes para
o afastamento na decisão no sentido por ela proposto, ainda que nem todos os argumentos do
criador de conteúdo sejam considerados.

6.4.2.4. Possibilidade de contraditório “ex post”

Como visto, o YouTube confere ao usuário a possibilidade de contestar as punições


após a sua aplicação. Isto não é um problema. O contraditório não há de ser necessariamente
prévio à retirada do conteúdo, desde que esta não seja irreversível, cabendo ao YouTube
preservar no servidor o vídeo censurado até o final do processo ou do prazo de 30 dias para a

38
A este respeito, confira-se: BECKER, Rodrigo; TRIGUEIRO, Victor. O STJ e a fundamentação das decisões.
Jota. [S.l.], 29 set. 2016, on-line. Disponível em: < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-cpc-
nos-tribunais/cpc-nos-tribunais-o-stj-e-fundamentacao-das-decisoes-29092016>. Acesso em 22 jan. 2020.
182

contestação. Com efeito, a suspensão preventiva do exercício de direitos é figura reconhecida


pelo ordenamento jurídico brasileiro como forma de evitação do alargamento dos danos
causados por conduta ofensiva a direitos de terceiros, desde que garantido o contraditório
diferido.

Temos como exemplo as prisões temporárias e preventivas do processo penal; a tutela


antecipada inaudita altera parte do processo civil; e o afastamento provisório das funções no
processo administrativo disciplinar.

Não fere, portanto, o devido processo legal a rede social que opta por primeiro
bloquear o acesso ao conteúdo dito infringente, para então possibilitar ao seu criador de
conteúdo oferecer a sua defesa. Claro é, por outro lado, que a demora na análise da contestação
causa pode ampliar os danos ao criador de conteúdo punido injustamente, por isso há de se
pensar em uma duração razoável para o processo.

6.4.2.5. Duração razoável do processo

Quanto a este ponto, parece claro que o art. 5º, LXXVIII, que positiva o direito à
duração razoável do processo, dirige-se apenas a entes estatais ao afirmar que a todos é
assegurado, “no âmbito judicial e administrativo” a “razoável duração do processo e os meios
que garantam a celeridade de sua tramitação”. Mas a necessidade de velocidade no julgamento
da defesa dos criadores de conteúdo encontra no caso outros fundamentos de ordem
constitucional.

Em primeiro lugar, como visto, a própria noção de devido processo legal já traz
embutida a necessidade de seu encerramento em tempo razoável. Segue atual a lição de Ruy
Barbosa de que “A justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta”.

Por outro lado, há de se considerar a lesão à liberdade de expressão e ao exercício de


direitos políticos que a demora no retorno do conteúdo à plataforma pode acarretar, de modo
que estes são também fundamentos para a necessidade de se conferir tempo razoável ao
processo. Pela efemeridade com que as pessoas e os temas ganham e perdem relevância no
contexto histórico atual, a carreira de um youtuber pode ser muito prejudicada em uma questão
de dias. Retorno aqui ao exemplo do produtor de conteúdo que dedica o seu canal ao trato de
183

temas políticos, que se vê impossibilitado de veicular o material criado na semana da votação


do impeachment ou antes do segundo turno das eleições.

Veja-se, sobre a importância particular do tempo no mundo atual veloz e digitalizado,


que, ao julgar liminar proposta por um partido de extrema-direita da Alemanha que pedia a
suspensão dos efeitos de uma suspensão de conta aplicada pelo Facebook, ao deferir o pedido
o BVerfGE reconheceu como razão de decidir a importância destacada da rede social para a
disseminação de mensagens políticas e a drástica diminuição da visibilidade do partido nas
eleições para o Parlamento Europeu caso a suspensão aplicada às suas vésperas fosse mantida
(TUCHFELD, 2019, on-line).

O YouTube não informa o prazo em que as contestações são analisadas, embora fixe
o prazo de 30 dias para o criador de conteúdo se defender de avisos por violação a diretrizes da
comunidade: “ Você só pode contestar em até 30 dias após a emissão do alerta ou aviso”
(YOUTUBE, 2019).

Embora 30 dias sejam uma eternidade no mundo digital, não deixa de ser um
parâmetro temporal objetivo para ser aferida a inércia da rede social. Assim é que, como
mínimo, o YouTube ofende a duração razoável do processo se não responder motivadamente à
contestação em 30 dias. Sem embargo, em casos específicos como o julgado na Alemanha,
pode o usuário recorrer ao Judiciário pedindo a suspensão da medida até uma resposta pela rede
social.

6.4.2.6. “Non reformatio in pejus”. (Im)possibilidade de piora da situação do criador de


conteúdo que contesta a punição

O próprio YouTube assume expressamente a obrigação de não piorar a situação


daquele que contesta suas punições. É o que consta de suas Diretrizes da Comunidade.

Confira-se:

Depois de enviar uma contestação


Você receberá um e-mail do YouTube informando o resultado da solicitação de
contestação. Em seguida, uma destas ações ocorrerá:
● Se considerarmos que seu vídeo seguiu nossas diretrizes da comunidade, ele
será reintegrado, e o aviso será removido da conta. Se você contestar um alerta
e essa contestação for concedida, na próxima ofensa você receberá um alerta.
184

● Se considerarmos que seu conteúdo segue nossas diretrizes da comunidade,


mas não é apropriado para todos os públicos, aplicaremos uma restrição de
idade. Se for um vídeo, ele não ficará visível para usuários que estejam
desconectados, forem menores de 18 anos ou que tenham o Modo restrito
ativado. Se for uma miniatura personalizada, ela será removida.
● Se considerarmos que seu vídeo viola nossas diretrizes da comunidade,
manteremos o aviso, e o vídeo continuará fora do site. Não há penalidade
adicional para contestações rejeitadas.
É possível contestar cada aviso apenas uma vez (YOUTUBE, 2019c, on-line).

Ainda que essa obrigação não houvesse sido expressamente assumida, a vedação à
piora da situação do recorrente poderia ser extraída do princípio da boa-fé objetiva caso a
contestação de punições tenha sido de qualquer modo incentivada pela rede social. O ponto é
que a contestação de punições também é benéfica à rede social, pois serve para aprimorar suas
práticas de autorregulação. Aprimoramento este que objetiva, não só promover uma plataforma
saudável para seus usuários, mas também torná-la mais atraente para anúncios publicitários.

O próprio YouTube admite a possibilidade de que sejam cometidos erros na remoção


de conteúdo, ao mesmo tempo em que menciona a possibilidade de contestação (“Sabemos que
às vezes cometemos erros. Se você acredita que seu vídeo não viola as diretrizes da comunidade
e foi removido por engano, é possível contestar o aviso”) (YOUTUBE, 2019b, on-line), o que
pode ser interpretado como um convite a contestar. Mas ainda mais evidente como incentivo às
contestações é o tópico do contrato denominado “Por que as revisões humanas são importantes”
em que o YouTube afirma que as contestações servem para “aprimorar o sistema para que ele
tome as decisões corretas com relação a cada vídeo” (v. tópico 6.4.2.8 e YOUTUBE, 2019c,
on-line). Assim, seria contraditório e antiético que a plataforma aproveitasse a contestação da
sanção para aumentar seu valor publicitário, ao mesmo tempo em que prejudicasse o usuário
que contestou.

Também o princípio da função social dos contratos parece vedar a piora do recorrente.
Pelo controle que o YouTube detém de um padrão de comunicação, que lhe confere o poder de
controle sobre uma relevante gama de interações sociais, há – como já mencionado– um grande
interesse da sociedade na manutenção da plataforma como um ambiente livre de censura, onde
as liberdades constitucionais possam ser exercidas em sua plenitude.

Sem embargo, em desfavor dessa tese tem-se que a possibilidade de reformatio in


pejus é reconhecida em processos estatais onde o regime de proteção a direitos fundamentais
incide com intensidade muito maior. No âmbito do direito administrativo sancionador, a Lei n.º
185

9.784/99 previu expressamente a possibilidade de reformatio in pejus em seu art. 64, que
concede aos órgãos de segunda instância um amplo poder de revisão independentemente das
matérias alegadas, bastando que sejam de sua competência, podendo confirmar, modificar,
anular ou revogar, total ou parcialmente, a decisão recorrida, ainda que tal revisão acarrete
gravame à situação do recorrente. Outrossim, no direito penal a possibilidade é igualmente
reconhecida caso a acusação recorra da mesma questão que a defesa.

6.4.2.7. Alterações contratuais e retroação. Punição por conteúdo anteriormente aceito

Podemos ousar e discutir a questão da retroação de novas normas inseridas nos Termos
de Serviço e Diretrizes da Comunidade. Considerando-se que a disponibilização de vídeos na
plataforma tende à continuidade, as novas disposições contratuais também haveriam de afetar
o conteúdo disponibilizado em momento anterior. Se após a mudança dos Termos de Serviço e
Diretrizes da Comunidade o criador de conteúdo segue utilizando a plataforma, presume-se a
sua aderência às novas cláusulas, de modo que não poderia questionar a sua punição afirmando
que o conteúdo postado era anteriormente aceito ou que a punição anteriormente prevista para
aquela conduta era menos intensa.

Neste caso, a boa-fé objetiva age em seu desfavor, pela contraditoriedade que se
vislumbra em seu comportamento de aceitação/não-aceitação da mudança das cláusulas
contratuais. É dever da rede social, contudo, informar os criadores de conteúdo de eventuais
mudanças. Obrigação que o YouTube assume expressamente.

Mesmo que se buscasse eventual analogia com o direito estatal punitivo, sem prejuízo
das dificuldades que a transposição da questão ao âmbito privado representa visto o diverso
grau de incidência dos direitos fundamentais, melhor sorte não lhe assistiria, pois o Supremo
Tribunal Federal já sumulou entendimento no sentido de que “A lei penal mais grave aplica-se
ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da
continuidade ou da permanência” (Súmula n.º 711).

6.4.2.8. Juiz natural. (Des)necessidade de revisão da punição por um ser humano


186

Os termos do contrato do YouTube não garantem que todas as contestações das


punições aplicadas serão necessariamente analisadas por um ser humano, embora a plataforma
admita que as punições podem ser aplicadas por inteligência artificial – o que inclusive levou a
equívocos como o banimento de vídeos de competições de lutas de robôs por alegada
“crueldade animal” (CUTHBERTSON, 2019, on-line).

Como exceção, a rede social garante expressamente a revisão humana da atuação de


seus algoritmos de controle de publicidade. Quando um vídeo é qualificado como inadequado
para anunciantes, o usuário afetado pode contestar a decisão, que será então analisada por um
especialista do YouTube. A decisão do especialista, por sua vez, não é passível de contestação:

Solicitar revisão humana de vídeos marcados como "Não é adequado para a


maioria dos anunciantes"
Se o conteúdo de um vídeo que você enviou for identificado como não adequado para
anunciantes, um cifrão amarelo ou aparecerá ao lado dele.

Um vídeo será marcado como "Não adequado para a maioria dos anunciantes" no
Gerenciador de vídeos nestes casos:
Nossos sistemas automatizados indicam que seu conteúdo não é adequado para todas
as marcas.
Observação: caso acredite que nossos sistemas cometeram um erro, você poderá
solicitar uma revisão humana. As decisões tomadas pelo especialista nesse processo
ajudam a melhorar nossos sistemas ao longo do tempo. Excluir e reenviar o vídeo não
resolverá o problema. O conteúdo pode ser enviado para revisão somente uma vez, e
não é possível contestar a decisão do especialista. Saiba mais sobre como as revisões
de adequação para anúncios funcionam.
Nossos especialistas concluíram que seu vídeo não atende às diretrizes de conteúdo
adequado para publicidade. (YOUTUBE, 2019c, on-line).

Questiona-se se o direito ao devido processo legal obrigaria a plataforma a um


julgamento por seres humanos em todos os casos.

Tendo em vista a necessidade de interpretação do contrato em favor do aderente (arts.


113, IV e 423 do Código Civil), parece-nos que a garantia conferida aos casos de restrição de
publicidade há de ser necessariamente estendida às hipóteses de censura de conteúdo e de
suspensão da conta, mesmo por que, são medidas que afetam o usuário de modo mais grave.
Também é certo que, ao menos no estado atual de desenvolvimento da inteligência artificial, é
mais benéfico ao criador de conteúdo ter sua contestação revisada por um ser humano. Assim,
esta é a interpretação mais adequada ao devido processo legal.

Aliás, o próprio YouTube reconhece expressamente no contrato a importância da


revisão humana:
187

Por que as revisões humanas são importantes


A tecnologia de aprendizado e milhões de análises manuais, de contestações, servem
como base para o sistema que aplica os ícones de monetização. Isso ajuda a treinar e
aprimorar o sistema para que ele tome as decisões corretas com relação a cada vídeo.
A tecnologia compara as decisões do revisor humano com as da classificação
automática e usa essas informações para melhorar a precisão do sistema em geral.
Estamos sempre aprimorando os sistemas automatizados e suas análises nos ajudam
a tomar decisões mais precisas. (YOUTUBE, 2019c, on-line).

Também é verdade que o legislador brasileiro já demonstrou preocupação com a


“algoritmização” da sociedade e cuidou de inserir norma específica no texto original da Lei
Geral de Proteção de Dados, que previa a obrigatoriedade de revisão por pessoa natural das
decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais:

Art. 20. O titular dos dados tem direito a solicitar a revisão de decisões tomadas
unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais que afetem seus
interesses, incluídas as decisões destinadas a definir o seu perfil pessoal, profissional,
de consumo e de crédito ou os aspectos de sua personalidade.
[...]
§ 3º A revisão de que trata o caput deste artigo deverá ser realizada por pessoa natural,
conforme previsto em regulamentação da autoridade nacional, que levará em
consideração a natureza e o porte da entidade ou o volume de operações de tratamento
de dados.

Todavia, o dispositivo foi vetado pelo Executivo com base nas seguintes razões
políticas:

Razões do veto
A propositura legislativa, ao dispor que toda e qualquer decisão baseada unicamente
no tratamento automatizado seja suscetível de revisão humana, contraria o interesse
público, tendo em vista que tal exigência inviabilizará os modelos atuais de planos de
negócios de muitas empresas, notadamente das startups, bem como impacta na análise
de risco de crédito e de novos modelos de negócios de instituições financeiras,
gerando efeito negativo na oferta de crédito aos consumidores, tanto no que diz
respeito à qualidade das garantias, ao volume de crédito contratado e à composição
de preços, com reflexos, ainda, nos índices de inflação e na condução da política
monetária.

O Congresso manteve o veto do Executivo e a obrigatoriedade de revisão humana das


decisões automatizadas acabou de fora da redação final da lei.

Em primeiro lugar, como anota Felipe Palhares, os argumentos utilizados para o veto
colocam o Brasil em uma posição particular em face de nações desenvolvidas como os Estados
membros da União Europeia, onde tal objeção não foi levantada, visto que no âmbito da
188

General Data Protection Regulation (GDPR) os titulares de dados possuem o direito de não
estarem sujeitos a decisões automatizadas que lhes acarretem efeitos jurídicos ou que os afetem
significativamente de modo similar, salvo em casos excepcionais. E mesmo nesses casos
excepcionais, os titulares têm direito a solicitar intervenção humana para expressar seus pontos
de vista e contestar eventuais decisões (2019, on-line).

Senão vejamos:

(71) O titular dos dados deverá ter o direito de não ficar sujeito a uma decisão, que
poderá incluir uma medida, que avalie aspetos pessoais que lhe digam respeito, que
se baseie exclusivamente no tratamento automatizado e que produza efeitos jurídicos
que lhe digam respeito ou o afetem significativamente de modo similar, como a recusa
automática de um pedido de crédito por via eletrônica ou práticas de recrutamento
eletrônico sem qualquer intervenção humana. Esse tratamento inclui a definição de
perfis mediante qualquer forma de tratamento automatizado de dados pessoais para
avaliar aspetos pessoais relativos a uma pessoa singular, em especial a análise e
previsão de aspetos relacionados com o desempenho profissional, a situação
económica, saúde, preferências ou interesses pessoais, fiabilidade ou comportamento,
localização ou deslocações do titular dos dados, quando produza efeitos jurídicos que
lhe digam respeito ou a afetem significativamente de forma similar. No entanto, a
tomada de decisões com base nesse tratamento, incluindo a definição de perfis, deverá
ser permitida se expressamente autorizada pelo direito da União ou dos Estados-
Membros aplicável ao responsável pelo tratamento, incluindo para efeitos de controlo
e prevenção de fraudes e da evasão fiscal, conduzida nos termos dos regulamentos,
normas e recomendações das instituições da União ou das entidades nacionais de
controlo, e para garantir a segurança e a fiabilidade do serviço prestado pelo
responsável pelo tratamento, ou se for necessária para a celebração ou execução de
um contrato entre o titular dos dados e o responsável pelo tratamento, ou mediante o
consentimento explícito do titular. Em qualquer dos casos, tal tratamento deverá ser
acompanhado das garantias adequadas, que deverão incluir a informação específica
ao titular dos dados e o direito de obter a intervenção humana, de manifestar o seu
ponto de vista, de obter uma explicação sobre a decisão tomada na sequência dessa
avaliação e de contestar a decisão. Essa medida não deverá dizer respeito a uma
criança.
A fim de assegurar um tratamento equitativo e transparente no que diz respeito ao
titular dos dados, tendo em conta a especificidade das circunstâncias e do contexto em
que os dados pessoais são tratados, o responsável pelo tratamento deverá utilizar
procedimentos matemáticos e estatísticos adequados à definição de perfis, aplicar
medidas técnicas e organizativas que garantam designadamente que os fatores que
introduzem imprecisões nos dados pessoais são corrigidos e que o risco de erros é
minimizado, e proteger os dados pessoais de modo a que sejam tidos em conta os
potenciais riscos para os interesses e direitos do titular dos dados e de forma a
prevenir, por exemplo, efeitos discriminatórios contra pessoas singulares em razão da
sua origem racial ou étnica, opinião política, religião ou convicções, filiação sindical,
estado genético ou de saúde ou orientação sexual, ou a impedir que as medidas
venham a ter tais efeitos. A decisão e definição de perfis automatizada baseada em
categorias especiais de dados pessoais só deverá ser permitida em condições
específicas.

Em igual sentido, a Carta dos Direitos Fundamentais Digitais da União Europeia, uma
iniciativa de um grupo de cidadãos europeus acompanhada pela Fundação ZEIT Ebelin e Gerd
Bucerius, prevê como direito fundamental a proteção contra decisões e sistemas automatizados,
189

garantindo, dentre outras coisas, que “decisões que atinjam direitos fundamentais só podem ser
tomadas por seres humanos” e que “toda pessoa sujeita a uma decisão automatizada que tenha
impacto significativo na sua vida tem direito a uma revisão independente e decidida por um ser
humano”:

Article 5 (Automated Systems and Decisions)


(1) Ethical principles may be formulated only by human beings, and decisions that
impact fundamental rights may be made only by human beings.
(2) The responsibility for automated decisions must lie with a natural or legal person.
(3) The criteria leading to automated decisions, such as in the case of digital profiling,
must be transparent.
(4) Every person subject to an automated decision that has a significant impact on his
or her life has the right to an independent review and ruling by a human being.
(5) Decisions about life and death, physical integrity, and the deprivation of liberty
may be made only by human beings.
(6) The use of artificial intelligence and robotics in areas related to fundamental
rights violations must be subject to social debate and regulated by legislation.
(DIGITAL CHARTA, 2018, on-line)

Outrossim, as preocupações demonstradas pela Presidência da República e acatadas


pelo Congresso Nacional não parecem se adequar às circunstâncias das relações entre redes
sociais de streaming e criadores de conteúdo, de modo que não devem representar óbice à
interpretação aqui defendida. Pelo contrário, a revisão humana da suspensão de contas/remoção
de conteúdo favorece o interesse público, na medida em que reforça a limitação do poder
concretado pela rede social e melhora a autorregulação do conteúdo ali veiculado. Pode-se
discutir, é claro, se a exigência não dificultaria a entrada de novos players no mercado de
streaming de vídeo, considerado o incremento dos custos decorrente da necessidade de
contratação de profissionais dedicados. O argumento é coerente, mas o texto vetado já contava
com esse detalhe e por isso sujeitava a exigência de revisões humanas a regulamentação a ser
criada pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados, a qual justamente adaptaria a exigência
de acordo com as características específicas do controlador e das atividades de tratamento de
dados pessoais, de modo que não fosse impedido o desenvolvimento de novos modelos de
negócio. Sem embargo, especificamente em relação ao YouTube, é certo que ele poderia muito
bem arcar com os custos decorrentes, além de a exigência decorrer de uma necessidade de
limitação de seu poder.
190

6.4.2.9. Publicidade dos julgamentos

Questiona-se se o processo de contestação deveria ser público e se a rede social estaria


obrigada a publicar o resultado dos julgamentos.

Esse dever não é assumido expressamente no contrato do YouTube e parece difícil ele
ser extraído das regras e princípios que o regem. A eventual negativa da rede social não parece
contrariar a boa-fé, não sendo causa direta de contrariedade a expectativas ou abuso de posições
contratuais.

Sem embargo, é possível se pensar em um dever de publicidade a partir da invocação


direta da norma constitucional que prevê o devido processo legal (art. 5º, LIV).

A publicidade dos atos processuais integra o devido processo legal justificando-se pelo
interesse público na transparência dos atos de poder estatais. No caso das redes sociais essa
razão persiste, sendo inegável o interesse público na publicação dos julgamentos do YouTube.

A publicidade das decisões da rede social permite uma maior lisura de suas práticas
de autorregulação de conteúdo, em primeiro lugar, porque desenvolve e evidencia aos usuários
exatamente quais conteúdos e condutas são vedados na plataforma. Isto fortalece a efetividade
das Diretrizes da Comunidade, beneficiando inclusive a rede social com a geração de um
ambiente mais atrativo para os anunciantes e mais saudável para os seus usuários, evitando a
sua responsabilização por conteúdo ilícito de terceiros. Por outro lado, a publicação das
decisões seria útil para o controle da proporcionalidade das punições aplicadas, porque os
criadores de conteúdo teriam contato com a dosimetria realizada em casos análogos, podendo
pedir paridade de tratamento.

O § 2º da NetzdDG obriga os provedores de redes sociais a elaborar e tornar públicos


na internet relatórios bienais a respeito da sua gestão das denúncias de conteúdo criminoso. Os
relatórios devem conter informações a respeito do volume de denúncias, das práticas decisórias
e dos times responsáveis por processar as denúncias. Algo semelhante bem poderia ser adotado
no Brasil, visando a transparências das práticas decisórias das redes sociais.

Há de se considerar, de outra parte, a intimidade dos usuários censurados, mas isto


pode ser conciliado, por exemplo, pela publicação apenas do resultado do julgamento,
demonstrando qual o raciocínio da rede social pela manutenção/levantamento de uma punição,
tomando-se o cuidado de não identificar o usuário punido.
191

6.4.2.10. Duplo grau de jurisdição

O contrato do YouTube preconiza que só é possível contestar ações decorrentes do


descumprimento de Diretrizes da Comunidade uma vez (YOUTUBE, 2019b, on-line), sem
tratar da possibilidade de recurso da decisão. Ao mesmo tempo, no que se refere à reavaliação
da adequação do vídeo às políticas de monetização, ele é expresso no sentido de que a “decisão
do revisor é final e os status de monetização do vídeo não será mais alterado” (YOUTUBE,
2019c, on-line).

Estaria obrigada a rede social de streaming a conferir o direito ao duplo grau de


jurisdição, concedendo ao usuário o direito de recorrer da decisão de sua contestação?

A primeira questão a ser enfrentada é a quem competiria o julgamento desse recurso?


Devolver a matéria a um mesmo corpo de julgadores para revolver questão que já analisou
causa perplexidade, pois não traz o ganho em segurança da justiça da decisão que se espera
dessa garantia. Apenas torna o processo mais lento e mais enviesado. O que, afinal, justifica o
duplo grau de jurisdição é a expectativa de se obter uma decisão melhor, por meio da submissão
da questão a julgadores mais experientes, que ainda não tiveram contato com a matéria, de
preferência integrantes de um colegiado de composição plural, que decida em conjunto.

Por isso não parece haver sentido exigir a revisão da decisão, sem que antes exista um
órgão apropriado para julgar a matéria, mesmo que criado pela própria rede social, ou um ´prgão
independente talvez criado redes sociais em conjunto, algo como o Conselho Nacional de
Autorregulamentação Publicitária (CONAR). Mas nada do gênero ainda é realidade, e é
demasiado que o Judiciário imponha a sua criação, mesmo por que, além da gravidade dessa
intervenção na relação contratual, exigência do duplo grau de jurisdição como direito
fundamental componente do conteúdo mínimo do devido processo legal não está até hoje
assentada em bases firmes nem mesmo nas relações jurídicas Estado-indivíduo.
192

É certo que a Constituição Federal de 1988 não faz menção expressa a esse direito.
Todavia, embora não conste do texto constitucional, ao menos em sede de jurisdição penal39 a
garantia possui previsão expressa no art. 8º, 3º, “h” do Pacto de San José da Costa Rica
(Convenção Americana sobre Direitos Humanos), que integra o ordenamento jurídico
brasileiro, tendo sido promulgado pelo Decreto n.º 678, de 6 de novembro de 1992 e cujo caráter
materialmente constitucional foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do
HC 90.450. Ocasião em que a nossa Corte Constitucional acolheu a orientação que atribui
natureza constitucional às convenções internacionais de direitos humanos celebradas ou
aderidas pelo Brasil mesmo antes da entrada em vigor da EC n.º 45/2004, por comporem o
chamado bloco de constitucionalidade.

Mas mesmo o STF entende que a garantia ao duplo grau em matéria penal não é
absoluta, encontrando restrições na própria Carta Magna, de modo que se faz possível a sua
restrição pelo legislador infraconstitucional, tal, como ocorre justamente nos casos em que
previsto o foro por prerrogativa de função (Cf. RHC 79785 e AI 601.832 e Súmula 704, do
STF).

No tocante à jurisdição civil, a doutrina se divide. Favorável à sua consideração como


garantia constitucional Djanira Maria Radamés de Sá, sustenta sua posição com base em
interpretação gramatical do art. 5º, LV da Constituição Federal:

"[…] a partir da argumentação linguística, é possível demonstrar a intenção do autor


no momento em que se utilizou do aditivo ‘e’ para ligar os termos meios e recursos.
Se a vontade do legislador fosse a de igualar os termos, teria utilizado a conjunção
‘ou’, o que não fez. Assim a palavra recurso tem a conotação específica de

39
Confira-se o referido dispositivo na íntegra: “Artigo 8º – Garantias judiciais. 1. Toda pessoa terá o direito de ser
ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente
e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou
na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 2.
Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente
comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias
mínimas: a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda
ou não fale a língua do juízo ou tribunal; b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação
formulada; c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa; d) direito do
acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se,
livremente e em particular, com seu defensor; e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor
proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele
próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei; f) direito da defesa de inquirir as testemunhas
presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam
lançar luz sobre os fatos; g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada; e h)
direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior. 3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação
de nenhuma natureza. 4. O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo
processo pelos mesmos fatos. 5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os
interesses da justiça”.
193

instrumento para a prática de um ato específico, ou seja, recorrer da decisão que lhe
foi desfavorável." (1999, pp. 107-108).

Já Fredie Didier Jr., outro adepto de seu caráter constitucional, aposta na interpretação
lógico-sistemática do texto constitucional para considerar o duplo grau de jurisdição como um
princípio implícito, ainda que não absoluto, que deriva da própria forma escalonada como os
órgãos do Poder Judiciário são estruturados na Constituição:

Considerando que o princípio não precisa estar expressamente previsto para que esteja
embutido no sistema normativo, pode-se concluir que a Constituição Federal, ao
disciplinar o Poder Judiciário com uma organização hierarquizada, prevendo a
existência de vários tribunais, tem nela inserido o princípio do duplo grau de
jurisdição. Sendo assim, é possível haver exceções ao princípio, descerrando-se o
caminho para que a legislação infraconstitucional restrinja ou até elimine recursos em
casos específicos. Além do mais, sendo o duplo grau um princípio, é certo que pode
haver princípios opostos, que se ponham como contraponto. Em outras palavras,
sendo o duplo grau um princípio, pode ser contraposto por outro princípio, de molde
a que haja limites de aplicação recíprocos. (2016, pp. 90-91).

Em sentido contrário, Orestes Nestor de Souza Laspro, autor de obra clássica sobre o
tema, acredita que o princípio não integra o devido processo legal, tampouco consta da
Constituição Federal, de modo que consiste em mero elemento acidental, sendo possível sua
restrição pelo legislador ordinário (1995, p. 96).

Enquanto Marinoni diferencia seu entendimento conforme se trate da revisão de


questões de direito e de questões de fato em sede recursal.

Quanto às questões de direito, Marinoni aduz que:

Embora o duplo grau possa ser considerado importante para uma maior segurança da
justiça da decisão, a verdade é que ele não é vital para o bom funcionamento da justiça
civil. Em algumas hipóteses, é racional e legitima a dispensa do duplo grau,
especialmente em nome do direito fundamental ao processo justo ou, mais
precisamente, de uma maior qualidade e tempestividade da tutela jurisdicional.
(MARINONI, 2015, pp. 356-357).

Por outro lado, no tocante à revisão das questões de fato, sua oposição é enérgica. Na
sua opinião o bom julgamento da matéria de fato é dependente do contato direto do juiz com as
partes e a produção da prova (oralidade), de modo que submeter a sua análise a revisão por um
tribunal não garante de nenhum modo uma decisão melhor. A certa altura, ele se refere ao duplo
grau em matéria de fato como sendo um “mito”:

O duplo grau, no caso de matéria de fato, constitui um atentado contra a oralidade,


que propicia um julgamento de maior qualidade e, portanto, uma tutela jurisdicional
194

mais adequada. O juiz, quando em contato direto com as partes e com a produção da
prova, pode formar uma convicção mais próxima da ideal a respeito dos fatos que dão
conteúdo ao litigio. Se o duplo grau é necessário, e o tribunal vai apreciar a matéria
de fato a partir da documentação dos atos processuais, é logico que a decisão do
tribunal não pode ser melhor do que o julgamento de primeiro grau de jurisdição. O
duplo grau não pode ser considerado um princípio fundamental de justiça, já́ que ele
não garante a qualidade e a efetividade da prestação jurisdicional. Muito mais
importante que o duplo grau é o direito à adequada tutela jurisdicional – esse sim um
direito garantido pelas Constituições modernas –, direito que, para ser efetivo, exige
uma resposta jurisdicional em um prazo razoável, exigência difícil de ser atendida em
um sistema em que estão presentes dois juízos repetitivos sobre o mérito. É importante
esclarecer que nenhum ordenamento, nem na Itália nem em qualquer outro país – nem
mesmo na França, onde a ideia do double degré de juridiction parece estar
particularmente arraigada –, considera o duplo grau de jurisdição como uma garantia
constitucional. Ao contrário, em quase todos os países existem mitigações do duplo
grau, justamente para atender ao princípio fundamental de acesso à justiça. [...] Por
outro o lado, o duplo grau também deve ser afastado em vista de determinadas e
particulares situações de direito substancial que assim recomendem. Lembre-se, por
exemplo, o caso da ação de despejo fundada em falta de pagamento. Suponha-se que
o locador vá a juízo e demonstre que o locatário não paga aluguel há quatro meses.
Imagine-se, ainda mais, que no momento da sentença o locatário já não paga aluguel
há doze meses. Em um caso como este, por incrível que pareça, exige-se do locador,
para a 'execução provisória', depósito não inferior a doze ou superior a dezoito meses
do valor do aluguel (art. 64 da Lei 8.245/1991 – Lei do Inquilinato). Pouca coisa pode
parecer mais absurda; mas é a realidade posta pela Lei do Inquilinato, que certamente
foi influenciada pelo mito do duplo grau. O processualista tem que se convencer de
que deve trabalhar com base naquilo que comumente ocorre. Será que 95% dos
locadores devem ser prejudicados para que 5% dos locatários não o sejam? Recorde-
se, aliás, por oportuno, que as leis de proteção do locatário – fundadas em um
discutível e romântico princípio de proteção do 'mais fraco'– estão acabando com a
propriedade familiar, parcelada, de imóveis urbanos, e transferindo a propriedade
urbana para os grandes conglomerados financeiros (MARINONI, 2003, pp. 218 e ss
apud MARINONI, 2015, pp. 356-357, nota de rodapé 8).

Vale lembrar que o duplo grau de jurisdição não consta dentre as “Normas
Fundamentais de Processo Civil” do Código de Processo Civil de 2015, que também eliminou
recursos como os embargos infringentes e o agravo retido e restringiu as hipóteses de cabimento
do agravo de instrumento. Além disso, foram elevadas as multas aplicáveis para os recursos
protelatórios. Tudo a revelar uma compreensão do tema, não como garantia absoluta, mas como
uma decisão discricionária do legislador tendo em consideração a sua instrumentalidade.

6.5. Controle judicial: formal e material. Efeitos horizontais de direitos fundamentais como
paradigma de controle material. Precedentes na jurisprudência da Alemanha

O descumprimento das obrigações contratuais relativas ao processo legal possibilita o


recurso ao Judiciário.
195

O controle judicial das decisões da rede social tendo por base o direito fundamental ao
devido processo legal é plenamente possível, inclusive porque será feito com a tônica da
verificação do adimplemento do contrato. Assim é que as decisões podem ser controladas tanto
em seu aspecto formal quanto material.

O controle formal das decisões se relaciona com a dimensão formal do devido processo
legal e se conclui com um juízo a respeito da adequação da atuação da rede social às garantias
endoprocessuais previstas contratualmente. A tutela judicial concedida variará conforme a
prestação descumprida. Se não houve oportunização de defesa ou motivação da decisão, caberá
sua anulação. Se o processo está demorando excessivamente, cabe a suspensão da sanção e o
cumprimento forçado da obrigação com a fixação de multa até que uma decisão final seja
emitida. Isto, sem prejuízo da responsabilidade pelas perdas e danos, juros de mora, correção
monetária e honorários advocatícios.

O direito ao devido processo legal em sua dimensão formal configura uma garantia à
forma com que imposta a restrição a um direito, e não a um conteúdo específico da restrição.
Nesta lógica, a intervenção do Judiciário visando sua implementação não servirá à garantia da
decisão da rede social em um determinado sentido, mas sim que essa decisão seja tomada após
o contraditório, que seja motivada, etc. Bem por isso, após a anulação de uma punição por
desrespeito ao devido processo legal, não tendo o Judiciário sindicado o seu mérito – isto é,
tendo se limitado ao controle formal da decisão – nada impede que a rede social insista na
remoção do conteúdo ou suspensão da conta, desde que a segunda decisão seja tomada com
respeito às garantias formais antes violadas.

Já o controle material da decisão se refere à dimensão substancial do devido processo


legal. Ele é exigido nos casos em que a punição aplicada é desproporcional à conduta ou aqueles
em que o usuário é punido arbitrariamente por uma infração não prevista de modo transparente
no contrato. Estes cenários apresentam uma dificuldade maior de conciliação com a autonomia
privada, pois implicam um juízo de mérito sobre a decisão tomada pela rede social. Por isso se
faz necessário discutir quais são os critérios materiais que o Judiciário poderá considerar, tendo
em vista a necessidade de preservação da autonomia privada da rede social no maior grau
possível.

Caso admitido que os únicos critérios possíveis para o seu controle material são
aqueles definidos no contrato, então a intervenção do Judiciário se limitará à verificação da
compatibilidade da decisão com eles. Por exemplo, no que toca à proporcionalidade haverá
196

fiscalização da aplicação dos critérios contratuais de dosimetria da sanção, enquanto que, na


outra hipótese, o juiz irá aferir a subsunção da conduta do criador de conteúdo aos tipos
convencionais – assim, se o contrato veda pornografia, mas não a nudez, cabe verificar se o
conteúdo é efetivamente pornográfico, conforme o que o contrato diz ser pornográfico. Por isso,
como já dito, seria importante a publicização das decisões anteriores da rede social, por
formarem um parâmetro de controle de suas decisões acessível pelo juiz – ficaria mais claro o
que a rede social reputa como pornografia.

Na tentativa de esclarecer o conteúdo vedado pelas Diretrizes da Comunidade o


YouTube criou a Creator Academy (Escola de Criadores de Conteúdo), uma plataforma que
contém aulas e cursos que, dentre outros temas, explicam aos criadores de conteúdo a respeito
do exato significado de suas diretrizes. Esses esclarecimentos compõem o contrato e vinculam
o YouTube.

A aula que trata do conteúdo proibido de “Sexo e Nudez” traz as seguintes


informações:

“Sexo e nudez”
Não é permitido no YouTube conteúdo como pornografia que tenha como objetivo a
satisfação sexual. A nudez é permitida quando o principal objetivo dela é educativo,
documentário, científico ou artístico e não é infundada. No entanto, é possível que
haja uma restrição de idade desse conteúdo para proteger públicos jovens. O contexto
e os detalhes (tags, títulos, descrição etc.) são importantes porque ajudam os
espectadores a encontrar seu vídeo e a entender o intuito dele. Confira nossas
diretrizes completas neste link.
Perguntas frequentes: o que é satisfação sexual?
O termo "satisfação sexual" indica se o objetivo do conteúdo é despertar o desejo
sexual ou excitar.
Por exemplo: uma playlist ou um vídeo com uma compilação de gafes de looks de
celebridades com decotes ousados que tenha como foco somente as partes expostas
do corpo violaria as diretrizes da comunidade.
Outro exemplo consiste em enviar um vídeo de uma dançarina burlesca com zoom
para focar nas partes íntimas do corpo, em vez de ensinar sobre a arte do burlesco.
Isso não seria permitido (YOUTUBE, 2019d, on-line).

O curso ainda traz testes de conhecimento como o seguinte:

Teste seu conhecimento


Neste exemplo, a mãe de um recém-nascido compartilha as experiências de
amamentação e dá dicas para outras mamães. O vídeo inclui clipes curtos do seio
exposto durante a amamentação e tem tags como: amamentação, mães, bebês e leite
materno. Selecione abaixo a afirmação verdadeira.
197

O conteúdo está de acordo com as diretrizes da comunidade do YouTube porque é


educativo e informativo.
O vídeo não viola as diretrizes da comunidade porque todos os conteúdos sobre
maternidade são permitidos, mesmo se houver nudez.
O conteúdo viola as diretrizes da comunidade porque há nudez explícita, e isso nunca
é permitido no YouTube (YOUTUBE, 2019d, on-line).

A resposta correta, segundo o YouTube é a primeira (“Sim. O conteúdo seria permitido


no YouTube porque compartilha práticas recomendadas e não gera satisfação sexual ao
público”). Certo, assim, que se o YouTube censurar o vídeo educativo de uma mãe que
amamenta tachando como pornográfico, o Judiciário poderá sindicar o mérito da decisão para
reformá-la, aplicando os critérios do próprio contrato para a qualificação de um conteúdo como
pornográfico.

O controle material a que aqui se faz referência é relativo apenas à verificação do


cumprimento do contrato pela rede social, daí a razão de ser da discussão sobre os limites da
intervenção do Judiciário e da restrição do controle aos critérios contratuais. Evidente que se o
conteúdo censurado é criminoso, efetivamente racista, pedófilo, ou de qualquer modo vedado
pelo ordenamento jurídico, sequer cabe à rede social qualquer discricionariedade na escolha da
veiculação do conteúdo, por isso.

De outra parte, é delicado permitir ao Judiciário controlar materialmente as decisões


da rede social com base em juízos de mérito fundamentados em paradigmas externos ao
contrato, como os efeitos horizontais da liberdade de expressão, quando o âmbito de proteção
deste direito, tal como definido pela jurisprudência, conflita com o que a plataforma reputa
adequado publicar. Quer dizer, autorizar o Estado a decidir no lugar da rede social pela
publicação de um vídeo que ela censurou, afastando por invalidade o critério de censura
previsto contratualmente, a partir da aplicação em âmbito privado das liberdades
constitucionais.

Imaginemos o caso em que um vídeo que defende a pena de morte é removido por se
tratar de “discurso de ódio” conforme as Diretrizes da Comunidade da rede social. Poderia o
Judiciário garantir a sua publicação com base no direito à liberdade de expressão, ainda que a
rede social tenha considerado que não se trata de uma manifestação legítima desse direito40?
Parece se tratar de uma intervenção drástica na autonomia da rede social para definir qual tipo

40
É óbvio que, ao revés, se o conteúdo reflete efetivamente discurso de ódio a rede social não poderia insistir na
sua divulgação com base na autonomia privada, que, como visto, não imuniza ofensas a direitos fundamentais.
198

de conteúdo merece veiculação. Ao menos em princípio não haveria óbice a que a rede social,
enquanto sujeito privado titular de direitos fundamentais, promovesse a sua própria agenda
política por meio de sua plataforma. O entendimento em contrário gera o risco de
homogeneização do discurso e hiperinflação da tutela de direitos fundamentais. Mas a questão
não é tão simples e, pela complexidade, não será abordada em profundidade neste trabalho.

De todo modo, vale mencionar que a Alemanha possui precedentes em sua


jurisprudência a respeito da utilização dos efeitos horizontais da liberdade de expressão para o
controle das punições aplicadas por redes sociais.

O Tribunal Regional Superior de Munique (Oberlandesgericht München) decidiu em


24 de agosto de 2018 que, ao remover o conteúdo, o Facebook não deve colocar seus próprios
padrões da comunidade acima do direito fundamental à liberdade de expressão dos usuários da
rede social. O caso versava justamente sobre uma postagem que a rede social considerou
ofensiva ao contrato por se tratar de discurso de ódio. Na visão dos juízes de Munique o
Facebook não poderia, a seu exclusivo critério, determinar se uma postagem pode ser excluída
ou não, de modo que uma manifestação garantida pelo direito fundamental à liberdade de
expressão não poderia ser excluída. O OLG de Munique então decidiu reformando o
entendimento do Facebook que o conteúdo removido evidentemente não era uma mensagem
de ódio, uma vez que a postagem do usuário não foi um ataque direto a uma pessoa em função
de raça, etnia, origem nacional, filiação religiosa, orientação sexual, identidade de gênero ou
por deficiência ou doenças. Pelo contrário, seria uma expressão abrangida pela liberdade de
expressão no contexto de uma discussão individual e pessoal. Na decisão, a Corte levou em
consideração que seria ineficaz cláusula então contida nas Diretrizes da Comunidade do
Facebook que lhe permitiria decidir unilateralmente sobre a remoção de qualquer conteúdo que
a rede social reputasse violar as suas diretrizes. A cláusula conferiria uma desvantagem desleal
à rede social em ofensa à boa-fé objetiva, além de contrariar a Seção 241 (2) do BGB, segundo
o qual as partes contratantes são obrigadas a respeitar os direitos da outra; cláusula geral por
meio do qual se manifestariam os efeitos horizontais da liberdade de expressão no direito
privado. Assim, devido ao efeito indireto dos direitos fundamentais, a liberdade de expressão
do usuário deve ser levada em consideração no que diz respeito ao conteúdo. Afirmou-se
também ser crucial que as redes sociais atendam ao objetivo de fornecerem um mercado público
de informações e troca de pontos de vista.

Confira-se a ementa do julgado, em tradução livre:


199

1. É ineficaz a cláusula de contrato de adesão segundo a qual o provedor de uma rede


social se reserva o direito de remover todo o conteúdo publicado por usuários que ele
(o provedor) julgar violar as diretrizes da plataforma, porque isso prejudica
injustificadamente o usuário como parceiro contratual do provedor, contrariando as
exigências da boa-fé objetiva;
2. Os direitos fundamentais têm um efeito indireto sobre terceiros, na medida em que
os direitos fundamentais previstos na Lei Fundamental constituem uma ordem
objetiva de valores que se aplicam a todas as áreas do direito como decisões
constitucionais fundamentais, influenciando também o direito privado. A Seção 241
(2) do Código Civil Alemão constitui uma cláusula geral cuja interpretação deve levar
em conta o direito fundamental à liberdade de expressão.
3. Seria incompatível com a necessária compensação das posições contratantes de
direitos fundamentais conforme o princípio da concordância prática se o provedor de
uma rede social, baseado em um “direito ao domicílio virtual” sobre a plataforma se
uma plataforma pudesse excluir o conteúdo postado por um usuário por violar suas
diretrizes, ainda que a manifestação não supre os limites da liberdade de expressão.
4. A interpretação de uma manifestação da liberdade de expressão pressupõe a
determinação de seu significado objetivo do ponto de vista de um público imparcial e
maduro. Quando se registra o conteúdo de uma declaração, a declaração contestada
deve ser valorada conforme o entendimento de um leitor médio imparcial e no uso
geral no contexto geral em que foi feita. Não deve ser retirado do contexto que lhe diz
respeito e ter uma visão puramente isolada41.(2019, on-line).

A decisão do OLG München parece sinalizar uma tendência da jurisprudência do país,


pois, antes disso, o Tribunal Regional de Frankfurt am Main (Landgericht Frankfurt am Main)
já havia decidido em 14 de maio de 2018 que:

1. De maneira geral, o provedor de uma rede social pode impor suas condições
contratuais removendo conteúdo ilegal ou bloqueando as contas dos usuários.
2. Entretanto, o contrato celebrado entre o usuário e o provedor da plataforma inclui
deveres de proteção do usuário de acordo com a Seção 241 (2) do Código Civil
Alemão (BGB), por força do qual – dado os efeitos horizontais indiretos– os direitos
fundamentais dos afetados devem ser levados em consideração.

41
No original: “1. Eine Allgemeine Geschäftsbedingung des Betreibers einer Social-Media-Plattform, wonach
dieser sämtliche Inhalte, die ein Nutzer postet, entfernen kann, wenn er (der Betreiber) der Ansicht ist, dass diese
gegen die Richtlinien der Plattform verstoßen, ist unwirksam, weil sie den Nutzer als Vertragspartner des
Betreibers entgegen den Geboten von Treu und Glauben unangemessen benachteiligt. (Rn. 24 – 25)
(redaktioneller Leitsatz). 2. Den Grundrechten kommt insoweit eine mittelbare Drittwirkung zu, als das
Grundgesetz in seinem Grundrechtsabschnitt zugleich Elemente objektiver Ordnung errichtet hat, die als
verfassungsrechtliche Grundentscheidung für alle Bereiche des Rechts Geltung haben, mithin auch das
Privatrecht beeinflussen. § 241 Abs. 2 BGB bildet eine konkretisierungsbedürftige Generalklausel, bei deren
Auslegung dem Grundrecht auf freie Meinungsäußerung Rechnung zu tragen ist. (Rn. 27) (redaktioneller Leitsatz).
3. Mit dem gebotenen Ausgleich der kollidierenden Grundrechtspositionen nach dem Grundsatz der praktischen
Konkordanz wäre es unvereinbar, wenn der Betreiber einer Social-Media-Plattform gestützt auf ein „virtuelles
Hausrecht“ auf der von ihm bereitgestellten Plattform den Beitrag eines Nutzers, in dem er einen Verstoß gegen
seine Richtlinien erblickt, auch dann löschen dürfte, wenn der Beitrag die Grenzen zulässiger Meinungsäußerung
nicht überschreitet. (Rn. 28) (redaktioneller Leitsatz). 4. Die Interpretation einer Äußerung setzt die Ermittlung
ihres objektiven Sinns aus der Sicht eines unvoreingenommenen und verständigen Publikums voraus. Bei der
Erfassung des Aussagegehalts muss die beanstandete Äußerung ausgehend von dem Verständnis eines
unbefangenen Durchschnittslesers und dem allgemeinen Sprachgebrauch in dem Gesamtzusammenhang beurteilt
werden, in dem sie gefallen ist. Sie darf nicht aus dem sie betreffenden Kontext herausgelöst und einer rein
isolierten Betrachtung zugeführt werden. (Rn. 31) (redaktioneller Leitsatz)”. (OLG MÜNCHEN, 2019, on-line).
200

3. Uma condição prévia para um bloqueio é, portanto, que a exclusão seja


objetivamente justificada e não arbitrária. Bloquear e excluir uma expressão não se
justifica se a expressão for coberta pela liberdade de expressão42. (2018, on-line).

Finalmente, o OLG Karlsruhe enfatizou em um processo semelhante em 25 de junho


de 2018 que, apesar de os direitos fundamentais serem principalmente direitos de defesa dos
cidadãos contra a interferência do Estado, a liberdade de expressão assumiria um efeito
horizontal no caso específico frente ao Facebook que deveria considerar seus efeitos na
exclusão de conteúdo. A Corte, todavia, entendeu que os termos de uso e as diretrizes da
comunidade do Facebook levavam em consideração de maneira adequada esses efeitos
indiretos do direito fundamental à liberdade, de modo que não objetava a qualificação como
discurso de ódio de um comentário que pregava o isolamento de refugiados (2018, on-line).

6.6. Medidas de “compliance” recomendadas às redes sociais de “streaming” para evitar


a anulação de suas sanções

Com base em todo o exposto, sugere-se as seguintes medidas de compliance com o


fim de se evitar a revisão judicial de punições aplicadas por redes sociais de streaming no
exercício do controle do conteúdo postado:

● As condutas passíveis de punição devem ser definidas da forma mais clara


possível, de modo que os usuários possam minimamente prever as
consequências de suas ações;

● As punições devem ser graduadas conforme a gravidade do comportamento,


sendo recomendável a exposição de critérios de dosimetria;

● Todas as punições devem ser comunicadas e devidamente motivadas. Cabe à


rede social demonstrar como os fatos concretos se enquadram às definições

42
No original: “1. Der Betreiber eines sozialen Netzwerks kann seine Verhaltensregeln grundsätzlich auch durch
Entfernung eines rechtswidrigen Inhalts oder durch Sperrung eines Nutzeraccounts durchsetzen. 2. Der zwischen
dem Nutzer und dem Plattformbetreiber geschlossene Vertrag beinhaltet jedoch Schutzpflichten des
Plattformbetreibers gemäß § 241 Abs. 2 BGB, in deren Rahmen – im Wege der mittelbaren Drittwirkung – die
Grundrechte der Betroffenen zu berücksichtigen sind. 3. Voraussetzung einer Sperre ist daher, dass der Ausschluss
sachlich gerechtfertigt und nicht willkürlich ist. Eine Sperre und Löschung wegen einer Äußerung ist dann nicht
gerechtfertigt, wenn die Äußerung von der Meinungsfreiheit gedeckt ist”. (LG FRANKFURT AM MAIN, 2018,
on-line).
201

abstratas do contrato, assim como deve demonstrar os fatores considerados na


gradação da intensidade da sanção aplicada;

● Aos usuários deve ser facultada o oferecimento de defesa independentemente da


gravidade da conduta praticada. Não deve haver punições sumárias;

● No julgamento da contestação a rede social deve demonstrar a consideração dos


argumentos de defesa do criador de conteúdo e como eles não foram suficientes
para alterar a decisão final;

● O processo deve se encerrar em prazo razoável e a decisão final deve ser


motivada. A motivação deve demonstrar a consideração dos argumentos de
defesa apresentados pelo usuário, de preferência, todos;

● Na medida do possível, a rede social deve garantir que os processos de


contestação sejam decididos por seres humanos, embora o controle de conteúdo
por meio de algoritmos seja admissível;

● A situação do usuário não deve ser piorada pelo mero fato de ele ter contestado
a punição;

● Deve ser tornado público um extrato do julgamento, com destaque para as razões
de decidir e a decisão final, ocultando-se o nome do usuário envolvido. A
descrição dos fatos deve ser sucinta e livre de detalhes que permitam a
identificação dos envolvidos na conduta punida.
202

SÍNTESE CONCLUSIVA

As redes sociais de streaming estão vinculadas ao direito fundamental ao devido


processo legal quando atuam censurando o conteúdo veiculado em suas plataformas. O caráter
privado de sua atividade não a torna imune a seus efeitos.

Isto não representa, de nenhum modo, a aniquilação de sua autonomia privada. As


redes sociais de streaming seguem livres, na medida em que o ordenamento jurídico permita,
para delimitar a espécie de conteúdo que pretendem promover, inclusive uma agenda político-
ideológica própria de seus titulares. A princípio, não tendo assim se obrigado, a plataforma não
é obrigada a veicular conteúdo com o qual não compactua. O que se entende é que a censura de
conteúdo deve ser feita às claras e de modo proporcional, ainda que eventualmente represente
restrição à manifestação de ideias tuteladas pelo direito fundamental à liberdade de expressão.
Deve ser evidenciado aos usuários o espectro de expressões culturais que ali pode ser
manifestado. E isto pressupõe, por corolário, que os criadores de conteúdo sujeitos de censura
sejam informados exatamente do porquê de o conteúdo por eles produzidos ser reputado
violador do concreto, sendo-lhe permitido defenderem-se da acusação, podendo apresentar
argumentos de defesa da adequação do que postaram, e que esses argumentos sejam
considerados em uma decisão contrária ou favorável, mas decididamente motivada
racionalmente.

Evita-se, assim, que sob a aparência de uma pretensa neutralidade axiológica no


controle das manifestações permitidas, sob as vestes da legitimidade democrática, esconda-se
a farda do totalitarismo na unificação do discurso político.

O entendimento atual a respeito da vinculação direta ou indireta de particulares à


Constituição é muito próxima e os mesmos resultados podem ser obtidos a partir da aplicação
de qualquer deles. Compreende-se, afinal, que há de se conferir preferência à interpretação da
legislação infraconstitucional conforme os direitos fundamentais e recorrer à aplicação direta
dos direitos fundamentais apenas quando estes se demonstrarem insuficientes para a tutela
adequada do direito em comento.

Quando intervém no domínio privado para o controle do exercício da autonomia


privada, no caso, para controlar a censura de conteúdo pelas redes sociais, o Estado não pode,
a pretexto de proteger direitos fundamentais contra lesões provocadas por terceiros,
negligenciar sua função clássica de defesa contra ações arbitrárias dele próprio. Os direitos
203

fundamentais apresentam um caráter bivalente nas relações entre particulares, pois, ao mesmo
tempo em que tornam exigível a ação dos poderes públicos em favor da proteção da parte
“violada”, também garantem a sua abstenção em favor da liberdade da parte “violadora”, visto
ambas serem igualmente titulares de posições jurídicas deles derivadas. Esse duplo aspecto
deve necessariamente ser considerado pelo julgador, sob pena de o resultado da tutela judicial
ser a mera inversão do sujeito oprimido na relação.

Bem por isso, a definição dos efeitos do devido processo legal na relação jurídica passa
por uma obrigatória análise dos próprios termos do contrato e a sua interpretação conforme o
devido processo legal, dado o necessário à autonomia privada e à segurança jurídica. Pode ser
que o contrato já contenha disposições que contemplem suficientemente a garantia deste direito
fundamental, de modo que desnecessário o recurso direto à norma constitucional. Outrossim, a
intervenção estatal nas relações contratuais deve ser mínima na forma do art. 421do Código
Civil.

Ademais, o Judiciário não pode recorrer diretamente a uma aplicação do direito


fundamental ao devido processo legal sem antes buscar uma solução para a lesão na legislação
infraconstitucional. Na ordem jurídica democrática instaurada pela Constituição Federal de
1988 o legislador ocupa posição preferencial na conformação do conteúdo dos direitos
fundamentais em âmbito privado. A invocação direta de direitos fundamentais para a solução
de lides privadas ignorando o ônus argumentativo representado pela legislação
infraconstitucional é forma injustificada e irrefreada de concentração de poder de criação do
direito, em desrespeito à separação de poderes e à competência decisória do legislador na
conformação de seu conteúdo jurídico.

Veja-se que a interpretação do contrato do YouTube conforme a legislação


infraconstitucional é suficiente para a extração da maioria dos deveres relativos ao devido
processo legal. Inclusive, porque a própria rede social assumiu deliberadamente o compromisso
de respeitá-las. Alguns destes deveres constam de modo expresso, outros implícitos, se
revelando a partir da incidência dos princípios da boa-fé objetiva e da função social dos
contratos.

O controle judicial das decisões da rede social é plenamente possível, inclusive porque
será feita com a tônica do controle do adimplemento de um contrato. Mesmo o controle material
das decisões é cabível, sem dúvida desde que orientado pela vinculação da rede sociais aos
termos contratados. Assim, se a rede social, por exemplo, não veda a nudez, mas sim a
204

pornografia, no caso da retirada de um vídeo por alegado conteúdo pornográfico a autonomia


privada não impede que o juiz analise se efetivamente o material censurado se enquadra na
definição contratual de pornografia. É mais delicada e foi pouco explorada neste trabalho a
questão do controle material das decisões a partir da aplicação direta de outros direitos
fundamentais como a liberdade de expressão no sentido de que a rede social não teria autonomia
para excluir manifestações que, por mais que sejam ofensivas às suas diretrizes, estariam
abarcadas pelo direito em comento. O assunto merece tratamento em sede própria.
205

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